BATISTA, Micheline Dayse Gomes - Second Life - Corpo e Identidade No Mundo Virtual
BATISTA, Micheline Dayse Gomes - Second Life - Corpo e Identidade No Mundo Virtual
BATISTA, Micheline Dayse Gomes - Second Life - Corpo e Identidade No Mundo Virtual
RECIFE
2010
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RECIFE
2010
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AGRADECIMENTOS
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo estudar as novas configurações que o corpo
humano assume no ciberespaço e que questões isso traz para pensarmos as identidades dos
sujeitos no mundo contemporâneo. Partimos das experiências propiciadas por um jogo de
computador – o Second Life (SL) – para tentar compreender como os jogadores vêm
projetando seus corpos e traços identitários através de avatares. Para tanto, realizamos uma
etnografia com observação participante e entrevista em profundidade com 16 indivíduos.
Entendemos que tanto o corpo quanto a identidade são produzidos simbolicamente e
constatamos que na internet, uma das dimensões constituintes de nossa sociedade, não tem
sido diferente.
O consumo do corpo e as mutações identitárias que ocorrem em um ambiente
simulado como o SL são processos sociotécnicos que nos falam sobre a experiência de
estarmos no mundo, transformando e sendo transformados continuamente. No fim da análise,
verificamos que o jogo nos oferece uma oportunidade para que possamos customizar
plenamente nossos corpos no ritmo e ao sabor dos nossos desejos, sem que seja necessário
esforço físico ou cirurgia plástica. Brincamos de ser outra pessoa nos projetando na forma de
um avatar, com o benefício de podermos enxergar essa projeção num ângulo de 360 graus e
num ambiente tridimensional. Podemos reproduzir padrões de beleza dominantes, mas
também podemos questioná-los, regidos unicamente pela imaginação e pela fantasia.
Entretanto, seja na dimensão real ou virtual, a sensação de controle absoluto e de rompimento
dos limites do corpo é apenas ilusória.
Enquanto jogo, o SL é envolvente e nos estimula a fazer coisas que de outro modo não
seriam possíveis, como voar e se teletransportar para o outro lado do mundo em questão de
segundos. Ou fazer aquilo que não nos permitimos na vida off-line, como encher o braço de
tatuagens, usar um cabelo azul, de maneira lúdica e podendo extrair dali algum aprendizado.
O jogo acaba sendo um espelho através do qual vivenciamos uma “segunda vida” e nos
lançamos em todo tipo de experimentações corpóreas e identitárias.
ABSTRACT
This dissertation aims to study the new settings that the human body assumes in
cyberspace and what issues it brings us to think about the identities of the contemporary
world. We start from the experiences offered by a computer game – Second Life (SL) – to try
to understand how the players are projecting their bodies and identity features through
avatars. With this purpose, we did an ethnography with participant observation and in-depth
interviews with 16 individuals. We believe that both body and identity are produced
symbolically and found that on the Internet, one of constituent dimensions of our society, it
has not been different.
The consumption of the body and identity changes that occur in a simulated
environment such as SL are sociotechnical processes that talk to us about the experience of
being in the world, transforming and being transformed continuously. At the end of the
analysis, we found that this game offers an opportunity for us to fully customize our bodies in
rhythm and flavour of our desires, without requiring physical effort or plastic surgery. We
play to be someone else in designing the shape of an avatar, with the benefit we can see this
projection at an angle of 360 degrees and inside a three-dimensional environment. We can
reproduce the dominant standards of beauty but also can challenge them, governed only by
the imagination and fantasy. However, in both dimensions – real or virtual – the feeling of
absolute control and breaking boundaries of the body is just an illusion.
As a game, SL is engaging and stimulates us to do things they otherwise would not be
possible, like flying and teleport to the other side of the world in a few seconds. Or do what
we do not allow ourselves to do in offline dimension, like to fill the arms with tattoos, wear a
blue hair, in a ludic way and being able to take some learning in return. The game ends up
being a mirror through which we experience a “second life” and launch into all sorts of trials
of the body and identity.
Keywords: Internet – Video games – Virtual Worlds – Second Life – Body – Identity.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................. 14
1 METODOLOGIA......................................................................... 27
1.1 CARACTERIZAÇÃO DA AMOSTRA........................................ 33
REFERÊNCIAS.............................................................................. 164
ANEXOS........................................................................................ 170
11
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE TABELAS
INTRODUÇÃO
Por que estudar jogos eletrônicos? Tenho feito essa pergunta desde que decidi cursar o
mestrado de sociologia. Nunca fui uma criança aficionada por videogames. Somente na
segunda metade dos anos 1990, já adulta, comecei a me interessar pelo assunto. Com um
computador em casa, e com tantos títulos disponíveis para download gratuito pela internet,
passei a dedicar muitas noites a essa prática. Era divertido jogar come-come (Pacman), Tetris,
Frogs, Mario, Sonic. Até comprei um console Mega Drive, que veio com um cartucho do
Street Fighter, um jogo de luta. Também jogava Mortal Combat no videogame, mas o que me
atraía mesmo eram os jogos de computador. Principalmente os de ação e aventura. Confesso
que passei muito tempo “viciada” em Doom, Quake e Duke Nukem. São jogos de tiro em
primeira pessoa, em que você tem que matar muitos monstros para sobreviver e encontrar
uma saída. Era muito instigante aprender a manusear as armas, ser “rápida no gatilho” e
descobrir onde estavam as munições e as “caixas de vida” espalhadas pelos labirintos. A cada
estágio, havia sempre a certeza de novos desafios.
Com o passar dos anos fui perdendo o hábito de jogar. Até que, em março de 2007, li
uma reportagem na revista Época que falava sobre uma novidade que era “muito mais que um
jogo”, era um mundo virtual onde se podia viver uma “segunda vida na internet”. As
primeiras linhas da matéria diziam o seguinte:
Fiquei muito curiosa. Que jogo diferente era esse? Como seria viver uma “segunda
vida” na internet? Será que era apenas mais uma brincadeira de nerd? Bobagem, sempre fui
meio nerd mesmo. Claro que alguns dias depois eu estava visitando a página do Second Life
(www.secondlife.com). A empresa Linden Lab, desenvolvedora do jogo, definia o SL como
um “mundo virtual em 3D totalmente imaginado e criado por seus residentes” – “Your world,
15
1
A palavra avatar tem origem hindu (sânscrito) e significa a “encarnação de uma divindade sob a forma de um
homem ou de um animal”. O dicionário também define avatar como “transformação, metamorfose” Ver
Dicionário Michaelis. Disponível em:
<http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=avatar>.
Acesso em: 05 fev. 2010. Para aplicação específica ao universo do SL ver glossário (Anexo 1 deste trabalho).
16
2
Ver ENTERTAINMENT SOFTWARE ASSOCIATION. “Computer and video game industry tops $22 billion
in 2008”. Disponível em: <http://www.theesa.com/newsroom/release_detail.asp?releaseID=44>. Acesso em: 18
abr. 2009.
3
Ver ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS DESENVOLVEDORAS DE JOGOS ELETRÔNICOS. “A indústria
brasileira de jogos eletrônicos – Um mapeamento do crescimento do setor nos últimos 4 anos”. Disponível em:
<http://www.abragames.org/docs/Abragames-Pesquisa2008.pdf>. Acesso em: 18 mai. 2009.
17
4
Jogo publicado pela primeira vez nos Estados Unidos, em 1974.
18
Trata-se de um mundo virtual com narrativa fantástica, onde o jogador pode vivenciar
aventuras, colecionar objetos, comprar casas etc. Anos depois, a expressão se tornaria
universal para designar tanto os jogos de RPG on-line propriamente ditos (Ragnarök,
Everquest, World of Warcraft – WoW) quanto simuladores (Habbo Hotel, The Sims, SimCity,
IMVU, Active Worlds, Moove Online, Second Life). O que eles têm em comum é a
possibilidade do jogador escolher um papel para representar em um dado universo – quem
nunca se divertiu fingindo ser outra pessoa? – e interagir com outros usuários ali também
conectados por meio de mensagens de texto, voz e/ou linguagem corporal. O veículo dessa
interação, como já foi dito, é o avatar.
Elegi o SL como objeto empírico deste trabalho por abrigar uma particularidade: trata-
se de um jogo diferente, sem objetivos pré-definidos nem missões, e isso tem levado alguns
autores, como Pimenta e Varges (2007), a não considerá-lo um jogo, e sim uma rede social.
Normalmente, tanto os RPGs quanto os simuladores envolvem o cumprimento de
determinados desafios, seja derrotar inimigos, conquistar territórios ou mesmo cuidar para
que o personagem seja bem sucedido. No SL, como em outros mundos virtuais, interagimos
com outros jogadores, mas também podemos trabalhar, estudar, fazer compras, namorar, fazer
sexo virtual, criar e vender produtos. Seria, então, um jogo com uma rede social dentro?
Acredito que sim. Principalmente se entendemos o jogo em seu sentido mais amplo – quando
brincamos de Playmobil ou de boneca, por exemplo, também estamos jogando. Mas nesses
casos não há objetivos pré-definidos ou metas a alcançar. Não há competição ou disputa,
entretanto podemos dizer que há muita coisa em jogo. É esse conceito mais amplo de jogo,
que remete à expressão ludus (do latim), que adotamos aqui.
Outro diferencial do SL é a possibilidade de customização infinita dos avatares e nesse
ponto centramos nossa investigação. “Customização infinita” não é apenas força de
expressão, uma vez que os controles de edição são deslizantes, permitindo inúmeras
combinações na aparência (modelagem, tons de pele), roupas, acessórios, gestos corporais
(modo de andar, dançar etc), como antes nunca visto. Em jogos similares (e mesmo em outros
mundos virtuais) normalmente é permitido apenas mudar o vestuário e a cor do cabelo, mas
não editar. Inicialmente, podemos escolher entre seis avatares masculinos e seis femininos,
que depois podem ser customizados de acordo com o papel que desejamos representar no
mundo virtual. Eu mesma comecei com um visual bem básico e aos poucos fui mudando,
“aperfeiçoando” meu avatar. Também é bastante interessante o uso de técnicas reais de
transformação corporal, como próteses, piercings e tatuagens. Diferentemente do corpo
19
“real”, feito de carne, as intervenções estéticas no corpo “virtual” são absolutamente indolores
e, o mais importante, absolutamente reversíveis.
Praticamente não existem avatares feios nem velhos no SL. Aliás, dentro do próprio
jogo costumamos dizer que a “idade SL padrão” é 28 anos, embora o jogador tenha 35, 40 ou
50 anos. Observei que avatares “discretos”, muito “básicos”, têm pouco destaque no jogo –
sinal de que, apesar da liberdade criativa, os padrões da sociedade off-line acabam se
impondo. Avatares masculinos exibem um corpo “sarado”, musculoso. Já os femininos
costumam ser altos, magros e bem “esculpidos”. Genitálias expostas, “anexadas” ao corpo em
locais permitidos (como as “ilhas” de nudismo), também são comuns, existindo todo um
aparato técnico (animações e poses) para a prática do sexo virtual. É possível, até mesmo,
simular uma gravidez que dura cerca de um mês ou o tempo que a “gestante” desejar.
Apesar de valorizar ideais como juventude e beleza, o SL também admite o tom de
brincadeira e/ou fantasia. Podemos, por exemplo, ter asas de anjo (ou de demônio). Ou
orelhas e rabo de gato, como os nekos, espécie de “tribo” em ascensão no SL. Outro grupo
que cresce consideravelmente são os usuários que jogam RPG dentro da própria plataforma.
Eles encarnam papéis de vampiros, lobisomens, caçadores, dragões, magos. Como nos RPGs
tradicionais, os jogadores seguem uma narrativa, cumprem tarefas, participam de lutas,
acumulam pontos de experiência e vão subindo de nível. Para saber como é jogar RPG no SL,
tornei-me vampira de um dos sistemas existentes no jogo, o Bloodlines. Só achei ruim
porque, pela maldição, os vampiros perdem 0.25 litros de sangue todos os dias, à meia-noite.
Ou seja, se o usuário passar muitos dias sem jogar ou sem “beber sangue”, pode ter sua alma
“destruída”. Mas nada que uns litrinhos de sangue fresco (virtual) não resolva...
Essas primeiras colocações nos permitem inferir que o SL, por possibilitar a
customização do avatar e a interpretação de diversos papéis, potencializa as experimentações
identitárias que se tornaram comuns na era da internet, tema que vem sendo abordado por
autores como Santaella (2003) e Le Breton (2003; 2006).
5
Ver Dicionário Michaelis. Disponível em:
<http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=virtual>.
Acesso em: 05 fev. 2010.
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customizá-lo plenamente no ritmo e ao sabor dos nossos desejos. Entretanto, seja na dimensão
real ou virtual, a sensação de rompimento dos limites do corpo é apenas ilusória. A inflexão
de padrões da vida real, como magreza para as mulheres e força física para os homens, acaba
constrangendo o potencial libertário existente nesse mundo virtual.
Diante dessas primeiras considerações, surge um problema teórico: como o corpo vem
sendo tratado na internet, mais especificamente nos mundos virtuais? Como o corpo do avatar
se relaciona com o corpo “real” do internauta e que questões essa relação traz para pensarmos
a identidade do sujeito no mundo contemporâneo? O consumo do corpo pode ser considerado
um traço inerente às identidades contemporâneas também no mundo virtual?
Trataremos desse problema, como já foi dito, tendo o SL como campo empírico.
Sendo esse jogo uma simulação da vida no ciberespaço, que possibilidades de ressignificação
do corpo e da identidade ele oferece? Podemos dizer que o cibercorpo simula o corpo real do
sujeito e reflete sua identidade simbolicamente? Ou é apenas um território para a realização
de fantasias? Diria que as duas coisas. Minha hipótese de trabalho é que o ciberespaço, por ser
um ambiente de simulação, oferece as duas possibilidades – o avatar, enquanto a
corporificação do jogador e veículo de interação, flutua entre a simulação/reprodução da
realidade e um mundo de potência, de virtualidade. O jogador do SL tanto pode projetar no
seu avatar padrões de beleza e de consumo dominantes na sociedade contemporânea quanto
dar asas à imaginação, sem necessariamente se preocupar em reproduzir o mundo real. Nesse
contexto, também surge uma oportunidade para repensar esses mesmos padrões e de testar
coisas antes de materializá-las – colocar uma tatuagem no avatar, por exemplo, para avaliar se
ficaria bem em seu próprio corpo.
Outro viés a ser testado é se essa relação é uma via de mão dupla – ou seja, se os
usuários imprimem características reais nos seus corpos e identidades virtuais (ainda que
tendo a fantasia como complemento) ao mesmo tempo em que trazem para suas vidas off-line
alguns elementos dos seus avatares. No decorrer da pesquisa encontramos, por exemplo,
jogadores que são músicos nas duas dimensões e jogadores desejando fazer uma tatuagem
igual ao do avatar ou, ainda, planejando se inspirar no seu personagem para emagrecer
fisicamente.
O tema ganha importância na medida em que a internet está cada vez mais presente na
vida das pessoas. Já são 1,73 bilhão de internautas no mundo, um quarto da população
mundial – 67,5 milhões no Brasil6. E esse uso só tende a crescer, especialmente com a
6
Internet World Stats. Disponível em: http://www.internetworldstats.com/stats15.htm. Acesso em: 30 jan. 2010.
24
7
Ver SMART, J. M; CASCIO, J.; PAFFENDORF, J. (2007). Metaverse Roadmap Overview. Pathways to the
3D Web. Disponível em: <http://www.metaverseroadmap.org/MetaverseRoadmapOverview.pdf>. Acesso em:
16 set. 2008.
8
Ver FRANÇOIS, 2008; GAUTERIO, 2008; e PEREIRA, 2009.
25
moderna. Como vimos, Harvey (1992) defende que nessa transição foram reestruturadas as
condições materiais de trabalho, provocando reflexos não apenas na economia, mas em toda a
sociedade. Houve uma aceleração na produção e, consequentemente, no consumo, fazendo
crescer os mercados de massa – agora mais customizados – e potencializando um novo setor
de serviços – aquele voltado para o entretenimento e a diversão.
Autores como Lemos (2004), Castells (1999a; 1999b; 2003) e Pierre Lévy (1993) vão
nos ajudar a entender como se dão os processos sociotécnicos, a nova relação do homem com
o tempo e com o espaço e seu imbricamento com as máquinas. Partimos das mudanças
ocorridas a partir da segunda metade do século XX para mostrar como esses processos
alteraram a nossa maneira de enxergar o corpo. A propaganda e a moda, seguindo a evolução
dos meios de comunicação de massa e chegando ao computador conectado à internet, teriam
evidenciado uma “onipresença” do corpo, como argumentam Le Breton (2003; 2006),
Baudrillard (1991; 2001; 2005; 2007) e Miriam Goldenberg (2004; 2007). Trouxeram,
também, valores como beleza e juventude mantidos a base de tratamentos, regimes e outras
práticas sacrificantes (BAUDRILLARD, 2005). Goldenberg (2007) argumenta que o corpo,
nesse cenário, virou uma verdadeira obsessão.
As identidades não escapam imunes a essas mudanças, uma vez que começa a
predominar a idéia de um agente plural, que assume diferentes posições de sujeito (BUTLER,
2003). Hall (2006) vai dizer que “a identidade plenamente unificada, completa, segura e
coerente, é uma fantasia”. Santaella (2003), Sibilia (2002) e Haraway (1994) são invocadas
para nos ajudar a compreender, entre outras coisas, o sentido do surgimento de novos
conceitos como corpo cibernético ou cibercorpo e homem pós-orgânico.
No terceiro capítulo, O jogo da “Segunda Vida”, iniciamos o debate com uma
questão: o SL pode ser considerado um jogo ou apenas um mundo virtual? Apresentamos
argumentos que mostram que o SL pode, sim ser considerado um jogo, ao contrário do que
postulam autores como Pimenta e Varges (2007), para quem o SL estaria mais para uma rede
social com ambientação gráfica em 3D. Defendo que ele funciona como um jogo – no sentido
mais amplo do termo – que tem na rede social uma de suas ferramentas. O próprio conceito de
jogo vem mudando ao longo do tempo.
Nesse sentido, oferecemos a visão de autores como Huizinga (2007) e Gadamer (1995;
2005) na conceituação do que são os jogos e sua importância para a sociedade. Em todo jogo
há um que de encenação, encarnamos personagens, vestimos máscaras, fingimos ser outra
pessoa num espaço imaginário regido por um tempo próprio. Para Huizinga, todo jogo, seja
jogado solitariamente ou em grupo, encerra um determinado sentido que vai além da ação. É
26
intenso, exerce um fascínio tanto sobre quem joga quanto em quem assiste e não pode ser
explicado de um modo racional, uma vez que possui uma realidade autônoma. Sua essência é
o divertimento. Na mesma linha, Gadamer defende que tanto o jogador quanto o espectador se
transformam a partir da experiência do jogo.
Nos demais tópicos desse terceiro capítulo, entramos no campo empírico propriamente
dito, detalhando como funciona o SL, sua economia e particularidades, como a possibilidade
de criação de conteúdo e a existência de outros jogos que funcionam dentro da plataforma, a
exemplo dos caça-níqueis, dos jogos esportivos e dos RPGs. Mas não são apenas tópicos
descritivos, uma vez que apresento alguns relatos de minha experiência etnográfica, desde os
primeiros passos à participação em um grupo de vampiros, com descrições dos locais que
frequentei e atividades desempenhadas.
Já no quarto capítulo, Corpos e identidades em jogo, fazemos uma análise de outros
dados coletados durante o estudo etnográfico com observação participante e a partir das 16
entrevistas realizadas com usuários do SL. Abordamos temas como o interesse e tempo
dedicado à “segunda vida”, a experiência do “segundo corpo”, a confrontação da imagem
desse corpo virtual com o corpo real dos jogadores, edição e customização de avatares e o
consumo do corpo dentro do jogo. Verificamos que construir um avatar é como construir um
personagem, vestir uma máscara (ou várias). E esse personagem, na maioria das vezes,
carrega traços distintos do corpo “real” dos jogadores, embora alguns manifestem um desejo
de aproximação. Como uma simulação da vida, o jogo nos oferece muitas possibilidades,
especialmente a realização de desejos e fantasias que, de outro modo, não seriam possíveis,
como se editar continuamente sem ter que encarar um bisturi, ou seja, sem ter que passar por
técnicas reais de transformação corporal. Nesse novo tipo de culto ao corpo, a “brincadeira”
consiste em editar e customizar o avatar e para tanto os jogadores consomem roupas,
acessórios, objetos de todo tipo – atividade que requer investimento emocional e, na maioria
das vezes, financeiro. De um modo geral, podemos dizer que a imagem desse corpo que vem
sendo construído na internet reflete uma preocupação que é típica dos tempos atuais – sermos
eternamente jovens e belos.
Finalmente, no quinto e último capítulo, apresentamos as considerações finais.
27
1 METODOLOGIA
Para tentarmos compreender como o corpo vem sendo tratado na internet, mais
especificamente nos mundos virtuais, e que questões isso traz para pensarmos a identidade do
sujeito no mundo contemporâneo, optamos por utilizar na operacionalização desta pesquisa
uma abordagem qualitativa. Segundo Richardson et al (2008, p. 80), esse tipo de abordagem é
a mais indicada para compreendermos aspectos psicológicos cujos dados não poderiam ser
coletados de outra forma devido a sua complexidade. São dados não quantificáveis, como
opiniões, valores, atitudes, expectativas e motivações.
A pesquisa qualitativa busca realçar o “aspecto subjetivo da ação social” (Cf.
HAGUETTE, 1997, p. 63). Para Weber (2005), que segue a linha de uma sociologia
compreensiva, é necessário interpretar os fatos sociais para que se possa compreender a
experiência humana, extraindo-lhes um sentido que, embora parta de valores subjetivos,
almeja alcançar uma validade objetiva, científica.
No intuito de compreender uma realidade que é socialmente construída, o método
qualitativo substitui os modelos matemáticos por diversos recursos, como a etnografia, as
narrativas históricas, os relatos em primeira pessoa e as histórias de vida, entre outros (Cf.
DENZIN & LINCOLN, 2006). Dentre esses recursos, escolhemos a etnografia por ser o que
permite descrever, com o maior nível de detalhes possível, grupos ou culturas. Era preciso
“entrar” no SL, vivenciar o jogo, estabelecer um contato direto e constante com os jogadores.
A etnografia “exige trabalho no próprio terreno, observação direta e até a participação
do investigador constantemente a procura das melhores vias de acesso” a esses grupos ou
culturas (BALANDIER, 1977). A coleta de dados concretos sobre os fatos observados é o que
permite ao etnógrafo fazer inferências gerais sobre o que pensam e sentem os indivíduos
enquanto membros de uma dada comunidade, como já preconizava Malinovski no seu famoso
estudo Os argonautas do Pacífico Ocidental, publicado em 1922. Nas ilhas Trobiand, o
antropólogo se misturou aos nativos para descrever como acontece o kula, um sistema de
comércio baseado na troca. “É enorme a diferença entre o relacionar-se esporadicamente com
os nativos e estar efetivamente em contato com ele”, escreve Malinovski (1976, p. 25).
Resolvi adotar, então, a técnica etnográfica da observação participante, embora no
ciberespaço não se saiba exatamente onde está o grupo ou comunidade que se deseja estudar –
e no SL existem muitas comunidades que refletem as tribos observáveis atualmente no
ambiente urbano (Maffesoli), ainda que sejam comunidades guarda-roupas, provisórias, como
28
define Bauman. O problema é que os informantes podem estar em qualquer lugar, de forma
que a única saída é perambular sem saber ao certo onde e quando vamos encontrá-los.
De acordo com Lindeman, a observação participante possibilita ao observador “ser
livre para ver muitas coisas que um observador de fora jamais pode ver” (apud HAGUETTE,
1997, p. 70-71). O observador participante, como a própria expressão sugere, não apenas
observa as atividades de determinados indivíduos ou grupos como também participa delas, o
que exige uma presença constante para que se possa “ver de dentro”. Citando Kluckhohn,
Haguette diz que essa presença implica em um compartilhamento consciente e sistemático
inclusive dos processos subjetivos (interesses e afetos). O pesquisador deve assumir o papel
do outro para poder compreender o sentido de suas ações, mesmo correndo o risco de ter sua
percepção obliterada em função desse envolvimento.
Na observação participante, portanto, o envolvimento do pesquisador com seu objeto
de estudo é fundamental para uma apreensão satisfatória do habitus, podendo desta forma
perceber certas particularidades ou regularidades no comportamento de indivíduos e/ou
grupos que, de “fora”, não seria possível perceber.
Clifford (idem, p. 34), afirma que a observação participante pode trazer bons
resultados se o etnógrafo seguir a linha hermenêutica, produzindo “uma dialética entre
experiência e interpretação”. Segundo esse autor, é no processo de compreensão que fatos,
textos e eventos são construídos de maneira subjetiva a partir da experiência. “A experiência
está intimamente ligada à interpretação. (...) Mas esse tipo de leitura ou exegese não pode
ocorrer sem uma intensa participação pessoal, um ativo „sentir-se em casa‟ num universo
comum” (idem, ibidem, p. 36). Invocando Dilthey, filósofo e historiador que estabeleceu uma
importante distinção entre Erklären (explicar) e Verstehen (compreender), Clifford vai dizer
que a experiência etnográfica pode ser vista como “a construção de um mundo comum de
significados, a partir de estilos intuitivos de sentimento, percepção e inferências”.
Seguindo as pistas deixadas por Clifford, busquei na hermenêutica filosófica uma
resposta para a seguinte pergunta de ordem epistemológica: qual a possibilidade de
conhecimento que essa pesquisa traz, uma vez que estamos lidando exclusivamente com
29
com outros jogadores estaremos, também, construindo uma experiência que valoriza o próprio
ato de jogar. Podemos dizer que o que está em jogo, no SL, é a vivência ela mesma.
Considerando esses pressupostos, transformei meu avatar, Micheline Beerbaum, em
um avatar-pesquisador. Ele existia desde 2007. Em 2008, passei a registrar as observações em
um diário de campo, fazendo anotações a cada vez que entrava no jogo, sobre os locais
visitados, as pessoas encontradas pelo caminho e alguns diálogos eventuais. Conduzi o estudo
etnográfico circulando anonimamente por diversas “ilhas”, abordando e entabulando
conversas com dezenas de usuários. Como jogadora, pude vivenciar ativamente as
possibilidades de ressignificação corporal e de experimentações identitárias existentes no
jogo. Se há uma crise de identidade no mundo contemporâneo, como discutem autores como
Hall, Maffesoli e Bauman a partir de contribuições estruturalistas, ela se reflete no SL, pois
constatei que ali o jogador pode vestir muitas máscaras de forma fluida, descompromissada,
pode vivenciar fantasias que não são possíveis ou que não se quer viver no mundo off-line.
Também como jogadora, pude editar e modificar meu próprio avatar inúmeras vezes,
entrando na roda-viva do consumo para adquirir novos itens para compor meu visual.
Construí um inventário (espécie de pasta onde ficam guardados todos os objetos recebidos ou
comprados) robusto, com cerca de 6.000 itens, cujo uso eu ia alternando de acordo com o meu
desejo ou conforme a ocasião exigia. Num período de pouco mais de dois anos, fui rastafári,
frequentei festas, trabalhei como vendedora, virei personagem de um jogo de RPG. Essas e
outras experiências estão relatadas ao longo dos capítulos 3 e 4 deste trabalho.
9
A jogadora pediu para não divulgar o primeiro nome do seu avatar, apenas as iniciais.
10
Software que permite a realização de chamadas telefônicas entre computadores, através do protocolo da
internet.
32
editor de imagens (Photoshop), exceto alguns que foram feitos com o recurso de tirar
fotografias que o jogo oferece, e por isso aparentam ser mais “limpas”, sem as caixas de
ferramentas que geralmente ficam flutuando na tela.
Inicialmente, meu objetivo era entrevistar apenas jogadores experientes, com mais de
um ano de SL. Mas acabei eliminando esse filtro por acreditar que os novatos também teriam
algo relevante a dizer sobre o jogo. Essa certeza surgiu depois de entabulados alguns diálogos
com os chamados “noobies” ou “newbies”, jargão que designa usuários com uma aparência
básica, sem muito burilamento. Essa característica permite que sejam identificados como
novatos quase que imediatamente por outros usuários. Os mais antigos, pela própria
experiência adquirida no SL e maior número de objetos acumulados no inventário, costumam
ter um visual mais sofisticado. Ao entrar no jogo, os novatos geralmente necessitam de ajuda,
e observei que existem muitos grupos criados com esse fim, mantidos por jogadores mais
experientes.
