As Duas Fontes Da Moral e Da Religião (Henri Bergson)

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Henri Bergson

As Duas
Fontes da Moral
e da R e g i ã o

ALMEDINA

010493
ÍNDICE

NOTA DE APRESENTAÇÃO 7

CAPÍTULO I
A OBRIGAÇÃO MORAL
Natureza e sociedade. - O indivíduo na sociedade. - A sociedade no indivíduo.
-Obediência espontânea. - Resistência à resistência.-A obrigação e a
vida.-A sociedade fechada.-O apelo do herói.-Força propulsiva da
emoção.-Emoção e criação?-Emoção e representação. - Libertação da
alma. - Marcha em frente. - Moral fechada e moral aberta.-O respeito
de s i . - A justiça.-Do intelectualismo em moral.-A educação moral,
-Adestramento e misticidade 23

C A P Í T U L O II

A RELIGIÃO ESTÁTICA
Do absurdo no ser razoável. - A função efabuladora. - A efabulação e a
vida. - Significação do "impulso vital". - Papel social da efabulação.
- Temas gerais de efabulação útil. - Segurança contra a desorganização.
- Segurança contra a depressão. - Segurança contra a imprevisibilidade.
- Do acaso. - "Mentalidade primitiva" no civilizado. - Personificação
parcial do acontecimento. - Da magia em geral. - Magia e ciência. -Magia
e religião. - Deferência perante os animais. - Totemismo. - Crença nos
deuses. - A fantasia mitológica. - Função efabuladora e literatura. - Da
existência dos deuses. - Função geral da religião estática 95

C A P Í T U L O III

A RELIGIÃO DINÂMICA
Dois sentidos do termo religião. - Porque nos servimos de um único termo.
-0 misticismo grego.-O misticismo oriental.-Os profetas de Israel.
-0 misticismo cristão. - Misticismo e renovação. - Valor filosófico do
misticismo. • Da existência de Deus. - Natureza de Deus. - Criação e amor,
- O problema do mal. - A sobrevivência. - Da experiência e da probabi-
lidade em metafísica : 179
HENRI BERGSON

AS DUAS FONTES
DA MORAL
E DA RELIGIÃO

NOTA DE APRESENTAÇÃO
LUÍS ANTONIO U M B E L I N O
ASSISTENTE DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

TRADUÇÃO
MIGUEL SERRAS PEREIRA

ALMEDINA
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO

AUTOR
H E N R I IJEKGSON

TÍTULO ORIGINAL
LES DEUX S O U R C E S DE LA M O R A L E ET DE LA R E L I G I O N

NOTA DU APRESENTAÇÃO
LUIS ANTÔNIO UM5ELINO

TRADUÇÃO
M I C U E L S E R R A S PEREIRA

COORDENADORA DF. COLECÇÃO


S A R A DE CARVALHO

EDITOR
LIVRARIA ALMEDINA
www.almedina.net
[email protected]

DESENHO GRÁFICO
FBA. F E R R A N D , B I C K E R & A S S O C I A D O S
[email protected]
EXECUÇÃO GRAFICA
G . C . - G R Á F I C A DF. C O I M B R A , LDA.
[email protected]

ISBN
972-40-1962-4

DEPÓSITO LEGAL
217702/04

DATA
J A N E I R O DE 2005

© Presses U n i v e r s i t a i r e s de France, 1 9 3 2

Os direitos desta e d i ç ã o são e x c l u s i v a m e n t e r e s e r v a d o s


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Tel + 3 5 1 2 3 9 8 5 1 9 0 0
Fax r-351 2 3 9 8 5 1 9 0 1
NOTA DE A P R E S E N T A Ç Ã O

î.
Se é verdade que "quando se trata do pensamento (...) é tanto maior a
obra feita - que não coincide de modo algum com a extensão e o número
dos escritos - quanto mais rico for, nessa obra, o impensado, isto é, o que
através dessa obra e somente através dela vem até nós como nunca antes
pensado" a obra de Henri Bergson (18/10/1859 - 03/01/1941} deve ser
procurada entre as maiores. De facto, sob os diversos esquecimentos, in-
compreensões e silêncios de que foi alvo a sua filosofia (tanto mais estri-
dentes quanto viva foi a presença de Bergson na vida intelectual do seu
tempo), nunca esta deixou de ser palavra viva. Prova-o, por exemplo, o
início da publicação dos Études bergsoniennes sete anos após a sua morte
(primeiro na editora Albin Michel, depois na P.U.F.), a realização do
Colóquio Internacional "Bergson et nous" em 1959 (comemorando o cen-
tenário do seu nascimento), o texto de Deleuze de 1966 2 (confirmando
uma dívida insolúvel), o reconhecimento da sua influência por parte das
ciências cognitivas, o interesse da rieuro-filosofia 3, a leitura da fenomeno-
logia contemporânea que o reclama como mestre ou a meditação her-
menêutica de P. Ricoeur que, reconhecendo a impossibilidade de pensar

* As referências ao texto de Les Deux sources de la morale et de la religion seguirão,


naturalmente, a tradução portuguesa que agora se apresenta. Quando citarmos directa-
mente recorreremos ao itálico e introduziremos no texto, entre parêntesis, o número da
página. Para o mais citaremos em rodapé.
1
MERLEAU-PONTY, M., «Le Philosophe et son ombre» in ID Éloge de la philosophie
et autres essais, ed. Gallimard, Paris, 1971, pãg. 243. Merleau-Ponty cita uma expressão
de M, Heidegger.
1
Referimo-nos naturalmente a DELEUZE, G., Le Bergsonisme, P.U.F., Paris, 1966.
3
Cf. GALLOIS, Ph. E FORZY, G., Bergson et les neurociences, ed. Institut Synthelabo,
»997-
4
Refira-se, por exemple, porque resume uma leitura que atravessa a "fenomenolo-
gia francesa", o texto de BARBARAS, R., Le Désir et la distance. Introduction à une
phénoménologie de la perception, Vrin, Paris, 1999.
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

o tempo e a sua estrutura narrativa no esquecimento da textura funda-


dora da memória 5 , regressa a Bergson para poder pensar a memória, a
história e o esquecimento. Este regresso tornará claro a que ponto numa
época dc crise profunda da memória, patente na obliteração das vivências
significativas, 110 depauperamento da curiosidade espiritual e na incom-
preensão da diferença, chama a pensar, com renovado vigor, a meditação
desse "judeu ilustre", para quem "a nossa relação com a verdade passa
pelos outros" 6 e se forja na emoção vivida da plenitude do tempo reen-
contrado.
Embora seja sempre difícil identificar todos os fios de uma linhagem
de pensamento, é importante referir que Bergson inicia a sua formação
filosófica num ambiente onde se entrecruzam o pensamento de Kant, o
espiritualismo francês e o evolucionismo de Spencer. De facto, na Ecole
Normale Supérieure ouve as aulas de Boutroux e Lachelier sobre Kant,
segue o ensino de Ollé-Laprune inspirado na tradição espiritualista, de
que era figura de referência Félix Ravaisson, e deixa-se influenciar pela
síntese evolucionista das ciências proposta por Spencer - onde primeiro
verá a possibilidade de pensar a vida de acordo com os avanços da biolo-
gia, mas que depois criticará por ter permanecido presa a uma concepção
de tempo herdada da mecânica e da física, logo, incapaz de promover a
conversão do pensar indispensável à meditação de uma realidade atra
vessada pela duração. Deste ambiente guardará Bergson influências que
admitirá decisivas. A Gilbert Maire, por exemplo, confessará não ter
dívida profunda senão para com dois ou três filósofos: Plotino, Maine de
Biraii e Ravaisson 7 ; em carta a Xavier Léon, datada do mesmo ano em
que publica Les Deux sources, afirma ter conservado ao longo de toda a
sua carreira, "uma admiração fervorosa ao mesmo tempo que um pro-

5
RICOEUR, R, La Mémoire, l'histoire, l'oubli, Seuil, Paris, 2000, pág. I, passim.
6
MERLEAU-PONTY, M., Éloge de la philosophie, in ID, Éloge de la philosophie et
autres essais, Gallimard, op. cit., pág. 39. Nesta referência não podemos esquecer a célebre
passagem do seu testamento onde declara: "Mes réflexions m'ont amené de plus en plus
près du catholicisme où je vois l'achèvement complet du judaïsme. Je me serais converti
si je n'avais vu se préparer depuis des années la formidable vague d'antisémitisme qui
va déferler sur le monde, f'ai voulu rester parmi ceux qui seront demain des persécutés".
Cf. WORMS, F. Bergson. Chronologie in Magazine Littéraire, avril 2000 {386), pág. 22-23.
7
Cf. Janicaud, D., Une généalogie du spiritualisme français, Martinus Nijhorf, La
Haye, 1969, pág. 6-7.
NOTA DE APRESENTAÇÃO

fundo reconhecimento" 8 para com Lacheiter (a quem dedicará o seu pri-


meiro livro). E, de facto, quando em L'Évolution creatrice escreve que
devemos "procurar no fundo de nós próprios o ponto onde nos sentimos
mais interiores à nossa própria vida", não podemos deixar de evocar o
sentido da leitura kantiana de Lachelier orientada para uma reflexão inte-
rior à consciência. Nesta orientação, entrecruza-se a meditação filosófica
bergsoniana com o horizonte de um "espiritualismo mais profundo e mais
completo": aquele que "consiste em crer que o pensamento inconsciente
que trabalha na própria natureza é o mesmo que se torna consciente em
nós, e que ela não trabalha senão para chegar a produzir um organismo
que lhe permita passar da forma inconsciente à forma consciente" 9 .
No entanto, estas referências - onde se vislumbra a presença de Ravais,-
son e a mediação ainda de Lachelier - só ganharão sentido pleno na me-
dida em que permitirem 1er em Bergson um novo espiritualismo aquele
que se impõe através do vigor da sua concepção de espírito, irredutível a
qualquer forma substancial enquanto força de acção, liberdade, energia
que pode ser dita tanto da consciência como da matéria e da vida; espírito
que é uma realidade capaz de "se enriquecer a partir de dentro, de se criar
ou recriar sem cessar, e que é essencialmente refractária à medida porque
jamais inteiramente determinada, jamais feita, mas sempre actuante"
Podemos afirmar, num certo sentido, que esta possibilidade se descobre
em vários e diferentes nós reflexivos. De entre eles, o não menos impor-
tante funda-se 110 desajuste entre o tempo medido da mecânica e o tempo
da evolução verdadeira, aquela que "preserva a radical novidade e impre-
visibilidade do que chega" 1 2 e merece, por isso, o epíteto de criadora;
mas também na consciência que, sendo capaz de auto-conservar os seus
dados imediatos, é estruturalmente durée irredutível a determinações exte-

s
hl Mélanges, P.U.F., Paris, 1972, pág. 1503
9
LALANDE, A., Vocabulaire technique et critique dè la philosophie, Paris, 1962, cit.
in Encyclopédie Philosophique Universell, Tome 2 - Les Notions Philosophiques, P.U.F.,
1990, pág. 2447.
10
Cf. BELOT, G,, Un nouveau spiritualisme, in Revue philosophique, 1987; MADL
NIER, G., Conscience et mouvement, étude sur la philosophie française de Condillac a
Bergson, Alcan, Paris, 1936.
11
Cf. Lettre de joseph Lotte à Camille Quoniam, 21 avril 2931, in BERGSON, Mélan-
ges (Ouvres t. II), P.U.F., Paris, 1972, pág. 359.
1S
GOUHIER, Henri, Introduction in BERGSON, H. Ouvres, Édition du Centenaire,
P.U.E., Paris, 1959, pág. XXV.

9
riores, também na memória, pela qual tacteamos um passado cjue coexiste
no nosso presente, também no corpo, que imagem entre imagens topo
grafa virtualmente o mundo enquanto faz verdadeiramente parte das
coisas, 6 uma mesma evidência que se pode entrever: no momento em que
a experiência se torna "propriamente experiência humana" encontra o
saber de uma inerência ao interior da vida, inerência que se aprofunda e
dilata ao redobrar o movimento, élan, criação que a preenche e transborda.
A ideia de "criação" é para Bergson importante e, como poucas, moti-
va a sua reflexão. Em função do que fica dito, devemos situá-la num triplo
movimento: a criação está presente, primeiro, no próprio centro da expe-
riência individual, naqueles cuja intensidade de acçáo ultrapassa a huma-
nidade instaurando uma história outra; ao mesmo tempo é uma proprie-
dade da vida e, em derradeira análise, descobre-se no próprio acto criador
que é de Deus senão o próprio Deus. Esse "acto de onde brota a vida e ao
qual a consciência regressa" 1 3 , tornará finalmente clara a necessidade de
meditar a experiência mística, enquanto esta alberga um significado
metafísico incontornável da própria humanidade (irredutível a facto psi-
cológico ou curiosidade histórica), ao representar a ideia-limite de uma
coincidência parcial com o próprio mistério da acção criadora.

2.
Les Deux sources de la morale et de la religion, a obra de que agora se
apresenta tradução portuguesa, é a última das quatro grandes obras 14 em
torno das quais se organiza a meditação filosófica de H. Bergson. A pri-
meira é Essai sur les données immédiates de la conscience de 1889, que
retoma a sua tese de Doutoramento apresentada um ano antes; Matière
et mémoire é publicada sete anos depois, em 1896, e L'Évolution créatrice
em 1907. Les Deux sources é publicada em 1932. Bergson tem setenta e
três anos e demorou vinte e cinco anos a preparar este livro. Como em

13
ID, op. cit., xxvii.
14
A estas obras se juntam os textos (onde Bergson procura aplicar algumas das
suas ideias a problemas específicos) Le Rire de 1900 e Durée et simultanéité de 1922,
bem como duas compilações de artigos (que explicitam alguns pontos das obras que
os precedem) intituladas respectivamente L'Énergie spirituelle (1914) e La Pensée et le
mouvant (1934). Anote se ainda a publicação da Coiirs de Bergson, sob a direcção de
Henri Hude, na P.U.F. Para completar a informação bibliográfica cf. GUNTER, Pete, Henri
Bergson, a Bibliography, revised second edition, Bowling Green, Ohio, 1986.

10
NOTA DE APRESENTAÇÃO

qualquer um dos seus textos, honrará pois os seus leitores com a humil-
dade de apenas propor como obra um trabalho 110 mais elevado grau de
precisão, rigor e maturação; e, num mesmo movimento, como sempre
mostrará a que ponto é exigente o tempo da filosofia e árdua a tarefa do
pensador. Quando em 1 9 1 1 J. Lotte o visita c lhe pergunta pelo seu livro
de moral, a reacção do filósofo é, a este respeito, significativa: "perante
esta pergunta inesperada - conta J. Lotte -, Bergson passou de um ar sor-
ridente a um ar sério, o seu rosto ganhou uma expressão de desânimo, de
desalento; sem saber, tinha tocado num ponto sensível, para não dizer
doloroso. - O meu livro!... oh! não!... Não sei ... náo sei para onde vou...
São-me precisos anos para escrever um livro ... imagine quantos anos
separam cada um dos meus livros... Trabalho muito... Informação acumu-
lada, reflexão acumulada ... e quando o livro está escrito há nele tanto
lixo ... É assim, abro uma avenida, sem saber onde vai dar. E depois, quan-
do descubro o ponto de convergência, o livro está pronto. Não se escreve
um livro, não se pode escrever um livro, é necessário que ele se escreva,
que ele se mostre" 1 5 . E quando finalmente é publicado, surpreende antes
de mais em Les Deux sources a aparente autonomia de cada um dos seus
momentos. 0 primeiro capítulo, dedicado à obrigação moral, facilmente
poderia ser lido de modo autónomo; o segundo e terceiro capítulos, res-
pectivamente dedicados à religião estática e à religião dinâmica formam
em conjunto um novo ponto de configuração bem delineada; o último
capítulo intitulado Considerações finais. Mecânica e Mística encerra o
livro com um terceiro momento bem marcado. E, no entanto, é um mesmo
tecido que estes fios de reflexão conseguem urdir, o da decifração labo-
riosa da vida e da humanidade que não se pode dizer no esquecimento
do próprio homem.
15
Lettre de Joseph Lotte à Camille Quoniam, 21 avril, 1911, in Mélanges, op. cit.,
pp. 880 881. Neste mesmo sentido, é sempre referida a passagem do seu testamento
onde escreve: «Donc j'interdis formellement la publication de tout manuscrit, ou de
toute portion de manuscrit de moi, que l'on pourrait trouver dans mes papiers ou ailleurs.
J'interdis ta publication de tout Cours, de toute leçon, de toute conférence qu'on aurait
pu prendre en note ou dont j'aurais pris note moi-même, j'interdis également la publica-
tion de mes lettres. (...). Je prie ma femme et ma fille de poursuivre devant les tribunaux
quiconque passerait outre aux interdictions que je viens de formuler. Elles devraient
réclamer la suppression immédiate de ce qui aurait été publié». Cf. HUDE, Henri, «Les
Cours de Bergson», in AA.W., «Bergson. Naissance d'une Philosophie», Actes du collo
que de Clermont-Ferrand, 17 18 novembre 1989, PUF, Paris, 1990, pág. 26

ti
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA R E L I G I Ã O

O primeiro capítulo do livro é dedicado à questão da "obrigação", que


é possível resumir na pergunta "0 que pode levar uma consciência livre
- logo não determinada pela necessidade - a agir?". A resposta de Bergson
a esta problemática moral é clara: a essência da obrigação não é o dever
racional, mas a pressão social que emana das regras instituídas e reforça-
das pelo hábito. A orientação moral assim estabelecida reveste-se então
da forma de um constrangimento, respeitado e seguido por força da reali-
dade social do homem que assume vários rostos e predisposições, nomea-
damente, o da conformação a um grupo de pertença. Esta conformação
ao grupo social é condição elementar da sobrevivência, ao mesmo tempo,
de cada indivíduo e da própria espécie. Logo, a obrigação moral estabele-
cida pela sociedade, em derradeira análise, é o que obriga "naturalmente"
cada indivíduo a agir do modo que permite manter a coesão dessa socie-
dade essencial ao homem. A moral assim estabelecida será inevitavel-
mente uma moral de pressão, fechada e consubstanciada pela apreensão
estática da vida, na medida em que representa a resposta da natureza à
inevitável pergunta que a inteligência sempre se coloca: a que devo obe-
decer? O que devo fazer? Não estando determinada pela necessidade do
instinto, como a formiga no formigueiro ou a abelha na colmeia, a acção
humana é conformada pela necessidade da regra que lhe é imposta (para
sua própria protecção) sob a forma de obrigação natural ante as normas
sociais. Referimo-nos aqui ao todo da obrigação (39) que sustenta a socie-
dade fechada (41), ou seja, ao próprio instinto primitivo de pertença a
um grupo e à representação de uma organização que não visa senão con-
servasse. Aquele que se desvia da norma será, neste contexto, visto como
anormal, o estrangeiro como ameaça e o criminoso, que põe em risco o
estado de bem-estar individual e social, como anti-natural ou "monstro".
De facto, se a obrigação é a forma que assume a necessidade no domínio
da vida quando ela a exige, se tem então a sua razão de ser na própria
estrutura da natureza humana, a sua transgressão é, para a inteligência
humana impregnada de um sistema de normas e hábitos preparados pela
natureza, entendida como ameaça. O todo da obrigação será, pois, alicer-
çado numa moral fechada que é a única capaz de fundar e preservar os
laços, vínculos e regras - tanto mais perfeitos quanto impessoais - que
compensam no homem a rebeldia da inteligência em relação à necessi-
dade instintiva.

12
NOTA DE APRESENTAÇÃO

Mas se é verdade que as regras sociais, constituindo a resposta da vida


à satisfação das necessidades vitais do homem, conduzem o agir l 6 , não o
é menos o facto de, na história da humanidade, contra esta sua natureza
social, terem surgido outros critérios para obedecer, outros princípios para
a acção. Explica-se tal facto com a evidência de que, sendo embora o
homem uni "ser socializado", move a inteligência humana igualmente a
aspiração. Como tal, além da natureza estática e fechada da sociedade
servida por uma moral de pressão, é possível encontrar na história, e
mais especificamente no exemplo de alguns homens extraordinários, um
princípio dinâmico, aberto, um princípio de entusiasmo capaz de nortear
a acção. Forçoso se torna, então, meditar o alcance de uma moral de aspira-
ção ou moral aberta. Para tal, é o exemplo dessas personalidades privile-
giadas que devemoS interrogar, uma vez que é a elas que sempre recorre-
mos para ter esta moralidade completa que melhor poderíamos dizer
absoluta (43) por representar, em relação à moral fechada, uma diferença
de natureza. E serão essas personalidades que seguiremos, já não por
cedermos a uma pressão mas guiados por uma emoção que muitos, é
certo, hesitarão admitir, mas cujo apelo todos sentem como familiar. Este
apeio, que é anúncio de uma vida nova, sentimo-lo lançado do fundo de
uma experiência individual que nos envolve e que, por isso, não tem
senão que existir. Porque, de facto, a sua existência é já incarnação do
excesso que transborda os limites do comum e da moral social, capaz
portanto de transformar a inteligência e mover a vontade. Essa experiên-
cia individual, que tem a força necessária para promover a obrigação
sem pressão, é a da alma aberta dos santos, dos heróis, dos místicos, ou
seja, é a experiência daqueles que, criando as suas próprias possibilidades,
tornam a humanidade mais autêntica.
Ao contrário de todos os que defendem que a moral se pode fundar
na lógica e que a especulação é suficiente para calar o egoísmo e a paixão,
ao contrário também de Kant i y , para quem é à razão que se deve pedir o
comando de uma vontade imperfeita, Bergson mostra que a acção pode
ser motivada por um apelo improvável que inunda como uma melodia.
16
Cf. LEMOINE, Maë), Remarques sur la métaphore de l'organisme en politique: les
Principes de la philosophie du droit et Les Deux sources de la morale et de la religion, in
Les Études philosophiques, 2001, P.U.F., pág. 479 e seg.
17
Cf. CASTILLO, Monique, L'obligation morale: le débat de Bergson avec Kant,
in Les Études Philosophiques, op. cit., pág. 439 e seg.

13
AS DUAS FONTES DA M O R A L F. DA RELIGIÃO

De facto, esses homens excepcionais, aparentados aos artistas, não comu-


nicam máximas morais, não falam cie nenhum ídolo, antes nos trans-
portam para a proximidade de um Ser que estando fora de nós, ao mes
mo tempo nos atinge interiormente e nos convoca, já não a explicar a
vida como sujeito, mas a decifrá-la como poeta, a absorvê-la como músico.
É nesse sentimento de proximidade na distância com o esforço gerador
da vida (58) que se pode cumprir o homem como ex-sistente avançan-
do da solidariedade social à fraternidade humana, num movimento que
triunfa sobre a natureza sem a abandonar; porque do que se trata é tão só
de denotar o que na história da humanidade é possibilidade de novo, ou
seja, do que para além do impessoal, do estático e do fechado, é notícia e
presença de uma natureza naturante. E, reversivelmente, tudo se passa
como se, de algum modo, se tratasse aqui de uma natureza que, nesses
homens de excepção, se confirma ou se chega a saber a si própria como
possibilidade de diferença, força transfiguradora, evolução criadora.
Um primeiro momento de análise está terminado; é quando a inteli-
gência humana se questiona sobre as condições de vida que são as suas, e
inevitavelmente procura responder às exigências da acção, que a questão
da obrigação se coloca e a moral revela a sua dupla fonte. Mas imediata-
mente um outro passo da reflexão se anuncia: a inteligência humana não
tem por único mester a consideração dos critérios de acção; o seu desen-
volvimento fez do homem o único ser capaz de se representar, ao mesmo
tempo, a sua própria capacidade de inovação, a sua finitude e os efeitos
esperados por cada acção realizada. Ora, entregue a si mesma e a estas
representações, a inteligência facilmente colocaria em risco os equilíbrios
que conservam e sustentam a vida individual e social. De facto, defenderá
Bergson, entregue à inteligência, e não ao instinto que o conformaria
sonambulamente a trabalhar para a espécie, o homem facilmente começa-
ria a centrar-se de modo egoísta sobre si mesmo, fascinado pelo seu poder
de descoberta; sem controlo, tal tendência colocaria em risco a ordem
social. Do mesmo modo, e porque é o único animal capaz de reflexão e,
consequentemente, o único capaz de antever a inevitabilidade da própria
morte, o homem facilmente se deixaria enredar na força deprimente da
inteligência que, sem controlo, o levaria a perder o respeito pelas normas
sociais e o apego à vida. Mais, além de se saber pendurado no trágico, o
homem é o único ser que se sabe no meio de um mar de contingência e,
por isso, é o único que sempre espera que algo venha até ele ajudando à

14
NOTA DE APRESENTAÇÃO

concretização das suas expectativas; entregue a si mesma, facilmente a


inteligência empobreceria a força de agir, ao reconhecer como inevitável
um desajuste entre os resultados desejados e aqueles que a probabilidade
pode permitir alcançar. Assim, a vida tem que promover, contra o poder
dissolvente da inteligência ( 110), contra a representação,pela inteligência,
da inevitabilidade da morte (118), contra 0 margem desencorajadora de
imprevisto entre a iniciativa tomada e o efeito desejado (124), uma tripla
reacção defensiva. Não poderá recorrer ao instinto, sob pena de destruir
a inteligência humana que é também sua criação. A solução deve incluí-
-la ou passar por ela de algum modo. Será uma virtualidade de instinto,
um resíduo de instinto que subsiste em redor da inteligência que a natureza
escolherá como instrumento apropriado a esta tarefa defensiva. Utilizará
o poder de representação da inteligência para opor esta última ao próprio
trabalho intelectual: uma imaginação fértil, uma função fabuladora capaz
de compensar a esquematização intelectual (que, alheia aos detalhes ines-
perados, nem sempre antecipa o perigo), capaz de produzir a ideia de
uma vida para além da morte e de um maná ou força espalhada pelo
universo (a convocar por uma magia eficaz (154) l S , apta a auxiliar a acção
humana a concretizar-se, quando as possibilidades de tal não acontecer
suspendessem a inteligência). De que outro modo poderia ter trabalhado
a natureza ante a necessidade de algo que restabelecesse o equilíbrio em
seu favor, algo como uma representação intelectual capaz de manter a
inteligência apegada à vida?
Essa representação reequilibradora é de ordem religiosa. Melhor, é da
ordem de uma religião estática, aquela que promove uma moral fechada
e contribui para a manutenção da sociedade fechada através da dupla
função de conservação da sociedade e de estabilização da vida. A religião
estática é, então, a resposta da natureza que prende o homem à vida para
aquém da sua inteligência, consolidando e disciplinando a própria impli-
cação recíproca entre sociedade e indivíduo. A religião estática, resumirá
por isso Bergson, pode ser entendida como a reacção defensiva da natu-
reza contra o que poderia haver de deprimente para o indivíduo e de dis-
solvente para a sociedade, no exercício da inteligência (175).

,8
Cf. MOORE, F.C.T., Magic in MULLARKEY, J. (ed.) The New Bergson, Manchester
University Press, 1999, pp. 135-144. O artigo em questão retoma partes de Bergson:
Thinking Backwards, Cambridge University Press, Cambridge, 1996.

15
AS DUAS FONTES DA M O R A L F. DA R E L I G I Ã O

E, no entanto, religião é um nome que não podemos atribuir apenas a


essa reacção da natureza ao triplo problema que lhe coloca a inteligência
consciente do seu poder, da sua finitude e das possibilidades da sua acção.
Na história da humanidade uma religião outra foi possível. Porque, de
facto, os homens extraordinários que são a vida feita moral aberta, ao
incorporarem a aspiração e a santidade, são aqueles onde chegou a defla-
grar, preciosa improbabilidade, um misticismo completo; e este, precisa-
mente, obriga a meditar a religião no caminho que dista de uma religião
estática a uma religião dinâmica (154), ou seja, no cruzamento de uma
religião que contribui para a manutenção da ordem social e de uma reli-
gião que revela o horizonte mais autêntico do destino dos homens.
0 misticismo irrompe em personalidades individuais onde a humani-
dade é transbordante e a vida, extravasando os limites habituais da sua
organização, parece predispor a alma a ser lugar de inscrição ou de refle-
xão de um Ser que rodeia e trespassa, que embarga e desapossa apenas
para sublinhar depois cada personalidade. Neste sentido, a experiência
mística é o topos da invasão vivida de algo que pode imensamente mais
do que nós; não é pois sinónimo de fusão, mas quando muito de coin-
cidência parcial com o esforço criador que a vida manifesta, esforço que
é de Deus, senão o próprio Deus (187) *9. Do místico deve, por isso, afir-
mar-se ser aquele que primeiro sente o apelo de uma relação obsessiva de
cumplicidade com uma realidade que, sem deixar de ser transcendente, o
toca na raiz do seu ser como acção, criação, amor (191), celebração do
apego à vida forjado na fraternidade. Assim, o Deus do misticismo com-
pleto é bem em Bergson, como viu Merleau-Ponty "o elemento da ale-
gria ou o elemento do amor no sentido em que a água e o fogo são ele-
mentos" 2 °.

19
Para Bergson, o Deus do misticismo completo é o "Cristo dos Evangelhos" e a
experiência mística paradigmaticamente exemplificada pelos místicos cristãos. Veja-se
a obra clássica de GOUHIER, H., Bergson et le Christ des Évangiles, ed, Fayard, Paris,
1961.
20
MERLEAU-PONTY, M., Bergson se faisant in ID, Éloge de la philosophie et autres
essais, op. cit., pág. 305. Veja-se também, nomeadamente na mesma edição, o indispen-
sável Éloge de la philosophie, pp. 9-79. cuja leitura abre caminho à análise do capítulo
Interrogation et Intuition de Le Visible et l'invisible, (Gallimard, Paris, 1964, pág. 142
e seg.) no quai Merleau Ponty fará um balanço do seu projecto onto-fenomenológico
num diálogo com Husserl e Bergson.

16
NOTA DE APRESENTAÇÃO

O místico que, no dom completo de si, se retoma nesse elemento de


alegria e amor, longe de poder ser confundido com um louco é, ao con
trário, quem comprova em acto que ver é sempre igualmente ter sido
visto, emocionar se sempre igualmente ter sido tocado, agir sempre já
ter sido "agido"; comprova-o por uma superabundância de vitalidade e,
ao mesmo tempo, de humildade, por um desejo de dar testemunho e, ao
mesmo tempo, pela angústia de não poder dizer o indizível; comprova-o
ainda por um exemplo de fraternidade que não é ideal ou conceito, mas
amor que religa ao interior do élan da vida. Assim se rasga na história da
humanidade a possibilidade de uma religião nova cuja verdade se sabe
apenas no seu exercício, que não se esgota na letra porque habita o espí-
rito, que não se fixa numa forma mas se deixa literalmente inspirar pelo
elemento de amor. A esta religião devemos atribuir o adjectivo dinâmica,
para a distinguir da religião estática que, ainda assim, não é substituída
mas atravessada pelo poder de irradiar que procura aqueles que (predis-
postos à universalidade) o desejam já encontrar.
Compreendem o místico e sabem ser verdadeira esta religião dinâ-
mica, por exemplo, aqueles que já viveram a intensidade da criação artís-
tica ou aqueles que viveram o sentimento de viagem consubstanciado no
conhecimento de uma língua diferente; e compreendem-no porque tam-
bém aqueles conhecem o novo e o defendem sob todas as formas, porque
também estes recebem o estrangeiro numa fronteira que é lugar de encon-
tro e não de estranheza. Uns e outros vêem, pois, que as possibilidades
comprovadas por essas personalidades excepcionais nos falam a todos,
na medida em que se fundam no abalo ou emoção que chega do próprio
fundo das coisas. É essa experiência que inclusivamente a filosofia deve
interrogar se quiser saber mais sobre o homem e sobre a vida que se sabe
na não coincidência consigo própria.
Aqui chegados, poderia supor-se completa a tarefa de meditar as duas
fontes da moral e da religião: num primeiro momento, esclareceram-se
as duas fontes da moral e, num segundo momento, as duas fontes da
religião. No entanto, Les Deux sources contém ainda um terceiro momento
correspondendo ao último capítulo do livro, capítulo que muitos comen-
tadores já consideraram meramente circunstancial, mas que de facto é já
anunciado, logo exigido, ao longo do texto.
Poderíamos introduzir este derradeiro momento da obra nos seguin
tes termos: na sua própria história, a humanidade promove múltiplas

17
AS DUAS FONTES DA M O R A L F. DA RELIGIÃO

náo-coincidências com a sua natureza; ora, nessa história um dado novo


e incontornável, que ocupa já o momento político actual, obriga a recolo-
car sobre bases renovadas a questão da obrigação, da aspiração, enfim, a
questão das várias fontes do apego à vida. Esse dado novo é o desenvolvi-
mento de uma técnica mecânica que, nos anos trinta do século XX, mos-
tra já claramente a sua figura de Jano: por um lado, serve a imagem do
aumento de bem-estar material proporcionado pelo desenvolvimento ver-
tiginoso de novas máquinas (que da saúde aos transportes passando pelo
lazer, prometem um futuro radioso); por outro, sustenta um horizonte
onde se inscrevem os gritos das vítimas da Primeira Grande Guerra, a
fragilidade das organizações internacionais protectoras da paz e o dese-
nho, ameaçador e com rosto de holocausto, de uma nova aliança entre
técnica, sangue, raça e morte.
Para Bergson, a meditação sobre a moral e a religião não poderia con-
siderar-se terminada sem a explicitação de um conjunto de problemas
que, tendo permanecido em latência ao longo da meditação empreendida,
agora importa trazer à luz. Tal será possível através de uma reflexão alicer-
çada em três passos diferentes: o primeiro percorrerá a oposição entre a
sociedade natural, virada para a guerra, e o ideal democrático enquanto
indissociável de um projecto de paz internacional; o segundo seguirá a
oposição entre os dois rostos da mecânica que tanto serve a guerra como
a paz; e, finalmente, chegaremos à análise da oposição, que engloba e
resolve todas as outras, entre mecânica e mística.
Num primeiro momento, em coerência com as reflexões anteriores,
Bergson apresenta a oposição entre duas formas de sociedade e de regi-
mes políticos. Primeiro, é caracterizada a sociedade humana natural, cujo
esquema a natureza cuidou de nos fornecer de antemão e podemos iden-
tificar nas tendências para o ensimesmamento (que se faz defesa do grupo
próximo e inimizade em relação a todos os outros), para a coesão (que vê
no desmembramento da sociedade o perigo supremo que implicará a
morte de cada um), para o respeito pela hierarquia ou autoridade absolu-
ta do chefe (reflexo do espírito de comandar e obedecer que, embora
presente em todos os homens, é predominante de modo muito desigual)
e para a protecção da propriedade. A sociedade humana natural funda-se,
pois, em mecanismos e princípios de auto-protecção. I.ogo, fácil se torna
concluir que da estrutura de uma sociedade assim faz parte a vocação
bélica e resulta necessariamente a guerra. Se acaso fosse necessário acres-

18
NOTA DE APRESENTAÇÃO

centar alguma demonstração à evidência, facilmente a encontraríamos


na futilidade das razões que despoletaram a maior parte dos conflitos
armados: não raras vezes é a guerra a razão das quezílias e não as quezílias
a razão da guerra.
Mas nada é capaz de se opor à guerra? Não se vislumbra na história
outra possibilidade? Sabemos que o rosto da vítima trava a mão do assas-
sino, que o conhecimento do outro dissolve o ódio cego, que o conheci-
mento da língua, da literatura e cultura de um povo, impede que o veja-
mos como inimigo. Logo, não poderá contestar-se que só um regime
político capaz de inscrever na história a liberdade e a igualdade, de consi-
derar toda a humanidade como a sua sociedade, de acolher o estrangeiro
como igual, será capaz de se opor à guerra. Falamos aqui de uma ideia de
sociedade que estaria o mais afastada da natureza. E poderíamos, pelo
menos em parte, vislumbrá-la no ideário das democracias modernas e no
espírito que anima as Organizações Internacionais que procuram a
preservação da paz, organizações onde a inteligência humana (inspirada
numa moral aberta) pode chegar a assumir a função de mediadora de si
própria.
Esta dicotomia é, no entanto, parcial. Ultrapassa-a e corrige-a um dado
novo, inaugurado na história da humanidade pelo desenvolvimento do
mecanismo da era industrial. Falamos aqui, mais precisamente, do desen-
volvimento de uma técnica que, em si mesma neutra, é pelo homem apli-
cada (segundo uma lei de dicotomia e uma lei de duplo frenesim) à
prossecução tanto dos princípios da sociedade natural vocacionada para
a guerra, como da democracia e do seu ideal de paz. Ao serviço da guerra,
o grau de complexidade e perfeição das realizações humanas - anteci-
pará Bergson com clarividência - em breve legará ao instinto bélico o
poder de aniquilamento do adversário, quando desvendar o segredo,
mantido reservado, que permite libertar a força que representa, conden-
sada, a mais pequena parcela de matéria ponderável (258). Mas se este
poder oculto na capacidade humana de inventar se aproxima assim da
bomba atómica, não podemos esquecer que também se colocou ao lado
do ideal de igualdade e dignidade social e material para todos, através de
um conjunto de novas máquinas capazes de aumentar o conforto, a segu-
rança e o bem-estar; de facto, a sociedade aberta apoiou-se na mecânica.
Mas também aqui há algo que não podemos esquecer: os resultados ini-
cialmente prometedores desta aliança (que assim se estabelece, no fundo,

19
AS DUAS FONTES DA M O R A L F. DA RELIGIÃO

com o mesmo poder de invenção que parece agravar o sistema natural


inevitavelmente ligado à guerra) rapidamente conduziram a resultados
perversos: ilusão de urn progresso ilimitado, corrida desenfreada ao bem-
-estar, vício do supérfluo, procura do luxo. A igualdade e dignidade como
direito prometido a todos é, então, frustrada quando a mecânica cria uma
multidão de excluídos que comprovam que o espírito de invenção nem
sempre se exerceu segundo os melhores interesses da humanidade e que
não se preocupou o bastante com assegurar à maioria, a todos se possível,
a satisfação das antigas necessidades (253). Esqueceu-se, pois, que na
sua origem foi a mística que reclamou a mecânica. E assim esquecida do
seu início, a técnica que dilata o poder do corpo não foi capaz de engran-
decer a alma numa mesma proporção: aos olhos que viam mais longe, às
mãos que tocavam o mais recôndito, continuou a corresponder o mesmo
sentido de orientação. Consequentemente, à preocupação pela realização
de todos os possíveis foi correspondendo, progressivamente, a penúria
do sentido de caminho.
O homem transformado por essas suas possibilidades de invenção
é, portanto, ainda e sempre aquele que, mesmo no centro do aparente
sucesso das suas realizações, sente a carência e, por isso, clama por um
suplemento de alma, testemunhando assim que a mecânica exige uma
mística.
A dicotomia entre sociedade natural e democracia deve, deste modo,
ser retomada num nível mais profundo de análise, precisamente aquele
que se rasga no lugar onde se bordeja uma realização técnica assente no
esquecimento de que o seu princípio é um impulso de vida, e uma reali-
zação técnica que, na consciência do vazio criado, reclama a necessidade
de novas energias morais. A escolha que deve ser feita entre mecânica e
mística, entre uma realização humana com rosto de morte ou com rosto
de humanidade, concretiza-se finalmente: se quisermos - em nome de
uma sociedade aberta onde invenção técnica e política são alternativa à
sociedade natural - evitar que a história da humanidade seja o agrava-
mento pela inteligência da barbárie natural 2 1 , é necessário seguir uma
mística autêntica; melhor, é imperioso que o génio místico surja para de-
volver ao espírito e à acção a capacidade perdida de orientar os instru-

21
Cf. WORMS, F., Introduction à Matière el mémoire de Bergson. Suivi d'une brève
introduction aux autres livres de Bergson, ed. P.U.F., Paris, 1997, pág. 302.

20
NOTA DE APRESENTAÇÃO

mentos que tanto, ampliam o corpo. O seu apelo nem todas o seguire-
mos-, mas em todos ressoará, na contraluz de uma humanidade que geme
sob o peso dos progressos que fez, o sentimento de que o deveríamos
fazer, como se só assim pudéssemos chegar a ser improváveis artífices do
Tempo.

Coimbra, Maio de 2004.

Luís ANTÓNIO UMBF.UNO

21
CAPÍTULO I
A OBRIGAÇÃO MORAL l*

A recordação do fruto proibido é o que há de mais antigo na memória de


cada um de nós, como na da humanidade. Aperceber-nos-íamos de que
assim é se essa recordação não estivesse encoberta por outras, às quais
preferimos reportar-nos. O que não teria sido a nossa infância se nos
tivessem dado rédea solta! Teríamos voado de prazer em prazer. Mas eis
que, nem visível nem tangível, um obstáculo surgia: uma interdição.
Porque obedecíamos? A questão quase não se punha; tomáramos o hábito
de escutar os nossos pais e os nossos mestres. Todavia sentíamos bem
que isso se devia ao facto de eles serem os nossos pais, de eles serem os
nossos mestres. Portanto, aos nossos olhos, a sua autoridade vinha menos
deles mesmos do que da sua situação perante nós. Ocupavam um certo
lugar: era daí que partia, com uma força de penetração que não teria se
tivesse sido lançado de outro lugar, o mandamento. Por outras palavras,
pais e mestres pareciam agir por delegação. Não nos dávamos bem conta,
mas por trás dos nossos pais e dos nossos mestres adivinhávamos
qualquer coisa de enorme ou antes de indefinido, que fazia pesar sobre
nós, por intermédio deles, toda a sua massa. Mais tarde, diríamos tratar-
-se da sociedade. Filosofando então sobre esta última, compará-la-íamos z
a um organismo, cujas células, unidas por laços invisíveis, se encontram
subordinadas umas às outras numa sábia hierarquia e se vergam natural-
mente, em vista do bem maior do todo, a uma disciplina que poderá
exigir o sacrifício da parte. O que não passará, de resto, de uma com-
paração, porque uma coisa é um organismo submetido a leis necessárias,
e outra, uma sociedade constituída por vontades livres. Mas, a partir do
momento em que estas vontades estão organizadas, imitam um orga-
nismo; e neste organismo mais ou menos artificial o hábito desempenha
o mesmo papel que a necessidade nas obras da natureza. Deste primeiro
ponto de vista, a vida social surge-nos como um sistema de hábitos mais

* A presente tradução inclui, nas margens do texto, a paginação da edição original


francesa de 1932.

23
AS DUAS FONTES DA M O R A L F. DA R E L I G I Ã O

ou menos fortemente enraizados que dão resposta ãs necessidades da


comunidade. Alguns de entre eles são hábitos de comando, a maior parte
são hábitos de obediência, ou porque obedeçamos a uma pessoa que
comanda em virtude de uma delegação social, ou porque da própria socie-
dade, confusamente percebida ou sentida, emane uma ordem impessoal.
Cada um destes hábitos de obediência exerce uma pressão sobre a nossa
vontade. Podemos subtrair-nos a ela, mas continuamos então a ser puxa-
dos por ela, reconduzidos a ela, como o pêndulo ao desviar-se da vertical.
Foi perturbada utna certa ordem, e essa ordem deveria ser restabelecida.
Em suma, como através de todo o hábito acontece, sentimo-nos obrigados.
Mas trata-se de uma obrigação incomparavelmente mais forte. Quando
uma grandeza-é superior a outra a tal ponto que a segunda se torna negli-
genciável em relação a ela, os matemáticos dizem que essa grandeza é de
uma outra ordem. É o que se passa com a obrigação social. A sua pressão,
comparada com a dos outros hábitos, é tal que a diferença de grau equi-
vale a uma diferença de natureza.
3 Observemos, com efeito, que todos os hábitos deste género se prestam
apoio mútuo. Bem podemos não especular sobre a sua essência e a sua
origem, sentimos que há uma relação entre eles, na medida em que nos são
reclamados pelos que imediatamente nos rodeiam, ou pelo que rodeia os
que nos rodeiam, ou pelo que rodeia o que rodeia os que nos rodeiam, e
assim por diante até esse limite extremo, que seria a sociedade. Cada um
deles responde, directa ou indirectamente, a uma exigência social; e conse-
quentemente todos se ligam, formam um bloco. Muitos seriam apenas
pequenas obrigações se se apresentassem isoladamente. Mas são parte in-
tegrante da obrigação em geral; e este todo, que deve o ser o que é ao con-
tributo das suas partes, confere a cada um deles, em contrapartida, a autori-
dade global do conjunto. O colectivo vem assim reforçar o singular, e a
fórmula "é o dever" triunfa das hesitações que poderíamos ter diante de
um dever isolado. Para dizer a verdade, não pensamos explicitamente numa
massa de obrigações parciais, adicionadas, que comporiam uma obrigação
total. Talvez não haja sequer aqui verdadeira composição de partes. A força
que uma obrigação extrai de todas as outras é antes comparável ao sopro
de vida que cada uma das células aspira, indivisível e completo, do fundo
do organismo do qual é um elëmento. A sociedade, imanente a cada um
dos seus membros, tem exigências que, grandes ou pequenas, nem por isso
exprimem menos, cada uma delas, o todo da sua vitalidade. Mas repitamos

24
A OBRIGAÇÃO MORAL

que se trata apenas de uma comparação. Uma sociedade humana é um


conjunto de seres livres. As obrigações que impõe, e que lhe permitem
subsistir, introduzem nela uma regularidade que tem simplesmente uma
analogia com a ordem inflexível dos fenómenos da vida.
Tudo concorre, todavia, para nos fazer crer que esta regularidade é assi- 4
milável à da natureza. Não falo apenas da unanimidade que os homens
põem em louvar certos actos e reprovar outros. O que quero dizer é que, até
mesmo nos casos em que os preceitos morais implicados pelos juízos de
valor não são observados, se arranja maneira de fazer parecer que o são. Do
mesmo modo que não vemos a doença quando passeamos na rua, não
medimos o que pode haver de imoralidade por trás da fachada que a hu-
manidade nos mostra. Demoraria muito a tornar-se misantropo quem se
ativesse à observação de outrem. É notando as nossas próprias fraquezas
que acabamos por lamentar ou por desprezar o homem. A humanidade da
qual nos afastamos então é a que descobrimos no fundo de nós. O mal
esconde-se tão bem, o segredo é tão universalmente guardado, que cada
um de nós é aqui vítima do logro de todos: por mais severamente que
pretendamos julgar os outros homens, cremo-los, no fundo, melhores do
que nós. É sobre esta feliz ilusão que assenta uma boa parte da vida social.
É natural que a sociedade faça tudo por encorajá-la. As leis que edita,
e que mantêm a ordem social, assemelham-se aliás sob certos aspectos às
leis da natureza. Aprovo perfeitamente que a diferença seja radical aos
olhos do filósofo. Uma coisa, diz este, é a lei que constata, outra, a lei que
ordena. A segunda podemos subtrair-nos; obriga, mas não torna neces-
sário. A primeira é, pelo contrário, inelutável, porque se algum facto se
afastasse dela, seria erroneamente que a teríamos tomado por uma lei;
haveria uma outra, em seu lugar, que seria a verdadeira, que enunciaría-
mos de maneira a exprimir tudo o que observamos, e com a qual o facto
refractário, como os demais, se conformaria então. - Sem dúvida; mas a
distinção está longe de ser tão nítida para a maior parte dos homens. Lei
física, lei social ou moral, toda a lei é aos seus olhos um mandamento. Há 5
uma certa ordem da natureza, ordem que se traduz por leis: os factos
"obedeceriam" a estas leis para se conformarem com essa ordem. O pró-
prio cientista mal pode impedir se de crer que a lei "preside" aos factos e
por conseguinte os precede, semelhante à Ideia platónica pela qual as
coisas teriam de se regular. Quanto mais alto sobe na escala das genera-
lizações, mais tende, de bom ou mau-grado, a dotar as leis deste carácter

25
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

imperativo: temos de lutar deveras contra nós mesmos para nos repre-
sentarmos os princípios da mecânica de outro modo, que não inscritos
desde toda a eternidade em tábuas transcendentes que a ciência moderna
teria ido buscar a um outro Sinai. Mas se a lei física tende a assumir na
nossa imaginação a forma de um mandamento sempre que acede a uma
certa generalidade, reciprocamente um imperativo que se endereça a toda
a gente parece-nos ser um pouco como uma lei da natureza. Encontrando-
-se no nosso espírito, as duas ideias contagiam-se. A lei toma do manda-
mento o que este tem de imperioso; o mandamento recebe da lei o que a
lei tem de inelutável. Uma infracção da ordem social reveste-se assim de
um carácter antinatural: ainda que se repita com frequência, induz em
nós o efeito de uma excepção que estaria para a sociedade como um
monstro está para a natureza.
Que se passará, então, se nos apercebermos por trás do imperativo
social de um mandamento religioso? Pouco importa a relação entre os
dois termos. Quer interpretemos a religião de uma maneira ou de outra,
quer ela seja social por essência ou por acidente, um ponto é certo: de-
sempenhou sempre um papel social. Este papel é, aliás, complexo; varia
segundo os tempos e segundo os lugares; mas, em sociedades como as
6 nossas, a religião tem por primeiro efeito sustentar e reforçar as exigên
cias da sociedade. Pode ir muito mais longe, mas vai sempre pelo menos
até aí. A sociedade institui penas que podem ferir inocentes, poupar cul-
pados; pouco recompensa; vê grosseiramente e contenta-se com pouco:
onde está a balança humana que pese como deveria ser as recompensas e
as penas? Mas, do mesmo modo que as Ideias platónicas nos revelam,
perfeita e completa, a realidade da qual não percebemos mais que imi-
tações grosseiras, assim também a religião nos introduz numa cidade da
qual as nossas instituições, as nossas leis e os nossos costumes assinalam
quando muito, de longe em longe, os pontos mais salientes. Aqui em
baixo, a ordem é simplesmente aproximativa e mais ou menos artificial-
mente obtida pelos homens; lá no alto, é perfeita, e realiza-se por si só.
A religião vem pois completar aos nossos olhos a redução do intervalo,
já atenuado pelos hábitos do senso comum, entre um mandamento da
sociedade e uma lei da natureza.
Somos assim remetidos sempre para a mesma comparação, defeituosa
sob muitos aspectos, mas aceitável acerca do ponto que aqui nos interessa.
Os membros da cidade conjugam-se como as células de um organismo.

