Analytica São João Del-Rei v. 10 N. 18 Janeiro Junho de 2021 1 de 20 A Clínica e A "Peste Psicanalítica" Na Contemporaneidade

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A clínica e a “peste psicanalítica” na contemporaneidade

Rita de Cássia Cardoso da Silva Mendes1


João Luiz Leitão Paravidini2
Anamaria Silva Neves3

1
Psicóloga e Psicanalista. Mestre pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU),
Programa de Pós-Graduação Em Psicologia, Uberlândia/MG, Brasil. Membro da Comissão Organizadora da
Trilogia Psicanálise em Perspectiva.
2
Psicólogo e Psicanalista. Professor Associado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de
Uberlândia (UFU), Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Uberlândia/MG, Brasil.
3
Pós-doutora pela CWASU – Child and Woman Abuse Studies Unit, instituição vinculada à London Metropolitan
University, em Londres. Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Mestra em Psicologia
pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Graduada em Psicologia pela Universidade
Federal de Uberlândia (UFU). Professora Associada 3 no curso de Psicologia – graduação e pós-graduação
strictu sensu – da Universidade Federal de Uberlândia. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase
em Programas de Atendimento Comunitário, atuando principalmente nos seguintes temas: família, infância,
adolescência, violência e instituição.

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Introdução

Discorrer sobre a clínica psicanalítica é desafiador, uma vez que ela está em
constante reinvenção, mas a crença de que a sua ética não se altera, apesar de todas as
contingências, nos concede essa possibilidade.
Kehl (2002) aponta que a ética advinda das contribuições da Psicanálise é a
ética oriunda da clínica psicanalítica, pois é justamente na experiência clínica que surge a
demonstração de como se relaciona Psicanálise e ética, uma vez que a Psicanálise enxerga
o homem em seu eterno conflito entre liberdade e alienação ao inconsciente, “esse
estranho que age nele e ele não pode se descomprometer” (Kehl, 2002, p. 33). Daí, como
responsabilizar-se por algo que não se tem controle? De que maneira o homem lida com o
desejo que, por mais analisável que seja, lhe será sempre estranho?
A Psicanálise não busca a solução para esses impasses, pois não pressupõe
uma verdade definitiva para a natureza humana. Seu princípio básico é que o homem,
especialmente o moderno, é vazio de ser; por isso busca, por meio da análise de alguns
dispositivos como o laço social, estruturas de dominação de poder e práticas de linguagem,
respostas para a crise ética atual. A Psicanálise, mediante a análise crítica dessas condições,
intenta demonstrar que não existe uma verdade última que justifique as ações humanas, e
sim “circunstâncias humanas, de história e estruturas, que a produziram” (Kehl, 2002, p. 34).
Sendo assim, este ensaio busca analisar o estatuto ético-criativo da clínica
psicanalítica e, para tal, resgata como operadora a dimensão crítica da “peste psicanalítica”,
deflagrada no século XX, e a atualiza mediante as formas de subjetividade contemporâneas.
Nossa intenção é de não só apreendermos o caráter criativo da teoria psicanalítica de sempre
se reinventar, como demonstra sua história, mas também traçarmos caminhos que auxiliem
a Psicanálise e a sua prática a enfrentarem os desafios gerados na contemporaneidade.
O que temos acompanhado e o que se prenuncia é o risco de morte da própria
Psicanálise, uma vez que a sua teoria e prática contradizem e colocam em cheque as novas
formas de subjetividade e o que busca o homem contemporâneo.
A sociedade atual caminha conforme as coordenadas estipuladas por Guy Debord
em 1968, ou seja, um panorama de sociedade em forma de encenação performática no
qual o que importa é a aparência. Nesse modelo social, não importa muito o que ele é,
mas o que impera é uma absorção passiva desse desfile de imagens que estampa a
superfluidade do social. O suficiente é parecer que é alguma coisa, pois o que está em jogo é
o personagem socialmente exibido. “Esse desfile de imagens não convida ao pensamento,
mas à mimetização” (Pinheiro & Harzog, 2017, p. 47).
Paralela à superfluidez social, surgem também os maus presságios à Psicanálise.
Ela vem sendo bastante questionada não só em relação a seus tratamentos longos, mas,

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sobretudo, quanto a sua eficácia. As literaturas atuais clamam por sua extinção, como vimos
na publicação, em 2005, do Livro Negro da Psicanálise, o qual traz duras críticas dos cognitivistas
à sua teoria e clínica. Vozes mais aquecidas pedem sua execução pelo fogo, o que expõe a
matéria de jornal que recebeu o título “É necessário queimar a Psicanálise?”, publicada em
abril de 2012 na revista francesa Le Nouvel Observateur. O escrito vinha em defesa dos pais
de crianças com autismo revoltados por entenderem que a Psicanálise os culpabilizam pelas
enfermidades de seus filhos e, por isso, deveria ser erradicada (Pinheiro & Herzog, 2017).
Nesse contexto, cabe-nos questionar: a clínica psicanalítica estaria sendo vítima
de si mesma ou teríamos nas características da contemporaneidade seus vorazes algozes?
Quando falamos de “peste psicanalítica”, referimo-nos à ruptura crucial sobre o
que pensava criticamente Freud acerca do mal-estar na civilização (moderna), gerando uma
descontinuidade em seu discurso, com necessidade de reordenação teórica e repercussão
em seu registro epistemológico. Pacheco Filho (2009b) auxilia na compreensão desses
fatos ao descrever:

Desde a sua inauguração, a Psicanálise surgiu questionando os


fundamentos da moral sexual de sua época: sujeitos dotados de
sexualidade, ciúmes e agressividade contra seus pais e irmãos
(Complexo de Édipo), onde se encontravam apenas criancinhas
assexuais; e um lado dark, sombrio, agressivo, violento e egoísta do
ser humano (alimentado por uma pulsão de morte), onde a sociedade
quer ver apenas lirismo, bondade, boa vontade e impulso de vida. Para
a Psicanálise, o escamoteamento desse lado sombrio não contribui
em nada para se operar transformações desejadas na sociedade. Pelo
contrário, “esconder a sujeira debaixo do tapete” é exatamente o que
impede a tomada em consideração daquilo com que temos de nos haver.
[...] Temos algo a aprender também com a dor de existir e não apenas
com a alegria e felicidade. O Mal, assim como o Bem, é parte igualmente
constituinte do ser humano. (pp. 12-13)