A partir desse direcionamento, quatro dos 16 entrevistados jogam SL há mais de dois
anos (Mirella, AriadnaDragon, Silvana e Sammi). A maioria, oito no total, há mais de um ano
(Assaliah, GutoOtto, Rafaelle, Lipp3, Logan, Misshotchilli, Nanda111 e Roxeli). E quatro
deles estão no jogo há menos de um ano (Ally, Ricardoshow, Clecio e F.D.), sendo que o mais
novo – Ricardoshow – tinha apenas cerca de dois meses de SL na época da entrevista. A
decisão de classificar os jogadores com menos de um ano de experiência no SL como
“novatos” partiu da minha própria vivência, pois antes do primeiro rezzday11 eu ainda não
conhecia todas as possibilidades do jogo.
A idade média dos jogadores pesquisados é de 30 anos, variando entre 19 e 37 anos.
Dos 16 entrevistados, sete são do sexo masculino e nove do sexo feminino. Em apenas um
caso o sexo declarado na entrevista não correspondeu ao sexo do avatar utilizado pelo usuário
– o que sugere que, apesar do jogo ser flexível em termos de gênero, esse recurso é pouco
utilizado (ou, se utilizado, pouco declarado) pelos jogadores. Nesse caso em particular, o
jogador – Ally, entrevistado de forma remota – é do sexo masculino e, seu avatar, do sexo
feminino. Após uma ponderação metodológica, decidi utilizar na amostra o sexo declarado na
11
Dia em que é comemorado o aniversário do avatar.
34
Esse novo período é marcado pela fluidez e pela incerteza que, de acordo com Harvey,
teria se iniciado com a recessão provocada pelo choque do petróleo, em 1973, com o aumento
da inflação norte-americana e a emergência dos tigres asiáticos. A guerra árabe-israelense
teria elevado o custo desse insumo fundamental para o capitalismo – o petróleo –, causando
um efeito cascata em toda a economia. Em consequência disso, os mercados financeiros
tornaram-se instáveis, de forma que as décadas de 1970 e 1980 testemunharam um período de
ajustes econômicos e de reajustamento social e político.
A transição entre a economia industrial e fordista e um novo fazer capitalista baseado
na acumulação flexível, para Harvey, teria provocado uma crise na nossa experiência do
espaço e do tempo, categorias básicas da existência humana, consideradas essenciais à
reprodução da vida social. “A sensação de que „tudo que é sólido se desmancha no ar‟
raramente foi mais pervasiva”, diz Harvey (idem, p. 258). A compressão espaço-tempo seria
uma das características fundamentais da condição pós-moderna, uma vez que a aceleração da
produção e do consumo de bens e serviços (fast food, produtos e embalagens descartáveis)
tornou voláteis e efêmeros não apenas produtos, modas, técnicas de produção, processos de
trabalho, mas também ideias, ideologias, valores e práticas estabelecidas. As metanarrativas,
teorias de caráter universal, deixam de fazer sentido.
A sensação de encurtamento do tempo e do espaço, ainda de acordo com Harvey, teria
sido exacerbada com o surgimento das TICs, que compreendem desde os computadores
pessoais (PCs), a telefonia móvel, a internet, o correio eletrônico, a toda sorte de dispositivos
utilizados para captação, transmissão e distribuição de informações (texto, imagem, som),
como scanners, webcams e câmeras digitais. Essas invenções diminuíram as distâncias e
tornaram os fluxos informacionais instantâneos, numa sociedade cada vez mais “on-line”.
Desde o telégrafo e o telefone, mas principalmente a partir da TV e da internet, os media
alteraram a noção de tempo e de espaço que norteou toda a era moderna. Uma noção que era
baseada em biografias individuais, em rotinas cotidianas (de casa para a fábrica, para a escola,
para lojas) e em etapas que iam sendo cumpridas (juventude, casamento, velhice,
aposentadoria etc). Agora, é possível trabalhar, estudar e comprar sem sair de casa e fórmulas
milagrosas, anunciadas pela TV ou enviadas como spam para as nossas caixas de e-mail,
prometem prolongar a juventude (ou adiar a velhice).
As TICs acabaram provocando uma explosão de informações, de conhecimentos
organizados. Ao falar sobre a TV associada à comunicação por satélite, por exemplo, Harvey
(idem, p. 264) observa que somos constantemente bombardeados com “uma enorme gama de
imagens vindas de espaços distantes quase simultaneamente, encolhendo os espaços do
37
mundo numa série de imagens de uma tela de televisão”. A internet, por sua vez, transformou
o PC numa estação integrada de comunicação, compras e entretenimento, mexendo com a
rotina dos indivíduos, eliminando “a antiga distinção entre processamento e disseminação de
conhecimentos” (KUMAR, 1997, p. 22). A mídia, sobretudo aquela que une o computador às
telecomunicações, teria criado uma nova “realidade eletrônica”, uma hiperrealidade, repleta
de imagens e símbolos.
A era da informação, conceito alternativo à teoria da sociedade pós-industrial de
Daniel Bell, teria deslocado as fronteiras geopolíticas e do tempo cronológico linear, dois
pilares da modernidade ocidental, ao situar a informação num contexto global e em tempo real
– bibliotecas, arquivos, bancos de dados tornaram-se acessíveis a qualquer pessoa, em
qualquer lugar e a qualquer momento. Mais tarde, esse conjunto de informações reunidas num
só local, na verdade um conjunto de bits e memória eletrônica, seria chamado de ciberespaço.
O que Bauman define como sociedade de consumo, Lipovetsky (2007) vai, num tom
mais radical, chamar de sociedade de hiperconsumo. Essa também uma nova fase do
capitalismo, formada por consumidores individualistas, em busca do prazer, de satisfações
emocionais imediatas. Essa “civilização do desejo”, característica de uma de “uma nova
modernidade” que teria sido construída ao longo da segunda metade do século XX, é
alimentada por uma estimulação constante da demanda e da multiplicação das necessidades.
Segundo o autor, nesse período que teria se iniciado por volta do fim dos anos 1970, as
expectativas em relação ao futuro histórico vêm sendo substituídas pelo presenteísmo; as
militâncias políticas, pelo hedonismo (idem, p. 11). O melhoramento contínuo das condições
de vida seria uma espécie de nova religião. No âmbito da economia, é a demanda que dita a
política de preços, puxada pelo motor do consumo das famílias. “A sociedade do
hiperconsumo coincide com um estado da economia marcado pela centralidade do
consumidor” (idem, p. 13).
O Homo consumericus descrito por Lipovetsky é aberto, instável e flexível,
“amplamente liberto das antigas culturas de classe, imprevisível em seus gostos e em suas
compras” (idem, p. 14). Tem como características principais a infidelidade a marcas, a
reflexão e um apego à estética. Um consumidor que perambula por grandes shopping centers,
compra marcas mundialmente conhecidas, busca produtos light, exige selos de qualidade.
Mesmo numa atividade “virtual” como jogar SL, muitos optam por consumir roupas, calçados
e acessórios de grifes famosas, como Hugo Boss, Louis Vuitton, Victor Hugo, Nike, Reebok,
que estão ali reproduzidas. Também no virtual, são sinônimos de status.
Esse turboconsumidor, continua Lipovetsky, vive em busca de algo mais do que o
simples bem-estar material – ele está ávido por experiências emocionais, conforto psíquico,
de pílulas de felicidade. O mercado da alma e de sua transformação, do equilíbrio e da auto-
estima se expande ao sabor das sabedorias orientais, das novas espiritualidades. Deseja-se ter
mais tempo e dinheiro para o lazer. “O tempo e o dinheiro consagrados aos lazeres estão em
alta constante. As festas, os jogos, os lazeres, as incitações ao prazer invadem o espaço da
vida cotidiana” (idem, p. 16). Tudo em nome de uma felicidade que, para o autor, é
paradoxal, pois, enquanto a grande maioria se diz feliz, problemas como estresse, depressão e
ansiedade se multiplicam. O cuidado de si, não raro, implica em práticas hipocondríacas e
sacrificantes.
42
12
Essas cifras não incluem despesas com restaurantes, automóvel e telecomunicações, que podem estar
relacionadas tanto ao lazer quanto ao trabalho.
43
Parece ser justamente essa a lógica que guia os jogadores do SL. A experiência de
viver uma “segunda vida” na internet em princípio não oferece riscos, pode ser controlada. Os
simulacros são mais perfeitos, controláveis, mais reais que o real, diz Baudrillard (1991, p. 8).
“A simulação já não é a simulação de um território, de um ser referencial, de uma substância.
É a geração pelos modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real”. A simulação do
jogo é divertida, propicia a sensação de sermos eternamente jovens, belos, num mundo sem
rotinas, guiado unicamente pelo prazer. É divertido poder consumir virtualmente, construir
uma mansão, comprar uma Ferrari. O que antes poderia ser considerado falso se tornou real,
ou melhor, hiperreal. Lá podemos ter tatuagens e “consertar” o nariz ou o queixo sem a dor
provocada pelos bisturis, usar roupas de grife sem necessariamente investir dinheiro real, pois
no SL podemos adquirir produtos gratuitos nas freebies. No ciberespaço, tudo é ainda mais
efêmero. As identidades são ainda mais fluidas, móveis, mais performáticas do que no mundo
real. A ação performativa do jogador é, desde sempre, uma simulação.
Kumar (1997) considera as contribuições de Harvey, Bell, Bauman, Lipovetsky e
Baudrillard, mas não somente essas, sincréticas no processo de construção de uma teoria pós-
moderna. Para o autor, entretanto, é inútil falar em pós-modernidade como uma era ou
período histórico que sucede a modernidade. Para ele, o mundo pós-moderno é um mundo de
presente eterno, sem origem ou destino, passado ou futuro. Um mundo em que tudo que se
apresenta é temporário, mutável ou tem o caráter de formas locais de conhecimento e
experiência. Conceitos como hiperrealidade e cibercultura ganham importância nesse cenário,
pois nos falam desse mundo de incertezas e de fluidez, de um processo de simulação e
experimentações constantes. E esse é o universo em torno do qual giram games como o SL.
2.2 A HIPERREALIDADE
passando a ser determinadas pelo acesso que as pessoas têm às novas tecnologias. “Cada vez
mais a cultura do espetáculo está se movendo para os domínios do ciberespaço, o que ajudará
a criar futuros espetáculos multimídias e sociedades ligadas em rede de infoentretenimentos”.
Os espetáculos multimídia são mais sedutores do que as versões tradicionais, como o teatro.
A tecnocultura da internet, de acordo com Kellner, envolve uma economia interligada em
rede, é cada vez mais expansiva e deixa para trás aqueles que não se “atualizam”.
Quando pensamos nos jogadores do SL, com seus corpos simulados virtualmente
através de avatares, o conceito de hiperrealidade de Baudrillard e a percepção de Kellner de
que estaríamos criando espetáculos multimídias no ciberespaço se tornam bastante
compreensíveis. O jogo é a arena de espetáculos e o jogador é o protagonista, podendo
reproduzir ali simulacros da vida que vivemos, construir relações, manipular sua imagem,
controlar suas ações. Podendo também elaborar uma narrativa estrelada por um personagem
que é, ao mesmo tempo, real e fantasioso. Para Baudrillard, o real em si já não existe, apenas
é simulado, produzido através de símbolos. Os referenciais se perderam porque a simulação
transformou o simulacro em realidade. Os simulacros são mais perfeitos, acabados,
controláveis. É nesse sentido que podemos dizer que, na mecânica do pensamento mediado
pela tecnologia, a realidade de um jogo eletrônico on-line torna-se uma hiperrealidade.
Aqui, o virtual é compreendido como um aspecto do real, e não seu oposto. Tentemos
compreender o que isso significa. O dicionário diz que virtual é o “que não existe como
realidade, mas sim como potência ou faculdade”13. Como nos explicou Castells (1999a, p.
459), não há como separar realidade e representação simbólica, uma vez que a humanidade
sempre existiu e atuou através de símbolos. “A realidade, como é vivida, sempre foi virtual
porque sempre é percebida por intermédio de símbolos. (...) De certo modo, toda realidade é
percebida de maneira virtual”. O que muda com a integração de todos os meios de
comunicação, através da internet, é que a realidade virtual, que era apenas induzida, passa a
ser construída, gerando uma “virtualidade real”, um mundo de simulacros, de imagens
13
Ver Dicionário Michaelis. Disponível em:
<http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=virtual>.
Acesso em: 05 fev. 2010.
46
Considerando o que nos diz Kumar, é importante observar que há uma sensação de
que o ambiente altamente interativo do SL seja o futuro da própria internet, que a Web terá
“pedaços de terra” ao invés de sites, e corredores ao invés de menus, e que, além de e-mail,
teríamos todos os próprios avatares. E usaríamos esses avatares para ir a reuniões de trabalho,
ao banco ou para comprar bens da vida real, como um automóvel, em lojas reais estabelecidas
no mundo virtual. O jogo, enfim, estaria abrindo possibilidades para transformar a maneira
47
como trabalhamos, consumimos e nos relacionamos, criando uma nova dinâmica social
baseada em simulacros eletrônicos14.
O real vem sendo reinventado como ficção porque ele mesmo estaria desaparecendo
de nossas vidas. Mas esse desaparecimento não ocorre por uma ausência, e sim por um
“excesso de realidade”. “Esse excesso de realidade provoca o fim da realidade, da mesma
forma que o excesso de informação põe um fim na comunicação” (BAUDRILLARD, 2001, p.
72). Com isso em mente, podemos perguntar: é possível afirmar que o excesso de realidade é
o que vem levando os jogadores do SL a criarem uma vida paralela na internet, esta mais
aberta à fantasia? De alguma forma, essa “segunda vida” proporciona aos jogadores um
controle total sobre suas condutas, mas proporciona também uma não rigidez. Eles podem
experimentar novas possibilidades, adotando, por exemplo, uma aparência diferente a cada
dia para seus avatares. Uma aparência que não precisa, necessariamente, estar limitada aos
padrões da beleza humana e é nesse sentido que encontramos, no SL, avatares de gatos, anjos,
dragões, próteses superdimensionadas etc. Algo reprodutor mas também inovador, pois
permite que os jogadores contestem os padrões da vida real.
Ao contrário de Debord, Baudrillard (2001, p. 72) não vê possibilidade alguma de
acabarmos com a alienação. Movemo-nos para um mundo virtual onde “não haverá sequer
tempo suficiente para imaginar”, onde tudo será precedido de uma realização virtualizada, o
que, para o autor, beira a catástrofe. “Estamos lidando com uma tentativa de construir um
mundo inteiramente positivo, um mundo perfeito, expurgado de toda ilusão, de toda espécie
de mal e negatividade, isento da própria morte”.
Pensemos na trilogia Matrix (EUA, 1999 e 2003), onde o personagem Neo vive
imerso num programa de realidade virtual criado pelas máquinas que controlam o mundo por
volta do ano de 2200. Ele é resgatado dessa “ilusão” por habitantes da última cidade de seres
humanos livres que lutam para derrotar as máquinas. “Ilusão é a regra geral do universo; a
realidade não é mais do que uma exceção”, sentencia Baudrillard (idem, p. 78)15. Para o autor,
a comunicação global e perpétua nada mais é do que uma fantasia hegemônica, e estaríamos
todos condenados a viver num estado permanente de hiperrealidade. O jogo não terminou,
mas ninguém sabe ao certo de quem será a palavra final. O conflito entre o mundo real e sua
“duplicata” artificial, o ciberespaço, seria inevitável.
14
VIEIRA, Eduardo; ZORZANELLI, Marcelo. O Second Life e o futuro da internet. Época. São Paulo: Editora
Globo, nº 461, 19 mar. 2007, p.85.
15
Numa das cenas do primeiro filme da trilogia Matrix, Neo é acordado em seu apartamento por amigos e vai
pegar um disco que está dentro de um livro com as páginas recortadas. Esse livro é Simulacros e Simulação.
48
2.3 A CIBERCULTURA
O termo ciberespaço, que resume bem essa nova “realidade eletrônica” referida por
Debord e Baudrillard, cuja principal característica é a simulação, foi cunhado pela primeira
vez em 1984, pelo escritor de ficção científica William Gibson no livro Neuromancer. Na
ficção de Gibson (2003, p. 67), o ciberespaço é a Matrix, ambiente virtual que “teve a sua
origem nos primitivos jogos eletrônicos, nos primeiros programas gráficos e nas experiências
militares com conectores cranianos”. O ciberespaço seria a “representação física e
multidimensional do universo abstrato da „informação‟. Um lugar para onde se vai com a
mente, catapultada pela tecnologia”, como escreve Alex Antunes no prefácio à edição
brasileira da obra. Mas a descrição de ciberespaço contida nas páginas do livro é muito mais
contundente. Traz uma visão ao mesmo tempo poética e apocalíptica:
Em Neuromancer, o universo das redes digitais é tratado por Gibson como um campo
de batalha, palco de conflitos mundiais entre grandes empresas multinacionais. O protagonista
Case é um cyberpunk17, anti-herói drogado e prostituído capaz de entrar “fisicamente” nesse
espaço de dados que virou sinônimo de internet, assim como hoje fazem os hackers do mundo
real, embora numa dimensão apenas simbólica. Ao misturar ficção científica e cultura pop
num mesmo caldeirão, Gibson acabou inspirando uma das mais populares trilogias do cinema
– Matrix, dos irmãos Andy e Larry Wachowski18.
Lévy (1999, p. 92), por seu turno, define o ciberespaço como “o espaço de
comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos
16
Na página brasileira do Second Life (www.secondlifebrasil.com.br), não mais disponível, era feita uma alusão
direta ao livro de Gibson. “Se você achava que o mundo virtual de Matrix era uma realidade distante, irá se
espantar com Second Life! [...] Second Life não é um simples jogo, mas uma realidade paralela em um ambiente
virtual”.
17
O termo cyberpunk teria suas origens na literatura de ficção científica, que associa tecnologias digitais,
psicodelismo e a luta marginal contra todo tipo de poder, seja mediático, político ou econômico. Os cyberpunks
são o underground da informática e sua ideologia impõe uma visão ao mesmo tempo cínica e distópica em
relação às possibilidades abertas pelas novas tecnologias (Cf. LEMOS, 2004, p. 185-187).
18
Neuromancer (1984) é o primeiro volume da Trilogia do Sprawl. A ele seguem-se Count Zero (1986) e
Monalisa Overdrive (1988), que ampliam o conceito de ciberespaço.
49
computadores”. O autor afirma que essa definição, embora mais restritiva, aproxima-se
daquela dada por Dyson, Gilder, Keyworth e Toffler em 1994, que trata o ciberespaço como a
“terra do saber”, uma “nova fronteira” cuja exploração poderá ser a maior tarefa da
humanidade. Não podemos deixar de mencionar que o termo ciberespaço deriva de
cibernética ou “teoria da mensagem”, criada entre o fim dos anos 1940 e o início da década de
1950 por matemáticos como Norbert Wiener e John von Neumann, entre outros. Sobre a
importância do ciberespaço, Lévy diz que
Como nos explica Lemos (2004), a internet nasce na Advanced Research and Projects
Agency (ARPA) no fim dos anos 1960. Essa rede, a ARPANet, tinha como objetivo conectar
as bases militares do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Com a invenção do
microcomputador, na década de 1970, a internet foi além dos muros das organizações
militares, miniaturizando uma parafernália de equipamentos que chegavam a ocupar salas
inteiras. Nos anos 1990 veio o boom da internet, com sua roupagem gráfica e comercial – a
World Wide Web – disseminando uma nova relação entre a informática e a sociedade, ou
seja, a cibercultura. Até então, a internet estava restrita ao uso acadêmico e militar – era uma
espécie de correio contendo apenas mensagens de texto, a exemplo dos BBS (Bulletin Board
System) e do Minitel francês (Cf. CASTELLS, 1999a). Para Lemos, “o surgimento da
cibercultura não é só fruto de um projeto técnico, mas de uma relação estreita com a
sociedade e a cultura contemporâneas” (idem, p. 26).
Castells (1999a, p. 414) compara o atual momento tecnológico em que vivemos à
revolução provocada pela invenção do alfabeto na Grécia antiga. “Uma transformação
tecnológica de dimensões históricas similares está ocorrendo 2.700 anos depois, ou seja, a
integração de vários modos de comunicação em uma rede interativa”. Para o autor, esse novo
sistema eletrônico de comunicação e interatividade potencial “está mudando e mudará para
sempre nossa cultura”. A internet integra num mesmo sistema modalidades importantes da
comunicação humana – escrita, oral e audiovisual – através de hipertextos que, segundo Lévy
(1993), podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou partes de gráficos, sequências
sonoras, documentos.
50
“Uma coisa é certa: vivemos hoje em uma destas épocas limítrofes na qual toda
a antiga ordem das representações e dos saberes oscila para dar lugar a
imaginários, modos de conhecimento e estilos de regulação social ainda pouco
estabilizados. Vivemos um destes raros momentos em que, a partir de uma
nova configuração técnica, quer dizer, de uma nova relação com o cosmos, um
novo estilo de humanidade é inventado.” (LÉVY, 1993, p. 17)
19
Ver A página dos cyborgs: Bodynet e netcyborgs. Novas tecnologias e sociabilidade na cultura
contemporânea. Disponível em: <http://www.facom.ufba.br/pesq/cyber/lemos/intro.html>. Acesso em: 16 set.
2007.
51
“novas tecnologias, novas mídias, cada vez mais convergentes pelo mecanismo
da digitalização, estão transformando o tempo e o espaço sociais e culturais.
Esse novo mundo não pára: 24 horas de noticiário, 24 horas de serviços
financeiros. Acesso instantâneo, em todo o globo, à World Wide Web.
Comércio interativo e sociabilidade interativa em economias e comunidades
virtuais. Uma vida a ser vivida on-line.” (SILVERSTONE, 2005, p. 46).
O autor observa que, apesar da “nova mídia” ter sido construída sobre as bases da
velha (imprensa, telégrafo, telefone, rádio, TV), caracterizando-se apenas como uma nova
maneira de produzir e transmitir significados, ainda não dá para saber que consequências ela
20
O estudo WebShoppers nº 20, desenvolvido pela empresa e-bit, prevê um crescimento de 28% no faturamento
das lojas virtuais brasileiras em 2009, atingindo R$ 10,5 bilhões. Disponível em:
<http://www.webshoppers.com.br/webshoppers/WebShoppers20.pdf>. Acesso em: 06 fev. 2010.
52
terá na vida social, econômica ou política. Não há certezas sobre onde a velocidade, a
miniaturização, seu imenso poder e alcance vão nos levar. Só sabemos que estamos cada vez
mais impregnados dela, ao ponto de conseguirmos construir – e viver – uma “segunda vida”
na internet.
Lemos (2004, p. 165) trata a “cyborgização” do homem – qual seja, sua imersão nos
domínios do ciberespaço – como algo inexorável. “O devir da humanidade é um devir cyborg.
O primeiro homem, que de uma pedra faz uma arma e um instrumento, é o mais antigo
ancestral dos cyborgs”. Metáforas à parte, o autor observa que a cibercultura permeia todas as
esferas da cultura contemporânea. Ela está presente nas artes, nos meios de comunicação de
massa, na economia. “A cibercultura potencializaria uma espécie de „fase mágica‟ da
tecnologia – conexão generalizada, desmaterialização, ubiqüidade, telepresença,
complexificando a noção de sociedade do espetáculo” (idem, p. 257-258).
A sociedade do espetáculo, diz Lemos, teria pavimentado o terreno para a sociedade
da simulação, que é nada mais é que a própria cibercultura. Uma sociedade marcada por uma
“atitude social de apropriação criativa” das novas tecnologias que embute, a um só tempo, o
hedonismo e o presenteísmo do mundo contemporâneo. Essa apropriação estaria refletida, por
exemplo, na “febre” dos jogos eletrônicos, nas agregações das redes sociais, na potência dos
vírus e no erotismo do cibersexo. É a partir dessa apropriação que podemos, a partir de agora,
pensar em novas maneiras de enxergar o corpo e nas questões que a cibercultura nos coloca
sobre a identidade na época atual.
O corpo esteve ausente da agenda dos primórdios das ciências sociais – era assunto da
medicina e da biologia, além de ser explorado pelas artes. Para os autores clássicos, a
corporeidade humana era um tema a ser desconsiderado ou abordado apenas de forma
implícita. Para Marx, ela servia apenas para ilustrar os “indicadores ligados aos problemas de
saúde pública ou de relações específicas ao trabalho” (Cf. LE BRETON, 2007, p. 16). Em
obras como O Capital (1867), o corpo enquanto “fato de cultura”, apesar de moldado pela
interação social, permanece implícito – o objeto de estudo é a condição do operário. Em
Durkheim, o homem obedece a uma ordem biológica, orgânica, e nem mesmo sua
subjetividade pode mudar essa “natureza”. Weber, por sua vez, simplesmente ignora a
existência do corpo (idem, p. 18).
53
No início do século XX, com a ajuda da psicanálise, começa a ser esboçada uma
sociologia do corpo. A partir de Freud, aprendemos que o corpo não só é modelado pelas
relações sociais como também pelo próprio sujeito, que carrega sua história pessoal, estando
imerso em um campo simbólico. Segundo Le Breton, coube a Georg Simmel mostrar que o
corpo que vemos é socialmente construído, valorizando o sensorial, a fisionomia (1901) ou as
trocas de olhares (1908). Depois dele alguns autores, como Georg Herbert Mead (Mind, self
and society, 1934), Marcel Mauss (As técnicas do corpo, 1936), Norbert Elias (A civilização
dos costumes, 1939) e Erving Goffman (A representação do eu na vida cotidiana, 1959),
passaram a dar alguma importância ao gestual, à linguagem do corpo.
Mas foi somente a partir dos anos 1960 que os teóricos contemporâneos assumiram o
desafio de colocar o corpo em seu devido lugar no pensamento sociológico, provocados pelo
fim das metanarrativas e pelas profundas mudanças que se estabeleciam à época, como nos
conta Le Breton:
“No final dos anos 1960, a crise da legitimidade das modalidades físicas da
relação do homem com os outros e com o mundo amplia-se consideravelmente
com o feminismo, a „revolução sexual‟, a expressão corporal, o body-art, a
crítica do esporte, a emergência de novas terapias, proclamando bem alto a
ambição de se associar somente ao corpo, etc. Um novo imaginário do corpo,
luxuriante, invade a sociedade, nenhuma região da prática social sai ilesa das
reivindicações que se desenvolvem na crítica da condição corporal dos atores.”
(LE BRETON, 2007, p. 9)
21
Programa de edição de imagens da Adobe Systems, conhecido pelo poder de eliminar imperfeições corporais
de toda ordem, como olheiras e celulites, principalmente em fotos veiculadas pela mídia.
56
o filme”, situa a autora (idem, p. 202). Lembremos que o personagem Neo, do filme Matrix,
vivia plugado num programa de RV criado pelas máquinas.
Uma das subdivisões desse tipo de “corpo plugado” é a imersão através de avatares,
descritos por Santaella como “figuras gráficas, habitantes dos mundos virtuais” como o SL.
“Neste nível, a imersão avança um passo, pois, quando o internauta incorpora um avatar,
produz-se uma duplicação na sua identidade, uma hesitação entre presença e ausência, estar e
não estar, ser e não ser, certeza e fingimento, aqui e lá” (idem, p. 203).
A imersão através de avatares nos propõe um olhar transcendente sobre nós mesmos,
sob o escudo mágico da fantasia. Mas existe outro tipo de cibercorpo descrito por Santaella
que também se encaixa no propósito deste trabalho. É o “corpo simulado”, “completamente
desencarnado”, “feito de algoritmos, de tiras de números”. Nesse caso, de acordo com a
autora, o corpo carnal ficaria plugado, enquanto que sua versão virtual seria teletransportada
para outro espaço geograficamente localizado, aparecendo possivelmente como uma projeção
holográfica. “Dada a extrema sofisticação matemática desse tipo de corpo, sua existência
ainda não é inteiramente possível, mas sua realização está em estudo” (idem, p. 204).
Resguardadas as devidas proporções, poderíamos dizer que o avatar é, também, um
corpo simulado com base na definição fornecida por Santaella, embora apenas
simbolicamente. Não há um corpo “real” que é transportado holograficamente para outro
espaço geográfico, o que existe é uma simulação de corpo projetada no ciberespaço. Quando
essa experiência – que no SL chamamos de teletransporte, um entre os tantos recursos do jogo
– se tornar possível, todos poderemos, de fato, estarmos aqui e lá ao mesmo tempo, como no
filme Avatar (EUA, 2009). O corpo carnal permaneceria na frente do computador, ou
adormecido como na citada película, enquanto sua versão simulada, porém palpável, física,
viajaria para algum lugar no espaço concreto.
Alguns autores, começando talvez por Le Breton (2003, p. 150), têm teorizado acerca
da dissolução do corpo na internet – “o corpo da realidade virtual é incorpóreo”. Featherstone
e Burrows (1991, p. 11-12), por sua vez, argumentam que a tecnologia propiciou a existência
de “subjetividades descorporificadas”. Lancemos aqui uma releitura dessa tese. Partimos de
uma constatação simples: por trás de toda tela de computador existe uma pessoa real, de carne
e osso, disposta a estabelecer uma “presença virtual”. E esse corpo – o avatar – também é real
e gera sensações físicas, ainda que feito não mais de carne e osso, mas de bytes e pixels. O
próprio Le Breton (idem, p. 150) reconhece que, “ainda que seja uma simulação do mundo, o
espaço cibernético não proporciona menos o sentimento da realidade física de seu universo.
