Pedra Bonita (José Lins Do Rego)

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José Lins do Rego

PEDRA BONITA

15ª edição

Rio de Janeiro, 2011


© Herdeiros de José Lins do Rego

Reservam-se os direitos desta edição à


EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA.
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ISBN 978-85-03-01177-8

Capa: VICTOR BURTON e ANGELO ALLEVATO BOTTINO


Ilustração: SANTA ROSA
Desenho de José Lins do Rego: SUELY AVELLAR
Diagramação da versão impressa: EDITORIARTE

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

R267p Rego, José Lins do, 1901-1957


Pedra bonita [recurso eletrônico] / José Lins do Rego. - Rio de Janeiro : José Olympio, 2012. Rrecurso digital
Recurso digital

Contém dados biobibliográficos


Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-85-03-01177-8 [recurso eletrônico]

1. Romance brasileiro. 2. Livros eletrônicos. I. Título.

CDD: 869.93
12-6540
CDU: 821.134.3(81)-3
A
BARROS CARVALHO,
GASTÃO CRULS,
LUÍS JARDIM e
MOACIR PEREIRA
SUMÁRIO
Apresentaçãov(Paulo Rónai)

PEDRA BONITA

PRIMEIRA PARTE
A vila do Açu

SEGUNDA PARTE
Pedra Bonita

Dados biobibliográficos do autor


Biografia
Cronologia bibliográfica
Características do autor
Panorama da época
PEDRA BONITA1

PAULO RÓNAI2

PARA JOSÉ LINS o cangaço não era “história de Trancoso”, e sim realidade vivida. Criança, no
engenho do avô, assistira a duas visitas do “capitão” Antônio Silvino que lhe deixaram marcas
fundas na memória. Lembra-las-ia em Meus verdes anos, depois de ter contado uma delas em termos
quase idênticos em Menino de engenho; além disso, o nome do bandido e a lembrança de suas
façanhas recorrem, volta e meia, em todos os volumes do ciclo.
Tampouco lhe era desconhecido o espetáculo do fanatismo religioso. Uma das primeiras cenas
chocantes que se firmaram na sua retentiva de criança foi a passagem pela estrada de um homem
carregando uma cruz e chicoteado por outro. Em sua ficção3 descreveu o milagre do Alto da Areia,
em que a sede de prodígios de um grupo de moradores, espicaçada pelo desaparecimento dos santos
do velho negro Feliciano, se exacerba a ponto de provocar perturbações da ordem pública e uma
intervenção enérgica das autoridades.
Desta vez ia dar o principal da sua atenção àquelas duas forças elementares e temíveis, tentando
iluminar o mecanismo da sua eclosão. Os dois assuntos impunham-se-lhe tanto mais quanto eram dos
temas dominantes da poesia popular, e ele estar cada vez mais empenhado em identificar a própria
arte com a do povo.
“A um amigo que me perguntava por que não continuava o meu romance Pedra Bonita” —
escreve num artigo saído durante a gestação do livro — “eu lhe respondi: ‘É que eu não tenho lido
mais o poeta João Martins de Ataíde.’ E o que tinha este poeta com o meu romance? Tinha tudo o
meu romance com o poeta. Eu queria escrever a história dos Vieiras, família dos cangaceiros do
Nordeste, e toda a história do cangaço está no rapsodo Ataíde. A poesia deste bardo se fez de
espécie de chanson de geste do cangaceirismo.”4
Não pude verificar se o romancista teve conhecimento do caso da Pedra Bonita por um dos
incontáveis folhetos de história em versos do cantador nordestino. O fato, histórico, poderia ter-lhe
chegado por outros caminhos, já que, além de assinalado numa página de Euclides da Cunha,5
inspirara também O reino encantado, romance de Araripe Júnior.
Lembremos sucintamente o fato, uma das explosões mais espantosas de fanatismo religioso
observadas no Brasil, e que se deu, por coincidência, em 1838, exatamente um século antes da
publicação do romance de José Lins do Rego.6
Na comarca de Vila Bela, referindo-se a estranhas profecias e usando linguagem mística, o
mameluco João Antônio da Silva formou uma seita numerosa, cujos aderentes foram concentrar-se
junto a duas pedras gigantescas de forma descomunal, para, sob a chefia do “rei” João Ferreira,
investido pelo próprio João Antônio, fundarem um reino encantado. Os súditos deste seriam
admitidos ao próximo reino de Deus, contanto que se sacrificassem. Os que oferecessem a vida em
holocausto iam renascer brancos se fossem pretos, saudáveis se fossem doentes, ricos se fossem
pobres. Vários fanáticos, da família Vieira, fizeram-se carrascos para acelerar o advento do Reino.
O morticínio realizou-se num ambiente de exaltação demente: maridos vinham oferecer aos algozes
as suas mulheres, mães traziam os seus filhinhos. Não foi poupado sequer o “rei”, a quem abateram
por sugestão do próprio cunhado, que foi tomar-lhe o lugar. Cinquenta e cinco pessoas estavam
chacinadas no momento da chegada da tropa, mobilizada às pressas pelo comissário de Serra
Talhada; outras 25 caíram no combate, que fez também vítimas entre os soldados. O iniciador do
motim, João Antônio, foi caçado e morto noutro lugar.
Trinta e seis anos depois, quando da expedição organizada ao lugar da matança, ainda viviam nas
proximidades algumas testemunhas do fato, salvas pela polícia à sanha dos fanáticos.
Sem dúvida o episódio encerrava elementos de horror, de fantástico, de grotesco, de suspense,
em grande abundância. Mas José Lins do Rego não quis fazer romance histórico, como, aliás, adverte
numa nota preliminar. Ocorrera-lhe a ideia, artisticamente fecunda, de fazer do episódio da Pedra um
assunto subjacente, de pegá-lo no ato de se transformar em mito, pesadelo agourento a pairar sobre
toda uma região, invocada para explicar-lhe o marasmo e a miséria.
Daí a escolha, para cenário, da vila do Açu, próxima à Pedra, solo mais que indicado para nele
germinarem sementes de histeria coletiva. Os de Açu responsabilizam o povo da Pedra pela
maldição que os oprime, enquanto os da Pedra escolhem para bode expiatório a família Vieira, cujo
antepassado teria denunciado às autoridades as ocorrências atrozes do Reino Encantado. (O
documento que citamos atribuía aos Vieiras outro crime, este real, de promotores do morticínio; mas
esta segunda versão, ligada a possível sobrevivência da superstição do Reino, está mais conforme à
psicologia das massas.) O velho Bento Vieira, descendente desse Judas, vive ao pé da serra do
Araticum, num lugar ermo, entre a vila e a Pedra, evitado por todos, levando com a mulher e os filhos
existência puramente vegetativa.
Maldição chama redenção. O padre Amâncio, que anos antes escolhera a paróquia do Açu no
fervor da sua vocação apostólica, entreviu o meio de remir a maldição da Pedra, quando, ao fugirem
da seca de 1904, os Vieiras lhe confiaram o seu filho mais moço, Antônio Bento. Criado por ele, o
menino deveria ser o primeiro sacerdote da Pedra.
Apesar de ter disposição para isto, Antônio Bento não poderá chegar ao sacerdócio: falta ao
padre Amâncio influência para mandá-lo ao seminário. Crescerá junto ao padrinho, desempenhando
as funções de coroinha e sineiro. É ele a personagem principal da história, e através dele é que
percebemos e vivemos um surto de fanatismo e de cangaço que ameaça reproduzir a catástrofe da
Pedra Bonita.
Em volta de Antônio Bento, o romancista movimenta uma multidão pitoresca de personagens,
individualizadas e motivadas, com sua fala e seus tiques, suas paixões e suas manias. No Açu, são d.
Eufrásia, irmã do padre, e a negra Maximina, sua criada; o sacristão Laurindo e sua mulher, d. Auta;
as beatas do lugar; Joca barbeiro, chefe do grupo de maldizentes reunidos sob a tamarineira da praça;
o major Cleto, da polícia; o coronel Clarimundo e seu inimigo, o major Evangelista, devotado aos
seus pássaros e detestado pela própria filha, a histérica d. Fausta; o vendeiro Salu, o truculento juiz
dr. Carmo, sua mulher e seu filho desordeiro, e quantos mais. No Araticum, o grupo fechado do velho
Bento Vieira, desumano em sua impassibilidade, sua mulher sofredora sinhá Josefina, seus dois
filhos tão diferentes. Aparício e Domício, um brigão, outro sonhador. A caminho da Pedra, o velho
caboclo Zé Pedro, decifrador de mistérios. Entre esses pontos cardeais, os transeuntes que
interrompem com suas incursões a modorrenta rotina do lugar: os cangaceiros, a volante, o santo
sertanejo com seu séquito de fanáticos, o cantador ambulante Dioclécio. Mas, entre todos, avulta o
padre Amâncio, comovedor em sua despretensiosa simplicidade, sua destemida fraqueza, no malogro
de sua tentativa de enfrentar os malefícios do santo. A sua figura era um convite ao exagero: moldada
por outro ficcionista menos preso à realidade, tomaria facilmente dimensões hagiográficas. Assim
como está, em suas proporções modestas determinadas pela origem, a formação, o ambiente, com a
sua auréola terrestre e acessível, é uma das criaturas mais autênticas já saídas das mãos de um
romancista brasileiro.
João Pacheco, autor de uma das análises mais lúcidas da obra de José Lins do Rego, julga que o
escritor fica um pouco fora do tema, “porque a personagem central, Bentinho, por intermédio de
quem mais amiúde apreende os fenômenos, não se deixa arrastar pela beatice. Se não a repele
formalmente, permanece em dúvida, mais inclinado à repulsa que à adesão. Perante a beatice nunca
vai além de uma visão externa.”7
Quer-nos parecer, porém, que é mais justo compreender o romance em termos individuais, e não
coletivos; não como a crônica de um segundo motim da Pedra, e sim como o relato da educação
sentimental de Antônio Bento, em quem o autor soube encarnar-se. As outras tramas do livro —
entremeadas com muita perícia —, tais como a frustração do aposto lado do padre Amâncio, a
animosidade entre d. Fausta e o pai, a luta de dois grupos na política municipal, a decadência
definitiva dos Vieiras, absorvidos pelo fanatismo e pelo cangaço, a perseguição dos bandidos pelas
volantes, existem na medida em que interferem com o destino de Antônio Bento. E de que, ainda
assim, ganhem relevo extraordinário, é prova o acerto do romancista na escolha do seu herói.
Rapaz puro e bom, de uma ingenuidade que lembra a do moleque Ricardo, Antônio Bento possui
a mais uma vadia mística que se faz presente quando, no alto da torre, se põe a tocar o sino olhando a
vila do Açu estendida a seus pés. A esses momentos de exaltação, porém, sucedem horas de
desânimo, mal põe os pés em terra. Aí, sente-se rodeado de um muro de hostilidade incompreensível.
Indiretas e remoques levam-no a procurar o segredo dessa inimizade, que lhe é revelado por um
velho taumaturgo desequilibrado, a par do sangrento episódio da Pedra Bonita. Em permanente
oscilação entre duas forças sobrenaturais — uma das quais lhe instila um sentimento de eleição
mística, outra um sentimento de culpa —, Antônio Bento é confrontado sucessivamente com o poder,
o sexo, a poesia, a família, o fanatismo, o cangaço. Sem qualquer esteio para se arrimar, termina
como um desarvorado joguete dos acontecimentos, até que, numa encruzilhada decisiva, opta pelo
caminho inseguro da aventura.
O que faz a grandeza do romance é provavelmente o desenrolar paralelo dos acontecimentos no
plano íntimo e no plano físico, dentro de uma atmosfera real e outra mística, que se alternam. A
vidinha mesquinha do Açu, com seus falatórios, intrigas e brigas, a monótona existência da fazenda
do velho Bento Vieira, as incursões dos cangaceiros, as truculências de seus perseguidores, as
reações que estas e aquelas provocam no povo sob forma de misticismo histérico são relatadas com
um realismo integral, expostas mas não explicadas.
João Pacheco reconhece que o autor soube não tratar o tema com os valores da civilização do
litoral. Sem adotar por conta própria a dicotomia entre Bem e Mal no julgamento do cangaço,
tacitamente aceita a maneira de ver do próprio povo, para o qual fanatismo religioso, banditismo e
perseguição oficial aos bandidos são três flagelos que se completam: “Sertanejo é assim mesmo:
vem santo, vem o cangaceiro, vem a volante.” É um círculo vicioso do qual não há saída, a não ser
pelo progresso da civilização: mas os engenheiros vindos para assentar os trilhos da estrada de ferro
são afugentados pelos cangaceiros. O ambiente de ignorância e de superstição permanece o mesmo à
espera do primeiro esquizofrênico que se arvore em messias. Pedra Bonita não é um episódio
isolado, mas um sintoma recorrente.
Possivelmente a conclusão acabrunhadora que se pode tirar do romance não correspondia às
convicções conscientes de José Lins do Rego sociólogo, publicista e pensador; mas estava dentro da
sua visão instintiva das coisas, de um pessimismo explicável (e explicado pelo próprio escritor) por
motivos temperamentais, traumas da infância, complexos de várias espécies. Fosse como fosse, ele
ia receber confirmação inesperada e monstruosa. Cem anos após o episódio de Pedra Bonita, no
próprio ano da publicação do romance, um continente inteiro, precisamente aquele onde a civilização
atingira o auge, estava sendo transformado num imenso reino encantado, onde os incríveis
acontecimentos da Pedra iam sendo reproduzidos milhares de vezes, com os mais variados requintes.
Romance psicológico, romance regional, romance social, Pedra Bonita é, ainda, de todos os
livros do autor, aquele que mais se aproxima da poesia popular. É sobretudo a ele que se refere ao
definir, numa entrevista, os próprios modelos:

“O jornalista procurou falar de minhas influências estrangeiras, dos mestres que haviam nutrido a minha formação cultural — eu
lhe falei dos cegos cantadores das feiras de Paraíba e Pernambuco... Dizia-lhe então, quando imagino os meus romances, tomo
sempre como roteiro e modo de orientação o dizer as coisas como elas me surgem na memória, com o jeito e as maneiras simples
dos cegos poetas.”8

Tal como nas histórias versejadas dos cantores populares, neste livro não se nota diferença de tom
entre os trechos de narração, as falas das personagens e os seus monólogos íntimos. Para conseguir
essa uniformidade o narrador se apaga, faz-nos esquecer a sua existência independente. A história
parece contar-se a si mesma, ou sair da boca de um comparsa que não se diferencia das demais
personagens, em linguagem homogênea, com todo o colorido da fala popular, cheia de locuções
saborosas e expressivas como estas: “O namoro fora para diante, mas ficara com medo da moça.
Falava do pai sem quê nem mais.” “O juiz andava botando as manguinhas de fora (...).” “(...) a
judiaria da mulher com a mocinha fora tão grande, que a pobre se danara por este mundo afora.”
“Aparecera no Açu um homem que não queria coisa nenhuma.” “Menino, não queira ver cangaceiro
com raiva! Dê por visto um demônio armado de rifle e punhal.” “Aparício era o avô cagado e
cuspido.” “Havia mesmo caveira de burro por ali.” “Falei para ele se casar: ‘Procura uma mulher
que te sirva, Domício.’ E ele nem como coisa.” “Nunca vi mulher mais cheia de noves fora.”
A força do estilo está, também, na sintaxe popular, reproduzida com fidelidade, como nestes
casos: “(...) a tamarineira frondosa, onde por debaixo faziam a feira (...).” “Um rico, um poderoso, e
uma mulher daquela.” “Soprava um vento que chega e sacudia as franjas da rede.” “Era uma reza que
nunca Domício ouvira igual.” “Com o padrinho morto, iria para Goiana com d. Eufrásia. Nunca que
fosse, melhor a terra fria.” “Bentinho, nós devemos é voltar pra falar com o velho Zé Pedra.” Mas,
em tudo isso, nenhum exagero. Uma linguagem, em suma, que dá impressão perfeita de oralidade,
direta e natural, sem que o autor recorra ao processo incômodo da rigorosa reprodução fonética.
Pertence à épica popular o processo de repetição. Determinadas situações suscitam a volta dos
mesmos motivos numa regularidade melódica. Em seus monólogos, quer íntimos, quer assistidos de
um ouvinte, as personagens voltam a recontar sempre a mesma história, a sua, como que impedidas
de escapar da sua prisão íntima, confirmando de cada vez a sua trágica incomunicabilidade. Tudo
isso mantém a narração num ritmo de vaivém, de parada e repartida, de progresso retardado. Do
ponto de vista do romance, Sérgio Milliet9 via nessas repetições uma falha; mas está fora de dúvidas
que são elas que, em grande parte, produzem o halo de poesia primitiva que dá às obras do nosso
autor o seu encanto mágico tão inconfundível. E, como assinalou outro grande crítico de São Paulo,10
está nelas o segredo da musicalidade estrutural dessas obras.
Diga-se, para terminar, que a história de Antônio Bento não acaba em Pedra Bonita. Ele
reaparecerá em Cangaceiros, o último romance de José Lins do Rego, onde também revivem seu
irmão Domício e a figura inesquecível do cantador Dioclécio, que em cada encontro com o afilhado
do padre Amâncio reacende neste a chama da aventura e da liberdade.
Mas o que nos propusemos foi acompanhar o espantoso criador de um mundo fictício de
insuperável vitalidade até o final de Pedra Bonita, sem dúvida uma etapa das mais importantes de
seu caminho ascendente.
Notas
1
Rego, José Lins do. Pedra Bonita. 7ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1968, p. XVII-XXXIV. (Excerto.)
2
Paulo Rónai nasceu em Budapeste (Hungria) a 13/4/1907 e faleceu em Nova Friburgo (RJ) a 1/12/1992. Tradutor, revisor, crítico,
professor de francês e latim, fundou a Associação Brasileira de Tradutores, Abrates, e foi o pioneiro na organização profissional dos
tradutores no Brasil.
3
No capítulo 15 da Parte II de Usina.
4
Rego, José Lins do. “O poeta João Martins de Ataíde”, em Poesia e vida, Rio de Janeiro: Editora Universal, 1945, p. 161.
5
Cunha, Euclides da. Os Sertões, Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 13ª ed., 193ó, p. 143-144.
6
Esse resumo é extraído do fascículo, hoje raríssimo, Fanatismo religioso. Memória sobre o reino encantado na Comarca de Vila
Bela, por Antônio Attico de Sousa Leite, com um juízo crítico do Conselheiro Tristão de Alencar Araripe. 2ª edição por Solidônio Attico
Leite. Juiz de Fora: Tipografia Matoso, 1898.
7
Op. cit., p. 52.
8
“Coisas de Romances”, em Poesia e vida, p. 54.
9
“A obra de José Lins do Rego”, em Fogo morto, 6ª ed., Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1965, p. XXI.
10
Andrade, Mário, “Fogo morto”, em O empalhador de passarinho, São Paulo: Livraria Martins Editora, s.d., p. 248.
PEDRA BONITA
A narrativa deste romance quase nada tem de ver com a geografia e o
fato histórico desenrolado em Pernambuco nos princípios do século
XIX.
PRIMEIRA PARTE

A vila do Açu
1
ANTÔNIO BENTO estava tocando a primeira chamada para a missa das seis horas. Do alto da torre ele
via a vila dormindo, a névoa do mês de dezembro cobrindo a tamarineira do meio da rua. Tudo
calado. As primeiras badaladas do sino quebravam o silêncio violentamente. O som ia longe,
atravessava o povoado para se perder pelos campos distantes, ia a mais de légua, levado por aquele
vento brando. Dia de N. S.ª da Conceição, 8 de dezembro. O padre Amâncio celebrava duas missas,
a das seis e a das onze horas. Sem dúvida já se acordara com o toque do sino.
Antônio Bento martelava o bronze pensando no povo. As velhas da casa-grande, as duas
solteironas que venderam as terras para ir morar perto da igreja, já estariam de pé. A zeladora
Francisca do Monte nem esperava pelo aviso. O seu sono leve, os seus cuidados de presidente das
Irmãs do Coração de Jesus não iam esperar pela advertência do toque de Antônio Bento. Antes da
segunda chamada lá vinha ela envolvida no xale escuro, andando devagar, contrita, como se já
estivesse dentro da igreja.
A vila acordava aos poucos. As portas das casas de negócio se abriam e o sol pegava a
tamarineira umedecida para esquentar-lhe as folhas orvalhadas.
O sino batia a segunda chamada. E vinham chegando as duas irmãs velhas, sempre juntas,
chegadas uma à outra como se se amparassem. A mulher do sacristão Laurindo vinha logo depois.
Antônio Bento gostava de puxar o badalo e gozar o som se sumindo, andando, correndo com o recado
de Deus aos seus fiéis. Era a melhor coisa que ele fazia na casa do padre Amâncio. Era tocar o sino
assim de madrugada. Em tempos de chuva, com tudo escuro ainda, sentia que as badaladas iam mais
longe. Às vezes bem sentia que qualquer pedaço dele saía com o som furando as distâncias. Da torre,
já com a claridade da madrugada, nos dias de verão, era diferente. Via as casas para que tocava,
sabia quais os clientes que atendiam às solicitações de Deus. Seu padrinho estava em casa, lavando a
boca, preparando-se para o ofício. Estava ali com ele há mais de dez anos. Viera de Pedra Bonita
trazido por sua mãe. Fora dado ao padre na grande seca de 1904. Não era mais dos seus. A mãe
trouxera-o, quase morto, para que o padrinho lhe desse jeito, ao seu gosto. Estava porém satisfeito. A
vida não corria má. Só a escola com a zeladora Francisca do Monte fora difícil de levar. Aprendera
a ler, andara até pela escola do velho João José, mas felizmente o tinham deixado de mão. Sabia
ajudar missa, sabia ler os jornais, sabia escrever uma carta. E era o bastante para um criado de
padre. O criado do juiz era aquele Lula, quase maluco, abobado, esquecendo-se dos recados e das
ordens que mandavam por ele. O padre Amâncio era bom. No começo fora rigoroso, pedindo à
zeladora para puxar por ele nas lições, dando-lhe cascudos. Fora crescendo, e agora servir ao
padrinho não lhe custava sacrifício. Tinha mesmo orgulho da sua profissão. Via meninos da sua idade
sem fazer nada. Os filhos do juiz, os filhos dos ricos da terra, soltos, brincando pelos becos,
enquanto ele arrumava as coisas sagradas, sabia dos segredos da igreja, sabia onde estava estendido
num caixão, de braços cruzados, o corpo ensanguentado de Nosso Senhor. Só ele e o sacristão
Laurindo podiam mexer nos gavetões da sacristia, tirar a poeira que cobria os santos descobertos,
arrumar as velas nos altares.
Com a terceira chamada as casas já estavam todas abertas e vinham chegando matutos para a
feira. O padre Amâncio já estaria esperando na sacristia, vestindo-se para a missa. As últimas
badaladas já não soavam com a vibração das primeiras. Havia sol pelas várzeas e pelos altos, e
gente desperta, ruído de gente pelo mundo. Fora-se o silêncio da madrugada, fora-se a quietude dos
homens parados pelo sono.
Antônio Bento desceu os degraus da torre, passou pelo coro deserto e foi vestir a sua opa
encarnada de acólito. A igreja estava com as mesmas pessoas de sempre: as duas irmãs, a zeladora
Francisca do Monte, a mulher do sacristão, que puxava por uma perna, a pobre d. Auta. Dentro da
igreja o silêncio era violado de quando em vez pelo pigarro da zeladora, que sofria da garganta.
Ali na vila do Açu a vida era miúda como a gente. Nunca crescera, nunca tivera fausto, ninguém
suspirava naquele canto do mundo pelos dias passados. Não era uma cidade morta que tivesse
crescido, criado nome, cheia de glórias de outros tempos. Fora sempre aquilo que era, nunca dera
mais do que dava. Por várias vezes deixara de ser freguesia, mas voltava a ser. Aparecia um padre
sem ambição que se prontificava a vir passar dias apertados, o bispo nomeava-o, e a igreja grande
do Açu, a única coisa grande dali, abria as suas portas às beatas e aos poucos devotos, limpava-se
das corujas e dos morcegos para que o culto se realizasse com decência. O padre Amâncio há vinte
anos que pastoreava aquele rebanho escasso. Não era uma freguesia de muito trabalho, embora a sua
história fosse das mais desgraçadas de todo o sertão. Há quase um século que correra sangue pelos
seus campos, sangue de gente, sangue derramado para embeber a terra em nome de Deus. Aquilo
pesava na existência da vila como um crime nefando, pesava no destino de gerações e gerações. Há
vinte anos que o padre Amâncio chegara no Açu cheio de esperanças, vinha moço, cheio de zelo, de
uma imensa vontade de ser útil ao povo, de arrastar para Deus as almas de seus paroquianos. Aos
cinquenta anos parecia um velho. Magro, de cabelos brancos, a face cavada. Dava-se à primeira
vista setenta anos sem exagero. Criara fama pela sua bondade, pelo seu desinteresse, a sua
capacidade de se adaptar aos pobres, que eram quase todos da terra. Rico, ali, só mesmo o coronel
Clarimundo, que tinha compra de algodão e loja e venda. No mais, pouca diferença havia de um para
outro. A vila do Açu não opunha os homens uns contra os outros pela riqueza. As terras das
proximidades, o patrimônio da igreja, as fazendas do município não davam para enriquecer ninguém.
Por mais de uma vez os entendidos em administração falaram em suprimir o termo, em reduzir o Açu
a simples distrito da comarca mais próxima. Mas, por uma coisa ou por outra, ia a vila ficando com o
seu juiz municipal, a sua coletoria de rendas e a agência dos Correios com estafeta duas vezes por
semana para a cidade de perto. O mais fácil parece que era deixar o Açu no seu canto infeliz e pobre
como um miserável com as suas chagas ao sol. Havia lugares com dez anos de vida que passavam a
vila e estavam mais importantes do que o Açu. Não era que uma estrada de ferro fizesse o milagre da
transformação, inflamasse o povo do povoado. Não. Tudo que havia no Açu havia por lá, o mesmo
rio, as mesmas terras, os mesmos homens. E ia para diante, o comércio crescia, as construções
aumentavam. E no Açu era aquilo que se via. A rua grande com o sobrado do coronel Clarimundo, a
tamarineira frondosa, onde por debaixo faziam a feira, e a desolação de casas caindo. Há anos que
um pedreiro não fazia obra nova por ali. Só a igreja de longe em longe merecia uma mão de cal. O
padre Amâncio cuidava dela como da última riqueza da terra. Era uma igreja das maiores do sertão,
com duas torres, construída não se sabia com que recursos, com paredes largas de fortaleza e altares
em pedra talhada. Diziam que era mais bonita que a catedral do Camaru. Todo o Açu vivia da
importância de sua matriz. Mas não se sabia por que o povo de outros lugares não dava importância,
não se arrastava de longe para vir até ali pagar uma promessa, ouvir uma missa. A capela do
povoado de Sobrado atraía gente de trinta léguas. Vinham devotos com dois dias de viagem trazendo
as suas velas, os seus ex-votos para os santos de lá. Ninguém queria saber dos santos do Açu. E no
entanto havia imagens de tamanho natural. Os doze apóstolos, uma N. S.ª das Dores como poucas
existiam no estado. O nada que recebia dos paroquianos padre Amâncio empregava na sua igreja.
Mas precisara certa vez ir até o bispo pedir alguma coisa para os seus santos, que perdiam a
carnação, que desbotavam. Deram-lhe o auxílio, mas lhe falaram numa possível trasladação de
algumas das imagens para outros templos que pudessem com as despesas. O padre Amâncio sentiu a
advertência como se se propusesse a arrancar de sua casa um filho para entregar à misericórdia de
estranhos. Então deu para sair pelo estado de sacola na mão, pedindo pela sua matriz. Os padres das
outras freguesias a princípio se aborreceram com a intromissão do vigário do Açu. Que ficasse ele
no seu canto. Mas o padre Amâncio trocava, dava-se de graça para as missas cantadas, para os
sermões, contanto que o deixassem em paz, de sacola na mão, pedindo a um e a outro para que
pudesse manter a sua igreja com a dignidade precisa. As suas batinas surradas, as suas botinas em
petição de miséria não queriam dizer nada. Para ele valia que o manto de N. S.ª da Conceição fosse
mesmo um manto digno da mãe de Deus.
Só a igreja ali no Açu não sofria com o destino da terra. Resistia. E com as suas duas torres
brancas, com os seus dois sinos de som magnífico, aparecia para as casas humildes, mesmo para o
sobrado do coronel Clarimundo, como uma soberana, uma rainha para quem o tempo e as desventuras
não se contavam.
Agora mesmo, enquanto o padre Amâncio rezava para meia dúzia de devotas a sua missa das seis
horas, a vila acordava. Na tamarineira cantavam os pássaros, e por baixo de suas galhadas matutos
arrumavam os seus troços para a feira. O sobrado do coronel Clarimundo estava flamejando ao sol,
com as suas janelas envidraçadas. Assim de manhã o sobrado, a casa mais importante do lugar,
recebia o sol com festa. As suas venezianas brilhavam. Janelas de vidros de todas as cores rodeavam
o casarão velho. Dois leões de pedra ficavam em cima do portão de entrada como dois monstros que
tivessem devorado toda a grandeza da terra. As portas do negócio do coronel se abriam, ele mesmo,
em mangas de camisa, de sua janela principal, olhava de cima o velho Açu, que era seu. Só mesmo a
igreja era maior do que a sua casa. Vinha chegando aos seus ouvidos o toque da campainha na
elevação do Senhor. Ele via de onde estava a luz das velas que iluminavam o altar-mor. Com pouco
o major coletor aparecia na sua janela, já de colarinho duro, dependurando as gaiolas de seus
passarinhos. O coronel Clarimundo não se dava com o major Evangelista. O orgulho do major, o seu
jeito de falar superior a todos irritaram o negociante até o ponto de se separarem para sempre.
Reparando bem, aquela inimizade viera por uma tolice. O coronel se lembrava. Fora mesmo por uma
tolice, por causa da festa da padroeira. Uma questão tola. Ele queria uma coisa e o major outra. E
por fim trocas de palavras e a separação de vinte anos. O major só fazia votar nos candidatos do
governo, e ali defronte viam-se há anos, sem se darem um bom-dia. Quando morrera a mulher do
coletor, não fora ao enterro. Tivera vontade, ainda chegara a vestir o seu terno preto a pedido da
mulher. Mas resistira. Não sabia como o major o receberia, com que cara, e se não seria capaz de lhe
fazer uma desfeita. Teve pena do Evangelista. Dias e dias levou ele de portas fechadas, sem vender
selo, trancado num quarto. Lá um dia, porém, começou a aparecer, com as gaiolas, com o colarinho
duro. E estava ali fazendo o que fazia todos os dias.
O major amava os pássaros cantadores. O coronel Clarimundo podia se encher nos negócios, na
compra do algodão. Nada para ele estava valendo. O que valia para ele era o seu canário estalador,
o galo-de-campina, o concriz que cantava de tudo. Esmagava assim a riqueza do coronel Clarimundo
com a arte de seus prisioneiros, tratados como príncipes. A filha do major, solteirona, d. Fausta,
tinha ódio aos pássaros do pai. Aqueles desgraçados lhe haviam roubado, desde a meninice, o pai. A
mãe se queixava todos os dias daquela idiotice de João Evangelista para com as gaiolas. A família
não existia para ele. D. Fausta odiava os canários, tudo que era passarinho, aquela cantoria de todos
os dias devia doer-lhe nos ouvidos. E quando algum amanhecia morto, esticado na gaiola, era um
júbilo para ela. O major fechava a cara, passava dias falando do pássaro morto, no almoço, no
jantar, até que de repente se esquecia e vinha outra paixão mais forte por outro pássaro que
começava a cantar. D. Fausta não se casara. Não que fosse feia e não tivesse dotes de dona de casa.
Bordava, vendia os seus trabalhos para a gente de Camaru. Criara fama pelas suas habilidades. A
beleza dos trabalhos de agulha da filha do major saíra dos limites do Açu. Mas nunca lhe apareceu
um casamento provável. Botava a culpa para cima do major e dos pássaros. E odiava o pai e seus
amigos.
D. Fausta se dava com a mulher do coronel Clarimundo sem que o major soubesse. Era uma
amizade como namoro proibido, às escondidas. Fora ela mesma que se oferecera para bordar o
enxoval da filha do coronel e não quisera um vintém. Fazia aquilo tomando uma vingança.
O major estava de janela, e chegava gente com cargas para a feira. O padre Amâncio dissera a
primeira missa e as beatas vinham de volta para as suas casas, todas ungidas. A beata Francisca do
Monte parava para conversar na porta de uma casa e as outras vinham vindo, com a rua grande do
Açu movimentada, cheia de gente. Mais tarde voltariam para a missa das onze. O padre Amâncio
pregaria sobre a conceição de N. Senhora, a igreja se encheria de mais pessoas e a missa para elas
seria outra, mais bonita, mais para os seus olhos e para os seus ouvidos. Às onze horas cantava no
coro d. Margarida, que tocava serafina. A igreja do Açu se enchia de sons, de campainhas, de vozes
e o murmúrio das rezas das mulheres que respondiam ao padre Amâncio povoava a casa de Deus de
esperanças, de promessas, de pedidos, de desejos, de tudo que não havia na pobre vida do Açu.
Antônio Bento voltava para a casa do padre. Tinha muito que fazer até as onze horas. Teria que ir
à cacimba do rio buscar a carga-d’água para o banho do padre Amâncio. Ia com o jumento nanico e
voltava com as ancoretas cheias, que chegavam a selar o pobre com o peso. Deitava água no quinto
do banheiro. O padre Amâncio se deitava na sua rede, lia o breviário, esperando a hora da outra
missa. Antônio Bento voltava para a igreja e o sino começava a tocar a nova chamada. O pátio da
igreja estava repleto de gente e o barulho chegava à torre. O sino tocava. O som cheio do bronze não
se ia nunca como de madrugada, mas alcançava longe, atravessava o bate-boca dos feireiros, passava
pela tamarineira, entrava e saía pela última casa do Açu e ia chegar no meio do campo, na casa de
algum pobre que se lembraria que era dia de santo, que havia um padre no altar e que Deus estava
chamando gente para dar alguma coisa, já que a terra, o sol e as chuvas não davam coisa alguma.
Mesmo na missa das onze a igreja ficava vazia. Só as mulheres acudiam ao chamado. Os homens
do Açu não se importavam com devoção. O major com seus pássaros, o coronel Clarimundo com a
compra de algodão e o resto com as compras de feira. Só as mulheres eram regulares, vigilantes no
cumprimento dos deveres religiosos. Só elas correspondiam aos deveres do padre Amâncio. D.
Fausta, de mantilha, d. Auta, arrastando a perna, todas as mulheres do Açu deixavam as suas casas
tristes e sujas e iam ouvir a prática do vigário comentando o evangelho. E pediam pelos seus filhos,
pelos seus maridos. O padre elevava o Senhor, a campainha tinia, o sino acompanhava, a voz de d.
Margarida se confundia com a serafina. E depois Deus ficaria trancado no sacrário, com chave de
ouro, bem de longe, bem escondido de todos os sofrimentos, de todas as desgraças, bem distante do
pobre povo do Açu.
2

QUANDO D. EUFRÁSIA, A irmã do padre, vinha passar dias no Açu, mudava muito a vida na casa
paroquial. Era uma mulher magra e alta. De voz seca e autoritária, com uma fisionomia mais de
homem que o padre Amâncio. Casada, vivia ela em Goiana com o marido, escrivão da terra. Antônio
Bento tinha muito mais o que fazer com as visitas de semanas de d. Eufrásia. Havia sempre o que
limpar, o que varrer, um recado a dar, uma ordem a cumprir. A casa vivia cheia de visitas. E a doce
paz da morada do padre Amâncio ia-se embora. A irmã brigava com o irmão, censurava aquele
relaxamento, aquele abandono de vida. E trazia-lhe exemplos: visse ele o padre de Goiana, que era
cônego, que casa tinha, que bens possuía. Não era aquele gosto pela pobreza do irmão. Melhor seria
que ele tivesse ido para frade e andasse pelo mundo, de barba grande e de alpercatas, como os
capuchinhos da Penha, fazendo missões.
O padre Amâncio sorria, achava graça nas repreensões da irmã, mas no fundo do coração sentia-
se bem feliz, bem contente de não ser como o padre de Goiana, de ser o que era, sem botinas de
verniz e meias roxas de cônego. Por mais de uma vez tivera que ir à capital para evitar que o
fizessem cônego. Ele não queria, a sua paróquia não podia com esse luxo. O bispo ria-se de seu
desamor pelas honrarias. E era tido pelos colegas como um esquisitão, como um original.
D. Eufrásia trazia para dentro da casa de padre Amâncio o conceito de todo o mundo sobre ele.
Uma ou duas vezes por ano deixava ela o marido e vinha ao sertão viver uns dias com o irmão. Bem
se lembrava da vida de ambos, da meninice que levaram juntos. Amâncio sempre fora aquilo mesmo,
aquela ternura, aquele coração de ouro de lei. O pai os criara, pois ficara viúvo logo cedo. Amâncio,
o mais velho, e ela entregues às amas, enquanto o dr. Lemos de Sousa, juiz municipal de Iguaraçu,
fazia a sua vida. Iguaraçu era triste. E a infância que levaram por lá, sem mãe, sem parentes, fora um
tempo infeliz. Amâncio pegara-se logo com o padre. Vivia na igreja ajudando nas missas, nas
bênçãos, sempre com aquela ideia de ser padre. Vinha de longe a sua vocação. O juiz não gostou da
vontade do filho de seguir a vida da igreja. Queria-o para a advocacia, para as lutas do foro. Pensava
no dr. Amâncio de Lemos realizando a carreira que ele não conseguira realizar, com o filho
brilhando no foro, tirando uma cadeira de professor na faculdade, com grande nome, com grande
fama. Fora um desengano quando descobrira no menino a vocação decidida para padre. A princípio
pretendeu mudar o curso daquilo. Mas foi inútil. O menino vivia na igreja, só falava de coisas da
casa do padre, só encontrava alegria nas festas religiosas. A irmã sentia até um certo orgulho dele,
nos dias de missa cantada, em vê-lo metido na casula branca, balançando o turíbulo. Via Amâncio de
cara séria, de ar beatífico, se curvando para o celebrante, fazendo reverências de padre com
seriedade, todo ungido de graça. E foi assim até que o pai teve de mandá-lo para o seminário de
Olinda. Foi um dia de tristeza na casa, o dia da partida de Amâncio. O carro de cavalo na porta, e ela
preparando a mala do irmão, o pai na saleta onde tinha os seus livros e a grande tristeza de Iguaraçu
num dia nublado de chuva. O padre José entrou para falar com o juiz. Trocaram palavras. E com
pouco Amâncio partia pálido, mas com uma imensa alegria escondida no coração. Ia para o
seminário. Com mais dez anos seria padre, sacerdote a serviço de Deus. O carro rodou pelas lajes
velhas de Iguaraçu, fazendo barulho. Chegara gente nas janelas para ver a partida. Amâncio ao lado
do padre José parecia montado num trono. As conhecidas, os vizinhos, os meninos estavam ali para
ver o coroinha do juiz ir embora. Depois o carro entrara na estrada real e Amâncio se fora para um
ano de ausência. D. Eufrásia se lembrava dessas coisas do passado como se fossem de ontem, com a
nitidez de todos os detalhes. Casara-se, o pai morrera, Amâncio se ordenara. Cantou a primeira
missa na velha igreja de São Francisco de Iguaraçu. Veio gente dos arredores para ver a missa nova.
Mas o povo queria música, festa, uma igreja cheia de rosas e tapetes, uma prédica bonita, e a missa
do padre Amâncio fora humilde. Numa manhã clara de janeiro ouviu d. Eufrásia seu irmão cantando a
primeira missa. Sentiu vontade de chorar. Amâncio bonito, cheio de vida, com aqueles seus olhos
azuis, metido nos paramentos, rezando o ofício santo com uma gravidade de velho. Lá por fora as
andorinhas gritavam pela torre e pelos fios do telégrafo. Ali dentro da igreja de São Francisco só o
canto de Amâncio, a voz doce de seu irmão, celebrando, representando pela primeira vez o drama
maior do mundo. Chorou. Mas eram lágrimas que não vinham da dor, que não nasciam também da
alegria. Fora um choro diferente. Amâncio, o seu irmão, entregava-se a Deus, seria padre, só padre.
Ela conhecia o irmão, ela sabia a riqueza de bondade que vinha dele. Almoçaram depois na casa do
padre José. Ela, o marido, Amâncio e a irmã do vigário. Lembrava-se bem da irmã do vigário. Nunca
ela vira uma cara mais feliz que a de Amâncio naquele dia. Depois se foram os tempos. Amâncio
andara de freguesia em freguesia, até que caíra no Açu. E há vinte anos que estava ali, perdido no
meio do sertão mais infeliz do estado. A vida dele era de santo. Ela vira que era inútil mudar aquele
destino. O irmão nascera para o sacrifício. Era ela que lhe mandava as roupas que vestia. As
camisas, as meias, as botinas. E quando chegava para passar uns dias no Açu, tudo que era de
Amâncio estava no estado em que estava, meias desencontradas, camisas perdidas. Ele ria dos
carões da irmã. Mas de dentro da sua casa não saía um pobre com o lombo exposto ao sol e à chuva.
Iam-se com eles as suas camisas e as suas ceroulas. D. Eufrásia vinha para o Açu consertar um pouco
a casa do irmão. O marido só uma vez a acompanhara. Os serviços de escrivão não permitiam. A
mulher que fosse para junto do esquisito do irmão. Nunca se vira tamanho desleixo, tamanho
desprezo pelo mundo, como de seu cunhado padre. Aquilo já passara dos limites. Em casa a mulher
não permitia que se dissesse nada. O Amâncio para ela era um santo, e ela não consentia que se
levasse para diante conversa alguma que importasse em censuras ao irmão.
D. Eufrásia achava o povo de Açu uma gente infeliz, uma gente diferente. Não sabia o que era,
mas uma coisa lhe dizia que todos ali escondiam um segredo, uma vergonha. Lembrava-se do dia em
que em Goiana o cônego Martinho lhe dera a notícia da nomeação de Amâncio para o Açu.
— É a pior freguesia do estado, d. Eufrásia. Não pode a senhora calcular. Só mesmo o Amâncio
com a coragem de se meter ali. O seu irmão vai para o meio de feras.
O marido lhe falara na história da Pedra Bonita. Fora há muitos anos. E ela nem queria se
lembrar daquela desgraça, de um castigo daqueles. Chegara a escrever ao irmão para desistir,
contando das coisas horríveis que soubera da terra. Uma carta comprida, e a resposta de Amâncio
fora dando a notícia de seu embarque. Deus o mandava para lá. No meio de piores feras estivera
Jesus na Terra. Para ele o sacerdócio não seria um caminho por cima de rosas. D. Eufrásia sentira na
carta do irmão a primeira advertência séria que ele lhe fizera. Deixara então que ele fosse. E o
marido não teria mais o direito de comentar em casa a resolução de Amâncio. Fora de seu gosto e
ninguém poderia dar votos. O fato é que d. Eufrásia sempre que estava no Açu não se conformava
com a vida do irmão. Ela via que o padre malhava em ferro frio. Aquela Francisca do Monte, que
vivia na igreja como dona de casa, que mulher esquisita, com aquela tosse seca, com olheiras fundas!
Vinha sempre falar com Amâncio dos negócios da escola que ela tinha na sacristia. Não gostava
dela. Não gostava também de d. Margarida que cantava no coro. Que voz horrível, que maneira de se
pentear, com os cabelos caindo em cachos naquela idade! O olhar de d. Margarida não era simples
como o de todo o mundo. Procurava alguma coisa, queria espreitar alguma coisa. D. Senhora, a
mulher do juiz, não era dali, e se conhecia logo. Era com quem d. Eufrásia se dava melhor, embora a
casa do padre vivesse de visitas na sala, quando ela estava no Açu. D. Senhora sofria o Açu como
um degredo. Só estava ali para que não se dissesse que abandonara o marido e os filhos. Se não
fosse isso, estaria no engenho do Cabo, perto de gente que não fosse aquela do Açu. Quando as duas
se encontravam a sós, trocavam opiniões com mais franqueza:
— Só mesmo um santo como seu irmão, d. Eufrásia, aguenta isto aqui por gosto. Eu estou tirando
o meu calvário. Se o Carmo não conseguir remoção até o fim do ano, não aguento mais. A senhora já
viu que povo esquisito? As mulheres são estas que a senhora conhece, e são as melhores! Estou aqui
há dois anos, d. Eufrásia, e, se não fosse a senhora, eu não teria conversado direito com pessoa
nenhuma. Eu tenho medo desta gente. Quando o Carmo foi nomeado para aqui, não foi uma nem duas
pessoas que nos procuraram para falar do Açu. Nos contaram a tal história da Pedra Bonita. Não sei
se a senhora conhece, d. Eufrásia.
D. Eufrásia nem queria ouvir falar.
Havia também as velhas irmãs que moravam no casarão de perto da igreja. Estas porém não
saíam de casa a não ser para a missa. De casa para a igreja e da igreja para casa. Viviam de uns
contos de réis depositados na Caixa Econômica, da ração dos juros. D. Eufrásia não as levava em
conta. As velhinhas forneciam as flores para os jarros da igreja. Tinham craveiros e roseiras no
quintal, um jardim pobre e triste que só trabalhava para os santos. Era o único jardim do Açu. Porque
ali ninguém se importava com as flores, a não ser o major Evangelista, que cultivava parasitas.
Tinha-as dependuradas pelo alpendre, tão orgulhoso delas como de seus pássaros. E, quando alguma
desabrochava, se abria no seu esplendor, o major levava a raridade para a recebedoria, botava-a em
cima da sua mesa. D. Fausta tinha também horror a este amor do pai. Ele só se importava com coisas
daquele jeito. Se saía de casa, era para andar atrás de pássaros ou meter-se pela mata atrás daquelas
flores.
D. Eufrásia olhava a filha do major como outro caso do Açu. Dizia mesmo à mulher do juiz que
aquela moça não enganava ninguém. Dentro dela havia qualquer coisa de esquisito. Ninguém sabia o
que era. Mas havia mesmo. Quem saberia dos pensamentos que d. Fausta pensava, ali na sua cadeira
de braços, bordando, enfiando a agulha horas seguidas, compondo de cabeça baixa os seus pontos de
bordado? Ninguém sabia. Só se falava da malquerença de d. Fausta com o pai. Os dois não se
falavam desde a morte da mulher do major. Pai e filha dentro de casa como dois inimigos. Aquilo
dera que falar no Açu. Depois passara e ninguém sabia nem indagava da inimizade dos dois. D.
Fausta era sempre a mesma e o major Evangelista era sempre o mesmo. De longe chegavam
encomendas para os seus trabalhos. O nome da moça havia saído do Açu. E isto talvez lhe desse um
bocado de orgulho. Quando o major falava na mesa de seus pássaros, a filha fazia que não escutava.
Era assim sempre. O velho falava para ela como se estivesse monologando. Não falavam um para o
outro. Apenas o major Evangelista se enchia de entusiasmo, gabava os seus pássaros para esmagar a
filha, aquele mistério da filha, trancada, que não lhe dava uma palavra, que nunca se abria com ele,
nunca lhe gabara um canário, uma parasita bonita. O major na frente de d. Fausta se exaltava, se
excedia nos elogios. Queria esmagar, pisar por cima daquele silêncio de monstro. As criadas que
trabalhavam na casa davam notícia de tudo aquilo. Nem o pai nem a filha confessavam a pessoa
alguma o motivo daquela separação. Nunca saíam juntos, nunca deram em público sinal nenhum de
pai para filha ou de filha para pai.
D. Eufrásia falava daquela situação como de um ato criminoso. Amâncio era padre, era um santo,
e no entanto o povo do Açu era aquele. Não era porque o lugar fosse pequeno e velho. Muito mais
velho era Iguaraçu, que só tinha mesmo igrejas e aquelas casas de pobres caindo de podres. E no
entanto ela bem se lembrava do povo de lá. Nem era bom comparar. Onde encontraria ela uma
criatura como a irmã do padre José, uma filha de senhor de engenho, que enjeitou casamento na
família Bandeira para acompanhar o irmão na vida que levava? E a velha Catarina, que fazia chapéu
de fibra de catolé e que com aquele trabalho miúdo formara um filho, que era hoje juiz de direito em
Timbaúba? E o escrivão Manuel Ivo, que tomava conta da igreja de São Cosme? Tudo que ele tinha
era para trazer limpinha a igreja, a igreja da sua devoção, matar os morcegos, folear as formigas que
furavam o chão com uma força de gente. D. Eufrásia chegava no Açu para consertar a vida do irmão
e nunca saíra dali com a esperança de ver o lugar melhorar. Amâncio é que ia se acabando. Ninguém
diria que ele só fosse mais velho do que ela um ano. Parecia um velho de setenta. Para ela, ele nunca
se queixara de coisa nenhuma, não lhe falava de doenças. E no entanto ela sabia que o irmão não
podia andar bem de saúde. Aquelas viagens a cavalo dias e dias, de fazenda em fazenda, pedindo
como um pobre, só podiam estar acabando com ele. E não tinha hora para comer. Bastava chegar um
chamado qualquer para confissão, e ele sairia a qualquer hora, chovesse ou fizesse sol, para a
distância que fosse. As mãos do irmão, a pele, a cara, tudo estava queimado, tudo encardido, como
se ele fosse um trabalhador de eito. Aquilo doía na d. Eufrásia. Quem visse Amâncio agora nem
poderia compreender que ele tivesse sido aquele rapaz bonito, no tempo do seminário, quando ele
vinha passar as férias em Iguaraçu. Parecia um santo Antônio, com aqueles cabelos louros, os olhos
azuis, o padre elegante. Tanta moça que se casaria com ele! Quanta moça não desejaria tê-lo para
marido! Correra mesmo a notícia que uma filha de um senhor de engenho rico de Iguaraçu se
apaixonara por ele. O fato é que a moça ficou para sempre como se um desgosto a houvesse jogado
para fora do mundo. Lembrava-se dela, da Maria da Luz, que vinha para as festas em Iguaraçu e
sempre a procurava para conversar. E Amâncio nem sabia que ela vivia, nem dera pelos olhares
quentes, pelas visitas que a moça fazia a sua irmã. Depois a notícia correra. Da Luz estava doente,
não queria ver ninguém, não dava uma palavra, chorando, sucumbida. O pai chamara médico,
andaram de passeio pelo Rio de Janeiro, e nunca mais conseguiram consertar a vida da moça. Ficara
ela sempre com aquele ar acanhado, aquela indiferença pelo mundo. Quisera namorar com o
formigão e fora castigada. Quisera tentar um seminarista. Para d. Eufrásia teria sido melhor que o
irmão se tivesse casado. Bem que ela sofria com o destino do padre Amâncio. Ali no Açu era que ela
media as coisas com exatidão. Vendo tudo, examinando, ela chegava sempre à conclusão de que
Amâncio nada fizera, nada criara, nada dera de grande. Vigário daquele oco do mundo, dizendo
missa, pregando para um povo daquele. Antes tivesse se casado com Da Luz. Teriam filhos, ela teria
sobrinhos, já que Deus não lhe dera a graça de um filho. Era isso o que mais doía em d. Eufrásia.
Morreriam sem que ficasse gente no mundo que pudesse falar por eles. Amâncio padre e ela maninha.
Não sabia explicar, não encontrava saída para o caso da família. Estariam em breve acabados para
sempre. Lá em Goiana estava o seu marido, um ente desprezível, um homem que desde os primeiros
dias de seu casamento lhe causara um nojo irrefreável, e ela sentia que o Cordeiro não merecia o seu
juízo. Era cruel para com ele, sempre tão submisso à sua vontade. Mas, fazia-lhe asco o contato. O
amor com ele era uma indignidade. Podia tê-lo deixado e ter vindo viver com Amâncio. Seria porém
uma ruindade. Esperou, esperou que viesse um filho. Esperou muito, até que se foram todas as
esperanças. E tanto viveu com o marido que se acostumou. Fora vencida pelo hábito. Havia até quem
se acostumasse com uma chaga. Aqueles dias que ela tirava para passar com Amâncio eram bem
bons. O Açu era aquela terra que ela via, mas se compensava de tudo, ficando junto do irmão. Se ela
não tivesse casado, teria mudado a vida do padre. Teria lhe dado mais amor à terra, às coisas da
terra. Pelo menos em atenção a ela, Amâncio teria procurado outra freguesia, um lugar onde se
pudesse viver cercado de gente e não daqueles bichos do Açu. Se ela pudesse, levaria o padre para
muito longe.
Naquela tarde ela já tinha terminado as suas atividades de dona de casa. Corria um vento fresco
pela porta da frente. Não se ouvia o mínimo rumor. Só de vez em quando berrava muito longe um
carneiro, lá para as bandas do coronel Clarimundo. O Açu estava quieto e silencioso, como uma
cobra encolhida no seu canto. Podia guardar muito veneno, podia pular para morder, mas estava
quieto naquela tarde de dezembro. D. Eufrásia se balançava na cadeira que trouxera para o irmão.
Agora ela ouvia, vindo do fim da rua, o bater seco do martelo do funileiro Amador. O vento
levantava poeira. Antônio Bento, lá no fundo do quintal, assobiava, cortando capim para o cavalo do
padre. D. Eufrásia chegou à janela. E viu a rua vazia. Debaixo da tamarineira havia gente sentada no
banco que rodeava o tronco da árvore. No oitão da igreja, um homem deitado de papo para o ar. Pela
calçada defronte passava Lula, o criado do juiz, arrastando os tamancos com estrépito. A madeira
batia no tijolo com raiva. D. Eufrásia avistou o irmão saindo da igreja. E viu a zeladora Francisca do
Monte na porta da sacristia, como se fosse dona de tudo aquilo, gritando para os meninos que
deixavam a escola. Não sabia ela como o irmão suportava o convívio com uma mulher como aquela.
O assobio de Antônio Bento enchia a casa inteira.
Então d. Eufrásia chegou na porta da cozinha e gritou para o quintal:
— Acaba com esse azucrim, menino dos diabos!

ANTÔNIO BENTO não gostava de d. Eufrásia. Aquela voz dura, aquele jeito de mandar, aquele ar
superior não lhe inspiravam simpatia de espécie nenhuma. Quando ela chegava na casa do padre, ele
sabia que tudo ia piorar. Por isso quando o padre Amâncio saía em viagem e o sacristão Laurindo
não podia acompanhá-lo, para Bento era um céu aberto. Ir a uma fazenda para um casamento, para um
batizado, para uma missa, era para ele um gozo de férias. Ficasse d. Eufrásia com as suas
impertinências com a negra Maximina. Ele saía com o seu padrinho de estrada afora, rompendo a
caatinga, subindo serra, com o coração batendo de alegria.
Naquela madrugada estavam de viagem marcada para a fazenda do coronel Raimundo de Natuba.
Viera um pedido para o padre Amâncio celebrar uma missa na capela de lá.
Estavam prontos para a partida. Maximina preparara o café para ele, e o padre Amâncio
esperava-o pronto na porta. Deviam chegar em Natuba às dez horas da manhã. O frio da madrugada
era bom. O padre Amâncio na frente e ele atrás, rompendo o caminho apertado de mata. De longe em
longe uma casa perdida, uma pobre casa isolada do mundo, no meio da caatinga espessa de
imburanas verdes, de xiquexiques sangrando pelas suas flores. O caminhar do sertão era aquele,
monótono, tudo igual, tudo uniforme na desolação. As pedras estalavam nos cascos dos cavalos, e
Antônio Bento, com o padrinho, sozinhos naquele mundo enorme, dava para pensar, para ligar ideias,
julgar as coisas, as mulheres, os homens. Tinha dezoito anos, era magro, franzino, de um povo infeliz.
No Açu, quando falavam da Pedra Bonita, a conversa mudava de assunto. E a gente da Pedra Bonita
preferia andar mais duas léguas até Dores a ir ao Açu fazer compras ou ouvir missa. Ele quase que
não se lembrava de sua gente. A mãe às vezes vinha vê-lo, dormia na casa do padre, conversava
muito com o seu padrinho. Mas ninguém de sua família aparecia por lá. Uma vez o seu pai chegou na
casa do padre para levá-lo, dizendo que o menino estava dando trabalho. Fora a mulher que se
lembrara de trazê-lo. Eles agora podiam tratar da criação. Mas o padre Amâncio pediu, fazia-lhe
falta, já gostava dele. Certa ocasião o padrinho falou-lhe de sua vida. Isto já fazia muito tempo.
Dissera-lhe então que o gosto da mãe de Bento era para que fosse padre. Ele mesmo pensara muito,
mas os recursos não permitiram. Falara ao reitor do seminário. As vagas para os meninos pobres
estavam encerradas. O seu destino era aquele. Se as coisas tivessem corrido ao contrário, estaria
hoje de batina, perto de se ordenar. No fundo Antônio Bento não sentia muito o fracasso. A mãe sem
dúvida que fizera os seus planos com ele de coroa aberta, abrindo os braços no altar, e teria sofrido
com o seu insucesso. Ele, não. Via o que era a vida do padre Amâncio. Velho antes do tempo. A vida
de um pobre, as privações de um qualquer. Melhor ficar como estava.
O cavalo do padre Amâncio puxava no baixo maneiro, e agora ia aparecendo gente que tirava o
chapéu. Os meninos e as mulheres estiravam a mão pedindo a bênção ao vigário. E olhavam para
Antônio Bento com olhos compridos. O coroinha sentia o seu pedaço de orgulho. Era um homem.
Fazia a figura de sacristão com aquela bolsa atravessada nas costas, levando com ele a caixa de
hóstias, os santos óleos, o sal, o vinho, as coisas sagradas, as maiores coisas do mundo. O sol se
espalhava pela caatinga com furor. Podiam ser seis horas, e aquele queimar de sol parecia de meio-
dia. Com pouco estariam na fazenda. De longe foram vendo a casa-grande, a capelinha e o verde da
vegetação do pomar, dando vida à secura dos arredores. Naquele pé de serra não faltava água. Nas
secas mais duras nunca secara o olho-d’água de Natuba. Podia o sertão arder, os leitos dos rios
espelharem com pedras ao sol, mas ali no pé da serra de Natuba minava água. Um fio d’água que
dava para matar a sede do gado, do povo dos arredores. Por esses tempos o coronel Raimundo
verificava a riqueza da sua fazenda. Perdia gado, porque em tempo de seca tudo de ruim podia
acontecer. Mas não lhe cortava o coração o urro de uma rês morrendo de sede, de pescoço caído, de
quarto bambo, arriando com o vento, como folha seca de mato.
Sempre que ia com o padrinho a Natuba, Antônio Bento se regalava com a riqueza da
propriedade que via. Havia vapor de descaroçar algodão. A casa de morada não parecia com as das
outras fazendas, pobres moradas de infelizes, pouca diferença fazendo das casas dos mais pobres do
sertão. A residência de Natuba era toda atijolada, toda pintada por dentro, com cadeiras de palhinha
na sala de visitas, com sofá grande, mesa de atoalhado na sala de jantar. Ele via o que eram as outras
casas, a pobreza dos trastes. Ali pelo Açu nunca fora em fazenda nenhuma como aquela do coronel
Raimundo. Também a fama de Natuba se espalhava. Naquele dia o coronel mandara chamar o padre
Amâncio para o batizado de um neto e aproveitava-o para dizer uma missa para a família e o povo da
fazenda. A capelinha estava cheia. Um zum-zum chegava até a sacristia humilde, onde o padre
Amâncio tirava da bolsa os paramentos para o ofício. E a missa começou com o carão do padre no
povo, pedindo silêncio. O pessoal da família quase que junto do celebrante. E ele, Antônio Bento,
sentindo-se um grande homem nas respostas que dava, nos gestos que fazia. As mulheres rezavam
batendo com o beiço. Ele tocava a campainha com força e o sino da capela respondia com o som fino
como uma voz de menino. Depois foi o batizado do neto do coronel. E havia para mais de vinte
meninos pagãos esperando que aparecesse por ali um padre. Foram até tarde nos trabalhos. A mesa
posta estava esperando pelo padre. Antônio Bento sentou-se com o padrinho para um banquete. A
toalha branca espelhava na alvura do linho. As terrinas fumaçavam com a galinha e arroz. Até vinho
botaram no seu copo. Negras serviam a mesa, mas era a dona da casa que fazia os pratos do padre.
Havia um bolo sem coco, especial para o vigário. E o coronel conversava dando notícias de tudo,
dos negócios, do preço do algodão, do inverno que tardava. O padre Amâncio dava impressões e era
escutado com respeito. Antônio Bento na mesa ali sentado como gente de primeira estava calado, de
ouvido aberto a tudo. Por fim se levantaram e botaram cadeiras no alpendre. Havia uma rede armada
no quarto da frente para o padre Amâncio descansar. E o sol tinia lá por fora com toda a violência de
dezembro. O céu era todo azul, mas não corria vento: tudo parado, como uma expectativa qualquer.
Os convidados palestravam. O coronel ouvia e contava histórias, enquanto o vigário pegava no sono,
ressonando alto. Aí todos falaram dele. Todos eram de acordo que nunca aparecera por ali um padre
como aquele, sem interesse, sem “bondade”. Um sujeito que era de longe, um comprador de gado,
falou na santidade do Padre Cícero, que fora aquilo mesmo que o padre Amâncio, até que o bispo de
Crato brigara com ele. Então o povo se levantara todo e hoje o Padre Cícero era um santo, fazendo
até milagres. Mas o povo de Natuba queria era agradar o padre Amâncio e os gabos foram grandes.
Lá de dentro vinha o seu ressonar profundo. Pelos batentes da casa ficava a gente pobre escutando a
conversa. E não demorou muito que chegasse um vaqueiro, de fala arrastada, para dar notícias ao
coronel. Não tardava uma trovoada. O céu estava dizendo com aquele paradeiro de vento. O
comprador de gado era da mesma opinião. Aquela chuva não demorava. E de fato, quando foi à
tardinha, o céu escureceu para o lado do norte e estrondou um trovão. No começo seco como se
viesse de muito longe. O segundo veio se aproximando mais. E por fim estrondou violentamente. As
mulheres correram para dentro do quarto, acendendo velas no santuário. E parecia que o céu vinha se
quebrando na cumeeira da casa da fazenda. A chuva começou a pingar compassada, pingo grosso
sobre pingo. E depois desencadeada como se as portas do céu se tivessem aberto num rompante. O
povo que estava pelos batentes ouvindo a conversa ficou como doido, debaixo d’água, ensopando-se
de chuva. Os meninos se espojavam na lama como porcos. Uma imensa alegria baixava sobre a terra.
O coronel não continha a cara feliz. Estava como besta, com a neta no braço, fazendo graça com a
chuva, cantando baixinho:

Chove, chuvinha,
Para o boizinho comer,
Para o boizinho cagar.

— O senhor agora tão cedo não sairá daqui — dizia o coronel para o vigário. — Os riachos com
pouco mais não dão passagem.
O padre Amâncio queria estar no Açu no outro dia, no mais tardar. E a noite veio antes do tempo.
As portas da fazenda se fecharam e só se ouvia o roncar da chuva. Aquele era o dia grande do
sertanejo. O dia em que Deus sorria para eles, o dia em que Deus era pai para eles. O comprador de
gado conversou, contou histórias de todos os lugares. Falou de Antônio Silvino, que fora preso em
Taquaritinga. No Recife fora visitar o cangaceiro na cadeia e tivera pena do homem. Nem parecia
aquele que ele vira entrando no Mogeiro, na Paraíba, com quinze cangaceiros. Estava um velho,
amarelo, de bochecha grande, como de doente de sezões. Uma vez ele estava no Mogeiro, na casa do
coronel Nô Borges, com um negócio apalavrado de uns garrotes. O Mogeiro era mais ou menos
assim como o Açu e com dois homens somente mandando nas coisas, o coronel Nô e o coronel
Florentino. Esses dois homens viviam embirrados. Pois bem, Antônio Silvino foi direto à casa do
coronel Florentino para arrasar tudo que este tinha. Chegou um sujeito dizendo ao coronel Nô. Os
cabras já tinham tomado tudo que era do outro. As portas do estabelecimento estavam arrombadas
com os cangaceiros mexendo nas prateleiras. Pois bem, o coronel Nô saiu sozinho, entrou de casa
adentro do seu inimigo e esbarrou com o chefe Antônio Silvino de cara. E falou duro com o bandido.
Dizendo para ele parar com aquela desordem. Ele não permitia que no Mogeiro se fizesse uma coisa
daquelas. Silvino quis estrebuchar. O coronel foi em cima e o cabra então mandou parar o saque. E
falou para o coronel Nô: “Pois, coronel, eu pensava que fosse do seu gosto. Eu queria até fazer um
agrado a Vossa Senhoria. Me disseram que o velho Florentino não fazia boa amizade com o senhor e
eu vim para dar um ensino no velho. Mas o senhor é quem manda.”
Silvino nesse tempo era um homem robusto, com o bigode comprido, todo bem-parecido. Nesse
dia trajava de paletó de casimira e calça de brim azulão. Nunca mais se esquecera da coragem do
coronel Nô Borges. Salvara o inimigo. Porque ele podia fazer como outros que vivem por esse sertão
afora, mandando cangaceiros nos inimigos. Nem era bom falar, porque ele conhecia muita gente
nesse caso.
O padre Amâncio ria-se da cavilação do comprador de gado. E o coronel Raimundo sabia de
outros que nem mandavam fazer, iam em pessoa. E a conversa foi se adiantando, até que chegou a
hora de cada qual sair para seu quarto. Antônio Bento ficara no mesmo quarto com o comprador de
gado. E o homem falou a noite toda. Era uma coisa que ele tinha. Não podia dormir com as primeiras
chuvas: estivesse onde estivesse, quando arrebentavam as primeiras trovoadas, ficava inquieto, com
uma coisa roendo, e não dormia. Sabia ele de tanta coisa. Falava de tanta gente que Antônio Bento
não sentia o sono chegar. Por fim começou a falar do povo do Açu. Ele conhecia pessoa por pessoa.
Perguntou pela filha do major Evangelista. Fora conhecido dela há bem uns doze anos. Chegara até a
ter namoro, mas não quisera ir para diante. A moça tinha um gênio de onça. Que moça danada de
esquisita. Não gostava do pai e só queria casar fugindo de casa, para fazer raiva ao velho. Ele até
não desgostava do major. Bom sujeito, com aquela mania de passarinho e de planta. Um homem
sério. Quase era seu sogro. Conhecera d. Fausta mesmo no Açu. Ele viera em companhia de seu
patrão, que era um comprador de algodão, e reparara naquela moça de janela. Isto uns doze anos
atrás. Engraçara-se dela. O namoro fora para diante, mas ficara com medo da moça. Falava do pai,
sem quê nem mais. Bem que ela era bonita naquele tempo. Mas homem não devia se casar com
beleza.
O companheiro de Bento conhecia muito mais gente. D. Francisca do Monte. Não era para falar
mal de ninguém, mas quando ele namorava com a d. Fausta, a Chiquinha do Monte tinha um chamego
danado com um caixeiro-viajante do Recife, que dava na vista. O homem, quando vinha ao Açu, se
hospedava na casa da mãe da moça, e o povo todo falava daquilo. Para ele era amigação. A mãe da
Chiquinha do Monte era professora pública, e por causa dessa história foi até removida para o
calcanhar de judas. Depois morreu e a moça voltou para o Açu de crista caída, toda da igreja. Nunca
homem nenhum pôde se gabar de Chiquinha. Deu para barata de igreja. Depois o homem perguntou a
Antônio Bento pela mulher do sacristão, a d. Auta, que fora uma beleza. Não se lembrava de ter visto
mulher como ela. Logo que o padre Amâncio chegou no Açu, moço e bonito, espalhavam a notícia do
namoro dele com d. Auta. O padre era bonito e a moça não saía da sacristia. Depois o povo foi
vendo que o padre não era dessas coisas. Se ele fosse como o padre Ramalho do Ingá, a coisa era
outra. O vigário, não. Era um santo. Pois mesmo assim d. Auta passou por burra de padre muito
tempo. Ele estava no Camaru quando o médico de lá foi chamado a toda a pressa para o Açu. A
mulher do sacristão estava com o filho atravessado há dois dias. E não havia parteira que desse jeito.
O doutor chegou em tempo de salvar. Mas a d. Auta ficou aleijada. O Açu era uma terra infeliz. Ele
não se casaria com moça de lá por preço nenhum. Quando se lembrava que quase se tinha amarrado
com a filha do major, ficava até com medo. Aquele era o lugar mais caipora que conhecia. Havia no
sertão de Pernambuco terras mais secas, mas a desgraça do Açu era outra. Até nem era bom falar. O
diabo perdera as esporas por aquelas bandas. Era o sangue dos meninos da Pedra Bonita.
Aí Antônio Bento ficou atento. Que sangue era aquele? Que história era essa da Pedra Bonita,
que desde menino ouvia falar, tão por alto, com as pessoas sempre fugindo, sempre com medo de
chegar ao fim. O comprador de gado parou a conversa, mexeu-se na rede. Já era muito tarde. A chuva
caía de rojão, afinando e engrossando, sem parar. Os cavalos batiam com os cascos no madeirame da
estrebaria. Não dormiriam também com as primeiras chuvas. O homem voltou a falar, mas ouviu o
ressonar de Antônio Bento. Acendeu outra vez o cachimbo, para entreter a insônia feroz.