Não é sem razão que, em “O mal-estar na civilização”, Freud designa as relações


humanas em sociedade como a nossa principal fonte de sofrimento. E propõe que isso não
seja da ordem da contingência – “uma espécie de acréscimo gratuito” –, mas, antes, algo
“fatidicamente inevitável”. (1930/1980, p. 95).
Diferentemente do que se imaginava, a Psicanálise revelou que a vida em sociedade
não tem nada de harmonioso e livre de conflitos, uma vez que, “Reunidos no coletivo,
os seres humanos mostram tanto o melhor quanto o pior de que parecem ser capazes”
(Pacheco Filho, 2009b, p. 11). E foi dessa forma que Freud, ao chegar a Nova Iorque para
fazer algumas conferências, disse a Jung: “Eles não sabem que lhes estamos trazendo a
peste” (Lacan, 1955/1998, p. 404, como citado por Pacheco Filho, 2009b, p. 14). A Psicanálise
jamais poderia ser “a ciência pura, aética, asséptica e dessexualizada que revelaria um ser

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humano altruísta, puro e livre de egoísmo, vivendo em uma sociedade harmônica, piedosa
e justa” (Lacan, 1955/1998, p. 404, como citado por Pacheco Filho, 2009b, p. 14).
Todavia, acredita-se que seja agora na atualidade que essa “doença” tem castigado,
mais drasticamente, a Psicanálise e lhe gerado desafios de caráter externos e internos. É
comum, nos dias de hoje, vermos a sua eficácia terapêutica colocada sob suspeita diante
dos psicofármacos e a sua fundamentação científica posta sob questão pelas neurociências
(Dunker, 2017). Comum também na atualidade acompanharmos a necessidade dos analistas
lidarem com as mudanças ocorridas no âmbito do imaginário social contemporâneo e o
lugar ocupado pela Psicanálise no campo dos saberes do psiquismo, evidenciados tanto
em seu registro prático quanto no teórico.

[...] No registro prático, pode-se reconhecer com facilidade a diminuição


vertiginosa que se realizou no nível da demanda para a cura psicanalítica.
A demanda clínica diminuiu de maneira significativa, segundo reconhecem
os analistas em geral. Em contrapartida, as pessoas tendem a preferir os
tratamentos psicofarmacológicos e as psicoterapias de curta duração.

No registro teórico, de maneira complementar, os modelos advindos do


cognitivismo fascinam cada vez mais o campo dos saberes do psíquico e
as ciências humanas no sentido mais geral. Tudo isso, evidentemente, no
lugar das hipóteses psicanalíticas. (Birman, 2003, p. 128).

Se aliarmos a esses fatores uma práxis padronizada, ou seja, o cumprimento rígido


da técnica psicanalítica, tanto Hermann quanto Birman prenunciam o possível fim da prática
psicanalítica: “O risco maior que os psicanalistas correm atualmente não é o alardeado fim
da Psicanálise, mas o de uma práxis padronizada (Herrmann, 2003, como citado por Alves,
Borges, Gomes, Mendes, Romera & Rocha, 2016, p. 191, grifos nossos); e “A psicanálise
sofre de ‘certa insuficiência’ em seus instrumentos interpretativos, no que concerne às novas
modalidades de inscrição das subjetividades” (Birman, 1999, p. 15, grifos nossos).
A solução para tal impasse estaria na prática de uma clínica do singular, como
aponta Poli (2008, p. 155):

A renovação/invenção de seu saber e de sua prática, fundada na


particularidade de que, para cada analista, como para cada caso clínico, é
necessário reinventar toda a Psicanálise novamente. Isso porque o saber
psicanalítico tem a peculiaridade de ser especialmente suscetível ao recalque,
e é graças a isso que se pode operar para buscar, não um conhecimento,
mas a posição de enunciação que situa a produção de um saber singular.

Esses elementos nos incitam e convidam a traçar um caminho que favoreça


nossa discussão acerca da clínica psicanalítica contemporânea. No primeiro trajeto do
percurso, levantaremos os pontos que caracterizam a peste psicanalítica e seus reflexos
na contemporaneidade.

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A origem da peste e seus reflexos na contemporaneidade

Quais as condições e como se processou a “peste psicanalítica”?


Partiremos do lugar que a Psicanálise ocupou no imaginário da modernidade e os
desencontros metapsicólogicos da teoria psicanalítica ocorridos durante a construção do
seu saber, especialmente as diferenças dos postulados sobre o conflito pulsão e civilização,
apresentados no texto de 1908 e de 1929.
Nesse tema, Freud se deslocou em dois polos distintos. No início de seus estudos, o
pai da Psicanálise acreditava na harmonia possível entre os registros do sujeito e do social,
mas logo essa harmonia foi posta em dúvida, ganhando primazia o desamparo do sujeito
no campo social, problemática destacada no texto “O mal-estar na civilização”, escrito em
1929. Percebemos assim que,

Por esse viés, [...] que, no segundo discurso freudiano sobre o social,
o discurso inicial foi colocado em questão de maneira radical. Em seu
discurso final sobre a modernidade, o pensamento psicanalítico colocou a
Psicanálise à prova do social, o que a obrigou a se reconstituir sobre novas
bases e outros fundamentos. (Birman, 2003. p. 124).