As percepções são realmente sentidas, mas se baseiam em uma simulação”.
58
estabelecidos pela interface técnica e pelos constrangimentos do mundo real – devo seguir
padrões ou buscar a diferença? O ambiente é lúdico e democrático, porém os modelos tendem
a se aglutinar em torno de certos ideais.
A necessidade de pertencimento que leva os jogadores do SL a reproduzir no mundo
virtual padrões estéticos da vida real (corpos “bombados”, esculpidos) ocorre porque o avatar
é também uma construção social, no sentido empregado por Balsamo (1995, p. 217-218). Para
essa autora, assim como o corpo natural, o corpo cibernético “é uma produção social, cultural
e histórica”. “Como um produto é a corporificação material de identidades étnicas, raciais e
de gênero, assim como uma performance encenada de identidade pessoal, de beleza, de
saúde”. Balsamo procura imaginar que formas de corporeidade as pessoas iriam escolher se
pudessem remodelar seus corpos sem dor e sem os custos da reestruturação física (cirurgias
cosméticas e body building). Algumas dessas formas corporais desejadas vão transparecer na
fala – e nas imagens – da maioria dos nossos entrevistados. De um modo geral, podemos dizer
que o jogo permite um nível razoável de realização de fantasias, desejos, e nos apresenta a
oportunidade de levar essa experiência para âmbitos não lúdicos.
Pós-humano... Pós-orgânico... Será que podemos falar também em pós-corpo? Vilaça
(2007, p. 46) não vai muito além dos dois primeiros termos, porém nos propõe aquela
ponderação apresentada na introdução deste trabalho: “A questão tradicional de aceitar ou não
o corpo recebido torna-se agora: como mudá-lo e até que ponto?”. Citando Judith Halberstam
e Ira Livingston, ela pergunta: o rompimento de todos os limites do corpo nos libera ou nos
aprisiona, nos moldes das disciplinas estudadas por Foucault? Podemos mudá-lo (libertação),
mas há padrões que devemos seguir (constrangimento). Vilaça (idem, p. 46) diz que pensar o
corpo como matéria ou como virtual é um dos desafios da contemporaneidade e sugere, como
estratégia para resolver essa questão, “o jogo, a abertura, o controle do risco, a
experimentação”. A autora destaca, ainda, o papel determinante das novas tecnologias e do
mundo virtual na reelaboração da subjetividade nesses tempos incertos.
Falemos um pouco sobre as disciplinas estudadas por Foucault referidas por Vilaça.
Em sua genealogia, termo que Foucault (1979, p. 20) vai buscar em Nietzsche, o corpo estaria
relacionado à proveniência (Herkunft) – o pertencimento a um grupo, raça ou tipo social. O
autor explica que, ao contrário do que se imagina, a proveniência não quer eleger
características gerais, e sim “marcas sutis, singulares, subindividuais”. É o corpo marcado
com a história de seus ancestrais, herança que se inscreve, por exemplo, no sistema nervoso,
no aparelho digestivo, no humor. Nesse sentido podemos dizer que os corpos do SL
carregariam também uma proveniência, que vem da história e experiência de vida dos
61
jogadores, inclusive da experiência possibilitada pelo uso da técnica. Marcas que acabam
aparecendo explícita ou implicitamente não apenas na imagem, mas também na conduta dos
avatares.
Existiria, segundo Foucault, um “poder-corpo”, que é aquele que se materializa no
corpo dos indivíduos. Ele surge no século XVII através dos “terríveis regimes disciplinares”
encontrados nas escolas, hospitais, prisões, exércitos, fábricas, oficinas, nas cidades, nos
edifícios, nas famílias. Um poder disciplinar de cunho econômico e político ao mesmo tempo,
cujo objetivo é tornar os homens úteis (através da maximização de sua força de trabalho) e
dóceis (sem capacidade de revolta, de insurreição contra o poder). Adestramento e regulação
que se reflete no investimento do próprio corpo pelo poder: “a ginástica, os exercícios, o
desenvolvimento muscular, a nudez, a exaltação do belo corpo... tudo isto conduz ao desejo
de seu próprio corpo através de um trabalho insistente, obstinado, meticuloso” (idem, p. 146).
Podemos remodelar nossos avatares até o ponto em que todas as nossas expectativas sejam
contempladas, ou até o limite dos aparatos técnicos. O avatar também pode ser visto como o
Outro, um objeto para satisfazer nosso desejo de controle e manipulação.
O rompimento dos limites desse corpo disciplinado para atender aos nossos desejos,
seja através de cirurgias plásticas, seja através da hibridização do homem com a tecnologia, é
que o nos faz pensar no que pode estar por vir. Em sua visão crítica, o filósofo francês Paul
Virilio (1996, p. 96) diz que está por um fio “a distinção entre o „de dentro‟ e o „de fora‟”, ou
seja, entre o real e o virtual. Não é preciso mais estar fisicamente próximo do outro para
estabelecer um diálogo ou um relacionamento. Podemos estar “aqui” e “lá” ao mesmo tempo.
Também podemos, no SL, manipular nossos corpos virtuais, os avatares, como se fossem nós
mesmos. “Se a partir de então pode-se não somente agir, mas ainda „teleagir‟ – ver, ouvir,
falar, tocar ou ainda sentir à distância – surge a possibilidade inaudita de um brusco
desdobramento da personalidade do sujeito que não saberá deixar intacta por muito tempo „a
imagem do corpo‟”. Como pontua Virilio, a eliminação da “evidência concreta” é iminente,
embora não saibamos ainda aonde isso tudo poderá nos levar.
Ao compreendermos que o indivíduo, tal como é visto por esses teóricos, passa a
assumir diferentes posições de sujeito, podemos inferir que a identidade é um processo em
andamento, um devir. E que se desenvolve a partir do olhar do Outro. A compreensão desse
processo nos ajuda a pensar, por exemplo, sobre a necessidade que os jogadores do SL têm de
encarnar diferentes personagens, de modificar seus avatares continuamente – desde alterações
radicais, como a adoção de novos shapes e skins, até a simples e cotidiana troca de roupas e
acessórios. “A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós
como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é „preenchida‟ a partir do nosso exterior,
pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros”, comenta Hall (idem, p.
39) sobre as contribuições de Freud e Lacan para a formação de uma teoria do
“descentramento do sujeito” cartesiano.
Coube à Donna Haraway (1994, p. 243-244) desenhar o perfil mais contundente desse
novo sujeito pós-moderno que seria, em sua essência, um ciborgue. Em um mundo cada vez
mais dominado pelas TICs, a autora enxerga o ciborgue como “um organismo cibernético
híbrido; é máquina e organismo, uma criatura ligada não só à realidade social como à ficção”.
Como os ciborgues da ficção científica, esse novo eu pode ser montado e remontado, posto
que transcende os “dualismos inquietantes” (eu/outro, corpo/mente, cultura/natureza,
macho/fêmea, civilizado/primitivo, realidade/aparência, ativo/passivo, certo/errado,
verdade/ilusão, Deus/homem). Haraway sustenta que esses dualismos sempre serviram às
práticas de dominação não apenas da mulher, mas também das pessoas de cor, da natureza,
dos trabalhadores, dos animais, ou seja, de todos aqueles que são “os outros”. As TICs,
segundo ela, desafiam esses dualismos. As fronteiras se apagam, a inocência se dissipa. Os
corpos se transformam em “mapas de poder e identidade” (idem, p. 281), artefatos que vão
sendo construídos e desconstruídos a partir de realidades vividas.
A imagem do ciborgue, como propõe Haraway, sugere um caminho alternativo aos
dualismos. Três momentos, ou “rupturas cruciais”, apontariam para a caduquice de alguns
desses dualismos na cultura ocidental: 1. Abriu-se uma brecha na fronteira entre o humano e o
animal – os movimentos pelos direitos dos animais seriam “sinais evidentes” do
reconhecimento da ligação entre natureza e cultura; 2. A tecnologia tornou ambígua a
diferença entre natural e artificial, corpo e mente, dando lugar a novas concepções de máquina
e organismo; e 3. Não é mais possível precisar onde acaba o físico e começa o não físico – a
64
Ora, Ferreira (2004), numa crítica aos discursos centrados numa suposta condição pós-
humana, observa que essa ambiguidade é um dos aspectos fundamentais dos horizontes
históricos que a tecnologia nos apresenta – uma ambiguidade que foge ao controle dessa
mesma tecnologia. As possibilidades se aapresentam na medida em que nos abrimos para o
mundo e para os artefatos técnicos. Não estamos dizendo com isso que não existem conflitos
nessa relação. O que Ferreira argumenta, comentando Michel Serres, e indo na direção
contrária àqueles que vêm no computador “uma jaula de ferro da simulação”, é que ele pode
nos ajudar a superar “a determinação fechada dos aparatos mecânicos” (idem, p. 39). Isso nos
indicaria, entre outras coisas, que a relação entre a identidade real e a virtual não é de
oposição, mas de complementaridade, mesmo havendo alguns pontos de tensão. A ideia de
pós-humanidade, de experiências tecnológicas pós-corpóreas, é profundamente metafísica,
querendo não sê-lo. Entende o ser humano como uma essência biológica, natural e não
técnica. Mas basta lembrarmos que a técnica faz parte da história da humanidade desde os
primórdios, através do fogo, de armas e instrumentos de pedra, para que essa ideia se dissipe.
Assim como acontece na vida real, o corpo virtual é parte da afirmação identitária dos
indivíduos. Uma identidade que é construída a partir de elementos fornecidos pela história,
geografia, biologia, pela memória coletiva e por fantasias pessoais. Como bem assinalou
Castells, muitos estudos têm distorcido a imagem que se tem da prática social da internet.
Para este autor, a sociabilidade on-line é uma extensão da vida real, mesmo que envolva a
representação de papéis, embora não se saiba ainda – e isso ele só vai sugerir em outro
trabalho22 – quais as consequências culturais dessa nova forma de sociabilidade. Vejamos:
22
Ver CASTELLS, Manuel (1999a), p. 443.
23
Entrevista concedida à revista Sociologia Ciência & Vida. Ver FIGUEIRA, Mara (2007). Second Life: febre
na rede. Sociologia Ciência & Vida. São Paulo: Editora Escala, Ano I Nº 9, p.16-25.
66
“Em nosso mundo fluido, comprometer-se com uma única identidade para toda
a vida, ou até menos do que a vida toda, mas por um longo tempo à frente, é
um negócio arriscado. As identidades são para usar e exibir, não para
armazenar e manter. (...) é porque somos incessantemente forçados a torcer e
moldar as nossas identidades, sem ser permitido que nos fixemos a uma delas,
mesmo querendo, que instrumentos eletrônicos para fazer exatamente isso nos
são acessíveis e tendem a ser entusiasticamente adotados por milhões.”
(BAUMAN, 2005, p. 96-97).
Bauman (2005, p. 37) entende que o mundo em que vivemos já é fragmentado e que
nossas identidades em movimento tendem a ser cada vez mais “fatiadas”, porque as velhas
identidades, rígidas e inegociáveis, não funcionam mais. Sobretudo na internet. A identidade é
algo a ser “inventado”, frequentemente construída e reconstruída. Com as referências
concretas cada vez mais diluídas, é na rede mundial de computadores que o indivíduo busca
um pertencimento. Porém, os laços eletronicamente mediados são frágeis, o “sentimento do
nós” é apenas ilusório, muito embora isso não nos impeça de continuarmos buscando
24
“Caçar de manhã, pescar à tarde, tocar bois à tarde, criticar depois do jantar, conforme eu tenha vontade, sem
jamais me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico”, apud SILVERSTONE, 2005, p. 258.
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comunidades “guarda-roupas”, aquelas que só existem enquanto dura o espetáculo e que são
“prontamente desfeitas quando os espectadores apanham seus casacos nos cabides”. Para o
autor, as comunidades virtuais não substituem o encontro cara a cara, tampouco dão
substância à identidade pessoal. No ambiente da internet, o conforto estaria na abertura de
poder deletar relações indesejáveis ou simplesmente desconectar quando não quisermos mais
ser contatados.
Nesse sentido, o caráter transitório e instável das identidades que circulam nas redes
teleinformáticas, num constante vaivem, pode muito bem ser associado às “tribos urbanas”
descritas por Maffesoli (2006, p. 31). A emergência desses microgrupos marca um processo
de “desindividualização” que estaria ocorrendo no seio da sociedade de massas desde o fim
do século XX, calcado na “valorização do papel que cada pessoa (persona) é chamada a
representar dentro dela (de cada tribo)”. O individualismo, assim como o narcisismo, sempre
esteve muito associado à noção de modernidade. Para Maffesoli, essa categoria estaria
“saturada”, uma vez que a pessoa só existe na relação com o outro, e ao outro está ligado quer
pela cultura, pela comunicação, pelo lazer ou pela moda. O sujeito pós-moderno quer
enxergar no outro um reflexo de si próprio.
Poderíamos começar a pensar em estruturas tribais urbanas a partir de grupos como os
hippies, nos anos 1960, os punks, no final da década de 1970 ou os darks e yuppies nos anos
80. “Rappers, looks surfe ou skate, comunidades virtuais, reuniões esportivas e associações,
não se terminaria de fazer a lista de todas as tribos que se formam e se desfazem em função de
modas e dos momentos”, pontua Lipovetsky (2007, p. 215). Agora temos os geeks, os ávidos
por novidades tecnológicas. No SL temos os nekos, os jogadores de RPG etc. São todas
formas de agregação social calcadas na aparência e em determinados modos de vida, baseadas
na empatia, na identificação. O desenvolvimento tecnológico, diz Maffesoli (2006, p. 225), só
aguça o sentimento de pertença. “A única diferença notável característica da galáxia
eletrônica é, certamente, a temporalidade própria dessas tribos”. O tribalismo pode, sim, ser
efêmero, esgotando-se em cada ação.
Segundo Maffesoli, a crítica que usualmente se faz ao sujeito que passa horas e horas
na frente da tela de um computador, solitário (os jogadores do SL, por exemplo), não tem
consistência, pois “ser solitário não significa viver isolado” (idem, ibidem). Conforme as
situações se apresentam, esse sujeito pode se ligar a tal ou tal grupo, desempenhar essa ou
aquela atividade. É a partir dessa necessidade de pertencimento que as pessoas participam
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cada vez mais de redes sociais, como o Facebook25, do Twitter e de mundos virtuais como o
SL. São ambientes de sociabilidade que impulsionam e dão sentido a uma existência cada dia
mais on-line, cada dia mais dependente dos artefatos técnicos.
No fim das contas, a ideia de socialidade trazida por Maffesoli nos remete novamente
à tese de descentramento do sujeito, que passa a ocupar diversas posições (papéis) de acordo
com o ambiente ou a situação. “Mudando seu figurino, ela (a pessoa) vai, de acordo com seus
gostos (sexuais, culturais, religiosos, amicais) assumir o seu lugar, a cada dia, nas diversas
peças do theatrum mundi”, diz o autor (2006, p. 133), numa citação que pode muito bem ser
aplicada à realidade dos mundos virtuais. Para Maffesoli, “a teatralidade instaura e reafirma a
comunidade”, num jogo em que cada indivíduo é, ao mesmo tempo, ator e espectador.
Performance. Ideia que já estava presente em Goffman (2007, p. 9), para quem “o papel que
um indivíduo desempenha é talhado de acordo com os papéis desempenhados pelos outros
presentes e, ainda, esses outros também constituem a platéia”. Citando Robert Ezra Park,
Goffman argumenta que a palavra “pessoa”, em sua origem, quer dizer “máscara”.
Mesmo considerando a pós-modernidade uma noção “provisória”, Maffesoli (1996, p.
18), assim como Hall, propõe uma “lógica da identificação” em substituição à lógica da
identidade que teria prevalecido durante toda a modernidade. “Enquanto esta última
repousava sobre a existência de indivíduos autônomos e senhores de suas ações, a lógica da
identificação põe em cena „pessoas‟ de máscaras variáveis”, máscaras essas que prestam
tributo ao(s) sistema(s) emblemático(s) com que as pessoas se identificam. E os jogos, diz
Maffesoli (idem, p. 125), são co-estruturais nesse processo – jogos de simulação, eletrônicos,
jogos de bolsas, jogos políticos, jogos da moda. Jogos de aparências – “a profundidade da
superfície” está na ordem do dia. Vamos, então, situar o que é o jogo, discutir as
particularidades do SL e que experiências ele pode nos proporcionar.
25
Em fevereiro de 2010 o Facebook atingiu a marca de 400 milhões de usuários. Ver MARCHIORI, William.
“Facebook atinge 400 milhões de usuários ativos e muda página inicial”. Disponível em
http://idgnow.uol.com.br/internet/2010/02/05/facebook-atinge-400-milhoes-de-usuarios-ativos-e-muda-pagina-
inicial/. Acesso em 14 fev. 2010.
69
26
Na minha pesquisa, alguns entrevistados trouxeram uma ideia interessante: a de que o SL seria um “MSN de
luxo”. O MSN é o serviço de mensagens instantâneas da Microsoft, bastante popular atualmente, onde a troca de
mensagens pode ser feita por texto ou voz. É possível, ainda, fazer chamadas de vídeo, desde que se tenha uma
webcam em cada ponta.
70
que é o avatar. Não há nada sendo disputado, mas há muita coisa em jogo. Quem disse que
um jogo precisa necessariamente ser algo fechado em um quadrado, regra-objetivo-disputa-
eficiência? Não seria essa uma visão muito cartesiana? Podemos tentar enxergá-lo como um
círculo aberto. Meu intuito aqui é desenvolver um raciocínio que enquadre o SL em um
conceito mais amplo, que nos fale sobre o aspecto lúdico da vida.
Convivemos com o elemento lúdico desde pequenos, através de brincadeiras livres
com bonecas, carrinhos etc. Em todas essas situações, fingimos ser outra pessoa,
representamos um papel, vestimos máscaras provisórias que nos falam de um outro tempo, de
um outro espaço e, em alguns casos, de um outro corpo.Tomando emprestado um termo
utilizado por Huizinga (2007) podemos dizer que nascemos todos “homo ludens”. Na medida
em que crescemos, as brincadeiras costumam ficar mais “sérias”, ou seja, ganham regras. A
adesão ao jogo pressupõe uma aceitação voluntária dessas regras.
Como bem observa Huizinga, jogos são tão antigos quanto o homem e como tal se
constituem um elemento essencial de sua cultura – são um fenômeno cultural. De alguma
maneira, sempre estiveram relacionados à busca da humanidade pelo conhecimento. Os
brâmanes, por exemplo, competiam com enigmas sobre as origens da existência, a ordem
cósmica, praticando a mais alta sabedoria – de onde veio a criação, para onde corre a água,
onde está o umbigo da terra etc. Em muitas outras culturas, como a grega e a escandinava,
encontramos enigmas que colocavam em jogo elementos como a honra, as posses ou a vida
dos participantes, estando ligados ainda às discussões filosóficas e teológicas.
Originalmente, os enigmas eram jogos sagrados e devido a isso estavam além de toda
distinção possível entre jogo, entendido como brincadeira, e seriedade. Constituíam-se “um
elemento ritualístico da mais alta importância, sem deixar de ser essencialmente um jogo”
(idem, p. 125). Com o passar o tempo, o enigma teria se bifurcado em dois sentidos diferentes
– de um lado a filosofia mística, do outro o simples divertimento, chegando até nós com as
adivinhações de salão e evoluindo para os formatos de jogos que conhecemos hoje.
É importante ter em mente que a própria noção de jogo varia de acordo com o tempo e
com as diferentes línguas, e mesmo internamente em algumas delas, em que palavras
diferentes expressavam formas distintas de jogo. O grego possui expressões diferentes para as
formas lúdicas, como as brincadeiras infantis, e os chamados jogos sérios, que seriam as
competições e os concursos (ágon). Assim como o chinês, que tem seu correspondente ao
ágon (tcheng) para designar competições, mas também possui a palavra sai para competições
que visam a um prêmio. Uma terceira palavra, ainda no chinês (wan), significa estar ocupado,
ter prazer com alguma coisa, entreter-se, dizer piadas.
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Por outro lado, existe no latim uma palavra que cobre todas as formas de jogo: ludus.
“Ludus abrange os jogos infantis, a recreação, as competições, as representações litúrgicas e
teatrais e os jogos de azar”, observa Huizinga (idem, p. 41). Curiosamente, de acordo com o
autor, o termo não chegou às chamadas línguas românticas, sendo substituído por uma
derivação de jocus (gracejar, troçar) – jeu e jouer, no francês; gioco, giocare, no italiano;
juego, jugar, no espanhol; e jogo, jogar, no português. Já no inglês moderno, play significa
jogo, partida, divertimento, peça teatral ou interpretação de peça musical.
Em resumo, a noção de jogo não precisa necessariamente estar atrelada a uma
competição ou disputa por alguma coisa. Neste sentido, podemos, sim, considerar o SL um
jogo. E, como qualquer jogo, seja jogado solitariamente ou em grupo, o SL também encerra
um determinado sentido que vai além da ação, como defende Huizinga. Para esse autor, todo
jogo é intenso, exerce um fascínio tanto sobre quem joga quanto em quem assiste e no SL
somos atores e espectadores ao mesmo tempo. O jogo possuiria uma realidade autônoma e,
assim como as festas, traz o divertimento em sua essência. E não deixa de ter um caráter
sagrado, assim como até hoje acontece nos rituais religiosos de algumas sociedades, a
exemplo das competições entre os índios do Xingu. Nas três situações – jogo, festa e ritual –
nos tornamos pessoas diferentes e fazemos coisas diferentes, numa espécie de catarse.
A satisfação do jogo é sua própria realização e mesmo seu resultado talvez seja, em si,
indiferente. Mesmo quando jogamos ou competimos por alguma coisa, o “prêmio” tem um
significado simbólico ou material que extrapola as honrarias e o prestígio obtidos com a
vitória (Cf. HUIZINGA, 2007, p. 12, 57-58). Existe um deslocamento da vida cotidiana sob a
égide da imaginação – é preciso “encarnar” um papel e a ele se manter fiel. Isso só é possível
porque o jogo é uma atividade temporária que se desenvolve dentro de certos limites de tempo
e de espaço, material ou imaginário. Joga-se o mundo organizado, com regras claras,
razoavelmente racional em seus resultados, pois
“Todo jogo tem suas regras. São estas que determinam aquilo que „vale‟ dentro
do mundo temporário por ele circunscrito. As regras de todos os jogos são
absolutas e não permitem discussão (...). A desobediência às regras implica a
derrocada do mundo do jogo. O jogo acaba: o apito do árbitro quebra o feitiço
e a vida „real‟ recomeça” (HUIZINGA, 2007, p. 14)
Enquanto está sendo jogado, o jogo é ritmo, harmonia, movimento. É dessa forma que,
mesmo sendo orientado por regras estritas, existe um grau de tensão provocado pela incerteza.
Nenhum jogo é fechado – sempre existe o “acaso”, a “improvisação” que vem da interrelação
com outros jogadores e com o próprio jogo. “Jogar significa interjogar”, já dizia McLuhan
72
(1990, p. 270). Para esse autor, o jogo é uma forma de liberar tensões, “uma espécie de
paraíso artificial, como a Disneylândia”, algo que completa e dá sentido à vida cotidiana.
Já para Gadamer (1985, p. 38), uma das características essenciais do jogo é o ir e vir, a
repetição de um movimento – “o jogo de luz”, “o jogar das ondas”. Mas o alvo do movimento
não é atingir nem um extremo nem outro, ou seja, não há uma finalidade última a não ser o
automovimento, apesar de podermos jogar por dinheiro ou profissionalmente. “O jogo
aparece então como um auto-mover-se que por seu movimento não pretende fins nem
objetivos, mas o movimento como movimento, que quer dizer um fenômeno de redundância,
de auto-representação do estar-vivo”.
Esse jogar, diz Gadamer (idem, p. 40), exige sempre alguém que jogue junto, que
participe desse movimento que se repete – o espectador. Como exemplo, ele cita o
comportamento do público numa partida de tênis. “É um verdadeiro exercício de pescoço.
Ninguém pode deixar de jogar junto”. O espectador seria, portanto, mais que um mero
observador. Ele é alguém que também participa do jogo, uma parte dele. Mesmo quando
jogamos sozinhos (Solitaire, por exemplo), é como se houvesse alguém nos observando.
Em essência, o que Gadamer (2005, p. 160) quer dizer é que o sujeito do jogo não é o
jogador nem a plateia, e sim o próprio jogo. É o jogo que governa o jogador, e não o
contrário. “Todo jogar é um ser-jogado. O atrativo do jogo, a fascinação que exerce, reside
justamente no fato de que o jogo se assenhora do jogador. (...) É o jogo que mantém o jogador
a caminho, que o enreda e que o mantém nele”. Um dos pontos de fascínio do jogo é
justamente a repetição que o torna duradouro. Uma repetição que não está imune ao acaso,
pois em todo jogo há um quê de elasticidade e indeterminação.
O jogo é, também, um ambiente de aprendizado. Da mesma forma que o jogador
interfere na realidade do jogo, o jogo igualmente interfere na realidade do jogador, que passa
a repensar suas próprias estratégias de vida. Assim como a arte, portanto, o jogo seria uma via
de mão dupla. Dizemos arte não no sentido das “belas artes”, mas no sentido de
“conhecimento” defendido por Gadamer (1985; 2005). Diz o autor que a experiência do belo
73
é a experiência do jogo ele mesmo, e não se pode pensar na cultura humana sem um elemento
de jogo, um elemento de ludicidade.
Gadamer (2005, p. 155) vê o jogo sob uma persctiva ontológica e como uma função
elementar da vida, uma das bases antropológicas para compreendermos a experiência da arte
que é, antes de tudo, identificação e reconhecimento – experiência que não é objetiva nem
subjetiva. “O jogar só cumpre a finalidade que lhe é própria quando aquele que joga entra no
jogo. (...) O modo de ser do jogo não permite que quem joga se comporte em relação ao jogo
como se fosse um objeto”. Ninguém sai de um museu, após contemplar inúmeras obras de
arte, “com o mesmo sentimento com que se entrou” (1985, p. 43). Da mesma forma, podemos
dizer que ninguém sai ileso de um jogo. É como se o mundo ficasse mais leve, mais pleno de
significados.
Discorrendo sobre o jogo como um ambiente de aprendizado, Ferreira et al (2009)
argumentam que a hermenêutica gadameriana se apresenta como um “terreno alternativo” ao
pensamento cartesiano ao propor um conhecimento baseado na vivência, na experiência de
vida.
Maffesoli (1996, p. 12), por sua vez, nos fala da arte como um fato existencial. A
experiência estética, ou ainda uma “ética da estética” teria “contaminado” todo o conjunto da
existência humana, perpassando o político, a vida na empresa, a comunicação, a publicidade,
o consumo, a vida cotidiana. “A partir de então, a arte não poderia ser reduzida unicamente à
produção artística, entendida aqui como a dos artistas, mas torna-se um fato existencial”. Esse
presenteísmo, próprio dos tempos atuais, calcado cada vez mais no “jogo da aparência” e no
prazer dos sentidos, é o que, de acordo com Maffesoli, apela “a um conhecimento mais
aberto”, ao que o autor denomina de “razão sensível”.
No jogo, portanto, o que menos importa é o sentido de verdade. O que interessa é o
que se vê, não o que se crê, diria Barthes (1993, p. 11) a respeito do catch (luta livre). Pouco
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importa perder ou ganhar – o que importa é a performance e o sentido que ela encerra, isto é,
o jogo em si. “Ao público pouco importa em absoluto que o combate seja falseado ou não: e
ele tem toda razão”. Como no teatro antigo, sabemos que todo jogo supõe um disfarce, uma
máscara, uma simulação – no catch, o problema da verdade deixaria de ser um problema. Na
luta livre, o espectador espera que o lutador execute exatamente as ações previstas no script
do seu personagem. “O corpo do jogador é a primeira chave do combate” (idem, p. 13). O
foco é o jogador, não o ringue ou o cenário.
Voltemos para Gadamer (2005, p. 169), que nos fala em mimesis como um conceito
que evidenciaria o sentido ontológico da representação. Uma obra de arte representa
exatamente o que ela quer dizer – ela não diz algo para que pensemos outra coisa. “O sentido
do conhecimento da mimesis é reconhecimento”, isto é, o reconhecimento de algo que já
conhecíamos e o autorreconhecimento. Imitamos algo previamente conhecido, mas também
representamos algo no intuito de torná-lo presente sensorialmente, de trazê-lo para a nossa
realidade.