POR BAIXO DA TAMARINEIRA se juntavam os homens do Açu para as conversas. Rodeava o tronco da
árvore um banco de madeira tosca. E aí batiam boca. As novidades tomavam curso, se publicavam
com todos os seus detalhes. Joca Barbeiro, que só trabalhava nos dias de feira, passava horas e horas
por ali. Era a maior língua do Açu. De tudo sabia. Falava de tudo. Também era o maior leitor de
jornal da vila, e diziam até que ele sabia escrever artigos. O major Evangelista era de opinião de
que, se o Joca tivesse estudado, seria uma pena de primeira. O barbeiro gozava a fama e não perdia
tempo. As conversas da tamarineira metiam medo. De vez em quando uma gargalhada estrondava.
Uma pilhéria mais engraçada, uma anedota nova provocava aquele destempero. As mulheres
censuravam os maridos. Não gostavam daquelas reuniões, onde se falava da vida alheia, onde se
contavam histórias debochadas. Aquilo para elas era como se fosse um começo de perdição.
Brigavam com os meninos. Que não fossem escutar as porcarias daqueles homens velhos sem
respeito. Joca Barbeiro tinha fama de sujeito perdido. Aquelas histórias que ele contava só mesmo
um homem da marca dele contava. Nem por isso as reuniões da tamarineira deixavam de ser
frequentadas. Às vezes o padre Amâncio passava por lá e parava para dar dois dedos de prosa. A
conversa então mudava de rumo. Fazia-se um intervalo para se ouvir o vigário. Logo que chegara no
Açu fora este muito comentado pela assembleia da tamarineira. O padre era moço e bonito. E as
beatas do lugar sofreram com os comentários. A mulher do sacristão mais de uma vez criara barriga
do padre novo. Mas a respeitabilidade, o zelo, a bondade do padre Amâncio venceram a
maledicência da terra. Não se falava mais dele, passara a ser respeitado, a ser uma exceção na terra.
Falava-se muito do juiz, o dr. Carmo. Não era um homem que se desse a respeito. Um homem
formado, de chinelo, em mangas de camisa pela rua, com a barriga branca aparecendo. E mais ainda
corria a notícia do namoro dele com a filha do fiscal da Recebedoria. Uma moça que não valia nada.
Contava-se até que o pai deixara o município, onde estivera servindo, por causa da safadeza da filha.
Fizera ela da casa do pobre um lugar de encontro, recebia homens. Uma infeliz. E o dr. Carmo, pai
de filhos, com uma mulher tão boa, tão fina, namorando agora com aquela sem-vergonha. O major
Evangelista achava aquilo uma desmoralização para a Justiça. Não era ele, o dr. Carmo, quem fazia
semelhantes misérias. Era o juiz do município. Quem podia levar a sério um magistrado que dava
escândalos daquele. Por isso que viera cair no Açu. Se prestasse, não o mandariam para aquele oco
do mundo. Tudo que era gente ordinária soltavam no Açu para curtir pena. O juiz andava botando as
manguinhas de fora, desmoralizando a Justiça, e o governo o mandava para o Açu para endireitar. Ali
o bicho criava vergonha ou se desgraçava de uma vez. Tiveram, em tempos atrás, um tal de dr.
Silveira que bebia como um infeliz. Um juiz bêbado, tombando pela rua, gritando dentro de casa,
dando na mulher. Eram só trastes assim que vinham para o Açu.
As conversas da tamarineira não respeitavam ninguém. Era um jornal de oposição, violento,
impiedoso.
Antônio Bento, quando não tinha que fazer, gostava de sentar-se por perto para escutar. No
começo mandaram-no ir embora. Mas aos poucos foi ele ficando, até que se esqueceram. E passou a
ser ouvinte constante dos bate-bocas. A história do juiz o espantou. Ele via d. Senhora tão orgulhosa,
tão cheia de bondade, só saindo de casa para tratar com a irmã do padre, e agora estava sabendo que
o dr. Carmo não respeitava a mulher. Ficou com pena da mulher do juiz. D. Eufrásia mandava-o levar
presentes à amiga, e sempre que esta lhe entregava o prato vazio, lá vinha uma moeda de cruzado
para ele. Os meninos do juiz eram os mais bem-vestidos do lugar. No começo brincava com um
deles, o mais velho, que regulava a sua idade. Estava no colégio, no Recife, e nas férias soltava-se
no Açu como um desesperado. Metia medo ao povo da terra, não ligava importância a ninguém, nem
ao coronel Clarimundo, nem ao padre Amâncio. O juiz não se dava bem com o vigário por causa de
uma do filho. Há tempos, numa festa de igreja, andava o menino bulindo com as matutas. O padre
Amâncio soube e chamou-o à sacristia, passando-lhe um carão dos bons. O pai soube e andou
falando do padre. Filho dele não recebia carão de pessoa alguma. Desde aí Antônio Bento começou a
olhar o outro como um inimigo. Certa vez fora provocado na beira do rio pelo filho do juiz. Estava
lavando o cavalo do padre, quando o menino chegou para debicar dele. Não teve dúvida não. Na
segunda descompostura pegou-se com ele e deu com o bicho no chão. Deu-lhe a valer. No outro dia
ia passando pela porta do juiz quando ouviu um psiu. Era o dr. Carmo, da janela, que fazia sinal para
ele. Neste dia ouviu calado o diabo do juiz. Se ele se metesse outra vez a se encontrar com o filho, o
botava na cadeia. Já tinha falado com o cabo do destacamento. Mandava meter o chicote. E gritou
para Bento: aquela gente não sabia com quem estava bulindo. E a cara gorda, com a papada bamba,
fez medo a Antônio Bento. Quis responder, dizer alguma coisa. O homem não permitia. Não queria
saber de coisa nenhuma. D. Senhora apareceu na sala para agravar mais. O filho não devia estar se
metendo com gente ruim. O culpado era ele, o marido, que não botava cabresto no filho. O povo do
Açu não prestava para nada.
Antônio Bento saiu do carão humilhado, vencido, arrasado. Na tarde daquele dia havia um
enterro de gente pobre. O caixão da caridade saía da igreja e ele tocava sinal. Via lá de cima as
quatro pessoas levando o defunto. Via até que se sumiram no fim da rua. O pessoal que estava na
tamarineira se levantou e tirou o chapéu. E o defunto pesando. Pararam para descansar. Ele puxava o
badalo. Cada toque era um lamento profundo, perdendo-se por longe. O juiz lhe dissera horrores. Se
o padre Amâncio soubesse, ficaria aflito. Nunca Antônio Bento passara dia pior que aquele. E logo
naquela tarde do enterro. Não gostava de tocar sinal, dobre para defunto. Era triste demais. E no
entanto, quando morria anjo, e ele repicava o sino batendo com o badalo e a pedra por fora, não
sentia aquela tristeza. Enterro de anjo não fazia pena. Lá ia um caixãozinho azul pelo meio da rua
com os meninos atrás. Repicava o sino com gosto, como se estivesse chamando gente para a missa.
Enterro de gente grande era diferente. Na tarde daquele dia depois das palavras do juiz, Antônio
Bento sofrera a primeira estocada, o primeiro golpe de um inimigo. Nunca ninguém lhe falara assim.
Levara carão do padre Amâncio quando menino. E as repreensões de d. Francisca do Monte e de d.
Eufrásia eram repreensões de gente chegada a ele, de gente com interesse na sua vida. O juiz falou
em cadeia, no cabo do destacamento, como se ele fosse um preso, um cabra perigoso. Não dormiu
bem. E teve medo. Viu-se metido com os presos da cadeia, os assassinos, os ladrões de cavalo.
Sentiu-se inferior, baixo, um traste. Nem a servidão de criado do padre lhe dera a certeza de sua
inferioridade. Padre Amâncio era manso, era seu padrinho, seu pai verdadeiro. O que fazia para ele
era natural, era de sua obrigação, todos os filhos ali do Açu trabalhavam para os pais, como ele. Só o
filho do coronel Clarimundo e os do juiz não trabalhavam. Mesmo o do coronel Clarimundo, quando
chegava nas férias, o velho botava-o no balcão. E o juiz lhe falara em cadeia. O filho do gordo falara
em sua mãe e ele castigara o atrevido. Por isso, cadeia, com o cipó de boi do cabo do destacamento.
O sono não chegou logo para envolver com a sua paz o pobre Antônio Bento. A conversa da
tamarineira vingava-o. O juiz era um safado. Dizia o major Evangelista, um homem bom. Joca
Barbeiro contava dos ridículos que o gordo fazia, conversando até altas horas na porta da filha do
fiscal. Juiz indecente. Gordo ordinário. Teve vontade de sair pela rua, de ir até a porta da casa dele,
chamar a mulher e desabafar: “Olhe, d. Senhora, o seu marido tem outra mulher, não gosta mais da
que tem em casa, quer outra, quer outros filhos.” O juiz vivia de namoro. Era um homem sem
respeito. Veria então d. Senhora chorando, e ele muito satisfeito. Veria a cara gorda do juiz suando
frio, lívido, com medo, tremendo como um enforcado na hora da morte. Ele só merecia aquilo.
Depois Antônio Bento via que seu ato seria infame também. Teria que contar tudo aquilo no
confessionário a seu padrinho. Estava sendo ruim, querendo vinganças perversas, querendo esmagar
uma pobre infeliz. Contaria ao seu padrinho na primeira sexta-feira do mês. Comungaria. Deus que
tomasse conta do juiz. Deus que lhe desse jeito. Os Seus poderes eram infinitos.
As conversas da tamarineira iam além do juiz. Quando não estava lá o major Evangelista,
falavam de d. Fausta. Achavam-na uma mulher esquisita. Não havia criada que aguentasse um mês na
casa do major. D. Fausta brigava com todas, implicava, fazia malvadeza. Joca Barbeiro sabia de uma
menina que os retirantes tinham deixado com d. Fausta, e a judiaria da mulher com a mocinha fora tão
grande, que a pobre se danara por este mundo afora. Nunca mais se soube dela. D. Fausta era uma
fera. Conversando com ela, não havia quem dissesse. Ninguém era mais mansa, de voz mais terna. O
major sofria horrores nas mãos da filha. Diziam que às vezes na mesa do jantar as lágrimas chegavam
aos olhos do velho. Era que D. Fausta preparava molho tão apimentado, que cortava a língua. Outro
falava de um fazendeiro que quisera se casar com a moça e que desmanchara o casamento porque o
ciúme dela era tamanho, que metera medo ao homem. Ela tinha ciúme até dos animais, das vacas, das
ovelhas. Aí a gargalhada estourava. As mulheres em casa dariam muxoxo. Os homens por certo
estariam na porcaria lá por baixo da tamarineira.
D. Fausta abria letras nos lençóis que bordava para as noivas distantes. Aquele linho cobriria
corpos jovens no amor, corpos de noivos se cobririam com os lençóis que ela bordava. Cabeça de
noiva pousaria nas fronhas que ela bordava. Os seus dedos ágeis enfeitavam, davam beleza às peças
finas que ela arranjava para os outros. Os pássaros do pai enchiam a casa com aqueles cantos
insuportáveis. Miseráveis os pássaros, miserável essa vida do Açu. Dependuradas no alpendre, as
parasitas se balançavam com o vento. Se ela pudesse, mataria os pássaros, pisaria por cima daquelas
flores. Ouvia as risadas da tamarineira. Tinha um G difícil para acabar. Precisava caprichar na letra.
A encomenda que tinha de entregar estava atrasada. Os pássaros trinavam pela casa inteira. As
parasitas se balançavam. Os inimigos de d. Fausta eram inclementes.
5

ANTÔNIO BENTO sabia que havia qualquer coisa de grave contra o povo da Pedra Bonita. Havia uma
história que ninguém contava, contra o seu povo. Nas conversas da tamarineira, por mais de uma vez,
ouvira referências. Todos eram de acordo em responsabilizar a Pedra Bonita por uma desgraça
qualquer. Todos estavam convencidos de uma influência nociva, infernal, agindo sobre o Açu. As
mulheres cortavam a conversa quando se referiam à terra de Antônio Bento. Os homens não
chegavam ao assunto com exatidão. Havia um segredo. Antônio Bento procurava se lembrar de sua
casa no pé da serra do Araticum. Viera de lá muito menino e as suas recordações se limitavam a
muito pouco, ao curral pegado à casa, ao pai alto e de barba rala, e à mãe, que era a impressão
duradoura da sua infância. Voltava ele, nas suas cismas, aos campos nativos. Mas poucas
recordações se haviam gravado na sua memória. O curral pegado à casa, o curral maior do gado e o
curral pequeno com telheiro para os bodes. Sabia que viera para a casa do padre, dado pelos seus,
na grande seca de 1904. Disto se lembrava. Viera trazido pela mãe. E as visitas que os de sua casa
faziam a Açu eram poucas. Via a mãe uma ou duas vezes por ano. Chegava ela na casa do padre com
os queijos e os presentes pobres. O padre Amâncio falava com ela, dava-lhe notícias do filho, e a
mãe passava o dia alisando o menino, botando-o no colo, tirando o atraso de muitos meses de
carinho. Fora crescendo, e a mãe era sempre a mesma coisa. Ela no começo lhe dizia: “Tu vais ser
padre como teu padrinho, Bentinho. Teu pai não quer, mas tu vais ser.” Os anos se foram. E ele não
pudera realizar o sonho da mãe. Para que ser padre? Era bonito para os outros. Mas ele via que vida
levava o padrinho. A família de Antônio Bento lhe seria estranha se não fosse a mãe. Com ela se
sentia ligado. Tinha dezessete anos. Crescera, ficara grande, em breve tomaria conta da igreja
sozinho. Em breve estaria no lugar do velho Laurindo. E se o padrinho se fosse, morresse? Era o
ponto fraco de todas as cogitações do rapaz. Voltaria para o meio de sua gente, se o outro padre não
o tomasse para os seus serviços. Voltar para o meio donde viera não o seduzia. Ele era de fora dos
seus. Lembrava-se do ar distante do pai, no dia que estivera na casa do padre falando para que ele
voltasse para junto deles. Aquele homem nada tinha a ver com ele. Aquele olhar duro de bicho,
aquelas barbas, aquele jeito de falar não queriam dizer nada para Antônio Bento.
Os homens e as mulheres do Açu, quando se referiam à Pedra Bonita, era de um modo que
impressionava. Não queriam falar de lá. Antônio Bento, quando era mais moço, se lembrava de uma
palestra que ouvira entre d. Eufrásia e uma visita. Ele estava na porta da rua, e as duas mulheres
conversavam sem saber que ele estava por perto. A visita se espantava da coragem do padre
Amâncio em ter criado um menino da Pedra Bonita. O vigário estava criando uma cobra. D. Eufrásia
achava que não. O menino não tinha gênio, era bem-mandado. O padre queria-lhe muito bem, como
se fosse de sua família. Por este ponto, não. Antônio Bento ali não dava cuidados. Se não fosse ter
que deixar o irmão só, levaria o menino para Goiana, para lhe dar mais educação. A visita não
acreditava. Um dia ou outro ela ia ver. Não se conhecia um só ente daquelas bandas que fosse como
o resto da humanidade.
Bento sentiu a conversa, preocupou-se com a advertência da mulher, quis perguntar ao padrinho,
encontrar um meio de descobrir aquele segredo, as razões de tanta prevenção contra os seus. Teve
medo de uma história terrível e ficou calado. Foi se calando, conformando-se com o desprezo da
gente do Açu. No começo as mães botavam os filhos para dentro de casa, quando os surpreendiam
brincando com ele: “Entra pra dentro, menino! Saia daí, menino!” Outras eram mais diretas: “Não
quero você brincando com o menino do padre.”
Depois passou mais tempo. Foram se acostumando com ele. Viam-no ajudando missa, acendendo
as velas do altar. E os cuidados das mães do Açu foram diminuindo. Por isso Antônio Bento tanto se
orgulhava nos dias de missa e de bênção. Ele estava lá pegando em coisas, fazendo coisas que os
meninos do Açu não fariam nunca. As mães não queriam que os filhos brincassem com ele. E no
entanto quem sabia dos segredos da igreja, quem acendia a lâmpada que, de dia e de noite, velava o
Santíssimo, quem pegava nos objetos sagrados? Era ele, Antônio Bento, que não prestava para se
juntar com os meninos do Açu. Não era um bicho. O que ele tinha era o que todos os outros tinham.
Por que faziam aquilo com ele? Só o padre e a negra Maximina não o colocavam em lugar diferente
dos outros. A própria d. Francisca do Monte, na escola, fora o seu suplício. A razão de tudo estava
sempre com os outros meninos, para a professora. Ele recebia castigos injustos, havia sempre duas
justiças para a professora. Muitas vezes tivera vontade de dizer ao padre. Era tão manso, recebia
tudo aquilo como se fora merecido. E as mães do Açu tinham medo dele. Nunca tivera um amigo de
sua idade, nunca tivera um companheiro, uma camaradagem como os outros tinham. Melhorara tudo
com o tempo. Hoje em dia a coisa era outra. Se não fossem as restrições, as referências duras ao seu
povo, não veria diferença entre ele e o povo do Açu. Para isso não respeitavam a sua presença.
Falavam da Pedra Bonita como de um ninho de cobras. A desgraça do Açu vinha de lá.
Desde aquele dia do carão do juiz que ele principiara a ter raiva. Nunca tivera ódio a ninguém.
Menino manso, pacífico, só mesmo na escola de d. Francisca sentira vontade de sublevar-se, de ir de
encontro às ordens superiores. O seu padrinho dera-lhe uma educação sem castigo. Agora porém
começava a se insurgir contra a corrente. O filho do juiz conhecera a sua força. Era o menino mais
graúdo do Açu. E quando a raiva lhe esquentou o sangue, não teve medo do juiz, do castigo, de coisa
nenhuma. Há doze anos que o Açu o tinha na conta dum pobre-diabo, uma cria do padre, um bicho
que descera da Pedra Bonita para que fosse amansado pelo povo dali. Era este o estado de espírito
de Antônio Bento. E num dia em que Joca Barbeiro começou a debochar da gente da Pedra Bonita, o
criado do padre deu uma resposta agressiva. “Amarelo metido”, gritou-lhe o homem enfurecido, “vai
para a estrebaria de teu senhor”. E Bento deu-lhe outra resposta e foi andando. Todos concordaram:
aquele menino era uma cobra. O padre criando uma cobra no meio deles. A resposta que Antônio
Bento dera a Joca Barbeiro irritara a assembleia. O amarelo estava precisando de um corretivo.
Em casa o padre Amâncio soube e chamou Antônio Bento para falar. Não queria vê-lo metido
com os homens, intrometido na conversa de gente grande.
Na tarde daquela repreensão o sino da matriz do Açu bateu as ave-marias com mais violência.
Puxando o badalo, Antônio Bento refletia. Ao primeiro bater de sino os homens da tamarineira se
descobriam, as mulheres do Açu cochichavam a sua reza do fim do dia. O sol se punha deixando
pelas nuvens uns restos de luz. O silêncio era grande. A vila estava quieta. Por debaixo da
tamarineira os homens continuavam na conversa. Na porta do seu estabelecimento estava o coronel
Clarimundo pensando nos negócios. E d. Fausta vinha para a janela, aproveitar a claridade de fora.
As velhas estavam dentro da igreja tirando terço com d. Francisca do Monte. E o padre Amâncio
rezava. Para Antônio Bento era ele a única pessoa que existia de verdade no seu coração. A própria
d. Eufrásia brigava demais, exigia muita coisa. Só ele, o padre Amâncio, lhe aparecia como amigo. A
última badalada ficava soando como um gemido. Do alto da torre Antônio Bento via as terras que se
perdiam de vista, as serras do norte, sumindo-se na distância, quase que se confundindo com as
nuvens. Por aquelas bandas ficava a Pedra Bonita, a terra dos diabos, o fim do mundo, o calcanhar de
judas. Joca Barbeiro dissera debicando que gente da Pedra Bonita tinha cotoco, tinha parte com o
diabo. Antônio Bento fora malcriado com o homem. O padre não queria que ele se metesse na
conversa dos grandes. Aí ele desceu a escada da torre e viu a igreja escura, só a lâmpada do altar
acesa. Nunca tivera coragem de falar ao seu padrinho do segredo de sua terra. Tinha medo, pavor de
uma coisa que não sabia como era. Mas queria saber. Ninguém ali queria ser franco com ele. Gente
ruim, que só cuidava de botar toda a desgraça do Açu para cima de sua gente. Se ele pudesse, daria
um ensino em todos eles. Até o sacristão Laurindo, quando falava da Pedra, cortava as palavras.
Então Antônio Bento viu que precisava mudar de vida, ser outro, ter mais coragem para encarar as
coisas. Vivia só, sem companheiros. O dia inteiro passava nos serviços do padrinho. Quando não era
na igreja, era na casa do padre. Não lhe sobrava tempo para pensar. O povo do Açu era aquele que
ele via.
E passou assim a reparar mais nos defeitos de cada um. D. Fausta brigava com o pai, era uma
onça acuada, um gênio de fera. O homem lhe contara que d. Francisca do Monte tivera relações com
o caixeiro-viajante, fora rapariga igualzinha àquelas que moravam na rua da Palha. E na escola fora
tão cruel com ele, tão contra ele, pobre menino, para contentar os outros do Açu! O major
Evangelista, com toda aquela importância, aqueles bigodes compridos, não passava de um maluco,
dando mais valor aos canários do que à família. O juiz enganava a mulher, era um debochado, um
canalha. O coronel Clarimundo roubava na certa no peso do algodão. Isso era o que eles mesmos
diziam nas conversas da tamarineira. Não acreditava porém na ruindade de d. Auta. Os filhos eram
mesmo do sacristão Laurindo. Tinha vontade que não fossem, mas via o padre Amâncio metido na
safadeza e recuava no seu pensamento. Ele, Antônio Bento, estava pecando. Confessar-se-ia aos pés
do padrinho, diria tudo, poria às claras todas as violências de seus ódios. E quando voltava das
confissões, os conselhos do padre Amâncio amansavam-lhe o furor. Recuava, comungava pensando
no perdão. “Perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores.” Perdoar
tudo, esquecer agravos, ser inteiramente da paz que Deus oferecia aos homens do mundo. Vinha
porém lá um dia e todos estes propósitos se quebravam. Voltava ao ódio, aos desejos de vingança
atroz. Tinha dezessete anos e não conhecia mulher. Não sabia de coisa nenhuma. Vivia só, sem os
outros meninos que tudo sabiam. Quando ele passava pela rua da Palha com o padre Amâncio, nas
ocasiões em que saíam para fora da vila, observava a cara do padrinho, reparava no jeito triste que
ele tinha, passando pela rua da Palha. As raparigas saíam da janela, fugiam para dentro de casa,
quando o vigário aparecia na ponta da rua. A estrada passava por lá. Tinha dezessete anos e nada
sabia das coisas de homem com mulher. Mas tinha vontade de saber, de fazer como os outros.
Lembrava-se do escândalo que o juiz dera por causa do filho com uma rapariga. O menino pegara
moléstias do mundo e a mulher fora para a cadeia. Diziam que o cabo do destacamento metera-lhe o
cipó de boi a pedido de d. Senhora. Não sabia de nada. Devia haver muita coisa de grande e de bom
entre homem e mulher. Ouvia as graças de Joca Barbeiro, as histórias que ele contava. Sempre que
começava uma dessas histórias, olhava para os cantos para ver se não tinha menino por perto. Os
homens achavam uma graça diferente. Se juntavam, se chegavam mais para junto uns dos outros para
ouvir melhor a safadeza. Antônio Bento não se perdera ainda. Os meninos de sua idade mangavam
dele. E ele compreendia e sentia-se mais inferior ainda sem aquela importância. Mas trabalhava
tanto, tanta coisa tinha para fazer que não lhe sobrava tempo para mais nada. O sacristão, cada dia
que se passava, mais ia deixando para ele arranjar, limpar. Não se importava porque gostava do
serviço. Fora das exigências e dos gritos de d. Eufrásia, tudo na casa do padrinho lhe agradava. A
negra Maximina era boa, queria bem a ele. D. Eufrásia implicava com ela. Não sabia fazer nada,
dizia a velha. Saindo do feijão e do arroz, Maximina não sabia mais nada. A negra se desesperava
com a irmã do padre. Falava em deixar a casa. No fim ia ficando. O padre Amâncio achava um jeito
de fazer-lhe um agrado e a negra velha se derretia de alegria. Aquilo é que era um padre. Um santo
daquele não se encontrava. Os antigos falavam de um padre Ibiapina que era assim como ele. E toda
a sua raiva contra d. Eufrásia se desmanchava. Toinho, era assim que ela chamava a Antônio Bento.
Para ela era mesmo que ser seu filho. Vira-o chegar ali menino, chorando por tudo. Tinha cinco anos
mas parecia ter dois. Com olhos pretos parados pela fome de 1904. Crescera junto dela. Fora mãe,
criada, tudo para o menino do padre. Até pensava que ele não se criasse. Viera câmara de sangue e o
pobrezinho quase que se desmanchara. Ficara um palito de magro. Tomara conta dele. Pobre Toinho!
Não tinha ninguém para lhe querer bem. A história de Maximina era triste. Quando fora da seca de
1877 deixaram-na no Açu com dois anos. Fora de um e de outro. Servira a vários donos. A
escravidão existia, havia escravos no Açu. Ela porém não pertencia de direito a pessoa nenhuma. Era
livre. Quando se fez moça, fez o que bem quis. Ia para onde quisesse. Trabalhava para quem queria,
a negra Maximina não tinha senhor. Andou por fora do Açu, foi com a família de um juiz para o
Recife. Demorou-se muito por lá. Depois voltou e estava com o padre desde que ele chegara ali.
Toinho era o seu orgulho. Quando ele era pequeno, nas noites frias de chuva, botava-o na sua rede,
dormia com ele. Agora era um rapaz, um homem. Às vezes Maximina ficava mais alegre, os olhos
ficavam vermelhos e ela dava para falar, ela que de costume era quieta e desconfiada. Fazia o
serviço cantando e depois saía à rua fazendo visitas. Entrava de casa em casa. Ria-se alto, dava
gaitadas, não respeitando ninguém. Todo o mundo sabia o que era. Era coisa antiga em Maximina.
Aquilo sucedia. Era raro, mas vinha. O padre Amâncio sabia e não ligava importância. D. Eufrásia
quis se aborrecer e teve de se conformar. Maximina bebia e ninguém sabia aonde. Era o seu segredo.
A princípio o padre pretendeu corrigir e foi deixando. Aquilo acontecia raramente. Antônio Bento se
lembrava do sono em que ela caía após as visitas, as risadas. Dormia. E no outro dia aparecia na
cozinha como se nada tivesse havido, calada no serviço, a mesma Maximina dos outros dias. Tirando
o padre Amâncio, era ela para Antônio Bento a melhor pessoa que existia no Açu. Maximina sabia de
histórias que lhe contava quando ele era menino. Sabia versos tristes, sabia de tanta coisa ali do Açu!
Quando ela esteve uns tempos fora da casa do padre, sentira a ausência dela como se fosse uma
viagem de mãe, a separação de um ente querido. Isto acontecera numa das viagens de d. Eufrásia. A
negra se aborreceu e arrumou os trastes. Iria embora. Meses depois voltou. E o padre Amâncio ficou
satisfeito. D. Eufrásia já estava longe e a vida na casa do padre voltou a ser como era. Agora
Antônio Bento estava com vontade de saber de Maximina o que havia contra o seu povo, o que
aquela gente do Açu escondia, o que eles tinham contra a Pedra Bonita. Se não fosse a vergonha,
perguntaria ao padrinho. Mas Maximina devia saber. Ela saberia tudo, o libertaria daquele peso,
daquelas grades de prisão. E perguntou-lhe. Mas a negra não contou nada. Ouvia falar mas não sabia
de nada. Sabia que fora uma desgraça. Que morreram inocentes, que a terra ficara ensopada de
sangue. Ela não sabia. Menino não devia saber dessas coisas. Aquilo não era da conta de menino.

6
APARECERA NO AÇU UM homem que não queria coisa nenhuma. Podia ter uns trinta anos e era escuro,
com os cabelos cobrindo as orelhas. Trazia uma viola e uma bolsa com uma rede suja. Ficara
dormindo no mercado e o major Evangelista lhe dava de comer. Os meninos correram para perto
dele. O homem tocava viola e cantava. Sabia de histórias. A vida dos cangaceiros maiores, de
Antônio Silvino, de Jesuíno Brilhante, de Cabeleira. Antônio Bento se demorou mais do que os
outros com o homem sujo. Ele viera de longe, sabia mais do que os outros. Estivera no Juazeiro.
Conhecera os cangaceiros do Pajeú e os frades das Santas Missões. Chamava-se Dioclécio. Não
sabia ler. Mas aprendera tanta coisa, tanto verso bonito, tanta história arriscada! Nunca Antônio
Bento conhecera homem igual. Estava embriagado pela vida do andarilho.
— Menino — dizia-lhe Dioclécio —, terra da gente viver é lá para as bandas do sul. Tu nunca
viste o que é terra bonita. Eu andei de navio, montei em trem de vapor. Vi o mundo, que não era essa
desgraça do sertão. Só estou por aqui por causa de família. Menino, família é a perdição de um
homem.
E contou a história, a história de sua vida. Saíra de casa pequeno com os irmãos que foram para
os trabalhos nos açudes do Ceará. Depois se separaram. Cada um tomou o seu destino, cada um foi
viver como Deus queria. Ele ficara no Canindé. A terra era boa, o povo era bom:
— Foi aí que eu me perdi. Foi mulher, menino, que me perdeu. Tinha meus dezesseis anos e era
assim como tu, sendo que crescera mais, era mais fornido. O diabo da mulher morava com o povo
dela pertinho do serviço. Eu era, depois do capitão, o homem mais importante do trabalho. Tu não
pense que estou mentindo não. Mandava em mais de mil homens. Não sabia por que, mas o chefe
gostava do meu trabalho. Na minha unha os cabras puxavam mesmo no serviço. Eu tinha até um anel
de ouro que usava neste dedo. Um relógio de correntão. Tinha uma casa de madeira. Eu mandava em
mais de mil homens. Foi quando entrou a mulher na dança.
Dioclécio respirava fundo e continuava na história:
— Todo o mundo dizia que eu era o homem mais feliz da terra. Não sabia nem esconder a alegria
que andava por dentro de mim. Tocava viola. Fazia loa, vivia me rindo com o tempo. A moça era
mesmo uma lindeza. Nem gosto de falar nisso. Fui infeliz. Tudo se desgraçou por causa dela.
Aí Dioclécio parou e Antônio Bento ficou em suspenso, esperando o resto. Mas ele não contou.
Não valia a pena reviver mágoas. E se espreguiçava. Levantava-se da rede suja para olhar o tempo:
— Isto aqui é triste mesmo, menino. Bem que me disseram: “Dioclécio, para onde tu vais?” E
quando eu disse que ia para o Açu ninguém acreditou.
Como podia um homem como ele ir para o Açu?
Estava aborrecido do mundo. Viera andando à toa, até ali. Andando como se não fosse para parte
nenhuma. Para ele o mundo era igual, tudo igual, tudo triste, tudo acabado. E pegava na viola e
tocava. Era triste o que ele tocava. Os versos eram tristes, as mágoas imensas. Às vezes a voz de
Dioclécio se sumia na mágoa, se perdia como soluço.
— Para que esconder, menino! O bom é cantar. E dizer tudo.
A vida de Dioclécio era para Antônio Bento uma revelação imensa. Que homem! Sofrera muito,
mas estava como se não fosse com ele, vendo terras e terras, sabendo de tudo. Se não fosse o padre
Amâncio, iria do Açu como cantador.
O povo da terra começava também a se interessar pelo vagabundo tocador de viola. Pelo sertão
tipos daqueles não eram raros. Os cantadores afamados não eram mais do que Dioclécio. As filhas
do coronel Clarimundo, que tinham chegado do colégio, mandaram chamar o cantador para ir à casa
do pai. Dioclécio não se fez de rogado. E espantou. Cantou mais do que lhe pediam. A sala se
encheu, ficou gente até por fora ouvindo o homem de alpercatas, de cabelo comprido, tocando viola,
gemendo, gemendo como um penado. As moças achavam graça e enchiam os olhos de lágrimas.
Dioclécio fazia tudo que lhe pediam. A sua veia era rica. As suas mágoas muito grandes para dar
sofrimentos aos seus cantos. Depois o coronel deu-lhe dez mil-réis e ele voltou para o mercado, para
a sua rede suja, para dormir e sonhar com as suas histórias.
No outro dia, depois de feitos os serviços na casa do padre, Antônio Bento estava com ele.
Nunca um homem fora tanta coisa para ele como Dioclécio. O cantador conheceu de sua força e cada
vez mais contava histórias. Fora amigo de cangaceiros. Não dizia nada para não ser tomado como
espia. Deus o livrasse de cair na mão de uma volante, de tenente de polícia. Conhecia cangaceiro de
verdade. Nem era bom falar. Só dizia mesmo a Antônio Bento para que ele pudesse avaliar da sua
força. Os cabras gostavam de ouvir viola nas noites de lua, nos ermos da caatinga. Cantava para eles
com paixão. Lá para as bandas de Princesa estava aparecendo agora um Ferreira, que era um bicho
danado. Diziam que ele estava vingando a morte do pai. E que não respeitava nem os coronéis do
cangaço!
— Menino, não queira ver cangaceiro com raiva! Dê por visto um demônio armado de rifle e
punhal. Eu estava uma vez numa fazenda perto de Sousa. Chegara lá depois de dez léguas tiradas a
pé. O homem me deu pousada. Dormi no copiar da casa, na minha rede. No outro dia, mais ou menos
por volta das duas da tarde, nós estávamos na mesa, na janta, quando vimos os cangaceiros na porta.
A família correu para as camarinhas e eu e o velho ficamos mais mortos do que vivos, estatelados.
Era Luís Padre com o bando dele. “Velho safado”, foi ele gritando logo, “se prepare para morrer”. O
homem se levantou e foi duro como o diabo: “Estou pronto, bandido, faça o que quiser.” Luís Padre
perguntou pelas moças. Queria comer. O pessoal estava com fome. E foi andando para o interior da
casa. O velho pulou em cima dele como uma cobra. Nisto os cabras se pegaram com ele. “Amarre
esta égua”, gritou Luís Padre. As moças e a velha correram para a sala de janta, fazendo um berreiro
como se fosse para defunto. “Meninas”, disse o chefe do bando, “nós queremos é de comer. Deixa a
velha na cozinha. Nós queremos é conversar com vocês”. Nisso a velha caiu nos pés de Luís Padre:
“Capitão, respeite as meninas! Não ofenda as minhas filhas, capitão!” “Ninguém vai ofender as
meninas, velha cagona!” E foi uma desgraça que eu nem tenho coragem de contar. Os cabras
estragaram as moças. Ouvi o choro das pobres, os cabras gemendo no gozo, o velho urrando como
um boi ferrado. Foi o dia mais desgraçado de minha vida. No começo eles quiseram me dar. Contei
que não era dali. O homem me dera uma pousada. Eu era um cantador. Então botaram as moças quase
nuas no meio da casa. Tinham que dançar. Nunca na minha vida vi cara de gente como a cara das
moças. Estavam de pernas abertas, grudadas nos cabras. Toquei viola e cantei até de madrugada.
Fiquei rouco, com fala de tísico. Depois eles deram uns tiros no velho e meteram o pau na mulher.
Tive que sair com o grupo até longe. Me disseram horrores. Se a polícia chegasse no espojeiro, tinha
sido coisa minha. Quando me vi solto na caatinga, estava como um defunto, nem podia dar dois
passos. Era de noite. O céu do sertão era um lençol de algodão com a lua. Não tive mais coragem de
andar. Estendi minha rede debaixo dum pé de imbu e dormi. Dormi tanto, que acordei com o sol na
cara. A minha goela queimava como se eu tivesse comido um punhado de pimenta. O meu corpo
estava podre. E nem quis mais pensar na noite da desgraça. Menino, dois meses depois, ainda tinha
na cabeça o velho esticado no chão, as meninas dançando, a velha chorando. Tive até medo de ficar
doido. Foi aí que eu pus a história no verso. E na feira de Campina Grande, quando cantei a coisa
pela primeira vez, vi gente chorando e mulher se benzendo. O dono do hotel mandou botar no jornal
da Paraíba a cantiga que eu tinha feito. Um sujeito do Ceará mandou um recado. Queria que eu
dissesse as coisas para ele passar no papel. O velho Batista da Paraíba fez umas loazinhas parecidas,
iguaizinhas aos versos que ele tirava para Antônio Silvino, e botou para vender nas feiras.
Doutra ocasião Dioclécio contou dos amores de uma ricaça do Monteiro por ele. Não era para se
gabar, não gostava de falar nessas coisas porque parecia que ele mentia. Uma vez mandaram chamar
Dioclécio para uma festa numa fazenda do Monteiro. Coisa paga. Ele se foi até sem vontade, pois
estava muito bem na vila, gozando a vida. Ele cantava todas as noites na casa de um rico do Recife
que se curava dos peitos por lá. Mas veio um vaqueiro com o recado do fazendeiro, com o cavalo
selado.
— O homem queria que eu fosse naquele dia para uma cantata na casa dele. Aceitei e saí com o
vaqueiro. No caminho fui sabendo de muita coisa. O dono da casa era um velho casado com uma
moça. Fiquei meio aborrecido. Nunca fui com essa história de velho enxerido. Velho é para a gente
tomar a bênção, guardar respeito. O homem tinha se engraçado de uma moça, uma menina bonita da
cidade de Sousa, e tanto fez que se casou. E vivia agora fazendo tudo que a moça pensava, dando
festa em casa, gastando dinheiro com besteira. Tudo para que a mulher não se aborrecesse, não fosse
embora. Cheguei de noitinha na casa-grande. Parecia um palácio. Havia tanta luz, que você podia
achar um alfinete no chão. Dê por visto um dia claro. A casa cheia de gente, a sala repleta e a dança
pegada. Se dançava ali desde a véspera. Fui chegando e fui logo levado para onde estava o velho.
Era um homem de respeito, de barba grande. Um homem e tanto: “Ah! o senhor é o cantador
Dioclécio?” “Sim, senhor”, respondi, “sou eu mesmo”. “Pois vamos ter um desafio, com o Manuel
Bacurau.” Disse ao homem que não cantava desafio, que não gostava do martelo. Era cantador de
histórias de loa. Não sabia bater boca com outro, descompor, para fazer os outros se rir. “Mas a
minha mulher quer”, disse ele. “O senhor precisa comer alguma coisa. Depois eu mando chamar.” A
cozinha estava cheia. Havia gente de fora e logo que me viram, me cercaram. Me tomaram logo pelo
Manuel Bacurau e todos queriam que eu metesse os dedos na viola. Fui dizendo que só tocava para a
sala, que viera ali a chamado dos grandes. Me fiz logo de importante. Uma cabocla foi logo dizendo
para a outra: “É a raça mais besta que eu conheço, essa de cantador.” Pouco me importava. Eu estava
era com medo do tal desafio. O outro cantador não tinha chegado. Para falar com toda a franqueza,
estava com medo do homem. Eu não sabia cantar assim de supetão. Mas, na hora em que me
chamaram, fui para a sala disposto a tudo. A dona da casa era uma boniteza sem igual. “Senhor
Dioclécio”, disse ela com toda a delicadeza, “venha tocar qualquer coisa. O seu rival não chegou”.
Criei alma nova. Bateram palma quando eu comecei a pinicar a viola. Havia gente muita, menino. Fui
logo de entrada cantando a história do Sousa. E vi gente no choro, menino! Gente grande enxugando
lágrimas. Botei mais uns versos, intrometi mais umas coisas. Verso tem que ter mentira, menino!
Senão fica muito rude. Aí ninguém quis mais dançar. Saía de uma história para outra, e a dona da
casa sentada junto de mim, pedindo para cantar mais. Nunca tinha visto uma moça que se parecesse
com aquela. Cantei tudo que sabia, inventei o diabo, tudo como se estivesse tonto, como se tivesse
entrado em meu corpo uma força de fora. Até que o coronel chegou para perto e mandou parar. E a
dança pegou outra vez. Vi a moça dançando com um lorde de anel no dedo. Era o promotor de Sousa,
um tal de dr. Mariz. Não sei mesmo o que se deu em mim. Estava com ciúmes da moça. Fiquei
espiando a dança. E uma coisa esquisita eu notei. A moça não tirava os olhos de mim. Olhei para o
lado para ver se era com outro. Mas não tinha ninguém junto de mim. Era mesmo comigo. Nem queria
saber. Aquilo era um sonho, só podia ser mesmo um sonho, menino. Uma santa daquelas me comendo
com os olhos.
“Dei umas voltas pelo terreiro da fazenda. O homem era mesmo rico. O curral do gado grande
era enorme. Um rico, um poderoso, e uma mulher daquela. Velho feliz. Estava fazendo um luar de
leite. A mulher não me saía da cabeça. Fiquei imaginando. E seria mesmo para mim que ela estava
olhando? De longe ouvia o harmônico tocando a quadrilha e os gritos do marcador. Fui dormir com a
coisa na cabeça e nem preguei olhos. Ouvi o toque da dança até de manhã. Levantei-me para receber
os meus cobres e ir para bem longe dali. Mas o velho pediu para eu ficar, me dizendo que a mulher
dele pedira para que eu ficasse por mais tempo. Ela tinha gostado do meu cantar e até queria que eu
ensinasse a ela tocar viola. Fique certo, menino, que eu tive medo do velho. Que diabo queria dizer
aquilo? Não disse nada, e na hora do almoço não havia mais convidados na casa. Nem parecia que
tinha havido dança a noite inteira. O velho e a mulher estavam na mesa. A cara dela era de uma santa,
de uma santa de altar. Que olhar, menino! Quando ela me fitava, vinha uma coisa por dentro de mim.
“E fui ficando na fazenda. No outro dia começou o ensino de viola. Aquilo não tinha o que
ensinar. Tocador de viola só precisa é ter coração. E fui assim pegando nas mãos da moça, tocando
para ela ouvir, até que uma noite eu estava no meu quarto, bem descansado na minha rede, quando
ouvi um bater na porta. Fiquei esperando e bateram outra vez. Abri, e a moça abraçou-se comigo.
Menino, se tivesse caído um raio nos meus pés, não teria sido igual. Era a mulher do homem em
carne e osso. Quis recuar, mas não tive coragem. A moça era donzela, menino! Ela me beijava como
se quisesse me comer, chorava nos meus braços como uma criança. Queria fugir comigo, ir pelo
mundo afora, ser infeliz comigo. Fui franco. Eu era um cantador, um pobre que vivia nas feiras
tirando o pouco para viver. E toda a noite era aquele gozar. O velho me tratava com toda a distinção.
Tive remorso, eu estava desgraçando aquele pobre homem. Ele bem que podia me matar. Estava no
seu direito. Eu já nem tinha coragem de sair da casa-grande. Para onde me voltava, via um rifle em
cima de mim. Pensei em fugir daquela perdição. De noite, menino, as vontades do dia eram como se
não fossem nada. Quando me lembro dessas coisas tenho até a ideia de que tudo isso é mentira. Mas
não era mentira não. E isto foi assim até que me decidi duma vez. Arrumei os meus troços e de noite
disse à moça que aquela era a última noite. Ela chorou de cortar o coração. Me abri com ela. A
minha ação com o velho não era de homem. Eu comia os pirões dele e ainda por cima fazia aquela
desgraça. A moça chorava tão alto que eu tive até medo que acordasse o povo da casa. Podia acordar
o velho. No outro dia, de manhã, eu estava no curral bebendo leite. O sol não tinha saído ainda e
fazia um friozinho do amanhecer. O gado metido na lama, os bezerros pulando. Quando eu vi foi o
velho junto de mim: ‘Bom-dia, seu Dioclécio’ me disse ele com a cara fechada. Eu disse de mim
para mim: ‘O homem vai me matar mesmo.’ Tinha descoberto a coisa e estava doido de raiva. Fiquei
estatelado. ‘Seu Dioclécio’, me disse ele outra vez, ‘quero falar com o senhor’. Saí com ele. Não sei
como as minhas pernas me aguentavam. Saímos para um canto do cercado. Havia um pé de juá
pertinho. Aí o homem parou. Esperei a descarga da pistola nos peitos. Não quis olhar para o homem.
Não tinha cara para isto. Ouvi somente que ele falava para mim: ‘Chamei o senhor, seu Dioclécio,
para lhe falar de um negócio sério. O senhor já deve saber do que se trata. Soube que o senhor quer
ir embora aqui da fazenda. Por que não fica mais tempo? A minha mulher gostou do senhor e o senhor
serve para o que ela quer.’ Olhei para o velho. Não era possível. Pois era, menino! O velho era um
corno! Aquilo no sertão era difícil de se encontrar. Mas uma vez ou outra a gente encontra. ‘Não diga
nada, seu Dioclécio’, foi ele me acrescentando. ‘Eu gosto da minha mulher. Ela é uma santa de
bondade. Casou-se comigo, veio para este oco do mundo. E eu não valho mais nada. A pobrezinha
sofria tanto antes do senhor chegar aqui! Agora virou outra coisa. O senhor precisa de algum dinheiro
para mandar para a sua família? Diga onde está o seu povo que eu mando.’ Não dei uma palavra ao
homem. Vi ele saindo para o curral, alto, de barbas brancas, e tive pena. Ele podia ter me matado,
menino. Esperava um disparo de arma e o que saiu foi isto que lhe contei. Na hora do almoço o velho
nem parecia que me havia falado coisa nenhuma. Eu é que não tinha cara para fitar aquele homem.
Um homem daquele, no sertão do Monteiro, na terra dos homens mais brabos da Paraíba. A mulher
estava se rindo com o tempo e me enchendo o prato de comida. E eu comendo aquele pirão, gozando
na rede com ela. Qual, menino! Tudo aquilo começou a me inchar na boca. Toda aquela vida parecia
um fim de mundo. Não disse nada a ninguém. Mas numa madrugada arrumei os meus troços e ganhei
o mundo. E nunca mais soube notícia daquele povo. E nem procurei saber. Aquilo era um arranjo do
diabo. Às vezes eu fico pensando comigo mesmo: ‘Quem sabe, Dioclécio, se toda aquela gente não
existia e tudo não passava de leseira da tua cabeça.’ Quis fazer uns versos com a minha vida na
fazenda do Monteiro e não saiu nada. Fiz finca-pé e nada. Qual, aquele velho era o demônio! Ele
queria me pegar, me chupar o sangue e me levar para o inferno. Contei essa história para um sujeito
que chama os espíritos em Jatobá, e ele me disse que eu não tinha vivido naquele tempo. Era tudo
invenção da minha cabeça. Eu é que sei! Que noites, menino! Que mulher, que corpo supimpa!”
Dioclécio foi transformando Antônio Bento, descobrindo para o criado do padre um mundo novo.
Aquele homem sujo, de cabelos grandes, viera ao Açu para virar a cabeça do rapaz. Na feira de
domingo Dioclécio cantou para o povo. Cercaram o cantador para ouvi-lo. A viola nas mãos do
homem e as histórias que ele sabia entretinham o povo, arrancavam lágrimas. Era bom de verdade.
Muitos ali conheceram outros cantadores de feira. Mas ninguém escutara coisa melhor. E Dioclécio
foi ficando. Havia quase duas semanas que tinha chegado. Mas o povo do Açu começou a sentir-se
mal com ele. Joca Barbeiro dizia debaixo da tamarineira que não havia autoridade no lugar, porque,
se houvesse, aquele tipo não estaria ali sem fazer nada, de manhã à noite na rede. Era capaz de ser
um ladrão disfarçado, que estivesse experimentando o lugar. Mas roubar o quê? Só se fosse ao
coronel Clarimundo, que era o único rico na vila, que sabia o que era dinheiro. E este mesmo
guardava os cobres em burra de ferro. Mas aquilo não podia continuar. Um sujeito sem ocupação,
comendo dos outros. E repararam no pegadio de Antônio Bento com o cantador. Aquilo dava em
coisa. Capaz do vagabundo estar virando a cabeça do rapaz. O padre Amâncio que tomasse cuidado.
Joca Barbeiro sabia de um cantador, daquele mesmo jeito, que chegara no Limoeiro, com toda aquela
goga de poeta. Deram lugar para o bicho dormir, chamaram-no para cantar nas casas dos grandes,
encheram o homem de importância. E o que sucedeu foi uma desgraça. Dois meninos da cidade
terminaram caindo na sedução do tal. O cabra se servia dos meninos como de mulher. Deram-lhe uma
surra de botar sangue pela boca. Por isso ninguém devia confiar em gente que ninguém sabia donde
vinha. O amarelo do padre não saía do mercado, atrás do cantador. O sacristão Laurindo se queixou
ao vigário: Antônio Bento há uma semana que não varria a igreja. Até a lâmpada do Santíssimo
deixara que se apagasse. E o padre chamou o afilhado para um carão. Há tempos que não falava
assim com ele. Só tivera voz naquele tom no dia da briga com o filho do juiz. Doeu em Antônio
Bento a repreensão. Naquela tarde procurou o cantador. Queria ouvir qualquer coisa que lhe desse
alento. Ele sabia de tanta coisa boa para se ouvir. Mas encontrou o cantador Dioclécio de cara
fechada, se balançando na rede. Tinham vindo dar ordem para ele deixar o Açu. O delegado mandara
um recado pelo cabo.
— Povo besta. Pensar que eu queria passar o resto da vida aqui, neste calcanhar de judas.
Menino, eu vou até ser franco. Estava por aqui ainda porque gostei de você. A gente anda por este
mundo de Deus sem encontrar ninguém para se querer bem. Você me agradou. E esta canalha
pensando que eu estava gostando era da terra. Que se danem todos. Bem me haviam dito que gente do
Açu não prestava para nada. Amanhã vou fazer uma madrugada. Saio daqui às quatro horas e vou
estourar lá no Camaru ao meio-dia. Chego mesmo no dia da feira. Aquilo é que é terra para gostar de
cantador. Ali eu posso viver descansado. Os grandes me chamam para cantar, passo de banquete. E
não me chega ordem de delegado me botando para fora.
Antônio Bento quis defender, procurando uma palavra para contentar o amigo. Mas ficou calado,
triste, ouvindo Dioclécio falar do Açu. No fundo bem que ele gostava daquele ataque. A terra era
mesmo uma desgraça. Ele também era odiado. Dioclécio é que era feliz por deixar o Açu para
sempre. Mas tinha pena que ele se fosse. Amava aquele homem sujo, de cabelo comprido. Sim.
Amava o que ele dizia e o que ele cantava. Tudo que era de longe do Açu estava com Dioclécio. Se
fosse possível, iria com ele, ganharia o mundo com ele.
O cantador olhou para Antônio Bento e percebeu a mágoa do amigo. Quis então corrigir,
encontrar um meio de acabar com aquilo:
— Não fique triste não, menino. Isto que eu digo do Açu é só para o povo da terra. Você, não.
Esse padre Amâncio bem que eu gosto dele. Padre, só mesmo assim como ele e o meu padrinho do
Juazeiro. Padre de batina lustrosa, de sapato espelhando não é padre não.
Dioclécio o que queria era agradar o afilhado do padre Amâncio, o rapaz gostava dele. Nada
tinha que ver com o Açu. E Dioclécio continuava elogiando o vigário:
— Eu já conhecia de fama o teu padrinho. A bondade vai longe, menino. Ninguém pode
esconder. Com o meu padrinho de Juazeiro foi assim. Ele era bom. Dava tudo aos pobres. A casa
vivia cheia de necessitados. E o bispo mandou chamar ele e passou um carão. Pois bem! O meu
padrinho ali mesmo falou sério para o bispo. E disse sem medo que o bispo estava enganado. Ele
tinha Deus no céu para juiz. Deus era maior do que os bispos. Ele não estava roubando, não estava
matando, não estava mentindo. Só fazia dar aos pobres o que eles não tinham. E aquele pequenininho,
de cabeça grande, se abriu. Os padres baixaram a cabeça, o bispo fechou a cara e o meu padrinho
veio para Juazeiro e ficou maior do que o bispo. Ele virou santo. Não estou mentindo. Uma vez eu ia
para lá a pé e vinha comigo um bando de romeiros. Numa carga, dentro dum caçuá, estava uma moça
entrevada. Fazia quinze anos que a pobre estava naquele estado e vinha para o Juazeiro se curar com
o meu padrinho. A viagem foi dura. Pois naquele ano a seca estava pegada com força. Nunca vi tanta
coragem em gente. Não se comia. E água era mais rara do que vinho de mesa. A moça no caçuá
gemia com o mexido do cavalo. Mas a gente chegou no Juazeiro. Foi numa boquinha de noite. O sino
da igreja tocava as ave-marias. O meu padrinho abençoava o povão. Pois, menino, eu estou falando a
verdade. Eu vi a moça descer do caçuá como se fosse boinha das pernas e correr no meio do povo,
caindo aqui, caindo acolá, como se estivesse bêbada, se arrastando, andando outra vez até a porta da
igreja, onde meu padrinho estava. O povo que tinha vindo com ela começou a berrar, como se
estivesse com o diabo no couro. A moça abraçou os pés de meu padrinho. O meu padrinho pegou ela
e foi dizendo: “Deus te fez doente e Deus te curou. Vai agradecer a Deus o milagre.” O povo todo de
joelhos, rezava, e meu padrinho, pequenininho, foi saindo para casa com o povo beijando a batina.
Eu te digo: eu já vi um milagre. A bondade pode fazer isto. Ninguém esconde a bondade não.
Quando chegou em casa, o padre Amâncio chamou Antônio Bento. Fosse preparar os cavalos,
que havia um chamado para confessar um homem às portas da morte no Curral Grande, a seis léguas
do Açu. Era um lugar deserto. Falava-se no Açu do Curral Grande como da terra pior do município.
Diziam até que os cangaceiros faziam espojeiros pelas caatingas de lá. Antônio Bento foi preparar os
cavalos pensando em Dioclécio. O amigo ia-se embora. Doía nele pensar na ausência do homem
sujo, mas que sabia mais que todo o mundo do Açu, tirando o padre. O que valia aquela gente toda
comparada com ele? O major Evangelista criando passarinho, Joca Barbeiro falando da vida dos
outros, o coronel Clarimundo dentro da loja contando dinheiro? O Açu inteiro o que valia junto de
Dioclécio, que tocava viola, que vira os cangaceiros, que dormira em rede com mulheres lindas, que
assistira a milagres, que cantava, que fazia versos? Que homem! E no entanto ia-se embora a
mandado do delegado, o major Cleto. Botar para fora um homem como Dioclécio!
Os cavalos já estavam prontos na porta da casa, e Antônio Bento mudava a roupa para a viagem.
Lembrou-se porém de que não podia sair sem dizer uma palavra ao amigo, que de madrugada
ganharia o mundo para nunca mais voltar ao Açu. E foi correndo dar um abraço em Dioclécio. Ele
estava de rede. Despediu-se: “Nunca mais a gente se vê.”
Mas Dioclécio sorriu:
— Qual nada, menino! Este mundo é um ovo. A gente ainda se encontra por aí.
Antônio Bento saiu com o padre, e a noite desceu sobre eles, no meio da caatinga. Com a
escuridão, só ouvia as pisadas dos cavalos. E o silêncio imenso, a noite imensa cobrindo as
imburanas, os cardeiros, o sertão inteiro. De madrugada Dioclécio ganharia o mundo.

A NEGRA MAXIMINA foi quem primeiro conheceu:


— Este menino está outro. Nem parece o mesmo.
Sentira a mudança de Antônio Bento. Ela vinha com ele há doze anos. De fato, ele estava outro,
se outro fosse ter Antônio Bento sentindo a vida mais sua, com mais gosto. Ele estava usando os seus
olhos, os seus braços, o seu coração. Dantes era aquilo que se via, vivendo com os outros mandando
nele, tocando sino, lavando cavalo, levando recado, um Antônio Bento que não era nada porque era
de todos. Dioclécio viera ao Açu, enchera o criado do padre de uma vida diferente. O cantador teria
vida de feiticeiro? Só, no serviço, o rapaz se lembrava dele e queria se esquecer. Esquecer! Seria
melhor se esquecer porque ele vinha sofrendo com as recordações. Sofria em se sentir pegado ao
Açu, enquanto o outro se dava ao mundo pelas feiras, pelas fazendas, pelas caatingas, fazendo o que
bem queria, o que bem amava. Dioclécio. A vida de Dioclécio, as suas histórias. Os rapazes do Açu
não sabiam de nada. O filho do juiz falava das mulheres do Recife, os outros dali falavam das
mulheres da rua da Palha. E nenhum sabia das histórias de Dioclécio, das noites de Dioclécio,
dormindo com a mulher do velho nos braços. Ninguém vivera como o seu amigo, como se estivesse
num sonho, fora da terra.
Era aquilo que Antônio Bento sentia. Ajudava missa, sacudia o turíbulo, como se fosse uma coisa
comum. Perdera o entusiasmo. Antes, para ele, nas noites do mês mariano, era uma glória ver-se de
turíbulo fumaçando na frente do padre Amâncio, enchendo a igreja de incenso. E os outros meninos
com inveja da sua importância. Fora-se tudo. Que lhe importava o amor de Maximina? Tudo no Açu
era contra ele. As mulheres eram aquelas que ele via na igreja. E os homens aqueles homens que não
gostavam dele, que falavam da sua terra com um desprezo que irritava. Joca Barbeiro, o juiz, o
delegado, o major Cleto, o cabo Leôncio. E os meninos? Os de sua idade andavam com as mulheres
da rua da Palha, se gabando, dando a impressão de que eram homens feitos. Não. Antônio Bento só
vira mesmo um homem naquele Açu, fora de seu padrinho. E este homem se fora, expulso, corrido,
como um malfeitor. Começou então a sofrer, a ficar triste, a ter saudades sem saber de quê. Uma
pungente saudade que ele não localizava, não encontrava lugar para pôr. As histórias de Dioclécio,
os versos, a viola triste. Lá de cima da torre, puxando o badalo do sino, iam-se com o som para longe
os desejos de Antônio Bento. Pensava na vida. O que seria dele, que não sabia fazer o que Dioclécio
fazia? Agora só amava, só admirava o que ele vira e gostara no cantador. Ajudar missa, varrer a
igreja, tocar sino, tudo já fora para ele um serviço de um ofício maior de todos. Agora, não. Era tudo
igual. Deus, Deus... E ficava com a cabeça fervendo. Pobre da Maximina, que acreditava em tudo e
que vinha sofrendo desde que nascera. Nada. Deus, do alto, mandava em tudo. Dioclécio vira o
Padre Cícero dizendo: “Deus te fez sofrer e Deus te curou.” O padre Amâncio estava ali no Açu
porque amava Deus. Ouvira d. Eufrásia dizendo: “Se Amâncio quisesse, já era bispo, já era um
grande, um príncipe.” E não. Ficava no Açu para aguentar aquele povo, aquela gente. Montava a
cavalo para andar seis léguas com o tempo que houvesse, para confessar um pobre, para salvar uma
alma das profundas dos infernos. Se não fosse ele, teria fugido com Dioclécio, teria fugido com o
homem mais feliz do mundo. O que andava pela terra, o que amava mulheres lindas e vira um
milagre, uma força de Deus se exercendo. Antônio Bento vacilava assim entre o padre Amâncio e o
mundo que Dioclécio descobrira. As terras viajadas por ele, as noites estreladas que cobriam os
sonhos de Dioclécio. Deixar o Açu e sair pelo mundo seria grande para ele. Mas não sabia cantar,
não sabia tocar viola. Para isso bastava ter coração, lhe dissera Dioclécio, bastava sentir entrar no
corpo aquilo que o seu amigo sentira na noite em que a mulher do velho fora deitar-se na rede, amar
com ele, dar quente aos seus braços, e às suas pernas. Podia ser um cantador. Por que não? Um
cantador. Mas um cantador tinha que fazer muita coisa, tinha que amar, que correr o mundo. E ele
nunca amara, nunca sentira o fogo do que Dioclécio falava. Mulher para Bento não existia. Que
mulher já lhe dera forças de correr mundo, de se desgraçar, de gemer na viola? Nenhuma. Até aquela
data não sentira nada, não sofrera nada por este lado. Pensava até que fosse um doente. Via os outros
de sua idade contando histórias, falando de namoro. E ele frio, alheio, bem de fora. Uma doença. Era
criado de padre. Devia ser como um padre? Não podia ser. Estava ali seu Laurindo com dez filhos,
fizera a mulher parir até que o doutor de Camaru aleijara a pobre. Ele, Antônio Bento, perdesse a
esperança. Um cantador era coisa mais difícil de ser. Padre não fora. As posses do seu padrinho não
deram para tanto. E dava graças a Deus. Vinha-lhe era aquela vontade de ser cantador. Era um desejo
violento que lhe tirava a tranquilidade, que lhe enchia as noites de sonhos e as horas de serviço de
tédio. Podia estar longe, bem longe do Açu. Com a sua idade Dioclécio mandava em mil homens,
tivera a grande história de sua vida, a facada que lhe dera coragem para ir pelas terras distantes
cantando, curando a sua dor. Se o padre Amâncio soubesse dos seus desejos, teria nojo do seu
afilhado. Era esta a dificuldade de Antônio Bento. Como receberia o padrinho estes seus desejos,
estas suas ambições? Se ele saísse pelo sertão atrás de Dioclécio, procurando o mestre para com ele
aprender, o que não ficaria pensando o padre Amâncio? Não havia dúvida de que aquilo seria uma
safadeza e tanto. Ficaria mesmo no Açu, nascera mesmo para sofrer, para enjeitado da sorte. Fora
dado pela sua mãe. Ela não tinha que deixar o seu filho em terra alheia. Os outros irmãos não
ficaram, não aguentaram o repuxo de 1904? A mãe viera ao padre Amâncio e deixara o filho mais
moço em suas mãos. E aí estava ele odiado pelos homens e as mulheres do Açu, sem amigos, feito
somente criado, esperando que seu Laurindo morresse para ficar no lugar dele. Seria no muito o
sacristão do Açu, enquanto vivesse o seu padrinho. E, depois, sem mulher, sem família, só, um traste
por esse mundo de Deus. Boa vida a de Dioclécio. Não tinha pai, não tinha mãe, não tinha padrinho.
Um dia no Açu, outro no Mogeiro, uma noite na Taquara, nos braços da moça bonita, a outra na
caatinga, dormindo com a lua no rosto, com as estrelas no céu, com o vento soprando. Um homem
feliz.
E assim andou Antônio Bento os quinze primeiros dias depois da partida de Dioclécio. A
primeira noite foi difícil para passar. Saíra com o padre Amâncio, estrada afora, atrás do homem
doente. Andaram pelo deserto, com a noite escura, pela caatinga interminável. Um silêncio de fim de
mundo abafando tudo. O padre Amâncio na frente e ele atrás. E foram assim até quase de madrugada.
Por fim chegaram na casa do homem que mandara chamar Deus para poder morrer. Quando se
apearam na porta da casa, havia choro lá por dentro. Não havia mais precisão do padre Amâncio. O
homem se entregara ao Criador com todo o peso dos seus pecados. Choravam junto do defunto
estendido na rede. A mulher e os filhos num berreiro triste. O padre foi consolar, dizer umas palavras
boas, mas ninguém ouvia. A mulher se queixava alto, fora de si. Era um homem bom o seu marido. Só
fizera o bem para todos eles, e viera a morte, Deus viera para o matar. Padre Amâncio saiu para o
terreiro. Os cavalos ainda estavam arreados. Não poderiam voltar em cima dos pés. Teriam que
esperar ao menos umas duas horas, para dar descanso aos animais. Uma mulher, que parecia a sogra
do morto, apareceu com café para eles tomarem. O padre agradeceu. Teria que celebrar ainda
naquele dia. A escuridão enchia a noite, mas a madrugada não tardou a chegar. Aquela casa no meio
do deserto. Um curral de pedra, pertinho, e a caatinga cercando. A caatinga sem fim, igual, léguas e
léguas. E aquela casa, e aquele povo, vivendo sem medo, sem desgosto. O padre sentou-se num
banco que a velha trouxera. E Antônio Bento por perto, pensando em Dioclécio, que naquela
madrugada ganharia o mundo. A velha começou a falar com o padre. A doença do genro começara
com uma dor de lado. Uma dor que tomava o lado esquerdo todo. Ele nem podia puxar pela perna. A
bicha vinha forte, mas passava. Ele andava, fazia os serviços, e outra vez chegava a dor. Torcia-se
na rede, como um infeliz. E foi assim, até que na segunda-feira veio febre e o pobre perdeu até o
juízo, dizendo besteiras. Fora ela quem se lembrara de mandar chamar o vigário. A filha não queria.
A menina estava meio aluada com a morte. Mas se acostumava. A gente ali se acostumava com tudo.
Lembrava-se da morte do marido. Pensava que o mundo ia se acabar, que tudo fosse cair por cima
dela. E tudo se fora, e ela criara a família. O padre Amâncio falou para a velha com a sua mansidão
de sempre; que era assim mesmo, que cada um podia confiar nos poderes do Alto, na justiça que não
falhava. A mulher começou a gritar, os filhos urravam. E a velha levantou-se e foi dizendo para
dentro de casa:
— Fica mais quieta, menina. Foi tudo porque Deus quis.
E com pouco mais a madrugada começou a clarear e aquela desgraça toda ficou mais à vista. O
curral dos bodes e a solidão daquela casa perdida por ali. Viviam, e a velha achava que nem a morte
era capaz de liquidar com eles. O defunto estava na rede, com as franjas cobrindo o rosto. A mulher
espichada no chão, como um cachorro dormindo, e os meninos por perto, no sono. Padre Amâncio
chamou Antônio Bento. Teria que puxar um pouco, porque ele não podia deixar de celebrar a sua
missa no Açu. E vieram andando de caatinga afora. As imburanas verdes, os xiquexiques florindo
enchiam a caatinga de vida, e de alegria. O sol da manhã se espalhava pelo verde das árvores, e tudo
cheirava, um cheiro bom de mato, de terra, de flores. Tudo estava muito bonito. Os cascos dos
cavalos estalavam nas pedras. O padre Amâncio vinha para a sua missa, e Bento não se esquecia de
Dioclécio. Seria bom que ainda o encontrasse no Açu. Poderia ainda abraçar o amigo antes da
partida. E às oito horas foram chegando na rua grande. O mercado vazio. Dioclécio se fora para
sempre. Antônio Bento sentiu-se roubado de um grande bem. Vira o homem morto, a mulher aos
berros, os filhos no pranto, e tudo nada fora em comparação com a fugida de Dioclécio. Foi para a
torre da igreja tocar a chamada para a missa. Estava que nem podia ter-se em pé com o cansaço da
viagem. E ficou estendido na torre, esperando para tocar a segunda chamada. Acordou com o padre
Amâncio chamando por ele lá em baixo. Tinha adormecido sem querer. Desceu para acender as velas
do altar. Na igreja as mesmas pessoas de sempre: as duas velhas, d. Auta, d. Margarida, e o pigarro
seco da zeladora. Depois da missa, o padre mandou que ele fosse para casa dormir. Acordou à
tardinha com Maximina chamando por ele:
— Vem comer, menino!
Levantou-se. E o que havia de real, de certo, de duro, era a ausência de Dioclécio. O padre
Amâncio havia chamado o sacristão Laurindo para outra viagem. E Maximina falava daquele
exagero. Se d. Eufrásia estivesse em casa, teria havido banzé. Como era que o vigário, mal chegara
de uma viagem de uma noite inteira, saía correndo para outra? Tinham ido nos cavalos do coronel
Clarimundo. Fora o sacristão Laurindo que viera chamar, porque havia um casamento para fazer na
fazenda Loanda. E saíram para só voltar dois dias depois. “Assim”, dizia Maximina, “não há cristão
que aguente”.
Antônio Bento foi para o seu serviço meio tonto. Para que bandas teria ido Dioclécio? O mundo
era imenso. Àquela hora o cantador estaria de rota batida para alguma fazenda. Tocaria viola,
cantaria para o povo da casa. Haveria uma moça bonita olhando para ele com amor. E Dioclécio
seria feliz e nem se lembraria mais dele, do Açu, da terra infeliz. E assim levou os cavalos para
lavar no rio com o sol quente. A água do poço chega ardia nas mãos. Cortou capim, fez tudo que era
da sua obrigação. E, à tardinha, subiu à torre para tocar as ave-marias. Nunca vira tarde mais triste.
Naquele dia debaixo da tamarineira não havia ninguém. O Açu mais calado, mudo. Puxou o badalo e
o som foi longe. Pensou nas mulheres se benzendo, na d. Fausta solteira, enjeitada pelos homens, ela
que tinha ciúme até das ovelhas e das vacas. O céu estava escamado de nuvens arroxeadas, de nuvens
tintas de sangue. Deu a última badalada e esperou que uma voz respondesse do outro lado do Açu:
“Eu estou aqui, Antônio Bento, estou aqui esperando por ti, para te ensinar os caminhos do mundo, te
entregar as cordas de uma viola, te ensinar os meus versos tristes.” E nada. O som se foi, se perdeu.
E a tarde e a tristeza do Açu. Lá embaixo as mulheres tiravam o terço, as duas velhas, d. Auta, a
zeladora. Esperou que elas acabassem para fechar a igreja. A luz do Santíssimo balançava com o
vento que vinha da porta aberta. “Ave Maria, cheia de graça”, dizia a voz rouca, cortada pelo pigarro
de d. Francisca. “Santa Maria, mãe de Deus”, respondiam as velhas e d. Auta. Por fim se foram e ele
fechou a porta grande da igreja, e ficou só, no meio da casa de Deus, com a luz do Santíssimo e o
silêncio. Havia morcegos chiando no telhado. Antônio Bento saiu pela porta da sacristia. No oitão da
igreja havia gente conversando. Mas ele saiu tão sucumbido, que não via ninguém. Foi-se como um
leso para casa e dentro de sua rede chorou. Chorou tão alto que a negra Maximina chegou para saber
o que era.
— Dorme, menino — lhe disse a negra. — Tu passaste a noite em claro.
Continuou a chorar. Chorou muito, até que se sentiu de peito lavado, como se as suas lágrimas
fossem uma enxurrada de chuva de janeiro.

FOI QUANDO se deu a briga do juiz com o padre Amâncio. O assunto apaixonou o Açu inteiramente.
As mulheres quase todas ficaram do lado do vigário. O coronel Clarimundo não quis se meter na
briga. O major Evangelista não vacilou. Quem estava com a razão, dizia ele, era o padre. Mas com o
juiz ficaram outros: o oficial de justiça, o major Cleto, o escrivão Paiva. Os poderes públicos da
terra se aliavam. Só o coronel Clarimundo, que era o prefeito, ficou neutro, sem querer tomar
partido. Aquilo era uma briga à toa, passaria com o tempo, dizia sempre. O padre Amâncio era um
santo, não guardava raiva a ninguém. Mas a luta foi crescendo. O juiz agredindo, fazendo o diabo
com o padre. D. Senhora apoiou o marido. As mulheres da terra romperam com ela, acharam uma
vergonha vir ela se meter na questão quando fora o marido que dera motivo a tudo. Começou a briga
por causa do filho do juiz, que se metia na igreja, abusando da bondade do padre Amâncio. Depois
foi o sermão, o grito de protesto do padre contra o escândalo que o juiz estava dando. O padre
Amâncio não teve dúvida. Subiu ao púlpito e protestou contra aqueles que deviam dar exemplos aos
mais humildes e que no entanto davam espetáculos de falta de compostura. Todo o mundo sabia com
quem era. Depois disto o dr. Carmo andou espalhando que rasgaria a batina do padre, e a luta se
desencadeou feroz. Todo o mundo esperava que o padre se rendesse ao primeiro golpe. Ali mesmo
no Açu, um velho, um dos antigos da terra, tinha botado para fora do lugar um padre que se metera
com a vida dele. O juiz mandava no destacamento, era querido pelo prefeito e escrevia notícias para
os jornais do Recife. Mas o padre resistiu. Andava pela rua grande, como sempre, saindo para os
seus serviços só, desprevenido, aquele sorriso, aquela tranquilidade de sempre. D. Eufrásia havia
chegado naqueles dias. Viera desapontada com as notícias. E achava, mais que nunca, que o irmão
devia abandonar aquela terra infeliz. O vigário sorria dos exageros da irmã, e o combate marchava
sem tréguas. Os partidários do juiz agredindo, e as beatas dizendo horrores do juiz. O padre, no
púlpito aos domingos, martelando no mesmo tema: os grandes da terra deviam dar o exemplo aos
mais humildes. O que poderiam exigir dos ignorantes os que sabiam, os poderosos, se eram eles
próprios que não se davam a respeito? Apareceram boletins feitos à mão, dizendo horrores do padre.
Falavam dos filhos do sacristão, que tinham os olhos azuis como os do padre Amâncio. D. Auta era
chamada de burra de padre. A coisa porém chegou ao auge no Carnaval. O juiz preparara um bumba
meu boi para desfeitear o vigário. E o boi andou de rua afora, dançando, cantando. O mateu, no
chicote do capitão:

Ô mateu, cadê o boi?


Senhor, o boi morreu.

E lá vinha um padre com uma batina rasgada. O mateu gritava para ele:

“Seu padre-mestre
Não seja tão mau.
Dance aquele passo
Do pinica-pau.”

E o padre saía dançando fazendo trejeitos horríveis.


O negócio fora feito para o padre Amâncio. Quem fazia de padre na função era Lula, o criado do
juiz. As mulheres bateram as janelas para o bumba meu boi. Mas o bicho ficou dançando por debaixo
da tamarineira. Juntou de gente para ouvir. E a figura do padre, debochado, fazendo o povo rir. O
juiz, de cadeira na porta, com a mulher e os filhos, assistia de longe à representação que arranjara.
O major Evangelista dizia para quem quisesse ouvir: se naquela terra houvesse uma autoridade,
não aconteceria uma miséria daquelas. E o Lula, de roquete e estola, dando saltos pelo meio da rua,
fazendo o palhaço da função. Mateu, o negro fujão, metendo-lhe bexigadas. E o padre gritando,
pedindo misericórdia. Contando das ladroeiras que fizera, das mulheres que namorara.
Uma miséria. D. Eufrásia esteve para sair na rua e dar um ensino naqueles cabras. O irmão
conteve-a. Deixasse. Aquilo não valia nada. No outro dia era no que se falava. O juiz fizera o diabo.
E a notícia espalhou-se pelo sertão. O bispo mandou o vigário de Flores sondar o que tinha
havido. Era um padre moço, cheio de luxo. Não sabia ele como se podia viver ali. Só mesmo uma
esquisitice. Padre Amâncio não se queixou. Toda a história não passara de uma leviandade.
Estivesse certo o bispo que ele saberia levar tudo no bom caminho. O enviado quis porém ouvir as
pessoas do lugar. Foi ao delegado, que ficou todo do lado do juiz. O coronel Clarimundo botou o
corpo de fora. O major Evangelista não teve meias palavras. Se houvesse autoridade, aquilo não
teria terminado como terminara. O padre Amâncio fora ofendido miseravelmente. Depois o padre
moço se foi, e com mais quinze dias não se falava no bumba meu boi. Mas o vigário não abandonava
o seu tema. Os boletins continuavam com a mesma veemência. Vinham com letra bem talhada, na boa
letra da mulher do juiz. Dizia Joca Barbeiro que d. Senhora passava a limpo as verrinas. O juiz
escrevia e a mulher caprichava. Lá um dia, porém, o dr. Carmo mandou um recado ao padre pelo
cabo do destacamento:
— Seu vigário, portador não merece pancada. Mas o doutor me mandou aqui. Eu não vim por
vontade não. O doutor mandou dizer para o senhor acabar com a prática.
O padre sorriu, falou brando com o cabo. Ele sabia que o homem não tinha culpa nenhuma. A
notícia se espalhou pela vila. O juiz ia acabar com o sermão do padre Amâncio. No próximo
domingo haveria uma desgraça. O padre porém não esperou pelo domingo. Naquele mesmo dia de
tarde houve bênção. E o vigário falou para os seus paroquianos. Não provocava. Não insultava, mas
no cumprimento do seu dever ia até o sacrifício da própria vida. Naquele dia recebera uma ameaça.
Queriam fazê-lo calar. No entanto ele estava ali para falar em nome de Deus. Não havia força
humana que o contivesse. Falaria, viesse o maior poderoso da Terra. Falaria. Era fraco e velho.
Tinha as mãos limpas de arma, porque as suas armas valeriam mais que as outras. E entrou no seu
tema. E naquela noite falou no próprio nome do juiz, expondo o caso com toda a sua nudez. As
mulheres tremiam. Não havia homens ali dentro, só o sacristão Laurindo e Antônio Bento. A
campainha encheu a igreja de som. O incenso subiu para o telhado, foi embriagar os morcegos. O
padre Amâncio já estava na sacristia para sair. Antônio Bento ao seu lado esperava a hora. As
mulheres do Açu, agoniadas, esperando que sucedesse uma desgraça. Depois o vigário saiu com d.
Eufrásia. E Antônio Bento fechou a igreja. O cheiro do incenso permanecia. Os morcegos chiavam. O
padre Amâncio era um grande, pensava Antônio Bento. De manhã recebera aquele recado. E não
esperara o domingo, fora logo em cima do gordo. Meses atrás o safado passara-lhe aquele carão,
ameaçando-o com cadeia e surra. O padre Amâncio não temia, sorrindo de todas as ameaças do juiz.
E as coisas foram assim correndo, até que o filho do juiz achou que devia entrar na briga. Era
num domingo. Antônio Bento havia terminado os seus serviços na igreja e estava na beira do rio
lavando os cavalos. Aí apareceu o filho do juiz com mais uns dois outros e se dirigiram para o
criado do padre.
— Croinha sem-vergonha — gritou ele para Antônio Bento.
E Bento calado. Então cresceram os desaforos. E ele foi saindo, puxando o cavalo do poço.
Antônio Bento sabia. O filho do juiz viera para aquilo mesmo. Teve vontade de fugir, mas não havia
jeito. Vieram os três para cima dele. Bento estava com o cabresto na mão. E meteu a corda na cara
do agressor. Rolaram pelo chão, apanhou muito. Os três caíram em cima dele com vontade. Mas por
fim houve um grito de gente de fora. E ficou só na beira do rio seco. Corria sangue de sua boca. Quis
chorar, mas a raiva não deixou. Teve vontade de correr e de faca matar um por um da casa do juiz. A
mulher, os filhos, o gordo. Já estava em casa, quando bateram na porta. Ouviu então o padre Amâncio
falando exaltado:
— Diga ao major Cleto que venha buscar.
A conversa era com o cabo do destacamento. Duas praças estavam na porta.
— Antônio — gritou o padre —, venha cá. O cabo veio com ordem de prisão contra você. Disse-
me ele que você andou de briga com o menino do juiz. Como foi isto?
Contou tudo. Apanhara dos três, fora insultado.
— Pois — disse o padre Amâncio para o cabo —, diga ao major Cleto que venha buscar o
menino.
Com pouco mais chegou o major Cleto. O melhor era deixar o rapaz ir com ele. Podia o padre
Amâncio ficar certo que nada aconteceria. Aí o padre Amâncio cresceu a voz. A sua voz tremia. Os
homens que estavam na sala baixaram a cabeça.
— Pois, major Cleto, irei preso também. Bote-me com ele no meio dos ladrões e dos assassinos.
Faça isto para dar gosto ao seu juiz. Vamos embora. Quero que o povo do Açu saiba e veja o seu
vigário metido na cadeia. Estou pronto.
E apanhou o chapéu para sair.
— Vamos, Antônio!
O major Cleto ficou estarrecido e a casa do padre repleta de mulheres. Umas choravam. D.
Eufrásia, na sala, não se continha. Eram uns miseráveis. Juiz, delegado, prefeito, todos uns
miseráveis. O sacristão Laurindo, amarelo. O padre e Antônio Bento já na porta para seguirem para a
cadeia.
— Seu vigário — falou o major Cleto — eu não levo o senhor. Vim aqui para prender o criado.
Este rapaz é mau mesmo. O Joca Barbeiro me contou que há pouco tempo ele andou com má-criação.
E o menino do juiz é a segunda vez que é agredido por ele. Vim aqui para prender este valentão.
— Não é verdade — respondeu o padre Amâncio. — Posso lhe dizer: é um rapaz como qualquer
outro do Açu. Criei como meu filho. Não conheço melhor. Agora esse rapaz de quem o senhor fala é
que é um valdevinos.
A negra Maximina apareceu na sala. Parecia fora de si. Os olhos vermelhos:
— Ninguém leva Toinho, cambada de espoletas!
O padre Amâncio mandou que ela se calasse. Não se calou. Não estava bêbada não. Toinho dali
não saía. Ela não tinha medo de soldado. E chegou na porta, gritando para os dois praças:
— Vão limpar os penicos do juiz!
Os soldados riam-se. Foi quando apareceu o coronel Clarimundo. Pediu ao povo para sair da
sala, pois ele queria falar a sós com o padre e o delegado. Agora porém a coisa era outra. Já estivera
na casa do juiz e fora franco com ele. Até aquela data fugira de se envolver no caso. O padre era
quem tinha razão. Toda a razão. A sua mulher há tempo que vinha lhe falando nisso, aconselhando-o
a que ele tomasse partido. Não quisera, pensando que o juiz tomasse juízo. A coisa chegara porém a
um ponto que não podia continuar de maneira nenhuma. Dissera mesmo ao juiz:
— Doutor, com padre não se bole. O senhor está brincando com fogo.
E a coisa viera dar naquilo. O major Cleto estava também na sua razão. Autoridade superior
mandara uma ordem para ele cumprir. Viera. O padre achava que não, queria ser preso também com
o criado. A coisa aí era outra. Ninguém prendia um padre. E depois coberto de razão como ele
estava.
— O menino deu no outro — disse o delegado.
— Brigas de menino — respondeu o coronel Clarimundo. — Nunca ninguém foi parar na cadeia
por besteiras desta ordem. Então porque o filho do juiz briga na beira do rio, vai se prender o que
apanhou, o que está ferido? Prenderam ele, a semana passada, quando quebrou a cabeça dum
moleque na feira?
O major se explicou. Não tinha sabido do caso. O padre Amâncio não dava uma palavra.
— Padre Amâncio — falou o coronel Clarimundo —, agora eu quero é falar com o senhor.
Autoridade não pode ser desrespeitada.
— Mas eu não estou desrespeitando autoridade nenhuma, seu coronel.
— Não é isso o que eu digo. O senhor nesta vila só tem feito o bem. Eu levo o menino comigo e
tudo fica no que deve ser. É só para não desrespeitar a autoridade.
E a coisa se resolveu assim: Antônio Bento saiu com o coronel Clarimundo, esteve na cadeia
uma hora e depois voltou para casa. Lá, sentado no corpo da guarda, media os acontecimentos.
Aquele dia inteiro girou em torno dele. Vira o padrinho violento na sua defesa. Vira d. Eufrásia, a
negra Maximina, a casa cheia. O seu padrinho queria vir com ele, se juntar com os presos, sofrer com
eles. A cadeia do Açu era aquilo que ele via. Lá dentro, no quarto escuro, estavam os presos. Ouvia
a conversa deles, as risadas que davam. Entrava a luz pela grade de madeira grossa. Fedia, vinha um
bafo de coisa podre de lá de dentro. De manhã cedo saía um deles com uma corrente num pé, um
soldado atrás, com uma barrica de sujidade na cabeça para a faxina. Lembrava-se de um criminoso
de morte que fugira da beira do rio, numa manhã de chuva. Ninguém soube mais notícia dele. O
soldado seguira preso para o Recife como castigo. Sentado ali no banco do corpo da guarda, Bento
pensava nessas coisas. Chegou um preso na porta e do buraco falou para ele:
— O que foi que tu fizeste, menino?
O soldado respondeu por ele:
— Nada não. Com pouco mais vai embora.
Bento viu a cara do homem, amarela, inchada, os olhos sumidos. Lá para dentro, para o meio
deles, queria o juiz que ele estivesse. Ficaria a vida inteira por lá. Apodreceria, ficaria com aquela
cara, se não fosse o seu padrinho. Aí o preso fez um sinal para ele, chamando-o mais para junto de
si:
— Menino, eu estou inocente. Me botaram aqui por causa de uma intriga. Eu sou inocente.
A voz era triste.
— Eu conto a minha história. Foi na feira do Camaru que me pegaram. Eu estava sossegado de
meu, quando chegou o capitão Joca de Matos com dois praças. “É este o ladrão”, foram dizendo. E
me deram de cipó de boi para descobrir o cavalo. Preguei uma mentira para me ver livre. Dizendo
que tinha vendido o animal na feira do Lajedo. Eu menti para me ver livre da peia. Nunca mais que
eu saía daqui. Ladrão de cavalo, quando não morre, apodrece. Não sou ladrão. Se tivesse um doutor,
eu me soltava.
A fala do homem era triste de cortar coração. Depois gritou um lá de dentro:
— Deixe de choro, Bolinha!
Aí Bento se lembrou. Aquele era o conhecido Bolinha. Recordava-se da prisão dele. Viera
amarrado de Camaru até descobrir o furto. Era o maior ladrão de cavalo dos arredores. Já tinha
respondido júri por crime de morte e de roubo. Falando, parecia um santo. Uma pobre vítima. O
soldado chamou um outro para mostrar:
— Luisinho!
E apareceu um menino.
— Este está com duas mortes nas costas.
— Qual, seu Joaquim! O senhor está brincando? Não matei ninguém.
Ainda falava como menino, de voz fina.
— Botaram a coisa pra cima de mim. Quem furou os homens não fui eu. No júri, o senhor vai
ver, eu me livro.
O soldado contou o fato. Ele e o pai moravam numa fazenda de um velho no Jenipapo. Brigaram
com o vaqueiro e sem que nem mais pegaram o homem com um filho numa emboscada e mataram os
dois. O velho morreu na diligência. Só puderam trazer o menino, que nesse tempo podia ter uns
quinze anos. Ainda não tinham feito o processo dele. Mas não chegava vivo até lá. Pegara uma tosse
na cadeia que não parava. Até sangue botava de quando em vez.
Antônio Bento estava era doido para sair dali. Só à tardinha o cabo mandou-o embora. No
entanto parecia que havia cumprido uma sentença de anos. Correu para casa. A negra Maximina
estava na cozinha falando só, nos seus azeites. D. Eufrásia, na cadeira de balanço, e o padre Amâncio
no quarto, descansando na rede. Foi para o padrinho com um nó na garganta. Beijou-lhe as mãos.
— Vai tocar as ave-marias, já está quase na hora.
Antônio Bento subiu a torre da matriz. Embaixo estava a vila do Açu, a tamarineira com gente
conversando, o coronel Clarimundo na porta do estabelecimento. Iam chegando as velhas. D.
Francisca do Monte apontava no fim da rua. D. Auta, arrastando os quartos, aparecia pelo outro lado.
Puxou o badalo. Via os homens da tamarineira de chapéu na mão. D. Fausta teria parado o bordado
para rezar. As andorinhas voavam da torre com o toque, cortavam o espaço, chilreando. Aquele
toque para elas era um rumor imenso. Voavam com medo. O Açu está ali aos olhos de Antônio Bento.
Submisso aos seus pés, ao som do sino que ele tocava. Homens e mulheres ouvindo a voz do sino.
Ele, Antônio Bento, era um instrumento de Deus. Todos, àquela hora, àquele toque, pensariam em
qualquer coisa acima da terra. Até o gordo, o juiz, d. Senhora, os presos da cadeia, o ladrão de
cavalo, o Luisinho com duas mortes subiam um palmo acima da terra para pensar na vida que viria
depois. Àquela hora, onde estaria Dioclécio? Em que terras estaria ele? Que mulher estaria amando?
Nem se lembraria do Açu, nem se lembraria do amigo que deixara. As mulheres tiravam o terço com
o padre Amâncio no altar-mor puxando a oração. O pigarro de d. Francisca do Monte, e as velhas
respondendo, como se gemessem pelas dores do mundo. Bento esperou que todos saíssem da igreja.
A lâmpada do Santíssimo parecia imensa na escuridão do templo fechado. Toda a luz do mundo está
ali. Deus trancado no sacrário, trancado na igreja, fechado com chaves pelas suas mãos, daria forças
ao padre Amâncio para enfrentar o juiz, daria forças a Dioclécio para varar o mundo e cantar como
um pássaro.