O texto de 1908, “A moral sexual ‘civilizada’ e a doença nervosa dos tempos


modernos”, apontava uma solução possível para o conflito pulsão e civilização sob a
mediação da Psicanálise. Já o texto de 1929, “O mal-estar na civilização”, revelou que
a construção da civilização deixou para o homem o legado do conflito, já que para
viver em sociedade ele teve que renunciar seus instintos. Essa renúncia é a causa do
padecimento neurótico, pois demonstra uma situação inconciliável, uma vez que para
cumprir com as exigências morais o homem abre mão parcialmente de suas pulsões
sexuais e agressivas. O conflito entre as pulsões e a moral constitui uma revelação
complexa da teoria psicanalítica.
A Psicanálise depois de 1929 desvelou que o alcance da felicidade humana,
pela mediação do logus científico, como pensava Freud, era impossível. Ao contrário
disso, sinalizou que o que se instaura é a total desarmonia entre os registros da pulsão e
civilização. O texto de 1908 apontava uma solução harmoniosa para os dois polos – pulsão/
civilização – mediada pela Psicanálise, ou seja, a Psicanálise poderia oferecer ensinamentos
consistentes sobre a natureza da pulsão sexual que seriam tranquilamente trabalhadas
pelo aparelho psíquico, de modo que o sujeito não sofresse conflito entre as exigências
da pulsão e a civilização. Todavia, no texto de 1929, Freud concluiu que a relação conflitual
entre pulsão e civilização era estrutural e, assim, o conflito jamais poderia ser desfeito
(Birman, 2003). O que se identifica é uma total descontinuidade entre o texto de 1908 e
o de 1929 e uma reviravolta nos pressupostos metapsicológicos freudianos. A Psicanálise,

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diferentemente do que propunha no início de percurso de Freud, desvela o desamparo


originário do homem, evidenciado pela impossibilidade de harmonizar o conflito entre
pulsão e civilização, eis a peste psicanalítica de XX.
A modernidade ainda buscou manter o fascínio para com a Psicanálise com a
ilusão da individualidade e do apaziguamento do desamparo e do domínio do mal-estar
social (Birman, 2003); mas o que prevaleceu foi a trágica perspectiva do último Freud, ou
seja, a Psicanálise não trazia mais a esperança de solução para as perturbações do espírito
humano, mas sim uma “ideia de gestão para que o sujeito possa manter a vida enquanto
possibilidade e um bem aberto para si” (Birman, 2003, p. 135).
A articulação freudiana de 1929 atingiu a própria comunidade psicanalítica, pois a
decepção pela expectativa não cumprida, de uma harmonia entre a pulsão e a civilização,
levou alguns analistas a buscarem neutralizar o trágico, a peste, revelada pela Psicanálise
em diferentes níveis. São muitos os que ainda anseiam pela cura do desamparo e mal-
estar contemporâneo, transformando “a face do discurso psicanalítico ao silenciar a sua
especificidade, desvitalizando-a” (Birman, 2003, pp. 142-143). Para Birman, isso agrava
a crise da Psicanálise levando-o a desacreditar que “a Psicanálise possa efetivamente
sobreviver, marcada pela sua especificidade nos registros teórico e ético, se ela não
pode reconhecer o desamparo do sujeito e o mal-estar social decorrentes da dita pós-
modernidade” (Birman, 2003, p. 143).
Se na modernidade o mal-estar social produzido pelo desamparo esvaziou a
sedução psicanalítica, hoje podemos fazer coro com Maurano (2010, p. 9): “Para que serve
a Psicanálise?”; “Há quem diga que ‘esse papo de Freud está ultrapassado. Com tantas
mudanças em um século, Freud já era!’; ou ainda: ‘A Psicanálise já era!’”. A autora diz que
tal posicionamento se deve ao fato de alguns estudiosos da subjetividade contemporânea
descreverem nossa época como a era da simulação, argumentando que,

Se a aceleração das mudanças nos lança na incerteza quanto ao futuro,


resta-nos antecipá-los e vivermos em cenários virtuais, para tais estudiosos
seria ultrapassado as pessoas fazerem análise, falarem sobre seus
problemas, explorar ideias e reflexões frente às novas inquietações e aos
recursos disponíveis em nossos tempos. (Maurano, 2010, p. 10 ).

Mais do que na modernidade, a contemporaneidade revela que a ânsia pela


harmonia pulsional prevalece, de modo que constatamos uma crescente busca do sujeito
pelo ter e a ideia de que pela a posse dos bens haja sutura para a falta que o constitui como
ser humano. Acompanhamos e vislumbramos na clínica novas maneiras de se lidar com o
mal-estar do homem na contemporaneidade (Scotti, 2012).
Questiona-se: que saída existiria para a clínica psicanalítica?

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A clínica psicanalítica hoje e suas contingências

Freud (1923) concebia a Psicanálise como um método de conhecimento, uma


técnica de tratamento e uma ciência da psique. Atualmente, para alguns pesquisadores,
ela ainda é compreendida em seu aspecto teórico, mas especialmente pelo “campo da
clínica, feito de pacientes e situações que se encontram no limite da possibilidade de análise
(pacientes borderline, narcisistas, de estrutura psicótica ou perversa, psicossomáticos…)”
(Candi, 2009, p. 222, grifos dos autores).
A clínica psicanalítica para Freud se destinava ao tratamento dos neuróticos,
Lacan a ampliou para os psicóticos e ainda hoje nos defrontamos com pacientes “no limite
da possibilidade de análise”, ou seja, aqueles exemplificados na citação anterior, com
peculiaridades distintas da estrutura neurótica. Mas, como diz Pacheco Filho (2009), os
sujeitos neuróticos são maioria nos consultórios. Ainda somos procurados por pacientes
que desejam se libertar de seus males e seguirem com suas vidas.
A ilusão do homem de gerir seu desamparo ainda persiste. Delinearemos a seguir
algumas formas de como o homem tem buscado gerir o “impossível”, ou seja, a desarmonia
entre a pulsão e civilização e seus reflexos na clínica psicanalítica atual.
A primeira delas é a ilusória ideia de felicidade e sua busca constante e transparente pelo
homem. Franco Filho (2009, p. 184), no texto “A civilização do mal-estar pela não felicidade”,
aponta que essa é a mais comum demanda de análise: “Não obstante, nós psicanalistas
continuamos a ser procurados por pessoas que pretendem o alívio de suas dores, ou o
afastamento do desprazer que sentem, na expectativa de desfrutarem da felicidade. Felicidade
que cada um tenta formular à sua maneira, conforme suas fantasias”.Nada mais legítimo que
o homem busque sua felicidade, mas, como descrito anteriormente, a plenitude, fruto de
uma harmonia entre pulsão e civilização, é impossível, de modo que sempre haverá uma falta.
Entretanto, o que se percebe é que, mais do que antes, o homem tem buscado a qualquer custo
extinguir sua dor e o sofrimento, de modo que o chamado comportamento hedonista tem
se tornado cada vez mais evidente. O mesmo se expressa na contemporaneidade, na intensa
busca individual de prazer extraído pela liberdade de consumo disponível ao homem nos meios
de produção. O lema é: “quanto mais consumo maior felicidade!”.
A crença de se obter a plenitude de alegria se explicita na radicalidade de que o
homem não só pode ser feliz, mas deve ser feliz, cabendo somente a ele tornar isso uma
realidade. Quanta ironia! Tal avidez o leva, justamente, a mais sofrimento, uma vez que
essa postura implicará em uma mudança radical em suas estruturas psíquicas, pois o prazer
requerido ao Id passa a ser de pertinência ao Superego e, se a felicidade não se concretizar,
o homem estará condenado à culpa (Franco Filho, 2009).
Destarte, vale tudo para ser feliz, até mesmo a Psicanálise tem se apresentado
como um bem de consumo geradora da felicidade! Birman (2003) alertou sobre esse risco