Esse argumento tanto pode ser aplicado ao “jogo da arte” quanto ao “jogo da vida”, ou
melhor, ao jogo da segunda vida. No SL, não se trata apenas de reproduzir na internet o
mundo que conhecemos, pessoas, corpos, identidades. Mas de criar sentidos novos, abrir-se a
novas experiências, sem estarmos presos ao sentido de realidade ou de verdade. Não há
competição nem disputa. A simulação justifica-se por ela mesma e pela janela de
oportunidade que abre para a realização de coisas que, de outro modo, não seriam possíveis.
Por isso, e por outros argumentos previamente apresentados, sustentamos que o SL é, de fato,
um jogo. Um jogo inovador, diferente, com uma rede social dentro, mas um jogo.
Illshenar, entre outros), nos quais os jogadores criam personagens com habilidades
específicas e vivem aventuras, podendo colecionar objetos, comprar casas, e interagir com
outros usuários em tempo real. Posteriormente, a expressão “mundo virtual” se tornaria
universal para designar os Massive Multiplayer On-Line Role Play Games (MMORPGs), que
por sua vez é uma atualização para a expressão Multi-User Dungeon ou Multi-User Domain
(MUD). Eis a definição do autor para a expressão mundo virtual:
A partir dessa definição, podemos dizer que a expressão mundo virtual é aplicável
tanto a jogos de RPG propriamente ditos (Ragnarök, Everquest, Counter-Strike, World of
Warcraft – WoW) quanto simuladores da sociedade em que vivemos (Habbo Hotel, The Sims,
SimCity, IMVU, Active Worlds, Moove Online, Second Life). Ambas as categorias podem,
genericamente, ser enquadradas no gênero jogos eletrônicos – uma indústria bilionária que já
fatura mais do que o cinema. Em 2008, vimos que as vendas de jogos eletrônicos alcançaram
a cifra de US$ 22 bilhões.
Mas o que são, afinal, os mundos virtuais? Ainda segundo Castronova (2003), “são
ambientes que permitem às pessoas incumbir-se de várias tarefas, caçar, se socializar,
explorar, produzir e consumir produtos conduzindo uma vida mais ou menos completa, rica e
detalhada”. Uma realidade alternativa que já consome mais tempo das pessoas do que hobbies
tradicionais. Na medida em que esse mercado se expande, cresce também a possibilidade das
pessoas viverem uma parcela significativa de suas vidas navegando no ciberespaço, jogando
games on-line.
A partir de sua experiência com o Norrath, a terra imaginária do jogo Everquest,
Castronova classifica um mundo virtual como um programa de computador com três
características definitivas. Em primeiro lugar, interatividade – existe em um computador,
mas pode ser acessado remotamente (por uma conexão de internet, por exemplo) e
simultaneamente por um grande número de usuários, com comandos em primeira pessoa que
afetam o desempenho de outros jogadores.
Em segundo lugar, Castronova diz que todo mundo virtual é físico – os jogadores
acessam o programa através de uma interface que simula um ambiente físico em primeira
76
pessoa na tela do computador; ambiente esse que é governado por leis naturais da Terra. Ou
seja, existe alguma materialidade nesse processo.
A terceira e última característica dos mundos virtuais, e bastante importante, é a
persistência – o programa continua rodando mesmo quando ninguém está usando e lembra a
localização de pessoas e coisas, bem como a posse de objetos, quando os jogadores voltam a
se conectar. Ou seja, o programa tem uma memória que permite que o usuário continue a
jogar exatamente do mesmo ponto em que parou.
Todas as características elencadas por Castronova são aplicáveis ao SL. A única
ressalva que eu faço é em relação ao ambiente físico do jogo que, apesar de simular o mundo
em que vivemos, não parece ser regulado pelas mesmas leis naturais. Exemplo disso é o poder
que o avatar tem de voar e de ir até o fundo do oceano, por exemplo, sem se afogar. Outros
MMORPGs também oferecem essas possibilidades desde que o personagem detenha algum
dom especial. No SL, esse “dom” é extensivo a todos os “mortais”. Outro detalhe é que,
mesmo que a hora SL27 informe que é meia-noite, o ambiente pode ser configurado pelo
usuário, a qualquer momento, para exibir a luminosidade do meio-dia, ou do pôr-do-sol.
As ferramentas de comunicação existentes nos mundos virtuais – bate-papo via
mensagens de texto ou voz – permitem ao jogador reproduzir na internet praticamente todas
as situações que podem surgir do contato com outras pessoas, ou seja, construir relações.
Krzywinka e Lowood (2006) afirmam que a interação entre jogadores constitui uma parte
significativa de jogar WoW, um universo também composto por vários continentes onde
vivem diversas raças com diferentes culturas. “Usuários podem concordar, discordar, trocar
insultos, jogar com rivalidades do mundo real e explorar diversos tipos de diferenças pessoais,
culturais ou nacionais. É o real dentro do virtual”, observam.
Para esses autores, ao se apresentar como um “mundo”, o WoW se coloca como algo
mais que um jogo, pois insere os jogadores num “vibrante e agitado mundo social e
igualmente comprometido com práticas culturalmente condicionadas”. O mesmo pode ser
dito em relação ao SL, que também se apresenta como um mundo social em que os usuários
constroem relações, podendo concordar, discordar, explorar diferenças pessoais, culturais ou
nacionais. A partir dessa analogia, podemos concluir que, se o WoW é um jogo, ou algo mais
que um jogo, o SL também o é.
Referindo-se aos mundos virtuais compartilhados, Lévy (1999, p. 105), nos traz o
conceito da comunicação todos-todos, característica da cibercultura. Esse tipo de
27
O horário do SL (Second Life Time – SLT) é o padrão para a região do Pacífico. São seis horas a menos em
relação ao horário de Brasília.
77
comunicação é o que deixa os participantes dos jogos eletrônicos on-line (e também de outros
ambientes tridimensionais, seja de trabalho ou aprendizagem, prefigurações urbanísticas,
simulações de combate etc) mais próximos uns dos outros. Uma pessoa modifica o conteúdo
compartilhado e os outros percebem imediatamente. “Como a posição e a imagem virtuais de
cada um também encontram-se gravadas na base de dados, cada vez que um dos parceiros se
move ou modifica a descrição de sua imagem, os outros percebem seu movimento”.
Lévy destaca, ainda, a construção coletiva que se desenvolve em cada universo virtual,
o que é feito através da agência dos avatares. O autor cita como exemplo de “construção
cooperativa de um mundo” os jogos de aventura, mas poderíamos perfeitamente adicionar o
SL. “Cada jogador contribui para construir o universo no qual participa sob o aspecto do
„personagem‟ que ele encarna”. No SL, o aspecto da construção, da criação de conteúdo, é um
dos que mais chamam atenção e teremos a oportunidade de saber um pouco mais sobre isso
alguns tópicos à frente.
Os sujeitos participam dos jogos construindo e sendo construídos por diversos tipos de
relações. Em qualquer jogo eletrônico, e assim também no SL, é importante dominar as
técnicas – saber manusear objetos (PC, joystick, teclado, mouse), desenvolver habilidades
(motoras, cognitivas, psíquicas) e conhecimentos (históricos, mitológicos, geográficos etc).
Qualquer jogo eletrônico, incluindo o SL, se insere em nosso cotidiano, na nossa vida.
Jogando WoW, Everquest ou SL somos envolvidos e convencidos pelas narrativas criadas ou
que nós criamos. Suamos, temos taquicardia e em alguns momentos não sabemos nem onde
estamos, se dentro da máquina ou fora dela. Como descreve Mendes,
“Somos convencidos, por meio das histórias, das narrativas e dos personagens
dos jogos, dos prazeres e dos riscos de saltar, pular, correr, nadas, atirar, morrer
e matar. (...) Envolvemo-nos tanto com as narrativas e os personagens que
chegamos a suar, a ter taquicardia, ou simplesmente ficamos contentes ou
frustrados. Nesse momento, será que sabemos onde estamos? Dentro da
máquina? Fora da máquina? Sabemos o que somos? „Eu‟ jogador? „Eu‟
personagem? „Eu‟ máquina? Por que, em alguns casos, demoramos a nos
localizar no tempo e no espaço? Por que sonhamos com situações dos jogos,
como fazemos com qualquer acontecimento cotidiano?” (MENDES, 2006, p.
16-17).
participantes. “Em jogos como os MUD, Ultima Online ou Quake Arena, a estética e o social
são partes integradas” (idem).
Além da estética e do social, o SL teria um plus, que é a possibilidade de encarnar, a
um só tempo e através do mesmo avatar, diversos personagens. O jogador pode ser um
executivo pela manhã e um dragão à tarde. Em nenhum outro mundo virtual existe essa
flexibilidade, o que nos remete à fluidez das novas identidades, seu caráter transitório e
instável como descrevem Hall, Bauman e Maffesoli. No WoW, por exemplo, um alquimista
jamais pode ser um alfaiate, ferreiro ou mineiro, a menos que crie outra conta. Existe uma
narrativa (rigidez) que precisa ser seguida. No SL, essa narrativa pode ser mudada a qualquer
momento (flexibilidade).
Também podemos contrargumentar com Pimenta e Varges, e outros que não
consideram o SL um jogo, lembrando que vivemos a era da Web 2.0, conceito que nos fala
sobre a interatividade da internet. Da mesma forma que a Web 1.0 foi construída por
empresas, a 2.0 vem sendo forjada pela agência, ou seja, pela ação dos indivíduos. Eles não
apenas consomem conteúdo, eles produzem. Nesse sentido, acredito que a célebre frase de
McLuhan – “o meio é a mensagem” – vem sendo atualizada pela Web 2.0. A tecnologia que
apoia a comunicação (oral, escrita, rádio ou televisão) interfere no conteúdo que é produzido,
desencadeando diferentes percepções e formas de compreensão. Na Web 2.0, vamos além
disso. Deixamos de ser meros espectadores, passivos diante da tela. Passamos a interagir
ativamente e a produzir significados na internet – inclusive nossas próprias regras e objetivos
que não precisam necessariamente serem rígidos ou pré-estabelecidos.
Ou seja, na Web 2.0 nós também elaboramos a mensagem, numa relação que envolve
saberes e poderes.Tem sido assim com as comunidades virtuais, os blogs, os microblogs, You
Tube, Wikipedia. Por que não com os jogos? Assim é o SL, um mundo imaginado e criado
por seus usuários. As regras do SL, por exemplo, não são impostas pelos desenvolvedores do
jogo, mas estabelecidas pelos próprios usuários de acordo com as necessidades de cada sítio
ou “ilha”. Falemos de algumas dessas regras, que normalmente são divulgadas através de
notecards (arquivos de texto que podem ser abertos e lidos no jogo) ou de placas afixadas em
locais de destaque nos sítios.
Numa de minhas incursões exploratórias, no intuito de compreender melhor o
funcionamento do mercado do sexo existente no SL, procurei por “motel” no sistema de
busca e fui parar no Breeding Motel. Ao pisar na “ilha” imediatamente recebi um notecard
contendo as regras do lugar, entre outras informações. O sítio não permite, por exemplo,
avatares de criança. Se forem identificados visitantes aparentando ser menores de 18 anos,
79
esses serão banidos. O proprietário se reserva, ainda, o direito de não permitir em suas terras a
presença de pessoas pedindo dinheiro ou jogadores do sistema de RPG Bloodlines, cujos
personagens são vampiros e lobisomens. Segue um trecho do arquivo:
“WHAT IS *NOT* ALLOWED (my apologies if this sounds bitchy, but try
running an Adult place lol, weeeeird stuff happens!):
no child avatars
no age play (the youngest you can roleplay is 18 – if you look too
young and/or your profile is full of age-play-type groups, you'll probably be
banned
no wearing diapers
Height *can* be an issue - IF you look like a child. There is a pink box
where you tp in to the area - if you are shorter than it, I ask that you please
adjust your height. I realize people in SL tend to be taller if you compared
them to RL perspectives, but I will not risk age play here. The ONLY
acception to being shorter is if you are a NON-HUMAN creature.
no drama/fighting/arguing (mute assholes!)
no violating SL TOS (Terms of Service) or Community Standards
NO BLOODLINES! I'm a retired vamp, I feel yer pain, but no biting
here please!
no stalking people
no asking people for money
no soliciting for your club/place/whatever (…)”28
28
Notecard recebido em 22 dez. de 2009.
80
Exposição
Indecência
Perturbação da paz”29
Ao final da placa havia um link para se obter mais detalhes sobre essas normas que são
bastante comuns no universo do SL. Todas são regras de conduta criadas pelos donos das
ilhas e não previamente estabelecidas pela Linden Lab. Alguns podem argumentar: são apenas
regras de conduta, e não de jogabilidade. Entretanto, se essas não forem observadas, a
jogabilidade fica comprometida. O usuário que pratica assédio em um sítio que não tolera
esse tipo de comportamento, por exemplo, será banido, não podendo mais retornar.
Sobre a ausência de objetivos pré-definidos, outra crítica feita por Pimenta e Varges,
podemos dizer, seguindo os princípios da hermenêutica, que “a vida é aberta com relação a
„objetivos‟” (FERREIRA et al, 2009). No SL não existe uma vitória a ser conquistada, mas
uma vida a ser vivida on-line, de forma que os objetivos, como já dissemos, não precisam
necessariamente ser pré-estabelecidos. Podemos encarnar diferentes personagens ou sermos
nós mesmos, podemos brincar de boneca – e ao manipular essa boneca ou boneco podemos
escolher passear, namorar, trabalhar, jogar RPG etc. São vários os caminhos possíveis, num
jogo que tem na simulação um ambiente lúdico e aberto a experimentações.
29
Visita feita em 12 de jun. de 2009.
81
usuários é em volume de acessos 30. De uma maneira geral, pode-se dizer que a cada vez que
um usuário “entra” no SL cerca de 60 mil pessoas, em média, estão conectadas.
A maior comunidade de usuários do SL está nos Estados Unidos, com quase dois
milhões (26,90%) de residentes ativos, ou seja, aqueles que realizam pelo menos um acesso
por semana. Em seguida vêm Alemanha, Reino Unido, Japão e França. O Brasil aparece em
sexto lugar, com pouco mais de 24 mil usuários ativos, embora se estime que o país abrigue
cerca de 10% do total de usuários da plataforma, ou seja, 1,3 milhão.
30
Em um mês, de 8 de dezembro de 2009 a 8 de janeiro de 2010, o sistema registrou 988.871 acessos.
Disponível em: <http://secondlife.com/statistics/economy-data.php>. Acesso em: 18 jan. 2010.
82
31
O SL foi tema de reportagem no Fantástico, da Rede Globo, em 11 de fevereiro de 2007. Disponível em:
<http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL696503-15605,00.html>. Acesso em 18 jan. 2010.
83
Em 2007, o Brasil chegou a ocupar a segunda posição em contas ativas do SL, atrás apenas
dos Estados Unidos32. Em meados de 2009, o portal iG decidiu se retirar do negócio e a
Mainland Brasil quebrou. Isso não impediu, entretanto, que as ilhas brasileiras continuassem
funcionando, só que agora a compra e o aluguel são negociados diretamente com a Linden
Lab.
Primeiramente, para fazer parte do SL, o usuário precisa ser maior de 18 anos. A
verificação de idade faz parte dos termos de prestação do serviço (Terms of Service),
divulgados na página oficial do jogo (www.secondlife.com). Quem quer ter acesso às regiões
adultas (que podem conter sexo explícito ou cenas de violência) precisa fornecer o número de
um documento (RG ou passaporte, entre outros), que é checado pela Linden Lab. Cumprida
essa exigência, o primeiro passo é preencher um cadastro, escolher um nome de sua
preferência (entre 2 e 31 caracteres) e um sobrenome de uma lista que aparece na tela. Em
seguida, escolhe-se um avatar básico, entre seis modelos masculinos e seis femininos, que
depois poderão ser customizados. “Once in Second Life, you can change your appearance, or
shop for a whole new look”, diz o site oficial. Esses looks iniciais, como pode ser observado
na figura abaixo, contemplam tipos brancos, morenos, ruivos e negros.
Existem dois tipos de conta no SL: uma gratuita e outra premium, cuja mensalidade
custa US$ 9.95, ou US$ 72 ao ano, em valores de dezembro de 2009. O usuário do tipo
premium goza de privilégios. Recebe uma espécie de mesada e pode comprar e/ou alugar
32
IDG Now! – Brasil alcança 2º lugar no ranking de residentes do Second Life. Disponível em:
<http://idgnow.uol.com.br/internet/2007/09/10/idgnoticia.2007-09-10.6407810986>. Acesso em 18 jan. 2010.
84
terrenos sem precisar pagar algumas taxas, entre outros diferenciais. Em qualquer dos casos,
pode-se comprar linden dólares através de cartão de crédito para gastar no mundo virtual.
Cada US$ 2.50 (quantia mínima para compra da moeda no site oficial) equivalem a L$ 572.
Porém, assim como na vida real, há usuários que vendem lindens numa espécie de “câmbio
negro”, ou seja, compram no site oficial e repassam a outros usuários do jogo. A cotação,
nesses casos, varia bastante, geralmente de acordo com a quantidade de lindens que se deseja
comprar. GutoOtto, um de meus entrevistados, vende L$ 135 por R$ 1 se a pessoa gastar até
R$ 100. Acima desse valor em reais, a cotação pode chegar a L$ 145 por R$ 1.
O próximo passo após criar a conta é baixar o client e começar a jogar. O programa
tem cerca de 20 megabytes (MB) e roda tanto no Windows quanto no Mac ou no Linux. Para
executá-lo é necessário possuir um computador potente, equipado com uma boa placa de
aceleração gráfica, conectado à internet banda larga (não funciona com conexão discada) 33. A
tela de boas-vindas apresenta campos para inserção do nome, sobrenome e senha, e sempre
exibe a imagem de uma ilha graficamente atraente. Traz, ainda, o status do grid, que mostra a
hora do SL (seis horas a menos em relação ao horário de Brasília), o número de usuários que
se conectaram nos últimos 60 dias e quantos estão conectados naquele momento. No caso da
Figura 3, observa-se que 68,9 mil jogadores estavam conectados.
33
Configuração mínima: conexão à internet cabo ou DSL; sistema operacional XP ou Vista; processador 800
MHz Pentium III ou Athlon; memória de 512 MB ou superior; resolução de tela de 1024x768 pixels; placa
gráfica NVIDIA GeForce 600 ou ATI Radeon 8500, 9250, 9500 ou Intel 945. Disponível em:
http://secondlife.com/support/system-requirements/. Acesso em 1 mar. 2010.
85
do que essas da Figura 2. Como ainda não havia a Mainland Brasil, ao fazer o login caí direto
numa “maternidade” gringa (Welcome Island). É que, no primeiro acesso, os novatos são
direcionados para uma ilha de orientação, onde aprendem a andar, a voar, a se comunicar (por
texto ou voz), a se vestir e editar a aparência, a se teletransportar de um lugar a outro, a
manipular o inventário etc. As instruções são dadas através de tutoriais gráficos distribuídos
por diversos ambientes da ilha, com todo o passo-a-passo. Na última etapa, são oferecidas
algumas opções de teletransporte para que o usuário possa explorar lojas, lugares
interessantes ou encontrar amigos.
Meu “nascimento” nessa segunda vida só não foi mais emocionante porque o
computador não ajudava. Os movimentos eram lentos, a “boneca” demorava a responder aos
comandos que eu dava no mouse e no teclado. As imagens dos cenários também não
carregavam totalmente. Percebi que ali eu tinha dois problemas: 1) a conexão à internet, de
300 kbps, não era lá essas coisas; e 2) meu PC não tinha uma placa de aceleração gráfica. Em
poucos dias corri a uma loja de informática e providenciei a tal placa, que na época rodava
bem com 128 MB (atualmente, utilizo uma de 512 MB).
Minha experiência no jogo começou, então, a melhorar. Mas eu não sabia aonde ir.
Busquei em sites e blogs dicas de como me movimentar no jogo, conversava com outros
usuários e tentava melhorar a aparência do meu avatar, através do comando de edição.
Naquele momento, voar era a experiência mais interessante. Dava uma sensação de liberdade,
de poder fazer tudo aquilo que não era possível fazer na primeira vida. De início, confesso
que senti falta da ação e da aventura que eu costumava ter em outros jogos de computador,
como Quake e Duke Nukem. Só “caiu a ficha” quando eu percebi que aquele era um jogo
diferente. Ao invés de matar monstros, eu podia moldar a minha boneca do que jeito que eu
quisesse, trocar a roupa dela, mudar o cabelo, o tom da pele. E ainda conversar com outras
pessoas, ter contato com culturas diferentes.
No mês seguinte, quando surgiu a Mainland Brasil (abril de 2007), ficou mais fácil me
deslocar dentro do jogo. Acho que a primeira ilha que visitei, depois da maternidade brasileira
(uma ilha de ajuda), foi a SP Jardins. Era uma praça e algumas poucas ruas, e no centro da
praça uma agência do Unibanco, na frente da qual os jogadores se concentravam em um
animado bate-papo. Depois comecei a frequentar a Boulevard Brasil, um grande shopping
com lojas e uma discoteca com camping, situação em que proprietários de “ilhas” pagam para
o jogador permanecer algum tempo em determinados locais. O camping é uma das formas de
gerar “tráfego”, indicador que mede a popularidade dos sítios. Ali, na Boulevard Brasil,
comecei a ganhar meus primeiros lindens e pude comprar umas roupinhas novas (sempre tive
86
muita resistência para comprar o dinheiro do jogo com cartão de crédito). Passava as noites
dançando e batendo papo com outros usuários que apareciam no dancing.
Em setembro de 2007 eu ainda estava assim como na Figura 4, tentando editar minha
aparência. A dúvida era se eu tentava aproximar a imagem de Micheline Beerbaum à minha
própria, ou se fazia um avatar completamente diferente. Resolvi tentar adotar um “meio
termo”. Procurei uma skin morena, cabelos castanhos... Só que ela era magra, eu não!
Seguindo meu estilo na vida real, vesti a bonequinha com jeans, tênis e camiseta. Mas havia
uma infinidade de botões para mexer. Era possível editar o corpo, a cabeça, os olhos, as
orelhas, o nariz, a boca, o queixo, o tórax, as pernas. E cada um desses itens tinha uma série
de subitens com controles deslizantes. No caso do nariz, por exemplo, eu poderia mexer no
tamanho, na largura, na divisão das narinas, na forma do septo, no ângulo. Confesso que
fiquei meio perdida. Se o usuário não tiver cuidado, ou certa habilidade com o mouse, pode
chegar a deformar o avatar.
Numa outra aba, essa janela de comunicação mostra os grupos a que o usuário
pertence, até um limite de 25. Só é possível ativar um grupo de cada vez. Enquanto ativo, a
identificação do grupo figura acima do nome do avatar, como uma espécie de etiqueta. O
residente que adere a um grupo passa a receber comunicados enviados exclusivamente aos
membros, e esses podem falar entre si utilizando um chat privativo. Em três anos de jogo,
entrei e saí de vários grupos, até porque quanto mais grupos, mais mensagens. E haja tempo e
paciência para ler todas! O grupo Bonita * Blog, por exemplo, costuma enviar várias
mensagens por dia com dicas de lugares que vendem roupas, sapatos e acessórios para os
avatares ficarem mais “bonitos”.
Já a conversa pode ser local (pública para todos os usuários que estão num raio de até
25 metros) ou por mensagem instantânea (MI), esta sim privativa. A MI pode ser enviada
mesmo que o destinatário esteja off-line e não é preciso que ele esteja na lista dos amigos –
um jogador pode localizar outro na busca e enviar uma MI. Ou ainda realizar esse contato
com alguém que esteja passando por perto, bastando para isso clicar no outro avatar com o
botão direito e escolher “Enviar MI”.
A comunicação por voz, por sua vez, está disponível desde 2007 para usuários que
possuem microfone e autofalantes. Para falar, basta apertar um botão existente no painel de
controle da plataforma. A fala pode ser transmitida durante o tempo em que o botão
permanecer pressionado, ao estilo do rádio, ou um cadeado pode ser acionado para que a fala
seja constante. A plataforma admite várias pessoas falando ao mesmo tempo em cada
ambiente. Há, ainda, as opções multimídia – para tocar a música ambiente e/ou exibir vídeos
(para rodá-los é necessário que se tenha o programa Quick Time, da Apple, instalado na
máquina).
Tudo que o usuário for acumulando ao longo do jogo, como roupas, objetos,
animações, landmarks34 e notecards, fica armazenado no inventário. Digitando o nome de
uma roupa ou parte dele, é possível encontrar o item desejado e utilizá-lo. Uma roupa, por
exemplo, pode ser vestida; um objeto, como uma bolsa, pode ser anexado ao corpo do avatar.
Abaixo a figura do meu inventário, que em dezembro de 2009 tinha cerca de 6.000 itens.
34
Endereço de um local (ilha, terreno, loja etc). Quando clicada, a landmark leva ao local a que está associada.
89
A partir da minha experiência no jogo, percebi que quanto maior o inventário, mais
demora até que seja totalmente carregado. Alguns usuários mais experientes aconselham
tentar organizá-lo para facilitar a localização dos itens. Fazer limpezas periódicas também
deixa o inventário mais leve, para que seja carregado mais rapidamente. Eventualmente, jogo
na lixeira muito material antigo (roupas e calçados, principalmente) que, tenho certeza, não
usarei mais. São poucos os objetos com todas as permissões (cópia, transferência e
modificação), então é mais prático jogar fora e adquirir novos do que do que tentar doar. A
própria dinâmica do jogo leva o residente a buscar sempre novidades, a comprar sempre itens
novos para compor seu visual. E é isso que movimenta a economia do SL – a roda-viva do
consumo, como veremos a seguir.
Um dos aspectos que mais chamou minha atenção no SL foi sua economia pujante,
alimentada por um estímulo sempre constante e explícito ao consumo – algo que desde o
início me pareceu bastante real, já que cotidianamente somos estimulados a consumir no
mundo físico. Como na sociedade de hiperconsumo descrita por Lipovetsky, no SL também
vivemos em busca do prazer, de satisfações emocionais imediatas. Lá, como na vida off-line,
os jogadores buscam se capitalizar para poder consumir e para tanto têm a sua disposição todo
tipo de lojas especializadas, geralmente localizadas em shopping centers – lojas femininas,
90
[2009/11/28 16:36] silvanaf : Meninas, eu ja dei esta dica a pouco tempo, mas
quero reforçar, pois entraram muitos novos novos no grupo. Esta loja é tudo
original e tem roupas e sapatos de 1 a 5 lindens e Mm e Lucky chair 35, venham
olhar quanto coisa boa tem aqui. bjs
35
MM é a sigla para Midnight Mania. São placas que podem ser clicadas e o jogador automaticamente se
inscreve para receber um brinde, que é dado quando se atinge determinado número de inscritos até a meia-noite
daquele dia. Lucky Chair é uma cadeira que sorteia prêmios a partir da primeira letra do nome dos avatares.
91
36
Disponível em: <https://blogs.secondlife.com/community/features/blog/2010/01/19/2009-end-of-year-second-
life-economy-wrap-up-including-q4-economy-in-detail>. Acesso em: 23 jan. 2010.
92
Mas o que as pessoas compram tanto no SL? De acordo com levantamento realizado
pelo Instituto QualiBest37, 15% dos avatares brasileiros compram justamente terrenos e, 23%,
casas para morar. Segundo a pesquisa, os jogadores estariam igualmente interessados em
roupas (92%), peles38 (31%) e veículos (27%). Ou seja, os usuários buscam realizar no SL
alguns sonhos que são bastante comuns na vida real, como ter uma casa, um carro e muitas
peças no guarda-roupa. São desejos reais que se multiplicam e se realizam no âmbito virtual.
Se eu não posso ter todas essas coisas aqui, posso ter lá. Ou, se tenho aqui, também quero ter
lá.
Caso o consumo no jogo continue crescendo nesse ritmo, a comercialização de
produtos e serviços reais no SL será uma questão de tempo. Ou melhor, de tecnologia. Basta
encontrarem mecanismos que tornem as transações realizadas inworld tão seguras quanto as
que hoje são efetivadas através de cartões de crédito nas lojas de e-commerce. Num futuro
próximo, talvez seja possível comprarmos livros, CDs, roupas e eletroeletrônicos reais
enquanto estamos jogando.
De acordo com Castronova (2003), que desenvolveu uma teoria do mercado dos
games, as estatísticas relativas à economia dos mundos virtuais mostram que esses universos
envolvem uma série de atividades como produção, oferta de mão de obra, investimentos,
comércio exterior, câmbio e até inflação – quando a demanda está alta, alguns produtos, como
vestimentas e armas, sobem de preço. “Tudo isso sugere que há algo muito normal e mundano
37
INSTITUTO QUALIBEST. As percepções do usuário de Internet sobre mundos virtuais. São Paulo, ago.
2007.
38
As peles (skins) têm a mesma função daquela do corpo humano, ou seja, revestir o corpo do avatar.