9
DIZIAM NA VILA que fora a filha do coronel Clarimundo, educada no colégio das freiras de
Garanhuns, que fizera o pai ficar do lado do padre. O juiz passou a dizer o diabo do prefeito. E o
major Evangelista, tão partidário do padre no começo, dera para fazer restrições, a vacilar, desde
que o seu inimigo se decidira pelo outro lado. Mas a vida no Açu não perdera de tensão. As
picuinhas se sucediam. E Antônio Bento ficou falado com o fato da prisão. Na feira os matutos
apontavam o criado do padre que dera motivo ao incidente. Aquilo para Antônio Bento servia como
um estímulo. Crescera, ficara mais homem que todos. E assim iam se passando os dias. Na casa do
juiz, d. Senhora estava fazendo o mês de maio no oratório particular. Havia devotas. Enquanto na
igreja o padre Amâncio dava a bênção, d. Senhora rezava as suas orações com acompanhamento. A
mulher do oficial de justiça, a mulher de Joca Barbeiro, do major Cleto, do escrivão Paiva não
faltavam. A sala se enchia. E o dr. Carmo ficava na porta de casa, de espreguiçadeira, conversando
com os homens. As beatas, d. Margarida, d. Francisca, d. Auta, as duas velhas, não passavam pela
calçada do juiz. E Joca Barbeiro passou a fazer oposição ao prefeito:
— O senhor devia — dizia ele ao juiz — apresentar candidatos nas eleições do ano vindouro.
Isto de ser juiz não quer dizer nada, não. Havia muitos juízes pelo estado chefiando política. Não era
possível que o Açu vivesse toda a vida naquela miséria. O coronel Clarimundo não fazia nada, só
cuidando dos seus negócios.
Joca ia mais longe: e aquele vapor de algodão? Os cobres da prefeitura não davam para nada. O
major Evangelista dizia, para quem quisesse ouvir, que o cofre da prefeitura era na burra do coronel.
Filhas no colégio, luxo de mulher, o comércio nunca deu ali a ninguém no Açu.
O juiz se calava. E a conversa continuava. Na igreja tocava a campainha. O sino respondia com
badaladas compassadas. Era o padre Amâncio elevando o Senhor na bênção. Joca Barbeiro sem
querer parava a conversa. De dentro da casa do juiz a ladainha chegava ao fim. D. Senhora vinha
para a porta com as devotas do seu santuário. Despediam-se. A mulher do major Cleto e a do
escrivão Paiva ficavam esperando pelos maridos. Pelo outro lado da calçada passavam as devotas
da igreja. Para d. Senhora eram elas umas pobres de espírito, gente sem nenhuma importância. E a
conversa dos homens continuava animada. D. Senhora na sala de visitas entrava no forte de sua
palestra. Não sabia como se podia suportar aquela vida do Açu. Era preciso mesmo muita coragem
para se ficar ali toda uma existência. Ela tinha uma promessa a pagar. No dia que saísse dali,
chegando ao Recife, iria com todos os filhos à igreja de são Severino dos Ramos. Nem que fosse a
pé, mas ia. A voz de Joca Barbeiro se elevava, crescia. O major Evangelista, puxando os bigodes,
falava pouco. Joca estava achando que o criado do padre criara goga com a ousadia que lhe dera o
prefeito. Se o major Cleto fosse outro, teria arrastado padre e tudo para a cadeia.
— Lá isso não — dizia o major. — Autoridade nenhuma fazia isso. Afinal de contas tratava-se
de um vigário, Joca. Onde já se viu arbitrariedade igual a essa que você queria que eu fizesse?
— O major tem razão e não tem — dizia o juiz. — O padre se meteu na coisa para se exibir. Se
ele soubesse pesar as responsabilidades, não teria se metido. Quis foi fazer figura. Eu autoridade,
não respeitava batina, não respeitava nada. O major não quis e fez muito bem. É católico, faz parte da
irmandade, teve os seus escrúpulos. Agora o Clarimundo é que não devia ter feito o que fez. O cabo
estava cumprindo uma ordem. Agora uma coisa eu digo: na primeira vez que esse cabra do padre
passar pela minha porta eu dou-lhe um ensino.
— E o senhor faz muito bem — dizia Joca. — O senhor não calcula como anda esse bicho por aí.
Comigo ele não se meta, porque para quebrar-lhe as ventas não custo.
O major Evangelista achava que da Pedra Bonita não vinha gente que prestasse. O padre
Amâncio tinha uma cobra dentro de casa.
E a conversa ia assim até que o coronel Clarimundo fechava as portas do estabelecimento. Às
nove horas o Açu se recolhia. A conversa da porta do juiz findava. Apagavam os candeeiros de
querosene e vinha o sono pesar sobre os homens e as mulheres da terra infeliz. O padre Amâncio
rezava até tarde. D. Eufrásia ia ao seu quarto com a xícara de chá de laranja. Maximina roncava. E
Antônio Bento pensava na vida. Dioclécio dera-lhe uma vida nova, e as perseguições do juiz tinham
terminado naquele episódio. Ouvira conversas de preso, caras inchadas, gente falando de inocência,
vozes que vinham do outro mundo. Mortos lhe falaram. Dioclécio solto de terra em terra, e o
padrinho no Açu, há vinte anos, querendo corrigir uma gente torta. E a Pedra Bonita no fundo de tudo
como um mistério, um segredo nefando. Nunca Antônio Bento sentira nada pelas mulheres. Aquela
moça de Dioclécio crescia para ele, criava formas, tinha os cabelos compridos, a carne quente.
Vinha de noite para a rede dele. Batia na porta, entrava de pés no chão, de camisa branca. Vinha de
longe, de terras distantes. Era uma moça como nunca vira igual no Açu. E ficava na rede dele a moça
mais bela do mundo. Sonhava com ela. E o sonho continuava noites seguidas. Contara ao padrinho no
confessionário. Sonhava com uma moça linda que o beijava, que ele apertava nos braços. E o
padrinho não lhe dera penitência maior que das outras vezes. Feliz era Dioclécio. Sujo, de cabelo
cobrindo as orelhas, de terra em terra, andando, cantando. Tudo ele teria. Era só querer, só desejar,
que teria. De que valia o coronel Clarimundo com loja de oito portas, com vapor de algodão? De que
valia a riqueza do homem mais rico do Açu? Não desejava ser como o coronel Clarimundo. O padre
Amâncio dava tudo que tinha. Estava velho, acabado. E o Açu fazia com ele o que se via. Era um
santo. Para Antônio Bento o seu padrinho não era feliz. D. Eufrásia dizia para quem quisesse ouvir
que o irmão não fora bispo porque não quisera. E Antônio Bento fazia força para compreender e não
compreendia. Por que o seu padrinho ficara no Açu, sempre no mesmo lugar, no meio de um povo
que nem respeito tinha por ele? Um Joca Barbeiro falando dele nas conversas da tamarineira, um juiz
dizendo horrores, um Lula, um maluco, fazendo mangação com o padre no meio da rua. Por que o
padre Amâncio não deixara há mais tempo aquela gente? Vinte anos sofrendo, vinte anos naquela
vida arrastada. Dioclécio andava pelo sertão conhecendo de tudo. Quando metia os dedos na viola,
mudava as coisas, virava a cabeça, tinha o que desejava. Os cangaceiros abrandavam o coração com
a voz dele. E as mulheres vinham de noite para a rede dele. Para Dioclécio não havia grandes, não
havia hora, não havia obrigação. Dele era o mundo. E o padrinho nem era dono do Açu. A sua
bondade não tinha força. Ele, Antônio Bento, devia abandonar tudo e cair no mundo. Sim, estava
virando poeta. Uma coisa começava a existir para ele fora do quotidiano, um desejo de fugir do lugar
em que estava. Não era para ser grande, ganhar dinheiro, ser importante. Queria dizer alguma coisa
aos outros, botar o seu coração para agir. Porque as coisas começavam a existir com outro aspecto.
Acordava de madrugada para fazer os toques de chamada para a missa. Via o Açu dormindo, o povo
infeliz de portas fechadas, com o sono cobrindo todas as desgraças da terra maninha. O Açu aparecia
assim a Bento como um inimigo que ele pudesse apunhalar sem risco. Tudo fraco, tudo entregue ao
acaso. A tamarineira era maior àquela hora, com a copa imensa, com os galhos tremendo ao vento. Ia
tocar o sino, chamar as devotas, que já deviam estar se preparando para a missa. Por que então
aqueles toques todas as madrugadas? Só elas estariam na igreja. Só elas chegariam na hora certa. Por
isso achava inútil o trabalho que tinha. O padre Amâncio podia dispensar o trabalho. Mas não. Todos
os dias teria que subir à torre, atravessar o coro, ver a lâmpada do Santíssimo e bater no sino grande
chamando o povo do Açu para a devoção. Com o primeiro toque o juiz devia acordar. Para o bicho
gordo aquilo era uma advertência. O seu inimigo manobrava forças mais tenazes que a dele. O major
Evangelista se torceria na rede e os seus canários começariam a cantar. D. Fausta aí odiaria mais o
pai, aquele demente que só cuidava daquelas doidices. Os caixeiros do coronel Clarimundo, todos os
homens do Açu, se lembrariam àquela hora de que havia um padre e um Antônio Bento no sino.
Nessas ocasiões Bento se sentia maior que os outros. Com a sua mão tirava do sono a canalha do
Açu. O juiz, o miserável, se mexeria na cama e ficava sabendo que ele, Antônio Bento, manobrava,
era quem dava força para aquilo.
E assim a vida do rapaz ia variando na valorização que ele estava dando às coisas. No mais,
continuava fazendo tudo como dantes. As suas obrigações eram as mesmas. Apenas ele era outro,
como descobrira a negra Maximina. A mulher de Dioclécio vivia com ele nos seus isolamentos, na
suas horas de sozinho. Se tivesse forças, faria uma viagem para os reinos do fim do mundo. Um
homem de asas, que subisse para os altos, que fosse para onde quisesse, para os recantos de seus
agrados, era o que ele desejava ser. A vida assim como a do Açu não valia nada. Mudara, sem saber
como. A negra Maximina pegara a sua diferença. Para o padre Amâncio seria o mesmo. Para o resto
não era mais que um criado, um traste da Pedra Bonita que eles todos do Açu suportavam. Um filho
do juiz era melhor do que ele. O povo de sua terra era desgraçado. Só do padre Amâncio não ouvira
ali referências desagradáveis ao seu povo. Viera de um ninho de cobras. Ele olhava para si e via
todos os do seu sangue, de sua gleba. Por ele verificava a injustiça. Era como todos os outros. Que
melhor do que ele tinham os rapazes do Açu? Na escola eram iguais. Os filhos do sacristão Laurindo,
mais burros todos que ele. Lembrava-se de Floripes, o mais velho, de sua idade, que hoje era
caixeiro do coronel Clarimundo. Nunca dera uma lição certa. Era uma lesma. E no entanto estava
hoje de balcão, medindo fazenda, ganhando por mês. O filho do major Cleto fora para o Recife
estudar. E vinha ao Açu metido num fardamento. Acima dele, com uma importância de besta. Na aula
de d. Francisca ele tinha ferida de boca e era mais atrasado que ele. As filhas de Joca Barbeiro,
feias, de perna cabeluda; as molecas do oficial de Justiça querendo passar por brancas, esticando o
cabelo. Ele, Antônio Bento, era branco, de cabelos claros. Quando pequeno, ouvira de d. Fausta
muito elogio aos seus cabelos: “Que cabeleira tem este menino”, dizia a filha do major. E enterrava
os dedos pela cabeleira, enchia a mão, acariciava. O filho mais velho do sacristão tinha impigens, de
cabeça raspada. D. Francisca do Monte dizia na escola que ele Bento era bisonho, acanhado: “Você
precisa desasnar, menino, não quero menino assim como você não. Vá brincar com os outros.”
Nunca se ligara a nenhum, nunca sentira interesse por nenhum colega. Entrou e saiu da escola sem
amigos. Só a negra Maximina e o padrinho gostavam dele. D. Francisca do Monte embirrava. Aquele
pigarro seco vinha-lhe doendo nos ouvidos há muito tempo. Era injusta, cruel. D. Eufrásia exigente,
colocada de cima, mandando. Só Maximina e o padrinho. Sua mãe era uma sombra. Via-a como uma
remota recordação, embora ela viesse ao Açu para as visitas. A mãe dera-o ao padre. Uma vez na
escola ouvira um menino chamando-o de enjeitado. Antes fosse. Antes fosse, pensava ele, do que
viver agora com aquela recordação na cabeça. Fora dado. Dado como um bichinho, uma cutia, uma
paca. A mãe quisera uma vida melhor para ele. Que ele viesse para junto do padre, que o mandaria
estudar. Falhara e ficara no Açu servindo de deboche a uma gente ruim. Até cadeia teriam para ele.
Viera porém Dioclécio e abrira uma estrada grande para ele, dando-lhe aquela mulher que dormia
com ele na rede, quando os ventos das noites açoitavam o imbuzeiro do quintal. Sonhava com ela. Os
cabelos caíam até a cintura, a barriga era macia, a carne morna. Nunca conhecera assim mulher
nenhuma. Sonhava somente. Um croinha devia ser casto, não pensar nas porcarias do filho do juiz,
dos outros meninos do Açu. Olhava para as mulheres da rua da Palha, como se elas fossem grandes
perigos, correntes perigosas que o pudessem carregar para o fundo. Dioclécio dera-lhe porém aquela
mulher. Grande Dioclécio, que era maior que todos os homens que ele conhecia. O padre Amâncio
ensinara a amar a Deus, a ser bom e a ser justo. E ele Antônio Bento não amava a ninguém, odiava os
outros. Maximina era boa, o padrinho era um santo. Mas não sabia por que se sentia separado de
todos, até desses dois.
Uma noite (estavam quase no fim do mês mariano) ouviram uns disparos na rua. Os cangaceiros
tinham entrado no Açu. O padre Amâncio terminou a bênção e as mulheres começaram a gritar com o
susto. A igreja se encheu de repente. O sobrado do coronel Clarimundo cercado, e o pavor tomara
conta da vila. O juiz municipal estava preso, o major Evangelista nas mãos dos cangaceiros. E um
soldado do destacamento estendido, morto, na porta da cadeia. Iam matar o juiz. O major Evangelista
dera todo o dinheiro da Recebedoria de Rendas e o coronel Clarimundo abrira as burras para os
bandidos. Da torre da igreja Antônio Bento via o movimento da rua. Os cabras, de rifle na mão,
atravessavam de um lado para o outro. Na porta do juiz havia um tomando conta. Depois ele viu o
major Evangelista aparecer com um cabra atrás, que o empurrava como se ele fosse preso. Então o
padre Amâncio resolveu sair para ir estar com o grupo. E Antônio Bento o acompanhou. As mulheres
choravam. As duas velhas batiam o beiço na reza, com um tremor de doença.
O chefe do bando estava no sobrado, bem sentado na sala de visitas. Quando viu o padre,
levantou-se.
— Boa-noite — disse o vigário.
— Boa-noite, padre-mestre — respondeu o cangaceiro de chapéu na mão. — Não é nada não,
estou fazendo uma coletinha aqui no Açu.
O padre Amâncio falou sério. O Açu era uma terra de pobres.
— Pobre o quê, seu vigário! Este bicho daqui está podre de rico. — E apontou para o coronel
Clarimundo.
— Meu filho — disse o padre —, isso que você está fazendo não se faz. Atacar um lugarzinho
destes para tirar dos outros.
— A gente só tira dos ricos.
— Para que mataram o soldado, um pobre homem cheio de filhos?
— Ninguém mandou ele resistir, seu vigário.
Aí a palavra do chefe estava já mudando de tom, ficando áspera.
— Eu não vim aqui para ouvir santa missão, seu padre. A gente tem muito que fazer.
Nisto entrou um cangaceiro com o major Evangelista:
— Capitão, o homem está escondendo o leite!
— Passe-lhe o cipó de boi que ele fala, que ele fala direitinho.
O padre se apresentou, o major não estava escondendo nada.
— Nós queremos é o dinheiro do governo.
O padre explicou com jeito. Não havia dinheiro nenhum. Aquela Recebedoria não arrecadava
coisa nenhuma.
— Mandei tudo que tinha ontem — disse o major, humilhado, com a voz trêmula.
— Mande soltar o homem — disse o padre.
— Soltar coisa nenhuma — disse o cangaceiro que estava com o major.
— Cala a boca — disse o chefe. — O negócio com o vigário é comigo.
O coronel Clarimundo, amedrontado, parecia um cadáver enterrado na cadeira. Lá para dentro de
casa a família se congregara no quarto dos santos, na reza.
— Mande soltar os homens — disse o padre.
— Não tenha pena não, seu vigário, o dinheiro tem que aparecer. Nós foi que soltemos os presos
da cadeia. Para que o senhor não foi dar de comer àqueles pobres, seu vigário? Estava tudo mortinho
de fome.
— São criminosos — respondeu o padre.
— Criminosos coisa nenhuma. Criminoso é o governo, seu vigário.
O cabra que estava com o major Evangelista tinha cara de perverso. Com dois punhais
atravessados na cintura, de olhos agateados e com um riso cruel:
— Vamos botar o velho no brinquedo, que ele dá para falar que só carretilha.
O major nem podia mais falar.
— O homem não tem dinheiro — disse o vigário.
— Solte essa gata velha — disse o chefe.
O major caiu na cadeira como um trapo.
— As mulheres estão com medo da gente? — perguntou o chefe. — Pensam que nós somos
bichos? Vai lá para fora — disse o chefe para o subordinado. — Vai buscar o juiz. A gente vai dar
um ensino nele na caatinga.
Nisto entrou d. Senhora e se ajoelhou nos pés do cangaceiro. Estavam dando no marido.
O padre pegou a mulher e levantou-a. O cangaceiro não via razão para choro:
— Ninguém está dando no seu marido, mulher. Ele não prende o povo? Se estivesse na peia, não
queria dizer nada.
Aí o padre pediu pelo juiz. Era uma autoridade, não deviam fazer isso com ele. Já haviam
recebido o dinheiro do coronel Clarimundo? Deixassem o Açu.
— Nós até estamos gostando da visita, seu vigário. Pois vou dar uma esmolinha para a igreja.
E dizendo isto botou um pacote de notas em cima da mesa. E contou. Tirou dois contos e deu ao
padre para ele fazer um altar para Severino na igreja.
— Quando voltar aqui, quero ver o altar, seu vigário! Olhe, eu não brinco não. Quando eu estive
na Mata Grande, dei ao padre de lá uma quantia para fazer a torre da igreja. Pois não é que o padre
comeu o dinheiro! Me disseram que ele estava com uma fazenda no pé da serra da Jurema. Fui lá.
Perguntei ao vaqueiro de quem era aquele gado todo. “É de seu vigário, capitão”, me disse o homem.
Matei tudo. Não ficou uma rês para semente.
O padre Amâncio guardou o dinheiro e falou para o chefe. Pedia em nome de Deus que ele fosse
embora. Não levasse o juiz. Ele nada tinha que ver com o governo. Era tão responsável quanto ele
padre. D. Senhora olhou para o vigário admirada.
— Seu vigário, é o que eu estou lhe dizendo, os meus meninos não estão desgraçando ninguém. O
negócio comigo é no direito. As mulheres estão chorando é porque querem. Só faço mal a mulher
safada. Não sou Luís Padre não, que anda desgraçando as moças.
E se dirigindo para um cabra que estava de sentinela na porta:
— Manda reunir o grupo. Só toquei fogo na fazenda do coronel Zé Carmo porque o cachorro
mandou soldado atrás de mim. Aqui no Açu até nem tenho inimigos. Me disseram que esse juiz é um
safado. Danado para condenar.
Nisto foi aparecendo o dr. Carmo, acompanhado de dois cabras. Vinha branco, de cabeça baixa,
como um preso no júri.
— Me disseram que o doutor anda fazendo de brabo.
O juiz nem podia falar. Antônio Bento, do seu canto, lembrava dos gritos que o gordo lhe dera.
D. Senhora chegou-se outra vez para o cangaceiro.
— Não precisa fazer penitência não, minha senhora. O vigário aqui já pediu pelo homem. Olhe,
seu doutor, eu ia levar o senhor para um passeiozinho aqui na caatinga para baixar este lombo. Mas o
vigário pediu para não fazer nada. O senhor precisa mandar dizer ao governo que a gente não tem
medo dele não. Eu lhe agaranto que o governo roba mais do que nós.
O grupo já estava na porta do sobrado. Eram uns dez homens.
— Bem, pessoal, vamos embora. O milho aqui foi ralo. Vamos embora. O coronel queria até dar
uma festinha pra gente. Mas a mulher está numa latomia danada lá pra dentro. O pessoal aqui não
gosta de cangaceiro. Se fosse uma força de “mata-cachorro”, estava tudo de dente arreganhado.
O juiz não dava uma palavra. Suava pelas gorduras, como se estivesse num eito de meio-dia. O
major Evangelista de cabeça baixa.
— Mande enterrar o soldado, seu doutor, e tirar a conta pra mim.
E saíram de rua afora. Na porta da cadeia dispararam as armas contra a casa vazia. E se foram.
O Açu tremia de medo. Era mais de meia-noite e quase todas as casas abertas. Fora o padre Amâncio
que salvara a vila. O dr. Carmo com a mulher deixaram a casa do coronel Clarimundo acabrunhados.
O Açu conversava em peso sobre o fato. Tudo quanto era mulher, menino, comentava o assalto.
Tinham levado dez contos do coronel Clarimundo. O vigário, na frente de todos, devolveu ao dono o
dinheiro que o bandido lhe dera. E ninguém dormiu mais naquela noite. A casa do padre Amâncio
repleta com Maximina dando café ao povo. D. Eufrásia censurava o irmão pela imprudência. Não
tinha ele que ir discutir com um homem daqueles. Vinha clareando o dia. Com pouco mais Antônio
Bento ia tocar o sino para a primeira chamada. E os cangaceiros estariam por longe. Lá do meio da
caatinga não ouviriam as badaladas de Antônio Bento que estava tocando aquele sino, o criado do
padre Amâncio, que pedira ao cangaceiro para soltar o juiz. D. Senhora tinha caído nos pés do cabra
e o padrinho pedira pelo gordo. A madrugada cobria a tamarineira de orvalho e começava a chover
fino. O sino chamava as velhas, d. Francisca, d. Auta, para ouvir missa. Naquele dia a igreja estava
cheia. D. Senhora lá, ajoelhada. Havia até homens na missa. O major Evangelista batia com os
beiços. Antônio Bento nunca vira o velho na igreja. O Açu procurava Deus para agradecer os
serviços do padre Amâncio.
Dias depois espalhou-se a notícia de que d. Fausta estava de cama. Ninguém sabia a moléstia. O
major Evangelista havia ido ao Recife tratar dos negócios da Recebedoria, e a filha caída de cama.
Corria que um cangaceiro havia ofendido a moça. E a vergonha dera com ela na cama. Ao certo não
se sabia de nada. A criada do major não adiantava coisa nenhuma. De fato estivera um cabra
remexendo no quarto de d. Fausta, atrás de dinheiro. Mas a empregada não ouvira grito, barulho. Mas
todo o mundo no Açu estava crente de que a moça fora violada. Debaixo da tamarineira Joca
Barbeiro contava detalhes. E comentava:
— A velhota está é ancha. Pegou o seu pedaço sem querer.
O fato é que d. Fausta começou a dar ataques, a gritar como uma desesperada. A primeira vez
que sucedeu isso, correu gente para a casa do major. Depois viram que não era nada. Era ataque de
moça, coisa mesmo de mulher. O major em Recife dera uma entrevista aos jornais. Veio o retrato
dele na folha, com a notícia do ataque ao Açu. O serventuário do estado tinha defendido o patrimônio
do governo como um herói. Sofrera o diabo, mas não entregara um vintém da arrecadação. O juiz se
fora com a família. Diziam que não voltaria mais. Lula maluco ficara tomando conta das coisas. E de
fato, dias após chegava a notícia que ele fora removido para um termo do litoral. E o que mais
espantou o povo do Açu foi um artigo do dr. Carmo, nas solicitadas, onde dizia que fora obrigado a
abandonar o Açu porque a vila estava entregue a um padre que se ligara com os cangaceiros. O padre
Amâncio, para se vingar de medidas que ele dr. Carmo tomara como magistrado, a bem dos
interesses da Justiça, havia se aliado com um grupo de cangaceiros que atacara a vila, submetendo a
povoação a todas as espécies de humilhações. Enganava-se porém o desalmado sacerdote. No
cumprimento do seu dever, ele dr. Carmo ia até o sacrifício da vida. No artigo o padre Amâncio era
tratado como um perigoso coiteiro. Se houvesse polícia mais vigilante, o cangaceirismo desaparecia
do estado. Bastava que se metessem na cadeia os protetores da espécie do vigário do Açu. Até um
perigoso criminoso tinha o padre consigo como criado. Um rapaz de instintos perversos que o
acompanhava para toda parte. Um tal de Bento da Pedra Bonita. Os poderes eclesiásticos não
podiam permitir que um homem como o padre Amâncio se mantivesse como vigário daquela
freguesia.
Depois do ataque dos cangaceiros, o Açu ficou ainda mais desprezado. Não havia caixeiro-
viajante que se arrojasse a ir lá. E corria até que o coronel Clarimundo procurava mudar de
residência, deixando os negócios com o caixeiro, mudando-se para o Camaru. A mulher e as filhas se
retiraram. E antes de partir disseram para quem quisesse ouvir: seriam as criaturas mais felizes do
mundo no dia em que o marido e pai deixasse aquele inferno. Os negócios do algodão estavam
aumentando, planta-se mais, e o coronel Clarimundo não podia abandonar para outro o terreno que
preparara. Enterrara muito dinheiro no vapor de descaroçar e espalhara com os agricultores
adiantamentos. E seria uma loucura deixar o Açu de uma vez. A mulher e as filhas ficariam morando
fora dali. Dera educação às meninas, e não seria no Açu que elas pudessem viver na altura da sua
instrução. O major Evangelista não perdoava o desprezo da família do adversário pela terra que lhe
dera a fortuna. E criticava indignado: o povo do Açu merecia mesmo esse desprezo. Vinha aquele
Clarimundo, arrasado, sem eira e nem beira, enriquecer ali, e quando estava de rabo cheio, mandava
a sua gente para longe, porque achava que o Açu era um oco, uma terra de bichos. O novo juiz ainda
não tinha chegado. Duas nomeações haviam sido feitas. E nenhum tivera coragem de assumir o cargo.
O suplente, que era o sacristão Laurindo, não botava um papel para diante. E havia gente esperando
que a barriga de d. Fausta crescesse. Contavam os dias desde o ataque dos cangaceiros. Fazia seis
meses. E nada de aparecer coisa. Outros atribuíam as esquisitices da filha do major aos antojos.
Diziam que ela só comia fruta verde, que não suportava comida de carne. Nada que tivesse vivido.
D. Fausta sabia das histórias pela criada, que tudo lhe contava. E rompera relações com d.
Margarida, que andava falando dela na casa do sacristão. Tivera vontade de ir na casa da
bisbilhoteira e mostrar a barriga lisa.
Mas todo o mundo acreditava no que diziam. Tinham pena da moça: coitada, parir dum
cangaceiro! Que filho infeliz! Contavam a história de Mata Grande: o juiz de lá criava um menino,
filho dum cangaceiro. Tinham encontrado a criança chorando na caatinga, ainda com umbigo inteiro.
D. Fausta sentava-se na porta da casa, bordando. Quem quisesse que olhasse para ela. E deu para se
irritar com os homens que passavam olhando para dentro de casa. E de vez em quando os gritos. Os
gritos terríveis, enchendo o Açu. Joca Barbeiro não perdoava:
— Do que ela precisa eu sei — dizia ele para os outros debaixo da tamarineira. — A bicha está
suspirando pelo cangaceiro.
Quando o major estava na roda e que a filha começava a gritar, se levantava, deixava o grupo e
ia andar por longe. O miserável daquele Clarimundo, ali defronte dele, na casa melhor da terra, com
a família longe, gozando a vida, e ele um infeliz, com aquela filha dando desgostos, gritando daquela
forma, para todo o mundo ouvir e todo o mundo sabendo a natureza da doença. O Clarimundo
sabendo, ouvindo a desgraça dele. O major andava, ganhava a beira do rio, e quando se sentia
cansado, entrava na venda do Salu, no outro lado da rua, para conversar. Salu tinha chegado ao Açu
há pouco tempo. Viera botar negócio na vila. Trouxera dinheiro do Amazonas e o comércio dele
principiava a prosperar. Depois do coronel Clarimundo, era o maior comerciante do lugar. O major
Evangelista fizera amizade com ele e só comprava no Salu, aconselhando todo o mundo a fazer o
mesmo, chamando a atenção dos matutos que iam à Recebedoria para os preços baixos e a qualidade
das mercadorias do rival do coronel Clarimundo. Lá era que ele parava para conversar, o pobre
major, infeliz, com a filha sofrendo daquela doença. Espalharam que o velho se metera de amizade
com Salu para beber às escondidas. A amizade nova do major tinha esta origem na boca do pessoal
da tamarineira. O escrivão Paiva não gostava do velho e espalhava notícias desse gênero. Enquanto o
pai sofria por sua causa, d. Fausta mais o odiava. Aqueles pássaros, aquelas flores, cada vez mais a
irritavam, a enchiam de rancor. O velho ultimamente parara de conversar sozinho na mesa, sobre os
seus grandes cuidados. Na cabeceira da mesa não dava uma palavra. De manhãzinha, ainda do seu
quarto, d. Fausta ouvia o pai nas carícias com os passarinhos. Ouvia com desespero o major dando
beijos, assoviando, chiando para os seus queridos. Aquilo era como se fosse para estranhos. Velho
doido. E ela se mexia na rede, puxava um pigarro alto para mostrar que estava acordada, que estava
ouvindo aqueles enxerimentos. E os pássaros estalavam canto pela casa inteira. O velho mudava as
gaiolas para os lugares de sol, mudava o alpiste dos cochos, lavava as tábuas. Depois, passava-se
para as orquídeas. Pegava uma por uma e ia ajeitando-as, virando-as, olhando-as em silêncio, sem
uma palavra. Aquilo levava a manhã inteira, até a hora do café. Por fim saía de casa e d. Fausta
ficava só no meio de todos aqueles inimigos, de seus ódios. Agora com os ataques aumentaram os
seus rancores. Se tivesse força, quebraria tudo, mataria tudo. A criada Ursulina lhe contava das
notícias que corriam sobre o major. A filha viu logo que era mentira. Nunca chegara ele em casa com
cara de bêbado. Mais uma miséria do povo do Açu. E quando estava sozinha no quarto, olhava para a
sua barriga, via-a murcha e gozava com isto a raiva que estava fazendo aos outros. Andavam falando
de sua gravidez. Prenhe de um cangaceiro, de um bandido. Se fosse verdade, ninguém teria que ver
com isso. Seria ela quem aguentaria as consequências. Podia ser um filho bonito e bom, bem melhor
do que todos os meninos do Açu. Aí d. Fausta sentia mesmo que a história não fosse verdade. Mas ao
mesmo tempo crescia-lhe a raiva, errava os pontos de seu bordado, voltava atrás, desfazendo os
enganos com uma tesourinha. Estava ficando velha. Com pouco seria como as beatas da casa-grande,
que nunca tiveram um homem em cima delas, que nunca sentiram o fogo de um homem. E d. Fausta se
irritava. Furava os dedos com a agulha. E à tardinha vinha aquela ânsia, aquela palpitação pelo
coração, aquela vontade desesperada de ir longe, de se sentir dominada, furada de um lado a outro, e
o corpo inteiro estremecia de alto a baixo. Um frio corria-lhe pelas costas. Caía dura e gritava.
Gritava como se uma dor nas entranhas lhe apertasse as carnes, lhe espremesse as carnes. Depois
chegava-lhe a vergonha imensa, uma tristeza louca. Todas as mulheres do Açu tinham ouvido os seus
gritos, todas estariam pensando nas razões de seus gritos. Miseráveis, desgraçadas. Pena que não
fosse verdade, que o cangaceiro não tivesse feito dela uma mulher completa, não lhe tivesse enchido
a barriga com um menino. Aquele pai fizera a desgraça dela. Fizera-lhe da mãe uma pobre sombra na
vida, matara-lhe a mãe. Dentro de casa nada valia para ele. Só os pássaros, só aquelas flores. A
mulher se queixava, o marido não sabia que elas existiam, não sabia que existiam a mulher e a filha.
Velho mau, velho ruim.
E uma tarde o padre Amâncio mandou Antônio Bento procurar na casa do major uma toalha que
d. Fausta bordava para a igreja. A moça reparou no rapaz. Lembrou-se daquela cabeleira que ela
acariciava nos tempos em que ele era menino. Agora estava um homem. E teve vergonha de olhar
para Antônio Bento. Bonito rapaz, bonitos olhos, que corpo forte. Demorou para dar a toalha,
reparando em tudo mais que era do criado do padre. E quando Bento saiu, d. Fausta ficou pensando
nele. Era um menino para ela. Vira-o criança, enterrara os seus dedos pelo cabelo ondulado de
Bento. E agora era aquele rapaz de olhar terno, de pele fina, bem alvo. Podia ter dezessete anos,
podia ser seu filho. E assim o rapaz não saía da cabeça de d. Fausta. Dormia com ele, bordava as
letras pensando nele. Ficou com medo. Começou a senti-lo pegado a ela, abraçando-se com ela,
dormindo na rede dela. Se as mulheres do Açu soubessem que ela pensava no criado do padre,
mangariam, fariam debique. D. Fausta era rapariga de um menino. Que mulher fogosa, atrás de um
menino para matar os seus desejos! Então ela ficava na janela olhando para a banda da casa do
padre. Via o rapaz saindo de lá para a igreja. Ficava olhando para a torre quando ele estava tocando
o sino. Se ele soubesse que ela estava com ele na cabeça, mangaria, faria pouco. Deu para ir à missa
todos os dias, queria ver Antônio Bento na igreja, olhava para ele perto do padre e voltava para casa
cheia de remorsos. Fora à igreja para satisfazer aos seus desejos. Uma debochada, era o que ela era.
D. Auta lhe falara uma vez. Parara na porta para conversar: “Por que a senhora não se confessa, d.
Fausta?” Dera uma resposta qualquer. Não teria coragem de contar os seus pecados ao padre
Amâncio. Qual, ninguém ali saberia de seus desejos, da miséria de seus desejos! Quando Antônio
Bento passava, um frio corria pelo corpo dela e lá ia ele tão despreocupado, tão alheio ao seu amor.
Baixava a vista para o bordado e tinha a impressão de que aquela agulha furava o seu coração,
entrava e saía em sua carne. Ouvia à noite o pai roncando, o sopro horrível do major no sono
profundo. Toda a sua desgraça viera dele, que não cuidara da família. A carne de d. Fausta tirava-lhe
o sono, fervia-lhe o sangue. Antônio Bento se deitaria sobre ela, machucaria as suas coisas, dobrava-
lhe o corpo. Era um amante furioso. O amante com que ela sonhara toda a sua vida. E dormia assim
contorcida na rede, com a impressão real de um homem ao seu lado. De manhã começava o suplício
ouvindo o velho aos beijos com os pássaros, chiando com os canários, batendo nos cochos. E ouvia
o sino chamando para a missa. Antônio Bento puxava o badalo. Vinha-lhe com aquilo uma satisfação
física. Parecia que ele estava puxando os seus peitos. Só podia ser coisa de doida, uma maluqueira.
Mas todas as madrugadas aquele toque de sino lhe dava essa sensação esquisita. O toque do sino
dava-lhe um gozo estranho. Só podia ser que o diabo estivesse atrás dela, metendo-lhe aquilo pelo
corpo. Queria fugir do pensamento, das imagens obscenas, mas as bichas eram vivas demais. Voltava
sempre da missa com desejos infernais. Via Antônio Bento de perto, com aquela opa vermelha até os
pés, e imaginava que ele fosse um padre e ela a rapariga do padre. Ali no Açu contavam de como um
vigário criara família, isto há muitos anos. Tivera mulher dentro de casa. E o povo sabia que altas
noites pelo sertão, pelas caatingas desertas, corria com correntes arrastando pelas pedras a mulher
do padre encantada numa burra sem cabeça, doida, doida, arrastando as correntes. Antônio Bento era
um padre. Mesmo assim ela queria o bichinho. Daria tudo para vê-lo contente. Deixaria que ele
pisasse por cima dela, seria para ela mais que um homem. Adorá-lo-ia, pô-lo-ia acima dos santos, de
Deus. E parava o bordado, suspirava. À tarde, à mesma hora, vinha-lhe a coisa. O corpo inteiro
vibrando, a ânsia, a agonia, o frio pela espinha, e d. Fausta caía para os lados aos gritos. Todas as
mulheres, todos os homens sabiam, comentariam, falariam. A filha do major estava se espojando no
chão, como uma cachorra no cio. Depois que aquilo passava, ela vinha à vida como se tivesse
voltado de um chiqueiro de porcos. Sentia lama nas entranhas, fedor nas carnes. Uma grande
vergonha, como se estivesse nua no meio do povo do Açu inteiro. Aonde estivesse o pai ouviria. Aí
d. Fausta sentia um prazer perverso. Queria que o pai ouvisse o grito de sua carne, de seus desejos
fracassados. Velho ruim. Era ele o culpado de tudo. O Açu também era culpado. Não era feia. Fora
até bonita nos seus tempos de filha de Maria, quando cantara no coro. Só aquele rapaz do Camaru,
que viera com um comprador de gado, olhara para ela, quisera se casar com ela. Tivera tanto ciúme!
Não era pela sua vontade. Uma coisa estranha vinha lhe exigir, vinha mandar nela. E tanto sofreu e
tanto exigiu, que o homem se foi. Nunca mais olharam para ela. Era o pai, um chefe de família que
não cuidava da casa, que só dava atenção às suas manias, o culpado de tudo.
E a coisa foi assim dias e dias. Era dezembro. O sol queimava o sertão. As noites eram frescas,
soprando um vento bom. Os dias quentíssimos, mas mal o sol se punha, era como se apagasse uma
fornalha. Um friozinho caía sobre o Açu, sobre as redes de dormir do Açu. O sino chamava para a
missa, a tamarineira estava coberta de orvalho. E Antônio Bento continuava a sonhar com a mulher
de Dioclécio, de cabelos compridos, que era quente nos frios das madrugadas. Mais de uma vez
falara ao padre Amâncio, nas confissões, desses seus pecados, dessas suas ligações. Mas o seu
padrinho fazia que não ouvia, dava-lhe as mesmas penitências do tempo em que ele não pecava
daquele jeito. Tocava o sino, ajudava a missa, sacudia o turíbulo, enchia a igreja de incenso, e
sempre quem estava com ele era Dioclécio. Aí se deu a história com d. Fausta. Uma tarde, o padre
Amâncio mandou Antônio Bento buscar uma encomenda de bordado na casa da filha do major.
— Entre, menino — gritaram lá de dentro.
Ele entrou. D. Fausta estava no quarto. Da porta ele deu o seu recado.
— Entra para cá, menino.
E ele parado, com receio. Foi quando reparou na cara da moça. Notou qualquer coisa de estranho
no olhar que o devorava.
— Vem cá, Antônio. Não tem ninguém em casa não.
Parou na porta ainda.
— Entra, menino! Estás com medo de quem?
Aproximou-se mais e viu d. Fausta como se fosse outra.
— Anda, vem ver a toalha.
E quando ele se chegou, a mão da mulher estava fria e ela o segurou pelo braço, puxou-o para
junto dela, abraçou-o, como se quisesse quebrar-lhe o corpo. E foi dando beijos, mordendo-o todo
com fúria. De repente d. Fausta levantou-se e fechou a porta.
— Fica quieto. Vem para cima de mim!
E arrastou Antônio Bento. Ele sentiu um fogo pelo corpo. D. Fausta o dominava. Botava a cabeça
dele entre os seios, rangia os dentes, gemia, torcia-se toda numa vibração de doida. Por fim ele se
deu, entregou-se, deu-se todo, da cabeça aos pés, à fúria da mulher.
— Tu vem amanhã, meu filhinho? Tu vem, meu bichinho — pedia ela.
E beijava a boca, beijava tudo numa sofreguidão de sedenta.
Bento teve medo. Se viesse alguém?
— Pode chegar gente, d. Fausta.
— Não vem não, bichinho. Não vem ninguém não. O velho anda por fora e a criada saiu.
E espalhou-se na cama, grudou-se com o rapaz. Depois, começou a chorar.
— Tu vem amanhã, tu vem?
E escondia o rosto no travesseiro. Antônio Bento se viu num outro mundo, arrastado por um
monstro ao fim do mundo. Estranho a tudo, com outro Antônio Bento no corpo. E veio-lhe um pavor
súbito, ao mesmo tempo uma vontade de ficar com aquela mulher para sempre, morrer ali. Os
pássaros do major cantavam dentro da casa. Eram vozes de outras terras que soavam aos seus
ouvidos. D. Fausta só fazia dizer:
— Tu vem, tu vem?
Abriu a porta e deixou a casa do major com vontade de correr. Vira o diabo. Tremia, chegando
em casa, com impressão do demônio se torcendo como uma cobra na figura de d. Fausta. O padre
Amâncio estava deitado na rede, se balançando, lendo o breviário. Na cozinha Maximina batia ovos
para o jantar. Antônio Bento foi para o quarto. O que era o amor de que lhe falara Dioclécio? Seria
aquela d. Fausta mordendo, beijando-lhe a boca, a língua, aquele frenesi, aquela ânsia em cima dele?
Era casto. Sonhava somente com a mulher de Dioclécio, de cabelos compridos. Nunca mais que
voltasse à casa do major. A cara de d. Fausta era de uma faminta, de uma pobre morrendo de fome e
de sede. Dioclécio lhe falara das noites com a mulher do velho, de uma alegria poderosa tomando
conta dele.
E os ataques de d. Fausta se repetiam. Depois da história com Antônio Bento ele reparava que
vinham se amiudando. Logo que estouravam os gritos, ele se sentia culpado, via a cara da mulher na
agonia, sofrendo.
Por outro lado o major Evangelista andava cada vez mais se esquivando das conversas de rua.
Só deixava a Recebedoria para ir bater boca na venda de Salu. O escrivão Paiva, sem juiz na vila,
manobrava o suplente como um seu instrumento. Estava prestigioso, falando grosso, dando opinião
nos negócios do município. Joca Barbeiro, íntimo dele, começava a encher a cabeça do homem de
coisas. O major Evangelista era uma vítima dessas conversas, das cogitações dos dois. Aquele lugar
de coletor precisava de um homem disposto. E o major não fazia nada, vivia fora de suas obrigações,
deixando que os contrabandistas de aguardente passassem pelas barbas das autoridades. O escrivão
dizia que o homem para a função era o Joca. O velho precisava se aposentar. O coronel Clarimundo
dera a sua opinião sobre o caso: não se metia. Era inimigo do major, não se davam, e não daria um
passo para aquilo. O major soube da coisa e foi ao escrivão. Altercaram: não estava velho, era
homem para muito mais.
— O senhor não pode falar assim dessa forma, major. O senhor não cuida dos interesses do
estado.
— Quem não cuida? Eu? Pois fique certo que não vejo ninguém aqui mais capaz do que eu.
— Capaz coisa nenhuma. O senhor não dá jeito nem na sua filha. Vá cuidar dos ataques da sua
filha.
O major quis crescer para o Paiva. Faltou-lhe a voz, recuou. Andou dois passos para a porta da
rua. Ali no cartório havia uns sujeitos esperando pelo serviço do escrivão. E o major foi saindo de
rua afora, meio tonto. Na porta do estabelecimento estava o seu inimigo, o Clarimundo, com mulher e
filhos no Camaru, de palacete. Entrou em casa, os canários cantavam como doidos. O vento sacudia
as orquídeas dependuradas. A filha na sala de jantar bordava de cabeça baixa. O major foi para o seu
quarto e gritou que queria uma xícara de café. A criada não respondeu. Ele levantou-se e viu a filha
na cozinha preparando, atiçando o fogo! Pobre filha! foi andando para perto dela e teve vontade de
fazer-lhe um agrado, tinha vontade de tê-la nos seus braços. Coitada! Gritava daquele jeito, sofria
tanto.
— O café já vai — disse d. Fausta sem olhar para ele.
A sua Fausta com a voz rouca, áspera.
Olhou para a filha. Ainda persistia o seu desejo. Teve medo. E foi voltando para o seu quarto,
com uma coisa esquisita, um sofrimento no coração. E o major começou a chorar como no dia em que
lhe morrera a mulher, com a franja da rede cobrindo a cara para que ninguém visse, para que ninguém
soubesse que ele chorava. Defronte estava Clarimundo, dono do Açu. Se Clarimundo soubesse que
ele chorava, Clarimundo que era dono de todo o algodão, de toda a riqueza do Açu... Aquele Salu do
fim da rua fora a sua esperança. Pensara que ele pudesse fazer sombra ao adversário de vinte anos.
Mas qual. Ninguém podia com Clarimundo. Prefeito, tudo ele era na terra. Filhas nos colégios das
freiras, educadas, sabendo tocar piano, e a sua Fausta dando ataques, bordando, trabalhando,
ridicularizada por um sujeito da marca do Paiva. Terra infame, gente infame. Aí a filha chegou com o
café. Deixou-o em cima da mesa e saiu de cara dura, indiferente, com um rancor secreto contra ele.
Ainda pensou em chamá-la. Iriam embora dali. Aposentava-se com quarenta anos de serviço. Viveria
noutro lugar, onde ninguém soubesse das dores e doenças dela. O major bebeu o café, o amargo café
feito pela filha. Os seus canários cantavam, e ele nem se lembrava de seus canários. Foi para a
janela; havia gente na tamarineira conversando. Estava certo que aquela conversa era a respeito dele.
Aquela canalha conversava sobre ele e a filha. Miseráveis. Nisto viu o padre Amâncio que vinha
pela calçada de sua casa.
— Boa-tarde, major — disse-lhe o padre e sorriu para ele.
Parou para conversar. O major convidou-o para entrar. Não quis, e pegaram na conversa ali
mesmo. O vigário perguntou pela saúde de d. Fausta.
— No mesmo. O senhor não pode calcular como essa doença me tem aborrecido. A mãe nunca
teve nada. Morreu, como o senhor sabe, de febre. Mas esta menina desde mocinha que é doentia. Ah,
seu vigário, o senhor não pode calcular os meus desgostos! Hoje mesmo me sucedeu uma dos diabos.
O Paiva me disse o que não se diz a um cachorro.
— O senhor não deve levar em conta essas coisas — respondeu o padre. — Essa gente o que
quer é o seu lugar. Tudo vem daí.
Mas o major queria se abrir. E falou para o padre Amâncio como se estivesse num
confessionário. Ele não era muito da igreja. Não porque não acreditasse. O padre sabia. Nunca dera
desgosto a vigário nenhum ali no Açu. Era um infeliz. Nascera aquela filha. Criara a menina como a
mãe bem quisera. Não se metera na criação, embora muitas vezes se arrependesse. Fora um grande
erro. Devia ter entrado com a sua força. Abandonara a moça. Ela era até bem-comportada. E
sucedera o que estava sucedendo. Aqueles ataques, a filha calada dentro de casa, como uma muda. Se
tivesse recursos, tê-la-ia levado no começo aos médicos do Camaru. Quis levá-la ao Recife, mas os
recursos não davam. E agora era o que se via. A Fausta, cada dia que se passava, pior ia ficando.
Tinha até medo de uma desgraça.
O padre Amâncio consolou a sua ovelha rebelde. Gostava do major. Nada tinha que dizer dele.
Há vinte anos no Açu, e sempre lhe fora o mesmo. Se o major quisesse, sua irmã estava de viagem
para Goiana. Podia aproveitar e levar a filha dele para tomar uns banhos de mar em Ponta de Pedra.
O major agradeceu comovido. E entrou a falar do Açu. Lembrava-se como se fosse hoje da
chegada do padre Amâncio. Ninguém dera nada por ele. Era tão moço, tão cheio de vida, tão alegre.
Padre assim nunca tinha aparecido por ali. Desconfiaram logo. Qual, aquele rapaz não daria para o
cargo. E não era para elogiar: fora o melhor de todos.
O padre Amâncio sorria:
— Nada, major. O que eu tenho é demorado mais tempo.
— É porque esta terra não tem jeito, seu vigário. Não é para falar, mas até chego a acreditar no
que dizem. Há caveira de burro enterrada por aqui. O senhor veja Garanhuns. Conheci aquilo que era
uma tapera muito pior do que isto. Foi a Pedra Bonita, seu vigário. Aquilo está pesando em cima da
gente. O sangue dos meninos. Os inocentes que eles mataram deram nisto.
O padre Amâncio explicava:
— Nada, major, não pense nisto. O que passou passou. Os pobres da Pedra Bonita tinham sido
fanatizados, levados ao crime por um aventureiro. Aquilo tanto podia ter acontecido lá como em
qualquer outra parte. Há vinte anos que estou aqui e é no que ouço falar todos os dias: o Açu não vai
para diante por causa da Pedra Bonita. Isso não passa de superstição. Garanhuns prosperou da
maneira que o senhor diz por causa da estrada de ferro. Outros lugares não vão para diante porque
não têm os mesmos recursos. Nós por aqui estamos fora do mundo.
O major se calava, mas não se convencia. Nisto ouviram d. Fausta gritando:
— Pai miserável — dizia ela —, pai miserável!
O major ficou lívido. Quis correr para dentro de casa e ficou embaraçado.
— Padre Amâncio, o senhor me desculpe.
E um barulho de pancadas, de coisas se quebrando, vinha lá de dentro. O padre Amâncio entrou
com o major e encontraram d. Fausta aos berros, como uma desesperada, quebrando as latas das
parasitas, espatifando tudo. O velho correu para as suas preciosidades espalhadas pelo chão. Olhou
para a filha e começou a recolher os restos.
— Pai miserável.
E entrou nos gritos do ataque, caindo para um canto. Deram-lhe alho para cheirar. E o major saiu
com o padre Amâncio para a sala de visitas. Era um cadáver o que o padre Amâncio via, um homem
do outro mundo. Teve uma pena enorme do major e não encontrou uma palavra para dizer. Ficaram
sentados, o major arriado.
— É isto, seu vigário, é isto!
E não disse mais nada. O padre se despediu. E a casa do major num silêncio profundo.
O sino da matriz começava a repicar para um enterro de anjo. Quantas vezes, quando a filha era
pequena, não estremecia ele ouvindo aquele repique! Quantas vezes não se assustara, não se
apavorara só em pensar na morte da filha! E verificara naquele instante que Fausta o odiava. Nunca
pensara que aquele silêncio fosse uma agressão contra ele. Tomava-o como esquisitice. Agora via
que não era. Era odiado pela filha. O sino repicava. Um anjo se ia para o céu. E os gritos de d.
Fausta recomeçaram fortes, mais estridentes. O major foi buscar o chapéu no seu quarto e saiu de rua
afora. Debaixo da tamarineira estavam os homens na conversa. Estariam falando dele e da filha. Se
fosse autoridade, mandaria meter aqueles canalhas na cadeia. Riam-se alto, não respeitavam os
sofrimentos dos outros. Aqueles meninos da Pedra Bonita sangrados como carneiros, para lavar a
pedra e ensopar de sangue a terra. O major foi andando, andou muito, até que parou na venda do fim
da rua.
— Seu Salu, o senhor tem aí vinho branco?
— Sim, senhor major.
— Então me bote um copo.
— Major — lhe disse o vendeiro —, é verdade que o Joca vai ficar coletor?
— Por enquanto sou eu, seu Salu. O senhor me bote outro copo.
Nisto foi passando o enterro do anjo. O caixãozinho azul na frente e os meninos atrás
tagarelando.
— Seu Salu, este seu vinho é bom de verdade. É de quinto novo?
— De quinto velho, major. Então morreu a menina do cabo, major.
— De quê, seu Salu?
— Homem, me disseram que foi de uma furada num pé com um prego.
— Morreu mesmo, seu Salu?
— Morreu — respondeu o homem espantado. — O senhor não está vendo o enterro?
— Ah, sim! Pois seu Salu, o seu vinho é bom mesmo. Me bote outro copo.
O homem entrou para o interior da venda e conversou com a mulher. O que diabo teria o major?
— Está honrando alguma data hoje, major?
— Data nenhuma. O senhor precisa é aumentar este negócio, seu Salu. O senhor precisa é fazer o
Clarimundo fechar as portas, quebrar.
O major estava de pé, de olhos fuzilando.
— O senhor não faz nada. Onde está o seu tino comercial? Vem para o Açu e fica como os outros
da terra.
O vendeiro compreendeu a situação do velho. Ficou quieto, deixando que ele falasse sozinho.
Outros copos vieram. E quando foi à noitinha, o major estava derreado no balcão, dormindo. Salu e a
mulher levaram-no para dentro de casa. Estiraram-no na cama.
O Açu se encheu: o major Evangelista não aguentava mais a cachaça, estava de cabeça fraca.
Caíra com o corpo na venda de Salu. O escrivão Paiva procurou o prefeito para falar. Se aquilo
continuasse assim, com pouco mais havia desfalque. E era capaz do governo fechar a Coletoria. O
coronel Clarimundo achava que fora apenas uma extravagância do major. Não sucederia mais coisa
nenhuma.
Uma tarde o major apareceu debaixo da tamarineira, vindo dos lados da venda de Salu. Os olhos
fuzilavam.
— Podem continuar a falar de mim.
— Ninguém está falando do senhor — respondeu Joca Barbeiro.
— Pois podem falar. Sou um homem de bem, sou um homem de bem. Não enriqueci com os
cofres da prefeitura.
Joca Barbeiro quis dizer qualquer coisa.
— Cale-se — gritou o major. — Não vejo aqui um homem que possa levantar a voz para mim.
Você — e apontou para Joca —, você é uma língua de jararaca.
O outro quis replicar, mas os companheiros fizeram sinal para ele.
— Vocês todos são uns cachorros.
Nisto os gritos de d. Fausta estrondaram no Açu. O major calou-se, virou as costas para a
tamarineira e foi andando, andando.
— Coitado! — disseram. — Dizem que está dormindo com a garrafa de cachaça debaixo da
rede.
D. Fausta continuava gritando.
— Vocês já repararam — disse Joca Barbeiro — que toda a vez que toca o sino, ela abre a goela
no mundo? Aquela bicha está precisando eu sei de que é.
E abriram na risada.
O major Evangelista abandonara os canários, relaxara os serviços. E nos dias de feira mais
excitado ficava ainda. De manhã começava a andar de um lado para outro, falando com uns,
implicando com os mascates, chamando-os de ladrões. Ninguém pagava imposto. Todos eram uns
ladrões. E assim ninguém tinha mais respeito ao major. Riam-se de seus gritos, de suas
impertinências.
Antônio Bento não sabia como, mas se sentia um pouco culpado de tudo. Via o major
embriagado. E julgava-se responsável por aquela desgraça, porque podia ter dado um jeito a d.
Fausta. Mais de uma vez ouvira dizer que a moça ficaria boa se se casasse. Ela só precisava de
homem, afirmava Joca Barbeiro. E ele fugira de d. Fausta. Desde aquela tarde medonha em que ela o
procurara. Se ele tivesse voltado, o major não estaria naquele estado.
O padre Amâncio, quando encontrava o velho cambaleando, gesticulando como um furioso,
levava-o para casa. Ia com ele até a porta e d. Fausta aparecia com agradecimentos. Mas mal saía o
padre, dizia horrores ao velho. Só mesmo a morte daria jeito a ele. O major fora de si não dava
importância a nada, não ouvia nada. Caía na rede como um molambo.
Era o assunto do Açu. A filha dava no pai, dava de chicote como em cachorro. Havia quem
tivesse ouvido até os gemidos dele. Pobre major. Bebia por causa da filha. E a diaba fazia aquilo
com ele.
D. Fausta sabia dos comentários. Fossem todos para os infernos, porque ela não precisava de
ninguém para viver. Aquele menino da Pedra Bonita não quisera o corpo dela. E aí vinha na moça
uma fome, um desejo desesperado. Se o pegasse outra vez, se o pegasse de jeito, comeria tudo que
ele tinha, arrancaria a língua com um beijo, machucaria todas as partes dele com as suas, tiraria
sangue do corpo dele. E com esta fome, vinha-lhe a vontade de gritar, de gritar para que todo o
mundo soubesse e visse a sua necessidade.
Aqueles gritos chegavam em Antônio Bento como se fossem um chamado de afogado, de gente
morrendo chamando por ele.