26 .
A OBRIGAÇÃO MORAL

O hábito, servido pela inteligência e pela imaginação, introduz entre eles


uma disciplina que imita de longe, através da solidariedade que estabe-
lece entre as individualidades distintas, a unidade de um organismo de
células anastomosadas.
Tudo concorre, uma vez mais, para fazer da ordem social uma imi-
tação da ordem observada nas coisas. Cada um de nós, quando se volta
para si mesmo, se sente evidentemente livre de seguir o seu gosto, o seu
desejo ou o seu capricho, e de não pensar nos outros homens. Mas esta
veleidade mal chegou ainda a desenhar-se e já uma força antagónica sobre 7
vém, feita de todas as forças sociais acumuladas: diferentemente dos
móbeis individuais, que puxam cada um para o seu lado, essa força acede-
ria a uma ordem que não deixaria de ter analogia com a dos fenómenos
naturais. A célula componente de um organismo, que se tornasse por um
instante consciente, mal teria esboçado a intenção de se emancipar e já a
necessidade a recapturaria. O indivíduo que faz parte da sociedade pode
inflect ir e até mesmo quebrar uma necessidade que imita aquela, para
cuja criação contribuiu um pouco, mas que sobretudo sofre: o senti
mento dessa necessidade, acompanhado pela consciência de se lhe poder
subtrair, nem por isso é menos aquilo a que ele chama obrigação. Assim
encarada, e tomada na sua acepção mais comum, a obrigação está para a
necessidade como o hábito está para a natureza.
Não vem, portanto, precisamente do exterior. Cada um de nós pertence
à sociedade, tanto quanto a si mesmo. Se a sua consciência, trabalhando
em profundidade, lhe revela, à medida que mergulha, uma personalidade
cada vez mais original, incomensurável com as outras e de resto inex
primível, cada um de nós, pela sua própria superfície, está em continui-
dade com as outras pessoas, é semelhante a elas, une-se-lhes por uma
disciplina que cria entre elas e nós uma dependência recíproca. Instalar-
-se nesta parte socializada de si mesmo, não será, para o nosso eu, o único
meio de se ligar a qualquer coisa de sólido? Sê-lo-ia, se não pudéssemos
de outra maneira subtrair-nos a uma vida de impulsos, de capricho e de
arrependimento. Mas no mais profundo de nós mesmos, se soubermos
procurá-lo, descobriremos talvez um equilíbrio de um outro género, mais
desejável ainda que o equilíbrio superficial. As plantas aquáticas, que
sobem à superfície, são incessantemente agitadas pela corrente; as suas 8
folhas, que se juntam à tona de água, dão-lhes, à superfície, estabilidade,
entrelaçando se. Mas mais estáveis ainda são as raízes, solidamente plan-

27
AS DUAS FONTES DA M O R A L F. DA R E L I G I Ã O

tadas na terra, que por baixo as sustentam. Todavia, não estamos de mo-
mento a falar do esforço por meio do qual cada um de nós escavaria até
ao fundo de si mesmo. Trata-se de algo possível, mas excepcional; e é à
superfície, no seu ponto de inserção no tecido das outras personalidades
exteriorizadas, que o nosso eu comummente descobre a que se enlaçar: a
sua solidez está nesta solidariedade. Mas, no ponto onde se enlaça, ele
próprio é um eu socializado. A obrigação, que nos representamos como
um laço entre os homens, começa por ligar cada um de nós a si mesmo.
Seria, pois, um erro acusarmos uma moral puramente social de negli-
genciar os deveres individuais. Ainda que, teoricamente, só perante os
outros homens estivéssemos obrigados, está-lo-íamos, de facto, perante
nós mesmos, uma vez que a solidariedade social só existe a partir do
momento em que um eu social se acrescenta em cada um de nós ao
eu individual. Cultivar este "eu social" é o essencial da nossa obrigação
perante a sociedade. Sem qualquer coisa dela em nós, a sociedade não
teria sobre nós preensão alguma; e nós, mal temos também necessidade
de nos dirigirmos a ela, bastamo-nos a nós mesmos, na medida em que a
descobrimos presente em nós. A sua presença é mais ou menos marcada
segundo os homens; mas nenhum de nós se poderia isolar dela em abso-
luto. Não o quereria fazer, porque sente bem que a maior parte da sua
força vem dela, e que deve às exigências incessantemente renovadas da
vida social essa tensão ininterrupta da sua energia, essa constância de
direcção no esforço, que assegura à sua actividade o mais elevado rendi-
9 mento. Mas não o poderia também fazer, ainda que o quisesse, porque a
sua memória e a sua imaginação vivem do que a sociedade pôs nelas,
porque a alma da sociedade é imanente à linguagem que fala, e porque,
ainda que ninguém mais esteja presente, ainda que se limite a pensar,
continua a falar de si para consigo. Em vão tentaríamos representarmo
nos um indivíduo desprendido de toda a vida social. Até mesmo mate-
rialmente, Robinson na sua ilha permanece em contacto com os outros
homens, porque os objectos manufacturados que salvou do naufrágio, e
sem os quais não poderia arranjar-se, o mantêm na civilização e, por con-
seguinte, na sociedade. Mas um contacto moral é-lhe ainda mais neces-
sário, porque em breve se deixaria desencorajar se não pudesse opor a
dificuldades que renascem sem cessar mais do que uma força individual
cujos limites experimenta. Extrai energias da sociedade a que permanece
idealmente ligado; elej)ode não a ver, mas ela, pelo seu lado, está presente

28
A OBRIGAÇÃO MORAL

e vê-o a ele: se o eu individual conservar vivo e presente o eu social,


fará, isolado, o que faria com o encorajamento e até mesmo o apoio da
sociedade inteira. Os que as circunstâncias por um tempo condenam à
solidão e não encontram em si mesmos os recursos da vida interior pro-
funda, sabem o preço que representaria "deixarem-se ir", quer dizer, não
fixarem o eu individual 110 nível prescrito pelo eu social. Cuidarão pois
de alimentar este último, para que ele em nada afrouxe a sua severidade
em relação ao outro. Caso seja necessário, procurarão para ele um ponlo
de apoio material e artificial. Todos estaremos lembrados do guarda-flo-
restal de Kipling, isolado no seu casinhoto 110 meio de uma floresta da
índia. Todas a noites veste um fato preto completo antes de jantar, " a f i m
de não perder, no seu isolamento, o respeito por si mesmo"
Não iremos a ponto de dizer que este eu social seja o "espectador impar- 10
ciai" de Adam Smith, que se torne necessário identificá-lo com a cons-
ciência moral, que cada um de nós se sinta satisfeito ou descontente con-
sigo segundo esse seu eu seja bem ou mal impressionado. Descobriremos
para os sentimentos morais fontes mais profundas. A linguagem reúne
aqui sob o mesmo nome coisas muito diferentes: o que há de comum
entre o remorso de um assassino e aquele que podemos experimentar,
tenaz e torturante, por termos ferido um amor-próprio ou sido injustos
para com uma criança? Enganar a confiança de uma alma inocente que
se abre para a vida é um dos piores actos possíveis aos olhos de uma certa
consciência que parece não ter o sentido das proporções, justamente
porque não toma de empréstimo à sociedade os seus padrões, os seus
instrumentos, os seus métodos de medida. Mas não é essa a consciência
que as mais das vezes se exerce; e trata se, de resto, de uma consciência
mais ou menos delicada segundo as pessoas que consideremos. Em geral,
o veredicto da consciência é aquele que o eu social pronunciaria.
Em geral também, a angústia moral é uma perturbação das relações
entre este eu social e o eu individual. Analisemos o sentimento do
remorso na alma do grande criminoso. Poderemos de início confundi-lo
com o medo do castigo, atendendo às suas precauções extremamente
minuciosas, completadas e renovadas sem parar, que se destinam a escon-
der o crime ou a fazer com que não o tomem por culpado; atendendo à
ideia, que a todos os instantes o angustia, de ter esquecido um pormenor

1
Kipling, In the Rukh. na colectânea intitulada Many Inventions.

)
29
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA R E L I G I Ã O

e de ver a justiça descobrir esse indício revelador. Mas olhemo-lo de mais


perto: não se trata tanto para o nosso homem de evitar o castigo como de
apagar o passado e de fazer de conta que o crime não foi cometido. Quan-
do ninguém sabe que uma coisa aconteceu, é pouco mais ou menos como
se não tivesse acontecido. É, portanto, o seu próprio crime que o criminoso
gostaria de anular, suprimindo todo o conhecimento que dele possa ter
uma consciência humana. Mas o seu próprio conhecimento do crime
subsiste, e eis que o rejeita cada vez mais para o exterior dessa sociedade
em que ele esperava manter-se apagando os traços do seu crime. Porque
a mesma estima continua a ser concedida ao homem que ele era, ao
homem que ele deixou de ser; não é a ele, portanto, que a sociedade se
dirige: é a um outro que fala. Ele, que sabe aquilo que é, sente-se entre os
homens mais isolado do que se sentiria numa ilha deserta; porque na
solidão transportaria consigo, rodeando o e sustentando-o, a imagem da
sociedade, ao passo que, doravante, ei-lo cortado tanto da imagem como
da coisa. Reintegrar-se-ia na sociedade confessando o seu crime: seria
assim tratado como merece, mas seria bem a ele que então se dirigiriam.
Retomaria a sua colaboração com os outros homens. Seria castigado por
eles, mas, tendo-se posto do seu lado, seria um pouco o próprio autor da
sua condenação; e uma parte da sua pessoa, a melhor, escaparia assim à
pena. Tal é a força que impelirá o criminoso a denunciar-se. Por vezes,
sem ir tão longe, confessar-se-á a um amigo, ou a qualquer outro homem
de bem. Regressando desse modo à verdade, senão aos olhos de todos,
pelo menos aos de alguém, volta a ligar-se à sociedade nesse ponto, por
meio de um fio; se não se reintegra nela, está pelo menos ao lado dela,
perto dela; deixa de lhe ser estranho; em todo o caso, sai da sua ruptura
completa com ela e com tudo aquilo que dela traz dentro de si mesmo.
É necessária uma ruptura semelhante, violenta, para que a adesão do
indivíduo à sociedade se revele claramente. Em tempos comuns, agimos
em conformidade com as nossas obrigações, mais do que pensamos nelas.
Se tivéssemos em todos os casos de evocar a sua ideia, de enunciar a sua
fórmula, seria muito mais fatigante cumprirmos o dever. Mas o hábito é
suficiente e as mais das vezes basta que nos deixemos ir para darmos à
sociedade o que ela espera de nós. E, aliás, a sociedade facilitou singular-
mente as coisas intercalando intermediários entre nós e ela: temos uma
família, exercemos um ofício ou uma profissão; pertencemos à nossa
comuna, à nossa circunscrição, ao nosso departamento; e, aí onde a inser-


A OBRIGAÇÃO MORAL

çâo do grupo na sociedade é perfeita, basta-nos, em rigor, preenchermos


as nossas obrigações para com o grupo para estarmos em orclem com a
sociedade. Esta ocupa a periferia; o indivíduo está no centro. Do centro
para a periferia dispõem se como outros tantos círculos concêntricos cada
vez mais largos, os diversos agrupamentos a que o indivíduo pertence.
Da periferia para o centro, à medida que o círculo diminui, as obrigações
somam-se às obrigações e o indivíduo acaba por ver se perante o seu con
junto. A obrigação aumenta assim ao avançar; mas, quanto mais compli
cada se torna, menos abstracta é, e mais facilmente tendemos a aceitá-la.
Quando se torna plenamente concreta, coincide com uma tendência, tão
habitual que a achamos natural; no sentido de desempenharmos na socie-
dade o papel que nela o nosso lugar nos atribui. Enquanto nos abandona-
mos a essa tendência, mal a sentimos. Só se mostra imperiosa, como todo
o hábito profundo, quando nos afastamos dela.
É a sociedade que traça ao indivíduo o programa da sua existência
quotidiana. Ninguém pode viver em família, exercer a sua profissão, tra-
tar dos mil e um assuntos da vida de todos os dias, ir às compras, passear
pela rua ou sequer ficar em casa, sem obedecer a prescrições e sem se
vergar a obrigações. A todo o instante, uma escolha se impõe; optamos
naturalmente pela conformidade com a regra. Mal temos consciência
disso; não fazemos esforço algum. Foi traçado um caminho pela socie-
dade; encontramo-lo aberto à nossa frente e seguimo-lo; ser-nos-ia
necessário um pouco mais de iniciativa para andarmos pelo meio dos
campos. O dever, assim entendido, é quase automaticamente que se
cumpre; e a obediência ao dever, se nos ativéssemos ao caso mais fre-
quente, definir-se-ia por um deixar andar ou um abandono. O que faz
então com que essa obediência surja, pelo contrário, como um estado
de tensão, e o próprio dever como uma coisa rígida e dura? É evidente-
mente o facto de se apresentarem casos em que a obediência exige de
cada um de nós um esforço sobre si mesmo. São casos excepcionais; mas
damo-nos conta deles, porque os acompanha uma consciência intensa,
como acontece sempre que há hesitação; para dizer a verdade, a cons-
ciência é essa hesitação mesma, o acto que se desencadeia por si só e
passa pouco mais ou menos desapercebido. Então, devido à solidarie-
dade das nossas obrigações entre elas, e porque o todo da obrigação é
imanente a cada uma das suas partes, todos os deveres assumem a colora-
ção que excepcionalmente este ou aquele de entre eles tomou. Do ponto

31
AS DUAS FONTES DA M O R A L F. DA R E L I G I Ã O

de vista prático, não há inconveniente algum, há até mesmo certas vanta-


gens em encarar assim as coisas. Por mais naturalmente, com efeito, que
façamos o nosso dever, podemos encontrar resistência em nós; é útil con-
tar com isso, e não ter por adquirido que seja fácil continuar a ser-se bom
esposo, bom cidadão, trabalhador consciencioso, enfim homem de bem.
Há, aliás, uma forte parte de verdade nesta opinião; porque se é rela-
tivamente fácil a cada um de nós manter-se no interior do quadro social,
é-nos necessário antes inserirmo-nos nele, e a inserção exige um esforço.
A indisciplina natural da criança, a necessidade da educação, provam-no
bem. É de justiça que levemos em conta no indivíduo o consentimento
virtualmente por ele concedido ao conjunto das suas obrigações, ainda
que já não precise de se consultar acerca de cada uma delas. Ao cavaleiro
basta deixar-se transportar; mas teve de começar por montar. O mesmo
se passa com o indivíduo perante a sociedade. Em certo sentido seria
falso e seria em todos os sentidos perigoso dizermos que o dever se pode
cumprir automaticamente. Erijamos pois em máxima prática que a
obediência ao dever é uma resistência de cada um de nós a si mesmo.
Mas uma recomendação é uma coisa, e uma explicação, outra. Quando,
para dar conta da obrigação, da sua essência e da sua origem, se afirma
que a obediência ao dever é acima de tudo um esforço de cada um sobre
si mesmo, um estado de tensão ou de contracção, comete-se um erro psi-
cológico que viciou muitas teorias morais. Surgiram assim dificuldades
artificiais, problemas que dividem os filósofos e que veremos desvanece-
rem-se quando analisarmos os seus termos. A obrigação não é de maneira
nenhuma um facto único, incomensurável com os outros, erguendo-se
acima deles como uma aparição misteriosa. Se bom número de filósofos,
em particular os que se ligam a Kant, a encararam assim, é que con-
fundiram o sentimento da obrigação, estado tranquilo e aparentado com
a inclinação, com o abalo que por vezes nos impomos para quebrar o que
se lhe oporia.
No final de uma crise reumática, podemos experimentar desconforto,
senão dor, quando movemos os nossos músculos e articulações. Trata-se
da sensação global de uma resistência que os órgãos opõem. Diminui
pouco a pouco, e acaba por se perder na consciência que temos dos nossos
movimentos quando passamos bem. Podemos, aliás, admitir que conti-
nua então presente em estado nascente, ou antes evanescente, à espera
apenas de uma ocasião para se intensificar; quem sofre de reumatismo

32
A OBRIGAÇÃO MORAL

deve, com efeito, contar com a ocorrência de crises. Que diríamos, no


entanto, de alguém que não visse no nosso sentimento habitual do movi
mento dos braços e das pernas mais que a atenuação de uma dor, defi
nindo assim a nossa faculdade locomotora por um esforço de resistência
ao mal-estar reumático? Quem o fizesse começaria por renunciar a dar
conta dos hábitos motores; cada um destes implica de facto uma com-
binação particular de movimentos, e só através dela se pode compreender.
A faculdade geral de andar, de correr, de mover o corpo, não é mais que a
soma desses hábitos elementares, cada um dos quais descobre a sua expli-
cação própria nos movimentos especiais que envolve. Mas, se tal facul-
dade for apenas globalmente encarada, e além disso erigida em força
oposta a uma resistência, faremos necessariamente surgir a par dela o
reumatismo enquanto entidade independente. Dir-se-ia que um erro do
mesmo género tem sido cometido por muitos dos que especularam sobre
a obrigação. Temos mil obrigações especiais, e cada uma delas reclama a
sua explicação própria. É natural, ou mais precisamente habitual, que
lhes obedeçamos a todas. For excepção, afastar-nos-emos de uma de entre
elas, resistir-lhe-emos: sendo que a resistência a essa resistência produzirá
um estado de tensão ou de contracção. Tal é a rigidez que exteriorizamos
quando atribuímos ao dever um aspecto tão severo.
É nela do mesmo modo que pensam os filósofos quando acreditam
resolver a obrigação em elementos racionais. Para resistirmos à resistên-
cia, para nos mantermos no caminho certo quando o desejo, a paixão ou
o interesse nos afastam dele, teremos necessariamente de nos darmos
razões a nós mesmos. Ainda que tenhamos oposto ao desejo ilícito outro
desejo, este último, suscitado pela vontade, só terá podido surgir do apelo
de uma ideia. Em suma, um ser inteligente age sobre si mesmo por inter-
médio da inteligência. Mas, do facto de ser através de vias racionais que
chegamos à obrigação, não se segue que a obrigação tenha sido de ordem
racional. Insistiremos adiante neste ponto; de momento não entendemos
discutir ainda as teorias morais. Digamos simplesmente que uma coisa é
uma tendência, natural ou adquirida, e outra coisa o método necessaria-
mente racional que, para lhe conferir a sua força e para combater o que a
ela se opõe, um ser razoável empregará. Neste último caso, a tendência
eclipsada pode reaparecer; e tudo então se passa sem dúvida como se
através desse método tivéssemos conseguido reconstituir a tendência.
Na realidade, limitámo-nos a afastar o que a perturbava ou detinha. Con-

33
AS DITAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

cordo perfeitamente que, na prática, uma coisa e outra se equivalem: quer


expliquemos o facto de uma maneira, quer de outra, o certo continua a
ser que conseguimos. E talvez seja preferível, para conseguirmos, figurar
as coisas como se fosse da primeira maneira que se passassem. Mas afir
mar que é efectivamente assim que se passam seria falsear a teoria da
obrigação. Não terá sido o que aconteceu à maior parte dos filósofos?
Que não haja equívocos sobre o nosso pensamento. Ainda que nos
atenhamos a um certo aspecto da moral, como até agora fizemos, pode-
remos observar muitas atitudes diferentes perante o dever. Estas demar-
cam o intervalo entre duas atitudes ou antes dois hábitos extremos: cir-
culação tão natural pelas vias traçadas pela sociedade que mal chegamos
17 a dar por elas; hesitação e deliberação, pelo contrário, sobre a via a tomar,
o ponto até onde iremos, os trajectos de ida e volta que faremos tomando
sucessivamente diversas de entre elas. No segundo caso, põem-se proble-
mas novos, mais ou menos frequentes; e, até mesmo nos casos em que a
via do dever se encontra completamente traçada, poderemos introduzir
mais ou menos matizes no seu cumprimento. Mas, em primeiro lugar, a
primeira atitude é a da imensa maioria dos homens; é provavelmente
gera! nas sociedades inferiores. E, em seguida, bem podemos raciocinar
em cada caso particular, formular a máxima, enunciar o princípio, deduzir
as consequências: se o desejo e a paixão tomam a palavra, se a tentação é
forte, se estamos prestes a cair, se subitamente nos recompomos, onde
está então a mola? Afirma-se uma força, a que chamámos "o todo da
obrigação": extracto concentrado, quintessência dos mil hábitos especiais
que contraímos de obedecer às mil exigências particulares da vida social.
Uma tal força não é isto nem aquilo; e se falasse, quando prefere agir,
diria: "Tem de ser porque tem de ser". A partir de então, o trabalho a que
se dedicava a inteligência pesando as razões, comparando as máximas,
remontando aos princípios, era introduzir mais coerência lógica numa
conduta submetida, por definição, às exigências sociais; mas a essa exi-
gência social ligava-se a obrigação. Nunca, nas horas de tentação, sacri-
ficaríamos à simples necessidade de coerência lógica o nosso interesse,
a nossa paixão, a nossa vaidade. Porque a razão intervém com efeito
como reguladora, num ser razoável, a f i m de assegurar a coerência
entre regras ou máximas obrigatórias, a filosofia pôde ver nela um princí-
pio de obrigação. O mesmo seria acreditar que é o volante que faz girar a
máquina.

34
A OBRIGAÇÃO MORAL

As exigências sociais completam-se de resto umas às outras. Até mes-


mo aquele cuja honestidade é menos reflectida e, se assim posso dizer,
mais rotineira, põe uma ordem racional na sua conduta, regulando-se
por exigências que são logicamente coerentes entre si. Aceitarei de
bom grado que esta lógica seja uma aquisição tardia das sociedades.
A coordenação lógica é essencialmente economia; destaca para começar,
de um conjunto, a traço grosso, certos princípios, e exclui depois desse
conjunto tudo o que não concorda com eles. A natureza é, pelo con-
trário, superabundante. Quanto mais vizinha da natureza é uma socie-
dade, maior nela será a parte do acidente e do incoerente. Encontramos
entre os primitivos muitas interdições e prescrições que se explicam por
vagas associações de ideias, pela superstição, pelo automatismo. Não são
inúteis, uma vez que a obediência de todos a regras, ainda que absurdas,
assegura à sociedade uma maior coesão. Mas a utilidade da regra vem-
lhe unicamente então, por ricochete, do facto de todos se lhe submete
rem. As prescrições ou as interdições que valem por si mesmas são as
que visam positivamente a conservação ou o bem estar da sociedade.
Foi só com o passar do tempo, sem dúvida, que se separaram das outras,
sobrevivendo-lhes. As exigências sociais coordenaram-se então entre si
e subordinaram-se a princípios. Mas pouco importa. A lógica penetra de
facto as sociedades actuais, e até aquele que não reflecte no seu compor-
tamento viverá, se agir em conformidade com esses princípios, segundo
a razão.
Mas a essência da obrigação é coisa diferente de uma exigência da
razão. Tal foi tudo o que quisemos sugerir até este momento. A nossa
exposição corresponderia tanto melhor à realidade, ao que cremos, quanto
mais nos ocupássemos de sociedades menos evoluídas e de consciências
mais rudimentares. Continuará a ser esquemática, em contrapartida, na
medida em que nos ativermos à consciência normal, tal como a encontra-
mos hoje num homem de bem. Mas justamente porque deparamos aqui
com uma singular complicação de sentimentos, de ideias, de tendências
que se interpenetram, só evitaremos as análises artificiais e as sínteses
arbitrárias se dispusermos de um esquema onde figure o essencial. Tal
foi o que tentámos traçar. Representemo-nos a obrigação como pesando
sobre a vontade à maneira de um hábito, arrastando cada obrigação atrás
de si a massa acumulada das outras e utilizando desse modo, na pressão
que exerce, o peso do conjunto: teremos o todo da obrigação para uma

35
AS DUAS FONTES DA M O R A L F. DA R E L I G I Ã O

consciência moral simples, elementar. Eis o essencial; e a ele poderia em


rigor reduzir-se a obrigação, até mesmo nos casos em que acede à sua
complexidade mais elevada.
Vemos em que momento e em que sentido, muito pouco kantiano, a
obrigação elementar toma a forma de um "imperativo categórico". Sentir-
-nos-íamos embaraçados se quiséssemos descobrir exemplos de um tal
imperativo na vida corrente. A ordem militar, que é uma prescrição não
motivada e sem réplica, diz com efeito que "tem de ser porque tem de
ser". Mas por muito que se não dê razão da ordem ao soldado, este não
deixará de lhe imaginar uma. Se quisermos um caso de imperativo cate-
górico puro, teremos de o construir a priori ou pelo menos de estilizar a
experiência. Pensemos, assim, numa formiga que fosse atravessada por
um relâmpago de reflexão e que julgasse então que é um grande erro
trabalhar sem parar em proveito dos outros. A^ suas veleidades de
preguiça não durariam de resto mais que alguns instantes, o tempo do
20 relâmpago de inteligência. No último desses instantes, enquanto o ins-
tinto, voltando a prevalecer, a reconduziria à viva força à sua tarefa, a
inteligência que o instinto estaria prestes a reabsorver diria à laia de
adeus: tem de ser porque tem de ser. Este "tem de ser porque tem de ser"
não seria mais que a consciência subitamente tomada de uma tracção
sofrida, - da tracção que exerceria ao retesar-se o fio que momentanea-
mente afrouxara. O mesmo mandamento ressoaria no ouvido do sonâm-
bulo que se preparasse para, que começasse mesmo a sair do sonho
que está a desempenhar: enquanto voltasse a mergulhar no seu sonam-
bulismo, um imperativo categórico exprimiria em palavras, para a refle-
xão que estivera prestes a surgir e que instantaneamente se dissipara, a
inevitabilidade do regresso. Em suma, um imperativo absolutamente
categórico é de natureza instintiva ou sonambúlica: desempenhado
como tal no estado normal, representado como tal se a reflexão des-
pertar pelo tempo de que precisa para se formular, mas não por tanto
tempo que lhe permita procurar razões. Não será então evidente que,
num ser razoável, Um imperativo tenderá tanto mais a assumir a
forma categórica quanto mais a actividade desenvolvida, ainda que inte-
ligente, tender a assumir a forma instintiva? Mas uma actividade que,
de início inteligente, se encaminha para uma imitação do instinto c pre-
cisamente aquilo a que no homem chamamos um hábito. E o hábito
mais poderoso, aquele cuja força é feita de todas as forças acumuladas,

36
A OBRIGAÇÃO M O R A L

de todos os hábitos sociais elementares, é necessariamente o que me-


lhor imite o instinto. Será então surpreendente que, no curto momento
que separa a obrigação puramente vivida da obrigação plenamente
representada e justificada por toda a espécie de razões, a obrigação
assuma com efeito a forma do imperativo categórico: "tem de ser porque
tem de ser"?
Consideremos duas linhas divergentes de evolução, e sociedades no 21
extremo uma da outra. O tipo de sociedade que parecerá mais natural
será evidentemente o tipo instintivo: o laço que une entre elas as abelhas
da colmeia assemelha-se muito mais ao que mantém ligadas, coordenadas
e subordinadas umas às outras, as células de um organismo. Suponha-
mos por um instante que a natureza tenha querido, no extremo da outra
linha, obter sociedades em que fosse deixada à escolha individual uma
certa latitude: faria com que a inteligência obtivesse então resultados
comparáveis, quanto à sua regularidade, aos do instinto no extremo da
outra linha; recorreria ao hábito. Cada um dos hábitos em causa, a que
poderemos chamar "morais", será contingente. Mas o seu conjunto, quero
eu dizer o hábito de contrair esses hábitos, estando na própria base das
sociedades e condicionando a sua existência, terá uma força compará-
vel à do instinto, quer como intensidade quer como regularidade. Eis
aquilo a que precisamente chamámos "o todo da obrigação". Tal será,
aliás, apenas o caso de sociedades humanas 110 estado em que saem das
mãos da natureza. De sociedades primitivas e elementares^ Mas a socie-
dade humana bem poderá, por outro lado, complicar-se e espirituali-
zar-se: permanecerá o estatuto da sua fundação ou, antes, a intenção da
natureza.
Ora, foi bem assim que as coisas se passaram. Sem aprofundarmos
um ponto de que nos ocupámos noutro lugar, digamos simplesmente
que inteligência e instinto são formas de consciência que devem ter-se
interpenetrado no estado rudimentar e dissociado ao crescer. Este desen-
volvimento efectuou-se segundo as duas grandes linhas de evolução da
vida animal, com os Artrópodes e os Vertebrados. No termo da primeira
está o instinto dos Insectos, mais particularmente dos Himenópteros; no 22
termo da segunda está a inteligência humana. Instinto e inteligência têm
por objecto essencial utilizar instrumentos: aqui utensílios inventados e,
por conseguinte, variáveis e imprevistos; ali órgãos fornecidos pela natu-
reza e, por conseguinte, imutáveis. O instrumento destina-se, aliás, a um

37
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA R E L i G I À O

trabalho, e este trabalho é tanto mais eficaz quanto mais especializado se


torna, mais dividido portanto entre trabalhadores diversamente qua-
lificados .que reciprocamente se completam. A vida social é assim ima-
nente, como um vago ideal, tanto ao instinto como à inteligência; este
ideal encontra a sua realização mais completa na colmeia ou no formi-
gueiro por um lado e, por outro, nas sociedades humanas. Humana ou
animal, uma sociedade é uma organização; implica uma coordenação e
geralmente também uma subordinação dos elementos uns aos outros;
oferece, portanto, ou simplesmente vivido ou, além disso, representado,
um conjunto de regras ou de leis. Mas, numa colmeia ou num formigueiro,
o indivíduo é fixado na sua actividade pela sua estrutura, e a organização
é relativamente invariável, enquanto a cidade humana é de forma variável,
aberta a todos os progressos. 0 resultado é que, nas primeiras, cada regra
é imposta pela natureza, é necessária; ao passo que nas outras uma só
coisa é natural, a necessidade de uma regra. Quanto mais pois, numa
sociedade humana, escavarmos até à raiz das obrigações diversas para
chegarmos à obrigação em geral, mais a obrigação tenderá a tornar-se
necessidade, mais se aproximará do instinto no que tem de imperioso.
E contudo enganar-nos-íamos muito se quiséssemos referir ao instinto
uma obrigação particular, qualquer que seja. Teremos de nos dizer sempre
que, não sendo obrigação alguma de natureza instintiva, o todo da obriga-
ção teria sido instinto se as sociedades humanas não tivessem de certo
modo um lastro de variabilidade e de inteligência. É um instinto virtual,
como o que está por trás do hábito de falar. A moral de uma sociedade
humana é, com efeito, comparável à sua linguagem. Deve notar-se que se
as formigas trocam signos, como parece provável que façam, o signo lhes
é fornecido peio próprio instinto que as faz comunicar conjuntamente.
Pelo contrário, uma língua é um produto do uso. Nada, nem no vocabu-
lário nem sequer na sintaxe, vem da natureza. Mas é natural falar, e os
signos invariáveis, de origem natural, que provavelmente se utilizam
numa sociedade de insectos representam o que teria sido a nossa lingua-
gem se a natureza, outorgando-nos a faculdade de falar, não lhe tivesse
acrescentado essa função fabricadora e utilizadora, e por isso inventiva
do utensílio, que é a inteligência. Reportemo-nos sem falha ao que teria
sido a obrigação se a sociedade humana tivesse sido instintiva em vez de
ser inteligente; não explicaremos assim obrigação alguma em particular,
daremos até mesmo da obrigação em geral uma ideia que seria falsa se

38
A OBRIGAÇÃO M O R A L

nos ativéssemos a ela; e contudo deveremos pensar nessa sociedade


instintiva, como numa contrapartida da sociedade inteligente, se não
quisermos empreender sem fio condutor a investigação dos fundamentos
da mora!.
Deste ponto de vista, a obrigação perde o seu carácter especifico. Liga-
-se aos fenómenos mais gerais da vida. Quando os elementos que com-
põem um organismo se vergam a uma disciplina rigorosa, poderemos
dizer que se sentem obrigados e que obedecem a um instinto social?
É evidente que não; mas se um tal organismo mal chega a ser uma socie-
dade, a colmeia e o formigueiro são verdadeiros organismos, cujos ele-
mentos se encontram unidos entre si por laços invisíveis; e o instinto
social da formiga - quero eu dizer a força em virtude da qual a operária,
por exemplo, executa o trabalho a que a sua estrutura a predestina - não
pode diferir radicalmente da causa, seja esta qual for, em virtude da qual
cada tecido, cada célula de um corpo vivo funciona em vista do maior
bem do conjunto. Nem num caso nem noutro, de resto, há propriamente
obrigação; haveria antes necessidade. Mas apercebemo-nos desta neces-
sidade, precisamente por transparência - não real, sem dúvida, mas vir-
tual - no fundo da obrigação moral. Um ser não se sente obrigado se não
for livre, e cada obrigação, particularmente considerada, impSrca a liber-
dade. Mas é necessário que haja obrigações; e quanto mais descemos
dessas obrigações particulares, que se encontram no topo, até ao todo da
obrigação que se encontra na base, mais a obrigação nos aparece como a
própria forma que a necessidade assume no domínio da vida quando
exige, para realizar certos fins, a inteligência, a escolha e, por conseguinte,
a liberdade.
Alegar-se-á de novo que estamos em tais casos perante sociedades
humanas muito simples, primitivas ou pelo menos elementares. Sem
dúvida; mas como teremos ocasião de dizer adiante, o civilizado difére
sobretudo do primitivo pela massa enorme de conhecimentos ede hábitos
que extraiu, desde o primeiro despertar da sua consciência, nomeio social
em que aqueles se conservavam. O natural foi em grande parte recoberto
pelo adquirido; mas persiste, pouco menos que imutável, através dos
séculos: os hábitos e os conhecimentos estão longe de impregnar o orga-
nismo e de se transmitir hereditariamente, ao contrário do que se imagi-
nara. E verdade que poderíamos considerar esse natural negligenciável,
na nossa análise da obrigação, se tivesse sido esmagado pelos hábitos

39
AS DUAS FONTES DA M O R A L F. DA R E L I G I Ã O

adquiridos que sobre ele se acumularam durante séculos de civilização.


Mas o natural mantém-se em bastante bom estado, extremamente vivo,
na sociedade mais civilizada. É a ele que nos devemos referir, não para
dar conta desta ou daquela obrigação social, mas para explicar aquilo a
que chamámos o todo da obrigação. Aliás, as nossas sociedades civiliza-
das, por diferentes que sejam da sociedade a que estávamos imediata-
mente destinados pela natureza, apresentam com ela uma semelhança
fundamental.
São, com efeito, também elas sociedades fechadas. Bem podem ser
muito vastas quando comparadas com os pequenos agrupamentos para
os quais tenderíamos por instinto, e que o mesmo instinto tenderia pro-
vavelmente a reconstituir hoje se todas as aquisições materiais e espiri-
tuais da civilização desaparecessem do meio social onde as depositámos:
nem por isso têm menos por essência compreender a cada momento um
certo número de indivíduos e excluir outros. Dizíamos acima que no
fundo da obrigação moral há a exigência social. De que sociedade se tra-
tava? Seria dessa sociedade aberta que seria a humanidade inteira? Não
decidíamos a questão, do mesmo modo que ela fica comummente por
decidir quando falamos do dever do homem para com os seus seme-
lhantes. Mantemo-nos prudentemente no vago. Abstemo-nos de afirmar,
mas gostaríamos de deixar crer que a "sociedade humana" se encontra no
presente realizada. E é bom que o deixemos crer, porque temos incon-
testavelmente deveres para com o homem enquanto homem (embora a
sua origem seja outra, como veremos um pouco mais tarde), e correría-
mos o risco de os enfraquecer se os distinguíssemos radicalmente dos
deveres que temos para com os nossos concidadãos. A acção pode dar-se
por satisfeita. Mas uma filosofia moral que não acentue a distinção aqui
em jogo passa ao lado da vefdade; a omissão falseará necessariamente as
suas análises. De facto, quándo afirmamos que o dever de respeitar a
vida e a propriedade de outrem é uma exigência fundamental da vida
social, de que sociedade falamos? Para respondermos à pergunta, basta
considerarmos o que se passa em tempo de guerra. O homicídio e a pilha-
gem, do mesmo modo que a perfídia, a fraude e a mentira não se tornam
simplesmente lícitos; passam a ser meritórios. Os beligerantes dirão como
as feiticeiras de Macbeth:

Fair is foul, and foul is fair.

40
A OBRIGAÇÃO MORAL

Seria tal coisa possível, operar-se-ia a transformação tão facilmente,


geral e instantânea, se fosse deveras uma certa atitude do homem para
com o homem o que a sociedade até esse momento nos recomendasse?
Oh, bem sei o que a sociedade diz (tem, repito o, as suas razões para o
dizer); mas para sabermos o que pensa e o que quer, não devemos dar em
demasia ouvidos ao que diz, devemos ver o que faz. Diz que os deveres
pòr ela definidos são bem, em princípio, deveres para com a humani-
dade, mas que em circunstâncias excepcionais, infelizmente inevitáveis,
o seu exercício se vê suspenso. Se não se exprimisse assim, barraria o
caminho ao progresso de uma outra moral, que não vem directamente
dela, e que é de todo o seu interesse poupar. Por outro lado, está em con-
formidade com os nossos hábitos de espírito considerar como anormal o
que é relativamente raro e excepcional, a doença por exemplo. Mas a 2
doença é tão normal como a saúde, que, pelo seu lado, encarada de certo
ponto de vista, surge como um esforço constante visando prevenir a
doença ou afastá-la. Do mesmo modo, a paz foi sempre, até hoje, uma
preparação da defesa ou até mesmo do ataque e, em todo o caso, da
guerra. Os nossos deveres sociais visam a coesão social; de bom ou mau-
-grado, compõem para nós uma atitude que é a da disciplina perante o
inimigo. O mesmo é dizer que o homem ao qual a sociedade apela a fim
de o disciplinar bem pode ter sido por ela enriquecido por meio de tudo
o que dela adquiriu ao longo de séculos de civilização: nem por isso a
sociedade precisa menos desse instinto primitivo que nele se recobre de
uma tão espessa camada de verniz. Em suma, o instinto social de que nos
apercebemos no fundo da obrigação social visa sempre - uma vez que o
instinto é relativamente imutável - uma sociedade fechada, por mais vasta
que esta seja. Este instinto é sem dúvida coberto por uma outra moral
que por isso mesmo sustenta e à qual empresta qualquer coisa da sua
força, quero eu dizer do seu carácter imperioso. Mas por si mesmo não
•visa a humanidade. É que entre a nação, por grande que seja, e a humani-
dade, há toda a distância que vai do finito ao indefinido, do fechado ao
aberto. Gostamos de dizer que a aprendizagem das virtudes cívicas se faz
•na família e que, do mesmo modo, apegando-nos à nossa pátria, nos prepa-
. ramos para amar o género humano. A nossa simpatia alargar-se-ia assim
através de um progresso contínuo, cresceria continuando a ser a mesma,
e acabaria por compreender a humanidade inteira. Trata-se de um racio-
cínio a priori, resultante de uma concepção puramente intelectualista da

? ?" 41
AS DUAS FONTES DA M O R A L F. DA R E L I G I Ã O

alma. Verificamos que os três grupos a que nos podemos ligar compreen-
dem um número crescente de pessoas, e concluímos daí que a essas exten-
sões sucessivas do objecto amado corresponde simplesmente uma dila-
tação progressiva do sentimento. O que de resto encoraja esta ilusão é a
circunstância de, graças a um encontro feliz, a primeira parte do raciocí-
nio concordar com os factos: as virtudes domésticas associam-se às virtu-
des cívicas pela simples razão de a família e a sociedade, confundindo-se
na origem, terem permanecido em estreita conexão. Mas, repetimos, entre
a sociedade em que vivemos e a humanidade em geral há o mesmo con-
traste que entre o fechado e o aberto; a diferença entre os dois objectos é
de natureza, e não simplesmente de grau. Que se passa quando, dirigin-
do-nos aos estados de alma, comparamos entre eles os dois sentimentos
seguintes: apego à pátria, amor da humanidade? Quem não vê que a
coesão social se deve, em grande parte, à neceapidade de uma sociedade
se defender contra outras, e que começa por ser contra todos os outros
homens, que se ama os homens com os quais se vive? Tal é o instinto
primitivo. E continua presente, ainda que afortunadamente dissimulado
pelos contributos introduzidos pela civilização; mas ainda hoje amamos
natural e directamente os nossos pais e os nossos concidadãos, ao passo
que o amor da humanidade é indirecto e adquirido. Chegamos directa-
mente aos primeiros; à segunda, só por meio de um desvio; porque é
somente através de Deus, em Deus, que a religião convida o homem a
amar o género humano; como é também somente através da Razão, na
Razão por meio da qual todos comunicamos, que os filósofos nos fazem
olhar a humanidade e nos mostram nela a eminente dignidade da pessoa
humana, o direito de todos ao respeito. Nem num caso nem no outro
chegamos à humanidade por etapas, atravessando a família e a nação.
É pieciso que, de um salto, nos transportemos mais longe que ela e a
atinjamos sem a termos tomado por fim, ultrapassando-a. Aliás, quer fale
mos a linguagem da religião ou a da filosofia, quer se trate de amor ou de
respeito, é uma outra moral, é um outro género de obrigação, que vêm
então sobrepor-sè à pressão social. Até agora foi só desta última que tratá-
mos. Chegou o momento de abordarmos a outra.
Procurámos a obrigação pura. Para a encontrarmos, tivemos de reduzir
a moral à sua expressão mais simples. A vantagem foi que vimos assim
em que consiste a obrigação. O inconveniente, limitar enormemente a
moral. Não é, decerto, que aquilo que deixámos de lado não seja obriga-

42
A OBRIGAÇÃO MORAL

tório: poderemos imaginar um dever que não obrigue? Mas é concebível


que, sendo bem o que é primitiva e puramente obrigatório aquilo que
acabamos de dizer, a obrigação irradie, se difunda e acabe até mesmo por
ser absorvida por uma outra coisa que a transfigura. Vejamos pois, agora,
o que seria a moral completa. Usando do mesmo método passaremos
uma vez mais, não por cima mas por baixo desta feita, ao limite.
Em todos os tempos apareceram homens excepcionais encarnando
esta moral. Antes dos santos do cristianismo, a humanidade conhecera
os sábios da Grécia, os profetas de Israel, os ascetas do budismo e outros
ainda. Foram sempre eles a referência dessa moral completa, que melhor
poderíamos dizer absoluta. O que é já por si só característico e instrutivo.
E nos faz pressentir uma diferença de natureza, que não de grau apenas,
entre a moral de que até aqui tratámos e aquela cujo estudo agora abor-
damos, entre o mínimo e o máximo, entre os dois limites. Enquanto a
primeira é tanto mais pura e mais perfeita quanto mais pode ser recon- 30
duzida a fórmulas impessoais, a segunda, para ser plenamente o que é,
deve encarnar numa personalidade privilegiada que se transforma num
exemplo. A generalidade de uma liga-se à aceitação universal de uma lei,
a da outra à comum imitação de um modelo.
Porque é que os santos têm assim imitadores, e porque é que os
grandes homens de bem arrastaram assim atrás de si multidões? Nada
pedem, e todavia obtêm. Não precisam de exortar; basta-lhes existir; a
sua existência é um apelo. Porque tal é deveras o carácter desta outra
morai. Enquanto a obrigação natural é pressão ou carga, na moral com-
pleta e perfeita é um apelo que há.
A natureza deste apelo, só a conheceram inteiramente os que experi-
mentaram a presença de uma grande personalidade moral. Mas cada um
de nós, nos momentos em que as suas máximas habituais de conduta lhe
parecem insuficientes, se perguntou já o que este ou aquele teria dele
esperado em semelhante ocasião. Poderá ter sido um familiar, um amigo,
quem assim evocávamos por meio do pensamento. Mas poderá tratar-se
também de um homem que nunca vimos, cuja vida nos foi simplesmente
contada, e a cujo juízo submetemos depois em imaginação a nossa con-
duta, temendo da sua parte uma censura ou orgulhando-nos da sua apro-
vação. Poderá até mesmo ser, extraída do fundo da alma à luz da consciên
cia, uma personalidade que nascesse em nós, que sentíssemos capaz de
mais tarde nos invadir inteiramente, e à qual quiséssemos por um mo

43
AS DUAS FONTES DA M O R A L F. DA R E L I G I Ã O

mento apegar-nos como o discípulo ao mestre. Para dizer a verdade, trata-


se de uma personalidade que se delineia a partir do dia em que adoptamos
um modelo: o desejo de nos assemelharmos, que é idealmente gerador de
uma forma a.tomar, é já semelhança; a palavra que faremos nossa é aquela
cujo eco ouvimos em nós. Mas pouco importa a pessoa. Comprovemos
apenas que se a primeira moral era tanto mais forte quanto mais nitida-
mente se dissociava em obrigações impessoais, esta última, pelo contrário,
começando por dispersar-se em preceitos gerais aos quais a nossa inte-
ligência aderia mas que não chegavam a mover a nossa vontade, torna-se
tanto mais arrebatadora quanto mais a multiplicidade e generalidade das
máximas se vem fundir na unidade e na individualidade de uin homem.
De onde lhe vem a sua força? Qual o princípio de acção que sucede
aqui à obrigação natural ou que acaba antes por absorvê-la? Para o saber-
mos, vejamos primeiro o que nos é tacitamente pedido. Os deveres a que
nos referimos até aqui são os que a vida social nos impõe; obrigam-nos
perante a cidade, mais do que perante a humanidade. Poderíamos, pois,
dizer que a segunda moral - se decididamente distinguimos duas - difere
da primeira na medida em que é humana, em vez de ser apenas social.
E não nos enganaríamos por completo. Vimos, com efeito, que não é alar
gando a cidade que chegamos à humanidade: entre uma moral social e
uma moral humana a diferença não é de grau, mas de natureza. A pri-
meira é aquela em que costumamos pensar quando nos sentimos natu-
ralmente obrigados. Acima desses deveres bem nítidos gostamos de nos
representar outros, mais fluidos, que se lhes sobreporiam. Dedicação, dom
de si, espírito de sacrifício, caridade, tais são as palavras que pronuncia
mos quando pensamos neles. Mas pensaremos então, as mais das vezes,
noutra coisa que não somente palavras? Não, sem dúvida, e damo-nos
bem conta de que assim é. Simplesmente basta, dizemo-nos, que a fór-
mula compareça; tomará todo o seu sentido, a ideia que a virá preencher
tornar-se a actuante, quando uma ocasião se apresentar. É verdade que
para muitos a ocasião não se apresentará, ou a acção será remetida para
mais tarde. Nalguns, a vontade sacudir-se-á um pouco, mas tão pouco
que o abalo recebido poderá ser decerto atribuído à simples dilatação do
dever social, alargado e enfraquecido em dever humano. Mas quando as
formas se preenchem de matéria e a matéria se anima, é uma vida nova
que se anuncia; compreendemos, sentimos que sobrevêm outra moral.
Portanto, ao falarmos aqui do amor da humanidade, caracterizaríamos

44
A OBRIGAÇÃO MORAL

sem dúvida essa mora! que então sobrevêm. E, contudo, não exprimiría-
mos ainda a sua essência, porque o amor da humanidade não é um móbil
que se baste a si próprio e que aja directamente. Os educadores da juven-
tude sabem bem que não se triunfa do egoísmo recomendando o "altruís- -
mo". Pode até mesmo acontecer que uma alma generosa, impaciente de
se dar, se veja subitamente arrefecida à ideia de trabalhar "pelo género.. .
humano". O objecto é demasiado vasto, o efeito demasiado disperso. Pode-
mos, pois, conjecturar que se o amor da humanidade é constitutivo desta
moral, o é mais ou menos do mesmo modo que a intenção de atingir um
ponto implica a necessidade de transposição do espaço intermédio. F.m
certo sentido, trata-se da mesma coisa; noutro, é completamente diferente.
Se pensarmos apenas no intervalo e nos pontos, em número infinito, que
será necessário atravessar um a um, acabaremos por perder a coragem de
partir, à semelhança da flecha de Zenão; aliás, não veremos nisso inte-
resse algum, atractivo algum. iMas se transpusermos o intervalo conside^-.-f
rando apenas o seu termo ou olhando mais longe ainda, teremos fácil- 33
mente cumprido um acto simples ao mesmo tempo que teremos vencido
a multiplicidade infinita à qual essa simplicidade equivale. Qual é pois o
termo aqui, qual a direcção do esforço? O que é que, numa palavra, nos é
propriamente pedido?
Definamos para começar a atitude moral do homem que até agora
temos vindo a considerar. 0 homem faz corpo com a sociedade; ele e ela
estão conjuntamente absorvidos numa mesma tarefa de conservação indi-
vidual e social. Voltados para si mesmos. Decerto, é duvidoso que o inte-
resse particular concorde invariavelmente com o interesse geral: sabemos
em que dificuldades insolúveis esbarrou sempre a moral utilitária quando
pôs como princípio que o indivíduo não podia senão buscar o seu pró-
prio bem, quando pretendeu que, buscando-õ, seria conduzido a querer o
bem de outrem. Um ser inteligente, em busca daquilo que é o seu i n ç a s s e
pessoal, fará amiúde algo completamente.diferente.do que o interesse,
geral reclamaria. Todavia, se a moral utilitária se obstina em reaparecer
sob uma forma ou sob outra, é porque não é insustentável; e se é possível
sustentá-la, é justamente porque abaixo da: actividade inteligente, que
teria com efeito de optar entre o interesse pessoal e o interesse de outrem,
há um substrato de actividade instintiva primitivamente estabelecido pela
natureza, onde o individual e o social estão prestes a confundir-se. A célula
vive para si e também para o organismo, conferindo lhe e dele extraindo

45
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELrGlAO

vitalidade; sacrificar-se-á ao todo caso seja necessário; e dir-se-ia sem


dúvida então, se fosse uma célula consciente, que o estaria a fazer por si
mesma. Tal seria também provavelmente o estado de alma de uma for-
miga que reflectisse sobre a sua conduta. Sentiria que a sua actividade se
encontra suspensa de qualquer coisa de intermédio entre o bem da for-
miga e o do formigueiro. Ora, foi a esse instinto fundamental que ligá-
mos a obrigação propriamente dita: implica, na origem, um estado de
coisas em que o individual e o social não se distinguem um do outro.
É por isso que podemos dizer que a atitude à qual corresponde é a de um
indivíduo e de uma sociedade recurvados sobre si mesmos. Individual e
social ao mesmo tempo, a alma roda aqui em círculo. Está fechada.
A outra atitude é a da alma aberta. Que deixa então esta entrar? Se
disséssemos que compreende a humanidade inteira, não iríamos muito
longe, uma vez que o seu amor se estenderá aos animais, às plantas, a
toda a natureza. E, todavia, nada do que viesse assim ocupá-la bastaria
para definir a atitude que tomou, uma vez que ela poderia em rigor dis-
pensar tudo isso. A sua forma não depende do seu conteúdo. Acabamos
de a encher; poderíamos igualmente, agora, esvaziá-la. A caridade subsis-
tiria naquele que a possui, ainda quando já não houvesse outro ser vivo
na terra.
Uma vez mais, não é por meio de uma dilatação de si que alguém
passará do primeiro estado ao segundo. Uma psicologia demasiado pura-
mente intelectualista, que segue as indicações da linguagem, definirá sem
dúvida os estados de alma pelos objectos aos quais se ligam: amor da
família, amor da pátria, amor da humanidade, nestas três inclinações, ela
verá um mesmo sentimento que se dilata cada vez mais, de modo a englo-
bar um número crescente de pessoas. O facto de tais estados de alma se
traduzirem no exterior pela mesma atitude ou o mesmo movimento, de
todos os três nos inclinarem, permite-nos agrupá-los sob o conceito de
amor e exprimi-los pela mesma palavra: distingui-los-emos então nome-
ando três objectos, cada vez mais amplos, aos quais eles se reportariam.
O que basta, é certo, para os designar. Mas será isso descrevê-los? Será
analisá-los? À primeira vista, a consciência percebe entre os dois primei-
ros sentimentos e o terceiro uma diferença de natureza. Aqueles impli
cam uma escolha e, por conseguinte, uma exclusão: poderão incitar à
luta; não excluem o ódio. O último não é senão amor. Aqueles avançam a
direito até ao objecto que os atrai. O último não cede a um atractivo do

46
A OBRIGAÇÃO MORAL

seu objecto; não o visou; lançou-se mais longe, e só atinge a humanidade


atravessando-a. Terá, falando com propriedade, um objecto? É o que nos
perguntaremos. Mas limitemo-nos de momento a constatar que esta ati-
tude da alma, que é sobretudo um movimento, se basta a si mesma.
Todavia põe-se a seu respeito um problema, plenamente resolvido no
caso da outra atitude. Esta foi querida, com efeito, pela natureza; acabamos-
de ver como e porquê nos sentimos levados a adoptá-la. Mas aquela foi
adquirida; exigiu, continua a exigir um esforço. De onde vem que os ho-
mens que deram o seu exemplo tenham encontrado outros homens para
os seguir? E que força é a que contrabalança aqui a pressão social? Não
temos escolha. Exceptuados o instinto e o hábito, não há outra acção directa
sobre o querer senão a da sensibilidade. A propulsão exercida pelo senti-
mento pode, aliás, assemelhar-se de perto à obrigação. Analisemos a paixão
do amor, sobretudo nos seus começos: será o prazer que visa, não será
igualmente a dor? Há talvez uma tragédia em preparação, uma vida i nteira!1 36
estragada, dissipada, perdida, sabemo-lo, sentimo-lo, mas pouco importa!
Tem de ser porque tem de ser. A grande perfídia da paixão nascente é
justamente contrafazer o dever. Mas não precisamos de ir até à paixão.
Na emoção mais tranquila pode entrar uma certa exigência de acção, que
difere da obrigação definida há pouco pelo facto de não deparar com
resistência, de impor apenas o consentido, mas que nem por isso se asse-
melha menos à obrigação na medida em que impõe alguma coisa. Nunca
nos apercebemos melhor dela que nos casos em que tal exigência suspende
o seu efeito prático, permitindo-nos assim o vagar de reflectir a seu propó-
sito e de analisar o que experimentamos. É o que acontece na emoção
musical, por exemplo. Parece-nos, enquanto escutamos, que não podería-
mos querer outra coisa além do que a música nos sugere e que seria bem
assim que agiríamos natural, necessariamente, se escutando não repou-
sássemos de agir. Exprima a música a alegria, a tristeza, a piedade ou a
simpatia, a cada instante somos o que elar exprime. E não só nós, mas
muitos outros, todos os outros também. Quando a música chora, é a huma-
nidade, é a natureza inteira que chora com ela. Para dizer a verdade, ela
não introduz estes sentimentos em nós; introduz-nos antes neles, como
transeuntes que fossem impelidos para uma dança. Assim procedem os
iniciadores em moral. A vida tem para eles ressonâncias de sentimento
insuspeitadas, como as que poderia dar uma sinfonia nova; fazem nos
entrar com eles nessa música, para que nós a traduzamos em movimento.