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ao descrever o propósito de alguns analistas em criar um monstro epistemológico para a


Psicanálise por meio de uma montagem entre os discursos psicanalítico, neurocientífico
e cognitivista. Mas o autor nos alerta: “Não será pela bricolagem com as neurociências e
o cognitivismo triunfantes, que prometem a harmonia entre natureza e liberdade, que a
Psicanálise sairá da sua crise.” (Birman, 2003, p. 145).
Outra contingência imposta à clínica psicanalítica atual diz respeito ao que o
homem tem feito com os destinos do desejo. A Psicanálise acredita na ideia de que
o homem é responsável pelo seu desejo, ainda que este seja inconsciente, cabendo ao
homem responsabilizar-se por suas ações, tal como perguntava Lacan (1991, p, 176): “Agiste
conforme o desejo que te habitas?”.
Todavia, a modernidade tem revelado que o homem se omite a assumir as
consequências do que deseja. Como resposta a essa atitude, tem crescido assustadoramente
a depressão, o “mal do século”.

Junto de tantos outros sintomas tratados pela Psiquiatria com toda


pletora de psicofármacos, que o serviço dos bens coloca a disposição do
sujeito contemporâneo, como as síndromes do pânico, os transtornos
bipolares e os déficits de atenção, a depressão é um caso da pergunta:
“Agiste conforme o desejo que te habita”. (Scotti, 2012 , pp. 57-58).

A questão lacaniana esclarece que, por mais que o sujeito tente fugir, ele jamais
escapará da paixão do saber, ou seria da paixão do não querer saber? É assim mesmo, algo
bem paradoxal, pois hoje, mais do que antes, o homem tem buscado conhecer tudo por
meio da internet, da mídia e da Medicina, no afã de se obter a pílula da felicidade, ou seja,
a forma de obter a beleza, a riqueza e a eterna juventude (Scotti, 2012).
Entretanto, a depressão revela que o sujeito abre mão de tudo isso e perde o sentido
da vida. O depressivo engana a si mesmo, pois o vazio que ele sente não é o do reflexo da
falta de sentido dos bens que não possui, mas da falta do desejo que não reconhece em si
(Scotti, 2012). Há uma culpa, mas não é daquilo que ele acredita se culpar, e sim por ceder
do desejo e da angústia que o acompanha, já que todo desejo humano é conflituoso. Como
afirma Lacan, o desejo está fadado à insatisfação, na medida em que é desejo de outra coisa,
ou seja, “é sempre o desejo por algo substitutivo ao objeto proibido” (Scotti, 2012, p. 58).
A Psicanálise inaugurou uma nova ética, a que convida o homem a responsabilizar-se
até mesmo pela criança que nele habita e que, em certos momentos, o leva a agir de maneira
impensada e com ideais fundamentalmente narcísicos. A ética da Psicanálise nos responsabiliza
pelo lixo, pelos restos que cada um produz e pelo destino que damos a eles (Scotti, 2012). É
ela que busca ajudar o homem a questionar o seu desejo, mas as patologias da atualidade têm
demonstrado que o homem tem se esquivado disso. Na esteira dos destinos do desejo, faz-se
necessário evidenciar algumas considerações sobre as novas formas de subjetivação.

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O contexto social atual nos aponta para o crescimento incontestável do


autocentramento do sujeito e o profundo esvaziamento da alteridade na constituição da
subjetividade. Isso, associado à falta de uma história, uma narrativa, influenciou Lasch a
identificar os princípios da chamada cultura do narcisismo (Birman, 2003).
Na cultura do narcisismo, o que ganha primazia para o sujeito autocentrado
é sua individualidade e as glórias que seu eu recebe. Atividade na qual ele se esmera
meticulosamente, na maioria das vezes, de forma até exagerada e melodramática. O que
importa é seu êxito em fazer com o que outro e ele mesmo admirem sua imagem e ela
atinja o brilho social, mesmo que para tal tenha de fazer polimentos intermináveis.
Para alcançar êxito no propósito de fazer-se admirado, o sujeito recorre a um
aliado fundamental, ou seja, à mídia e aos diversos meios de comunicação em massa. Na
cultura da imagem, estabelece-se um ciclo vicioso que se retroalimenta e passa a constituir
a principal causa de existência do sujeito, que agora vale o que parece ser, melhor dizendo,
como ele se faz apresentar por meio das imagens produzidas e veiculadas na cena social.
Outra evidência do autocentramento se dá no registro sexual, quando o indivíduo
realiza a predação do corpo do outro. Isso decorre do ato de o indivíduo manipular o outro,
tornando-o exclusivamente causa de sua exaltação. Assim, o outro se transforma em seu
mero objeto de predação e gozo, para alcançar a glória de si mesmo. Nesse caso, os afetos
não têm mais significância.
O que se percebe nos dias de hoje, conforme pontua Birman (2003, p. 23 ), é que a
subjetividade contemporânea se baseia na “exterioridade, no autocentramento e assume
uma configuração estetizante, tomando ao pé da letra o olhar do outro”.
Outra forma de descrevermos o sujeito dos nossos tempos é a partir da lógica
capitalista, quando ele é reconhecido como o sujeito pós-moderno – balizado pelo
Outro da política do capitalismo ultraliberal – caracterizado: (i) por uma radical busca
de sua “liberdade”, ou seja, esse sujeito não se submete a qualquer tipo de categoria ou
determinação; (ii) por negar a todo custo o recalque, apostando em uma plena garantia de
satisfação. Diferentemente do sujeito moderno freudiano, que tinha interesse em decifrar
seu mal-estar, interrogar-se para saber mais sobre seus sintomas e o véu que os encobria, o
sujeito pós-moderno, pelo contrário, não acredita que exista algo simbólico antes de si que
lhe determine. Ele procura viver sem referências, sem passado, usando o presente para
consumir e o futuro para pagar as contas do cartão de crédito (Almeida, 2017).
Esse quadro delineia um mal-estar sem passado, sem recalque e sem desejo, prato
cheio para a indústria farmacêutica, e que se ajusta perfeitamente aos inúmeros tipos das
psicopatologias da atualidade, criadas para caber no discurso da ciência e na ideologia capitalista.
A clínica atual tem diante de si o desafio da sustentação de uma ética do desejo (Almeida, 2017).