10

DESDE A NOITE em que o encontraram caído no oitão da igreja, o major Evangelista não se levantou
mais. Todos achavam que a bebida dera conta dele em pouco tempo. Não podia aguentar aquela sede
de manhã à noite. Fora o primeiro caso ali do Açu. Caso de um homem que se entregara com aquela
violência ao vício. Beber, beber até chegar perto da morte, como o major Evangelista fizera. Dera
ele para inchar. Ficar de olhos empapuçados, ora lúcido, ora desconhecendo até os mais íntimos.
Estava vencido, dentro da rede, minguado, sem ação de espécie nenhuma. O padre Amâncio ia todas
as tardes visitá-lo. E quando o encontrava em melhores condições, conversava um pouco, dava
notícias, animando o velho. Aquilo passaria. Vira um homem em pior estado do que ele, o José
Amaro. Amarelo, só com os ossos, e escapara. O major não dizia nada. Uma ou outra palavra. Para
ele já não existia o mundo. Era esta a impressão que dava, não perguntava por coisa nenhuma. Nem
indagava pelos seus serviços, encolhido ouvia as visitas. Às vezes parecia que via somente. Doutras
fechava os olhos enquanto falavam no seu quarto. As conversas se animavam. Chegava o momento
que perdiam de vista o doente e era como se estivessem debaixo da tamarineira. Falavam de fatos
estranhos, contavam histórias. A criada trazia café e d. Fausta não aparecia a ninguém. Todos eram
uns miseráveis. Vinham ver o pai, os restos do pai. Pois bem, ficassem com ele.
E o major morria. Não era tão velho. Nem chegara ainda aos setenta, mas há muito tempo que
vinha dando impressão de velhice avançada. Uma tarde padre Amâncio foi chamado. O major queria
falar com ele e o vigário foi logo, encontrando o velho como se tivesse melhorado. Estavam a sós.
— Padre — foi lhe dizendo o doente —, nunca fui de igreja, mas não quero morrer sem
confissão.
O padre Amâncio chegou-se para junto dele. O velho tentou levantar a cabeça:
— Não, pode ficar a seu gosto, major.
E ficaram os dois uma porção de tempo, trancados.
Depois ouviram o padre dizendo para ele, já com as portas abertas:
— Nada, major, o senhor vai melhorar.
D. Fausta chegou na porta do quarto no fim. Parecia uma figura de estampa, magra, estranha.
— Como está passando a senhora, d. Fausta? — disse o padre Amâncio.
Ela não respondeu. Era de tarde e o sino batia a primeira badalada das ave-marias. A mulher
voltou-se para o padre aflita:
— Padre, eu sou uma desgraçada.
E caiu no meio da sala, aos gritos. Veio gente de fora para ajudar. A casa agora vivia cheia de
estranhos. Desde a doença do major que d. Fausta não mandava mais no que era seu. Agora estava ali
gritando com a casa cheia. D. Auta achava que aquilo era coisa do demônio, influência do diabo.
Mas o padre Amâncio chamou-lhe a atenção na vista de todos:
— A senhora não deve dizer semelhante coisa. Trata-se de uma doença como outra qualquer.
Na tarde do outro dia, saiu o Santíssimo para visitar o major. O sino começou a tocar e o padre
Amâncio e o sacristão Laurindo levavam o Deus do sacrário ao major. Foi uma tarde triste. Havia
gente na sala. Ouvia-se a voz do padre devagar, e o pobre major nas últimas. À noite morreu. D.
Fausta, no seu quarto, não botava uma lágrima. Foi censurada: era um coração de pedra. E os homens
do Açu, na conversa, todos elogiavam o major. Fora um homem de bem, um amigo de primeira
ordem. O escrivão Paiva e Joca Barbeiro estavam lá. Todo o mundo sabia que eles andavam atrás do
emprego do major. Mas a morte libertava todo o mundo de ruindade e dava direito a todos de
estarem ali com o defunto, na intimidade. O major estava na rede de braços cruzados. O marceneiro
Leôncio batia as tábuas do caixão. De madrugada o Açu ouvia o martelo nos pregos. As mulheres se
agoniavam. Era uma coisa triste se ouvir aquilo, aquele bater de martelo. No outro dia de manhã o
Açu inteiro foi levar o velho ao cemitério. D. Fausta deu ataque na hora da saída do caixão. Antônio
Bento, do alto da torre, tocava o sino, com desespero. Nunca em sua vida se sentira tão mal, tão
culpado, tão vil. Ele podia ter feito qualquer coisa pelo major, e no entanto dera motivo à morte dele.
Viu o caixão nas mãos dos homens de preto e bateu no sino. Começou a dobrar as badaladas com o
coração partido. Se tivesse força, correria para Dioclécio. Ele somente era quem teria força para lhe
tirar aquela impressão, aquela mágoa sem limites. O sol de dezembro caía de cheio na verdura da
tamarineira. Ouviu como se fosse nos seus ouvidos os gritos desesperados de d. Fausta. As
venezianas de vidro do coronel Clarimundo espelhavam. Saíam raios de lá como de espelho. O
coronel tinha mandado fechar as portas do estabelecimento em homenagem ao adversário. E a
gritaria de d. Fausta. Até que o caixão se sumiu no fim da rua, o sino tocou sinal. Depois Bento
voltou para casa e encontrou a negra Maximina nos seus dias de bebedeira. Ela não podia ver
defunto. Fora olhar para a cara do major e tivera vontade de vomitar. Nunca vira defunto mais feio.
Defunto bonito fora ali no Açu um caixeiro-viajante que morrera de repente. Que cara moça e bonita.
Que riso na boca, parecia até que o homem estava dormindo, num sonho, num sonho com alguma
namorada.
— O que é que tu tem, menino, para estar tão abichornado? É capaz de estar por aí dando de
perna.
E deu uma gargalhada das suas. Maximina não tinha limites nesses dias de bebedeira. Com os
olhos vermelhos e falando, rindo-se, aperreando os outros.
— A vaca da filha não botou uma lágrima. Ficou foi inchando como uma porca no cio. Bicha
ruim. Eu só queria saber o que aquela desgraçada espera do mundo. Não queria ser homem para ter
uma coisa daquela como mulher.
Antônio Bento não queria conversar com Maximina. E ela foi se irritando com ele. Era assim
mesmo. Quando era pequeno, vivia se esquentando no couro dela. Crescia, e estava ficando besta.
— Tu pensa que é melhor do que eu, Toinho. Tu é criado como eu, menino! Tu é branco, mas tu é
criado.
O rapaz deixou a cozinha e foi para o seu quarto. De lá ouvia Maximina falando só, cantando,
dizendo horrores de todo o mundo.
— Toinho, vem cá, menino! Este menino está pensando que é gente.
Bento não respondia. Se respondesse, Maximina ia mais longe. A morte do major pesava nele. D.
Fausta lhe mostrara o corpo, correra para cima dele, daria tudo que ele quisesse. E via nitidamente a
cara da moça, o tremor da boca. Pegara-o para devorá-lo, comê-lo. O que ele podia fazer para se
livrar daquilo? Fora ao padrinho pedir perdão a Deus dos seus pecados. E a coisa pegara, entrando
para dentro de seu corpo. Ouviu então o padre Amâncio chamando por ele. Correu para o padrinho,
ansioso por uma sombra.
— Antônio, vai preparar os cavalos. Temos que ir agora de noite ao Sobrado. Vou celebrar
amanhã lá.
Ficou satisfeito. Pelo menos a viagem lhe daria tréguas naqueles pensamentos. E à tardinha,
saíram de rua grande afora. O padre na frente e ele atrás. E a noite pegou-os na caatinga. A lua
clareava a estrada como se fosse de dia. Os cavalos avançavam no baixo, no meio do silêncio.
— Antônio — chamou-o o padrinho.
Avançou com o cavalo e ficou lado a lado com o padre.
— Tu não foste mais à casa do major?
Ficou com vergonha. Mas respondeu com firmeza:
— Não senhor, não fui mais.
— Fizeste muito bem.
E calou-se. O cavalo do padre avançou e Antônio Bento ficou pensando. Seria que o padrinho
desconfiava dele e não acreditava nas confissões que ele fazia? Depois foram avistando uma luz
muito de longe. Era a fazenda Jurema, onde deviam dormir. Lá estavam esperando o padre. Sabiam
da missa do Sobrado e na certa o vigário descansaria para de madrugada alcançar o Sobrado. A
mesa de jantar estava pronta para a ceia. E todos da casa satisfeitos com a visita. O padre Amâncio
ali era um grande. Aquela amizade vinha de uns quinze anos atrás. O filho do fazendeiro fizera uma
besteira e fora com o auxílio do padre que o rapaz se salvara. Desde esse tempo que na Jurema o
padre Amâncio ficara como o protetor da casa. Desmancharam-se em agrados. Todos estavam
amedrontados com os cangaceiros que andavam agindo nas proximidades. O fazendeiro tinha até
homens no rifle, obrigado a uma despesa daquela natureza, com cabras armados. Pensara até em
mandar as meninas para a cidade. Ali ninguém podia dormir tranquilo.
— O governo não cuida do sertão, padre Amâncio. A gente destas bandas não merece cuidado
nenhum. É um povo abandonado.
Estavam assim nessa conversa, quando ouviram um rumor de alpercatas, de vozes, no pátio da
fazenda. Bateram na porta. E um pavor correu pela família. As moças fugiram para a camarinha, e a
velha, branca de medo. O coronel Deodato olhou para o padre. Abriram a porta. Era o tenente
Maurício com uma volante, pedindo pousada para uma noite. As moças saíram do quarto e reinou
alegria na casa, outra vez. Aquilo porém durou pouco, porque o tenente não viera com boas maneiras.
Tinha sabido que na Jurema se acoitara um bando de cangaceiros. O coronel e o padre deram
informações diferentes.
— Ninguém pode acreditar em sertanejo não — disse o tenente. — Ando por esse mundo afora
com a minha tropa, e se fosse atrás de conversa de sertanejo, caía em emboscada todos os dias. Eu
soube que o senhor acoita cangaceiros.
O coronel protestou. O tenente cresceu a voz. Ele vinha com trinta homens dispostos a tudo. As
moças espavoridas começaram a chorar.
— Chorando por quê? — gritou o tenente. — Dão de comer a cangaceiros de dente arreganhado,
e mal avistam a gente do governo dão para chorar.
O padre Amâncio interveio. O tenente precisava saber que estava dentro de uma casa de família,
de gente respeitável.
— Esta é a conversa de todos daqui. Para acoitar cabra safado ninguém faz cara feia.
— O senhor está enganado — disse o coronel.
— Enganado não.
Nisto apareceu um sargento com um empregado da fazenda preso:
— Este cabra estava armado ali por perto da porteira. Me parece que é do grupo.
— Do grupo coisa nenhuma — disse o coronel. — Este rapaz é um vigia. Pago a ele e a outros
para de noite ficarem por aí.
O tenente levantou-se e foi falar com o rapaz.
— Sargento! Bote ele em confissão. Esse bichinho tem que confessar muita coisa.
E com pouco mais ouvia-se a gritaria. O homem no cipó de boi, para contar o que sabia dos
cangaceiros. O padre Amâncio protestou.
— Amanhã na missa o senhor peça a Deus por ele, seu padre — disse o tenente. — Aqui neste
sertão eu não respeito ninguém. E não se tira um. Até o padre do Açu anda metido com os coiteiros.
— O senhor está enganado. Eu nunca procurei cangaceiros para coisa nenhuma.
— Ah, é o senhor? Me desculpe. Eu tenho até uma conversa com o senhor.
— Estou às suas ordens — respondeu o padre.
— Não precisa de valentia não, seu vigário. O senhor é um velho e eu não faço desfeita a padre.
Tenho ordem, carta branca para neste sertão não levar ninguém em conta. O governo quer acabar com
os bandidos. Aqui mando eu. Não tem prefeito, não tem juiz, não tem padre. Me disseram que o
senhor tem um cabra na sua casa. Um tal de Bento da Pedra Bonita. Eu soube disso no Recife. Foi o
dr. Carmo quem me procurou para falar. Conheci o dr. Carmo na casa do major Nunes. E quando ele
soube que eu vinha comandar a volante, me deu umas informações. Uma delas foi sobre o senhor.
O padre Amâncio rebateu a miséria.
— O senhor não está vendo, seu tenente, que eu não tenho cara de proteger cangaceiro? O senhor
vá lá ao Açu, entre de casa em casa para saber quem é esse criminoso e eu o entrego à prisão, se
encontrar uma só pessoa que lhe fale nisso. Isso é uma infâmia.
— Padre, eu estou acreditando no que o senhor está dizendo.
Ouvia-se o grito do homem na surra e o tenente nem parecia que tinha mandado fazer aquilo. O
padre insistiu:
— Seu tenente, mande suspender isto. Eu conheço essa família há muito tempo. Aqui nunca
deram guarida a cangaceiro.
— Padre, o senhor está na sua igreja, e eu é que sei onde se acoita bandido. Se a gente vai atrás
da conversa desse povo, morre na bala. Tenho que sair hoje daqui sabendo onde está o grupo do
Deodato.
Chegou depois o sargento. O homem não dizia nada. Nem podia mais falar.
— Pegue uma empregada da casa!
Nisto o coronel protestou. Era uma miséria.
— Miséria coisa nenhuma! Miséria é vocês acoitarem bandidos. Passe-lhe apeia, Minervino!
Nós só saímos daqui com o fato esclarecido. Esse pessoal daqui vai ver o que é uma autoridade.
O coronel tremia os beiços de raiva.
— O senhor chama a isso autoridade? Estão fazendo pior que os cangaceiros.
Aí o tenente foi a ele.
— Velho filho de uma mãe! Me abra a boca que eu lhe enfio uma bala. Amarre esse cachorro,
sargento!
As moças saíram do quarto. A dona da casa caiu nos pés do tenente:
— Não faça nada com o meu marido!
O choro crescia.
— Parem com tanto choro! Eu é que fui ofendido. Um tenente esculhambado por um barba de
bode.
O padre protestou.
— Isto é um absurdo, tenente!
Ouvia-se a gritaria da mulher no pátio da fazenda. A lua iluminava o terreiro, o curral, os bois
deitados, os soldados espichados pela calçada. Na primeira lapada a mulher confessou tudo. Os
cabras tinham estado na fazenda há oito dias, tinham dormido duas noites e estavam na Guarita.
— Não disse ao senhor, seu vigário? O senhor pode entender do seu padre-nosso. De cangaceiro
entendo eu. Soltem o velho. Sargento, prepare o pessoal de comida.
Esvaziaram a despensa, cortaram manta de carne de sol. Distribuíram farinha com as praças. As
moças ainda choravam alto.
— Padre, mande parar com essa latomia! Aqui não há ninguém sofrendo! O homem acoita
cangaceiro. Eu tenho ordem de mandar tudo o que é coiteiro para a cadeia. Pegando coiteiro, já sabe!
A madrugada vinha dando sinais, avermelhando o céu. Os galos cantavam. A Jurema havia
recebido a força do governo. Antônio Bento foi selar os cavalos. Tinha que sair bem cedo, para
chegar ao Sobrado em tempo para a missa. A família se despediu do padre Amâncio como se
houvesse um morto na casa. O coronel disse:
— É isso que o senhor vê, seu vigário. Cangaceiro por um lado, a força por outro.
A tropa já estava no ponto de partida e o tenente falando:
— Agora já sabem! Já conhecem o meu riscado! Coiteiro comigo não brinca de esconder. Olhe,
seu padre, pode ir dizendo por aí: o tenente Maurício está com carta branca, fazendo o que quer.
E de chapéu de couro na cabeça, com um rifle na mão direita e o punhal atravessado, parecia um
cangaceiro que estivera com o grupo no Açu. Não fazia diferença.
Na porteira o padre Amâncio e Bento encontraram o homem estendido, melado de sangue.
Apearam-se. O pobre estava quebrado de pau. Respirava com um fio de sangue saindo pela boca.
Então o padre Amâncio e Antônio Bento voltaram para deixar o homem na fazenda. Os soldados já
tinham abandonado o acampamento. O coronel deitou o pobre na rede e veio passar jucá por cima
dos talhos de cipó de boi. Deram a tintura para o homem beber. A mulher que falara, na peia, estava
chorando.
Tinha mentido para se ver livre. E a família debaixo do pavor:
— Fala baixo, menina, fala baixo!
A manhã estava clara. Pela caatinga afora iam o padre e Antônio Bento. O povo do Sobrado
esperava pela missa. Bento foi pensando. O tenente falara dele como de um criminoso da Pedra
Bonita, de um assassino que o padre Amâncio tinha como um guarda-costas. O tenente dissera aquilo
com certeza. Se amanhã entrasse no Açu, não respeitava ninguém. Não havia fala de padre, de
prefeito, de juiz, que servisse. Ele era criminoso. E o seu lugar era na cadeia, no meio daqueles
pobres amarelos que conhecera. Teria que dormir, viver ali dentro, cheirar aquela podridão, ouvir
aquelas histórias. Um tísico tossindo nos seus ouvidos. E os cavalos furavam a caatinga. O sol se
espalhava pelos imbuzeiros arredondados. Cheiravam a terra e os matos. As primeiras chuvas tinham
deixado a caatinga num mar de verdura. De vez em quando o vermelho das flores dos xiquexiques
tomava conta dum pedaço. E tudo parecia vermelho daquele lado. O padre Amâncio marchava com
vontade de chegar. A missa seria às dez horas. Bento atrás acompanhava o cavalo do padrinho. No
Açu estivera ele com os cangaceiros. Fora até respeitado. E agora o tenente com aquela cara de
deboche com o seu padrinho. O que diria Dioclécio de tudo aquilo? Já teria ele se encontrado com
uma força assim, no meio do mato? Luís Padre o fizera cantar uma noite inteira, ficara com fala de
tísico, deixaram-no na caatinga, sem força para dar um passo. O que teria feito em Dioclécio um
tenente como aquele que passara na Jurema?
Começavam a aparecer casas. A caatinga ia ficando atrás. E gente aparecendo. Homens e
mulheres, andando para a missa. Estendiam a mão para o padre, pedindo a bênção. O padre Amâncio
respondia com o sinal da cruz. Naquele dia teriam padre na igreja do Sobrado, missa, sino tocando e
à noite na porta da igreja jogariam bozó, e se houvesse cantador, cercariam o homem para ouvir as
histórias que ele soubesse. Pediriam as bravatas dos pares de França e as façanhas de Antônio
Silvino. E se aparecessem cangaceiros, correriam, se esconderiam com as mulheres e as filhas,
porque eles vinham com fome de tudo. Se aparecesse uma volante, era a mesma coisa.
Antônio Bento voltara do Sobrado pensativo. Um fato maior que a morte do major tomava conta
dele. O tenente Maurício mandava dar, desrespeitava um coronel de barbas compridas como o da
Jurema, tratava o padrinho com desdém, como se fosse um qualquer, e falara dele Bento como de um
criminoso. Tinha vontade de fugir, de andar pelo mundo como o seu amigo Dioclécio. Vida boa era
aquela, de terra em terra. E foram-se os dias assim, sem que ele encontrasse uma saída para seus
pensamentos. Ali no Açu tudo era contra ele. Até no Recife falavam dele, da Pedra Bonita. Se não
fosse o seu padrinho, ganharia o mundo. Dioclécio começara assim, fora aprendendo, aprendendo e
terminara um mestre. Podia até ser melhor do que Dioclécio. Sabia ler, decoraria versos, inventaria
histórias.
E lá um dia o padre Amâncio chamou Antônio Bento para o seu quarto. Estava na estrebaria
quando ouviu o padrinho chamando por ele.
— Antônio — lhe disse o padre —, tenho que ir ao Recife. O bispo de Pesqueira quer que eu o
acompanhe na visita pastoral deste ano. Tenho que passar por lá uns três meses. Maximina vai para
Goiana, eu vou deixar os cavalos na cocheira do coronel Clarimundo e você deve ir passar esse
tempo com o seu povo da Pedra Bonita. É a sua gente. Você precisa estar com eles. Houve um tempo
em que eu pensei em lhe arrastar de lá. Sua mãe me pediu. Vinha sempre aqui me pedir. Não queria
que você voltasse. Tinha medo de sua volta. Estive pensando. Isso era um erro, um grande erro. Lá
está na sua gente. Falam de lá. Todo o mundo quer responsabilizar o povo da Pedra por uma porção
de crueldades. Mas isto não tem importância. Vá passar esses três meses entre os seus. Procure viver
bem com eles, ajudá-los. Você leva daqui experiência. Você é mais instruído. Eu queria fazer de
você um padre. Faltaram-me os recursos. Eles de lá não gostam do resto do mundo. Nos odeiam, nos
culpam pelos erros dos outros. Na verdade foram malvados com eles. Naquele tempo não apareceu
um homem de juízo que tivesse força de levar os pobres pelo bom caminho. Foram a ferro e fogo,
destruindo, matando. E o ódio ficou. No começo de minha carreira, quando cheguei aqui, ainda quis
ir até lá. Fiz o possível. Levei até o frei Martinho para uma missão. Não me deram ouvidos. Aqui no
Açu só mesmo sua mãe aparece de quando em vez. Ela queria que você fosse para longe, para
aprender, para ser diferente de todos. Na seca de 1904 deixou você comigo. O povo do Açu, das
fazendas, por ignorância, atribui a miséria do município à desgraçada Pedra Bonita. Se odeiam.
Procurei modificar esta raiva, que vem de avô a neto. Foi inútil. Você mesmo deve ter sentido isto.
Eles lhe olham como um estranho, um infeliz, como se você não fosse da mesma carne dos daqui.
Quando eu lhe adotei, me censuraram. Até minha irmã se opôs. Ninguém criava uma cobra. E no
entanto eu sei que você é bom, digno de todo o meu afeto. Só lastimo não ter podido mandar você
para o seminário. Uma paróquia como esta do Açu não dá nada, não rende coisa nenhuma. Pedi ao
reitor em Olinda, escrevi-lhe, insisti, mas nada se pôde fazer. Deus não quis que você fosse padre.
Um padre de Pedra Bonita podia ter mais força do que eu para acabar com tudo isso que há. Deus um
dia dará o sinal de sua graça. Iluminará o coração dessa gente. Vou passar uns três meses por aí fora.
Fica com o teu povo. Experimenta a bondade dele.
O padre Amâncio se calou. Na cozinha Maximina batia ovos. E Antônio Bento ficou um pedaço
de tempo no quarto do padrinho. Eram só a rede, aqueles cabides, aquela mesa de pinho, um guarda-
roupa de amarelo, o luxo do seu quarto. Tudo aquilo era a riqueza do padre Amâncio, o conforto de
vinte anos de vigário. Ali estava ele estendido na rede, velho, com vinte anos dados ao Açu, àquela
gente que não prestava para nada. Pobre de seu padrinho! Não fizera nada, não podia se gabar de
uma grande obra. A matriz fora obra dos outros, o Açu o mesmo que encontrara, as imagens da igreja
as mesmas. Ninguém sabia de todo o seu esforço, de toda a sua luta, para não deixar que o tempo e a
pobreza reduzissem a matriz a ninho de corujas e de morcegos. E estava ali, agora mesmo,
confessando a ele, uma sua cria, que nada pudera fazer pelas almas de seu rebanho. O ódio que
encontrara estava vivo, batendo. Duas espécies de gente com a mesma raiva. O Açu vendo na Pedra
Bonita a sua desgraça e a Pedra Bonita desejando todo o mal ao povo do Açu. Maximina cantava a
mesma moda de sempre, aquela Margarida vai à fonte, que ele vinha ouvindo desde menino. E o
padre Amâncio, de olhos fechados, ressonava. Antônio Bento se levantou devagar para não acordá-
lo. Era quase hora de tocar as ave-marias. Foi andando para a igreja com o coração pesado de
tristeza. Subiu as escadas da torre. Os morcegos chiavam no telhado e a luz do Santíssimo vacilava
com lentidão. O silêncio imenso da igreja pela primeira vez lhe fez medo. Lá no fundo da sacristia
estava o caixão que servia para enterrar os defuntos pobres. Deu a primeira badalada do sino com
força, como se quisesse chamar um companheiro, um amigo que viesse para junto dele. O som se
perdeu por longe. Na tamarineira os homens se descobriam. Deu a segunda badalada mais devagar,
mais senhor de si. Então d. Fausta começou a gritar.
S E GUNDA P AR T E

Pedra Bonita
1
NO PÉ DA SERRA do Araticum ficava a propriedade do velho Bento Vieira. Aquelas terras vinham dos
antigos da família. A casa pobre de taipa, o curral de pedra, o cercado de pau a pique diziam bem a
idade de tudo. O lugar era triste. Nada dos horizontes extensos, de uma vista que enchesse de gozo o
espectador. Um buraco, como diziam. Mas era que ali embaixo passava o córrego, nasciam águas que
só deixavam de correr nas secas violentas. Procuraram o pé da serra por estas facilidades. Podiam
ter construído a casa-grande no alto, lá em cima donde se avistava a caatinga se sumindo, se
estendendo nos seus relevos, subindo e baixando como um mar. Quiseram fincar mesmo no pé da
serra a casa-grande. O gado não precisaria de longas caminhadas para o bebedouro e o povo
encontraria ao alcance da mão a água de beber, que era tudo por aquelas bandas. O povo do
Araticum nunca quisera muita coisa do destino. Dessem-lhe de beber, que o mais se arranjava sem
muitos cuidados. As terras do velho Bento Vieira recebiam gados de todo o mundo. Não eram
extensas, não dispunham de um mundo como outras fazendas vizinhas. Mas tinham do melhor, do que
havia de mais fresco pelo sertão. Outros levavam muito gado para as feiras, cultivavam, enchiam a
casa de cereais. Mas nas secas não aguentavam o repuxo como o Araticum. Era pequena, mas dava
bastante para os seus donos. Ouvia-se sempre dizer: “O Araticum é um ovo sem clara, só de gema.”
O velho Bentão, como chamavam ao proprietário, não fazia figura nas partilhas de gado. Tinha
pouco, não procurava estender as criações. Cobria as terras de roçado. Tinha medo das secas, se
reduzia para melhor resistir. Vivia ele com a mulher e os filhos numa vida insignificante, como há um
século vinham vivendo os seus antepassados. A casa-grande, que fora de seus avós, era aquela
mesma. Não aumentara um quarto, não lhe fizeram uma puxada. O tacho de cobre de refinar o azeite
de carrapato quase não tinha mais fundo. As gamelas de fazer farinha eram as mesmas. Apenas o fuso
da prensa se partira, de tão gasto. As vasilhas eram aquelas em que há cem anos vinham espremendo
a massa nas farinhadas. O curral de pedra resistira ao tempo. Do tamanho que era continuava a ser, e
as estacas de aroeira do cercado podiam esperar por mais cem anos, de tão sólidas.
No Araticum as coisas seriam como as pessoas. O capitão devia ser igual a seu pai, como este
fora igual ao outro. Corresse o tempo na sua corrida, no seu galope. Ali o jabuti andava no seu passo,
despreocupado, manso, sabendo ao certo em que pedras pisava, que caminho transpunha. Só a seca
de 1904 arrancara o capitão de sua rotina. Outras secas ferozes, outras desgraças tinham obrigado os
Vieiras a caminhadas por terras que não eram as suas. Quem quisesse encontrar uma casa, uma terra
amada pelos seus donos, não fosse ao Araticum. Povo e terra viviam ali há um século numa
intimidade profunda. Mas sem se quererem, inimigos íntimos. O povo maltratando, a terra dando,
sofrendo. Um pé de roseira, uma árvore nunca plantaram ali para se amar, se estimar. A casa do
velho Bentão perdera a brancura de sua mocidade, era escura e suja, com um reboco de barro
vermelho aparecendo. A calçada, torta, fora de nível, como se tivesse sido feita de brincadeira.
Havia ainda pelas cornijas uns restos de tinta encarnada que a chuva e o sol não haviam conseguido
extinguir. O telheiro era que no meio do negro apresentava aqui e acolá o vermelho de telha nova.
Por dentro era a mesma pobreza, parecendo miséria. Os bancos e os tamboretes da sala de jantar,
com a mesa grande de pinho, um sofá de palhinha furada, umas cadeiras de amarelo na sala de visitas
e quartos vazios com as redes desarmadas, pendidas no canto dos armadores. Muitos quartos e a
cozinha com o fogão de lenha e o pilão para o lado, o negrume das paredes e do telheiro donde
pendiam picumãs e cascas de laranja secas. Em cima da mesa de jantar, dependurado do telheiro,
estava o jirau carregado de queijo, de farinha de milho. As lamparinas de azeite de carrapato com
pavios de fora, espalhadas pelos quatro cantos da casa. E pelas biqueiras, a terra comida pela
erosão. E a casinha dos bodes e dos carneiros fedendo, a estrebaria dos cavalos pegada à casa e um
pé de juá, por onde as galinhas subiam para dormir. Era assim a casa-grande do Araticum. Devia ser
assim cem anos atrás. Não seria o velho Bentão que a viesse modificar, dar-lhe formas novas. Quem
o visse pela primeira vez, diria o homem que ele era. Alto e magro, de barba rala, deixada ao tempo,
de olhar duro de gavião, e calado, furiosamente calado, como se o uso da palavra o constrangesse.
Os vizinhos não gostavam de tratar com o velho. Desde moço que parecia um velho, um doente. Nem
nas trovoadas de janeiro a sua mulher e os filhos viam o chefe da família mudar de humor. O mesmo
de sempre, nas secas, nas trovoadas, na miséria, na meia fartura. Um homem duro demais.
Em 1904 desceu com os seus, abandonou o Araticum, quando tudo havia se acabado. As
nascentes há dois meses que nem minavam e a última cabeça de gado esticara a canela. A mulher e os
filhos pequenos chorando às escondidas. Amanhecera um dia com o sol doendo na vista. Preparara
os dois jumentos mais fortes e saíra com o seu bando, de cara fechada, insensível às dores, ao
sofrimento de sua gente. Os parentes não gostavam do velho Bentão. Todo o mundo fugia do
Araticum. Ninguém passava ali para descansar de um dia de viagem, dar uma conversa, esperar que
o sol baixasse, para ganhar o caminho. Cara de pau, diziam do velho, unha de fome. E toda a família
do Araticum sofria a mesma fama. Só a mulher, de quando em vez, se botava para o Açu em visita ao
filho que o padre Amâncio criava. O chefe só saía de casa para vigiar o gado. Não ia à eleição, não
fazia parte de júri. Naquele oco do mundo, escondido dos homens, Bento Vieira não tinha partido,
não recebia ordens de ninguém, não devia favores. Comia e vestia de seu trabalho tacanho. Também
todo o seu esforço só dava para isto. Desde que morrera o pai e que era dono do Araticum vivia
daquele jeito. Não se sabia se era feliz ou infeliz, nem a mulher pudera espreitar no marido um
desabafo, uma palavra de satisfação ou de dor. Parira, dera filhos à morte. Sofrera a seca de 1904
com Bento com a mesma cara, com as mesmas palavras duras, os mesmos gestos. Ela mesma
reconhecia, media e avaliava o homem que Deus lhe dera para companheiro de seus dias. Mulher de
sertanejo não tinha direito de escolher, de amar quem quisesse.
Sinhá Josefina era do mesmo sangue de seu marido. Vinha dos mesmos troncos. Desde rapaz que
a fama de Bento Vieira se espalhara pelos arredores. Não fora de vaquejadas, de brincadeiras,
sempre aquele homem de poucas conversas. Um dia o pai de sinhá Josefina lhe dissera: “Menina, o
filho do compadre Aparício pediu a tua mão em casamento.” E fizeram o casório. Veio viver com
ele, sabendo já quem ele era. E vivia bem. Outra teria se arreliado, como fez a mulher do capitão do
Jenipapo. Ela aguentou firme. Se queixar, não podia se queixar do marido. Em muita coisa podia
passar por bom. Mau não era, não andava dando nos filhos, judiando com os meninos. Isto não. O que
incomodava nele era aquela secura de agreste, de pedregulho. Todo homem tinha as suas horas de
agrado, de ternura para com os seus. Até aquele parente Julião Vieira, que fora ao júri mais de uma
vez por crime de morte, agradava a mulher. Certa vez, quando ela ainda era solteira, passando pela
casa do parente, o encontrara com um menino pequeno nos braços fazendo agrado. Bentão nunca dera
este sinal de coração. O filho podia morrer de chorar na rede, que ele não se levantava para ver o
que tinha. Mesmo quando ela estava parida de novo. Do seu canto ele não saía. Podia o pobrezinho
ficar roxo do choro, que o pai não se dava a esse trabalho. E crescia sem ele achar graça nas
besteiras dos filhos, rir-se, ficar cheio com os meninos dizendo as primeiras coisas. No começo ela
sofrera com estas coisas. Depois fora se acostumando, o marido era de pedra. Passava até por doido.
Uma sua irmã lhe dissera logo no começo de sua vida com Bentão: “Fina, teu marido uma noite te
estrangula. Parece que ele tem raiva do mundo.”
Aos poucos porém ela foi vendo que aquilo não era ruindade dele. Nascera assim, vivendo assim
até a morte. Envelhecendo depressa. No segundo filho os peitos caíram. A cor se fora, a pele pegara
mancha, sumira-se toda a sua beleza. Sim, sim, fora bonita. Nas festas, nas danças, todos os rapazes
se botavam para ela. Não amara nenhum. Com dezesseis anos recebera intimação do pai para se
casar com o primo. Era um rapaz esquisito, sem muitas palavras. Mas gabavam a vida pacata que ele
levava.
Bento Vieira fora filho único. O pai enviuvara no começo de sua vida de casado e aquele filho se
criara sem mulher, entregue a uma preta velha que estava com a família desde a escravidão. Já era
muito velha para saber gostar de um menino. E Bento foi assim sem mãe, sem carinho de ninguém. O
pai se não era de seu feitio, pelo menos vivia sempre por fora. Diziam que ele dava de quando em
vez uma ajuda a um grupo de cangaceiros que agia para as bandas do Cariri. Ali pela Pedra Bonita o
capitão Aparício deixara fama de valentia. As terras em suas mãos viveram sempre no abandono. A
casa nunca tivera um caibro novo botado pelas suas mãos. O gado era vasqueiro, umas reses
minguadas. O Araticum era mesmo que não ter dono, mas ninguém lhe pusesse as mãos para derrubar
uma aroeira, plantar um palminho de terra, porque o clavinote de Aparício estrondava por aquelas
quebradas em cima do primeiro que se atrevesse. Fora ao júri a primeira vez por causa do Araticum.
Um vizinho que tinha um vaqueiro novo e atrevido metera o pobre para os lados de Aparício. E foi o
que se viu: o homem com uma descarga na cara, que deixou um rombo. Aparício abandonava a
fazenda, se perdia. Dias e dias longe do filho, mas não havia quem tivesse coragem de tocar no
Araticum. Respeitava-se, com ele ausente ou não o Araticum seria sempre o mesmo. E Bento Vieira
cresceu assim, como seu pai, naquele vaivém. A negra morrera com ele menino. Foi a mesma coisa.
Quando Aparício teve que sair, não procurou companhia para o filho. Com doze anos de idade, viveu
só, cuidou de si, como se não existisse ninguém no mundo. Aos quinze anos chegou-lhe um dia a
notícia em casa. Tinham matado na feira de Dores o grande Aparício Vieira. Três cabras foram em
cima dele de pistola e punhal. Dois ficaram estendidos com ele e o outro de bucho rasgado para
morrer dias depois. A briga ficara falada nas redondezas. Até versos tiraram com ela. E Bento Vieira
ficou com tudo que fora de seu pai. As terras e o gadinho, e sobretudo com a tradição de sua
coragem, de seu valor, pesando em suas costas. Ficou solteiro muito tempo, isolado do mundo,
tratando de suas reses, só no Araticum com uma mulher para lhe fazer a comida. Todo o mundo
falava daquela solidão. Homem tinha que ter a sua família, a sua mulher, os seus filhos. Assim como
vivia ele, era melhor que fosse para o cangaço. Mas Bento se dava bem. Vivera assim desde menino,
não lhe fazia falta o contato com os seus semelhantes. Espalharam histórias a respeito dele. Falavam
de ligações com o demônio. Por fim Bentão, como já era conhecido de todos, pediu moça em
casamento. Quem seria a pobre que tivera esta coragem? Era Josefina, coitada, uma menina tão
alegre, tão dada. E o casamento se fez. Bentão estava de roupa branca, de barba feita. O rosto
comprido, os cabelos claros, os olhos azuis não lhe ficavam mal. Rapaz bonito, podia-se dizer sem
exagero. O pai de Josefina deu a sua festa, matou o seu peru e o harmônico tocou, as violas gemeram
e as moças dançaram. Bentão e a noiva não se mexeram do seu lugar. Josefina bem desejava estar
com as outras na brincadeira, mas a cara do marido não era para essas coisas. À meia-noite saíram
os dois. Bentão e a mulher na garupa do seu alazão, sem acompanhamento. A mãe de Josefina chorou
com as irmãs. O seu coração dizia que a filha ia sofrer. Mas o velho mandou que ela se calasse. E as
violas continuaram a gemer, mesmo com os noivos distantes.
Sinhá Josefina pensava nessas coisas: tivera filhos, envelhecera, descera na seca de 1904,
reduzidos a nada, voltaram para o Araticum, deram um filho ao padre Amâncio. E a vida era a
mesma para ela, como desde o princípio do seu casamento. Mudar uma natureza como a do seu
marido só mesmo um milagre. No fundo ela estava conformada com a sorte. Os filhos vieram para o
seu consolo. Encheram-lhe a vida de alegria, deram-lhe tudo que não lhe veio de outras bandas. Eram
quatro e estavam grandes, todos homens feitos. Bentinho nascera quando ela nem esperava mais
novidade. Já estava até esquecida daquelas coisas, quando Deus lhe mandou Bentinho. Gostou mais
dele que dos outros. Já estavam grandalhões, quando lhe chegaram os primeiros sinais da gravidez.
Ficou radiante. Aquele seria afilhado de Nossa Senhora, seria a flor da casa. As dores do parto
foram terríveis. Era o último fruto da árvore. E com que esforço ela entregou ao mundo o seu filho
mais moço! Foram três dias de suores e de dores, de medo da morte. A parteira Venância já abanava
a cabeça. Passara horas inteiras no tamborete furado, fazendo esforço. Por fim, nem podia mais
levantar a cabeça quando sentiu que estava se aliviando. Chamou a velha com um sinal, fez toda a
força que podia ainda, e Bentinho chorou nas mãos da velha Venância. E ela se sentiu mãe como
nunca. Foi de uma cavilação extrema com ele. Dera-lhe leite até quando os peitos murchos secaram,
como as nascentes do pé da serra, nas grandes secas. Até a última gota Bentinho bebera. Amava este
filho com uma espécie de desespero. Lembrava-se bem da seca de 1904. Iam com os outros já
rapazes para o acampamento do governo. Bentinho tivera bexiga doida. Parecia um palito de magro.
Teve medo que ele morresse. Foi quando chegaram no Açu. Fora ao padre Amâncio e dera o filho
para ele criar. Ela queria era que o filho ficasse ali por perto, para quando fosse da volta pegá-lo
vivo, bem-tratado, gordo. Bentão não quisera. Ficou danado, mas a seca de 1904 amolecia até os
corações de pedra. Desceram, esperaram lá embaixo que Deus se lembrasse do povo infeliz. E nas
primeiras chuvas Bentão preparou-se para voltar. Já aí tinham perdido o filho mais velho Deodato,
que se fora embora com os retirantes para longe. Uma tarde chegara o filho mais velho com aquela
história. O povo estava indo todo para a cidade e de lá se botava para o Amazonas, uma terra onde
havia riqueza para todo o mundo. E água corrente de inverno a verão. Onde o mato nunca ficava
seco. Fora-se embora. Bentão não disse nem sim nem não. Ela chorou. Deodato era bom, tão
diferente de Aparício, o segundo filho, que era brigão, estouvado. Deodato deixou-os para sempre
naquela tarde. Nunca mais dera notícias, nunca mais seu filho mandara dizer coisa nenhuma. Quando
soube que havia lá para as bandas da Pedra Bonita um homem que tinha voltado do Amazonas, muito
cheio de riqueza, procurou-o para perguntar pelo filho, se não tinha visto Deodato por lá: “Qual,
sinhá Fina, ninguém pode ver não. A terra é grande demais, morre muita gente.” Para ela Deodato era
defunto. Fora para sofrer. Tinha o filho mais moço. O padre Amâncio falara em mandar o menino
para ser padre. Seria o primeiro padre da família Vieira, o homem mais importante de toda a Pedra
Bonita. Só um padre podia tirar as desgraças de cima deles. Sonhava ela com essa ventura. Aos
poucos porém foi perdendo essa esperança. O padre Amâncio muito pobre não pudera mandar
Bentinho para os estudos. Mesmo assim ela se orgulhava do filho que tinha. Ele sabia mais do que
todos os da Pedra Bonita. Vira-o no Açu ajudando missa, vestido nos trajes de croinha, sacudindo a
campainha, suspendendo os paramentos do padre. Bentinho valia mais do que todos eles. Adorava-o
nas suas noites de solidão, com o marido espichado na rede e os outros dois filhos por longe. Um
deles, Domício, era dado às tocatas de viola. Todos diferentes do pai. Nenhum puxara aquela secura,
aquele coração de pedra. Neste ponto sinhá Josefina se sentia bem. Os meninos nunca lhe deram
desgostos. Eles mesmos lhe diziam: “Mãe, tu precisas de sair de casa, tomar um arejozinho por
fora.” Queriam levá-la à casa dos parentes. Ela porém recusava. Vivera assim com o marido sem ver
gente e assim viveria até o fim. As viagens ao Açu é que lhe enchiam a vida. Davam verdor aos seus
dias. Sonhava com elas dias, noites seguidas. E numa madrugada saía sozinha a pé, puxando léguas,
de chinela na mão, de caatinga afora, com uma ansiedade de quem procurava uma grande coisa. Ia
para o filho. Três vezes por ano, três grandes datas para ela. E fazia gosto. Bentinho era outro, de
outra gente, de cara, de corpo, de um mundo que não parecia de Araticum, da Pedra Bonita. Se ele
tivesse ido para padre (e ela pensando nas suas viagens ao Açu, imaginando no meio da caatinga,
ouvindo de quando em quando o grito lancinante das seriemas na carreira), se ele voltasse padre, em
que quarto da casa do Araticum dormiria? Como um padre poderia dormir num quarto daquele,
gotejando, de chão frio? Não, a casa se transformaria para receber o filho que tinha cantado a
primeira missa e que era o homem maior de toda a Pedra Bonita. A madrugada na caatinga era fria.
Ela parava para comer um imbu, chupar um imbu e ouvia, naquela imensa solidão, os pássaros
cantando. O rompante do espanta-boiada, com um grito de gente. Nunca tivera medo de andar
sozinha. Os filhos falavam. Que iria ela fazer assim no Açu sem uma companhia? Mas ela queria era
ir sozinha, não levar ninguém da Pedra Bonita para lá. Não queria que o filho tivesse vergonha dos
irmãos, do pai. Sentia que aquilo era um mal, que aquilo era errado. Mas não queria que ele visse os
seus, tivesse vergonha dos seus. E voltava sempre do Açu animada de uma grande esperança.
Bentinho seria um homem à parte, no meio de sua família. Comparava-o com os outros irmãos. Via
Deodato como morto, mas tinha os outros dois. Aparício forte, alegre, cheio de vontade, falando de
brigas, com armas no quarto, experimentando pontaria nos pés-de-paus. Via Domício tocador de
viola, sempre de festa em vista, do tamanho do pai, respeitado nas vaquejadas. Eles dois nunca lhe
deram aperreio. Deus a livrasse de ver um filho com a tropa atrás dele, com processo, precisando de
proteção de gente de fora. Mas a grande esperança da sua vida estava no Açu, aprendendo com o
padre Amâncio. O marido fora buscá-lo uma vez. Voltara e não lhe dissera uma palavra. Nunca
Bentão lhe falara mais no moço ausente. De Deodato uma vez ou outra se lembrava para se queixar.
Só ele era quem sabia tratar das abelhas. Todas as ocasiões em que tirava mel dos cortiços, lá vinha
o velho com Deodato. Ele era quem sabia tratar daquilo. Os cortiços estavam desaparecendo, com as
abelhas fugindo para outras partes. Deodato sabia de segredos, tinha a mão boa para as bichinhas.
De Antônio Bento o velho não tinha de que falar. Saíra ele menino com cinco anos e parecia uma
criança de três, de tão definhada. A princípio tocara na mulher a respeito disso. Um filho dele estava
vivendo à custa de um estranho. Montou a cavalo e procurou o padre Amâncio. O padre lhe dissera
tanta coisa, que voltara sem o menino e se esquecera para sempre do filho. O Araticum viveria sem
ele muito bem. Eram dois os perdidos: Deodato e Bentinho. Este era mais dos outros, da gente de
baixo, do povo inimigo.
Havia por aquelas bandas um ódio extremado. Estava dentro da terra, dos corações, dos matos,
nas pedras. Vinham gerações sobre gerações, mas ia ficando o ódio, o povo do Açu não valia nada
para eles. Faziam feira em Dores, andavam mais duas léguas para ouvir missa de festa e comprar e
vender. Por isso mais de longe ainda o velho Bentão via o seu filho mais moço. Quando desceram em
1904, a fome não lhe dera coragem de contrariar a mulher. Também pensara que o menino se
acabasse, morresse. Voltando para o Araticum, quis trazê-lo para junto de si. A mulher metera na
cabeça deixá-lo com o padre. E que ele ficasse por lá mesmo. Os dois filhos estavam dando conta de
tudo como podiam dar.
Aparício tinha muito do avô; o outro, da gente da mãe. O sogro de Bentão tivera cantadores na
família e não era demais que viesse um neto com aquele gosto estragado. O que para ele valia um
homem abrindo a boca no mundo para cantar, vivendo de viola na mão como um leso? Bentão no
começo brigou com o filho. Não queria aquela quizília dentro de casa. Depois foi deixando. Era
curioso como o duro capitão se deixava levar pela vontade dos meninos. Aparício e Domício
andavam por onde queriam, fazendo o que bem quisessem. E o pai não brigava. Era o mesmo, sem
uma palavra. A mulher que olhasse para eles. Quem os parira fora ela. Dessem eles conta do serviço
e tudo estava muito bom. Aparício cavasse a terra, limpasse o mato do roçado. Domício conduzisse o
gado, curasse as bicheiras, cortasse as ramas para a ração, e o mais que corresse ao deus-dará.
Muitas vezes a mulher brigava, censurava. Pedia para ele agir contra os filhos: “Bento, tu precisas
ver a vida desses meninos. Domício não sai da viola. Aparício dormiu a noite fora de casa.” E o
velho com a cara que estava, ficava. Fizessem o serviço, dessem uma ajuda no Araticum e tudo podia
ir conforme os ventos.
O córrego passava no fundo da casa. Mais para baixo se desviava de umas pedreiras e se
espalhava procurando caminho. Os pés de oiticica faziam um bosque de encher a vista, com as suas
copas arredondadas. O riacho descia, beijando a raiz das árvores. Nas grandes secas, tudo secava, a
areia branca do leito espelhava ao sol. As oiticicas resistiam aos anos mais cruéis, dispunham de
forças como os juazeiros, os catolés, os cardeiros, as aroeiras da serra. Muitas vezes os cargueiros
de aguardente vinham pedir ao capitão ordem para descansarem por ali. Armavam rede por debaixo
das oiticicas, faziam fogo, a carne ardia no espeto e às vezes ficavam até de madrugada. Fora com
eles que Domício aprendera os toques e os versos que sabia. As oiticicas do Araticum ficaram um
pouso certo dos cargueiros, dos viajantes de longos caminhos. Nada pediam à casa-grande. Só
queriam mesmo as sombras das árvores e a água doce do riacho, que era por aquelas bandas um
presente de Deus. Quando a ventania era forte, vergava os galhos espalhados das oiticicas. O rumor
de suas folhas sacudidas chegava até longe. O velho Bentão se zangava com os aguardenteiros.
Aquilo era uma gente sem terra e sem família, uns estradeiros. Mas nunca negara um pouso. Havia
porém um dos chefes deles que era conhecido do capitão. Este vinha, com a cartucheira atravessada,
contar coisas que sabia ao pessoal da casa-grande. Comia na mesa com o velho. Ele tinha sido
conhecido do antigo Aparício. Quase menino, numa luta, levara uma bala numa emboscada com o pai
do capitão. Era baixo, de barbas brancas, de alpercatas com brochas douradas. Era só esta a única
visita que Bento Vieira recebia no Araticum. Nem os parentes vinham ali. Só o velho, que em menino
conhecera o velho Aparício. O capitão conversava com ele.
No Araticum a vida era sempre assim. A seca de 1904 secara as águas do pé da serra, secara a
terra inteira, e eles desceram para as terras dos outros. Um filho se fora para longe e o outro ficara
no Açu, dado ao padre Amâncio. A velha Josefina tinha esperanças. Para Bentão a terra não seria
para dela se tirar riquezas, cultivar, crescer, ficar mais rico que os outros. O pai lhe deixara o
Araticum como estava, como estava ele o deixaria para os filhos.
Muitas vezes, esticado na rede do copiar, o velho ouvia o aboio de Domício, o latido do
cachorro ou a pancada da foice nas cabreiras e nos xiquexiques. Ouvia a terra e a gente falando para
os seus ouvidos, de coisas que só ele entendia. A mulher lá para dentro mexia nas tigelas e pisava
milho. Aquilo era o Araticum. As abelhas saíam para o campo atrás de material para as mestras.
Soprava um vento que chega e sacudia as franjas da rede. Aquilo era o Araticum, a sua terra, a terra
que Aparício recebera dos velhos, dos antigos Vieiras da Pedra Bonita. Outro que se cansasse na
engorda do gado, que dormisse pensando com a fartura dos cereais. Queria só o que desse para
comer e vestir. E o mais que a seca comesse, que a chuva levasse. Se não fosse aquele filho na casa
do padre e o outro perdido por longe, e outro que sabia tratar das abelhas, ali no Araticum, tudo
estaria bem para ele. Descera com fome na seca de 1904 e fora atrás do pedido da mulher. Um filho
dele, dos Vieiras, servindo de criado no Açu. Melhor que tivesse morrido na câmara de sangue, que
os bichos o tivessem comido na estrada. O velho Bentão balançava-se na rede que a mulher fizera,
sentindo-se dono, senhor do Araticum, que tinha água corrente naquele sertão infeliz.

— EU BEM TE DIZIA, Josefina, o menino está perdido. Está aqui há mais de mês e não faz nada.
— Fazer o quê, Bentão? Tu querias que logo no dia que ele chegou aqui ganhasse os campos?
Ele não vai ficar aqui não. O padre quando voltar, ele volta também. Tomara que ele já volte logo.
Bento tinha chegado no Araticum e andava ainda tonto com as coisas. Saíra dali com cinco anos
e a sua memória não dava para ir muito longe, aos começos de sua infância. Lembrava-se de pouca
coisa. Lembrava-se do banho de água fria que lhe dava sua mãe, de manhãzinha. Doía-lhe a água,
como um castigo. Pouco ficara nele do Araticum. E agora estava no meio dos seus como um estranho.
Não se sentia ligado à gente e às coisas. A mãe fazia cavilação com ele, fazendo dele uma criança,
com mimos, com cuidados. Boa criatura. O pai, de cara fechada, sem dar uma palavra. Fora assim
desde o dia em que chegara. Ninguém o estava esperando. Chegara no Araticum com o dia alto. A
mãe se abraçara com ele, numa alegria imensa. Teve-o nos braços, chorando. O velho deu-lhe a mão
para beijar, como se a estendesse para um filho que tivesse acordado naquele instante, seco,
indiferente. Só de noite conheceu os dois irmãos e gostou deles. Aparício quis logo saber se ele
trazia arma de fogo e Domício o agradou extraordinariamente. Mesmo na noite da chegada tocou para
Bento ouvir a sua viola. Foram para fora de casa e Domício encheu o silêncio do Araticum de um
canto triste, como de aboio. Os da casa-grande estariam dormindo, e eles dois ali por baixo das
oiticicas, gozando a lua. Bento se extasiou com o irmão. Aquele daria um Dioclécio, era da mesma
marca de seu amigo. Pediu para o irmão cantar. Pediu histórias, queria ouvir histórias que
comovessem, que arrancassem lágrimas. Mas Domício não sabia. Aprendera pouco. O aguardenteiro
não tivera tempo de lhe ensinar. Então ele falou ao irmão das coisas de Dioclécio. Domício não
conhecia. Nunca ouvira falar desse cantador. Sabia que tinha havido outros, como Romano e um cego
do Piancó, que era o maior de todos e que deixara fama pelo sertão. Bento sentiu que ele não
conhecesse o amigo. Dioclécio para ele era o maior cantador. Sabia histórias e inventava versos de
cabeça. Ninguém como ele. E contou as histórias do amigo, a surra dos cangaceiros no velho, as
filhas ofendidas, o sangue correndo no chão. Contou a história da mulher do fazendeiro. Ela era bela
e tinha os cabelos que vinham nos pés. E dormiu com Dioclécio, somente porque ele era cantador e
tocava viola com sentimento. Domício ouvia tudo calado. Aquele seu irmão sabia de coisas, e foram
dormir bem tarde da noite. Roncavam Bentão e Aparício dentro de casa. Entraram devagar, com
jeito, e caíram na rede para o sono. Bento quase que não dormiu naquela noite. O Araticum era
aquilo que ele via. O pai tinha cara de poucos amigos; a mãe, um anjo; e os irmãos, bem bons.
Domício seria seu amigo, seria um Dioclécio para ele. Acordou de madrugada com um barulho no
curral. Domício já não estava na rede e dentro de casa ouvia-se o mexido de gente acordada.
Levantou-se e abriu a janela. Os pássaros cantavam e o sol vinha chegando para cima dos altos.
Pulou para fora e saiu andando. Viu o pai tirando leite, e Aparício e Domício no meio do gado,
fazendo outras coisas. Cantava na tigela o esguicho do leite. Fazia frio ainda. Lá para cima subia a
serra verde, bem verde. E as nascentes eram para o outro lado, lá para os fundos da casa. A água
brotava ali, como se viesse andando léguas e léguas por baixo da terra. Chegava no pé da serra e
chorava e gemia, fria e branca, como uma bondade de Deus. Bento ficou olhando um tempão, olhando
as nascentes, descendo como uma bica da serra e caindo embaixo procurando o leito para ir
correndo, correndo até secar nos pedregulhos de longe, quando a seca estorricava tudo. Depois ouviu
o grito da mãe chamando por ele. Tinha-se ficado feito besta olhando a água, ouvindo o cantar das
cigarras que ali no sertão só se encontravam mesmo pelas serras. Encontrou o pai e os irmãos
comendo de tigela na mesa. Comiam de colher o leite com farinha. A tigela de Bento esperava por
ele. Comiam calados. A mãe ao lado do velho, olhando para o filho, embevecida. E quando os outros
saíram, ela falou com ele. Teve pena de sua mãe. Estava velha, muito mais velha do que d. Eufrásia.
Não tinha dentes, com a boca murcha, com a cara enrugada. Magrinha, de tanto trabalhar para os
seus. Mas como ela se enchia de alegria falando dele! Perguntava por tudo, pelo padre Amâncio.
Quando voltaria ele para o Açu? Bento foi lhe dizendo tudo e ela esperava a resposta do filho
devorando as palavras. Sentia nela uma escrava que quisesse lhe adivinhar os pensamentos. Pobre
mãe! Só restava mesmo dela aquilo que ele via, aqueles últimos dias de vida. Pensou logo que ela
não poderia viver muito. Quem sabe se ele não viera para o Araticum assistir à morte dela? Mas aos
poucos foi se habituando. E há um mês que estava ali, e já não olhava para a mãe com aqueles
pensamentos ruins. Via-a fazendo tudo na casa, na beira do fogo, batendo roupa, e viera-lhe uma
confiança nas forças dela, na resistência dela. Não podia se conformar era com a secura do pai.
Sabia que era assim com todos, mas não se conformava. Era a têmpera dele, como diziam, a sua
maneira de ser.
Apesar de tudo, Bento não se acostumava ainda com o pai. O velho não lhe dizia uma palavra.
Nem uma vez, durante todo o tempo de sua estada. Falou com Domício sobre aquilo. E o outro só fez
lhe dizer que o pai era assim mesmo. Só tinha mesmo coisas com os bichos. De fato, o velho Bentão
tratava dos bichos como se fossem gente. Ia para o cercado de tarde tratar dos animais e passava
horas e horas alisando-os, cuidando das vacas leiteiras. Criava um bode que andava por dentro de
casa como gente da família. O animal só comia milho nas suas mãos. O que o velho Bentão não tivera
para os filhos e a mulher, desperdiçava assim, à toa. Por mais que Domício falasse do pai,
explicando-lhe o gênio, Bento não se conformava. Que diabo, eles não eram inimigos; não estavam
ali na cadeia com o carcereiro tomando conta. Domício saía com ele. Já conhecia os cantos, os
lugares de terra como a palma de sua mão. Conhecia tudo e agora dera para ficar em casa, cismando.
Sentava-se no copiar horas seguidas, e o mundo lhe passava pela cabeça em quadros, em cenas que
ele desejaria viver. Dioclécio solto tirando verso de tudo. Lá embaixo era o Açu, o povo que não
gostava dele. D. Fausta aos gritos, querendo-lhe o corpo para se servir, tirar coisas dele; o major
Evangelista morrendo de vergonha; Joca Barbeiro tomando o emprego do velho. E as conversas da
tamarineira. D. Francisca do Monte, d. Auta de quartos quebrados pelo ferro do médico, as duas
velhas, todo o Açu lhe aparecia como adversário. Só o padre Amâncio era seu, fazia as coisas para
lhe agradar. Maximina era boa e d. Eufrásia dando gritos, mandando como se todos fossem uns
negros da Costa. De tarde tinha um sino para tocar. De madrugada acordava o povo do Açu com o
seu toque. À tardinha fazia os homens tirarem os chapéus, as mulheres rezarem. Era ele que fazia a
tristeza no Açu com as suas badaladas. Provocava saudades, recordações, medo da morte. Os
homens tiravam os chapéus, e as mulheres batiam os beiços na reza. Era um instrumento de Deus,
uma palha que Deus movia. Nas missas, ele e o padre Amâncio ficavam no altar. Eles dois, e lá
embaixo os outros que se ajoelhavam, que se benziam, que batiam nos peitos. Deus estava trancado
naquele sacrário, fechado com chave de ouro. Ele sabia onde se guardavam as hóstias consagradas.
Vinham do Recife, e o padre Amâncio as guardava naquelas latinhas. Sabia onde se guardava o
vinho, que era o sangue de Deus. Uma vez não se conteve. O diabo o tentou e bebeu do vinho que o
padre Amâncio deixara na sacristia. Sentiu um fogo queimando, o sangue de Deus nas suas entranhas
queimando. À noite havia confissão, e contou o que fizera, ao seu padrinho. Não era um pecado tão
grande, porque a penitência que teve não foi além das ave-marias e dos padre-nossos das outras
vezes. O vinho só era sangue de Deus no instante da missa, na celebração.
Ali no Araticum Antônio Bento verificava que de fato ele valia mais que muita gente. Pelas suas
mãos passavam objetos sagrados, com as suas mãos fazia coisas grandes. Há um mês que deixara o
Açu e viera viver com a sua gente. E até sentia saudade de lá. Nunca que pudesse imaginar isso que
estava imaginando: tinha saudades do Açu. No Araticum havia sua mãe e havia Domício. Sentia-se
ligado aos irmãos. Domício era mais velho. Aparício tinha aquelas coisas, mas, no fundo, queria
muito bem à velha. Deodato, o que se fora, era como se não tivesse nascido para ele. Não fazia
nenhuma ideia do irmão ausente. A mãe falava, se estendia em descrever as qualidades do outro. Era
ele quem tomava conta de tudo com mais cuidado que Bentão. Se tivesse Deodato ficado no
Araticum, tudo teria ido para a frente. Bentão não se importava com o futuro. Não plantava um palmo
a mais no roçado. O que ele fazia quando se casara era o que plantava hoje, com dois filhos homens
dentro de casa. Então Antônio Bento nas suas cismas calculava a vida como se ele tivesse ido para o
seminário. Seria o maior da família. O próprio pai teria que se abrandar para falar com ele. Era uma
coisa que ele queria ver: pai de padre. O filho mandava nas coisas de Deus, era pessoa de Deus na
Terra, representante de Cristo. E o pai maior do que ele. E o filho obedecendo ao pai. Bentão, com
ele padre, mudaria de fala. A mãe moraria com ele. Levaria a pobre para a sua freguesia, e o povo
vinha lhe trazer presentes de ovos e de galinhas. Seria a d. Josefina, a mãe do vigário. E a casa se
enchia de beatas para agradar a mãe do vigário. Quando ela passasse pelas calçadas, de fichu na
cabeça, todos olhavam para ela com respeito: “Lá vai a mãe do padre!” E seria boa para os pobres,
para os miseráveis, não gritaria como d. Eufrásia. A voz de d. Josefina não se elevaria para impor
medo a ninguém. Doce, terna, todos veriam na mãe dele uma protetora. Uma vez por outra chegava
Bentão para visitar o filho. Daria uma rede para o velho se espichar no alpendre. E na mesa do
almoço e do jantar o lugar de honra seria do velho. Conversariam. Bentão falando de suas safras, do
gado que mandara vender nas feiras, do ano seco, das vacas leiteiras, dos queijos de coalho, do
preço do milho. Aparício e Domício seriam rapazes muito bem-casados. Ele, o padre Bento, casaria
os irmãos com as moças das melhores famílias da sua freguesia. O povo do padre não faria vergonha.
Aí, um urro de boi, um cantar agudo de pássaro, o chamado da mãe tiravam Bento das cismas. E
o Araticum estava a seus olhos, nas suas tardes, nas suas manhãs de todos os dias. Não era tristeza o
que ele tinha. A mãe lhe perguntara uma vez. Não era tristeza. Bento não sofria, Bento cismava
somente. Domício era o seu grande amigo. O velho passava os dias do mesmo modo que ele. Só de
tarde e de madrugada se entregava aos bichos. O bode velho parava junto da rede do senhor e ali
ficava horas seguidas deitado. Bentão acariciava a cabeça chifruda do animal, dava de comer na
mão, como a filho pequeno. E o bode, de barbas grandes, se sentia um senhor do Araticum. Vivia de
sala, comia do melhor. Bentão passava os dias na rede, de pernas cruzadas, olhando o tempo. A água
do Araticum corria lá embaixo, não morreriam de sede. As suas vacas lhe dariam leite; a terra, o
milho; as carrapateiras, o azeite para a lamparina. Tudo estaria muito bem, tudo ia admiravelmente,
se não fosse o filho mais novo chegado do Açu. Era um estranho na casa, diferente de Aparício e de
Domício. Bem que ele dissera à mulher que não deixasse o menino se criar por longe. Mas a seca
mandava neles todos como o maior cangaceiro. Dissera a Josefina que o menino não valia mais nada.
E não valia mesmo não. Lá estava ele sentado no outro lado do copiar a olhar para o mundo. Por que
não se danava pelo mundo como os outros, para acabar com aquelas cismas? Por outro lado Bentão
via o filho no Açu como um castigo. Criado de padre, servindo, levando recado. Antes tivesse
morrido na estrada, na retirada penosa, com os urubus voando por cima. Antes tivesse ficado
enterrado na areia quente. Nunca tivera maior arrependimento. Mas a mulher quisera, e agora era o
que se via. Um filho estranho dentro de casa, como se fosse uma criatura que nada tivesse de seu
sangue e de sua carne.
Bento desconfiava do velho, sentia as hostilidades, e por mais que Domício lhe dissesse que ele
era assim com todos de casa, não se conformava. Se não fosse Domício, o que seria dele no
Araticum? O amor de sua mãe não teria força para prendê-lo. Domício gostava também do irmão.
Vivera sempre com Aparício como cachorro com gato. Aparício era o mesmo, com outro gosto pelas
coisas, outras conversas, outras vontades. Enquanto ele amava a sua viola, gostava de cantar, o irmão
mais velho debochava de tudo isso. No dia em que ele voltava de Dores com uma viola comprada de
novo, Aparício deu risadas. Tocador de viola! Aquilo era para Aparício uma ocupação humilhante.
Domício juntara dinheiro, levara meses, levara um ano, e na noite em que voltou de Dores com o
instrumento de seus sonhos, Aparício debochou. Teve ódio do irmão, um ódio de inimigo rancoroso.
Mas foi tudo passando e nem se importava mais com as implicâncias do mais velho. Apareceu
Bentinho. E Domício encontrou neste o que lhe faltava no Araticum: um amigo. O velho era aquilo
que se via; a mãe, falando de Deodato e de Bentinho. Se não fosse a viola, já teria se danado no
mundo, como os outros rapazes que deixaram o sertão para toda a vida. Viera Bentinho, e Domício
exultara. Aquele era diferente de todos, gostava de ouvir a viola gemer, gostava de olhar para as
coisas do Araticum como ele olhava. Para a lua, para os matos. Gostava de ver e de ouvir.
Deram os dois para sair juntos. Domício ensinou ao irmão todos os cantos da terra. Fora com ele
diversas vezes à serra. E lá do pico viram o mundo se espalhando, a caatinga sem fim e o azulado
das serras distantes, das outras serras que eram mais altas que a do Araticum. Agora, porém,
Bentinho dera para cismar, e Domício começou a preocupar-se com o irmão, pensando que talvez
não estivesse gostando de ficar entre eles, que estivesse imaginando em fugir o mais depressa
possível dali. E por isto resolveu vencer as saudades de Bentinho. Muita coisa ele teria de mostrar
ao irmão mais moço. Já tinha vinte e cinco anos, era um homem, já podia ter filhos, família grande.
Bentinho tinha dezessete. Para ele era um menino.
E Domício começou a levar o irmão para os seus passeios.
— Hoje, Bentinho, vamos à furna dos caboclos.
E de madrugada saíram com bode preparado para um dia inteiro de ausência. A madrugada na
serra, com a névoa cobrindo os arvoredos de branco. Domício na frente, chapéu de couro e gibão. E
Bento de botas. Pela primeira vez calçava aquelas botas duras de sola. Foram subindo. Às seis horas
toda a serra se cobria de sol e cantava cigarra de aborrecer. Aroeiras, pau-ferro. Atravessaram a
mata fechada e com pouco descobriram um descampado. Via-se de longe a ondulação das outras
serras e para um canto descia um caminho muito pisado de gente. Pararam por ali. Já tinham andado
mais de quatro horas. Debaixo de um arvoredo pararam um bocado. E Domício contou para Bento a
história da furna dos caboclos. O povo dizia que a mãe-d’água cantava lá no fundo da gruta. Era uma
cabocla bonita, de cabelo arrastando no chão. Não era como a mãe-d’água dos rios, com metade do
corpo de peixe. Era toda mulher. Mais de um sertanejo tinha caído ali dentro da furna atrás da
cabocla.
Foram andando e com pouco mais chegaram perto da furna. Um imenso buraco se abria na terra.
Sacudia-se uma pedra e ouvia-se depois a pancada d’água nas profundezas. A abertura era de uma
gigantesca cacimba que fosse se afinando como um funil para dentro da terra. Lá embaixo havia água
e diziam que nas grandes secas chegava-se a descobrir ossadas de gente. Domício começou a contar
ao irmão o que sabia da furna misteriosa: uma cabocla cantava ali de quando em vez. O canto era tão
forte, que acordava gente a cem léguas de distância. Quem ouvia este canto ficava de cabeça virada.
Precisava ter força de verdade para ficar senhor de si. Do contrário, se era um vaqueiro, selava o
cavalo, se preparava para uma viagem e vinha ouvir a cabocla da furna. E o resultado era
encontrarem o cavalo do pobre como doido, vagando pela serra sem o dono. Caíra nas profundezas.
Os urubus rondavam por cima. O canto da cabocla tinha pegado o pobre de jeito. Bicho bom fora um
vaqueiro do Mussu. Estava ele em casa, de seu, quando ouviu o canto da cabocla. Ele disse mesmo
depois: parecia um aboio, um gemido chamando. A princípio pensou que fosse o vento nos
carnaubais. Escutou mais. O aboio era como se fosse dentro do cercado. Preparou o cavalo, armou-
se de rifle, pois andava com medo de visagens e saiu atrás do canto. Andou uma, duas léguas. E o
aboio chamando. Subiu a serra e foi logo desconfiando do chamado da cabocla. Mas não teve medo.
Tinha o corpo fechado com oração. E foi andando atrás da cantiga. Agora o canto era mais triste. Era
mesmo de enfeitiçar. Um canto de namorada saudosa. Desta vez a cabocla ia conhecer um homem.
Chegou-se para perto da furna e viu a coisa mais bela deste mundo. A cabocla nua, de cabelo caindo,
com os peitos duros, chamando-o, fazendo sinal para ele. O vaqueiro se lembrou dos outros que
haviam morrido. Aquilo era uma miserável, uma desgraça, uma pessoa do diabo. Pegou no rifle e deu
no gatilho. Disparou a carga toda da arma. E quando acabou, viu a bichinha sorrindo para ele, viu
uma lágrima correndo dos olhos dela. Esporeou o cavalo, e o animal não saía do lugar. Quis gritar e
não pôde. A língua estava pegada no céu da boca. Aí a cabocla se levantou. Viu o corpo dela, viu as
partes como se estivessem a um passo dele. Cheirava o corpo como um pé de jasmim. Estava
perdido, quando se lembrou da oração que trazia dependurada no pescoço. Segurou com fé na
oração, pediu pelos santos, pediu pelos poderes de são Cosme, e viu a cabocla se espichando, os
ossos estalando. Ela tinha a cara de uma mulher no ato, uma cara danada. Os olhos dela se fechavam,
a boca se torcia. O vaqueiro se fez mais ainda nas orações, e quando ouviu, foi o baque da cabocla
na furna. Ouviu a água lá de dentro fumaçando como um caldeirão e subiu uma fumaça que foi para as
nuvens. E uma chuvinha começou a cair, peneirando. Aquele pedaço de serra cheirava como se todas
as flores da terra se estivessem abrindo naquela hora. O vaqueiro vencera a cabocla da furna.
Quando ele chegou lá em cima, o cavalo estava alagado de suor. Mas o pobre desde aquele dia que
foi ficando aleseirado. Deu para chorar, para gemer, com um canto que ele dizia estar ouvindo. E
hoje quem for à feira de Dores encontrará ele transtornado, um homem perdido para sempre. Daquela
cabocla ninguém escapa.
Bento ouvia o irmão contar a história, meio descrente. Domício lhe falava da aparição como se
falasse de uma vaca do curral, de um pé de pau do Araticum, com a certeza absoluta da coisa.
Subiram para a serra e foram andando calados. Depois Domício falou:
— Tu não acredita, Bentinho?
O irmão sorriu.
— Pois tu devia acreditar. Aparício também não crê. Ele manga dessas coisas, eu tenho medo
que suceda uma desgraça com ele.
Bento falou ao irmão com franqueza. Se ele fosse contar aquilo ao padre Amâncio, o seu
padrinho dizia logo que era superstição, ignorância.
— Nada, Bentinho, isso não é coisa de Deus não. Isso vem de outras bandas. A cabocla existe.
Existe mesmo. Tu sabe, não é pra dizer besteira não: acredito mais nela que em muito santo.
Nisto apareceram na estrada uns cavaleiros, e eles deram passagem para os homens. Na frente ia
um velho e atrás quatro cabras de rifle nas costas.
— É o coronel Filipe dos Pirins — disse Domício. — Ele tem uma fazenda no pé da serra, do
outro lado, que tem até subterrâneo. A casa é uma fortaleza. É toda de pedra, com buraco para as
armas de fogo. Ali nunca esteve cangaceiro, fazendo estrago. E uma vez que ele brigou com o
governo, foi a briga maior deste sertão. A tropa cercou a casa, o tiroteio durou três dias e três noites.
Já tinha morrido gente como diabo, e quando não pôde mais, o coronel fugiu com os cabras pelo
subterrâneo. E depois só voltou aos Pirins com o novo governo. Quando ele era mais moço, fazia
medo. Hoje, não, está velho. E um filho que tinha foi ser padre. É o padre Quincas que toca flauta. É
o maior tocador de flauta do sertão. O velho não gostou da coisa. Amansou de vez. Mas quando sai
de casa, é ainda com esse aparato. O padre filho dele não quer outra vida. É tocar flauta e fazer
música para se cantar nas igrejas.
Vinham descendo a serra. O sol incendiava. Sol de serra era mais quente, queimava mais.
Domício se calara. Bento concentrado. Com pouco mais o irmão falou:
— Bentinho, tu nunca ouviste falar na desgraça da Pedra Bonita?
O outro estremeceu. Era a pergunta que ele se preparara várias vezes para fazer a Domício, mas
nunca com coragem de fazê-la. Desde menino no Açu que falavam na Pedra Bonita como de um
acontecimento terrível.
— Não, Domício, nunca ouvi falar.
— Lá em casa — disse Domício —, ninguém fala nisso. Nem o velho nem a velha. Eu ainda não
te levei à Pedra Bonita por isso mesmo. Minha mãe me pediu: “Domício, tu não fala a Bentinho da
Pedra. Aquilo foi há muito tempo, mas a gente ficou com a ferida aberta.” Eu não queria te falar. Eu
até sou franco. Pouca coisa sei do fato. Dizem por aí que foi uma mortandade sem igual. Agora, quem
sabe de tudo, tintim por tintim, é o velho Zé Pedro do Serrote Preto. Dizem até que o velho faz coisas
na Pedra, que ele conhece os segredos de lá. Nós amanhã podemos ir ver este velho. Mas tu não diz
nada à mãe. O velho Zé Pedro vive sozinho no Serrote. Aqui no sertão o povo malda logo quando vê
um homem assim sozinho, sem mulher, sem filho. Começam a falar coisas do sujeito. Conheço o
velho Zé Pedro há muito tempo. Quando a gente era menino, ouvia lá em casa se falar dele. Um irmão
de minha mãe conhecia ele de amizade. E dizia lá: “Zé Pedro para ser santo só falta a fama. Tu não
pode calcular, Fina, que homem é ele diferente da gente. Tu pensa que ele come carne de bode, carne
de boi? Qual nada! Ele vive de raiz de pau. E sabe de reza pra tudo que é doença. Tapuru de boi cai
das bicheiras com as rezas dele.” Amanhã, Bentinho, nós vamos falar com ele. Vontade eu tinha de
procurar o velho, mas não tinha companheiro. Nós vamos amanhã. E a gente fica sabendo de tudo.
Vinham chegando. De longe viam a casa-grande, o verdume das oiticicas balançando ao vento.
Era mais de meio-dia. O velho Bentão, espichado na rede, olhou para ver quem vinha chegando. E
desviou a vista quando os reconheceu. O Araticum estava num dos seus dias de dezembro. Para as
bandas do norte formavam-se nuvens escuras. No armador de pau as cordas da rede do velho Bentão
rangiam. Sinhá Josefina apareceu no alpendre. Os filhos tinham chegado.
— Vem, Bentinho, mais Domício, comer coalhada com rapadura.
O velho olhou para ela e fechou os olhos. Os armadores rangiam. Bentão cismava. As nuvens
escuras para as bandas do norte eram a grande coisa do dia.

DOMÍCIO FICOU PENSANDO uns dias se levava ou não Bento ao velho Zé Pedro. A mãe pedira para ele
encobrir do filho mais moço a história da Pedra Bonita. Afinal de contas ele teria que saber. E Bento
não era um menino para viver de segredos dessa natureza. Mesmo assim Domício sentia-se sem
coragem. E se não fosse Bento, não teriam saído naquele dia com destino à Pedra Bonita. A manhã
estava linda. Saíram de casa com o clarear das barras e já estavam em plena caatinga, os pirins
branqueavam tudo com o seu florido, imbuzeiros desabrochando, com as primeiras pancadas d’água.
Bento ia ansioso, e Domício calado pensando no que estava fazendo. Desobedecera à velha. Sabia
que a mãe queria que o filho mais moço fosse diferente de todos de casa. Podia ter se enciumado com
esses desejos de sua mãe, mas nunca ligara. Pobre dela, que vivera uma vida de cachorro com
Bentão. Um marido que não sabia o que era mulher, com aquela cara fechada desde que acordava até
que dormia. Achava natural que ela se enchesse daquela ambição no tocante a Bentinho. Deixara-o
com o padre, fora dos seus, procurando para o menino uma vida acima do Araticum, de todos os da
Pedra Bonita. Em Dores, quando ele ia às feiras e dizia que era da Pedra, os matutos tinham sempre
uma coisa para dizer. Todos tinham a gente da Pedra Bonita na conta de impiedosa, cruel, doida. Por
isso a velha não queria que Bentinho soubesse a história dos antigos. Em pequeno, ele se lembrara,
aparecera no Araticum uma velha que era da família. Dessas que não faziam pouso em parte
nenhuma, uma tal de Naninha. E ela contava a eles o que fora o caso da Pedra Bonita. Parecia uma
história de Trancoso o que Naninha lhes contara. Mas quando a mãe ouvira a velha falando, não
deixara que continuasse: “Para com isso, tia Naninha. Deixa os meninos. Isso não é história para
menino.” E assim eles pouco sabiam da história da Pedra. Ficava ali a uma légua e meia de distância.
E pouco ele sabia do que se passava por lá. Várias vezes tivera vontade de procurar o velho Zé
Pedro e tinha uma espécie de medo. Desde menino que aquilo vinha sendo escondido pela mãe.
Ficara com medo de saber. Vontade não lhe faltava. A história, como a velha Naninha contava, tinha
coisas medonhas. Um homem, que era mesmo que Deus, um tal de Ferreira, manobrando com sangue
de gente e de bicho, fazendo e prometendo um novo mundo para o povo. Iam se aproximando.
Tinham descido a caatinga e agora subiam por uma encosta da serra. Depois desceram outra vez.
E um grande vale apareceu à vista de Bento, um grande vale coberto de catolezeiros, como uma
floresta, gemendo ao vento. Fazia barulho a pancada do vento nas folhas das palmeiras. Imbuzeiros
enormes. E mato, muito mato. Para um canto estavam as duas pedras gigantes. O sol caía em cima de
uma delas e espelhava como se estivesse se derramando num espelho. Saía faísca como num
incêndio. As malacachetas coruscavam ao sol.
— É aqui que fica — disse Domício para Bento.
Bento parou o cavalo para olhar com mais vagar. O vale se estendia até longe. As pedras, no
fundo, quase na encosta da serra, como duas guardas, e a vegetação abundante, uma verdadeira
floresta se estendendo a perder de vista. As duas pedras se distinguiam no meio de tudo. Subiam e se
entregavam ao sol, num brilho de festa.
— É ali, Bentinho, o lugar da história. Ali vem gente de léguas e léguas rezar, sem saber o quê.
Lá em casa não se fala nisso. E quando passa retirante de longe e pede pouso e o velho sabe que é
para a Pedra Bonita, não deixa ficar por baixo das oiticicas. O velho tem medo da Pedra Bonita. Mas
o povo daqui não tem não. O velho Zé Pedro mora mais em cima. Vamos falar com ele.
Antônio Bento estava como se tivesse caído num reino encantado. Era ali a Pedra Bonita. O
sangue dos inocentes correra por aquelas terras e diziam no Açu que a terra secara, que os campos
tinham secado para sempre. Não era verdade. Os catolezeiros gemiam ao vento, os imbuzeiros
cresceram, estavam ali imensos, e as duas pedras, bem no pé da serra, como dois gigantes
invencíveis. Foram subindo. Domício falando, dizendo tudo que lhe vinha à cabeça, e Bento
escutando, de ouvidos abertos para tudo. A estrada que dava para a casa de Zé Pedro estava batida
de pé de gente e de casco de cavalo. Mais para diante encontraram uma família que sem dúvida vinha
de lá. Um homem a cavalo, com um menino na frente, e uma mulher a pé, de saias arregaçadas.
— Isso é gente que vem do velho — disse Domício. — Ele ensina tudo ao povo. Faz até negócio
de terra. Estou até pensando no que a gente vai dizer a ele. O bom é a gente não falar no Araticum.
Vamos conversar como se a gente fosse de Dores. Tu mesmo não tem cara de gente dessas ribeiras.
Foram andando. A casa de Zé Pedro ficava no meio da mataria. Era uma casa de palha e de barro
escuro. Defronte, um pé de pau-ferro dava sombra. De lado um curral de pau a pique, com uma latada
para a criação. Bento e Domício não viam ninguém.
— Ô de casa! — gritou Domício.
Lá de dentro saiu um velho, meio acaboclado, de cara lisa.
— Sejam com Deus. — E chegou-se para a porta: — Amarrem os cavalos, meninos.
O velho parecia ter a vista curta, pois se chegava bem perto para falar com Domício.
— Nós somos de Dores. Disseram à gente que o senhor sabe de coisas para aconselhar.
— O que eu sei, todo o mundo sabe. O povo é que inventa essa história. Mas no final das contas
vocês vieram de Dores pra falar comigo?
Domício teve medo da mentira. Quis confirmar, mas não teve coragem. O velho sabia de tudo. O
melhor era falar a verdade.
— Não, Seu Zé Pedro. Nós somos mesmo destes arredores. Este meu irmão é que chegou do Açu
e me pediu para saber a história da Pedra. Lá em casa ninguém sabe direito.
O velho Zé Pedro olhou para eles, chegou-se bem para perto, sondou, examinou:
— Mas tu não sabia de nada da Pedra Bonita? Teu pai não contou, tua mãe não contou? Tu donde
é, menino?
Domício informou. O velho sorriu e disse claro:
— Teu pai e tua mãe não contaram, não podiam contar. O sangue dos Vieiras desgraçou a Pedra.
E fechou a cara. Levantou-se:
— O sangue dos Vieiras. Mas não tem nada. Tu nada tem que vê com a história da Pedra. Deus
andou castigando por lá. Na Judeia também fizeram o mesmo. O sangue dele correu na Judeia como
correu na Pedra. E como há de correr pelo mundo. O sangue de Cristo não para de correr, meninos!
O mundo foi feito com sangue, meninos. Foi com sangue que Deus preparou Adão. O sangue tem
força pra tudo, para entrar pela terra e varar as profundas. Tu quer saber a história da Pedra. Eu te
conto.
Aí o velho saiu um pouco, tomou ar. Era curvo. Tinha o corpo envergado pela idade, a boca
murcha, pés no chão e olhar absorto.
— Eu conto a história da Pedra, como são Pedro contou a história do Criador.
Bento ficou com medo. Fazia medo a voz rouca e arrastada do velho. Agora ele parecia atuado:
— Tou ouvindo o sino tocando. Tu não escuta porque os ouvidos do povo vive entupido. O mal
do mundo é este, meninos. O povo tem os ouvidos entupidos e os olhos fechados. Tu quer saber a
história da Pedra. Ah! eu conto. Eu conto tudo. Eu conto tudo, gemido por gemido, dor por dor. Lá
vem Batista com as pedras na mão. Ele vem do Piancó. Ele diz pra todos: “Ainda não sou eu. Só
tenho as três pedras. Uma é o Padre, a outra é o Filho, a outra é o Espírito. Eu venho pra dizer que o
Filho não tarda. Ele se chama Ferreira, vem no corpo de Antônio Ferreira, vencer os demônios, abrir
a porta dos homens que não querem abrir para os pobres, botar os pobres no lugar dos ricos e os
ricos no lugar dos pobres.” Batista vem vindo do Piancó. Chegou na Pedra falou para os homens:
“Fica queta, gente. Ele vem, ele chega. Ele traz tudo que o Senhor diz que existe. A lagoa do sal vira
em ouro.” E vieram os malvados e levaram Batista para os confins. Mataram ele e tiraram o couro
como se faz com os bodes. Mas as três pedras ficaram enterradas na Pedra Bonita. No pé de Pedra
ficou as pedrinhas. Era o Pai, era o Filho, era o Espírito. Lá um dia os catolezeiros começaram a
gemer, os pés de mato a gemer, a terra a bulir, a Pedra grande a suar. Descia da Pedra grande um
suor frio de gente, era o Filho que vinha chegando na carne e no corpo de Antônio Ferreira. Era o
Filho que vinha sofrendo pelos homens. Aí, menino, a Pedra ficou como nas missões do frei Fabiano.
Vinha gente de cem léguas, povo de todo mundo, pretos e brancos, ricos e pobres. O capitão
Venâncio dos Olhos-d’Água vendeu tudo para viver por lá. Vendeu a fazenda, vendeu o gado, deixou
a mulher e veio para junto da Pedra. Lá embaixo estavam as pedrinhas que eram o Pai e o Espírito.
Antônio Ferreira começou a fazer os milagres do Filho. Vinha cego de nascença, e ele curava. Vinha
feridento de feder, e ele curava. Vinha entrevado, e ele curava. Mas o Filho queria o sangue dos
inocentes para o milagre grande. O sangue dos que não estivessem sujos de pecados. O sangue dos
meninos e das donzelas para o grande milagre. Lá longe estava a lagoa de sal. Quando a seca
chegava, a água se sumia e ficava aquele brancume por cima da terra. Era das lágrimas dos homens,
dos homens que sofriam, das mulheres que não podiam parir, dos meninos que não podiam falar.
Daquela lagoa tinha que sair a felicidade do mundo. Daquela saía o ouro que dava para fazer a
riqueza do mundo. Os pretos ficavam brancos, os doentes com saúde, as mulheres maninhas pariam
meninos gêmeos, os assassinos veriam os ofendidos satisfeitos, os ladrões entregavam os roubos, os
cangaceiros as suas armas. Tudo viveria na felicidade, se a lagoa se desencantasse. O Filho dizia
isto nas orações, gritava pra o povo de cima da Pedra Grande. Todas as donzelas teriam que parir
das entranhas do Filho. Todas teriam que dar a virgindade para que a força do Filho entrasse de
madre adentro e secassem as ruindades, a porcaria do mundo. As virgens viravam santas pela força
do Filho. “Ah! menino”, me contou meu pai, que era menino nesse tempo, “o povo dançava, chorava,
gemia com a fala do Filho. Os pais vinham dar as filhas pra o ato. As mães preparavam as meninas,
defumavam o corpo delas, lavavam com água de cheiro o corpo por onde entraria o Filho de Deus. E
as donzelas vinham vindo do santuário com a felicidade pegando fogo na madre. Era um pedaço de
Deus que ficava lá dentro. Havia para mais de cinco mil pessoas debaixo dos imbuzeiros e dos
catolezeiros. E chegando gente. E chegando gente, e se curando gente. E o Filho se preparando para o
grande dia. Lá uma madrugada ele gritou para o povo: ‘Acorda, gente, hoje é o dia da nova criação
do mundo. Deus meu Pai precisa do sangue dos inocentes para a obra da criação. Do sangue dos
inocentes tinham que sair o mundo novo, a terra feliz. Deus mandou Abraão fazer como Isaac, e ele
não teve coragem de fazer. Deus mandou que eu descesse para salvar os homens, acabar os
pecados.’”
Aí Zé Pedro parou um pouco. Tomou a respiração e continuou na narrativa:
— Meu pai me contou: a cabeleira do Filho o vento sacudia e o céu parecia feito de sangue com
a madrugada. O povo tremia. As mulheres agarradas com os filhos sem querer dar e os pais
soluçando. E o Filho de Deus no corpo de Antônio Ferreira gritando: “Eu quero é o sangue dos
inocentes. O sangue dos meninos que chupam os peitos das mães. O sangue que é leite ainda e que é
como o sangue do Menino Deus.” E as mães choravam. O Filho de Deus foi mais para cima da Pedra
grande e gritou com mais força: “Eu quero é o sangue dos inocentes. Deus meu Pai me mandou para
desenterrar os tesouros da terra e salvar o seu mundo.” Aí as mulheres correram com os filhos para
junto dele. E o Filho de Deus foi cortando cabeça por cabeça e banhando a Pedra. Mas as mulheres
choraram com pena dos filhos. Era uma latomia de fim de mundo e o milagre não se deu. As mulheres
choraram com pena dos filhos. A carne é podre, menino. De tarde os urubus cobriam a Pedra Bonita.
Era uma nuvem que cobria o sol. O Filho de Deus chorava embaixo. Saía sangue dos olhos dele.
Deus tinha abandonado o seu Filho. Ele chorava tão alto, que veio gente olhar. E saíram gritando.
Saía sangue dos olhos dele. E as mulheres que choraram pelos filhos tinham aborrecido a Deus. Que
morressem todas elas. Que se matassem as mães venenosas, as mães infelizes. Correram atrás das
mulheres pela caatinga. Degolaram muitas para ver se as lágrimas do Filho de Deus ficavam brancas
sem o sangue que era o sangue do mundo. Aí, meninos, apareceu um desgraçado. A grande desgraça
que acabou com a visita do Filho de Deus na Terra. Surgiu do meio do povo um traidor, um Judas
correu para as bandas do Açu, fugiu para o meio das feras e foi contar. E sucedeu a maior judiação
de todas. O Filho de Deus chamou o povo e disse: “Vamos morrer. Vem gente de longe atrás de nós.”
E botou a coroa na cabeça, a coroa de mato verde, e saiu cantando com o povo de mato afora. Meu
pai foi também. Era já tarde no meio da caatinga, quando se ouviu uma cavalhada andando. Parecia o
tropel do demônio. Era a tropa. E se deu a desgraça. O Filho de Deus varado de bala, com o corpo
sangrando, com cem punhais no coração. E a mortandade dos outros. Para mais de quinhentos
estendidos na caatinga. O resto fugiu e os urubus tiveram carniça pra muitos dias. O corpo do Filho
de Deus foi levado pelos devotos. Disseram que ele cheirava como um pé de roseira. E tudo se
acabou como no dia de juízo.
O velho parou de falar. Olhou para os dois rapazes e continuou de voz trêmula:
— Menino, tu me disseste que era filho de Bentão do Araticum. Pois fica sabendo. O homem que
correu pra ensinar o caminho à tropa foi um de tua gente, um Vieira. Tu não tem culpa de nada. Mas
Deus não esquece. Tu viste como morreu teu avô Aparício. Aqui ele veio me falar pra fazer reza.
Aqui ele chorou pedindo perdão como menino. Ele que era chefe de cangaceiro, como tu deve saber.
Teu pai Bentão é outro infeliz. Tu não tem culpa não, menino. Eu estou contando por contar. Bentão
não fala com ninguém. Tem terra com água corrente e não vai pra diante. Casou-se com mulher
bonita, e a mulher ficou feia. Cria, e a criação não cresce. Aplanta e não enriquece. Tu sabe o que é?
É o sangue do parente. É o sangue de Judas nas veias. Sangue de Judas, menino, sangue de Judas. Teu
irmão Aparício já teve comigo. Falou de fechar o corpo. Rezei pra ele, sabendo que não tinha força.
O sangue de Judas, menino.
Antônio Bento olhou para o velho apavorado. Domício queria se levantar e não tinha coragem.
Mas ainda falou para o velho Zé Pedro:
— E não tem jeito pra a gente não?
— Tem, menino. Quando nascer uma donzela, quando uma virgem sair das carnes dos Vieiras e
ela entregar o corpo ao padre da Pedra. Porque ela precisa parir um homem, que seja filho do sangue
que correu, que embebeu a caatinga.
Os dois irmãos ficaram olhando para o velho com pavor.
— Menino, tu não tem culpa de nada. O Filho de Deus um dia aparece e enche o mundo de
felicidade. A lagoa se desencanta. E o mundo inteiro cantará os benditos do filho de Deus. E Deus
vem para a Terra. As pedras ficam moles, os riachos dão para correr dia e noite. E o sertão verde.
Verde pra todos os tempos.
A história da Pedra Bonita tinha atemorizado a Domício e a Bento. Saíram eles da casa do velho
à boquinha da noite. Quando avistaram a Pedra Bonita, era a lua que se derramava por cima dos dois
penedos. Tudo ali parecia envolvido nas palavras do velho Zé Pedro. A ventania soprava nos
catolezeiros. Vozes de mortos gemendo. As mães chorando e o sangue dos inocentes lavando a pedra.
— Domício, tu acredita? — perguntou Bento.
O outro se calou. A história do velho devia estar trabalhando dentro dele. Os cavalos ganhavam
para o alto. Lá embaixo ia ficando a Pedra Bonita, a terra que chupara sangue, os lajedos que se
banharam em sangue de meninos, de donzelas, de mães infelizes.
— Tu acredita, Domício? — perguntou outra vez o irmão.
— Acredito, Bentinho. A gente vive na desgraça por causa dos outros. Eu não sabia da história.
Lá em casa ninguém sabia disso. Bem que Aparício me disse uma vez: “Domício, isso aqui não vai
para diante... Melhor vale o cangaço. O pai do velho foi cangaceiro. O velho Aparício foi do
cangaço.” Pois é o que eu te digo, Bentinho. A família da gente vai se acabar.
A lua tomava conta da caatinga inteira, ia até por debaixo dos imbuzeiros, se enfincava pela
mataria rasteira.
— Domício, tu não queres sair desta terra?
— Vontade não me falta. Tenho pena de mãe. Tenho pena de tudo. Estou feito nas coisas do
Araticum. Bem quisera me ver livre desse pegadio e me danar pelo mundo, andar pelas feiras como
cantador. Mas cadê coragem? O diabo do velho contou tudo aquilo que tu ouviste. Raça de Judas é a
da gente.
Em casa Bento e Domício ainda conversaram sobre a história da Pedra. Não podiam dormir.
— Sabe do que mais, Bentinho? O melhor é a gente sair para fora.
E Domício pegou da viola. E saíram os irmãos para fora do quarto pela janela. Os de casa
dormiam a sono solto. Eles nem tinham reparado que havia aguardenteiros debaixo das oiticicas, de
redes armadas. Foram se chegando para lá. Os homens conversavam com a lua batendo na cara. Não
podiam com aquele clarear. Domício e Bento chegaram-se, e eles entraram logo na conversa. Era a
tropa de um dos conhecidos de Domício.
— Menino, eu já tinha ido perguntar por você na casa. E me disseram que você tinha ido com um
irmão para as bandas da Pedra. Capaz de ser coisa de reza, hein?
Domício sorriu. O homem reparou na viola e disse para ele:
— Vamos ter cantata?
E se levantou da rede e foi para um canto. Voltou com a viola.
— Eu estou até enferrujado. Há mais de quinze dias que não dou uma tocata.
E começou a pinicar as cordas do instrumento.
— Canta primeiro, menino.
— Não senhor. O senhor é quem sabe.
— Deixa de lorota. Sai com a toada.
Domício obedeceu. E cantou. Para Bento era novo aquilo tudo. Nunca pensara que o irmão
soubesse daquelas coisas. Domício cantava a história de um homem que se perdera da família na
seca grande. O pobre procurava a mulher, procurava os filhos. A voz de Domício soluçava nas
lamentações do pobre sertanejo. O verso saía triste, pungente. Quando parou, o homem falou para
ele:
— Isto é de lavra?
Domício sorriu.
— Pois eu vou ser franco. Há muito tempo que cantador não me agrada assim. Anda por aí um tal
de Dioclécio do Araçá. Vi ele cantando na feira de Dores. Cantou de deixar gente chorando, com
pena das desgraças de um sertanejo nas unhas dos cangaceiros de Luís Padre. Mas isto que você
cantou é melhor, menino.
Bento perguntou logo pelo cantador Dioclécio. Falou dele, era seu conhecido. E o homem
informou:
— Só vi ele esta vez na feira. O bicho estava de cabelo comprido como penitente. Me disseram
que era coisa de mulher. O cantador não dava conta de si e vivia naqueles trajes sujos, fazendo de
conta que era retirante.
Aí o cargueiro começou a pinicar na viola. E saiu-se com a sua toada. Começou em voz baixa,
como se estivesse se acostumando com as dificuldades. Depois a voz cresceu e encheu a noite de
plangências. Soprava um vento nos galhos das oiticicas, e no curral o gado acordado como se fosse
de dia. A viola devia atravessar os matos do Araticum, subir as serras, descer para a caatinga. O
homem cantava forte. Os seus gemidos pareciam aboios de vaqueiro disposto. Os outros cargueiros
tinham se levantado para ouvir. A história era triste como as outras. Uma moça queria se casar com
um rapaz pobre, e o pai rico não queria. Filha dele tinha que casar com homem remediado. Então a
moça fora falar com o pai. Aí vinham as lamentações, os soluços, os pedidos, a angústia da amorosa.
Depois, já sem esperanças, ela mandou uma negra para o namorado. E começa a despedida. Começa
a falar às coisas de casa, aos bichos, às paredes, à rede onde dormia, aos passarinhos que ouviam, à
negra que a criara. A fala da moça cortava os corações. O namorado esperava por ela na beira do
rio. Ela se penteava, sentada defronte do espelho, olhando para a sua cara, como se fosse para tudo
que era da casa do pai. Por fim abandona a casa. E era a corrida pela caatinga. O namorado
esporando o cavalo. O velho pai mandara gente atrás. Mais de vinte cabras no encalço da filha. Já
iam longe. Mas o cavalo do namorado cansou. E pegaram os dois. Começa aí o suplício. Chorava
tudo, todos de casa com pena dos pobres. Choravam as negras da cozinha, choravam os passarinhos
da gaiola, chorava o gado no curral. E o velho duro: queria a morte dos dois, queria ver o sangue dos
dois correndo para se contentar. E mataram os namorados, numa tarde de seca. A moça se despedia
do rapaz e o namorado da moça. Tudo isto nos versos mais tocantes que Bento já tinha ouvido em
dias de sua vida. Quando o homem parou de cantar, havia lágrimas nos olhos dos companheiros.
— Zé do Monte está hoje na veia do pranto — falou um companheiro idoso.
— Com uma lua desta a gente só tem vontade de botar pra chorar.
Já era muito tarde. Bento e Domício voltavam para o quarto. O dia e a noite tinham sido de
tristezas. Só de tristezas.