47
AS DUAS FONTES DA M O R A L £ DA R E L I G I Ã O

37 É por excesso de intelectualismo que suspendemos o sentimento num


objecto e que temos toda a emoção por repercussão, na sensibilidade, de
uma representação intelectual. Para retomarmos o exemplo da música,
cada um sabe que ela provoca em nós emoções determinadas, alegria,
tristeza, piedade, simpatia, e que estas emoções podem ser intensas, e
que são completas para nós, ainda que a nada se liguem. Dir-se-á que
estamos aqui no domínio da arte, e não na realidade, que então nos como-
vemos apenas por jogo, que o nosso estado de alma é puramente ima-
ginativo, que o músico não poderia, aliás, suscitar tal emoção em nós,
sugeri-la sem a causar, se não a tivéssemos experimentado já na vida
real, quando a emoção era determinada por um objecto do qual a arte só
teve que a desligar? Seria esquecer que alegria, tristeza, piedade, sim-
patia são palavras que exprimem generalidades às quais temos de nos
reportar para traduzirmos o que a música nos faz experimentar, mas
que a cada música nova aderem sentimentos novos, criados por essa
música e nessa música, definidos e delimitados pelo próprio desenho,
único no seu género, da melodia ou da sinfonia. Portanto, não foram
extraídos da vida pela arte; somos nós que, para os traduzirmos em
palavras, somos obrigados a aproximar o sentimento criado pelo artista
daquilo que a ele mais se assemelha na vida. Mas tomemos os próprios
estados de alma efectivamente causados por coisas, e como que prefigu-
rados nelas. Em número determinado, quer dizer limitado, são eles que
foram queridos pela natureza. Reconhecemo-los por serem de molde a
impelir a acções que correspondem a necessidades. Os outros, pelo con-
trário, são verdadeiras invenções, comparáveis às do músico, e em cuja
origem há um homem. Assim a montanha pôde, em todos os tempos,
38 comunicar aos que a contemplavam certos sentimentos comparáveis a
sensações e que, com efeito, a ela aderiam. Mas Rousseau criou, a propó-
sito dela, uma emoção nova e original. Trata-se de uma emoção que se
tornou corrente, depois de Rousseau a ter posto em circulação. E hoje
ainda continua a ser Rousseau quem no-la faz experimentar, tanto e mais
que a montanha. Havia, é certo, razões para que esta emoção, saída da
alma de Jean-Jacques, se prendesse à montanha, mais que a qualquer
outro objecto: os sentimentos elementares, vizinhos da sensação, provoca-
dos directamente pela montanha teriam de concordar com a emoção
nova. Mas Rousseau recolheu os; fê-los entrar, tornados doravante sim-
ples harmónicas, num timbre cuja nota fundamental foi ele a dar por

48
A OBRIGAÇÃO M O R A L

meio de uma verdadeira criação. O mesmo se passa com o amor da natu-


reza em geral. Esta suscitou desde sempre sentimentos que são quase
sensações; sempre se apreciou a doçura das sombras do arvoredo, a fres-
cura das águas, etc., enfim tudo o que sugere a palavra "amoenus" de que
os romanos se serviam para caracterizar o encanto dos campos. Mas
uma emoção nova, decerto criada por alguém ou alguns, veio utilizar
estas notas preexistentes como harmônicas, e produzir assim qualquer
coisa de comparável ao timbre original de um novo instrumento, aquilo
a que chamamos no nosso país o sentimento da natureza. A nota funda-
mental assim introduzida teria podido ser outra, como aconteceu no
Oriente e, em particular, no Japão: o timbre teria então sido outro. Aliás,
os sentimentos vizinhos da sensação, estreitamente ligados aos objectos
que os determinam, podem atrair a si uma emoção anteriormente cria-
da, e não inteiramente nova. Foi o que se passou com o amor. A mulher
'soube desdé todos os tempos inspirar ao homem'uma inclinação dis- 39
tinta do desejo que, no entanto, continuava a ser-lhe contígua e como
que a ele soldada, participando ao mesmo tempo do sentimento e da
sensação. Mas o amor romanesco tem uma data: surgiu na Idade Média,
no dia em que se decidiu absorver o amor natural num sentimento de
certo modo sobrenatural, na emoção religiosa tal como o cristianismo a
criara e precipitara no mundo. Quando se reprova ao misticismo o facto
de se exprimir à maneira da paixão amorosa, esquece-se que foi o amor
que começou por plagiar a mística, por lhe tomar de empréstimo o seu
fervor, os seus impulsos, os seus êxtases; ao utilizar a linguagem de uma
paixão que transfigurara, a mística não fez mais que retomar o seu bem
próprio. Quanto mais o amor confina com a adoração, maior é a despro-
porção entre a emoção e o objecto, mais profunda, por conseguinte, a
decepção a que o apaixonado se expõe - a menos que se atenha indefi-
nidamente a ver o objecto através da emoção, a não o tocar, a tratá-lo
religiosamente. Notemos que os antigos haviam'já falado das' ilusões do
amor, mas referindo-se então a erros aparentados com os dos sentidos
e que diziam respeito ao rosto da . mulher amada, -à sua conformação,
ao seu porte, ao seu carácter. Lembramo-nos da descrição dc Lucrécio:
a ilusão incide aqui apenas nas qualidades do objecto amado e não, como
a ilusão moderna, no que se pode esperar do amor, Entre a antiga ilu-
são e a que lhe acrescentámos há a mesma diferença que entre o senti-
mento primitivo, emanando do próprio objecto, e a emoção religiosa,

! 49
AS DUAS FONTES DA M O R A L £ DA R E L I G I Ã O

chamada do exterior, que veio recobri -lo e transbordá-lo. A margem dei-


xada à decepção é agora enorme, porque é o intervalo entre o divino e o
humano.
Que uma emoção nova esteja na origem das grandes criações da arte,
da ciência e da civilização em geral, não se nos afigura duvidoso. Não
só porque a emoção é um estimulante que incita a inteligência a em-
preender e a vontade a perseverar. Devemos ir muito mais longe. Há
emoções que são geradoras de pensamento; e a invenção, embora de
ordem intelectual, pode ter a sensibilidade por substância. É o que deve-
mos entender acerca da significação das palavras "emoção", "sentimento",
"sensibilidade". Uma emoção é um abalo afectivo da alma, mas uma coisa
é uma agitação da superfície, outra coisa, uru levantamento das profundi-
dades. No primeiro caso o efeito dispersa-se, no segundo permanece indi-
viso. Num, é uma oscilação das partes sem deslocamento do todo; no
outro, o todo é impelido em frente. Mas deixemos as metáforas. É preciso
distinguir duas espécies de emoção, duas variedades de sentimento, duas
manifestações de sensibilidade, que só têm de comum entre elas o serem
estados afectivos distintos da sensação e o não se reduzirem, como ela, à
transposição psicológica de uma excitação física. Na primeira, a emoção
é consecutiva a uma ideia ou a uma imagem representada; o estado sen-
sível resulta bem de um estado intelectual que nada lhe deve, que se
basta a si próprio e que, se sofre o seu efeito por ricochete, perde com isso
mais do que ganha. É a agitação da sensibilidade através de uma repre-
sentação que nela cai. Mas a outra emoção não é determinada por uma
representação da qual se pretenderia a continuação e da qual permanece-
ria distinta. Muito mais que um efeito seria uma causa, relativamente aos
estados intelectuais que hão-de sobrevir; surge prenhe de representações,
nenhuma das quais propriamente formada, mas que extrai ou poderia
extrair da sua substância por meio de um desenvolvimento orgânico.
A primeira é infra-intelectual; é dela que geralmente os. psicólogos se
ocupam, e é nela que pensamos quando opomos a sensibilidade à inte-
ligência ou quando fazemos da emoção um vago reflexo da represen-
tação. Mas da outra diríamos de bom grado que é supra-intelectual, se o
termo não evocasse imediata e exclusivamente a ideia de uma superio-
ridade de valor; trata-se de igual modo de uma anterioridade no tempo,
e da relação daquilo que engendra com aquilo que é engendrado. Com
efeito, só a emoção do segundo género pode tornar-se geradora de ideias.

50
A OBRIGAÇÃO M O R A L

Não nos damos conta de que assim é quando dizemos "feminina" com
um matiz cie desdém, uma psicologia que dá tão grande e belo lugar à
sensibilidade. Os que falam assim cometem um primeiro erro, que é
darem crédito às banalidades correntes acerca da mulher, quando seria
tão fácil observar. Não vamos empreender, tendo apenas por fim corrigir
uma expressão inexacta, um estudo comparativo dos dois sexos. Limi-
temo-nos a dizer que a mulher é tão inteligente como o homem, mas que
é menos capaz de emoção, e que se há alguma potência da alma que nela
apresenta um menor desenvolvimento, não é a inteligência, mas a sensi-
bilidade. Trata-se, bem entendido, da sensibilidade profunda, e não da
agitação à superfície \ Mas pouco importa. O maior erro dos que consi-
derariam rebaixar o homem associando à sensibilidade as mais altas facul
dades do espírito é o de não verem onde está precisamente a diferença
entre a inteligência que compreende, discute, aceita ou rejeita, que se
cinge enfim à crítica, e a quê inventa.
Criação significa, acima de tudo, emoção. Não se trata apenas da lite-
ratura e da arte. Sabemos o que uma descoberta científica implica de
concentração e de esforço. O génio foi definido como uma longa paciên-
cia. É verdade que nos representamos a inteligência à parte, e à parte
também uma faculdade geral de atenção, a qual, mais ou menos desen-
volvida, concentraria mais ou menos fortemente a inteligência. Mas como
poderia esta atenção indeterminada, exterior à inteligência, vazia de
matéria, pelo simples facto de se unir à inteligência, fazer surgir desta o
que nela não estava? Sentimos bem que a psicologia continua a deixar-
-se iludir pela linguagem quando, depois de designar pela mesma palavra
todas as atenções prestadas a todos os casos possíveis, já não vê entre
elas, que se supõe então serem de uma mesma qualidade, outra coisa
que não sejam diferenças de grandeza. A verdade é que em cada caso a

1
Inútil dizer que as excepções são numerosas. 0 fervor religioso, por exemplo, pode
alcançar na mulher profundidades insuspeiladas. Mas a natureza provavelmente quis,
como regra geral, que a mulher se concentrasse no filho e encerrasse em límitesbastante
estreitos o melhor da sua sensibilidade. Nesse domínio é de resto incomparável: a emoção
é aqui supra intelectual, na medida em que se torna divinatória. As coisas que surgem
diante dos olhos maravilhados de uma mãe que olha para o seu filho pequenol Ilusão
talvez? Não é certo. Digamos antes que a realidade é prenhe de possibilidades, e que a
mãe vê no filho não só o que este será, mas ainda tudo o que poderia ser se não tivesse
a cada instante da sua vida de escolher e, por conseguinte, de excluir.
AS DUAS FONTES DA M O R A L F. DA R E L I G I Ã O

atenção é marcada de um matiz especial, e como que individualizada,


pelo objecto a que se aplica: é por isso que a psicologia se inclina já a
falar de "interesse" tanto como de atenção e a fazer assim implicitamente
intervir a sensibilidade, mais susceptível de se diversificar segundo os
casos particulares. Mas então não se insiste o bastante na diversidade;
estabelece-se uma faculdade geral de nos interessarmos que, sempre a
mesma, ainda não se diversificaria a não ser por aplicação maior ou
menor ao seu objecto. Não falemos, pois, de interesse em geral. Digamos
que o problema que inspirou interesse é uma representação dobrada
por uma emoção, e que a emoção, sendo ao mesmo tempo a curiosidade,
o desejo e a alegria antecipada de resolvermos um problema determinado,
é única copio a representação. É ela que impele a inteligência em frente,
apesar dos obstáculos. É ela sobretudo que vivifica, ou antes vitaliza, os
elementos intelectuais com os quais fará corpo, recolhe a todo o mo-
mento o que virá a poder organizar-se com eles e obtém, por fim, do
enunciado do problema o seu desabrochar em solução. O que não será
isto na literatura e na arte! A obra genial saiu, as mais das vezes, de uma
emoção única no seu género, que teríamos crido inexprimível, e que
quis exprimir-se. Mas não acontecerá o mesmo com toda a obra, por
imperfeita que seja, em que entra uma parte de criação? Quem quer que
se tenha exercitado na composição literária terá podido comprovar a
diferença entre a inteligência deixada a si mesma e a que é consumida
pelo fogo da emoção original e única, nascida de uma coincidência entre
o autor e o seu sujeito, quer dizer de uma intuição. No primeiro caso o
espírito trabalha a frio, combinando entre elas as ideias, vazadas de há
muito em palavras, que a sociedade lhe entrega em estado sólido. No
segundo, dir-se-ia que os materiais fornecidos pela inteligência entram
previamente em fusão e que a seguir se solidificam de novo em ideias
desta feita informadas pelo próprio espírito: se estas ideias deparam
com palavras preexistentes para as exprimir, o facto produzirá quanto a
cada uma delas o efeito de uma boa sorte inesperada; e, para dizer a
verdade, muitas vezes foi preciso ajudar a fortuna, e forçar o sentido da
palavra para que esta se moldasse segundo o pensamento. 0 esforço é
na circunstância doloroso, e o resultado aleatório. Mas é então somente
que o espírito se sente ou se crê criador. Deixa de partir de uma multipli-
cidade de elementos já feitos para chegar a uma unidade compósita em
que haverá um novo arranjo do antigo sentido. Transportou-se de um

52
A OBRIGAÇÃO M O R A L

golpe só até qualquer coisa que parece ao mesmo tempo una e única,
que em seguida procurará, como puder, desdobrar-se em conceitos múl-
tiplos e comuns, antecipadamente dados nas palavras.
Em resumo, a par da emoção que é o efeito da representação e que se
lhe acrescenta, há a emoção que precede a representação, que a contém
virtualmente e que é até certo ponto a sua causa. Um drama que mal
chega a ser uma obra literária poderá abalar os nossos nervos e suscitar
uma emoção do primeiro género, intensa sem dúvida, mas banal, colhida
entre as que experimentamos correntemente na vida, e em todo ocaso
vazia de representação. Mas a emoção provocada em nós por uma grande
obra dramática é de uma natureza completamente diferente: única no
seu género, surgiu na alma do poeta, e somente nela, antes de abalar a
nossa; foi dela que a obra saiu, porque era a ela que o autor se referia à
medida que ia compondo a obra. Não era mais que uma exigência de
criação, mas uma exigência determinada, que foi satisfeita'pela obra uma
vez realizada e que não o teria sido por uma outra a menos que esta
tivesse com a primeira uma analogia interna e profunda, comparável à
que existe entre duas traduções, igualmente aceitáveis, de uma mesma
música em ideias ou em imagens.
O mesmo é dizer que dando um amplo lugar à emoção na génese da
moral, não apresentamos de maneira alguma uma "moral de sentimento".
Porque se trata de uma emoção capaz de se cristalizar em representações,
e até mesmo em doutrina. Desta doutrina, como de qualquer outra, não 45
se teria podido deduzir aquela moral; nenhuma especulação criará uma
obrigação ou nada que com ela se pareça; pouco importa a beleza da
teoria, poderei sempre dizer que não a aceito; e, ainda que a aceite, pre-
tenderei continuar livre de me conduzir à minha maneira. Mas se a atmos-
fera de emoção comparecer, se a respirei, se a emoção me penetrar, agirei
segundo ela, movido por ela5. Não por constrangimento ou necessidade,
mas em virtude de uma inclinação à qual não quereria resistir. E em vez
de explicar o meu acto pela própria emoção, poderia igualmente deduzi-
lo então da teoria que terá sido construída pela transposição da emoção
em ideias. Entrevemos aqui a resposta possível a uma questão grave, que
voltaremos a encontrar adiante, mas que acabamos de aflorar de pas-
sagem. Há quem goste de dizer que se uma religião traz uma moral raova
a impõe através da metafísica que faz aceitar, das suas ideias sobre Deus,
sobre o universo, sobre a relação entre um e outro. Ao que se tem respon

53
AS DUAS FONTES DA M O R A L F. DA R E L I G I Ã O

dido que é pelo contrário pela superioridade da sua moral que uma reli-
gião conquista as almas e as abre a uma certa concepção das coisas. Mas
reconheceria a inteligência a superioridade da moral que lhe é proposta,
dado que não pode apreciar as diferenças de valor a não ser por meio
de comparações com uma regra ou um ideal, e que o ideal e a regra são
necessariamente fornecidos pela moral já instalada? Por outro lado, como
seria uma nova concepção do mundo senão uma filosofia mais, a par das
que já conhecemos? Ainda que a nossa inteligência a ela adira, nunca a
veremos senão como uma explicação teórica preferível às outras. Ainda
que nos pareça recomendar, enquanto numa maior harmonia com ela,
certas regras de conduta novas, será grande a distância que separa essa
adesão da inteligência de uma conversão da vontade. Mas a verdade é
que nem a doutrina, no estado de pura representação intelectual, fará
adoptar ou sobretudo praticar a moral, nem a moral, encarada pela inte-
ligência como um sistema de regras de conduta, tornará intelectualmente
preferível a doutrina. Antes da nova moral, antes da metafísica nova, há
a emoção, que se prolonga em impulso do lado da vontade, e em repre-
sentação explicativa na inteligência. Ponhamos, por exemplo, a emoção
que o cristianismo trouxe sob o nome de caridade: se conquista as almas,
segue-se uma certa conduta, e difunde-se uma certa doutrina. Nem esta
metafísica impôs esta moral, nem esta moral fez com que se preferisse
esta metafísica. Metafísica e moral exprimem a mesma coisa, uma em
termos de inteligência, a outra em termos de vontade; e as duas expressões
são adoptadas conjuntamente a partir do momento em que é dada a coisa
a exprimir.

Que uma boa metade da nossa moral compreenda deveres cujo


carácter obrigatório se explica, em última análise, pela pressão da socie-
dade sobre o indivíduo, concedê-lo-emos sem grande dificuldade, porque
esses deveres são correntemente praticados, porqde têm uma fórmula
nítida e precisa e porque nos é então fácil, apreendendo-os pela sua parte
plenamente visível e descendo até à sua raiz, descobrir a exigência social
da qual saíram. Mas que o resto da moral traduza um certo estado emo-
cional, que já não cedamos nesse caso a uma pressão mas a um atractivo,
é o que muitos hesitarão em admitir. A razão é que aqui não podemos já,
as mais das vezes, redescobrir no fundo de nós a emoção original. Há
fórmulas que são o seu resíduo, e que se depuseram naquilo a que pode-
ríamos chamar a consciência social à medida que se consolidava, ima-

54
A OBRIGAÇÃO MORAL

neate a essa emoção, uma concepção nova da vida, ou melhor, uma certa
atitude perante ela. Justamente porque nos encontramos diante da cinza
de uma emoção extinta, e porque a potência propulsiva dessa emoção
vinha do fogo que ela trazia em si, as fórmulas que ficaram seriam geral-
mente incapazes de abalar a nossa vontade se as fórmulas mais antigas,
exprimindo exigências fundamentais da vida social, não lhes comunicas-
sem por contágio alguma coisa do seu carácter obrigatório. Estas duas
morais sobrepostas parecem agora não fazer mais do que uma, tendo a
primeira emprestado à segunda um pouco do que ela tem de imperativo
e tendo, por outro lado, recebido da sua parte, em troca, uma significação
menos estritamente social, mais largamente humana. Mas remexamos
a cinza; encontraremos partes ainda quentes e, finalmente, a centelha
irromperá; o fogo poderá acender-se e, se se acender, alastrará passo a
passo. Quero eu dizer que as máximas desta segunda morai não operam
isoladamente, como as da primeira: a partir do momentó em q u e uma
delas, deixando de ser abstracta, se enche de significação e adquire a força
de agir, as outras tendem a comportar-se da mesma maneira; finalmente
todas se unem na quente emoção que as deixou outrora para trás e nos
homens, de novo vivos, que a experimentaram. Fundadores e reforma-
dores de religiões, místicos e santos, heróis obscuros da vida moral que
pudemos encontrar no nosso caminho e que igualam aos nossos olhos os
maiores, todos estão presentes: arrastados pelo seu exemplo, juntamo-
-nos a eles como a um exército de conquistadores. São conquistadores,
com efeito; quebraram a resistência da natureza e elevaram a humani-
dade a novos destinos. Assim, quando dissipamos as aparências para tocar
as realidades, quando fazemos abs.tracção da forma comum que as duas
morais, graças a trocas recíprocas, tomaram no pensamento conceptual e
na linguagem, encontramos nos dois extremos desta moral única a
pressão e a aspiração: a primeira tanto mais perfeita quanto mais impes-
soal, mais próxima dessas forças naturais a que chamámos hábito e até
mesmo instinto, a segunda, tanto mais poderosa quanto mais visivel-
mente suscitada em nós por pessoas,e quanto mais-pareça triunfar-sobre
a natureza. É verdade que se descêssemos até à raiz da própria natureza,
nos aperceberíamos talvez de que é a mesma força que se manifesta direc-
tamente, girando sobre si própria, na espécie humana uma vez consti-
tuída, e que age depois indirectamente, por intermédio de individuali-
dades privilegiadas, impelindo a humanidade em frente.
AS DUAS FONTES DA MORAL F. DA RELIGIÃO

Mas não é necessário recorrer a uma metafísica para determinarmos


a relação desta pressão com esta aspiração. Uma vez mais, há uma certa
dificuldade em comparar entre si duas morais porque estas já não se
apresentam no estado puro. A primeira passou à outra qualquer coisa da
sua força de coerção; a segunda difundiu sobre a primeira qualquer coisa
do seu perfume. Estamos em presença de uma série de gradações ou de
degradações, conforme percorramos as prescrições da moral começando
por uma ponta ou por outra; quanto aos dois limites extremos, o seu
interesse é sobretudo teórico; pouco ou nunca acontece que sejam real-
mente atingidos. Consideremos contudo em si mesmas, isoladamente,
pressão e aspiração. Imanente à primeira é a representação de uma socie-
dade que visa apenas conservar-se: o movimento circular em que arrasta
consigo os indivíduos, produzindo-se sem sair do mesmo lugar, imita de
longe, por intermédio do hábito, a imobilidade do instinto. O sentimento
que caracterizaria a consciência deste conjunto de obrigações puras, que
supomos plenamente preenchidas, seria um estado de bem-estar indivi-
dual e social comparável ao que acompanha o funcionamento normal da
vida. Assemelhar-se-ia mais ao prazer do que à alegria. Na moral da aspira-
ção, pelo contrário, está implicitamente contido o sentimento de um pro
gresso. A emoção de que falávamos é o entusiasmo de uma marcha em
frente, entusiasmo por meio do qual esta moral se fez aceitar por alguns
e depois, através deles, se propagou no mundo. Aliás,"progresso"e "marcha
em frente" confundem-se aqui com o próprio entusiasmo. Para disso
tomarmos consciência, não é necessário que nos representemos um termo
que visamos ou uma perfeição da qual nos aproximamos. Basta que na
alegria do entusiasmo haja mais que no prazer do bem-estar, não impli-
cando esse prazer esta alegria, mas envolvendo esta alegria esse prazer,
ao ponto até de o absorver em si. Trata-se de qualquer coisa que senti-
mos; e a certeza assim obtida, muito longe de se encontrar suspensa de
uma metafísica, é o que dará a esta metafísica o seu apoio mais sólido.
Mas antes desta metafísica, e muito mais perto do imediatamente
experimentado, estão as representações simples que irrompem aqui da
emoção à medida que insistimos nela. Falávamos dos fundadores e refor-
madores de religiões, dos místicos e dos santos. Escutemos a sua lingua-
gem; esta nao faz mais que traduzir cm representações a emoção parti-
cular de uma alma que se abxe, rompendo com a natureza que a fechava
ao mesmo tempo em si mesma e na cidade.

56
A OBRIGAÇÃO MORAL

Dizem antes de mais que aquilo que experimentam é um sentimento


de libertação. Bein-estar, prazeres, riqueza, tudo o que retém o comum
dos homens os deixa indiferentes. Desembaraçando-se de tudo isso sen-
tem um alívio, seguido de alegria. Não é que a natureza tenha errado
em ligar nos por meio de sólidos laços à vida que quisera para nós. Mas
trata-se de ir mais longe, e as comodidades que nos convêm em casa
tornar-se-iam empecilhos, converter-se-iam numa bagagem pesada, se
tivéssemos de as carregar em viagem. Que uma alma assim mobilizada
se incline mais a simpatizar com as outras almas, e até mesmo com a
natureza inteira, poderia ser de molde a surpreender-nos se a imobi-
lidade relativa da alma, girando em círculo numa sociedade fechada,
não decorresse precisamente do facto de a natureza ter fragmentado a
humanidade em individualidades distintas através do próprio acto que»
constituiu a espécie humana. Como todo o acto constitutivo de uma
espécie, este foi uma paragem [arrêt]. Retomando a marcha em frente,
quebra-se a decisão de quebrar. Para se obter um efeito completo, seria
preciso, é certo, arrastar consigo o resto dos homens. Mas se alguns
seguem, e se outros se persuadem de que o fariam dada a ocasião, é já
muito: há, a partir desse momento, com o começo da execução, a espe-
rança de que o círculo acabará por ser rompido. Em todo o caso, nunca
o repetiremos demais, não é pregando o amor do próximo que o resul-
tado se obtém. Não é mediante o alargamento de sentimentos mais
estreitos que se abrangerá a humanidade. A nossa inteligência bem
pode persuadir-se a si mesma de que tal é a marcha indicada, as coisas
passam-se de outra maneira. O que é simples aos olhos do nosso enten-
dimento não o é necessariamente aos da nossa vontade. Onde a lógica
diz que seria uma certa via a mais curta, sobrevêm a experiência e desco-
bre que nessa direcção não há via. A verdade é que é preciso passar
pelo heroísmo para chegar ao amor. O heroísmo, aliás, não se prega;
basta-lhe mostrar-se, e a sua simples presença poderá pôr outros homens
em movimento. É que ele próprio é, em si mesmo, regresso ao movi-
mento, e emana de uma emoção - comunicativa como toda a emo-
ção - aparentada com o acto criador. A religião exprime esta verdade
à sua maneira dizendo que é em Deus que amamos os outros homens.
E os grandes místicos declaram ter o sentimento de uma corrente
que iria da sua alma a Deus e voltaria a descer de Deus até ao género
humano.

57
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA R E L I G I Ã O

Que não venham falar de obstáculos materiais à alma que assim se


liberta! Ela não responderá que o obstáculo deve ser contornado, nem
que pode ser forçado: declará-lo-á inexistente. Da sua convicção moral
não se pode dizer que mova montanhas, porque não vê montanhas a
mover. Enquanto raciocinarmos acerca do obstáculo, este ficará onde está;
e enquanto o olharmos, decompô-lo-emos em partes que será preciso supe-
rar umas atrás das outras; o seu pormenor pode ser ilimitado; nada nos
diz que possamos esgotá-lo. Mas podemos rejeitar o conjunto, em bloco,
se o negarmos. Assim procedia o filósofo que provava o movimento an-
dando; o seu acto era a negação pura e simples do esforço, sempre a
recomeçar e por conseguinte impotente, que Zenão julgava necessário
para cobrir um a um os pontos do intervalo. Aprofundando este novo
aspecto da moral, descobriríamos nele o sentimento de uma coincidência,
52 real ou^lusória, com o esforço gerador da vida. Visto de fora, o trabalho
da vida presta-se, em cada uma das suas obras, a uma análise que prosse-
guisse sem fim; nunca teremos acabado de descrever a estrutura de um
olho como o nosso. Mas aquilo a que chamamos um conjunto de meios
utilizados não é na realidade mais que uma série de obstáculos derrubados;
o acto da natureza é simples e a complexidade infinita do mecanismo
que ela parece ter construído peça a peça para obter a visão não é mais
que o entrecruzar-se sem fim dos antagonismos que se neutralizaram
uns aos outros, a fim de abrirem passagem ao exercício, indivisível, da
função. Assim, uma mão invisível que mergulhasse em limalha de ferro e
cujo acto simples surgiria, se tivéssemos apenas em conta o que vemos,
como uma inesgotável série de acções e de reacções que os pedaços de
limalha exerceriam uns sobre os outros, a fim de se equilibrarem recipro-
camente. Se tal é o contraste entre a operação real da vida e o aspecto que
assume para os sentidos e para a inteligência que o analisam, será sur-
preendente que uma alma que já não conhece obstáculo material se sinta,
sem razão ou com ela, em coincidência com o próprio princípio da vida?
Qualquer que seja a heterogeneidade que possamos começar por
encontrar entre o efeito e a causa, e embora seja grande a distância que
vai de uma regra de conduta a uma afirmação sobre o fundo das coisas, é
sempre num contacto com o princípio gerador da espécie humana que se
tem bebido a força de amar a humanidade. Falo, bem entendido, de um
amor que absorve e aquece a alma inteira. Mas um amor mais morno,
atenuado e intermitente, só pode ser também uina irradiação do primeiro,


A OBRIGAÇÃO MORAL

quando não é a imagem, mais pálida e mais fria ainda, que dele ficou na
inteligência ou se depositou na linguagem. A moral compreende assim 53
duas partes distintas, das quais uma tem a sua razão de ser na estrutura
original da sociedade humana, e a outra a sua explicação no princípio
explicativo dessa estrutura. Na primeira, a obrigação representa a pressão
que os elementos da sociedade exercem uns sobre os outros a fim de
manter a forma do todo, pressão cujo efeito é prefigurado em cada um
de nós por um sistema de hábitos que por assim dizer a precedem: este
mecanismo, cujas peças são, cada um delas, um hábito mas cujo conjunto
é comparável a um instinto, foi preparado pela natureza. Na seguada, há
ainda obrigação, se assim se quiser, mas a obrigação é a força de uma
aspiração ou de um impulso, do próprio impulso que desembocou na
espécie humana, na vida social, num sistema de hábitos mais ou menos
assimilável ao instinto: o princípio de propulsão intervém directamente,
1
e já não por intermédio dos mecanismos que montara, nos quais proviso-
riamente se detivera. Em suma, para resumirmos tudo o que precede,
diremos que a natureza, dispondo a espécie humana ao longo do curso
da evolução, a quis sociável, como quis as sociedades de formigas e de
abelhas; mas uma vez que estava presente a inteligência, a manutenção
da vida social devia ser confiada a um mecanismo quase inteligente: inte-
ligente, na medida em que cada peça podia ser remodelada pela inteligên-
cia humana, instintivo, porém, na medida em que o homem não podia,
sem deixar de ser um homem, rejeitar o conjunto das peças e já não
aceitar um mecanismo conservador. O instintivo cedia provisoriamente
lugar a um sistema de hábitos, cada um dos quais se tornava contingente,
sendo necessária apenas a sua convergência no sentido da conservação
da sociedade, e trazendo esta necessidade o instinto consigo. A neces-
sidade do todo, sentida através da contingência das partes, é ïquilo a 54
que chamamos a obrigação moral em geral; as partes, aliás, apenas são
contingentes aos olhos da sociedade; para o indivíduo, no qtial a socie-
dade inculca hábitos, a parte é necessária do mesmo modo que o. todo.
Agora, o mecanismo querido pela natureza era simples, como as socie-
dades originalmente constituídas por ela. Teria a natureza previsto o
enorme desenvolvimento e a complexidade indefinida de sociedades
como as nossas? Comecemos por nos entender sobre o sentido da questão.
Não afirmamos que a natureza tenha propriamente querido ou previsto
o que quer que seja. Mas temos o direito de proceder como o biólogo que
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA R E L I G I Ã O

fala (Je uma intenção da natureza sempre que atribui uma função a um
órgão: exprime simplesmente assim a adequação do órgão à função.
A humanidade bem pode ter-se civilizado, a sociedade bem pode ter-se
transformado, mas o que pretendemos é que as tendências de certo modo
orgânicas da vida social continuaram a ser o que eram na origem. Pode-
mos redescobri-las, observá-las. O resultado desta observação é claro: é
para sociedades simples e fechadas que a estrutura moral, original e fun-
damental do homem, está feita. Estas tendências orgânicas não aparecem
claramente à nossa consciência, concordo. Mas, nem por isso constituem
menos o que há de mais sólido na obrigação. Por complexa que a nossa
moral se tenha tornado, embora se tenha reforçado com tendências que
não são simples modificações das tendências naturais e que não vão na
direcção da natureza, é a estas tendências naturais que chegamos quando
desejamos, de tudo o que essa massa fluida contém de obrigação pura,
obter um precipitado. Tal é, pois, a primeira metade da moral. A outra não
entrava no plano da natureza. Pelo que entendemos que a natureza pre-
vira uma certa extensão da vida social através da inteligência, mas uma
extensão limitada. Não podia querer que esta extensão fosse ao ponto de
pôr em perigo a estrutura original. Aliás, são numerosos os casos em que
o homem enganou assim a natureza, tão sábia e contudo tão ingénua.
A natureza entendia, decerto, que o homem procriasse sem fim como
todos os outros seres vivos; tomou as precauções mais minuciosas no
sentido de assegurar a conservação dã espécie através da multiplicação
dos indivíduos; não previra pois, ao dar-nos a inteligência, que esta des-
cobriria depressa maneira de separar o acto sexual das suas consequên-
cias, e que o homem poderia abster-se de recolher sem renunciar ao pra-
zer de semear. É num sentido completamente diferente que o homem
engana a natureza quando prolonga a solidariedade social em fraterni-
dade humana; mas engana-a ainda, porque as sociedades cujo desenho se
encontrava pré-formado na estrutura original da alma humana, e cujo
plano é ainda perceptível nas tendências inatas e fundamentais do
homem actual, exigiam que o grupo fosse estreitamente unido, mas que
entre um grupo e outro houvesse uma hostilidade virtual: era preciso
que se estivesse sempre preparado para o ataque ou para a defesa. Não,
decerto, que a natureza tenha querido a guerra pela guerra. Os grandes
adestradores da humanidade, que forçaram as barreiras da cidade,
parecem ter-se desse modo recolocado na direcção do impulso vital /élan

6o
A OBRIGAÇÃO M O R A L

vitalj. Mas este impulso próprio da vida é finito como ela. Ao longo de
todo o seu caminho depara com obstáculos, e as espécies sucessivamente
aparecidas são as resultantes desta força e de forças antagónicas: aquela
impele em frente, estas fazem com que se ande à volta do mesmo lugar.
O homem, ao sair das mãos da natureza, era um ser inteligente e sociável,
estando a sua sociabilidade calculada para desembocar em pequenas se
sociedades, e destinando-se a sua inteligência a favorecer a vida indivi-
dual e a vida do grupo. Mas a inteligência, dilatando-se através do seu
esforço próprio, assumiu um desenvolvimento inesperado. Libertou os
homens de servidões às quais estavam condenados pelas limitações da
sua natureza. Em tais condições, não era impossível a alguns de entre
eles, particularmente dotados, reabrir o que fora fechado e fazer, pelo
menos por eles mesmos, o que teria sido impossível à natureza fazer pela
humanidade. O seu exemplç^apabou por arrastar os outros, pelo menos
em imaginação. A vontade tem o seu génio, como" o pensamento, e o
génio desafia toda a previsão. Por intermédio destas vontades geniais, o
impulso de vida que atravessa a matéria obtém desta, para o futuro da
espécie, promessas que não podiam estar sequer em questão quando
a espécie se constituía. Passando da solidariedade social à fraternidade
humana, rompemos, pois, com uma certa natureza, mas não com toda a
natureza. Poderíamos dizer, afastando do seu sentido as expressões de
Espinosa, que é para regressar à Natureza naturante que nos desligamos
da Natureza naturada.
Entre a primeira moral e a segunda há, portanto, toda a distância que
vai do repouso ao movimento. A primeira supõe-se imutável. Se muda,
esquec.e imediatamente que mudou ou não confessa a mudança. A forma
que apresenta seja em que momento for pretende ser a forma definitiva.
Mas a;outra é um ímpeto, uma exigência de movimento; é mobilidade
em princípio. Seria assim que provaria - seria apenas assim que poderia
até mesmo começar por definir - a sua superioridade. Se nos dermos a
primeira, não poderemos fazer sair dela a segunda, do mesmo modo que 57
não poderemos extrair o movimento de uma ou de várias posições de um
móbil. Pelo contrário, o movimento envolve a imobilidade, sendo cada
posição atravessada pelo móbil concebida, e até mesmo percebida, como
uma paragem virtual. Mas não há necessidade de uma demonstração
em regra: a superioridade é vivida antes de ser representada, e não pode-
ria, aliás, ser a seguir demonstrada se não começasse por ser sentida.

61
AS DUAS FONTES DA M O R A L F. DA RELIGIÃO

É uma diferença de tom vital. Aquele que pratica regularmente a moral


da cidade experimenta esse sentimento de bem-estar, comum ao indi-
víduo e à sociedade, que manifesta a interferência das resistências mate-
riais umas com as outras. Mas a alma que se abre, e a cujos olhos caem
os obstáculos materiais, dá-se plenamente à alegria. Prazer e bem-estar
são alguma coisa, a alegria é mais. Porque não estava contida neles, en-
quanto eles se encontram virtualmente nela. Com efeito, são paragem ou
movimento que não sai do mesmo lugar, ao passo que ela é marcha em
frente.
Daí que a primeira moral seja relativamente fácil de formular, mas
não a segunda. Com efeito, a nossa inteligência e a nossa linguagem inci-
dem sobre coisas; estão menos à vontade para representar transições ou
-progressos. A moral do Evangelho é essencialmente a da alma aberta:
não se terá feito notar com razão que raia o paradoxo, e até mesmo a
contradição, nas suas recomendações mais precisas? Se a riqueza é um
mal, não lesaremos os pobres abandonando-lhes o que possuímos? Se
aquele que recebe uma bofetada estende a outra face, em que se torna a
justiça sem a qual não há, todavia, caridade? Mas o paradoxo cai, a con-
tradição dissipa-se, quando consideramos a intenção destas máximas, que
58 é a de induzir um estado de alma. Não é pelos pobres, mas por si que o
rico deve proceder ao abandono da sua riqueza: feliz o pobre "em espí
rito"! O que é belo não é sentirmo-nos privados, nem tão-pouco privarmo-
-nos, é não sentirmos a privação. O acto pelo qual a alma se abre tem por
efeito alargar e elevar à pura espiritualidade uma moral aprisionada e
materializada em fórmulas: esta torna se então, por referência à outra,
qualquer coisa como um instantâneo tirado a partir de um movimento.
Tal é o sentido profundo das oposições que se sucedem no Sermão da
Montanha: "Foi-vos dito quê... E eu digo-vos que..." De um lado o fechado,
do outro o aberto. A moral cbrrente não é abolida; mas apresenta-se como
um momento ao longo de um progresso. Não se renuncia ao antigo mé-
todo; mas este é integrado num método mais geral, como acontece
quando o dinâmico reabsorve em si o estático, que se torna um caso par-
ticular. Seria então necessária, em rigor, uma expressão directa do movi-
mento e da tendência; mas se quisermos ainda - e é bem preciso que
assim seja - traduzi-los na língua do estático e do imóvel, teremos fórmu-
las que raiam a contradição. Compararíamos, assim, o que há de imprati
cável em certos preceitos evangélicos com o que apresentaram de ilógico

62
A OBRIGAÇÃO MORAL

as primeiras explicações da diferencial. De facto, entre a moral antiga e o


cristianismo descobriríamos urna relação do mesmo género da que existe
entre a antiga matemática e a nossa.
A geometria dos antigos pôde fornecer soluções particulares que eram
t o m o aplicações antecipadas dos nossos métodos gerais. Mas não
apreendeu esses métodos; não compareceu o impulso que poderia fazer
saltar do estático para o dinâmico. Levava-se pelo menos tão longe quanto 59
possível a imitação do dinâmico pelo estático. Temos uma impressão deste
género quando confrontamos a doutrina dos estóicos, por exemplo, com
a moral cristã. Proclamavam-se cidadãos do mundo e acrescentavam que
todos os homens são irmãos, uma vez que vêm do mesmo Deus. Eram
iquase as mesmas palavras; mas não encontraram o mesmo eco, porque
não tinham sido ditas com o mesmo acento. Os estóicos apresentaram
exemplos muito belos. Se não conseguiram arrastar atrás de si a humani-
dade, foi porque o estoicismo é essencialmente lima filosofia. O filósofo • •
que se apega a uma doutrina tão elevada, e que se insere nela, anima-a
sem dúvida praticando-a: assim, o amor de Pigmalião insuflou vida à
estátua uma vez esculpida esta. Mas estamos muito longe do entusiasmo
que se propaga de alma em alma, indefinidamente, como um incêndio.
Uma tal emoção poderá evidentemente explicitar-se em ideias constituti-
vas de uma doutrina, e até mesmo em várias doutrinas diferentes que
não terão outra semelhança entre elas além de uma comunidade de espí-
rito; mas precede a ideia em vez de a seguir. Para encontrarmos qualquer
coisa assim na antiguidade clássica, não seria aos estóicos que devería-
mos dirigir-nos, mas antes ao que foi o inspirador de todas as grandes
filosofias da Grécia sem ter introduzido doutrina, sem nada ter escrito, a
Sócrates. Sócrates, é certo, põe acima de tudo o mais a actividade racio-
nal, e mais especialmente a função lógica do espírito. A ironia que pas
seia consigo destina-se a afastar as opiniões que não sofreram a prova da
reflexão e a envergonha las, por assim dizer, pondo-as em contradição
consigo mesmas. O diálogo, tal como ele o entende, deu origem à dialéc-
tica platónica e posteriormente ao método filosófico, essencialmente.. 60 .
racional, que continuamos v ainda a praticar. 0 objecto desse diálogo é
desembocar em conceitos que serão encerrados em def inições; estes con-
ceitos tornar-se-ão as Ideias.platónicas; e a teoria das ideias, por sua vez,
servirá de tipo às construções, também elas racionais por essência, da
metafísica tradicional. Sócrates vai mais longe ainda; da própria virtude

63
AS DUAS FONTES DA M O R A L £ DA R E L I G I Ã O

faz uma ciência; identifica a prática do bem com o conhecimento que


dele se possui; prepara assim a doutrina que absorverá a vida moral no
exercício racional do pensamento. Nunca a razão terá sido colocada mais
alto. Tal é pelo menos o que começa por nos impressionar. Mas vejamos
mais de perto. Sócrates ensina porque o oráculo de Delfos falou. Recebeu
uma missão. É pobre, e pobre deve continuar. Tem de se misturar com o
povo, de se fazer povo, de fazer com que a sua linguagem adira ao falar
popular. Nada escreverá, para que o seu pensamento se comunique vivo
a espíritos que o levarão a outros espíritos. É insensível ao frio e à fome,
de maneira nenhuma um asceta, mas libertou-se da necessidade e eman-
cipou se do seu corpo. Acompanha-o um "demónio", que faz ouvir a sua
voz quando uma advertência é necessária. A sua crença neste "signo
demónico" é tal que morre de preferência a deixar de segui-lo: se recusa
defender-se perante o tribunal popular, se avança ao encontro da sua con-
denação, é porque o demónio nada disse pari o afastar desse caminho.
Em suma, a sua missão é de ordem religiosa e mística, no sentido que
hoje damos a estas palavras; o seu ensino, tão perfeitamente racional,
encontra-se suspenso de qualquer coisa que parece superar a pura razão.
Mas não nos daremos conta de que assim é através do seu próprio ensino?
Se as declarações inspiradas, ou em todo o caso líricas, que profere em
61 numerosas passagens dos diálogos de Platão não fossem de Sócrates, mas
do próprio Platão, se a linguagem do mestre tivesse sido sempre a que
Xenofonte lhe atribui, compreenderíamos o entusiasmo com que infla-
mou os seus discípulos e que atravessou os tempos? Estóicos, epicuristas,
cínicos, todos os moralistas da Grécia derivam de Sócrates, - não só, como
se tem dito sempre, porque desenvolvem nas suas diversas direcções a
doutrina do mestre, mas ainda e sobretudo porque lhe tomam de emprés-
timo a atitude que ele criou e que se mostrava de resto bem pouco em
conformidade cclm o génio grego, a atitude do Sábio. Quando o filósofo,
encerrando-se na sua sabedoria, se desliga do comum dos homens, quer
para os ensinar, quer para lhes servir de modelo, quer simplesmente para
•se ocupar do seu trabalho de aperfeiçoamento interior, é Sócrates vivo
que comparece, Sócrates agindo por meio do incomparável prestígio da
sua pessoa. Vamos mais longe. Disse-se que Sócrates trouxera a filosofia
do céu para a terra. Mas compreenderíamos a sua vida, e sobretudo a sua
morte, se a concepção da alma que Platão lhe atribui no Fédon não tivesse
sido a sua? Mais geralmente, os mitos que encontramos nos diálogos de

64
A OBRIGAÇÃO M O R A L

Platão e que se referem à aima, à sua origem, à sua inserção no corpo,


farão outra coisa que não seja registar em termos de pensamento plató-
nico uma emoção criadora, a emoção imanente ao ensino moral de
Sócrates? Os mitos, e o estado de alma socrático para o qual estão do
mesmo modo que o programa explicativo está para a sinfonia, fotam
mantidos ao lado da dialéctica platónica; atravessam subterraneamente
a metafísica grega e reaparecem ao ar livre com o neo-platonismo alexan-
drino, talvez com Amónio, em todo o caso com Plotino, que se declara
continuador de Sócrates. À alma socrática forneceram um corpo de dou-
trina comparável ao que animou o espírito evangélico. As duas metafísi- 62
cas, a despeito da sua semelhança ou talvez por causa dela, travaram bata-
lha, antes de uma absorver o que havia de melhor na outra: por um tempo
o mundo pôde perguntar-se se iria tornar-se cristão ou neo-platónico.Era
Sócrates que fazia frente a Jesus. Para nos atermos a Sócrates, a questão é
a de saber o que teria este génio tão prático feito numa outra sociedade e
noutras circunstâncias, se não teria sido impressionado acima de tudo
pelo que havia de perigoso no empirismo moral do seu tempo e nas incoe-
rências da democracia ateniense, se não se teria apressado a estabelecer
os direitos da razão, se não teria assim repelido a intuição e a inspiração
de fundo, e se o grego que era não teria sufocado nele o oriental que que-
ria ser. Distinguimos a alma fechada e a alma aberta: que pretenderia
classificar Sócrates entre as almas fechadas? A ironi a percorria o ensino
socrático e o lirismo só raramente, sem dúvida, nele_explodia; mas, na
medida em que tais explosões abriram passagem a um espírito novo,
foram decisivas para o futuro da humanidade.
Entre a alma fechada e a alma aberta há a alma que se abre. Entre a
imobilidade do homem sentado, e o movimento do mesmo homem que
corre, há o seu erguer-se, a atitude que toma quando se levanta. Em suma,
entre o estático e o dinâmico observa-se em moral uma transição. Este
estado intermédio passaria desapercebido se tomássemos, em repouso, o
impulso necessário para passarmos de um salto só ao movimento. Mas
fere a atenção quando nos detemos nele, - sinal comum de uma insufi-
ciência de impulso. Digamos a mesma coisa sob uma outra forma. Vimos 63
que o puro estático, em moral, seria infra-intelectual, e o puro dinâmico
supra-intelectual. Um foi querido pela natureza, o outro é uma contri-
buição do génio humano. O primeiro caracteriza um conjunto de hábitos
que correspondem simetricamente, no homem, a certos instintos do ani