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Laço social, desejo e subjetividade: os operadores da clínica atual

Vimos no tópico anterior que a possibilidade da clínica psicanalítica manter sua


eficácia e marca epistemológica na atualidade é sustentando a ética do desejo. Em contra
partida, descrevemos que aquele que chega até a clínica hoje é um sujeito alijado de seu
desejo; então, como restaurar a condição desejante do sujeito contemporâneo?
A contemporaneidade e os seus marcadores, como os avanços tecnológicos,
sobretudo na comunicação, demonstram que o homem continua buscando fazer laços
na tentativa de ligar-se ao outro. É isso que nos possibilita interpretar o apego quase
desenfreado do homem aos dispositivos tecnológicos que o mantêm sempre conectado,
por meio dos diferentes aparelhos de comunicação e da internet.
Essa busca por soluções que aplaquem seu desamparo não é recente, posto que a
história da humanidade revela que o homem sempre buscou maneiras diferentes para lidar
com as dificuldades da vida. O homem já apelou para a constituição da lei, a fé em Deus, as
luzes da razão, agora, na contemporaneidade, parece ser no laço com o outro que ele tem
buscado a solução para as suas dificuldades e, sobretudo, do seu desamparo.

Esse apelo a se ligar aos outros participa obviamente da história da


humanidade, mas o que chamou a atenção aqui é o fato de que, na
contemporaneidade, termos inflacionado essa estratégia. Assim, as
pessoas recorrem mais facilmente a alguém ao alcance da mão, ou
ao alcance da linha telefônica, do que o a um templo religioso para se
amparar. (Maurano, 2010, p. 12).

É no interesse do homem em se ligar ao outro que temos a primeira condição para


a Psicanálise operar. O elemento motivador que leva o homem a querer ligar-se ao outro é
nomeado pela Psicanálise de libido, energia de Eros, que cobra constantes investimentos.
Sendo assim, os diferentes sintomas do mal de amor que dão a tônica do mal-estar na
atualidade circunscrevem um campo propício para o exercício da Psicanálise e, como diz
Maurano (2010), quando se trata de questões envolvendo o amor, não houve mudanças
fundamentais, e sim acessórias.
A constatação que se faz é que o vazio do homem é impossível de ser extirpado,
mas cabe aos que utilizam o método psicanalítico encontrar meios menos nefastos de
abordá-lo, como afirma o ditado: “Não se pode mudar a direção do vento, mas pode-se
alterar a posição das velas” (Maurano, 2010, p. 15).
Pensemos agora no desejo e na subjetividade, conceitos interdependentes,
conforme a metapsicologia freudiana. Sobre metapsicologia freudiana acerca da
constituição da subjetividade, tudo começa com o desejo, conceito psicanalítico que traz
remetimento a uma tristeza profunda pela falta da presença da “Coisa” que nos salvou

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do desamparo. O desejo é a resposta encontrada pelo psiquismo diante da dura realidade


de que sozinhos não resolvemos ou encontramos respostas para nossas necessidades, e
como não temos em nós a resposta, ou seja, não nos bastamos a nós mesmos, a solução é
pela via do desejo (Maurano, 2010).
Por sua vez, o manejo do desejo produz o que pode parecer funesto ao homem,
pois apresenta o assujeitamento ao Outro e ao seu desejo. Aqui encontramos o pulo do
gato, pois para a Psicanálise é a alienação ao Outro que possibilita nos tornarmos sujeitos.
Sem esse Outro, nada feito, não haveria sobrevivência possível.
Tudo se dá mais ou menos assim: no primeiro momento, ocorre uma alienação
ao Outro, o que gera a sensação da solução de parte do desamparo. O homem, então, se
ancora, de certo modo, a alguma significação. Esta, porém, não é completa em si mesma,
resta sempre um ponto de vacilação do sentido, uma brecha, via pela qual erigimos
o desejo que nos funda como sujeitos (Maurano, 2010). Já o desejo seria a tentativa de
suturar a falta constitutiva do sujeito, ao aferrar o sujeito à Coisa que supostamente o
tornaria completo, sem falta. Mas isso configura uma fantasia, pois a Coisa em si nunca
existiu. Essa fantasia o retiraria da condição de carente ou de devedor do Outro salvador.
Essa fantasia também possibilita o norteamento das ações humanas, garantindo-lhe um
modo singular de responder ao desejo do outro, em que surge um lugar para o eu. “Aí
está, portanto, também, a fantasia em sua função de promover a satisfação, articulada ao
desejo inconsciente” (Maurano, 2010, p. 51).
Há assim um vai e vem ao Outro enredado pela linguagem, que atua nesse campo
como trama. Nesse sentido, o que funda o desejo humano é o Outro, a exterioridade, o que
faz do inconsciente e do próprio desejo um construto social.
A concepção psicanalítica acerca da subjetividade e desejo vem na contramão do
que postula a cultura do narcisismo descrita anteriormente, ainda que de forma sucinta,
de modo que a questão de como tornar a Psicanálise operante no contexto histórico
da atualidade persiste. Todavia, Pacheco Filho (2009), ao trabalhar laço social, desejo e
subjetividade em um dos seus textos,4 demonstra como podemos manter o caráter ético
da Psicanálise, bem como a ética do desejo. Por intermédio do método psicanalítico, o
autor busca ampliar os sentidos para compreensão da tendência totalitária de alienação ao
laço social do capitalismo. A partir do conceito de função paterna, formalizado por Lacan,
o autor tensiona os fatos históricos e as mudanças geradas pelo capitalismo trazendo
uma nova interpretação para as razões da alienação, compreendendo-a como uma forma
estrutural das relações sociais. A leitura de seu texto possibilita uma reflexão crítica acerca
da lógica e do sujeito capitalista, com contribuições para a compreensão da importância do
laço social e de como se tem operado o desejo na contemporaneidade.
Nesse sentido, faz-se importante compreender o que faz um analista.
4
“A praga do capitalismo e a peste da Psicanálise”.