DOMÍCIO ANDAVA TRISTE desde a viagem à Pedra Bonita. Bento começou a se importunar com a
tristeza do irmão. O outro era mais velho oito anos. Sabia mais coisas da vida do que ele, e no
entanto andava assim, como se uma desgraça qualquer o perseguisse. Por mais de uma vez Bento fora
a ele. Não era nada, era só cisma de sertanejo, dizia-lhe Domício. E Bentão de rede passava os dias
com o bode a seus pés. Esperava a chuva ali de seu canto. O céu vinha escurecendo há dias e nada de
chuva certa. O bode velho se deitava na calçada do copiar. Cada vez mais o velho implicava com o
filho mais moço. Vinha até falando à mulher, coisa que pouco fazia. Melhor que o menino se fosse.
No Araticum não cabia mais ninguém. Mas a velha se arreliou. Pela primeira vez em sua vida deu
para contrariar o marido. Não tivera medo de se colocar ao lado do seu Bentinho.
— Mulher — dizia Bentão —, este menino vai dar desgosto a nós todos.
— Cala a tua boca, Bentão. Deixa o menino viver. Vai para a tua rede. Tu não pode falar de
cisma de ninguém. Tu mesmo só vive cismando. Bentinho qualquer dia destes vai-se embora. O
padre Amâncio não tarda a chegar no Açu.
O velho replicava:
— Este menino não presta, Josefina.
A mulher se calava, virava as costas para Bentão, mudava de conversa. O velho vinha com milho
na mão para o bode comer. Alisava o couro do bicho e falava com ele como se fosse com gente.
Quem estivesse de fora, sem ver, pensava que fosse conversa de gente. Era Bentão na intimidade, nos
agrados com o animal. A mulher se danava com aquela mania. Falava até com os filhos. Aparício
dizia que era caduquice. Mas o velho sempre fora daquele jeito. Quando não era com o bode, se
pegava com outro bicho qualquer. Já fora de uma cutia que criara desde pequena. Alisava a bicha,
vivia com ela dentro da rede até que ela morrera. E Bentão fechou mais a cara dias inteiros, sem dar
uma palavra à mulher. Que homem! Nunca pegara num filho pequeno, nunca dera de comer a um filho
pequeno, e andava com aquela cutia de rede e agora com aquele bode com agrados de toda espécie,
quando não ficava horas inteiras no curral, alisando as vacas leiteiras. Foi por esse tempo que se deu
o crime de Aparício. Naquele dia Domício andava por fora tirando rama para o gado. Bentão deitado
na rede do copiar, e sinhá Josefina lavando rede na beira do rio. E Bento para a banda das oiticicas.
Aparício chegou de cavalo afrontado. Chamou o velho e foi dizendo:
— Deu-se uma desgraça na feira de Dores. Eu estava na conversa com um sujeito aqui da Pedra,
quando apareceu um vaqueiro do coronel Zé Gomes. Se ele vinha bêbado, eu não sabia. Só sei que o
cabra me desfeiteou. Até nem queria brigar. O homem voltou com uma coisa. Foi ali que começou a
briga. Dei uma bofetada no bicho, que ele caiu no chão de papo pro ar. Quando vi, vinha mais gente.
Mais três sujeitos e um praça. Me fiz na garrucha e derrubei o primeiro. Foi o praça. Caíram em cima
de mim, e eu no punhal. Furei muita gente. Corri de rua afora até a cachoeira do Neco, e só tive
tempo de selar o cavalo e cair no campo.
O velho Bentão ouviu o filho sem dar uma palavra. Bento veio chegando. Só depois de algum
tempo o velho perguntou a Aparício:
— Tu não vai te entregar?
— Eu? Só se estivesse leso. O praça ficou estendido no chão. Se eles me pegam, me cortam em
pedaços.
Aparício estava calmo, sem nenhum sinal de emoção forte.
— Bento, tu conta isto a Domício. Mãe onde está?
Aparício saiu com o irmão para a beira do rio. A velha ficou espantada com a chegada dos dois
filhos.
Caiu no desespero. Quis agradar o filho mais velho, e as lágrimas lhe pulavam dos olhos:
— Meu filho, meu filhinho!
— Não precisa de visagem, mãe! A coisa se deu, está dada. Vim pra me despedir. O velho falou
em me entregar. O velho só sabe mesmo tratar de bode. Já estou de rota batida pra o bando de
Deodato.
— Menino, não faça isto — disse a velha. — Menino, não se desgrace. Tu não deve ir para o
cangaço. O teu avô morreu nesta vida.
Mas Aparício não permitia alvoroço:
— Mãe, eu só vim dizer adeus.
A velha caiu para um lado. Baixou a cabeça em cima dum lajedo do rio e começou a soluçar alto.
Bento ficou com ela, consolando. Não precisava chorar tanto. Mas ela sabia a desgraça que viria
sobre eles. Com um filho entrando no cangaço. A família do Araticum com mais esta nas costas. E
ficou chorando. Depois saiu com Bento para casa. Bentão estava na rede com o bode junto. Era quase
de tardinha. Ouvia-se o aboio de Domício na caatinga. E o Araticum parado, com o céu escuro, tudo
suspenso. Um silêncio tremendo. A velha soluçava no quarto e Bento se sentiu só, inteiramente só.
Àquela hora no Açu saía ele da casa do padre, subia a torre, pegava na corda do sino e tocava,
tocava as ave-marias. D. Fausta dava gritos. D. Fausta queria que ele estivesse em cima dela com
todo o peso do seu corpo, machucando as suas coisas. O povo da tamarineira tirava o chapéu.
Rezavam no Açu quando ele puxava corda do sino. E o som furava a rua, se perdia até longe. Agora
ali no Araticum via o dia morrer no silêncio. Se não fosse o aboio distante de Domício e o soluço da
velha por causa de Aparício, nada se ouviria ali que dissesse que havia gente no mundo. O pai era
um bicho. Então foi para o quarto e pegou na viola de Domício. Começou a mexer, a dar com os
dedos no instrumento. Animou-se mais, quis cantar, fazer qualquer coisa que estivesse mais perto de
sua alma. Ninguém ouviria o que ele cantasse. Ninguém estaria vendo Bento experimentando o seu
coração.
No outro dia de noite ouviram barulho em redor da casa. E um grito de fora, um grito de raiva.
— Abram a porta!
Domício falou para Bento.
— É a tropa de Dores atrás de Aparício.
— Abram a porta!
E uma pancada de coice de arma estrondou na casa. O velho Bentão levantou-se de ceroula e
camisa. E a velha tremendo chegou-se para junto dos filhos. O sargento já estava dentro da casa com
as praças da diligência.
— Velho safado — foi dizendo o homem. — Nós estamos aqui atrás do bandido do seu filho, que
matou um soldado na feira. Você tem que dar conta dele ou o pau vai roncar aqui dentro.
— Seu sargento — disse Bentão, com a fala arrastada —, meu filho esteve aqui ontem e ontem
mesmo foi-se embora. Mandei até que ele se apresentasse.
— Deixa de mentira, cachorro velho.
Sinhá Josefina caiu nos pés da autoridade. Bento e Domício já estavam presos para um lado.
— Onde está o bandido? — gritava o sargento.
A resposta era uma só.
— Pois eu sei um jeitinho de fazer vocês todos falarem. Cabo Faustino, amarre este velho aí no
alpendre!
Pegaram Bentão.
— Com cinco cipoadas ele descobre.
O couro cantou no corpo do velho. O menino tinha ido embora, ele não sabia para onde. Aí
Domício gritou para o sargento:
— Bandido! Dá num velho porque não puderam com Aparício.
— Pega ele, Faustino, dá um ensino nesse safado.
E o couro cantou pela cara, pelas costas, pelas pernas de Domício.
— Fiquem sabendo o que é força do governo, filhos de uma égua. Pega o frangote, que ele
descobre.
Bento estava mais morto do que vivo.
— Com ele não — disse a velha se atravessando na frente. — Nele não, nele não.
A primeira cipoada cobriu a mãe e o filho. A velha arriou no chão. E o cipó de boi cortou o
couro fino de Bento.
— Aperta o velho.
Bentão parecia sem sentidos. Domício rosnava.
— Então — disse afinal de contas o sargento — vamos levar pra Dores o valentão — e apontou
para Domício. — Lá ele fala direitinho.
Os soldados se riam. Era já madrugada. As candeias de azeite davam uma luz de quarto de
defunto. No chão, deitada, a velha Josefina chorava como um menino apanhado. O velho Bentão, para
um canto, meio desfalecido. E Domício amarrado para ser levado para Dores. O Araticum
escangalhado. Depois fizeram a velha se levantar para fazer café para os praças. E com o dia raiando
saíram. Domício na frente com os braços amarrados para trás. As alpercatas tiniam no barro duro.
Bento nem sabia onde estava. O sangue corria-lhe da cara e doía o lombo que nem podia se mexer. A
raça dos Vieiras estava pagando, pagando a traição. Ficou ele assim no alpendre olhando as coisas.
O Araticum se enchia de vida com a manhã bonita. Lá estavam as oiticicas de galho balançando e os
pássaros cantando. E o gado no curral esperando por Domício. Viu Bentão se arrastando sair para o
curral. Foi com ele. Tinha que fazer o que Domício fazia. O velho tirava o leite devagar, e ele curava
as bicheiras. Eram umas vinte cabeças de gado. Toda a riqueza dos Vieiras do Araticum. O leite
cantava na tigela. O cercado, onde Domício mandava, o gado que conhecia as suas mãos. Bento teve
pena do irmão. A primeira grande pena de sua vida. Maior que a que sentira com a partida de
Dioclécio. Um inocente pagando pelos outros. Aparício solto com os cangaceiros, e lá ia Domício de
caatinga afora, ele que nunca pensara em matar ninguém, que tocava viola, que cantava com a voz tão
doce, tão boa. Viu Bentão com a cara dura tirando leite, com o lombo sangrando por debaixo da
camisa. Quis chorar, e teve vergonha. O velho duro nem parecia que apanhara tanto há poucas horas.
O sol estava alto e o gado devia sair para o pasto. Teria que fazer os trabalhos de Domício. E foi
para o pasto de cima, que estava verde. E à tarde, quando voltou, Bentão estava na rede com o bode
aos pés. Nem se virou quando ele passou por perto. O gado estava no curral. O velho se levantou
devagar, descadeirado, e foi tratar dos pobres. Domício já devia ter chegado em Dores, devia estar
com os presos, cheirando aquela fedentina infeliz. O velho Bentão cuidava das vacas, e a tarde caía
de manso por sobre as coisas do Araticum. Dentro de casa a mãe Josefina ainda chorava. Mal ela viu
Bentinho, foi logo indagando pelas feridas das costas. E trouxe jucá para banhar as marcas do cipó
de boi.
— Coitado de Domício — disse ela. — Tu não pode calcular a bondade daquele menino. Nem
parece irmão de Aparício. Não sei não. Mas vai tudo virando para a gente. Deus queira, Bentinho,
que o padre Amâncio já volte pro Açu pra tu te ires embora desta terra.
Bento consolou a mãe. Domício voltaria logo. Aquilo era só para fazer medo.
De noite sentiu-se ele mais só ainda. Ali estavam as coisas do irmão, a viola, a rede, a roupa de
couro. Domício tinha mais do que ele oito anos, e no entanto nunca lhe falara de mulher. Nunca lhe
dissera nada com relação às mulheres. Era cantador e nada cantava como Dioclécio, da vida. O
mundo dele era ali nos campos, na caatinga, por baixo dos imbuzeiros, atrás do gado, ouvindo os
passarinhos, cheirando os matos. De mulher Domício só lhe falara da cabocla da furna. Esta vivia na
cabeça do irmão. Levara-o para ver a furna, o buraco na terra, onde dormia a cabocla nua que
cantava para os sertanejos, fazendo tentação, chamando os homens para o fundo da terra. Só a
cabocla da furna, a mãe-d’água, vivia na mente de Domício. Uma noite ele se lembrava bem.
Estavam dormindo. Era numa noite de lua. E tinha vindo para a rede bem tarde. Domício andara
cantando, tocando viola. Por fim, pegaram no sono. E quando foi tarde da noite, ele ouviu o irmão
batendo na rede dele, tremendo com uma coisa esquisita:
— Estás ouvindo, Bentinho?
— Ouvindo o quê, Domício?
— Acerta o ouvido e vê se tu não escuta.
O silêncio da noite era imenso. Somente os sapos davam sinal de vida lá embaixo no rio.
— Não escuto nada não, Domício.
— Pois, Bentinho, ainda não pude pregar olhos. Só faço ouvir o cantar da cabocla. Não escutaste
não?
Domício tremia e Bento procurara acalmá-lo. Que canto, que nada! Aquilo era somente
impressão dele.
— É nada, Bentinho! Não é a primeira vez que ela canta pra mim. Tu não sabe o que é sofrer
como eu sofro. Fico aqui nesta rede com uma agonia no coração, um frio infeliz no peito. E quando é
assim noite de lua, a bicha começa a cantar como se fosse um aboio pra rês perdida. Tu não sabe o
que é. O coração bate numa carreira doida, os pés da gente esfriam e vem uma vontade de correr,
selar o cavalo, e correr pra a serra, encontrar a cabocla e ir com ela para as profundezas.
Ele se espantava com o irmão, que lhe parecia fora de si com aquela cara estranha, aquele falar
quente. Vira aquela cara assim em d. Fausta naquela tarde horrível. Sim, era o mesmo jeito da boca,
o mesmo tremer de lábios. Coitado de Domício. Sofria, se agoniava, dava para ouvir o canto do que
não existia. Os seus ouvidos tinham se habituado com aquela impressão. Ele lhe falara do vaqueiro
que dera o tiro na cabocla, que se desgraçara, perdera o juízo por causa dela. E sonhava com a
visagem. A mãe-d’água de corpo de mulher, com todas as partes de mulher. Diziam que, quando ela
ficava nua em cima da pedra, cheiravam os campos como se todo pé de mato fosse um pé de
imburana-de-cheiro. Agora estaria ele no meio dos criminosos, o pobre Domício ouvindo aquelas
histórias de desgraça no meio daquela gente amarela, restos de gente, de cadeia.
No outro dia de manhã Bentão amanheceu se preparando para ir a Dores. Bebeu leite com
farinha, e às seis horas saiu todo encourado, para saber notícias do filho. A mulher fez
recomendações. Procurasse o capitão Antônio. Ele mandava em tudo. Bentão calado saiu no seu
cavalo em busca dos homens de Dores para contar a sua história. Atravessou a caatinga com aquilo
no pensamento. O filho na cadeia, inocente, ele e a família apanhados por uma força do governo.
Fora a primeira vez que sucedera aquilo. Uma ocasião, quando ele era menino, bateu uma tropa no
Araticum atrás do pai dele, o velho Aparício. Pegaram o vaqueiro e saíram dando no homem de
facão. Lembrava-se bem dos gritos. Ficara em casa, sozinho, com dez anos. Agora tinham entrado em
sua propriedade e metido o cipó de boi na família inteira. Josefina estava de cara cortada e o outro
perdera muito sangue. Tudo por causa de Aparício. Já fora filho de cangaceiro. Agora era pai.
Perseguição da polícia não pararia mais no Araticum. Tudo que era tropa teria que tirar a sua
diferença na gente do Araticum porque Aparício matara um praça e era do grupo de cangaceiros. Ali,
naquele raso de caatinga, por onde ele ia passando, comia gado. Via o ferro. Era o G grande do
coronel Zé Gomes. Bem que ele podia se valer do coronel Zé Gomes do Araçá. Mas não ia. Já estava
de rota batida para Dores. Lá ele encontraria um que lhe desse razão. O velame entupia de verde a
lagoa seca. E Bentão cheirando a caatinga. Cheirava tudo com a primeira floração do ano. O manacá,
o velame, as imburanas. Naquele momento não havia flor do sertão que não cheirasse de aborrecer.
Com o sol queimando, parou debaixo de uma caraibeira, que parecia um pau-d’arco de serra. O
bicho estava todo coberto de flor amarela. O chão amarelo. Bentão afrouxou os arreios do animal,
tirou os alforjes e começou a comer a sua carne de sol com farinha. Domício era um menino bom, e
Deodato o mais caprichoso de todos. Aparício era o avô cagado e cuspido. E havia aquele mais
moço, aquele não era deles. Viera de fora. A mãe dera ao povo do Açu para criar. Não era filho
dele. Não se parecia com a gente do Araticum. Podia ter morrido na retirada de quatro. O velho se
estendeu na sombra da árvore e aspirou forte o ar da caatinga abrasada. O sol estava forte. As
primeiras pancadas d’água serviram somente para enverdecer o pasto, encher de flor, de ramos os
matos. O gado comia, enchia a barriga. Tudo muito bem, se não fosse a desgraça de Aparício. Pai de
cangaceiro não parava mais de sofrer. Preparou outra vez o cavalo, acendeu o cigarro e saiu de
caatinga afora. Encontraria em Dores um cristão que ouvisse a sua história. E em Dores procurou o
capitão Antônio, o escrivão do lugar. Contou a história do filho. O menino viera preso e era inocente,
tão inocente quanto ele. Que culpa tinha a família com a morte que Aparício fizera? O capitão ouviu
tudo calado. Depois falou:
— Seu Bento, o seu menino é inocente, eu acredito. Mas o sargento foi fazer uma diligência, foi
com vontade de agarrar o assassino do soldado melhor que ele tinha aqui. E só podia chegar na sua
casa como chegou. Não tendo encontrado o criminoso, se enfureceu. E o senhor bem sabe o que é um
praça com raiva. O seu filho chegou aqui ontem, não foi? Agora, seu Bento, o que o senhor precisa é
se alistar. Botar esses meninos no alistamento. Se o senhor fosse meu eleitor, não sucedia uma coisa
dessas. Logo que eu soubesse que o sargento ia fazer essa diligência, dizia logo ao homem: “Tenham
cuidado, tenho lá na Pedra gente boa.” É verdade que as suas terras ficam no município de Açu. Mas
isso não quer dizer nada não, e o senhor deve se alistar com os seus meninos aqui comigo.
Bentão ouviu o homem como se fosse um rei falando.
— O senhor voltará com ele. Gente minha não sofre em Dores. Vou agora mesmo falar com o
sargento e tudo se acaba. Gente que vota comigo não sofre. Veja se o senhor pode mandar um recado
para o seu filho Aparício, eu arranjo tudo no júri. É para isto que servem os amigos.

5
QUANDO BENTÃO apareceu com Domício era noite alta. A velha Josefina chorou de alegria. E Bento
abraçou-se com o irmão, como se ele estivesse há um ano fora de casa. Ficaram os dois no quarto, a
princípio calados. Depois Domício falou:
— Bentinho, vamos lá para fora. A lua está muito bonita. Pularam pela janela. E Domício contou
a sua história:
— Tu nem queira saber, Bentinho, o que eu aguentei. Os soldados foram falando em me matar até
dentro de Dores. Atravessei esta caatinga toda pensando na morte. Muitas vezes tive até vontade que
aqueles pestes me atirassem, me deixassem na terra para os urubus me comer. Era melhor que o que
eles foram fazendo. Que culpa tinha eu pela morte feita por Aparício? Passamos por perto da fazenda
do coronel Zé Gomes. O sargento queria ir lá fazer um serviço. O coronel está de baixo, na política.
Ouvi o sargento dizendo que tinha um serviço pra fazer no Araçá. Parece que ele desconfia que o
velho é coiteiro deste tal de Deodato. Aparício está é com este cabra. Fiquei pensando em Aparício.
Se ele chegasse com o bando dele, não ficava nenhum vivo daqueles soldados. Nunca tive vontade de
ser cangaceiro, mas agora eu tenho. Tu não avalia, Bentinho, o que foi que eu passei. Dois dias e
duas noites no meio dos pobres. Menino, fedia que tu não calcula. A gente fazia as precisão ali
mesmo, num balde. Depois o sargento me levou pra o interrogatório com o delegado. Eles queriam
saber onde estava Aparício. Chegou-me vontade de inventar uma coisa, para me ver livre daquilo.
Quis até dizer que Aparício estava na fazenda do coronel Zé Gomes. Mas não tive coragem. Eu não
sabia nada. O delegado mandou então que eu voltasse pra cadeia. Sabe quem estava lá, na cadeia?
Aquele Dioclécio de que tu me falou! Prenderam ele na fazenda de um coiteiro. Ele me contou coisas
dos diabos, Bentinho, tu nem pode imaginar. E tocou viola. Aquilo, sim, que é um tocar. Havia um
preso de Vila Bela que disse à gente que cantar como Dioclécio só mesmo o velho Romano. O
homem me contou tanta história deste mundo, que me deu até vontade de me danar por aí afora. Ele
saiu livre comigo no mesmo dia. Ficou em Dores, porque ia pegar a feira no sábado, procurar tirar
dinheiro pra mudar de terra. Chamei ele pra vim comigo aqui pra o Araticum. E ele me falou franco.
Em casa de família de cangaceiro não metia os pés. Família de cangaceiro paga por tudo, fica bode
expiatório de tudo que o filho faz. Na cadeia me contaram coisas medonhas. Lá estava um doido, um
sujeito que tu falando com ele não dizia que era doido. Pois o homem só falava de coisa certa. Mas
tempo de lua amarravam ele. Os presos não podiam dormir pensando no doido. Felizmente nos dois
dias que passei lá ele não fez nada. Só queria era conversar, saber de tudo. Não sei não. Mas eu
tenho pra mim que aquele homem tem é culpa escondida. Bentinho, tu não deve mais sair do
Araticum. Sem tu aqui, eu me dano no mundo. Quando o homem me disse que eu estava livre, eu quis
ficar com Dioclécio. Ele tocava viola, eu tocava também, a gente cantava e se ia por esse mundo
como Deus quisesse. Me lembrei de ti. Só não fui por tua causa.
E calaram-se os dois. A lua ia se sumindo, e com pouco mais começaria a clarear a madrugada.
O velame cheirava atrás de casa, e as folhas das oiticicas gemiam alto com o vento.
— Vamos dormir, Bentinho!
No outro dia Domício entrou no serviço como sempre.
— Bentinho, vai preparar o teu cavalo. Vamos dar uma olhada no pasto.
Era a primeira vez que Domício chamava o irmão para o serviço. O velho Bentão já estava de
rede quando os dois saíram. Domício todo encourado e Bento de botas. Era de manhãzinha. Domício
levava o bode no alforje, porque só voltariam de noite. Já estavam longe da casa, no meio da
caatinga.
— Vamos entrar por aqui — disse Domício. — Lá pra baixo fica um raso, onde o gado deve
estar comendo.
E entraram de mato adentro.
— Cuidado com o rasga-beiço, baixa a tua cabeça.
E foram entrando. Mais para diante ouviram um rumor de vozes. Aproximaram-se. Aí ouviram
um grito conhecido. Um chamado pelo nome deles. Era Aparício. No espojeiro com o grupo. Os
cangaceiros espichados por debaixo do imbuzeiro. Levantaram-se de repente de rifle na mão, quando
viram eles chegando a cavalo. Aparício falou para o chefe. Eram os seus irmãos. E foram para um
canto. O irmão cangaceiro queria saber de tudo que se tinha passado. Domício contou tudo. A Surra
no pai, na mãe, a prisão dele, as lapadas na cara de Bentinho. Aparício ouviu tudo calado.
— A gente tem que dar um jeito nesse sargento — falou ele para Domício. — Eu não te chamo
pra isto porque tu não tem jeito mesmo. Senão te chamava. A gente só pode se vingar do que ele fez
com o pai e mãe no cangaço.
E foram andando mais para longe. Os pássaros cantavam bem perto dos cangaceiros. A caatinga
inteira ouvia-os. Voavam periquitos em bando e de quando em quando um grito de alarma enchia o
acampamento. Era uma seriema que dava as horas como os jumentos.
— A vida no grupo é ruim — continuava Aparício. — A gente come fogo. Tu não sabe o que é
passar quinze dias por aqui, comendo carne-seca com farinha. Se não fosse os imbus, eu nem sei
como se vivia. Tive até vontade de ir me entregar em Dores. Mas pensei. Eles me matavam. Pra
morrer, eu morro no cangaço. A vida é danada, Domício, mas a gente aguenta. Outro dia nós demo
um fogo pra lá da Vila Bela. Morreu dois dos nossos. A tropa era grande. Tivemo que correr cinco
dias e cinco noites sem parar. Comendo e bebendo sem parar um minuto. Nesta carreira viemo parar
aqui. Nós vimo há uns oito dias quando a tropa passou pra o Araticum. O chefe não quis atacar. Nós
estava no descanso. Nós tivemo a notícia por um coiteiro que mandou dizer. Mas não tem nada não.
O sargento de Dores vem por estes dias na fazenda do coronel Zé Gomes. O chefe já teve notícia
dessa diligência. O coronel é amigo do chefe. Vai ser uma carniça dos diabos. O chefe já tem um
vigia no caminho para prevenir a passagem da tropa. E nós vamos nos entrincheirar nos lajedos lá em
cima. Tu vai saber da desgraça.
Os cangaceiros falavam alto, na jogatina. Aparício mandou os irmãos embora. Domício e Bento
saíram impressionados.
— Tu ouviste, Bentinho! Coitado de Aparício. Com pouco mais fica aí de dente arreganhado
para o sol. Morre num tiroteio e se acaba de uma vez. Vida desgraçada é essa de sertanejo!
Foram andando. E num raso de caatinga encontraram o gadinho de Bentão comendo. Eram uns
dez garrotes. Estavam gordos, de rego aberto.
— O velho deve vender essas reses logo. Tu não ouviste Aparício dizer que vão botar tocaia na
tropa? Pois fica certo. Vão cair em cima da gente depois do caso.
Debaixo de uma catingueira se apearam. O raso da caatinga tinha pasto para uma boiada.
Soprava um ventinho bom. Domício tirou o alforje, fez fogo e assou no espeto de pau a carne-seca
para ele e Bentinho.
— Coitado de Aparício — disse ele. — Não diz à mãe que a gente esteve com ele. Pra que fazer
a velha sofrer mais?
A caatinga cheirava por todos os paus.
— Nunca vi tanto pasto, Bentinho. A chuva foi de três dias e tudo está assim. Mas a gente não vai
pra diante. A gente fica toda vida com o Araticum naquela miséria. Não se pode ter nem um
vaqueiro. É a história da Pedra em cima da gente. Sangue de Judas, Bentinho. Isso não passa mais.
Bento achava que não. Não acreditava naquilo.
— Tu acredita, Bentinho. Não quer é dizer. Mas tu acredita.
De fato, Bento parecia que acreditava. Ouvira no Açu todo o mundo falando, todo o mundo
botando para a Pedra Bonita a razão das desgraças da vila. O grande segredo era aquele. Quantas
vezes não se apavoraram com as referências ao seu povo! Agora estava ele sabendo de tudo. No Açu
era a Pedra que respondia pelas desgraças. Na Pedra era a gente dele que trazia consigo o estigma
tremendo. Sangue de Judas. Saíra de uma família que dera o vendedor do Filho de Deus. Não podia
ser verdade. O padre Amâncio falava das superstições. A verdade estava na igreja. O mais era
heresia, pecado contra o Espírito Santo. Toda aquela gente da Pedra vivia no pecado monstruoso, na
mais baixa ignorância. Domício acreditava naquilo como acreditava na cabocla encantada. Ele, que
se criara por fora, não tinha o direito de se nivelar com os seus, de se entregar ao que ele sabia
errado, uma fraqueza. Devia então estar reagindo contra as crendices do irmão. E assim Bento fazia
todos os seus cálculos, tomava as suas providências. Em casa a vida marchava no mesmo passo.
Bentão cada vez mais calado. Domício esperando a cada instante a desgraça dos cangaceiros com a
tropa, e a mãe doida para que o filho mais moço voltasse para junto do padre, que saísse dali quanto
antes. Ela sabia que não teriam mais descanso com a vida que Aparício escolhera. Por qualquer
coisa a força da polícia estaria batendo em casa, fazendo absurdos.
Uma noite, sentiram a casa com gente por fora. Ouviram então a voz do filho. Era o grupo de
Aparício que vinha de rota batida para o Araçá. Sinhá Josefina levantou-se para fazer café para os
homens. Apesar de ver o filho no meio deles, teve medo daquela gente. Infeliz do filho que se metia
naquela vida. Os cabras beberam café, conversaram muito, sentados pelo copiar, e o velho Bentão
palestrou com o chefe.
— Ah! capitão — dizia o cangaceiro —, o seu filho é macho de verdade. Rifle na mão dele
vadeia como um brinquedo. No tiroteio da Vila Bela o rapaz atirou de enjoar.
Aparício lá para dentro conversava com a mãe, que se maldizia da vida:
— Tu não pode encontrar outro jeito de vida, menino? Olha o destino de teu avô.
Aparício se ria com a velha. Tinha que ser. Tudo já estava traçado lá em cima.
E lá para a madrugada saíram. As alpercatas tiniram no barro duro. Bento e Domício ficaram
com pena do irmão. Os cabras nem pareciam ter a vida no risco que tinham. Bebiam café no
descanso, no deboche uns com os outros. Domício disse para Bento:
— É o que eu te dizia, eles vão botar tocaia no sargento Venâncio. Tu vai vê é a notícia.
E ficaram acordados o resto da madrugada.
— Bentinho, nós devemos é voltar pra falar com o velho Zé Pedro.
— Falar o quê? Domício, aquele velho vive como doido, dando tudo que é invenção do povo
como verdade.
— Bentinho, tu acredita também.
E assim ficaram dias. Bento nas suas cogitações. Domício no serviço, dando conta de suas
obrigações, pouco falando da Pedra. Estavam na expectativa da tocaia no sargento Venâncio. E o
Araticum todo verde. Chuvas de bom inverno tinham caído. A caatinga firmara a rama e o gado
andava gordo. Bentão na rede cismava. O dia inteiro ali sem dar sinal de vida. Só o bode merecia os
seus cuidados. Só ele fazia com que o velho se levantasse para lhe dar a ração de milho. Ou então
mudar a água do caco onde o bicho bebia. Corresse o mundo no seu eixo, andassem os cangaceiros
pelos serrotes, pelas caatingas, passassem as volantes, Bentão não se alterava. A mulher achava
aquilo uma doença, uma moléstia do marido. Todo homem no sertão tinha as suas coisas para dar
conta. O seu era naquele cismar desde que se casara.
Agora Bento também tocava viola. Não fora difícil aprender. Nas noites de lua Domício
ensinava o irmão:
— Tu precisa é de sentir a música bulindo dentro. A gente fica com ela no corpo, até que ela sai.
O verso também sai. É só a gente ter coração para a coisa.
E Bento pegava no instrumento e ia até tarde no aprendizado. Domício fazia verso, inventava.
Inventava histórias. Lá vinha ele com as suas histórias, os incidentes com os cangaceiros, com os
soldados. Tudo com a doçura de amor.
— Dioclécio, Bentinho, canta como nunca eu vi ninguém — dizia Domício. — Lá na cadeia ouvi
o bicho pinicar a viola e deitar o peito no mundo. Vi um preso chorando, um ladrão de cavalo.
Ladrão de cavalo é bicho duro de chorar. É gente ruim de verdade. Pois o cabra chorou com a
história do amarelo. Tu me tinha falado de Dioclécio, e eu pensei que fosse coisa de menino. Não é
não. O bicho é cantador de verdade. Aquele cargueiro que toca ali nas oiticicas, aquele cabra, se
vivesse no mundo como Dioclécio, ia dar muito muito. Cantador precisa de andar, de correr terra,
saber de coisas. Eu aqui no Araticum não dou mais pra nada. Aprendi com os passarinhos. Ah!
Bentinho, tu não sabe o que é a gente estar sozinho na caatinga, ficar debaixo de um pé de imbuzeiro,
na fresca, e ouvir um bicho deste abrir o bico no mundo. Só mesmo coisa de Deus. Aquilo vai dentro.
Tu nunca ouviste uma juriti pela boca da noite cantando. Dá nó na garganta. Eu posso dizer que
aprendi com os passarinhos. Quando o bichinho para e a gente vem andando de caminho afora, a
coisa fica no ouvido, fica guardada dentro da gente. Depois o cantador pega da viola, manda os
dedos nas cordas e canta, Bentinho. Muita vez eu estava no corte de facheiro pra o gado. A seca está
solta no mundo. O sertão pegando fogo. E eu de foice na mão pra o serviço. O céu é uma cor só, azul,
azul que não se acaba mais. Eu paro. Fico pra um lado olhando as coisas. Tudo parado, os gravetos,
tudo seco. Pois, menino, aí me vem uma vontade de pegar da viola e tocar. Você chega escutar os
gravetos se partindo, estalando, como um bordão espichado. Vem uma vontade danada de cantar.
Tudo aquilo pega a gente de jeito. Cantador só precisa é de andar. Dioclécio é um baita por isto. Só
não me danei com ele, eu te digo, foi por tua causa. Pois não é que estou com a cisma de que não
posso mais te deixar ir embora?
Domício parava e Bento mudava de conversa. Domício no Araticum valia para o irmão mais
moço por tudo e por todos. Havia a mãe, mas Bento não sabia por que sentia por ela um amor como
se fosse uma coisa passada, finda. No irmão vivia tudo que ele mais amava. E tinha pena de deixá-lo,
de ir para o Açu e abandonar Domício só no Araticum. Quem o pegaria nas noites em que ele ouvia a
cabocla cantando?
— Bentinho — lhe disse uma tarde Domício —, tu ainda não foste a uma festa aqui na Pedra.
Pois eu, antes de tu chegar aqui, vivia de festas. Mãe se queixava, dizendo, brincando, que eu só dava
mesmo pra festeiro. Não era por isto não. Lá eu entrava e o povo me cercava logo pra ouvir. E é
bom, Bentinho, vê gente atrás de nós pra ouvir. Ia mais pra isto. Não tinha fogo pra as outras coisas.
Nunca tive vontade numa mulher, numa moça.
Bento quis desviar a conversa, mas Domício insistiu:
— Tu já tiveste?
O outro se calou.
— Menino, eu nada disto sei dizer. A outro eu não falava, mas a ti eu digo. Eu não sei que gosto
tem esse bicho de mulher. Eu vi Aparício se pegando nas danças, andar por aí atrás das outras, contar
história de namoro. E eu nada. Pensei que fosse doença, e quem sabe se não é? Cantador assim como
eu, Bentinho, é mesmo que novilho capado. Tenho desgosto.
A voz de Domício era de quem falava para se confessar:
— Desgosto eu tenho, pra que negar? Antes de tu chegar aqui, mãe me disse uma vez: “Domício,
tu não te casa? Estou ficando velha, e aqui em casa a gente precisa de um adjutório.” Me ri para ela.
Me ri pra esconder o desgosto. Nunca tive vontade disso. Aquele velho Zé Pedro da Pedra, também
falam dele. Eu sei que falam de mim. Podem me chamar de festeiro, mas nas vaquejadas eles nunca
me passaram a perna. Mas só vou a festa pra tocar. As moças no começo se danaram. Hoje não. Nem
fazem caso de mim. E eu até gostei.
A confissão de Domício era triste. Bento ouviu o irmão compungido. Pobre dele que nem aquilo
tinha para viver no Araticum. Seria que ele também fosse assim como Domício? Lembrava-se que
nunca tivera namoro no Açu. Criado de padre. Todos falavam que ele iria para o seminário, e havia
um certo respeito por parte das meninas para ele. Nunca tivera como os outros do Açu aventuras pela
rua da Palha. Lembrava-se de d. Fausta e daquela tarde em que ela o pegara com uma fome canina.
Lembrava-se que sentira uma coisa boa, um frenesi que lhe fora da cabeça aos pés. Ficara com medo.
E nos seus sonhos com a mulher do Dioclécio, aquela de cabelos compridos, ele se sentia dono de
tudo que era dela. E só. Domício, com mais oito anos do que ele, confessava, se abria naquele
sentido com uma voz tocada de vergonha. E Domício, que era mais forte, que derrubava bois, que
corria pela caatinga, cortando por cima dos xiquexiques, furando ramadas de rasga-beiços; o irmão,
que gritara para o sargento Venâncio, lhe confessava aquela fraqueza medonha. Então Bento pensou
na maldição da Pedra Bonita. Seria mesmo o destino dos seus extinguir-se, levar o diabo? O velho
Zé Pedro falava de uma virgem que aparecesse para ser comida por um novo Filho de Deus. Teria
que aparecer um novo santo na Pedra, teria que aparecer uma criatura da família Vieira, que desse o
corpo e a alma para o santo purificar. Tudo aquilo não passava de superstição, de ignorância do seu
povo. Via o velho Bentão com o rosário no peito cabeludo. Domício e Aparício não deixavam os
seus rosários. Todos acreditavam em Deus, pediam a Deus, exigiam de Deus o bom inverno e a boa
sorte. Sua mãe rezava como as outras mulheres do Açu. Domício rezava antes de dormir com ele.
Aparício devia rezar também nas caatingas, por baixo dos imbuzeiros. Deus existia para todos. Era
uma força de cima, que dava de bom e de ruim. Eles do Araticum tinham a sua sina. Domício botava
tudo para o caso da Pedra, e daquilo ninguém o tirava. Bento lhe dizia que não. Todos precisavam
fugir das heresias, das superstições, dos erros.
E assim iam. Domício no serviço, Bento acompanhando o irmão. Bentão no copiar, de rede, com
o seu bode de lado, como se fosse um filho mais moço. E a vida no Araticum pacífica, doce, com as
vacas dando leite, o milho crescendo no roçado e o gado gordo. Tudo muito bem. Há três meses que
Bento chegara ali e nada de aparecer notícias do padre Amâncio. Ele mesmo muitas vezes desejava
voltar. Afinal de contas nada tinha que fazer por ali. O seu lugar era mesmo na igreja do Açu, ligado
com as coisas de Deus, com o seu padrinho, com a negra Maximina. Sentia falta do Açu. Há três
meses que estava na Pedra e vira muito e soubera muito. Lembrava-se de Domício e esfriava nos
seus desejos. Tinha o irmão, que era uma coisa nova para ele. Aquele irmão forte, corajoso, sem
medo da morte e tremendo de noite por causa de um canto de uma cabocla que não existia. Domício
que derrubava bois na caatinga, que furava os espinheiros brabos, com medo da cabocla nua que
chamava os vaqueiros para o fundo da terra. Como ficaria Domício sem ele? Aparício se fora.
Apesar de tudo, ele era dentro de casa uma força, um encosto para os outros. Domício ficaria
sozinho, e quem sabe se não iria atrás dos cantos da cabocla nua, não se perderia para sempre? Mas
tinha que ir para o Açu. O pai não gostava dele. Estava ali há três meses, e nem uma palavra o velho
lhe dissera. Via-o com ódio, com raiva, naquela rede com o bode ao lado. Um homem infeliz. Pobre
da mãe, que vivia quase sozinha naquela casa. E Bento ficava pensando nestas coisas, sentado no
alpendre, do lado oposto ao velho. As abelhas zuniam na boca do cortiço. Dizia Domício que elas
estavam com os favos cheios, com a obra do ano terminada. Quando Deodato estava ali, sabia fazer
os serviços dos cortiços. Agora o velho Bentão entregava à mulher aquele trabalho. Ali no Araticum
não havia assalariado. Só a família. Mesmo ninguém queria tomar terras por ali. Havia água, havia a
serra verde. Mas o povo não queria saber das terras dos Vieiras. Era uma raça marcada por uma
desgraça qualquer. Se ele ficasse, pensava Bento, podia ajudar a Domício. Ser uma força a mais no
Araticum. Tinha idade e aprendia as coisas com toda a facilidade. Seria útil aos seus, à sua gente.
Vinham-lhe, porém, as saudades do Açu. De manhã com a madrugada os toques de sino, as chamadas
para a missa. A importância que havia adquirido na vila. Seria sacristão, mandando na igreja,
ajudando missa, sabendo latim, alguma coisa acima de multa gente. Ali no Araticum havia Domício.
E o irmão tomava conta de suas preocupações. Domício acreditava na Pedra e no destino infeliz de
sua gente. Domício não amava, não tinha forças para o amor. Ali do alpendre, onde estava, Bento
ouvia o pai dormindo. E a paz do Araticum era imensa. Agora com a tarde escutava, vindo da
caatinga, o aboio distante de Domício. O aboio para o gado, mas era tão triste que parecia que era
para um ente querido. Aparício no bando, nos lajedos, esperando a hora do fogo. Bentão roncando. E
a mãe na mão de pilão. E Domício atrás do gado, com aquele canto que era como se fosse para
adormecer um amor.
6

AÍ SE DEU O TIROTEIO dos lajedos do Araçá. A volante comandada pelo sargento Venâncio ia de rota
batida para a fazenda do coronel Zé Gomes, quando caíra na emboscada, numa garganta da serra. O
tiroteio durou pouco. Com umas duas horas tudo estava acabado. O sargento e dez praças estendidos.
Encontraram os corpos mutilados. A cabeça do comandante espatifada com os miolos em cima da
terra. A notícia correu pela Pedra com pavor. No Araticum vieram a saber um dia depois.
Domício chamou Bento.
— A gente vai sofrer, Bentinho. O melhor é tu deixar o Araticum e ir pra o Açu. Eu me dano no
mundo. Só com os velhos eles não fazem nada de mais. A volante nova vem por aí e vai ser uma
desgraça.
Bento não acreditava. Eles nada tinham que ver com aquilo.
— Tu vai ver, Bentinho.
A velha ficou aflita. Não teria acontecido nada a Aparício? Não tinha morrido cangaceiro
nenhum no encontro.
E começaram a correr as notícias de uma volante que vinha surrando, botando tudo para correr.
Apareceram os aguardenteiros para o pouso debaixo das oiticicas. E disseram que era o tenente
Maurício que vinha com poderes para agir em todo o sertão. Ele mandava em tudo, não respeitava
chefe político, não havia juiz, delegado, nada que tivesse força para se opor ao tenente Maurício. A
tropa que ele comandava tinha entrado na fazenda dos Jardins de Garanhuns e prendido um criminoso
sem dar satisfações.
— Menino — disse o aguardenteiro —, Aparício está metido nisso. Eu, se fosse vocês, caía no
mato. O tenente Maurício vem por aí como o batalhão do 14, do quebra-quilos, arrasando tudo.
Domício e Bento voltaram para casa assustados.
— Eu não te dizia, Bentinho, só há mesmo um jeito: é a gente ir para o mato. Com os velhos não
é possível que a volante faça nada. Vamos subir para a serra. Eu sei de um lugar que não há
rastejador que descubra.
E se prepararam para a viagem. Domício tomou todas as providências. Arranjou um bode para
muitos dias, enchendo os alforjes com carne-seca e farinha. E Bento foi falar com a mãe. A velha deu
para chorar. A sina deles agora era aquela. Não teriam mais descanso. Tinham que pagar por
Aparício. Com pouco Domício estava com tudo preparado. Falou com Bentão, que achou boa a
retirada. A volante devia vir com o diabo dentro para vingar os soldados mortos. E de tarde saíram.
Foram mesmo a pé. Domício achava perigoso. Seria mais fácil para os rastejadores pisada de
animal. E saíram. Domício com os alforjes nas costas, a viola, e Bento com os cobertores enrolados,
como faziam os soldados.
— Bentinho — foi dizendo Domício —, eu bem que te dizia outro dia. A vida da gente agora
nesse Araticum vai ser nesse rojão. Tu não sabe o que tenente Lucena fez com o pessoal do Zé do
Vale do Pão de Açúcar. Cercou a casa. Lá dentro estava o homem criminoso. Pai, mãe, irmão, tudo
ficou de papo pro ar. Matou a raça toda. Este tenente Maurício é do mesmo calibre. Quando um
homem deste sai com o fim de acabar cangaceiros, sai assim matando, dando, sem escolher.
Já era de noite quando atingiram a serra do Araticum.
— Vamos lá para as bandas das furnas — disse Domício. — Eu sei de uma loca que ninguém
adivinha onde é.
Subiram para um lado e depois foram descendo. Lá para meia-noite Domício parou.
— Vamos nos agasalhar aqui mesmo.
Estenderam as redes no chão. A gritaria dos bichos da noite era enorme. Era o zumbido de tudo
que era grilo ou coisa parecida. Bento não pôde dormir. Domício se mexia.
— Isso é assim no primeiro dia. Depois a gente tem que se acostumar.
De madrugada a mata foi recebendo o sol, como um hóspede muito esperado. Havia árvores
cobertas de flores, outras pingando orvalho. E o sol foi chegando devagar, beijando uma, cobrindo
outra. Por fim era dono de tudo. Domício fez fogo por debaixo de um pé de cedro e preparou café
para beber com rapadura. Estava triste.
— Tu não dormiste nada, Bentinho. Eu também não. Fiquei pensando nos velhos, imaginando que
o tenente é bem capaz de fazer uma desgraça neles. O infeliz vem seco em cima da gente. Não
encontra e mete o cipó de boi nos pobres pra descobrir. Não sei não. Mas até fico pensando que
Deus não protege a gente não. Sangue de Judas, Bentinho.
— Qual nada, Domício! Tudo isso passa, e a gente volta para o Araticum. O tenente deve ser um
homem como os outros.
No entanto Bento sabia que a coisa devia ser como o irmão estava pensando. Ele bem que se
lembrava do tenente Maurício naquela fazenda onde ele estivera com o padre Amâncio. O homem
não respeitou ninguém. Mandou dar no vaqueiro e até nas negras da cozinha. Mas nada podiam fazer.
Tinha que ser como fosse. E o dia correu assim mesmo. Domício e Bento andando pela mata,
escutando, espreitando ansiosos para saber do que haveria lá por baixo. Entraram na noite. E
dormiram com a mesma ansiedade, sem um sono pesado que os acalmasse. Bento começou a pensar
na vida. Teriam que levar dias seguidos assim, sem saber de nada, fugindo do mundo como dois
criminosos, dois perigos, dois monstros? O que teria acontecido com os velhos? A serra era aquilo
que se via. Domício trepando para ver se encontrava araticum maduro. Uma tarde ouviram rumor de
vozes como se fosse de gente próxima.
— Não é aqui por perto não — disse Domício. — Isso é gente que vai passando lá pelo alto. É
capaz de ser a volante à procura de nós. Mas não há rastejador que pegue a gente. Os bichos são
danados na caatinga. Aqui por cima não dão pra nada.
Depois sumiram-se os rumores do mundo. Tudo que havia no mundo por ali eram aquelas vozes
que passaram de longe. Três dias já estavam naquela vida. Domício se lembrou que podiam fazer um
reconhecimento. Foram andando mais para o lado da propriedade do pai. Era de noite. Tudo escuro.
Foram andando. Tinham já perdido o medo.
— Bentinho, vamos sair bem em cima da casa. A gente está descendo por onde nunca ninguém
andou.
De fato a mataria rasteira era grande. Não havia vereda nenhuma.
— A gente vai cair em cima das vertentes.
E com pouco o Araticum estava pertinho. A madrugada clareava. Chegaram-se mais para perto e
não havia sinal de gente na casa. As portas abertas, as janelas abertas. Que negócio era aquele?
Domício falou para Bentinho, espantado:
— Terá gente lá dentro?
Foram se chegando, Bento e Domício já estavam dentro da casa. Tudo quebrado, tudo virado de
papo para o ar. O que havia lá dentro estava em pedaços. Os cortiços no chão, cortados de foice,
com as abelhas zunindo sem saber para onde ir. Tudo arrebentado.
— Sabe o que foi isso, Bentinho? Foi a volante. Eles levaram os velhos pra a cadeia de Dores ou
pra a cadeia do Açu. Deram nos velhos, quebraram eles de pau e estão com os pobres na cadeia. Tu
está vendo a coisa como é. Não puderam pegar a gente e se vingaram nas coisas.
No silêncio da madrugada o Araticum era aquilo que se via. Domício acendeu uma lamparina. E
foram, de canto em canto, vendo o estrago. Na casa de farinha o machado caíra em cima das peças, o
forno espatifado, o cocho de espremer massa reduzido a pedaços. Uma desgraça completa.
— Vamos deixar clarear, Bentinho. A gente se agasalha ali na caatinga por debaixo de um
imbuzeiro qualquer. De manhãzinha a gente volta pra ver direito. Vida de sertanejo é esta que tu está
vendo. Quando não é cangaceiro, é a volante fazendo essa desgraça que tu está vendo.
E ficaram pensando nos velhos. Domício imaginou a caminhada dos dois pobres pela caatinga.
Teriam andado léguas a pé com os soldados castigando. De manhã a impressão que tiveram do
Araticum foi ainda pior. O curral das vacas com as manjedouras, com o cocho dos animais beber
água destruídos. E as vacas soltas pela caatinga. Ouviram o berreiro dos animais. Vinham de longe,
de pescoço caído. Teriam andado sem rumo atrás de qualquer coisa que lhes faltava.
— Bentinho, a gente não pode mais ficar por aqui. É capaz de haver vigia tomando conta da
estrada.
Nisto ouviram um grito de cargueiro. Era uma tropa de aguardenteiros que vinham para as
oiticicas. Eles deviam saber de qualquer coisa. Era o velho Zé Joaquim, conhecido de Bentão. Foram
falar com ele. E o velho espantou-se de vê-los ali.
— Meninos, vocês estão por aqui? A volante passou por aí afora como pé de vento, levando tudo
de rojão. Soube que Bentão e a mulher estiveram na cadeia do Açu. O governo está dizendo que
cangaceiro tem que acabar. E o tenente não respeita nem mesmo Nosso Senhor, se aparecesse por aí
como coiteiro. Aparício está no bando de Deodato, não é verdade? Pois não vai haver mais descanso
neste Araticum. É cortar até o fim.
Domício conversou com os homens e chamou Bento.
— Tu ouviste o que o velho disse? É assim mesmo. Eu vou vaquejar o gadinho do velho, ajuntar
o que resta dele e entregar na fazenda do capitão Hilário. Pai não gosta dele, mas é o jeito. Isto assim
como está é que não pode ficar. Os cavalos a volante levou.
Domício saiu e Bento ficou só no Araticum. Viu o irmão se sumir na estrada e os aguardenteiros
levantaram acampamento para viagens de dias. Teve vontade de ir com eles. Queria se perder nos
lugares muito distantes. Tudo aquilo, aquelas noites na mata, o medo da volante, a desgraça dos pais
lhe deram um desejo de ser de outra terra, de outra raça, de outros campos. Domício... Lembrou-se
do irmão. Como ele era diferente de toda aquela gente! Diferente do padre Amâncio, da negra
Maximina, da mãe, de tudo que ele Bento amava. A velha só queria que ele fosse outro, bem
diferente dos irmãos e do pai, um ser à parte da família, acima dos seus. Domício era aquilo que ele
via. Um grande em tudo. E, no entanto, padecendo, corrido, um ente perigoso para a volante que
queria o pobre para meter-lhe o cipó de boi, levá-lo para a cadeia, misturá-lo com a gente de lá, com
os ladrões de cavalo, com os criminosos de morte. O Araticum estava só. E Bento foi olhando e lá de
cima da vertente ele viu um vulto escuro, como se fosse um homem assentado. Olhou mais
atentamente e viu o bicho andando. Vinha andando, descendo, se chegando para perto. Era o bode de
Bentão. O bode velho que se chegava para o alpendre, onde o velho lhe dava de comer, desde
pequeno. Já teria vindo mais de uma vez e estaria surpreso em não encontrar a mão que lhe dava o
milho, lhe dava a água para beber. E berrou no silêncio do Araticum. Foi triste para Bento ouvir
aquilo. Era o amor de seu pai. Todo o encanto do velho. Aproximou-se do bode. E o bicho fugiu
arisco. Bento foi ver se encontrava uma espiga de milho. Trouxe-a e debulhou. No começo ele
repugnou. Vinha comendo desde cabrito nas mãos de Bentão. Mas a fome era maior que o hábito. E
ele comeu o milho. Bento trouxe água no caco, e ele bebeu. Depois saiu, olhou as coisas e foi
devagar deitar-se ali no alpendre, onde o velho ficava na rede, alisando-o, fazendo as suas carícias
de pai bondoso. Olhando aquilo, Bento ainda mais se entristeceu. O Araticum estava no fim. Os
Vieiras no fim. A raça perdida. As terras dos pais eram boas, tinha ali nascentes que só secavam nos
anos de seca grande. A terra dava tudo. Todo o mundo invejava a riqueza do Araticum, e estavam
assim como o chefe da família deitado na rede, pensando em coisas que ninguém sabia o que eram,
alisando um bode, com um filho no cangaço, o outro filho perseguido, obrigado a ganhar o mundo. O
Araticum estava no fim. O silêncio era enorme. Só os pássaros cantavam. Bento reparou nas oiticicas
grandes, de galhos gigantes, dando sombra aos cargueiros. Reparou em tudo que para ele se acabava
de uma vez para sempre. Os velhos não resistiriam por mais tempo e as volantes não deixariam
Domício tomar pé na vida. Aparício em breve entregaria a alma para o diabo. Tudo se acabava no
Araticum. Ali, das oiticicas, Bento via a casa que fora dos antigos. A família estava reduzida a cinco
pessoas. Nem um empregado, nem um vaqueiro os Vieiras podiam ter. Eram eles sozinhos no
Araticum. E por fim tudo se acabaria, tudo se findaria. Daquela casa saíra um Vieira há quase cem
anos para trair o santo da Pedra Bonita. Acreditar naquilo era uma tolice sem nome. Teria que ser
assim pela vontade de Deus. Soprava um vento bom no Araticum. O sol ardia. Debaixo das oiticicas,
na fresca boa, tinha vontade de espichar o corpo. E deitou-se uns minutos. Depois começou a ouvir o
berro do bode. Levantou-se para ver. O bicho rodava pelo alpendre, como se estivesse atrás de
alguma coisa. Faltava-lhe qualquer coisa. Era uma saudade de gente que fazia aquele animal
reclamar daquele jeito. Bento ficou mais triste ainda. Que era de Domício que não chegava? E ele
estava com medo de ficar só ali, naquele isolamento. Entrava e saía na igreja do Açu sem medo.
Poucas vezes tivera pavor ou medo de se sentir só no meio dos santos, com aquele caixão de defunto
no meio da sacristia. Mas agora sentia medo. O berro do bode era um lamento, uma tristeza de gente
infeliz. O sol tinia lá fora. Depois Domício veio chegando. E era o mundo que entrava no Araticum.
A existência do mundo que dava sinal. Domício falou-lhe:
— O capitão Hilário vai ficar com o gado. A volante também passou por lá. E o tenente
Maurício disse que havia de acabar com a raça de Aparício. Levaram os velhos pra o Açu. Lá,
Bentinho, tu tem conhecido. Tu pode tirar os pobres da cadeia. Eu vou ficar por aí. O capitão me
emprestou este animal. Tu vai nele pra o Açu e espera um dia de feira e manda trazer. O capitão
Hilário foi homem de coração comigo. O velho não gostava dele. Também o velho não gosta de
ninguém. O capitão fica com o gado e na volta dos velhos entrega tudo. Tu deve seguir para o Açu
amanhã de madrugada. Eu vou ver se conserto os troços do velho e depois tomo destino.
Bento não queria aquela solução. Queria era ficar com ele.
— A gente não faz tudo que quer, Bentinho. O jeito é ir como o destino quer. Nós somos do
sangue de Judas.
A palavra de Domício era de cortar o coração. Bento fez força para não chorar. Nisso o bode
deu para berrar outra vez.
— Está chamando o velho — disse Domício, compungido.
E Bento começou a soluçar. Domício saiu para um canto. Era de tarde. Tudo acabado no
Araticum. Domício sabia que não havia mais jeito.
A noite veio e os irmãos muito conversaram.
— Bentinho, tu deve fazer os gostos de mãe. Fica por lá mesmo. Deixa isto por aqui. Amanhã,
daqui a tempo, quando as coisas mudarem, eu volto e ajudo os velhos. Mas tem esse negócio da
Pedra. Bentinho, a gente está é desgraçado.
O irmão mais moço entrou a consolar. Não acreditava nisso não. Deus não havia de fazer isso
assim. Que culpa tinham eles pelos erros dos antigos? O negócio da Pedra fora uma desgraça igual a
outras. Depois quem poderia afirmar que o velho Zé Pedro não estava mentindo?
— Não é mentira não, Bentinho, é verdade. Eu sinto isso mesmo. Aparício sentia. Tanto sentiu,
que foi pro cangaço.
O bode estava andando pelo copiar, batendo com os cascos na calçada. Era a última noite que os
irmãos passavam juntos no Araticum. E não puderam dormir.
De madrugada, Bento sairia para o Açu. Lá estavam os pais na cadeia ouvindo a tosse do menino
doente, ouvindo as histórias dos inocentes, dos amarelos. Bentão com aquela cara, aquele olhar
desconfiado, e a velha Josefina encolhida, reduzida a pele e ossos. Mãe de cangaceiro teria que
pagar, que sofrer pelos crimes do filho. A casa que fora deles estava naquele estado de destruição.
De madrugada Domício levantou-se da rede:
— Bentinho, está na hora.
E foi selar o cavalo.
— Bentinho, tu vai soltar os velhos. Pede ao padre. Ele já deve estar lá de volta.
Fazia frio. Bento estava que não podia se manter de pé. Uma dor funda o prendia ao Araticum.
Domício fingia calma.
— Depois que eu arrumar isto por aqui, vou andar. Mas eu volto. A gente pega amor ao lugar. Eu
tenho que voltar. Só vou pro cangaço no último recurso. Vai-te embora, Bentinho.
Bento abraçou o irmão, montou o cavalo e saiu chorando para o Açu.
Domício viu o irmão se sumir, desaparecer na estrada. Olhou para os cantos. O Araticum
reduzido a bagaço. Tinha mesmo que dar ordem às coisas. Os pais voltariam e encontrariam tudo nos
seus lugares. A casa vazia, deserta. E a manhã surgia para mais autenticar a desgraça da casa velha,
do cercado, do curral. Domício ouvia a passarada que ele vinha ouvindo a vida inteira. Eram os
mesmos pássaros que cantavam as mesmas cantatas de sempre. Tinha que debulhar milho para o bode
velho. Lá se fora Bentinho, a maior alegria de sua vida. Estava só. Só de tudo. Aparício no cangaço,
vingando as desfeitas ao seu pai e à sua mãe. Viera o tenente Maurício para vingar o sargento
Venâncio. Era o sertão. Ele teria que viver dias e dias perdido na serra, escondido, comendo
araticum, dormindo aqui e acolá, até que eles se esquecessem, até que outro tiroteio desviasse a
tropa para outras famílias e outro pai e outra mãe de cangaceiros entrassem a pagar pelos crimes dos
filhos. Até lá a sua vida só poderia ser aquela. Não tinha vontade de entrar para o cangaço. Muitos
tinham ido para lá sem querer, levados pela perseguição. Mas ele não iria. Só iria no fim de tudo. A
viola estava dependurada. Era o seu consolo. Há quase uma semana que não pegava nela. E tirou-a
do saco de algodãozinho e começou a pinicar na companheira. Estava só. Ninguém ouviria o que ele
cantasse. Então Domício começou a falar de Aparício. A contar a história do cerco do Araçá. O pai e
a mãe tinham apanhado de cipó de boi. O irmão tivera a cara cortada de chicote. Ele tinha ido para a
cadeia de Dores, e Aparício no rifle, solto na caatinga. E Aparício no bando, de rosário no pescoço,
chorando a desgraça do pai e da mãe. Aí o cangaceiro pensou em se vingar. E foi o tiroteio do
lajedo. Morreu tudo que foi praça. A terra ficou molhada de sangue. Duas horas lutaram, os cabras
atrás das pedras e os soldados no raso. A viola gemia, Domício gemia. Morreu tudo. Aparício se
vingara da desgraça da sua gente.
E sem querer o poeta tinha improvisado uma cantata completa. Parou de tocar. O bode estava
berrando com pena do velho Bentão, que estava no Açu, nas grades. Meteu o seu instrumento no saco
e olhou o tempo, vendo a beleza da manhã no velho Araticum dos antigos Vieiras. E de repente lhe
chegou a ideia da Pedra, a história do velho Zé Pedro. Havia mesmo caveira de burro por ali. Um
Judas correra daquelas terras e fora trazer os soldados, os inimigos para matar o Filho de Deus e os
devotos dele. E agora eles estavam pagando, curtindo a ruindade do outro. Com este pensamento
triste começou Domício o serviço de reparação. Reparou tudo que era possível. Fincou estacas no
curral, trouxe pedras para o cercado, botou ordem na casa de farinha. E depois de tudo feito, fechou a
porta, trancou as janelas. O Araticum podia esperar pelos velhos. Agora era cair no mundo, viver
como bicho pelas grutas, pelas furnas. O cangaço seria o último recurso. Não queria matar ninguém.
Não gostava de armas de fogo como Aparício. O irmão mais moço se fora. Aquele sabia ouvir a
viola dele, entender os gemidos dele. E agora, quando a cabocla cantasse, de corpo nu, com as partes
aparecendo, quem o seguraria para não correr atrás da sedução?