! í_ -, 65
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

mal; é menos que inteligência. O segundo é aspiração, intuição e emoção;


analisar-se-á em ideias qúe serão suas notações intelectuais e cujo detalhe
continuará indefinidamente; contém pois, como uma unidade que envol-
vesse e superasse uma multiplicidade incapaz de lhe equivaler, toda a
intelectualidade que se quiser; é mais que inteligência. Entre os dois, há a
própria inteligência. Aí teria permanecido a alma humana se se tivesse
precipitado de um sem ir até ao outro. Teria dominado a moral da alma
fechada; não teria ainda atingido, ou melhor criado, a da alma aberta.
A sua atitude, efeito de uma rectificação, tê-la-ia feito tocar o plano da
intelectualidade. Relativamente ao que acabaria de deixar, uma tal alma
praticaria a indiferença ou a insensibilidade; encontrar-se-ia na "ataraxia"
ou na "apatia" dos epicuristas e dos estóicos. Relativamente ao que encon-
tra de positivo em si, se o seu desprendimento do antigo quiser ser um
apego a qualquer coisa de novo, a sua vida seria contemplação; confor-
mar-se-ia segundo o ideal de Platão e de Aristóteles. Seja sob que aspecto
for que a consideremos, a atitude será recta, altiva, verdadeiramente digna
de admiração e, de resto, reservada a uma elite. Filosofias que partem de
princípios muito diferentes poderão coincidir com ela. A razão de ser
assim é que um único caminho leva da acção confinada num círculo à
acção que se desdobra no espaço livre, da repetição à criação, do infra-
intelectual ao supra-intelectual. Quem se detenha entre um extremo e
64 outro estará necessariamente na região da pura contemplação, e em todo
o caso praticará naturalmente, sem se ater a um e não indo até ao outro,
essa meia-virtude que é o desprendimento.
Falamos da inteligência pura, fechando-se em si mesma e julgando
que o objecto da vida é aquilo a que os antigos chamavam "ciência" ou
contemplação. Falamos, numa palavra, daquilo que caracteriza principal-
mente a moral dos filósofos gregos. Mas se não se tratasse já de filosofia
grega ou oriental, estaríamos perante a moral de toda a gente, se conside-
rássemos a inteligência enquanto simplesmente elaboradora ou coorde-
nadora dos materiais, uns infra-intelectuais e os outros supra intelectuais,
de que tratámos no presente capítulo. Para determinarmos a própria
essência do dever, destacámos de facto as duas forças que agem sobre
nós, impulsão por um lado e atracção por outro. Era necessário fazê-lo, e
foi por não o ter feito, foi por se ter atido à intelectualidade que tudo hoje
recobre, que a filosofia conseguiu mal, dir-se-ia, explicar como pode urna
moral ter domínio sobre as almas. Mas a nossa exposição condenava-se

66
A OBRIGAÇÃO MORAL.

assim, como o fizemos pressentir, a não ser mais que esquemática. O que
é aspiração tende a consolidar se tomando a forma da obrigação estrita.
0 que é obrigação estrita tende a aumentar e a alargar-se englobando a
aspiração. Pressão e aspiração marcam para isso encontro na região do .
pensamento onde se elaboram os conceitos. Do que resultam representa-
ções, muitas das quais são mistas, reunindo num mesmo conjunto aquilo
que é causa de pressão e aquilo que é objecto de aspiração. Mas outro
resultado é também perdermos de vista a pressão e a aspiração puras,
agindo efectivamente sobre a nossa vontade; já não vemos senão o con- 65
ceito no qual vieram fundir-se os dois objectos distintos aos quais uma e
outra se encontravam respectivamente ligadas. Seria este conceito a exer-
cer uma acção sobre nós. Erro que explica o fracasso das morais propria-
mente intelectualistas, quer dizer, em suma, da maior parte das teorias
filosóficas do dever. Não, decerto, que uma ideia pura não tenha influên-
cia sobre a nossa vontade. Mas esta influência rtão se exerceria com efiCá-' "*
cia a não ser que pudesse ser a única. Resiste dificilmente a influências
antagónicas ou, se delas triunfa, é porque reaparecem na sua individua-
lidade e na sua independência, desdobrando então a integralidade da sua
força, a pressão e a aspiração que tinham renunciado cada uma à sua
acção própria fazendo-se representar em conjunto por uma ideia.
Seria um longo parênteses que teríamos de abrir aqui se quiséssemos
dar a sua parte a cada uma das duas forças, uma social e a outra supra-
-social, uma de impulsão e outra de atracção, que dão a sua eficácia aos
móbeis morais. Um homem de bem dirá, por exemplo, que age por res-
peito de si, por sentimento da dignidade humana. Não se exprimiria assim,
evidentemente, se não começasse por se cindir em duas personalidades,
a que seria se se deixasse ir e aquela à qual o.ergue a sua vontade: o eu
que respeita não é o mesmo que o eu respeitado. Qual é então este último
eu? Em que consiste a sua dignidade? De onfle vem o respeito que ins- "
pira? Deixemos de lado a análise do respeito, ö'nde'descöbririamos sobré-
tudo uma necessidade de apagamento, a atitude do aprendiz perante o
mestre ou antes, para falarmos-a linguagens aristotélica, do acidente
perante a essência. Restaria então definir o eu superior perante o qual a
personalidade média se inclina. Não é duvidoso que este seja antes de
mais o "eu social", interior a cada um de nós, e do qual já dissemos uma 66
palavra. Se admitirmos, ainda que teoricamente apenas, uma "mentali-
dade primitiva" veremos nela o respeito de si coincidir com o sentimento

67
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

de unia tal solidariedade entre o indivíduo e o grupo, quer o grupo per-


maneça presente no indivíduo isolado, o vigie, o encoraje ou o ameace,
quer exija enfim ser consultado e obedecido: por trás da própria socie-
dade há potências sobrenaturais, das quais o grupo depende, e que tor-
nam a sociedade responsável pelos actos do indivíduo; a pressão do eu
social exerce-se com todas estas energias acumuladas. Aliás, o indivíduo
não obedece apenas por hábito da disciplina ou por medo do castigo:
o grupo ao qual pertence põe-se necessariamente acima dos outros, que
mais não seja para exaltar a sua coragem na batalha, e a consciência desta
superioridade de força assegura-lhe, a ele mesmo, uma força maior, junta-
mente com todas as satisfações do orgulho. É do que nos poderemos
convencer considerando urna mentalidade já mais "evoluída". Pensemos
no que entrava de orgulho, ao mesmo tempo que de energia moral, no
"Civis sum romatius": o respeito de si, num cidadão romano, devia con-
fundir-se com aquilo a que chamaríamos hoje o seu nacionalismo. Mas
não chega a ser necessário um recurso à história ou à pré-história para
vermos o respeito de si coincidir com o amor-próprio do grupo. Basta
observarmos o que se passa diante dos nossos olhos nas pequenas socie-
dades que se constituem no interior da grande, quando há homens que
se aproximam uns dos outros por meio de alguma marca distintiva que
sublinha uma superioridade real ou aparente, e que os põe à parte. Ao
respeito de si, que todo o homem professa enquanto homem, junta-se
então um respeito adicional, o do eu que é simplesmente homem para
67 um eu eminente entre os homens; todos os membros do grupo "se apre-
sentam" e se impõem assim uma "apresentação"; vemos nascer um "sen-
timento da honra" que se confunde com o espírito de corpo. Tais são as
primeiras componentes do respeito de si. Encarado nesta persp.ectiva,
que só por um esforço de abstracção hoje podemos isolar, esse respeito
de si obriga através de tudo o que de pressão social traz consigo. Agora, a
impulsão tornar-se-ia manifestamente atracção se o respeito "de sí" fosse
o de uma personalidade admirada e venerada cuja imagem traríamos em
nós e com a qual aspiraríamos a confundir-nos, como a cópia c o m o
modelo. De facto não é assim, porque a expressão bem pode evocar ape-
nas ideias de ensimesmamento [repliement sur soi-même]: nem por isso
o respeito de si deixa de ser, tanto no termo da sua evolução como na
origem, um sentimento social. Mas as grandes figuras morais que conta-
ram na história dão-se a mão por cima dos séculos, por cima das nossas

68
A OBRIGAÇÃO MORAL

cidades humanas: conjuntamente compõem uma cidade divina onde nos


convidam a entrar. Não podemos deixar de ouvir distintamente a sua
voz; o apelo não deixa de ser lançado; alguma coisa lhe responde no fundo
da nossa alma; da sociedade real a que pertencemos transporta m o-n o s
pelo pensamento à sociedade ideal; até ela sobe a nossa homenagem
quando nos Ehclinamos perante a dignidade humana em nós, quando
declaramos agir por respeito de nós mesmos. É verdade que a acção exer-
cida sobre nós por pessoas tende assim a tornar-se impessoal. E este
carácter impessoal acentua-se ainda niais aos nossos olhos quando os
moralistas nos expõem que é a razão, presente em cada um de nós, que
faz a dignidade do homem. Deveríamos, todavia, entender-nos acerca
deste ponto. Que a razão seja a marca distintiva do homem, ninguém 68
contestará. Que tenha um valor eminente, no sentido em que uma bela
obra de arte tem valor, concedê-lo-emos de igual modo. Mas é preciso
explicar porqtie pode ela comandar absolutamente, é como se f a z então -.
obedecer. A razão não pode mais que alegar razões, às quais parece ser
possível opor sempre outras razões. Não digamos, pois, simplesmente
que a razão, presente em cada um de nós, se impõe ao nosso respeito e
obtém a nossa obediência em virtude do seu valor eminente. Acrescente-
mos que há por trás dela os homens que tornaram a humanidade divina
e que imprimiram assim um carácter divino à razão, atributo essencial
da humanidade. São elas que nos atraem para uma sociedade ideal, ao
mesmo tempo que cedemos à pressão da sociedade real.
Todas as noções morais se compenetram, mas nenhuma delas é mais
instrutiva que a de justiça, primeiro porque engloba a maior parte das
outras, em seguida porque se traduz, apesar da sua maior riqueza, por
fórmulas mais simples, enfim e sobretudo porque nela vemos encaixa-
rem-se uma na outra as duas formas da obrigação. A justiça sempre
evocou ideias de igualdade, de .proporção,, de compensação. Pensare, de.
• onde derivam "compensação" e "recompensa y tem o sentido de pesar;- -
a justiça era representada com uma balança. Equidade significa igual-
d a d e . Regra* e regramento,.rectidão e,regularidade, são palavras que
designam a linha recta. Estas referências à aritmética e à geometria são
características da justiça através do curso da sua história. A noção deve
ter-se desenhado já com precisão no quadro das trocas. Por mais rudi-

* Lembre-se que, do francês, règle tanto pode traduzir-se por "regra" como par "régua"
(N. do T.).

I 69
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

mental" que seja uma sociedade, a troca directa é uma das suas práticas;
e aquela não pode ser praticada sem que se pergunte se os dois objec-
tos trocados são realmente do mesmo valor, quer dizer, trocáveis contra
um terceiro. Que esta igualdade de valor seja erigida em regra, que a
regra se insira nos usos do grupo, que o "todo da obrigação", como nós
dizíamos, venha assim poisar-se sobre ela: eis já a justiça sob a sua forma
precisa, com o seu carácter imperioso e as ideias de igualdade e de reci-
procidade que se lhe associam. - Mas não se aplicará apenas às trocas de
coisas. Gradualmente estender-se-á a relações entre pessoas, sem poder
contudo, durante muito tempo ainda, desligar-se por completo da consi-
deração de coisas e da troca. Consistirá, sobretudo, então em regularizar
impulsões naturais introduzindo nelas a ideia de uma reciprocidade não
menos natural, por exemplo a expectativa de um prejuízo equivalente ao
que se terá podido causar. Nas sociedades primitivas, os atentados contra
as pessoas só excepcionalmente interessam a comunidade, quando o acto
consumado a pode atingir atraindo sobre ela a cólera dos deuses. A pessoa
lesada, ou a sua família, só tem então de seguir o seu instinto, reagir
segundo a natureza, vingar-se; e as represálias poderiam ser despropor-
cionais à ofensa se esta troca de procedimentos maus não surgisse como
vagamente submetida ã regra geral das trocas. É verdade que a querela
correria o risco de se eternizar, a vendetta continuaria a desenrolar-se
sem f i m entre as duas famílias, se uma delas não se decidisse a aceitar
uma indemnização pecuniária: afirmar-se-á então com nitidez a ideia de
compensação, já implicada nas de troca e de reciprocidade. - Que a
própria sociedade se encarregue agora de ferir, de reprimir os actos de
violência sejam estes quais forem, e dir-se-á que é ela que exerce a justiça,
caso seja esse nome já a designar a regra a que se referem, para pôr f i m
aos seus diferendos, os indivíduos ou as famílias. Ape!nas será, aliás, me-
dida a pena pela gravidade da ofensa, uma vez que, sern isso, não teríamos
qualquer interesse em nos determos depois de termos começado a fazer
mal; o risco de chegarmos às últimas consequências não seria maior. Olho
por olho, dente por dente, o dano sofrido deverá ser sempre igual ao
dano causado. - Mas um olho valerá sempre um olho, e um dente sempre
um dente? Tem de se ter em conta tanto a qualidade como a quantidade:
a lei de talião só será aplicada no interior de uma classe; o mesmo dano
sofrido, a mesma ofensa recebida, exigirá uma compensação mais forte
ou reclamará uma pena mais grave no caso de a vítima pertencer a uma

70
A OBRIGAÇÃO M O R A L

classe mais alta. Em suma, a igualdade pode incidir sobre uma relação e
tornar-se uma proporção. A justiça bem pode compreender uma maior
variedade de coisas que continuará a definir-se da mesma maneira.
- Também não mudará de fórmula, num estado de civilização mais avan-
çado, quando se estender às relações entre governantes e governados e,
mais geralmente, entre categorias sociais: numa situação de facto introdu-
zirá considerações de igualdade ou de proporção que farão dela qualquer
coisa de matematicamente definido e, por isso mesmo, de aparentemente
definitivo. Não é duvidoso, com efeito, que a força tenha estado na origem
da divisão das antigas sociedades em classes subordinadas umas às outras.
Mas uma subordinação habitual acaba por parecer natural e procura uma
explicação para si mesma: se a classe inferior aceitou a sua situação
durante tempo bastante, poderá continuar a consentir naquela depois
ainda de se ter tornado virtualmente a mais forte, porque atribuirá aos
dirigentes uma superioridade de valor. Esta superioridade será de resto
real se esses dirigentes tiverem aproveitado as facilidades com que depa-
raram para se aperfeiçoarem intelectual e moralmente; mas poderá tam- 71
bém não ser mais que uma aparência cuidadosamente mantida. Seja
como for, real ou aparente, bastar-lhe-á durar para parecer congénita: a
superioridade inata deve decerto existir, dir-se-á, uma vez que existe o
privilégio hereditário. A natureza, que quis sociedades disciplinadas, pre-
dispôs o homem para essa ilusão. Platão partilhava-a, pelo menos no que
se refere à sua república ideal. Se entendermos assim a hierarquia das
classes, os cargos e os benefícios serão tratados como uma espécie de
massa comum que será depois repartida entre os indivíduos segundo o
seu valor e, por conseguinte, segundo os serviços que prestam: a justiça
conserva a sua balança; mede e proporciona. - Desta justiça que não pode
exprimir-se em termos utilitários, mas que nem por isso permanece
menos fiel às suas origens mercantis, como passar à que não implica
nem trocas nem serviços, sendo a afirmação pura e simples do direito
inviolável e da incomensurabilidade da pessoa com todos os valores?
Antes de respondermos a esta questão, admiremos a virtude mágica da
linguagem, quero eu dizer o poder que uma palavra confere a uma ideia
nova, quando se alarga de modo a significá-la depois de se ter apHcado a
um objecto preexistente, de modificar este último e de retroactivamente
influenciar o passado. Seja como for que representemos a transição da
justiça relativa para a justiça absoluta, e tenha-se esta operado em várias

71
i
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

vezes ou de um golpe só, o certo é que houve criação. Sobreveio qualquer


coisa que teria podido não ser, que não teria sido sem certas circunstân-
cias, sem certos homens, sem um certo homem talvez. Mas em vez de
pensarmos no novo, que se apoderou do antigo para o englobar num
72 todo imprevisível, preferimos encarar o antigo como uma parte desse
todo que teria então virtualmente preexistido: as concepções da justiça
que se sucederam em sociedades antigas não teriam sido, pois, mais que
visões parciais, incompletas, de uma justiça integral que seria precisa
mente a nossa. Inútil analisar detalhadamente este caso particular de uma
ilusão muito geral, pouco notada pelos filósofosj que viciou bom número
de doutrinas metafísicas e que põe à teoria do conhecimento problemas
insolúveis. Digamos apenas que se liga ao noâso hábito de considerar
todo o movimento em frente como o retraimento progressivo da distân-
cia entre o ponto de partida (que é efectivamente dado), e o ponto de
chegada, que não exisfe como estação a não ser quando o móbil escolheu
deter-se nele. Pelo facto de poder sempre ser encarado assim quando atin-
giu o seu termo, não se segue que o movimento tenha consistido em
aproximar-se desse termo: um intervalo do qual só existe ainda um extre-
mo não pode diminuir pouco a pouco, uma vez que não é ainda intervalo;
terá diminuído pouco a pouco quando o móbil tiver criado, pela sua para-
gem real ou virtual, um outro extremo e nós o considerarmos retrospec-
tivamente, ou até mesmo simplesmente quando seguirmos o movimento
no seu progresso, reconstituindo-o de antemão desse modo ao recuar.
Mas é disso que não nos damos conta, as mais das vezes: pomos nas
próprias coisas, sob a forma de uma preexistência do possível no real,
esta previsão retrospectiva. A ilusão constitui o fundo de múltiplos proble-
mas filosóficos, cujo modelo nos foi fornecido pela Dicotomia de Zenão.
E é ela que encontramos em moral, quando as formas mais amplas da
73 justiça relativa são definidas como aproximações crescentes da justiça
absoluta. Quando muito deveríamos dizer que uma vez estabelecida esta,
aquelas podem ser consideradas como outras tantas estações ao longo de
uma estrada que, traçada retrospectivamente por nós, a ela conduziria.
Mas seria ainda preciso acrescentar que não houve aproximação gradual,
mas, a um certo momento, salto brusco. - Seria interessante determinar-
-se o ponto preciso onde o saltus se produziu'. E seria não menos instru-
tivo investigar como, uma vez concebida, sob uma forma de resto vaga, a
justiça absoluta permaneceu por tanto tempo no estado de ideal respei-

72
A OBRIGAÇÃO MORAL.

tado, que estava fora de questão realizar. Digamos apenas, no que se refere
ao primeiro ponto, que as antigas desigualdades de classe, primitivamente
impostas sem dúvida pela força, admitidas depois como desigualdades
de valor e de serviços prestados, se vêem cada vez mais submetidas à
prítica da classe inferior: os dirigentes valem de resto cada vez.menos,
porque, demasiado seguros de si, afrouxam a tensão interior à qual
tinham ido buscar uma maior força de inteligência e de vontade e que
havia consolidado a sua dominação. Cons erv a r se ia m, contudo, se conti-
nuassem unidos; mas, devido precisamente à tendência que os leva a
afirmarem a sua individualidade, aparecerão, mais tarde ou mais cedo,
entre eles ambiciosos que pretenderão ser os senhores e que buscarão
apoio na classe inferior, sobretudo se esta já tiver conseguido certa par-
ticipação nos assuntos: acabou-se, então, a superioridade nativa daquele
que pertence à classe superior; quebrpu-se.o encanto..É assim que as.,
aristocracias tendem a perder-se na democracia, simplesmente porque a
desigualdade política é coisa instável, como o será de resto a igualdade
política uma vez realizada, se não passar de um facto, se admitir por
conseguinte excepções, se por exemplo tolerar a escravatura no interior 74
da cidade. Mas é grande a distância que vai destes equilíbrios mecanica-
mente alcançados, sempre provisórios como o da balança nas mãos da
justiça antiga, a uma justiça como a nossa, a dos "direitos do homem", que
já não evoca ideias de relação ou de medida, mas, pelo contrário, de inco-
mensurabilidade e de absoluto! Esta justiça não comportaria uma repre-
sentação completa senão "no infinito", como dizem os matemáticos; não
se formula precisa e categoricamente num momento determinado, a não
ser por interdições; mas, no que tem de positivo, procede por criações
sucessivas, cada uma das quais é uma realização mais completa da perso-
nalidade e, por conseguinte, da humanidade. Esta realização só é possível
por intermédio das leis; implica o consentimento da sociedade. Em vão
pretenderíamos, aliás, que se faz por si mesma, pouco a pouco, em vir-
tude do estado de alma da sociedade num certo período da sua história.
É um salto em frente, que só se executa se a sociedade estiver decidida a '
tentar uma experiência; é preciso para isso que se tenha deixado conven-
cer ou pelo menos abalar; e o abalo terá sido sempre dado por alguém.
Em vão se alegará que o salto em frente não supõe atrás de si qualquer
esforço criador, que não há aqui uma invenção comparável à do artista.
Seria esquecer que a maior parte das grandes reformas levadas a cabo

73
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

começaram por parecer irrealizáveis, e que com efeito o eram. Não


podiam ser realizadas a não ser numa sociedade contando já com um
estado de alma que fosse aquele que elas deviam induzir através da sua
realização; e havia aqui um círculo do qual não se teria saído se uma ou
várias almas privilegiadas, dilatando nelas a alma social, não tivessem
quebrado o circulo arrastando a sociedade atrás de si. Ora, tal é o milagre
mesmo da criação artística. Uma obra genial, que começa por desconcer-
tar, poderá criar pouco a pouco apenas através da sua presença uma con-
cepção da arte e uma atmosfera artística que permitirão compreendê-la;
tornar-se-á então retrospectivamente genial: caso contrário, teria conti-
nuado a ser o que a princípio era, simplesmente desconcertante. Numa
especulação financeira, é o sucesso que faz com que a ideia tenha sido
boa. Há qualquer coisa do mesmo género na criação artística, sendo a
diferença que o sucesso, se acaba por chegar à obra que começara por
chocar, se liga a uma transformação do gosto público que a própria obra
opera; esta era, pois, força ao mesmo tempo que matéria; imprimiu um
impulso que o artista lhe comunicara ou, antes, o próprio impulso do
artista, invisível e presente nela. Dir-se-ia outro tanto da invenção moral
e, mais especialmente, das criações sucessivas que enriquecem cada vez
mais a ideia de justiça. Incidem sobretudo sobre a matéria da justiça, mas
modificam também a sua forma. - Para começarmos por esta, digamos
que a justiça surgiu sempre como obrigatória, mas que durante muito
tempo foi uma obrigação como as outras. Correspondia, como as outras,
a uma necessidade social; e era a pressão da sociedade sobre o indivíduo
que a tornava obrigatória. Nestas condições, uma injustiça não era nem
mais nem menos chocante que uma outra infracção à regra. Não havia
justiça para os escravos, ou tratava-se de uma justiça relativa, quase facul-
tativa. A salvação do povo nâo era apenas a lei suprema, como continuou
de resto a ser; era além disso proclamada como tal, ao passo que hoje já
não ousaríamos erigir em princípio que ela justifique a injustiça, ainda
que desse princípio aceitemos esta ou aquela consequência. Consultemo-
-nos sobre este ponto; ponhamos a célebre questão: "Que faríamos se
soubéssemos que para a salvação do povo, para a própria existência da
humanidade, há algures um homem inocente, que está condenado a sofrer
torturas eternas?" Talvez consentíssemos sob a condição de um filtro
mágico que nos fizesse esquece Io, de modo a que nunca mais soubés-
semos fosse o que fosse do assunto; mas se tivéssemos de o saber, de

74
A OBRIGAÇÃO MORAL.

pensar no caso, de nos dizermos que havia um homem suportando suplí-


cios atrozes para nos tornar possível existirmos, que tal era uma das condi-
ções fundamentais da existência em geral - ah, não! Antes aceitarmos que
nada mais continue a existir, antes deixarmos explodir o planeta! Que se
passou então? Como foi que a justiça emergiu da vida social, à qual era
vagamente interior, para passar a planar acima dela, acima de tudo o mais, - 1
categórica e transcendente? Recordemos o tom e o timbre dos profetas
de Israel. É a sua própria voz que ouvimos quando uma grande injustiça
foi cometida e admitida. Do fundo dos séculos, ei-los que levantam o seu
protesto. Desde o seu tempo, é certo que a justiça alargou singularmente
o seu âmbito. A que os profetas pregavam referia-se acima de tudo a
Israel; a sua indignação contra a injustiça era a cólera do próprio Javé
contra o seu povo desobediente ou contra os inimigos desse povo eleito.
Se algum de entre eles, como Isaías, pôde pensar numa justiça universal,
foi porque Israel, que Deus distinguira entre os povóf, que um pacto liga- <->.
va a Deus, se elevava tão acima da restante humanidade que cedo ou
tarde seria tomado por modelo. Deram em todo o caso à justiça o carácter
violentamente imperioso que ela conservou, que a partir de então impri-
miu numa matéria indefinidamente alargada. - Mas estes alargamentos
não se fizeram por si sós. A cada uma deles o historiador suficientemente n
informado atribuiria um nome próprio. Cada uma deles foi uma criação,
e a porta continuará para sempre aberta a criações novas. O progresso
que foi decisivo para a matéria da justiça, como o profetismo fora para a
forma, consistiu na substituição de uma república universal, com-
preendendo todos os homens, à que se detinha nas fronteiras da cidade,
e que na própria cidade se limitava aos homens livres. Tudo o mais foi
daí que veio, porque se a porta continuou aberta a novas criações, e assim
ficará provavelmente para sempre, era contudo preciso que se abrisse.
Não nos parece duvidèso -que este segundo progresso, a passagem do

fechado ao aberto, se tenha devido ao-cristianismo,-como o primeiro se


devera ao profetismo judaico. Ter-se-ia podido consumar por intermédio
da filosofia pura? Nada é mais instrutivo do .que .ver como os filósofos o
raiaram, o tocaram e, todavia, falharam. Deixemos de lado Platão, que de-
certo inclui entre as Ideias supra-sensíveis a do homem: o resultado não
seria que todos os homens eram da mesma essência? Daí à ideia de que
todos tinham um igual valor enquanto homens, e de que a comunidade
de essência lhes conferia os mesmos direitos fundamentais, havia apenas

75
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

74
um passo. Mas o passo nâo foi dado. Teria sido necessário condenar a
escravatura, renunciar à ideia grega segundo a quai os estrangeiros, sendo
bárbaros, não podiam reivindicar direito algum. Tratar-se-ia, aliás, de uma
ideia propriamente grega? Encontramo-la em estado implícito em toda a
parte onde o cristianismo nâo penetrou, tanto entre os modernos como
entre os antigos. Na China, por exemplo, surgiram doutrinas morais de
extrema elevação, mas que não se deram a preocupação de legislar para a
humanidade; embora não o digam, só se interessam de facto pela comuni-
dade chinesa. Todavia, antes do cristianismo, houve o estoicismo: filósofos
proclamaram que todos os homens são irmãos, e que o sábio é cidadão
do mundo. Mas estas fórmulas eram as de um ideal concebido, e concebi-
do talvez como irrealizável. Não vemos que nenhum dos grandes estóicos,
incluindo aquele que foi imperador, tenha julgado possível abater a bar-
reira entre o homem livre e o escravo, entre o cidadão romano e o bárbaro.
Foi preciso esperar pelo cristianismo para que a ideia de fraternidade
universal, que implica a igualdade dos direitos e a inviolabilidade da pes-
soa, se tornasse actuante. Dir-se-á que a acção foi muito lenta: decorreram
dezoito séculos, com efeito, antes de os Direitos do Homem terem sido
proclamados pelos puritanos da América, seguidos pouco depois pelos
homens da Revolução Francesa. Nem por isso deixara de começar já com
o ensinamento do Evangelho, prosseguindo a partir de então indefi-
nidamente: uma coisa é um ideal simplesmente apresentado aos homens
por sábios dignos de admiração, outra aquele que foi lançado mundo
fora numa mensagem carregada de amor, que invocava o amor. Para dizer
a verdade, já não se tratava aqui de uma sabedoria definida, inteiramente
formulável em máximas. Indicava-se antes uma direcção, introduzia-se
um método; quando muito designava-se um fim que não seria mais que
provisório e que exigia, por conseguinte, um esforço incessantemente
renovado. Este esforço devia necessariamente ser, pelo menos no caso de
alguns, um esforço de criação. O método consistia em supor possível o
que é efectivamente impossível numa sociedade dada, na representação
do que daí resultaria para a alma social, e em induzir então alguma coisa
desse estado de alma através da propaganda e do exemplo: o efeito, uma
vez obtido, completaria retroactivamente a sua causa; sentimentos novos,
de resto evanescentes, suscitariam a legislação nova que parecia necessá-
ria ao seu aparecimento e que serviria depois para os consolidar. A ideia
moderna de justiça progrediu assim por meio de uma série de criações
A OBRIGAÇÃO MORAL.

individuais que foram bem sucedidas, por esforços múltiplos animados


de um mesmo impulso. - A antiguidade clássica não conhecera a propa
ganda; a sua justiça tinha a impassibilidade serena dos deuses olímpicos.
Necessidade de alargamento, ardor de propagação, impulso, movimento,
tudo isto é de origem judeo-cristã. Mas, porque se continuava a empregar
a mesma palavra, tendeu-se demasiado a crer que se tratava da mesma
coisa. Nunca o repetiremos demais: criações sucessivas, individuais e con-
tingentes, serão geralmente classificadas sob a mesma rubrica, subsumi-
das na mesma noção e chamadas pelo mesmo nome, quando cada uma
delas ocasionou a seguinte e se, retrospectivamente, aparecem como con-
tinuando-se umas às outras. Vamos mais longe. O nome não se aplicará
apenas aos termos já existentes da série assim constituída. Antecipando
o porvir, designará a série inteira, será colocado no seu termo final ou
- que digo eu? - no infinito; como o nome existe há muito tempo, supor-
-se-á igualmente existente, de há muito ternpo também e até mesmo desde
toda a eternidade, a noção todavia aberta e de conteúdo indeterminado
que ele representa; cada um dos progressos adquiridos seria então outro
tanto de algo tomado desta entidade preexistente; o real corroeria o ideal,
incorporando por fragmentos o todo da justiça eterna. - O que não é
verdade apenas para a ideia de justiça, mas para todas aquelas que se
coordenam com ela, igualdade e liberdade, por exemplo. Definimos de
bom grado o progresso da justiça por uma marcha em frente da liber-
dade e da igualdade. A definição é inatacável, mas que tiraremos dela?
Vale para o passado; é raro que possa orientar a nossa escolha quanto ao
futuro. Tomemos a liberdade por exemplo. Dizemos correntemente que 80
o indivíduo tem direito a toda a liberdade que não lese a liberdade de
outrem. Mas a outorga de uma liberdade nova, que tivesse por conse-
quência um espezinhamento de todas as liberdades umas pelas outras na
sociedadeiactuai, poderia produzir o efeito contrário numa sociedade
cujos sentimentos e costumes essa reforma modificasse. Por isso é muitas
vezes impossível dizer a priori qual é a dose de liberdade que podemos
conceder 30 indivíduo sem prejuízo para a liberdade dos seus semelhan
tes: quando a quantidade muda, a qualidade já não é a mesma. Por outro
lado, a igualdade não se obtém senão a expensas da liberdade,' pelo que
seria preciso começarmos por perguntar qual das duas é preferível. Mas
a pergunta não comporia qualquer resposta em geral; porque o sacrifício
desta ou daquela liberdade, se for livremente consentido pelos cidadãos,

77
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

continua a ser liberdade; e, sobretudo, a liberdade que resta poderá ser de


uma qualidade superior se a reforma levada a cabo no sentido da igual
dade liver por resultado uma sociedade onde se respire melhor, onde se
experimente uma maior alegria no agir. Seja como for, teremos sempre
de voltar à concepção de criadores morais, que representam pelo pensa
mento uma nova atmosfera social, um meio no qual seria melhor viver,
quero eu dizer uma sociedade tal que, se os homens fizessem a experiên-
cia dela, já não quereriam regressar ao seu antigo estado. Somente assim
se definirá o progresso moral; mas só o podemos definir retrospectiva-
mente, quando uma natureza moral privilegiada criou um sentimento
novo, semelhante a uma nova música e o comunicou aos homens impri-
mindo-lhe o seu próprio impulso. Se reflectirmos assim na "liberdade",
na "igualdade", no "respeito do direito", veremos que não há uma simples
diferença de grau, mas uma diferença radical de natureza, entre as duas
ideias de justiça que distinguimos, unia fechada, a outra abertfe. Porque a
justiça relativamente estável, fechada, que traduz o equilíbrio automático
de uma sociedade que sai das mãos da natureza, exprime-se em usos aos
quais se liga "o todo da obrigação", e este "todo da obrigação" acaba por
englobar, à medida que vão sendo admitidas pela opinião, as prescrições
da outra justiça, a que está aberta a criações sucessivas. A mesma forma
se impõe assim a duas matérias, uma fornecida pela sociedade, a outra
vinda do génio do homem. A verdade é que, praticamente, deveriam con-
fundir-se. Mas o filósofo distingui-las-á, sob pena de se enganar grave-
mente sobre o carácter da evolução social ao mesmo tempo que sobre a
origem do dever. A evolução social não é a de uma sociedade que tivesse
começado por se desenvolver segundo um método destinado a transfor-
má-la mais tarde. Entre o desenvolvimento e a transformação não há
aqui nem analogia, nem medida comum, Porque justiça fechada e justiça
aberta se incorporam em leis igualmente imperativas, que se formulam
do mesmo modo e que exteriormente se assemelham, não se segue que
devam expiicar-se da mesma maneira. Nenhum exemplo mostrará melhor
do que este a dupla origem da moral e as duas componentes da obrigação.
Está fora de dúvida que, no actual estado de coisas, a razão tenha de
aparecer como só ela imperativa, que o interesse da humanidade consista
em atribuir aos conceitos morais uma autoridade própria e uma força
intrínseca, que a actividade moral enfim, numa sociedade civilizada, seja
essencialmente racional. Como saberíamos de outro modo o que deve-

78
A OBRIGAÇÃO MORAL.

mos fazer em cada caso particular? intervêm aqui forças profundas, uma
de impulsão e outra de atracção: não podemos reportar-nos directamente
a elas sempre que há uma decisão a tomar. Seria as mais das vezes refazer
inutilmente um trabalho que a sociedade em geral por um lado, a elite da
liuntanidade por outro, fizeram por nós. Esse trabalho teve por resultado
formular regras e desenhar um ideal: será viver moralmente seguirmos
com; estas regras e conformarmo-nos com este ideal. Só assim cada um
de nós estará certo de permanecer plenamente de acordo consigo próprio:
só o racional é coerente. Só assim poderão ser comparadas entre elas as
diversas linhas de conduta; só assim poderá ser apreciado o seu valor
moral. A coisa é de tal modo evidente que mal chegámos a indicá-la;
subentendemo-la quase sempre. Mas daí resultava que a nossa exposição
permanecia esquemática e podia parecer insuficiente. No plano intelec-
tual, com efeito, todas as exigências da moral se compenetram em con-
ceitos cada um dos quais, como a mónada leibniziana, é mais ou menos
representativo de todos os outros. Acima ou abaixo deste plano encontra-
mos forças cada uma das quais, tomada isoladamente, corresponde ape-
nas a uma parte daquilo que foi projectado no plano intelectual. Como
este inconveniente do método que seguimos é incontestável, como é de
resto inevitável, como vemos que o método se impõe e como sentimos
que não pode deixar de levantar questões ao longo de toda a sua apli-
cação, entendemos, para concluir, dever caracterizá-lo de novo e defini-lo
uma vez mais, ainda que tenhamos de repetir acerca de alguns pontos,
quase nos mesmos termos, aquilo que já tivemos ocasião de dizer.
Uma sociedade humana cujos membros estivessem ligados entre si 83
como as células de um organismo ou, o que vem a ser mais ou menos a
mesma coisa, como as formigas de um formigueiro, nunca existiu, mas
os grupos da humanidade primitiva aproximavam-se decerto mais dela
do que os nossos. A natureza, ao fazer do homem um -animal-sociável, -
quis essa solidariedade estreita, afrouxando a, todavia, na medida em que
isso era necessário para que o indivíduo desdobrasse, no próprio inte-
resse da sociedade, a inteligência de.que ela .o.dotara..Tal.é. a.consta-
tação que nos limitámos a fazer na primeira parte da nossa exposição.
Seria de medíocre importância para uma filosofia moral que aceitasse
sem discussão a crença na hereditariedade do adquirido: o homem pode
ria então nascer hoje com tendências muito diferentes das dos seus ante-
passados mais longínquos. Mas atemo-nos à experiência, que nos mostra

79
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO

aa transmissão hereditária do hábito contraído uma excepção - a supor


que se produza alguma vez - e não um facto suficientemente regular,
suficientemente frequente, para determinar a longo prazo uma transfor-
mação profunda da disposição natural. Por radical que seja então a dife-
rença entre o civilizado e o primitivo, consiste unicamente naquilo que a
criança armazenou desde o primeiro despertar da sua consciência: todas
as aquisições da humanidade ao longo de séculos de civilização aí se en-
contram, ao lado dela, depostas na ciência que lhe é ensinada, na tradição,
nas instituições, nos usos, na sintaxe e no vocabulário da língua que apren-
de a falar, .bem como ainda na gesticulação dos homens que a rodeiam.
É esta camada espessa de terra vegetal que recobre hoje o rochedo da
84 natureza original. Por mais que represente os efeitos lentamente acumu-
lados de causas infinitamente variadas, nem por isso deixou de adoptar a
configuração geral do solo em que assentava. Em suma, a obrigação que
descobrimos no fundo da nossa consciência e que, com efeito, como a
palavra indica bem, nos liga aos outros membros da sociedade, é um laço
do mesmo género daquele que une umàs às outras as formigas de um
formigueiro ou as células de um organismo. É a forma que esse laço toma-
ria aos olhos de uma formiga que se tornasse inteligente à maneira de
um homem, ou de uma célula orgânica que se tornasse tão independente
nos seus movimentos como uma formiga inteligente. Falo, bem enten-
dido, da obrigação encarada como simples forma, sem matéria: é o que
há de irredutível, e de sempre presente áínda, na nossa natureza moral,
É óbvio que a matéria que se enquadra nesta forma, num ser inteligente,
é cada vez mais inteligente e coerente à medida que a civilização avança,
e que uma nova matéria sobrevêm sem cessar, não necessariamente após
um apelo directo dessa forma, mas sob a pressão lógica da matéria inteli-
gente que nela se inseriu já. E vimos também como uma matéria que é
propriamente de molde, a vazar-se numa forma diferente, que deixa de
ser trazida, ainda que de modo muito indirecto, pela necessidade de con-
servação social, mas por uma aspiração da consciência individual, aceita
uma tal forma dispondo-se, como o resto da moral, no plano intelectual.
Mas todas as vezes que voltamos ao que há de propriamente imperativo
na obrigação, e ainda quando aí encontrássemos tudo o que a inteligên-
cia aí inseriu para a enriquecer, tudo o que a razão pôs à sua volta para a
justificar, é nesta estrutura fundamental que voltamos a situar-nos. Isto,
quanto à obrigação pura.

8o
A OBRIGAÇÃO MORAL

Agora, uma sociedade mística, que englobasse a humanidade inteira 85


e que se encaminhasse, animada por uma vontade comum, para a cria-
ção incessantemente renovada de uma humanidade mais completa, não
se realizará evidentemente no futuro do mesmo modo que não existi-
ram, no passado, sociedades humanas de funcionamento orgânico, com-
paráveis a sociedades animais. A aspiração pura é um limite ideal, como
a obrigação nua. Nem por isso é menos verdade que são as almas mís-
ticas que arrastaram e arrastam ainda no seu movimento as sociedades
civilizadas. A memória do que foram, do que fizeram, depositou-se na
memória da humanidade. Cada um de nós a pode revivificar, sobretudo
se a aproximar da imagem, mantida viva dentro de si, de uma pessoa
que participava dessa misticidade e a fazia irradiar em seu redor. Ainda
que não evoquemos esta ou aquela grande figura, sabemos que nos
seria possível evocá-la; exerce assim sobre nós uma atracção virtual.
Ainda que nos desinteressemos das pessoas, resta a fórmula geral da
moralidade que a humanidade civilizada hoje aceita: esta fórmula en-
globa duas coisas, um sistema de ordens ditadas por exigências sociais
impessoais, e um conjunto de apelos lançados à consciência de cada
um de nós por pessoas que representam o que de melhor houve na
humanidade. A obrigação que se associa à ordem é, no que tem de
originai e de fundamental, infra-intelectual. A eficácia do apelo liga-se
à força da emoção que foi outrora provocada, que ainda o é ou que
poderia sê-lo: esta emoção, que mais não seja pelo facto de ser indefinida-
mente resolúvel em ideias, é mais que ideia; é supra-íntelectual. Exer-
cendo-se em regiões diferentes da alma, as duas forças projectam-se no
plano intermédio, que é o da inteligência. Serão doravante substituí- 86
das pelas suas projecções. Estas entremisturam-se e compenetram-se.
0 resultado é uma transposição das ordens e dos apelos em termos de
razão pura. A justiça vê-se assim Tncëssâhtérhëntë alargada pela cari-'
dade; a caridade toma cada vez 'mais a fôrma dá simples justiça; os
elementos da moralidade tornam-se homogéneos, comparáveis e quase
comensuráveis entre si; os problemas morais enunciam-se com pre-
cisão e resolvem-se com método. A humanidade é convidada a colocar-
-se a um nível determinado, - mais elevado que o de uma sociedade
animal, onde a obrigação não seria senão a for.ça do instinto, mas menos
elevado que o de uma assembleia de deuses, onde tudo seria impulso
criador. Considerando então as manifestações da vida moral assim orga-

8i
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

nizada, descobri -las-emos perfeitamente coerentes entre si, capazes por


conseguinte de serem reconduzidas a princípios. A vida moral será uma
vida racional.
Toda a gente se porá de acordo acerca deste ponto. Mas de se ter
constatado o carácter racional da conduta moral, não se segue que moral
tenha a sua origem ou até mesmo o seu fundamento na pura razão.
A grande questão é a de sabermos por que somos obrigados nos casos
em que de modo algum basta deixarmo-nos ir para fazermos o nosso
dever.
Que seja então a razão a falar, perfeitamente de acordo; mas se se
exprimisse unicamente em seu nome, se fizesse outra coisa que não fosse
formular racionalmente a acção de certas forças que se mantêm por trás
dela, como lutaria contra a paixão ou o interesse? O filósofo que pensa
que ela se basta a si própria, e que pretende demonstrá-lo, só será bem
sucedido na sua demonstração se reintroduzir, ainda que sem o dizer,
87 essas forças: forças que se reintroduzem sem que ele dê por isso, sub-
-repticiamente. Examinemos, pois, a sua demonstração. Reveste duas for-
mas, segundo ele tome a razão vazia ou lhe deixe uma matéria, segundo
veja na obrigação moral a necessidade pura e simples que leva cada um a
querer-se manter de acordo consigo mesmo ou um convite à perseguição
lógica de um certo fim. Consideremos, cada uma por sua vez, as duas
formas. Quando Kant nos diz que um depósito deve ser restituído porque,
se o depositário dele se apropriasse, deixaria de ser um depósito, faz evi-
dentemente um jogo de palavras. Ou entende pelo depósito o facto mate-
rial de alguém pôr uma soma de dinheiro nas mãos de um amigo, por
exemplo, fazendo-o saber que a reclamará mais tarde; mas este facto
material por si só, acompanhado tão somente pelo aviso em causa, terá
por consequência determinar o depositário a devolver a soma, caso não
tenha necessidade dela, e a apropriar-se pura e simplesmente dela se
estiver com falta de dinheiro: os dois procedimentos são igualmente coe-
rentes, a partir do momento em que a palavra "depósito" não evoque
mais que uma imagem material desacompanhada de ideias morais. Ou
então as considerações morais intervêm: a ideia de que o depósito foi
"confiado" e de que uma confiança "não deve" ser traída; a ideia de que o
depositário "se comprometeu", "deu a sua palavra"; a ideia de que, embora
nada tenha dito, se encontra ligado por um "contrato" tácito; a ideia
de que existe um "direito" de propriedade, etc. Então, decerto, contradir-

82
A OBRIGAÇÃO MORAL

-se-ia a si mesmo quem aceitasse um depósito recusando-se a devolvê-lo;


o depósito deixaria de ser um depósito; o filósofo poderia dizer que o
imoral é aqui irracional. Mas é que a palavra "depósito" teria sido tomada
na acepção que tem num grupo humano em que existem ideias propria-
mente morais, convenções e obrigações: já não é à necessidade vazia por
parte de cada um de não se contradizer que a obrigação moral se referirá,
uma vez que a contradição consistiria simplesmente aqui em rejeitar, 88
depois de se ter começado por admiti-la, uma obrigação moral que seria,
por isso mesmo, preexistente. - Mas deixemos de lado estas subtilezas.
A pretensão de fundar a moral no respeito da lógica pôde nascer em
filósofos e cientistas habituados a inclinarem-se perante a lógica em
matéria especulativa e levados assim a crer que em toda a matéria, e para
a humanidade inteira, a lógica se impõe com uma autoridade soberana.
Mas do facto de a ciência dever respeitar a lógica das coisas e a lógica em
geral se quiser ser bem sucedida nas suas investigações, do facto de tal •?
ser o interesse do cientista enquanto cientista, não se pode concluir a
obrigação para nós de pormos sempre lógica na nossa conduta, como se
esse fosse o interesse do homem em geral ou sequer do cientista enquanto
homem. A nossa admiração pela função especulativa do espírito pode ser
grande; mas quando há filósofos que adiantam que ela bastaria para fazer
calar o egoísmo e a paixão, mostram-nos - e devemos felicitá-los por isso -
que nunca ouviram neles ressoar com força a voz nem de um nem da
outra. Isto, quanto à moral que se reclamasse da razão encarada como
uma pura forma, sem matéria. - Antes de considerarmos a que acrescenta
uma matéria a esta forma, notemos que muitas vezes há quem se fique
pela primeira quando crê chegar à segunda. Assim fazem os filósofos
que explicam a obrigação moral pela força com a qual a ideia do Bem se
imporia. Se tomarem esta ideia numa sociedade organizada, em que as
acções humanas se encontram já classificadas segundo a sua maior ou
menor aptidão para manter a coesão social e fazer progredir a humani-
dade, e em que sobretudo certas forças definidas produzem essa coesão e
asseguram esse progresso, poderão dizer sem dúvida, que uma activi 8?
dade é tanto mais moral quanto mais em conformidade com o bem se
mostre; e poderão acrescentar igualmente que o bem é concebido como
obrigatório. Mas é que o bem será simplesmente a rubrica sob a qual
convém arrumar as acções que apresentam uma ou outra aptidão, e às
quais cada um se sente determinado pelas forças de impulsão e de atrac-
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

çào que definimos. A representação de uma hierarquia destas diversas


condutas, e por conseguinte dos seus valores respectivos, e por outro lado
a quase-necessidade com que se impõem, terão pois preexistido à ideia
do bem, que só depois surgirá para fornecer uma etiqueta ou um nome:
esta, deixada a si mesma, não teria podido servir para as classificar, e
menos ainda para as impor. Se, pelo contrário, se quiser que a ideia do
Bem seja a fonte de toda a obrigação e de toda a aspiração, e que sirva
também para qualificar as acções humanas, será preciso que nos digam
por que sinal se reconhece que uma conduta lhe é conforme; será então
preciso que nos definam o Bem; e não vemos como se poderia defini-lo
sem se postular uma hierarquia dos seres ou pelo menos das acções, uma
maior ou menor elevação de uns e outros: mas se tal hierarquia existe
por si mesma, é inútil apelar-se à ideia do Bem para a estabelecer; de
resto não vemos porque deveria esta hierarquia ser conservada, porque
estaríamos vinculados a respeitá-la; em seu favor poder-se-ão evocar ape-
nas razões estéticas, alegar que uma conduta é "mais bela" do que uma
outra, que nos coloca mais ou menos alto na série dos seres: mas que se
responderia ao homem que declarasse pôr acima de tudo a consideração
do seu interesse? Olhando melhor, veríamos que uma tal moral nunca se
90 bastou a si mesma. Veio simplesmente acrescentar-se, como um comple-
mento artístico, a obrigações que lhe preexistiam e que a tornavam possí-
vel. Quando os filósofos gregos atribuem uma dignidade eminente à pura
ideia do Bem e, mais geralmente, à vida contemplativa, falam para uma
elite que se constituiria no interior da sociedade e que começaria por
tomar por estabelecida a vida social. Disse-se que essa moral não falava
de dever, não conhecia a obrigação, tal como a entendemos. É bem ver-
dade que não falava desta última; mas era justamente porque a conside-
rava como óbvia. Supunha-se que o filósofo começara por cumprir, como
toda a gente, o dever tal como a cidade lho impunha. Só depois sobrèvi-
nha uma moral destinada a embelezar a sua vida tratando-a como uma
obra de arte. Em suma, e para tudo resumir, está fora de questão fundar a
moral no culto da razão. - Faltaria então, como o anunciávamos, exajni-
nar se poderia assentar na razão na medida em que esta apresentasse à
nossa actividade um fim determinado, em conformidade com a razão,
mas acrescentando-se-lhe um fim que a razão nos ensinasse a visar meto-
dicamente. Mas é fácil ver que fim algum nem mesmo o duplo fim que
indicámos, nem mesmo o duplo cuidado de manter a coesão social e de

84
A OBRIGAÇÃO MORAL

fazer progredir a humanidade - se imporá de uma maneira obrigatória


na medida em que for simplesmente proposto pela razão. Se certas forças
realmente actuantes c pesando efectivamente sobre a nossa vontade com-
parecerem, a razão poderá e deverá intervir para coordenar os seus efeitos,
mas não poderia rivalizar com essas forças, uma vez que perante ela é
sempre possível raciocinar, opor äs suas razões outras razões, ou até
mesmo recusar simplesmente a discussão e responder com um "sic volo,
sic jubeo". Para dizer a verdade, uma moral que crê fundar a obrigação
em considerações puramente racionais reintroduz sempre sem o saber,
como já dissemos e como vamos repeti-lo, forças de uma ordem dife-
rente. É justamente por isso que é bem sucedida com tanta facilidade.
A obrigação verdadeira já lá está, e o que : a razão vier pôr sobre ela assu-
mirá naturalmente um carácter obrigatório. A sociedade, com o que a
mantém e com o que a impele em frente, já lá está, e é çor isso cjue
a razão poderáWoptar como princípio da'moral qualquer uni dos fins
que o homem busca em sociedade; construindo um sistema bem coerente
de meios destinados a realizar esse fim, redescobrirá melhor ou pior a
moral tal como o senso comum a concebe, tal como a humanidade em
geral a pratica ou pretende praticá-la. É que, sendo por ela tomado da
sociedade, cada um desses fins é um fim socializado e, por isso mesmo,
prenhe de todos os outros fins que na sociedade nos podemos propor.
Assim, ainda que se erija em princípio da moral o interesse pessoal,
não será difícil construir uma moral segundo a razão, bastante parecida
com a moral corrente, como prova o relativo sucesso da moral utilitária.
0 egoísmo, com efeito, para o homem que vive em sociedade, compreende
o amor-próprio, a necessidade de se ser louvado, etc.; de tal maneira que
o puro interesse pessoal se torna quase indefinível, tão grande nele é a
parte de interesse geral, tão difícil é isolar um interesse e outro. Pense-
mos em tudo o que há de deferência por Outrem naquilo a que se chama
o amor de si, e até mesmo nó ciúme é 'ria'inveja! Aquelé que quisesse
praticar o egoísmo absoluto deveria fechar-se em si mesmo, e não se preo-
cupar com o próximo o bastante para ter ciúmes dele ou o invejar, Há uma
parte de simpatia nestas formas do ódio, e os próprios vícios do homem
que vive em sociedade não deixam de implicar alguma virtude: estão
todos eles saturados de vaidade, e vaidade significa antes de mais socia-
bilidade. Por maioria de razão poder-se-á aproximativamente deduzir a
moral de sentimentos como os de honra, ou de simpatia, ou de piedade.
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