93
A criação de conteúdo pelos próprios usuários é um dos aspectos que mais distingue o
SL dos demais mundos virtuais. Em todos os outros, os usuários só podem utilizar o que foi
disponibilizado na biblioteca do jogo. Incluindo o Active Worlds, onde o jogador até é
convidado a criar, mas apenas a partir de modelos já existentes. Tudo o que vemos inworld no
SL – ilhas, cenários, edificações, roupas, acessórios, objetos, trilha sonora –, não foram
inventados pela Linden Lab, e sim pelos usuários. Uma linguagem de programação própria, a
Linden Scripting Language (LSL), possibilita a criação e a modelagem de objetos em 3D de
maneira simples e intuitiva, nos locais permitidos ou de sua propriedade. Para estimular essa
liberdade criativa, cursos ministrados dentro do próprio jogo ensinam como criar objetos, de
shapes a roupas e mobília. Tudo que é criado no jogo é propriedade intelectual do criador-
usuário, podendo ser comercializado.
Nesse aspecto concordamos com Pimenta e Varges (2007, p. 23), que consideram o
aspecto criativo uma das características mais marcantes do SL. “Um ponto interessante é que
os habitantes do mundo virtual (Second Life) podem criar qualquer coisa que imaginarem,
desde objetos a grandes centros de entretenimento”, reconhecem os autores. Eles também
observam que, “uma vez que um usuário tenha construído alguma coisa no mundo virtual, ele
pode facilmente começar a vender sua criação para outros habitantes, por meio de direitos
autorais controlados por seu número de IP”.
Há locais específicos para criação de objetos, que pode ser um pedaço de terra
pertencente ao próprio jogador ou ilhas dedicadas a essa prática, chamadas de sandbox. As
sandboxes são muito procuradas para abertura de caixas – há objetos que vêm prontos para
“vestir” a um só clique (uma blusa, por exemplo), mas há outros que vêm “embalados” e só
podem ser “vestidos” depois que o conteúdo da caixa é extraído. E nem todos os locais
permitem a abertura de tais caixas. A outra função das sandboxes é a criação de objetos. A
Fermi, uma ilha italiana, muda de configuração a todo instante, uma vez que sempre há
94
alguém abrindo caixas, construindo ou editando coisas – que podem ser carros, animais,
edificações, móveis, roupas, acessórios etc.
Figura 9 – Ilha Fermi Sandbox, local que permite construção e edição de objetos
A atividade de criação é vista tanto como um hobby quanto uma forma de ganhar
dinheiro no jogo e sobre isso encontrei muitas referências nas entrevistas que realizei.
Rafaelle está aprendendo em casa, a partir dos tutoriais que encontra na internet e no próprio
jogo. Na época da entrevista ela havia acabado de criar uma blusa.
Você passar muito tempo ali e não aprender nada, com um tempo fica chato.
Também não é tão difícil assim fazer as coisas, como as roupas e os móveis. Se
você pegar um tutorial de roupas, não é tão difícil de fazer. É só pegar o
programa certo e prestar atenção nas linhas. Pronto. Soube isso, você faz
direitinho.
Rafaelle, 19 anos
A LSL é considerada uma linguagem de programação fácil de aprender, seja para criar
uma simples animação para um avatar, máquinas complexas ou um jogo inteiro – um RPG,
por exemplo. Quem tem algum conhecimento de outras linguagens, como Java, pega o ritmo
mais rapidamente. Apesar dessas facilidades, nunca me dediquei a aprender a construir por
achar que teria que dedicar muitas horas do meu dia a essa atividade. Sempre preferi passar
meu tempo explorando novas ilhas.
De acordo com informações disponibilizadas na página do SL, é possível programar e
animar qualquer objeto, dotá-lo de inteligência, adicionar scripts, anexos e HUDs39, criar
39
HUD é a sigla para Heads-Up Display. São ferramentas que dão acesso a determinados recursos. Uma HUD
de neko, por exemplo, permite que o usuário emita miados, ande em quatro patas etc. Uma HUD de vampiro
permite que o usuário ofereça a mordida e assim por diante. As HUDs são anexadas ao avatar e ficam visíveis na
tela do jogador.
95
dispositivos para interagir com web sites, desenhar veículos etc. Para que se compreenda
melhor o que estamos dizendo, vale informar que um script é um código inserido em qualquer
objeto – “open” para abrir uma porta, “on” para acender uma lâmpada, ou determinados
comportamentos que podem ser “vestidos” pelos avatares, como “calm” ou “bored”. A
Linden Lab disponibiliza tutoriais on-line (inclusive tutoriais 3D com o passo-a-passo) para
que qualquer residente possa construir objetos. A ajuda também vem de membros da equipe
da Linden Lab (por e-mail, chat), de usuários mais experientes ou de escolas que funcionam
dentro do próprio SL.
Por se pretender uma simulação da vida real, e na vida já dissemos que os jogos
desempenham papel fundamental, não pudemos deixar de observar que existem diversos
jogos dentro do SL. Começando pelas máquinas caça-níqueis, com ilhas inteiras dedicadas a
essa prática. Nesses locais, dependendo da sorte e da habilidade do jogador, é possível ganhar
muitos linden dólares. Para jogar na maioria das máquinas, boa parte delas exploradas por
uma empresa de jogos chamada Zyngo, é preciso desembolsar alguma quantia, mas há casos
em que é exigido apenas um valor simbólico (L$ 1) para liberar o equipamento, dinheiro que
em seguida é devolvido ao jogador.
Os jogos são vistos pelos usuários do SL como uma diversão ou passatempo. Além
das máquinas caça-níqueis, esportes coletivos, como vôlei, futebol e futebol americano,
também estão bem representados no jogo. Algumas ilhas são dedicadas a isso, como a TT
Sports, voltada ao tênis, ping pong e voleibol. O jogador pode pegar gratuitamente roupas,
raquetes de ping pong que já vêm com animação grátis, animação para vôlei etc. Não senti
dificuldade alguma para jogar ping pong, mas confesso que no vôlei e no tênis me atrapalhei
um pouco, talvez por não conhecer a fundo as regras desses esportes.
Em dezembro de 2009, visitei o sítio do Estádio Kalakar e notei que eles estavam
“recrutando” jogadores para várias ligas de futebol (italiana, americana, norte-americana,
mexicana, peruana, argentina, colombiana e espanhola). Outro estádio, o Rutger, se propõe a
ser um templo do futebol americano. Há ainda parques como o Ballers City, que se
autodenomina a primeira comunidade de basquete e outros esportes, realizando competições,
concedendo prêmios, veiculando notícias da NBA (liga americana de basquete). Em cada
96
quadra há notecards com instruções de como jogar, arremessar a bola ao cesto, passar a bola
para outro jogador etc.
processo, pois as narrativas são criadas em função de personagens que ali estão
corporificados, constituindo-se como vetores da ação e da interação.
Nos jogos de RPG, a possibilidade que o SL oferece de trocar de corpo e de identidade
como se estivéssemos trocando de roupa é radicalizada. O que nos leva a pensar além da
descartabilidade própria dos tempos atuais – nos leva a pensar que algumas pessoas estão
cada vez mais dispostas a experimentar ser alguém diferente, a jogar com novas sensações
dentro de uma pluralidade que, no fundo, fervilha em suas internalidades físicas. Foi como me
senti encarnando o papel de vampira, experiência que relato um pouco mais à frente.
Numa busca por lugares realizada em dezembro de 2009 foram listados cerca de 100
lands com o tema RPG. A ambientação e as narrativas são importadas dos jogos de RPG
desenvolvidos para consoles e PCs. Também aqui, os jogadores encarnam um personagem e
passam a vivenciá-lo, pensando e agindo como se fosse ele. A maioria das batalhas ocorre de
acordo com crônicas criadas pelos próprios jogadores e divulgadas para todos os membros do
clã. Basicamente, as crônicas criam a ação que garante a continuidade do RPG – disputa de
território, invasão de QG, roubo e/ou recuperação de algum artefato ou até mesmo uma
guerra. Um dos diferenciais em relação aos RPGs para PC e/ou console é que cada SIM 40
costuma ter lojas onde são comercializadas roupas, armas e outros itens para compor a
vestimenta de cada raça – mais uma vez, o estímulo ao consumismo.
No Brasil, o sistema mais antigo de RPG dentro do SL – e certamente o maior – é o
Lendas Urbanas (LU), “uma cidade escondida do mundo por forças misteriosas divididas em
facções”, conforme indica um notecard distribuído na entrada. Os grupos são Dragões, Elfos,
Anjos, Garou, Nekos, Infernais, Samurais, Humanos, Vampiros, Caçadores e Magos. Há
grupos abertos a todas as raças, chamados de sub-raças: Polícia, Clube da Luta, Cosa Nostra,
Yazuka e Assassinos – uma multiplicidade de papéis que nos permite assumir identidades
diferentes em momentos diferentes. Os personagens sobem de nível juntando pontos de
Experience (XPs), que podem ser conseguidos participando de raids (lutas entre raças nas
terras de LU), ou ficando on-line na land (a cada 20 minutos conectado se ganha oito pontos
XP). Quem não tem muito conhecimento de RPG e quer circular pela ilha pode usar uma tag
(etiqueta) de observador anexada ao corpo do avatar, avisando que a pessoa é novata e não
pode se envolver em combates. Há, inclusive, uma safe zone em que é proibido atacar e fazer
uso de armas.
40
Forma curta de Simulator ou simulador. É sinônimo de ilha, ou seja, um espaço que pode ser adquirido ou
alugado para construção. Tipos: Open Spaces (OS), com capacidade menor; e FullSim, com capacidade ilimitada
de construção.
98
41
Notecard recebida em 19 de dez. de 2009.
99
mordida, no caso dos vampiros, ou de feridas, caso dos lobisomens, que respondem a um
ataque espalhando sangue nas vítimas.
me tornar vampira, teria ainda que comprar o The Thirst, com a HUD do jogo Bloodlines,
gastando mais L$ 549. Total da conta: L$ 798. Por sorte, eu tinha pouco mais de L$ 800 na
conta, dinheiro que eu juntei fazendo camping em meses e meses de jogo e eu topei participar
da brincadeira. Não posso ser vampira na vida real, mas posso experimentar ser vampira no
mundo virtual. Muitos jogadores do SL que são mordidos não topam nem tomar a
Wormpotion, preferem deixar sua alma no limbo. Afinal, é apenas um jogo. Minha alma
“real” não está no limbo, então pouco importa ter sido mordida ou não. O que leva as pessoas
a embarcarem numa fantasia como essa é a curiosidade, como foi o meu caso.
Pois bem. Diante de minha disposição para investir nessa fantasia, Sammi me orientou
na compra e uso dos apetrechos necessários para me tornar uma vampira. Mas entre a compra
do material e a cerimônia de embracement, como eles chamam a adesão ao clã, passaram-se
vários dias. A ilha do clã de Sammi (BLV Family) havia sido destruída por vândalos e foi
preciso reconstruir tudo. Como na vida real, também existem grupos de jovens baderneiros e
até delinquentes no mundo virtual. Necessidade de se afirmar identitariamente. Ou de mostrar
alguma superioridade, pois suspeito que os responsáveis pelo vandalismo fossem membros de
um clã rival.
Esperei pacientemente pela reconstrução do sítio e a cerimônia finalmente foi marcada
para o dia 9 de dezembro de 2009. Fui levada a uma sala toda decorada com quadros de
vampiros e figuras de magia. Um ambiente muito sinistro, com direito a plateia! Assistiram à
cerimônia Giggles, Loreli e Leeon. Durante o ritual, realizado no centro de uma estrela de
cinco pontas vermelha, o rei do clã, Grits, drenou todo o meu sangue e depois me deu o
“sangue vital”, a garantia da vida eterna. Todo o meu corpo, ou melhor, todo o corpo do meu
avatar estremeceu. Para entrar no grupo tive que fazer um juramento de lealdade à horda dos
vampiros, e aceitei dar minha alma para que fosse possuída por Sammi (a quantidade de almas
possuídas determina a posição no ranking e o grau de realeza do jogador e,
consequentemente, seu poder).
Como minha liege, Sammi explicou o funcionamento do RPG e me deu várias dicas de
como sair para “caçar”, como abordar as possíveis “vítimas” etc. Segundo ela, o ingrediente
fundamental para “se dar bem” no jogo é a sedução – os vampiros precisam ser galantes,
sedutores, para poder conquistar a confiança da vítima. Ganhei, assim, uma família no SL e
era muito reconfortante entrar no jogo diariamente e encontrar aquelas pessoas on-line.
“Night, family” era a saudação corriqueira – dava-me uma sensação de pertencimento. Dias
depois Sammi aceitou participar da minha pesquisa e algumas de suas experiências no SL
estão relatadas no capítulo 4 deste trabalho, Corpos e identidades em jogo.
101
Pela maldição do Bloodlines, todos os dias à meia-noite vampiros perdem 0.25 litros
de seu sangue vital e os lobisomens 2.5 lumens do luar. A essa altura, minha alma deve estar
“destruída”, uma vez que não tenho jogado com a frequência de antes. Não tenho saído para
“caçar” e ando sem dinheiro para comprar sangue (um barril para cinco litros custa L$ 249,
fora o líquido). Grits, meu atual liege, eventualmente me dá algum sangue, mas não me sinto
à vontade para ficar pedindo. O vampiro que está com a alma destruída e volta a beber sangue
(virtual) automaticamente restabelece a sua integridade.
Achei muito divertido jogar Bloodlines, só lamento não ter tido tempo nem dinheiro
suficiente para investir nessa atividade – teria que fazer mais camping, ou usar o cartão de
crédito se quisesse realmente me “fantasiar” de vampira. As lojas do grupo vendem desde
armas, roupas, amuletos, enfim, todos os apetrechos para você se tornar um vampiro “de
verdade”. Tudo muito bacana. Claro que comprei uns vestidos novos para poder me
caracterizar de vampira, mas certamente teria comprado muito mais caso estivesse decidida a
responder aos estímulos consumistas do jogo.
Fora a Wormpotion, que ingeri para resgatar minha alma do “limbo”, há outras poções
no sistema Bloodlines, como a hemlock (ingerida quando a alma do jogador cai no abismo,
isto é, o guardião de sua alma é destruído), a nightshade (cura vampirismo, quem toma cinco
litros recupera 100% de sua humanidade), a electrum (para deslocar a alma de um jogador
para outro) e wolfsbane. Esta última tem o poder de curar o lycanismo – 50 lumens equivalem
a 100% de humanidade, então a maldição é desfeita. O jogador do SL que quiser evitar ser
atacado por esses monstros precisa usar um colar de alho. O sistema correspondente do
102
como dragões e outras figuras que demonstram virilidade. As roupas eram em sua maioria
casuais, como jeans, camiseta e tênis. Na “versão praia”, eles usavam bermudas e transitavam
sem camisa, ou vestidos com camisetas tipo regata, favorecendo a exibição dos músculos.
Entre os acessórios mais comuns estavam os óculos de sol, mas também observei o uso de
pulseiras, colares e relógios, para ambos os sexos.
Já os avatares femininos possuíam formas mais arredondadas, algumas aparentando
usar “próteses virtuais” nos seios ou nas nádegas. Loiras ou morenas, a maioria ostentava
cabelos lisos e compridos. Não raro, vestiam roupas curtas, como shorts e minissaias, blusas
decotadas e sapatos (ou botas) de salto alto, conforme pode ser observado na Figura 13.
Nessas mesmas ilhas brasileiras que simulam um ambiente de praia deparei-me com
algumas jogadoras utilizando nomes ou tags fazendo alusão a um fenômeno surgido no Brasil
nos últimos anos, ligado ao funk carioca, o das “mulheres-fruta”. Essa expressão tem sido
utilizada como sinônimo de “medidas avantajadas” – mulher-melancia (nádegas grandes),
mulher-melão (seios “turbinados”) etc. São figuras altamente erotizadas, sendo que muitas
dessas mulheres (as da “vida real”) posaram nuas para revistas masculinas42. Na própria Ilha
Copacabana, encontrei uma jogadora de nome TATAPOWER Sosa com a tag “Mulher
Melão”.
42
Ver TRIBUNA IMPRESSA.“Cultura: „Mulheres-fruta rouba a cena no funk nacional”. Disponível em:
http://www.tribunaimpressa.com.br/Conteudo/Mulheres-fruta--roubam-a-cena-no-funk-nacional,96810,60038.
Acesso em 26 fev. 2010.
105
Esses corpos diferentes fogem ao “padrão SL” que, aliás, tem muito a ver com o
padrão de beleza que vemos nas ruas, especialmente no Brasil. Se existe um “corpo
brasileiro”, ou ainda, um “corpo carioca”, como defende Mirian Goldenberg (2007, p. 29),
esse corpo pode ser encontrado refletido no SL. Segundo essa autora, existe no país um
“determinado modelo de corpo” que se constitui um valor, “um corpo que distingue como
superior aquele que o possui, um corpo conquistado por meio de muito investimento
financeiro, trabalho e sacrifício”. Algo que teria começado lá atrás, na década de 1970, com
106
Leila Diniz exibindo sua barriga grávida de biquíni no Rio de Janeiro, e chega à “escravidão”
de um corpo controlado, moldado em academias ou por cirurgias estéticas.
Pude ver um pouco desse “corpo carioca” durante minhas incursões pelas ilhas
Copacabana e Brasil Rio, simulações em 3D de pedaços do Rio de Janeiro. Se aqueles
avatares não refletiam exatamente o corpo real dos jogadores, manifestavam uma vontade, um
desejo de se destacar no meio da multidão, pelo menos no mundo virtual. As formas
perfeitas, a imitação de determinados padrões de beleza – músculos para os homens, curvas
para as mulheres –, sugeriam que o corpo estava mesmo no centro das atenções. As mulheres
usavam cabelos longos e lisos, bem no clima das famosas “chapinhas” (pranchas alisadoras
de cabelo) que ser tornaram uma “febre” entre as mulheres na primeira década deste século.
Mais uma vez, perguntamos se esse é o corpo que quer ser visto e desejado ou se é uma forma
de satirizar modelos vigentes.
O erotismo no SL, no entanto, não se resume à insinuação dos “corpos-fruta”, de
medidas avantajadas. Percebi que existe no jogo toda uma indústria voltada para o sexo. Sex
shops vendem desde roupas sado-masô (pretas cravadas de metais) a apetrechos para
apimentar a relação sexual virtual, como dildos e genitálias. Algumas genitálias, como pude
observar em ilhas de nudismo, possuem tamanho avantajado, o que no imaginário popular
costuma ser sinônimo de potência sexual. Também é bastante comum a comercialização de
máquinas de sexo, cadeiras eróticas e poseballs, bolinhas que quando clicadas realizam
animações de posições diversas, desde beijos, abraços a movimentos kama-sutrianos. Essas
bolinhas são capazes de simular todas as etapas de uma masturbação ou relação sexual,
incluindo orgasmos. Ou seja, o sexo é reproduzido no mundo virtual com a maior riqueza de
detalhes possível e com um alto nível de interatividade.
Nas sex shops normalmente é proibida a entrada de avatares-crianças43, sendo que o
usuário recebe um aviso sobre essa proibição assim que chega ao local. Além disso, existem
placas com alertas do tipo “Aqui é uma loja. Não perturbe os outros clientes”, como o que
recebi na porta da JR Dirty Sex Shop, para evitar abordagens indesejadas. De fato, nunca fui
“perturbada” circulando por esses locais. Os jogadores mais parecem interessados em buscar
ali apenas apetrechos para realizar suas fantasias sexuais e raramente interagem com
“estranhos”. Quando cheguei à sala que aparece na Figura 15, na sex shop citada
anteriomente, um casal estava saindo pela porta lateral do que parecia ser uma espécie de
43
François (2008) relatou bem a existência delituosa da chamada pedofilia virtual no Second Life, descrito como
um local para experimentação de “diversas taras e fetiches”. “Heterossexuais, bissexuais e homossexuais podem
se confundir em uma teia de novas experimentações de desejos, as quais englobam também a pedofilia. O virtual
parece sempre possibilitar ao sujeito, o surgimento de diversas nuances sexuais até então obscuras” (p. 54).
107
cabine de sexo. O homem passou direto por mim, sem parar, sendo que a mulher
(provavelmente uma escorte), deu uma paradinha para me observar e depois seguiu sem dar
uma palavra.
Notei que muitas jogadoras aceitam trabalhar como dançarinas e/ou escortes em
boates no afã de conseguir mais e mais dinheiro virtual. Alguns comentários a que tive acesso
indicam que o fato de estarem expondo seus corpos nus e fazendo sexo virtual não se constitui
exatamente um problema, afinal, “é apenas um jogo” e quem está agindo na tela é “apenas
uma boneca”. Como quem diz: “nada aqui é real mesmo, então podemos fazer o que quiser”.
Mas não é bem assim. Sabemos que o corpo do jogador, assim como sua conduta no jogo,
revela traços de sua identidade. E essa identidade é uma extensão da vida “real”, e não algo
distinto, descolado de sua realidade. Podemos supor que, ao representar o papel de uma
prostituta, a jogadora está na verdade realizando algum tipo de fantasia sem o ônus de ter que
vender seu corpo “real”.
A transparência do jogo é o que permite a realização de fantasias como essa – “é
apenas um jogo”. Alguns jogadores do sexo masculino, inclusive, fazem um segundo avatar
para também ganhar dinheiro como escorte, sem que o “cliente” desconfie que, por trás da
tela, está fazendo sexo com um homem. Certa vez, na Ilha Brasil Rio, eu estava sentada em
um banco, observando um grupo de avatares, quando escutei a conversa (chat com voz) de
dois rapazes. Um confessava ao amigo, sem qualquer cerimônia, que tinha feito um “avatar de
mulher” para ganhar dinheiro.
Logo aprendi, conversando com outros jogadores, que existem várias categorias de
homem que se veste de mulher no SL: de um lado estão aqueles que fazem um avatar
feminino para “pregar peças” em amigos e isso me foi relatado pelo entrevistado Clecio, o
que nos leva a pensar que tipo de prazer tem um homem em fingir que é uma mulher para
seduzir o amigo – o que estaria por trás desse tipo de brincadeira? Do outro lado estão aqueles
que ganham dinheiro se prostituindo com avatar feminino e fazem disso sua ocupação
principal no jogo – nesses casos, suas verdadeiras identidades são mantidas em segredo. Há,
ainda, homens que usam um avatar de mulher, mas assumem publicamente que são homens.
Posteriormente, a entrevistada Ally me explicou que esses últimos são chamados de shemales,
assim como na vida off-line. Os travestis sexualmente ativos. Eles se “montam” (se vestem de
mulher), porém em algum momento do jogo acabam revelando que são homens.
Curiosa para saber mais sobre os shemales do SL, realizei uma busca e encontrei
dezenas de grupos dedicados a essa prática. Um deles, o Shemale Temple, tinha 811 membros
em fevereiro de 2010. Outro grupo, o Shemale Escort Shelter, expõe muito claramente que
seus membros são shemales dedicados à prostituição, “baratos e prontos para fazer qualquer
coisa que você pedir!!!”. De alguma forma, existe no SL um espaço para brincar com a
dubiedade de gêneros. Não consegui identificar, porém, se o contrário também ocorre, ou
109
seja, se existem no jogo mulheres que se travestem de homens dessa forma tão explícita,
assumida. Encontrei, sim, avatares femininos vestidos com roupas masculinas, porém elas se
identificavam apenas como lésbicas ou no máximo butchies.
Embora o sexo virtual não seja objeto deste estudo, não poderíamos deixar de abordar
a questão, até mesmo porque vários entrevistados vão dizer que praticam sexo virtual como
um recurso para sentir sensações físicas reais. Falando com desenvoltura sobre o assunto,
Logan, que entrevistei pelo Sykpe, compara o sexo virtual ao ato de assistir a um filme
erótico. Se ele aluga um filme desse tipo, é porque deseja se masturbar e chegar ao orgasmo.
O sexo no SL também seria como alugar um filme, só que com um diferencial: as cenas são
protagonizadas por ele mesmo. A ação ocorre na primeira pessoa – Logan pode comandar o
avatar enquanto se masturba, pode controlar seus movimentos e interagir com a outra pessoa
que está do outro lado da tela. Dessa forma, as sensações físicas ficariam ainda mais
realísticas.
O sexo é uma das vitrines na qual o corpo se mostra e, assim como na vida real,
também existe no mundo virtual do SL todo um trabalho de performance para impressionar e
atrair parceiros. O homem malhado, com o peitoral definido, e a mulher com curvas
acentuadas são, inegavelmente, objetos de desejo. Ainda mais em um ambiente supostamente
livre das coerções, dos preconceitos do mundo off-line, como é o SL. No jogo, essas
representações imagéticas são bastante convincentes, até mais do que no mundo “real”. Digo
que são, genuinamente, representações hiperreais, conforme define Baudrillard.
Claro que o ciberespaço abriga práticas socialmente condenáveis – não só a pedofilia,
como também o racismo, discriminação racial e sexual e apologia ao nazismo (Cf.
FRANÇOIS, 2008, p. 116). Se o SL não permite a participação de menores de 18 anos,
supomos então que os avatares-crianças são manipulados por adultos querendo viver algum
tipo de fantasia infantil. Os atos de pedofilia, portanto, estariam sendo praticado por adultos
com outros adultos travestidos de crianças, no intuito de satisfazer desejos obscuros. Mas há
outras coisas que podemos dizer sobre os avatares-crianças. Durante a observação participante
110
Aliás, deparei-me muitas vezes com famílias inteiras no SL. Núcleos com pai, mãe,
filhos, irmãos, e sobre isso encontrei várias referências espontâneas durante as entrevistas.
Espontâneas porque esse tema não fazia parte do roteiro e apesar disso os “laços familiares”
acabavam transparecendo nas falas. Achei essas referências bastante curiosas, uma vez que
alguns entrevistados afirmam que não representam papéis no jogo e mesmo assim assumem
que estão envolvidos em relações familiares virtuais – há sempre um pai ou uma mãe, irmãos
etc. Essas pessoas não estariam, portanto, representando papéis? Acredito que sim.
Rafaelle, por exemplo, que tem experiência em jogos de RPG de mesa e outros jogos
eletrônicos, como Counter Strike e LocoRoco, diz que o que mais lhe atraiu no SL foi a
possibilidade de fazer amizades e construir relações. Ela, que tem um namorado na RL e outro
no jogo, diz que não consegue ser outra pessoa dentro do jogo...
Tem gente que entra ali e acha que vai encarnar um personagem, como no
RPG. Mas quando você está ali dentro não consegue ser outra pessoa. Ou você
é uma coisa ou não é. Desde que eu comecei a jogar, o que eu sou aqui é o que
eu sou lá. Nunca consegui fazer o papel de outra pessoa. (...) As mesmas
atitudes que eu tenho aqui, tenho lá também. Não consigo separar.
Rafaelle, 19 anos
Eu tenho meu papai e duas mamães. Uma que é a mãe e a outra que é a
“mãedrasta” [risos]. É muito louco isso. Irmãos eu tenho até umas horas... O
que eu não tenho aqui, tenho lá.
P. Você tem irmãos na RL?
R. Tenho só um. Lá eu tenho seis ou sete. Fora o bisavô e a bisavó. É uma
coisa de louco aquilo [risos]. É justamente com essas pessoas que a gente acaba
criando o vínculo maior da amizade. Acaba um se tornando pai, mãe, irmão.
Rafaelle, 19 anos
do processo de adoção de pais, filhos e irmãos, que parece ser uma maneira de buscar um
pertencimento, uma ligação emocional com quem está do outro lado da tela, posto que existe
a possibilidade de interação. Quando os laços se estreitam, alguns jogadores que se
relacionam apenas no SL – não apenas relacionamentos amorosos, mas também de amizade –
buscam se conhecer e se relacionar também na real life (RL). Temos aí a tal via de mão dupla,
onde a realidade do gamer interfere na realidade do jogo e vice-versa. Algumas pessoas
querem ter acesso aos dois aspectos (real e virtual) simultaneamente.
