As Duas Fontes Da Moral e Da Religião (Henri Bergson)
As Duas Fontes Da Moral e Da Religião (Henri Bergson)
As Duas Fontes Da Moral e Da Religião (Henri Bergson)
As Duas
Fontes da Moral
e da R e g i ã o
ALMEDINA
010493
ÍNDICE
NOTA DE APRESENTAÇÃO 7
CAPÍTULO I
A OBRIGAÇÃO MORAL
Natureza e sociedade. - O indivíduo na sociedade. - A sociedade no indivíduo.
-Obediência espontânea. - Resistência à resistência.-A obrigação e a
vida.-A sociedade fechada.-O apelo do herói.-Força propulsiva da
emoção.-Emoção e criação?-Emoção e representação. - Libertação da
alma. - Marcha em frente. - Moral fechada e moral aberta.-O respeito
de s i . - A justiça.-Do intelectualismo em moral.-A educação moral,
-Adestramento e misticidade 23
C A P Í T U L O II
A RELIGIÃO ESTÁTICA
Do absurdo no ser razoável. - A função efabuladora. - A efabulação e a
vida. - Significação do "impulso vital". - Papel social da efabulação.
- Temas gerais de efabulação útil. - Segurança contra a desorganização.
- Segurança contra a depressão. - Segurança contra a imprevisibilidade.
- Do acaso. - "Mentalidade primitiva" no civilizado. - Personificação
parcial do acontecimento. - Da magia em geral. - Magia e ciência. -Magia
e religião. - Deferência perante os animais. - Totemismo. - Crença nos
deuses. - A fantasia mitológica. - Função efabuladora e literatura. - Da
existência dos deuses. - Função geral da religião estática 95
C A P Í T U L O III
A RELIGIÃO DINÂMICA
Dois sentidos do termo religião. - Porque nos servimos de um único termo.
-0 misticismo grego.-O misticismo oriental.-Os profetas de Israel.
-0 misticismo cristão. - Misticismo e renovação. - Valor filosófico do
misticismo. • Da existência de Deus. - Natureza de Deus. - Criação e amor,
- O problema do mal. - A sobrevivência. - Da experiência e da probabi-
lidade em metafísica : 179
HENRI BERGSON
AS DUAS FONTES
DA MORAL
E DA RELIGIÃO
NOTA DE APRESENTAÇÃO
LUÍS ANTONIO U M B E L I N O
ASSISTENTE DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
TRADUÇÃO
MIGUEL SERRAS PEREIRA
ALMEDINA
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO
AUTOR
H E N R I IJEKGSON
TÍTULO ORIGINAL
LES DEUX S O U R C E S DE LA M O R A L E ET DE LA R E L I G I O N
NOTA DU APRESENTAÇÃO
LUIS ANTÔNIO UM5ELINO
TRADUÇÃO
M I C U E L S E R R A S PEREIRA
EDITOR
LIVRARIA ALMEDINA
www.almedina.net
[email protected]
DESENHO GRÁFICO
FBA. F E R R A N D , B I C K E R & A S S O C I A D O S
[email protected]
EXECUÇÃO GRAFICA
G . C . - G R Á F I C A DF. C O I M B R A , LDA.
[email protected]
ISBN
972-40-1962-4
DEPÓSITO LEGAL
217702/04
DATA
J A N E I R O DE 2005
© Presses U n i v e r s i t a i r e s de France, 1 9 3 2
î.
Se é verdade que "quando se trata do pensamento (...) é tanto maior a
obra feita - que não coincide de modo algum com a extensão e o número
dos escritos - quanto mais rico for, nessa obra, o impensado, isto é, o que
através dessa obra e somente através dela vem até nós como nunca antes
pensado" a obra de Henri Bergson (18/10/1859 - 03/01/1941} deve ser
procurada entre as maiores. De facto, sob os diversos esquecimentos, in-
compreensões e silêncios de que foi alvo a sua filosofia (tanto mais estri-
dentes quanto viva foi a presença de Bergson na vida intelectual do seu
tempo), nunca esta deixou de ser palavra viva. Prova-o, por exemplo, o
início da publicação dos Études bergsoniennes sete anos após a sua morte
(primeiro na editora Albin Michel, depois na P.U.F.), a realização do
Colóquio Internacional "Bergson et nous" em 1959 (comemorando o cen-
tenário do seu nascimento), o texto de Deleuze de 1966 2 (confirmando
uma dívida insolúvel), o reconhecimento da sua influência por parte das
ciências cognitivas, o interesse da rieuro-filosofia 3, a leitura da fenomeno-
logia contemporânea que o reclama como mestre ou a meditação her-
menêutica de P. Ricoeur que, reconhecendo a impossibilidade de pensar
5
RICOEUR, R, La Mémoire, l'histoire, l'oubli, Seuil, Paris, 2000, pág. I, passim.
6
MERLEAU-PONTY, M., Éloge de la philosophie, in ID, Éloge de la philosophie et
autres essais, Gallimard, op. cit., pág. 39. Nesta referência não podemos esquecer a célebre
passagem do seu testamento onde declara: "Mes réflexions m'ont amené de plus en plus
près du catholicisme où je vois l'achèvement complet du judaïsme. Je me serais converti
si je n'avais vu se préparer depuis des années la formidable vague d'antisémitisme qui
va déferler sur le monde, f'ai voulu rester parmi ceux qui seront demain des persécutés".
Cf. WORMS, F. Bergson. Chronologie in Magazine Littéraire, avril 2000 {386), pág. 22-23.
7
Cf. Janicaud, D., Une généalogie du spiritualisme français, Martinus Nijhorf, La
Haye, 1969, pág. 6-7.
NOTA DE APRESENTAÇÃO
s
hl Mélanges, P.U.F., Paris, 1972, pág. 1503
9
LALANDE, A., Vocabulaire technique et critique dè la philosophie, Paris, 1962, cit.
in Encyclopédie Philosophique Universell, Tome 2 - Les Notions Philosophiques, P.U.F.,
1990, pág. 2447.
10
Cf. BELOT, G,, Un nouveau spiritualisme, in Revue philosophique, 1987; MADL
NIER, G., Conscience et mouvement, étude sur la philosophie française de Condillac a
Bergson, Alcan, Paris, 1936.
11
Cf. Lettre de joseph Lotte à Camille Quoniam, 21 avril 2931, in BERGSON, Mélan-
ges (Ouvres t. II), P.U.F., Paris, 1972, pág. 359.
1S
GOUHIER, Henri, Introduction in BERGSON, H. Ouvres, Édition du Centenaire,
P.U.E., Paris, 1959, pág. XXV.
9
riores, também na memória, pela qual tacteamos um passado cjue coexiste
no nosso presente, também no corpo, que imagem entre imagens topo
grafa virtualmente o mundo enquanto faz verdadeiramente parte das
coisas, 6 uma mesma evidência que se pode entrever: no momento em que
a experiência se torna "propriamente experiência humana" encontra o
saber de uma inerência ao interior da vida, inerência que se aprofunda e
dilata ao redobrar o movimento, élan, criação que a preenche e transborda.
A ideia de "criação" é para Bergson importante e, como poucas, moti-
va a sua reflexão. Em função do que fica dito, devemos situá-la num triplo
movimento: a criação está presente, primeiro, no próprio centro da expe-
riência individual, naqueles cuja intensidade de acçáo ultrapassa a huma-
nidade instaurando uma história outra; ao mesmo tempo é uma proprie-
dade da vida e, em derradeira análise, descobre-se no próprio acto criador
que é de Deus senão o próprio Deus. Esse "acto de onde brota a vida e ao
qual a consciência regressa" 1 3 , tornará finalmente clara a necessidade de
meditar a experiência mística, enquanto esta alberga um significado
metafísico incontornável da própria humanidade (irredutível a facto psi-
cológico ou curiosidade histórica), ao representar a ideia-limite de uma
coincidência parcial com o próprio mistério da acção criadora.
2.
Les Deux sources de la morale et de la religion, a obra de que agora se
apresenta tradução portuguesa, é a última das quatro grandes obras 14 em
torno das quais se organiza a meditação filosófica de H. Bergson. A pri-
meira é Essai sur les données immédiates de la conscience de 1889, que
retoma a sua tese de Doutoramento apresentada um ano antes; Matière
et mémoire é publicada sete anos depois, em 1896, e L'Évolution créatrice
em 1907. Les Deux sources é publicada em 1932. Bergson tem setenta e
três anos e demorou vinte e cinco anos a preparar este livro. Como em
13
ID, op. cit., xxvii.
14
A estas obras se juntam os textos (onde Bergson procura aplicar algumas das
suas ideias a problemas específicos) Le Rire de 1900 e Durée et simultanéité de 1922,
bem como duas compilações de artigos (que explicitam alguns pontos das obras que
os precedem) intituladas respectivamente L'Énergie spirituelle (1914) e La Pensée et le
mouvant (1934). Anote se ainda a publicação da Coiirs de Bergson, sob a direcção de
Henri Hude, na P.U.F. Para completar a informação bibliográfica cf. GUNTER, Pete, Henri
Bergson, a Bibliography, revised second edition, Bowling Green, Ohio, 1986.
10
NOTA DE APRESENTAÇÃO
qualquer um dos seus textos, honrará pois os seus leitores com a humil-
dade de apenas propor como obra um trabalho 110 mais elevado grau de
precisão, rigor e maturação; e, num mesmo movimento, como sempre
mostrará a que ponto é exigente o tempo da filosofia e árdua a tarefa do
pensador. Quando em 1 9 1 1 J. Lotte o visita c lhe pergunta pelo seu livro
de moral, a reacção do filósofo é, a este respeito, significativa: "perante
esta pergunta inesperada - conta J. Lotte -, Bergson passou de um ar sor-
ridente a um ar sério, o seu rosto ganhou uma expressão de desânimo, de
desalento; sem saber, tinha tocado num ponto sensível, para não dizer
doloroso. - O meu livro!... oh! não!... Não sei ... náo sei para onde vou...
São-me precisos anos para escrever um livro ... imagine quantos anos
separam cada um dos meus livros... Trabalho muito... Informação acumu-
lada, reflexão acumulada ... e quando o livro está escrito há nele tanto
lixo ... É assim, abro uma avenida, sem saber onde vai dar. E depois, quan-
do descubro o ponto de convergência, o livro está pronto. Não se escreve
um livro, não se pode escrever um livro, é necessário que ele se escreva,
que ele se mostre" 1 5 . E quando finalmente é publicado, surpreende antes
de mais em Les Deux sources a aparente autonomia de cada um dos seus
momentos. 0 primeiro capítulo, dedicado à obrigação moral, facilmente
poderia ser lido de modo autónomo; o segundo e terceiro capítulos, res-
pectivamente dedicados à religião estática e à religião dinâmica formam
em conjunto um novo ponto de configuração bem delineada; o último
capítulo intitulado Considerações finais. Mecânica e Mística encerra o
livro com um terceiro momento bem marcado. E, no entanto, é um mesmo
tecido que estes fios de reflexão conseguem urdir, o da decifração labo-
riosa da vida e da humanidade que não se pode dizer no esquecimento
do próprio homem.
15
Lettre de Joseph Lotte à Camille Quoniam, 21 avril, 1911, in Mélanges, op. cit.,
pp. 880 881. Neste mesmo sentido, é sempre referida a passagem do seu testamento
onde escreve: «Donc j'interdis formellement la publication de tout manuscrit, ou de
toute portion de manuscrit de moi, que l'on pourrait trouver dans mes papiers ou ailleurs.
J'interdis ta publication de tout Cours, de toute leçon, de toute conférence qu'on aurait
pu prendre en note ou dont j'aurais pris note moi-même, j'interdis également la publica-
tion de mes lettres. (...). Je prie ma femme et ma fille de poursuivre devant les tribunaux
quiconque passerait outre aux interdictions que je viens de formuler. Elles devraient
réclamer la suppression immédiate de ce qui aurait été publié». Cf. HUDE, Henri, «Les
Cours de Bergson», in AA.W., «Bergson. Naissance d'une Philosophie», Actes du collo
que de Clermont-Ferrand, 17 18 novembre 1989, PUF, Paris, 1990, pág. 26
ti
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13
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14
NOTA DE APRESENTAÇÃO
,8
Cf. MOORE, F.C.T., Magic in MULLARKEY, J. (ed.) The New Bergson, Manchester
University Press, 1999, pp. 135-144. O artigo em questão retoma partes de Bergson:
Thinking Backwards, Cambridge University Press, Cambridge, 1996.
15
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19
Para Bergson, o Deus do misticismo completo é o "Cristo dos Evangelhos" e a
experiência mística paradigmaticamente exemplificada pelos místicos cristãos. Veja-se
a obra clássica de GOUHIER, H., Bergson et le Christ des Évangiles, ed, Fayard, Paris,
1961.
20
MERLEAU-PONTY, M., Bergson se faisant in ID, Éloge de la philosophie et autres
essais, op. cit., pág. 305. Veja-se também, nomeadamente na mesma edição, o indispen-
sável Éloge de la philosophie, pp. 9-79. cuja leitura abre caminho à análise do capítulo
Interrogation et Intuition de Le Visible et l'invisible, (Gallimard, Paris, 1964, pág. 142
e seg.) no quai Merleau Ponty fará um balanço do seu projecto onto-fenomenológico
num diálogo com Husserl e Bergson.
16
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21
Cf. WORMS, F., Introduction à Matière el mémoire de Bergson. Suivi d'une brève
introduction aux autres livres de Bergson, ed. P.U.F., Paris, 1997, pág. 302.
20
NOTA DE APRESENTAÇÃO
mentos que tanto, ampliam o corpo. O seu apelo nem todas o seguire-
mos-, mas em todos ressoará, na contraluz de uma humanidade que geme
sob o peso dos progressos que fez, o sentimento de que o deveríamos
fazer, como se só assim pudéssemos chegar a ser improváveis artífices do
Tempo.
21
CAPÍTULO I
A OBRIGAÇÃO MORAL l*
23
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A OBRIGAÇÃO MORAL
25
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO
imperativo: temos de lutar deveras contra nós mesmos para nos repre-
sentarmos os princípios da mecânica de outro modo, que não inscritos
desde toda a eternidade em tábuas transcendentes que a ciência moderna
teria ido buscar a um outro Sinai. Mas se a lei física tende a assumir na
nossa imaginação a forma de um mandamento sempre que acede a uma
certa generalidade, reciprocamente um imperativo que se endereça a toda
a gente parece-nos ser um pouco como uma lei da natureza. Encontrando-
-se no nosso espírito, as duas ideias contagiam-se. A lei toma do manda-
mento o que este tem de imperioso; o mandamento recebe da lei o que a
lei tem de inelutável. Uma infracção da ordem social reveste-se assim de
um carácter antinatural: ainda que se repita com frequência, induz em
nós o efeito de uma excepção que estaria para a sociedade como um
monstro está para a natureza.
Que se passará, então, se nos apercebermos por trás do imperativo
social de um mandamento religioso? Pouco importa a relação entre os
dois termos. Quer interpretemos a religião de uma maneira ou de outra,
quer ela seja social por essência ou por acidente, um ponto é certo: de-
sempenhou sempre um papel social. Este papel é, aliás, complexo; varia
segundo os tempos e segundo os lugares; mas, em sociedades como as
6 nossas, a religião tem por primeiro efeito sustentar e reforçar as exigên
cias da sociedade. Pode ir muito mais longe, mas vai sempre pelo menos
até aí. A sociedade institui penas que podem ferir inocentes, poupar cul-
pados; pouco recompensa; vê grosseiramente e contenta-se com pouco:
onde está a balança humana que pese como deveria ser as recompensas e
as penas? Mas, do mesmo modo que as Ideias platónicas nos revelam,
perfeita e completa, a realidade da qual não percebemos mais que imi-
tações grosseiras, assim também a religião nos introduz numa cidade da
qual as nossas instituições, as nossas leis e os nossos costumes assinalam
quando muito, de longe em longe, os pontos mais salientes. Aqui em
baixo, a ordem é simplesmente aproximativa e mais ou menos artificial-
mente obtida pelos homens; lá no alto, é perfeita, e realiza-se por si só.
A religião vem pois completar aos nossos olhos a redução do intervalo,
já atenuado pelos hábitos do senso comum, entre um mandamento da
sociedade e uma lei da natureza.
Somos assim remetidos sempre para a mesma comparação, defeituosa
sob muitos aspectos, mas aceitável acerca do ponto que aqui nos interessa.
Os membros da cidade conjugam-se como as células de um organismo.
26 .
A OBRIGAÇÃO MORAL
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tadas na terra, que por baixo as sustentam. Todavia, não estamos de mo-
mento a falar do esforço por meio do qual cada um de nós escavaria até
ao fundo de si mesmo. Trata-se de algo possível, mas excepcional; e é à
superfície, no seu ponto de inserção no tecido das outras personalidades
exteriorizadas, que o nosso eu comummente descobre a que se enlaçar: a
sua solidez está nesta solidariedade. Mas, no ponto onde se enlaça, ele
próprio é um eu socializado. A obrigação, que nos representamos como
um laço entre os homens, começa por ligar cada um de nós a si mesmo.
Seria, pois, um erro acusarmos uma moral puramente social de negli-
genciar os deveres individuais. Ainda que, teoricamente, só perante os
outros homens estivéssemos obrigados, está-lo-íamos, de facto, perante
nós mesmos, uma vez que a solidariedade social só existe a partir do
momento em que um eu social se acrescenta em cada um de nós ao
eu individual. Cultivar este "eu social" é o essencial da nossa obrigação
perante a sociedade. Sem qualquer coisa dela em nós, a sociedade não
teria sobre nós preensão alguma; e nós, mal temos também necessidade
de nos dirigirmos a ela, bastamo-nos a nós mesmos, na medida em que a
descobrimos presente em nós. A sua presença é mais ou menos marcada
segundo os homens; mas nenhum de nós se poderia isolar dela em abso-
luto. Não o quereria fazer, porque sente bem que a maior parte da sua
força vem dela, e que deve às exigências incessantemente renovadas da
vida social essa tensão ininterrupta da sua energia, essa constância de
direcção no esforço, que assegura à sua actividade o mais elevado rendi-
9 mento. Mas não o poderia também fazer, ainda que o quisesse, porque a
sua memória e a sua imaginação vivem do que a sociedade pôs nelas,
porque a alma da sociedade é imanente à linguagem que fala, e porque,
ainda que ninguém mais esteja presente, ainda que se limite a pensar,
continua a falar de si para consigo. Em vão tentaríamos representarmo
nos um indivíduo desprendido de toda a vida social. Até mesmo mate-
rialmente, Robinson na sua ilha permanece em contacto com os outros
homens, porque os objectos manufacturados que salvou do naufrágio, e
sem os quais não poderia arranjar-se, o mantêm na civilização e, por con-
seguinte, na sociedade. Mas um contacto moral é-lhe ainda mais neces-
sário, porque em breve se deixaria desencorajar se não pudesse opor a
dificuldades que renascem sem cessar mais do que uma força individual
cujos limites experimenta. Extrai energias da sociedade a que permanece
idealmente ligado; elej)ode não a ver, mas ela, pelo seu lado, está presente
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1
Kipling, In the Rukh. na colectânea intitulada Many Inventions.
)
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? ?" 41
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alma. Verificamos que os três grupos a que nos podemos ligar compreen-
dem um número crescente de pessoas, e concluímos daí que a essas exten-
sões sucessivas do objecto amado corresponde simplesmente uma dila-
tação progressiva do sentimento. O que de resto encoraja esta ilusão é a
circunstância de, graças a um encontro feliz, a primeira parte do raciocí-
nio concordar com os factos: as virtudes domésticas associam-se às virtu-
des cívicas pela simples razão de a família e a sociedade, confundindo-se
na origem, terem permanecido em estreita conexão. Mas, repetimos, entre
a sociedade em que vivemos e a humanidade em geral há o mesmo con-
traste que entre o fechado e o aberto; a diferença entre os dois objectos é
de natureza, e não simplesmente de grau. Que se passa quando, dirigin-
do-nos aos estados de alma, comparamos entre eles os dois sentimentos
seguintes: apego à pátria, amor da humanidade? Quem não vê que a
coesão social se deve, em grande parte, à neceapidade de uma sociedade
se defender contra outras, e que começa por ser contra todos os outros
homens, que se ama os homens com os quais se vive? Tal é o instinto
primitivo. E continua presente, ainda que afortunadamente dissimulado
pelos contributos introduzidos pela civilização; mas ainda hoje amamos
natural e directamente os nossos pais e os nossos concidadãos, ao passo
que o amor da humanidade é indirecto e adquirido. Chegamos directa-
mente aos primeiros; à segunda, só por meio de um desvio; porque é
somente através de Deus, em Deus, que a religião convida o homem a
amar o género humano; como é também somente através da Razão, na
Razão por meio da qual todos comunicamos, que os filósofos nos fazem
olhar a humanidade e nos mostram nela a eminente dignidade da pessoa
humana, o direito de todos ao respeito. Nem num caso nem no outro
chegamos à humanidade por etapas, atravessando a família e a nação.
É pieciso que, de um salto, nos transportemos mais longe que ela e a
atinjamos sem a termos tomado por fim, ultrapassando-a. Aliás, quer fale
mos a linguagem da religião ou a da filosofia, quer se trate de amor ou de
respeito, é uma outra moral, é um outro género de obrigação, que vêm
então sobrepor-sè à pressão social. Até agora foi só desta última que tratá-
mos. Chegou o momento de abordarmos a outra.