Cada uma destas tendências, no homem que vive em sociedade; surge


carregada daquilo que a moral social nelas depositou; e seria preciso tê-la
esvaziado desse conteúdo, correndo o risco de a reduzir a muito pouca
coisa, para não se cometer uma petição de princípio explicando através
dela a moral. A facilidade com que se compõem teorias deste género deve-
ria despertar as nossas suspeitas: se os fins mais diversos podem ser assim
transmutados pelos filósofos em fins morais, é provavelmente - uma vez
que os filósofos não são ainda detentores da pedra filosofal - porque
aqueles começaram por pôr ouro no fundo do seu crisol. Como também
é evidente que nenhuma dessas doutrinas dará conta da obrigação; pode-
remos ver-nos vinculados à adopção de certos meios se quisermos reali-
zar este ou aquele fim; mas se entendermos renunciar ao fim, como se
nos imporão os meios? Todavia, adoptando qualquer um dos fins em
causa como princípio da moral, os filósofos extraíram dele sistemas de
máximas que, não chegando a tomar I forma de imperativos, deles se
aproximam o suficiente para nos poderem satisfazer. A razão é muito
simples. Encararam a busca desses fins, uma vez mais, numa sociedade
onde existem pressões decisivas e aspirações complementares que os
prolongam. Pressão e atracção, determinando-se, desembocariam num
qualquer daqueles sistemas de máximas, uma vez que cada um deles visa
a realização de um f i m que é ao mesmo tempo individual e social. Cada
um dos sistemas preexiste, pois, na atmosfera social ao advento do filó-
sofo; compreende máximas que se aproximam o bastante pelo seu con-
teúdo das que o filósofo formulará, e que são obrigatórias. Redescobertas
pela filosofia, mas já não sob a forma de um mandamento uma vez que
não são mais que recomendações em vista da busca inteligente de um
fim que a Inteligência poderia igualmente rejeitar, são absorvidas pela
máxima mais vaga, ou até mesmo simplesmente virtual, que se lhes asse-
melha, mas que se carrega de obrigação. Tornam-se assim obrigatórias;
mas a obrigação não veio, como se poderia crer, de cima, quer dizer do
princípio do qual as máximas foram racionalmente deduzidas; veio de
baixo, quero eu dizer do fundo de pressões, prolongável em aspirações,
sobre o qual a sociedade repousa. Em suma, os teóricos da moral postu-
lam a sociedade e, por conseguinte, as duas forças às quais a sociedade
deve a sua estabilidade e o seu movimento. Valendo-se do facto de todos
os fins sociais se compenetrarem e de cada um deles, assente de certo
modo nesse equilíbrio e nesse movimento, parecer redobrado por estas

86
A OBRIGAÇÃO MORAL

duas forças, não têm dificuldade em reconstituir o conteúdo da moral


através de qualquer um dos fins tomado como princípio, e em mostrar
depois que essa moral é obrigatória. É que se deram de antemão, junta-
mente com a sociedade, a matéria dessa moral e a sua forma, tudo o que
ela contém e toda a obrigação em que se envolve..
Se escavássemos agora esta ilusão comum a todas as morais teóricas,
eis o que encontraríamos. A obrigação é uma necessidade com a qual se
discute e que se acompanha, por conseguinte, de inteligência e de liber-
dade. A necessidade, de resto, é aqui análoga à que se liga à produção de
um efeito psicológico ou mesmo físico: numa humanidade que a natureza
não tivesse feito inteligente, e na qual o indivíduo não tivesse qualquer
potência de escolha, a acção destinada a manter a conservação e a coesão 94
do grupo cumprir-se-ia necessariamente; cumprir-se-ia sob a influência
de uma força bem determinada, a mesma qu^ faz com que cada formiga
trabalhe para o formigueiro e cada célula de um tecido para o organismo.
Mas a inteligência intervém com a faculdade de escolher, é uma outra
força, sempre actual, que mantém a precedente no estado de virtualidade
ou, antes, de realidade apenas visível na sua acção, sensível porém na sua
pressão: assim, os movimentos de vaivém do pêndulo, num relógio, impe-
dem a tensão da mola de se manifestar por meio de um disparo brusco,
embora resultem dessa mesma tensão, sendo efeitos que exercem uma
acção de inibição ou de regulação sobre as suas causas. Que vai fazer,
pois, a inteligência? É uma faculdade que o indivíduo emprega natural-
mente para enfrentar as dificuldades da vida; não seguirá a direcção de
uma força que trabalha pelo contrário em benefício da espécie e que, se
toma em consideração o indivíduo, o faz 110 interesse dessa mesma espé-
cie. Visará directamente soluções egoístas. Mas esse será apenas o seu
primeiro movimento. Não poderá deixar de Jevar era conta a força cuja
pressão invisível sofre. Persuadir-se-á, portanto, de que um egoísmo inte-
ligente deve deixar a sua parte a todos os outros egoísmos. E se se tratar
da inteligência de um filósofo, construirá uma moral teórica em que será
demonstrada a interpenetração dó intéresse pessoal'e do intéressé' gérai,
e em que a obrigação será reconduzida à necessidade, sentida por nós, de
pensar em outrem se quisermos tornar-nos inteligentemente úteis a nós
mesmos. Mas poderemos sempre responder que não nos agrada entender
desse modo o nosso interesse, e não se vê porque nos continuaríamos
então a sentir obrigados. Somos porém obrigados, e a inteligência sabe-o ss

84
i 87
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO

bem, tendo sido por isso que tentou a demonstração. Mas a verdade é
que a sua demonstração só parece ser bem sucedida por dar passagem a
qualquer coisa de que ela não fala, e que é o essencial: uma necessidade
sofrida e sentida, que o raciocínio recalcara e que um raciocínio antagó-
nico reconduz. O que há de propriamente obrigatório na obrigação não
vem, portanto, da inteligência. Da obrigação, esta explica apenas o que
nela de hesitação descobrimos. Onde parece fundar a obrigação, limita-se
a mantê-la resistindo a uma resistência, impedindo-se de impedir. Vere-
mos de resto, no próximo capítulo, que auxiliares reúne à sua volta. De
momento, retomemos uma comparação que já nos serviu. Uma formiga
que leva a cabo o seu pesado labor como se nunca pensasse em si mesma,
como se não vivesse senão para o formigueiro, está provavelmente num
estado sonambúlico; obedece a uma necessidade inelutável. Suponha-
mos que se torna bruscamente inteligente: raciocinará sobre aquilo que
faz, perguntar-se-á porque 0 faz, dir-se-á que é bem tola por não se con-
sentir repouso e um tempo mais agradável. "Basta de sacrifícios! Chegou
o momento de pensarmos em nós". Eis a ordem natural alterada. Mas a
natureza vigia. Fornecera à formiga o instinto social; acaba de lhe acres-
centar, talvez porque o instinto dela momentaneamente precisava, um
clarão de inteligência. Por pouco que a inteligência tenha perturbado o
instinto, a natureza terá de se apressar a repor as coisas em ordem e a
desfazer o que fez. Um raciocínio estabelecerá, portanto, que a formiga
tem todo o interesse em trabalhar para o formigueiro e, assim, a obrigação
parecerá fundada. Mas a verdade é que este fundamento seria muito
pouco sólido, e que a obrigação preexistia na plenitude da sua força: a
î6. inteligência limitou-se a pôr um obstáculo a um outro obstáculo dela
- proveniente. O filósofo do formigueiro não deixaria de experimentar
; repugnância em admiti-lo; insistiria sem dúvida em atribuir um papel
positivo, e não negativo, à inteligência. Assim fizeram, as mais das vezes,
os teóricos da moral, ou porque eram intelectuais que receavam não con-
ceder à inteligência lugar bastante, ou sobretudo porque a obrigação lhes
= aparecia como uma coisa simples, indecomponível: pelo contrário, se vir-
mos nela uma quase-necessidade contrariada eventualmente por uma
resistência, conceberemos que a resistência venha da inteligência, a resis-
tência à resistência igualmente, e que a necessidade, que é o essencial,
tenha uma outra origem. Para dizer a verdade, nenhum filósofo pode
irnpedir-se de começar por estabelecer esta necessidade; mas, as mais

88
A OBRIGAÇÃO MORAL.

das vezes, estabelece-a implicitamente, sem o dizer. Nós estabelecemo-la


dizendo-o. Ligamo-la, além disso, a um princípio cuja não-admissão é
impossível. Com efeito, seja qual for a filosofia a que nos liguemos, somos
forçados a reconhecer que o homem é um ser vivo, que a evolução da
vida, nas suas duas linhas principais, se cumpriu na direcção da vida
social, que a associação é a forma mais geral da actividade viva uma vez
que a vida é organização e que, sendo assim, passamos por transições
insensíveis das relações entre células num organismo às relações entre
indivíduos na sociedade. Limitamo-nos, pois, a tomar nota do incontes-
tado, do incontestável. Mas, uma vez que o admitamos, toda a teoria da
obrigação se torna inútil ao mesmo tempo que inoperante: inútil, por-
que a obrigação é uma necessidade da vida; inoperante, porque a hipó-
tese introduzida pode quando muito justificar aos olhos da inteligência
(e justificar muito incompletamente) uma obrigação que preexistia a esta
reconstrução intelectual.
A vida poderia, aliás, ter-se ficado por aqui, e nada fazer para além
de constituir sociedades fechadas cujos membros se encontrassem liga-
dos uns aos outros por obrigações estritas. Compostas de seres inteli-
gentes, essas sociedades teriam apresentado uma variabilidade que não
se encontra nas sociedades animais, regidas pelo instinto; mas a variação
não teria chegado ao ponto de encorajar o sonho de uma transformação
radical; a humanidade não se teria modificado a ponto de fazer parecer
possível uma sociedade única, compreendendo todos os homens. De facto,
esta não existe ainda, e talvez não venha a existir nunca: dando ao homem
a conformação moral que lhe era necessária para viver em grupo, a natu-
reza fez provavelmente pela espécie tudo o que podia. Mas do mesmo
modo que apareceram homens de génio que fizeram recuar os limites da
inteligência, e que foi assim concedido a indivíduos, de longe em longe,
muito mais do que fora possível dar de uma vez só ao conjunto da espé-
cie, surgiram também almas privilegiadas que se sentiam aparentadas a
todas as almas e que, em vez de permanecerem nos limites do grupo e de
se aterem à solidariedade estabelecida pela natureza, visavam a humani-
dade em geral num impulso de amor. O aparecimento de cada uma delas
era como que a criação de uma espécie nova composta de um indivíduo
único, desembocando o ímpeto vital, de longe em longe, num homem
determinado, num resultado que não poderia ter sido obtido de uma vez
só para o conjunto da humanidade. Cada uma delas assinalava assim um

89
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

certo ponto atingido pela evolução da vida; e cada uma delas manifestava
sob uma forma original um amor que parece ser a própria essência do
esforço criador. A emoção criadora que suscitava estas almas privilegia-
das, e que era um transbordar de vitalidade, difundiu-se em seu redor:
98 entusiásticas, irradiavam um entusiasmo que nunca se extinguiu por com-
pleto e que pode sempre voltar a encontrar a sua chama. Hoje, quando
ressuscitamos pelo pensamento esses grandes homens de bem, quando
os ouvimos falar e quando os vemos agir, sentimos que nos comunicam
parte do seu ardor e que nos arrastam no seu movimento: já não se trata
de uma coerção mais ou menos atenuada, é uma atracção mais ou menos
irresistível. Mas esta segunda força, do mesmo modo que a primeira, não
precisa de explicação. Não podemos deixar de admitir o semi-constrangi-
mento exercido pelos hábitos que correspondem simetricamente ao ins-
tinto, não podemos deixar de afirmar esse levantamento da alma que é a
emoção: num dos casos temos a obrigação original e, no outro, alguma
coisa que se torna o seu prolongamento; mas, nos dois casos, estamos
perante forças que não são própria nem exclusivamente morais, e cuja
génese não incumbe ao moralista fazer. Por terem querido fazê-la, os filó-
sofos desconheceram o carácter misto da obrigação sob a sua forma
actual; tiveram de atribuir em seguida a esta ou àquela representação da
inteligência a potência de arrastar a vontade: como se uma ideia pudesse
alguma vez reclamar categoricamente a sua própria realização! Como se
a ideia fosse aqui outra coisa que não o extracto intelectual comum, ou
melhor a projecção no plano intelectual, de um conjunto de tendências e
de aspirações das quais umas estão acima e as outras abaixo da pura
inteligência! Restabeleçamos a dualidade de origem: as dificuldades
desvanecem-se. E a própria dualidade é reabsorvida na unidade, porque
"pressão social " e "impulso de amor" não são mais que duas manifestações
complementares da vida, normalmente consagrada a conservar nas
grandes linhas a forma social que foi característica da espécie humana
99 desde a origem, mas excepcionalmente capaz de a transfigurar, graças a
indivíduos dos quais cada um representa, como o teria feito o apareci-
mento de uma nova espécie, um esforço de evolução criadora.
Desta dupla origem da moral nem todos os educadores têm talvez a
visão completa, mas apercebem-se de qualquer coisa dela a partir do
momento em que querem inculcar realmente a moral nos seus discípulos,
e não apenas falar-lhes a seu respeito. Não negamos a utilidade, até mesmo

90
A OBRIGAÇÃO M O R A L .

a necessidade de um ensino moral que se enderece à pura razão, que


defina os deveres e os ligue a um princípio cujas diversas aplicações, no
seu detalhe, acompanhe. É no plano da inteligência, e só nesse plano, que
a discussão é possível, e não há moralidade completa sem reflexão, análise,
discussão com os outros como de cada um consigo mesmo. Mas se um
ensino que se dirija à inteligência é indispensável para dar ao sentido
moral segurança e delicadeza, se nos torna plenamente capazes de reali-
zar a nossa intenção no caso em que é boa a nossa intenção, continua a
ser, todavia, necessário que comece por haver intenção, e a intenção assi-
nala uma direcção da vontade tanto ou mais que da inteligência. Como se
poderá ter domínio sobre a vontade? Duas vias se abrem ao educador.
Uma é a do adestramento, tomada aqui a palavra no seu sentido mais
elevado; a outra é a da misticidade, assumindo aqui o termo, pelo contrá-
rio, a sua acepção mais modesta. Através do primeiro método inculca-se
uma moral feita de hábitos impessoais; pelo segundtf obtém-se a imita-
ção de uma pessoa, e até mesmo uma união espiritual, uma coincidência
mais ou menos completa com ela. O adestramento original, o que foi
querido pela natureza, consistia na adopção dos hábitos do grupo; era
automático; fazia-se por si mesmo aí onde o indivíduo se sentia semi-
-confundido com a colectividade. À medida que a sociedade se diferen- 100
ciava, através do efeito de uma divisão do trabalho, delegava nos grupos
assim constituídos no seu interior a tarefa de amestrar o indivíduo, de o
pôr em harmonia com eles e, através deles, com ela; mas tratava-se sempre
de um sistema de hábitos contraído em proveito apenas da sociedade.
Não é duvidoso que uma moralidade deste género, se for completa, em
rigor seja bastante. Assim, o homem estritamente inserido no quadro do
seu ofício ou da sua profissão, que se dedicasse por inteiro ao seu labor
quotidiano, que organizasse a sua vida de maneira a fornecer a maior
quantidade e a melhor qtialidade possível de trabalho, por-se-ia ipso facto
em regra com muitas oütras obrigações. A disciplina teria feito dele um
homem de bem. Tal é o primeiro método; o seu campo de operação é o
impessoal. O outro completá-lo-á caso seja necessário; poderá até mesmo
substituí-lo. Não hesitamos em chamar-lhe religioso e, até mesmo, místico;
mas devemos entender-nos aqui quanto ao sentido das palavras. Há quem
se compraza em dizer que a religião é a auxiliar da moral, na medida em
que faz temer ou esperar penas ou recompensas. Talvez seja assim, mas
deveria acrescentar-se que, sob esse aspecto, a religião pouco mais faz

91
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

que prometer uma extensão e uma correcção da justiça humana por meio
da justiça divina: às sanções estabelecidas pela sociedade, e cujo jogo é
tão imperfeito, sobrepõe outras, infinitamente mais elevadas, que deverão
ser-nos aplicadas na Cidade de Deus quando tivermos deixado a dos ho-
... mens; todavia, é no plano da cidade humana que assim nos mantemos;
fazemos intervir a religião, sem dúvida, mas não no que tem de mais
especificamente religioso; por mais alto que nos elevemos, continuamos
toi a encarar a educação moral como um adestramento, e a moralidade como
uma disciplina; é ao primeiro dos dois métodos que nos atemos ainda,
sem nos transportarmos até ao segundo. Por outro lado, é nos dogmas
religiosos, na metafísica que implicam, que geralmente pensamos a partir
do momento em que a palavra "religião" é pronunciada: deste modo,
quando damos a religião por fundamento à moral, representamo-nos um
conjunto de concepções, relativas a Deus e ao mundo, cuja aceitação teria
por consequência a prática do bem. Mas é claro que estas concepções,
tomadas enquanto tais, influenciam a nossa vontade e a nossa conduta
tal como podem fazê-lo as teorias, quer dizer as ideias: estamos aqui no
plano intelectual e, como vimos acima, nem a obrigação nem o que a
prolonga poderiam derivar da ideia pura, uma vez que esta só age sobre
a nossa vontade na medida em que nos apraz aceitá-la e pô-la em prática.
Se se distinguir esta metafísica de todas as outras dizendo que precisa-
mente ela se impõe à nossa adesão, talvez tenhamos ainda razão, mas
nesse caso já não é apenas no seu conteúdo, na pura representação inte-
lectual que pensamos; introduzimos algo de diferente, que sustenta a
representação, que lhe comunica não sei que eficácia, e que é o elemento
especificamente religioso: mas é agora esse elemento, e não a metafísica
a que se junta, a tornar-se o fundamento religioso da moral. Estamos bem
perante o segundo método, mas é da experiência mística que se trata.
Queremos falar da experiência mística encararia no que tem de imediato,
fora de toda a interpretação. Os verdadeiros místicos abrem-se simples-
mente à vaga que os invade. Seguros de si mesmos, porque sentem neles
qualquer coisa de melhor do que eles, revefcam-se grandes homens de
102 acção, para surpresa daqueles para os quais o misticismo é apenas visão,
transporte, êxtase. O que deixaram correr dentro de si mesmos é um
fluxo descendente que quereria, através deles, conquistar os outros ho-
mens: sentem a necessidade de difundir à sua volta aquilo que receberam,
como um impulso de amor. Amor no qual cada um deles imprime a marca

92
A OBRIGAÇÃO MORAL.

da sua personalidade. Amor que é então em cada um deles uma emoção


inteiramente nova, capaz de transpor a vida humana num outro tom.
Amor que faz com que cada um deles seja amado assim por si mesmo e
que, por ele e para ele, outros homens deixem a sua alma abrir-se ao amor
da humanidade. Amor que poderá igualmente transmitir-se por intermé-
dio de uma pessoa que se tenha apegado'a eles ou à sua recordação man-'"""
tida viva, que tenha conformado a sua vida com esse modelo. Podemos ir
mais longe. Se a palavra de um grande místico, ou de algum dos seus
imitadores, encontra eco neste ou naquele de entre nós, não será porque
pode haver em nós um místico que dorme e que espera apenas uma
ocasião para despertar? No primeiro caso, a pessoa apega-se ao impessoal
e visa inserir-se nele. Aqui, responde ao apelo de urna personalidade, que
pode ser a de um revelador da vida moral ou a de um dos seus imitadores
ou, até mesmo, em certas circunstâncias, a sua personalidade própria.
Aliás, quer se pratique Um métütío oiíró ôütro/ém ambõà os cfáèôí s e " n : i 1 ''
terá tido em conta o fundo da natureza humana, tomada estaticamente
em si mesma ou dinamicamente nas suas origens. O erro seria crermos
que pressão e aspiração morais descobrem a sua explicação definitiva na
vida social considerada como um simples facto. Diz-se de bom grado que
a sociedade existe, que a partir desse momento exerce necessariamente
uma coerção sobre os seus membros, e que essa coerção é a obrigação.
Mas antes, para que a sociedade exista, é preciso que o indivíduo traga 103
consigo todo um conjunto de disposições inatas; a sociedade não se
explica pois a si mesma; devemos portanto investigar sob as aquisições
sociais, chegar à vida, da qual as sociedades humanas não são, como de
resto a própria espécie humana, senão manifestações. Mas nâo é tudo:
será preciso escavar mais profundamente ainda se quisermos com-
preender, não apenas já como a sociedade obriga os indivíduos, mas tam-
bém como o indivíduo pode julgara sociedade e obter dela uma transfer- :
mação moral, .Se a sociedade se basta ã" si'mesma,'é ela "a'autoridade""' - "
suprema. Mas se não for mais que uma das determinações da vida, con-
ceber-se-á que a vida, que terá posto a espécie humana neste ponto ou
naquele da sua evolução, comunique uma impulsão nova a individuali-
dades privilegiadas que nela se retemperem para ajudar a sociedade a ir
mais longe. É verdade que terá sido necessário avançar até ao próprio
princípio da vida. Tudo é obscuro, se nos ativermos a simples manifesta-
ções, se a todas elas chamarmos por junto sociais ou se considerarmos

93
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA R E L I G I Ã O

mais particularmente, no homem social, a inteligência. Tudo se esclarece,


pelo contrário, se procurarmos, para além destas manifestações, a própria
vida em si mesma. Atribuamos, pois, ao termo biologia o sentido maxi-
mamente compreensivo que deveria ter, que talvez venha um dia a tomar,
e digamos para concluir que toda a moral, pressão ou aspiração, é de
essência biológica.

94
CAPÍTULO II
A RELIGIÃO ESTÁTICA

O espectáculo do que foram as religiões, e do que algumas delas são ainda,


é extremamente humilhante para a inteligência humana. Que tecido de
aberrações! A experiência bem pode dizer "é falso" e o raciocínio "é absur-
do", nem por isso a humanidade deixa de se agarrar com mais força ainda
ao absurdo e ao erro. E se se ficasse por aí! Mas vimos a religião prescrever
a imoralidade, impor crimes. Quanto mais grosseira é, maior lugar mate-
rialmente ocupa na vida de um povo. Aquilo que deverá partilhar mais
tarde com a ciência, a arte, a filosofia, começa por o reclamar e por o
obter para si só. O que não deixará de parecer surpreendente, quando se
começou por definir o homem como um ser inteligente.
O nosso espanto cresce, quando vemos que a superstição mais baixa
foi durante tanto tempo um facto universal. De resto subsiste hoje ainda.
Descobrimos no passado, poderíamos descobrir até mesmo hoje ainda
sociedades humanas que não têm ciência, nem arte, nem filosofia. Mas
nunca houve sociedade sem religião.
Que confusão será pois a nossa, se nos compararmos, agora, com o
animal deste ponto de vista! Muito provavelmente o animal ignora a
superstição. Pouco sabemos do que se passa em consciências diferentes
da nossa; mas como os estados religiosos se traduzem comummente por i06
atitudes e por actos, algum sinal nos advertiria decerto se o animal fosse
capaz de religiosidade. Somos assim forçados a concluir. O homo sapiens,
único ser dotado de razão, é também o único capaz de suspender a sua
existência de coisas irrazoáveis.
Fala-se efectivamente de uma "mentalidade primitiva" que seria hoje
a das raças inferiores, que teria sido outrora a da humanidade em geral, e
que seria responsável pela superstição. Quem se limite assim a agrupar
certas maneiras de pensar sob uma denominação comum e a relevar
certas relações entre elas, faz obra útil e inatacável: útil, na medida em
que se circunscreve um campo de estudos etnológicos e psicológicos que
é do maior interesse; inatacável, uma vez que mais não se faz que cons-

95.
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA R E L I G I Ã O

latar a existência de certas crenças e de certas práticas numa humani-


dade menos civilizada do que a nossa. É ao que parece, aliás, ter-se cin-
gido o Sr. Lévy-Bruhl nos seus notáveis trabalhos, e sobretudo nos últi
mos, Mas deixa-se então intacta a questão de saber como crenças ou
práticas tão pouco razoáveis puderam e podem ainda ser admitidas por
seres inteligentes. Não podemos impedir-nos de procurar uma resposta à
pergunta. De bom ou mau grado, o leitor dos belos livros do Sr. Lévy-
-Bruhl extrairá deles a conclusão de que a inteligência humana evoluiu; a
lógica natural não teria sido sempre a mesma; a "mentalidade primitiva"
corresponderia a uma estrutura fundamental diferente, que a nossa teria
suplantado e que só se pode encontrar hoje entre retardatários. Mas
admite-se então que os hábitos de espírito adquiridos pelos indivíduos
ao longo dos séculos puderam tornar-se hereditários, modificara natureza
107 e dar à espécie uma nova mentalidade. Nada pode ser mais duvidoso.
A siíjpormos que alguma vez um hábito contraído pelos pais se transmita
à criança, esse caso será raro, devido a todo um concurso de circunstân-
cias acidentalmente reunidas: não dará lugar a qualquer modificação da
espécie. Mas então, permanecendo a mesma a estrutura do espírito, a
experiência adquirida pelas gerações sucessivas, depositada no meio
social e restituída por este meio a cada um de nós, deve bastar para expli-
car porque é que não pensamos como o não-civilizado, porque é que o
homem de outrora diferia do homem actual. O espírito funciona do
mesmo modo nos dois casos, mas talvez não se aplique à mesma matéria,
provavelmente porque a sociedade não tem, aqui e ali, as mesmas neces-
sidades. Tal será bem a conclusão das nossas investigações. Sem a anteci-
parmos, limitemo-nos a dizer que a observação dos "primitivos"põe inevi-
tavelmente a questão das origens psicológicas da superstição, e que a
estrutura geral do espírito humano - a observação, por conseguinte, do
homem actual e civilizado - nos parece fornecer elementos suficientes à
solução do problema.
Exprimir-nos-emos mais ou menos da mesma maneira acerca da men-
talidade "colectiva", e já não "primitiva". Segundo Emile Dürkheim, não
há que investigar porque é que as coisas para as quais esta ou aquela
religião exige a crença "têm um aspecto tão desconcertante para as razões
individuais. É muito simplesmente que a representação que delas oferece
não é obra destas razões, mas do espírito colectivo. Ora é natural que este
espírito se represente a realidade de modo diferente do nosso, uma vez

96
A RELIGIÃO ESTÁTICA

que é de uma outra natureza. A sociedade tem a sua maneira de ser que
lhe é própria e, portanto, a sua maneira de pensar" \ Quanto a nós, admi-
tiremos de bom grado a existência de representações colectivas, deposi- ios
tadas nas instituições, na linguagem e nos costumes. O seu conjunto cons-
titui a inteligência social, complementar das inteligências individuais.
Mas não vemos como seriam as "duas mentalidades discordantes, nem
como uma das duas poderia "desconcertar" a outra. A experiência nada
nos diz de semelhante, e a sociologia não nos parece ter razão alguma
para o supor. Se se considerasse que a natureza se ateve ao indivíduo,
que a sociedade nasceu de um acidente ou de uma convenção, poder-se-ia
levar a tese até ao fim e pretender que essa reunião de indivíduos, com-
parável à dos corpos simples que se unem numa combinação química,
fez surgir uma inteligência colectiva da qual certas representações con-
fundirão a razão individual. Mas já não há ninguém que atribua à socie-
dade uma origem acidental ou contratual. Se houvesse alguma coisa a
censurar à sociologia, seria antes insistir demais no sentido oposto: este
ou aquele dos seus representantes veria no indivíduo uma abstracção, e
no corpo social a única realidade. Mas então, como não estaria a menta-
lidade colectiva prefigurada na mentalidade individual? Como é que a
natureza, fazendo do homem um "animal político", poderia ter disposto
as inteligências humanas de tal modo que estas se sentiriam desambien-
tadas quando pensam "politicamente"? Pelo nosso lado, consideramos
que nunca se terá demais em conta a destinação social quando estuda-
mos o indivíduo. É por ter descurado fazê lo que a psicologia progrediu
tão pouco em certas direcções. Não falo do interesse que haveria em apro-
fundar certos estados anormais ou mórbidos que implicam entre os mem-
bros de uma sociedade, corno entre as abelhas da colmeia, uma invisível 109
anastomose: fora da colmeia a abelha definha e morre; isolado da socie-
dade ou não participando o bastante no seu esforço, o homem íofre de
um mal talvez análogo, muito pouco estudado até ao presente, í que se
chama o tédio; quando o isolamento se prolonga, como na reclusão penal,
declaram-se perturbações mentais características. Estes fenómenos
mereceriam já que a psicologia lhes abrisse uma conta especial; esta teria
belos ganhos por saldo. Mas não é tudo. O futuro de uma ciência depende
da maneira como começou por recortar o seu objecto. Se teve a sorte de

' Année sociologique, vol. II, pp. 29 e segs.

97
AS DUAS FONTES OA MORAL E DA R E L f C l A O

talhar segundo as articulações naLurais, à semelhança do bom cozinheiro


de que fala Platão, pouco importa o número de pedaços que tenha cortado:
como o recorte em partes terá preparado a análise em elementos, acaba-
remos por possuir uma representação simplificada do conjunto. Foi o
que a nossa psicologia não levou em conta ao recuar perante certas subdi-
visões. Por exemplo, estabelece faculdades gerais de perceber, de inter-
pretar, de compreender, sem se perguntar se não seriam mecanismos dife-
rentes a entrar em jogo segundo essas faculdades se apliquem a pessoas
ou a coisas, segundo a inteligência esteja ou não imersa no meio social.
Todavia, o comum dos homens esboça já a distinção em causa, tendo-a
até mesmo integrado na sua linguagem: a par dos sentidos, que nos infor-
mam sobre as coisas, põe outro sentido, o bom senso, que se refere às
nossas relações com as pessoas. Como não nos daremos conta de que se
pode ser matemático profundo, físico sábio, psicólogo delicado na análise
de si próprio, e compreender ao mesmo tempo distorcidamente as acções
de outrem, calcular mal as próprias, não se ter capacidade de adaptação
ao meio, sofrer enfim de falta de bom senso? A mania da perseguição,
io mais precisamente o delírio de interpretação, aí está para mostrar que o
bom senso pode ser lesado enquanto a faculdade de raciocinar permanece
intacta. A gravidade desta afecção, a sua resistência obstinada a qualquer
tratamento, o facto de encontrarmos em geral pródromos dela no passado
mais longínquo do doente, tudo isto parece efectivamente indicar tratar-
-se de uma insuficiência psíquica profunda, congénita, e nitidamente deli-
mitada. O bom senso, a que poderíamos chamar sentido social, é portanto
inato no homem normal, como a faculdade de falar, que implica igual-
mente a existência da sociedade e que nem por isso está menos delineada
nos organismos individuais. É de resto difícil de admitir que a natureza,
que instituiu a vida social nos extremos das duas grandes linhas da evo-
lução que desembocam respectivamente no himenóptero e no homem,
tenha regulamentado de antemão todos os pormenores da actividade de
cada formiga no formigueiro, esquecendo-se de dar ao homem directivas,
pelo menos de ordem geral, quanto à coordenação da sua conduta com a
dos seus semelhantes. As sociedades humanas diferem sem dúvida das
sociedades de insectos, na medida em que deixam indeterminadas as ope-
rações do individuo, tal como também as da colectividade. O que equivale,
contudo, a dizer que, se as acções se encontram pré-formadas na natureza
do insecto, só a função o está no homem. Nem por isso a função está

98
A RELIGIÃO ESTÁTICA

menos presente, organizada no indivíduo a f i m de ser exercida na socie-


dade. Como poderia haver então uma mentalidade social sobrevinda por
acréscimo, e capaz de desconcertar a mentalidade individual? Como não
seria a primeira imanente à segunda? O problema que púnhamos, e que
é o de saber como puderam e podem ainda superstições absurdas gover-
nar a vida de seres razoáveis,"subsiste pois por inteiro.'Dizíamos que pór "
mais que se fale de mentalidade primitiva, o problema não deixa de ser 111
relevante para a psicologia do homem actual. Acrescentaremos que por
mais que se fale de representações colectivas, a questão não deixa de se
pôr a propósito da psicologia do homem individuai.
Mas, justamente, a dificuldade não se ligaria antes de mais ao facto de
a nossa psicologia não se preocupar o bastante com' subdividir o seu
objecto segundo as linhas assinaladas pela natureza? As representações
que engendram superstições têm por carácter comum ser fantasmáticas.
A psicologia refere-as a uma faculdade geráI; : a'imaginaçãó. ; 'Sob a mésma
rubrica classificará também as descobertas e as invenções da ciência, as
realizações da arte. Mas porque agrupar num mesmo conjunto coisas tão
diferentes, dar-lhes o mesmo nome, e sugerir assim a ideia de um paren-
tesco entre elas? Está em causa a simples comodidade de linguagem e a
razão inteiramente negativa de estas diversas operações não serem nem
percepção, nem memória, nem trabalho lógico do espírito. Aceitemos
então pôr de parte as representações fantasmáticas, e chamemos "efabu-
lação" ou "ficção" ao acto que as faz surgir. Será um primeiro passo no
caminho da resolução do problema. Observemos agora que a psicologia,
quando decompõe a actividade do espírito em operações, não se ocupa o
bastante de saber para que serve cada uma delas: é justamente por isso
que a subdivisão é demasiadas vezes insuficiente ou artificial. O homem
spode sem dúvida sonhar ou filosofar, mas tem primeiro de viver; é indu-
bitável que a nossa estrutura psicológioa esteja associada-à necessidade-
-de conservar e de desenvolver a vida individual e social. Se a psicologia
não se guiar por esta consideração, deformará necessariamente o seu
.objecto. Que diríamos do cientista que fizesse a anatomia dos órgãos.e a
histologia dos tecidos, sem se preocupar com o fim a que se destinam? 112
.Arriscar-se-ia a dividir em falso, a agrupar em falso. Se a função não se
compreende senão pela estrutura, não se podem discernir as grandes
linhas da estrutura sem uma ideia da função. Não devemos, portanto,
tratar o espírito como se este fosse o que é "por nada, só por prazer". Não

99
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

devemos dizer: sendo tal a sua estrutura, ele tirou dela tal partido. O par-
tido que dela tirará é, pelo contrário, o que terá determinado a sua estru-
tura; em todo o caso, o fio condutor da investigação é aí que está. Consi-
deremos então, no domínio vaga e sem dúvida artificialmente delimitado
da "imaginação", o recorte natural a que chamámos efabulação, e vejamos
a que poderá bem aplicar-se naturalmente. Desta função relevam o roman-
ce, o drama, a mitologia juntamente com tudo aquilo que a precedeu.
Mas nem sempre houve romancistas e dramaturgos, ao passo que a huma-
nidade nunca dispensou a religião. É provável, pois, que poemas e fanta-
sias de todo o género tenham chegado por acréscimo, aproveitando-se
daquilo que o espírito sabia fazer das fábulas, mas era a religião a razão
de ser da função efabuladora: relativamente à religião, tal faculdade seria
efeito e não causa. Uma necessidade, talvez individual, em todo o caso
social, terá exigido do espírito esse género de actividade. Perguntemo-
-nos de que necessidade se tratava. Devemos notar que a ficção, quando
portadora de eficácia, é como uma alucinação nascente: é capaz de con-
trabalançar o juízo e o raciocínio, que são as faculdades propriamente
intelectuais. Ora, que teria feito a natureza, depois de ter criado seres
inteligentes, se tivesse querido prevenir certos perigos da actividade inte-
lectual sem comprometer o futuro da inteligência? A observação fornece-
-nos a resposta. Hoje, no desabrochar pleno da ciência, vemos os mais
113 belos raciocínios do mundo caírem ruínas perante uma experiência: nada
resiste aos factos. Se, portanto, a inteligência devia ser retida, de início,
num declive perigoso para o indivíduo e para a sociedade, só poderia
sê-lo por constatações aparentes, por fantasmas de factos; à falta de expe-
riência real, era uma contrafacção da experiência que se tornava neces-
sário suscitar. Uma ficção, se a imagem for viva e obsidiante, poderá pre-
cisamente imitar a percepção e, por isso, impedir ou modificar a acção.
Uma experiência sistematicamente falsa, erguendo-se perante a inteligên-
cia, poderá detê-la no momento em que ela estivesse a ir longe demais
nas consequências que tira da experiência verdadeira. Assim teria, pois, a
natureza procedido. Em tais condições, não nos surpreenderia descobrir
que a inteligência, ao acabar de formar-se, fora invadida pela supersti-
ção, que um ser essencialmente inteligente é naturalmente supersticioso,
e que só os seres inteligentes podem ser supersticiosos.
É verdade que então se porão novas questões. Teremos de começar
por perguntar mais precisamente para que serve a função efabuladora e

100
A RELIGIÃO ESTÁTICA

que perigo da natureza devia prevenir. Sem aprofundarmos para já este


ponto, notemos que o espírilo humano pode estar na verdade ou no erro,
mas que tanto num caso como noutro, seja qual for a direcção que tomou,
continua sempre em frente: de consequência em consequência, de análise
em análise, enterra-se cada vez mais no erro,do mesmo modo que desa-
brocha mais completamente na verdade. Só conhecemos uma humani-
dade já evoluída, porque os "primitivos" que hoje observamos têm a
mesma idade que nós, e os documentos sobre os quais trabalha a história
das religiões são de um passado relativamente recente. A imensa varie-
dade das crenças com que deparamos é, pois, o resultado de uma longa
proliferação. Do seu absurdo ou da sua estranheza pode concluir-se sem
dúvida uma certa orientação para o estranho ou o absurdo.na marcha de
uma certa função do espírito; mas estes caracteres só são provavelmente
tão acentuados pelo facto de a marcha ter sido tão prolongada: se consi-
derarmos apenas a* direcção desta última, talvez nos sintamos menos
chocados pelo que a tendência tem de irracional e talvez apreendamos a
sua utilidade. Quem sabe até se os erros a que deu lugar não serão as
deformações, então vantajosas para a espécie, de uma verdade que mais
tarde deveria aparecer a certos indivíduos? Mas isto não é tudo. Põe-se
uma segunda questão, à qual será preciso responder antes ainda: de onde
vem a tendência em causa? Ligar-se-á a outras manifestações da vida?
Falávamos de uma intenção da natureza: era uma metáfora, cómoda em
psicologia do mesmo modo que o é em biologia; assinalávamos assim
que o dispositivo observado serve o interesse do indivíduo ou da espécie.
Mas a expressão é vaga, e nós diríamos, procurando ser mais precisos,
que a tendência considerada é um instinto, se não fosse justamente no
lugar de um instinto que surgem no espírito tais imagens fantasmáticas.
Estas desempenham um papel que teria podido ser atribuído ao instinto
e que o seria, sem dúvida, num ser desprovido de inteligência.- Digamos
provisoriamente que é instinto virtual, entendendo por isso que no extre-
mo de uma outra linha de evolução, nas sociedades de insectos, vemos o
instinto provocar mecanicamente uma conduta comparável, pela sua utili-
dade, à que sugerem ao homem, inteligente e livre, imagens quase aluci-
natórias. Mas evocar assim desenvolvimentos divergentes e complemen-
tares que desembocariam, por um lado, em instintos reais e, por outro,
em instintos virtuais, não será o mesmo que pronunciarmo-nos sobre a
evolução da vida?

toi
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA R E L I G I Ã O

lis Tal é, com efeito, o problema mais vasto que a nossa segunda questão
põe. Estava de resto implicitamente contido na primeira. Como referir
a uma necessidade vital as ficções que se-erguem diante da inteligência,
e por vezes contra ela, se não determinámos as exigências fundamen-
tais da vida? Voltaremos a encontrar este mesmo problema, mais explí-
cito, quando surgir uma questão que não podemos evitar: como sobre-
viveu a religião ao perigo que a fez nascer? Como foi que, em lugar de
desaparecer, simplesmente se transformou? Porque subsiste, quando a
ciência veio preencher o vazio, de facto perigoso, que a inteligência dei-
xava entre a sua forma e a sua matéria? Não poderia haver, por baixo da
necessidade de estabilidade que a vida manifesta, nessa paragem ou,
antes, nesse rodar sobre o mesmo lugar que é a conservação de uma
espécie, uma exigência de movimento em frente, um resto de irrupção,
um impulso vital? Mas as duas primeiras questões serão de momento
suficientes. Uma e outra reconduzem-nos às considerações que apresentá-
mos no passado sobre a evolução da vida. Essas considerações não eram
de modo algum hipotéticas, como alguns pareceram acreditar. Falando
de um "impulso vital" e de uma evolução criadora, cingíamos a experiên-
cia o mais estreitamente que nos era possível. É o que começa a ser per-
ceptível, uma vez que a ciência positiva, pelo simples facto de abandonar
certas teses ou de as dar por simples hipóteses, se aproxima mais dos
nossos pontos de vista. Apropriando-se deles, mais não faria que recupe-
rar um bem próprio.
Voltemos a insistir, pois, nalguns dos traços salientes da vida, e vinque-
mos o carácter nitidamente empírico da concepção de um "impulso vital".
O fenómeno vital será resolúvel, perguntávamos nós, em factos físicos e
116 químicos? ."Quando o fisiologista o afirma, entende por isso, consciente
ou inconscientemente, que o papel da fisiologia é investigar o que há de
físico e de .químico no vital, que não se pode fixar antecipadamente um
termo a esta investigação, e que por isso se deverá proceder como se a
investigação não devesse vir a ter termo: só assim se continuará em frente.
Com o qué estabelece, pois, uma regra de método; não enuncia um facto.
Atenhamo-nos então à experiência: diremos - e mais do que um biólogo
o reconhece - que a ciência está tão longe como sempre de uma expli-
cação físico-química da vida. Era o que antes do mais constatávamos
quando falávamos de um impulso vital. - Agora, uma vez estabelecida
a vida, como nos representaremos a evolução? Podemos sustentar que a

102
A RGÜGIAO ESTÁTICA

• passagem de uma espécie a outra se fez através de uma série de pequenas


variações, todas elas acidentais, conservadas pela selecção e fixadas pela
hereditariedade. Mas se pensarmos no número enorme de variações, coor-
denadas entre si e complementares umas das outras, que têm de se
produzir para que o organismo beneficie delas ou até mesmo simples-
mente não sofra com elas prejuízo algum/ perguntamo-nos como cada
uma delas, considerada separadamente, se conservaria por meio da selec-
ção e ficaria à espera das que a viriam completar. Por si só, as mais das
vezes, não serve para nada; pode até perturbar ou paralisar a função.
Invocando portanto uma composição do acaso com o acaso, não atri-
buindo a causa especial alguma a direcção tomada pela vida que evolui,
aplica-se a priori o princípio de economia recomendado à ciência positiva,
mas não se comprova seja como for um facto, e o resultado é deparar de
imediato com dificuldades insuperáveis. Esta insuficiência do darwi-
nismo era o segundo ponto que assinalávamos quando falávamos de um
impulso vital: à teoria opúnhamos um facto; constatávamos que a evolu- ii7
ção da vida se realiza em direcções determinadas. - Agora, serão as con-
dições em que evolui a imprimir à vida aquelas direcções? Seria então
necessário admitir que as modificações sofridas pelo indivíduo se trans-
mitem aos seus descendentes, pelo menos com a regularidade suficiente
para garantir, por exemplo, a complicação gradual de um órgão que leva a
efeito cada vez mais delicadamente a mesma função. Mas a hereditarie-
dade do adquirido é contestável e, a supor que alguma vez se observe,
excepcional; é uma vez mais a priori, e dadas as necessidades da causa,
que é representada como funcionando com uma tal regularidade. Repor-
temos o inato a essa transmissibilidade regular: em conformidade com a
experiência, diremos que não é a acção mecânica das causas exteriores,
que é uma irrupção interna, passando de germe em germe através dos
indivíduos, que leva a vida, numa direcção dada, a.umaxomplicação cada
vez mais elevada. Tal é a terceira ideia que a -imagem do impulso vital
evocará. - Vamos mais longe. Quando se fala do progresso de um organis-
mo ou de um órgão ao adaptar-se, .a.condições, mais complexas, pretende-
-se, as mais das vezes, que a complexidade das condições impõe a sua
forma à vida, como o molde ao gesso: só nessa condição, pensa-se, a expli-
cação será mecânica e, por conseguinte, científica. Mas, depois de se obter
a satisfação de interpretar assim a adaptação em geral, raciocina-se, nos
casos particulares, como se a adaptação fosse uma coisa completamente

103
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

diferente - o que ela é com efeito -, a solução original encontrada pela


vida do problema que as condições exteriores lhe põem. E é esta facul
dade de resolver problemas que se deixa por explicar. Fazendo então
intervir um "impulso", não fornecíamos também explicação; mas assi-
118 nalávamos, em vez de o excluirmos sistematicamente em geral para o
utilizarmos sub-repticiamente em cada caso particular, este carácter mis-
terioso da operação da vida. - Mas nada fazíamos a f i m de penetrar o
mistério? Se a maravilhosa coordenação das partes com o todo não pode
explicar-se mecanicamente, também não exige, em nosso entender, que a
tratemos como finalidade. 0 que, visto de fora, é decomponível numa
infinidade de partes coordenadas umas com as outras, talvez surgisse do
interior como um acto simples: assim, um movimento da nossa mão, que
sentimos indivisível, será exteriormente percebido como uma curva defi-
nível por uma equação, quer dizer como uma sobreposição de pontos,
em número infinito, que satisfazem todos uma mesma lei. Evocando a
imagem de um impulso, queríamos sugerir esta quinta ideia, e até mesmo
qualquer coisa mais: onde a nossa análise, permanecendo no exterior,
descobre elementos positivos em número cada vez maior e os encontra,
por isso, cada vez mais surpreendentemente coordenados entre si, uma
intuição que se transportasse ao interior apreenderia, já não meios com-
binados, mas obstáculos contornados. Uma mão invisível, atravessando
bruscamente limalha de ferro, não faria mais que afastar uma resistên-
cia, mas a própria simplicidade deste acto, vista do lado da resistência,
surgiria como a sobreposição, efectuada segundo uma determinada or-
dem, dos pedaços de limalha. - Agora, nada se poderá dizer deste acto, e
da resistência com que depara? S e a vida não é resolúvel em factos físicos
e químicos, age à maneira de uma causa especial, acrescentada àquilo a
que chamamos comummente matéria: esta matéria é instrumento, e é
também obstáculo. Divide aquilo que precisa. Podemos conjecturar que a
119 uma divisão do mesmo género se deve a multiplicidade das grandes linhas
de evolução vital. Mas é-nos por esta via sugerido um meio de preparar e
de verificar a intuição que quereríamos ter da vida. Se virmos duas ou
três grandes linhas de evolução que se continuam livremente ao lado de
outras vias que acabam num beco, e se ao longo dessas linhas se desen-
volver cada vez mais um carácter essencial, poderemos conjecturar que a
irrupção vital começava por apresentar tais caracteres no estado de impli-
cação recíproca: instinto e inteligência, que atingem o seu ponto culmi-

104 . }
A RELIGIÃO ES TÁTICA

nante nos extremos das duas principais linhas da evolução animal, deve-
rão estar assim tomados um no outro, antes de se desdobrarem, não com-
postos conjuntamente mas constitutivos de uma realidade simples _na
qual inteligência e instinto nâo seriam senão pontos de vista. Tais são,
uma vez que começámos a enumerá-las, a sexta, a sétima e a oitava repre-
sentações que a ideia de um impúísò vital evocará. - Mas ainda só impli-
citamente mencionámos o essencial: a imprevisibilidade das formas que
a vida cria por inteiro, através de saltos descontínuos, ao longo da sua
evolução. Tanto para a doutrina do puro mecanicismo como para a da
finalidade pura, as criações da vida são predeterminadas, podendo o
futuro ser deduzido do presente mediante um cálculo ou desenhando-se
nele sob a forma de ideia, e sendo por conseguinte o tempo sem eficácia.
A experiência pura nada de semelhante sugere. Nem impulsão nem atrac-
ção, parece ela dizer. Um impulso [élan]* pode precisamente sugerir
qualquer coisa do género e fazer pensar também, pela indivisibilidade '
daquilo que é interiormente sentido e pela divisibilidade até ao infinito
daquilo que é exteriormente percebido, nessa duração real, eficaz, que é
o atributo da vida. - Tais eram as ideias que encerrávamos na imagem do
"impulso vital". Se forem insuficientemente atendidas, como muitas vezes 120
tem sido o caso, encontrar-nos-emos naturalmente perante um conceito
vazio, como o do puro "querer-viver" ["vouloir-vivre"], e perante uma
metafísica estéril. Se forem levadas em conta, teremos uma ideia carre-
gada de matéria, empiricamente obtida, capaz de orientar a investigação,
que resumirá a traço grosso o que sabemos do processo vital e assinalará
também o que dele ignoramos.

Assim encarada, a evolução aparece como cumprindo-se através de


saltos bruscos, e a variação constitutiva, da espécie nova como feita de
diferenças múltiplas, complementares urnas das outras, que surgem glo-
balmente no organismo saído do germe. É, para retomarmos a nossa com-
paração, um movimento sùbito' da ïriâô mergulhada na limalha e que
provoca um rearranjo imediato de todos os pedaços de ferro. Aliás, se a

* Mantém-se, por consagrada pelo uso, a tradução de élan (aqui sublinhado 110 ori-
ginal) por "impulso", embora, tendo em vista, entre outros aspectos, o contraste que
Bergson entre ele e a "impulsão" [impulsion) estabelece, a solução consagrada seja con
testável. Os termos "surto" ou "ímpeto" são alternativas possíveis e que o leitor poderá
evocar utilmente no seu espírito sempre que deparar, ao longo destas páginas, com o
"impulso vital" (N. do T.).
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

transformação se opera entre os diversos representantes de uma mesma


espécie, pode não obter em todos o mesmo sucesso. Nada diz que o apare-
cimento da espécie humana não tenha sido devido a vários saltos na
mesma direcção, realizados aqui e ali numa espécie anterior e desembo-
cando assim em espécimes de humanidade bastante diferentes; cada um
destes últimos corresponderia a uma tentativa bem sucedida, no sentido
em que as variações múltiplas que caracterizam cada um de entre eles
são perfeitamente coordenadas entre si; mas talvez nem todos valham
por igual, não tendo os saltos transposto em todos os casos a mesma
distância. Nem por isso tinham menos a mesma direcção. Poderia dizer-
-se, evitando atribuir à palavra um sentido antropomórfico, que corres-
pondem a uma mesma intenção da vida.
De resto, quer a espécie humana tenha provindo ou não de uma única
cepa, quer haja um ou vários espécimes irredutíveis de humanidade,
izi pouco importa: o homem apresenta sempre dois traços essenciais, a inte-
ligência e a sociabilidade. Mas, do ponto de vista em que nos situamos,
estes caracteres assumem uma significação especial. Já não são apenas
do interesse do psicólogo e do sociólogo. Reclamam, antes de mais, uma
interpretação biológica. Inteligência e sociabilidade devem ser ressituadas
na evolução geral da vida.
Para começar pela sociabilidade, encontramo-la sob a sua forma aca-
bada nos dois pontos culminantes da evolução, nos insectos hímenópte
ros como a formiga e a abelha, e no homem. No estado dé simples ten-
dência, encontra-se por toda a parte na natureza. Pode dizer-se que o
indivíduo era já uma sociedade: protozoários, formados de uma célula
única, teriam constituído agregados que, aproximando-se por seu turno,
teriam resultado em agregados de agregados; os organismos mais dife-
renciados teriam assim a sua origem na associação de organismos pouco
diferenciados e elementares. Há aqui um exagero evidente; o "polizoísmo"
é um facto excepcional e anormal. Mas nem por isso é menos verdade
que as coisas se passam num organismo superior coma se as células se
tivessem associado para partilhar entre si o trabalho. A obsessão da forma
social, que encontramos num tão grande número de espécies, revela-se
pois na própria estrutura dos indivíduos. Mas. uma vez mais, não se
trata aqui senão de uma tendência; e se quisermos ocupar-nos de socie-
dades acabadas, de organizações nítidas de individualidades distintas,
teremos de tomar os dois tipos perfeitos de associação representados

106 i
A RELIGIÃO ESTÁTICA

por uma sociedade de insectos e uma sociedade humana, aquela imu-


tável 1 e esta variável, uma instintiva e a outra inteligente, a primeira 122
comparável a um organismo cujos elementos não existem senão em vista
do todo, a segunda deixando uma margem tal aos indivíduos que não
sabemos se é feita para eles ou se são eles feitos para ela. Das duas con-
dições estabelecidas por Comte, "ordem" e "progresso" o insecto quis
apenas a ordem, enquanto é o progresso, por vezes exclusivo da ordem
e sempre devido a iniciativas individuais, que visa pelo menos uma
parte da humanidade. Estes dois tipos acabados de vida social contra-
balançam-se, pois, e completam-se. Mas outro tanto diríamos do instinto
e da inteligência que respectivamente os caracterizam. Ressituados na
evolução da vida, surgem como duas actividades divergentes e comple-
mentares.
Não insistiremos aqui no que já expusemos num anterior trabalho.
Lembremos somente que a vida é um certo esforço, visando obter certas
coisas da matéria bruta, e que instinto e inteligência, tomados no seu
estado acabado, são dois meios de utilizar para esse efeito uma ferra-
menta: no primeiro caso, a ferramenta faz parte do ser vivo; no outro,
é um instrumento inorgânico que foi necessário inventar, fabricar,
aprender a manejar. Consideremos a utilização, por maioria de razão o
fabrico, por maioria de razão ainda a invenção, e encontraremos um a
um todos os elementos da inteligência, porque a sua destinação explica a
sua estrutura. M as não devemos esquecer que resta uma franja de instinto
em torno da inteligência, e que lampejos de inteligência subsistem no
fundo do instinto. Podemos conjecturar que os dois aspectos começaram
por estar implicados um no outro e que, se remontássemos até suficien-
temente longe no passado, encontraríamos instintos mais próximos da
inteligência que os dos nossos insectos, uma inteligência mais vizinha do
instinto que a dos nossos vertebrados. As duas actividades, que a princí- 123
pio se compenetravam, tiveram de se dissociar para crescer; mas qualquer
coisa de cada uma continuou.a aderir à outra. Outro tanto se diria tam-
bém de todas as grandes manifestações da vida. Cada uma delas apre-
senta as mais das vezes no estado rudimentar, ou latente, ou virtual, os
caracteres essenciais da maior parte das outras manifestações.