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O que faz e o que deseja o analista?

Retomaremos primeiramente a questão trabalhada por Lacan na metade do


século XX, no auge da peste psicanalítica: “o que faz um analista?”
“[...] Quando Lacan formula sua pergunta, busca um sentido radical: ele tenta
resgatar, naquilo que definiu como questões-chaves da Psicanálise, a natureza de uma
prática que havia sido não só negligenciada como também empobrecida” (Andrade
Júnior, 2007, p. 184). Entendemos que essa pergunta continua sendo pertinente e seja
potencializadora para esse momento em seu duplo sentido, ou seja, o que autoriza a
pessoa como psicanalista e como opera um psicanalista.
Freud (1926), em seu texto “A questão da análise leiga: conversa com uma pessoa
imparcial”, trabalha alguns dos aspectos que autorizam uma pessoa ser um analista. Ele
considerava, diferentemente do que outros pensavam, que um leigo, ou seja, um não
médico, poderia exercitar a Psicanálise desde que: tivesse passado pela experiência de
análise, compreendesse os ensinamentos sobre a Psicologia do Inconsciente, transitasse
bem nas questões sobre sexualidade e dominasse a técnica da Psicanálise como a arte da
interpretação, o combate das resistências e o manuseio da transferência. Em suas palavras
qualquer um que apresentasse as habilidades mencionadas “[...] está apto a empreender
o tratamento de distúrbios neuróticos, e com o passar do tempo ele poderá produzir nesse
contexto tudo aquilo que se pode requerer dessa terapia” (Freud, 2017, p. 260).
E o que se requer dessa terapia? Distintivamente do médico, o analista não tem um
saber objetivo e generalizável. É comum ao procurarmos um médico que ele nos examine,
solicite exames e com estes em mãos nos transmita o diagnóstico e a forma de tratamento;
atitude que pode se repetir com outro paciente que apresente as mesmas características. O
analista, ainda que faça diagnósticos, não trabalha assim, pois os sintomas dos quais se ocupa
estão relacionados à linguagem, e não ao organismo. Eis a particularidade da Psicanálise e o
objetivo pelo qual foi inventada, ou seja, cuidar do corpo afetado da histérica mediante a escuta.
Aqui precisamos nos atentar para o modo como isso se dá. Como fazer o sintoma
ceder? Poderíamos dizer de forma simples que é encontrando sua causa e comunicando para
o paciente, já que ele não sabe o que o faz sofrer. A forma como isso ocorre caracteriza o
fazer do analista: primeiro se dão os encontros preliminares, quando ele toma conhecimento
da causa que trouxe o paciente até ele; em seguida, geralmente, ele aplica a técnica e pede
para o paciente deitar no divã e associar livremente, falar de maneira livre, o que lhe vem
à mente. O que se objetiva com isso é descobrir de que sofre o paciente. Todavia, não há
garantias de que o psicanalista saiba, uma vez que nem mesmo o paciente sabe, a causa de
seu mal-estar. O psicanalista sabe que tudo o que o paciente disser o ajudará a identificar a
razão de seu mal-estar, ainda que até mesmo o paciente ignore o que lhe traz sofrimento.

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Vemos assim que, diversamente do saber objetivo da Medicina, o saber do analista é apenas
suposto, é um saber que lhe é atribuído pelo analisante sobre o mal que o afeta, ainda que o
analista nada saiba sobre esse paciente. Quando esse saber surge, ele é construído na relação
analítica, sendo, portanto, um saber singular, exclusivo daquela relação (Aflalo, 2012).
Candi (2009, p. 223) descreve que

Um psicanalista, no exercício efetivo da sua clínica, se debate com as obras


de pares e mestres para que, num corpo a corpo afetivo e intelectual com
seus pacientes, crie e recrie a Psicanálise em sua singularidade.

Os conceitos clínicos são redefinidos a partir de uma ampla experiência com


os pacientes-limite e não neuróticos, possibilitando apresentar critérios
que permitem pensar nas indicações e contraindicações terapêuticas.

Podemos ver que o fazer do analista trata-se de uma experiência que modifica o
sujeito. Ainda no texto “A questão da análise leiga: conversa com uma pessoa imparcial”,
Freud (1926) nos esclarece como ocorre essa mudança e como se dá a escuta do analista,
ao diferenciá-la da escuta de um penitente, pois na confissão o pecador diz o que sabe, e
na análise o neurótico haverá de dizer ainda mais, ou seja, aquilo que não sabe que sabe.
Prossegue demonstrando que o analista se difere do penitente e do hipnotizador, visto
que em sua técnica não usa de distração ou dissuasão. Dá continuidade ao seu diálogo com
uma “pessoa imparcial” apresentando a constituição do aparelho anímico, o conflito entre
o Eu e o Isso, o inconsciente, a pulsão e o recalque, definindo assim a análise como “uma
experiência pela qual o recalque é suspenso, reconciliando o sujeito com os valores que lhe
são mais caros” (Aflalo, 2012, p. 35).
Essa descrição do trabalho psicanalítico revela a singularidade do seu saber
mediante sua universalidade teórica. Nesse sentido, podemos apreender que no exercício
de seu ofício o analista, mesmo estando balizado por conceitos, tem a ciência de que o seu
saber não lhe traz garantias, ou seja, ele ainda não tem certeza do que seu paciente precisa.
O paciente pergunta: o que eu faço? E, às vezes, ele não terá a resposta. Nesse caso, a regra
primorosa da Psicanálise quando não sabe o que fazer é “não faça nada”. A regra de ouro
é o silêncio. Quando sabe, também não diga nada, porque se você tem a resposta ela não
é para o paciente, mas para você (Paravidini, 2017, comunicação oral).
Isso nos convoca a desdobrar outra pergunta: o que deseja o analista?
Para respondê-la, teremos que retornar à dimensão ética da Psicanálise, pois tanto
para Freud como para Lacan, ética e desejo são temas complementares. Foi a partir da
elaboração sobre ética psicanalítica que Lacan contribuiu para a construção da noção do
desejo do analista (Coutinho Jorge, 2017).
Coutinho Jorge (2017) comenta que, em sua conferência “Transferência”, Freud
(1917) dá uma aula sobre a ética da Psicanálise definindo-a como a “não ceder quanto ao