Procurámos a obrigação pura. Para a encontrarmos, tivemos de reduzir
a moral à sua expressão mais simples. A vantagem foi que vimos assim
em que consiste a obrigação. O inconveniente, limitar enormemente a
moral. Não é, decerto, que aquilo que deixámos de lado não seja obriga-
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sem dúvida essa mora! que então sobrevêm. E, contudo, não exprimiría-
mos ainda a sua essência, porque o amor da humanidade não é um móbil
que se baste a si próprio e que aja directamente. Os educadores da juven-
tude sabem bem que não se triunfa do egoísmo recomendando o "altruís- -
mo". Pode até mesmo acontecer que uma alma generosa, impaciente de
se dar, se veja subitamente arrefecida à ideia de trabalhar "pelo género.. .
humano". O objecto é demasiado vasto, o efeito demasiado disperso. Pode-
mos, pois, conjecturar que se o amor da humanidade é constitutivo desta
moral, o é mais ou menos do mesmo modo que a intenção de atingir um
ponto implica a necessidade de transposição do espaço intermédio. F.m
certo sentido, trata-se da mesma coisa; noutro, é completamente diferente.
Se pensarmos apenas no intervalo e nos pontos, em número infinito, que
será necessário atravessar um a um, acabaremos por perder a coragem de
partir, à semelhança da flecha de Zenão; aliás, não veremos nisso inte-
resse algum, atractivo algum. iMas se transpusermos o intervalo conside^-.-f
rando apenas o seu termo ou olhando mais longe ainda, teremos fácil- 33
mente cumprido um acto simples ao mesmo tempo que teremos vencido
a multiplicidade infinita à qual essa simplicidade equivale. Qual é pois o
termo aqui, qual a direcção do esforço? O que é que, numa palavra, nos é
propriamente pedido?
Definamos para começar a atitude moral do homem que até agora
temos vindo a considerar. 0 homem faz corpo com a sociedade; ele e ela
estão conjuntamente absorvidos numa mesma tarefa de conservação indi-
vidual e social. Voltados para si mesmos. Decerto, é duvidoso que o inte-
resse particular concorde invariavelmente com o interesse geral: sabemos
em que dificuldades insolúveis esbarrou sempre a moral utilitária quando
pôs como princípio que o indivíduo não podia senão buscar o seu pró-
prio bem, quando pretendeu que, buscando-õ, seria conduzido a querer o
bem de outrem. Um ser inteligente, em busca daquilo que é o seu i n ç a s s e
pessoal, fará amiúde algo completamente.diferente.do que o interesse,
geral reclamaria. Todavia, se a moral utilitária se obstina em reaparecer
sob uma forma ou sob outra, é porque não é insustentável; e se é possível
sustentá-la, é justamente porque abaixo da: actividade inteligente, que
teria com efeito de optar entre o interesse pessoal e o interesse de outrem,
há um substrato de actividade instintiva primitivamente estabelecido pela
natureza, onde o individual e o social estão prestes a confundir-se. A célula
vive para si e também para o organismo, conferindo lhe e dele extraindo
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Não nos damos conta de que assim é quando dizemos "feminina" com
um matiz cie desdém, uma psicologia que dá tão grande e belo lugar à
sensibilidade. Os que falam assim cometem um primeiro erro, que é
darem crédito às banalidades correntes acerca da mulher, quando seria
tão fácil observar. Não vamos empreender, tendo apenas por fim corrigir
uma expressão inexacta, um estudo comparativo dos dois sexos. Limi-
temo-nos a dizer que a mulher é tão inteligente como o homem, mas que
é menos capaz de emoção, e que se há alguma potência da alma que nela
apresenta um menor desenvolvimento, não é a inteligência, mas a sensi-
bilidade. Trata-se, bem entendido, da sensibilidade profunda, e não da
agitação à superfície \ Mas pouco importa. O maior erro dos que consi-
derariam rebaixar o homem associando à sensibilidade as mais altas facul
dades do espírito é o de não verem onde está precisamente a diferença
entre a inteligência que compreende, discute, aceita ou rejeita, que se
cinge enfim à crítica, e a quê inventa.
Criação significa, acima de tudo, emoção. Não se trata apenas da lite-
ratura e da arte. Sabemos o que uma descoberta científica implica de
concentração e de esforço. O génio foi definido como uma longa paciên-
cia. É verdade que nos representamos a inteligência à parte, e à parte
também uma faculdade geral de atenção, a qual, mais ou menos desen-
volvida, concentraria mais ou menos fortemente a inteligência. Mas como
poderia esta atenção indeterminada, exterior à inteligência, vazia de
matéria, pelo simples facto de se unir à inteligência, fazer surgir desta o
que nela não estava? Sentimos bem que a psicologia continua a deixar-
-se iludir pela linguagem quando, depois de designar pela mesma palavra
todas as atenções prestadas a todos os casos possíveis, já não vê entre
elas, que se supõe então serem de uma mesma qualidade, outra coisa
que não sejam diferenças de grandeza. A verdade é que em cada caso a
1
Inútil dizer que as excepções são numerosas. 0 fervor religioso, por exemplo, pode
alcançar na mulher profundidades insuspeiladas. Mas a natureza provavelmente quis,
como regra geral, que a mulher se concentrasse no filho e encerrasse em límitesbastante
estreitos o melhor da sua sensibilidade. Nesse domínio é de resto incomparável: a emoção
é aqui supra intelectual, na medida em que se torna divinatória. As coisas que surgem
diante dos olhos maravilhados de uma mãe que olha para o seu filho pequenol Ilusão
talvez? Não é certo. Digamos antes que a realidade é prenhe de possibilidades, e que a
mãe vê no filho não só o que este será, mas ainda tudo o que poderia ser se não tivesse
a cada instante da sua vida de escolher e, por conseguinte, de excluir.
AS DUAS FONTES DA M O R A L F. DA R E L I G I Ã O
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A OBRIGAÇÃO M O R A L
golpe só até qualquer coisa que parece ao mesmo tempo una e única,
que em seguida procurará, como puder, desdobrar-se em conceitos múl-
tiplos e comuns, antecipadamente dados nas palavras.
Em resumo, a par da emoção que é o efeito da representação e que se
lhe acrescenta, há a emoção que precede a representação, que a contém
virtualmente e que é até certo ponto a sua causa. Um drama que mal
chega a ser uma obra literária poderá abalar os nossos nervos e suscitar
uma emoção do primeiro género, intensa sem dúvida, mas banal, colhida
entre as que experimentamos correntemente na vida, e em todo ocaso
vazia de representação. Mas a emoção provocada em nós por uma grande
obra dramática é de uma natureza completamente diferente: única no
seu género, surgiu na alma do poeta, e somente nela, antes de abalar a
nossa; foi dela que a obra saiu, porque era a ela que o autor se referia à
medida que ia compondo a obra. Não era mais que uma exigência de
criação, mas uma exigência determinada, que foi satisfeita'pela obra uma
vez realizada e que não o teria sido por uma outra a menos que esta
tivesse com a primeira uma analogia interna e profunda, comparável à
que existe entre duas traduções, igualmente aceitáveis, de uma mesma
música em ideias ou em imagens.
O mesmo é dizer que dando um amplo lugar à emoção na génese da
moral, não apresentamos de maneira alguma uma "moral de sentimento".
Porque se trata de uma emoção capaz de se cristalizar em representações,
e até mesmo em doutrina. Desta doutrina, como de qualquer outra, não 45
se teria podido deduzir aquela moral; nenhuma especulação criará uma
obrigação ou nada que com ela se pareça; pouco importa a beleza da
teoria, poderei sempre dizer que não a aceito; e, ainda que a aceite, pre-
tenderei continuar livre de me conduzir à minha maneira. Mas se a atmos-
fera de emoção comparecer, se a respirei, se a emoção me penetrar, agirei
segundo ela, movido por ela5. Não por constrangimento ou necessidade,
mas em virtude de uma inclinação à qual não quereria resistir. E em vez
de explicar o meu acto pela própria emoção, poderia igualmente deduzi-
lo então da teoria que terá sido construída pela transposição da emoção
em ideias. Entrevemos aqui a resposta possível a uma questão grave, que
voltaremos a encontrar adiante, mas que acabamos de aflorar de pas-
sagem. Há quem goste de dizer que se uma religião traz uma moral raova
a impõe através da metafísica que faz aceitar, das suas ideias sobre Deus,
sobre o universo, sobre a relação entre um e outro. Ao que se tem respon
53
AS DUAS FONTES DA M O R A L F. DA R E L I G I Ã O
dido que é pelo contrário pela superioridade da sua moral que uma reli-
gião conquista as almas e as abre a uma certa concepção das coisas. Mas
reconheceria a inteligência a superioridade da moral que lhe é proposta,
dado que não pode apreciar as diferenças de valor a não ser por meio
de comparações com uma regra ou um ideal, e que o ideal e a regra são
necessariamente fornecidos pela moral já instalada? Por outro lado, como
seria uma nova concepção do mundo senão uma filosofia mais, a par das
que já conhecemos? Ainda que a nossa inteligência a ela adira, nunca a
veremos senão como uma explicação teórica preferível às outras. Ainda
que nos pareça recomendar, enquanto numa maior harmonia com ela,
certas regras de conduta novas, será grande a distância que separa essa
adesão da inteligência de uma conversão da vontade. Mas a verdade é
que nem a doutrina, no estado de pura representação intelectual, fará
adoptar ou sobretudo praticar a moral, nem a moral, encarada pela inte-
ligência como um sistema de regras de conduta, tornará intelectualmente
preferível a doutrina. Antes da nova moral, antes da metafísica nova, há
a emoção, que se prolonga em impulso do lado da vontade, e em repre-
sentação explicativa na inteligência. Ponhamos, por exemplo, a emoção
que o cristianismo trouxe sob o nome de caridade: se conquista as almas,
segue-se uma certa conduta, e difunde-se uma certa doutrina. Nem esta
metafísica impôs esta moral, nem esta moral fez com que se preferisse
esta metafísica. Metafísica e moral exprimem a mesma coisa, uma em
termos de inteligência, a outra em termos de vontade; e as duas expressões
são adoptadas conjuntamente a partir do momento em que é dada a coisa
a exprimir.
54
A OBRIGAÇÃO MORAL
neate a essa emoção, uma concepção nova da vida, ou melhor, uma certa
atitude perante ela. Justamente porque nos encontramos diante da cinza
de uma emoção extinta, e porque a potência propulsiva dessa emoção
vinha do fogo que ela trazia em si, as fórmulas que ficaram seriam geral-
mente incapazes de abalar a nossa vontade se as fórmulas mais antigas,
exprimindo exigências fundamentais da vida social, não lhes comunicas-
sem por contágio alguma coisa do seu carácter obrigatório. Estas duas
morais sobrepostas parecem agora não fazer mais do que uma, tendo a
primeira emprestado à segunda um pouco do que ela tem de imperativo
e tendo, por outro lado, recebido da sua parte, em troca, uma significação
menos estritamente social, mais largamente humana. Mas remexamos
a cinza; encontraremos partes ainda quentes e, finalmente, a centelha
irromperá; o fogo poderá acender-se e, se se acender, alastrará passo a
passo. Quero eu dizer que as máximas desta segunda morai não operam
isoladamente, como as da primeira: a partir do momentó em q u e uma
delas, deixando de ser abstracta, se enche de significação e adquire a força
de agir, as outras tendem a comportar-se da mesma maneira; finalmente
todas se unem na quente emoção que as deixou outrora para trás e nos
homens, de novo vivos, que a experimentaram. Fundadores e reforma-
dores de religiões, místicos e santos, heróis obscuros da vida moral que
pudemos encontrar no nosso caminho e que igualam aos nossos olhos os
maiores, todos estão presentes: arrastados pelo seu exemplo, juntamo-
-nos a eles como a um exército de conquistadores. São conquistadores,
com efeito; quebraram a resistência da natureza e elevaram a humani-
dade a novos destinos. Assim, quando dissipamos as aparências para tocar
as realidades, quando fazemos abs.tracção da forma comum que as duas
morais, graças a trocas recíprocas, tomaram no pensamento conceptual e
na linguagem, encontramos nos dois extremos desta moral única a
pressão e a aspiração: a primeira tanto mais perfeita quanto mais impes-
soal, mais próxima dessas forças naturais a que chamámos hábito e até
mesmo instinto, a segunda, tanto mais poderosa quanto mais visivel-
mente suscitada em nós por pessoas,e quanto mais-pareça triunfar-sobre
a natureza. É verdade que se descêssemos até à raiz da própria natureza,
nos aperceberíamos talvez de que é a mesma força que se manifesta direc-
tamente, girando sobre si própria, na espécie humana uma vez consti-
tuída, e que age depois indirectamente, por intermédio de individuali-
dades privilegiadas, impelindo a humanidade em frente.
AS DUAS FONTES DA MORAL F. DA RELIGIÃO
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A OBRIGAÇÃO MORAL
quando não é a imagem, mais pálida e mais fria ainda, que dele ficou na
inteligência ou se depositou na linguagem. A moral compreende assim 53
duas partes distintas, das quais uma tem a sua razão de ser na estrutura
original da sociedade humana, e a outra a sua explicação no princípio
explicativo dessa estrutura. Na primeira, a obrigação representa a pressão
que os elementos da sociedade exercem uns sobre os outros a fim de
manter a forma do todo, pressão cujo efeito é prefigurado em cada um
de nós por um sistema de hábitos que por assim dizer a precedem: este
mecanismo, cujas peças são, cada um delas, um hábito mas cujo conjunto
é comparável a um instinto, foi preparado pela natureza. Na seguada, há
ainda obrigação, se assim se quiser, mas a obrigação é a força de uma
aspiração ou de um impulso, do próprio impulso que desembocou na
espécie humana, na vida social, num sistema de hábitos mais ou menos
assimilável ao instinto: o princípio de propulsão intervém directamente,
1
e já não por intermédio dos mecanismos que montara, nos quais proviso-
riamente se detivera. Em suma, para resumirmos tudo o que precede,
diremos que a natureza, dispondo a espécie humana ao longo do curso
da evolução, a quis sociável, como quis as sociedades de formigas e de
abelhas; mas uma vez que estava presente a inteligência, a manutenção
da vida social devia ser confiada a um mecanismo quase inteligente: inte-
ligente, na medida em que cada peça podia ser remodelada pela inteligên-
cia humana, instintivo, porém, na medida em que o homem não podia,
sem deixar de ser um homem, rejeitar o conjunto das peças e já não
aceitar um mecanismo conservador. O instintivo cedia provisoriamente
lugar a um sistema de hábitos, cada um dos quais se tornava contingente,
sendo necessária apenas a sua convergência no sentido da conservação
da sociedade, e trazendo esta necessidade o instinto consigo. A neces-
sidade do todo, sentida através da contingência das partes, é ïquilo a 54
que chamamos a obrigação moral em geral; as partes, aliás, apenas são
contingentes aos olhos da sociedade; para o indivíduo, no qtial a socie-
dade inculca hábitos, a parte é necessária do mesmo modo que o. todo.
Agora, o mecanismo querido pela natureza era simples, como as socie-
dades originalmente constituídas por ela. Teria a natureza previsto o
enorme desenvolvimento e a complexidade indefinida de sociedades
como as nossas? Comecemos por nos entender sobre o sentido da questão.
Não afirmamos que a natureza tenha propriamente querido ou previsto
o que quer que seja. Mas temos o direito de proceder como o biólogo que
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA R E L I G I Ã O
fala (Je uma intenção da natureza sempre que atribui uma função a um
órgão: exprime simplesmente assim a adequação do órgão à função.
A humanidade bem pode ter-se civilizado, a sociedade bem pode ter-se
transformado, mas o que pretendemos é que as tendências de certo modo
orgânicas da vida social continuaram a ser o que eram na origem. Pode-
mos redescobri-las, observá-las. O resultado desta observação é claro: é
para sociedades simples e fechadas que a estrutura moral, original e fun-
damental do homem, está feita. Estas tendências orgânicas não aparecem
claramente à nossa consciência, concordo. Mas, nem por isso constituem
menos o que há de mais sólido na obrigação. Por complexa que a nossa
moral se tenha tornado, embora se tenha reforçado com tendências que
não são simples modificações das tendências naturais e que não vão na
direcção da natureza, é a estas tendências naturais que chegamos quando
desejamos, de tudo o que essa massa fluida contém de obrigação pura,
obter um precipitado. Tal é, pois, a primeira metade da moral. A outra não
entrava no plano da natureza. Pelo que entendemos que a natureza pre-
vira uma certa extensão da vida social através da inteligência, mas uma
extensão limitada. Não podia querer que esta extensão fosse ao ponto de
pôr em perigo a estrutura original. Aliás, são numerosos os casos em que
o homem enganou assim a natureza, tão sábia e contudo tão ingénua.
A natureza entendia, decerto, que o homem procriasse sem fim como
todos os outros seres vivos; tomou as precauções mais minuciosas no
sentido de assegurar a conservação dã espécie através da multiplicação
dos indivíduos; não previra pois, ao dar-nos a inteligência, que esta des-
cobriria depressa maneira de separar o acto sexual das suas consequên-
cias, e que o homem poderia abster-se de recolher sem renunciar ao pra-
zer de semear. É num sentido completamente diferente que o homem
engana a natureza quando prolonga a solidariedade social em fraterni-
dade humana; mas engana-a ainda, porque as sociedades cujo desenho se
encontrava pré-formado na estrutura original da alma humana, e cujo
plano é ainda perceptível nas tendências inatas e fundamentais do
homem actual, exigiam que o grupo fosse estreitamente unido, mas que
entre um grupo e outro houvesse uma hostilidade virtual: era preciso
que se estivesse sempre preparado para o ataque ou para a defesa. Não,
decerto, que a natureza tenha querido a guerra pela guerra. Os grandes
adestradores da humanidade, que forçaram as barreiras da cidade,
parecem ter-se desse modo recolocado na direcção do impulso vital /élan
6o
A OBRIGAÇÃO M O R A L
vitalj. Mas este impulso próprio da vida é finito como ela. Ao longo de
todo o seu caminho depara com obstáculos, e as espécies sucessivamente
aparecidas são as resultantes desta força e de forças antagónicas: aquela
impele em frente, estas fazem com que se ande à volta do mesmo lugar.
O homem, ao sair das mãos da natureza, era um ser inteligente e sociável,
estando a sua sociabilidade calculada para desembocar em pequenas se
sociedades, e destinando-se a sua inteligência a favorecer a vida indivi-
dual e a vida do grupo. Mas a inteligência, dilatando-se através do seu
esforço próprio, assumiu um desenvolvimento inesperado. Libertou os
homens de servidões às quais estavam condenados pelas limitações da
sua natureza. Em tais condições, não era impossível a alguns de entre
eles, particularmente dotados, reabrir o que fora fechado e fazer, pelo
menos por eles mesmos, o que teria sido impossível à natureza fazer pela
humanidade. O seu exemplç^apabou por arrastar os outros, pelo menos
em imaginação. A vontade tem o seu génio, como" o pensamento, e o
génio desafia toda a previsão. Por intermédio destas vontades geniais, o
impulso de vida que atravessa a matéria obtém desta, para o futuro da
espécie, promessas que não podiam estar sequer em questão quando
a espécie se constituía. Passando da solidariedade social à fraternidade
humana, rompemos, pois, com uma certa natureza, mas não com toda a
natureza. Poderíamos dizer, afastando do seu sentido as expressões de
Espinosa, que é para regressar à Natureza naturante que nos desligamos
da Natureza naturada.
Entre a primeira moral e a segunda há, portanto, toda a distância que
vai do repouso ao movimento. A primeira supõe-se imutável. Se muda,
esquec.e imediatamente que mudou ou não confessa a mudança. A forma
que apresenta seja em que momento for pretende ser a forma definitiva.
Mas a;outra é um ímpeto, uma exigência de movimento; é mobilidade
em princípio. Seria assim que provaria - seria apenas assim que poderia
até mesmo começar por definir - a sua superioridade. Se nos dermos a
primeira, não poderemos fazer sair dela a segunda, do mesmo modo que 57
não poderemos extrair o movimento de uma ou de várias posições de um
móbil. Pelo contrário, o movimento envolve a imobilidade, sendo cada
posição atravessada pelo móbil concebida, e até mesmo percebida, como
uma paragem virtual. Mas não há necessidade de uma demonstração
em regra: a superioridade é vivida antes de ser representada, e não pode-
ria, aliás, ser a seguir demonstrada se não começasse por ser sentida.
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AS DUAS FONTES DA M O R A L F. DA RELIGIÃO
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! í_ -, 65
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO
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A OBRIGAÇÃO MORAL.
assim, como o fizemos pressentir, a não ser mais que esquemática. O que
é aspiração tende a consolidar se tomando a forma da obrigação estrita.
0 que é obrigação estrita tende a aumentar e a alargar-se englobando a
aspiração. Pressão e aspiração marcam para isso encontro na região do .
pensamento onde se elaboram os conceitos. Do que resultam representa-
ções, muitas das quais são mistas, reunindo num mesmo conjunto aquilo
que é causa de pressão e aquilo que é objecto de aspiração. Mas outro
resultado é também perdermos de vista a pressão e a aspiração puras,
agindo efectivamente sobre a nossa vontade; já não vemos senão o con- 65
ceito no qual vieram fundir-se os dois objectos distintos aos quais uma e
outra se encontravam respectivamente ligadas. Seria este conceito a exer-
cer uma acção sobre nós. Erro que explica o fracasso das morais propria-
mente intelectualistas, quer dizer, em suma, da maior parte das teorias
filosóficas do dever. Não, decerto, que uma ideia pura não tenha influên-
cia sobre a nossa vontade. Mas esta influência rtão se exerceria com efiCá-' "*
cia a não ser que pudesse ser a única. Resiste dificilmente a influências
antagónicas ou, se delas triunfa, é porque reaparecem na sua individua-
lidade e na sua independência, desdobrando então a integralidade da sua
força, a pressão e a aspiração que tinham renunciado cada uma à sua
acção própria fazendo-se representar em conjunto por uma ideia.