Essa necessidade de transitar entre os dois mundos se tornou clara a partir de algumas
entrevistas e de diálogos ocasionais que travei no ambiente do jogo e fora dele. Como o
depoimento deixado por Pedrold, que se envolveu amorosamente com uma jogadora e acabou
se casando com ela na vida “real”. Juntos, decidiram parar de jogar, certamente numa
tentativa de evitar novos envolvimentos. O testemunho que se segue nos dá uma dimensão
dos conflitos que podem surgir quando se experiencia uma “segunda vida”, especialmente
quando há envolvimento emocional, quando o real (RL) e o virtual (SL) se misturam:
“acabei casando com uma garota que conhece dentro do jogo : ) por isso
decidimos parar de jogar :)... casei (RL) mais como você deve saber Sl e um
mundo de sonhos... lá se pode tudo... todos os sentimentos virtuais sempre
acabam em sentimentos reais... lá se você deseja algo você tem como
conseguir, é tipo uma fuga do mundo real, seus problemas aqui não existem lá,
não se esquecendo que como você vive uma vida lá também acaba adquirido
problemas lá também (heheehhe) parece mentira mais Você pode AMAR,
TRAIR, CHORAR, COMPRAR, SE DIVERTIR, TER FILHOS E TUDO
QUE O MUNDO REAL LHE PROPORCIONA, lá dentro se vive muito muito
mais, mais como todo vicio, isso muitas vezes lhe faz mal, por que você deixa
de viver o real para viver o virtual... no meu caso por muitas vezes deixei ate
de comer... mais curti muito meu tempo no Sl, Curti tanto que acabei ate
casando co casando com uma pessoa que encontrei lá : )”
Pedrold, ex-jogador do SL
É bom ter em mente que nem todo avatar vestido de neko ou de anjo pertence,
necessariamente, a um jogador de RPG. Os que jogam RPG dentro do SL têm, além da forma
corporal e vestimenta, uma conduta própria, relacionada ao seu personagem. Como já
mencionado no capítulo anterior, o universo de personagens dos jogos de RPG é muito amplo
– além dos nekos, existem vampiros, lobisomens, anjos, dragões, elfos, fadas, templários,
amazonas, magos, demônios. Na Figura 19, vemos um elfo e um dragão. O rei elfo encontrei
numa ilha comum, a Brasil Megastore e Residencial, mas o dragão estava na DCS Island RPG
& Combat Resource Center & Arena, uma ilha de RPG. Provavelmente, estava pronto para
participar de um combate.
Figura 19 – Personagens dos jogos de RPG que rodam dentro do SL: rei dos guerreiros élficos e dragão
usuário muito à vontade para promover mudanças, especialmente se ele jogar RPG. Pode-se
usar um avatar de dragão, por exemplo, apenas durante as atividades concernentes ao jogo,
como as lutas, e no restante do tempo usar um avatar “humano” – existiria, dessa forma, um
corpo para o dia a dia e outro para o jogo de RPG. Boa parte dos entrevistados, jogador de
RPG ou não, vai dizer que “muda o visual” de acordo com as circunstâncias e/ou ambiente,
como veremos adiante.
O sexo e a fantasia (ser um anjo, neko, elfo, dragão etc) são dois aspectos que exercem
muito fascínio sobre os jogadores do SL. É sedutor poder fazer sexo sem camisinha, porque
não há perigo de contrairmos uma doença. É significativo podermos simular que somos anjos,
demônios, gatos, elfos ou dragões, porque em um ambiente como o SL essa fantasia se realiza
em primeira pessoa, inclusive a fantasia do controle. Experiências como essas trazem a
reboque muitos estímulos visuais e auditivos e geram satisfações sem a rigidez dos jogos de
RPG tradicionais, em que é imperativo seguir uma narrativa.
Entretanto, ao mesmo tempo em que esse lado “profano”, digamos assim, é bastante
valorizado por muitos, o SL abre espaço para as mais diversas manifestações identitárias.
Quem é adepto de práticas religiosas, por exemplo, pode encontrar ali um cantinho para
expressar sua religiosidade, fazer suas orações. Quer saber como? Faça uma busca utilizando
palavras como “religião”, “igreja”, “católica”, “evangélica”, “protestante”, entre outras, suas
variações e correspondentes em inglês. Não foram poucas as referências que encontrei,
sugerindo que diversas instituições religiosas encaram a internet e seus mundos virtuais como
uma nova fronteira de evangelização. Em “ilhas” brasileiras, encontrei templos da Igreja
Metodista Brasileira e da Igreja Adventista do Sétimo Dia, uma sinagoga e um terreiro de
umbanda. Em “ilhas” estrangeiras, deparei-me com templos católicos, muçulmanos, um
tabernáculo mórmon e até um jardim ecumênico, aberto à prática de várias crenças. São
ambientes calmos, com músicas relaxantes, convidativos à reflexão.
Em janeiro de 2009, explorando uma sinagoga brasileira no SL, a Sinagoga Judaico-
Messiânica Leão da Tribo de Judá, encontrei um jovem buscando um local para casar –
novamente, a reprodução de comportamentos e valores da vida off-line no mundo virtual. As
pessoas casam por diversos motivos – por amor, para ter uma família, fugir da solidão, dar
satisfações à sociedade etc. E no SL não é diferente. Aparentando vinte e poucos anos,
Khaymman usava a tradicional kipa no alto da cabeça. Perguntei se ele era judeu, respondeu
que sim. Aparentemente, o jovem reproduzia no jogo o mesmo tipo de experiência cultural do
seu mundo off-line. Se de fato ele era judeu, eu não tinha como saber. São as duas faces de
117
uma mesma moeda – o jogo eletrônico on-line é transparente e opaco simultaneamente. Não
ter certezas é uma das opacidades.
Eu e Khaymman entramos juntos na sinagoga e percorremos todos os ambientes.
Muito simpático, ele se dispôs a me explicar os diversos simbolismos ali representados, como
o altar onde estava guardado a Torá (os cinco primeiros livros escritos por Moisés) e uma
espécie de piscina utilizada em lavagens ceriomoniais (Mikvá) – e eu estava muito excitada
pelo fato de poder conhecer detalhes de uma cultura diferente. Como judeu, Khaymman
reparou que aquele templo misturava judaísmo com cristianismo, o que poderia trazer
“problemas” para seus convidados, mesmo a cerimônia sendo apenas “virtual”. Vamos ao
diálogo:
Até aqui, nossa análise esteve baseada na minha experiência no SL, no que eu fui
encontrando no decurso do jogo, conversas e encontros casuais. Vamos nos ater, a partir de
agora, aos depoimentos dos entrevistados. As perguntas iniciais do roteiro utilizado tinham
como propósito descobrir como os usuários tinham conhecido o jogo, o que mais lhes
despertava o interesse, com que frequência e por quanto tempo ficavam conectados e os
objetivos de cada um naquela “segunda vida”. De um modo geral, os entrevistados tomaram
conhecimento do SL através de revistas, reportagens de TV, por indicação de amigos e
parentes. Ficaram “curiosos” e começaram a jogar com os mais diversos interesses –
entretenimento, aproximação com a tecnologia, interatividade, possibilidade de criação,
trabalhar e ganhar dinheiro.
Para AriadnaDragon, que joga desde julho de 2007 (a mais antiga no SL entre os
pesquisados), o fato de poder encontrar outras pessoas “reais” foi o que mais lhe chamou
atenção no jogo.
Mais do que trocar a roupa da sua “bonequinha”, Mirella pode jogar com a identidade
do seu personagem corporificado na forma de um avatar. Pode mudar o visual dela – das
roupas ao cabelo e à cor dos olhos – de acordo com a ocasião. Antes de sair de casa, é preciso
“se produzir”, vestir uma roupa transada, mudar o penteado. Assim também ocorre no SL.
Liquidez. Na sociedade de consumo, tudo pode ser integrado e desintegrado, inclusive as
identidades. Hoje eu quero ser punk, e viro punk, assim, como num passe de mágica. Amanhã
eu viro “perua” (mulher com roupas e acessórios extravagantes).
Em relação à frequência e tempo de conexão, podemos dizer que Castronova está
correto quando diz que as pessoas já passam mais tempo nesses mundos virtuais do que em
qualquer outro hobbie tradicional. É bastante comum as pessoas incorporarem o hábito de
frequentar o SL diariamente e lá gastarem muitas horas do seu dia. Treze dos 16 entrevistados
afirmaram utilizar a plataforma todos os dias e apenas três afirmam utilizá-la dia sim, dia não
(cinco dias na semana).
Em média, os entrevistados ficam cerca de sete horas jogando a cada vez que se
conectam. Alguns deles jogam enquanto desempenham outras atividades, como troca de e-
mails, chat em comunicadores instantâneos como o MSN ou mesmo enquanto estudam ou
trabalham, no próprio computador ou fora dele. Nesses casos, o tempo médio de conexão
121
aumenta, uma vez que não se está necessariamente jogando. E não se pode simplesmente
entrar no jogo e sumir, pois o usuário é desconectado se ficar inativo por mais de 30 minutos.
Fico conectada em média 12 horas por dia. Mas às vezes nem tô jogando. Às
vezes fica aberto aqui porque participo de um grupo, tenho que ficar dando
uma olhada pro povo não ficar fazendo bagunça (...). Então deixo aberto o jogo
e vou cuidar da minha casa. Sou dona de casa, então tenho roupa para lavar,
tem tudo pra fazer em casa. O tempo que fico sentada aqui, pode colocar umas
seis a oito horas. Se eu tiver o que fazer eu fico bem menos.
F.D., 34 anos
Note-se que F.D. é dona de casa, tem vários afazeres domésticos, e mesmo assim fica
de seis a oito horas jogando. O tempo que passa conectada é maior ainda – em média 12 horas
por dia. Ou seja, todos os dias. Significa que jogar SL, para F.D., é uma prática relevante.
Ainda mais se consideramos que ela participa como voluntária de um grupo de ajuda a
novatos. Então talvez para ela o SL ajude a diminuir a solidão, estando seu marido no trabalho
e os filhos na escola ou não. A jogadora, não por acaso, estava com tendinite nas mãos no dia
da entrevista, por causa do uso intenso do computador, e pediu para falar, ao invés de teclar,
porque estava sentindo muita dor. Eu escrevia as perguntas via mensagens de texto e ela
respondia utilizando o sistema de voz existente no jogo.
Há, ainda, os chamados heavy users – usuários que passam, literalmente, o dia inteiro
no computador e, enquanto isso, ficam conectados ao SL. Geralmente, são pessoas com
ocupações ligadas à tecnologia ou à comunicação. Como Assaliah, que desenvolve um site de
comércio eletrônico e fica permanentemente com o jogo aberto.
Eu não desconecto o dia inteiro. Sou heavy user total, tô sempre com o
computador ligado, baixando alguma coisa, atualizando antivírus, baixando
torrents [sistema de troca de arquivos de músicas, filmes etc.], e tô no SL. Eu
fiquei um tempo afastado do SL porque passei um tempo muito relapso, por
conta de trabalho, por conta de faculdade, quando capotei com o carro, passei
mais de um mês sem poder sair da cama. Mas agora que voltei eu tô direto, 24
horas por dia, sete dias na semana. Ele só não está conectado quando eu tenho
que limpar o cache [dispositivo interno do processador que permite acesso
mais rápido aos dados gravados], ou dar um reboot [reiniciar o computador].
Assaliah, 34 anos
Assaliah é jogador do Lendas Urbanas, que como vimos é um dos sistemas de RPG
que rodam dentro do SL. Seu personagem é um anjo e Assaliah, na mitologia, é também o
nome de um anjo. Ele explicou que ficar on-line nas terras de LU é uma das formas de ganhar
pontos de experiência (XP) no jogo. A cada 20 minutos em que permanece no sítio ele ganha
122
oito pontos XP e assim pode subir de nível mais rápido, melhorando sua posição no ranking
de jogadores. Outra forma de ganhar XP é participando das raids (lutas entre raças), que
acontecem às quartas-feiras e sábados e são abertas exclusivamente a jogadores. Tentei fazer
com que ele me levasse (isto é, convidasse meu avatar) para assistir a um desses combates,
mas não houve acordo! As raids da LU são fechadas a visitantes.
O fato de Assaliah ficar 24 horas conectado à internet sugere, ainda, que vivemos a era
da hiperconectividade. Alguns indivíduos estão cada vez mais plugados e cada vez mais
dependentes dessa nova ferramenta de comunicação e entretenimento que é a internet. Se
estão em casa usam o desktop, se estão na rua usam o laptop, ou ainda poderosos smartphones
capazes de se conectar à rede mundial de computadores em alta velocidade, através da
chamada rede 3G da telefonia móvel.
Com o desenvolvimento tecnológico em aceleração constante, e com a rápida
popularização desses dispositivos, é bem provável que fiquemos conectados full time num
futuro próximo. Já se fala em “computadores para vestir” e em comandos capazes de acionar
a tela e o teclado de um computador na forma de hologramas, em qualquer lugar em que a
pessoa esteja – sinal de que as necessidades humanas já determinam o grau de inovação dos
gadgets, no intuito de torná-los mais amigáveis, mais compatíveis com os nossos corpos que
sempre foram modificados com esse uso. Basta pensarmos na tendinite de F.D.
Quando perguntados sobre objetivos, nem todos os entrevistados apresentaram um
objetivo claro, definido. Na maioria das vezes, o que mantém as pessoas no jogo é o interesse
puro e simples nas possibilidades de interação (“conhecer pessoas”) e entretenimento que o
SL oferece (discotecas, vídeos, jogos). Isso ocorre porque, como mencionamos anteriormente,
o SL não tem objetivos pré-definidos nem missões, ao contrário de grande parte dos games
on-line. Quem estabelece o objetivo é o próprio jogador, de acordo com seus interesses, o que
pode incluir desde “ter um belo avatar”, “desenvolver-se artisticamente”, até “trabalhar”,
“fazer negócios” etc. Outros afirmam que se deixam levar pelos acontecimentos, caso de
AriadnaDragon, que ao mesmo tempo revela um desejo de aperfeiçoar cada vez mais a
imagem do seu avatar.
AriadnaDragon, 27 anos
Entre alguns jogadores existe a sensação de que, se houvesse uma meta (enquanto algo
que se almeja), atingi-la significaria o fim do jogo. Nesse sentido, podemos dizer que no jogo
não há uma finalidade última a não ser o automovimento, ou seja, o próprio ato de jogar.
Jogar porque é divertido – jogar por jogar, deixando-se levar pelos acontecimentos.
Lipp3 diz que encara o SL como “uma sala de chat com um corpo virtual”, e que esse
corpo permite ao usuário fazer o que quiser – dançar, beijar, fazer sexo, jogar RPG, brigar,
lutar... Mas ele se mostra avesso à encenação de papéis, o ato de fingir ser outra pessoa.
Considera uma falsidade – “como estou agindo aqui, ajo na RL (...) não faz parte do jogo
mentir”. Jogadores como Lipp3 costumam utilizar o SL mais como uma rede de
relacionamento do que como um jogo propriamente dito e talvez venha daí a ausência de
objetivos claros.
Aqui e ali encontramos alguns jogadores que têm como objetivo “ganhar dinheiro”,
virtual ou real, e para tanto buscam uma ocupação, um “trabalho”. Existem diversas
ocupações remuneradas no jogo, desde construtor de cenários e objetos a DJ, passando por
segurança, promoter, vendedor. Outra forma de ganhar lindens dólares, como já falamos, é
fazendo camping. Geralmente, para fazer camping é necessário ingressar em algum grupo e,
para começar a ganhar lindens, é necessário “vestir” a tag desse grupo. Dançar é a atividade
mais comum nos campings, sendo que a maioria das discotecas disponibilizam pads que
quando clicados iniciam a contagem do tempo e o controle dos lindens recebidos. Mas
também é possível ganhar dinheiro em campings pintando paredes, sendo barman, vendendo
cachorro-quente etc.
A remuneração dos campings já foi melhor. Até o início de 2009, era fácil encontrar
locais que pagavam L$ 2 a cada dez minutos. Atualmente, esse valor – ou até menos – é pago
a cada 20 ou 30 minutos, forçando o jogador a passar cada vez mais tempo no sítio. Surgiram,
também, outras opções, como os “exploders”, em que o usuário clica numa determinada peça
do cenário (geralmente uma esfera animada) para se inscrever numa espécie de lista. A cada
intervalo de tempo, o “exploder” sorteia lindens entre os participantes. Como existem jogos
124
dentro do jogo, também é possível ganhar dinheiro com máquinas caça-níqueis, conforme
vimos no capítulo 3 deste trabalho.
Comparando os variados níveis de experiência no jogo, pode-se dizer que os novatos
são mais ávidos por dinheiro. Uma pergunta muito comum que eles fazem nas primeiras
vezes que “entram” no jogo, ao abordar alguém próximo, é: “Como faço para ganhar dinheiro
aqui?”. E lá se vão em busca de campings. No jargão do SL, os novatos são conhecidos como
“noobies” ou “newbies”44, por causa da aparência “básica”, sem muito burilamento. Os mais
antigos, pela própria experiência adquirida no game, costumam ter um visual mais
sofisticado, com shapes, skins, roupas e acessórios mais realistas, comprados em lojas de
“grife”, e não costumam mais frequentar campings. Os “newbies”, menos capitalizados,
normalmente optam por adquirir artigos gratuitos ou muito baratos nas freebies.
Trabalhar, ou simplesmente “ganhar dinheiro” no SL, fazendo camping, por exemplo,
pode se tornar uma forma de encontrar um “sentido” no jogo, assim como na RL muitos
buscam um sentido para suas vidas. Procurar uma ocupação seria uma forma de “não ficar na
mesma”, evoluir e, ao mesmo tempo, manter-se jogando.
Em 2008, eu mesma passei algum tempo como vendedora de uma loja chamada
Dresses, especializada em moda feminina. Para ser contratada, precisei comprar uma caixa
contendo uniforme e instruções. Minha função era fazer propaganda da loja e atrair possíveis
clientes, ganhando uma pequena comissão a cada venda realizada. Se conseguisse que outras
cinco pessoas também comprassem o kit de vendedor, viraria gerente – a velha pirâmide.
Entretanto, larguei a atividade algumas semanas depois. Eu queria me divertir no SL, não
trabalhar.
Com o tempo, o usuário que não encontra um “sentido”, seja produzindo ou
reproduzindo conteúdo, tende a perder o interesse no jogo. Fica “na mesma”, não evolui,
como aponta Logan:
Muita gente que conheci lá no começo hoje em dia não joga mais, porque ficou
na mesma, não procurou se ocupar. No SL é a mesma coisa da RL, você tem
que procurar alguma coisa para fazer. Ou ser empresário, promoter, DJ, ou
estilista. É aí é que vem essa coisa de segunda vida. Você tem que procurar
uma ocupação, senão não fica no jogo.
Logan, 27 anos
44
A origem da expressão “newbie” é imprecisa, mas parece ser uma junção das palavras “new” (novo) e “bio”
(vida). Seria, no jargão dos mundos virtuais, um recém nascido ou recém chegado.
125
Deixei a área de promoter. Não tava dando mais por causa do meu tempo RL,
por causa da faculdade. Você ter obrigação no SL não presta. Tem que estar
todos os dias ali, chega final de semana não pode sair porque tem que ficar
passando TP. Primeiramente você tem que se divertir, tem que arrumar um
emprego para manter seu divertimento sem gastar seu dinheiro RL. No SL é
tudo caro, tudo gira em torno da vida real. Eu me afastei da área de promoter e
fui ser empresário. Empresário da área de roupas. Lojas. Franquias de roupas
góticas, CS Design.(...) Mas também me afastei.
Logan, 27 anos
Logan quer ter uma ocupação, acha importante não “ficar na mesma”, mas ao mesmo
tempo não quer ter obrigação no jogo. Temos aí um certo nível de tensão, porque ele não quer
ter o compromisso de trabalhar todos os dias, muito menos nos fins de semana, porém deseja
se manter ocupado. Logan, que é músico na vida “real”, atualmente trabalha como DJ no SL,
mas diz que é por diversão, “só para amigos mesmo”. Mas também estava, na época da
entrevista, investindo cerca de R$ 100 por mês na construção de um clube no SL, em
sociedade com um amigo. Além de shows, o clube teria um motel, o Sky, com 15 quartos
(cinco para gays, cinco para lésbicas e cinco para heterossexuais), conforme ele mesmo
descreveu.
Essa entrevista foi muito curiosa, porque o jogador reside na cidade do Recife e a
proposta inicial era fazer pessoalmente. Depois de nos falarmos por telefone e marcarmos e
desmarcarmos várias vezes, acabamos conversando pelo Skype, mesmo estando em bairros
vizinhos – a internet nos dá a sensação ilusória de estarmos próximos, e provavelmente Logan
não estava tão disposto assim a me encontrar face a face. O anonimato é como uma espécie de
escudo para os internautas. Depois voltamos a nos encontrar algumas vezes no SL. Numa
dessas ocasiões o entrevistado me apresentou a Mandy, sua namorada no jogo, e anunciou que
em breve estariam se casando na RL. Mandy estava grávida no SL e eles ainda decidiam
quando ter o bebê virtual. Ter um relacionamento à distância e simular uma gravidez pode
funcionar como uma oficina para um futuro enlace.
O fato é que, para alcançar o objetivo de ganhar dinheiro ou apenas arrumar uma
ocupação, alguns usuários procuram aprender a construir objetos no SL. Entre os mundos
virtuais, esse jogo é o único que se define como sendo “totalmente imaginado e criado por
126
GutoOtto foi dono da Ilha Recife Digital e da Cidade do Medo, esta última um sistema
de RPG. Na época da entrevista ele estava investindo num novo sistema de jogo, o The Farm,
uma espécie de versão SL para o Farmville (jogo da Zynga hospedado no Facebook). Talvez
por conta do trabalho, GutoOtto diz que tem uma visão meramente instrumental do seu avatar
– “é um mecanismo para meus negócios, não vejo ele como extensão do meu ego ou forma de
escapismo... ele é apenas uma ferramenta comercial para mim”. O jogador diz que a aparência
do seu avatar não tem nada a ver com ele na RL, exceto “em termo de alma”, pelo seu
“fascínio” pela cultura oriental.
que não precisa necessariamente ter um objetivo por trás – vai determinar, inclusive, o tempo
dedicado ao jogar. A média de sete horas gastas inworld, e na maioria dos casos diariamente,
indica que se trata de uma prática relevante no cotidiano dessas pessoas.
[20:56] Ally: es algo interesante llevar mi ser a otra forma de ser lo veo como
el sueño de esa reencarnaciond e la que hablan varias personas solo que ahi yo
decido como proceder, y conservando mis recuerdos, nuevas experiencias, el
poder aprender de ser otra persona
[20:57] Ally: mi otro cuerpo ya aqui es una parte de mi que me encanta
Ally, 31 anos
Ally tem experiência em outros jogos eletrônicos – Lineage e World of Warcraft, esses
de narrativa medieval, cuja dinâmica é matar inimigos. Mas o SL parece ter um sentido
diferente para ela, porque lhe possibilita ter um “outro corpo”. Esse “outro corpo” é
vivenciado como um pedaço dela mesma, e não algo alheio ao seu ser – talvez pelo fato do
personagem não vir pronto, precisar ser construído. É hora de reencarnar, dessa vez com o
bônus da escolha – eu escolho ser assim ou assado na segunda vida, escolho como proceder.
Nesse processo o jogador acaba projetando traços de seu próprio corpo e de sua
personalidade. Vem daí, dessa projeção, o sentimento de identificação com o personagem. De
alguma maneira, a conformação desse corpo está relacionada ao sentido ou ao objetivo que se
estabelece no ato de jogar, ou seja, à narrativa que os jogadores criam para si.
Claro que em outros jogos também existe investimento e identificação com o
personagem – não se trata de uma exclusividade do SL. Tanto é assim que ficamos frustrados
quando perdemos todas as vidas jogando Quake, por exemplo, sendo necessário recomeçar,
do zero, determinado estágio. A diferença é que, nesses jogos, escolhe-se incorporar um
129
personagem que segue uma narrativa pré-estabelecida e, por mais que o jogador possa
interferir em algumas de suas ações, existe uma missão, um destino a ser cumprido. Uma
pessoa que escolhe ser alquimista no WoW, por exemplo, certamente se identifica de alguma
maneira com a sua narrativa, que é criar poções mágicas a partir de plantas e transmutar
materiais. Mas no SL, mais do que poder criar um avatar para seu personagem, Ally pode
decidir como proceder e ela vê isso como uma possibilidade de aprendizado – “poder
aprender a ser outra pessoa”. É isso que torna a simulação algo real.
O que sempre prevalece nas respostas dadas pelos entrevistados é a sensação de poder
realizar desejos, controlar sua conduta e fazer coisas que de outra maneira não seriam
possíveis, como voar e teletransportar-se, e de poder mudar sua configuração corporal a todo
instante, sem precisar dar satisfações sobre seus atos.
as representações que criaram e digam coisas surpreendentes, do tipo “sou eu através desse
avatar”.
[22:25] roxeli: mmm no siento que tengo un segundo cuerpo, no siento a roxeli
como parte mia, que complicado, bueno a la vez soy yo a traves de ese avatar
que no es como yo fisicamente, creo que no tengo nada que ver con el
exteriormente, solo que desde que entre fui cambiando hasta que quede con el,
por algo sera no :S, quizas no soy conciente jajaj ahora tendre que ir a a
psicologo :S
Roxeli, 31 anos
Outros relatos revelam um desejo de “entrar dentro do avatar” para poder usufruir das
mesmas sensações. Não somente poder ver através do boneco na tela, mas poder “tocar”,
experienciar algo tátil, mais palpável, o que ainda não é possível no jogo. Por enquanto, o
jogador apenas imagina que está presente em determinada cena a partir dos estímulos que
recebe visual e auditivamente. “Viver dentro do SL” significaria poder ter sensações mais
reais, e não apenas imaginadas.
[20:39] Misshotchilli: Era giro poder viver dentro sl e poder ver e tocar em
tanta beleza que nos aparece a frente!
[20:40] Misshotchilli Karu: os lugares lindos que são criados,as cores,as
musicas
Misshotchilli, 31 anos
Tem vezes que eu gostaria que tivesse um outro modo da gente entrar dentro
do avatar. Se a gente pudesse entrar pra sentir o que ela sente aqui dentro. Eu
acho legal ter um segundo corpo porque quem sabe eu não consigo me inspirar
nela para emagrecer? Eu não sou assim gorda, mas tenho uns quilinhos, né?
(...) Ainda mais aqui no SL onde você pode tudo. Uma hora você pode ser um
pássaro, uma hora uma borboleta, depois um Pikachu. Às vezes você poder
esquecer o que você vive na vida real.
F. D., 34 anos
Escapismo? Podemos aqui fazer uma reflexão acerca da frase de F.D.: “Às vezes
poder esquecer o que você vive na vida real”. Esquecer o que? Talvez, sendo um pássaro,
esquecer as cobranças do marido e filhos, esquecer que tem uns quilinhos sobrando, que há
uma série de afazeres domésticos lhe esperando... É como se o real fosse chato e o virtual
sempre divertido. Um mundo de potência, de abertura, de fantasia, de satisfação.
Esse trecho da entrevista de F.D. me fez lembrar novamente do filme Avatar, em que
o personagem Jake Sully (Sam Worthington) abandona sua forma humana para mergulhar de
vez no universo dos Na‟vi, tornando-se um deles. “Lá”, na pele do avatar, ele não era
paraplégico. Lá, Jake podia viver seu amor pela nativa Neytiri e nunca mais voltar à sua
condição de ex-fuzileiro. Fico imaginando quantos jogadores não topariam “se perder” no SL
e não mais voltar, caso isso fosse possível. Passariam a ser o avatar, e não apenas manipulá-
lo. “Entrar dentro do avatar”, passando a sentir “o que ela (ou ele) sente”. Como Jake, viver,
de fato, uma segunda vida.
Enquanto simulacros, os corpos do SL são mais perfeitos e mais controláveis que o
real, como afirma Baudrillard. Ou mais perfeitos porque mais controláveis. De alguma
maneira, o prazer do jogo é o controle. Apenas no game podemos ter uma visão de 360 graus
sobre nós mesmos, enxergar detalhes e ângulos inéditos, que só outras pessoas conseguem
enxergar no mundo off-line. O círculo se fecha na medida em que controlamos 100% do corpo
e da nossa conduta do avatar. Decidimos ter esse ou aquele corpo, escolhemos nossos
próprios caminhos.
A busca pelo “corpo perfeito”, como vimos, é uma das características da sociedade
contemporânea – um corpo que é trabalhado para ser exibido, consumido. No jogo não é
132
Figura 23 – Ricardoshow, 20 anos: “me sinto o máximo andando por aí com esse corpo”
133
Achei interessante porque Ricardoshow falou sem muitos rodeios que sabia que aquilo
que estava encarnando no jogo era um “personagem”. Perguntei se achava que estava
representando um personagem e ele respondeu prontamente que “sim” e que a única coisa em
comum que ele possuía com o avatar eram as roupas de surfista. Sobre as tatuagens, por
exemplo, Ricardoshow diz que não pode tê-las na vida “real” em respeito à mãe – “ela não
gosta”. Mas no SL ele pode ter, sem necessariamente ter que desagradar à mãe. Na RL, ele é
magrinho, apesar de malhar (corre na praia e faz abdominais). Na SL, é fortão. Entretanto,
quando pedi para que descrevesse esse personagem, o entrevistado tergiversou. Começou a
falar sobre a personalidade desse personagem, que era “um cara tímido que gosta de fazer
amizades, de festa e que quer uma namorada no SL, porque ele se sente muito só aqui”
(novamente, a solidão). Muito provavelmente, Ricardoshow está falando dele mesmo e não
apenas do personagem. Sentir-se “muito só” no SL é um reflexo de sua solidão off-line.