ANTÔNIO BENTO PAROU o cavalo na porta do padre. A casa estava aberta. A negra Maximina gritou
contente:
— Só quem adivinha!
Eles tinham chegado no dia anterior. O padre Amâncio tinha sabido da prisão dos pais de
Bentinho e estava esperando o tenente Maurício, que saíra numa diligência. Mas ela levava comida
para os velhos.
Bento botou o cavalo na estrebaria e correu à cadeia para ver os seus. Nem reparou na rua, no
povo da tamarineira. Saiu cego de casa para a cadeia. E lá viu o pai e a mãe em petição de miséria.
O velho sentado num canto com os outros presos e a velha num quarto com uma doida que viera de
longe para ir para o asilo do Recife. Bentão não teve uma palavra. Nem se levantou de onde estava
para olhar o filho.
— Bênção, pai — lhe disse Bento.
— Bênção de Deus — respondeu o velho, sem sair de onde estava.
E virou-se para o outro lado.
Sinhá Josefina falou. Chegou para o buraco da porta. A cara com os talhos ainda abertos da
surra.
— Tu nem sabe o que foi a viagem, Bentinho. Os praças chegaram no Araticum com a moléstia
dentro. Parecia cangaceiro tomando vingança. E o tenente foi logo pegando Bento teu pai e metendo o
cipó. Queria saber onde estava Aparício. Nós não sabia de nada. Queria saber onde estava Domício.
E foi o diabo. Apanhamos até o sangue espirrar. Os cangaceiros tinham matado dez praças e o
sargento Venâncio. Estavam dizendo que Aparício era o chefe do bando. E viemos apanhando de lá
até cá. Quebraram os troços todos da casa. E só não mataram o gado, porque Domício antes de sair
teve a ideia de soltar os animais pra o pasto. Senão, ficava tudo estendido para os urubus. Aparício
só tem dado desgosto à gente.
Depois a velha quis saber como eles tinham levado o tempo, onde se esconderam e para que
lugar Domício se botara.
— Deus queira que ele não siga o irmão. A vida de Aparício deve ser uma vida infeliz. Andando
por este mundo de Deus. Matando, escondido como bicho, tirando dos outros. Ah! Bentinho, tu nunca
mais deve voltar pra aquelas bandas. O padre teu padrinho já esteve aqui. É um santo. E eu pedi a ele
pra não deixar tu sair mais do Açu. Ele ia mandar gente atrás de ti. Sinhá Maximina vem todo dia
trazer a comida da gente. Ainda existe gente boa neste mundo.
E voltou a falar de Domício.
— Tenho medo do pobre. Domício tem vez que não regula direito. Teve ataque em menino. Ficou
bom por milagre. Eu desconfiava, quando via ele pra um canto, só. Ia pra as festas, e Aparício me
contava: “Domício, só faz tocar e cantar pra os outros.” Falei pra ele se casar: “Procura uma mulher
que te sirva, Domício.” E ele nem como coisa. Na viola, nos trabalhos dele. Felizmente não puxou à
cara amarrada do pai. Bentão faz medo a quem não conhece ele. Nenhum filho tem essa coisa de
Bentão. Até Aparício é um bom menino. Só foi pro cangaço por causa do crime. Quando era menino,
eu tirava da cabeça dele essa história de cangaceiro. Um aguardenteiro tinha falado a ele do velho
Aparício, o avô que morreu de briga. Os aguardenteiros encheram a cabeça do menino com as
histórias dos antigos. E sempre eu dizia: “Aparício, não anda com essa história de armas de fogo.” E
ele vinha com a história do avô. Até que deu pra coisa. Mas tem bom coração. Não sei mesmo como
ele está vivendo no meio de tanto cangaceiro malvado. Coitado do Domício. Tu deixaste ele sozinho,
não foi? Ele não aguenta viver só. Ele tem um mal qualquer, uma coisa com ele que me faz medo.
Nunca vi menino mais triste. Na retirada de 1904 ele ficava de olho grelado pra um canto, que me
fazia medo. Parecia morto. Batia no menino pra ver a pestana bulir. E foi assim até ficar grande. É
muito capaz de fazer uma desgraça.
Bento falou com a velha. O padre andava procurando meio de soltar eles todos. Voltariam para o
Araticum, encontrariam Domício lá, viveriam bem. Os soldados não iriam mais fazer o que fizeram.
O padre Amâncio falaria com o tenente. O homem deveria ter coração como os outros. Até
cangaceiros tinham. Ela ficasse tranquila, que tudo voltaria ao que era.
— Volta não, Bentinho. Enquanto Aparício viver como vive, a gente não tem mais descanso.
Tudo que é volante vai fazer no Araticum o que o tenente Maurício fez. Mas a gente tem é que se
conformar com a vontade de Deus.
Bento deixou a cadeia com um nó na garganta. Precisava procurar o padrinho. E foi andando de
rua acima. Lá estava a tamarineira. Passou por perto dos homens na conversa. O sobrado do coronel
Clarimundo incendiado de sol nas vidraças. Foi andando. Em casa encontrou o padre, que o abraçou
com efusão, dizendo para Bento que o achava mudado, queimado, maior, um homem feito. Perguntou-
lhe se já tinha ido visitar os velhos. E deu-lhe esperanças. O novo juiz falaria logo que chegasse o
tenente. Pediria para mandar os velhos para casa. E quis saber de tudo.
Padre Amâncio foi para o quarto, puxou uma cadeira para Bento e pediu que ele lhe contasse
tudo. O rapaz narrou incidente por incidente. A saída de Aparício, a prisão de Domício, o tiroteio
nos lajedos, a destruição do Araticum, a surra no pai e na mãe. Ficou com os olhos molhados
narrando, contando as desgraças dos seus. O padre Amâncio falou emocionado: era aquilo mesmo.
Estava há vinte anos naquele sertão e era sempre assim que combatiam o cangaço. Não sabiam
escolher os perigosos, descobrir os maus. Iam em cima de criaturas mansas como se se atirassem em
cima de feras. Os tenentes não eram culpados. Chegavam ali às tontas, castigando, implantando o
terror para ver se davam jeito à coisa. Tudo errado. E o cangaço assim aumentava sempre.
— Domício, seu irmão, se tivesse outra natureza, teria caído no grupo, e você mesmo também.
Há meninos que se metem nos bandos por essas coisas. O governo devia agir de outra maneira. Mas
não. Pensa que o cangaço é coisa que se acaba matando, dando surra.
Padre Amâncio ficou de olho fechado, como era o seu hábito. Bento levantou-se e foi conversar
com a negra Maximina. Queria saber de todas as novidades da terra. A maior de todas era a história
de d. Fausta com o sargento Lourenço da força. O homem era casado no Recife. Mas estava vivendo
com a filha do major.
— O engraçado, menino, é que ele acabou com a gritaria. Tudo era marmota da sem-vergonha.
Queria era homem pra dormir com ela. O novo juiz é até um bom homem. Logo que a gente chegou
aqui, ele procurou o padre Amâncio. D. Eufrásia ficou em Goiana. Ela vem depois. Só não me danei
no mundo por causa do padre Amâncio. Nunca vi mulher mais cheia de noves fora. Passei três meses
em Goiana na casa dele pra nunca mais botar os pés lá. Aquilo é lá gente! O marido é um banana, um
leseira. E a mulher gritando com todo o mundo. Só gostei dela lá uma vez. Tinha visita na casa e o
marido deu pra falar do padre. Ele dizia que o padre tinha perdido a carreira querendo ser bom
demais. A mulher deu neles uns gritos. A visita baixou a cabeça e o marido veio pra o alpendre
endireitar as gaiolas de passarinho. O bicho é doido por passarinho. Não tinha que ver o maluco do
major. Esse negócio de criar passarinho só mesmo para sujeito daquela marca.
Vieram outras notícias do Açu: Joca Barbeiro estava no lugar do major. E quem estava
mandando muito era o escrivão. O tal tenente não saía da casa dele:
— Estão até dizendo que ele namora a filha do capitão Paiva. Nós chegamos na terça-feira e o
tenente ainda estava na terra. O padre nem pôde falar com ele logo. Quando soube da prisão do teu
pai e da tua mãe, o homem já tinha saído com a força pra os lados de Dores. Quem me veio contar
aqui todas essas coisas foi d. Auta do sacristão. Tem agora também umas filhas dum cabo Laurindo,
umas moças do Recife, muito das enxeridas. As bichas andavam na moda e davam dança em casa. D.
Fausta se engraçou logo do sargento. D. Auta me disse que ela deu ao homem pra mais de cinco
contos pra botar na caixa. Tinha guardado o dinheiro dos bordados que fazia de encomenda. Entregou
tudo ao macho. Sem-vergonha. E dizer que vivia na igreja. D. Auta me contou tudo isto. Aquela d.
Francisca não me entra. Destas beatas só mesmo d. Auta. Tu já deve saber que nos tempos antigos
esta Francisca andou aqui com um caixeiro-viajante. Agora vive aí de crista arriada. Menino, tu não
pode calcular como tudo mudou no Açu. É uma pouca-vergonha que não tem termo lá pra as bandas
da rua da Palha. E as tais filhas do cabo é gente sem eira e nem beira. Com pouco mais tu vai ver o
vigário dar um estouro por causa dessa pouca-vergonha. Ele não teve medo do juiz, quanto mais
disto.
Bateram na porta. Era um homem que queria falar com o padre Amâncio:
— Seu vigário — disse o homem de chapéu na mão. — Minha mãe morreu hoje das febres. E eu
vim pedir ao senhor o caixão da caridade.
— Pois não — lhe disse o vigário. — Bento, vai à igreja e dá o caixão. A chave da igreja está
em casa do compadre Laurindo.
Bento saiu com o homem pensando. Era o primeiro trabalho que ia fazer, aquele que tanto o
confrangia. Passou pela porta da cadeia, e lá dentro estavam seus pais. Teve vontade de entrar, mas
tinha o mandado de seu padrinho a fazer. Abriu a igreja. Há mais de três meses que não fazia aquilo.
E sentiu o bafo de casa fechada. Aquele cheiro que ele tanto conhecia. Devia estar mais suja. Três
meses sem os seus cuidados, sem a sua assistência. De fato, os morcegos chiavam mais no teto.
Devia haver corujas em seus ninhos pelo coro. Foi à sacristia. Abriu a porta do depósito, e lá estava,
preto, com uma cruz branca em cima, o caixão da caridade. Empoeirado, coberto de teias de aranha.
O homem puxou-o para fora e saiu com ele para o oitão da igreja. Limpou-o, bateu com a tampa e
saiu com o caixão na cabeça. Centenas de outros tinham saído de casa para o cemitério naquele
caixão triste e pobre. Bento fechou a igreja e voltou para casa. Teve vontade de voltar para a cadeia
e ficar com a mãe. Vendo-a, era o Araticum que ele via. Sem saber por que, estava com uma saudade
enorme do Araticum. Chegara ao Açu pensando que fosse se satisfazer, e era do Araticum que se
lembrava. Do irmão Domício. Do irmão tristonho, do irmão diferente dos homens que ele conhecera.
Estaria ele àquela hora procurando lugar para ficar, perdido no meio da mata, por entre as árvores e
os bichos da serra. Quando a mãe e o pai se livrassem, ele Bento iria com eles para sempre. Nada de
ficar longe da terra que era sua. Dos seus, dos antigos. Havia a maldição da Pedra Bonita. Não valia
nada. Superstição, como mais de uma vez lhe explicara o padrinho. Na primeira confissão que
fizesse, falaria disso. E o padrinho lhe diria mais uma vez que tudo não passava de atraso do povo,
de falta de religião verdadeira. Deus não podia ser instrumento da ignorância daquela gente. Ele
deveria voltar com seus pais e acabar com aquela história de Judas na família. Domício acreditava
porque era desprevenido de instrução.
No outro dia a força entrou no Açu, de volta. Eram uns trinta praças e o tenente. Entraram como
um bando de cangaceiros. De chapéu de couro, de cartucheira atravessada, de punhal, de rifle no
ombro. O padre Amâncio esperou até a tarde, e foi procurar o tenente em companhia do juiz.
Conversaram muito. E por fim o vigário entrou no assunto: vinha ali pedir pelos velhos da Pedra
Bonita. Os pobres não tinham culpa da vida do filho.
— Pode ficar certo — lhe respondeu o tenente — que são responsáveis. Aquilo é um ninho de
cobra. A emboscada que botaram no pobre Venâncio foi sabida de todos de lá. O povo do Araticum
não gostava do sargento por causa duma diligência que ele tinha feito lá.
O padre e o juiz insistiram na defesa dos velhos. Até que o tenente cedeu, dizendo:
— Vou soltar essa gente, seu juiz. Mas fique certo que é uma gente perigosa.
E assim os pais de Bento se viram livres. Foram para a casa do padre. Bentão quase que não
podia andar de todo quebrado. E a velha ansiosa para ganhar a estrada do Araticum; dando a
impressão de que não queria ficar mais tempo com o filho. Era que, para ela, Bentinho não devia ver
ninguém do Araticum. E os dois saíram de madrugada, a pé, destroçados, como se fossem voltando
de uma seca. Em 1904 devia ter sido assim. Bento ficou com vontade de acompanhar o seu povo.
Mas sabia do desejo imenso da mãe de não querer ver o filho mais pelo Araticum. E cedeu. Em
breve eles estariam outra vez senhores da casa velha, do curral,das coisas ínfimas, da terra que lhes
deram os antigos. Domício voltaria, e enquanto não passasse por lá outra volante com o diabo no
couro, viveriam bem.
O Açu tinha mesmo se modificado, como lhe informara Maximina. Os trinta soldados, um tenente,
toques de corneta, tudo isso dera à vila uma cara diferente. O povo melhorou de situação, cresceu de
importância. Ali agora era a sede de um destacamento grande. Do Açu saía tropa para o resto do
sertão. Diziam até que o governo cogitava de mandar um batalhão para ali. E que iriam construir um
quartel. Havia esperança, sonhos de grandeza no burgo apodrecido. Nos dias que paravam
descansando das diligências, as praças se divertiam no Açu a seu jeito. Dentro do mercado se
aboletaram uns cinco soldados. Eram os mais pobres, os mais novos no ofício. Tinham saído do
sertão há coisa de dois meses. O tenente Maurício queria gente que fosse conhecedora dos segredos
da caatinga, rastejadores. Bento sem querer fizera amizade com um deles, um tal de Severino. Este
viera do Pajeú. Sentara praça quase sem querer. Fora à feira, e um camarada o influíra para seguir a
carreira. Estava cansado de ser aquilo que era sempre, vaqueiro. Correndo atrás de gado a vida
inteira, e estava agora com o tenente Maurício. Severino tinha uma coisa que prendeu logo Bento à
primeira vista: tocava viola, cantava. Lá de dentro do mercado saíam para o Açu os seus gemidos,
que eram daqueles de Dioclécio e de Domício. E Bento acabou se acamaradando com Severino.
— Menino, eles me botaram pra rastejar. Eu sabia descobrir rasto de boi na caatinga. Aquilo pra
mim era besteira. O tenente me disse que o meu trabalho era esse, descobrir pé de gente na terra, nas
pedras. E é o que eu faço.
Severino sabia de cantorias que agradaram a Bento.
— Tu é sacristão, menino?
Bento lhe explicou. Era cria do padre.
— O tenente disse à gente que o vigário daqui acoitava cangaceiro. Mas ele não bole com ele.
Tem medo. Um oficial que desfeiteou o Padre Cícero não durou um mês. Comeram o bicho na bala.
Bento então quis saber da surra no povo do Araticum. E Severino contou:
— A tropa vinha com sede. A gente ainda viu a marca do sangue na terra. O tenente pegou a
pedra que espatifou a cabeça do pobre sargento. Tinha soldado que parecia cascavel com o veneno
perdido, trincando o dente de raiva. Se a gente pegasse o bando num raso, não ficava um pra semente.
Aí o tenente levou a força pra a diligência. E pegaram os velhos desprevenidos. Pareciam duas gatas,
de medo. Metemos o pau nos velhos. O velho aguentou calado. E a velha chorava que só bezerro
desmamado. O sargento Lourenço queria liquidar o pessoal na bala. O tenente não deixou. Fiquei até
com pena dos pobres. Eu sou do sertão. Sertanejo vive sofrendo como couro de fazer torrado. É um
apanhar que não tem conta. Quando não é cangaceiro, é a força. Eu estou nesta vida, mas estou doido
pra sair. Viver de borco aí como calango, cheirando a terra, cheirando o mato, pra descobrir
passagem de gente. Isto não é vida. Agora eu digo: melhor é vaquejar. O tenente fica danado quando
se perde a batida dos cabras. Cangaceiro tem astúcia do diabo. A gente vai indo atrás do bicho. Lá
vai a marca das alpercatas, e, quando se dá fé, é como se os cabras estivessem voltando pelo mesmo
caminho. E desmancham. Fazem visagem. Escapolem da vista da gente. Aquilo não é pé de boi, que
se conhece no maneiro. Muita vez o tenente está pensando que é safadeza. Eu bem desconfio que o
homem malda da gente. Capaz de pensar que nós estamos de combinação com os cangaceiros. Te
digo com franqueza. Pegando cangaceiro vivo, eu só tenho vontade é de cortar pedacinho. Eles fazem
o mesmo com a gente. Tu não viste a desgraça que eles fizeram nas praças de Dores? Cortaram os
braços, cortaram as orelhas, as partes dos homens. Fizeram farinha da cabeça do sargento.
Severino ia buscar a viola e cantava para Bento e os companheiros ouvirem. Ele sabia de pouca
coisa. Mas do que sabia tirava efeitos. Vinha sempre com as façanhas de Jesuíno Brilhante. Era uma
história que se dera na seca de 1877. O povo estava morrendo no Ceará, morrendo de sede. Morria
homem, morria menino, morria mulher. No Sobral não cabia mais gente. Morava até povo na torre da
igreja. O imperador mandou dinheiro para salvar o povo. O dinheiro chegou. Mas os grandes da terra
comeram, roubaram o povo. Foi quando apareceu Jesuíno Brilhante para castigar os miseráveis. Ele
vinha de sertão afora fazendo o diabo com os grandes. Dando ordens. Matando ladrão, salvando o
povo.
E vinha na cantoria de Severino a narração dos feitos, da coragem, das grandezas de Jesuíno.
Aquilo é que era cangaceiro. Cangaceiro que não andava como este Aparício, matando, desgraçando
o sertão.
— Cangaceiro de hoje só faz desgraça por onde passa. Já se foi o tempo de Jesuino Brilhante.
Me disseram que este Aparício está fazendo o diabo.
Bento fingiu desinteresse. Mas noutra oportunidade que teve, quis saber de mais coisas, dizendo
para Severino que Aparício não era o chefe do bando. O chefe era outro.
— Qual nada, o bando de Aparício está sozinho agora. Disseram ao tenente que ele é mais feroz
que Deodato. Nos ataques que dá, não perdoa ninguém. Tira dinheiro até de cego. Atrás de uma peste
desta, eu rastejo de verdade. Porque sertanejo como este Aparício só merece é bala de rifle, é morte.
Foi por isto que o tenente Lucena de Alagoas não deixou semente na família do Zé do Vale do Pão de
Açúcar. Matou do pai ao menino de peito. O tenente soltou os velhos de Aparício. Falando com
franqueza, não vi jeito de cangaceiro naquele povo. Aquele velho não tinha calibre de cangaceiro.
Até me falaram que era um homem de boa família. O filho é que é um cachorro da moléstia. O tenente
pegando ele, eu não calculo o que faz.
Era a grande preocupação de Antônio Bento. A fama de Aparício estava crescendo. O seu nome
falado, a sua importância subindo. E ali no Açu todos sabiam que ele era irmão de Aparício. Não
tardaria que viessem com perseguições para o seu lado. O padre Amâncio ia muito bem com o juiz, e
o tenente andava sempre por fora, com a força, nas diligências. Aparício se transformava para o
irmão num verdadeiro herói. Seria possível que fosse aquele monstro das descrições do povo? No
Açu exageravam. Os soldados estavam vendo Aparício com olho de medo, aumentando o valor dele.
No fundo Bento se sentia orgulhoso do irmão. E uma coisa o impressionava: o povo do Açu
começava a olhar para ele sem aquele desprezo de outrora. Era irmão de Aparício. Tinha rifle na
caatinga respondendo por ele.

NA VERDADE o Açu era outro. O padre Amâncio começou a se inquietar. A rua da Palha crescia.
Ficava arrogante. Os soldados, na maioria, faziam de lá o seu passeio preferido. Vinham mulheres de
outras terras, raparigas de centros maiores fazer o Açu. O padre Amâncio teria que tomar
providências. Sentia-se a sua preocupação. Agora não era o juiz, um dr. Carmo. Eram soldados,
desenfreados, cabras da pior espécie, que se davam ao deboche às vistas de todo o mundo. O caso de
d. Fausta era um sintoma alarmante. Se não fosse o sargento, ficaria ela no seu canto, sem ter dado
aquele espetáculo de depravação. Amigada, nas ventas de todo o mundo, sem nenhum respeito pelos
outros. O padre Amâncio, logo que chegou ao Açu, foi a ela. Falou da situação dela. Por que não
procurava uma casa mais arredada? E viu como d. Fausta o recebera. O seu ar de debique. Fosse ele
procurar o sargento e pedisse. Ela estava em sua casa, muito bem. E foi até grosseira com o velho
vigário, que tantas vezes a ouvira em confissão. O padre tinha outras coisas de que devia cuidar. Ela
estava em sua casa, morava com um homem de quem gostava, e o mais que se danasse. Queria agora
ver era as beatas passarem pela porta dela mangando. D. Auta, d. Francisca debochando dela,
inventando mentiras. O padre Amâncio revidou. O que ele queria era que seus paroquianos andassem
na decência, que ali no Açu não se repetissem casos como o dela, de uma mulher de idade que não se
dava a respeito. Ele sabia cumprir o seu dever e por isso estava falando daquela forma. Pensava que
ainda podia merecer alguma consideração da filha do major Evangelista. Já que não merecia, que
passassem bem. E se foi.
D. Fausta não se mudou. E às tardes, quando o sargento estava na vila, botava as cadeiras na
porta, e se sentavam os dois para conversar como marido e mulher muito bem casados. As beatas que
passavam para a igreja viravam o rosto para não olhar, para não ver a pouca-vergonha, o desfrute
daquela mulher. D. Fausta ficou arrogante. Ameaçava:
— Deixa estar, cambucas velhas! Lourenço vai ser tenente. Vocês vão ver o que é mulher de
tenente.
O padre Amâncio sentia-se velho, acabado. Em outros tempos já teria dado o alarma. Lembrava-
se da campanha contra o juiz. Pensava nisso. Se ele se metesse a censurar o procedimento dos
soldados, diriam logo: “Protetor de bandidos. O que ele quer é deixar o Açu livre da força para
melhor se entender com os cabras.” Estivera três meses em companhia do bispo, na visita pastoral.
Era um homem fraco, infelizmente muito da política. Tomaria logo o partido das autoridades. Seria
capaz de vir com penalidades para cima dele, só para dar satisfações aos poderosos. O que
adiantaria à causa de Cristo o seu sacrifício? Não viria outro padre para ali. Ninguém queria o Açu,
e os pobres iam ficar sem a ajuda de Deus. E a igreja entregue aos morcegos, às corujas, ao cupim.
Ele bem vira o que sucedera nos três meses em que estivera por fora. Parecia de anos a sua ausência.
O compadre Laurindo não tivera o mínimo cuidado com a igreja. O melhor era ir tolerando os
soldados, andando com jeito. Um dia iriam embora. E o seu Açu ficaria na paz de sempre, sem
esperanças, pobre vila esquecida, no fim do mundo, amada por ele, querida pelo seu vigário, o seu
vigário velho. O melhor seria tolerar. E foi o que fez. Arrependeu-se até de ter procurado d. Fausta.
A mulher devia estar com ódio dele. Rezaria muito pela filha do major. No fundo era uma doente,
uma pobre doente, e ele sem verificar essas coisas foi procurá-la, ser áspero com ela. Devia pedir
desculpas a d. Fausta. Não fazia para não desmoralizar a religião. Era preciso que o povo não
desconfiasse de afrouxamentos, da velhice dele. Amava o Açu. Era uma coisa física. Fora de lá, as
coisas não lhe pareciam as mesmas. Podia ser um pecado, um grande pecado. Nem o culto, nem as
igrejas, nem os homens de outras terras lhe davam a impressão do Açu. A vida era outra. Há muitos
anos que dava tudo o que tinha ao Açu. E ali queria morrer. Já escolhera o seu lugar. O pedaço de
terra que comeria a sua carne. Para que se meter em lutas com os soldados, aborrecer o tenente? O
bispo não lhe daria razão. E ele passaria além de tudo por protetor de cangaceiros. Devia era levar o
Açu, por enquanto, como ele quisesse ir. Nada de rigidez, de querer mudar as coisas de repente. No
íntimo, o padre Amâncio sofria. Ele bem via a rua da Palha crescendo. Casas novas, mocambos
novos na rua da Palha. O coronel Clarimundo não se importava. A família estava morando longe e
ele mesmo só estava ali por causa do descaroçador de algodão. O escrivão Paiva vivia com o
tenente dentro de casa. Com uma filha moça namorando com o oficial. O juiz indiferente. Ali no Açu
ele estava por pouco tempo, esperando a remoção. Se ele quisesse tomar uma providência, como
padre, estaria só, seria único para agir. E seria criticado por todos. E assim o padre Amâncio
avaliava as coisas.
A negra Maximina dizia todos os dias a Bento:
— Não tarda. Qualquer dia o padre Amâncio mete a ronca nessa pouca-vergonha.
Mas Bento compreendia a situação, vendo o perigo do momento. Calava-se para não desgostar a
negra velha. E se metia no seu trabalho, fazendo agora tudo na igreja, depois da doença do sacristão
Laurindo. A igreja do Açu estava toda em suas mãos. Só o padre Amâncio podia mais do que ele. E
com isto se conformava um pouco, vendo-se mais importante, mais acima do que sempre fora. Havia
agora um empregado que lavava os cavalos, que cortava capim, que dava recado. Ele Antônio Bento
vinha subindo, crescendo de posição. Aparício na caatinga valia muito. Andavam volantes atrás dele,
os jornais falavam dos ataques de outros lugares. O seu irmão furando o sertão de lado a lado, dando
o que fazer ao governo.
O tenente Maurício ficara o centro de toda a vida do Açu. Era mais que prefeito, mais que juiz,
resolvia tudo. Ficava ele na porta de casa, de lenço no pescoço, espichado na sua espreguiçadeira,
dando a sua audiência e resolvendo. O escrivão Paiva tirava proveito da amizade dele. O coronel
Clarimundo entrava no declínio de seu prestígio. Já não era o faz-tudo do Açu. A autoridade do chefe
da volante absorvia a sua importância. O tenente Maurício falava mal da administração do prefeito,
dizendo, para quem quisesse ouvir, que se aquilo estivesse em outras mãos, o Açu teria melhorado de
vida. A filha do escrivão namorava o oficial. Diziam que ele era casado, mas que vivia separado da
mulher. O fato é que a moça se tinha na conta de noiva, o pai na conta de sogro. O prestígio deste
crescia. O padre Amâncio não procurava o tenente, embora vivesse em boas relações com ele.
Conhecia o vigário do que era capaz o oficial. Bento é que não era bem-visto pelo oficial. Por mais
de uma vez ele fizera o rapaz parar para falar do irmão. Se não fosse o padre, ele veria o que era
cadeia. E Bento procurava sempre evitar encontros com o tenente. Mas para o povo da feira o
prestígio do criado do padre crescia todo dia. Era apontado. E queriam saber de notícias de
Aparício. Não podia sair de casa aos domingos para correr a feira. Os matutos o chamavam para
interrogar. E se admiravam, um para outro.
— Ele é irmão de Aparício. É irmão de Aparício.
E ficavam de olhos compridos olhando Bento, respeitando-o. E assim foi Bento se sentindo
alguma coisa de superior, pelo seu parentesco com o cangaceiro. O tenente passava por ele com
vontade de meter-lhe o chicote, mas os matutos da feira ficavam de olhos compridos. E a fama de
Aparício crescendo sempre. Dera ele um tiroteio com a força do tenente Lucena em Água Branca. A
luta demorou horas e por fim Aparício furou o cerco, atravessando o rio São Francisco, invadindo a
Bahia. O cangaceiro seu irmão ficara falado. Era o terror das caatingas, o maior de todos os
cangaceiros. Nunca mais soubera de Domício. Desde que os velhos se foram para o Araticum que
não tivera notícias do irmão tristonho. E era no entretanto de quem mais se lembrava. Do irmão triste,
que não tinha feição para o cangaço. Aparício devia ter mudado. Criado outra cara, outra figura. No
dia em que estivera com ele na caatinga falara com tanta amargura da vida de cangaceiro, e de
repente era o famoso bandido que era. Chegava a não acreditar nas façanhas de Aparício. Vira o
irmão tão sem jeito de chefe lá no Araticum que se espantava da fama. Se lhe viessem dizer que
Domício virara o maior cantador do sertão ele acreditava. Mas naquela crueldade do irmão mais
velho não podia acreditar. Diziam que Aparício nem respeitava menino. Matava tudo, destruía tudo,
como um castigo. Lera num jornal o ataque dele a um povoado em Alagoas. Parecia um diabo com
poderes na Terra. Aparício fizera as maiores misérias. Pobre da mulher que passara o bando inteiro,
pobres dos homens amarrados, sangrados como bichos, reduzidos a pedaços, pela fúria de Aparício.
Só queria ver Domício para falar com ele dessas coisas. Domício teria o que dizer, o que falar.
Aparício fazendo o que fazia, só mesmo estando atuado. Com o diabo fazendo tudo por ele. Então
Bento pensava sem querer na Pedra Bonita, no que dissera o velho Zé Pedro. A família Vieira tinha
com ela uma desgraça escondida. Sangue de Judas, maldição de Deus andava pelos seus. Era
superstição. Por mais de uma vez, sentindo-se escravo desses pensamentos, fora ver o padrinho.
Contara tudo. Se abrira, e o velho só tinha aquela resposta: o povo se embriagara de superstição, de
fanatismo. Mas Bento duvidava. Lembrava-se dos fatos. Um parente seu saíra da Pedra, correra
léguas, rompera caatinga e fora ensinar aos soldados onde estava o Filho fazendo milagres,
procurando salvar as misérias do povo. Fora um Vieira, gente de seu sangue. Domício tinha a coisa
como certa. Aparício andava pelo mundo como um flagelo. Lá ficara o Araticum, com água corrente,
com nascentes d’água doce, com serra verde de inverno a verão, reduzido a uma tapera. Terra
maldita, terra que não botava homem para frente. Assim pensava Domício. Assim pensava o sertão.
Ninguém queria um palmo de terra do velho Bentão.
Por outro lado Antônio Bento se consolava com a importância que criara no Açu. Respeitavam o
irmão de Aparício. Joca Barbeiro nem parecia aquele de outrora, tirando deboche com o povo da
Pedra, falando do cotoco. Bento verificava que a força de Aparício se estendia da caatinga, das
serras, das beiras do rio e dos lajedos até o Açu. Até entre os homens da vila, que tanto o levavam
em pouca conta. Fora para eles um criado de padre, um menino enjeitado pelos retirantes da Pedra
Bonita. Ninho de cobras, de gente ruim. Aparício matava, atacava cidades grandes, entrara no Sousa,
cercava Cajazeiras e invadira Mossoró. O Açu respeitava o irmão, tinha consideração pelo criado
do padre Amâncio. Ele compreendia tudo. O padre estava velho, ia se acabando aos poucos. Não
fora brincadeira a vida que levara na pior vila do estado. Dera os seus dias pelo Açu, um oco do
mundo, esquecido e desamparado de todos. E Bento se amargurava com isso. Afinal de contas se lhe
morresse o padrinho, para onde iria, que rumo tomaria? Havia o Araticum. Sua mãe e Domício. Este,
sim, que enchia as suas esperanças. Um dia estariam reunidos outra vez, e tudo que se fosse: fama de
Aparício, o Açu, o mundo inteiro. Antes era Dioclécio com as suas histórias que lhe davam ânsias de
viver, de ser outro que aquele Bento criado do padre, lavando cavalos, levando recados. Agora era
Domício, o irmão triste, que tremia de noite com o chamado da cabocla nua, de cabelos soltos.
E a vida do Açu andando. D. Fausta mais arrogante, se mostrando às mulheres da terra.
Ameaçava com o sargento. A primeira que se fizesse de besta, já sabia. Bento caíra nas suas iras. Em
casa falava ela ao sargento do criado do padre. Era um irmão de Aparício, irmão de cangaceiro. E o
sargento passou a implicar com Bento. E as coisas foram assim, até que se deu o caso entre os dois.
Tudo obra de d. Fausta. O sargento mandou chamar o rapaz na cadeia para dizer que acabasse com
aqueles debiques com a mulher dele. Ele andava passando na porta dela com ditos. Na primeira vez
que se desse aquilo, o cipó de boi cantava.
Antônio Bento se alarmou, foi ao padre. O padre procurou o juiz. O juiz foi ao tenente Maurício.
E o oficial foi estar com o vigário, para lhe dizer que o sargento vinha se queixando que a mulher
vivia a sofrer debiques do povo da igreja, da mulher do sacristão, das outras beatas. E que Bento
passava pela porta dela fazendo pouco. O padre conversou muito com o tenente. Explicou muita
coisa. E Bento ouviu a risada do oficial. Tudo tinha se resolvido da melhor maneira. D. Fausta,
porém, crescendo sempre de importância, quis impedir que d. Auta passasse pela calçada. Não
passariam pela porta dela para tirar deboches. E ficava de janela na hora da missa e da bênção,
esperando a passagem das beatas para se desabafar. Joca Barbeiro na conversa da tamarineira
achava aquilo um absurdo. Como era que se deixava uma rapariga daquelas insultar as mulheres
casadas da terra? Todos concordavam. Aquela terra era mesmo uma desgraça. Quando vinha uma
melhora, era para ficar como estava. Com rapariga morando na rua grande, descompondo gente
direita. Por outro lado, d. Auta vivia chorando de desgosto. O filho mais velho Floripes estava
namorando com a filha do cabo, uma das tais que andavam de saia curta pelo Açu, mostrando as
pernas. Floripes era o principal caixeiro do coronel Clarimundo. Ia tão bem, tão aprumado, e de
repente se metera com a filha do cabo. O padre Amâncio chamou o rapaz para aconselhar. Foi tempo
perdido. Ele queria mesmo. E as duas famílias ficaram inimigas. As moças diziam o diabo de d.
Auta. Não passavam pela porta da mulher do sacristão. E deram para visitar d. Fausta. O Açu inteiro
virado do juízo, com a estada da força. Melhorara o comércio um pouco. Os caixeiros-viajantes
chegavam até lá sem medo dos cangaceiros. Mas no resto era o que se via.
O padre Amâncio não era o mesmo. Isto todo o mundo sentia. A negra Maximina dizia todo dia
para Bento:
— Toinho, o padre está mesmo outro. Tu não está vendo? No outro tempo ele teria pegado essa
sem-vergonha de jeito. Hoje nem parece que é mais do Açu. Só pode ser doença, Toinho. Pode ser
que com a velha aqui ele mude.
Bento andava amedrontado com o sargento Lourenço. Nunca fizera a menor coisa. Nunca dissera
nada ao passar pela porta de d. Fausta. E saíra aquela intrigalhada. Só podia ser mesmo uma
invenção para sacudi-lo na cadeia. Pensou até em fugir. Mas teve medo. Se saísse do Açu às
escondidas, o tenente botava soldado atrás dele, desconfiando que fosse negócio de coiteiro. O
melhor seria ir aguentando a vida assim mesmo. O sacristão Laurindo deixara tudo que era da igreja
com ele. E agora, com a história do filho, as enxaquecas do velho se sucediam. Era uma por semana.
E Bento fazendo tudo na igreja. O padre Amâncio acreditava mesmo que o compadre Laurindo não
voltava mais ao serviço. E d. Auta falando em saírem do Açu para outro lugar. Não podia se
conformar em ver o filho pegado com uma tipa daquelas. Foi quando apareceu a notícia: a força ia se
mudar para Dores. Viera ordem para estacionar o destacamento lá. A princípio a notícia fez rebuliço.
Joca Barbeiro e o capitão Paiva não acreditaram. A política do escrivão se baseava na força do
tenente. Saindo ele, seria o diabo. Mas o fato se confirmou. Viera ordem para a tropa seguir para
Dores. Os cangaceiros estavam agindo ora na Bahia, ora em Pernambuco. A sede do tenente
Maurício devia ficar num ponto mais bem colocado. O padre Amâncio deu graças a Deus. Não
escondeu a sua alegria. Falou com Bento. A força dava segurança contra os cangaceiros, mas estava
estragando o Açu.
Depois começaram os boatos. D. Fausta ia com o sargento ou ficava? Naquela tarde da notícia
não houve cadeiras na calçada da filha do major. A tropa tinha três dias para se transportar. E a rua
da Palha se consumiu de saudades. Floripes pensou em se casar às carreiras. E o tenente Maurício na
casa do escrivão, consolando a noiva. Dores estava a uma carreira do Açu. A noiva não precisava
ficar com aquela cara de tanta tristeza. E o casamento? Ah! não havia dúvida, voltaria para se casar.
Para o escrivão Paiva tudo estava perdido. Ele compreendia tudo muito bem. A filha servira de
isca. Dera uma filha para derrubar o coronel Clarimundo. E por fim vinha aquilo. O major Cleto, o
delegado, que perdera a força com a autoridade militar no Açu, se regozijava. Dizia a todo o mundo
que fora sempre do coronel Clarimundo. O seu chefe sempre fora ele.
A saída da força, numa madrugada, foi triste. A corneta tocou. E o tenente a pé, na frente da
tropa, com a roupa que usava nas diligências, de chapéu de couro, de punhal atravessado, e os
homens em traje de cangaceiros atrás. E o Açu, naquela madrugada, ficou livre do governo. Veio
gente olhar d. Fausta se despedindo do sargento na frente de todos, com abraços e beijos. E se foram.
Sumiram no fim da rua.
O Açu voltou ao que era. A sua força natural. O coronel Clarimundo seria um homem mais rico,
o major Cleto começaria outra vez a prender e a soltar gente, tudo nos seus eixos.
Bento naquela madrugada tocava com mais gosto a chamada para a missa das cinco horas.
Tocava com mais força, com mais confiança no bronze. Vieram as beatas para a missa. D. Auta
passara feliz pela porta de d. Fausta. A tamarineira continuaria a falar mais livre, sem a pressão de
uma grandeza estranha. O Açu respirava pelos seus próprios pulmões. Os grandes e os pequenos da
terra eram os mesmos de antigamente.
9

NUM DIA DE SOL QUENTE , bateram na porta do padre. Bento estava lá para o quintal. Maximina foi
atender. Era um vaqueiro que queria falar com Bento. A negra gritou:
— Toinho, tem um homem te procurando!
Ele compreendeu logo quem era. Correu na certa para falar com Domício. E era Aparício em
carne e osso. Estremeceu da cabeça aos pés. Ficou sem falar, estatelado, como se uma bala o tivesse
atravessado. O irmão sorriu para ele:
— Diz para o povo que eu sou Domício.
— Entra — disse Bento —, vamos lá para trás.
Ficaram no quarto e puderam conversar livremente. O padre Amâncio andava por fora e
Aparício pôde falar à vontade. Estava ali no Açu para saber das coisas.
— Olha, a gente precisa estar de olho aberto. Soube que a força tinha ido para Dores. Os cabras
estão pensando que eu estou na Bahia com o grupo. Qual nada! Levei um balaço no braço e precisei
ficar descansando aqui por perto. O meu pessoal foi dar um passeio por longe. Depois a gente se
ajunta outra vez. Vim aqui falar contigo por causa dos velhos. Porque Domício se sumiu e ninguém
sabe onde está. Até me disseram que ele estava com o velho Zé Pedro da Pedra Bonita. Estive lá e
não me deram notícia dele. Eu soube que os velhos estão só. Tu para que não deixa isto aqui e não
vai para lá? Podia botar gente lá com os velhos. Tu é que devia ir.
Depois Aparício contou muita coisa de sua vida. Fora no tiroteio dos lajedos do Araçá que ele
ficara chefe duma parte do bando.
— Deodato não aguentou o repiquete. Se eu não pegasse fixe, a coisa estava perdida. A gente
deixou Deodato e eu peguei o pessoal. Cangaceiro não tem que ter coração. Fizemos um serviço de
mestre em cima do sargento Venâncio. Nunca mais ele dá em mãe de homem como deu. Tu já viste as
loa que fizeram para mim? Saiu com um retrato. Tu precisa ir para onde estão os velhos. Só se
Domício aparecer. Me disse o velho Zé Pedro que, enquanto mãe estiver viva, os macacos não
podem comigo. O tal tenente Maurício está precisando de um serviço. Ele deu um fogo com a gente.
Foi um fogo danado. O cabra é duro mesmo. Briga gritando, descompondo, como cangaceiro. Mas a
gente pega ele de jeito. Deixe estar. Anda no grupo dele um tal de Severino, um rastejador, um cabra
que toca viola. Pois aquele cabra foi do grupo. Tem dado o que fazer.
Aparício parecia recear de qualquer coisa, olhava para os cantos, apurava o ouvido para ver se
ouvia alguma coisa:
— Estou com o braço meio bambo. A bala entrou e saiu. Só dei fé da coisa quando o fogo parou.
O coronel Joca Abílio me deu pousada. Quis até chamar um doutor para ver. Qual nada, fiquei bom
de repente. Na volta do pessoal é que eu vou experimentar de verdade o braço.
Bento olhou para o irmão, reparou bem. Era aquele o seu irmão, que ele conhecera de perto, que
saíra das entranhas de sua mãe, que se criara no Araticum. Era mesmo Aparício. E o outro, o do
cangaço, o do falaço do povo, dos ataques, das mortes, dos roubos, dos assaltos, só podia ser outro.
Ouvia Aparício falando como o irmão do Araticum. Não lhe dava impressão diferente. Quis lhe
perguntar umas coisas, saber dos detalhes de lutas que corriam pelo sertão. Não achou jeito de ser
Aparício o homem daquelas histórias. Não acreditou.
— Menino, tu precisa é cuidar dos velhos. Isto aqui não serve pra nada. Ainda dou um ataque
nesta vila de deixar tudo de papo pro ar. Me disse Deodato que uma vez ele fez um serviço aqui. Deu
até dinheiro ao padre para a igreja.
Bento defendeu a terra. Ele não devia fazer nada no Açu. O povo era pobre. Rico ali não havia.
— Não é questão de riqueza não, Bentinho. Tu nunca ouviste o velho Zé Pedro falar deste povo?
Olha, ele me disse que toda a desgraça do povo da Pedra saiu do Açu. Foi o povo daqui que acabou
com a Pedra.
Aparício viera para que ele, o irmão mais moço, fosse tomar conta dos velhos. O velho Zé Pedro
lhe falara na influência da mãe no destino do cangaceiro. Enquanto ela vivesse, nada aconteceria a
Aparício. Só mesmo Bento poderia viver com eles, com os pais.
— Olha, Bentinho, quando tu quiser saber notícia da gente, do grupo, procura um aguardenteiro
chamado Mariano, que vem todo dia de feira aqui no Açu. Este cabra espia pra nós.
E se despediu do irmão.
O Açu, os três soldados do destacamento não sabiam que visita era aquela que procurava o
criado do padre. O rei do sertão entrara e saíra como qualquer matuto, como um simples vaqueiro, na
vila. Bento ficou com medo. Se alguém conhecesse Aparício, a desgraça estava feita. O que podia
fazer o irmão, cercado, de mãos abanando? Viu-o perder-se no fim da rua, sumir-se. Era ele, o
perigoso bandido, que já tinha retrato nos folhetos que se vendiam nas feiras. O governo andava atrás
dele. Forças, tenentes, amedrontando os sertanejos, implantando o terror para acabar com Aparício,
que era aquele homem igual aos outros e que há pouco estivera com ele, falando da mãe. Com medo
que ela morresse, porque um rezador juntara o destino dela ao seu. Não podia ser verdade. Aparício
não podia ser tudo que diziam. O perigo, a coragem, a ousadia, a crueldade, tudo isto podia ser de
outro, menos dele. Não. Aparício era aquele rapaz que no Araticum brincava com as esquisitices de
Domício. Estivera com ele na caatinga e se mostrara até aborrecido com a vida do cangaço. Ali
estivera o irmão e diferença nenhuma encontrara na sua cara, nos seus modos. Um cangaceiro com a
sua fama de matador devia parecer outro.
Era já tarde. E Bento precisava tocar as ave-marias. Subiu para a torre, e foi Domício quem o
acompanhou até lá, na sua imaginação. Cismava. Domício tinha sumido, deixado o Araticum e
ninguém sabia para onde. Lá estavam os dois velhos sozinhos, o pai e a mãe, sem a ajuda de ninguém,
para ver tudo, o gado, as terras. Sem dúvida que eles botariam vaqueiro para olhar e cuidar das
coisas. Por aqueles sertões não havia lugar mais esquisito que o sítio de sua gente. Em outras terras
vinham morar gentes de fora que se enraizavam, que se fincavam para sempre. Ali, era aquele
abandono. Só o povo dele, só os Vieiras, o pai, a mãe, dois filhos. Fora-se um para o cangaço e
agora Domício se perdera no mundo. Bento puxou o badalo com força. Irmão de cangaceiro. Fora no
Açu desprezado por todos, insultado pelo juiz, estivera entre os presos que Deodato soltara. O
Amarelo, o menino da tosse, estava tão fraco que voltara do meio do caminho, para se entregar outra
vez. Mudava tudo no Açu. Ele mesmo era outro homem. Viera do Araticum outro bem diferente.
Sabia de coisas sérias. Na feira apontavam para ele como para um parente de um grande. O irmão de
Aparício merecia atenção. O cangaço trazia-lhe honrarias. Mas Domício se fora. Aí Bento parou. Era
a última badalada. Ficou na torre olhando tudo. O sobrado do coronel Clarimundo na sombra parecia
menor. Sem o brilho das venezianas era uma casa pobre como as outras. Via-se bem dali o prefeito,
de suspensório, olhando a rua. A família longe, e ele no Açu sem coragem de deixar os negócios. A
tamarineira ia aos poucos se cobrindo de noite. Bento demorara-se na torre mais tempo. As beatas já
iam saindo, e o padre Amâncio apareceu pela calçada do major, devagar. Seu padrinho se acabava,
não tinha dúvida. Vinte anos de Açu era como se fossem vinte anos de Fernando de Noronha. Não
podia abandoná-lo como Aparício queria. É verdade que havia a mãe. Mas a velha sofreria mais se
ele abandonasse o Açu para se meter no Araticum. Aparício estava com medo de que ela morresse
por causa dele. Não era amor de filho, era o pavor de morrer, de perder a sorte nos combates. Zé
Pedro ligara o cangaceiro à vida da mãe. E Bento foi descendo a escada. Ouviu o rumor dos
morcegos voando na igreja. Não encontrara jeito de acabar com eles. Faltava vinho para a missa do
outro dia. Teria que abrir uma garrafa nova. O sangue de Deus, a carne de Deus. De repente passou-
lhe pela cabeça um pensamento de louco. Tudo aquilo era mentira, uma verdadeira mentira. A Pedra
Bonita, Aparício. Ele era quem manobrava com os objetos sagrados. Sabia de que caixa o padre
Amâncio tirava as hóstias que eram o corpo de Deus. Era ele quem abria as garrafas com o vinho que
era o sangue de Deus. A lâmpada do sacrário vacilava. Aquela luz de manhã à noite estava ali para
que Deus não pudesse ficar às escuras, sem uma luz em seu louvor. Fugiu do pensamento de incréu e
fechou a igreja. E sentiu-se o único homem do mundo, cercado de paredes grossas, no meio dos
santos, com aquele cheiro de rosas murchas, com aquele bafo de coisas velhas. O silêncio era grande
demais. Os morcegos calados, e a lâmpada parada sem o vento que entrava pelas portas abertas.
Tudo no fim. Bento deixou a igreja desolado, como se estivesse nu por dentro dele mesmo, sem coisa
nenhuma para cobrir as suas vergonhas. Nunca lhe viera na cabeça uma ideia daquela de não
acreditar em Deus. Só podia ser um sopro do diabo. Viu padre Amâncio parado na porta do coronel
Clarimundo, e foi andando para lá. Os dois conversavam:
— O senhor leu, padre Amâncio, a notícia do Diário, a respeito do ataque de Aparício a Mata
Grande? Foi uma danada. O povo reagiu. O grupo atacou cinco horas e não entrou lá. Aqueles
Meneses de Mata Grande são homens de verdade. Diz o jornal que Aparício está com mais de
cinquenta homens.
Bento saiu com o padre Amâncio sentindo um desejo louco de dizer que tudo aquilo era mentira.
Quis puxar conversa, mas ficou com vergonha. Raramente ele tomava a iniciativa das conversas com
o padrinho. Mas daquela vez não se conteve:
— Padrinho, aquilo é mentira do jornal.
— Mentira por que, menino?
— Porque Aparício esteve aqui hoje na casa do senhor.
— Aqui? E você não me disse nada! Eu queria dizer umas coisas a ele. Esse seu irmão está
ficando um monstro.
Bento contou tudo como se passara, e o padre falou mais sério:
— Veja você. É um homem que podia estar no seu canto, ao lado dos pais, plantando a sua terra,
tratando do seu gado. E vive por este mundo cometendo os crimes mais bárbaros. Antônio, tu tiveste
sorte. Podias estar hoje com ele.
Bento falou em Domício, que havia desaparecido. Quis assim mostrar ao padre que o outro era
diferente de Aparício. Tinha um irmão que não era aquela fera falada. Domício era bom, tocava
viola, cantava, acreditava na Pedra Bonita. Mas Bento teve receio de falar. O irmão acreditava na
Pedra Bonita e chorava de noite com o chamado da cabocla nua das furnas.
Maximina, lá para os fundos da cozinha, cantava Margarida vai à fonte. Estaria nos seus dias de
azeite. E Bento sentiu-se só, mesmo junto do padrinho. Se ele falasse de Domício, o padre Amâncio
diria o que sempre dizia: superstição, ignorância. Aí ele pensou nos pensamentos maus da igreja.
Estava guardando um crime para o padre, para o seu padrinho. Ficou com medo. Lá dentro da igreja,
quando procurara uma garrafa de vinho de missa, viera de súbito, como um raio, a ideia da negação.
Tudo era mentira, a Pedra, os milagres da Pedra, aquele Deus do sacrário, a hóstia branca que o
padre Amâncio guardava numa caixinha de flandres. Era um monstro como Aparício. Um verdadeiro
monstro. Foi saindo do quarto do padre e parou na cozinha. Maximina lavava os pratos e estava de
olhos vermelhos:
— Que é que tu está olhando, Toinho? Nunca me viste não? Não sou bicho não, menino. Tu é
criado como eu. Tu é irmão de cangaceiro. Tu é da terra dos diabos.
Bento se revoltou. Pela primeira vez em sua vida, teve raiva da negra. Quis dizer-lhe desaforos.
Teve vontade de mandar-lhe a mão na cara. Encolheu-se e foi andando para o seu quarto. Era este o
seu mundo. Não havia um ente com quem pudesse desabafar. Dioclécio. Desde que aparecera
Domício que Dioclécio ficava no segundo plano na sua memória. O cantador de cabelos compridos
ficara menor. Domício era o grande, a criatura que estava com ele em todos os momentos. Não
pensava em mulher. Podiam dizer que era um aleijado. Mas não pensava nelas, em mulher nenhuma.
E lembrava-se da tarde em que d. Fausta pegara-se com ele, com aquela fome, com aquela boca torta,
aqueles olhos de d. Fausta. Sofria muito só em pensar naquilo. Pobre de Domício, que tremia de
noite com o canto da cabocla nua, pobres dos sertanejos que se perderam nas profundezas da terra,
indo atrás do canto do corpo nu. Era Antônio Bento Vieira, irmão de um cangaceiro, afilhado de um
padre; sabia ajudar missa, sabia ler e escrever, tinha dezoito anos e sem que ninguém soubesse
tocava viola. Aprendera no Araticum com Domício. Lá um dia, se apertasse a agonia, sairia pelo
mundo. Teria que se meter com Domício, teria gente em derredor deles, ouvindo as coisas que eles
inventassem. Seria maior que Dioclécio, que não cantava desafio. Os cegos cantadores iriam
conhecer o valor dos versos dele. E ninguém apontaria para ele como o irmão de Aparício. Seria ele
mesmo, Bento, o maior dos cantadores. Domício. Aparício chegara com a notícia de seu
desaparecimento para outras terras. E pensou na morte do irmão querido. Reconstruía a morte dele,
como tudo se passara: Domício tinha chegado em casa. Estivera na serra, esperando que o tempo
corresse. Por fim chegara ao Araticum. Lá estavam a velha e o velho. O pai o dia inteiro agradando o
bode, a mãe fazendo tudo dentro de casa. Então Domício começou a sentir-se só e veio a tristeza.
Teria se lembrado dele, Bentinho. A noite de lua pedia mesmo uma conversa longa, uma tocada de
viola. E Domício sozinho. Via Bento na imaginação, o irmão na calçada do Araticum suspirando. As
oiticicas faziam barulho com o vento. E Domício só. De sua rede teria começado a ouvir a voz de
longe, como se fosse um chamado de vaqueiro para uma rês perdida na caatinga, uma voz que ia
crescendo, crescendo para os ouvidos de Domício. Por fim, ele teria selado o cavalo e corrido atrás
da morte. Teria morrido como outros sertanejos. E Bento sentiu, assim, a morte de Domício como
uma realidade cruel. Quis chorar, quis sair para pedir ao padre um conselho. Domício tinha morrido.
Família infeliz. Era a Pedra Bonita, o sangue de Judas correndo nas veias dos Vieiras. Só uma
donzela violada daria cabo à desgraça de todos. Não era possível, não era possível. Não havia três
horas chegara até a descrer de Deus, do Deus da igreja, do Deus do sacrário, do vinho, da hóstia, das
verdades que aprendera do padre Amâncio. E vinha aquilo agora, o pensamento na Pedra Bonita. Os
Vieiras estavam acabados. Restavam eles no Araticum. E o fim era bem triste. O pai e mãe sofrendo
horrores, um filho no cangaço, outro como morto, outro no fundo da terra com a cabocla. As terras
com vertentes, com águas correntes, uma serra verde perto, repudiadas pelo povo. Sem dar riqueza à
sua gente. E o sono não vinha para Bento. E ele cada vez mais se sentia um derradeiro entre os
homens. O Açu inteiro dormia. Dormia o coronel Clarimundo com a saudade da família, da filha que
tirara curso num colégio importante. Dormia o major Cleto, cheio com os poderes da autoridade
reposta. Joca Barbeiro coletor. D. Fausta pensando no sargento, que escrevia, que estava tratando de
voltar para o Açu. Todos dormiam na velha vila. Até os mais desgraçados tinham em quem pensar. E
ele Bento naquela noite era bem do Araticum. A maldição do Filho de Deus pesava sobre os seus
ombros. Os catolezeiros gemiam, o mato cobrira a terra na Pedra Bonita. O sangue dos mortos
ensopara a terra sagrada. E o Judas saíra correndo pela caatinga, cansara cavalos e viera com os
soldados massacrar os romeiros. Agora ele pagava. Domício, sua mãe, seu pai. Aparício, todos
pagavam. Era a sorte de todos pagar até a última gota de sangue. Pelo sacrifício do que viera
desencantar as riquezas da lagoa. Fazer os homens iguais, fazer de todo o sertão um paraíso. Ele
mesmo verificava a sua fraqueza pensando nessas coisas. Superstição, ignorância, falta do Deus
verdadeiro no coração do povo. E era mesmo. Aparício, o maior dos cangaceiros, estivera com ele,
falara com ele, o mesmo Aparício do Araticum. Mentira em tudo. O jornal falava do irmão atacando
Mata Grande, e no entanto Aparício de braço doente sem fazer coisa nenhuma. Mentira de todo o
mundo. Aparício era igual a ele e a Domício. E o sertão inteiro tremia pensando nele, forças volantes
varavam a caatinga com rastejadores cheirando o chão, as pedras, atrás dele. Deus trancado no
sacrário. O vinho era o sangue. E o pão era o corpo de Deus. Aprendera tudo no catecismo de d.
Francisca do Monte. E não lhe chegava o sono. Por que não lhe vinha um sono que lhe afogasse os
pensamentos loucos? Domício. E a saudade do irmão foi chegando devagar, de manso, para perto de
Bento. E ele foi dormindo aos poucos. Tudo foi ficando para longe. Tudo foi andando para as
distâncias, para o fim. E dormiu.
Naquele dia não acordou para tocar a chamada da missa. As beatas teriam se espantado. O que
teria acontecido? O sino não tocara a primeira chamada. Bento dormia ainda, quando Maximina veio
chamá-lo:
— O sono te pegou, menino. O padre está te chamando. Ele já está na igreja.
Bento foi correndo. Acendeu as velas do altar, vestiu o seu hábito de acólito e entrou solene com
o livro sagrado nas mãos. Ia mais uma vez fazer-se de criado de Deus, pôr-se ao serviço do Deus do
sacrário. Tocou a campainha, que encheu de som a igreja. As beatas rezavam alto. D. Francisca
pigarreava, puxando a ladainha.

10

UM DIA SE DEU o grande milagre. A vida do Açu ressuscitou. O cadáver começou a estremecer, a
virar os olhos, a demonstrar que vivia. Chegara lá uma comissão de engenheiros, estudando a estrada
de ferro de penetração. A notícia se espalhou. Afinal de contas o Açu seria uma grande cidade.
Contava-se a história de Campina Grande, que era pior do que o Açu e que da noite para o dia virou
o que era. Falava-se em Limoeiro Grande, um arraial de três casas que se desenvolvera como por
encanto. Uma imensa esperança penetrara na vila. Era a conversa de todo o mundo. O pobre padre
Amâncio se entusiasmou com a ideia. D. Eufrásia, que estava na terra, não acreditou. Para ela ali
podia passar até navio, que não dava jeito, que não consertava o povo. Mas era a única descrente do
milagre. Na feira os matutos comentavam, se contaminavam das esperanças. E não era para menos.
Viria uma estrada de ferro para o Açu. Os engenheiros se demoravam na terra, andavam pelos
arredores nos estudos. O coronel Clarimundo hospedava os homens. Eles eram os grandes
instrumentos da futura prosperidade do Açu. A comissão se compunha de dois engenheiros e quatro
auxiliares. Estes se davam a todas as importâncias. Um deles falava como se fosse o chefe da
expedição. Já estivera na construção da Madeira-Mamoré, no Amazonas, e sabia histórias de todos
os tamanhos. Ali na expedição não faziam nada sem que ele fosse consultado. Os próprios
engenheiros pediam auxílio. Ele conhecia do riscado como ninguém.
Aos sábados, quando voltava do campo, Gustavo passeava pelo Açu a sua importância. Antônio
Bento se chegara ao auxiliar de engenheiro, como Gustavo se classificava. E as histórias dele
começaram a agir no rapaz. A vida do Pará era que era a vida. Na Madeira-Mamoré ele tirava de
ordenado cinco contos de réis. E isto porque não fazia negócios como os outros. Se não fossem as
febres, teria voltado ricaço. Em Belém tivera uma francesa que fora sua amante. Nunca vira criatura
mais bela. Dera-lhe um anel no valor de três contos. E gastou todo o dinheiro de suas economias com
o luxo da mulher. Era o que a infeliz queria.
— Depois me deu com os pés. Mas não ficou nisso não. Peguei a safada, dei-lhe uma surra, que
ficou roxa da cabeça aos pés.
Gustavo conhecia tudo que era mulher. Ali no Açu não havia uma que prestasse. Para ele as
raparigas da rua da Palha estavam caindo de podres.
— Agora eu te conto uma que me aconteceu. Eu até devia ficar quieto e não dizer nada. Mas eu
conto. Isso não faz muito tempo. Nós estávamos fazendo uma locação aqui perto. A comissão dormia
na casa dum fazendeiro. O homem era uma flor de delicadeza. Que homem bom. Pois não é que a
filha dele se engraçou de mim! No começo eu dei pela coisa, mas botei para namoro de moça do
mato. E a coisa foi crescendo, foi crescendo, que, quando eu dei por mim, só havia um jeito: era
pedir a filha do fazendeiro em casamento. Falei com ela, e a moça sorriu. Ela já era casada. Casada?
perguntei. E ela me contou: o marido andava lá no Piauí com negócio de gado, e ela viera ficar na
casa do pai. Você nem queira saber. Foi um passar bem sem conta. Manjei a mulher do homem como
quem come biscoito. Um engenheiro desconfiou de mim, e veio falar comigo, dizendo para acabar
com aquilo. O doutor me meteu medo. Ali no sertão, me disse ele, para se matar um freguês não se
custava. Felizmente para mim a comissão tinha que mudar de rumo. Mas a moça, quando soube, deu
para chorar e falou em sair de casa comigo. Falei a ela do marido, do pai, do escândalo, e ela com a
cabeça dura. Na caatinga e na serra, fazendo o serviço, era no que eu pensava. Cheguei até a me
arrepender do sucedido. Mas mulher é o diabo vivo. Uma noite a gente voltou do trabalho e
encontramos um homem novo na fazenda. Sabe você quem era? Não era nada mais nem nada menos
que o genro do fazendeiro. Ia haver uma desgraça. Mas qual. A moça nem parecia que tinha me
conhecido. Ficou de galinhagem com o marido. No outro dia de manhã, nem me apareceu, como fazia
todos os dias para me ver sair para o campo. Aqui neste sertão foi a única mulher que me deu gosto.
Os companheiros de Gustavo se divertiam pela rua da Palha. Ele, não. Não podia compreender o
gosto que tinha um homem de deitar-se com uma mulher daquela marca.
— Prefiro ficar no seco, mas não faço dessas coisas.
Bento ficava com ele na conversa até tarde. Aquele homem, como Dioclécio, conhecia uns
pedaços da vida. Gustavo fora grande no Pará. Dera anel de três contos a uma mulher. Não era
brincadeira, o preço de uma propriedade ali no sertão.
Gustavo descobrira a admiração do rapaz e caprichava cada vez mais nas histórias. Às vezes os
companheiros mangavam:
— Deixa de garganta, homem. Quem vê Gustavo falar, pensa que ele é o chefe do distrito.
Aí o homem entrava:
— Pois fiquem vocês todos sabendo que fiz trabalho de engenheiro na Mamoré. Ganhava como
engenheiro e não era favor que me faziam. Conheço do riscado. Sou velho nisso, vocês todos são
pegados a dente de cachorro, como recruta. Eu estou na inspetoria há mais de dez anos.
E a admiração de Bento ia crescendo. Um dia o amigo lhe falou em arranjar para ele um lugar na
comissão:
— Você começa como cargueiro, depois vai subindo. Esta vida aqui não dá pra nada. Eu peço ao
dr. Luís e ele bota você com a gente.
Bento ficou sensível à promessa. Afinal de contas, Gustavo tinha razão. O mais a que podia
chegar no Açu era ao que chegara o velho Laurindo. Isto mesmo se o padre Amâncio continuasse a
viver. Com a morte do padrinho, o padre novo traria uma cria para a igreja. O convite de Gustavo
era bom, tentava-o. Pensou porém no Araticum. A terra e o povo que ficavam por lá abandonados.
Abandonar a mãe acabada, o pai, Domício. Lembrou-se deles como se já tivesse cometido uma
ingratidão muito grande e dormiu mal, pensando em todos. De madrugada, de cima da torre, tocava a
chamada, resolvido a ficar ali mesmo. Dioclécio lhe falara do mundo. E Gustavo estava chamando-o
para este mundo. Mas não tinha força. Cadê força para deixar o padrinho, a vida do Açu, o Araticum
distante sofrendo? Viu na porta do coronel Clarimundo os cavalos prontos para a saída dos
engenheiros. Gustavo com os instrumentos amarrados na carga do seu cavalo. Todos prontos para o
trabalho da semana. Muito melhor do que viver como ele vivia, tocando sino, ajudando missa. A
madrugada espichava-se pela rua grande, ganhava os altos. Para longe, Bento mandava o toque de
seu sino. Viu os homens se sumindo no fim da rua, por onde se sumiam os enterros. Lá ia Gustavo.
Até sábado ficaria sem a sua conversa, só, com as falas de Maximina, com as poucas coisas que lhe
dizia o padrinho. Ele só falava com ele sobre coisas de seu serviço. Como fazia falta a Bento uma
troca de palavras com um amigo! O Açu inteiro era para ele uma só coisa. E d. Eufrásia cada vez
mais cheia de ordens, de luxo. Às vezes só tinha vontade de abrir com a velha. Eram demais as
impertinências, os gritos. Padre Amâncio ria-se com a irmã. E Maximina dera para falar, para
reclamar. Nos dias de bebida rompia em desaforos, ficava de olhos vermelhos e de língua solta. D.
Eufrásia se encolhia nessas ocasiões, e a negra tirava para falar alto, cantar, insultar todo o mundo. A
vila conhecia o peso de Maximina. Ninguém avançava uma pilhéria, porque a resposta vinha na
certa, agressiva.
Maximina também acreditava na estrada de ferro. E quando estava a sós com Bento, contava
histórias de sua vida. Viajara em carro de primeira classe. Fora a Garanhuns com uma família que ia
com um doente tomar ares. Sentara-se em banco de palhinha. Na primeira classe. Garanhuns perto do
Açu era uma cidade importante. Antes daquilo só havia lá um arruado. Lucrara daquele jeito por
causa da estrada.
O Açu mudava de cara. Em vez daquela feição macilenta de doente sem cura, criava cor,
resplandecia de saúde. Havia esperança no meio do povo. Marcava-se o lugar da estação. Uns
achavam que o trem devia parar atrás do coronel Clarimundo. Outros eram de opinião que a estação
devia ficar um pouco longe da vila para obrigá-la a crescer, a espichar-se até o trem. Fora assim em
Pesqueira. O escrivão Paiva atribuía ao coronel Clarimundo querer vender terras ao governo por
preços exorbitantes para o lugar da estação. O coronel mandou espalhar que cedia tudo de graça. Do
que ninguém duvidava era da realidade, o trem apitaria no Açu. D. Fausta se fora para Dores a
chamado do sargento. A casa do major estava de portas fechadas. Se o major estivesse vivo, estaria
dando opinião, marcando o lugar apropriado para a parada do trem. Ficaria na certa contra a ideia do
coronel Clarimundo. O prefeito queria era aproveitar-se das benfeitorias do governo. Havia quem
sonhasse com a inauguração da estrada. Os trilhos rompendo a caatinga. Subindo a serra, furando
lajedo. Chegando no Açu de noite, apitando, enchendo o silêncio da terra com o seu rumor, o chiado
de suas máquinas. Viria um sujeito botar um hotel no Açu. Viriam caixeiros-viajantes, viriam novos
estabelecimentos, novos descaroçadores de algodão. Sacas de lã ficariam expostas ao sol, do lado
de fora da estação, porque nos armazéns não cabiam mais. De todos os lados chegava gente para
tomar o trem no Açu. A vila cresceria, o governo teria que elevá-la a comarca. Viria um promotor,
um juiz de direito. Teriam que organizar uma banda de música, porque era uma vergonha que em
Dores houvesse uma, enquanto no Açu nunca se pudera organizar uma, por menor que fosse. O trem
traria tudo. A vida ali se multiplicaria. Até que enfim a caveira de burro se desenterraria. Levara
cem anos o Açu para se ver livre da desgraça da Pedra Bonita, cem anos caindo aos pedaços, sem
dar um passo para a frente. Tudo tinha seu dia. Na porta do major Cleto reuniam-se para falar da
estrada de ferro. A política perdera a importância para o grande melhoramento. Discutiam sobre o
fornecimento de dormentes. Havia as matas do capitão Honório da Cutia, que tinha madeira para
botar trilho até o fim do sertão. Joca Barbeiro achava que não precisava ir tão longe. Havia ali por
perto aroeira que dava para tudo. O coronel Gervásio do Olho-d’Água era homem para dar de graça
ao governo. O major Cleto achava que não. O governo devia gastar. Era uma benfeitoria para todos e
ninguém tinha o direito de exigir do coronel Gervásio madeira de graça. Joca Barbeiro achava que
sim. Era para o benefício de todos. O coronel Gervásio daria a madeira.
— Joca, você é um homem impossível — dizia o major Cleto. — Você pode estar aí mandando
na vontade dos outros?
— Ah! Nesse negócio não sou eu, é o povo — respondia o outro. — É uma precisão pública. O
coronel tem que dar a madeira.
Havia também uma coisa que preocupava o Açu. A estrada teria que passar na Pedra Bonita. Os
engenheiros falaram que possivelmente fariam uma estação lá. O Açu se irritou com essa
possibilidade. Não podia ser. Aquela gente não merecia isto, um povo de doidos. Mas havia as
vertentes da serra do Araticum, elemento indispensável para a estrada, água para as máquinas. Bento
ficou radiante quando soube dessa notícia. Os engenheiros haviam reconhecido que o Araticum
existia, tinha a sua utilidade. As águas nasciam nas terras dos seus, dos antigos Vieiras. No Açu
discutia-se, abria-se polêmica sobre os benefícios da estrada.
E a notícia chegou também ao Araticum. Domício tinha voltado para junto dos velhos, depois de
três meses de ausência. E não dissera a ninguém por onde estivera. Escondia de todos. Encontrou ele
o gado magro, o roçado no mato, tudo se acabando. Teve que chamar um vaqueiro para ajudá-lo. Era
um cabra ali de perto mesmo. E em Dores o cabra soubera das notícias da estrada de ferro. Ouvira
ele na venda de Nicodemos um sujeito falando da coisa. A estrada atravessaria a serra do Araticum.
Domício recebeu a notícia e nada disse em casa. O que adiantava dizer em casa? A mãe era aquela
tristeza, aquela secura de morte. O pai, o silêncio, a indiferença para tudo que não fosse o seu
animal. Calou-se, e ele mesmo procurou se esquecer. Só se lembrava de Bento. Esse fora a grande
coisa da vida de Domício. Fugira dos seus, andara de fazenda em fazenda, de feira em feira, descera
até a mata, estivera à beira do mar. Mas não se esquecera do irmão. Do único ser no mundo que ele
sabia com um coração, com uma vida que se pareciam com os dele. Só voltara por causa de Bento.
Enjeitara mulheres. Bem via os olhos que elas faziam quando ele cantava, quando a sua viola era a
mesma coisa que ele, tudo a mesma coisa, canto e tocada. Vira o povo nas feiras chorando com a
história da Pedra que ele inventara, com a história da prisão da mãe, com a surra que levara na
cadeia de Dores. Criara fama, criara nome. Apareceu um sujeito querendo que ele cantasse para
tomar nota, escrever as coisas e fazer folhetos. Não queria nada. Diziam que ele era doido. Nunca
tinham visto um cantador que não gostasse de ser gabado. Fugia de lugar a lugar. Uma coisa infeliz
andava por dentro dele. Era o sangue, o destino de errante, de Judas, do qual Zé Pedro falara. Andou
muito. Soube de coisas de Aparício. Ouviu os matutos falando de coisas de Aparício. O irmão virara
o maior cangaceiro. Não dizia a ninguém que era irmão dele. Não acreditariam. Não seria possível
que Aparício fosse o homem de que falavam. Conhecera-o. Tinham vivido juntos e não era possível
que Aparício fosse aquilo, aquele terror, aquela fera, aquele monstro. Viu numa feira um folheto com
o retrato do irmão, que nada se parecia. Só podia ser outro com o nome de Aparício. E assim chegou
no Araticum com vontade de não se fazer mais na viola. Viera somente para enterrar os velhos.
Depois que os bichos tomassem conta da terra, que o mato crescesse, que tudo se acabasse no
Araticum. Aparício no cangaço, ele pelo mundo e Bentinho criado fora dali, longe da desgraça que
pesava sobre todos. Agora viera aquela notícia. O Araticum daria água ao trem da estrada de ferro.
Viriam máquinas beber água no Araticum. Seria que o trem tivesse força de tirar a desgraça da terra?
Seria que a Pedra se acabasse, que Deus se esquecesse dos castigos, das vinganças? Domício nada
quis dizer a sua mãe das notícias que o vaqueiro lhe dera. Pobre dela que era aquela sombra perdida
por ali. Levara cipó de boi nas costas magras, estivera nas grades. O filho era o maior cangaceiro do
sertão. O outro, que ela amara, não fora nada, não chegara até onde ela desejava que ele fosse. Não
sabia como ela ainda podia com a mão de pilão, com a boca do fogo. Pobre mãe consumida em vão.
Aquela notícia de que a estrada de ferro viria atravessar o Araticum trouxe a Domício um alento. Só
mesmo uma força daquelas poderia com a Pedra Bonita. Ele sabia que a Pedra pesava sobre todos.
Disto ninguém o separava, desta certeza infeliz. Andara por longe, vira outra gente, outras terras.
Mas nas horas de estar sozinho a ideia lhe vinha como um peso nas costas. Zé Pedro afirmara que
eles eram responsáveis por muita coisa de ruim. O vaqueiro ouvira em Dores a história do trem que
viria para a Pedra. Só mesmo à força de máquina se livrariam do pavor, de uma dívida que era maior
que tudo. O trem correria pelas terras do velho Bentão. Ali pela porta de casa ficariam olhando a
passagem dos bichos. Teriam que parar no Araticum para beber água. O governo agora não seria
somente a volante matando, metendo o cipó de boi. Era também o trem arrastando carros, levando
cargas, levando gente. Tudo se modificaria por aquelas bandas. Aparício teria que procurar terras
desertas, caatingas distantes, por onde não se ouvisse apito de trem. As terras do Araticum subiriam
de preço. Viria gente de fora plantar no Araticum, gente que não tivesse medo da Pedra, medo dos
Vieiras. A água do Araticum daria força às máquinas para subirem a serra, entrar pelos cortes, varar
o sertão. O povo tinha medo das vertentes do Araticum. Veriam então que tudo o que se espalhava
não tinha razão. Deus não podia ficar contra eles, que nada tinham feito de mal. Aparício se fizera de
cangaceiro, mas quantos ali no sertão não se faziam, de quantas famílias iguais à dele não saíam
cangaceiros, criminosos? Mas a linha de ferro viria para acabar com tudo. Os aguardenteiros
chegaram com as mesmas notícias. Era no que se falava lá embaixo: no Açu. O sertão ficaria de
repente num céu aberto. Os engenheiros já estavam estudando os planos. Eles tinham encontrado os
homens com os instrumentos fazendo medição na caatinga. O negócio era seguro mesmo. Dúvida não
haveria mais. A estrada ia ficar no Açu. O povo da vila já estava ficando besta com a coisa.
Domício foi dormir naquela noite com a notícia boa. Há quanto tempo que só lhe chegavam maus
sucessos. Aparício reduzindo a sua gente a escrava das volantes. Ele e Bentinho dormindo no mato, a
mãe e o pai apanhando de soldados. Chegara enfim alguma coisa que não era só para fazer eles do
Araticum sofrerem. A água das nascentes da serra serviria para mover os trens. E o sono não chegava
em Domício naquela noite. Uma coisa esquisita ele começou a ouvir. Um aboio distante. Sabia o que
era. Enterrou a cabeça na rede para não ouvir. E ouvia sempre. Abriu a janela para olhar o tempo.
Uma lua alvíssima branquejava céu e terra. Era o canto que vinha atrás dele, perseguindo-o,
enchendo-lhe a cabeça. Tinha força para resistir. Ele tinha os velhos ainda para tomar conta. Pensou
em Bentinho. Se o irmão estivesse ali, o ajudaria. Era só bater nos punhos da rede dele, e tudo se
acabaria. Aquele canto se sumiria. O aboio chamava-o. Aquilo não existia. Estava certo que não
existia. Não estava ouvindo coisa nenhuma. Mas o canto continuava doce, como um embalo de mãe.
Domício fechou a janela, com medo. Deitou-se na rede, segurou-se como se um pé de vento
ameaçasse carregar com ele. E, entre o sono e o medo, ouviu como se fosse de verdade o apito de um
trem igual àquele que ouvira em Limoeiro. Tudo ele ouvia naquela noite em que cantava a cabocla da
furna. Ele ficava uma criança, com o juízo de um menino de peito.