Seria um longo parênteses que teríamos de abrir aqui se quiséssemos
dar a sua parte a cada uma das duas forças, uma social e a outra supra-
-social, uma de impulsão e outra de atracção, que dão a sua eficácia aos
móbeis morais. Um homem de bem dirá, por exemplo, que age por res-
peito de si, por sentimento da dignidade humana. Não se exprimiria assim,
evidentemente, se não começasse por se cindir em duas personalidades,
a que seria se se deixasse ir e aquela à qual o.ergue a sua vontade: o eu
que respeita não é o mesmo que o eu respeitado. Qual é então este último
eu? Em que consiste a sua dignidade? De onfle vem o respeito que ins- "
pira? Deixemos de lado a análise do respeito, ö'nde'descöbririamos sobré-
tudo uma necessidade de apagamento, a atitude do aprendiz perante o
mestre ou antes, para falarmos-a linguagens aristotélica, do acidente
perante a essência. Restaria então definir o eu superior perante o qual a
personalidade média se inclina. Não é duvidoso que este seja antes de
mais o "eu social", interior a cada um de nós, e do qual já dissemos uma 66
palavra. Se admitirmos, ainda que teoricamente apenas, uma "mentali-
dade primitiva" veremos nela o respeito de si coincidir com o sentimento
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AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO
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A OBRIGAÇÃO MORAL
* Lembre-se que, do francês, règle tanto pode traduzir-se por "regra" como par "régua"
(N. do T.).
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AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO
mental" que seja uma sociedade, a troca directa é uma das suas práticas;
e aquela não pode ser praticada sem que se pergunte se os dois objec-
tos trocados são realmente do mesmo valor, quer dizer, trocáveis contra
um terceiro. Que esta igualdade de valor seja erigida em regra, que a
regra se insira nos usos do grupo, que o "todo da obrigação", como nós
dizíamos, venha assim poisar-se sobre ela: eis já a justiça sob a sua forma
precisa, com o seu carácter imperioso e as ideias de igualdade e de reci-
procidade que se lhe associam. - Mas não se aplicará apenas às trocas de
coisas. Gradualmente estender-se-á a relações entre pessoas, sem poder
contudo, durante muito tempo ainda, desligar-se por completo da consi-
deração de coisas e da troca. Consistirá, sobretudo, então em regularizar
impulsões naturais introduzindo nelas a ideia de uma reciprocidade não
menos natural, por exemplo a expectativa de um prejuízo equivalente ao
que se terá podido causar. Nas sociedades primitivas, os atentados contra
as pessoas só excepcionalmente interessam a comunidade, quando o acto
consumado a pode atingir atraindo sobre ela a cólera dos deuses. A pessoa
lesada, ou a sua família, só tem então de seguir o seu instinto, reagir
segundo a natureza, vingar-se; e as represálias poderiam ser despropor-
cionais à ofensa se esta troca de procedimentos maus não surgisse como
vagamente submetida ã regra geral das trocas. É verdade que a querela
correria o risco de se eternizar, a vendetta continuaria a desenrolar-se
sem f i m entre as duas famílias, se uma delas não se decidisse a aceitar
uma indemnização pecuniária: afirmar-se-á então com nitidez a ideia de
compensação, já implicada nas de troca e de reciprocidade. - Que a
própria sociedade se encarregue agora de ferir, de reprimir os actos de
violência sejam estes quais forem, e dir-se-á que é ela que exerce a justiça,
caso seja esse nome já a designar a regra a que se referem, para pôr f i m
aos seus diferendos, os indivíduos ou as famílias. Ape!nas será, aliás, me-
dida a pena pela gravidade da ofensa, uma vez que, sern isso, não teríamos
qualquer interesse em nos determos depois de termos começado a fazer
mal; o risco de chegarmos às últimas consequências não seria maior. Olho
por olho, dente por dente, o dano sofrido deverá ser sempre igual ao
dano causado. - Mas um olho valerá sempre um olho, e um dente sempre
um dente? Tem de se ter em conta tanto a qualidade como a quantidade:
a lei de talião só será aplicada no interior de uma classe; o mesmo dano
sofrido, a mesma ofensa recebida, exigirá uma compensação mais forte
ou reclamará uma pena mais grave no caso de a vítima pertencer a uma
70
A OBRIGAÇÃO M O R A L
classe mais alta. Em suma, a igualdade pode incidir sobre uma relação e
tornar-se uma proporção. A justiça bem pode compreender uma maior
variedade de coisas que continuará a definir-se da mesma maneira.
- Também não mudará de fórmula, num estado de civilização mais avan-
çado, quando se estender às relações entre governantes e governados e,
mais geralmente, entre categorias sociais: numa situação de facto introdu-
zirá considerações de igualdade ou de proporção que farão dela qualquer
coisa de matematicamente definido e, por isso mesmo, de aparentemente
definitivo. Não é duvidoso, com efeito, que a força tenha estado na origem
da divisão das antigas sociedades em classes subordinadas umas às outras.
Mas uma subordinação habitual acaba por parecer natural e procura uma
explicação para si mesma: se a classe inferior aceitou a sua situação
durante tempo bastante, poderá continuar a consentir naquela depois
ainda de se ter tornado virtualmente a mais forte, porque atribuirá aos
dirigentes uma superioridade de valor. Esta superioridade será de resto
real se esses dirigentes tiverem aproveitado as facilidades com que depa-
raram para se aperfeiçoarem intelectual e moralmente; mas poderá tam- 71
bém não ser mais que uma aparência cuidadosamente mantida. Seja
como for, real ou aparente, bastar-lhe-á durar para parecer congénita: a
superioridade inata deve decerto existir, dir-se-á, uma vez que existe o
privilégio hereditário. A natureza, que quis sociedades disciplinadas, pre-
dispôs o homem para essa ilusão. Platão partilhava-a, pelo menos no que
se refere à sua república ideal. Se entendermos assim a hierarquia das
classes, os cargos e os benefícios serão tratados como uma espécie de
massa comum que será depois repartida entre os indivíduos segundo o
seu valor e, por conseguinte, segundo os serviços que prestam: a justiça
conserva a sua balança; mede e proporciona. - Desta justiça que não pode
exprimir-se em termos utilitários, mas que nem por isso permanece
menos fiel às suas origens mercantis, como passar à que não implica
nem trocas nem serviços, sendo a afirmação pura e simples do direito
inviolável e da incomensurabilidade da pessoa com todos os valores?
Antes de respondermos a esta questão, admiremos a virtude mágica da
linguagem, quero eu dizer o poder que uma palavra confere a uma ideia
nova, quando se alarga de modo a significá-la depois de se ter apHcado a
um objecto preexistente, de modificar este último e de retroactivamente
influenciar o passado. Seja como for que representemos a transição da
justiça relativa para a justiça absoluta, e tenha-se esta operado em várias
71
i
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO
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A OBRIGAÇÃO MORAL.
tado, que estava fora de questão realizar. Digamos apenas, no que se refere
ao primeiro ponto, que as antigas desigualdades de classe, primitivamente
impostas sem dúvida pela força, admitidas depois como desigualdades
de valor e de serviços prestados, se vêem cada vez mais submetidas à
prítica da classe inferior: os dirigentes valem de resto cada vez.menos,
porque, demasiado seguros de si, afrouxam a tensão interior à qual
tinham ido buscar uma maior força de inteligência e de vontade e que
havia consolidado a sua dominação. Cons erv a r se ia m, contudo, se conti-
nuassem unidos; mas, devido precisamente à tendência que os leva a
afirmarem a sua individualidade, aparecerão, mais tarde ou mais cedo,
entre eles ambiciosos que pretenderão ser os senhores e que buscarão
apoio na classe inferior, sobretudo se esta já tiver conseguido certa par-
ticipação nos assuntos: acabou-se, então, a superioridade nativa daquele
que pertence à classe superior; quebrpu-se.o encanto..É assim que as.,
aristocracias tendem a perder-se na democracia, simplesmente porque a
desigualdade política é coisa instável, como o será de resto a igualdade
política uma vez realizada, se não passar de um facto, se admitir por
conseguinte excepções, se por exemplo tolerar a escravatura no interior 74
da cidade. Mas é grande a distância que vai destes equilíbrios mecanica-
mente alcançados, sempre provisórios como o da balança nas mãos da
justiça antiga, a uma justiça como a nossa, a dos "direitos do homem", que
já não evoca ideias de relação ou de medida, mas, pelo contrário, de inco-
mensurabilidade e de absoluto! Esta justiça não comportaria uma repre-
sentação completa senão "no infinito", como dizem os matemáticos; não
se formula precisa e categoricamente num momento determinado, a não
ser por interdições; mas, no que tem de positivo, procede por criações
sucessivas, cada uma das quais é uma realização mais completa da perso-
nalidade e, por conseguinte, da humanidade. Esta realização só é possível
por intermédio das leis; implica o consentimento da sociedade. Em vão
pretenderíamos, aliás, que se faz por si mesma, pouco a pouco, em vir-
tude do estado de alma da sociedade num certo período da sua história.
É um salto em frente, que só se executa se a sociedade estiver decidida a '
tentar uma experiência; é preciso para isso que se tenha deixado conven-
cer ou pelo menos abalar; e o abalo terá sido sempre dado por alguém.
Em vão se alegará que o salto em frente não supõe atrás de si qualquer
esforço criador, que não há aqui uma invenção comparável à do artista.
Seria esquecer que a maior parte das grandes reformas levadas a cabo
73
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO
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AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO
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um passo. Mas o passo nâo foi dado. Teria sido necessário condenar a
escravatura, renunciar à ideia grega segundo a quai os estrangeiros, sendo
bárbaros, não podiam reivindicar direito algum. Tratar-se-ia, aliás, de uma
ideia propriamente grega? Encontramo-la em estado implícito em toda a
parte onde o cristianismo nâo penetrou, tanto entre os modernos como
entre os antigos. Na China, por exemplo, surgiram doutrinas morais de
extrema elevação, mas que não se deram a preocupação de legislar para a
humanidade; embora não o digam, só se interessam de facto pela comuni-
dade chinesa. Todavia, antes do cristianismo, houve o estoicismo: filósofos
proclamaram que todos os homens são irmãos, e que o sábio é cidadão
do mundo. Mas estas fórmulas eram as de um ideal concebido, e concebi-
do talvez como irrealizável. Não vemos que nenhum dos grandes estóicos,
incluindo aquele que foi imperador, tenha julgado possível abater a bar-
reira entre o homem livre e o escravo, entre o cidadão romano e o bárbaro.
Foi preciso esperar pelo cristianismo para que a ideia de fraternidade
universal, que implica a igualdade dos direitos e a inviolabilidade da pes-
soa, se tornasse actuante. Dir-se-á que a acção foi muito lenta: decorreram
dezoito séculos, com efeito, antes de os Direitos do Homem terem sido
proclamados pelos puritanos da América, seguidos pouco depois pelos
homens da Revolução Francesa. Nem por isso deixara de começar já com
o ensinamento do Evangelho, prosseguindo a partir de então indefi-
nidamente: uma coisa é um ideal simplesmente apresentado aos homens
por sábios dignos de admiração, outra aquele que foi lançado mundo
fora numa mensagem carregada de amor, que invocava o amor. Para dizer
a verdade, já não se tratava aqui de uma sabedoria definida, inteiramente
formulável em máximas. Indicava-se antes uma direcção, introduzia-se
um método; quando muito designava-se um fim que não seria mais que
provisório e que exigia, por conseguinte, um esforço incessantemente
renovado. Este esforço devia necessariamente ser, pelo menos no caso de
alguns, um esforço de criação. O método consistia em supor possível o
que é efectivamente impossível numa sociedade dada, na representação
do que daí resultaria para a alma social, e em induzir então alguma coisa
desse estado de alma através da propaganda e do exemplo: o efeito, uma
vez obtido, completaria retroactivamente a sua causa; sentimentos novos,
de resto evanescentes, suscitariam a legislação nova que parecia necessá-
ria ao seu aparecimento e que serviria depois para os consolidar. A ideia
moderna de justiça progrediu assim por meio de uma série de criações
A OBRIGAÇÃO MORAL.
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AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO
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A OBRIGAÇÃO MORAL.
mos fazer em cada caso particular? intervêm aqui forças profundas, uma
de impulsão e outra de atracção: não podemos reportar-nos directamente
a elas sempre que há uma decisão a tomar. Seria as mais das vezes refazer
inutilmente um trabalho que a sociedade em geral por um lado, a elite da
liuntanidade por outro, fizeram por nós. Esse trabalho teve por resultado
formular regras e desenhar um ideal: será viver moralmente seguirmos
com; estas regras e conformarmo-nos com este ideal. Só assim cada um
de nós estará certo de permanecer plenamente de acordo consigo próprio:
só o racional é coerente. Só assim poderão ser comparadas entre elas as
diversas linhas de conduta; só assim poderá ser apreciado o seu valor
moral. A coisa é de tal modo evidente que mal chegámos a indicá-la;
subentendemo-la quase sempre. Mas daí resultava que a nossa exposição
permanecia esquemática e podia parecer insuficiente. No plano intelec-
tual, com efeito, todas as exigências da moral se compenetram em con-
ceitos cada um dos quais, como a mónada leibniziana, é mais ou menos
representativo de todos os outros. Acima ou abaixo deste plano encontra-
mos forças cada uma das quais, tomada isoladamente, corresponde ape-
nas a uma parte daquilo que foi projectado no plano intelectual. Como
este inconveniente do método que seguimos é incontestável, como é de
resto inevitável, como vemos que o método se impõe e como sentimos
que não pode deixar de levantar questões ao longo de toda a sua apli-
cação, entendemos, para concluir, dever caracterizá-lo de novo e defini-lo
uma vez mais, ainda que tenhamos de repetir acerca de alguns pontos,
quase nos mesmos termos, aquilo que já tivemos ocasião de dizer.
Uma sociedade humana cujos membros estivessem ligados entre si 83
como as células de um organismo ou, o que vem a ser mais ou menos a
mesma coisa, como as formigas de um formigueiro, nunca existiu, mas
os grupos da humanidade primitiva aproximavam-se decerto mais dela
do que os nossos. A natureza, ao fazer do homem um -animal-sociável, -
quis essa solidariedade estreita, afrouxando a, todavia, na medida em que
isso era necessário para que o indivíduo desdobrasse, no próprio inte-
resse da sociedade, a inteligência de.que ela .o.dotara..Tal.é. a.consta-
tação que nos limitámos a fazer na primeira parte da nossa exposição.
Seria de medíocre importância para uma filosofia moral que aceitasse
sem discussão a crença na hereditariedade do adquirido: o homem pode
ria então nascer hoje com tendências muito diferentes das dos seus ante-
passados mais longínquos. Mas atemo-nos à experiência, que nos mostra
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bem, tendo sido por isso que tentou a demonstração. Mas a verdade é
que a sua demonstração só parece ser bem sucedida por dar passagem a
qualquer coisa de que ela não fala, e que é o essencial: uma necessidade
sofrida e sentida, que o raciocínio recalcara e que um raciocínio antagó-
nico reconduz. O que há de propriamente obrigatório na obrigação não
vem, portanto, da inteligência. Da obrigação, esta explica apenas o que
nela de hesitação descobrimos. Onde parece fundar a obrigação, limita-se
a mantê-la resistindo a uma resistência, impedindo-se de impedir. Vere-
mos de resto, no próximo capítulo, que auxiliares reúne à sua volta. De
momento, retomemos uma comparação que já nos serviu. Uma formiga
que leva a cabo o seu pesado labor como se nunca pensasse em si mesma,
como se não vivesse senão para o formigueiro, está provavelmente num
estado sonambúlico; obedece a uma necessidade inelutável. Suponha-
mos que se torna bruscamente inteligente: raciocinará sobre aquilo que
faz, perguntar-se-á porque 0 faz, dir-se-á que é bem tola por não se con-
sentir repouso e um tempo mais agradável. "Basta de sacrifícios! Chegou
o momento de pensarmos em nós". Eis a ordem natural alterada. Mas a
natureza vigia. Fornecera à formiga o instinto social; acaba de lhe acres-
centar, talvez porque o instinto dela momentaneamente precisava, um
clarão de inteligência. Por pouco que a inteligência tenha perturbado o
instinto, a natureza terá de se apressar a repor as coisas em ordem e a
desfazer o que fez. Um raciocínio estabelecerá, portanto, que a formiga
tem todo o interesse em trabalhar para o formigueiro e, assim, a obrigação
parecerá fundada. Mas a verdade é que este fundamento seria muito
pouco sólido, e que a obrigação preexistia na plenitude da sua força: a
î6. inteligência limitou-se a pôr um obstáculo a um outro obstáculo dela
- proveniente. O filósofo do formigueiro não deixaria de experimentar
; repugnância em admiti-lo; insistiria sem dúvida em atribuir um papel
positivo, e não negativo, à inteligência. Assim fizeram, as mais das vezes,
os teóricos da moral, ou porque eram intelectuais que receavam não con-
ceder à inteligência lugar bastante, ou sobretudo porque a obrigação lhes
= aparecia como uma coisa simples, indecomponível: pelo contrário, se vir-
mos nela uma quase-necessidade contrariada eventualmente por uma
resistência, conceberemos que a resistência venha da inteligência, a resis-
tência à resistência igualmente, e que a necessidade, que é o essencial,
tenha uma outra origem. Para dizer a verdade, nenhum filósofo pode
irnpedir-se de começar por estabelecer esta necessidade; mas, as mais
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A OBRIGAÇÃO MORAL.
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AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO
certo ponto atingido pela evolução da vida; e cada uma delas manifestava
sob uma forma original um amor que parece ser a própria essência do
esforço criador. A emoção criadora que suscitava estas almas privilegia-
das, e que era um transbordar de vitalidade, difundiu-se em seu redor:
98 entusiásticas, irradiavam um entusiasmo que nunca se extinguiu por com-
pleto e que pode sempre voltar a encontrar a sua chama. Hoje, quando
ressuscitamos pelo pensamento esses grandes homens de bem, quando
os ouvimos falar e quando os vemos agir, sentimos que nos comunicam
parte do seu ardor e que nos arrastam no seu movimento: já não se trata
de uma coerção mais ou menos atenuada, é uma atracção mais ou menos
irresistível. Mas esta segunda força, do mesmo modo que a primeira, não
precisa de explicação. Não podemos deixar de admitir o semi-constrangi-
mento exercido pelos hábitos que correspondem simetricamente ao ins-
tinto, não podemos deixar de afirmar esse levantamento da alma que é a
emoção: num dos casos temos a obrigação original e, no outro, alguma
coisa que se torna o seu prolongamento; mas, nos dois casos, estamos
perante forças que não são própria nem exclusivamente morais, e cuja
génese não incumbe ao moralista fazer. Por terem querido fazê-la, os filó-
sofos desconheceram o carácter misto da obrigação sob a sua forma
actual; tiveram de atribuir em seguida a esta ou àquela representação da
inteligência a potência de arrastar a vontade: como se uma ideia pudesse
alguma vez reclamar categoricamente a sua própria realização! Como se
a ideia fosse aqui outra coisa que não o extracto intelectual comum, ou
melhor a projecção no plano intelectual, de um conjunto de tendências e
de aspirações das quais umas estão acima e as outras abaixo da pura
inteligência! Restabeleçamos a dualidade de origem: as dificuldades
desvanecem-se. E a própria dualidade é reabsorvida na unidade, porque
"pressão social " e "impulso de amor" não são mais que duas manifestações
complementares da vida, normalmente consagrada a conservar nas
grandes linhas a forma social que foi característica da espécie humana
99 desde a origem, mas excepcionalmente capaz de a transfigurar, graças a
indivíduos dos quais cada um representa, como o teria feito o apareci-
mento de uma nova espécie, um esforço de evolução criadora.
Desta dupla origem da moral nem todos os educadores têm talvez a
visão completa, mas apercebem-se de qualquer coisa dela a partir do
momento em que querem inculcar realmente a moral nos seus discípulos,
e não apenas falar-lhes a seu respeito. Não negamos a utilidade, até mesmo
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A OBRIGAÇÃO M O R A L .
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AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO
que prometer uma extensão e uma correcção da justiça humana por meio
da justiça divina: às sanções estabelecidas pela sociedade, e cujo jogo é
tão imperfeito, sobrepõe outras, infinitamente mais elevadas, que deverão
ser-nos aplicadas na Cidade de Deus quando tivermos deixado a dos ho-
... mens; todavia, é no plano da cidade humana que assim nos mantemos;
fazemos intervir a religião, sem dúvida, mas não no que tem de mais
especificamente religioso; por mais alto que nos elevemos, continuamos
toi a encarar a educação moral como um adestramento, e a moralidade como
uma disciplina; é ao primeiro dos dois métodos que nos atemos ainda,
sem nos transportarmos até ao segundo. Por outro lado, é nos dogmas
religiosos, na metafísica que implicam, que geralmente pensamos a partir
do momento em que a palavra "religião" é pronunciada: deste modo,
quando damos a religião por fundamento à moral, representamo-nos um
conjunto de concepções, relativas a Deus e ao mundo, cuja aceitação teria
por consequência a prática do bem. Mas é claro que estas concepções,
tomadas enquanto tais, influenciam a nossa vontade e a nossa conduta
tal como podem fazê-lo as teorias, quer dizer as ideias: estamos aqui no
plano intelectual e, como vimos acima, nem a obrigação nem o que a
prolonga poderiam derivar da ideia pura, uma vez que esta só age sobre
a nossa vontade na medida em que nos apraz aceitá-la e pô-la em prática.
Se se distinguir esta metafísica de todas as outras dizendo que precisa-
mente ela se impõe à nossa adesão, talvez tenhamos ainda razão, mas
nesse caso já não é apenas no seu conteúdo, na pura representação inte-
lectual que pensamos; introduzimos algo de diferente, que sustenta a
representação, que lhe comunica não sei que eficácia, e que é o elemento
especificamente religioso: mas é agora esse elemento, e não a metafísica
a que se junta, a tornar-se o fundamento religioso da moral. Estamos bem
perante o segundo método, mas é da experiência mística que se trata.