De fato, não foi fácil conseguir que as pessoas falassem objetivamente sobre a
experiência de ter um “segundo corpo” na internet. Boa parte dos entrevistados fez questão de
realçar a personalidade, as atitudes, os sentimentos, o comportamento e não o lado físico –
eles queriam falar de si como indivíduos da RL. Ao mesmo tempo, revelam uma preocupação
exacerbada com esse físico. Podemos concluir daí que há uma tensão implícita, porque apesar
da preocupação com a aparência, é como se alguns entrevistados quisessem demonstrar que
esse corpo virtual é algo secundário e não uma parte significativa de suas identidades – não
importa se o meu avatar é lindo de morrer, você tem que prestar atenção em mim porque eu
sou uma pessoa legal.
Silvanaf, por exemplo, nega que esteja encarnando um personagem. Mas diz que seu
avatar é uma projeção de si mesma no jogo, pois é “teimosa” e está “sempre querendo
ajudar”. Seu avatar carregaria os mesmos defeitos e qualidades.
[5:22] silvanaf: naõ uso vestidos decotados demais na rl, pois não tenho o que
mostrar
[5:22] silvanaf: rs.
[5:22] silvanaf: sou mae de duas filhas
[5:22] silvanaf: rs.
[5:22] Micheline Beerbaum: rs
[5:22] Micheline Beerbaum: mas no sl vc mostra...
[5:23] silvanaf: acho que é pq é uma vontade rl minha
[5:23] silvanaf: aqui fazemos algumas coisas que não podemos fazer na rl
[5:23] silvanaf: rs.
[5:23] silvanaf: por isso é uma simulação de vida real
Silvanaf, 35 anos
Figura 24 – Silvanaf, 35 anos: “aqui fazemos coisas que não podemos fazer na RL”
Em outro trecho da entrevista, Silvanaf diz que ter uma avatar “é como brincar de
boneca”. De alguma forma, ela aprecia essa brincadeira, mudando o cabelo do avatar (“se
tenho algum lugar pra ir que exige um longo, uso cabelo preso”) e trocando a roupa dessa
135
boneca seguindo sua “vontade RL”. Ou seja, ela admite a existência de um “segundo corpo”,
ou, no mínimo, de uma experiência simulada de corpo.
Silvanaf tem um grupo de ajuda a “newbies”, que dá dicas de onde encontrar peças
legais para compor o visual. A entrevistada afirma que é “impossível” não pegar o item que
está indicando para os membros do grupo. Resultado: tem cerca de 27 mil itens (!!!) no seu
inventário, “um guarda-roupa enorme”, como ela mesma define. Que tipo de fantasia é essa?
Os vestidos decotados que ela não pode usar na vida “real”, pode usar na vida “virtual”. No
SL, a entrevistada pode fazer coisas com o seu corpo que de outra maneira não seriam
possíveis.
E como é que esse “segundo corpo” que vem sendo imaginado no SL se relaciona com
os corpos “reais” dos jogadores? Pedimos aos entrevistados que descrevessem seus avatares
comparando-os com seus corpos “reais”. A maioria (nove entre os 16) acredita ter um corpo
real “diferente” do virtual, pois vê no SL a possibilidade de experimentar novas
configurações. Eles procuram moldar o avatar seguindo o “padrão SL”, revelando como eles
desejariam ser caso pudessem “editar” seus corpos. De um modo geral, procura-se fazer
compensações – pessoas baixas criam avatares altos; pessoas gordas, avatares magros. Mas a
busca pela perfeição sempre predomina.
Ela está linda [risos]. Ela é mais ou menos o que eu não sou. Magrinha, tem os
cabelos lisos... Pode trocar de roupa direto... (...) A única coisa que ela tem em
comum comigo são os olhos e o fato de ser branca. Ela não é tão alta. Nem é
como a maioria dos avatares femininos, com aqueles peitões, bundão... Já é
menorzinho... Aquele estilo popozuda não tem a ver comigo não... [risos] Ela é
mais normal, não é tão como as outras, mas é aquele normal perfeitinha. Tentei
deixar ela perfeitinha, mas não aquilo avantajado.
Rafaelle, 19 anos
136
Como a entrevista com Rafaelle foi feita de forma presencial, pude confrontar suas
respostas com a realidade que se apresentava à minha frente. Pessoalmente, a jogadora de fato
é de cor branca, tem cabelos claros não tão lisos, seios pequenos e está ligeiramente “acima
do peso”. No SL, ela pode criar um avatar mais magro sem que seja necessário fazer
sacrifícios ou dietas, eliminar as espinhas típicas da idade e ao mesmo tempo “turbinar” um
pouco mais os seios. A jogadora diz que procurou não exagerar, pois não se identifica com “a
maioria dos avatares femininos, com aqueles peitões, bundão” – ela não quer ser uma
“mulher-fruta”. Essa aparência é obtida sem sacrifícios, numa exacerbação das dietas
milagrosas que prometem emagrecer sem esforço, o que no SL dá uma sensação de poder, de
controle.
Sem sacrifícios, sem dieta... Sem estrias, sem celulite... Lá eu sou toda
poderosa. Posso fazer tudo que não posso fazer aqui. Posso mudar ele [o
avatar] a hora que eu quiser em questão de segundos... Até conseguir chegar no
que eu quero. Quando ficar bom, basta salvar...
Rafaelle, 19 anos
“sobreviver” dentro do jogo de outro modo, como se a perfeição fosse uma condição para
estar ali, mesmo havendo uma minoria que faz questão de fugir a esse padrão ou satirizá-lo,
colocando próteses muito exageradas na bunda e nos peitos, por exemplo. Lembremos que o
corpo chega ao século XXI como uma obsessão, transformou-se em um estilo de vida. A TV e
o cinema ditam o modelo que deve ser seguido.
A imitação de modelos exitosos, seguindo esse raciocínio, seria uma garantia de
aceitação. Embora os entrevistados não citem diretamente que estão imitando este ou aquele
ator/cantor/apresentador, no SL não se vê avatares feios ou gordos, e raramente um negro,
como observa Lipp3. Segundo ele, “ o padrão SL é av (avatar) com corpo malhado, bonito,
roupas com estilo”.
Figura 26 – Lipp3, 24 anos: “avatar bem feito, dentro de padrões d perfeição do SL”
Lipp3, que é gaúcho e sugeriu que nos encontrássemos na Ilha Rancho Querência
Amada – Porto Alegre, afirma que seu avatar é bem diferente do seu tipo físico na vida real.
Apenas o cabelo é “meio parecido”, não por ser moicano, mas “arrepiado” e “curto dos
138
lados”. O jogador descreve a si mesmo como uma pessoa “normal” – “branco, estatura
mediana, magro”, enquanto que seu avatar é alto e musculoso. Esse status é obtido sem
sacrifícios, sem a necessidade de frequentar academias. Na RL, Lipp diz que não gosta de
fazer exercícios físicos, que apenas joga futebol eventualmente, por prazer.
Vários entrevistados afirmam que ter um avatar dentro desses “padrões” ajuda na
aceitação, facilita a aproximação entre os jogadores. E isso envolve tanto a configuração
corporal quanto a vestimenta. É como se existisse um preconceito velado contra avatares
“feios” e “mal vestidos”.
Clecio é músico na vida real. Toca contrabaixo numa banda de pagode e conta que
tratou logo de comprar um instrumento no jogo – a necessidade de se identificar de alguma
maneira com o avatar, o que não precisa ser feito somente através da forma física. Pode ser
um detalhe ou acessório, como um contrabaixo. Segundo Clecio, seu avatar é mais ou menos
da sua estatura, só que um pouco mais “forte”. Assim como Rafaelle, Clecio foi entrevistado
pessoalmente. Podemos dizer que, “ao vivo”, ele é moreno, baixinho, meio gordinho, usa
cabelo bem curto e se veste de maneira casual (jeans, tênis e camiseta). Em comum com o
avatar, talvez só mesmo a “barbicha” que ele tanto fez questão de citar. Entretanto, essa foi a
minha visão do entrevistado. Ele pode se enxergar de outra forma. Não conseguimos nos ver
num ângulo de 360 graus. A visão que temos de nós mesmos é precária.
Quatro dos 16 entrevistados dizem que tentaram inicialmente “aproximar” o visual dos
seus avatares com o visual que possuem na vida real. Isso foi feito tanto através da simulação
de características físicas, como nariz, barba, cabelo, quanto com próteses, como óculos de
grau. Necessidade de identificação que também implica em dar o mesmo nome ou apelido ao
avatar, assim como também sou Micheline no SL. Pelo menos sete dos 16 entrevistados se
enquadram nessa situação – Mirella é Mirella, Clecio é Clécio, Rafaelle é Rafaelle, GutoOtto
é Gustavo, Lipp3 é Felipe, Sammi é Samantha e assim por diante. Mas os atributos físicos e o
estilo das roupas parecem falar mais alto quando o tema é identificação.
A avatarzinha era branquinha, igual a mim. Muito parecida. Cabelo preto, meio
longo, os olhos verdes... Ela usava óculos também... [a entrevistada usa óculos
de grau]. Eu tinha uma roupa na vida real que era parecida com uma roupinha
que tinha lá. Aí eu comprei a roupinha, botei nela, ficou muito parecida... Até
eu tirei uma foto dela e botei uma minha do lado, falei no Orkut: “Ó, essa sou
eu no SL aqui na RL. Mimi virtual...”
Mirella, 25 anos
140
Mirella é de fato bastante parecida com seu avatar (ou seria o contrário?). Por já ter
sido modelo na vida real, Mimi faz o estilo magrinha, anda com o cabelo sempre arrumado e
maquiada. Entre os cinco entrevistados pessoalmente, pode-se dizer que ela é a que apresenta
o maior grau de relação entre o corpo real e o virtual. É aquela coisa do espelho – vai
depender da imagem que ele te devolve. No SL, pelo controle e visibilidade total que o jogo
oferece, muitos enxergam semelhanças que não existem.
Mas “tentar aproximar” o visual ao avatar ao visual do jogador na vida real não
significa tentar fazer uma cópia exata. No SL sempre existe a possibilidade de aumentar “o
peitoral aqui, o braço um pouquinho mais ali” e assim por diante – “isso faz parte do mundo
perfeito que é ali”, como depõe Assaliah:
Eu procurei o skin mais feinho que tinha para tentar aproximar, cabelo
baixinho, nariz afilado. Não consigo visualizar o avatar como sendo um meio
de escape, um alterego para nego fazer lá o que eu não faço aqui na RL. Eu não
consigo desassociar. O que ele é lá, eu sou aqui. O que ele sente lá é o que eu
to sentindo aqui. Se ele discute com você lá, sou eu que estou discutindo. Não
tem como dissociar. Lá quase todo mundo tem 25 anos, o meu tem 34 (idade
real do entrevistado). Então eu busquei uma skin que fosse um pouco
aproximada com a minha. Claro, lá é o mundo da fantasia, aumenta o peitoral
aqui, o braço um pouquinho mais ali... Mas enfim, isso faz parte do mundo
perfeito que é ali. Ali a gente não encontra avatar feio.
Assaliah, 34 anos
141
Meu avatar não é o mais alto, nem o mais forte, nem tem a skin mais bonita.
P. Mas ele é mais forte do que você... Você se preocupou em colocar um
peitoral nele...
R. É. Mas você não conheceu o Assaliah no começo. Era uma figura. Tinha
cabeção, branquelo, magrinho e com um violão nas costas. Aquele ali era eu.
No começo a gente não sabe nada, não sabe de constituição de skin, roupas,
nada. Noob é uma desgraça! (risos). Aí depois você vai colocando. Mas
também não quis colocar a perfeição. Tem amigos meus ali que eu os conheço
na vida real. O avatar é um espetáculo, mas é propaganda enganosa (risos).
Tenho uma amiga que mora no Janga [bairro de Paulista-PE]. O avatar dela
tem uma bunda perfeita, proporcional, gigante. Ela é mirradinha, magrinha,
baixinha.
P. E o que você acha disso?
142
R. Depende. Ela faz isso por diversão. Mas tem gente que faz isso por outros
motivos, leva a sério, e aí a gente teria que fazer uma análise mais psicológica
da pessoa. O que ela busca com isso aqui? Se ela faz isso buscando algum
escape para alguma negação que ela tem... Tenho amigas que são muito
oprimidas, reprimidas na vida real, pelos filhos, pelo marido. E no SL os
avatares são espetaculares. Elas aproveitam para soltar a imaginação.
Assaliah, 34 anos
Mas ter um avatar que é um espetáculo, mesmo sendo “propaganda enganosa”, não faz
parte do jogo? O SL é um campo aberto para a realização de fantasias. Se existe alguma
disputa nesse jogo diferente, certamente é a disputa pela beleza e não são poucos os concursos
realizados dentro da plataforma. Os avatares se inscrevem e os mais votados ganham prêmios.
Sem falar nas agências de modelos, onde o critério para seleção é o mesmo da vida off-line:
boa aparência.
Entretanto, enquanto alguns jogadores dizem “ela (o avatar) é tudo que eu não sou”,
como Rafaelle, outros buscam fazer um avatar o mais próximo possível. Em pelo menos dois
dos casos estudados, Mirella e Sammi, a semelhança estava diretamente relacionada a uma
certa dose de autoestima. Usuários mais satisfeitos com seu corpo na vida real tendem a fazer
avatares mais parecidos. Usuários insatisfeitos com sua própria imagem buscam uma
compensação moldando avatares muito diferentes. Mirella se diz satisfeita consigo mesma e
por isso moldou um avatar muito parecido.
P. Por que você optou em ter um avatar muito parecido com você se você tem a
possibilidade no jogo de ser quem você quiser, de ter a aparência que você
quiser?
R – Porque eu sou satisfeita comigo mesma. Se eu transparecesse pro jogo, eu
não ia ligar. Porque é o tipo da coisa, eu me acho bonita, me aceito como eu
sou.
Mirella, 25 anos
Sammi passou dois anos modelando seu avatar até deixá-lo o mais parecido possível
consigo mesma, e hoje se diz “muito orgulhosa” com o resultado obtido. Para facilitar a
“comparação”, ela diz que colocou uma foto “verdadeira” em seu perfil, atitude raramente
vista no SL. Poucos publicam fotos da “primeira vida”. Pela imagem publicada, dá para
identificar uma mulher branca, loira, de olhos claros e com formas mais ou menos arredondas
– seios fartos, quadris largos. Essa descrição se aproxima bastante da figura que vemos no
jogo – ela mesma diz ser bonita no SL e na RL. Numa das conversas que tivemos antes da
entrevista, Sammi se refere assim ao seu avatar:
143
Contei no capítulo anterior que foi Sammi quem me levou para conhecer o sistema de
RPG Bloodlines. A foto que publico aqui foi tirada durante minha cerimônia de iniciação no
clã de vampiros BLV Family e nela podemos perceber, além do efeito luminoso nos olhos, os
dentes caninos ligeiramente salientes. Algum tempo depois, quando falei da minha pesquisa e
ela topou ser entrevistada, a jogadora, que me recebeu em sua casa no SL com um figurino
totalmente diferente daquele de vampira (pijamas, pois estava pronta para dormir), confirmou
que editou seu avatar para que se parecesse “exatamente” com ela. Até o cabelo, quando é
cortado na RL, é modificado também no jogo. O mais difícil teria sido a modelagem do
queixo.
[22:39] sammi: :)
Sammi diz que acha “muito engraçado” olhar seu corpo espelhado na tela do
computador, de tão parecido que é com seu corpo “real”. Ela afirma que até os movimentos (o
jeito de andar, sentar) seriam bastante semelhantes. “Eu não sou muito diferente na RL em
relação ao que sou aqui. Quer dizer, eu nunca fui uma vampira na RL, mas muitos traços
mostram minha personalidade e disso em diante”. Então, por que ser uma vampira, por que
essa tribo? Ela diz que entrou no grupo por curiosidade, pelo desafio de seduzir pessoas (para
morder, no caso) através das palavras.
Quando perguntada se estaria ou não encarnando um personagem, ou se Sammi seria
seu alterego, a entrevistada diz que todo mundo é “multifacetado”, mesmo que as pessoas não
demonstrem isso. Na RL, ela é mãe, amante, guerreira (enfrenta “muitas batalhas todos os
dias”) e amiga ao mesmo tempo.
[22:45] sammi: well im not one really tom have an alter ego
[22:46] sammi: every person is multi facited even if they dont show it
[22:46] sammi: i hjave many sides of me
[22:46] sammi: but im still thje same person
[22:46] sammi: a mom
[22:46] sammi: lover
[22:46] sammi: warrior
[22:46] sammi: friend
[22:46] Micheline Beerbaum: do you think that sammi is your alter ego?
[22:46] sammi: no
[22:46] sammi: shes who i am
[22:46] sammi: its even my real name
[22:46] sammi: not
[22:46] Micheline Beerbaum: oh i see
[22:47] sammi: but Samantha
Sammi, 37 anos
Vimos que a maioria decide fazer um avatar “diferente”, alguns tentam aproximar...
São todas representações imagéticas válidas, criadas para representar o jogador no mundo
virtual. Essas imagens falam um pouco sobre a personalidade de cada um e sobre o
personagem que estão representando no jogo, ainda que esse personagem seja apenas a
representação de si mesmo. Como explica Nanda111:
Nanda111 diz que não utiliza o avatar como uma “válvula de escape” e afirma que o
que gosta de fazer no SL é “viajar”, “conhecer lugares” e se comunicar com outras pessoas.
Para ela, o visual do avatar é o que menos importa – sua “boneca” é apenas um veículo que
lhe permite interagir dentro do jogo. De fato, apesar de estar no SL desde 2008, Nanda111
parece uma newbie, tem uma aparência simples e vestuário pouco sofisticado. Seu
depoimento se torna interessante porque a partir dele podemos inferir que, apesar da maioria
encarar o avatar quase como um fetiche, um objeto para ser reverenciado e exibido pelo
potencial de perfeição, existe uma minoria que não tem grandes pretensões a não ser utilizar o
avatar como mais um meio de comunicação.
Por outro lado, não podemos esquecer que o SL é um mundo de possibilidades.
Voltemos ao início do tópico anterior, onde Ally se referia à sua experiência de possuir um
“segundo corpo” como sendo um “sonho”, uma “reencarnação”. Ally é homem e tem avatar
de mulher. Ele se mostra “encantado” com a beleza do ser que criou para representá-lo no
146
ciberespaço e afirma ficar lisonjeado quando alguém diz que seu avatar está lindo. “É como
outra parte de mim que está ali”.
[20:50] Ally: mi avatar en sl, pues me gusta tiene su belleza, algo que quizas
este lejos de mi, me gusta verle y que le vean asi como cuando me dicen que
linda eres, da gusto de a poco hacer algo que a la gente le guste
(...)
[20:52] Ally: es como otra parte de mi que esta ahi, me da alegrias me da
dramas, me identifico con mi avi
Ally diz gostar de sua aparência RL, mas revela que ficaria satisfeito se pudesse “ser”
como o avatar. Quando perguntamos por que ele usa um avatar de mulher sendo homem na
RL, ele respondeu o seguinte:
Mulher. É o que Ally gostaria de ser se pudesse ter “outra vida”. Uma mulher bonita,
cabelo loiro chanel, corpo bronzeado, cheio de tatuagens. Na RL, o jogador se define como
bissexual. “Estoy enamoradad e um hombre en rl / tube pareja tiempo atras com un hombre /
tanbien con mujer / para mi es normal / el amor transciende eso”. Porém, quando questionado
se estaria disposto a fazer uma operação para mudar de sexo na RL, ele pensa um pouco e diz
que não, porque nasceu homem e sua mãe poderia deserdá-lo. A menos que venha a fada
madrinha...
147
Confesso que a franqueza de Ally foi algo que me desconsertou. Como no mundo
virtual não existem certezas, desde o início ele poderia ter dito que era mulher, e não um
homem com avatar de mulher. Ou será que ele ou ela se diverte dizendo que é um homem
num corpo de mulher, não o sendo? Eu não teria como conferir, não teria como “confrontar” o
“real” com o “virtual”, já que essa entrevista foi feita de forma remota e não presencial. A
opacidade, já o dissemos, faz parte desse jogo.
De qualquer forma, experiência de Ally mostra que o SL não precisa necessariamente
reproduzir o que ocorre na RL. Ali eu não preciso ser exatamente o que eu sou, posso ser
alguém diferente. Há sempre um espaço para a fantasia, para a experimentação. Na segunda
vida, “és o que queres ser” – embora apenas um entre os 16 entrevistados tenha admitido
(fantasiado?) mudança de gênero. E ser alguém radicalmente diferente no jogo, começando
pelo gênero, só me faz pensar na concepção de Haraway sobre o sujeito ciborgue. Um sujeito
que vive num mundo pós-gênero, que transcende os dualismos homem/mulher, macho/fêmea,
feminino/masculino. As fronteiras se apagam, a inocência se dissipa.
usuários em relação à sua real aparência. Logan, por exemplo, diz que muda as tatuagens e o
cabelo (estilo e cor) de acordo com a roupa e que gostaria de poder incorporar algumas das
características do seu avatar na RL. “É uma eterna mudança”, define o entrevistado.
P. Sobre essa história de poder mudar seu corpo, seu avatar no SL, o que
significa para você poder mudar, o cabelo, a roupa?
R. Significa a liberdade. Se você acha que está gordo... É uma eterna mudança.
P. Com que freqüência você promove modificações no seu avatar? Sempre que
entra, todos os dias, ou só de vez em quando?
R. Eu mudo conforme a roupa. Só mudo as tatuagens e o cabelo, para poder se
adequar à roupa. Se eu tô com a roupa preta, mais fechada, coloco um cabelo
branco.
(...)
P. (...) Se fosse possível, você gostaria de incorporar algum elemento do seu
avatar no RL, quais e por que?
R. O cabelão e as tatuagens dele. Só isso mesmo. Queria poder mudar meu
cabelo como eu mudo no SL, uma hora arrepiado, azul, branco, moicano...
Logan, 27 anos
cirúrgico. Até mesmo aquelas feitas de henna não são removíveis facilmente. O corante
natural demora pelo menos uma semana para ser eliminado.
Logan afirma possuir algumas tatuagens na RL (na perna e no braço), mas que
gostaria de ter mais, caso fosse possível simplesmente “tirar e por”, como se tira e põe um
relógio. “Eu queria ter, mas infelizmente não dá”, resigna-se. Segundo ele, “a sociedade ainda
tem uma cabeça fechada”. Ter o corpo todo tatuado significaria enfrentar preconceitos,
sobretudo no ambiente de trabalho. No SL, entretanto, Logan pode tatuar o corpo inteiro,
sempre que desejar, uma flexibilidade lhe fascina. Pode ter o nariz “afilado”, como gostaria de
ter na vida real, porque em alguns padrões estéticos dominantes um nariz afilado é muito mais
bonito do que aquele achatado ou aquilino. O entrevistado planeja, inclusive, aproveitar uma
cirurgia que supostamente teria como objetivo fazê-lo respirar melhor para “ajeitar” o nariz.
Ele acha que, se uma pessoa não está satisfeita ou não se sente bem com alguma parte de seu
corpo, tem que partir para a intervenção estética real, embora um nariz afilado não signifique
a garantia de um nariz funcional.
P. Além das tatuagens, você já fez ou faria alguma outra intervenção estética?
R. Nunca fiz. Mas eu faria, mudaria só o meu nariz.
P. Você é insatisfeito com o seu nariz?
R. Eu queria deixar ele mais afilado. Ele é um pouquinho achatado. Eu vou
fazer. Tenho problema no nariz, não respiro direito. Já que eu vou fazer pra
ajeitar, vou fazer logo tudo.
Logan, 27 anos
tem que manter a estética... Do mesmo jeito que você quer uma mulher bonita,
com um corpo legal, ela também merece um cara legal na cama, ao invés de
um buchudo [risos].
P. Mas você faz academia para ficar fortão, musculoso?
R. Já fui muito forte, hoje em dia não. Quando eu tinha 16 só pensava nisso.
Agora eu quero manter... Abdominal, sem barriga... Divisão!
Logan, 27 anos
duas faces: avatares se parecem com seus donos, e seus donos muitas vezes querem se parecer
com seus avatares. Como F.D., que procura se inspirar no avatar para emagrecer. Já que
detesta atividade física, está tentando emagrecer via reeducação alimentar. Mas ela acalenta
outro sonho, que é aumentar os seios através de cirurgia plástica. Não faz porque é dona de
casa e depende financeiramente do marido. Além do que, não suporta sangue e tem medo do
pós-operatório (cintas, drenagens linfáticas). Então, o avatar é uma forma de realizar esse
sonho de forma simbólica. Sem precisar desembolsar uma grande soma. E, o mais importante,
sem dor. Em alguns imaginários, ter seios grandes é sinônimo de feminilidade, sensualidade.
Como se esses atributos pudessem ser medidos em mililitros de silicone.
R. Ah, esses seios eu adoraria ter... [suspiro] Por plástica, mesmo. Que graça
teria, eu vir para um jogo desses e colocar uns seios pequenininhos?
[18:10] Micheline Beerbaum: rsrsrsrsrs
[18:10] Micheline Beerbaum: já fez ou faria plástica?
R. Faria, se eu pudesse. É um sonho meu.
[18:11] Micheline Beerbaum: o que a impede?
R. Falta de dinheiro [risos]. Eu não trabalho, quem trabalha só é o meu marido.
Então fica difícil, né? E eu não sei se tendo dinheiro eu teria coragem, porque
eu tenho muito medo, não gosto de dor, não suporto sangue.
[18:11] Micheline Beerbaum: já fez alguma outra intervenção estética?
R. Só depilação. Tenho horror a dor, sabe? O pessoal que para ficar bonita tem
que fazer assim, arrancar uma costela... Que arrancar costela! Deixa a costela
quieta aqui. Tenho horror a dor, não suporto.
[18:12] Micheline Beerbaum: rsrs
[18:12] Micheline Beerbaum: então no sl vc pode por bumbum, seios maiores
sem dor?
R. Bumbum é o meu mesmo, mas os seios... Tirar uma barriguinha, que não vai
ter problema, sem dor [risos]. (...) Já viu como a pessoa fica quando opera,
quando faz uma cirurgia de barriga e seios? Bota aquele troço apertado, tem
que fazer direto drenagem linfática para voltar tudo pro lugar... É muita coisa,
não sei se eu tivesse dinheiro se eu faria.
F.D., 34 anos
As nádegas do avatar de F.D. até pode ser igual ao da dona, entretanto também virou
mais um acessório no jogo. E um acessório com acessórios. Infelizmente tivemos que
fotografá-la na penumbra para preservar sua identidade, mas dá para perceber que seu avatar
usa um rabo (ela é neko). F.D. diz que não muda mais a shape (a forma do corpo) porque teria
encontrado uma que lhe agrada, porém altera o volume da bunda do avatar de acordo com a
roupa que veste. Mais uma vez, exalta-se a possibilidade de editar qualquer parte do corpo a
qualquer instante.
Ela está do jeito que eu gostaria de ser. A única coisa que eu faço, quando vou
a um a festa a rigor ou alguma coisa assim, é colocar uma bunda menor. É o
mesmo shape, só que a bunda é menor para poder ficar legal no vestido. Mas
assim que eu volto para casa já volto o meu shape normal.
[18:09] Micheline Beerbaum: só pra ficar melhor no vestido mesmo?
R. Sim. Esse aqui é o que eu gosto de usar. Tem gente que fica grilado, quer
ficar mudando de shape direto, de skin direto... Eu não mudo.
F.D., 34 anos
F.D. não costuma mudar a shape. E sobre isso podemos dizer que a maioria troca e/ou
modifica esse item somente até encontrar a forma considerada ideal – ou eventualmente, no
caso dos jogadores de RPG que usam um avatar de dragão e depois da luta retornam à forma
original. As skins vez por outra é que são modificadas. Alguns jogadores gostam de alterar o
tom da pele (mais bronzeado no verão, por exemplo), adotar sinais como sardas etc. Miss
sempre muda algo quando entra no SL – cabelo, roupa, skin, mas a shape também permanece
a mesma porque ela, que é baixinha na RL, argumenta que se identifica com a altura do
avatar. Num primeiro momento, Miss afirma que esse é o “único ponto em comum” que tem
com a sua boneca, porém mais na frente vamos ver que há outras semelhanças.
Figura 35 – Misshotchilli, 31 anos: “sempre que entro no sl tenho que mudar algo”
Miss fica pelo menos uma hora mudando o visual a cada vez que entra no SL. Chega a
trocar de roupa umas dez vezes por dia. Na observação participante eu já havia percebido que
alguns jogadores dedicavam muitas horas a essa prática, como se fosse um ritual diário. A
cada vez que entram no jogo, vão a algum lugar tranquilo, sem muito tráfego de pessoas, e
editam suas aparências, trocam de roupa etc. Só depois disso é que “saem”, ou seja, começam
a circular pelos lugares preferidos ou explorar novas ilhas.