11

PASSOU UM SUJEITO pelo Araticum e deu a notícia a Domício: tinha aparecido um santo na Pedra
Bonita. Era um homem barbado, de cajado na mão, com um cavalo branco que fazia milagre. Já havia
muita gente descendo para a Pedra. O velho Zé Pedro dizia ao povo que aquele era mesmo um
enviado do Filho que há cem anos dera o sangue pelo povo.
Domício ficou alarmado. Quis selar o cavalo e ver o que se passava. Teve receio. Capaz de
alguém o descobrir no meio dos romeiros e haver uma desgraça. Porque os Vieiras eram tidos como
gente danada para eles. No outro dia, porém, passou povo pelo Araticum com destino à Pedra. Era
uma família que morava a mais de doze léguas de distância. Já havia chegado por lá a notícia. O
santo, que aparecera na Pedra vinha com poderes maiores do que o Padre Cícero do Juazeiro. Vinha
com força de desenterrar defunto e fazê-lo viver outra vez. O cavalo dele deitava remédio para todas
as doenças. Era só se pegar no excremento do bicho, passá-lo nas feridas e bebê-lo como chá. E tudo
se acabava. O povo de onde estava vindo se preparava para descer.
E nos outros dias continuava passando gente. Por debaixo das oiticicas paravam para deixar o
sol esfriar. Era gente que trazia cegos, aleijados, feridentos para os milagres da Pedra. Domício foi
ficando com vontade de ir com eles para ver. Misturou-se assim com os romeiros e botou-se para a
Pedra Bonita.
De longe foi vendo o povão no baixio. A Pedra luzia ao sol como um espelho. Em derredor dela
se juntava gente de toda espécie. Ouvia-se o barulho de longe, um falatório de uma feira gigante.
Haviam armado latadas, como nas santas missões. Domício foi se chegando alarmado com o que via.
O que estava ali reunido era um povo que devia ter vindo de muito longe. Uma gente desconhecida,
esfarrapada. Falou logo com um grupo que se aboletara por debaixo de um imbuzeiro. Eram de
Piancó. Lá tinha chegado a notícia: o santo dava riqueza, saúde. No dia do milagre grande, não
haveria mais ricos nem mais pobres. Tudo ficaria igual: os Dantas de Teixeira, os Leites do Piancó,
os Carneiros de Pombal. Tudo ficaria igual a eles, o milagre se daria sem ninguém perceber. Era só
questão de esperar. Havia uma paralítica deitada no chão. Só podia bulir com os olhos. As pernas
finas, os braços como gravetos. O pano que cobria a pobre mal dava para tapar as partes.
À tardinha o santo viria falar ao povo. Domício esperou. Estava com medo. Podia ser mentira,
mas podia ser verdade. Quantas vezes não ficara pensando no sangue que corria em suas veias. E
quando foi de tarde o povo foi correndo para o pé da Pedra. Então Domício viu o homem subindo
para um lajedo que ficava perto da Pedra Grande. Era um homem baixo, entroncado, de barbas
compridas e pretas. Estava vestido de azulão, como se fosse uma batina de padre, até os pés. Subiu
ele para o lajedo e ficou quieto olhando para um lugar distante. Parecia que não havia um povão aos
seus pés. Depois levantou as duas mãos para o céu e falou. Era uma reza que nunca Domício ouvira
igual. O homem chamava os espíritos e falava ao mesmo tempo de coisas da terra. Ele daria riqueza
ao povo. Ele daria uma vida que era melhor do que a vida dos mais ricos da terra. Tinha vindo para
a Pedra a mandado de Deus. Estava em sua casa bem descansado, quando ouviu a voz de um anjo lhe
dizendo: “Sebastião, anda, anda e vai para a Pedra Bonita. Lá estarei contigo e com todos os santos.”
Aqui estava para conduzir o povo para Deus, para o céu.
O povo embaixo urrava. Mulheres choravam, doentes gemiam. Aí o homem se ajoelhou e foi
dizendo o padre-nosso com a voz fanhosa, uma voz do outro mundo. Domício se arrepiou. Aquilo
estava entrando direitinho no seu corpo. Queimava-o. Viu assombrado o homem se erguer e marchar
por entre os devotos que se prostraram com a sua passagem e andar até a latada onde estava o cavalo
branco. Lá parou. Falou baixo com o animal. Disse ao ouvido da besta qualquer coisa que ninguém
ouviu. Alisou-lhe a cabeça, passou-lhe a mão pelo rabo, deu um bocado de capim verde para ele
comer. E depois foi voltando para o lugar de onde viera. Andando como se não visse ninguém, o
olhar absorto, o andar seguro, firme, e as barbas grandes até a cintura e os cabelos caindo nos
ombros. E assim foi andando para a Pedra Pequena e fez um sinal para o povo, um sinal de silêncio.
E se fez um silêncio imenso no meio do povo. O santo ia fazer o milagre daquela tarde. Domício
tinha a impressão que nem o vento soprava nos catolezeiros nem os pássaros e nem os bichos se
mexiam no mato.
— Maria — gritou o homem —, Maria dos Anjos, Deus te quer, Deus te chama.
Um silêncio imenso cobria tudo.
— Maria dos Anjos, vem, vem, mulher, que o diabo te escolheu para tentar. Vem, mulher, vem,
mulher.
E, quando se viu, foi um grito, um grito de um desespero maior de todos. Domício olhou para o
lado donde partira aquele brado. E ia uma mulher cambaleando como uma bêbada, tonta. O povo
deixava-a passar.
— Ela era uma aleijada — disse uma mulher junto de Domício —, e está andando.
— Deus do céu — disse outra — é um milagre.
O povo urrava, urrava como gado sem água para beber. Deus quisera, Deus quisera que a mulher
andasse para o santo. O homem estava em pé com os braços levantados. O vento soprava-lhe nas
barbas, agitava-lhe os cabelos. Embaixo, aos pés dele, gritavam os devotos. Domício ficou parado
num canto. A noite vinha chegando. E o santo desceu para sua latada de palha. Iam com ele umas
vinte mulheres desgrenhadas, cercando-o como uma guarda de honra.
Domício veio voltando para casa aturdido com o que vira. Vira um milagre, vira o poder de
Deus descendo na terra, entrando no corpo de uma mulher aleijada, dando forças a pernas que
estavam mortas. Vira um milagre. E Bentinho lhe falava em superstição, em ignorância. Qual nada!
Vira um milagre. E o seu cavalo vinha à rédea solta de caatinga afora. Estava sozinho no meio do
mato, ele, Domício, que tinha sangue de Judas nas veias. Era duma família que Deus castigaria na
certa. De uma família que estava chegando às últimas. E o milagre do santo crescia-lhe na cabeça. E
a imagem do homem fazendo o milagre criava proporções enormes para Domício. Os olhos eram
vivos. Olhando para um canto só, a barba preta, os braços erguidos para o céu. Era um santo. Ele,
Domício, acreditava. Por que então não voltaria e não ficava como os outros por perto dele,
ajudando, feito criado, fazendo penitência? Mais para diante encontrou gente a cavalo, mulheres,
meninos, velhos, que vinham para Pedra. A voz do santo chamava o povo, e Domício foi andando
com a rédea solta. Um bacurau cortou asas na sua frente. E quando foi dando a volta na estrada, na
direção do Araticum ouviu um chamado:
— Domício!
Chamavam pelo seu nome e era uma voz conhecida. Parou para reconhecer e viu Aparício com o
grupo.
— Donde tu vem esta hora, Domício?
O irmão contou tudo. Vira um milagre do santo. Era um santo de verdade, Aparício não pôs
dúvida.
— É mesmo. A Pedra só dá disto.
E pediu notícias da mãe. Soubera que ele tinha deixado o Araticum e fora até falar com Bentinho
para vir ficar com os velhos. Agora não precisava mais, porque ele tomaria conta de tudo. Domício
ainda estava meio tonto com o que vira, tanto que nem dera importância ao aparecimento de
Aparício. Aos poucos foi reparando, tomando conhecimento das coisas. O irmão tinha anel de
brilhante no dedo, corrente de ouro. O clarão da lua era mesmo que dia. Os cabras se espichavam no
chão, no descanso, e Aparício e Domício entraram na conversa:
— Aparício, tu quer saber de uma coisa? A gente está pagando mesmo. Eu até já tinha esquecido,
mas a sina da gente é pagar até a última gota de sangue. Tu não te lembra disto porque estás no
cangaço. Cangaceiro só tem mesmo que se lembrar é de briga. Eu é que fico em casa e vou sabendo
das coisas. O santo é santo mesmo de verdade.
Aparício ouvia atento o irmão. Sempre brincara com Domício, sempre mangara daquele gosto
dele pela viola, pelo cantar. Fora para o cangaço. E quando queria se lembrar de um ente querido,
não era do pai, não era da mãe que se lembrava. Era de Domício.
— Nada, Domício, tu aprendeste isto e não desaprendeste. A gente não tem que ver com os
outros. Tu anda é escutando demais as coisas que o povo diz. No cangaço a gente se esquece de tudo.
Ontem mesmo eu dei um cerco na fazenda do capitão Simeão do Jenipapo. O velho ainda deu uns
tiros. Tu pensa que eu tive pena? Cangaceiro do bom não pode ter pena. A mulher do velho chorava
como bezerro desmamado. Mas dei no bicho o ensino que prometi ao coronel Quinca do Bebedouro.
O velho deve ter ficado no sal. O coronel Quinca pediu a gente.
Domício não disse nada. Estava defronte do irmão, que enchia o sertão de terror. E no entanto
era o mesmo Aparício, não fazia diferença.
— Tu não devia fazer essas coisas, Aparício. Aonde já se viu se pegar um homem para fazer uma
coisa destas a mandado?
— Tu não sabe o que é a vida de cangaço, Domício. Cangaceiro faz estas coisas para aguentar o
repuxo. O coronel manda a gente fazer essas coisas e a gente faz. Mas quando chega o dia de
esconder o grupo, ele esconde.
Domício perguntou-lhe se ele sabia também da história da estrada de ferro. Vinha trem passar no
Araticum.
— Tu vai atrás disto, Domício? Não faz uma semana que nós peguemos uns homens na caatinga,
mesmo no pé da serra. E fizemos o diabo com eles. Eles disseram quase chorando que era da
engenharia. Os cabras quiseram acabar com eles. Deixei os pobres depois de fazer medo de todo
jeito. Jararaca deu até um tiro em cima de um. E o negro Aluísio marcou lugar no pescoço para furar.
Quebremos os troços dos homens. E tomamos tudo que eles tinham para comer. Era comida que não
acabava mais. Tinha até vinho do bom.
Domício ouviu tudo. Aparício era o mesmo. Ele precisava ir embora. Despediu-se do irmão e foi
com a Pedra Bonita, o santo Sebastião e Aparício bulindo-lhe na cabeça. Em casa não pôde dormir
aquela noite. Havia gente nas oiticicas. Saiu para ver quem era. Uns aguardenteiros que há tempos
não passavam por lá, estavam no descanso, tocavam viola.
— Menino, isto por aqui está ficando ruim — foi lhe dizendo o chefe dos homens. — Temos
deixado de passar por aqui com medo dos cangaceiros. Os cabras pegaram um comboio na caatinga,
na passagem para a Paraíba, e mataram até os cavalos. Tomaram dinheiro dos matutos, fizeram um
estrago dos diabos.
A noite estava boa mesmo para uma tocada de viola. E o aguardenteiro começou a tocar.
Domício reconheceu imediatamente, na cantoria do homem, a história que ele fizera. A coisa tinha se
espalhado pelo sertão. Cantara nas feiras e aquele aguardenteiro já sabia de cor.
— Onde você aprendeu estas loas, seu Joaquim?
— Menino, quem cantou isto pra mim foi um negro do Crato.
Domício ouviu a cantoria com orgulho. Coisa que ele cantara tinha virado canto do povo.
Cantava-se no Crato, cantava-se nas feiras. Era a mãe de Aparício nos versos. Aparício, o grande da
cantoria. Ficou assim embriagado com a glória. Mas em casa, na rede, voltou o milagre da Pedra
Bonita a mexer com ele. Vira o milagre e uma mulher entrevada correndo para perto do santo,
boinha, andando como os outros. E o povo urrando, sentindo os poderes de Deus no homem de barba
grande. Este levantava as mãos para o céu e o céu lhe acudia ao chamado. Os ouvidos de Deus
estavam abertos para os pedidos do santo. Fora assim com o outro que mataram na caatinga, o outro
que o Vieira traíra como Judas a Nosso Senhor.
Amanheceu com uma coisa na cabeça. Bentão já estava no curral tirando leite das vacas.
Domício viu a mãe na cozinha fervendo água para o café. Teve vontade de falar com ela sobre o
milagre que vira. E foi ela mesma quem falou com ele:
— Domício, apareceu um santo na Pedra. Já estava tardando. Parece que eu estava adivinhando,
quando deixei Bentinho longe daqui. A sina da gente é essa mesma. Ele veio para desgraçar tudo. A
mãe de minha mãe contava a desgraça da Pedra, o sofrimento dos antigos com o santo que apareceu.
Morreu tudo no clavinote, na faca dos soldados. Sertanejo é assim mesmo: vem santo, vem
cangaceiro, vem a volante. Menino, bom é ser como teu pai, que não sabe de nada do mundo. Muitas
vezes eu invejo o gênio de Bentão. Deitado na rede, e o mundo que rode à vontade.
Aí Domício contou à mãe tudo a que assistira na tarde do dia anterior. Contou do povão que
gritava, que gemia, que chorava, das mulheres com cara de doidas acompanhando o santo. Ele vira o
milagre. A aleijada andando com as pernas dela para perto do santo.
— Tu viste mesmo, menino?
— Vi, mãe. Vi tudo como daqui pra ali. A mulher andando para junto da pedra onde ele estava.
A velha ficou pensando um instante, olhando para o chão e com uma profunda tristeza disse para
Domício:
— Não há jeito não. A gente tem mesmo é que sofrer. É força de cima.
O rosário pendia do pescoço magro, de pregas. E foi para dentro de casa. Domício tinha que
levar as vacas para um pasto melhor. A mãe só pensava em Bentinho. Todo o amor dela era para o
caçula, que se criara por fora de casa. Todo o desejo da velha era que este filho não fosse igual aos
Vieiras do Araticum. Viera o santo esperado para destruir o resto da família. Bentinho distante não
sofreria a perseguição dele. Teve raiva da mãe. Ela renegava os seus, estava contra os da sua terra.
Mas foi de pouco tempo aquela raiva. A pobre sofria tanto, que ele não teve coragem de ofendê-la
com o seu ódio. A mãe quisera salvar Bentinho da sorte da família. Dera-o a um padre, pusera-o
junto de Deus para ver se conseguiria dar jeito a Bentinho.
As vacas iam na frente de Domício chocalhando pela estrada. E ele atrás encourado. Teria
depois que dar uma corrida até o raso onde estavam os garrotes engordando, o resto do gado de
Bentão. Na manhã clara, borboletas cortavam o espaço em bandos. Tudo estava bonito: o céu, a
caatinga coberta de luz com as suas flores cheirando, os imbuzeiros carregados. A terra cheirava nas
primeiras horas, e o canto das seriemas enchia o silêncio, como um grito de socorro. Domício não
ouvia nada, não via nada. Era o milagre, era o santo, era Aparício, era Bentinho que estavam com
ele. Parou para olhar as vacas, que se distanciavam sem rumo, e, como se tivesse entrado uma coisa
nele, começou a aboiar. Era um gemido profundo, danado, que ia para ouvidos que estivessem longe.
As vacas pararam virando a cabeça para o lado de Domício, na expectativa, sentindo a voz do chefe,
do guia. E Domício continuou no aboio. De casa a mãe escutaria aquilo como se o coração do filho
estivesse se partindo. Os pássaros e os bichos da caatinga parariam para ouvir. Um canto sentido de
vaqueiro tinha força sobre tudo.
Naquela manhã o aboio de Domício fora o mais triste de sua vida. Devia até ter estremecido as
cobras do Araticum.
12

A CHEGADA DA COMISSÃO no Açu foi uma tristeza. Vieram destroçados, contando o ataque dos
cangaceiros. Estavam no descanso, na caatinga, quando se viram cercados pelo grupo. Pediram
dinheiro. Queriam todo o dinheiro que eles tivessem. E, como não encontraram, entraram a fazer o
diabo com eles. Pegaram o engenheiro-chefe para matar. Um cangaceiro botou o homem a distância e
fez pontaria para derrubá-lo. Era só para meter medo. Um negro brincara de enfiar um punhal no
pescoço de um outro engenheiro. Faziam pena o estado e o pavor dos homens. O chefe da comissão
mandou um portador a Dores pedindo força para se retirar para a capital. O grupo que fizera o
serviço era grande.
Bento foi logo procurar Gustavo para saber da coisa. E encontrou o amigo calado. Eles tinham
sofrido o que não se podia imaginar. Tinha ouvido falar de cangaceiro, de malvadeza de cangaceiro e
pensou que fosse lorota de jornal. Quando se viram cercados pelo grupo foi que ele avaliou o que era
aquela gente.
— Me disseram que o chefe deles era o teu irmão. Pois foi o chefe quem tratou a gente melhor.
Se não fosse ele, tinham matado todos nós. Fizeram o diabo com o engenheiro-chefe. Botaram o
homem amarrado numa árvore e dispararam uma arma por perto da cabeça dele. Nós andamos a pé
mais de seis léguas, sem água e sem comida. Os doutores devem estar estragados por muito tempo.
Eu aguentei firme. Estava acostumado.
Mas os companheiros caíram em cima de Gustavo:
— Cala a boca! Tu tremias que só vara verde.
— Medo eu tive — continuou Gustavo. — Não vou dizer que não tive medo. Mas aguentei. Vi a
morte e já estava até disposto a morrer.
Os homens estavam cansados e Bento deixou-os. Foi para casa. No caminho encontrou Joca
Barbeiro furioso conversando com outros:
— Terra de monstros — gritava ele para o major Cleto.
Estavam parados na porta do major Cleto. E vendo Bentinho, o homem continuou ainda mais
forte:
— Terra de monstros, de cobras! O Açu não vai para diante por isto. É esta Pedra Bonita que
desgraça o Açu.
Bento quis parar, mas foi andando. E em casa encontrou o padre Amâncio com visita. Era um
homem do interior, de pés no chão, de fala mansa. Ouviu que ele falava da Pedra e que o padre
prestava uma grande atenção ao que ele dizia.
— Venha ouvir, Antônio, o que ele está dizendo — lhe disse o padrinho.
O homem contava:
— Pois, seu vigário, apareceu este sujeito dizendo que faz milagres. Ele diz que pobre fica rico,
que a pobreza vai desaparecer, que o mundo só fica com gente de posses iguais. Tem muita gente
descendo para ouvir o homem falar. Ele veio do São Francisco. Disse que apareceu uma voz
mandando ele para a Pedra. E tem curado gente que o senhor não calcula. Lá das minhas bandas tem
saído um povão. Sertanejo, quando escuta falar dê coisas assim, perde o prumo. O homem só come
comida de erva e tem um cavalo branco que ninguém monta nele. O cavalo tudo que deita pra fora,
com licença da palavra, serve de mezinha para o povo. A coisa está nesse pé. Pela minha porta passa
romeiro como retirante na seca. Tudo atrás do milagre. Estão dizendo que a lagoa vai se desencantar.
E vão tirar ouro e pedra dela que dá para enricar todo mundo. Eu ainda não fui ver o beato. Mas
minha mulher todo o dia me aperreia para ir. É de manhã à noite com a peitica: “Vamos pra a Pedra,
Félix.” Os meus vizinhos já foram e viram coisa de arrepiar. Viram um mudo falando, um aleijado
sacudir as muletas no mato, bonzinho de seu. A Pedra está coalhada de gente. O velho Zé Pedro que
mora por lá há anos falou pra o povo que o homem é igual ao santo dos antigos. Vindo hoje aqui à
vila, eu me lembrei de falar com seu vigário. Disse para mim: “Vou falar com seu vigário da história
da Pedra.” Estão dizendo também, por lá, que os padres condenaram o homem, mas que ele só
obedece a mandado de Deus. Igualzinho ao que sucedeu com meu padrinho Padre Cícero.
O padre Amâncio ouviu o homem com toda a atenção. Depois lhe falou, dizendo que o povo
estava iludido. O tal santo não passava de um aventureiro. Eles deviam se prevenir contra ele. Deus
não ia escolher um homem assim para seu instrumento. Tudo era mentira, embuste, falsidade.
O homem olhou para o padre, espantado:
— Seu vigário, e os milagres? João José, meu vizinho, viu o aleijado andando, o mudo falando.
O padre procurou explicar: eram casos de nervosos, falsos doentes, que se curavam pela
sugestão. Mas viu que não convencia o homem. E quando ele saiu, padre Amâncio compreendeu que
tinha chegado o trabalho mais sério de sua vida. Olhou para Bento com um olhar de tristeza e foi para
o seu quarto. Estava velho, doente, acabado, e viera rebentar a superstição da Pedra Bonita com ele
sem força para a luta. O demônio chegara na hora boa. Escolhera o momento oportuno. Padre
Amâncio se sentia vencido, dominado. Há vinte anos no Açu, dera ao povo toda a sua mocidade,
nunca perdera um instante, nunca fugira ao chamado do povo. Mas sempre pensava numa coisa como
aquela que agora aparecia. Era fatal. Ele media a situação e se via na iminência do maior perigo de
sua vida. Não podia ficar em casa esperando que o inimigo crescesse, se alastrasse. Teria que agir.
Era o seu dever, era a sua missão. Com pouco todo o sertão se incendiaria, como sucedera no Ceará
com o Padre Cícero. Todo o poder espiritual passaria para as mãos do fanático, do que era somente
instrumento do diabo. Ficou assim pensando, meditando. Fez cálculos de ação, estudando meios de
enfrentar o inimigo. E depois de muito imaginar chamou Antônio Bento para indagar de alguma coisa:
— Enquanto você esteve lá, não ouviu falar deste homem, Antônio?
Bento contou da visita ao velho Zé Pedro. Domício, seu irmão, levara-o para ouvir do velho a
história da Pedra Bonita. E ele ficara sabendo de tudo. Mas nesse tempo a Pedra estava vazia de
gente. Não havia vivalma. Só mato.
O padre Amâncio fechou os olhos, como era de hábito quando queria ficar só. E a questão
permanecia insolúvel. Teria que tomar todas as providências, agir sem demora, sem tréguas. Ficou
na rede até ouvir a primeira badalada das ave-marias. Aí levantou-se e foi para o seu genuflexório e
rezou. Baixou a cabeça e entregou-se de corpo e alma à oração. Vinha chegando para ele a grande
batalha que Deus lhe reservara há vinte anos. Estava velho, acabado. Mas teria que se meter na luta.
A última badalada do sino tremia nos seus ouvidos. Lá dentro de casa sua irmã Eufrásia dava ordens
gritando. E o Açu na calma de um fim de dia. Padre Amâncio levantou-se e foi à porta da rua. E viu a
paz de sua paróquia. Tudo em surdina, calado. E a noite chegando, os candeeiros de querosene se
acendendo pelas casas. Viu as beatas de passo vagaroso subindo a rua depois da reza da igreja. Eram
as suas ovelhas mansas. Lá por longe, o rebanho se entregava a outro. Ouvia a voz de outro. O
impostor tomava-lhe o lugar. Não seria culpa sua, dele Amâncio, relaxamento de sua parte?
Procurara o mais que pudera o povo da Pedra Bonita. Levara até um capuchinho da Penha para uma
missão. E tudo fora inútil. Ele nunca deixara de esperar por aquilo. Tardara. Mas um dia ou outro
teria de romper. E a coisa veio forte, o incêndio já estava pegado. O povo entregue, obedecendo a
um aventureiro, talvez um explorador, como tinham sido quase todos os outros. Criara aquele menino
da Pedra Bonita pensando no povo de lá. Quisera que Antônio fosse padre para ver se ele dava um
grande exemplo à sua gente. Não pôde chegar a esse ponto. Rompera a crença, como há cem anos.
Como se os homens fossem os mesmos de um século atrás. Há um século o frade Simeão fracassara.
Não tivera força para conter a avalancha. Seria com ele, seria com o padre velho do Açu que outra
vez Deus experimentaria o poder de seu servo.
— Amâncio, o jantar está na mesa.
Era a voz da irmã chamando. O padre se sentia cercado no deserto, só, sem o auxílio de um
mortal. Lutaria até o fim. Não enjeitaria a provocação. Ouviu outra vez a voz da irmã. Sentou-se na
mesa e foi comendo.
— O que é que tu tens, Amâncio? — perguntou a irmã. — Não foste à igreja agora de tarde, e
esta cara não engana ninguém. Estás sentindo alguma coisa?
E a velha botou a mão na testa do irmão para sentir o calor, como se ele fosse uma criança. E
falou-lhe como sempre, com aquela sua amargura: era aquela vida no meio de bichos, de gente que
não merecia, que fazia o seu irmão ficar assim, acabado. Não vira o que sucedera aos engenheiros?
Vinham trazer benefício para a terra, e correram em cima dos pobres como em cima de cachorros
danados.
O padre fingia achar graça nas coisas da irmã. Depois do jantar saiu para conversar com o
coronel Clarimundo. Encontrou o prefeito alarmado com a história dos engenheiros. A comissão
aguardava ordem de regresso. O doutor lhe dissera que já tinha mandado o seu pedido de demissão.
— Os homens sofreram o que o senhor não imagina, padre Amâncio! Aliás eu vivia dizendo aqui
todo dia: esta comissão só deve trabalhar na caatinga com força e serviço dela. Como é que se solta
esses homens pra sofrer o que sofreram?
O padre Amâncio falou-lhe das notícias que tivera da Pedra Bonita.
— É a desgraça do Açu, seu vigário, é aquela gente. O povo de lá só vive assim: “quando não é
no cangaço, é no fanatismo”. Eu não queria dizer nada, mas quando vi o senhor tomar aquele menino
pra criar, fiquei dizendo pra mim mesmo: “Padre Amâncio está criando uma cobra.”
— Não é só da Pedra Bonita, coronel. O sertanejo é o mesmo em toda parte. O que se dá é que o
povo se impressiona com a situação natural da Pedra. O lugar é próprio para estas coisas, estas
superstições. Aquelas duas pedras, como se fossem duas torres de igreja, tudo isso faz virar a cabeça
do povo. O erro foi o que fizeram há cem anos atrás: mataram gente, derramaram sangue.
— Mas padre Amâncio, o senhor não brinque com essa gente. Só deram um ataque na Pedra
porque eles estavam cometendo crimes, e o governo só castigou quando foi preciso.
O padre achava que não. Sempre havia a oportunidade para se evitar represália sangrenta. O
povo tinha bom coração. Fossem com jeito que tudo se tirava do povo.
O coronel estava do outro lado. Conhecia com quem tratava.
— Seu vigário, este povo só quer saber de quem maltrata.
O padre Amâncio voltou para casa com a coisa na cabeça. Teria que agir contra os fanáticos da
Pedra Bonita com toda a urgência. Mas temia o fracasso. Não contava com a sua força, via-se fraco,
incapaz de vencer, de dominar. Mas teria que lutar. Deitou-se para dormir e o sono não chegou. A
imagem da Pedra na cabeça. Lembrou-se de quando estivera lá, com frei Martinho. Lembrou-se da
beleza da Pedra com o sol em cima, dos catolezeiros gemendo ao vento, como os coqueiros da praia
de Goiana. As duas pedras grandes como duas torres de uma igreja aterrada. Desceu com o frade,
andaram a pé. Viram os imbuzeiros enormes, o mato grande cobrindo a terra onde correra sangue de
gente. E aquilo parecia-lhe de mil anos atrás. A natureza consertara tudo. Dera um aspecto tão
selvagem aos arredores que lhe parecia que nunca andara pessoa alguma por ali. E no entanto a
história falava de coisas horríveis. O frade sabia também a história e lhe falara de fatos idênticos por
outras terras, por outros cantos do mundo. O homem era um só por este mundo de Deus. O lugar da
Pedra era bonito. Era bem moço no tempo em que estivera lá, mas se sentiu acabrunhado, como se a
desgraça que acontecera fosse por sua causa, por sua desídia. E Deus reservara para ele a mesma
carga, o mesmo destino do frei Simeão. Um louco tomara conta da Pedra Bonita, fazendo milagres,
arrastando o povo para a rebeldia. O padre Amâncio ligava as coisas, unia os acontecimentos. O
governo receberia o ataque à comissão dos engenheiros como uma afronta dos fanáticos e dos
cangaceiros. Com pouco a Pedra seria arrasada, viriam forças do exército, desceriam batalhões,
atacariam o reduto. Tudo destruído, mulheres, crianças, velhos, tudo destruído. Os cadáveres
estendidos no chão para os urubus. Padre Amâncio levantou-se da rede. Os soldados marchariam
contra os pobres, ele estava ouvindo, como se fosse uma alucinação, ouvindo disparos, gemidos.
Apavorou-se, gritou pela irmã.
E d. Eufrásia chegou. Toda alarmada, encontrou o irmão banhado em suor como se estivesse com
um ataque de sezão.
Não era nada, lhe disse o irmão. Mas tivera um sonho mau, um pesadelo horrível.
Pela manhã padre Amâncio celebrou a missa, pedindo a Deus que lhe desse coragem para a luta
em que teria de se empenhar. Bento viu o padrinho alterado, como se uma grande mágoa houvesse
aparecido para ele, uma morte de pai, de mãe, um desgosto sério. A igreja estava vazia. Só mesmo as
beatas. Depois da missa d. Francisca do Monte veio falar das coisas da igreja, da escola paroquial,
dos trabalhos da irmandade. O padre não ouvia nada. Estava ausente. Longe de tudo o que ela lhe
falava. Tinha se desencadeado lá fora o temporal, a tempestade que há vinte anos o padre Amâncio
esperava. O temporal tinha-o pegado velho. Mas lutaria. Deus lhe daria energia para o combate. Veio
tomar café, e d. Eufrásia o esperou com as reprimendas de sempre. Ele não podia continuar a fazer o
que estava fazendo, estragando a saúde daquele jeito. Bento estava ao lado dele, na mesa. E, quando
a irmã saiu, o padre falou para o afilhado:
— Antônio, nós temos que ir à Pedra Bonita. Tu ouviste a história do homem. A coisa vai ser
bem difícil. O povo, quando perde a cabeça pelo fanatismo, fica absorvido. Não ouve, não escuta
ninguém. Mas nós temos que ir até lá.
E levantou-se da mesa. Bento foi para os seus trabalhos cheio de preocupações. Domício
acreditava na Pedra. E agora vinha o santo, o homem de quem o velho Zé Pedro falava. O padre
achava que ele era um mentiroso, enganando o povo. E os milagres, os aleijados que andavam, os
feridentos que se curavam? Via por outro lado a mágoa de seu padrinho. Via a fraqueza dele. O outro
arrebatava o povo, enchia o povo de esperanças, de desejos. O padre era bom, era de todo o mundo,
mas não oferecia o impossível, uma vida diferente. Domício acreditava. Bento sentia que havia
alguma coisa, um mistério qualquer com o qual o seu padrinho não podia. Ele mesmo se assustava,
temia que terminasse acreditando nas histórias da Pedra. Andou assim com estas preocupações lhe
absorvendo o interesse, todo o tempo de seu serviço. Em casa encontrou d. Eufrásia falando,
censurando o irmão. Amâncio estragara a vida, se sacrificara pela gente mais infeliz deste mundo.
A negra Maximina chamou Bento para saber o que se passava. Espantou-se, arregalando os
olhos:
— Toinho, será verdade mesmo? O tal santo levanta defunto? Aquela Pedra dá santo de verdade.
E ficou em silêncio, como se uma coisa muito importante tivesse aparecido de repente para ela.
Quando padre Amâncio voltou, d. Eufrásia falou-lhe séria. Ele não devia se meter com aquele povo
de hereges. Aquilo era trabalho para a força, para soldado.
Bento saiu para a rua. E da tamarineira chamaram por ele. Queriam saber dos fatos. Porque já
estavam dizendo que o santo era irmão dele. Respondeu às perguntas e foi andando de rua afora. A
casa de d. Fausta estava fechada. Veio-lhe à cabeça a tarde em que ela se pegara com ele, com a
boca torta, toda se torcendo em cima dele. No fim da rua viu o caminho que dava para o cemitério.
Quebrou para um lado e foi sair na rua da Palha. Havia mulheres reunidas na porta de uma casa.
Chamaram por ele. Teve medo. Medo de verdade, de ficar com o coração frio. Quis fugir do
chamado, mas não teve coragem. Eram as raparigas:
— Ele é o croinha, ele é o croinha! — disse uma.
— Ele é donzelo — disse outra.
— Cala boca, gente, que ele é irmão do Aparício.
Bento estava meio tonto, sem rumo.
— Cria de padre só sabe ser sonso.
E soltaram uma gargalhada. Depois falaram com Bento, com mais calma. Perguntaram por
Aparício. Queriam saber como ele era, se gostava de rabo de saia. Se tivera namorada, se dava em
mulher.
— Estão dizendo que ele marca mulher da vida no rosto com ferro de ferrar gado.
— Qual nada! Aparício protege mulher-dama. O negócio dele é com donzela de rico.
Bento já estava no meio delas sem jeito de sair. Uma mais moça aproximou-se dele e as outras
debocharam.
— Tu quer instruir o menino? Tu quer instruir o menino, Minervina? Tu vira burra de padre!
E desataram na risada.
— Menina, ele é da terra do santo. Dizem que o santo não embirra com mulher como nós. Tudo é
igual.
— Qual nada — disse a mais velha. — Ele só papa donzela. Não foi mulher virgem, ele não
quer. Tu ouviste o que disse à Eulália aquele aguardenteiro? O homem disse a ela que tudo que é
moça o santo está emprenhando. Ele tem que botar barriga em mil e uma donzelas.
— Tu conhece ele? — perguntou a mais moça, chegando-se para Bento.
— Ele faz milagre, Naninha!
— Se faz! O povo está correndo pra lá porque ele é mais poderoso que o Padre Cícero do
Juazeiro. Esse negócio de vadiar com mulher não quer dizer nada. O padre daqui é que faz espanto
com essas coisas. Mulher nasceu foi pra servir aos homens.
Bento deixou-as e foi voltando para casa. Lá estava o padre Amâncio com um nó para desatar.
Com d. Eufrásia gritando. E a negra Maximina alterada com o aparecimento do santo. O quarto do
padre estava fechado e a casa vazia. Nem d. Eufrásia nem Maximina. Faltava pouco para o toque das
ave-marias. Ele chegou na sala que dava para o quarto do padrinho e ouviu uma coisa estranha que
vinha de lá. Chegou para perto da porta e ouviu como se fosse um choro de gente, um choro abafado.
Teve vontade de bater e correr lá para dentro do quarto. Ficou parado. Devia ser o padre Amâncio
nas orações. Coitado de seu padrinho. Aquilo era o sofrimento, a dor de não poder com a força que
surgia no meio do povo. No oitão da igreja havia gente conversando. Eram conhecidos seus. Antes de
entrar, parou um instante para conversar:
— Então Bento, a Pedra virou outra vez terra de santo?
Todos sabiam que ele era de lá. Disse ele o que sabia dos fatos.
— Vai haver desgraça feia — continuou o sujeito. — O governo não pode deixar o negócio
crescer. Senão vira Canudos.
— É mesmo — atalhou um segundo. — Só bala de soldado liquida isto. Agora não pensem vocês
que com vinte praças se faz o serviço. Sertanejo, quando acredita em santo, briga como onça. O
tenente Maurício não pense que bota o povo de lá pra correr com um tiroteiozinho. O povo cai em
cima da tropa com vontade de morrer.
— Bento, tu vieste de lá?
Bento respondeu que sim. E quiseram saber se ele conhecia o santo.
— Andaram até dizendo que ele era teu irmão. Este povo do Açu inventa tudo.
— Não conheço o homem, seu Juvenal — respondeu Bento. — Ele veio de fora.
— Veio mesmo — disse outro. — Ontem pararam ali na porta do coronel Clarimundo uns
romeiros que iam pra a Pedra. Gente pobre que vocês não calculam. Pois compraram não sei quantas
libras de vela de cera. Eu puxei conversa com o chefe da família e ele me contou tudo. O tal santo
desceu da Bahia. Atravessou o São Francisco no Pão de Açúcar e veio a pé pra a Pedra. Andou a pé
pra mais de cem léguas. Dizem que é branco e nunca ninguém viu ele dormindo. Agora estão dizendo
que moça donzela na unha dele é mesmo que torrão de açúcar na boca, se desmancha num instante.
Esses cabras são uns sabidos de marca. Eles querem é passar bem, comer do melhor.
— Não sei não, seu Juvenal — disse o outro sujeito. — A gente debocha dessas coisas e no fim
fica é besta mesmo. Ele deve fazer alguma coisa, senão o povo não estava correndo atrás dele.
— Ora povo! Você vem me falar de povo! Povo é como menino, acredita em tudo. É besta que só
aruá. Não está vendo que eu não vou acreditar que este sujeito da Pedra faz milagre!
— O Padre Cícero fez.
— Você viu? Eu quero é ver. Não vou atrás é de maluquice, de matuto leseira. Quem deve estar
com a pulga na orelha é o padre Amâncio. Está mesmo. Onde você encontra um padre como este, um
coração assim? Dá tudo aos pobres, é um santo. Lhe agaranto que o Padre Cícero não chega nos pés
dele. Pois vá você pedir pra ele fazer um milagre. Pergunte aí a Bento se ele fez milagre. Este santo
não passa de um estradeiro de marca.
Estava chegando a hora do toque, e Bento foi saindo. Abriu a igreja e subiu a escada que dava
para a torre. Deixara as portas da frente abertas para que as beatas pudessem entrar. Esperou um
instante. O coração batia com a subida apressada que fizera. E puxou o badalo para a primeira
pancada. O seu pensamento foi direto para as raparigas da rua da Palha, as mulheres que ele não
conhecia. Uma tarde d. Fausta o quisera pegar e ele fugira com medo. Lá embaixo o Açu sofria a
influência do seu toque. A vila que ele odiava estava com medo de seu irmão Aparício. Aparício era
maior que todos dali. E era seu irmão. O som do bronze ganhava os campos. Fora humilhado no Açu.
Estivera na cadeia, sua mãe apanhara dos soldados do tenente Maurício. Estava na quarta badalada.
Tinha que dar duas mais. Ouvira gemido de choro no quarto de seu padrinho. Seu padrinho sofrendo.
Devia ser uma dor muito grande. Faltava a última. Falavam em mandar soldados para liquidar o
povo da Pedra. Todo o Açu estivera em suas mãos. Fizera todos pensar na vida. E a tarde caía. A
tamarineira cada vez mais se esgalhava. A noite vinha chegando. Lá embaixo estavam as beatas
rezando alto. D. Francisca puxando e as outras respondendo, fanhosas. O pigarro da beata mestra
cortava as orações pelo meio. E os morcegos chiavam. Um deles passeava do altar-mor para a porta
da entrada, aproveitando o resto de luz do dia para brincar. Era um voo meio errado, como se o
bicho fosse cair no chão de cansaço.
Bento fechou as portas da igreja. O padre Amâncio não tinha vindo outra vez rezar as ave-marias
na igreja. Quando ele chegou em casa, o padrinho chamou-o:
— Antônio, prepara os cavalos. Amanhã nós vamos viajar.

13

DE MADRUGADA saíram de rota batida para a Pedra Bonita. O padre Amâncio celebrou a missa mais
cedo, na hora do café. D. Eufrásia falou-lhe: ele não devia meter-se com o povo fanatizado. Era uma
grande imprudência. Aquela gente não merecia o sacrifício que ele fazia. Eram uns bichos. Mas o
padre sorriu à advertência da irmã. Aí Bento esteve reparando na velhice do padrinho, quando ele
respondia à irmã; tinha marcado a viagem e iria. Vigário de Deus era para isto. E abraçou d. Eufrásia
e saíram para a viagem. Ainda da porta a velha recomendou:
— Toma cuidado, Amâncio!
Os cavalos puxavam, o ar bom da madrugada ajudava. Bento vinha atrás, meio tonto. Não sabia,
não podia imaginar o que pudesse acontecer. Na caatinga os cavalos abrandaram a marcha. Mas ali o
mundo floria como um jardim. Os pirins cobertos de branco, as caraibeiras amarelas como ouro, e o
vermelho das macambiras e o cheiro das imburanas. Teve saudade do Araticum. Teve saudade dos
passeios com Domício pelo raso da caatinga, atrás dos garrotes de Bentão. O padre ia na frente, de
cara triste, de ar compungido, como se fosse enterrar um irmão. Bento não sabia bem como pensar as
coisas. Teriam primeiro que passar no Araticum, para saber direito dos fatos. Se Domício não
estivesse em casa, a mãe saberia informar de tudo. Foram andando. O sol tomava conta da caatinga.
Já era dono de tudo. Só os imbuzeiros se arredondavam com os galhos caindo no chão. Por debaixo
deles fazia até frio, ali não entrava sol. Iam rompendo distâncias. E com pouco mais Bento começou
a sentir o Araticum. Uma rês chocalhava mais para dentro. Botou o cavalo para perto e viu o ferro de
Bentão, o B grande, a marca de seu pai.
— É um garrote de pai — disse ele para o padre, com uma espécie de orgulho.
— Nós então já devemos estar perto do Araticum — respondeu o padrinho.
— Com mais meia légua a gente chega lá — informou Bento.
Aquela terra já era dos seus, dos Vieiras. Por ali Domício largava o seu aboio, chamando gado,
como se chamasse gente. Tiveram que subir alguma coisa. A serra do Araticum se deixava ver, com
o verdor de suas encostas.
— O lugar é bonito — disse o padre.
E com pouco mais foram chegando à casa-grande. Pararam na porta e estava tudo fechado.
Desceram dos cavalos. Bento amarrou os animais. Não havia ninguém. A casa velha fechada. Forçou
então a porta de trás e foi entrando. A casa estava sem gente há mais de semana. Abriu a porta da
frente e deu um tamborete para o padre Amâncio se sentar. Foi ao quarto de Domício, e viu a viola
no saco, dependurada num dos armadores da rede. Viu a roupa de couro do irmão, as botas que ele
usara tantas vezes. Mas não havia sinal de gente. O fogão com cinza fria.
— Não tem ninguém em casa — lhe falou o padrinho.
De repente, porém, o rapaz compreendeu a situação. E não teve coragem de contar ao padre. O
seu povo estava na Pedra. Saiu para olhar o terreiro, foi até lá embaixo no rio. Demorou-se nas
oiticicas. Havia resto de fogo por lá. Sem dúvida cargueiros que tivessem dormido ali. Era o seu
Araticum. Lembrou-se da volta dele com Domício, da surra, de quando havia fugido com medo da
volante. Encontraram o Araticum daquele jeito, só, despenado, sem vida, como um homem
assassinado. Agora nem o bode velho de Bentão estava ali para berrar, dizer que vivia. O padre
esperava por ele. Tudo tinha feito pelo afilhado, dado tudo que podia. Seu padrinho queria ir à Pedra
com ele. Não sabia se era medo ou bem outra coisa. Mas estava com medo. Se voltassem dali para o
Açu, seria tudo para ele. Foi andando para a casa-grande:
— Prepara os cavalos, Antônio, vamos embora. O teu povo está na feira.
Saíram os dois para a Pedra Bonita. Dentro do padre Amâncio devia haver um turbilhão de
pensamentos. Bento via-o sereno. O padrinho com aquela cara do dia em que o juiz mandara o
soldado prender ele Bento. Foram andando. O deserto sertanejo era imenso. Não se via uma casa,
não se encontrava um ente vivo. As seriemas é que de vez em quando cortavam o espaço com seu
grito de pavor. Bento, a cada passo que o cavalo dava, sentia o perigo. Quisera para ele que se
perdessem, fossem dar noutra terra. Noutra terra distante, que nunca mais chegassem na Pedra Bonita.
Descobriram na frente deles gente que ia a cavalo e a pé. Passaram pelo grupo. Eram romeiros que
se espantaram com o padre naquelas alturas. As mulheres e os meninos estiraram as mãos pedindo
bênção.
— Para onde vai este povo? — perguntou o padre a um velho que parecia ser o chefe do grupo.
— Nós vamos para a Pedra, seu vigário. Vamos levando esta menina doente para se curar com o
santo.
Dentro de um dos caçuás, coberta com um lençol de taco, vinha uma menina amarela. Na pele e
nos ossos, uma miséria humana.
— Ela não anda, seu vigário. As canelas se afinaram, ficaram como taboca. E a mãe ficou
chorando para a gente descer pra dar a bichinha pra o santo curar.
O padre não disse nada. Despediu-se do velho e os cavalos, dele e de Bento, se adiantaram do
pessoal cansado.
— É de cortar coração — disse ele para Bento. — O povo acredita de verdade. Aqueles pobres
vêm de mais de cinquenta léguas, por este sertão afora, atrás de salvação.
E calou-se. Os cascos dos animais estalavam nas pedras da caatinga. O padre, curvo, cansado da
viagem. Bento tinha pena dele. Subiram um pouco, abandonando a caatinga. E, de supetão, a Pedra
apareceu. O padre parou o cavalo para olhar melhor. A luz do sol bulia nas malacachetas.
— É bonito mesmo — disse o padre.
Via-se de longe a copa dos catolezeiros remexendo com o vento. E bulindo, como numa entrada
de formigueiro, a massa humana espalhada.
14

A NOTÍCIA DE QUE o padre Amâncio tinha seguido para a Pedra se espalhou no Açu. Na porta do
coronel Clarimundo parou o major Cleto para conversar.
— Por mim eu já tinha oficiado para o chefe de polícia. Mas esta história de delegado volante
tirou toda a força das autoridades. Coronel, esta história da Pedra pode virar coisa ruim. No fim é o
que se vê por aí. Canudos não foi diferente. Sertanejo desencabeçado ninguém amolda com
brincadeira não. O padre Amâncio foi pra lá hoje. Vamos ver o que é que ele diz.
— Tenho fé que o padre acaba com isso — respondeu o prefeito.
— É no que eu não acredito — disse o major. — O padre é bom de verdade. Mas não é pra falar,
eu não acredito que ele faça nada. O povo quando chega a ponto de andar atrás de santo fica até com
raiva de padre.
— Vamos ver, major Cleto, vamos ver.
O major deixou o coronel e parou na porta do escrivão.
— Entra, Cleto.
E pegaram na conversa. O escrivão era da mesma opinião do delegado. O mal se cortava era
pela raiz. A providência melhor era arranjar uns cem homens e liquidar o ajuntamento:
— Você oficie, Cleto, pra o tenente Maurício em Dores. Se você quiser, eu redijo o ofício
detalhando tudo. E o tenente toma logo uma providência das suas.
O Açu inteiro se virava para a Pedra Bonita. O fracasso da estrada de ferro fora um
desapontamento cruel. Os engenheiros se foram e diziam que o governo federal mandara estudar a
estrada de penetração por outra zona. Era o azar persistindo. Era a Pedra pesando, sufocando a vida
no Açu. E as notícias do santo contagiavam de pavor o povo da vila. As mulheres se sentiam
ameaçadas, dormiam pensando no saque, num massacre furioso. Contavam-se histórias terríveis. O
santo era um monstro que se alimentava com sangue de meninos, que só se saciava em carne de
virgem. Outra vez, da Pedra Bonita, saía o demônio em carne e osso. E os homens só tinham uma
ideia: o extermínio da raça de cobras, de lobos, de assassinos. Porque dali só saía cangaceiro ou
fanático. A ida do padre até o reduto dos romeiros foi tomada como uma temeridade, um esforço
perdido. O padre Amâncio morava ali, diziam eles, há vinte anos e era o mesmo da chegada. Ingênuo,
acreditando em tudo que lhe vinham contar. Criara dentro de casa uma pessoa da Pedra. Nunca o Açu
perdoou a imprevidência de seu vigário. E agora, acompanhado daquele Bento, se botava para o
meio dos fanáticos, pensando que conseguiria mudar a selvageria daquela gente.
D. Eufrásia recebeu visitas no dia da partida do irmão. Veio a mulher do major Cleto lastimar o
gesto do vigário. Veio até d. Francisca do Monte com receio de que sucedesse uma desgraça. O
padre Amâncio, para ela, não devia ter ido.
— Pois eu acho que ele fez muito bem — foi dizendo d. Eufrásia. — Amâncio sabe o que faz.
Era a obrigação dele.
As mulheres se encolheram. Tinham vindo lastimar. Todas sabiam que o povo da Pedra Bonita
era ruim mesmo.
— Ruins são todos daqui — gritou d. Eufrásia. — Amâncio veio para este meio contra a minha
vontade. Mas já que está, muito bem. Foi para a Pedra e fez muito bem.
As mulheres se despediram alarmadas com aquela agressividade. D. Eufrásia ficou só. Maximina
lá para dentro dava conta do seu trabalho. A velha estava só na casa silenciosa. Sabia que o irmão se
acabava, envelhecido, doente, sem se queixar. Fizera o possível para virar a vida dele, mas fora
inútil. Tinha que ser aquilo que era mesmo. E vinham aquelas sirigaitas dar voto nas coisas que ele
fazia. Aquela Francisca do Monte querendo mandar, querendo orientar. Aquela d. Auta, com partes
de entender de tudo. Era mais de meio-dia. Maximina teria ainda que matar uma galinha e preparar
para o irmão que chegaria com fome. O que teria acontecido ao irmão?

15

QUANDO PADRE AMÂNCIO botou o cavalo para descer na direção da Pedra, Bento sentiu um frio
dentro dele. Donde estavam já ouviam o rumor das vozes do povão lá embaixo. O acampamento
parecia de retirantes de uma grande seca. Viam-se latadas cobertas de folhas de catolé, em ruas se
cruzando, às doidas. O padre seguia sem parar. Entraram no arraial. E o povo cercou os cavalos.
Uma gente quase nua, magra. Um povo que passava fome, pelo ar, pela cara que apresentava.
Tiveram que parar ali mesmo. Bento ficou com os cavalos e foi amarrá-los num pé de imbuzeiro,
enquanto o padre Amâncio se via rodeado. Aí o padre falou para o povo, dizendo que estava ali para
ver o chefe deles. Apresentou-se um para levar o padre até a latada do santo. Nisto Bento ouviu uma
pessoa chamando pelo seu nome. Era Domício, de barba grande, uma figura esquisita. O padre
Amâncio foi andando com o povo atrás dele, e Bento, emocionado, para falar com o irmão. Domício
era outro.
— Bentinho, nós viemos pra a Pedra. Os velhos estão ali. O santo é mesmo de verdade. Tu não
vai ficar?
Os fanáticos olhavam para Bento com admiração. Admirados dos trajes que ele trazia, daquela
roupa de grande. Aquilo, junto da miséria que lhes cobria os corpos, escandalizava. Domício foi
saindo com Bento para um canto. Havia gente de todo jeito aboletada por debaixo de árvores,
agasalhada pelas latadas. Fazia pena examinar a miséria que estava ali. Uma população de
descarnados, de sujos, de feridentos, um resto de vida. E Bento foi sentindo a tristeza de tudo. O
ajuntamento fedia. Choravam meninos nus. Velhos estendidos pelo chão. Doentes gemendo. O que
havia de desgraça no sertão se reunira, se ajuntara em derredor da Pedra Bonita, à espera da voz de
Deus, que desse a todos um quinhão de felicidade, de abastança. Domício não falava. E foi Bento
quem puxou a conversa:

— Mãe também acredita?


— Foi ela quem quis vir, Bentinho.
E chegaram num ponto arredado, onde estava a latada dos velhos. Lá estava Bentão numa rede e
a velha fazendo qualquer coisa. Quando ela viu o filho, ficou parada, olhando, sem compreender.
— Ele veio pro santo, Domício?
E o filho mais moço se abraçou com a mãe. O velho do jeito que estava ficou. Parecia a ele que
Bento estava ali há muito tempo.
— Bentinho, meu filho, tu também acredita?
Bento se calou. Domício disfarçou para um lado, compreendendo a situação do irmão.
— Mãe, ele veio com o padre do Açu.
A velha parou um instante, mas foi falando com todo o desembaraço:
— Olha, Bentinho, eu fiz tudo pra não crer no santo. Eu via teu irmão Domício capiongo pra um
canto, aboiando na caatinga, sem que nem mais. Fui ficando com medo de algum sucedido. Aparício
já era cangaceiro, sabia o que fazia. Domício podia ficar aluado.
— Qual nada, mãe! Mãe pensa em cada coisa! — interveio Domício.
— Não é pensar não, menino, é ver. Eu estava vendo que tu te perdia. Foi quando Domício
deixou a gente e veio pra a Pedra. Pode ficar tu sabendo que eu fiquei triste. O Araticum estava que
só tu vendo. Na noite que teu irmão veio embora me deu uma coisa que nem posso calcular como foi.
Queria dormir e não podia. Bentão roncava que só um bacorinho. E nada do sono chegar. Foi aí que
me deu uma coisa que não sei como contar. Eu estava vendo uma pessoa me dizendo: “Josefina, tu
não crê no milagre? Tu é uma herege.” Vi que não era coisa de sono, porque eu estava acordada. E a
voz nos meus ouvidos. A casa vazia. E Bentão dormindo. Abri a janela e vi o céu e a terra que era
uma beleza. Pensei em tu, Bentinho. Fui dizendo comigo: “Bentinho está de longe. Ele nem sabe o
que a mãe está sofrendo. Felizmente que ele não sofre disso que eu sofro.” Vi chegar a madrugada.
Havia até gente nas oiticicas pernoitando. Bentão levantou-se pra tratar do gado, e a coisa nos meus
ouvidos. E só parou de me aperrear quando eu arrumei as trouxas e vim parar aqui. Ele é santo
mesmo, menino. Não se passa um dia que não venha chegando gente. Ele tem a força de Deus.
E quis saber da viagem do padre Amâncio.
— Ele não vem amaldiçoar o santo não, não é, Bentinho?
Bento lhe falou com jeito. O padre tinha vindo conversar com o santo sobre uns negócios que
diziam lá no Açu.
— É mentira, Bentinho. Tudo é mentira. Ele só faz o bem da gente. Ele só faz o que é da vontade
de Deus. Pergunta a esse povão por aí. Tudo que dão a ele, ele dá ao povo. Ele não come, não
dorme, Bentinho.
Bentão não se separara do bode. Lá estava com ele, dando de comida, sem prestar atenção ao
que a mulher dizia. O rumor do falatório chegava aos ouvidos de Bento. Era como se fosse a feira do
Açu dez vezes maior.
E Bento teve uma grande pena da mãe. Ela que sempre fizera força para fugir das crenças dos
seus, se entregava daquela forma. Quis falar com Domício e saiu com ele andando:
— Domício, como foi isto?
O irmão parou um pouco, olhou para Bento e disse:
— Bentinho, tu não pode imaginar. Naquele dia em que eu te deixei começou o meu sofrer. Lá em
cima da serra a vida foi uma desgraça. Só via mato. E de noite era aquela história da cabocla me
perseguindo. Danei-me pelo mundo, cantei nas feiras, andei de trem de estrada de ferro, corri terras.
O povo gostava do meu cantar. Mas quando voltei para o Araticum, me deu outra coisa diferente.
Aquilo que mãe te contou se passou comigo direitinho. O santo tinha aparecido na Pedra, e a gente é
da raça dos Vieiras, que desgraçou o povo. Aquilo martelava na minha cabeça, como um verso que
eu quisesse fazer e não saísse. Me lembrava de ti. Tu era o único ente neste mundo que me dava
alegria. Não é por eu estar na tua presença, mas era mesmo. Se tu estivesse no Araticum, eu era
outro. Qual nada! O santo estava na Pedra. Todo dia passava romeiro pra descansar nas oiticicas. O
santo me chamava de noite, na caatinga, aonde eu estivesse. Dei pra aboiar como besta, à toa. Mãe te
disse a verdade. Era uma coisa, Bentinho, que não tinha parar. Apertava aqui no coração, apertava
como se quisesse me quebrar tudo por dentro. A gente era da raça de sangue ruim. E aquilo me
doendo. Pai era aquele cismar de noite e dia. E mãe só pensava em ti. Me vi, sozinho, capaz de fazer
uma desgraça, de me desgraçar por aí. E o santo me chamando. Foi quando eu vim na Pedra e vi o
milagre. Não tenho palavra pra contar. Tu não pode calcular o que é um milagre. Tu nunca viste. É
uma coisa difícil de se contar. Eu vi uma entrevada correndo boinha para o santo. Bentinho, eu vi
Deus na pessoa do santo. Na volta pra casa encontrei Aparício na caatinga. Ele me disse que tinha
ido ao Açu pra falar um negócio com tu. Aparício matando, roubando. O diabo está no couro da
gente. Aquilo que deu em Aparício não foi coisa da terra não. Tu te lembra de Aparício no Araticum?
Quem é que ia dizer que ele virava no que virou? Ele mata brincando, Bentinho. Nem disse à mãe
que tinha visto o filho dela no estado em que vi. No Araticum começou o fato do milagre a bulir, a
me fazer susto. E só descansei quando cheguei aqui para adorar o santo. Ele é santo, Bentinho, ele é
santo de verdade.
Aí a voz de Domício foi se alterando. Falando para o irmão como se estivessem discutindo:
— Eu vi o milagre. Ele é santo de verdade.
Por junto deles passaram os homens que Bentinho tinha visto na estrada. O velho da estrada, com
a filha aleijada no caçuá, como uma coisa de venda. Perguntou a eles para que lado ficava a casa do
santo. E se foi com o grupo para o meio do povo. Bento não dava uma palavra, aterrado. Vira a mãe,
vira Domício. As duas grandes coisas de sua vida, do Araticum, nos pés do santo. Tinham vindo para
salvar-se da desgraça da família, para limpar o sangue de Judas dos Vieiras. Deixaram tudo, o
Araticum vazio, o gado morrendo de fome, a casa triste como uma casa de bexiguento. E estavam
todos esperando de Deus, do santo, qualquer coisa. Todos que estavam ali tinham uma fé, uma grande
esperança. Os restos de gente do sertão, cegos, feridentos, famintos, tudo esperando o grito que
abalasse a formação do mundo. Os ricos e os pobres, os sadios e os doentes, tudo ficaria a mesma
coisa, o mesmo homem, a mesma mulher.
E Bento se lembrou do padre, de quem tinha se esquecido, arrastado que fora pelos seus. E foi
com Domício para o lado onde estava a latada do santo. Ao lado da Pedra menor tinham levantado
uma casa de palha, com paredes de barro. Havia uma lua e uma estrela pintadas na porta. Era ali a
morada do santo. Bento e Domício se aproximaram. Havia gente rondando a casa. Mulheres
desgrenhadas, com os peitos de fora, com os vestidos rasgados. Tinham olhares de feras acuadas.
Outras, mais calmas, vestiam camisolão de algodãozinho. Eram as guardas de honra do ninho de são
Sebastião. Bento quis entrar e não deixaram. Elas se puseram na frente, mas Domício explicou: era o
irmão dele que tinha vindo com o padre. Só assim pôde entrar na sala. Lá encontrou o padre Amâncio
falando. E o santo, deitado na rede. Teve medo. Fazia medo. As barbas grandes e o olhar distraído. E
o padre falando: vinha ali a serviço de Deus, vinha para arredá-lo da perdição, da heresia. E ele
como se não estivesse olhando e vendo ninguém, fitando num ponto fixo. De repente levantou-se. Era
pequeno, forte, de mãos gordas, cabeludas. E falou:
— Padre, Deus me mandou, Deus me mandou.
A voz era rouca, rugia como um tigre:
— Deus me disse no dia vinte de janeiro: “Sebastião, é o teu dia. Vai salvar o mundo que se
perde. Anda e vai com o teu cajado e faz o mundo andar direito.” Padre, andei léguas. Andei léguas e
aqui estou. Aqui estou pra salvar o mundo.
O padre Amâncio compreendeu a situação. Teria que agir com um louco.
— Mas para que não manda o senhor este povo para as suas casas? Se Deus lhe deu força para o
milagre, o milagre se fará com o senhor sozinho, separado de todos. São João Batista esteve no
deserto, sozinho.
— Deus me mandou, Deus me mandou — respondeu o santo. — Deus do céu que fez a água e o
fogo me disse no dia vinte de janeiro: “Pega, Sebastião, e sai com o teu cavalo branco pelo mundo.
Vai salvar o mundo, Sebastião.”
Tinha as mãos para o ar. Os olhos luzentes, a cabeleira caindo nos ombros. O padre quis voltar à
fala mas não pôde. Só o santo falava. O povo espiava pela porta. E ele sentindo o seu rebanho,
cresceu a voz dentro da casa de palha, estrondou:
— Deus me mandou, Deus me mandou.
Com pouco mais se ouviu o rugido da multidão cantando o bendito. Padre Amâncio levantou-se.
Bento viu a palidez do seu padrinho.
— Deus me mandou — gritava o santo. — Deus me mandou.
E o povo urrando lá fora.
— O padre quer levar o santo — disse uma mulher aos berros —, o padre quer levar o santo.
A coisa correu pelo acampamento. O padre tinha vindo para levar o santo, e o arraial inteiro
começou a se agitar para a casa do profeta. Bento compreendeu o perigo da situação. O santo não
parava de gritar. E a multidão urrando na porta. Estavam perdidos.
Aí o padre chegou na porta da casa. As fisionomias que ele viu eram de feras. Era o momento
maior de sua vida, a hora amarga. Viu-se perdido. E sem que pudesse explicar, chegou-lhe naquele
instante uma vontade de morrer despedaçado, de morrer como os mártires.
Foi quando Domício apareceu. O padre não tinha vindo para levar o santo. O padre tinha vindo a
favor deles. E aos poucos o furor da multidão foi abaixando, como se fosse caindo água em cima de
uma fogueira.
Padre Amâncio e Bento saíram. E viram os olhos horríveis, as feições de danados dos que
olhavam para eles. Bento nem falou mais com a mãe. E Domício ficara no meio dos outros. Lá de
cima viram a Pedra Bonita envolta na sombra da tarde. Bento sentiu fome. Estavam com o café da
manhã. Padre Amâncio, muito curvo, com o cavalo devagar, chamou pelo afilhado.
— Antônio, vamos parar.
Bento correu para segurá-lo. O padrinho estava pálido, suando frio, com uma vertigem:
— Não é nada — disse ele, baixinho. — Isto passa.
16

O FRACASSO DO PADRE Amâncio teve grande repercussão no Açu. A sua chegada, naquela noite, quase
desfalecido, o mês de cama que passou deram que falar. Inventaram detalhes da conversa com o
santo. Narrava-se como verdadeira a expulsão do vigário da Pedra Bonita. Fora jogado às pedradas
do reduto, por pouco não o mataram. Tinha sido salvo por um irmão de Bento, que era também chefe
dos fanáticos.
A vila sentiu os efeitos da vizinhança do santo. As feiras diminuíram de frequência e os
fazendeiros das proximidades se queixavam de furto de gado. Matava-se boi todo dia na Pedra. Os
fanáticos invadiam às soltas, levando as reses que bem queriam. Aparício visitara o reduto com todo
o grupo, fora abençoado pelo santo. E as histórias que chegavam no Açu eram cada vez mais
alarmantes. Falavam de raptos de moças para saciar a fome do beato. As forças volantes não se
aproximavam de lá. O tenente Maurício, passando pelo Açu de rota batida, para o centro, conversou
demoradamente com o escrivão Paiva. Não atacaria os fanáticos. O governo o tinha mandado pra
perseguir cangaceiro, e a sua força era pequena para uma diligência daquelas. Queria era pegar
Aparício, vivo ou morto. Cortar-lhe a cabeça. O Açu desanimava de uma reação do governo. O
coronel Clarimundo falava em vender o que tinha e mudar-se para o Camaru. Não tardaria o dia,
dizia ele, que a vila amanhecesse cercada de fanáticos, matando a todos. E o pavor foi crescendo. Os
três praças do destacamento estavam dormindo fora da cadeia, com receio. As mulheres da rua da
Palha se mudando para Dores. A venda nova de Salu fechara as portas. Dormia-se debaixo de
alarme, com as mulheres falando baixo e os homens de ouvidos atentos aos rugidos das feras. Bento
ficou odiado. Por onde ele passava, resmungavam, viravam-lhe o rosto. E padre Amâncio definhando
cada vez mais. D. Eufrásia mandara chamar o médico de Camaru, que não quis vir. Tinha-se medo de
uma aproximação com a terra maldita. Joca Barbeiro com a Recebedoria parada. Não havia fiscal
que tivesse coragem de sair em cobrança. Os jornais da capital falavam, davam notícias do santo. E
o que era irritante para o povo do Açu era que, quando falavam do beato, se referiam ao município
inteiro. Vinham logo com referências desagradáveis ao Açu. Joca Barbeiro e o escrivão falavam
numa destruição pelas armas. Chegaram até a convidar os fazendeiros para uma desforra. Os homens
recuaram. Aparício protegia o santo. Agora eram fanáticos e cangaceiros, juntos, na destruição. Mas
o ódio do Açu pela Pedra crescia, avolumava-se. Padre Amâncio aos domingos pregava aos seus
reduzidos fiéis. A palavra saía-lhe fraca, sem energia. Quase que não se ouvia a sua prédica. Nem
parecia aquele dos tempos da luta com o juiz. O sacristão Laurindo caíra de cama com doença de
morte. Falava-se de uma moléstia dos intestinos roendo tudo. D. Francisca do Monte tossindo. E d.
Eufrásia vendo o irmão se acabar, perdendo a vida. Quisera-o levar para o Recife, e ele resistiu. Até
escrevera ao bispo para que ele mandasse chamar o irmão, e não tivera resposta. Devia haver um
mal muito grande acabando com a vida de Amâncio. A negra Maximina apertava nas suas
bebedeiras, dava para chorar, para pedir a morte, para falar do santo da Pedra.
E a nota de sensação no Açu fora a chegada de d. Fausta. Viera acabada, com mais vinte anos.
Estava outra vez em sua casa, como se nada houvesse com ela. Espalharam que o sargento
abandonara a mulher no Recife e que até em ruas de raparigas ela estivera. As mulheres se
preocuparam com d. Fausta uns dias. Aquilo servira para que se esquecessem um pouco das histórias
da Pedra Bonita. D. Fausta foi ficando, e o pavor do santo cresceu outra vez.
Bento era agora senhor da igreja. Faltava-lhe, porém, ânimo, disposição para o trabalho. Via o
padrinho no estado em que estava, sem gosto pelas coisas, ferido de morte. Lembrava-se da volta da
Pedra, naquele dia infeliz. Via-o como ele caíra nos seus braços na solidão da caatinga, com o sol se
pondo. Nunca passara por momentos daqueles. Seu padrinho morria. Felizmente que foi aos poucos
voltando a si. E a viagem fora vagarosa, com ele junto do padre Amâncio, parando de quando em
vez. Lembrava-se bem das palavras dele: “Antônio, não há o que fazer mais. Terminam liquidando os
pobres.” Teve vontade de chorar. Teve ódio ao povo da Pedra, a sua mãe, a Domício. Os miseráveis
pagavam a dedicação de seu padrinho, querendo matá-lo. Gente miserável. A noite começava a cair.
E eles vieram andando, no vagar dos animais. E Bento pensando em tudo que vira, como uma
advertência cruel: “Bento, o nosso sangue é de Judas”, dizia Domício, “a gente tem que sofrer, que
pagar pelos outros”. E era mesmo. Era o destino dos Vieiras. O pai pegado com um bode como um
doido, a mãe se entregara com Domício às forças do santo. Domício presenciara um milagre, falara-
lhe da coisa que ele sentia no corpo e na alma, quando o santo apareceu com o milagre. Domício
ouvia aqueles cantos que ele não ouvia, tremia de noite como uma criança, quando a lua branquejava
a caatinga: “Bentinho, tu está ouvindo, tu está escutando?” E era mentira dos ouvidos de Domício.
Agora era o milagre da moça. Dioclécio também contara de um que ele presenciara no Juazeiro do
Padre Cícero. Era o milagre. O santo sabia fazer milagres e o pobre do padre Amâncio ia ali com
ele, meio morto, fraco, sem espírito para enfrentar o santo da Pedra. Devia existir qualquer coisa.
Devia haver um mistério em tudo isto. Depois compreendeu que o seu pensamento, duvidando dessa
maneira do seu padrinho, era tão miserável quanto foram os fanáticos. Estava traindo o padrinho.
Estava fazendo dele o que ele não era. O santo tinha força para levantar os aleijados. E foi assim,
com a cabeça cheia daquelas coisas, que Bento chegou no Açu com o padre Amâncio. A chegada do
padre fez alvoroço. D. Eufrásia chorando e o padre com a fala sumida, dizendo para todos que não
fora nada, que só tivera um desmaio por falta de comida. No outro dia Bento teve que contar a um
por um tudo que se passara. E não acreditaram nele. Estava escondendo as coisas. O padre, porém,
confirmava tudo que Bento dissera. E teve até que mandar um desmentido para um jornal do Recife
que contara a sua expulsão da Pedra com episódios falsos. Diziam que a notícia fora obra do
escrivão Paiva.
Fazia mais de mês que Bento tinha voltado com o padrinho da Pedra e o zum-zum continuava.
Agora era tido como um espião dos fanáticos. Era um irmão de cangaceiro e de beato. Só mesmo o
padre Amâncio o tinha dentro de casa. As próprias beatas se queixavam: como era que se entregava a
igreja do Açu a um fanático, a um rapaz daquele? Mas nenhuma tivera coragem de procurar o padre e
criticar. Bento passou para elas a ser tido como um inimigo da fé, de Deus. Os contatos dele com os
objetos da igreja eram de um sacrílego, de um profanador. A própria d. Eufrásia não era a mesma
para ele. Sempre fora exigente, autoritária. Mas agora a coisa era outra. Só Maximina e o padre
Amâncio não estavam no Açu prevenidos contra ele.
E Bento deu para pensar nos seus. A figura de Domício tomou conta dele. Nunca vira pessoa
melhor, mais próxima da sua pessoa. E se entregara de corpo e alma ao santo. Era no meio daquela
população um dos fervorosos do culto. Seu irmão acreditava na expiação de um pecado. Os Vieiras
tinham traído há cem anos um santo da Pedra. Contava-se a história. Fora o antepassado do povo do
Araticum que saíra da Pedra para conduzir os inimigos de Deus ao refúgio dos adoradores. O Judas
fizera isto intrigado por causa de uma moça que o santo tomara para si. Viera ao Açu e ensinara o
caminho, conduzira a tropa para a matança dos romeiros. A caatinga ficou coalhada de cadáveres e
os urubus ficaram como em tempo de seca, de papo cheio. Domício via a culpa toda em cima deles,
que vinham do homem. Todos do Araticum sofriam a desgraça do antigo. A família se acabava. As
terras e as águas não botavam ninguém para a frente. Eram marcados pela desgraça.
Um dia Bento amanheceu com aqueles pensamentos mais vivos na cabeça e foi dormir ainda
pensando na coisa. Padre Amâncio se arrastava para ir celebrar a missa todos os dias. Já era para
ele um sacrifício. Chegava à igreja como se tivesse andado léguas, arfando, suando. E Bento via na
celebração como o seu padrinho se reduzia a nada, verde, com a cor da morte. As beatas rezavam
alto e a missa terminava com o seu padrinho quase sem forças para voltar à sacristia. Numa manhã
daquelas Bento teve a certeza da morte do padrinho. Era uma coisa para poucos dias. Seria culpa
dele? Seria o azar dos Vieiras que se passara para padre Amâncio? Ajudou o padrinho a tirar os
paramentos e saiu com ele para casa, matutando naquilo. O azar dos Vieiras viera com o filho mais
moço da família liquidar o padre Amâncio. Todos no Açu tinham raiva dele. Todos atribuíam à
Pedra o atraso da terra. Lembrou-se do major, que morrera. Tivera a sua parte na morte dele. Se
tivesse atendido a d. Fausta, a morte do major não se daria. Não tinha uma pessoa onde se encostar.
Dioclécio era uma coisa de longe. Uma saudade que não o animava mais. Domício se entregara ao
santo e o padre Amâncio morria, morria devagar. Cada missa que ele dizia era um passo para a
morte. E o rapaz começou a se inquietar, a sentir-se mais inferior do que nunca. Todos aqueles
sujeitos que conversavam na tamarineira, quando ele chegava procuravam logo falar da Pedra
Bonita. Pelo gosto de todos ele devia estar nos ferros, apanhando de cipó de boi. D. Eufrásia em casa
tinha nojo, desprezo pelos seus. Tirando o padre, só Maximina não mudara.
E a negra até desconfiava da tristeza do rapaz. Procurou uma ocasião para falar com ele. Bento
sentia-se cercado de ódios. O ódio da rua, o ódio de dentro de casa, das beatas na igreja, do povo da
tamarineira, dos homens, das mulheres do Açu. Amanhecia com aquela ideia fixa bulindo, mexendo.
Por que não morrer? Não acabar de vez a sina de penar dos Vieiras? Domício já dera a sua vida pelo
santo. A mãe também. O pai era um doido, e Aparício no cangaço. Para ele só restava mesmo a
morte. Não era nada. O padre Amâncio morreria, a negra Maximina se entregaria à cachaça. E ele o
que ficava fazendo, sem um amigo, sem um encosto, sem uma crença como a de Domício? Um antigo
da família dos Vieiras viera correndo para levar a tropa que liquidou tudo e acabou com o povo da
Pedra. O sangue dos meninos ensopou o barro duro, a areia quente. Um Vieira, um homem que fora o
pai do velho Aparício, deixara os seus e fora com o governo matar o povo que acreditava no
desencanto da lagoa milagrosa. O santo queria o sangue das donzelas e dos meninos para lavar a
pedra, para com isto fazer o mundo virar. Rios de leite correriam para os famintos. O sertão seria
verde de inverno a verão. Os cangaceiros ficariam mansos, a terra um paraíso de fartura e de beleza.
E o desgraçado, por causa de uma moça, correu para levar com ele a morte dos seus.
Bento achava uma loucura acreditar naquilo. Mas, sem saber como, o sentimento de uma culpa
imensa não se separava mais de suas cogitações. Ajudava missa, fazia tudo pensando naquilo. Viera
trazer para o padre Amâncio o azar de sua família. Via a agonia de d. Eufrásia com o irmão se
sucumbindo, e no íntimo era ele que se sentia responsável por tudo. Queria reagir. Achava absurdo
pensar numa coisa daquelas. Uma tarde de confissão procurou o padrinho para se confessar. Esperou
que as beatas se fossem. Não tinha culpa para confessar, não tinha nada para dizer. Era um casto, e
no entanto pesava em cima dele uma culpa imensa. Não teve coragem de confessar o seu desejo
monstruoso, a sua vontade de morrer, de acabar com ele próprio, com a raça dos Vieiras. O padre
quase que não lhe dera penitência nenhuma. Somente umas ave-marias pelas almas do purgatório. E
ia crescendo em Bento aquela ânsia de destruição. A coisa chegava sem que ele esperasse. Estava
distraído no serviço, quando lhe aparecia o desejo infernal. Mudava de lugar, saía para andar como
nos dias em que d. Fausta o tentara. Ia longe. A ideia continuava firme, deitada no seu entendimento.
Olhava para os galhos das árvores, e via o seu corpo espichado, de língua de fora, pendido, podre,
com os urubus no céu de olho aberto para ele. E tinha medo. Corria para casa e lá dentro era que a
ideia desgraçada mais se ligava ao seu corpo. Rezar não adiantava. Nada valia. Nem sabia mesmo se
acreditava em Deus. Acreditava que uma culpa estava no seu sangue, na sua carne, nos seus ossos.
Era tolice pensar naquilo. Pensava Domício, porque tinha ouvidos que ouviam cantos que não
existiam. Pensavam os fanáticos, porque eram mesmo que bichos. Era besteira pensar naquilo. Subia
à torre para tocar as ave-marias, bater sinal pelos mortos. Lá de cima a tristeza pegava Bento com
mais força. Tempos houve em que puxava o badalo com gosto, olhando o mundo para onde mandava
os sons do bronze que ele vibrava. Fora-se todo prazer. Nunca tivera mesmo um grande prazer.
Naquela tarde em que d. Fausta se pegara com ele, um frio correra pelo seu corpo. O corpo da
mulher machucando o seu lhe dera uma coisa esquisita. Nunca tivera uma grande alegria. Dioclécio
trouxera para ele um mundo, uma mulher de cabelos grandes, que esquentava o frio das noites.
Dioclécio sabia de coisas grandes, de uma felicidade de andar pelas terras dos outros cantando.
Invejara o cantador. Depois viera Domício. Viera Domício com as suas tristezas, tocando viola,
aboiando para o gado, como se fosse para gente viva. Agora de cima da torre, via Bento um enterro.
Lá ia o defunto com o seu toque de sino, lá ia o pobre no caixão da caridade. Era um que dormiria
para sempre, que cairia debaixo do chão para sempre. Com aquela impressão desgraçada, desceu da
torre meio tonto. As beatas rezavam em voz alta. E o pobre do padre Amâncio nem podia mais deixar
o seu quarto para as orações da tarde na sua igreja. Era a morte. A morte que Bento sentia perto dele,
abrindo os braços para ele, convidando-o, chamando-o para o seu repouso, a sua tranquilidade. O
mais moço dos Vieiras ia ao encontro da morte. Não fugia dela como Aparício que tinha medo, que
correra até o Açu pedindo ao irmão para ir tomar conta da mãe, para que ele pudesse viver muito.
Aparício queria viver e estava no cangaço matando. Ele Bento queria morrer. E este pensamento
lúgubre o absorvia. Tinha que ser, tinha que ser. Com aquela agonia no coração, era que não podia
continuar. Tudo se acabaria com ele. Não nasceria mais um Judas de seu corpo. O seu sangue se
extinguiria para sempre. Ali lhe vinha uma de suas alucinações mais dolorosas. Ele via o seu sangue
embebendo a terra, as suas veias vazias da desgraça e o seu corpo livre, limpo, para Deus. Só a
morte lhe daria a paz, a trégua.
Começaram a dizer no Açu que o criado do padre estava virando doido. Só podia ser de doido
aquele ar, aqueles modos, aquele andar por longe da vila sem ter o que fazer.
Bento se via cercado de inimigos. Para cada lado que se virava era um olhar, uma boca contra
ele. E lá longe os seus, sua mãe, seu pai e Domício perto de um santo, vendo e gozando os milagres,
vendo Deus na Terra, com a sua força dando esperança ao mundo. O povo do Araticum não devia
mais sofrer coisa nenhuma. Estava livre, perdoado de suas culpas. Tinham encontrado o santo que
perdoava tudo.