Queremos falar da experiência mística encararia no que tem de imediato,
fora de toda a interpretação. Os verdadeiros místicos abrem-se simples-
mente à vaga que os invade. Seguros de si mesmos, porque sentem neles
qualquer coisa de melhor do que eles, revefcam-se grandes homens de
102 acção, para surpresa daqueles para os quais o misticismo é apenas visão,
transporte, êxtase. O que deixaram correr dentro de si mesmos é um
fluxo descendente que quereria, através deles, conquistar os outros ho-
mens: sentem a necessidade de difundir à sua volta aquilo que receberam,
como um impulso de amor. Amor no qual cada um deles imprime a marca
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A OBRIGAÇÃO MORAL.
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CAPÍTULO II
A RELIGIÃO ESTÁTICA
95.
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA R E L I G I Ã O
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A RELIGIÃO ESTÁTICA
que é de uma outra natureza. A sociedade tem a sua maneira de ser que
lhe é própria e, portanto, a sua maneira de pensar" \ Quanto a nós, admi-
tiremos de bom grado a existência de representações colectivas, deposi- ios
tadas nas instituições, na linguagem e nos costumes. O seu conjunto cons-
titui a inteligência social, complementar das inteligências individuais.
Mas não vemos como seriam as "duas mentalidades discordantes, nem
como uma das duas poderia "desconcertar" a outra. A experiência nada
nos diz de semelhante, e a sociologia não nos parece ter razão alguma
para o supor. Se se considerasse que a natureza se ateve ao indivíduo,
que a sociedade nasceu de um acidente ou de uma convenção, poder-se-ia
levar a tese até ao fim e pretender que essa reunião de indivíduos, com-
parável à dos corpos simples que se unem numa combinação química,
fez surgir uma inteligência colectiva da qual certas representações con-
fundirão a razão individual. Mas já não há ninguém que atribua à socie-
dade uma origem acidental ou contratual. Se houvesse alguma coisa a
censurar à sociologia, seria antes insistir demais no sentido oposto: este
ou aquele dos seus representantes veria no indivíduo uma abstracção, e
no corpo social a única realidade. Mas então, como não estaria a menta-
lidade colectiva prefigurada na mentalidade individual? Como é que a
natureza, fazendo do homem um "animal político", poderia ter disposto
as inteligências humanas de tal modo que estas se sentiriam desambien-
tadas quando pensam "politicamente"? Pelo nosso lado, consideramos
que nunca se terá demais em conta a destinação social quando estuda-
mos o indivíduo. É por ter descurado fazê lo que a psicologia progrediu
tão pouco em certas direcções. Não falo do interesse que haveria em apro-
fundar certos estados anormais ou mórbidos que implicam entre os mem-
bros de uma sociedade, corno entre as abelhas da colmeia, uma invisível 109
anastomose: fora da colmeia a abelha definha e morre; isolado da socie-
dade ou não participando o bastante no seu esforço, o homem íofre de
um mal talvez análogo, muito pouco estudado até ao presente, í que se
chama o tédio; quando o isolamento se prolonga, como na reclusão penal,
declaram-se perturbações mentais características. Estes fenómenos
mereceriam já que a psicologia lhes abrisse uma conta especial; esta teria
belos ganhos por saldo. Mas não é tudo. O futuro de uma ciência depende
da maneira como começou por recortar o seu objecto. Se teve a sorte de
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AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO
devemos dizer: sendo tal a sua estrutura, ele tirou dela tal partido. O par-
tido que dela tirará é, pelo contrário, o que terá determinado a sua estru-
tura; em todo o caso, o fio condutor da investigação é aí que está. Consi-
deremos então, no domínio vaga e sem dúvida artificialmente delimitado
da "imaginação", o recorte natural a que chamámos efabulação, e vejamos
a que poderá bem aplicar-se naturalmente. Desta função relevam o roman-
ce, o drama, a mitologia juntamente com tudo aquilo que a precedeu.
Mas nem sempre houve romancistas e dramaturgos, ao passo que a huma-
nidade nunca dispensou a religião. É provável, pois, que poemas e fanta-
sias de todo o género tenham chegado por acréscimo, aproveitando-se
daquilo que o espírito sabia fazer das fábulas, mas era a religião a razão
de ser da função efabuladora: relativamente à religião, tal faculdade seria
efeito e não causa. Uma necessidade, talvez individual, em todo o caso
social, terá exigido do espírito esse género de actividade. Perguntemo-
-nos de que necessidade se tratava. Devemos notar que a ficção, quando
portadora de eficácia, é como uma alucinação nascente: é capaz de con-
trabalançar o juízo e o raciocínio, que são as faculdades propriamente
intelectuais. Ora, que teria feito a natureza, depois de ter criado seres
inteligentes, se tivesse querido prevenir certos perigos da actividade inte-
lectual sem comprometer o futuro da inteligência? A observação fornece-
-nos a resposta. Hoje, no desabrochar pleno da ciência, vemos os mais
113 belos raciocínios do mundo caírem ruínas perante uma experiência: nada
resiste aos factos. Se, portanto, a inteligência devia ser retida, de início,
num declive perigoso para o indivíduo e para a sociedade, só poderia
sê-lo por constatações aparentes, por fantasmas de factos; à falta de expe-
riência real, era uma contrafacção da experiência que se tornava neces-
sário suscitar. Uma ficção, se a imagem for viva e obsidiante, poderá pre-
cisamente imitar a percepção e, por isso, impedir ou modificar a acção.
Uma experiência sistematicamente falsa, erguendo-se perante a inteligên-
cia, poderá detê-la no momento em que ela estivesse a ir longe demais
nas consequências que tira da experiência verdadeira. Assim teria, pois, a
natureza procedido. Em tais condições, não nos surpreenderia descobrir
que a inteligência, ao acabar de formar-se, fora invadida pela supersti-
ção, que um ser essencialmente inteligente é naturalmente supersticioso,
e que só os seres inteligentes podem ser supersticiosos.
É verdade que então se porão novas questões. Teremos de começar
por perguntar mais precisamente para que serve a função efabuladora e
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A RELIGIÃO ESTÁTICA
toi
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA R E L I G I Ã O
lis Tal é, com efeito, o problema mais vasto que a nossa segunda questão
põe. Estava de resto implicitamente contido na primeira. Como referir
a uma necessidade vital as ficções que se-erguem diante da inteligência,
e por vezes contra ela, se não determinámos as exigências fundamen-
tais da vida? Voltaremos a encontrar este mesmo problema, mais explí-
cito, quando surgir uma questão que não podemos evitar: como sobre-
viveu a religião ao perigo que a fez nascer? Como foi que, em lugar de
desaparecer, simplesmente se transformou? Porque subsiste, quando a
ciência veio preencher o vazio, de facto perigoso, que a inteligência dei-
xava entre a sua forma e a sua matéria? Não poderia haver, por baixo da
necessidade de estabilidade que a vida manifesta, nessa paragem ou,
antes, nesse rodar sobre o mesmo lugar que é a conservação de uma
espécie, uma exigência de movimento em frente, um resto de irrupção,
um impulso vital? Mas as duas primeiras questões serão de momento
suficientes. Uma e outra reconduzem-nos às considerações que apresentá-
mos no passado sobre a evolução da vida. Essas considerações não eram
de modo algum hipotéticas, como alguns pareceram acreditar. Falando
de um "impulso vital" e de uma evolução criadora, cingíamos a experiên-
cia o mais estreitamente que nos era possível. É o que começa a ser per-
ceptível, uma vez que a ciência positiva, pelo simples facto de abandonar
certas teses ou de as dar por simples hipóteses, se aproxima mais dos
nossos pontos de vista. Apropriando-se deles, mais não faria que recupe-
rar um bem próprio.
Voltemos a insistir, pois, nalguns dos traços salientes da vida, e vinque-
mos o carácter nitidamente empírico da concepção de um "impulso vital".
O fenómeno vital será resolúvel, perguntávamos nós, em factos físicos e
116 químicos? ."Quando o fisiologista o afirma, entende por isso, consciente
ou inconscientemente, que o papel da fisiologia é investigar o que há de
físico e de .químico no vital, que não se pode fixar antecipadamente um
termo a esta investigação, e que por isso se deverá proceder como se a
investigação não devesse vir a ter termo: só assim se continuará em frente.
Com o qué estabelece, pois, uma regra de método; não enuncia um facto.
Atenhamo-nos então à experiência: diremos - e mais do que um biólogo
o reconhece - que a ciência está tão longe como sempre de uma expli-
cação físico-química da vida. Era o que antes do mais constatávamos
quando falávamos de um impulso vital. - Agora, uma vez estabelecida
a vida, como nos representaremos a evolução? Podemos sustentar que a
102
A RGÜGIAO ESTÁTICA
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AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO
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A RELIGIÃO ES TÁTICA
nante nos extremos das duas principais linhas da evolução animal, deve-
rão estar assim tomados um no outro, antes de se desdobrarem, não com-
postos conjuntamente mas constitutivos de uma realidade simples _na
qual inteligência e instinto nâo seriam senão pontos de vista. Tais são,
uma vez que começámos a enumerá-las, a sexta, a sétima e a oitava repre-
sentações que a ideia de um impúísò vital evocará. - Mas ainda só impli-
citamente mencionámos o essencial: a imprevisibilidade das formas que
a vida cria por inteiro, através de saltos descontínuos, ao longo da sua
evolução. Tanto para a doutrina do puro mecanicismo como para a da
finalidade pura, as criações da vida são predeterminadas, podendo o
futuro ser deduzido do presente mediante um cálculo ou desenhando-se
nele sob a forma de ideia, e sendo por conseguinte o tempo sem eficácia.
A experiência pura nada de semelhante sugere. Nem impulsão nem atrac-
ção, parece ela dizer. Um impulso [élan]* pode precisamente sugerir
qualquer coisa do género e fazer pensar também, pela indivisibilidade '
daquilo que é interiormente sentido e pela divisibilidade até ao infinito
daquilo que é exteriormente percebido, nessa duração real, eficaz, que é
o atributo da vida. - Tais eram as ideias que encerrávamos na imagem do
"impulso vital". Se forem insuficientemente atendidas, como muitas vezes 120
tem sido o caso, encontrar-nos-emos naturalmente perante um conceito
vazio, como o do puro "querer-viver" ["vouloir-vivre"], e perante uma
metafísica estéril. Se forem levadas em conta, teremos uma ideia carre-
gada de matéria, empiricamente obtida, capaz de orientar a investigação,
que resumirá a traço grosso o que sabemos do processo vital e assinalará
também o que dele ignoramos.
* Mantém-se, por consagrada pelo uso, a tradução de élan (aqui sublinhado 110 ori-
ginal) por "impulso", embora, tendo em vista, entre outros aspectos, o contraste que
Bergson entre ele e a "impulsão" [impulsion) estabelece, a solução consagrada seja con
testável. Os termos "surto" ou "ímpeto" são alternativas possíveis e que o leitor poderá
evocar utilmente no seu espírito sempre que deparar, ao longo destas páginas, com o
"impulso vital" (N. do T.).
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO
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A RELIGIÃO ESTÁTICA
1
É óbvio que a imutabilidade não é absoluta, mas essencial. Existe em princípio,
mas admite de facto variações em torno do tema uma vez estabelecido este.
— -, 107
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO
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* No original, utilitaire, embora numa acepção que hoje tenderia a ser significada
pelo recurso ao termo, seja como for e sobretudo ao tempo mais técnico, de utilituriste
("militarista"), entretanto consagrado e adoptado pela própria linguagem corrente
(N. do T.).
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I 114
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A RELIGIÃO ES TÁTICA
cia, tornando-se esta desse modo um atributo da sua substância. Nas socie-
dades estagnantes esta consolidação fez-se definitivamente. Pôde ser
menos completa, e em todo o caso temporária, em sociedades em movi-
mento, nas quais a inteligência acabaria por perceber por trás do interdito
uma pessoa.
116
A RELIGIÃO ESTÁTICA
série de observações feitas sobre outros animais, depois uma síntese, por
fim um trabalho de generalização que oferece já um carácter científico.
A supormos que o animal possa esboçar um tal esforço, só o faria por
qualquer coisa que valesse a pena; ora, nada lhe seria mais inútil do que
saber que tem de morrer. O seu interesse será, antes, ignorá-lo. Mas o
homem sabe que morrerá. Todos os outros seres vivos, agarrados à vida,
adoptam simplesmente o seu impulso. Se não se pensam a si mesmos 136
sub specie aelerni, a sua confiança, perpétua intrusão do presente no
futuro, é a tradução deste pensamento em sentimento. Mas com o homem
aparece a reflexão e, consequentemente, a faculdade de observar sem
utilidade imediata, de comparar entre elas observações provisoriamente
desinteressadas, enfim de induzir e de generalizar. Constatando que tudo
o que vive à sua volta acaba por morrer, convence-se de que ele próprio
morrerá. A natureza, ao dotá-lo de inteligência, devia de bom ou mau
-grado'levá-lo a essa conVicçãòrMãs tràíá-se de Uíria cohviéçâo'cjûëse atra-"
vessa no movimento da natureza. Se o impulso de vida jélan de vie]afasta
todos os outros seres vivos da representação da morte, o pensamento da
morte deve abrandar no homem o movimento da vida. Poderá mais tarde
enquadrar-se numa filosofia que elevará a humanidade acima de si
mesma e lhe dará mais força para agir. Mas começa por ser deprimente,
e sê-lo-ia ainda mais se o homem não ignorasse, certo que está de morrer,
a data em que morrerá. O acontecimento bem pode ter de produzir-se:
como se constata a cada instante que não se produziu, a experiência nega-
tiva continuamente repetida condensa-se numa dúvida que ma! chega a
ser consciente atenuando os efeitos da certeza reflectida. Nem por isso é
menos verdade que a certeza de morrer, surgindo com a reflexão num
mundo de seres vivos feito para pensar apenas em viver, contraria a inten-
ção da natureza. Esta vai tropeçar no obstáculo que lhe aconteceu colocar
no seu próprio caminho.-Mas corrige-se de imediato:' À • ideia'de'que*a' "'•" '
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AS DUAS FONTES OA M O R A L E DA RELfClAO
acerte, porque será essa crença a dar-lhe, à falta da arma com que teria a
certeza de atingir o seu alvo, a confiança em si mesmo que lhe permite
visá-lo melhor.
A actividade humana desenrola-se no meio de acontecimentos sobre
os quais exerce influência e dos quais depende também. Tais aconteci-
mentos são previsíveis em parte e, em grande parte, imprevisíveis. Como
a nossa ciência alarga cada vez mais o campo da nossa previsão, con-
cebemos no limite uma ciência integral para a qual deixaria de haver
imprevisibilidade. É por isso que, aos olhos do pensamento reflexivo
do homem civilizado (veremos que as coisas não se passam exacta-
mente do mesmo modo com a sua representação espontânea), o mesmo
encadeamento mecânico de causas e de efeitos com que toma contacto
quando age sobre as coisas deve ser extensivo à totalidade do universo.
Não pode admitir que o sistema de explicação, que convém aos ele-
149 mentos físicos sobre os quais tem preensão, deva dar lugar, quando se
aventura mais longe, a um sistema completamente diferente, aquele
que usa na vida social quando atribui a intenções boas ou más, amigáveis
ou hostis, a conduta dos outros homens a seu respeito. Se o faz, é sem
o saber, não o confessando a si próprio. Mas o não-civilizado, que dis-
põe apenas de uma ciência inextensível, talhada à medida exacta da
acção que exerce sobre a matéria, não pode atirar para o campo do
imprevisível uma ciência virtual que o cobriria por completo e que
abre imediatamente amplas perspectivas à sua ambição. Em vez de se
sentir desencorajado, alarga a esse domínio o sistema de explicação
que usa nas suas relações com os seus semelhantes; acreditará encon-
trar nele potências amigas, expor-se nele a influências malfazejas; de
qualquer maneira, não deparará com o mundo inteiramente estranho.
É verdade que, se génios bons e maus devem prolongar a acção que ele
exerce sobre a matéria, dir-se-ia então que a sua influência se exercerá
já sobre essa mesma acção. O nosso homem falará, pois, como se jamais
contasse, nem sequer no que dele depende, com um encadeamento
mecânico de causas e de efeitos. Mas se não acreditasse neste campo
num encadeamento mecânico, não o veríamos, a partir do momento
em que age, fazer tudo o que pode a fim de desencadear mecanica-
mente o resultado. Ora, quer se trate de selvagens ou de civilizados, se
quisermos saber o fundo do que um homem pensa, devemos reportar-
-nos ao que faz e não ao que diz.
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A KKLIGIÁO ESTÁTICA
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AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA R E L I G I Ã O
taria com a corrente do rio que move a sua canoa, com a tensão do seu
arco para lançar a sua flecha, com o machado para fender o tronco da
árvore, com os seus dentes para morder ou as suas pernas para andar.
Não pode representar-se explicitamente esta causalidade natural; não tem
qualquer interesse em fazê-lo, pois não é nem físico nern filósofo; mas
tem fé nela e toma-a por suporte da sua actividade. Vamos mais longe
ainda. Quando o primitivo invoca uma causa mística para explicar a
morte, a doença ou qualquer outro acidente, a que operação se entrega ele
ao certo? Vê, por exemplo, que um homem foi morto por um fragmento
de rochedo que se soltou durante uma tempestade. Negará que o rochedo
tenha sido fendido, que o vento tenha arrancado a pedra, que o choque
tenha quebrado um crânio? É evidente que não. Constata como nós a
acção destas causas segundas. Porque é que introduz então uma "causa
mística", como a vontade de um espírito ou de um feiticeiro, para a erigir
em causa principal? Olhemos mais de perto: veremos que aquilo que o
primitivo aqui explica por uma causa "sobrenatural" não é o efeito físico,
é'a sua significação humana, é a sua importância para o homem e mais
particularmente para certo homem determinado, aquele que a pedra
esmaga. Nada há de ilógico, nem por conseguinte de "pré-lógico", nem
tão-pouco nada que testemunhe uma "impermeabilidade à experiência",
152 na crença segundo a qual uma causa deve estar em proporção com o seu
efeito, pelo que uma vez constatadas a fissura do rochedo, a direcção e a
violência do vento - coisas puramente físicas e não preocupadas com a
humanidade -, resta explicar esse facto, para nós capital, que é a morte
de um homem. A causa contém eminentemente o efeito, diziam outrora
os filósofos; e se o efeito tem uma significação humana considerável, a
causa deve ter uma significação pelo menos igual; é em todo o caso da
mesma ordem: é uma intenção. Que a educação científica do espírito o
desabitue desta maneira de raciocinar é um facto que nada tem de duvi-
doso. Nem por isso ela é menos natural; persiste no civilizado e manifesta-
sse sempre que a força antagónica não intervém. Fazíamos notar que o
jogador, que aposta num número da roleta, atribuirá o sucesso ou o insu-
cesso à sorte ou ao azar, quer dizer a uma intenção favorável ou desfa-
vorável: mas não deixará por isso de explicar por causas naturais tudo o
que se passa entre o momento em que aposta o dinheiro e o momento
em que a bola pára; simplesmente, a esta causalidade mecânica, sobre-
porá, no fim, uma escolha semi-voluntária que contrabalança a sua: o
] 28
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AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA REI.IGIÄO
1
Ver em particular ia Mentalité primitive, p. 28,36,45, etc. Cf. Les fonctions mentales
dans les sociétés inférieures, p. 73.
2
Desenvolvemos esta concepção do acaso num curso leccionado no Collège de
France em 1898, a propósito do nep\ etnapnévriç de Alexandre de Afrodisiade.
î 13°
A REI.IGIÃO ESTÁTICA
132^
A RELIGIÃO E STATIC A
outro lado que o médico está longe de conseguir curar sempre o seu doen
te, considerando enfim que aquele emprega tempo e esforço na sua tarefa,
como não se diriam que o médico deverá ter algum interesse, que igno-
ram qual seja, em fazer o que faz? Como também, de preferência a traba-
lharem no sentido de se desfazerem da sua ignorância, não adoptariam
naturalmente a interpretação que começa por lhes passar pelo espírito e
da qual podem extrair proveito? É o que pergunto ao autor de "A Menta-
lidade Primitiva", e evocarei aqui uma recordação muito antiga, embora
só um nada mais velha do que a nossa velha amizade. Eu era criança, e
tinha maus dentes. O que tornava forçoso que me levassem de vez em
quando ao dentista, que prontamente atacava o dente culpado; arran-
cava' o sem piedade. Seja dito entre nós que a minha dor nâo era grande,
uma vez que os dentes arrancados eram desses que de qualquer modo
em breve cairiam por si sós; mas antes ainda de me ver instalado na
cadeira de báscula, soltava já gritos medonhos,por uma questão de princí- •
pio. A minha família acabou, contudo, por descobrir uma maneira de me
calar. Estrondosamente, no copo que me serviria para enxaguar a boca a
seguir a operação (a esterilização era desconhecida nesses tempos remo-
tos) o dentista deixava cair uma moeda de cinquenta cêntimos, cujo poder 159
de compra, ao tempo, equivalia a dez pauzinhos de açúcar. Eu teria já uns
seis ou sete anos, e não era mais tolo que os demais. Dispunha decerto de
recursos suficientes para ser capaz de adivinhar a colusão entre o dentista
e a minha família que visava comprar o meu silêncio, e o facto de à minha
volta haver assim quem conspirasse tendo em vista o meu bem. Mas
teria sido preciso um leve esforço de reflexão, e eu preferia não o forne-
cer, provavelmente por preguiça, talvez também para não ter de mudar
de atitude perante um homem que me deixava - c caso de o dizer - um
mau gosto na boca. Deixava-me por isso levar a não pensar, e a ideia que
devia fazer do dentista desenhava-se então por si mesma em traços lumi-
nosos no meu espírito. Tratava-se evidentemente de um homem cujo
maior prazer era arrancar dentes, e que se dispunha inclusivamente a
pagar uma soma de cinquenta cêntimos para o poder fazer.