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próprio desejo”, mesmo sentido dado por Lacan. Ressalta-se que a ética aqui tratada nada
tem a ver com a moral e dela se distingue em aspectos fundamentais. “Moustapha Safouan
sublinha com justeza que essa formulação lacaniana tendeu a se transformar num imperativo
– ‘Tu não cederás sobre teu desejo‘ –, constituindo uma espécie de 11º mandamento e
revelando que também ela fora sequestrada pelo supereu” (Coutinho Jorge, 2017, p. 109).
Diante disso, podemos concluir que um dos alvos da análise “é proporcionar as
melhores condições para que o sujeito tome suas decisões” (Coutinho Jorge, 2017, p. 109);
nesse sentido, cabe ao analista a função de mentorear o paciente no alcance desse objetivo
e só em casos particulares e necessários assumir a função de pedagogo. Freud orienta que
não cabe ao analista a palavra final, mas sim ao analisando. Todavia, esse trabalho deve ser
feito cuidadosamente, no sentido de o paciente por si só liberar e satisfazer sua própria
natureza e não se tornar igual ao analista. Cabe ao analista identificar os momentos de ficar
em silêncio e o de falar, com o fim de não se transformar em fonte de angústia ao paciente,
dificultando sua fala. A essa condição de fazer calar o paciente Lacan chamou de poder do
analista, é a ética da análise que possibilita ao analista controlá-lo, de modo que o analista
dirija a análise e não o analisando.
Cabe à análise possibilitar ao paciente a escolha do que melhor lhe convém e que
o conflito neurótico impossibilita escolher. Tal conflito precisa vir à tona e ser elaborado.
Assim, a análise proporciona que o conflito patogênico se transforme em um conflito
para o qual o sujeito possa encontrar uma solução. Sabemos, porém, que essa harmonia
é impossível, o conflito sempre existirá, “apenas a análise visa transformar ‘o sofrimento
histérico em infelicidade comum’” (Coutinho Jorge, 2017, p. 111).
A essa passagem da condição obstacularizante à posição viabilizadora Lacan
denominou de ato psicanalítico.

O ato analítico consiste em autorizar o fazer do sujeito. É, como tal,


um corte no discurso, é amputá-lo de qualquer censura, pelo menos
virtualmente. O ato analítico é liberar a associação, isto é, a palavra, liberá-
la do que a limita, para que se desenvolva numa rota livre. (Miller, 2011, p.
34, como citado por Paravidini, 2016, p. 67).

Faz-se importante compreendermos que o ato analítico se constitui com base


no desejo do analista e em função dele, “o qual, na condição de suspensão de qualquer
demanda de sua parte, qualquer demanda de ser, abre caminho para a produção singular
do analisante remetido ao objeto pequeno a” (Paravidini, 2016, p. 67).

O objeto pequeno a é a realização deste tipo de des-ser que atinge o


sujeito suposto saber. Não há dúvida de que é o analista, e como tal, que
chega nesse lugar, e isso se marca em todas as interferências onde ele se
sentiu implicado, ao ponto de não poder senão infletir o pensamento de
sua prática no sentido da dialética da frustração, [...], ligada ao redor do

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fato de que ele mesmo se apresenta como substância da qual ele é jogo
e manipulação no fazer analítico. (Lacan, 1967, aula de 17/01/1968, como
citado por Paravidini, 2016, pp. 67-68).

Dessa afirmação de Lacan, podemos concluir que no ato psicanalítico o desejo do


analista, em sua posição transferencial, se destina à queda da posição de sujeito suposto
saber, ou seja, o desejo do analista é o de obter o que há de mais singular no ser de seu
analisante, descobrir o resto que emerge do encontro contingencial com o Outro, e sobre
o qual ele [analisante] nada quer saber (Paravidini, 2016).
Compreendemos, a partir dos pressupostos do ato analítico e do desejo do
analista, que cabe ao analista o lugar de escuta e, principalmente, de causa para o sujeito.
Sendo assim, faz-se importante que o analista sustente o desejo de saber, “desejo movido
pela falta de saber, pela falta de saber fantasístico, pelo não saber que sustenta a operação
analítica” (Coutinho Jorge, 2017, p. 186).
Resgatar o que faz e o que deseja o analista é imprescindível quando refletimos
sobre os desafios da clínica psicanalítica atual, uma vez que essas questões expõem que
a clínica é um saber posto em questão na própria condição de sua práxis, todavia, é essa
mesma preposição que caracteriza e distingue o fazer psicanalítico das outras terapias:

A Psicanálise mostra, assim, que a verdade se sustenta no singular. O


singular revela, ao mesmo tempo, o universal da verdade e a incompletude
do saber. O saber se mostra antinômico em relação à verdade, por mais
que alcancemos sua universalização. Ele é sempre incompleto, seja para
se justapor à verdade do desejo, seja para tentar dizê-la integralmente.
(Pinto, 2005, p. 81).

Para o momento...

Apesar de a “peste psicanalítica” desvelar a condição irreparável de desamparo


do homem, não podemos esquecer que foi só depois de postular sobre o “mal-estar” na
cultura que Freud, com o método psicanalítico, abriu caminho para se pensar criticamente
sobre as sociedades.
Pensando no contexto da clínica em âmbito local, a Psicanálise tem encontrado no
Brasil, nos 10 últimos anos, um reposicionamento social surpreendente e, diferentemente do
que muitos esperavam, o sepultamento de Freud, e com ele suas viúvas e carpideiras, foi adiado.

Trazido inconsciente pelas mãos de paramédicos, como Lacan e Winnicott,


submetido a doses de desfibrilação foucaultiana, feminista e pós-
colonialista, reanimado por gente como o Dr. Victor Žižek Frankestein, a

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Psicanálise retornou como um zumbi canibal disposto a comer o cérebro


dos neurocientistas. (Dunker, 2017).