17
TINHA SIDO uma coisa horrível. O tenente Maurício com trinta homens trucidados pelos fanáticos da
Pedra. A notícia chegou no Açu por um desconhecido que passava para Dores. Ele tinha sabido da
desgraça por um tangerino. Os fanáticos botaram uma emboscada na tropa. Não ficara um soldado
para contar a história. Na feira de Sobrado ouviu gente contando o fato como se passara. Fora um
irmão de Aparício que estava comandando o povo da Pedra. A emboscada fora obra dele. Era o
beato Domício. Mais sanguinário ainda que o irmão. O povo ia atrás dele como atrás de um chefe. O
santo lhe dera poderes para isto.
Aí foi que Bento se sentiu sitiado pelo ódio do Açu. Irmão de cangaceiro e de beato, os dois
irmãos dele desgraçavam o sertão. E vivia na igreja. O padre Amâncio perdera o juízo. Como podia
permitir semelhante coisa? O Açu guardava em casa um monstro, um membro da família sinistra.
Falava-se de Bento por toda parte. Joca Barbeiro e o escrivão Paiva agiram contra ele. O cabo do
destacamento se negou, porém, a fazer o que eles queriam. Queriam que prendesse Bento, que o
mandasse para o Recife.
A morte do tenente Maurício trouxe mais pânico ainda à vila. Fugia-se do município. Os roçados
de algodão, de cereais, despovoados. Quem tinha alguma coisa descia, abandonava a região. Havia
clamor. Bento, quando soube do estrago na força, não acreditou que Domício estivesse com as
responsabilidades. Aquilo era mais falaço, somente porque ele era irmão de Aparício. A fama de um
fazia com que o outro assumisse a culpa. Não podia crer que aquela natureza que ele conhecera desse
para o crime, se arrastasse para a luta com tanta crueldade. Domício cantava com tanta doçura, era
tão doce na voz, tão bom, aboiava para o gado com uma tristeza tão grande. Era mentira. Só podia ser
mentira. O padre Amâncio se acabava, se reduzia. Nem forças tinha para celebrar todos os dias. O
mal que o consumia devia ser medonho. Não comia. Estava magro, com a cor de barro, como se a
morte já estivesse no seu corpo, aguardando somente a hora.
A notícia da morte do tenente atormentou o padre. Chamou Bento e pediu para o rapaz contar o
sucedido.
— O governo agora — disse ele a Bento — vai tomar providências enérgicas. Vai ser uma
calamidade.
D. Eufrásia não permitia que o irmão se preocupasse com estas coisas e chamou Bento para
censurá-lo. Ele não devia ter ido contar ao Amâncio aquelas coisas. Era aquela história da Pedra que
matava o irmão. O sofrimento maior dele vinha dali. Aquele povo infeliz matava o irmão de
desgosto.
Depois desta reprimenda Bento saiu de casa. Só a negra Maximina não se fizera de sua inimiga.
Todo o mundo contra ele. Só mesmo desaparecendo de uma vez. Sua mãe o desgraçara para sempre,
se lembrando em deixá-lo no Açu, fora do Araticum. Agora estaria com os seus, pagando juntos as
culpas que tivessem. Ali era odiado, repelido como cachorro doente. Tudo era contra ele. A doença
do padre vinha da Pedra Bonita. Todas as desgraças vinham de lá. Ele era o culpado de tudo. Devia
fugir para a Pedra e ficar com o seu povo. Ao mesmo tempo não acreditava. Via no santo um louco,
um pobre doido, arrastando uma raça de deserdados. Tinha a certeza que todos estavam
embriagados. O sertão perdera o juízo como cem anos atrás. De outras vezes acreditava em tudo. Aí
se sentia mais feliz, ligado com alguma coisa, com Domício, com sua mãe, com a população inteira
que cantava benditos a Deus. Tinham virado feras. As caras que eles mostravam no dia em que
estivera na Pedra com o seu padrinho eram de monstros enfurecidos. Mataram o tenente Maurício.
Aparício se vira livre daquela perseguição. O pai e a mãe tinham sofrido o diabo a mandado do
tenente. Parecia que o estava vendo, de lenço no pescoço, dando a conversa na porta do escrivão
Paiva. Fora o dono do Açu, do sertão. Não respeitava coronel, prefeito, juiz. E agora estava na
caatinga, no bico dos urubus. Sentiu-se feliz, com um minuto de felicidade, pensando na morte do
grande inimigo. Fora Domício que fizera o serviço. Não acreditava. O irmão era a brandura em
pessoa, um coração de criança. Estava sentado no oitão da igreja pensando naquelas coisas, quando
viu um sujeito vindo de rua afora, com uma rede atravessada nas costas. Bento reparou bem e
reconheceu Dioclécio. Viu-o parar na porta do coronel Clarimundo e foi falar com ele. Dioclécio já
estava cercado de gente. Parecia um penitente, com os cabelos mais crescidos ainda e a barba
comprida. Sujo, com as roupas rasgadas, dava a impressão de que viera corrido de uma calamidade.
— Estou chegando da Pedra — foi dizendo ele. — Vi coisas que nem posso contar. O povo de lá
está com o juízo virado. Tem gente no rifle, tem gente que briga até de pedra. Deram um cerco no
tenente Maurício, mesmo na descida da serra do Araticum. O tenente tinha descido com a tropa pra
beber água na vertente. Quando viu, foi bala de todo lado. Nem apareceu uma alma caridosa pra
enterrar os corpos. Deram de comida aos urubus.
Dioclécio pediu uma quarta de genebra, cuspiu de lado e pediu pousada para uma noite. Mais
tarde Bento foi procurar o cantador no mercado. A viola estava no saco sujo e o homem falou para
ele:
— Eu nem te conhecia mais, menino. Tu mudaste muito. Estive até na cadeia com o teu irmão
Domício. Foi em Dores. Bicho bom na viola. Aquele, se ficasse na vida, dava mestre. Estive com ele
na Pedra. Irmão de Aparício não pode ser cantador. Irmão de cangaceiro é ofício duro. Eu, se fosse
tu, ganhava o mundo. Domício, teu irmão, na Pedra virou chefe do povo. O santo faz o milagre e ele é
quem manda no pessoal. Eu ainda estava lá quando sucedeu com teu pai uma danada. O velho tem um
bode de estimação. Tinha até trazido o animal com ele. E vivia com o bicho entretendo a vida. Pois
não é que uns romeiros quiseram matar o bode pra comer! O velho se fez na faca que foi um
alvoroço. Furou gente. Ficou doido, de nem conhecer a mulher. Na Pedra vi gente que tu nem avalia.
Tem ladrão, cangaceiro, tudo que é nação de gente ruim. Fui pra lá pra ver a coisa como era. Em
Dores me haviam dito que o homem fazia milagres. Estive lá uma semana e não vi nenhum. Me
disseram que era porque o santo estava de fastio, com nojo do mundo. Só vi o homem duas vezes. E
pra falar com franqueza, não vi nada de mais. O teu irmão Domício esqueceu tudo pela coisa. Estão
dizendo por aí que foi ele quem fez o serviço no tenente Maurício. Disseram que Aparício tem ido ao
santo e que o homem deu a ele uma oração que vale mais que colete de aço. O povo da Pedra está
que tu nem calcula. Olha, eu nunca cantei numa feira que não viesse gente pra perto escutar. Lá na
Pedra ninguém quer saber de cantorias. É só no bendito, na reza. Tem lá um cangaceiro que foi do
grupo de Aparício. Um chamado de Cobra Verde. Um rapaz assim com o teu corpo. Deixou o
cangaço e está com o santo. E não tira o rosário da mão.
Depois Dioclécio pegou da viola para cantar umas coisas, mas Bento não o ouvia. Era outro
Bento. Tinha irmão no cangaço, irmão beato na Pedra. Era um homem infeliz, o menino a quem
Dioclécio contara as suas histórias, aquela da mulher dos cabelos compridos.
Bento deixou o cantador. Era noite. Uma ou outra casa do Açu tinha luz acesa. A noite escura. A
loja do coronel Clarimundo estava aberta, e na porta do major Cleto havia gente na conversa. Teve
medo de passar por lá, de ser visto. O olhar dos outros lhe fazia mal. Todos o odiavam. Os fanáticos
tinham pegado o tenente Maurício, mesmo na terra em que ele estivera castigando os seus. Os urubus
que comiam os bois mortos de Bentão tinham comido o tenente Maurício e a força. Ele Bento devia
era estar com o povo da Pedra. Mas Dioclécio não tinha visto um milagre sequer. O santo
embebedara o povo com as promessas, com a felicidade de todos, com a igualdade do mundo. Podia
ser como da outra vez. E o sangue dos sertanejos derramado na caatinga. E tudo ficaria na mesma
desgraça. Não podia acreditar. Aí Bento sofria mais. E no seu quarto pensava então no fim de tudo.
Teria que morrer. Teria que se acabar. Domício era do santo, só o santo. Ele nem tinha mais a mãe,
que o punha acima de tudo. O padre Amâncio se acabava. Maximina iria com d. Eufrásia, e o mundo
vazio para ele. Não dispunha de força para pensar no mundo, que não fosse a Pedra Bonita e o Açu.
O mundo era aquilo, cercado de ódio, de vingança, de sangue, de cangaço, de sofrimento. D. Fausta
procurara o seu corpo, quisera-o, se pusera em cima dele. A cara dela com aquele jeito na boca
nunca mais se fora da sua memória. Devia ter voltado para a mulher. O major não morreria. As
mulheres da rua da Palha se foram. Deram risadas, mangaram dele. Domício fora a maior coisa de
sua vida. Nas noites de medo, acordava-o, batia nos punhos de sua rede: “Bentinho, tu não estás
ouvindo?” Era o canto da cabocla nua que o irmão ouvia, vindo dos confins para tentá-lo. Dioclécio
voltara e perdera tudo para ele. O grande homem era igual aos outros. Para ele Antônio Bento não
havia jeito. E o outro mundo? O que havia no outro mundo? Não acreditava e acreditava ao mesmo
tempo. E Bento não dormia. Vinha com aquela ânsia há dias, sofrendo as influências mais
desconcertadas. Ia para Aparício, voltava para Domício, ficava com o padre Amâncio. Não havia
lugar que lhe desse pouso. O Deus do santo visível, agindo, curando, arrebatando Domício e sua
mãe. E o Deus do sacrário quieto, escondido no vinho e no pão do catecismo. Ele queria era uma
força que dominasse a força de sua agonia, que enchesse o seu coração com a sua presença. Até
Dioclécio não existia mais. Fora-se na manhã do outro dia e não lhe deixara nenhuma saudade. Bento
era só e odiado, cercado de ódios. Joca Barbeiro, o escrivão Paiva, o major Cleto, todos queriam
segurá-lo, mandar para o Recife o irmão de Aparício, do beato Domício, para que todos lá vissem
um monstro da Pedra. Todo aquele Açu para ele merecia a sorte do tenente Maurício. Se o povo da
Pedra descesse, rolasse sobre todos, esmagasse tudo, a igreja, a casa de d. Fausta, o sobrado, a
tamarineira, fizesse tudo em poeira! Tudo destruído, acabado. Só assim ele poderia liquidar aquela
ânsia que não o largava. Só a morte, só morrendo, acabando com ele, destruindo-se. O padre
Amâncio quase não saía mais da rede. Bento ia vê-lo, e de vivo ainda no seu padrinho só havia os
olhos azuis. Um dia quis falar com o afilhado. E chamou-o para perto.
— Você, Antônio, vai com Eufrásia para Goiana.
Não tardaria para o seu padrinho o abraço frio da morte. E ele iria para Goiana com d. Eufrásia.
Isto não. Não dissera nada para não desgostar o pobre velho. Mas o povo do Açu iria ver. Aqueles
miseráveis teriam que ver o seu corpo duro, de língua de fora, enforcado, bem morto, para que todos
soubessem que ele tinha se matado. Deixaria Domício. E era o que mais vinha na cabeça de Bento: as
passagens da sua vida no Araticum. Lembrava-se da viagem às furnas da cabocla, com a serra verde,
com as cigarras cantando. Vinham-lhe na memória as cantorias nas noites de lua. A viola gemendo e
Domício cantando, sofrendo. Vinham-lhe as batidas do gado na caatinga coberta de flores, com os
imbuzeiros carregados, as imburanas de cheiro cheirando da raiz à folha. Todo o Araticum era
Domício. As noites de agonia, as noites da tentação da cabocla, o irmão nos seus braços como
menino. Tudo isto fora a sua vida. Tudo isto se acabara para sempre. Domício era beato. Depois
seria santo. Ele era assim irmão de cangaceiro e de beato, vazio de tudo que era alegria para um
homem. Seria o último Vieira, cumprindo a sentença, pagando pelos outros. Com o padrinho morto,
iria para Goiana com d. Eufrásia. Nunca que fosse, melhor a terra fria. Se morresse no Açu, o
meteriam no caixão da caridade. Com este pensamento o corpo de Bento se retraiu todo, de nojo.
Metido no caixão da caridade. Sentiu-se um imundo, sujo de todos os mortos que o caixão conduzira,
com as chagas do negro que morrera caindo aos pedaços, com o fedor de todos os mortos miseráveis
do Açu. O caixão da caridade dava-lhe desse modo uma impressão horripilante da morte. O Açu
enterrando o irmão de Aparício e de Domício naquele caixão nojento que estava escondido no fundo
da sacristia. Ele tocaria fogo, tocaria fogo no traste infeliz.
18

AGORA ERA a expectativa do assalto da Pedra ao Açu. Os fanáticos destruíam as fazendas dos
arredores. Passavam pela vila retirantes, famílias correndo da fúria deles. A voz do santo troava
como um grito de guerra. Ele queria as donzelas para fecundá-las, meninos para serviço do sangue.
Era o que diziam os fugitivos. E a fama de Domício crescendo. O irmão de Aparício dominava os
romeiros. E o Açu esperando a cada hora o ataque. O coronel Clarimundo já se mudara para o
Camaru. O major Cleto mandara a família para Dores. E o padre Amâncio se consumindo. Bento
quase que não saía mais de casa. Fazia os serviços da igreja, e no mais era no seu quarto.
A vila inteira se preparava. Havia homens armados por conta da câmara, gente no rifle. Joca
Barbeiro só não prendia Bento para não desgostar o vigário, que estava à morte. E nada de chegarem
as providências do governo. A morte do tenente Maurício com a sua força não dera o resultado
esperado. Aguardava-se um batalhão para destruir e liquidar os fanáticos. A igreja do Açu, com as
suas duas torres enormes, não tinha força, não dava coragem ao povo. O padre morria. Deus
esquecera a vila infeliz. Era um povo desgraçado, perdido para sempre. Lá um dia, porém, chegou a
notícia: vinha a tropa para o Açu. Vinha até soldado de linha. E numa manhã de junho chegou a
expedição militar. Umas duzentas praças às ordens do major Nunes, muito conhecido no sertão. O
famoso major Zeca Nunes de Vila Bela. O Açu ficou coalhado de praças. Teriam que demorar na
vila nos preparativos. O major aceitava voluntários que quisessem subir com o seu pessoal. E foi um
alvoroço na terra. Soldados dormindo por toda parte, enchendo o mercado, estirados pelas calçadas,
com os cobertores vermelhos fazendo de cama. Chegara gente de perto, armada. Alguns fazendeiros
se apresentavam com os seus cabras, prontos para a luta. A pacata vila do Açu era uma praça de
guerra. Os cabras no rifle, punhal atravessado, dando de pernas. Havia fogo aceso por todos os
cantos. Soldados cozinhando feijão, assando carne. Parecia uma feira de sábado, com o falatório,
com as conversas. O padre Amâncio chamou Bento para saber tudo. Queria falar com o major Nunes.
E mandaram chamar o oficial. O vigário falava como se cochichasse. O major entrou de lenço no
pescoço, de alpercatas, de túnica aberta. O padre Amâncio, estendido na rede, pediu para que ele se
chegasse para perto:
— Major, eu queria lhe pedir uma coisa. Faça o possível para evitar mortandade.
— Seu vigário — foi dizendo ele —, os homens estão armados, matando gente. O senhor viu a
sorte que teve o tenente Maurício. O governo me mandou para acabar com a coisa. O senhor me
desculpe, mas romeiro assim junto só tem jeito na bala de rifle. É gente muito ruim, seu vigário.
O padre ficou calado algum tempo e depois só fez dizer:
— O senhor vá com Deus, major.
Do seu quarto o padre Amâncio ouvia o zum-zum da soldadesca:
— Quantos praças são, Antônio?
Bento o informou de tudo. Viera gente das fazendas. Só o coronel do Araçá mandara vinte
cabras. O Açu estava cheio. O padre via a morte chegando numa hora horrível daquela, reduzido a
nada, sem poder se mover, tomar uma providência que desse resultado. Era o fim de tudo.
Bento olhou para a rua cheia de soldados. Era de tardinha. Foi tocar as ave-marias e de cima da
torre a impressão ainda era maior. Tocou a primeira badalada e viu os soldados se levantando,
outros tirando os chapéus. Iguais aos cangaceiros. De madrugada sairiam para o cerco da Pedra
Bonita. Deu a segunda badalada com mais força. Se aquele som rompesse as distâncias, furasse a
caatinga e chegasse lá onde estavam os seus para prevenir... Chegou ao fim. Desceu a torre e não
havia ninguém na igreja. As beatas não tinham vindo naquela tarde. Ele viu a luz do sacrário, a
lâmpada que ele enchia de azeite para iluminar o Deus que protegia os homens. O caixão estava lá no
fundo da sacristia esperando por ele. Sentiu-se sujo, imundo, desgraçado. Ali dentro da igreja
chegava o falatório das praças, dos homens que de madrugada marchariam para a Pedra. Aí a corneta
tocou. Toque de chamada para reunir. O major na frente da tropa dava ordens. De madrugada
seguiriam. Estivessem todos prontos. Ninguém poderia beber. Ninguém podia sair da vila. Bento
chegou em casa e d. Eufrásia estava preocupada. O irmão pedira para que ela mandasse chamar o
padre de Dores, para ouvi-lo em confissão. D. Eufrásia queria que Bento preparasse o cavalo para
de madrugada procurar o vigário de Dores.
Bento foi para o quarto. Não podia pensar nele, com tanta coisa que chegava de fora. De
madrugada a tropa marcharia para o massacre do povo da Pedra. Seria o fim de tudo. O povo do Açu
se vingaria. Até que afinal acabariam com a Pedra. Naquela noite não dormiu. Esteve inquieto. Cheio
de apreensões. Seu padrinho pedira confessor. Via a morte a dois passos. E a tropa pronta para se
jogar em cima dos fanáticos. O povo do Açu com a grande oportunidade. Há um século tinham feito a
mesma coisa. No meio da caatinga pipocou o tiroteio da clavinote. Sangraram a punhal os restos do
romeiros que fugiam. Um antigo dos Vieiras ia na frente da tropa, ensinando o caminho, mostrando o
esconderijo dos que tinham escapado. Fora um seu parente. Lá fora a rua estava cheia de soldados,
de gente armada, de cabras mandados pelos fazendeiros de perto. Era um exército para esmagar,
reduzir tudo a nada. Domício no meio dos fanáticos, sua mãe, seu pai. O padre morria. E os seus
seriam esmagados. Para que então viver mais? E a noite de lua enchendo o Açu de paz. Os soldados
não estariam dormindo. Iriam para a guerra. O tenente Maurício e a sua tropa tinham ficado
estendidos. Os soldados deviam estar preocupados. Ele teria que sair de madrugada e não podia
dormir. Melhor seria aproveitar a lua e ganhar para Dores. E foi o que fez. Andaria o resto da noite e
pela manhã cedo poderia estar no Açu com o padre que confortasse o padrinho nos últimos instantes.
Bento foi preparar o cavalo. A casa no silêncio.
E foi andado de estrada afora. Há meia hora que puxava pelo caminho, que tanto conhecia. Mas
de repente começou a refletir. Começou a sentir o que vinha sentindo no quarto. Ficaria só,
abandonado de todos. Morto o padrinho, morto Domício, acabados os seus, o mundo seria vazio.
Maximina em breve nem poderia mais com a cachaça. E ele ia chamar o padre de Dores para
confessar o homem melhor, mais santo, mais sério que conhecera. Não podia ter nada de pecado para
contar. Era puro de tudo. Mais em cima da caatinga Bento estremeceu com uma ideia. Se, em vez de
ir a Dores, corresse à Pedra para prevenir o povo da ida da tropa? Mas assim ia faltar ao último
pedido de seu padrinho, que queria um padre a quem contar os seus pecados e receber o perdão de
Deus. Qual seria então o maior pecado do padre Amâncio? Passava-lhe na cabeça a vida do padre.
Vinte anos de Açu, pobre, comendo como pobre, vestindo do jeito que vestia, dando tudo que era
seu. Melhor no mundo não podia existir. O padre Amâncio não podia ter desejos ordinários. As
mulheres para ele não tinham tentação, não perseguiam os seus sonhos, como fazia com ele aquela
mulher de Dioclécio. Podia ser, porém, que o padrinho tivesse pecados que nunca deixara perceber.
Quem poderia saber quais eram os seus pensamentos, os seus sonhos, os seus desejos? Não. Não.
Não podia ser. O padre era mesmo um santo. Confessar-se então para quê? D. Eufrásia lhe dissera
alarmada: “Bento, de madrugada vai a Dores chamar o padre de lá. Amâncio quer se confessar.” O
que podia contar de pecados um homem como ele ao vigário de Dores, um padre dado a mulheres,
como todo o mundo sabia, que era rico, que tinha criação de gado? Não podia ser. Nisto foi lhe
voltando a ideia anterior: correr à Pedra e avisar o pessoal da marcha da tropa. Domício podia
emboscá-los, preparar uma cilada para o povo do Açu, que ia furioso para a destruição. O tenente
Maurício tinha sido comido pelos urubus do Araticum. Os bichos voavam de longe, planavam no céu,
no alto do céu, depois foram baixando, baixando até que pousaram nos cadáveres e devoraram o
corpo do tenente, do que lhe tinha espancado a mãe, do que tinha destruído o Araticum. O castigo de
Deus não demorava. Agora vinha a tropa. Misturada com o povo do Açu para acabar com todos de
uma vez. O major Nunes espalhava os piquetes pelas caatingas, botaria gente contornando, tomaria os
lajedos de perto, e quando chegasse a hora do fogo, o rifle cantava em cima do povo desprevenido.
Correria gente para todo canto, os meninos chorando, as mulheres espavoridas. E a bala cantando. A
Pedra ficava no baixio e a tropa atirando em cima. Morreria gente. O cerco fora dado por todos os
cantos. E Bento via o sangue do seu povo cobrindo a terra. Via Domício ferido sem poder dar
ordens. A mãe, Bentão, acabados. E o tiroteio sem cessar. O povo do Açu liquidando o povo da
Pedra Bonita. Tinha que deixar aquilo reduzido a poeira. Os pobres estavam desprevenidos na reza,
esperando o milagre grande, a hora decisiva em que todos tivessem o seu quinhão de felicidade. E de
repente a matança, o tiroteio. Chorava menino, gemiam os doentes deitados no chão sem poder
correr. Os aleijados, os feridentos, as meninas de pernas murchas. E a bala de rifle pipocando. Tudo
aquilo doía em Bento como uma realidade imediata.
A lua clareava o caminho. A caatinga se estendia à vista de Bento como se não tivesse fim.
Estava verde, pujante, naquele mês de junho. Ele teria que chegar a Dores com o raiar do dia. O
padrinho morria e desejava o consolo de uma confissão, de um ajuste de contas. O padre Amâncio
queria fazer as suas contas, dizer o que devia a Deus, o que ficara restando, o que deixara de fazer.
Aquilo não podia ser. Ele era um santo. Foi quando Bento chegou na encruzilhada que dava para
Dores e para a Pedra Bonita. E o tiroteio voltou à sua cabeça, nítido como se ele estivesse olhando
de perto. O arraial destruído, destroçado. D. Eufrásia lhe dissera: “Bento, vai a Dores e traz o
vigário de lá. Amâncio pediu confissão.” E os dois caminhos na frente de Bento. Era Dores para
satisfazer a última vontade de seu padrinho e era a Pedra cheia de gente, de meninos, de velhos, de
mulheres, de aleijados, de toda a miséria do sertão. Num segundo na cabeça dele rodou toda a sua
vida. Ouvia tudo, o padre que queria morrer de alma limpa, de corpo lavado de culpas. E o tiroteio
pipocando, gemidos, dores, e o sangue do povo correndo. Aí ele esporeou o cavalo, como se o pobre
fosse o culpado de todas as suas indecisões, de suas desgraças. E o animal tomou o freio no dente e
desembestou na direção de Pedra Bonita. Esporeou mais, com raiva. O animal arrancou numa
carreira louca pela caatinga. Mais adiante parou. O cavalo resfolegava. Bento receou que ele se
afrontasse e foi tirando a cilha. A noite ia escurecendo com o desaparecimento da lua. Naquela
solidão imensa via que não era nada, que nada teria mais que fazer. Mas foi lhe voltando na cabeça o
tiroteio infernal. E Domício? Domício morto, o seu irmão querido, o que chorava nas noites de
agonia nos seus braços. Matariam Domício, se vingariam de Aparício, nele, na mãe, no pai. Era o
que o Açu queria. Joca Barbeiro e o escrivão Paiva só desejavam acabar com a Pedra, extinguir a
raça da Pedra. Encilhou outra vez o cavalo. E viu o padre morto sem o outro padre para ajudá-lo a
morrer. Quis assim voltar, ganhando a estrada de Dores. Seu padrinho era um santo, melhor que
todos. Teria era que seguir para a Pedra Bonita. Lá estavam os restos dos Vieiras, pagando a culpa
do outro. O sangue de Judas escorreria até a última gota de seus filhos. O mundo, para Bento, ficava
lá atrás. A igreja do Açu, lá para trás. E estava quase na hora de tocar a primeira chamada para a
missa. Naquela madrugada eles não ouviriam o sino chamando. Naquela madrugada o major Nunes
daria gritos de comando. A corneta estalaria com a tropa saindo, as cartucheiras cheias de balas, os
bornais entupidos, os rifles azeitados para aniquilar a Pedra Bonita. Eles viriam pela estrada com
sede de sangue. O major a cavalo, no passo vagaroso, a tropa estalando as alpercatas na caatinga.
Viriam andando, andando para cair sobre a Pedra Bonita. Gemiam os doentes, os meninos, os
aleijados. E a bala cantando. Fora o pai do velho Aparício que trouxera um batalhão cem anos atrás.
O santo, o Filho de Deus, morrera com uma coroa de mato verde na cabeça. Os urubus ficaram dias e
dias comendo os defuntos. Agora vinha outra vez a tropa com o povo do Açu, com Joca Barbeiro,
com o escrivão Paiva, com os cabras das fazendas vizinhas. Era um mundo furioso que vinha para
Pedra Bonita. Um mundo de assassinos, de perversos. Ele estava ouvindo os passos das alpercatas
estalando na caatinga, a marcha dos matadores. Vinham vindo para acabar com tudo.
Bento montou outra vez. Domício teria que saber de tudo. O santo teria que salvar o seu povo.
Esporeou o cavalo. A madrugada avermelhava o céu. Os pássaros da caatinga começavam a cantar.
E Bento partiu a galope para Pedra Bonita.
DADOS BIOBIBLIOGRÁFICOS DO AUTOR

BENJAMIN ABDALA JR.

Biografia

UM RETRATO (“BRASILEIRÍSSIMO”) A VÁRIAS MÃOS

“Tenho quarenta e seis anos, moreno, cabelos pretos, com meia dúzia de fios brancos, 1 metro e 74 centímetros, casado, com três
filhas e um genro. 86 quilos bem pesados, muita saúde e muito medo de morrer. Não gosto de trabalhar, não fumo, durmo com
muitos sonos, e já escrevi onze romances. Se chove, tenho saudades do sol; se faz calor, tenho saudades da chuva. Vou ao
futebol, e sofro como um pobre-diabo. Jogo tênis, pessimamente, e daria tudo para ver o meu clube campeão de tudo.”

Esse Autorretrato, escrito por José Lins do Rego em 1947, indica-nos com humor alguns dos traços
contraditórios de seu caráter e a imagem irreverente de romancista já consagrado. É uma
personalidade bem brasileira que começou a ser desenhada muito antes, desde quando nasceu a 3 de
junho de 1901, no engenho Corredor, município do Pilar, no estado da Paraíba.

OS AMARGOS VERDES ANOS

Já no ano de nascimento, José Lins ficou órfão de mãe, Amélia. Seu pai, João do Rego Cavalcanti,
foi viver longe dali, em outro engenho:

“Diziam que fora minha mãe que antes de morrer pedira que eu não fosse criado com meu pai. Fiquei assim no engenho de meu
avô, aos cuidados de tia Maria. A casa-grande do engenho Corredor quase não tinha dono. A velha Janoca, a minha avó, desde
que me entendi de gente não tinha olhos para tomar conta das coisas. Mandava em tudo, sem, porém, dar boa ordem na vida de
sua casa.” (Meus verdes anos.)

E assim o “sinhozinho”, dividido entre os cuidados de tia Maria e as experiências mais cortantes
com os primos e os moleques livres do engenho, começou sua trajetória existencial. O centro desse
mundo patriarcal — e que marcou parte de sua personalidade — foi seu avô.

“Sim, tudo era do meu avô, o velho Bubu, de corpo alto, de barbas, de olhos miúdos, de cacete na mão. O seu grito estrondava
até os confins, os cabras do eito lhe tiravam o chapéu (...) A minha impressão firme era de que nada havia além dos limites do
Corredor.” (Obra citada.)
AS PRIMEIRAS HISTÓRIAS DA VELHA TOTÔNIA

À imagem do avô, o “menino de engenho” contrapunha sua identificação e aprendizagem com os


negros remanescentes do tempo da escravatura. Aprendeu as primeiras crônicas familiares através
das conversas das criadas. Fascinavam-no, em especial, as histórias da velha Totônia, narrativas em
versos originárias do cancioneiro ibérico. E ele seria o testemunho da decadência do engenho de
açúcar, logo substituído pela usina, num processo de transformação da estrutura social e econômica
do Nordeste.
A morte de tia Maria teve o peso de uma segunda orfandade. Foi encerrado no Internato Nossa
Senhora do Carmo, de Itabaiana (Paraíba), que aparece transfigurado no romance Doidinho. Conta
José Lins do Rego a Lêdo Ivo:

“Duas coisas fundamentais constituíram minha formação de romancista: a velha Totônia e Os doze pares de França, livro de
cavalaria que li no Instituto Nacional do Carmo (em Itabaiana), quando tinha dez anos. Foi este o primeiro livro que li.” (“Tribuna
dos Livros”, no jornal Tribuna da Imprensa, 1957.)

E ELE “NÃO ERA UM ESCRITOR EMBRULHADO”

Transferiu-se, três anos depois, para o Colégio Diocesano Pio X, na capital do estado, onde travou
um contato maior com a literatura. Pertenceu a uma sociedade literária chamada Arcádia e publicou
um artigo sobre Joaquim Nabuco na Revista Pio X. Depois de 1915, frequentou, em Recife, o
Instituto Carneiro Leão e o Ginásio Pernambucano. Em 1916, lê O Ateneu, de Raul Pompeia,
romance que o marcou bastante. Dois anos depois, Dom Casmurro, de Machado de Assis: “O que
mais me agradou nele foi a forma, a simplicidade da frase. Não era um escritor embrulhado.” (Ledo
Ivo, publicação citada.)
José Lins ingressou na Faculdade de Direito de Recife em 1920. Foi uma época de farras e de
desencanto em relação à vida acadêmica. Consumiu em cerveja o dinheiro reservado para que
entrasse no quadro de formatura de sua turma, em 1923. Desde 1919, já colaborava na imprensa
(Diário do Estado da Paraíba). Estudante de Direito, trabalhou em vários jornais e chegou a fundar
um (Dom Casmurro) juntamente com Osório Borba. Nunca mais abandonou o jornalismo.

JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA E GILBERTO FREYRE

Mais importante que seu bacharelado foi o encontro nesse ano com Gilberto Freyre, retornado da
Europa, após estudos universitários realizados anteriormente nos Estados Unidos. À influência do
escritor José Américo de Almeida, que vivia no ostracismo político, soma-se a do futuro autor de
Casa-grande e senzala:

“Gilberto Freyre (...) era um homem que trazia para o seu país soluções literárias inéditas. Achava que a grandeza da literatura
brasileira só podia existir com a matéria-prima brasileira. Sem essa procura de nossas origens, não poderia haver originalidade
nenhuma nem nos poemas nem nos romances. O seu regionalismo não era um regionalismo caipira. Era um regionalismo que
podíamos chamar de universal, aquele que dá o toque de originalidade a um povo.” (Ledo Ivo, publicação citada.)

“ESSE NEGÓCIO DE LITERATURA NÃO BOTA NINGUÉM PARA DIANTE”

Casa-se, em 1924, com Filomena Massa (“Naná”), filha do senador Antonio Massa. Tiveram três
filhas: Maria Elizabeth, Maria da Glória e Maria Christina. Publica nesse ano um artigo intitulado “O
diletantismo em Marcel Proust”. E o sogro, refletindo sobre a sua condição, observa: “Esse negócio
de literatura não bota ninguém para diante.” Deixa Recife em 1925, para ser promotor público em
Manhuaçu (Minas Gerais). Fica pouco tempo: desilude-se com a magistratura e a vida na cidade
pequena já o entedia. Lê muito, em especial Proust e Thomas Hardy. Assina a Nouvelle Revue
Française.

O ENCONTRO COM ESCRITORES NORDESTINOS RENOVADORES

A desistência do ministério público leva-o a Maceió (Alagoas), onde vai trabalhar como fiscal de
bancos. Lá encontra escritores renovadores e participantes como Graciliano Ramos, Jorge de Lima,
Rachel de Queiroz, Aurélio Buarque de Holanda e Valdemar Cavalcanti. Continua a manter contatos
estreitos com Gilberto Freyre e Olívio Montenegro, em Recife. Partidário do Movimento
Regionalista do Nordeste, opõe-se ao Modernismo de São Paulo e Rio de Janeiro. Na prática
literária José Lins vai concretizar a nova linguagem “brasileira” que tanto os sulistas quanto os
nordestinos estavam procurando.
É em Maceió que escreve em 1929 seu primeiro livro, Menino de engenho, publicado três anos
depois numa pequena edição, paga pelo próprio escritor. O romance daria ao autor o Prêmio de
Romance da Fundação Graça Aranha e seria, em 1965, produzido para o cinema por Glauber Rocha,
sob direção de Walter Lima Júnior.
Começa, então, uma nova história. Muda-se para o Rio de Janeiro em 1935, e seus livros já iam
sendo publicados conforme os escrevia, desde 1933: Doidinho (1933), Banguê (1934), O moleque
Ricardo (1935), Usina (1936), Histórias da Velha Totônia (1936), Pureza (1937), Pedra Bonita
(1938). Com Riacho Doce (1939) a ação desloca-se para o litoral alagoano; em Água-mãe (1941)
vai mais longe — Cabo Frio, no Estado do Rio de Janeiro (Prêmio da Sociedade Felipe de
Oliveira).
A SOLIDARIEDADE POLÍTICA E O “VELHO GRAÇA”

José Lins foi amigo de Graciliano. Prestou-lhe auxílio quando o “velho Graça” padecia na polícia
política. Arrumou-lhe advogado (Sobral Pinto) e escrevia-lhe bilhetes nas beiras dos jornais que
enviava, arriscando-se à prisão. Numa carta a José Lins, Graciliano assinala:

“Recebi O moleque Ricardo, que foi devorado em pouco tempo. Não lhe mando parabéns: isto é desnecessário, você bem sabe
o que faz. O receio meio ingênuo que tinha de o livro sair inferior aos três primeiros com certeza desapareceu. Vi uma nota do
Carlos Lacerda, benfeita, mas uma verdadeira denúncia à polícia. Tenho a impressão de que você está aí metido em dificuldades
por causa da questão social.”

Quando Graciliano, doente e sem dinheiro, saiu da prisão, foi morar em sua casa. Essas formas de
solidariedade e o sentido social das suas produções impediram-no depois (1953) de ir visitar sua
filha casada, que morava nos Estados Unidos. Não lhe deram visto no passaporte. Era a época do
macartismo, quando se fazia naquele país uma verdadeira “caça às bruxas”, na perseguição de
intelectuais esquerdistas. A recusa do governo norte-americano originou movimentos de protesto da
intelectualidade brasileira e José Lins declarou que nunca mais visitaria aquele país, promessa que
veio a cumprir.

DUAS PAIXÕES: LITERATURA E FUTEBOL

No Rio de Janeiro, José Lins adquiriu uma nova paixão: o futebol. Foi da diretoria do Flamengo e
chegou a chefiar a delegação brasileira de futebol ao Campeonato Sul-Americano, em 1953. Foi
também à Europa. Publicara antes sua obra-prima Fogo morto (1943). Com Eurídice (1947) recebe
o Prêmio Fábio Prado. Continua a publicar durante suas atividades futebolísticas, com destaque para
seu décimo segundo romance: Cangaceiros (1953). A essa altura sua obra corre o mundo, com
traduções para o espanhol, o francês, o inglês, o alemão e o russo.
Em 1955, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, na vaga de Ataulfo de Paiva. No seu
discurso de posse, pintou um retrato sarcástico de seu antecessor. “Ataulfo de Paiva chegou ao
Supremo Tribunal Federal sem ter sido um juiz sábio e à Academia sem nunca ter gostado de um
poema.” Resultado: depois de sua atitude, foi instituída a censura prévia nos discursos de posse na
Academia.

RETRATO FINAL: UM BRASILEIRO DE CORPO INTEIRO

José Lins é “brasileiríssimo”, como afirma Otto Maria Carpeaux, no prefácio de Fogo morto, mas
“é um homem estranho. Entra na Livraria José Olympio sem saudar a ninguém, roupa elegante, atitude desleixada, bem nutrido,
com olhos muito móveis atrás dos óculos, uns grandes sinais no rosto, voz alta, barulhenta. Traz uns livros — ‘Impressionaram-
me muito!’ — que não vai ler, recebe os recados que a moça da caixa tem sempre para ele, vai ao telefone: coisas de futebol, a
literatura não interessa. Fala com os amigos, com Graciliano Ramos, Octávio Tarquínio, Aurélio Buarque de Holanda, João
Condé Filho, uns outros” — Otto Maria Carpeaux está entre eles —, “fala sem ouvir as respostas, conta histórias as mais
engraçadas, de humor rabelaisiano, ri-se gostosamente, com barulho, é todo menino, eterno menino de engenho. A literatura não
importa. Diz sobre todos a quem admira o que poderia dizer de si próprio: ‘Ele é mais um homem da terra do que dos livros.’ É
homem da comida boa e farta, das meninas bonitas, do futebol e do povo. E, de repente, sente dores em todas as partes do corpo:
no estômago, no fígado, no coração. Fica sentado, calado, cabisbaixo. Não fala nem ouve falar. Os óculos escondem uma
profunda tristeza. Levanta-se, sai, sem saudar a ninguém. É ele mesmo.”

Faleceu em 12 de setembro de 1957, no Hospital dos Servidores do Estado (Rio de Janeiro), vítima
de hepatopatia. José Lins, como milhões de brasileiros, contraíra a esquistossomose ainda criança,
quando se banhava nas águas infestadas de caramujos dos rios do Nordeste. Um ano antes publicara
Meus verdes anos, livro de memórias.
Cronologia bibliográfica

OBRAS

Romance
1932 Menino de engenho. Ed. do Autor, distribuído por Adersen, editor, Rio de Janeiro; 2ª ed.,
1934; e demais, Rio de Janeiro: José Olympio.
1933 Doidinho. Rio de Janeiro: Ariel; 2ª ed., 1935; e demais, Rio de Janeiro: José Olympio.
1934 Banguê.*
1935 O moleque Ricardo.
1936 Usina.
1937 Pureza.
1938 Pedra Bonita.
1939 Riacho Doce.
1941 Água-mãe.
1943 Fogo morto.
1947 Eurídice.
1953 Cangaceiros.
1 9 8 0 Romances reunidos e ilustrados (5 vols.). Com 290 ilustrações de Luís Jardim. Rio de
Janeiro/Brasília: José Olympio/INL-MEC, 1980.

Crônica
1942 Gordos e magros. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil.
1945 Poesia e vida. Rio de Janeiro, Universal.
1 9 5 2 Homens, seres e coisas. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação do Ministério da
Educação e Saúde.
1954 A casa e o homem. Rio de Janeiro: Organização Simões.
1957 Presença do Nordeste na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação
do Ministério da Educação e Saúde.
1958 O vulcão e a fonte. Rio de Janeiro: O Cruzeiro.
1981 Dias idos e vividos (antologia). Seleção, organização e estudos críticos de Ivan Junqueira.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
2 0 0 2 Flamengo é puro amor (111 crônicas escolhidas). Seleção, introdução e notas de Marcos
de Castro. Rio de Janeiro: José Olympio.
2004 O cravo de Mozart é eterno (crônicas e ensaios). Seleção, organização e apresentação de
Lêdo Ivo. Rio de Janeiro: José Olympio.
2007 Ligeiros traços: escritos da juventude (crônicas). Seleção, introdução e notas de César
Braga-Pinto. Rio de Janeiro: José Olympio.

Memórias
1956 Meus verdes anos. Rio de Janeiro: José Olympio.

Literatura infantil
1936 Histórias da Velha Totônia. Rio de Janeiro: José Olympio.

Conferência
1943 Pedro Américo. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil.
1 9 4 6 Conferências no Prata (Tendências do romance brasileiro, Raul Pompeia, Machado de
Assis). Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil.
1 9 5 7 Discurso de posse e recepção na Academia Brasileira de Letras: José Lins do Rego e
Austregésilo de Athayde. Rio de Janeiro: José Olympio.

Viagem
1951 Bota de sete léguas. Rio de Janeiro: A Noite.
1955 Roteiro de Israel. Rio de Janeiro: Centro Cultural Brasil-Israel.
1957 Gregos e troianos. Rio de Janeiro: Bloch.

Tradução
1940 A vida de Eleonora Duse, de E. A. Rheinhardt. Rio de Janeiro: José Olympio.

Em colaboração
1942 Brandão entre o mar e o amor (romance, 2ª parte). São Paulo: Martins.
1 9 8 0 O melhor da crônica brasileira — I (com Rachel de Queiroz, Armando Nogueira, Sérgio
Porto). Rio de Janeiro: José Olympio.
2007 O melhor da crônica brasileira (com Rachel de Queiroz, Ferreira Gullar e Luis Fernando
Verissimo). Rio de Janeiro: José Olympio.

No estrangeiro
Alemanha: Rhapsodie in rot (Cangaceiros), trad. de Waldemar Sontag, Bonn: H. M. Hieronimi ed.,
1958; Santa Rosa (trad. de Menino de engenho, Banguê e O moleque Ricardo), Hamburgo,
1953.
Argentina: Niño del ingenio, 1946; Banguê, 1946; Piedra Bonita, 1947; Fogo morto, 1947 (editados
em Buenos Aires).
Coreia: Menino de engenho, trad. de Sung-duck Lee. Seul: Pyoung-min Sa., 1972.
Espanha: Cangaceiros, trad. de André Fernandes Romera e Manuel José Arce y Valadares,
Barcelona: Luís de Caralt, editor, 1957.
EUA: Plantation boy (Menino de engenho, Doidinho e Banguê), trad. de Emmi Baum, Nova York:
Alfred A. Knopf, 1966.
França: L’enfant de la plantation (Menino de engenho), trad. de W. Reims, Paris: Deux Rivers,
1953; Cangaceiros, trad. de Denyse Chast, Paris: Plon, 1956.
Inglaterra: Pureza. Londres, 1950.
Itália: Fuoco spento (Fogo morto), trad. de Luciana Stegagno Picchio. Roma-Milão: Fratelli Bocca
Editori, 1956; Il treno di Recife (Menino de engenho, O moleque Ricardo), trad. de Antonio
Tabucchi, Milão: Longanesi ed., 1974.
Portugal: Pureza, Cangaceiros, Banguê, Menino de engenho, Doidinho (num só vol.); Riacho Doce;
Eurídice; Fogo morto; Pedra Bonita; O moleque Ricardo, Água-mãe; Usina. Lisboa: Livros do
Brasil [s. d.].
URSS: O moleque Ricardo. Moscou: Editora do Estado, 1938; Cangaceiros. Moscou: Editora do
Livro Estrangeiro, 1960.

Filmografia
Menino de engenho (1965). Produção: Glauber Rocha e Walter Lima Júnior. Direção: Walter Lima
Jr. Música: Villa-Lobos e Alberto Nepomuceno. Cenografia: Reinaldo Barros. Artistas
principais: Anecy Rocha, Geraldo Del Rey, Rodolfo Arena e Sávio (no papel do menino
Carlinhos). (Longa-metragem.)
José Lins do Rego (1969). Prêmio do Instituto Nacional do Cinema como a melhor direção de curta-
metragem em 1969. Produção: Maria Elizabeth Lins do Rego. Roteiro e direção: Valério
Andrade. Fotografia: Mário Carneiro.
José Lins do Rego (1975). Produção: José Olympio Editora. Direção: Walter Lima Júnior. Textos:
Ivan Cavalcanti Proença. (Curta-metragem.)
Fogo morto (1976). Produção: Miguel Borges. Direção: Marcos Faria. Roteiro: Marcos Faria e
Salim Miguel. Nos principais papéis: Ângela Leal, Rafael de Oliveira, Othon Bastos e Jofre
Soares.
O engenho de Zé Lins (2006). Produção: Eduardo Albergaria e Leo Edde. Roteiro e direção:
Vladimir Carvalho. Fotografia: Walter Carvalho. Música: Leo Gandelman. Principais
depoimentos: Ariano Suassuna, Rachel de Queiroz, Carlos Heitor Cony, Walter Lima Jr.
Alguns livros e estudos em livro sobre José Lins do Rego
Andrade, Mário de. “Dois estudos”, em O empalhador de passarinho. São Paulo: Martins [s. d.].
Athayde, Tristão de. “José Lins do Rego”, em Companheiros de viagem. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1971.
Barreto, Plínio. “Fogo morto”, em Interpretações. Rio de Janeiro: José Olympio, 1946.
Barros, Jaime de. “O drama econômico do romance”, em Espelho dos livros. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1936.
Cândido, Antônio. “Um romancista da decadência”, em Brigada Ligeira. São Paulo: Martins [s. d.].
Castello, José Aderaldo. José Lins do Rego: modernismo e regionalismo. São Paulo: Edart, 1961.
Cavalcanti, Valdemar. “Notas sobre Água-mãe e José Lins cronista”, em Jornal Literário. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1960.
Costa, Dante. “Cangaceiros”, em Os olhos nas mãos (Literatura Brasileira Contemporânea). Rio de
Janeiro: José Olympio, 1960.
Coutinho, Edilberto. O romance do açúcar — José Lins do Rego: vida e obra. Rio de Janeiro: José
Olympio/INL-MEC, 1980.
Freyre, Gilberto. “Recordando J. L. do R.”, em Vida, forma e cor. Rio de Janeiro: José Olympio,
1962.
Grieco, Agripino. “Doidinho e Banguê”, em Gente nova no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio,
1948.
J. Guilherme de Aragão. “Espaço e tempo em J. L. do Rego”, em Fronteiras da criação. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1959.
Lins, Álvaro. Estudos em Jornal de Crítica, 2ª, 3ª, 4ª e 6ª séries. Rio de Janeiro: José Olympio,
1943, 1944, 1946, 1951. Integram hoje Os mortos de sobrecasaca (ensaios e estudos, 1940-
1960). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
Martins, Eduardo. José Lins do Rego: o homem e a obra. João Pessoa: Secretaria de Educação e
Cultura do Estado da Paraíba, 1980.
Martins, Wilson. “Fogo morto”, em Interpretações. Rio de Janeiro: José Olympio, 1946.
Monteiro, Adolfo Casais. “Quatro estudos”, em O romance (teoria e crítica). Rio de Janeiro: José
Olympio, 1964.
Montenegro, Olívio. ‘José Lins do Rego’ (ensaio), em “O romance brasileiro”. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1953.
Peregrino Júnior. “Língua e estilo em José Lins do Rego”, em Revista do Livro, nº 35, INL, 1968.
Proença, M. Cavalcanti. “Ensaio sobre O moleque Ricardo”, em Estudos literários. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2ª ed., 1974 (incluído, como introdução, em O moleque Ricardo).
Sobreira, Ivan Bichara. O romance de José Lins do Rego. João Pessoa: A União, 1971; 2ª ed., 1979.
Nota

* A partir de Banguê todas as primeiras edições e seguintes foram publicadas pela editora José Olympio.
Características do autor

“UM MOTOR QUE SÓ FUNCIONAVA BEM QUEIMANDO BAGAÇO DE CANA”

A Semana de Arte Moderna (1922) redefiniu os caminhos da literatura brasileira. Seu influxo
ideológico fez-se sentir nos principais centros culturais do país. Gerou polêmicas não apenas com as
tendências literárias conservadoras, mas com os grupos que também buscavam as raízes
especificamente brasileiras para nossas produções literárias. Entre eles está o Movimento
Regionalista do Nordeste, liderado por Gilberto Freyre, e com participação ativa de José Lins do
Rego.
Os modernistas procuravam uma nova linguagem literária brasileira, contra o academicismo.
Oswald de Andrade e Mário de Andrade pesquisavam essa linguagem nos registros sociolinguísticos
da oralidade do homem brasileiro. É nessa perspectiva que publicaram, respectivamente, Memórias
sentimentais de João Miramar (1924) e Macunaíma (1928). E, no Nordeste, José Américo de
Almeida publicou A bagaceira (1928).

REGIONALISMO E PRIMITIVISMO MODERNISTA

Na ocasião da Semana, José Lins era estudante de Direito em Recife. Ao terminar a faculdade,
engajou-se no Movimento Regionalista e criticou em contraditória atitude polêmica o “francesismo”
dos escritores paulistas. Depois, modificou sua posição: ele próprio estava, na verdade,
estreitamente ligado à ideia de renovação literária do Modernismo. Seu primeiro livro (Menino de
engenho), publicado apenas em 1932, é concretização estética da linguagem popular, uma linguagem
primitivista e autenticamente brasileira.

“A força desse novo romancista”, diz Tristão de Athayde, “filho do sertão paraibano e impregnado de espírito nordestino, era
refletir no seu mural um problema social tipicamente nosso, a agonia de uma casta, o fim do patriarcado rural, o desmoronamento
de um mundo. Assim como Balzac estudara, nos seus romances, a formação da grande burguesia em França no início do século
XIX e Proust a decadência da nobreza e dessa grande burguesia, no fim do século — o nosso sertanejo do Pilar, filho desse
patriarcado rústico, vinha refletir nos painéis do seu grande mural a morte dos banguês, a agonia dos engenhos, o domínio
crescente das usinas, em suma a desumanização da economia, pela mecanização da lavoura e com isso a ruína do patriarcado e a
dispersão de um povo, descendente dos escravos de outrora, e ainda não fixado no trabalho livre.” (“Zé Lins”, em Menino de
engenho.)

OS CICLOS EM TORNO DO ENGENHO

A obra romanesca de José Lins fixa a decadência da sociedade patriarcal, onde o herói, solitário, vê-
se dividido entre o passado decadente e um futuro que não se afirma. Didaticamente, segundo José
Aderaldo Castello (José Lins do Rego: modernismo e regionalismo), ela pode ser dividida, do
ponto de vista temático, como qualquer classificação que se preze, em três tópicos básicos.
Esquematizaremos essa divisão, a seguir, adicionando-lhe algumas observações.

1º) Ciclo da cana-de-açúcar, com Menino de engenho, Doidinho, Banguê, O moleque Ricardo,
Usina e Fogo morto. As três primeiras narrativas estão centradas na personagem Carlos de Melo e
apresentam grande unidade. Já O moleque Ricardo e Usina são expansão desse núcleo inicial. O
moleque Ricardo pode ser considerado um romance de realismo social, afastando-se de coordenadas
naturalistas das narrativas anteriores. Fogo morto, a obra-prima do escritor, é um romance-síntese
não apenas do ciclo da cana-de-açúcar, mas da própria temática da decadência que percorre os
romances de José Lins do Rego.
2º) Ciclo do cangaço, misticismo e seca, com Pedra Bonita e Cangaceiros. A segunda narrativa
é uma espécie de continuação da primeira. O significado sociológico dessas narrativas pode ser
inferido nas páginas de Fogo morto ou nas seguintes observações de José Lins do Rego: “A história
do cangaço, no Nordeste brasileiro, está intimamente ligada à história social do patriarcalismo, à
vida de uma região dominada pelo mandonismo do senhor de terras e de homens, como se fossem
barões dos feudos” (Presença do Nordeste na literatura). Aproxima-se, José Lins, nessa temática,
dos escritores do grupo nordestino.
3º) Obras independentes dos ciclos anteriores, como O moleque Ricardo e Pureza. O primeiro
romance é citadino e focaliza as lutas proletárias de Recife. As evocações da personagem-
protagonista, quando contrapõem a situação dos proletários do engenho à dos proletários da cidade,
não são suficientes para enquadrá-lo no ciclo da cana-de-açúcar. Entretanto, para o escritor, esta
narrativa faz parte desse ciclo. Pureza apresenta um lirismo erótico que, segundo Peregrino Júnior
(José Lins do Rego), aproxima essa narrativa de Água-mãe, Riacho Doce e Eurídice.
Entre as “tentativas de fuga” da paisagem nordestina estariam esses três últimos romances, com
ambiência fora do Nordeste. Com Meus verdes anos, livro de memórias, retorna à paisagem
nordestina.

EM TORNO DA “ENGENHARIA” DO ARTISTA

Os romances que singularizam José Lins do Rego — justamente de realização artística superior —
são os que ele próprio classificou no ciclo da cana-de-açúcar. É ali, caracterizando a situação
histórico-social de sua região, que conseguirá
“fundir, numa linguagem de forte e poética oralidade, as recordações da infância e da adolescência com o registro intenso da vida
nordestina colhida por dentro, através dos processos mentais de homens e mulheres que representam a gama étnica e social da
região.” (Alfredo Bosi, História concisa da literatura brasileira.)

Essa tendência ao registro menos trabalhado esteticamente da oralidade tem sido apontada como
prejudicial à construção dos romances. Estes perderiam na forma o que ganham em naturalidade. Não
há espontaneidade em seu trabalho. A naturalidade de seu texto é feita de trabalho artístico, às vezes
bastante cansativo:

“Cada artista tem o seu processo de trabalho, tem a sua engenharia (...) É muito fácil dizer-se: o Zé Lins escreve como médium.
Ele se senta à mesa, o João Condé lhe fornece os papéis e a inspiração baixa como em sessão de espiritismo e as páginas se
enchem automaticamente. Tudo isso é muito fácil de dizer, mas não de fazer.
Eu é que sei quanto me custam as dores, as alegrias, os tormentos e os fracassos de meus personagens (...) Agora, a forma.
É verdade que não tenho problema da forma, mas isto porque a minha forma é muito simples. Meu futebol é de primeira. Eu não
uso a bola para com a bola construir bailado. Eu a atiro ao primeiro golpe e se não chego a realizar uma jogada com perfeição,
não comprometo, por outro lado, a eficiência do meu time. Não cuido da forma porque a minha forma é a coisa mais natural
deste mundo. Ordem direta, oração principal com o sujeito claro, pronomes colocados de ouvido e, sobretudo, adotando soluções
que são soluções da língua do povo.” (Depoimento a Medeiros Lima, em Políticas e Letras, 1948.)

José Lins separa a criação da “forma”. Forma, para ele, é estilo e segue aquele utilizado no
jornalismo, como os prosadores neorrealistas. Considera “difícil” a “criação”, isto é, a “forma do
conteúdo”, mas na verdade os dois aspectos estão indissolúveis na sua escrita. Ele só escreve
quando já encontrou uma adequação estrutural para a sua história e, por isso, a escrita parece fluir
“espontaneamente”.

O ESCRITOR E OS “ANSEIOS DA COLETIVIDADE”

Com essa “espontaneidade” construída, José Lins procurou aproximar-se de um público mais
abrangente. Sempre defendeu que o escritor não pode viver afastado do povo, deve participar de sua
vida e caminhar com ele, inclusive politicamente, como força e expressão da época em que vive e
atua:

“O verdadeiro escritor será sempre o produto de forças subterrâneas que constituem por assim dizer o alimento da criação.
Pergunto: como poderá viver um escritor, ou exprimir-se literariamente, se ele não for uma consciência de seu tempo? (...) E o
escritor, para que possa dar o seu testemunho, tem que trazer no sangue os anseios da coletividade em que vive. Não posso
compreender um escritor que não seja um elo dessa coletividade. (Depoimento a Francisco de Assis Barbosa, Última Hora,
1952.)

AUTOBIOGRAFIA E FICÇÃO
Os aspectos autobiográficos da obra de José Lins do Rego têm sido enfatizados pela crítica. Sua
força artística estaria na “sinceridade” dessa transposição de fatos históricos para ficcionais. Teria,
para outros, mais “memória” do que “invenção”.
Uma observação, entretanto, deve ser feita: a transposição de um fato real para o plano artístico
não ocorre sem deformação. Quanto mais artística for a autobiografia, mais ela se afastará da
factualidade do depoimento. É uma questão de grau na distorção da realidade, como também ocorre
entre o jornalismo e a literatura. As fronteiras são ambíguas e dependem da óptica do crítico.
Em José Lins do Rego, a “memória” torna-se artística porque bem construída e o texto literário
torna-se representativo de seu momento histórico também porque foi bem elaborado. Menos pela
“sinceridade” do escritor e mais pela coerência de seu trabalho literário.
Essa linguagem não estava propriamente no escritor. Ele as vivenciou e fixou na memória através
da fala popular anônima ou não dos cantadores nordestinos. Ali, nas histórias da velha Totônia, nos
“casos” familiares contados pelas criadas, estava o princípio. Bastaria, depois, estender esses
procedimentos pela incorporação de esquemas narrativos mais elaborados, que encontrou na tradição
cultural considerada “culta”.
Não poderia afastar-se de suas raízes, estava impregnado dos esquemas ideológicos dessa
tradição popular. Poderia problematizá-los, buscar novos “arranjos” criativos para essa tradição. É
o que vai ocorrer independentemente de sua consciência: pretendia fazer a biografia do avô em
Menino de engenho e escreve uma narrativa ficcional. Encontra-se com o resultado e prossegue:
Fogo morto é o ponto culminante desse trabalho artístico, onde “invenção” e “observação/memória”
da realidade disputam-se dialeticamente.
Escritor popular, teve de ser mal-educado. Seu lirismo foi mal-comportado. Como o capitão
Vitorino (Fogo morto), que ascende dentro de um mundo decadente, sua escrita afirmou-se nesse
romance apontando para a antítese do progresso: o desenvolvimento material (a usina) em vez de
trazer maior riqueza mergulhava o campo numa situação de pobreza ainda maior.
Tentou ir mais além, mais pela “invenção” do que pela “observação/memória”. Não deu certo.
Como assinalou Manuel Bandeira, José Lins “era um motor que só funcionava bem queimando
bagaço de cana”. Voltou aos Meus verdes anos, livro de memórias. Mais do que isso: reativou o
“fogo vivo” de sua escrita, dentro das tensões dialéticas que estabeleceram seu estatuto artístico.
Uma escrita para resistir, como resistem suas principais personagens à adversidade social. Uma
escrita que comunicou em uma época onde teria sido mais conveniente calar-se.
Panorama da época

ENTRE O QUEPE E A CARTOLA

A Velha República, que se iniciou com o marechal Deodoro da Fonseca, foi dominada pelos barões
do café. É a belle époque da oligarquia brasileira sulista. No Nordeste, onde José Lins do Rego
nasceu em 1901, temos a decadência da oligarquia dos senhores de engenho. Não se adaptaram aos
novos tempos da mecanização e da industrialização.

CASA-GRANDE E PATRIARCALISMO

A família patriarcal era a célula básica de organização dessa sociedade. Na casa-grande das
fazendas mais poderosas traçavam-se as diretrizes econômicas e sociais do município, do estado e,
mesmo, do país. O patriarca era o chefe desse clã. Distanciava-se de todos, inclusive dos filhos,
confiados às amas de leite. Em torno da casa-grande gravitavam os agregados, egressos do regime
escravista. Com a industrialização, esse mundo entrou em crise. O patriarca ou se tornava industrial,
comerciante ou banqueiro, levando sua família para a capital, ou perderia gradativamente seu
patrimônio. No Nordeste, é também o momento da concentração econômica do capital. Senhores de
engenho procuram adequar-se aos novos tempos. Participam da vida política e transformam-se em
usineiros. Outros, a maioria deles, tiveram que conformar-se a uma lenta decadência, não resistindo à
concorrência dessas usinas.
Os filhos dessa elite, futuros dirigentes políticos, deveriam ser bacharéis em Direito. Era o papel
a eles destinado. José Lins desloca-se do engenho para estudar na capital da Paraíba. Segue, depois,
para Recife. Em 1919, matricula-se na Faculdade de Direito. A oligarquia deveria frequentar as
melhores escolas de sua região, do país ou do exterior, conforme as posses das famílias. No Sul,
mais industrializado, essa intelectualidade não se conformava dentro dos limites patriarcais.
Procurava escandalizar, buscando o “moderno” que vinha da Europa onde ia estudar. As saias
encurtavam-se “à melindrosa” e imitavam-se os hábitos do cinema, revelando decotes “fatais”.

MODERNISMO E RENOVAÇÃO

A ânsia por mudanças não ficou restrita apenas à moda. Em 1922, artistas e intelectuais paulistas
organizaram a Semana de Arte Moderna, que iria desencadear um vigoroso movimento renovador nas
artes, cujos efeitos projetam-se até nossos dias. Buscavam uma nova “linguagem” artística brasileira.
Na literatura, a partir da publicação de Menino de engenho (1932), José Lins seria um dos escritores
que conseguiriam concretizar essa perspectiva nacionalista do Modernismo.
A ruptura não ficaria restrita a esses campos artísticos. A insatisfação da classe média era
grande e vai canalizar o seu inconformismo através do Tenentismo. Explodem rebeliões militares em
várias partes do país, durante a década de 1920. Em 1924, iniciou-se a Coluna Prestes, que
percorreu 24 mil quilômetros do território brasileiro lutando contra o governo oligárquico.

CARNAVAL? FUTEBOL? NÃO, GREVE

Para a classe média, como para as classes populares das cidades, não bastava o nivelamento social
do carnaval, onde podiam cantar e dançar o seu samba ao lado de setores sociais privilegiados. Não
era suficiente também a democratização do futebol, que deixava de ser o “nobre esporte bretão”.
Exigiam mais: melhores condições de vida. A classe média com levantes militares e a classe
operária com as greves.
A Confederação Operária Brasileira, fundada em 1908, já possuía, em 1917, centenas de
milhares de membros nas principais cidades industrializadas do país. Dividiam-se os líderes
operários entre anarquistas e “maximalistas” (bolchevistas). O apogeu dessa luta por melhores
salários ocorreu entre os anos de 1917 e 1920. Em 1922, foi fundado o Partido Comunista do Brasil.

CORONÉIS, CANGACEIROS E BEATOS

Em Recife, havia um incipiente desenvolvimento industrial. Sua atmosfera cosmopolita atraía a elite
senhorial do Nordeste. Em oposição, os “primos pobres” desses antigos senhores de engenho
permaneciam no interior. E a disputa pela terra entre esses últimos foi muito violenta. Como a
economia decrescia em produtividade, procuravam aumentar os seus rendimentos ampliando os
limites de seus latifúndios. Eram os “coronéis”. Permaneciam com esses títulos militares, apesar da
extinção da Guarda Nacional que os criara. Sua figura e de seus capangas perdiam autoridade,
entretanto, à medida que a propriedade se internava pelo sertão. Lá dominavam as figuras dos beatos
e dos cangaceiros.
Os cangaceiros institucionalizaram-se como instrumento de poder dessa oligarquia rural. No
final do século XIX, os bandos já se tornavam mais independentes. Antônio Silvino, que se
transformaria em personagem de José Lins, inaugurava, no início do século XX, uma luta desses
setores marginais contra o governo e tinha apoio popular. Embora fosse estimado como defensor dos
pobres e oprimidos, Antônio Silvino, como outros cangaceiros, valeu-se, na verdade, de pactos com
os senhores de engenho: protegia os amigos e atacava os inimigos.
UFANISMO OFICIAL E RESISTÊNCIA POPULAR

O Brasil continua a ser um país da monocultura, agora do café. Com o crack da Bolsa de Nova York,
em 1929, o país entra em crise. Um ano depois, em outubro, os tenentes, ligados à oligarquia
dissidente, derrubam a República Velha. Ascende à chefia do país o candidato derrotado nas
eleições de março de 1930. São nomeados interventores em todos os estados. Em São Paulo há
reação e, em 1932, eclode a Revolução Constitucionalista contra a ditadura, mas é derrotada.
Esta é a época do rádio e dos meios de comunicação de massa. A cultura democratiza-se em
certo sentido; em outro, massifica-se, transformando-se em veículo de divulgação do ufanismo da
política oficial.
Há entretanto toda uma arte de resistência contra o ufanismo oficial. Suas raízes já estavam
estabelecidas na literatura de um Lima Barreto, que em 1915 publica Triste fim de Policarpo
Quaresma, uma crítica ao autoritarismo militar e às elites brasileiras. E também de um Oswald de
Andrade (Memórias sentimentais de João Miramar, 1924) ou de Mário de Andrade (Macunaíma,
1928).
A cultura popular resiste contra o ufanismo de um Ari Barroso. Noel Rosa faz samba social e
refugia-se nos botecos do Rio de Janeiro. Surge o romance de ênfase social. No Nordeste, após o
pioneirismo de A bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, aparecem José Lins do Rego,
Graciliano Ramos, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Jorge de Lima, Amando Fontes. No Rio Grande
do Sul, destacam-se Érico Veríssimo e Dionélio Machado.
Em 1933, Gilberto Freyre, amigo de José Lins do Rego, publica Casa-grande e senzala. Coloca-
se contra o racismo de intelectuais ligados à oficialidade. Valoriza o papel dos negros e mestiços em
relação à nossa formação histórico-cultural. O livro de Gilberto Freyre teve um impacto libertador,
mas idealizou o tratamento que os escravos receberam dos portugueses. Em oposição à defesa da
colonização portuguesa, coloca-se Sérgio Buarque de Hollanda, com Raízes do Brasil (1936), para
quem o desenvolvimento depende da superação de certas características dessa colonização, em
especial do autoritarismo, da exploração econômica nômade e de seu caráter predatório. Caio Prado
Júnior vai além, com Evolução política do Brasil (1933) e Formação do Brasil contemporâneo
(1942), destacando o papel dos trabalhadores na construção da história da sociedade brasileira.

A DITADURA SOB PRESSÃO POPULAR

À sombra do autoritarismo de Getúlio Vargas cresce o integralismo, tendência conservadora afim do


fascismo. Como resposta, surge em 1935 a Aliança Nacional Libertadora (ANL), uma frente de
liberais, sindicalistas, comunistas, tenentistas, socialistas, que pretendia uma profunda revolução
social. A ANL tenta o golpe militar mas é derrotada. Getúlio decreta em seguida o estado de sítio e o
Estado Novo, a institucionalização da ditadura, em 1937.
É a época de uma elite milionária que se concentra no Rio de Janeiro, namorando os quadros
burocráticos do poder. Para o lazer dessas minorias o modelo é Hollywood: shows de vedetes
ostentando grande luxo e exibindo um tropicalismo de exportação. Forma-se uma companhia
cinematográfica, a Atlântida, especializada nesses musicais. Afirma-se, por outro lado, a resistência
política e cultural. A maior parte da intelectualidade do país não aceita o regime. Sob pressão
popular, o caudilho populista cria o Conselho Nacional do Petróleo (1938) e a Companhia
Siderúrgica Nacional (1939).
O Brasil desenvolve-se econômica e culturalmente. O DIP (Departamento de Imprensa e
Propaganda), o poderoso órgão de censura do Estado Novo, não consegue amortecer a resistência
popular antifascista. O rádio e o jornalismo atingem notável desenvolvimento. A literatura vive uma
fase de altíssimo nível. É de 1943 a publicação de Fogo morto, de José Lins do Rego.
O movimento nacionalista de resistência ao fascismo vai pres-sionar Getúlio Vargas a declarar
guerra às potências do Eixo Alemanha-Itália-Japão, após o torpedeamento de navios brasileiros
pelos alemães. A atitude de Getúlio é paradoxal: anteriormente vinha se mostrando simpatizante do
Eixo. Entretanto, o país estava ligado ao bloco dos Aliados por fortes razões econômicas e a guerra
já se inclinava a favor das democracias.

VENTOS DEMOCRÁTICOS E AUTORITÁRIOS

Em outubro de 1945, após o término da guerra, Getúlio é deposto pelo Exército que o prestigiara.
Respira-se democracia e uma nova Constituição estabelece novo pacto social da sociedade
brasileira. Ela é aprovada por uma Assembleia Constituinte eleita livremente. Depois, há eleições
diretas e secretas. Escolhe-se um novo presidente: o general Eurico Gaspar Dutra, apoiado por
Getúlio Vargas, a quem ajudara a derrubar. Nessas eleições, o Partido Comunista apresenta
candidatos em todos os níveis, inclusive para presidente da República: Yeddo Fiúza.
A euforia democrática dura pouco. Os ventos da Guerra Fria entre os EUA e a URSS atingem o
país. O Partido Comunista é colocado na ilegalidade e recomeçam as perseguições políticas.
Perseguem-se os intelectuais, em especial nos meios de comunicação de massa. É o macarthismo, da
figura sinistra do senador norte-americano Joseph McCarthy, que promovia uma verdadeira “caça às
bruxas” aos intelectuais e artistas identificados com as causas populares. Seus efeitos vão se projetar
pelos anos 1950. Em 1952, José Lins do Rego é proibido de entrar nos EUA para visitar sua filha,
casada com um diplomata brasileiro. José Lins pertencia ao Partido Socialista.
Nas eleições presidenciais de 1950, Getúlio Vargas volta ao poder, agora com uma política mais
nacionalista e popular. Acentua-se o movimento nacionalista e popular em torno do lema “O petróleo
é nosso”. Greves gerais operárias paralisam os principais centros industriais. Getúlio Vargas e sua
política sindicalista são responsabilizados pela classe dominante. Sem apoio no Exército e em meio
a uma conspiração militar, o caudilho suicida-se, em 1954. A sua morte e a instabilidade do poder
civil geram uma crise cujo final feliz é a eleição de Juscelino Kubitschek para a presidência, em
1955.

JUSCELINO E A CARTOLA DAS ILUSÕES

Com Juscelino, com sua cartola de onde saem contínuas ilusões, e o seu sorriso empreendedor,
implanta-se uma política desenvolvimentista. Implanta-se a indústria automobilística, impulsionam-
se a refinação do petróleo e indústrias de base. Por outro lado, abre-se o país ao capital
internacional. Instala-se a nova capital em Brasília, cidade-síntese da esperança e da modernização
do país.
As imagens otimistas do futuro são mostradas pela televisão. A Bossa Nova, com João Gilberto,
e os primeiros passos do Cinema Novo também apontam para o futuro. Nascem o Teatro de Arena e
o Grupo Oficina, em São Paulo. A problemática é, entretanto, mais complexa. A maior parte do país
está deslocada dos benefícios dessa política. E a tensão social vai intensificar-se na década de 1960,
quando se procuraria estender as transformações para os setores sociais populares, da cidade e do
campo. O processo seria truncado pelo golpe militar de 1964.

CRONOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL

1908 Nasce a Confederação Operária Brasileira.


1911 Publica-se, em folhetim, o romance Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto.
1912 Começa a Guerra Santa do Contestado, com duração de cinco anos e 20.000 mortos.
1915 Manifestações operárias em São Paulo e Rio de Janeiro contra o início da Primeira Guerra
Mundial.
1917 Greves paralisam São Paulo. Exposição de Anita Malfatti.
1922 Realiza-se a Semana de Arte Moderna, em São Paulo. Funda-se o Partido Comunista do
Brasil.
1924 Revolução tenentista em São Paulo. No Rio Grande do Sul, o capitão Luís Carlos Prestes
inicia a marcha da Coluna Prestes.
1927 Congresso Regionalista no Recife.
1928 Publicam-se Macunaíma, de Mário de Andrade, e A bagaceira, de José Américo de
Almeida.
1930 Revolução de outubro: Getúlio Vargas põe fim à Primeira República.
1932 Revolução Constitucionalista de São Paulo. Publicação de Menino de engenho, de José
Lins do Rego.
1933 Publicação de Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre, Evolução política do Brasil, de
Caio Prado Jr., e Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade.
1935 Tentativa de golpe da frente antifascista Aliança Nacional Libertadora.
1937 Golpe de Vargas instala a ditadura do Estado Novo.
1939 Início da Segunda Guerra Mundial. Criado o Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP), encarregado da censura dos meios de comunicação.
1942 O Brasil declara guerra à Alemanha e à Itália. Publica-se, no ano seguinte, Fogo morto, de
José Lins do Rego.
1945 Fim da Segunda Guerra Mundial. Deposição de Getúlio Vargas e redemocratização do país.
1947 Guerra fria dos EUA chega ao Brasil. Recomeçam as perseguições políticas.
1950 Volta de Getúlio Vargas ao poder. Josué de Castro publica Geopolítica da fome.
1954 Suicídio de Vargas. Neste mesmo ano assinara decreto colocando restrições ao capital
internacional.
1956 Posse de Juscelino Kubitschek na presidência da República.
Este e-book foi desenvolvido em formato ePub pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S. A.
Pedra Bonita

Sobre o livro
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Sobre o autor
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Livros do autor
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Página do livro no Skoob


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Página do autor na Wikipédia


• http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Lins_do_Rego

Página do autor no site da Academia Brasileira de Letras


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sys/start.htm?sid=256

Resenha do livro
• http://www.literaturaemfoco.com/?p=4394

Programa da TV Brasil, De Lá Pra Cá, sobre o autor


• http://www.youtube.com/watch?v=Ejg3lkFpU3c

Página do filme baseado no livro Menino de Engenho no site Adoro Cinema


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Resenha do filme Menino de Engenho de Walter Lima Júnior


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resenha-menino-de-engenho-de-walter.html

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