Mas fechemos este parênteses e resumamos o que dissemos. Na
origem das crenças que acabamos de encarar encontrámos uma reacção
defensiva da natureza contra um desencorajamento que teria na inteligên-
cia a sua fonte. Esta reacção suscita, no interior da própria inteligência,
imagens e ideias que põem em xeque a representação deprimente, ou
133
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' William James, Memories and Studies, p. 209-214. Citado por H. M Kalleii em Why
Religion, Nova York, 1927.
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' "Animus and intent were never more present in any human action ".
137
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súbito. As perturbações com que nos confrontamos, e cada uma das quais
é inteiramente mecânica, compõem se num Acontecimento que se parece
com alguém, alguém que talvez seja má pessoa, mas que nem por isso é
menos deste mundo, por assim dizer. Não se trata de um ser que nos seja
estranho. Entre ele e nós parece-nos possível uma certa camaradagem.
O que basta para dissipar o susto ou, antes, para o impedir de nascer. De
uma maneira geral, o susto é útil, como todos os outros sentimentos. Um
animal inacessível ao medo não saberia fugir nem proteger-se; em breve
sucumbiria no decurso da luta pela vida. Podemos, pois, explicar a exis-
tência de um sentimento como o medo. Compreende-se também que o
medo seja proporcional à gravidade do perigo. Mas é um sentimento que
retém, que afasta, que recua: é essencialmente inibitório. Quando o perigo
é extremo, quando o medo atingiria o seu paroxismo e se tornaria para-
165 lisador, produz-se uma reacção defensiva da natureza contra a emoção
que era igualmente natural. A nossa faculdade de sentir não pode sem
dúvida modificar-se, continua a ser o que era; mas a inteligência, sob a
pressão do instinto, transforma pelo seu lado a situação. Suscita a ima-
gem que tranquiliza. Dá ao Acontecimento uma unidade e uma indivi-
dualidade que fazem dele um ser malicioso ou mau, talvez, mas próximo
de nós, com qualquer coisa de sociável e de humano.
Peço ao leitor que interrogue as suas recordações. Se não me engano
muito, confirmarão a análise de James. Permitir-me-ei, em todo o caso,
evocar aqui uma ou duas das minhas. A primeira remonta a tempos muito
antigos, uma vez que eu era então muito jovem e praticava desportos, em
particular a equitação. Eis que um belo dia, por se ter cruzado na estrada
com essa aparição fantástica que era um ciclista empoleirado num velo-
cípede altíssimo, o cavalo que eu montava teve medo e tomou o freio nos
dentes. Que se tratava de uma coisa que podia acontecer e que houvesse
nesse caso certas coisas a fazer ou pelo menos a tentar, eu sabia-o pomo
toda a gente que tenha frequentado um picadeiro. Mas a eventualidade
nunca se apresentara ao meu espírito a não ser sob uma forma abstracta.
O facto de o acidente se ter efectivamente produzido num ponto deter-
minado do espaço e do tempo, de me ter acontecido a mim e não a ôutro,
parecia-me implicar uma preferência referida à minha pessoa. Quem me
escolhera então? Não era o cavalo. Não era um ser completo, fosse esse
ser qual fosse, bom génio ou mau. Era o próprio acontecimento, um indi-
víduo que não tinha corpo que lhe pertencesse, porque não era senão a
síntese das circunstâncias, mas que tinha uma sua alma muito elementar,
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T o m e m o s o c a s o m a i s f r e q u e n t e : trata-se d e u m a n i m a l , d o rato o u d o
canguru, por exemplo, que serve de "totem", quer dizer de patrono, a um
193 clã inteiro. O m a i s i m p r e s s i o n a n t e é q u e os m e m b r o s do clã d e c l a r a m
q u e e l e e e l e s p r ó p r i o s s ã o u m só; são r a t o s , são c a n g u r u s . R e s t a s a b e r , é
verdade, em q u e sentido o dizem. C o n c l u i r m o s de imediato a existência
de u m a lógica especial, própria do " p r i m i t i v o " e d e s e m b a r a ç a d a do princí-
pio de c o n t r a d i ç ã o , seria a n d a r d e p r e s s a e s i m p l i f i c a r a tarefa. 0 n o s s o
v e r b o ser t e m s i g n i f i c a ç õ e s q u e s ó c o m d i f i c u l d a d e d e f i n i m o s , p o r m u i t o
civilizados q u e sejamos: c o m o reconstituir o sentido q u e o p r i m i t i v o dá
n e s t e o u n a q u e l e caso a u m t e r m o a n á l o g o , a i n d a q u e n o s f o r n e ç a expli-
cações a seu respeito? Estas explicações só t e r i a m certa precisão caso ele
f o s s e f i l ó s o f o , e ser-nos-ia e n t ã o n e c e s s á r i o c o n h e c e r m o s t o d a s a s s u b t i l e -
zas d a s u a l í n g u a p a r a a s c o m p r e e n d e r m o s . P e n s e m o s n o j u í z o q u e e l e
próprio faria a nosso propósito, sobre as nossas faculdades de observação
e de raciocínio, sobre o nosso b o m senso, se s o u b e s s e q u e o m a i o r dos
nossos moralistas disse: "O h o m e m é u m a cana p e n s a n t e ! " Conversará,
p e l o s e u l a d o , e l e c o m o s e u t o t e m ? Tratá-lo-á c o m o u m h o m e m ? E i s q u e
voltamos s e m p r e à m e s m a questão: para s a b e r m o s o que se passa no
espírito d e u m p r i m i t i v o , e até m e s m o d e u m civilizado, d e v e m o s conside-
rar o q u e ele faz, p e l o m e n o s t a n t o c o m o o q u e diz. A g o r a , se o p r i m i t i v o
n ã o s e i d e n t i f i c a c o m o s e u t o t e m , tomá-lo-á s i m p l e s m e n t e p o r e m b l e m a ?
Seria i r m o s longe demais no sentido oposto: ainda q u e t o t e m i s m o não
esteja na base da organização política dos não-civilizados, c o m o quer
D ü r k h e i m , ocupa d e m a s i a d o lugar na sua existência para p o d e r m o s ver
n e l e a p e n a s u m s i m p l e s m e i o d e d e s i g n a ç ã o d o clã. A v e r d a d e d e v e ser
q u a l q u e r coisa de i n t e r m é d i o e n t r e estas d u a s soluções extremas. Demos,
a título de h i p ó t e s e , u m a i n t e r p r e t a ç ã o a q u e os n o s s o s p r i n c í p i o s pode-
r i a m conduzir. N a d a há a tirar do facto de se d i z e r de um clã q u e é este ou
158 j.
A RELIGIÃO ESTÁTICA
1
Ver, a este respeito, Westermark, History of human marriage, Londres, 1901, pp.
290 e segs.
2
A ideia de que o clã descende do animal-totem - ideia na qual o Sr. Van Gennep
insiste no seu interessante trabalho sobre L'État actuei du problème lotémique (Paris,
1920) - pode perfeitamente ter vindo enxertar-se 11a representação que indicávamos.
159
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO
P a r t i n d o d e u m a n e c e s s i d a d e b i o l ó g i c a , p r o c u r a m o s n o ser v i v o a neces-
sidade q u e l h e c o r r e s p o n d e . S e esta n e c e s s i d a d e n ã o cria u m instinto real
e actuante, suscita, por i n t e r m é d i o daquilo a q u e p o d e r í a m o s c h a m a r um
instinto v i r t u a l o u latente, u m a representação i m a g i n a t i v a q u e determina
a conduta c o m o o faria o instinto. Na base do t o t e m i s m o estaria u m a
representação do m e s m o género.
197 d ú v i d a n a t u r a l , q u e s e e x p l i c a p e l o f a c t o d e a r e l i g i ã o e s t á t i c a t e r sobre-
v i v i d o e m p a r t e a s i p r ó p r i a n a r e l i g i ã o d i n â m i c a . M a s e s t a s f o r m a s inter-
m é d i a s o c u p a r a m u m lugar tão g r a n d e n a história c o n h e c i d a d a humani-
dade q u e t e r e m o s e f e c t i v a m e n t e de insistir nelas. N ã o v e m o s , pelo nosso
i ó o I
A RELIGIÃO E STATIC A
I n u t i l m e n t e p r o c u r a r í a m o s n e s t a m a r c h a u m r i t m o o u u m a lei. É capri-
cho puro. D a m u l t i d ã o dos espíritos v e r e m o s surgir u m a d i v i n d a d e local,
de início modesta, que crescerá c o m a cidade e será f i n a l m e n t e adoptada
pela n a ç ã o inteira. M a s outras evoluções são t a m b é m possíveis. É raro,
por o u t r o lado, que a e v o l u ç ã o d e s e m b o q u e n u m estado definitivo. P o r
m a i s e l e v a d o q u e seja o deus, a sua d i v i n d a d e n ã o i m p l i c a d e m o d o a l g u m
a imutabilidade. M u i t o pelo contrário, são os deuses p r i n c i p a i s das reli
giões antigas q u e m a i s m u d a r a m , enriquecendo-se d e atributos n o v o s
161
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO
peia a b s o r ç ã o d e d e u s e s d i f e r e n t e s c o m q u e a u m e n t a v a m a s u a substân-
cia. A s s i m , e n t r e os E g í p c i o s , o d e u s s o l a r R á , a p r i n c í p i o o b j e c t o de
a d o r a ç ã o s u p r e m a , atraí a si o u t r a s d i v i n d a d e s , assirniia-as ou enlaça-se
n e l a s , a m a l g a m a - s e c o m o i m p o r t a n t e d e u s d e T e b a s , A m o n , p a r a for-
mar Ámon-Rá. A s s i m M a r d u k , o deus da Babilónia, apropria-se dos cultos
de Bel, o g r a n d e deus de Nipur. A s s i m , na p o d e r o s a d e u s a Istar v ê m
fundir-se v á r i o s d e u s e s assírios. M a s n e n h u m a e v o l u ç ã o é m a i s rica do
que a de Zeus, o deus soberano da Grécia. D e p o i s de ter c o m e ç a d o s e m
d ú v i d a p o r ser o d e u s q u e se a d o r a no alto das m o n t a n h a s , q u e d i s p õ e
das n u v e n s , da c h u v a e do trovão, j u n t o u à sua f u n ç ã o m e t e o r o l ó g i c a , se
assim nos p o d e m o s exprimir, atribuições sociais que assumiram uma
complexidade crescente; a c a b o u por ser o deus q u e preside a todos os
199 grupos, da família ao Estado. E r a preciso sobrepor ao s e u n o m e os epítetos
mais variados para se assinalarem todas as direcções da sua actividade:
Xénios quando presidia ao c u m p r i m e n t o dos deveres de hospitalidade,
H ó r q u i o s q u a n d o assistia aos j u r a m e n t o s , H i q u é s i o s q u a n d o protegia os
s u p l i c a n t e s , G e n é t l i o s q u a n d o e r a i n v o c a d o p a r a u m c a s a m e n t o , etc.
A e v o l u ç ã o é g e r a l m e n t e lenta e n a t u r a l ; m a s t a m b é m p o d e ser r á p i d a e
cumprir-se artificialmente diante dos próprios olhos dos adoradores do
deus. A s d i v i n d a d e s d o O l i m p o d a t a m dos p o e m a s h o m é r i c o s , q u e talvez
não as t e n h a m criado, m a s q u e lhes d e r a m a f o r m a e as atribuições que
lhes c o n h e c e m o s , q u e as c o o r d e n a r a m e n t r e si e as a g r u p a r a m à v o l t a de
Zeus, p r o c e d e n d o desta feita m a i s p o r s i m p l i f i c a ç ã o do q u e por compli-
cação. N e m p o r isso f o r a m m e n o s aceites p e l o s gregos, q u e c o n h e c i a m
contudo as circunstâncias e quase a data do seu n a s c i m e n t o . M a s n ã o era
necessário o génio dos poetas: u n i decreto do p r í n c i p e p o d i a bastar para
fazer o u desfazer deuses. S e m entrarmos n o p o r m e n o r d e s t a s inter-
venções, r e c o r d e m o s a p e n a s a m a i s r a d i c a l de t o d a s elas, a do f a r a ó q u e
tomou o n o m e de Akhenaton: suprimiu os deuses áo Egipto em proveito
d e u m ú n i c o d e e n t r e e l e s e c o n s e g u i u f a z e r aceita"! a t é à s u a m o r t e e s t a
espécie d e m o n o t e í s m o . Sabe-se, aliás, q u e o s f a r a ó s p a r t i c i p a v a m eles
próprios da divindade. Intitulavam-se desde os t e m p o s mais antigos
"filhos de Rá". E a tradição e g í p c i a de tratar o s o b e r a n o c o m o u m a divin-
dade prosseguiu sob os Ptolomeus. N ã o se l i m i t a v a ao Egipto. E n c o n
tramo-la i g u a l m e n t e na Síria, sob os S e l ê u c i d a s , na C h i n a e no Japão,
o n d e o i m p e r a d o r recebe as h o n r a s d i v i n a s d u r a n t e a sua v i d a e se torna
deus depois da morte, e n f i m em R o m a , o n d e o S e n a d o diviniza Júlio
162
A REI.IGIÃO ESTÁTICA
César antes de Augusto, Cláudio, Vespasiano, Tito, N e r v a e, por fim, todos 200
os i m p e r a d o r e s , p a s s a r a m a o c u p a r a c o n d i ç ã o de deuses. É certo q u e a
a d o r a ç ã o d o s o b e r a n o n ã o s e p r a t i c a e m t o d a a p a r t e c o i n a m e s m a serie-
dade. V a i u m a g r a n d e distância, por e x e m p l o , d a d i v i n d a d e d e u m impe-
rador r o m a n o à de um faraó. Esta ú l t i m a está perto da d i v i n d a d e do chefe
nas sociedades primitivas; talvez se ligue à ideia de um fluido especial ou
d e u m p o d e r m á g i c o c u j o d e t e n t o r s e r i a o s o b e r a n o , a o p a s s o q u e a pri-
m e i r a foi conferida a César por simples adulação e utilizada por Augusto
como u m instrumentum regni. T o d a v i a , o s e m i - c e p t i c i s m o q u e se m i s -
t u r a v a à a d o r a ç ã o d o s i m p e r a d o r e s foi, e m R o m a , a p a n á g i o d o s e s p í r i t o s
cultivados; n ã o era extensivo ao povo; não atingia decerto a província.
O m e s m o é dizer q u e os deuses da a n t i g u i d a d e p o d i a m nascer, morrer,
transformar-se segundo o gosto dos h o m e n s e das circunstâncias, e que a
f é d o p a g a n i s m o era d e u m a c o m p l a c ê n c i a s e m fronteiras.
g o v e r n a a c h u v a e o b o m t e m p o a o q u e p r o t e g e o E s t a d o t a n t o 11a p a z
c o m o na guerra. M a s e n c o n t r a m o s p o r toda a parte, em graus diferentes,
a m e s m a tendência. Desde que o h o m e m cultiva a terra, t e m deuses q u e
s e i n t e r e s s a m p e l a c o l h e i t a , q u e d i s p e n s a m o c a l o r , q u e g a r a n t e m a regu-
l a r i d a d e d a s e s t a ç õ e s . E s t a s f u n ç õ e s a g r í c o l a s d e v e m 1er c a r a c t e r i z a d o
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO
164
A REI.IGIÃO ESTÁTICA
I 165
?
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO
q u e p r o t e c t o r e s e p r o t e g i d o s f o s s e m s o l i d á r i o s ; o s d e u s e s d a c i d a d e bene-
f i c i a v a m c o m o e n g r a n d e c i m e n t o desta. A guerra tornava-se u m a luta
entre d i v i n d a d e s rivais. Estas p o d i a m , por outro lado, reconciliar-se e os
deuses do povo subjugado e n t r a v a m então no panteão do vencedor. M a s
a v e r d a d e é q u e a c i d a d e ou o i m p é r i o , p o r um lado, os s e u s d e u s e s tutela-
res p o r outro, f o r m a v a m u m c o n s ó r c i o v a g o cujo carácter d e v e ter v a r i a d o
indefinidamente.
Todavia, é para nossa c o m o d i d a d e q u e d e f i n i m o s e classificamos assim
os d e u s e s da fábula. N e n h u m a lei p r e s i d i u ao seu n a s c i m e n t o , e tão-pouco
ao seu d e s e n v o l v i m e n t o ; a h u m a n i d a d e d e i x o u aqui agir l i v r e m e n t e o
seu i n s t i n t o d e efabulação. Trata-se d e u m i n s t i n t o q u e n ã o v a i m u i t o
longe, s e m d ú v i d a , q u a n d o a b a n d o n a d o a s i m e s m o , m a s p r o g r i d e indefi-
n i d a m e n t e q u a n d o s e c o m p r a z e m e m exercê-lo. É grande a diferença,
sob este aspecto, e n t r e as m i t o l o g i a s d o s diferentes povos. A A n t i g u i d a d e
Clássica oferece-nos um e x e m p l o desta oposição:!a m i t o l o g i a r o m a n a é
p o b r e , a d o s g r e g o s s u p e r a b u n d a n t e . O s d e u s e s d a R o m a A n t i g a coin-
c i d e m c o m a f u n ç ã o de q u e são i n v e s t i d o s e, de certo m o d o , nela se imo-
bilizam. M a l c h e g a m a ter u m corpo, q u e r o e u dizer u m a f i g u r a imagi-
nável. M a l c h e g a m a ser deuses. Pelo contrário, cada um dos deuses da
205 Grécia A n t i g a t e m a sua f i s i o n o m i a , o seu carácter, a sua história. Vai e
v e m , age fora do exercício das suas funções. C o n t a m - s e as suas aventu-
ras, d e s c r e v e - s e a s u a i n t e r v e n ç ã o n o s n o s s o s a s s u n t o s . P r e s t a - s e a t o d a s
as fantasias do artista e do poeta. Seria, m a i s p r e c i s a m e n t e , um persona-
g e m de romance, se não tivesse um poder superior ao dos h o m e n s e o
p r i v i l é g i o d e r o m p e r , e m c e r t o s c a s o s p e l o m e n o s , a r e g u l a r i d a d e d a s leis
d a n a t u r e z a . E m s u m a , a f u n ç ã o e f a b u l a d o r a d o e s p í r i t o d e t e v e - s e n o pri-
m e i r o caso; l e v o u p o r d i a n t e o seu t r a b a l h o no s e g u n d o . M a s é s e m p r e a
m e s m a função. R e t o i n a r á se necessário o trabalho i n t e r r o m p i d o . Tal foi o
efeito da introdução da literatura e, m a i s geralmente, das ideias gregas
em Roma. É sabido c o m o os romanos identificaram alguns dos seus.
deuses c o m os da Hélade, conferindo-lhes assim u m a personalidade mais
acusada e fazendo tfs passar do repouso ao m o v i m e n t o .
166
A RELIGIÃO E STATIC A
e n c a r a d a s d a m e s m a m a n e i r a pelo senso c o m u m e d e s i g n a d a s p o r u m a
só e m e s m a p a l a v r a na l i n g u a g e m corrente. M a s n e m p o r isso o psicólogo
d e v e r á a g r u p á - l a s n a m e s m a c a t e g o r i a n e m l i g á - l a s à m e s m a f u n ç ã o . Dei-
x e m o s , p o i s , d e l a d o a i m a g i n a ç ã o , q u e n ã o p a s s a d e u m a p a l a v r a , e consi-
d e r e m o s u m a faculdade b e m definida do espírito, a de criar personagens
c u j a s h i s t ó r i a s n o s c o n t a m o s . E s t a f a c u l d a d e t o m a u m a s i n g u l a r intensi-
d a d e de v i d a entre os romancistas e os d r a m a t u r g o s . A l g u n s destes são
v e r d a d e i r a m e n t e obcecados pelos seus heróis; são p o r eles c o n d u z i d o s 206
m a i s do q u e os c o n d u z e m ; chega a custar-lhes d e s e m b a r a ç a r e m - s e deles
d e p o i s d e t e r e m a c a b a d o a s u a p e ç a o u o s e u r o m a n c e . N ã o são necessa-
r i a m e n t e estes os autores cuja o b r a alcança m a i s e l e v a d o valor; mas,
m e l h o r q u e outros, fazem-nos tocar a dedo a existência, pelo m e n o s a
a l g u n s d e e n t r e nós, d e u m a f a c u l d a d e e s p e c i a l d e a l u c i n a ç ã o v o l u n t á r i a .
P a r a d i z e r a v e r d a d e , e n c o n t r a m o - l a n u m g r a u o u n o u t r o e m t o d a a gente.
É m u i t o v i v a nas crianças. U m a delas m a n t e r á u m c o m é r c i o quotidiano
c o m u m p e r s o n a g e m i m a g i n á r i o , cujas i m p r e s s õ e s s o b r e c a d a u m dos
i n c i d e n t e s d o dia nos relatará. M a s a m e s m a f a c u l d a d e e n t r a e m jogo nos
que, s e m c r i a r e m eles p r ó p r i o s seres fictícios, se i n t e r e s s a m p o r ficções
c o m o o f a r i a m por realidades. Q u e poderá h a v e r de m a i s espantoso do
q u e v e r m o s e s p e c t a d o r e s q u e c h o r a m n o t e a t r o ? Dir-se-á q u e a p e ç a é
d e s e m p e n h a d a p o r a c t o r e s , q u e h á e m p a l c o h o m e n s d e c a r n e e osso.