Pesquisas têm revelado5 que, como tratamento, a Psicanálise apresenta resultados


superiores quando comparada como outras formas de terapia – inclusive para autismo e
psicoses. Ademais, estudos recentes6 que comparam o efeito placebo, tanto com medicamentos
quanto com psicoterapias, chegaram a resultados surpreendentemente próximos. Por mais
surpreendente que seja, o que tem favorecido a terapia psicanalítica tem sido sua duração,
uma vez que o fator mais consistentemente encontrado tem sido a “qualidade da relação entre
paciente e terapeuta” (para o qual o fator tempo fornece uma medida indireta).
Essas boas novas indicam que a clínica sobrevive e que a Psicanálise tem respostas
para o contexto atual, todavia, nós, psicanalistas, não podemos nos acomodar, pelo
contrário, a realidade nos convoca a uma constante avaliação e reflexão crítica acerca do
nosso fazer, para que quando pressionados pelos processos de legalização da Psicanálise
e regulamentação do exercício das psicoterapias, como intentou a ofensiva cientificista
na França por meio da “Emenda Accoyer”, de 2003, não nos rendamos e sucumbamos,
fazendo com que a ética da Psicanálise se torne anulável. Daí a necessidade de sempre
revisitarmos a pergunta de Lacan: “O que faz o analista?” e agirmos conforme preconiza o
ato psicanalítico acerca do que deseja o analista.

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Resumo
Este ensaio busca analisar o estatuto criativo da clínica psicanalítica e, para tal, resgata
como operador da discussão a dimensão crítica da “peste psicanalítica”, deflagrada no
século XX. O que temos acompanhado e o que se prenuncia com pertinaz constância é
o risco de morte da própria Psicanálise, uma vez que sua teoria e prática colocam em
cheque as novas formas de subjetividade contemporânea, assim como houvera realizado
perante o sujeito da modernidade. Como pesquisadores do saber e fazer psicanalíticos,
temos testemunhado como a Psicanálise tem enfrentado os desafios impostos pela
contemporaneidade. Para isso, recuperou-se a origem da “peste psicanalítica”, seus reflexos
na contemporaneidade e as contingências enfrentadas pela clínica atual, amparadas no
tripé laço social, desejo e subjetividade. Por fim, algumas questões reflexivas se impuseram
perante o questionamento de Lacan: “O que faz um analista?”, fazendo reverberar as
considerações sobre o potencial e a “vocação heurística da Psicanálise” que favorece a
reinvenção de si mesma.

Palavras-chave: Psicanálise. Clínica. Contemporaneidade.

The Clinic and the “Psychoanalytic Past” in Contemporary Times

Abstract
This essay aims to analyze the creative status of the psychoanalytic clinic and, to this end,
rescues the critical dimension of the “psychoanalytic past” from the 20th century as the
operator of the discussion. Through this monitoring, we realized that what is foreshadowed
with persistent constancy is the risk of death of psychoanalysis itself, since its theory and
practice have put at stake the new forms of contemporary subjectivity. As researchers of
psychoanalytic knowledge and psychoanalysis, we have witnessed how psychoanalysis has
faced the challenges posed by contemporaneity. Thus, the origin of the “psychoanalytic
past” was recovered, its reflexes in contemporaneity and the contingencies faced by the
current clinic supported by the tripod: social bond, desire and subjectivity. Finally, some
reflective questions were established towards Lacan’s questioning “What does an analyst
do?”, reverberating the considerations about the potential and “heuristic vocation of
Psychoanalysis” that favor its reinvention.

Keywords: Psychoanalysis. Clinic. Contemporaneity.

La Clinique et la “peste psychanalytique” dans la contemporanéité

Résumé
L’essai cherche à analyser le statut créatif de la clinique psychanalytique et, à cette
fin, récupère en tant qu’opérateur de la discussion la dimension critique de la “peste
psychanalytique” déclenchée (desencadeada) au XXe siècle. Ce que nous avons suivi et qui
est constamment pré-annoncé, c’est le risque de mort de la psychanalyse, puisque sa théorie

Analytica | São João del-Rei | v. 10 | n. 18 | janeiro/junho de 2021 |


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MENDES, R. de C. C. da S., PARAVIDINI, J. L. L., & NEVES, A. S. A clínica e a “peste psicanalítica” na contemporaneidade

et sa pratique mise en question les nouvelles formes de la subjectivité contemporaine,


comme elle l’avait fait devant le sujet de la modernité. En tant que chercheurs du savoir
et du savoir-faire psychanalytiques, nous avons vu comment la psychanalyse a affronté
les défis posés par la contemporanéité. Pour cela, l’origine de la “peste psychanalytique”
a été retrouvée, ainsi que ses réflexes dans la contemporanéité et les contingences
rencontrées par la clinique actuelle soutenue par le trépied: lien social, désir et subjectivité.
Enfin, quelques questions réflexives s’imposent à l’interrogation de Lacan “que fait un
analyste?”, réverbérant en considérations sur le potentiel et la “vocation heuristique de la
psychanalyse” qui favorisent la réinvention de lui-même.

Mots-clés: Psychanalyse. Clinique. Contemporanéité.

La Clínica y la “peste psicoanalítica” en la contemporaneidad

Resumen
Este ensayo busca analizar el estatuto creativo de la clínica psicoanalítica y, para eso,
rescata como operador de la discusión, la dimensión crítica de la “peste psicoanalítica”
deflagrada en el siglo XX. Lo que hemos acompañado y lo que se prenuncia con pertinaz
constancia, es el riesgo de muerte del propio Psicoanálisis, una vez que su teoría y práctica
ponen en jeque las nuevas formas de subjetividad contemporánea, así como había realizado
ante el sujeto de la modernidad. Como investigadores del saber y hacer psicoanalíticos,
hemos testimoniado cómo el Psicoanálisis ha enfrentado los desafíos impuestos por
la contemporaneidad. Para esto, se recuperó el origen de la “peste psicoanalítica”, sus
reflejos en la contemporaneidad y las contingencias enfrentadas por la clínica actual
amparadas en el trípode: lazo social, deseo y subjetividad. Por fin, algunas cuestiones
reflexivas se impusieron delante del cuestionamiento de Lacan “¿Qué hace un analista?”,
haciendo reverberar las consideraciones sobre el potencial y la “vocación heurística del
Psicoanálisis” que favorecen la reinvención de sí misma.

Palabras claves: Psicoanálisis. Clínica. Contemporaneidad.

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