1
É óbvio que a imutabilidade não é absoluta, mas essencial. Existe em princípio,
mas admite de facto variações em torno do tema uma vez estabelecido este.

— -, 107
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

Estudando então, no termo de um dos grandes esforços da natureza,


esses agrupamentos de seres essencialmente inteligentes e parcialmente
livres que são as sociedades humanas, não deveremos perder de vista o
outro ponto terminal da evolução, as sociedades regidas pelo puro ins-
tinto, em que o indivíduo serve cegamente o interesse da comunidade.
Esta comparação nunca autorizará conclusões firmes; mas poderá sugerir
interpretações. Se se encontram sociedades nos dois termos principais
do movimento evolutivo, e se o organismo individual é construído se-
gundo um plano que anuncia o das sociedades, é que a vida é coordenação
e hierarquia de elementos entre os quais o trabalho se divide: o social
está no fundo do vital. Se, nessas sociedades que os organismos indivi-
duais já são, o elemento deve estar pronto a sacrificar-se ao todo, se con-
tinua a ser assim nessas sociedades de sociedades que a colmeia e o for-
migueiro, no extremo de uma das suas grandes linhas da evolução,
constituem, se enfim este resultado é obtido pelo instinto, que não é mais
que o prolongamento do trabalho organizador da natureza, é que a natu-
reza se preocupa com a sociedade, mais do que com o indivíduo. Se o
mesmo já não se passa com o homem, é que o esforço de invenção que se
manifesta em todo o domínio da vida através da criação de espécies novas
encontrou na humanidade só o meio de se continuar através de indiví-
124 duos aos quais é concedida então, juntamente com a inteligência, a facul
dade de iniciativa, a independência, a liberdade. Se a inteligência ameaça
agora de ruptura em certos pontos a coesão social, e se a sociedade deve
subsistir, é preciso que, nesses pontos, haja um contrapeso para a inte-
ligência. Se este contrapeso não pode ser o próprio instinto, uma vez que
o seu lugar é justamente tomado pela inteligência, é preciso que uma
virtualidade de instinto ou, se se preferir, o resíduo de instinto que sub-
siste em torno da inteligência, produza o mesmó efeito: não pode agir
directamente, mas uma vez que a inteligência trabalha sobre represen-
tações, suscitá-las-á "imaginárias" que farão frente à representação do real
e que conseguirão por intermédio da própria inteligência, contrabalançar
o trabalho intelectual. Assim se explicaria a funçãoçfabuladora. Se desem-
penha, além disso, um papel social, deve servir também o indivíduo que
a sociedade tem, as mais das vezes, interesse em-poupar. Podemos por-
tanto presumir que, sob a sua forma elementar e original, esta traz ao
próprio indivíduo um suplemento de força. Mas antes de chegarmos a
este segundo ponto, consideremos o primeiro.

108
A RELIGIÃO ES TÁTICA

Entre as observações recolhidas pela "ciência psíquica", notámos no


passado o facto a seguir. Uma senhora estava no piso superior de um
hotel. Ao querer descer, tomou pelo patamar. A barreira destinada a fechar
a gaiola do elevador estava justamente aberta. Uma vez que a barreira só
deveria abrir-se quando o elevador parava naquele piso, a senhora pensou
naturalmente que o elevador ali estava, e prêcipitou-se para o apanhar.
Sentiu-se bruscamente empurrada para trás: o homem encarregado de
manobrar o aparelho acabava de se mostrar, e repelia-a para o patamar.
Nesse momento a senhora saiu do seu estado de distracção. Constatou,
estupefacta, que não havia nem homem nem aparelho. Tendo o meca-
nismo sofrido uma avaria, a barreira abrira-se no piso em que ela se encon 125
trava, enquanto o elevador ficava lá em baixo. Era no vazio que estivera
prestes a precipitar-se: uma alucinação miraculosa salvara-lhe a vida. Será
preciso dizer que o milagre se deixa facilmente explicar? A senhora racio-
cinara com justeza acerca de um facto real, porque a barreira estava efec-
tivamente aberta e, por conseguinte, o elevador deveria estar naquele
piso. Por si só, a percepção da gaiola vazia tê-la-ia tirado do seu erro; mas
essa percepção chegaria demasiado tarde, uma vez que o acto consecutivo
ao raciocínio justo começara já a realizar-se. Surgiu então a personali-
dade instintiva, sonambúlica, subjacente à que reflecte. Dera-se conta do
perigo. Era preciso agir de imediato. Instantaneamente impelira o corpo
para trás, fazendo com que irrompesse no mesmo lance a percepção fictí
cia, alucinatória, que melhor podia provocar e explicar o movimento
aparentemente injustificado.
Imaginemos então uma humanidade primitiva e sociedades rudimen-
tares. Para assegurar a tais grupos a coesão pretendida, a natureza disporia
de um meio muito simples: bastar-lhe-ia dotar o homem de instintos apro-
priados. Foi o que fez no caso da colmeia e do formigueiro. O seu sucesso
foi, aliás, completo: os indivíduos não vivem aqui senão em função da
comunidade. E o seu trabalho foi fácil, uma vez que só teve de seguir
o seu método habitual: o instinto é, com efeito, coextensivo à vida, e o
instinto social, tal còmo o descobrimos no insecto, não é senão o espírito
de subordinação e de coordenação que anima as células, tecidos e órgãos
de todo o corpo vivo. Mas é a um desabrochar da inteligência, e já não a
um desenvolvimento do instinto, que o surto vital tende na série dos
vertebrados. Quando o termo do movimento é atingido no homem, o
instinto não é suprimido, mas é eclipsado; dele resta apenas um vago 126
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

clarão em torno do núcleo, plenamente iluminado ou sobretudo luminoso,


que é a inteligência. Doravante a reflexão permitirá ao indivíduo inventar,
à sociedade progredir. Mas, para que a sociedade progrida, é preciso ainda
que subsista. Invenção significa iniciativa, e um apelo à iniciativa indi-
vidual arrisca-se já a comprometer a disciplina social. Que se passará, se
o indivíduo desviar a sua reflexão do objecto para o qual esta é feita,
quero eu dizer da tarefa a cumprir, a aperfeiçoar, a renovar, para a dirigir
sobre si mesmo, a incomodidade que a vida social lhe impõe, o sacrifício
que faz à comunidade? Entregue ao instinto, como a formiga ou a abelha,
teria permanecido numa tensão orientada para o f i m exterior a atingir;
teria trabalhado para a espécie, automaticamente, sonambulicamente.
Dotado de inteligência, desperto para a reflexão, virar-se-á para si próprio
e não pensará senão em viver agradavelmente. Um raciocínio em forma
demonstrar-lhe-ia, sem dúvida, que é do seu interesse promover a felici-
dade de outrem; mas são precisos séculos de cultura para produzir um
utilitário* como Stuart Mill, sendo que Stuart Mill não convenceu todos
os filósofos, e menos ainda o comum dos homens. A vérdade é que a
inteligência começará por aconselhar o egoísmo. É nessa direcção que o
ser inteligente se precipitará se nada o vier deter. Mas a natureza vigia.
Há pouco, perante a barreira aberta, surgiu um guarda, proibindo a
entrada e repelindo o infractor. Aqui será um deus protector da cidade,
que proibirá, ameaçará, reprimirá. A inteligência regula-se, de facto, a
partir de percepções presentes ou desses resíduos de percepção mais ou
menos afins das imagens a que chamamos as recordações. Uma vez que
o instinto já não existe a não ser sob a forma de rasto ou de virtualidade,
uma vez que não é suficientemente forte para provocar actos ou para os
127 impedir, deverá suscitar uma percepção ilusória ou pelo menos uma con-
trafacção de recordação suficientemente precisa, suficientemente impres-
siva, para que a inteligência se determine por ela. Encarada deste primeiro
ponto de vista, a religião é, portanto, uma reacção defensiva da natureza
contra o poder dissolvente da inteligência.
Mas não obtemos assim mais que uma figuração estilizada daquilo
que efectivamente se passa. Por motivos de clareza, supusemos na socie-

* No original, utilitaire, embora numa acepção que hoje tenderia a ser significada
pelo recurso ao termo, seja como for e sobretudo ao tempo mais técnico, de utilituriste
("militarista"), entretanto consagrado e adoptado pela própria linguagem corrente
(N. do T.).

110
A RELIGIÃO ESTÁTICA

dade uma brusca revolta do indivíduo, e na imaginação individual o


súbito surgimento de um deus que impede ou que proíbe. As coisas
tomam sem dúvida esta forma dramática, num momento dado e por um
certo tempo, numa humanidade já avançada na via da civilização. Mas a
realidade não evolui para a precisão do drama a não ser pela intensifi-
cação dô essencial e peia eliminação "do superabundante. De facto, nos
agrupamentos humanos conforme terão podido sair das mãos da natu-
reza, a distinção entre o que importa e o que não importa à coesão do
grupo não é tão nítida, as consequências de um acto realizado pelo indi-
víduo não parecem tão estritamente individuais, a força de inibição que
surge no momento em que o acto se vai consumar não encarna tão com-
pletamente numa pessoa. Detenhamo-nos nestes três pontos.
Em sociedades como as nossas, há costumes e há leis. As leis são sem
dúvida costumes consolidados; mas um costume não se transforma em
lei a não ser quando apresenta um interesse definido, reconhecido e for- , .
mulável; prevalece então sobre os demais. A distinção é, pois, nítida entre
o essencial e o acidental: há de um lado o que é simples uso, do outro o
que é obrigação legal e até mesmo moral. Não pode ser assim em socie-
dades menos evoluídas que têm apenas costumes, alguns justificados por 128
uma necessidade real, a maior parte devidos ao simples acaso ou a uma
extensão irreflectida dos primeiros. Aqui tudo o que é usual é necessaria-
mente obrigatório, uma vez que a solidariedade social, não se conden-
sando em leis, menos ainda em princípios, se difunde na comum aceita-
ção dos usos. Tudo o que é habitual aos membros do grupo, tudo o que a
sociedade espera dos indivíduos, deverá pois tomar um carácter religioso,
se é verdade que pela observância do costume, e só por ela, o homem se
prendeu aos outros homens e se desprendeu assim de si mesmo. Diga-se
de passagem que a questão das relações entre a moral e a religião se
simplifica assim em grande medida quando consideramos as sociedades. . ;
rudimentares. Não podemos dizer imorais, ou indiferentes à moral, as
religiões primitivas, a não ser que tomemos a religião tal como foi a princí-
pio, para a compararmos com a moral segundo o que esta última mais
tarde se tornou. Na origem, o costume é toda a moral; e como a religião
proíbe que nos afastemos dela, a moral é coextensiva à religião. Em vão,
portanto, nos objectariam que as interdições religiosos nem sempre se
referiram ao que nos parece hoje imoral ou anti-social. A religião primi-
tiva, vista na perspectiva que começamos por adoptar, é uma precaução

111
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

contra o perigo que cada um corre, a partir do momento em que pensa,


de não pensar senão em si. Trata-se de facto, portanto, de uma reacção
defensiva da natureza contra a inteligência.
Por outro lado, a ideia de responsabilidade individual está longe de
ser tão simples como poderíamos julgar. Implica uma representação rela-
tivamente abstracta da actividade do indivíduo, que é tida por indepen-
dente porque foi isolada da actividade social. Mas a solidariedade entre
129 os membros do grupo começa por ser tal que todos eles devem sentir-se
participar em certa medida na insuficiência de um só, pelo menos nos
casos que considerem graves: o mal moral, se é que podemos empregar
já o termo, produz o efeito de um mal físico que alastrasse pouco a pouco
e acabasse por afectar a sociedade inteira, por contaminação. Se há pois
uma potência vingadora que surge, será para ferir a sociedade no seu
conjunto, sem visar exclusivamente o ponto de partida do mal: o quadro
da Jusfiça que persegue o culpado é relativamente moderno, e simplificá-
mos demasiado as coisas quando mostrámos o indivíduo detido, no mo-
mento de romper o laço social, pelo medo religioso de um castigo que
seria ele o único a sofrer. Nem por isso é menos verdade que as coisas
tendem a tomar esta forma, e que a tomarão cada vez mais explicita-
mente à medida que a religião, fixando os seus próprios contornos, se
tornar mais francamente mitológica. Aliás, o mito transportará sempre o
traço das suas origens; nunca distinguirá completamente entre a ordem
física e a ordem moral ou social, entre a regularidade deliberada, que
vem da obediência de todos a uma lei, e a que o curso da natureza mani-
festa. Thémis, deusa da justiça humana, é a mãe das Estações do Ano
(áipai) e de Dikè, que representa tanto a lei física como a lei moral. Hoje
ainda mal nos começámos a libertar desta confusão; o seu rasto subsiste
na nossa linguagem. Costumes e moral, regra no sentido de constância e
regra no sentido de imperativo: a universalidade de facto e a universali-
dade de direito exprimem-se pouco mais ou menos da mesma maneira.
A palavra "ordem" não significa, ao mesmo tempo, disposição e voz de
comando?
Falávamos, enfim, de um deus que surgiria para proibir, prevenir ou
punir. A força moral da qual parte a resistência, e caso seja necessário a
130 vingança, encarnar-se-ia, portanto, numa pessoa. Que, na realidade, tenda
assim, muito naturalmente, a tomar aos olhos do homem uma forma
humana, não parece duvidoso; mas, se a mitologia é um produto da natu-

112
A RELIGIÃO ES TÁTICA

reza, é o seu produto tardio, como a planta que dá flores, e os primórdios


da religião foram mais modestos. Um exame atento do que se passa na
nossa consciência mostra-nos que uma resistência intencional, e até mes-
mo uma vingança, nos aparecem para começar como entidades que se
bastam; rodearem-se de um corpo definido, como o de uma divindade
vigilante e vingadora, é já para elas um luxo; a função éfabuladora do
espírito não se exerce, sem dúvida, com um prazer de arte a não ser sobre
representações assim vestidas, mas não as forma de uma só e primeira
vez; começa por tomá-las completamente nuas. Teremos de insistir neste
ponto, que não recebeu suficiente atenção por parte dos psicólogos. Não
está demonstrado que a criança que se magoou contra uma mesa, e que
lhe devolve a pancada recebida, veja na mesa uma pessoa. Nem todos os
psicólogos de resto, muito longe disso, aceitam hoje uma tal interpre-
tação. Mas, depois de terem concedido aqui demasiado à explicação mito-
lógica, não vão depois suficientemente longe quando supõem que a
criança cede simplesmente a uma necessidade de bater suscitada pela
cólera. A verdade é que entre a assimilação da mesa a uma pessoa, e a
percepção da mesa como coisa inerte, há uma representação intermédia
que não é a de uma coisa nem a de uma pessoa: é a imagem do acto que
a mesa realiza batendo, ou melhor a imagem do acto de bater trazendo
consigo - como uma bagagem às costas - a mesa que tem por trás. O acto
de bater é um elemento de personalidade, mas ainda não uma persona-
lidade completa. O esgrimista que vê avançar sobre ele a ponta do seu
adversário sabe bem que foi o movimento da ponta que arrastou a espada,
a espada que puxou consigo o braço, o braço que alongou o corpo ao
alongar-se: não se ataca como deve ser, nem se sabe dirigir um golpe cer-
teiro, antes do dia em que se passam a sentir assim as coisas. Colocá-las
na ordem inversa é reconstruir e, por conseguinte, filosofar; em todo o
caso é explicitar o implícito, em vez de assumir simplesmente asrexigên-
cias da acção pura, aquilo que é imediatamente dado e verdadeiramente
primitivo. - Quando lemos numa tabuleta "Passagem Proibida", começa-
mos por perceber a proibição; esta encontra-se em plena luz; só por trás
dela há na penumbra, vagamente imaginado, o guarda que lavrará o pro-
cesso-verbal. Assim os interditos que protegem a ordem social começam
por ser adiantados, sem mais; é verdade que são já mais que simples
fórmulas; são resistências, pressões e irrupções; mas a divindade que
proíbe, e que elas mascaravam, só aparecerá mais tarde, à medida que se
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO

for completando o trabalho da função efabuladora. Não nos surpreenda-


mos, pois, por não descobrirmos entre os não-civilizados interditos que
são resistências semi-físicas e semi-morais a certos actos individuais: o
objecto que ocupa o centro de um campo de resistência será dito, ao
mesmo tempo, "sagrado" e "perigoso", quando estas duas noções precisas
estiverem constituídas, quando for nítida a distinção entre uma força de
repulsão física e uma inibição moral; até então possui as duas proprie-
dades fundidas numa só; é tabu, para empregarmos o termo polinésio
que a ciência das religiões nos tornou familiar. A humanidade primitiva
terá concebido o tabu da mesma maneira que os "primitivos" de hoje?
Entendamo-nos, antes de mais, sobre o sentido das palavras. Não haveria
132 humanidade primitiva se as espécies se tivessem formado por transições
insensíveis; o homem não teria emergido da animalidade em momento
preciso algum; mas trata-se de uma hipótese arbitrária, que depara com
tais inverosimilhanças e assenta em tais equívocos que a julgamos insus-
tentável '; seguindo o fio condutor dos factos e das analogias, chegamos
antes a uma evolução descontínua, que procede por saltos, obtendo a
cada paragem uma combinação perfeita no seu género, comparável às
figuras que se sucedem quando fazemos rodar um caleidoscópio; existe
pois, realmente, um tipo de humanidade primitiva, ainda que a espécie
humana se tenha podido constituir através de vários saltos convergentes
efectuados a partir de diversos pontos e nem todos eles chegando igual-
mente perto da realização do tipo. Por outro lado, a alma primitiva esca-
par-nos-ia hoje por completo se tivesse havido transmissão hereditária
dos hábitos adquiridos. A nossa natureza moral, tomada no estado bruto,
diferiria então radicalmente da dos nossos antepassados mais longínquos.
Mas é ainda sob a influência de ideias preconcebidas, e para satisfazer as
exigências de uma teoria, que se fala de hábitos hereditários e, sobretudo,
que se crê a transmissão suficientemente regular para operar uma trans-
formação. A verdade é que, se a civilização modificou profundamente o
homem, o fez acumulando no meio social, como num reservatório, hábitos
e conhecimentos que a sociedade verte no indivíduo a cada nova geração.
Raspemos a superfície, apaguemos o que nos vem de uma educação de
todos os instantes: redescobriremos no fundo de nós, ou perto do fundo,
a humanidade primitiva. Os "primitivos" que observamos hoje oferecer-

' Ver L'Evolution créatrice, principalmente os dois primeiros capítulos.

I 114
r •
A RELIGIÃO ES TÁTICA

-nos-ão a imagem dessa humanidade? Não é provável, uma vez que a^


natureza foi coberta, também neles, por uma camada de hábitos que o 133
meio social conservou para os depositar em cada indivíduo/Mas há lugar
para crermos que esta camada seja menos espessa que no homem civili-
zado, e que deixe transparecer um pouco melhor a natureza. A multipli-
cação dos hábitos no decorrer dos séculos deve ter-se, com efeito, operado
neles de uma maneira diferente, à superfície, através de uma passagem
do análogo ao análogo e sob a influência de circunstâncias acidentais, ao
passo que o progresso da técnica, dos conhecimentos, da civilização
enfim, se faz durante períodos suficientemente longos num só e mesmo
sentido, em altura, através de variações que se sobrepõem ou se anasto-
mosam, desembocando assim em transformações profundas e já não
apenas em complicações superficiais. A partir daqui vemos em que
medida podemos ter por primitiva, em absoluto, a noção do tabu que
encontramos entre os "primitivos de hoje" A' supormos que tenha apare-
cido tal qual numa humanidade que saía das mãos da natureza, não se
aplicava a todas as mesmas coisas, nem provavelmente a outras tantas
coisas. Cada tabu devia ser um interdito no qual a sociedade descobria
um interesse definido. Irracional do ponto de vista do indivíduo, uma
vez que detinha instantaneamente actos inteligentes sem se endereçar à
inteligência, era racional na medida em que era vantajoso para a socie-
dade e para a espécie. Foi assim que as relações sexuais, por exemplo,
puderam ser utilmente regradas por tabus. Mas, justamente porque não
se apelava à inteligência individual, e porque se tratava até mesmo de a
contrariar, esta, apoderando-se da noção de tabu, deve ter operado a partir
dela toda a espécie de extensões arbitrárias, por meio de associações de .
ideias acidentais, e sem se preocupar com aquilo a que poderíamos
chamar a intenção original da natureza. Assim, a supormos que o tabu m
tenha sido sempre o que hóje e, não dèviâ'referir : së a um numero tão",
grancle de objectos, nem dar lugar à aplicações tão irrazoáveis. - Mas terá
conservado a sua forma original? A inteligência dos "primitivos" não
difere essencialmente da nossa; deve inclinar-se, como a nossa, a converter
o dinâmico em estático e a solidificar as acções em coisas. : Podemos pois
presumir que, sob a sua influência, os interditos se instalaram nas coisas
a que se reportavam: não eram mais que resistências opostas a tendên-
cias, mas cpmo a tendência tem as mais das vezes um. objecto, foi do
objecto, como se nele residisse, que lhe deve ter parecido partir a resistên-
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO

cia, tornando-se esta desse modo um atributo da sua substância. Nas socie-
dades estagnantes esta consolidação fez-se definitivamente. Pôde ser
menos completa, e em todo o caso temporária, em sociedades em movi-
mento, nas quais a inteligência acabaria por perceber por trás do interdito
uma pessoa.

Acabamos de indicar a primeira função da religião, aquela que inte-


ressa directamente à conservação social. Passemos à outra. É a bem da
sociedade que a veremos ainda trabalhar, mas indirectamente, estimu
lando e dirigindo as actividades intelectuais. O seu trabalho será de resto
mais complicado, e teremos de enumerar as suas formas. Mas não corre-
mos o risco de nos extraviar nesta investigação, pois estamos na posse de
um fio condutor. Devemos continuar a dizer-nos que o domínio da vida é
essencialmente o do instinto, que numa certa linha de evolução o instinto
cedeu uma parte do seu lugar à inteligência, que daí p'ode seguir-se uma
perturbação da vida e que a natureza não tem então outro recurso que
não seja o de opor a inteligência à inteligência. A representação intelectual
que restabelece assim o equilíbrio em proveito da natureza é de ordem
religiosa. Comecemos pelo caso mais simples.
Os animais não sabem que têm de morrer. Há-os, sem dúvida, que dis-
tinguem o morto do vivo: entendamos então que a percepção do morto e
a do vivo não determinam neles os mesmos movimentos, os mesmos
actos, as mesmas atitudes; o que não quer dizer que tenham a ideia geral
da morte, ta! como nâo têm a ideia geral da vida, nem qualquer outra
ideia geral, pelo menos enquanto representada no espírito e não simples-
mente desempenhada pelo corpo. Tal animal "far-se-á de morto" para esca-
par a um inimigo; mas somos nós que designamos assim a sua atitude;
quanto a ele, não se mexe porque sente que mexendo-se atrairia ou reani-
maria a atenção, que provocaria a agressão, que o movimento suscita o
movimento. Houve quem pensasse descobrir casos de suicídio entre os
animais; a supormos que não se trate de um engano, é grande a distância
que vai entre o fazer o que tem de ser feito para se morrer e saber que se
morrerá fazendo o; uma coisa é realizar um acto, ainda que bem combi-
nado, ainda que apropriado, outra imaginar o estado que dele decorrerá.
Mas admitamos até mesmo que o animal tenha a ideia da morte. Não se
representa decerto que está destinado a morrer, que morrerá de morte
natural, se não morrer de morte violenta. Para tanto, seria necessária uma

116
A RELIGIÃO ESTÁTICA

série de observações feitas sobre outros animais, depois uma síntese, por
fim um trabalho de generalização que oferece já um carácter científico.
A supormos que o animal possa esboçar um tal esforço, só o faria por
qualquer coisa que valesse a pena; ora, nada lhe seria mais inútil do que
saber que tem de morrer. O seu interesse será, antes, ignorá-lo. Mas o
homem sabe que morrerá. Todos os outros seres vivos, agarrados à vida,
adoptam simplesmente o seu impulso. Se não se pensam a si mesmos 136
sub specie aelerni, a sua confiança, perpétua intrusão do presente no
futuro, é a tradução deste pensamento em sentimento. Mas com o homem
aparece a reflexão e, consequentemente, a faculdade de observar sem
utilidade imediata, de comparar entre elas observações provisoriamente
desinteressadas, enfim de induzir e de generalizar. Constatando que tudo
o que vive à sua volta acaba por morrer, convence-se de que ele próprio
morrerá. A natureza, ao dotá-lo de inteligência, devia de bom ou mau
-grado'levá-lo a essa conVicçãòrMãs tràíá-se de Uíria cohviéçâo'cjûëse atra-"
vessa no movimento da natureza. Se o impulso de vida jélan de vie]afasta
todos os outros seres vivos da representação da morte, o pensamento da
morte deve abrandar no homem o movimento da vida. Poderá mais tarde
enquadrar-se numa filosofia que elevará a humanidade acima de si
mesma e lhe dará mais força para agir. Mas começa por ser deprimente,
e sê-lo-ia ainda mais se o homem não ignorasse, certo que está de morrer,
a data em que morrerá. O acontecimento bem pode ter de produzir-se:
como se constata a cada instante que não se produziu, a experiência nega-
tiva continuamente repetida condensa-se numa dúvida que ma! chega a
ser consciente atenuando os efeitos da certeza reflectida. Nem por isso é
menos verdade que a certeza de morrer, surgindo com a reflexão num
mundo de seres vivos feito para pensar apenas em viver, contraria a inten-
ção da natureza. Esta vai tropeçar no obstáculo que lhe aconteceu colocar
no seu próprio caminho.-Mas corrige-se de imediato:' À • ideia'de'que*a' "'•" '

morte é inevitável opõe a imagem de uma continuação da vida depois da


morte '; esta imagem, por ela lançada no campo da inteligência onde a 137
ideia acaba de se instalar, repõe as coisas em ordem; a neutralização da
ideia pela imagem manifesta então o próprio equilíbrio da natureza, que
se impede de escorregar. Encontramo-nos, pois, perante o jogo muito par-
1
É óbvio que a imagem só é alucinatória sob a forma que toma para o primitivo.
Sobre a questão geral da sobrevivência explicámo-nos em trabalhos anteriores; volta-
remos a ela'no presente. Ver o capítulo ill, p. 219 e segs., e o capítulo iv, p. 261-262.

117
t
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

ticular de imagens e de ideias que nos pareceu caracterizar a religião nas


suas origens. Encarada deste segundo ponto de vista, a religião é uma
reacção defensiva da natureza contra a representação, pela inteligência,
da inevitabilidade da morte.
Esta reacção interessa tanto à sociedade como ao indivíduo. Não só
porque beneficia do esforço individual e porque esse esforço vai mais
longe quando a ideia de um termo não vem contrariar o impulso, mas
ainda e, sobretudo, porque ela própria tem necessidade de estabilidade e
de duração. Uma sociedade já civilizada arrima-se a leis, a instituições,
até mesmo a edifícios que são feitos para desafiar o tempo; mas as socie-
dades primitivas são simplesmente "construídas de homens": que seria
da sua autoridade, se não se acreditasse na persistência das individuali-
dades que as compõem? Importa, pois, que os mortos continuem presen-
tes. Mais tarde virá o culto dos antepassados. Os mortos ter-se-ão então
aproximado dos deuses. Mas para isso será preciso que haja deuses, pelo
menos em preparação, que haja um culto, que o espírito se tenha franca-
mente orientado na direcção da mitologia. No seu ponto de partida, a
inteligência representa simplesmente os mortos como misturados aos
vivos, numa sociedade à qual podem ainda fazer bem e mal.
Sob que forma os vê sobreviverem? Não esqueçamos que buscamos
138 no fundo da alma, pela via da introspecção, os elementos constitutivos de
uma religião primitiva. Este ou aquele destes elementos pode nunca se
ter produzido no exterior em estado puro. Terá de imediato encontrado
outros elementos simples, da mesma origem, com os quais se terá com-
posto; ou terá sido tomado, quer por si só quer com outros, para servir
de matéria ao trabalho indefinidamente continuado da função efabu-
ladora. Existem assim temas, simples ou complexos, fornecidos pela natu-
reza; e há, por outro lado, mil variações executadas sobre eles pela fan-
tasia humana. Aos próprios temas ligam-se, sem dúvida, as crenças
fundamentais que a ciência das religiões descobre mais ou menos por
toda a parte. Quanto às variações sobre os temas, são os mitos e até mesmo
as concepções teóricas que se diversificam até ao infinito segundo os
tempos e os lugares. Não é duvidoso que o tema simples que acabamos
de indicar se componha imediatamente com outros para fornecer, antes
dos mitos e das teorias, a representação primitiva da alma. Mas terá uma
forma definida fora desta combinação? Se a questão se põe, é porque a
nossa ideia de uma alma sobrevivendo ao corpo recobre hoje a imagem,

118
A RELIGIÃO ESTÁTICA

que se apresenta à consciência imediata, de um corpo que pode sobrevi-


ver a si mesmo. Tal imagem nem por isso existe menos, e basta um
leve esforço para a reapreendermos. É simplesmente a imagem visual do
corpo, desligada da imagem táctil. Ganhámos o hábito de considerar a
primeira como inseparável da segunda, como um reflexo ou um efeito.
0 progresso do conhecimento efectuou-se nesta direcção. Pará a nossa'
ciência, o corpo é essencialmente aquilo que é para o tacto; tem uma
forma e uma dimensão determinadas, independentes de nós; ocupa um
certo lugar no espaço e não pode mudá-lo sem tomar o tempo de ocupar
uma a uma as posições intermédias; a imagem visual que dele temos 139
seria então uma aparência, cujas variações seria preciso sempre corrigir
regressando à imagem táctil; esta seria a coisa mesma, e a outra limitar-
-se-ia a assinalá-la. Mas não é esta a impressão imediata. Um espírito não
prevenido porá a imagem visual e a imagem táctil iro mesmo plano,
atribuir-lhes-á a mesma realidade, e considerá-las-á relativamente inde-
pendentes uma da outra. 0 "primitivo" só tem de se debruçar sobre um
lago para aí se aperceber do seu corpo tai como este é visto, desligado do
corpo que se toca. 0 corpo que toca é, sem dúvida, igualmente um corpo
que vê: o que prova que a película superficial do corpo, que constitui o
corpo visto, é susceptível de se desdobrar, e que um dos dois exemplares
permanece com o corpo táctil. Não é menos verdade que há um corpo
destacável daquele que se toca, corpo sem interior, sem peso, que se trans-
porta imediatamente ao ponto em que está. Que um tal corpo subsista
depois da morte, nada há nele, sem dúvida, que nos convide a crê-lo. Mas
se começarmos por estabelecer em princípio que alguma coisa deve
subsistir, será evidentemente este corpo e nâo o outro, porque o corpo
que tocamos continua presente, permanece imóvel e não tarda a corrom-
per-se, enquanto a película visível pôde refugiar-se pouco importa onde e
continuar viva. A ideia de que o homem sobrevive a si mesmo no estado
de sombra ou de fantasma é, pois, inteiramente natural. Deve ter prece- "
dido, segundo cremos, a ideia mais refinada de um princípio animando o
corpo como um sopro; este sopro (ávEjioç) espiritualizou-se pouco a pouco
em aima (anima ou animus). É verdade que o fantasma do corpo parece
incapaz, por si mesmo, de exercer uma pressão sobre os acontecimentos
humanos, e que todavia é preciso que a exerça, uma vez que foi a exigên
cia de uma acção continuada que fez crer na sobrevivência. Mas aqui 140
intervém um novo elemento.

19
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

Não definiremos por enquanto esta outra tendência elementar. É tão


natural como as duas anteriores; é igualmente uma reacção defensiva da
natureza. Teremos de investigar a sua origem. De momento, considerare-
mos apenas o seu resultado. Desemboca na representação de uma força
que se difunde no conjunto da natureza e se divide entre os objectos e os
seres individuais. Trata-se de uma representação que a ciência das reli-
giões considera, em geral, como primitiva. Falam-nos assim do "mana"
polinésio, cujos análogos encontraríamos noutros lugares sob nomes
diversos: "wakanda" dos sioux, "orenda" dos iroqueses, "pantang" dos
malaios, etc. Segundo alguns, o "mana" seria um princípio universal de
vida e constituiria em particular, para nos servirmos da nossa lingua-
gem, a substância das almas. Segundo outros, seria antes uma força que
viria por acréscimo e que a alma, como do mesmo modo qualquer outra
coisa, poderia captar, mas que não pertenceria essencialmente à alma.
Dürkheim, que parece raciocinar segundo a primeira hipótese, considera
que o "mana" fornece o princípio totémico através do qual os membros
do clã comungariam; a alma seria uma individualização directa do "totem "
e participaria do "mana" através desse intermediário. Não nos incumbe
escolher entre as diversas interpretações. De um modo geral, hesitamos
em considerar como primitiva, queremos dizer como natural, uma repre-
sentação que não formássemos, boje ainda, naturalmente. Entendemos
que aquilo que foi primitivo não deixou de o ser, embora possa ser preciso
um esforço de aprofundamento interno a fim de o redescobrirmos. Mas,
141 seja sob que forma for que se tome a representação em causa, não tere-
mos qualquer dificuldade em admitir que a ideia de uma provisão de
força onde se alimentariam os seres vivos, e até mesmo bom número de
objectos inanimados, é üma das primeiras com que o espírito no seu
caminho depara quando segue uma certa tendência, essa tendência natu-
ral e elementar, que definiremos um pouco mais adiante. Consideremos,
pois, a noção adquirida. Eis o homem provido daquilo a que chamará
mais tarde uma alma. Esta alma sobreviverá ao corpo? Não haveria
qualquer razão que nos fizesse supô-lo se nos ativássemos a ela. Nada diz
que uma potência como o "mana" deva durar mais tempo que o objecto
que a contém. Mas se tivermos começado por estabelecer como princípio
que a sombra do corpo permanece, nada impedirá que aí deixemos o
princípio que imprimiria ao corpo a força de agir. Obteremos uma sombra
activa, actuante, capaz de ter influência sobre os acontecimentos huma-
nos. Tal seria a concepção primitiva da sobrevivência.

120
A RELIGIÃO ES TÁTICA

A influência exercida não seria de resto grande, se a ideia de alma não


viesse juntar-se à ideia de espírito. Esta deriva de uma outra tendência
natural, que teremos também de determinar. Tomemo-la também por
dada, e constatemos que entre as duas noções serão praticadas trocas. Os
espíritos que se supõem presentes por toda a parte na natureza não se
aproximariam tanto da forma humana se as almas não fossem já repre- "
sentadas assim. Pelo seu lado, as almas desligadas dos corpos não teriam
influência sobre os fenómenos naturais se não fossem do mesmo género
que os espíritos, e mais ou menos capazes de tomar lugar entre eles. Os
mortos vão então tornar-se personagens com os quais é preciso contar.
Podem ser nocivos. Podem prestar serviços. Dispõem, até certo ponto,
daquilo a que chamamos as forças da natureza. Tanto no sentido próprio
como no figurado, são eles que fazem a chuva e o bom tempo. Evita-se 142
aquilo que possa irritá-los. Tenta-se captar a sua confiança. Imaginar-
-se-ão mil maneiras de os conquistar, de os comprar, senão até mesmo de ' •
os enganar. Uma vez que adoptou esta via, não há absurdo em que a
inteligência não possa cair. A função efabuladora trabalha já suficiente-
mente bem por si só: que não fará, pois, espicaçada pelo medo e pela
necessidade! Para afastar um perigo ou para obter um favor, oferecer-
-sc-á ao morto tudo o que se creia que ele deseje. Chegar-se-á ao ponto de
cortar cabeças, se se pensar que isso lhe será agradável. As descrições dos
missionários são minuciosas a este respeito. Puerilidades, monstruosi-
dades, é interminável a lista das práticas inventadas aqui pela estupidez
humana. Se nos limitássemos a elas, sentir-nos-íamos tentados a despre-
zar a natureza humana. Mas não devemos esquecer que os primitivos de
hoje ou de ontem, uma vez que viveram tantos séculos como nós, tiveram
todo o tempo para exagerar e como que de exasperar o que poderia haver
de irracional em tendências elementares, bem naturais. Os verdadeiros
primitivos eram sem dúvida mais sensatos,Suma vez que se atinham à
tendência e aos seus efeitos imediatos. Tudo-muda e, como acima dizia-
mos, a mudança operar-se-á à superfície se não. for possível em profundi-
dade. Há sociedades que progridem,..- provavelmente.as que condições.

de existência desfavoráveis obrigaram a um certo esforço pela vida, e que


consentiram então, de longe em longe, em. acentuar o seu esforço de
seguirem um iniciador, um inventor, um homem superior. A mudança é
aqui um acréscimo de intensidade; a sua direcção é relativamente cons-
tante; avança-se em direcção a uma eficácia cada vez mais elevada. Há,

.s 121
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

por outro lado, sociedades que conservam o seu nível, necessariamente


143 bastante inferior. Como apesar de tudo mudam, produz-se nelas, já não
uma intensificação que seria um progresso qualitativo, mas urna multi-
plicação ou um exagero do primitivamente dado: a invenção, se podemos
empregar ainda esta palavra, já não exige esforço. De uma crença que
correspondia a uma necessidade ter-se-á passado a uma crença nova
que se assemelha exteriormente à anterior, que acentua este ou aquele
carácter superficial, mas que já não serve para nada. Doravante, num
movimento que não sai do mesmo lugar, acrescenta-se e aumenta-se sem
cessar. Através do duplo efeito da repetição e do exagero, o irracional
toma-se absurdo, e o estranho monstruoso. Estas extensões sucessivas
devem ter sido por seu turno levadas a cabo, também elas, por indivíduos;
mas aqui já não se fazia sentir a necessidade de superioridade intelectual
para inventar, nem para aceitar a invenção. A lógica do absurdo bastava,
essa lógica que conduz o espírito cada vez mais longe, a consequências
cada vez mais extravagantes, quando parte de uma ideia estranha sem a
. ligar a origens que explicariam a sua estranheza e que impediriam a sua
proliferação. Todos tivemos ocasião de conhecer uma dessas famílias
muito unidas, muito satisfeitas consigo, que se mantêm à parte, por timi-
dez ou por desdém. Não é raro que se observem nelas certos hábitos
bizarros, fobias ou superstições, que poderiam tornar-se graves caso con-
tinuassem a fermentar num recipiente fechado. Cada uma dessas singu-
laridades tem a sua origem. É uma ideia que terá ocorrido a este ou àquele
membro da família, e que os demais terão admitido num movimento de
confiança. E um passeio que se terá feito um domingo, que terá recome-
çado no domingo seguinte, e que passou a impor-se assim todos os domin-
gos do ano: se por desgraça não se fizesse uma vez, não se sabe.o que
poderia acontecer. Para repetir, para imitar, para confiar, basta qãe nos
144 deixemos ir; é a crítica que exige um esforço. - Demo-nos então algumas
centenas de séculos em vez de alguns anos; aumentemos enormemente
as pequenas excentricidades de uma família que se isola: representar-
-nos-emos sem esforço o que deve ter-se passado em sociedades primiti-
vas que permaneceram fechadas e satisfeitas com a sua sorte, em vez de
abrirem janelas para o exterior, de varrerem os miasmas à medida que
estes se formavam na sua atmosfera, e de fazerem um esforço constante
no sentido de alargar o seu horizonte.

122
A RELIGIÃO ES TÁTICA

Acabamos de determinar duas funções essenciais da religião, e encon-


trámos, ao longo da nossa análise, tendências elementares que nos
parecem dever explicar as formas gerais que a religião tomou. Passamos
agora ao estudo destas formas gerais, destas tendências elementares.
O nosso método continuará de resto a ser o mesmo. Estabelecemos uma
certa actividade instintiva; fazendo então surgir a inteligência, investiga-
mos se daí decorrerá uma perturbação perigosa; em tal caso, o equilíbrio
será verosimilmente restabelecido por representações que o instinto
suscitará no interior da inteligência perturbadora: se essas representa-
ções existirem, serão ideias religiosas elementares. Assim, a irrupção vital
ignora a morte. Quando a inteligência emerge sob a sua pressão, aparece
também a ideia da inevitabilidade da morte: para devolver à vida o seu
impulso, afirmar-se-á uma representação antagónica; e dela sairão as
crenças primitivas a respeito da morte. Mas se a morte é o acidente
humano p o r excelência, a' quãíitos outros "acidentes não se encontra
exposta a vida humana! A própria aplicação da inteligência à vida não
abrirá a porta ao imprevisto e não introduzirá o sentimento do risco?
O animal é seguro de si. Entre o fim e o acto, nada nele se interpõe. Se a 145
presa comparece, lança-se sobre ela. Se está à espreita, a sua expectativa
é uma acção antecipada e formará um todo indiviso com a consumação
do acto. Quando o fim definitivo é longínquo, como acontece quando
a abelha constrói a sua colmeia, é um fim que o animal ignora; vê ape-
nas o objecto imediato, e o impulso que tem consciência de assumir é
coextensivo ao acto que se propõe consumar. Mas é da essência da inte-
ligência combinar meios em vista de um fim longínquo, e empreender o
que se não sente inteiramente senhora de realizar. Entre aquilo que faz
e o resultado que quer obter há as mais das vezes, tanto no espaço como
no tempo, um intervalo que deixa uma ampla margem ao acidente.
Começa e para que termine é preciso, segundo a expressão consagrada,
que as circunstâncias a issO' Se'prestem: Pode ter; por outro lado, plena
consciência desta margem de imprevisto. O selvagem que lança a sua
flecha não sabe se ela atingirá o alvo; não há aqui, como quando o animal
se precipita sobre a sua presa, continuidade entre o gesto e o resultado;
surge um vazio, aberto ao acidente, atraindo o imprevisto. Em teoria,
sem dúvida, não deveria ser assim. A inteligência é feita para agir meca-
nicamente sobre a matéria; representa-se, portanto, as coisas mecani-
camente; postula assim o mecanismo universal e concebe virtualmente

1 7.0
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

uma ciência acabada que permitiria prever, no momento em que o acto


se desfere, tudo aquilo com que deparará antes de atingir o alvo. Mas é
da essência de semelhante ideal jamais se realizar e servir quando muito
de estimulante ao trabalho da inteligência. De facto, a inteligência hu-
mana tem de cingir-se a uma acção muito limitada sobre uma matéria
que conhece muito imperfeitamente. Ora, eis a irrupção vital, que não
aceita esperar, que não admite o obstáculo. Pouco lhe importa o acidente,
146 o imprevisto, o indeterminado enfim, que se encontra ao longo do cami-
nho; procede por saltos e vê apenas o termo, uma vez que o impulso
devora o intervalo. É, todavia, preciso que a inteligência tenha conheci-
mento desta antecipação. Vai, com efeito, surgir uma representação, a de
potências favoráveis que se sobreporiam ou se substituiriam às causas
naturais e que prolongariam em acções por elas queridas, em conformi-
dade com os nossos desejos, a operação naturalmente iniciada. Pusemos
um mecanismo em acção, tal é o termo inicial; o mecanismo reaparecerá
na realização do efeito desejado, tal é o termo final: entre os dois inserir-
-se-ia uma garantia extramecânica de sucesso. É verdade que se imagi-
narmos assim potências amigas, interessadas no nosso sucesso, a lógica
da inteligência exigirá que admitamos também causas adversas, potên-
cias desfavoráveis, que expliquem o nosso fracasso. Esta última crença
terá de resto a sua utilidade prática; estimulará indirectamente a nossa
actividade convidando-nos a estar vigilantes. Mas trata-se de algo deri-
vado, e que eu quase diria decadente. A representação de uma força que
impede mal chega a ser posterior, sem dúvida, à de uma força que auxi-
lia; se esta última é natural, a primeira conclui-se dela como uma conse-
quência imediata; mas deverá proliferar sobretudo nas sociedades es-
tagnantes como aquelas a que chamamos hoje primitivas, em que as
crenças se multiplicam indefinidamente por via da analogia, indepen-
dentemente da sua origem. A irrupção vital é optimista. Todas as repre-
sentações religiosas que aqui saem directamente dela poderiam pois defi-
nir-se da mesma maneira: são reacções defensivas da natureza contra a
representação, pela inteligência, de uma margem desencorajadora de
imprevisto, entre a iniciativa tomada e o efeito desejado.
Trata-se de uma experiência que, se quiser, cada um de nós poderá
147 fazer: verá a superstição irromper, diante dos seus olhos, da vontade de
sucesso. Ponhamos certa soma de dinheiro num número da roleta, e espe-
remos que a bola chegue ao fim da sua corrida: no momento em que

124
A RELIGIÃO ESTÁTICA

talvez vá preencher, apesar das suas hesitações, o número que escolhe-


mos, a nossa mão avança para a empurrar, depois para a deter; é a nossa
própria vontade, projectada fora de nós, que cobre aqui o intervalo entre
a. decisão que tomou e o resultado que espera; expulsa assim o acidente.
Mas passemos a frequentar agora as salas de jogo, acostumemo-nos a
elas, e veremos como em breve a nossa mão deixará de se mover; a nossa
vontade retrai-se no interior de si mesma; mas, à medida que se retira,
vem instalar-se no seu lugar uma outra entidade, que emana dela e dela
recebe delegação: é a sorte, em que se transfigura o pressuposto de ganhar.
A sorte não é uma pessoa completa; é preciso um pouco mais para fazer
uma divindade. Mas tem certos elementos da divindade, os suficientes
para que a ela nos confiemos.
É a uma potência deste género que o selvagem apela para que a sua
flecha atinja o alvo. Transponhamos as etapas de uma longa evolução:
teremos os deuses protectores da cidade, que devem garantir a vitória
aos combatentes.
Mas observe-se que em todos estes casos é por meios racionais, por
referência a consecuções mecânicas de causas e de efeitos, que se põem
as coisas em movimento. Cada um começa por aplicar o que de si
depende; é só quando já não se sente capaz de se auxiliar a si mesmo que
se confia a uma potência extramecânica, ainda que esta tenha sido invo-
cada, porque tida por presente, no começo do acto que de maneira
nenhuma se crê que ela dispense. Mas o que poderá induzir aqui em erro
o psicólogo é o facto de a segunda causalidade ser a única mencionada. 148
Da primeira nada se diz, tida por óbvia que é. Rege os actos que são
levados a cabo com a matéria por instrumento; age-se e vive-se a crença
que nela se tem; de que serviria traduzi-la em palavras e explicitar a sua
ideia? Tal só poderia ser útil se se possuísse já uma ciência capaz de com
isso beneficiai. Mas é bom pensar na segunda causalidade, porque pro-
porciona pelo menos um encorajamento e um estimulante. Se a ciência
fornecesse ao não-civilizado um dispositivo que lhe garantisse matema-
ticamente acertar no alvo, seria à causalidade mecânica que ele se ateria
(a supormos, bem entendido, que lhe fosse possível renunciar instanta-
neamente aos seus hábitos de espírito inveterados). À falta dessa ciência,
a sua acção tira da causalidade mecânica tudo o que pode tirar, porque o
vemos retesar o arco e visar; mas o sett pensamento refere-se sobretudo à
causa extramecânica que deverá conduzir a flecha onde é preciso que ela

125
AS DUAS FONTES OA M O R A L E DA RELfClAO

acerte, porque será essa crença a dar-lhe, à falta da arma com que teria a
certeza de atingir o seu alvo, a confiança em si mesmo que lhe permite
visá-lo melhor.
A actividade humana desenrola-se no meio de acontecimentos sobre
os quais exerce influência e dos quais depende também. Tais aconteci-
mentos são previsíveis em parte e, em grande parte, imprevisíveis. Como
a nossa ciência alarga cada vez mais o campo da nossa previsão, con-
cebemos no limite uma ciência integral para a qual deixaria de haver
imprevisibilidade. É por isso que, aos olhos do pensamento reflexivo
do homem civilizado (veremos que as coisas não se passam exacta-
mente do mesmo modo com a sua representação espontânea), o mesmo
encadeamento mecânico de causas e de efeitos com que toma contacto
quando age sobre as coisas deve ser extensivo à totalidade do universo.
Não pode admitir que o sistema de explicação, que convém aos ele-
149 mentos físicos sobre os quais tem preensão, deva dar lugar, quando se
aventura mais longe, a um sistema completamente diferente, aquele
que usa na vida social quando atribui a intenções boas ou más, amigáveis
ou hostis, a conduta dos outros homens a seu respeito. Se o faz, é sem
o saber, não o confessando a si próprio. Mas o não-civilizado, que dis-
põe apenas de uma ciência inextensível, talhada à medida exacta da
acção que exerce sobre a matéria, não pode atirar para o campo do
imprevisível uma ciência virtual que o cobriria por completo e que
abre imediatamente amplas perspectivas à sua ambição. Em vez de se
sentir desencorajado, alarga a esse domínio o sistema de explicação
que usa nas suas relações com os seus semelhantes; acreditará encon-
trar nele potências amigas, expor-se nele a influências malfazejas; de
qualquer maneira, não deparará com o mundo inteiramente estranho.
É verdade que, se génios bons e maus devem prolongar a acção que ele
exerce sobre a matéria, dir-se-ia então que a sua influência se exercerá
já sobre essa mesma acção. O nosso homem falará, pois, como se jamais
contasse, nem sequer no que dele depende, com um encadeamento
mecânico de causas e de efeitos. Mas se não acreditasse neste campo
num encadeamento mecânico, não o veríamos, a partir do momento
em que age, fazer tudo o que pode a fim de desencadear mecanica-
mente o resultado. Ora, quer se trate de selvagens ou de civilizados, se
quisermos saber o fundo do que um homem pensa, devemos reportar-
-nos ao que faz e não ao que diz.