Seja, mas p o d e m o s ser arrebatados q u a s e c o m a m e s m a força pelo
r o m a n c e q u e lemos, e simpatizar na m e s m a m e d i d a c o m os personagens
cuja h i s t ó r i a nos é contada. C o m o é possível q u e os psicólogos não se
t e n h a m s e n t i d o i m p r e s s i o n a d o s p e l o q u e u m a t a l f a c u l d a d e t e m d e mis-
t e r i o s o ? Responder-se-á q u e todas as n o s s a s f a c u l d a d e s são misteriosas,
110 sentido em que não c o n h e c e m o s o m e c a n i s m o interior de n e n h u m a
delas. S e m d ú v i d a ; m a s s e a q u i está fora d e c a u s a u m a r e c o n s t r u ç ã o
m e c â n i c a , t e m o s o direito de r e c l a m a r u m a e x p l i c a ç ã o psicológica. E a
e x p l i c a ç ã o é em psicologia o q u e é em biologia; deu-se c o n t a da existência
de u m a f u n ç ã o q u a n d o se mostrou c o m o e p o r q u ê é ela necessária à vida.
O r a , n ã o é d e c e r t o n e c e s s á r i o q u e h a j a r o m a n c i s t a s e d r a m a t u r g o s ; a facul-
d a d e de e f a b u l a ç ã o em geral n ã o c o r r e s p o n d e a u m a e x i g ê n c i a vital. M a s 207
s u p o n h a m o s q u e n u m p o n t o particular, a p l i c a d a a u m a c e r t o objecto,
esta f u n ç ã o seja indispensável à existência d o s i n d i v í d u o s c o m o à das
sociedades: c o n c e b e r e m o s s e m d i f i c u l d a d e que, d e s t i n a d a a esse trabalho,
a o q u a l é n e c e s s á r i a , seja e m s e g u i d a u t i l i z a d a , u m a v e z q u e p e r m a n e c e
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sentações que têm outro objecto; a religião nem por isso deverá deixar de
ser definida em conformidade com aquilo a que chamámos a intenção da
natureza.
Explicámos muitas vezes o que devemos entender aqui por intenção.
E insistimos longamente, no presente capítulo, na função que a natureza
assinalara à religião. Magia, culto dos espíritos ou dos animais, adoração
dos deuses, mitologia, superstições de todo o género, parecerão muito
complexos se os tomarmos isoladamente. Mas o conjunto é bastante
simples.
216 0 homem é o único animal cuja acção se mostra pouco segura, que
hesita e tacteia, que forma projectos com a esperança de ser bem sucedido
e o receio de falhar. É o único que se sente exposto à doença, e o único
também que sabe que tem de morrer. O resto da natureza desabrocha
numa tranquilidade perfeita. As plantas e os animais bem podem estar
sujeitos a todos os acasos; nem por isso repousam menos no instante que
passa como o fariam sobre a eternidade. Respiramos qualquer coisa dessa
inalterável confiança num passeio pelo campo, do qual regressamos apazi-
guados. Mas ainda não é tudo. De todos os seres que vivem em sociedade,
o homem é o único capaz de desviar a linha social, cedendo a preo-
cupações egoístas quando está em causa o bem comum; em todos os
outros casos, o interesse individual mostra-se inevitavelmente coorde-
nado ou subordinado ao interesse geral. Esta dupla imperfeição é o tri-
buto pago pela inteligência. O homem não pode exercer a sua faculdade
de pensar sem se representar um futuro incerto, que desperta o seu medo
e a sua esperança. Não pode reflectir sobre o que a natureza lhe pede, na
medida em que esta fez dele um ser sociável, sem se dizer que muitas
vezes teria benefício, se descurasse os outros e cuidasse apenas de si
mesmo. Nos dois casos haveria uma ruptura da ordem normal, natural.
E contudo, foi a natureza que quis a nossa inteligência, que a pôs no
extremo de uma das duas grandes linhas da evolução animal para contra-
balançar o instinto mais perfeito, ponto terminal da outra. É impossível
que não tenha tomado as suas precauções para que a ordem, assim que a
inteligência a perturba, tenda a restabelecer-se automaticamente. De facto,
a função efabuladora, que pertence à inteligência mas não é apesar disso
inteligência pura, lern precisamente esse fim. O seu papel é elaborar a
religião de que temos vindo até aqui a tratar, aquela a que chamamos
217 estática e da qual diríamos que é a religião natural, se esta expressão não
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CAPÍTULO III
A RELIGIÃO DINÂMICA 221
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artista de génio produziu uma obra que nos excede, cujo espírito não
conseguimos assimilar, mas que nos faz sentir a vulgaridade das nossas
admirações anteriores, assim a religião estática, ainda que subsista, já
não é inteiramente o que era, não ousa sobretudo confessar quando sur
giu o grande misticismo. Será a ela ainda, ou pelo menos a ela principal-
mente, que a humanidade pedirá o apoio de que precisa; deixará conti-
nuar a trabalhar, reformando-a o melhor que pode, a função efabuladora; 227
em suma, a sua confiança na vida continuará a ser mais ou menos como
a natureza a instituíra. Mas fingirá sinceramente ter buscado e obtido
em certa medida esse contacto com o próprio princípio da natureza que
se traduz por um apego à vida completamente diferente, por uma con-
fiança transfigurada. Incapaz de ascender tão alto, esboçará o gesto,
tomará a atitude de o fazer e, nos seus discursos, reservará o mais belo
lugar a fórmulas que não chegam a encher-se para ela de todo o seu
sentido, como esses cadeirões que ficam vazios e que, numa cerimónia, '
haviam sido preparados para certos grandes personagens. Constituir-se-á
assim uma religião mista que implicará uma orientação nova da de
outrora, uma aspiração mais ou menos pronunciada do deus antigo, saído
da função efabuladora, a perder-se naquele que se revela efectivamente,
que ilumina e aquece com a sua presença as almas privilegiadas. Assim
se intercalam, como dizíamos, transições e diferenças aparentes de grau
entre duas coisas que diferem radicalmente de natureza e que não deve-
riam, dir-se-ia à primeira vista, ser chamadas da mesma maneira. Em
muitos casos o contraste é impressionante, por exemplo quando duas
nações em guerra afirmam uma e outra terem do seu lado um deus que
mostra assim ser o deus nacional do paganismo, quando o Deus do qual
imaginam falar é um Deus comum a todos os homens, cuja simples visão
por todos seria a abolição imediata da guerra. E, todavia, não deveríamos
tirar partido deste contraste para depreciar as religiões que, nascidas dõ :
misticismo, generalizaram o uso das suas fórmulas sem terem podido
penetrar a humanidade inteira da totalidade do seu espírito. Acontece a -
fórmulas quase vazias fazerem surgir aqui ou ali, verdadeiras palavras
mágicas, o espírito capaz de as preencher. Um professor medíocre, atra- 228
vés do ensino maquinal de uma ciência criada por homens de génio, des-
pertará num dos seus alunos a vocação que ele próprio não teve, e con-
vertê-lo-á inconscientemente em émulo desses grandes homens, invisíveis
e presentes na mensagem que transmite.
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Não ignoramos que, além do neoplatonismo e do budismo, houve na Antiguidade
outros misticismos. Mas, dado o objecto que nos ocupa, basta-nos considerar aqui os que
avançaram alé mais longe.
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r
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1
O Sr. Ilenri Delacroix chamou a atenção para o que há de essencialmente actuante
nos grandes místicos cristãos, num livro que.mereceria tornar-se um clássico (Études
d'histoire et de psychologie du mysticisme, Paris, 1908). Encontrar-se-ão ideias análogas
nos traballios importantes de Evelyn Underbill (Mysticism, Londres, 1 9 1 1 ; e The mystic
way, Londres, 1 9 1 3 ) Este último autor articula alguns dos seus pontos de vista com os
que nós expúnhamos em L'Évolution créatrice e que retomamos, prolongando-os, no
presente capítulo. Ver em particular, acerca deste ponto, The mystic way.
' Janet, Pierre, De l'angoisse à l'extase.
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Detém-se, como se escutasse uma voz que a chama. Depois deixa-se levar,
a direito e em frente. Não percebe directamente a força que a move, mas
sente a sua presença indefinível, ou adivinha-a através de uma visão sim-
bólica. Vem então uma imensa alegria, êxtase em que ela se absorve ou 244
arrebatamento que sofre: aí está Deus, e ela nele. Deixa de haver mistério.
Os problemas dissipam-se, asobscuridades desvanecem-se; è uma ilumi-
nação. Mas por quanto tempo? Uma imperceptível inquietação, que
planava sobre o êxtase, desce e apega-se-lhe como se fosse a sua sombra.
Bastaria já, ainda que sem os estados de espírito que se vão seguir, para
distinguir o misticismo verdadeiro, completo, do que foi outrora a sua
imitação antecipada ou a sua preparação. Com efeito, mostra que a alma
do grande místico não se detém no êxtase como no termo de uma viagem.
Trata-se efectivamente de repouso, se assim se quiser, mas como numa
estação onde a máquina continuasse sob pressão, persistindo o movi-
mento como uma vibração que nao sai do mèsmò lugar na expëc'tativa'de
um novo salto em frente. Digamos mais precisamente: a união com Deus
bem pode ser estreita, só seria definitiva se fosse total. Deixa decerto de
haver distância entre o pensamento e o objecto do pensamento, uma vez
que caíram os problemas que mediam e até mesmo constituíam o inter-
valo. Deixa de haver separação radical entre o que ama e o que é amado:
Deus está presente e a alegria é sem limites. Mas se a alma se absorve em
Deus pelo pensamento e pelo sentimento, alguma coisa dela fica de fora;
é a vontade: a sua acção, se agisse, procederia simplesmente dela. A sua
vida não é pois divina ainda. A alma sabe-o; vagamente, inquieta-se com
isso, e esta agitação no repouso é característica daquilo a que chamamos
o misticismo completo: exprime que fora tomado impulso a fim de se ir
mais longe, que o êxtase interessa de facto a faculdade da visão e da
comoção, mas que há também o querer, e que seria necessário recolocá-
-lo, também a ele, em Deus. Quando este sentimento cresce até ocupar
todo o lugar, o êxtase cai, a alma redescobre^e'sô e pór vezes dèsóla-sé."
Habituada por um tempo à luz deslumbrante, já nada distingue na som- 245
bra. Não se dá conta do trabalho profundo que nela se cumpre obscura-
mente. Sente que perdeu muito; não sabe ainda que é para ganhar tudo
que o perdeu. Tal é "noite obscura" de que falaram os grandes místicos, e
que talvez seja o que há de mais significativo, e em todo o caso de mais
instrutivo, no misticismo cristão. Prepara-se a fase definitiva, caracterís-
tica do grande misticismo. Analisar esta preparação final é impossível,
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AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO
uma vez que os próprios místicos mal chegaram a entrever o seu meca-
nismo. Limitemo-nos a dizer que uma máquina de um aço formidavel-
mente resistente, construída em vista de um fim extraordinário, se encon-
traria sem dúvida num estado análogo se tomasse consciência de si
mesma no momento da montagem. Sendo as suas peças submetidas, uma
à uma, às mais duras provas, sendo algumas de entre elas rejeitadas e
substituídas por outras, a máquina teria o sentimento de uma privação
aqui ou ali, e de uma dor por toda a parte. Mas esta dor, inteiramente
superficial, não precisaria de mais que aprofundar-se para se perder na
expectativa e na esperança de um instrumento maravilhoso. A alnra mís-
tica quer ser este instrumento. Elimina da sua substância tudo o que não
é suficientemente puro, suficientemente resistente e flexível, para poder
ser utilizado por Deus. Sentia já Deus presente, acreditava já percebê-lo
em visões simbólicas, unia-se já a ele no êxtase; mas eis que nada de tudo
isso era duradouro porque tltdo isso não passava de contemplação: a acção
reconduzia a alma a si mesma e desligava-a assim de Deus. Agora é Deus
que age nela, por ela: a união é total e, por conseguinte, definitiva. Então,
palavras como mecanismo e instrumento evocam imagens que será me-
lhor deixai de lado. Podiam servir para nos dar uma ideia do trabalho de
246 preparação. Nada com elas poderemos aprender do resultado final. Diga-
mos que este é doravante, para a alma, uma superabundância de vida.
É um impulso imenso. É um ímpeto irresistível que a lança nos empreen-
dimentos mais vastos. Uma serena exaltação de todas as suas faculdades
faz com que ela veja grande e, por fraca que seja, realize poderosamente.
Sobretudo vê simples, e esta simplicidade, que impressiona tanto nas
suas palavras como na sua conduta, guia-a através das complicações que
parece não notar sequer. Urna ciência inata, ou antes uma inocência adqui-
= rida, sugere-lhe assim desde o primeiro instante a operação útil, o acto
1
decisivo, a palavra sem réplica. Todavia, o esforço continua a ser indis-
pensável, e o mesmo se diga da persistência e da perseverança. Mas vêm
por si sós, desdobram-se por si mesmos numa alma ao mesmo tempo
? agente e "agida", cuja liberdade coincide com a actividade divina. Repre-
sentam um enorme dispêndio de energia, mas esta energia é fornecida
- ao mesmo tempo que requerida, porque a superabundância de vitalidade
que reclama corre de uma fonte que é a própria fonte da vida. Agora as
visões estão longe: a divindade não poderia manifestar-se do exterior a
uma alma doravante preenchida por ela. Já nada há que pareça distinguir
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A RELIGIÃO DINÂMICA
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AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO
vel? Não sc trata, pois, aqui da fraternidade cuja ideia se construiu para
dela se fazer um ideal. E também não se trata da intensificação de uma
simpatia inata do homem pelo homem. A propósito de um tal instinto
podemos, por outro lado, perguntar-nos se existiu alguma vez fora da
imaginação dos filósofos, onde terá surgido por razões de simetria. Uma
vez que família, pátria, humanidade surgem como outros tantos círculos
cada vez mais largos, pensou-se que o homem devia amar naturalmente
a humanidade como amamos a nossa pátria e a nossa família, quando na
realidade o grupo familiar e o grupo social são os únicos que foram queri-
dos pela natureza, os únicos aos quais correspondem instintos, e quando
os instintos sociais levariam as sociedades a lutar umas contra as outras
bem mais depressa do que a unirem-se para se constituírem efectivamen-
te em humanidade. Quando muito o sentimento familiar e social poderá
acidentalmente superabundar e ser aplicado para além das suas frontei-
ras naturais, por luxo ou por jogo; o que nunca chegará muito longe. Bem
diferente é o amor místico da humanidade. Não prolonga um instinto,
não deriva de uma ideia. Não releva nem do sensível nem do racional.
É uma coisa e outra implicitamente, e efectivamente muito mais do que
isso. Porque um tal amor está na própria raiz da sensibilidade e da razão,
como do resto das coisas. Coincidindo com o amor de Deus pela sua obra,
amor que tudo fez, entregaria a quem soubesse interrogá-lo o segredo da
criação. É de essência metafísica ainda mais que moral. Quereria, com a
ajuda de Deus, completar a criação da espécie humana e fazer da huma-
nidade o que ela teria imediatamente sido se tivesse podido constituir-se
definitivamente sem o auxílio do próprio homem. Ou, para empregar
249 palavras que dizem, como veremos, a mesma coisa numa outra lingua-
gem: a sua direcção é a mesma que a do impulso da vida; é esse próprio
impulso, comunicado integralmente a homens privilegiados que quere-
riam imprimi-lo então na humanidade inteira e, através de uma contra-
dição realizada, converter em esforço criador essa coisa criada que é uma
espécie, fazer um movimento daquilo que é por definição uma paragem.
Consegui-lo-á? Se o misticismo vier a transformar a humanidade,
só poderá fazê-lo transmitindo passo a passo, lentamente, uma parte de
si mesmo. Os místicos sentem-no bem. O grande obstáculo com que depa
rarão é o mesmo que impediu a criação de uma humanidade divina.
O homem tem de ganhar o pão com o suor do seu rosto: noutros termos,
a humanidade é uma espécie animal, submetida como tal à lei que rege o
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A RELIGIÃO DINÂMICA
mundo animal e que condena o ser vivo a alimentar-se do ser vivo. Sendo-
-lhe assim o seu alimento disputado, tanto pela natureza em geral como
pelos seus congéneres, aplica necessariamente o seu esforço a tentar obtê-
-lo, e a sua inteligência é justamente de molde a fornecer-lhe armas e
ferramentas em vista dessa luta e desse trabalho. Como viraria, em tais
condições, a humanidade para o céu uma atenção essencialmente ligada
à terra? Se puder vir a fazê-lo, será apenas por meio da aplicação simul-
tânea ou sucessiva de dois métodos muito diferentes. O primeiro con-
sistiria em intensificar de tal modo o trabalho intelectual, em levar a inteli-
gência tão para além do que a natureza quis para ela, que a simples
ferramenta cedesse lugar a um imenso sistema de máquinas capaz de
libertar a actividade humana, sendo esta libertação consolidada, por outro
lado, através de uma organização política e social que garantisse ao
maquinismo o seu destino verdadeiro. Meio perigoso, porque a mecânica,
ao desenvolver-se, poderá voltar-se contra a mística: mais ainda, será em 250
reacção aparente contra ela que a mecânica se desenvolverá mais com-
pletamente. Mas há riscos que é preciso correr: uma actividade de ordem
superior, que tem necessidade de uma actividade mais baixa, deverá sus-
citá-la ou pelo menos deixá-la agir, pronta a defender-se dela se disso for
caso; a experiência mostra que se de duas tendências contrárias mas com-
plementares uma tiver crescido a ponto de querer ocupar para si todo
o lugar, a outra acabará por beneficiar desse crescimento, contanto que
tenha sabido manter-se: a sua vez regressará, e ela colherá então proveito
de tudo o que foi feito sem ela, que foi até mesmo vigorosamente con-
duzido contra ela. Seja como for, este meio só poderia ser utilizado muito
mais tarde e haveria, entretanto, um método completamente diferente a
seguir. Seria o de não sonhar para o impulso místico uma propagação
geral imediata, evidentemente impossível, mas comunicá-lo, ainda que já ;
enfraquecido, a um pequeno número de privilegiados que formariam
juntos uma sociedade espiritual; as sociedades deste género poderiam
enxamear; cada uma delas, através daqueles de entre os seus membros
que se revelassem excepcionalmente dotados, daria origem a uma ou r
várias outras; assim se conservaria, assim se continuaria o impulso até ao
dia em que uma mudança profunda das condições materiais impostas à
humanidade pela natureza permitisse, do lado espiritual, uma radical
transformação. Tal foi o método que os grandes místicos seguiram. Foi
por necessidade, e porque não podiam fazer mais, que consagraram
199
sobretudo a fundar conventos ou ordens religiosas a sua energia super-
abundante. Não lhes cabia olhar de momento mais longe. O impulso de
amor que os levava a elevar a humanidade até Deus e a rematar a cria-
ção divina não podia ser bem sucedido, aos seus olhos, senão com a ajuda
251 de Deus, do qual eram instrumentos. Todo o seu esforço devia concen-
trar-se, portanto, numa tarefa muito grande, muito difícil, mas limitada.
Outros esforços viriam, outros tinham de resto vindo já; todos seriam
convergentes, uma vez que Deus constituía a sua unidade.
A verdade é que simplificámos as coisas em extremo. Em vista de
uma maior clareza, e sobretudo para seriar as dificuldades, raciocinámos
como se o místico cristão, portador de uma revelação interior, sobreviesse
numa humanidade que nada soubesse dela. De facto, os homens aos quais
ele se dirige têm já uma religião, que era, aliás, a do próprio místico. Se
este tinha visões, estas apresentavam-lhe em imagens aquilo que a sua
religião lhe inculcara sob a forma de ideias. Se tinha êxtases, estes uniam-
no a um Deus que superava sem dúvida tudo aquilo que ele imaginara,
mas que correspondia ainda à descrição abstracta que a religião lhe forne-
cera. Poderíamos até mesmo perguntar-nos se tais ensinamentos abstrac-
tos não estarão na origem do misticismo, e se este fez alguma vez outra
coisa que não fosse percorrer de novo a letra do dogma para o escrever
desta feita em caracteres de fogo. O papel dos místicos seria então ape-
nas o de trazerem à religião, para a reaquecer, alguma coisa do calor que
os anima. E, decerto, o que professe tal opinião não terá dificuldade
em fazê-la admitir. Os ensinamentos da religião endereçam-se com efeito,
como qualquer ensinamento, à inteligência, e aquilo que é de ordem inte-
lectual pode tornar-se acessível a todos. Adira-se ou não à religião, con-
seguir-se-á sempre assimilá-la intelectualmente, ainda que se consinta em
representar como misteriosos os seus mistérios. Pelo contrário, o misti-
cismo não diz nada, absolutamente nada, ao que não experimentou
qualquer coisa dele. Toda a gente poderá, pois, compreender que o misti-
252 cismo venha de longe em longe inserir-se, original e inefável, numa reli-
gião preexistente formulada em termos de inteligência, ao passo que será
difícil fazer aceitar a ideia de uma religião que existisse apenas através
do misticismo, do qual seria um extracto intelectualmente formulável e,
por conseguinte, generalizável. Não nos incumbe investigar qual destas
interpretações se mostra mais em conformidade com a ortodoxia reli
giosa. Digamos simplesmente que, do ponto de vista do psicólogo, a
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A RELIGIÃO DINÂMICA
201
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA R E L I G I Ã O
E tal ser-lhe-á fácil, uma vez que a teologia captou precisamente uma
corrente que tem a sua fonte na misticidade. Assim, o seu misticismo
beneficia da religião, enquanto a religião espera a vez de se enriquecer
com o seu misticismo. É por aqui que se explica o papel que ele se-sente
de início chamado a desempenhar, o de um intensificador da fé religiosa.
A sua pressa é enorme. Na realidade, para os grandes místicos o que
está em causa é transformar radicalmente a humanidade começando por
dar eles próprios o exemplo. O alvo só seria atingido se no f i m houvesse
o que teoricamente deveria ter existido na origem, u m a humanidade
divina.
254 Misticismo e cristianismo condicionam-se, pois, um ao outro, indefi-
nidamente. Mas é preciso que, seja como for, tenha havido um começo.