Na época da entrevista, o avatar de Miss estava vestido de neko, com cauda e orelhas
de gato. Essa é uma relação interessante, porque ela cria três bichanos na RL – o segundo
ponto em comum, bastante relacionado à personalidade da jogadora. No peito do avatar,
colocou uma tatuagem com pegadas de felino. A jogadora, assim como Logan, assume que é
“doida por tatuagens”, ao mesmo tempo em que revela o desejo de fazer uma igual à do
avatar. Mas não nos seios. Talvez nas costas. E o terceiro ponto em comum que a jogadora
aponta ter com o avatar é justamente
Quando perguntada sobre o fato de Miss estar modificando o corpo de sua dona na
“real”, por causa da tatuagem que ela quer fazer igual, a jogadora diz que não. Que é só a
tatuagem. “Não vou sair para a rua de cauda e com orelhas de gato”, compara, indicando que
está ciente do que é realidade e do que é fantasia no jogo. Além de tatuagem, o avatar de Miss
153
também tem um piercing na boca. E ela tinha dois piercings nas orelhas e outro no nariz na
RL, mas teve que tirar por causa do trabalho. Significa que, de alguma forma, Miss se realiza
através do avatar. Vive “se modificando”, segundo ela, porque no jogo “não há médicos”, ou
seja, não há agulhas, cirurgias de verdade. Também não há o olhar vigilante dos colegas de
trabalho.
Miss garante que não quer ser como o avatar e diz que nunca faria uma cirurgia
plástica com fins estéticos. A jogadora afirma estar satisfeita com sua aparência RL. Mas
gosta de poder “brincar de boneca”, de poder se modificar sempre que lhe apetece.
Os entrevistados sabem que o SL é um jogo e por isso podem ter avatares perfeitos lá,
mas que isso seria algo distante de suas realidades – “não sou perfeita, sou humana”, afirma
Miss. Curiosamente, a possibilidade de diminuir as imperfeições do ser humano através de
cirurgias plásticas reais, implantes etc, atrai os jogadores menos do que eu imaginava, o que
me fez mudar alguns pressupostos. Inicialmente, minha suposição era a de que as formas
turbinadas dos avatares eram moldadas por pessoas que já tinham feito ou desejavam realizar
alguma intervenção estética na RL. Mas logo percebi que essa relação era uma fantasia – a
maioria dos pesquisados não fez nem deseja fazer, eles se limitam à simulação do SL, que é
absolutamente reversível e indolor. Dos 16 entrevistados, apenas dois manifestaram a
intenção de realizar uma intervenção estética – Logan para deixar o nariz mais afilado e F.D.
para aumentar os seios. Mesmo assim essa última diz que não faz porque, além de não ter
dinheiro, não tem coragem. Em geral, as pessoas admitem que só fariam alguma intervenção
cirúrgica em caso de acidente ou doença.
O avatar torna-se, portanto, um veículo fundamental para a realização desse desejo de
mudança corporal, sem os conhecidos ônus reais (dor, possíveis deformações,
irreversibilidade em alguns casos, investimento financeiro alto). Mirella, que já foi modelo na
vida off-line, até teve oportunidade de colocar silicone nos seios quando trabalhava numa
agência de modelos, mas não encarou. Temia as consequências (a bolsa de silicone poderia
154
estourar...). Por ser magra, também considerou que ter seios grandes poderia ficar
desproporcional em relação ao seu tipo físico.
Da mesma forma que a maioria dos entrevistados nunca realizou nem realizaria
cirurgias plásticas com fins estéticos, podemos dizer que uma minoria dos jogadores possui
tatuagem ou piercing na vida real. Dos 16 entrevistados, apenas três afirmaram possuir
tatuagem (Assaliah, Logan e Misshotchilli), e dois manifestaram o desejo de fazer uma
(Rafaelle e Roxeli). Sammi, inclusive, tinha tatuagem no braço e fez uma cirurgia – a única em
sua vida com fins estéticos – justamente para removê-la. Disse que o desenho, feito quando
ela era muito jovem, parecia “cafona” sobre sua pele. Depois dessa revelação fui observar seu
avatar mais atentamente e percebi que ele não usava desenhos sobre a pele.
Os demais demonstram medo de sentir dor ou receiam sofrer um suposto preconceito
que haveria na sociedade em relação a tatuagens (aquela velha ideia de que só se tatua quem é
marinheiro ou presidiário). Podemos inferir, a partir dessas informações, que as possibilidades
de edição do corpo real são pouco utilizadas pelos jogadores, por motivos diversos. Mas
existe uma tensão, provocada pelo desejo de ter um corpo diferente, de “se ver” de um ângulo
diferente, mesmo entre aqueles que tentaram fazer um avatar parecido. E esse desejo só é
plenamente realizado no SL.
parte do jogador. Dinheiro que pode ser real ou virtual – o que importa é consumir itens para
poder “brincar de boneca”, mudar sempre de roupa, por acessórios novos no avatar, afinal,
essa é a melhor parte da brincadeira. Os pesquisados não querem se modificar na RL, mas
querem ter licença plena para realizar essa fantasia no SL. Neste tópico, vamos procurar
entender qual a relação dessas pessoas com o dinheiro no jogo e que estratégias são mais
utilizadas na obtenção de novos itens para compor o visual do avatar.
Apesar de poucos se declararem consumistas (na RL ou no SL), a maioria dos
entrevistados investem dinheiro real no jogo com o objetivo de se capitalizar para poder
consumir. Entre os 16 pesquisados, sete compram ou já compraram lindens e dois se assumem
como potenciais investidores. Assaliah, por exemplo, calcula que gastou R$ 1 mil em um ano
de SL. Comprou casa, mobília, roupas, relógios, armas para seu personagem de RPG, skins.
Ele conta que chegou a gastar L$ 15 mil lindens numa noite, numa loja de fantasias do tipo
ninja e samurai. Comprou 12 conjuntos. O item mais caro foi um conjunto do anjo Locke, que
custou L$ 850. Mas diz que comprou por impulso, porque acaba não usando – sim, o virtual
nos dá a sensação de que podemos ter tudo o que desejarmos, mesmo que seja apenas para
deixar armazenado no inventário. Noutra ocasião, Assaliah investiu mais L$ 2.500 numa AO
(animação que simula os movimentos do avatar, como o jeito de andar, sentar, parar etc). “É
bacana porque ninguém tem. É muito caro”, orgulha-se, revelando uma satisfação por
conseguir se diferenciar em meio à multidão.
Logan desembolsa algo em torno de R$ 100 por mês, grana que investe basicamente
em tatuagens e roupas. No início ele conta que pegava muita coisa em freebie, mas deixou de
frequentar esses lugares porque os produtos são muito comuns, “todo mundo tem”. Agora, só
compra em lojas de grife. Uma necessidade de diferenciação que supostamente eleva seu
status no jogo e dá um sentimento de superioridade em relação àqueles que adquirem apenas
produtos gratuitos. Para ele, gastar dinheiro real significa “jogar pra valer”.
se você está insatisfeito com aquela roupa, vale a pena você comprar. É isso
que te mantém no jogo. Se é para jogar, vamos jogar.
Logan, 27 anos
idênticas comercializadas por um preço mais baixo) de tênis Reebok e Nike, bolsas Louis
Vuitton, camisas Hugo Boss, calças Diesel etc. São peças desenhadas para
turboconsumidores, daqueles que perambulam por grandes shopping centers e gostam de
comprar marcas mundialmente conhecidas, como descreveu Lipovetsky, em busca de
experiências emocionais.
O interessante é constatar que no SL o próprio corpo é visto como um objeto de
consumo. Ele é performatizado simbolicamente, consumido como um objeto. Existem marcas
famosas de shapes e skins, como Redgrave, Lombra e Angel‟s, que costumam ter um preço
elevado. Quando ainda existia, a Ilha Recife Digital veiculou o seguinte “anúncio” entre os
membros da comunidade:
A Ilha Recife Digital e Rádio Roxy, sai na frente e tem a honra de anunciar a
marca italiana de shapes/skins (darks, negras, indias, ruivas, loiras, bronzeadas)
Angel‟s, para pessoas perfeitas como voce*¨¨*:•.-:¦:45
Tal apelo comercial (“para pessoas perfeitas como você”) acaba atraindo a atenção dos
consumidores virtuais. Se compram é porque, de alguma maneira, se identificam com o
produto e porque querem se destacar na multidão. Poderíamos pensar que bastaria usar uma
cópia – mais barata e faz o mesmo “efeito”, afinal, tudo ali é virtual mesmo. Mas também no
jogo não basta usar uma cópia – o original, apesar de mais caro, oferece um plus – o status,
algo que só agrega sentido a partir do olhar do outro.
Alguns jogadores chegam a ficar “desapontados” quando descobrem que o que estão
usando é cópia. Como F.D., que desembolsa algo em torno de R$ 50 por mês no jogo e faz
questão de comprar somente peças originais. É isso que lhe dá satisfação – “é caro, mas
compensa”. Vejam como ela fala com naturalidade sobre os diversos “corpos” que já possuiu:
Eu usava Redgrave, um copy, só que eu não sabia. Quando eu entrei foi com
uma da Alady, que era free. Me passaram a Moon da Redgrave que era linda,
toda pintadinha, mas quando descobri que era copy fiquei muito triste. Só
comprei porque eu queria a original da Moon. (...) Eu peguei a copy, gostei
muito, fui na loja e comprei a original. E agora tô com essa que não lembro o
nome da loja. Ah, é da Lombra. Ela é mais cara. Custou 1 k e 200 46, mas
compensa. É muito linda.
F.D., 34 anos
45
Anúncio distribuído como “notecard” no dia 28 de maio de 2009.
46
Mil e duzentos lindens.
157
Um dos casos mais emblemáticos que identifiquei, relacionado ao uso de dinheiro real
no jogo, talvez seja Sammi. Ela, que gasta cerca de US$ 150 por mês no SL, diz que não
precisa frequentar freebies nem trabalhar no jogo. Ao invés disso, usa seu cartão de crédito e
acredita que isso é tão natural quanto gastar dinheiro real com jogos de tabuleiro e
videogames.
também gosta de consumir no mundo virtual. Por isso, frequentemente utiliza o cartão de
crédito para se capitalizar no jogo.
Lembro que, numa das vezes em que nos encontramos, elogiei as roupas de Sammi,
uma vestimenta que pode ser considerada cara para os padrões do SL. Estava vestida de
guerreira medieval, usava até uma espada, algo muito sofisticado. Enquanto vampira, estava
pronta para sair e “caçar”. Ela respondeu: “Eu jogo pra valer”. Para Sammi, assim como para
Logan, jogar pra valer significa investir no jogo, seja tempo, dinheiro ou os dois.
Quem não investe dinheiro real no SL procura se capitalizar trabalhando ou
acumulando lindens obtidos em campings, exploders, máquinas caça-níqueis etc.
AriadnaDragon joga bingo e trabalha numa agência de modelos, como instrutora. Para ela,
usar cartão de crédito para comparar lindens está fora de cogitação. A jogadora diz que se vira
como pode e garante que pesquisa muito antes de comprar. É frequentadora assídua das
freebies e participa de grupos que compartilham informações sobre onde estão os melhores
produtos gratuitos ou vendidos a preços simbólicos. Assim, consegue estar sempre “bem
vestida” e “na moda”.
AriadnaDragon diz que alguns produtos gratuitos disponíveis no SL possuem
qualidade satisfatória. Pena que não existem freebies na RL...
Essa jogadora afirma que tem uma relação desinteressada com o dinheiro na RL e que
acaba levando isso para o jogo. Para ela, dinheiro são apenas “papéis coloridos”. O item mais
caro que comprou até agora no SL foi uma skin, por cerca de L$ 1.500. Conta nunca ter
gastado muito dinheiro virtual em roupas ou objetos, tampouco em aluguéis de casas ou ilhas.
Mas se considera uma pessoa vaidosa na RL e na SL, gosta de “se diferenciar” dos outros.
Confessa, inclusive, ter vontade de levar todo seu guarda-roupa do jogo para a RL. “Hay
muchisima moda aca que podria ser usada en RL”, justifica. E um fato engraçado ocorreu
durante a entrevista. Quando dissemos que íamos tirar algumas fotos do seu avatar, ela
respondeu que “não estava vestida para fotos”. O cúmulo da vaidade!
Roxeli é outra que afirma não dar muita importância ao dinheiro no jogo. Ela diz que é
perfeitamente possível obter tudo grátis e que quando precisa de lindens recorre às máquinas
caça-níqueis. E com isso consegue sustentar o aluguel da “casa” (L$ 250 lindens por semana)
e comprar algumas roupinhas para seu avatar em freebies. Roupa é o item que ela costuma
modificar mais, porque não muda o shape nem a skin desde que encontrou a aparência ideal.
A jogadora se define como uma pessoa simples, despreocupada com a aparência. Pode
ser considerada uma exceção dentro do SL – dos 16 entrevistados, apenas três (Roxeli, F.D. e
Assaliah) não se assumem como pessoas vaidosas. Mas vale aqui uma reflexão. As pessoas
160
até podem dizer que não são vaidosas, mas no fundo se preocupam com a aparência, sim. E
consomem bastante no jogo com o objetivo de incrementar o visual.
Pode-se dizer que a aparência do avatar de Roxeli foge um pouco dos padrões do SL.
Tem o cabelo crespo, encaracolado e, como adora futebol, posou para as fotos com uma
camisa da seleção argentina. Ao mesmo tempo, usa piercing, está sempre maquiada, de
shortinho curto, botas, boné. “Quizas para uma reunion, fiesta, si me arreglo um poco”,
admite. Vimos que Assaliah, apesar de não se assumir como uma pessoa vaidosa, confessa
que compra por impulso – chegou a gastar L$ 15 mil numa única noite numa loja de fantasias.
Também vimos que F.D. gasta R$ 50 por mês no SL e faz questão de comprar somente peças
originais. Ou seja, eles dizem uma coisa e fazem outra.
De todo modo, o SL enquanto jogo se apresenta como um divertimento. As pessoas se
envolvem, investem tempo e dinheiro ali, se relacionam com outros jogadores, exercitam a
imaginação. O avatar, um ser essencialmente performático, é o grande veículo dessa
interação. Ele sempre traz algum traço peculiar do seu dono, seja refletindo o “real” ou dando
margem à fantasia. As identidades são fluidas, rejeitam qualquer tipo de fixidez. Na
brincadeira de consumir para “se editar”, ou “se customizar”, os jogadores expressam ali seus
desejos, suas vontades, imprimem suas marcas, para se ver e serem vistos.
Mas ainda podemos nos perguntar: qual o sentido disso tudo? Adultos brincando de
boneca, de casinha, de carrinho no mundo virtual? O que torna essa prática tão relevante para
essas pessoas, transformando-se em objeto de tanto investimento? Seria o divertimento puro e
simples, a realização de fantasias? Ou é relevante porque mobiliza a imaginação e ao mesmo
tempo dá a chance de nos enxergarmos através de um grande espelho retrovisor em 360
graus? Sem dúvida, o SL propicia todas essas experiências. A imaginação e o espelho
parecem ser a tônica desse jogo que se propõe criar uma segunda vida, uma nova experiência
de estar no mundo.
161
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Empreendemos esta pesquisa no intuito de verificar como o corpo vem sendo tratado
na internet, mais especificamente nos mundos virtuais, e que questões essa relação traz para
pensarmos a identidade dos sujeitos no mundo contemporâneo. Corpo enquanto superfície
para inscrição de desejos numa sociedade que valoriza a busca pelo prazer através do
consumo. Um corpo performatizado, construído simbolicamente. A partir de um jogo de
computador, o Second Life, observei atenta e ativamente como seus usuários estão projetando
suas experiências corpóreas no ciberespaço, ora reproduzindo padrões de beleza dominantes,
ora dando asas à imaginação, entregando-se à realização de fantasias que não podem ou não
querem viver no mundo off-line. O avatar é um ser que se situa entre essas duas
possibilidades imagináveis apenas em um ambiente de simulação e potência, o que confirmou
minha hipótese inicial de trabalho.
As entrevistas realizadas em profundidade com 16 jogadores do SL ratificaram essa
hipótese e ajudaram a esclarecer outro viés colocado em teste: que a experiência corporificada
na forma de um avatar é uma via de mão dupla – apesar da liberdade imaginativa, os
jogadores acabam transportando traços de suas vidas off-line para seus personagens e vice-
versa. Ou seja, o avatar também tem o poder de alterar significativamente a vida do seu
usuário. Nesse jogo, entram ingredientes como imersão, envolvimento emocional e muito
investimento, sobretudo de tempo e dinheiro.
Essa relação, entretanto, está longe de ser pacífica. Existe um grau de tensão e um
flutuar entre a transparência e a opacidade, entre a rigidez e a fluidez. O virtual abre espaço
para o jogo de identidades, o uso de máscaras, o oculta/revela. Mas também escancara
desejos, mostra o que é possível fazer num mundo de potência e fantasia. A própria sensação
de estar no controle é ela mesma uma fantasia, inclusive a reprodução de padrões do mundo
off-line. O avatar é construído sob o olhar do outro e dos próprios jogadores, que ali podem se
enxergar num ângulo de 360 graus. E é daí que surge o constrangimento que faz todos
parecerem iguais – magreza para as mulheres, músculos para os homens. Os corpos que
encontramos são mais do que reais, são hiperreais, uma vez que mais perfeitos, acabados,
supostamente mais controláveis. O controle não é pleno – é o controle possível num ambiente
162
mediado pela tecnologia. Se algo der errado, faço de contas que não é mesmo comigo – o
problema é do avatar. Afinal, é apenas um jogo.
Como etnógrafa, pude perceber que a imagem do corpo que vem sendo construída na
internet reflete uma preocupação típica dos tempos atuais – sermos eternamente jovens e
belos. Viveríamos na cultura do simulacro e no SL não é diferente. Também lá existe um
corpo plástico a ser plenamente modelado e consumido, e o resultado vai depender dos meus
anseios e da minha imaginação. Posso fazer um avatar parecido comigo, mas também posso
ousar, aumentar os seios, usar aquela tatuagem que nunca tive coragem de fazer, satirizar
padrões de beleza estabelecidos. Posso, ainda, mergulhar na fantasia, construindo um avatar
de dragão ou de anjo. Da mesma forma, posso voltar a ser criança ou experimentar como seria
viver na pele de uma vampira e sair para “caçar”. Posso ser punk hoje, perua amanhã.
A liberdade existe, apesar do constrangimento. O que menos importa no processo de
produção do corpo virtual é o sentido de verdade. Talvez a essência do jogo de aparências seja
mesmo o prazer dos sentidos, onde a busca pelas formas perfeitas ganha um caráter lúdico.
Como uma simulação da vida, o jogo nos oferece muitas possibilidades. Permite-nos fazer
coisas que de outro modo não seriam possíveis, como voar ou se teletransportar para o outro
lado do mundo em questão de segundos. Ou fazer coisas que não nos permitimos na vida off-
line, como encher o braço de tatuagens ou usar um cabelo azul, inclusive para testar como
seria fazer a mudança fora do ambiente lúdico.
Verificamos que construir um avatar significa construir um personagem, adotar
provisoriamente uma outra identidade, ou outras identidades. Posso escolher ter um amigo,
um irmão, posso fazer sexo e experimentar ficar grávida. As experiências ganham um sentido
particular na medida em que eu me projeto no jogo e me permito novas sensações. Como
beber sem sofrer os efeitos da ressaca ou fumar sem correr o risco de contrair câncer de
pulmão. Apesar de ser apenas uma simulação, o jogo nos remete a uma nova experiência de
estar no mundo.
A própria dinâmica da internet e dos jogos eletrônicos on-line não nos permite ter
muitas certezas ou “conclusões”. Há muitas suspeitas e desconfianças. Entretanto, posso
afirmar que as experiências que o SL propicia são relevantes para o cotidiano dos jogadores,
que investem cada vez mais tempo e dinheiro nessa atividade. Há sempre aquela possibilidade
de poder “se inspirar” no avatar para emagrecer, por exemplo. Incorporar um personagem
significa poder levar para o jogo minha história de vida e ao mesmo tempo aprender algo em
troca. É, de fato, uma relação de mão dupla. Vivemos entre a realidade e a ficção, transitando
entre os dois mundos. Vivemos entre a transparência e a opacidade, entre a fluidez e a rigidez.
163
Nessa brincadeira, produzimos significados sem que seja necessário distinguir uma dimensão
da outra. Afinal, a vida é um contínuo.
Posso dizer a partir do que vi, ouvi e vivi que o jogo amplia nossos horizontes,
potencializa a sociabilidade e nos faz pensar sobre o que o futuro nos reserva, tendo em vista
a perspectiva de vivermos cada vez mais imersos em ambientes virtuais. Acho que não
devemos ser tão otimistas, quanto Castells, Lévy e Lemos, mas também não podemos ser tão
pessimistas quanto Virilio e Baudrillard. Prefiro pensar como Bauman, para quem vivemos
uma época de fragmentação, de eternidades efêmeras. Se essa época nos brinda com
espetáculos multimídia cada vez mais realistas como o SL, e se é nosso destino viver cada vez
mais plugados em universos paralelos, que assim seja. Não seremos menos humanos por isso.
164
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VILAÇA, Nízia (2007). A edição do corpo: tecnociências, artes e moda. Barueri, SP: Estação
das Letras Editora.
ANEXO 1
Glossário do Second Life
Alt – Forma curta para Conta alternativa. Alguns usuários optam por ter uma segunda conta
no SL além da conta principal (main account). Normalmente é para guardar a moeda própria
do jogo (avatar-caixa).
AO – Sigla para Animation Overide. São animações que conferem um estilo próprio ao
avatar, seja no jeito de andar, parar, sentar etc. As AOs são “vestidas” e acionadas no
momento em que o usuário desejar.
AFK – Sigla para Away from keyboard. Acontece quando o jogo trava (crash) e o usuário é
deslogado do jogo.
Avatar – Representação em 3D do usuário. Pode ter forma humana, de animais, monstros etc.
Ban – Do inglês, banir. Quando um usuário é banido de determinada ilha não pode mais
retornar.
BRB – Forma curta para Be right back. Do inglês, Volto logo. É quando o usuário sai da
frente da tela do computador para fazer alguma outra coisa porém continua logado.
Calling card – Do inglês, Cartão de visita. Contém o perfil do usuário e poder ser dado a
outro para facilitar o contato.
Camping – Lugar onde se recebe dinheiro virtual executando alguma tarefa por determinado
tempo, seja dançando, trabalhando etc.
Chat – Do inglês, bate-papo. Na conversa local, um usuário pode conversar com outro até
uma distância de uns 25 quilômetros.
Damage – Do inglês, dano. Pode ocorrer em regiões marcadas como não seguras, que exibem
um ícone de dragão acompanhado da legenda 100%. Nesses locais, qualquer objeto ou arma
171
pode causar dano a um usuário. Se o dano levar a uma morte de 100%, o usuário é
automaticamente teleportado para sua casa.
DCS – Sigla para Dynamic Combat System (DCS). Um dos sistemas de RPG utilizados
dentro do SL. Controla a contagem de pontos e de experiência (XP), evolução das espécies,
status dos jogadores etc.
Eject – Do inglês, ejetar. Se o usuário tenta entrar numa área sem permissão é
automaticamente ejetado para fora da propriedade.
Freebie – Local onde criadores disponibilizam produtos de graça para outros usuários.
Gestures – Combinação de animação com som. Cada inventário tem uma pasta com várias
gestures, como vaiar, aplaudir, gargalhar, paquerar, fumar, abraçar etc.
Griefer – Usuário que costuma atormentar outros. Normalmente usa gaiolas para prendê-los,
armas de empurrar, textos que preenchem a tela etc.
Home – Do inglês, casa. O usuário pode optar para que toda vez que entre no jogo seja
teleportado para o local marcado dessa forma.
HUD – Sigla para Heads-Up Display. São ferramentas que dão acesso a determinados
recursos. Uma HUD de neko, por exemplo, permite que o usuário emita miados, ande em
quatro patas etc. Uma HUD de vampiro permite que o usuário ofereça a mordida e assim por
diante. As HUDs são anexadas ao avatar e ficam visíveis na tela do jogador.
Objetos (tipos):
- No transfer – Objeto que não pode ser transferido para outro usuário.
Lag – Do inglês, atraso, demora. Situação em que o usuário tem dificuldade para se
movimentar, carregar imagens, anexar objetos em determinado sítio ou para publicar
mensagens, seja por congestionamento na rede do próprio SL ou problemas na conexão à
internet.
Landmark – Endereço de um local (ilha, terreno, loja etc). Forma curta: land.
Linden dólar (L$) – Moeda oficial do Second Life, com cotação no mundo real. Forma curta:
linden, lindens.
Lucky chair – Do inglês, cadeira da sorte. São cadeiras que sorteiam prêmios (dinheiro ou
produtos), normalmente pela letra inicial dos nomes dos usuários.
Note card – Arquivo de texto contendo mensagens de boas vindas, avisos, regras, explicações
sobre o funcionamento de determinado sítio ou produto. Forma curta: note.
Partner – Do inglês, parceiro. O residente pode escolher outro como parceiro, geralmente é
namorado (a), esposa ou marido.
Profile – Do inglês, perfil. Contém informações sobre a segunda vida do usuário (nome, foto,
quando nasceu, parceiro, grupos a que pertence, tipo de conta), sobre a primeira vida (foto e
texto a critério do usuário), locais mais visitados, interesses etc.
Prims – Forma curta de Primitives ou primitivos. São os objetos básicos colocados dentro de
cada SIM ou ilha. Normalmente há um limite para a quantidade que pode ser colocada na
173
área, dependendo do tipo de SIM. Juntando vários Prims consegue-se criar coisas, como
roupas, mobília, poseballs etc.
RA – Sigla para Reportar Abuso. Quando o usuário denuncia outro residente ou local
informando aos administradores do SL detalhes como data, local, natureza do abuso etc.
Regiões (tipos):
- Parental Guidance (PG) – Controle dos pais. Não admitem violência, conteúdos sexuais
explícitos, nudez ou roupas sexualmente explícitas, nem linguagem ofensiva.
- Mature (Maduro) – Regiões impróprias para menores de 18 anos. Para acessá-las é preciso
preencher um formulário na página do SL inserindo o número de um documento de
identificação (RG, CPF, passaporte).
Rezzar ou dropar (rezz/drop) – Colocar no chão uma caixa com vários objetos, por
exemplo, cabelos ou tatuagens, para que o conteúdo seja extraído e possa ser utilizado.
Apenas alguns lugares permitem isso.
Shape – Literalmente, a forma do avatar. É o esqueleto que abriga a skin, roupas, acessórios,
cabelos etc. Cada parte pode ser customizada a partir de controles deslizantes – corpo, cabeça,
olhos, orelhas, nariz, boca, queixo, tórax e pernas. Antes de salvar as mudanças o usuário tem
a opção de ver como ficaria (preview).
SIM – Forma curta de Simulator ou simulador. É sinônimo de ilha, ou seja, um espaço que
pode ser adquirido ou alugado para construção. Tipos: Open Spaces (OS), com capacidade
menor; e FullSim, com capacidade ilimitada de construção.
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Skin – Literalmente, a pele do avatar. Traz detalhes como pelos (barba, bigode, sobrancelha),
sardas, sinais, maquiagem, unhas etc. Também define a cor do avatar (branco, negro, moreno,
amarelo etc). Não pode ser modificada. A skin é “vestida” pelo avatar.
SLT – Sigla para Second Life Time. O horário do SL é o padrão para a região do Pacífico. São
seis horas a menos em relação ao horário de Brasília.
SLurl – É o endereço das regiões e ilhas na forma de link. Geralmente tem o seguinte
formato: http://slurl.com/secondlife/region/XXX. Quando digitada ou colada num navegador
(browser), leva direto ao local desejado.
ANEXO 2
Roteiro de entrevista
1. Fale um pouco sobre quando e como começou a jogar SL. Como tomou conhecimento do
jogo e o que mais lhe despertou interesse?
4. Como você descreveria seu avatar e de que forma você se identifica com ele? Seu avatar
possui alguma relação com sua RL?
7. Com que frequência você promove modificações no(s) seu(s) avatar(es) e que itens
costuma modificar mais?
8. Fale um pouco sobre suas estratégias para obter novos itens para seu(s) avatar(es).
9. Você acha importante acumular lindens para poder adquirir novos itens? Como é a sua
relação com o dinheiro dentro do jogo?
10. Costuma gastar muito para obter a aparência desejada no SL? Quanto já chegou a gastar
para adquirir um item muito desejado? E na RL, como é essa relação?
11. As ferramentas para edição do avatar atendem a suas necessidades? Por que?
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12. Você mesmo(a) já criou algum item novo, customizado para uso do seu(s) avatar(es), ou
já pagou para alguém criar?
13. Em que medida você se considera ou não uma pessoa vaidosa na vida real, preocupada
com a aparência?
15. Se fosse possível, você gostaria de incorporar elementos do seu avatar na RL? Quais e por
que?