126
A KKLIGIÁO ESTÁTICA

Nos livros tão interessantes e tão instrutivos que consagrou à "menta-


lidade primitiva", o Sr. Lévy-Bruhl insiste na "indiferença desta men-
talidade às causas segundas", no seu recurso imediato a "causas místicas".
"A nossa actividade quotidiana, diz ele, implica uma tranquila e perfeita iso
confiança na invariabilidade das leis naturais. Muito diferente é a atitude
de espírito do primitivo. A natureza no meio da qual vive apresenta-se-
-liie sob um aspecto completamente distinto. Nela todos os objectos e
todos os seres se encontram implicados segundo uma rede de partici-
pações e de exclusões místicas" E um pouco adiante: "O que varia nas
representações colectivas são as forças ocultas às quais se atribuem a
doença ou a morte que sobrevieram: ora é um feiticeiro o culpado, ora o
espírito de um morto, ora forças mais ou menos definidas ou individua-
lizadas [...]; o que permanece semelhante, e poderíamos quase dizer idên-
tico, é a pré-ligação entre a doença e a morte por um lado, e uma potência
invisível por outro" 2 . Em apoio desta ideia, o autor introduz os teste-
munhos concordantes dos viajantes e dos missionários, e cita os mais
curiosos exemplos.
Mas há um primeiro ponto impressionante: é que, em todos os casos
alegados, o efeito do qual se fala, e que é atribuído pelo primitivo a uma
causa oculta, é um acontecimento relativo ao homem, mais particular-
mente um acidente acontecido a um homem, mais especialmente ainda a
morte ou a doença de um homem. A acção do inanimado sobre o inani-
mado (a menos que se trate de um fenómeno, meteorológico ou outro, no
qual o homem tem, por assim dizer, interesses) nunca é referida. Não nos
é dito que o primitivo, vendo o vento curvar uma árvore, a vaga fazer
rolar os seixos, o seu próprio pé levantar poeira, faça intervir outra coisa
além daquilo a que chamamos a causalidade mecânica. A relação cons-
tante entre o antecedente e o consequente, que são ambos percebidos -
por ele, não pode deixar de o impressionar: basta-lhe neste caso, e não 151
vemos que lhe sobreponha, ou menos ainda lhe substitua, uma causali- * •
dade "mística". Vamos mais longe, deixemos de lado os factos físicos a
que o primitivo assiste como espectadorindiferente;.não.se.poderá dizer,
também a seu respeito, que "a sua actividade quotidiana implica uma
perfeita confiança na invariabilidade das leis naturais"? Sem ela, não con-

' La Mentalité primitive, Paris, 1922, pp. 17 18.


2
Ibid., p. 24.

127
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA R E L I G I Ã O

taria com a corrente do rio que move a sua canoa, com a tensão do seu
arco para lançar a sua flecha, com o machado para fender o tronco da
árvore, com os seus dentes para morder ou as suas pernas para andar.
Não pode representar-se explicitamente esta causalidade natural; não tem
qualquer interesse em fazê-lo, pois não é nem físico nern filósofo; mas
tem fé nela e toma-a por suporte da sua actividade. Vamos mais longe
ainda. Quando o primitivo invoca uma causa mística para explicar a
morte, a doença ou qualquer outro acidente, a que operação se entrega ele
ao certo? Vê, por exemplo, que um homem foi morto por um fragmento
de rochedo que se soltou durante uma tempestade. Negará que o rochedo
tenha sido fendido, que o vento tenha arrancado a pedra, que o choque
tenha quebrado um crânio? É evidente que não. Constata como nós a
acção destas causas segundas. Porque é que introduz então uma "causa
mística", como a vontade de um espírito ou de um feiticeiro, para a erigir
em causa principal? Olhemos mais de perto: veremos que aquilo que o
primitivo aqui explica por uma causa "sobrenatural" não é o efeito físico,
é'a sua significação humana, é a sua importância para o homem e mais
particularmente para certo homem determinado, aquele que a pedra
esmaga. Nada há de ilógico, nem por conseguinte de "pré-lógico", nem
tão-pouco nada que testemunhe uma "impermeabilidade à experiência",
152 na crença segundo a qual uma causa deve estar em proporção com o seu
efeito, pelo que uma vez constatadas a fissura do rochedo, a direcção e a
violência do vento - coisas puramente físicas e não preocupadas com a
humanidade -, resta explicar esse facto, para nós capital, que é a morte
de um homem. A causa contém eminentemente o efeito, diziam outrora
os filósofos; e se o efeito tem uma significação humana considerável, a
causa deve ter uma significação pelo menos igual; é em todo o caso da
mesma ordem: é uma intenção. Que a educação científica do espírito o
desabitue desta maneira de raciocinar é um facto que nada tem de duvi-
doso. Nem por isso ela é menos natural; persiste no civilizado e manifesta-
sse sempre que a força antagónica não intervém. Fazíamos notar que o
jogador, que aposta num número da roleta, atribuirá o sucesso ou o insu-
cesso à sorte ou ao azar, quer dizer a uma intenção favorável ou desfa-
vorável: mas não deixará por isso de explicar por causas naturais tudo o
que se passa entre o momento em que aposta o dinheiro e o momento
em que a bola pára; simplesmente, a esta causalidade mecânica, sobre-
porá, no fim, uma escolha semi-voluntária que contrabalança a sua: o

] 28
A RELIGIÃO E STATIC A

efeito último será assim da mesma importância e da mesma ordem que a


primeira causa, que fora igualmente uma escolha. Deste raciocínio muito
lógico apreendemos, também, a origem prática quando vemos o jogador
esboçar um movimento da mão para deter a bola: é a sua vontade de
sucesso, é a resistência a essa vontade que ele objectivará na sorte ou no
azar para deparar com uma potência aliada ou inimiga, e para dar ao jogo
todo o seu interesse. Mas muito mais impressionante ainda é a seme-
lhança entre a mentalidade do civilizado e a do primitivo perante factos
como aqueles que há pouco encarámos: a morte, a doença, o acidente 153
grave. Um oficial que participou na Grande Guerra dizia-nos que sempre
vira os soldados temerem mais as balas que os obuses, embora o tiro da
artilharia fosse muito mais devastador. É que pela bala sentimo-nos visa-
dos, e fazemos contra-vontade o seguinte raciocínio: "Para produzir esse
efeito, tão importante para mim, que seria a morte^ju o ferimento grave,
é necessária uma causa com a mesma importância, é necessária uma
intenção". Um soldado que foi precisamente atingido por um estilhaço
de obus contava-nos que o seu primeiro movimento foi o de exclamar:
"Que estupidez!" Que aquele estilhaço de obus projectado por uma causa
puramente mecânica, e que podia atingir qualquer pessoa ou não atingir
ninguém, tivesse contudo vindo feri-lo, a ele e não a outrem, parecia
ilógico aos olhos da sua inteligência espontânea. Fazendo intervir a "má
sorte", teria manifestado ainda melhor o parentesco existente entre esta
inteligência espontânea e a mentalidade primitiva. Uma representação
rica em matéria, como a ideia de um feiticeiro ou de um espírito, deve
sem dúvida abandonar a maior parte do seu conteúdo para se tornar na
da "má sorte"; subsiste apesar disso, não se esvazia por completo, e conse-
quentemente as duas mentalidades não diferem no essencial uma da
outra. I •

Os exemplos tão variados de "mentalidade primitiva"que o Sr. Lévy- • •


-Brühl acumulou nos seus trabalhos agrupam-se sob um certo número de
rubricas. Os mais numerosos.são os que.documentam, segundo.o autor,...:.
uma obstinação do primitivo em nada admitir de fortuito. Que uma pedra
caia e esmague um transeunte: foi um espírito maligno que a despren-
deu, não há acaso. Que um homem seja arrancado da sua canoa por um
caimão: estava enfeitiçado, não há acaso. Que um guerreiro seja morto ou 154
ferido por uma lança: não podia defender-se por ter sido objecto de um

129
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA REI.IGIÄO

mau-olhado, não há acaso \ A formula aparece com tanta frequência que


podemos considerá-la como equivalendo a um dos caracteres essenciais
da mentalidade primitiva. - Mas, diremos nós ao eminente filósofo que
acusa o primitivo de não acreditar no acaso, ou que pelo menos constata,
tornando esse aspecto um traço característico da sua mentalidade, que o
primitivo não acredita nele, não admitirá o senhor que há acaso? E, se
o admite, terá a certeza de não recair nessa mentalidade primitiva que
critica, que entende pelo menos distinguir essencialmente da sua? Reco-
nheço que o senhor não faz do acaso uma força actuante. Mas se ele
fosse para si um nada, não falaria dele. Teria a palavra por inexistente, tal
como a coisa. Ora, a palavra existe, e o senhor serve-se dela, ela represen-
ta para si alguma coisa, como para todos nós, aliás. Perguntemo-nos então
o que poderá ela de facto representar. Uma telha enorme, arrancada pelo
vento, cai e atinge um transeunte. Dizemos que foi um acaso. Di-lo-íamos
igualmente, caso a telha se tivesse limitado a quebrar-se no chão? Talvez,
mas é que pensaríamos então vagamente num homem que teria podido
estar no local, ou porque, por uma razão ou por outra, esse ponto especial
do passeio nos interessava particularmente, de tal maneira que a telha
parece tê-lo escolhido para cair. Nos dois casos, só há acaso porque está
em jogo um interesse humano e porque as coisas se passaram como se o
155 homem tivesse sido tomado em consideração 2 , ou a f i m de beneficiar de
um serviço ou, pelo contrário, devido a uma intenção que visaria preju-
dicá-lo. Pensemos simplesmente no vento que arranca a telha, na telha
que cai no passeio, no choque da telha com o chão: será puro mecanismo
o que veremos, o acaso dissipar-se-á. Para que intervenha, é preciso que
tendo o efeito uma significação humana, essa significação ressalte sobre
a causa e a tinja, por assim dizer, de humanidade. O acaso é, pois, o meca-
nismo que se comporia como se tivesse uma intenção. Dir-se-á talvez
que, precisamente porque usamos a palavra quando as coisas se passam
como se tivesse havido intenção, não supomos então uma intenção real,
reconhecemos, pelo contrário, que tudo se explica mecanicamente. O que
seria muito correcto, caso existisse apenas o pensamento reflexivo, plena-
mente consciente. Mas abaixo deste há um pensamento espontâneo e

1
Ver em particular ia Mentalité primitive, p. 28,36,45, etc. Cf. Les fonctions mentales
dans les sociétés inférieures, p. 73.
2
Desenvolvemos esta concepção do acaso num curso leccionado no Collège de
France em 1898, a propósito do nep\ etnapnévriç de Alexandre de Afrodisiade.

î 13°
A REI.IGIÃO ESTÁTICA

semi-consciente, que sobrepõe ao encadeamento mecânico das causas e


dos efeitos qualquer coisa de completamente diferente, náo decerto para
dar conta da queda da telha, mas para explicar que a queda tenha coin-
cidido com a passagem de um homem, que tenha escolhido justamente
esse instante para se dar. O elemento de escolha ou de intenção é tão
limitado quanto possível; recua à medida que a reflexão quer captá-lo; é
fugidio ou até mesmo evanescente; mas se fosse inexistente,; falar-se-ia
apenas de mecanismo, não se poria a questão do acaso. O acàso é, por-
tanto, uma intenção que se esvaziou do seu conteúdo. Não passa de uma
sombra; mas, à falta da matéria, a forma está presente nele. Teremos aqui
uma dessas representações a que chamamos "realmente primitivas", es-
pontaneamente formadas pela humanidade em virtude de uma'tendência
natural? Não inteiramente. Por espontânea que seja ainda, a ideia de acaso 156
só chega à nossa consciência depois de ter atravessado a camada de
experiências acumuladas que a sociídade depõe em nós, a partir do dia
em que nos ensina a falar. É ao longo deste trajecto que se esvazia, en-
quanto uma ciência cada vez mais mecanicista dela expulsa o que ela
continha de finalidade. Seria, pois, preciso preenchê-la, dar-lhe um corpo,
se quiséssemos reconstituir a representação original. 0 fantasma de inten
ção tornai se-ia então uma intenção viva. Inversamente, seria preciso dar
a esta intenção viva demasiado conteúdo, lastrá-la exageradamente de
matéria, para obtermos as entidades maléficas ou benéficas em que os
não-civilizados pensam. Nunca o repetiremos demais: essas superstições
implicam habitualmente um aumento, um exagero, qualquer coisa em
suma de caricatural. Assinalam, as mais das vezes, que o meio se desligou
do seu fim. Uma crença inicialmente útil, que estimulava a vontade, ter
-se-á transferido do objecto no qual tinha a sua razão de ser para objectos
novos, e:m que já não serve para nada, podendo até mesmo tornar-se peri-
gosa. Depois de se ter preguiçosamente multiplicado, por meio de uma
imitação por completo exterior de si mesma, o seu efeito passa agora a
ser o de encorajar a preguiça. Seja como for, não exageremos. É raro que
o primitivo sinta que ela o dispensa de agir. Há indígenas dos Camarões
que acusarão exclusivamente os feiticeiros se um dos seus for devorado
por um crocodilo; mas o Sr. Lévy-Bruhl, que refere o facto, acrescenta,
apoiando-se no testemunho de um viajante, que os crocodilos da região
quase nunca atacam o homem Podemos estar certos de que, nas regiões

' La mentalité primitive, p. 38. .

j '-• 131 -28


A3 DUAS FONTES DA M O R A L E DA R E L I G I Ã O

onde o crocodilo é regularmente perigoso, o indígena se absterá como


157 nós de entrar na água: o animal meter-lhe-á então medo, com ou sem
malefício. Nem por isso é menos verdade que, para passarmos desta "men-
talidade primitiva" a estados de alma que sejam igualmente nossos, há as
mais das vezes duas operações a realizar. Devemos, em primeiro lugar,
supor abolida toda a nossa ciência. Devemos, em seguida, deixar-nos guiar
por uma certa preguiça, afastarmo-nos de uma explicação que adivinha-
mos mais razoável, mas que exigiria um maior esforço da inteligência e
sobretudo da vontade. Em muitos casos uma só das operações é sufi-
ciente; noutros, teremos de combinar as duas.
Consideremos, por exemplo, um dos mais curiosos capítulos do Sr. Lévy-
-Bruhl, o que trata da primeira impressão produzida nos primitivos pelas
nossas armas de fogo, a nossa escrita, os nossos livros, e n f i m o que lhes
levávamos. Trata-se de uma impressão que começa por desconcertar-nos.
Sentir-nos-íamos tentados, com efeito, a atribuí-la a uma mentalidade dife-
rente da nossa. Mas quanto mais afastarmos do nosso espírito a ciência
gradual e quase inconscientemente adquirida, mais natural nos parecerá
a explicação "primitiva". Eis pessoas diante das quais um viajante abre
um livro, e às quais é dito que esse livro é portador de informações. As
pessoas concluem que o livro fala, e que aproximando dele o ouvido per-
ceberão um som. Mas esperar outra coisa de um homem estranho à nossa
civilização é pedir-lhe muito mais do que uma inteligência como a da
maioria de entre nós, mais até do que uma inteligência superior, mais do
que génio: é querer que ele invente a escrita. Porque se o homem se repre-
sentasse a possibilidade de desenhar um discurso numa folha de papel,
estaria na posse do princípio de uma escrita alfabética ou, mais geralmente,
fonética; teria alcançado, de uma só e primeira vez, o ponto que entre os
158 civilizados só pôde ser alcançado pelos esforços acumulados de um grande
número de homens superiores. Não falemos, pois, aqui de espíritos diferen-
tes do nosso. Digamos simplesmente que ignoram o que nós aprendemos.
Há agora, acrescentávamos, casos em que a ignorância é acompanhada
de uma repugnância pelo esforço. Tais seriam os que o Sr. Lévy-Brühl
classificou na rubrica "ingratidão dos doentes". Os primitivos que são
tratados por médicos europeus não lhes ficam agradecidos; muito mais,
esperam do médico uma retribuição, como se f o s s e m eles que lhe
tivessem prestado o serviço. Mas não tendo ideia alguma da nossa medi-
cina, não sabendo o que é uma ciência redobrada de uma arte, vendo por

132^
A RELIGIÃO E STATIC A

outro lado que o médico está longe de conseguir curar sempre o seu doen
te, considerando enfim que aquele emprega tempo e esforço na sua tarefa,
como não se diriam que o médico deverá ter algum interesse, que igno-
ram qual seja, em fazer o que faz? Como também, de preferência a traba-
lharem no sentido de se desfazerem da sua ignorância, não adoptariam
naturalmente a interpretação que começa por lhes passar pelo espírito e
da qual podem extrair proveito? É o que pergunto ao autor de "A Menta-
lidade Primitiva", e evocarei aqui uma recordação muito antiga, embora
só um nada mais velha do que a nossa velha amizade. Eu era criança, e
tinha maus dentes. O que tornava forçoso que me levassem de vez em
quando ao dentista, que prontamente atacava o dente culpado; arran-
cava' o sem piedade. Seja dito entre nós que a minha dor nâo era grande,
uma vez que os dentes arrancados eram desses que de qualquer modo
em breve cairiam por si sós; mas antes ainda de me ver instalado na
cadeira de báscula, soltava já gritos medonhos,por uma questão de princí- •
pio. A minha família acabou, contudo, por descobrir uma maneira de me
calar. Estrondosamente, no copo que me serviria para enxaguar a boca a
seguir a operação (a esterilização era desconhecida nesses tempos remo-
tos) o dentista deixava cair uma moeda de cinquenta cêntimos, cujo poder 159
de compra, ao tempo, equivalia a dez pauzinhos de açúcar. Eu teria já uns
seis ou sete anos, e não era mais tolo que os demais. Dispunha decerto de
recursos suficientes para ser capaz de adivinhar a colusão entre o dentista
e a minha família que visava comprar o meu silêncio, e o facto de à minha
volta haver assim quem conspirasse tendo em vista o meu bem. Mas
teria sido preciso um leve esforço de reflexão, e eu preferia não o forne-
cer, provavelmente por preguiça, talvez também para não ter de mudar
de atitude perante um homem que me deixava - c caso de o dizer - um
mau gosto na boca. Deixava-me por isso levar a não pensar, e a ideia que
devia fazer do dentista desenhava-se então por si mesma em traços lumi-
nosos no meu espírito. Tratava-se evidentemente de um homem cujo
maior prazer era arrancar dentes, e que se dispunha inclusivamente a
pagar uma soma de cinquenta cêntimos para o poder fazer.
Mas fechemos este parênteses e resumamos o que dissemos. Na
origem das crenças que acabamos de encarar encontrámos uma reacção
defensiva da natureza contra um desencorajamento que teria na inteligên-
cia a sua fonte. Esta reacção suscita, no interior da própria inteligência,
imagens e ideias que põem em xeque a representação deprimente, ou

133
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA R E L I G I Ã O

que a impedem de se actualizar. Surgem entidades que não precisam de


ser personalidades completas: basta que tenham intenções ou, até mesmo,
que simplesmente coincidam com elas. Crença significa, portanto, essen-
cialmente confiança; a origem primeira não é o medo, mas uma garantia
contra o medo. E, por outro lado, não é necessariamente uma pessoa que
a crença começa por tomar por objecto; basta-lhe um antropomorfismo
parcial. Tais são os dois pontos que nos impressionam quando considera-
160 mos a atitude natural do homem frente a um futuro no qual pensa pelo
próprio facto de ser inteligente, e com o qual se alarmaria, em razão do
que nele descobre de imprevisível, se se ativesse à representação que
desse futuro a pura inteligência lhe dá. Mas tais são também as duas
constatações que se podem fazer em casos em que já não se trata do
futuro, mas do presente, e em que o homem é joguete de forças enorme-
mente superiores à sua. Contam-se neste número as grandes alterações,
(f como um tremor de terra, uma cheia, um vendaval. Uma teoria já antiga
fazia nascer a religião do medo que em casos semelhantes a natureza nos
inspira: Primus in orbe deos fecit timor. A sua rejeição completa foi um
gesto excessivo: a emoção do homem perante a natureza intervém, pois,
em certa medida, na origem das religiões. Mas, uma vez mais, a religião é
menos o medo que uma reacção contra o medo, e não é imediatamente
crença em deuses. Não será inútil procedermos aqui a esta dupla verifi-
cação. Não se limitará a confirmar as nossas análises anteriores; permitir-
-nos-á também apreciar de mais perto essas entidades das quais dissemos
que participam da personalidade sem serem ainda pessoas. Pode ser que
delas venham os deuses da mitologia; serão obtidos através de um enri-
quecimento. Mas poderia extrair-se igualmente delas, empobrecendo-as,
essa força impessoal que, é-nos dito, os primitivos põem no fundo das
coisas. Sigamos pois o nosso método habitual. Perguntemos à nossa cons-
ciência, desembaraçada do adquirido, devolvida à sua simplicidade origi-
nal, como replica ela a uma agressão da natureza. A observação de si é
aqui bastante difícil, dada a qualidade repentina dos acontecimentos
graves; as ocasiões que tem de se exercer a fundo são, aliás, raras. Mas
certas impressões de outrora das quais conservámos apenas uma recor-
161 dação confusa, e que eram já superficiais e vagas, tornar-se-ão talvez mais
nítidas e ganharão mais relevo se as completarmos por meio da obser-
vação que realizou sobre si mesmo um mestre da ciência psicológica.
William fames encontrava-se na Califórnia na altura do terrível tremor

134 i
F
A RELIGIÃO E STATIC A

de terra de Abri! de 1906, que destruiu uma parte de S. Francisco. Eis a


tradução muito imperfeita das páginas verdadeiramente intraduzíveis
que ele escreveu a esse propósito:

Quando troquei Harvard pela Universidade de Stanford, em Dezem-


bro, a última pessoa de que me despedi, ou quase a última, foi o meu
velho amigo B***, um californiano: "Espero", disse-me ele, "que lhe dêem
também um tremorzinho de terra enquanto lá estiver, o que será uma
maneira de o fazer conhecer essa instituição californiana tão peculiar".
Por conseguinte, quando, deitado mas ainda desperto, por volta das
cinco e meia da manhã do dia 18 de Abril, 110 meu pequeno apartamento
da cidade universitária de Stanford, me dei conta de que a minha cama
começava a oscilar, a minha primeira impressão foi a de reconhecer ale-
gremente o que significava aquele movimento: "Olha/ olha", disse para ...
comigo, "mas cá está o velho tremor de terra do meu amigo B***! Sempre
terá chegado, afinal?" Depois, durante o crescendo do abalo: "Sim senhor,
para um tremor de terra, não está nada mail..."
0 terramoto não durou mais de 48 segundos, como o Observatório
Lick nos fez saber um pouco mais tarde. E foi mais ou menos isso que me
pareceu durar, embora a outros o intervalo tenha parecido mais longo.
No meu caso, a sensação e a emoção foram tão fortes que pouco pensa-
mento coube, e nenhuma reflexão, nenhuma volição, no pouco tempo
que o fenómeno ocupou.
A minha emoção era inteiramente de exaltação e de admiração: exal-
tação perante a intensidade da vida que uma ideia abstracta, uma pura
combinação verbal como "tremor de terra", podia assumir uma vez tradu-
zida em realidade sensível e tornada objecto de uma verificação concreta;
admiração perante o facto de uma frágil casinha de madeirapoder aguen-
tar-se em pé, a despeito de tamanho abalo. Nem a sombra 5e um medo;
simplesmente um prazer extremo, cheio de votos de boas-vindas.
Quase grilava: "Avança, vamos lá! Avança com mais forçai.."
Quando fui, enfim, capaz de pensar, distingui retrospectivamente cer-
tas modalidades muito peculiares do acolhimento que a minha consciên-
cia dera ao fenómeno. Tratava-se de algo de espontâneo c, por assim dizer,
de inevitável e de irresistível.
Em primeiro lugar, personificava o tremor de terra numa entida-
de permanente e individual. Era o tremor de terra da predição do meu 162

135
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA R E L I G I Ã O

amigo B***, tremor que se mantivera sossegado, que se retivera durante


todos os. meses intermédios para, enfim, naquela memorável manhã de
Abril, invadir o meu quarto e se afirmar tão enérgica e triunfalmente.
Além disso, era a mim que se dirigia em linha recta. Insinuava-se dentro
de casa, nas minhas costas; e uma vez no quarto, tinha-me só para si, o
que lhe permitia manifestar-se da maneira mais convincente. Nunca a
animação e a admiração estiveram mais presentes numa acção humana.
Nunca, também, uma actividade humana fez mais nitidamente ver por
trás de si, como fonte e origem, um agente vivo.
Todos os que interroguei a este respeito foram, de resto, concordantes
sob certo aspecto da sua experiência: "Ele mostrava uma intenção", "Tinha
metido na cabeça destruir", "Queria mostrar a sua força", etc., etc. A mim,
queria simplesmente manifestar a plena significação do seu nome. Mas
quem era "ele"? Para alguns, provavelmente, uma vaga de poder demo-
níaco, Para mim, um ser individualizado, o tremor de terra de B***.
Uma das pessoas que comunicaram as suas impressões acreditara que
era o fim do mundo, o início do juízo final. Tratava-se de uma senhora
hospedada num hotel de S. Francisco, a cujo espírito a ideia de um tremor
de terra só ocorreu quando se viu na rua e ouviu essa explicação da boca
de outras pessoas. Disse-me que a sua interpretação teológica a preservara
do medo, e a fizera aceitar calmamente o abalo.
Para "a ciência", quando as tensões da crosta terrestre atingem o pon-
to de ruptura, e os seus estratos sofrem uma modificação de equilíbrio, o
tremor de terra é muito simplesmente o nome colectivo de todas as fissu-
ras, de todos os abalos, de todas as perturbações que se produzem. Estas
últimas são o tremor de terra. Mas, para mim, era o tremor de terra a
causadas perturbações, e a minha percepção do abalo como de um agente
vivo era irresistível. Tinha uma força dramática de convicção que tudo
arrastava consigo.
Vejo melhor agora como eram inevitáveis as antigas interpretações
mitológicas das catástrofes deste género, e como são artificiais, como con-
trariam a nossa percepção espontânea, os hábitos posteriores que a ciên-
cia através da educação imprime em nós. Era simplesmente impossível a
espíritos não educados acolher as impressões do tremor de terra de outra
maneira que não fosse como um aviso ou uma sanção sobrenatural '.

' William James, Memories and Studies, p. 209-214. Citado por H. M Kalleii em Why
Religion, Nova York, 1927.

136
A R E U G l A O ESTÁTICA

Notar-se-á, em primeiro lugar, que James fala do tremor de terra como


de um "ser individualizado"; constata que o tremor de terra "se personifica 163
para ele numa entidade permanente e individual". Mas não diz que haja
- deus ou demónio - uma personalidade completa, capaz de acções diver-
sas, e da qual o tremor de terra seria uma manifestação particular. Pelo
contrário, a entidade de que se trata é o próprio fenómeno, considerado "
portanto como permanente; a sua manifestação entrega-nos a sua essên-
cia; tem por única função ser tremor de terra; há uma alma, mas que é a
animação do acto através da sua intenção \ Se o autor nos diz que "nunca
actividade humana fez mais nitidamente ver por trás de si como fonte e
origem um agente vivo", entende por isso que a intenção e a "animação"
pareciam pertencer ao tremor de terra, como pertencem a um agente
vivo, situado por trás deles, os actos que esse agente leva a cabo. Mas toda
a descrição testemunha que o agente vivo é aqui o próprio tremor de
terra, que este não tem outra actividade, outra propriedade, que aquilo *
que é coincide, por conseguinte, com aquilo que faz. Uma entidade deste
género, cujo ser e o parecer são um só, que se confunde com um acto
determinado e cuja intenção é imanente a esse mesmo acto, sendo ape-
nas o seu desenho e a sua significação consciente, é precisamente aquilo
a que chamávamos um elemento de personalidade.
Há agora um outro ponto que não pode deixar de impressionar.
O tremor de terra de S. Francisco foi uma grande catástrofe. Mas a James,
colocado bruscamente diante do perigo, aparece com não sei bem que ar
simplório, que lhe permite tratá-lo com familiaridade. "Olha, olha, mas cá
está o velho tremor de terra". A impressão de outras testemunhas fora
análoga. O abalo era "perverso"; tinha a sua ideia; "tinira metido na cabeça 164
destruir". É assim que se fala de um mau rapaz, com o qual nem por isso
se terão quebrado necessariamente todas as relações. O medo que paralisa
é o que nasce do pensamento de que há forças formidáveis e cegas incons-
cientemente prontas a esmagarem-nos. É assim que o mundo material
surge perante a pura inteligência. A concepção científica do tremor de
terra, a que James alude nas suas últimas linhas, será a mais perigosa de
todas enquanto a ciência, que nos traz a visão nítida do perigo, não nos
tiver fornecido algum meio de lhe escaparmos. Contra esta concepção
científica, e mais geralmente contra a representação intelectual que ela
veio precisar, produz-se uma reacção defensiva perante o perigo grave e

' "Animus and intent were never more present in any human action ".

137
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA REL1G1ÀO

súbito. As perturbações com que nos confrontamos, e cada uma das quais
é inteiramente mecânica, compõem se num Acontecimento que se parece
com alguém, alguém que talvez seja má pessoa, mas que nem por isso é
menos deste mundo, por assim dizer. Não se trata de um ser que nos seja
estranho. Entre ele e nós parece-nos possível uma certa camaradagem.
O que basta para dissipar o susto ou, antes, para o impedir de nascer. De
uma maneira geral, o susto é útil, como todos os outros sentimentos. Um
animal inacessível ao medo não saberia fugir nem proteger-se; em breve
sucumbiria no decurso da luta pela vida. Podemos, pois, explicar a exis-
tência de um sentimento como o medo. Compreende-se também que o
medo seja proporcional à gravidade do perigo. Mas é um sentimento que
retém, que afasta, que recua: é essencialmente inibitório. Quando o perigo
é extremo, quando o medo atingiria o seu paroxismo e se tornaria para-
165 lisador, produz-se uma reacção defensiva da natureza contra a emoção
que era igualmente natural. A nossa faculdade de sentir não pode sem
dúvida modificar-se, continua a ser o que era; mas a inteligência, sob a
pressão do instinto, transforma pelo seu lado a situação. Suscita a ima-
gem que tranquiliza. Dá ao Acontecimento uma unidade e uma indivi-
dualidade que fazem dele um ser malicioso ou mau, talvez, mas próximo
de nós, com qualquer coisa de sociável e de humano.
Peço ao leitor que interrogue as suas recordações. Se não me engano
muito, confirmarão a análise de James. Permitir-me-ei, em todo o caso,
evocar aqui uma ou duas das minhas. A primeira remonta a tempos muito
antigos, uma vez que eu era então muito jovem e praticava desportos, em
particular a equitação. Eis que um belo dia, por se ter cruzado na estrada
com essa aparição fantástica que era um ciclista empoleirado num velo-
cípede altíssimo, o cavalo que eu montava teve medo e tomou o freio nos
dentes. Que se tratava de uma coisa que podia acontecer e que houvesse
nesse caso certas coisas a fazer ou pelo menos a tentar, eu sabia-o pomo
toda a gente que tenha frequentado um picadeiro. Mas a eventualidade
nunca se apresentara ao meu espírito a não ser sob uma forma abstracta.
O facto de o acidente se ter efectivamente produzido num ponto deter-
minado do espaço e do tempo, de me ter acontecido a mim e não a ôutro,
parecia-me implicar uma preferência referida à minha pessoa. Quem me
escolhera então? Não era o cavalo. Não era um ser completo, fosse esse
ser qual fosse, bom génio ou mau. Era o próprio acontecimento, um indi-
víduo que não tinha corpo que lhe pertencesse, porque não era senão a
síntese das circunstâncias, mas que tinha uma sua alma muito elementar,

138
A RELIGIÃO E STATIC A

e que mal se distinguia da intenção que as circunstâncias pareciam mani-


festar. Seguia-me na minha corrida desordenada, maliciosamente, para
ver como eu me sairia. E eu não tinha outra preocupação que não fosse a 166
de mostrar-lhe í) que sabia fazer. Se não experimentava o mínimo susto,
era justamente por estar mergulhado nessa preocupação; era também,
talvez, porque â malícia do meu singular companheiro não excluía uma
certa bonomia. Pensei muitas vezes neste incidente, e disse para comigo
que a natureza não teria imaginado outro mecanismo psicológico se
tivesse querido, ao dar-nos o medo como uma emoção útil, preservar-nos
dos seus efeitos nos casos em que podemos fazer algo mais do que dei-
xar-nos levar por ele.
Acabo de citar um exemplo em que o 'carácter de "bom rapaz" do Aci-
dente é o seu traço mais impressivo. Eis um outro, que talvez ponha
melhor em relevo a sua unidade, a sua individualidade, a nitidez com que
se recorta na continuidade do real. Ainda criança em 187i, ; naá vésperas " ••
da guerra, considerara, como todos os membros da minha geração, uma
nova g u e r r a * iminente ao longo dos doze ou quinze anos seguintes.
Depois essa guerra passou a parecer-nos ao mesmo tempo provável e
impossível: ideia complexa e contraditória que persistiu até. â data fatal.
Não suscitava do mesmo modo no nosso espírito imagem alguma, para
além da sua expressão verbal. Conservou o seu carácter abstracto até às
horas trágicas em que o conflito se revelou como inevitável, até ao último
momento, numa altura em que era já contra toda a esperança que esperá-
vamos. Mas quando, no dia 4 de Agosto de 1 9 1 4 , ao abrir um exemplar
do Matin, li em grandes caracteres "A Alemanha declara guerra à França",
tive a sensação súbita de uma invisível presença que todo o passado pre-
parara e anunciara, à maneira de uma sombra que precede o corpo que a
projecta. Foi como se um personagem lendário, evadido de um livro onde
se contasse a sua história, se instalasse tranquilamente no quarto. Para 167
dizer a verdade, não me confrontava com.o. personagem completo..Só
havia dele o que era necessário à obtenção de um certo efeito. Esperara a
sua hora; e sem cerimónias, familiarmente, sentava se agora no seu lugar.
Fora para intervir nesse momento, naquele lugar, que se misturara obs-
curamente a toda a minha história. Era Compor aquele quadro, os aposen-
tos com os seus móveis, o jornal aberto em cima da mesa, eu de pé diante
dela, o Acontecimento que impregnava tudo com a sua presença, o que

* Bergson refere-se aqui à Primeira Grande Guerra (N. do T.).

39
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

visavam quarenta e três anos de inquietação confusa. Apesar da minha


perturbação, e embora uma guerra, ainda que vitoriosa, me parecesse
uma catástrofe, experimentava aquilo de que fala James, um sentimento
de admiração pela facilidade com que se efectuara a passagem do abs-
tracto ao concreto: quem teria acreditado que uma eventualidade tão
formidável pudesse fazer a sua entrada no real com tão pouco embaraço?
Esta impressão de simplicidade dominava tudo. Reflectindo nela, damo-
-nos conta de que se a natureza quisesse opor uma reacção defensiva ao
medo, prevenir uma contracção da vontade perante a representação de-
masiado inteligente de um cataclismo com repercussões sem fim, suscita-
ria precisamente entre nós e o acontecimento simplificado, transmutado
em personalidade elementar, esta camaradagem que nos põe à vontade,
nos descontrai, e nos dispõe a fazer muito simplesmente o nosso dever.
Teremos de buscar estas impressões fugidias, de pronto apagadas pela
reflexão, se quisermos reencontrar alguma coisa daquilo que terão podido
experimentar os nossos antepassados mais longínquos. Não hesitaríamos
em fazê-lo, se não estivéssemos imbuídos do preconceito segundo o qual
as aquisições intelectuais e morais da humanidade, incorporando-se na
substância dos organismos individuais, se transmitiram hereditaria-
rnente. Nasceríamos, pois, completamente diferentes do que os nossos
168 antepassados foram. Mas a hereditariedade não tem essa virtude. Não
pode transformar em disposições naturais os hábitos contraídos de gera-
ção em geração. Se tivesse algum domínio sobre o hábito, esse domínio
seria bem pequeno, não mais que algo de acidental e de excepcional; mas
nenhum tem decerto. O natural é, pois, hoje o que foi sempre. É verdade
que as coisas se passam como se se tivesse transformado, uma vez que o
cobre agora todo o adquirido da civilização, moldando a sociedade os
indivíduos através de uma educação que prossegue sem interrupções
desde qüe nascem. Mas basta que uma surpresa brusca paralise estas
actividades superficiais, que a luz à qual trabalham se apague por um
instante: imediatamente o natural reaparece, como a imutável estrela na
noite. Orpsicólogo que quer remontar ao primitivo deverá transportar-se
a essas experiências excepcionais. Nem por isso abrirá mão do seu fio
condutor, não esquecerá que a natureza é utilitária, e que não há instinto
que não tenha a sua função; os instintos a que poderíamos chamar inte-
lectuais são reacções defensivas contra o que haveria de exagero e, sobre-
tudo, de prematuramente inteligente na inteligência. Mas os dois méto-

140
A REI.IGIÃO ESTÁTICA

dos prestar-se-ão um mútuo apoio: um servirá sobretudo a investigação,


o outro a verificação. É o nosso orgulho, é um duplo orgulho que comum-
mente nos afasta de tal caminho. Queremos que o homem nasça superior
ao que foi outrora: como se o verdadeiro mérito não residisse 110 esforço!
Como se uma espécie na qual cada indivíduo tem de ascender acima de
"si mesmo, por meio de uma laboriosa assimilação de todo o passado, não
valesse pelo menos tanto como outra em que cada geração fosse global-
mente levada a um nível superior ao das anteriores por meio do jogo
automático da hereditariedade! Mas há ainda um outro orgulho, o da
inteligência, que não quer reconhecer a sua sujeição original a necessi- 169
dades biológicas. Não estudaríamos uma célula, um tecido, um órgão,
sem nos ocuparmos da sua função; no próprio domínio psicológico, não
consideraríamos ter feito jus a um instinto se o não ligássemos a uma
necessidade da espécie; mas uma vez chegados à inteligência, adeus natu-
reza, adeus vida! A inteligência seria aquilo que é "por nada, só por prazer"." 1,
Como se não correspondesse de início, também ela, a exigências vitais!
O seu papel original é resolver problemas análogos aos que resolve o
instinto, através de um método muito diferente, é verdade, que assegura
o progresso e que não pode praticar-se sem uma independência completa
em relação à natureza. Mas esta independência é limitada de facto: de-
tém-se no momento preciso em que a inteligência iria contra o seu fim,
lesando um interesse vital. A inteligência é, portanto, necessariamente
vigiada pelo instinto, ou antes pela vida, origem comum do instinto e da
inteligência. Não queremos dizer outra coisa quando falamos de instin-
tos intelectuais: estamos perante representações formadas pela inteligên-
cia naturalmente, a fim de se garantir por meio de certas convicções con-
tra certos perigos do conhecimento. Tais são pois as tendências, tais são
também as experiências que a psicologia deverá ter em conta se quiser
remontar às origens.
O estudo dos não-civilizados nern por isso será menos precioso. Já o
dissemos e nunca o repetiremos demais: estão tão longe das origens como
nós, mas inventaram menos. Terão multiplicado as aplicações, exagerado,
caricaturado, deformado enfim, mais do que radicalmente transformado.
Aliás, quer se trate de transformação ou de deformação, a forma original
subsiste, simplesmente recoberta pelo adquirido; nos dois casos, por con-
seguinte, o psicólogo que quer descobrir as origens terá um esforço do 170
mesmo género a fazer; mas o caminho a percorrer poderá ser menos
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

longo no segundo que no primeiro. Será o que acontece, em particular,


quando encontrarmos crenças semelhantes em povos que não puderam
comunicar entre si. Tais crenças não são necessariamente primitivas, mas
é provável que provenham directamente de uma das tendências funda-
mentais que um esforço de introspecção nos faria descobrir em nós mes
mos. Poderão, portanto, encâminhar-nos para essa descoberta e guiar a
observação interna que servirá em seguida para as explicar.
Teremos de insistir uma e outra vez nestas considerações de método
se não quisermos extraviar-nos na nossa investigação. No ponto de vira-
gem a que chegámos, são-nos particularmente necessárias. Porque se trata
de nada menos que da reacção do homem à sua percepção das coisas, dos
acontecimentos, do universo em geral. Que a inteligência seja feita para
utilizar a matéria, dominar as coisas, controlar os acontecimentos, parece
fora de dúvida. Que o seu poder seja directamente proporcional à sua
ciência, tal não é menos cerlo. Mas esta ciência começa por ser muito
limitada; é mínima a porção do mecanismo universal que compreende,
mínima a da extensão e da duração que pode apreender. Que fará então
no que ao restante se refere? Deixada a si própria, comprovaria apenas a
sua ignorância; o homem sentir-se-ia perdido na imensidão. Mas o ins-
tinto vigia. Ao conhecimento propriamente científico, que acompanha a
técnica ou que se encontra implicado nesta, acrescenta, para tudo o que
escapa à nossa acção, a crença em potências que entrariam em linha de
conta com o homem. O universo povoa-se assim de intenções que são,
além disso, efémeras e variáveis; do puro mecanismo relevaria apenas a
zona em cujo âmbito agimos mecanicamente. Esta zona alarga-se à me-
dida que a nossa civilização avança; o universo inteiro acaba por tomar a
forma de um mecanismo aos olhos de uma inteligência que idealmente
se representa a ciência como de certo modo acabada. Tal é o ponto em
que estamos, e é-nos hoje necessário um vigoroso esforço de introspecção
quando queremos redescobrir as crenças originais q u e a nossa ciência
recobre com tudo aquilo que sabe e tudo aquilo que espera vir a saber.
-Mas a partir do momento em que as apreendemos, vemos como se expli-
cam pelo jogo combinado da inteligência e do instinto, como devem ter
respondido a um interesse vital. Considerando então os não-civilizados,
verificamos aquilo que observámos em nós mesmos; mas a crença surge
aqui inchada, exagerada, multiplicada: em vez de recuar, como fez no caso
do civilizado, perante os progressos da ciência, invade a zona reservada à

142
A RELIGIÃO ESTÁTICA

acção mecânica e sobrepõe-se a actividades que deveriam excluí-la. Toca-


mos aqui um ponto essencial. Tem-se dito que a religião começou pela
magia. Viu-se também na magia um prelúdio da ciência. Se nos ativer-
mos à psicologia, como acabamos de fazer, se reconstituirmos, por meio
de um esforço introspectivo, a reacção natural do homem à sua percepção
das coisas, descobrimos que magia e religião se associam, e que nada há
de comum entre a magia e a ciência.
Acabamos de ver, com efeito, que a inteligência primitiva divide em
duas partes a sua experiência. Há, por um lado, o que obedece à acção da
mão e da ferramenta, o que se pode prever, aquilo de que se está seguro:
esta parte do universo é concebida fisicamente, à espera de vir a sê-lo
matematicamente; surge como um encadeamento de causas e de efeitos,
ou é em todo o caso tratada como tal; pouco importa que a representação 172
seja indistinta, mal chegue a ser consciente; pode não se explicitar, mas,
para sabermos o que implicitamente a inteligência pensa, basta vermos o
que ela faz. Agora há, por outro lado, a parte da experiência sobre a qual
o homo faber não sente domínio algum. Essa parte já não é tratada física,
mas moralmente. Não podendo agir sobre ela, esperamos que ela aja em
nosso favor. A natureza impregnar-se-á, portanto, aqui de humanidade.
Mas fá-lo-á apenas na medida do necessário. A falta de poder, precisamos
de confiança. Para que nos sintamos à vontade, é preciso que o aconteci
mento que se recorta diante dos nossos olhos no conjunto do real pareça
animado de uma intenção. Tal será, com efeito, a nossa convicção natural
e original. Mas não nos ficaremos por aqui. Não nos basta nada termos
a recear, gostaríamos de ter além disso alguma coisa que esperar. Se o
acontecimento não for completamente insensível, não conseguiremos
influenciá-lo? Não se poderá ele deixar convencer ou coagir? Dificilmente
o poderá, se continuar a ser o que é., intenção que passa, alma rudimentar;
não teria assim suficiente personalidade para cumprir os nossos votos,
tendo-a, porém, em demasia para obedecer às nossas ordens. Mas o nosso
espírito impeli-lo-á com facilidade numa ou noutra direcção. A pressão
do instinto fez surgir realmente, no interior da própria inteligência, essa
forma de imaginação que é a função efabuladora. Esta só tem que se
deixar ir para fabricar, com as personalidades elementares que se dese-
nham primitivamente, deuses cada vez mais altos como os da fábula, ou
divindades cada vez mais baixas como os simples espíritos, ou até mesmo
forças que reterão da sua origem psicológica apenas uma propriedade, a

143
• ;.0
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

173 de não serem puramente mecânicas e de cederem aos nossos desejos, de


se vergarem às nossas vontades. A primeira e a segunda direcções são as
da religião, a terceira é a da magia. Comecemos pela última.
Falou-se muito dessa noção do mana que foi outrora assinalada por
Codrington num livro célebre acerca dos melanésios e cujo equivalente,
mais ou menos análogo, encontraríamos entre muitos outros primitivos:
tais seriam o orenda dos iroqueses, o wakanda dos sioux, etc. Todos estes
termos designariam uma força difundida pela natureza e na qual partici-
pariam em graus diferentes, senão todas as coisas, pelo menos algumas
de entre elas. Daí à hipótese de uma filosofia primitiva, que se desenha-
ria no espírito humano a partir do momento em que este começa a reflec-
tir, não vai mais que um passo. Alguns supuseram, com efeito, que um
vago panteísmo assombrava o pensamento dos não-civilizados. Mas é
pouco verosímil que a humanidade comece por noções tão gerais e tão
abstractas. Antes de filosofar, é preciso viver. Os cientistas e os filósofos
tendem demasiado a crer que o pensamento se exerce nos demais como
entre eles, por prazer. A verdade é que o pensamento visa a acção, e que
se encontramos realmente entre os não-civilizados alguma filosofia, esta
deve ser mais agida do que pensada; aparece implicada em todo um con-
junto de operações úteis, ou tidas por tais; só se desprende, só se exprime
por meio de palavras - em termos, além disso, necessariamente vagos -
quando a comodidade da acção o reclama. Os Srs. Hubert e Mauss, na sua
muito interessante Théorie générale de la Magie, mostraram vigorosa-
mente que a crença na magia é inseparável da concepção do mana. Dir-
-se-ia que, em seu entender, aquela crença deriva desta concepção. A rela-
ção não seria antes a inversa? Não nos parece provável que a represen-
174 tação que corresponde a termos como "mana", "orenda", etc., tenha sido
formada primeiro, tendo em seguida saído dela a magia. Muito pelo con-
trário, era porque o homem cria na magia, porque a praticava, que teria
representado assim as coisas: a sua magia parecia ter sucesso e ele limita-
va-se a explicar, ou melhor, a exprimir esse sucesso. Que, por outro lado,
tenha praticado desde o início a magia, podemos compreendê-lo com
facilidade: reconheceu imediatamente que atingira o limite da sua in-
fluência normal sobre o mundo exterior, e não se resignava a não poder
ir mais longe. Prolongava pois o movimento e, como por si mesmo o
movimento não obtinha o efeito desejado, era necessário que se encarre-
gasse a natureza de o obter. O que só seria possível se a matéria se encon-

M4 ::
't
A RELIGIÃO E STATIC A

trasse de certo modo magnetizada, se se voltasse por si mesma para o


homem, a fim de receber dele missões, de executar as suas ordens. Nem
por isso continuava menos submetida, como hoje diríamos, a leis físicas;
assim teria de ser, aliás, a fim de ser possível exercer-se uma preensão
mecânica sobre ela. Mas estava além disso impregnada de humanidade,
quero eu dizer, carregada de uma força capaz de entrar nos desígnios do
homem. Dessa disposição podia este aproveitar-se, para prolongar a sua
acção para além daquilo que as leis físicas permitiam. É o que compro-
varemos sem dificuldade, se considerarmos os procedimentos da magia
e as concepções da matéria por meio das quais se representava confusa-
mente a sua possibilidade de sucesso.
As operações em causa foram muitas vezes descritas, mas como apli-
cações de certos princípios teóricos do género: "o semelhante age sobre o
semelhante", "a parte vale pelo todo", etc. Está fora de dúvida que estas
fórmulas possam servir para classificar as operaçõe! mágicas. Mas não
decorre daí, de maneira alguma, que as operações mágicas derivem delas.
Se a inteligência primitiva tivesse começado aqui por conceber princípios, 175
em breve se teria rendido à experiência que lhe teria demonstrado a fal-
sidade daqueles. Mas, uma vez mais, essa inteligência não faz aqui senão
traduzir em representações sugestões do instinto. Mais precisamente, há
uma lógica do corpo, prolongamento do desejo, que se exerce muito antes
de a inteligência ter descoberto para ela uma forma conceptual.
Eis por exemplo um "primitivo" que quereria matar o seu inimigo;
mas o inimigo está longe; é impossível atingi-lo. Pouco importa! O nosso
homem está enraivecido; faz o gesto de se precipitar sobre o ausente.
Uma vez lançado, vai até ao fim; aperta entre os dedos a vítima que crê
ou desejaria ter nas mãos, estrangula-a. Todavia, sabe perfeitamente que
o resultado não está completo. Fez tudo o que dependia de si: quer, exige
que as coisas se encarrégucm do resto. O-que elas não farão mecanica-
mente. Não cederão a uma necessidade física, cofnó quando o nosso
homem batia no chão, agitava os braços e as pernas, obtendo, enfim, da
matéria as reacções correspondentes às suas acções. É pois preciso que, à
necessidade de restituir mecanicamente os movimentos recebidos, a
matéria some a faculdade de cumprir desejos e de obedecer a ordens.
Não será impossível, se a natureza por si mesma se inclinar já a ter o
homem em conta. Bastará que a condescendência que certos aconteci-
mentos manifestam reapareça em certas coisas. Estas ficarão assim mais