De facto, na origem do cristianismo há o Cristo. Do ponto de vista em que
nos colocamos, e do qual a divindade aparece a todos os homens, jDouco
importa que o Cristo se chame ou não se chame um homem. Não importa
sequer que se chame Cristo. Os que chegaram ao ponto de negar a exis-
tência de (esus não impedirão o Sermão da Montanha de figurar no
Evangelho, juntamente com outras palavras divinas. Ao autor dar-se-á o
nome que se queira, o que não significará, porém, que não tenha havido
autor. São problemas que, por conseguinte, não nos cabe pór aqui. Diga-
mos simplesmente que, se os grandes místicos são de facto como os des-
crevemos, surgem como imitadores e continuadores originais, mas incom-
pletos, daquilo que o Cristo dos Evangelhos foi completamente.
O próprio Cristo pode ser considerado como o continuador dos profe-
tas de Israel. Não é duvidoso que o cristianismo tenha sido uma transfor-
mação profunda do judaísmo. Foi dito e repetido: a uma religião que era
ainda essencialmente nacional substituiu-se u m a religião capaz de se tor-
nar universal. A um Deus que se distiõguia sem dúvida de todos os outros
pela sua justiça ao mesmo tempo quê pelo seu poder, mas cujo poder se
exercia em benefício do seu povo e cuja justiça se referia antes de mais
aos seus súbditos, sucedeu um Deus de amor, e que amava a humanidade
inteira. É precisamente por isso que hesitamos em classificar os profetas
judeus entre os místicos da Antiguidade: Javé era um juiz demasiado
severo, entre Israel e o seu Deus não havia intimidade bastante, para que
o judaísmo fosse o misticismo que definimos. E, contudo, nenhuma cor-
255 rente de pensamento ou de sentimento contribuiu tanto como o profe-
tismo judeu para suscitar o misticismo a que chamamos completo, o dos
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A RELIGIÃO DINÂMICA
203
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO
adoptado com algumas modificações pela maior parte dos seus suces-
sores. Sem entrarmos aqui num exame aprofundado da concepção aris-
totélica da divindade, digamos simplesmente que ela parece suscitar uma
dupla questão: i.° porque pós Aristóteles como primeiro princípio um
Motor Imóvel, Pensamento que se pensa a si mesmo, fechado em si mes-
mo, e que não age senão por meio da atracção da sua perfeição; 2° porque
foi que, tendo posto este princípio, Aristóteles lhe chamou Deus? Mas a
resposta é fácil nos dois casos: a teoria platónica das Ideias dominou
todo o pensamento antigo, enquanto esperava o momento de penetrar a
filosofia moderna; ora, a relação do primeiro princípio de Aristóteles com
o mundo é a mesma que Platão estabeleceu entre a Ideia e a coisa. Para
quem não vê nas ideias mais que produtos da inteligência social e indi-
vidual, nada há de surpreendente em que ideias com um número deter-
minado, imutáveis, correspondam às coisas indefinidamente variáveis e
257 mutantes da nossa experiência: arranjamos, com efeito, maneira de des-
cobrir semelhanças entre as coisas apesar da sua diversidade, e para assu-
mir sobre elas pontos de vista estáveis apesar da sua instabilidade; obte-
mos assim ideias sobre as quais temos domínio ao passo que as coisas
nos escorregam por entre as mãos. Tudo isto é de fabrico humano. Mas
aquele que começa a filosofar, quando a sociedade levou já bastante longe
o seu trabalho, e descobre os respectivos resultados armazenados na lin-
guagem pode sentir-se ferido de admiração por este sistema de ideias,
pelo qual as coisas parecem regular-se. Não seriam as ideias, na sua imuta-
bilidade, modelos que as coisas mutantes e moventes se limitam a imi-
tar? Não seriam a realidade verdadeira, e mudança e movimento não
traduziriam a incessante.e inútil tentativa de coisas quase inexistentes,
correndo de certo modo atrás de si mesmas, em vista de coincidirem com
a imutabilidade da Ideia? Compreende-se, assim, que tendo posto acima
do mundo sensível uma hierarquia de Ideias dominadas por essa ideia
das Ideias que é a Ideia do Bem, Platão tenha julgado que as Ideias em
geral, e por maioria de razão o Bem, agiam mediante a atracção da sua
perfeição. Tal é precisamente, segundo Aristóteles, o modo de acção do
Pensamento do Pensamento, que não deixa de ter relação com a Ideia das
Ideias. É verdade que Platão não identificava esta última com Deus: o
Demiurgo do Timeu, que organiza o mundo, é distinto da Ideia do Bem.
Mas o Timeu é um diálogo mítico; o Demiurgo não tem, portanto, senão
uma semi existência; e Aristóteles, que renuncia aos mitos, faz coincidir
204
A RELIGIÃO DINÂMICA
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AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO
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A RELIGIÃO DINÂMICA
Concedo-o; mas o místico, também ele, fez uma viagem que outros podem
refazer de direito, senão de facto; e os que são efectivamente capazes
disso são pelo menos tão numerosos como os que teriam a audácia e a
energia de um Stanley ao pôr-se em busca de Livingstone. O que não é
tudo. A par das almas que seguiriam até ao fim a via mística, há muitas
outras que "efectuariam pelo menos uma parte do trajecto: quantos não
deram nessa via alguns passos, quer por meio de um esforço da vontade,
quer por uma disposição da sua natureza! William James declarava nunca
ter passado por estados místicos; mas acrescentava que, quando ouvia
falar deles um homem que os conhecia por experiência, "qualquer coisa
despertava um eco" no seu íntimo. A maioria de nós está provavelmente 261
no mesmo caso. De nada serve que se lhes oponham os protestos indigna-
dos dos que não vêem no misticismo mais que charlatanismo ou loucura.
Alguns, sem dúvida, são completamente fechados à experiência mística,
incapazes de a experimentar minimamente, de miniríiamente a imagi-
nar. Mas conhecemos também pessoas para as quais a música não passa
de um ruído; e algumas de entre elas exprimem-se com a mesma cólera,
com o mesmo tom de rancor pessoal, a respeito dos músicos. Daí ninguém
tirará um argumento contra a música. Deixemos, portanto, de lado estas
negações, e vejamos se o exame mais superficial da experiência mística
criaria ou não já uma presunção em favor da sua validade.
Devemos começar por notar o acordo dos místicos entre si. O facto é
impressionante entre os místicos cristãos. Para alcançarem a deificação
definitiva, passam por uma série de estados. Estes estados podem variar
de místico para místico, mas assemelham-se muito. Em todo o caso, o
caminho percorrido é o mesmo, a supormos que as estações o balizem de
modos diferentes. E, em todo o caso, o ponto de chegada é sempre o
mesmo. Nas descrições do estado definitivo encontjamos as mesmas
expressões; as mesmas imagens, as-mesmas comparações, ao mesmo
tempo que em geral os autores não se conhecem mutuamente. Replica--
-se que por vezes se conheceram, e que existe, aliás, uma tradição mística,
cuja influência todos os místicos puderam sofrer. Concedemo-lo,,mas é
preciso notar que os grandes místicos se preocupam pouco com essa
tradição; cada um deles tem a sua originalidade, que não é querida, que
não foi desejada, mas à qual sentimos bem que o místico está essencial-
mente ligado: significa que ele é objecto de um favor excepcional, ainda
que imerecido. Dir-se-á que a comunidade de religião basta para explicar 262
2 0
7
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO
1
M. de Montmorand, Psychologie des mystiques catholiques orthodoxes, Paris, 1920,
p. 17.
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AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO
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AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO
Pode não ser músico, mas é em geral escritor; e a análise do seu pró-
prio estado de alma, quando compõe, ajudá-lo-á a compreender como o
269 amor em que os místicos vêem a própria essência da divindade pode ser,
ao mesmo tempo que uma pessoa, uma potência de criação. Mantém-se
comummente, quando escreve, na região dos conceitos e das palavras.
A sociedade fornece-lhe, elaboradas pelos seus predecessores e armazena-
das na linguagem, ideias que ele combina de uma maneira nova depois
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A RELIGIÃO DINÂMICA
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AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO
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A RELIGIÃO DINÂMICA
Vamos assim para além, sem dúvida, das conclusões de "A Evolu-
ção Criadora". Tínhamos querido então permanecer tão perto dos factos
quanto possível. Não dizíamos nada que não pudesse ser um dia confir-
mado pela biologia. À espera dessa confirmação, tínhamos resultados
que o método filosófico, tal como o entendemos, nos autorizava a consi-
derar verdadeiros. Aqui estamos apenas no domínio do verosímil. Mas
nunca repetiremos demais que a certeza filosófica comporta graus, que
faz apelo à intuição ao mesmo tempo que ao raciocínio, e que, se a intui-
ção animada à ciência é susceptível de ser prolongada, só o poderá ser
pela intuição mística. De facto, as conclusões que acabamos de apresentar
completam naturalmente, ainda que não necessariamente, as dos nos-
sos trabalhos anteriores. Uma energia criadora que fosse amor, e que
quisesse tirar de si mesma seres dignos de serem amados, poderia assim
semear mundos cuja materialidade, por oposição à espiritualidade divina,
exprimiria simplesmente a distinção erttre o que é criado e d que cria,
entre as notas sobrepostas da sinfonia e a emoção indivisível que as
deixou sair de si. Em cada um destes mundos, impulso vital e matéria
bruta seriam os dois aspectos complementares da criação, guardando
a vida da matéria que atravessa a sua subdivisão em seres distintos, e
permanecendo as forças das quais é portadora conjuntamente confun-
didas, na medida em que o permita a espacialidade da matéria que as
manifesta. Esta interpenetração não foi possível no nosso planeta; tudo
leva a crer que a matéria que aqui se mostrou complementar da vida era
pouco de molde a favorecer o seu impulso. A impulsão original resultou 273
assim em progressos evolutivos divergentes, em vez de se manter indivisa
até ao fim. Na própria linha por onde passou o essencial da impulsão,
esta acabou por esgotar o seu efeito, ou antes o movimento converteu-
-se, de rectilíneo, em movimento circular. A humanidade, que está no
extremo desta linha, gira nesSe círculo; Tal era a nossa conclusão:Pára a
prolongarmos, sem cair em suposições arbitrárias, só teríamos de seguir
a indicação do místico. Quanto-à corrente vital que atravessa a matéria,
e que é sem dúvida a sua ra-zão de ser,- tomávamo-la-por simplesmente
dada. Da humanidade, que está no extremo da direcção principal, per-
guntávamo-nos se teria outra razão de ser além de si mesma. Trata-se de
uma dupla questão que a intidção mística põe ao responder-lhe, Foram
chamados à existência seres que estavam destinados a amar e a ser ama-
dos, uma vez que a energia criadora deve definir-se pelo amor. Distintos
/1 /. Z15
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO
de Deus, que é essa energia ela mesma, só podiam surgir num universo,
e foi por isso que o universo surgiu. Na porção de universo que é o
nosso planeta, provavelmente em todo o nosso sistema solar, tais seres,
para se produzirem, tiveram de constituir uma espécie, e esta espécie
tornou necessária uma multiplicidade de outras que f o r a m a sua pre-
paração, o seu apoio, ou o seu desperdício: noutros lugares talvez não
haja senão indivíduos radicalmente distintos, a supor que sejam ainda
múltiplos, ainda mortais; talvez tenham sido também realizados de uma
vez só e plenamente. Na terra, em todo o caso, a espécie que é a razão de
ser de todas as outras só parcialmente é ela mesma. Não pensaria sequer
em vir a sê-lo por completo se alguns dos seus representantes não tives-
sem conseguido, através de um esforço individual que se acrescentou ao
274 trabalho geral da vida, quebrar a resistência que o instrumento opunha,
triunfar sobre a materialidade, redescobrir, enfim, Deus. Tais homens
são os místicos. Abriram um caminho por onde outros homens poderão
andar. Indicaram, por isso mesmo, ao filósofo de onde vinha e para onde-
ia a vida.
Não nos cansamos de repetir que o h o m e m é muito pouca coisa sobre
a terra, como a terra no universo. Todavia, até mesmo pelo seu corpo, o
homem está longe de ocupar apenas o lugar mínimo que comummente
se lhe atribui, e com o qual o próprio Pascal se contentava quando o
reduzia a "cana pensante" e a não ser, materialmente, mais do que isso
mesmo. Porque se o nosso corpo é a matéria à qual a"nossa consciência se
aplica, é coextensivo à nossa consciência, compreende tudo o que percebe-
mos, estende-se até às estrelas. Mas este corpo imenso muda a cada ins-
tante, e por vezes radicalmente, através do mais leve deslocar-se de uma
parte de si mesmo que ocupa o seu centro e que cabe num espaço mínimo.
Este corpo interior e central, relativamente invariável, está sempre pre-
sente. Não só está presente, mas é também actuante: é através dele, e só
dele, que podemos mover outras partes do grande corpo. E como a acção
é o que conta, como está entendido que estamos e somos onde agimos, é
costume fechar-se a consciência no corpo mínimo e negligenciar o corpo
imenso. De resto, parecemos autorizados pela ciência a fazê-lo, uma vez
que esta considera a percepção exterior um epifenómeno dos processos
intracerebrais que lhe correspondem: tudo o que é percebido do corpo
maior não seria, portanto, mais que um fantasma projectado pelo mais
pequeno no exterior. Desmascarámos a ilusão que esta metafísica com-
216
A RELIGIÃO D I N Â M I C A
1
Matière et Mémoire, Paris, 1896. Ver todo o primeiro capítulo.
217
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO
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A RELIGIÃO DINÂMICA
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AS DUAS FONTES DA MORAL E DA KELiGlAO
divino. É evidente que eles entendem por isso uma energia sem limites
assinaláveis, uma potência de criar e de amar que ultrapassa toda a imagi
nação. Não evocam decerto um conceito fechado, ainda menos uma defini-
ção de Deus que permita concluir o que é ou deveria ser o mundo.
O mesmo método se aplica a todos os problemas do além. Podemos,
com Platâb, estabelecer a priori uma definição da alma que a torna inde-
componível por ser simples, incorruptível por ser indivisível, imortal ern
virtude da sua essência. Daí passar-se-á, por via de dedução, à ideia de
uma queda das almas no Tempo, depois à de uma reintegração na Eterni-
dade. Que responder àquele que contestar a existência da alma assim
definida? E como poderiam os problemas relativos a uma alma real, à sua
origem real, ao seu destino real, ser resolvidos segundo a realidade, ou
sequer postos em termos de realidade, quando tudo o que se fez foi espe-
cular sobre uma concepção talvez vazia de espírito ou, para encararmos o
melhor dds casos, precisar convencionalmente o sentido da palavra que a
sociedade inscreveu sobre um recorte do real praticado em vista de tor-
nar a conversação mais cómoda? Por isso a afirmação continua a ser tão
estéril como a definição era arbitrária. A concepção platónica não fez
avançar um passo o nosso conhecimento da alma, apesar de dois mil
anos de meditação a seu respeito. Era definitiva como a do triângulo, e
280 pelas mesmas razões. Como não ver, todavia, que se há efectivamente um
problema da alma, é em termos de experiência que deverá ser posto, em
termos de experiência que será progressiva, e sempre parcialmente, resol-
vido? Não voltaremos aqui a um tema que tratámos já noutro lugar. Lem-
bremos apenas que a observação, pelos sentidos e pela consciência, dos
factos normais e dos estados mórbidos nos revela a insuficiência das expli-
cações fisiológicas da memória, a impossibilidade de atribuir a con-
servação das recordações ao cérebro e, por outro lado, a possibilidade de.
seguir traço a traço as dilatações sucessivas da memória, do ponto em
que se estreita de modo a não fornecer mais do que o estritamente
necessário à acção presente, até ao plano extremo onde desdobra na sua
plena inteireza o indestrutível passado: dizíamos metaforicamente que
íamos assim do topo à base do cone. É só pelo seu vértice que o cone se
insere na matéria; assim que o deixamos, entramos num novo domínio.
Que domínio? Digamos que é o espírito, falemos ainda, se se quiser, de
uma alma, mas reformando então a operação da linguagem, incluindo no
termo um conjunto de experiências e não uma definição arbitrária. Deste
220
A RELIGIÃO DINÂMICA
221
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO
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CAPÍTULO IV
OBSERVAÇÕES FINAIS
M E C Â N I C A E MÍSTICA 283
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AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO
224
OBSERVAÇÕES FINAIS
assim a religião dinâmica se propaga apenas por meio das imagens e dos
símbolos que a função efabuladora fornece. Inútil voltarmos a estes dife-
rentes pontos. Queríamos simplesmente vincar a distinção que tínhamos
feito entre a sociedade aberta e a sociedade fechada.
Quando a consideramos devidamente, vemos que grandes problemas
se dissipam, que outros s e p õ e m em termos novos. Quando se procede à'
crítica ou à apologia da religião, ter-se-á sempre em conta aquilo que a
religião tem de especificamente religioso? Adoptam-se ou recusam-se
narrativas das quais ela talvez tenha necessidade para obter um estado
de alma que se propaga; mas a religião é essencialmente esse mesmo
estado. Discutem-se as definições que põe e as teorias que expõe; serviu-
-se, com efeito, de uma metafísica para se dar um corpo; mas teria podido
em rigor tomar uma outra, e até mesmo não tomar metafísica alguma.
O erro está em crer que se passa, por aumento ou por aperfeiçoamento,
do estático ao dinâmico, dta demonstração ou da efabulação, ainda que
verídica, à intuição. Confunde-se assim a coisa com a sua expressão ou
com o seu símbolo. Tal é o erro comum de um intelectualismo radical.
Voltamos a encontrá-lo quando passamos da religião à moral. Há uma
moral estática, que existe de facto, num momento dado, numa sociedade
dada, e que se fixou nos costumes, nas ideias, nas instituições; o seu
carácter obrigatório reconduz-se, em última análise, à exigência, pela natu-
reza, da vida em comum. Há, por outro lado, uma moral dinâmica que é.
impulso, e que se liga à vida em geral, criadora da natureza que criou a
exigência social. A primeira obrigação, enquanto pressão, é infra-racional.
A segunda, enquanto aspiração, é supra-racional. Mas a inteligência sobre-
vêm. Procura o motivo de cada uma das prescrições, quer dizer o seu
conteúdo intelectual; e como é sistemática, crê que o problema é o da
recondução de todos os motivos morais a um só. Não tem de resto outro
embaraço senão o da escolha. Interesse geral, interesse pessoal, amor-
-próprio, simpatia, piedade, coerência racional, etc., não há princípio dc
acção do qual não seja mais ou menos possível deduzir-se a moral geral-
mente admitida. É verdade que a facilidade da operação e o carácter sim-
plesmente aproximativo do resultado que dá nos deveriam servir de pre-
venção contra ela. Se regras de conduta quase idênticas se deixam extrair
melhor ou pior de princípios tão diferentes, é provavelmente por nenhum
dos princípios ser tomado naquilo que tem de específico. O filósofo tora
colhê-lo a um meio social, onde tudo se compenetra, em que o egoísmo e
225
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO
226
OBSERVAÇÕES FINAIS
pode mesmo não ter até então havido evolução. Porque constatamos um
enriquecimento gradual da moral, queremos que não haja moral pri-
mitiva, irredutível, aparecida com o homem. E, contudo, devemos estabe-
lecer esta moral original ao mesmo tempo que a espécie humana, e
atribuir no começo uma sociedade fechada.
Agora, a distinção entre o fechado e o aberto, necessária para resolver -
ou suprimir os problemas teóricos, poderá servir-nos praticamente? Seria
sem grande utilidade se a sociedade fechada se tivesse constituído sempre 289
voltando a fechar-se depois de se ter momentaneamente aberto. Bem
poderíamos então remontar indefinidamente no passado, nunca chega-
ríamos ao primitivo; o natural não seria mais que uma consolidação do
adquirido. Mas acabamos de o dizer, a verdade é completamente outra.
Há uma natureza fundamental e há aquisições que, sobrepondo-se à natu-
reza, a imitam sem se confundirem com ela. Pouco a pouco, transporlar-
-nos-íamos a uma sociedade fechada original, cujo plano geral aderiria ao ,
desenho da nossa espécie como o formigueiro à formiga, com a diferença,
porém, de no segundo caso ser o pormenor da organização social que é
dado de antemão, ao passo que no outro há apenas as grandes linhas,
algumas direcções, apenas o que basta de prefiguração natural para asse-
gurar imediatamente aos indivíduos um meio social apropriado. O conhe-
cimento deste plano nâo ofereceria hoje, sem dúvida, mais que um inte-
resse histórico se as suas disposições tivessem sido eliminadas por outros.
Mas a natureza é indestrutível. Engana-se quem diz "quando se expulsa o
natural, este regressa a galope", porque o natural não se deixa expulsar.
Está sempre presente. Sabemos o que devemos pensar da transmissibili-
dade dos caracteres adquiridos. É pouco provável que alguma vez um
hábito se transmita: se tal facto se produz, liga-se ao encontro acidental
de um tão grande número de condições favoráveis que não se repetirá
decerto de maneira a implantar o hábito na espécie. É nos.costumes, nas.,,. , . ..
instituições, na própria linguagem que se depositam asaquisições morais; .
estas comunicam-se em seguida através de uma educação de todos os
instantes; assim passam, de geração em geração hábitos que acabamos
por crer hereditários. Mas tudo conspira no sentido de encorajar a falsa
interpretação: um amor-próprio mal colocado, um optimismo superfi- 290
ciai, um desconhecimento da verdadeira natureza do progresso, enfim e
sobretudo uma confusão muito difundida entre a tendência inata, que é
de facto transmissível do pai para o filho, e o hábito adquirido que veio
227
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO
' Dizemos "ou quase", porque é preciso ter em conta as variações que o ser vivo
executou, cie certo modo, sobre o tema fornecido pelos seus progenitores. Mas, sendo
estas variações acidentais e produzindo-se em não importa que sentido, não podem adi-
cionar-se. na sucessão dos tempos de maneira a modificar a espécie. Sobre a tese da
transmissibilidade dos caracteres adquiridos, e sobie uni evolucionismo que nela se fun-
dasse, ver L'Évolution créatrice (cap. i).
Acrescentemos, como já fizemos notar, que o salto brusco que deu a espécie humana
pode ter sido tentado em mais do que urn ponto do espaço e do tempo com um sucesso
incompleto, desembocando assirn em "homens", a que podemos dar esse nome se quiser-
mos, mas que não são necessariamente nossos antepassados.
228
OBSERVAÇÕES FINAIS
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AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO
293 Digamos, antes de mais, que o homem foi feito para sociedades peque-
nas. Admite-se geralmente que assim tenham sido as sociedades primiti-
vas. Mas devemos acrescentar que o antigo estado de alma subsiste, dis-
simulado sob hábitos sem os quais não haveria civilização. Recalcado,
impotente, permanece todavia nas profundidades da consciência. Se não
chega a obter actos, manifesta-se por meio de palavras. Numa grande
nação, as comunas podem ser administradas com a aprovação da gene-
ralidade; mas que governo se decidirão os governados a declarar bom?
Considerarão louvá-lo o suficiente quando disserem que é o menos mau
de todos e, nesse sentido, apenas o melhor. É que aqui o descontentamento
é congénito. Notemos que a arte de governar um grande povo é a única
para a qual não existe técnica preparatória, nem educação eficaz, sobre-
tudo no que se refere às funções mais elevadas. A extrema raridade dos
homens políticos de certa envergadura liga-se ao facto de terem de resol-
ver a todo o momento, em pormenor, um problema que a extensão assu-
mida pelas sociedades talvez tenha tornado insolúvel. Estudemos a
história das grandes nações modernas: encontraremos nela numerosos
grandes sábios, grandes artistas, grandes soldados, grandes especialistas
em todas as matérias, mas quantos grandes homens de Estado?
A natureza, que quis sociedades pequenas, abriu contudo a porta ao
seu crescimento. Porque quis também a guerra, ou pelo menos criou
para o homem condições de vida que tornavam a guerra inevitável. Ora,
as ameaças de guerra podem determinar várias sociedades pequenas a
unir-se para enfrentarem o perigo comum. É verdade que Jais uniões
raramente são duradouras. Desembocam em todo o caso nuína reunião
de sociedades que é da mesma ordem de grandeza que cada uma delas.
294 É antes num outro sentido que a guerra está na origem dos -impérios.
Estes nasceram da conquista. Ainda que a guerra não visasse inicialmente
a conquista, é a uma conquista que acaba por levar, tão cómodo o vence-
dor considera apropriar-se das terras do vencido e, até, das suas popula-
ções, a f i m de poder aproveitar-se do seu trabalho. Assim se formaram
outrora os grandes impérios asiáticos. Todos eles caíram em deconv
posição, sob influências diversas, e na realidade porque eram demasiado
230
OBSERVAÇÕES FINAIS
231
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO
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OBSERVAÇÕES FINAIS
assim, grandes homens de acção que ignoravam, eles mesmos, que o eram.
Mas é em geral perturbador. Em seres honestos e mansos surge de súbito
uma personalidade inferior, feroz, que é a de um chefe falhado. E aqui
aparece um traço característico do "animal político" que é o homem.
Não chegaremos, com efeito, ao ponto de dizer que um dos atributos
do chefe que dorme nó fundo âë nós seja a ferocidade. Mas é certo que a
natureza, que massacra os indivíduos ao mesmo tempo que engendra as
espécies, deve ter querido implacável o chefe quando previu os chefes.
A história inteira o testemunha. Hecatombes inauditas, precedidas dos
piores suplícios, foram ordenadas com um perfeito sangue-frio por
homens que no-lo contam eles próprios, gravando-o na pedra. Dir-se-á
que tais coisas se passavam em tempos muito antigos. Mas se a forma
mudou, se o cristianismo pôs fim a certos crimes, ou conseguiu pelo
menos que estes deixassem de ser reclamados como título de glória, o
, ; . j c; - toucs i- ues^f b • • •.- I..'*.. ••<?, .... ^ M„v.
assassínio continua com demasiada rrequencia a ser a ratio ultima, quan-
do não a prima, da política. Monstruosidade, sem dúvida, mas pela qual a
natureza é tão responsável como o homem. Com efeito, a natureza não
dispõe nem da prisão nem do exílio; não conhece senão a condenação à
morte. Seja-nos permitido evocar uma recordação. Aconteceu-nos ver
nobres estrangeiros, vindos de longe mas vestidos como nós, falando
francês como nós, passearem, afáveis e amáveis, pelo meio de nós. Pouco
tempo depois sabíamos por um jornal que, regressados ao seu país e
filiados em partidos diferentes, um dos dois mandara enforcar o outro,
com todo o aparato da justiça, simplesmente para se desembaraçar de 298
um adversário incómodo. Ao relato juntava-se a fotografia do patíbulo.
0 correcto homem de sociedade, semi nu, balouçava no ar diante dos
olhos da multidão. Visão de horror! O instinto político original declarara-
-se entre "civilizados" para fazer explodir a civilização e deixar passar a
natureza. Homens que se julgariam obrigados a proporcionar o castigo
à ofensa, caso estivessem perante um culpado, passam directamente a
dar a morte ao inocente quando a política se faz ouvir. Do mesmo modo,
as abelhas operárias apunhalam os machos quando consideram que a
colmeia deixa de precisar deles.
Mas deixemos de lado o temperamento do "chefe", e consideremos os
sentimentos respectivos dos dirigentes e dos dirigidos. Estes sentimentos
serão mais nítidos onde a linha de demarcação for mais visível, numa
sociedade já grande que tenha crescido sem modificação radical da
2
33
AS f K J A S FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO
234 f
OBSERVAÇÕES FINAIS
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AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO
236 \
OBSERVAÇÕES FINAIS
rio; por sua vez, um outro grupo poderá considerar também mais con-
veniente instalar-se nesse mesmo lugar que procurar um outro. A partir
desse momento, será necessário combater. Estamos a falar de uma floresta
onde se caça, de um lago onde se pesca: poderão ser também terras a
cultivar, mulheres a tomar, escravos a obter. Do mesmo modo,; será
também por razões variáveis que se justificará o que for feito. Mas pouco 303
importa a coisa que se toma e o motivo que de tal se dá: a origem da
guerra é a propriedade, individual ou colectiva, e como a humanidade
está predestinada à propriedade pela sua estrutura, a guerra é natural.
O instinto guerreiro é tão forte que é o primeiro a aparecer quando rasga-
mos a crosta da civilização em busca da natureza. É sabido como os rapa-
zes pequenos gostam de bater-se. Receberão golpes. Mas terão tido a satis-
fação de aplicar outros. Tem sido dito, com razão, que os jogos da criança
são os exercícios preparatórios a que a natureza a convida em vista da
tarefa que incumbe ao homem feito. M a l podemos ir mais longe, e ver
exercícios preparatórios ou jogos na maior parte das guerras registadas
pela história. Quando consideramos a futilidade dos motivos que provo-
caram bom número de entre elas, pensamos nos duelistas de Marion
Delorme que se matavam uns aos outros "por nada, só pelo prazer", ou
ainda no irlandês citado por Lord Bryce, que não podia ver dois homens
trocar murros na rua sem perguntar: "É um assunto privado, ou pode-se
entrar na partida?" Em compensação, se confrontarmos as querelas aci-
dentais com as guerras decisivas, que culminaram no aniquilamento de
um povo, compreendemos que as segundas foram a razão de ser das pri-
meiras: era necessário um instinto de guerra, e porque este existia em
vista de guerras ferozes a que poderíamos chamar naturais, uma massa
de guerras acidentais teve lugar, simplesmente para impedir a arma de
ganhar ferrugem. - Pensemos agora na exaltação dos povos no início de
uma guerra! Há aqui sem dúvida uma reacção defensiva contra o medo,
uma estimulação automática das coragens. Mas há também o sentimento
de se ter sido feito para uma vida de risco e de aventura, como se a paz
não fosse mais que uma pausa entre duas guerras. A exaltação em breve 304
cai, porque o sofrimento é grande. Mas se deixarmos de parte a última
guerra, cujo horror superou tudo o que se cria possível, é curioso ver
como os sofrimentos da guerra depressa se esquecem durante a páz. Pre
tende-se que existem na mulher mecanismos específicos de esquecimento
no que se refere às dores do parto: uma recordação demasiado completa
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' Remetemos uma vez mais para o belo livro de Gina Lombroso. Cf. Mantoux, La
Révolution industrielle au dix huitième siècle.
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dia foi o da invenção da máquina a vapor, e sabemos que este não saiu de
considerações teóricas. Apressemo-nos a acrescentar que o progresso, de
início lento, se efectuou a passos de gigante quando a ciência entrou em
campo. Nem por isso é menos verdade que o espírito de invenção mecâ-
nica, que corre num leito estreito enquanto é deixado a si mesmo, que se
alarga indefinidamente depois de ter encontrado a ciência, continua a '
distinguir-se desta última e poderia em rigor separar-se dela. Assim, o
Ródano entra no Lago de Genebra, parece confundir com as dele as suas
águas e mostra, ao sair, que conservou a sua independência.
Não houve pois, como poderíamos ser levados a crer, uma exigência
da ciência que impusesse aos homens, simplesmente através do seu
desenvolvimento, necessidades cada vez mais artificiais. Se assim fosse,
a humanidade estaria votada a uma materialidade crescente, porque o
progresso da ciência não se deterá. Mas a verdade é que a ciência deu o
que se lhe pedia e que aqui não lhe coube a iniciativa; foi o espírito de
invenção que nem sempre se exerceu segundo os melhores interesses da
humanidade. Criou uma massa de necessidades novas; não se preocupou 326
o bastante com assegurar à maioria, a todos se fosse possível, a satisfação
das antigas necessidades. Mais simplesmente: sem negligenciar o
necessário pensou demasiado no supérfluo. Dir-se-á que estes dois ter-
mos não se deixam definir com clareza, que aquilo que é luxo para uns é
uma necessidade para outros. Sem dúvida; perder-nos-íamos aqui facil-
mente em distinções subtis. Mas há casos em que é preciso ver a traço
grosso. Há milhões de homens que não comem o suficiente. E há outros
que morrem de fome. Se a terra produzisse muito mais, haveria muito
menos probabilidades de haver quem não comesse o suficiente', quem
morresse de fome. Alega-se que a terra tem falta de braços. É possível;
mas porque exige a terra aos braços mais força do que aquela que eles
deveriam dar-lhe? Se o maquinismo errou, foi em não se ter consagrado
o bastante a auxiliar o homem neste trabalho tão duro. Responder-se-á
que há máquinas agrícolas, e que o seu uso se encontra hoje muito difun-
dido. Concedo-o, mas o que a máquina fez para aliviar o fardo do homem, ... .
1
Há sem dúvida crises de "sobrepi odução" que se estendem aos produtos agrícolas,
e que podem até mesmo começar por eles. Mas não se ligam evidentemente ao facto de
haver excesso de alimentos para a humanidade. Acontece simplesmente que, não se
encontrando a produção em geral suficientemente organizada, os produtos se vêem impe-
didos de trocar se.
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o que a ciência fez, por seu lado, para aumentar o rendimento da terra,
é comparativamente restrito. Sentimos bem que a agricultura, que ali-
menta o homem, deveria dominar o resto, ser em todo o caso a primeira
preocupação da própria indústria. De uma maneira geral, a indústria não
se preocupou o suficiente com a maior ou menor importância das neces-
sidades a satisfazer. Seguia com facilidade a moda, fabricava sem outro
pensamento que não fosse o de vender. Quereríamos ver, aqui como
327 noutros lugares, um pensamento central, organizador, que coordenasse a
indústria com a agricultura e fixasse às máquinas o seu lugar racional,
aquele em que podem prestar mais serviços à humanidade. Quando se
move um processo ao maquinismo, descura-se a acusação essencial.
Acusam-no em primeiro lugar de reduzir o operário ao estado de máqui-
na, em seguida de desembocar numa uniformidade de produção que
choca o sentido artístico. Mas se a máquina proporcionar ao operário um
maior número de horas de repouso, e se o operário empregar esse suple-
mento de ócio a outra coisa que não às pretensas diversões, que um indus-
trialismo mal dirigido pôs ao alcance de todos, dará à sua inteligência o
desenvolvimento que tiver escolhido, em vez de se ater ao que lhe impo-
ria, em limites sempre restritos, o regresso (de resto impossível} à ferra-
menta, após a supressão da máquina. No que se refere à uniformidade do
produto, o seu inconveniente seria negligenciável se a economia de tempo
e de trabalho, assim realizada pelo conjunto da nação, permitisse levar
mais longe a cultura intelectual e desenvolver as verdadeiras originali-
dades. Censurou-se aos americanos o facto de usarem todos eles o mesmo
chapéu. Mas a cabeça deve ter prioridade sobre o chapéu. Façam com
que me seja possível mobilar a minha cabeça segundo o meu próprio
gosto, e aceitarei para ela o chapéu de toda a gente. A nossa acusação
contra o maquinismo é diferente. Sem contestar os serviços que prestou
aos homens desenvolvendo largamente os meios de satisfazer necessi-
dades reais, acusá-lo-emos de ter encorajado excessivamente necessida-
des artificiais, de ter impelido ao luxo, de ter favorecido as cidades em
detrimento dos campos, de ter alargado, enfim, a distância e transforma-
do as relações entre o patrão e o operário, entre o capital e o trabalho.
Todos estes efeitos poderiam, por outro lado, ser corrigidos; a máquina
não seria então mais que a grande benfeitora. Seria necessário que a
328 humanidade empreendesse a simplificação da sua existência com tanto
frenesim como aquele que pôs em complicá-la. A iniciativa só pode vir
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OBSERVAÇÕES FINAIS
dela, porque foi ela, e não a pretensa força das coisas, menos ainda uma
fatalidade inerente à máquina, quem lançou numa certa pista o espírito
de invenção.
Mas tê-lo-á inteiramente querido? A impulsão que de início imprimiu
seria exactamente na direcção que o industrialismo tomou? O que à par-
tida não é senão um desvio imperceptíveltorna-se-uma distância consi-
derável à chegada, depois de se ter continuado a avançar em linha recta e
de a marcha ter sido prolongada. Ora, não é duvidoso que os primeiros
lineamentos do que seria mais tarde o maquinismo se tenham desenhado
ao mesmo tempo que as primeiras aspirações à democracia. O parentesco
entre as duas tendências torna-se plenamente visível no século xvin.
É impressionante nos enciclopedistas. Não deveremos supor então que
foi um sopro democrático que impeliu em frente o espírito de invenção,
tão velho como a humanidade, mas insuficientemente activo enquanto
não lhe foi concedido lugar bastante? Não se pensava decerto no luxo
para todos, nem no bem-estar para todos sequer; mas para todos podia
desejar-se a existência material garantida, a dignidade na segurança. Seria
o voto consciente? Não acreditamos no inconsciente em história: as
grandes correntes subterrâneas de pensamento, das quais tanto se tem
falado, devem-se ao facto de massas de homens terem sido arrastadas
por um ou vários de entre eles. Estes sabiam o que faziam, mas não pre-
viam todas as suas consequências. Nós que conhecemos o que se seguiu,
não podemos impedir-nos de fazer recuar a sua imagem até à origem: o
presente, percebido no passado por um efeito de miragem, é então aquilo
a que chamamos o inconsciente de outrora. A retroactividade do pre-
sente está na origem de muitas das ilusões filosóficas. Evitaremos, por- 329
tanto, atribuir aos séculos X.V, XVI e xviu (e menos ainda ao século XVil,
tão diferente, e que foi considerado como um parênteses sublime) preo-
cupações democráticas comparáveis às nossas. Também não lhes empres-
taremos a visão daquilo que o espírito de invenção em si continha de
potência. Nem por isso é menos verdade que a Reforma, o Renascimento
e os primeiros sintomas ou prpdromos do surto inventivo são da mesma
época. Não é impossível que tenha havido aqui três reacções, aparenta-
das entre si, contra a forma que tomara até esse momento o ideal cristão.
Este ideal não deixava de subsistir, mas surgia como um astro que tivesse •
voltado para a humanidade sempre a mesma face: começava agora a
entrever-se a outra, e nem sempre se dava conta de que era do mesmo
2
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astro que se tratava. Está fora de dúvida que o misticismo atraia o asce-
tismo. Um e outro serão sempre apanágio de um pequeno número. Mas
que o misticismo verdadeiro, completo, actuante, aspira a difundir-se, em
virtude da caridade que é a sua essência, não é também menos certo.
Como se propagaria, ainda que diluído e atenuado como será necessaria-
mente o caso, numa humanidade mergulhada no medo de não ter o sufi-
ciente para matar a fome? O homem não se erguerá acima da terra a
menos que um poderoso aparelho lhe forneça o ponto de apoio. Terá de
apoiar-se sobre a matéria se quiser desligar-se dela. Noutros termos, a
mística atrai a mecânica. O que não tem sido suficientemente notado,
porque a mecânica, por um acidente de encaminhamento, se viu lançada
numa via em cujo termo havia o bem-estar exagerado e o luxo para um
certo número, em vez de a libertação para todos, impressionados pelo
resultado acidental, não vemos o maquinismo naquilo que ele deveria
330 ser, no que faz a sua essência. Vamos mais longe. Se os nossos órgãos são
instrumentos naturais, os nossos instrumentos são por isso mesmo órgãos
artificiais. A ferramenta do operário continua o seu braço; a panóplia da
humanidade é, pois, um prolongamento do seu corpo. A natureza, ao
dotar-nos de uma inteligência essencialmente fabricadora, preparara
assim para nós um certo crescimento. Mas máquinas que funcionam a
petróleo, a carvão, a "hulha branca", e que convertem em movimento ener-
gias potenciais acumuladas durante milhões de anos, vieram dar ao nosso
organismo uma extensão tão vasta e uma potência tão formidável, tão
sem proporção com a sua dimensão e a sua força, que decerto nada de
tudo isso se encontrava previsto no plano de estrutura da nossa espécie:
foi uma oportunidade única, o maior sucesso material do homem no
planeta. Talvez uma impulsão espiritual tenha intervindo no começo:
a extensão fez-se automaticamente, servida pela enxada da acidental que
embateu debaixo da terra num tesouro miraculoso \ Ora, neste corpo
desmesuradamente dilatado, a alma continua a ser o que era, demasiado
pequena agora para o preencher, demasiado fraca para o dirigir. Daí o
vazio entre ela e ele. Daí os temíveis problemas sociais, políticos, interna-
cionais, que são outras tantas definições desse vazio e que, para o preen-
cher, provocam hoje tantos esforços desordenados e ineficazes: seriam
1
Falamos em sentido figurado, como é óbvio. O carvão era conhecida muito antes
de a máquina a vapor o ter convertido em tesouro.
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OBSERVAÇÕES FINAIS
necessárias novas reservas de energia potencial, desta feita moral. Não nos
limitamos portanto a dizer, como fazíamos acima, que a mística atrai
a mecânica. Acrescentemos que o corpo que cresceu espera um suple-
mento de alma, e que a mecânica exigiria uma mística. As origens desta
mecânica são talvez mais místicas do que poderíamos julgar; e ela só
redescobrira a sua direcção verdadeira, só prestará serviços ria proporção
da sua potência, :se a humanidade, que ela curvou ainda mais para a terra,
conseguir através dela reerguer-se e olhar o céu.
Numa obra, cuja profundidade e força nunca admiraremos demais, o
Sr. Ernest Seilliére mostra como as ambições nacionais se atribuem mis-
sões divinas: o "imperialismo" torna-se comummente "misticismo". Se der-
mos a este último termo o sentido que possui para o Sr. Ernest Seilliére \
e que uma longa série de trabalhos definiu suficientemente, o facto é
incontestável; constatando-o, ligando-o às suas causas e seguindo-o nos
seus efeitos, o autor traz uma contribuição inestimável à filosofia dá
história. Mas ele próprio consideraria provavelmente que o misticismo
assim entendido, assim compreendido, aliás, pelo "imperialismo" tal como
ele o apresenta, não é mais que uma contrafacção do misticismo verda-
deiro, da "religião dinâmica" que estudámos no nosso último capítulo.
Cremos dar-nos conta do mecanismo da contrafacção. Tratou-se de um
empréstimo da "religião estática" dos antigos, à qual se retirou a marca e
se manteve a forma estática sob a nova etiqueta fornecida pela religião
dinâmica. A contrafacção não tinha afinal qualquer intenção delituosa;
mal chegava a ser voluntária. Lembremos, com efeito, que a "religião está-
tica" é natural no homem, e que a natureza humana não muda. As crenças
inatas dos nossos antepassados subsistem no mais profundo de nós mes-
mos; reaparecem, a partir do momento em que deixem de ser recalcadas
por forças antagónicas. Ora um dos traços essenciais das religiões anti-
gas era a ideia da existência de um laço entre os agrupamentos humanos
e divindades associadas'a cada um deles.*Os deuses da cidade combatiam
por ela, com ela. Esta crença é incompatível com o misticismo verdadeiro,
quero eu dizer com o sentimento que-certas almas têm de ser os instru-
mentos de um Deus que ama todos os homens com um amor igual, e que
lhes pede que se amem entre si. Mas, remontando das profundidades
1
Sentido do qual só consideramos aqui uma parte, tal como fazemos também no
que se refere ao termo "imperialismo".
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1
Mostrámos antes de que modo um sentido como a vista leva mais longe, porque o
seu instrumento torna esta extensão inevitável. (V. p. 148. Cf. Matière et mémoire, todo
o primeiro capítulo).
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