145
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

ou menos carregadas de obediência e de poder; disporão de uma força


que se presta aos desejos do homem e da qual o homem poderá apoderar-
-se. Termos como "mana", "wakonda", etc., exprimem essa força e ao mes-
mo tempo o prestígio que a rodeia. Nem todos têm o mesmo sentido, se
for um sentido preciso que quisermos; mas correspondem todos à mesma
176 ideia vaga. Designam aquilo que faz com que as coisas se prestem às •
operações da magia. Quanto a estas operações em si mesmas, acabamos
de determinar a sua natureza. Começam o acto que o homem não pôde
acabar. Fazem o gesto que não chegaria a produzir o efeito desejado, mas
que o obterá se o homem souber forçar a complacência das coisas.
A magia é, portanto, inata no homem, na medida em que não é mais
que a exteriorização de um desejo que enche o coração. Se pôde parecer
artificial, se a reduziram ao jogo de associações de ideias superficiais, foi
porque a consideraram em operações que são precisamente de molde a
dispensar o mágico de nelas pôr a sua alma e obter sem fadiga o mesmo f
resultado. O actor que estuda o seu papel dá-se deveras a emoção que tem
de exprimir; regista os gestos e as entoações que dela decorrem: mais
tarde, perante o público, reproduzirá apenas a entoação e o gesto, podendo
economizar a emoção. O mesmo se passa com a magia. As "leis" que lhe
descobriram nada nos dizem do impulso natural de onde irrompeu. Não
passam da fórmula dos procedimentos que a preguiça sugeriu à magia
original de modo a permitir-lhe que se imitasse a si própria.
Procede em primeiro lugar, ao que nos dizem, da lei segundo a qual "o
semelhante produz o semelhante". Não vemos porque começaria a huma-
nidade por estabelecer uma lei tão abstracta e arbitrária. Mas compreen-
demos que depois de ter feito instintivamente o gesto de se precipitar
sobre o inimigo ausente, depois de se ter persuadido a si mesmo de que a
sua cólera, projectada no espaço e veiculada por uma matéria compla-
cente, completará o acto começado, o homem rieseje obter o mesmo efeito
sem ter de se pôr no mesmo estado. Fvepetirá pois a operação a frio.
O acto cujo desenho a sua cólera traçava quando acreditava estrangular
177 entre os seus dedos um inimigo, reproduzi-lç-á com a ajuda de um dese-
nho já feito, de uma boneca cujos contornos só terá de retocar. É assim
que praticará o enfeitiçamento. A boneca de que se vai servir não pre-
cisará sequer de se assemelhar ao inimigo, uma vez que o seu papel é
unicamente o de fazer com que o acto se assemelhe a si mesmo. Tal nos
parece ser a origem psicológica de um princípio cuja fórmula seria antes:

146
A REI.IGIÃO ESTÁTICA

"O semelhante equivale ao semelhante", ou melhor ainda, em termos mais


precisos: "O estático pode substituir o dinâmico cujo esquema fornece".
Sob esta última forma, que recorda a sua origem, o princípio não se pres-
taria a uma extensão indefinida. Mas, sob a primeira, autoriza a crer que
se possa agir sobre um objecto longínquo por intermédio de um objecto
presente que tenha com ele a mais superficial das semelhanças. O princí-
pio não precisa de ser sequer apreendido e formulado. Simplesmente
implicado numa operação quase instintiva, permite a essa magia natural
uma proliferação indefinida.
As práticas mágicas podem ser reconduzidas a outras leis ainda: "Pode-
se influenciar um ser ou uma coisa agindo sobre aquilo que os tocou",
"a parte vale pelo todo", etc. Mas a origem psicológica continua a ser a
mesma. Trata-se sempre de repetir repousadamente, convencendo-nos
da sua eficácia, o acto que nos deu a percepção alucinatória da.sua eficá-
cia quando foi realizado num momento de exaltação. "Em tempo de seca
pede-se ao mágico que obtenha chuva. Se o primeiro pusesse ainda na
tarefa toda a sua alma, subiria através de um esforço da imaginação até à
nuvem, acreditaria sentir-se a rasgá-la, expandi-la-ia em gotículas. Mas
achará mais simples supor-se quase de novo no chão, e entornar então
um pouco de água: esta parte mínima do acontecimento reproduzi-lo-á 178
por inteiro, se o esforço que teria sido preciso lançar da terra ao céu desco-
brir modo de ser suprido e se a matéria intermédia estiver mais ou menos
carregada - como o poderia estar de electricidade positiva ou negativa -
de uma disposição semi-física e semi-mora! a servir ou a contrariar o
homem. Vemos como há assim uma magia natural, muito simples, que
se reduziria a um pequeno número de práticas. Foi a reflexão sobre estas
práticas, ou talvez simplesmente a sua tradução em palavras, que lhes
permitiu multiplicarem-se em todos os sentidos e carregarem-se de todas
as superstições, porque a fórmula' &tèé'dè' 'èeihprë o'Factô'qûè'ëxprÎmë."
A magia parece-nos, pois,'résolvér-sé em dois elementos: o desejo de
agir sobre seja o que for, ainda que sobre o que se não pode atingir, e a
ideia de que as coisas estão carregadas, ou se deixam carregar, dãquiio a
que chamaríamos um fluido humano. Devemos reportar-nos ao primeiro
ponto para compararmos entre si a magia e a ciência, e ao segundo para
articular a magia com a religião.
É possível que tenha acontecido à magia servir acidentalmente a reli
gião: não se manipula a matéria sem dela extrair algum proveito. Mas é

4
. l 147
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO

preciso ainda, para se utilizar uma observação ou até mesmo simples-


mente para a registar, possuir-se já certa propensão para a investigação
científica. Mas deixamos então de ser mágicos e, mais do que isso, vira-
mos assim costas à magia. Com efeito, é fácil definir a ciência, uma vez
que ela trabalhou sempre na mesma direcção. Mede e calcula, em vista
de prever e de agir. Começa por supor e constata a seguir que o universo
é regido por leis matemáticas. Em suma, todo o progresso da ciência con-
siste num conhecimento mais extenso e numa utilização mais rica do
179 mecanismo universal. Trata-se de um progresso que se realiza de resto
por meio de um esforço da nossa inteligência, que é feita para dirigir a
nossa acção sobre as coisas, e cuja estrutura deve, por conseguinte, decal-
car a configuração matemática do universo. Embora só tenhamos de agir
sobre os objectos que nos rodeiam, e embora tenha sido essa a destina-
ção primitiva da inteligência, todavia, como a mecânica do universo está
presente em cada uma das suas partes, foi pois preciso que o fiomem
nascesse com uma inteligência virtualmente capaz de abranger o mundo
material no seu todo. Acontece com a intelecção o mesmo que com a
visão: o olho foi feito, também ele, apenas para nos revelar os objectos
sobre os quais estamos em condições de agir; mas do mesmo modo que a
natureza não pôde obter o grau pretendido de visão a não ser por meio
de um dispositivo cujo efeito excede o seu objecto (uma vez que vemos
as estrelas, embora estejamos fora de acção em relação a elas), assim tam-
bém nos dava necessariamente, com a faculdade de compreendermos a
matéria que manipulamos, o conhecimento virtual do restante e o poder
não menos virtual de o utilizarmos. É verdade que a distância é aqui
grande entre o virtual e o actual. Todo o progresso efectivo, no domínio
do conhecimento como no da acção, exigiu o esforço perseverante de um
ou de vários homens superiores. Tratou-se em cada caso de uma criação,
que a natureza tornara sem dúvida possível ao outorgar-nos uma inteli-
gência cuja forma excede a matéria,"mas que ia, por assim dizer, para além
do que a natureza quisera. A organização do homem parecia, na realidade,
predestiná-lo a uma vida mais modesta. Prova-o a sua resistência ins-
tintiva às inovações. A inércia da humanidade nunca cedeu a não ser à
irrupção do génio. Em suma, a ciência exige um duplo esforço, o de alguns
180 homens por descobrir o novo, o de todos os outros homens por adoptá lo
e se lhe adaptarem. Uma sociedade pode ser dita civilizada na medida
em que nela encontremos ao mesmo tempo essas iniciativas e esta doci-

148
A RELIGIÃO E STATIC A

lidade. A segunda condição é também mais difícil de preencher do que a


primeira, O que faltou aos não-civilizados não foi provavelmente o
homem superior (não vemos porque não teria tido sempre e por toda a
parte a natureza essas distracções felizes), mas antes a ocasião fornecida
a um tal homem de mostrar a sua superioridade, a disposição por parte
dos outros a seguirem-no. Quando uma sociedade tiver já entrado na via
da civilização, a perspectiva de um simples aumento de bem-estar bas-
tará sem dúvida para vencer a sua rotina. Mas para que entre nessa via,
para que o primeiro movimento se desencadeie, é preciso muito mais:
talvez uma ameaça de extermínio como a que cria o aparecimento de uma
nova arma nas mãos de uma tribo inimiga. As sociedades que permanece-
ram mais ou menos "primitivas" foram provavelmente as que não tive-
ram vizinhos e, mais geralmente, aquelas cuja vida foi demasiado fácil.
Ficavam dispensadas do esforço inicial. Em seguida, fez-se tarde demais:
a sociedade já não podia avançar, ainda que o quisesse, porque estava
intoxicada pelos produtos da sua própria preguiça. Tais produtos são pre-
cisamente as práticas da magia, pelo menos no que têm de superabun-
dante e de invasor. Porque a magia é o contrário da ciência. Enquanto a
inércia do meio não a faz proliferar, tem a sua razão de ser. Acalma provi-
soriamente a inquietação de uma inteligência cuja forma excede a
matéria, que se dá vagamente conta da sua ignorância e compreende o
seu perigo, que adivinha, em redor do pequeníssimo círculo em que a
acção se acha segura do seu efeito, em que o futuro imediato é previsível
e em que, por conseguinte, existe já ciência, uma zona imensa de impre-
visibilidade que poderia desencorajar a acção. A magia intervém então, ist
efeito imediato do surto vital. Recuará à medida que o homem alargar
através do esforço o seu conhecimento. Entretanto, como parece ser bem
sucedida (uma vez que o insucesso de uma operação mágica pode ser
sempre atribuído ao sucesso de uma magia antagónica} produz o mesmo
efeito moral que a ciência. Mas só isso tem em" comum com a ciência, da
qual a separa toda a distância que há entre desejar e querer. Muito longe
de preparar a vinda da ciência, como se tem pretendido, foi ela o grande ...
obstáculo contra o qual teve de lutar o saber metódico. O homem civili
zadq é aquele no qual a ciência nascente, implicada na acção quotidiana,
pôde sobrepor-se, graças a uma vontade incessantemente tensa, à magia
que ocupava todo o restante terreno. 0 não-civilizado é pelo contrário
aquele que, desdenhando o esforço, deixou a magia penetrar na própria

149
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

zoria da ciência nascente, sobrepor-se-lhe, mascará-la a ponto de nos levar


a acreditar numa mentalidade original da qual toda a verdadeira ciência
estaria ausente. Por outro lado, uma vez senhora da praça, a magia executa
mil e mais mil variações sobre si própria, mais fecunda que a ciência
uma vez que as suas invenções são fantasia pura e nada custam. Não
falemos, portanto, de uma era da magia à qual teria sucedido a da ciência.
Digamos que a ciência e a magia são igualmente naturais, que sempre
coexistiram, que a nossa ciência é enormemente mais vasta que a dos
antepassados longínquos, mas que estes últimos deveriam ser muito
menos mágicos que os não-civilizados de hoje. Continuámos a ser, no
fundo, o que eles eram. Recalcada pela ciência, a inclinação para a magia
subsiste e espera a sua hora. Assim que a atenção à ciência se deixa distrair
182 um momento, a magia irrompe acto contínuo na nossa sociedade civili-
zada,Mo mesmo modo que o desejo reprimido na véspera se aproveita do
mais leve passar pelo sono para se satisfazer.
Resta então a questão das relações da magia com a religião. Tudo
depende, evidentemente, da significação deste último termo. O filósofo
estuda, as mais das vezes, uma coisa que o senso comum designou já por
meio de uma palavra. Esta coisa pode ter sido apenas entrevista; pode ter
sido mal vista; pode ter sido deitada fora juntamente com outras das
quais será preciso isolá-la. Pode até mesmo não ter sido recortada no
conjunto da realidade a não ser em vista da comodidade do discurso e
não constituir efectivamente uma coisa, prestando-se a um estudo inde-
pendente. Tal é a grande inferioridade da filosofia por comparação com
as matemáticas e até mesmo com as ciências da natureza. Tem de partir
da desarticulação do real que loi operada pela linguagem, e que talvez
seja inteiramente relativa às necessidades da cidade: esquece demasiadas
vezes esta origem e procede como faria o geógrafo que, para delimitar as
diversas regiões do globo e marcar as relações físicas entre elas, se refe-
risse às fronteiras estabelecidas pelos tratados. No estudo que empreen-
demos, prevenimos esse perigo transportando-nos imediatamente da
palavra "religião", e de tudo o que esta compreende em virtude de uma
desarticulação talvez artificial das coisas, para uma certa função do espí-
rito que podemos observar directamente sem nos ocuparmos da repar-
tição do real em conceitos correspondendo a palavras. Analisando o tra-
balho da função, redescobrimos urn a um vários dos sentidos que se
atribuem à palavra religião. Prosseguindo o nosso estudo, redescobrire-

150
A RELIGIÃO E STATIC A

mos os outros matizes da significação e talvez lhes acrescentemos um ou


dois novos. Ficará bem estabelecido, pois, que a palavra circunscreve desta 183
feita uma realidade. Uma realidade que excederá um pouco, é verdade,
tanto no sentido ascendente como no descendente, a significação habitual
da palavra. Mas apreendê-la-emos então em si mesma, na sua estrutura e
no seu princípio, como acontece quando associamos a uma função fisio-
lógica, como a digestão, um grande número de factos observados em
diversas regiões do organismo e quando chegamos assim a descobrir até
novos factos. Se nos colocarmos deste ponto de vista, a magia faz eviden-
temente parte da religião. Trata-se aqui, sem dúvida, somente da religião
inferior, aquela de que até agora nos temos ocupado. Mas a magia, como
esta religião em geral, representa uma precaução da natureza contra cer-
tos riscos que o ser inteligente corre. - Agora, podemos seguir uma outra
via, partir dos diversos sentidos usuais da palavra religião, compará-los
entre eles e chegar a uma significação média: teremos assim resolvido
mais uma questão de léxico que um problema filosófico; mas pouco
importa, contanto que nos demos conta daquilo que estamos a fazer, e
que não imaginemos (ilusão constante dos filósofos!) possuir a essência
da coisa por nos termos posto de acordo acerca do sentido convencional
da palavra. Disponhamos então todas as acepções da nossa palavra ao
longo de uma escala, como os matizes do espectro ou as notas da escala:
encontraremos na região média, a igual distância dos dois extremos, a
adoração dos deuses interpelados pela prece. É óbvio que a religião, assim
concebida, passa a opor-se à magia. Esta é essencialmente egoísta, aquela
admite e até mesmo, muitas vezes, exige o desinteresse. Uma pretende
forçar o consentimento da natureza, a outra implora o favor do deus.
Sobretudo, a magia exerce-se num meio semi-físico e semi-moral; o
mágico não lida, em todo o caso, com uma pessoa; pelo contrário, é à 184
personalidade do deus que a religião vai buscar a sua maior eïicàcia. Se
se admitir, connosco, que a inteligência primitiva crê perceber à sua volta,
nos fenómenos e nos acontecimentos, elementos de personalidade de
preferência a personalidades completas, a religião, tal como acabamos de
a entender, acabará por reforçar esses elementos a ponto de 0sT converter
em pessoas, ao passo que a magia os supõe degradados e como que dissol-
vidos num mundo material onde a sua eficácia pode ser captada. Magia e
religião divergem então a partir de uma origem comum, e está fora de
questão que da magia se possa fazer sair a religião: as duas são contem

151
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO

porâneas. Compreende-se, aliás, que cada uma delas continua a assom-


brar a outra, que subsista alguma magia na religião, e sobretudo alguma
religião na magia. É sabido que o mágico opera por vezes por intermédio
dos espíritos, quer dizer, de seres relativamente individualizados, mas
que não têm a personalidade completa, nem a dignidade eminente dos
deuses. Por outro lado, o encantamento pode participar ao mesmo tempo
da voz de comando e da prece.
A história das religiões considerou durante muito tempo como primi-
tiva, e como explicativa de tudo o mais, a crença nos espíritos. Como
cada ura de nós tem a sua alma, essência mais subtil do que a do corpo,
assim, na natureza, todas as coisas seriam animadas; acompanhá-las-ia
uma entidade vagamente espiritual. Uma vez afirmados os espíritos, a
humanidade teria passado da crença à adoração. Haveria portanto uma
filosofia natural, o animismo, da qual teria saído a religião. A esta hipótese
parece preferir-se hoje uma outra. Numa fase "pré-animista" ou "anima-
185 tista", a humanidade ter-se-ia representado uma força impessoal, como o
"mana" polinésio, que em tudo se difundiria, desigualmente distribuída
entre as partes; esta força só mais tarde teria dado lugar aos espíritos. Se
as nossas análises são exactas, não foi uma força impessoal, não foram
espíritos já individualizados, o que começou por se conceber; ter-se-ia
simplesmente atribuído intenções às coisas e aos acontecimentos, como
se a natureza tivesse por toda a parte olhos que virasse para o homem.
Que se trate, pois, aqui de uma disposição original, podemos comprová-
-lo quando um choque brusco desperta o homem primitivo que dormita
no fundo de cada um de nós. O que experimentamos então é o senti-
mento de uma presença eficaz; e pouco importa também a natureza
dessa presença, pois o essencial é a sua eficácia: a partir do momento em
que há quem se ocupe de nós, ainda que a intenção possa nem sempre
ser boa, isso significa pelo menos que contamos no universo. Eis o que
diz a experiência. Mas a priori, era já inverosímil que a humanidade
tivesse partido de visões teóricas, fossem estas quais fossem. Não nos
cansaremos de repetir: antes de filosofar, é preciso viver; é de uma neces-
sidade vital que devem ter saído as disposições e as convicções origi-
nais. Ligar a religião a um sistema de ideias, a uma lógica ou a uma ''pré
-lógica", é fazer intelectuais dos nossos antepassados mais longínquos, e
intelectuais de um tipo que deveria existir mais abundantemente entre
nós, pois vemos à nossa volta as mais belas teorias ceder perante a paixão

152
A RELIGIÃO E STATIC A

e o interesse para só contarem durante as horas de especulação, ao passo


que era a vida inteira que se encontrava suspensa nas antigas religiões,
A verdade é que a religião, sendo coextensiva à nossa espécie, deve estar
ligada à nossa estrutura. Acabamos de a ligar a uma experiência funda-
mental; mas trata-se de uma experiência que pressentiríamos antes de a
ter feito, ou que em todo ö caso explicamos cóm 'facilidade depot's de á ise
termos tido: para tanto basta que voltemos a incluir o homem no
conjunto dos seres vivos, e a psicologia na biologia. Consideremos, com
efeito, outro animal que não o homem. Vale-se de tudo o que o possa
servir. Acreditará precisamente que o mundo tenha sido feito para ele?
Não, sem dúvida, porque não se representa o mundo e não tem, por
outro lado, vontade alguma de especular. Mas como não vê, ou em todo
o caso não olha, senão aquilo que pode satisfazer as suas necessidades,
como as coisas só existem para ele na medida em que se possa servir
delas, comporta-se evidentemente como'fee tudo se tivesse disposto na"
natureza em vista do seu bem e no interesse da sua espécie. Tal é a sua
convicção vivida; sustenta-o e confunde-se, aliás, com o seu esforço por
viver. Façamos surgir agora a reflexão: esta convicção dissipar-se-á; o
homem vai perceber-se e pensar-se como um ponto na imensidão do
universo. Senlir-se-ia perdido, se o esforço por viver não se projectasse
de pronto na sua inteligência, 110 próprio lugar que iam tomar essa per-
cepção e esse pensamento, a imagem antagónica de uma conversão das
coisas e dos acontecimentos orientada para o homem: benevolente ou
malévola, uma intenção do que o rodeia segue-o por toda a parte, como
a lua parece correr com ele quando ele corre. Se for boa, poderá repousar
sobre ela. Se lhe quiser mal, tentará desviar o seu efeito. De qualquer
maneira, terá sido tomado em conta. Não há aqui teoria alguma, lugar
algum para o arbitrário. A convicção impõe-se porque nada tem de filosó-
fico, urna vez que é de ordem vital. Se; entretanto, se cindir e evoluir em
duas direcções divergentes; por\inr lado na da crença em espíritos já
individualizados e, por outro, na da ideia de uma essência impessoal,
não será por razões teóricas: estas apelam para a controvérsia, admitem
a dúvida, suscitam doutrinas que podem influenciar a conduta mas que m
não se misturam a todos os incidentes da existência e não poderiam
regular a totalidade da vida. A verdade é que, uma vez instalada 11a von-
tade a convicção, aquela impele-a em direcções que encontra abertas ou
que se abrem nos pontos de menor resistência no decorrer do seu esforço.

53
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

A intenção que sente presente utilizá-la-á por todos os meios, ou toman-


do-a no que tem de fisicamente eficaz, até mesmo exagerando o que tem
de material, e tentando então dominá-la pela força, ou abordando-a pelo
lado moral, impelindo-a pelo contrário no sentido da personalidade para
a conquistar pela prece. Foi, portanto, da exigência de uma magia eficaz
que saiu uma concepção como a do mana, empobrecimento ou mate-
rialização da crença original; e foi a necessidade de obter favores que
extraiu dessa mesma crença, na direcção oposta, os espíritos e os deu-
ses. Nem o impessoal evoluiu no sentido do pessoal, nem foram puras
personalidades que começaram por ser afirmadas; mas de qualquer coisa
de intermédio, mais de molde a sustentar a vontade do que a escla-
recer a inteligência, saíram por dissociação, para baixo e para cima, as
forças sobre as quais pesa a magia e os deuses até aos quais sobem as
preces.
Explicámo-nos sobre o primeiro ponto. Seria grande a tarefa que nos
esperaria se tivéssemos de nos alargar acerca do segundo. A ascensão
gradual da religião que se orienta para deuses cuja personalidade é cada
vez mais acentuada, que mantém entre si relações cada vez mais definidas
ou que tendem a absorver-se numa divindade única, corresponde ao pri-
meiro dos dois grandes progressos da humanidade no sentido da civili-
188 zação. Prosseguiu até ao dia em que o espírito religioso se virou do exte-
rior para o interior, do estático para o dinâmico, por meio de uma
conversão análoga à que executou a pura inteligência quando passou da
consideração das grandezas finitas ao cálculo diferencial. Esta última
transformação foi sem dúvida decisiva; tornaram-se possíveis transfor
mações do indivíduo como as que originaram as espécies sucessivas no
mundo organizado; o progresso pôde daí em diante consistir numa cria- _
ção de qualidades novas, e já não num simples engrandecimento; em vez :
de se extrair apenas proveito da vida, sempre no mesmo lugar, no ponto 1
em que se parou, continuar-se-á agora o movimento vital. Desta religião '
inteiramente interior trataremos no próximo capítulo. Veremos que sus-
tenta o homem através do próprio movimento que lhe imprime, recolo- r
cando-o no movimento criador, e já não por meio de representações ima-
ginativas às quais o honrem arrimaria a sua actividade na imobilidade. -
Mas veremos também que o dinamismo religioso tem necessidade da
religião estática para se exprimir e se difundir. Compreende-se, portanto,
que ela ocupe o primeiro lugar na história das religiões. Uma vez mais,

54
A REI.IGIÃO ESTÁTICA

não leremos de a seguir aqui na imensa variedade das suas manifestações.


Bastará que indiquemos as principais de entre elas, e assinalemos o seu
encadeamento.
Partamos, portanto, da ideia de que há intenções inerentes às coisas:
representar-nos-emos logo a seguir os espíritos. São as vagas entidades
que povoam, por exemplo, as nascentes, os rios, as fontes. Cada um dos
espíritos permanece ligado ao lugar onde se manifesta. Distingue-se já da
divindade propriamente dita, que saberá distribuir-se, sem se dividir,
entre lugares diferentes, e reger tudo o que pertence a um mesmo género.
A divindade será portadora de um nome; terá a sua figura própria, a sua
personalidade bem marcada, ao passo que os mil espíritos dos bosques 189
ou das fontes são exemplares do mesmo modelo e poderiam, quando
muito, dizer com Horácio: Nos numerus sumus. Mais tarde, quando a reli-
gião se tiver elevado ao nível desses grandes personagens que são os
deuses, poderá con<R:ber os espíritos à sua imagem: estes serão deuses
inferiores; parecerão tê-lo sido sempre. Mas só por um efeito retroactivo
assim será. Foi preciso, sem dúvida, muito tempo aos gregos para que o
espírito da fonte se tornasse uma ninfa graciosa e o do bosque uma Hama-
dríade. Primitivamente, o espírito da fonte deve ter sido apenas a própria
fonte, enquanto benfeitora do homem. Mais precisamente, o espírito era
essa acção benfazeja, no que ela tem de permanente. Enganar-nos-íamos
tomando aqui por uma ideia abstracta, quero eu dizer extraída das coisas
por meio de um esforço intelectual, a representação do acto e da sua
continuação. É um dado imediato dos sentidos. A nossa filosofia e a nossa
linguagem começam por pôr a substância, rodeiam-na de atributos, e
fazem depois sair dela actos como outras tantas emanações. Mas nunca
repetiremos demais: acontece ser a acção que começa por se oferecer e
bastar a si mesma, sobretudo nos casos em que ela interessa particular-
mente ao homem. Tal é o acto de quem nos dá de beber: podemos loca-
lizá-lo numa coisa, a seguir numa pessoa, mas ele tem a sua existência
própria, independente; e, se se continuar indefinidamente, a sua própria
persistência acabará por erigi-lo em espírito que anima a fonte onde bebe-
mos, enquanto a fonte, isolada da função que desempenha, passará cada
vez mais completamente ao estado de simples coisa. É verdade que as
almas dos mortos vão muito naturalmente reunir-se aos espíritos: desli-
gadas do seu corpo, não renunciaram por completo à sua personalidade.
Misturando-se aos espíritos tingem-nos necessariamente com as suas i90
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

cores e preparam-nos, através dos matizes que lhes c o n f e r e m , para se


t o r n a r e m p e s s o a s . A s s i m , p o r v i a s d i f e r e n t e s m a s c o n v e r g e n t e s , o s espí-
ritos encaminhar-se-ão p a r a a p e r s o n a l i d a d e c o m p l e t a . M a s , sob a f o r m a
elementar que t i n h a m de início, c o r r e s p o n d e m a u m a necessidade tão
natural q u e n ã o d e v e m o s surpreender-nos d e s c o b r i n d o a crença n o s espí
ritos n o f u n d o d e todas a s a n t i g a s religiões. F a l á v a m o s d o p a p e i q u e
d e s e m p e n h o u e n t r e os gregos: d e p o i s de ter sido a sua religião p r i m i t i v a ,
tanto quanto podemos ajuizar pela civilização micénica, persistiu c o m o
religião popular. Foi t a m b é m o f u n d o da religião r o m a n a , ainda depois
d e o m a i s a m p l o l u g a r ter s i d o c o n c e d i d o à s g r a n d e s d i v i n d a d e s i m p o r t a -
das da Grécia e de outras regiões: o lar farniliaris, q u e era o espírito da
casa, c o n s e r v a r á s e m p r e a s u a i m p o r t â n c i a . E n t r e o s r o m a n o s c o m o e n t r e
os gregos, a deusa q u e se c h a m o u R é s t i a ou Vesta d e v e ter c o m e ç a d o por
ser a p e n a s a c h a m a d o lar e n c a r a d a n a s u a f u n ç ã o , q u e r o e u d i z e r n a s u a
intenção benfazeja. D e i x e m o s a A n t i g u i d a d e Clássica, transportemo-nos
para a índia, para a China, para o Japão: por toda a parte encontraremos
a c r e n ç a n o s espíritos; a s s e v e r a m - n o s q u e ela c o n s t i t u i a i n d a h o j e (a p a r
do culto dos antepassados, seu v i z i n h o p r ó x i m o ) o essencial da religião
chinesa. P o r q u e é universal, acreditou-se q u e fosse original. Constatemos
pelo m e n o s q u e não está longe das origens, e q u e o espírito h u m a n o
passa n a t u r a l m e n t e p o r ela a n t e s de c h e g a r à a d o r a ç ã o dos deuses.

P o d e r i a d e resto deter-se n u m a e t a p a i n t e r m é d i a . Q u e r e m o s falar d o


culto dos a n i m a i s , tão d i f u n d i d o e n t r e a h u m a n i d a d e de outrora q u e foi
considerado por alguns c o m o m a i s natural ainda do q u e a adoração dos
191 deuses c o m f o r m a h u m a n a . V e m o - l o conservar-se, persistente e vivaz, até
m e s m o q u a n d o o h o m e m c o m e ç a já a representar certos deuses à sua
i m a g e m . F o i a s s i m q u e p e r m a n e c e u até a o f i m n o E g i p t o d a Antigui-
dade. P o r v e z e s o D e u s q u e e m e r g i u da f o r m a a n i m a l recusa-se a aban-
doná-la p o r c o m p l e t o ; a o s e u c o r p o d e h o m e m sobrepor-se-á u m a cabeça
de a n i m a l . T u d o isto h o j e n o s s u r p r e e n d e . O q u e se d e v e sobretudo ao
facto de o h o m e m ter assumido aos nossos olhos uma dignidade
e m i n e n t e . C a r a c t e r i z a m o - l o p e l a i n t e l i g ê n c i a , e s a b e m o s q u e n ã o h á supe-
r i o r i d a d e q u e a i n t e l i g ê n c i a n ã o p o s s a dar-nos, n e m i n f e r i o r i d a d e q u e ela
não possa compensar. N ã o era a s s i m q u a n d o a inteligência não dera ainda
as suas provas. As suas i n v e n ç õ e s e r a m d e m a s i a d o raras para que a sua
potência de invenção indefinida se manifestasse; as a r m a s e as ferramen
tas q u e p r o p o r c i o n a v a a o h o m e m s u p o r t a v a m m a l a c o m p a r a ç ã o c o m a s

156
A RELIGIÃO ESTÁTICA

q u e o a n i m a l recebia da n a t u r e z a . A própria reflexão, q u e é o segredo da


sua força, p o d i a produzir o efeito de u m a fraqueza, p o r q u e é fonte de
i n d e c i s ã o , a o p a s s o q u e a r e a c ç ã o d o a n i m a l , q u a n d o é p r o p r i a m e n t e ins-
tintiva, é i m e d i a t a e segura. A t é m e s m o a i n c a p a c i d a d e de falar p ô d e
parecer servir o a n i m a l aureolando-o de mistério. O seu silêncio pode, do
m e s m o modo, passar t a m b é m por desdém, c o m o se tivesse m e l h o r coisa
a fazer do q u e c o n v e r s a r c o n n o s c o . T u d o isto n o s explica q u e o culto dos
animais não tenha repugnado à humanidade. M a s porque chegou a ele?
Notar-se-á q u e é e m r a z ã o d e u m a p r o p r i e d a d e c a r a c t e r í s t i c a q u e o a n i -
m a l é a d o r a d o . No a n t i g o E g i p t o , o touro f i g u r a v a a força de c o m b a t e ; a
leoa era destruição; o abutre, tão atento às suas crias, m a t e r n i d a d e . O r a ,
decerto não c o m p r e e n d e r í a m o s q u e o animal se tivesse tornado objecto
de um culto se o h o m e m tivesse começado por acreditar em espíritos.
M a s se n ã o foi a seres, se foi a acções b e n f a z e j a s ou m a l f a z e j a s , e n c a r a d a s
c o m o p e r m a n e n t e s , q u e c o m e ç o u p o r se dirigir, é n a t u r a l q u e depois de 192
ter c a p t a d o a c ç õ e s t e n h a q u e r i d o apropriar-se d e q u a l i d a d e s : estas quali-
dades p a r e c i a m apresentar-se e m estado p u r o n o a n i m a l cuja actividade
é s i m p l e s , d e u m a s ó p e ç a , o r i e n t a d a a p a r e n t e m e n t e n u m a d i r e c ç ã o só.
A a d o r a ç ã o do a n i m a l n ã o foi, portanto, a religião p r i m i t i v a ; mas, ao sair
desta, p o d i a escolher-se e n t r e o c u l t o dos e s p í r i t o s e o d o s a n i m a i s .

Ao m e s m o t e m p o q u e a natureza do animal parece concentrar-se n u m a


q u a l i d a d e ú n i c a , dir-se-ia q u e a sua individualidade se dissolve n u m
género. Reconhecer um h o m e m consiste em distingui-lo dos outros
homens; mas reconhecer um animal é c o m u m m e n t e darmo-nos conta da
espécie a q u e pertence: tal é o n o s s o interesse n u m e n o u t r o caso; daí
resulta q u e a nossa percepção a p r e e n d e os traços i n d i v i d u a i s no p r i m e i r o
caso, e n q u a n t o o s d e i x a q u a s e s e m p r e e s c a p a r n o s e g u n d o . U m a n i m a l
b e m p o d e s e r a l g o d e c o n c r e t o e d e i n d i v i d u a l , m a n i f e s t a r se-á e s s e n c i a l -
mente c o m o u m a qualidade, essencialmente t a m b é m c o m o u m género.
Destas duas aparências, a p r i m e i r a , c o m o a c a b a m o s de ver, explica em
grande parte o culto dos animais. A segunda faria c o m p r e e n d e r e i n certa
medida, ao q u e p e n s a m o s , essa coisa singular q u e é o t o t e m i s m o , _ N ã o .
t e r e m o s d e o e s t u d a r a q u i ; m a s n ã o p o d e m o s seja c o m o f o r d i s p e n s a r -
m o s de dizer u m a p a l a v r a a seu respeito, p o r q u e se o t o t e m i s m o n ã o é
zoolatria, i m p l i c a c o n t u d o q u e o h o m e m trate u m a espécie a n i m a l , ou até
m e s m o v e g e t a l , p o r v e z e s u m s i m p l e s o b j e c t o i n a n i m a d o , c o m u m a defe-
rência q u e não deixa de se assemelhar a certos aspectos da religião.

157
t
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

T o m e m o s o c a s o m a i s f r e q u e n t e : trata-se d e u m a n i m a l , d o rato o u d o
canguru, por exemplo, que serve de "totem", quer dizer de patrono, a um
193 clã inteiro. O m a i s i m p r e s s i o n a n t e é q u e os m e m b r o s do clã d e c l a r a m
q u e e l e e e l e s p r ó p r i o s s ã o u m só; são r a t o s , são c a n g u r u s . R e s t a s a b e r , é
verdade, em q u e sentido o dizem. C o n c l u i r m o s de imediato a existência
de u m a lógica especial, própria do " p r i m i t i v o " e d e s e m b a r a ç a d a do princí-
pio de c o n t r a d i ç ã o , seria a n d a r d e p r e s s a e s i m p l i f i c a r a tarefa. 0 n o s s o
v e r b o ser t e m s i g n i f i c a ç õ e s q u e s ó c o m d i f i c u l d a d e d e f i n i m o s , p o r m u i t o
civilizados q u e sejamos: c o m o reconstituir o sentido q u e o p r i m i t i v o dá
n e s t e o u n a q u e l e caso a u m t e r m o a n á l o g o , a i n d a q u e n o s f o r n e ç a expli-
cações a seu respeito? Estas explicações só t e r i a m certa precisão caso ele
f o s s e f i l ó s o f o , e ser-nos-ia e n t ã o n e c e s s á r i o c o n h e c e r m o s t o d a s a s s u b t i l e -
zas d a s u a l í n g u a p a r a a s c o m p r e e n d e r m o s . P e n s e m o s n o j u í z o q u e e l e
próprio faria a nosso propósito, sobre as nossas faculdades de observação
e de raciocínio, sobre o nosso b o m senso, se s o u b e s s e q u e o m a i o r dos
nossos moralistas disse: "O h o m e m é u m a cana p e n s a n t e ! " Conversará,
p e l o s e u l a d o , e l e c o m o s e u t o t e m ? Tratá-lo-á c o m o u m h o m e m ? E i s q u e
voltamos s e m p r e à m e s m a questão: para s a b e r m o s o que se passa no
espírito d e u m p r i m i t i v o , e até m e s m o d e u m civilizado, d e v e m o s conside-
rar o q u e ele faz, p e l o m e n o s t a n t o c o m o o q u e diz. A g o r a , se o p r i m i t i v o
n ã o s e i d e n t i f i c a c o m o s e u t o t e m , tomá-lo-á s i m p l e s m e n t e p o r e m b l e m a ?
Seria i r m o s longe demais no sentido oposto: ainda q u e t o t e m i s m o não
esteja na base da organização política dos não-civilizados, c o m o quer
D ü r k h e i m , ocupa d e m a s i a d o lugar na sua existência para p o d e r m o s ver
n e l e a p e n a s u m s i m p l e s m e i o d e d e s i g n a ç ã o d o clã. A v e r d a d e d e v e ser
q u a l q u e r coisa de i n t e r m é d i o e n t r e estas d u a s soluções extremas. Demos,
a título de h i p ó t e s e , u m a i n t e r p r e t a ç ã o a q u e os n o s s o s p r i n c í p i o s pode-
r i a m conduzir. N a d a há a tirar do facto de se d i z e r de um clã q u e é este ou

194 aquele a n i m a l ; m a s que dois clãs incluídos n u m a m e s m a tribo t e n h a m


de ser n e c e s s a r i a m e n t e dois a n i m a i s diferentes é um facto m u i t o m a i s
instrutivo. S u p o n h a m o s , c o m efeito, q u e se queira assinalar que os dois
clãs c o n s t i t u e m d u a s espécies, n o s e n t i d o b i o l ó g i c o d o t e r m o : c o m o s e
poderá fazê-lo, n u m a s i t u a ç ã o e m que a linguagem ainda n ã o foi im-
pregnada pela ciência e pela filosofia? U m a vez q u e os traços individuais
d e u m a n i m a l n ã o i m p r e s s i o n a m a a t e n ç ã o , o a n i m a l é p e r c e b i d o , dizía-
m o s nós, c o m o u m género. Para e x p r i m i r q u e dois clãs c o n s t i t u e m duas
e s p é c i e s d i f e r e n t e s , dar-se-á e n t ã o a u m d e l e s o n o m e d e u m a n i m a l , a o

158 j.
A RELIGIÃO ESTÁTICA

outro o de um outro. Cada um destes nomes, i s o l a d a m e n t e tomado, não é


m a i s q u e u m a d e n o m i n a ç ã o : j u n t o s , e q u i v a l e m a u m a a f i r m a ç ã o . N a reali-
dade, d i z e m q u e os dois clãs são de sangue diferente. Dizem-no porquê?
Se o totemismo se encontra, c o m o nos garantem, em diversos pontos do
g l o b o , e m s o c i e d a d e s q u e n ã o p u d e r a m c o m u n i c a r e n t r e si, d e v e c o r r e s -
p o n d e r a u m a necessidade c o m u m ã essas sociedades, a u m a exigência
vital. De facto, s a b e m o s q u e os clãs e n t r e os q u a i s se d i s t r i b u i a t r i b o são
m u i t a s vezes exogâmicos: p o r outras palavras, as u n i õ e s são c o n t r a í d a s
e n t r e m e m b r o s d e clãs d i f e r e n t e s , m a s n ã o n o i n t e r i o r d e u m deles. Du-
r a n t e m u i t o t e m p o , c h e g o u a pensar-se cjue e s t á v a m o s a q u i p e r a n t e u m a
lei geral, e q u e o t o t e m i s m o i m p l i c a v a s e m p r e a e x o g a m i a . S u p o n h a m o s
que assim tenha sido de início e q u e a exogamia t e n h a sido, em nume-
rosos casos, d e i x a d a e n t r e t a n t o p e l o c a m i n h o . V e m o s m u i t o b e m o inte-
resse que a natureza t e m em i m p e d i r q u e os m e m b r o s de u m a tribo se
c a s e m regularmente entre si e q u e ; nessa sociedade fechada, a c a b e m p ê r •
se c o n t r a i r u n i õ e s e n t r e p a r e n t e s p r ó x i m o s : a r a ç a n ã o t a r d a r i a a dege-
nerar. Um instinto, que hábitos completamente diferentes recobrem
q u a n d o deixa de ser útil, l e v a r á e n t ã o a t r i b o a cindir-se em clãs no interior
d o s quais o c a s a m e n t o será interdito. E s t e instinto a l c a n ç a r á de resto os
seus fins, f a z e n d o c o m q u e os m e m b r o s do clã se s i n t a m já p a r e n t e s e 195
c o m que, d e u m clã para outro, s e c o n s i d e r e m pelo c o n t r á r i o tão estran-
geiros q u a n t o possível, p o r q u e o seu modus operandi, q u e p o d e m o s igual-
m e n t e observar e n t r e nós, é d i m i n u i r a atracção sexual e n t r e h o m e n s e
m u l h e r e s que v i v e m ao lado u n s dos outros ou q u e se s a b e m aparenta-
dos entre si '. C o m o se persuadirão então, como e x p r i m i r ã o os m e m b r o s
de dois clãs diferentes q u e n ã o são do m e s m o s a n g u e ? Habituar-se-ão a
dizer q u e não p e r t e n c e m à m e s m a espécie. Q u a n d o d e c l a r a m constituir
duas espécies animais, não é na animalidade, é na dualidade q u e insistem.
Pelo m e n o s a s s i m d e v e ter sido n a o r i g è m 2 . R e c o n h e ç a m o s , por-outro
lado, que estamos aqui no.domínio' do simples provável, para não -
dizermos do p u r o possível. Quisemos apenas ensaiar, num problema
m u i t o discutido, o m é t o d o q u e c o m u m m e n t e nos parece m a i s seguro.

1
Ver, a este respeito, Westermark, History of human marriage, Londres, 1901, pp.
290 e segs.
2
A ideia de que o clã descende do animal-totem - ideia na qual o Sr. Van Gennep
insiste no seu interessante trabalho sobre L'État actuei du problème lotémique (Paris,
1920) - pode perfeitamente ter vindo enxertar-se 11a representação que indicávamos.

159
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

P a r t i n d o d e u m a n e c e s s i d a d e b i o l ó g i c a , p r o c u r a m o s n o ser v i v o a neces-
sidade q u e l h e c o r r e s p o n d e . S e esta n e c e s s i d a d e n ã o cria u m instinto real
e actuante, suscita, por i n t e r m é d i o daquilo a q u e p o d e r í a m o s c h a m a r um
instinto v i r t u a l o u latente, u m a representação i m a g i n a t i v a q u e determina
a conduta c o m o o faria o instinto. Na base do t o t e m i s m o estaria u m a
representação do m e s m o género.

M a s f e c h e m o s este parênteses, aberto a p r o p ó s i t o d e u m objecto d o


qual talvez se diga que merecia melhor. E r a nos espíritos q u e t í n h a m o s
196 ficado. C r e m o s que, para p e n e t r a r m o s a e s s ê n c i a m e s m a da religião e
para c o m p r e e n d e r m o s a história da h u m a n i d a d e , d e v e r í a m o s transpor-
tar-nos d e i m e d i a t o , d a r e l i g i ã o e s t á t i c a e e x t e r i o r d e q u e t r a t á m o s até
aqui, a e s s a r e l i g i ã o d i n â m i c a , i n t e r i o r , q u e a b o r d a r e m o s n o p r ó x i m o capí-
tulo. A p r i m e i r a destinava-se a a f a s t a r p e r i g o s q u e a i n t e l i g ê n c i a p o d i a
fazer o h o m e m correr; era infra intelectual. A c r e s c e n t e m o s q u e era natu
ral, p o r q u e a e s p é c i e h u m a n a a s s i n a l a u m a c e r t a e t a p a d a e v o l u ç ã o v i t a l ;
aí se deteve, n u m m o m e n t o dado, o m o v i m e n t o em f r e n t e ; o h o m e m foi
estabelecido então globalmente, a c o m p a n h a d o pela sua inteligência, pelos
perigos q u e esta i n t e l i g ê n c i a p o d e r i a r e p r e s e n t a r , e p e l a f u n ç ã o efabu-
ladora que deveria preveni-los; a magia e o a n i m i s m o elementar, tudo
isso t e r á a p a r e c i d o e m bloco, t u d o isso c o r r e s p o n d i a e x a c t a m e n t e às
necessidades do i n d i v í d u o e da sociedade, um e o u t r o l i m i t a d o s nas suas
ambições, q u e a natureza quisera. M a i s tarde, e por m e i o de um esforço
que teria p o d i d o não se produzir, o h o m e m arrancou-se ao seu m o v i m e n t o
à volta s e m p r e do m e s m o lugar; inseriu-se de novo, prolongando-a, na
corrente evolutiva. Foi a religião dinâmica, a c o m p a n h a d a s e m dúvida de
u m a i n t e l e c t u a l i d a d e s u p e r i o r , m a s d i s t i n t a d e l a . A p r i m e i r a f o r m a d a re-
ligião fora infra-intelectual; s a b e m o s p o r q u e razão a s s i m foi. A segunda,
por razões q u e indicaremos, foi supra-intelectual. S e r á opondo-as imedia-
t a m e n t e u m a à o u t r a q u e m e l h o r a s p o d e r e m o s c o m p r e e n d e r . C o m efeito,
s ó e s t a s d u a s r e l i g i õ e s e x t r e m a s s ã o e s s e n c i a i s e p u r a s . A s f o r m a s inter-
médias, que se desenvolveram nas civilizações antigas, só p o d e r i a m indu
zir e m e r r o a filosofia d a r e l i g i ã o s e f i z e s s e m c r e r q u e s e p a s s o u d e u m
extremo ao o u t r o pela via de um aperfeiçoamento gradual; erro sem

197 d ú v i d a n a t u r a l , q u e s e e x p l i c a p e l o f a c t o d e a r e l i g i ã o e s t á t i c a t e r sobre-
v i v i d o e m p a r t e a s i p r ó p r i a n a r e l i g i ã o d i n â m i c a . M a s e s t a s f o r m a s inter-
m é d i a s o c u p a r a m u m lugar tão g r a n d e n a história c o n h e c i d a d a humani-
dade q u e t e r e m o s e f e c t i v a m e n t e de insistir nelas. N ã o v e m o s , pelo nosso

i ó o I
A RELIGIÃO E STATIC A

lado, q u e t e n h a m seja o q u e for d e a b s o l u t a m e n t e n o v o , n a d a d e com-


parável à religião dinâmica, m a s s i m p l e s variações sobre o d u p l o tema do
a n i m i s m o elementar e da magia; a crença nos espíritos continuou, a l é m
disso, a ser s e m p r e o f u n d o da religião p o p u l a r . M a s da f a c u l d a d e efabu-
ladora, q u e a elaborara, saiu através de um d e s e n v o l v i m e n t o posterior
u m a m i t o l o g i a e m t o r n o d a q u a l c r e s c e r a m u m a l i t e r a t u r a , " u m a arte, ins-
t i t u i ç õ e s , e n f i m t o d o s o s a s p e c t o s e s s e n c i a i s d a c i v i l i z a ç ã o a n t i g a . Fale-
mos, portanto, da mitologia, sem n u n c a perdermos de vista aquilo q u e
foi o seu ponto de partida, aquilo de q u e c o n t i n u a m o s a aperceber-nos
a i n d a a t r a v é s dela.

D o s espíritos para os deuses a t r a n s i ç ã o p o d e ser insensível, m a s a


d i f e r e n ç a n e m p o r isso é m e n o s i m p r e s s i o n a n t e . 0 d e u s é u m a pessoa.
T e m as suas qualidades, os seus defeitos, o seu carácter. É portador de um
nome. M a n t é m relações definidas c o m outros deuses. Exerce funções
i m p o r t a n t e s e é, s o b r e t u d o , o ú n i c o q u e as exerce. Pelo contrferio, há m i l h a -
res d e e s p í r i t o s d i f e r e n t e s , r e p a r t i d o s p e l a s u p e r f í c i e d e u m a r e g i ã o , q u e
realizam u m a m e s m a tarefa; são designados p o r u m n o m e c o m u m e esse
n o m e p o d e r á , e m certos casos, n ã o c o m p o r t a r s e q u e r u m singular: m a n e s
e penates, p a r a n o s f i c a r m o s só p o r este e x e m p l o , são p a l a v r a s l a t i n a s
que só encontramos no plural. Se a representação religiosa verdadeira-
m e n t e o r i g i n a l é a d e u m a " p r e s e n ç a eficaz", d e u i n acto m a i s q u e d e u m
s e r o u d e u m a c o i s a , a c r e n ç a n o s e s p í r i t o s s i t u a - s e m u i t o p e r t o d a s ori-
gens; os d e u s e s só a p a r e c e m m a i s tarde, q u a n d o a s u b s t a n c i a l i d a d e p u r a
e s i m p l e s q u e os espíritos p o s s u í a m ascendeu, neste ou n a q u e l e de entre 19S
eles, a o n í v e l d a p e r s o n a l i d a d e . A l i á s , estes d e u s e s a c r e s c e n t a m - s e a o s
e s p í r i t o s , m a s n ã o o s s u b s t i t u e m . O c u l t o d o s e s p í r i t o s c o n t i n u a a ser,
c o m o dizíamos, o f u n d o da religião popular. A parte esclarecida da nação
n ã o d e i x a r á p o r é m d e p r e f e r i r o s d e u s e s , e p o d e dizer-se q u e a m a r c h a n o
sentido do politeísmo é um progresso na m a r c h a da civilização.

I n u t i l m e n t e p r o c u r a r í a m o s n e s t a m a r c h a u m r i t m o o u u m a lei. É capri-
cho puro. D a m u l t i d ã o dos espíritos v e r e m o s surgir u m a d i v i n d a d e local,
de início modesta, que crescerá c o m a cidade e será f i n a l m e n t e adoptada
pela n a ç ã o inteira. M a s outras evoluções são t a m b é m possíveis. É raro,
por o u t r o lado, que a e v o l u ç ã o d e s e m b o q u e n u m estado definitivo. P o r
m a i s e l e v a d o q u e seja o deus, a sua d i v i n d a d e n ã o i m p l i c a d e m o d o a l g u m
a imutabilidade. M u i t o pelo contrário, são os deuses p r i n c i p a i s das reli
giões antigas q u e m a i s m u d a r a m , enriquecendo-se d e atributos n o v o s

161
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO

peia a b s o r ç ã o d e d e u s e s d i f e r e n t e s c o m q u e a u m e n t a v a m a s u a substân-
cia. A s s i m , e n t r e os E g í p c i o s , o d e u s s o l a r R á , a p r i n c í p i o o b j e c t o de
a d o r a ç ã o s u p r e m a , atraí a si o u t r a s d i v i n d a d e s , assirniia-as ou enlaça-se
n e l a s , a m a l g a m a - s e c o m o i m p o r t a n t e d e u s d e T e b a s , A m o n , p a r a for-
mar Ámon-Rá. A s s i m M a r d u k , o deus da Babilónia, apropria-se dos cultos
de Bel, o g r a n d e deus de Nipur. A s s i m , na p o d e r o s a d e u s a Istar v ê m
fundir-se v á r i o s d e u s e s assírios. M a s n e n h u m a e v o l u ç ã o é m a i s rica do
que a de Zeus, o deus soberano da Grécia. D e p o i s de ter c o m e ç a d o s e m
d ú v i d a p o r ser o d e u s q u e se a d o r a no alto das m o n t a n h a s , q u e d i s p õ e
das n u v e n s , da c h u v a e do trovão, j u n t o u à sua f u n ç ã o m e t e o r o l ó g i c a , se
assim nos p o d e m o s exprimir, atribuições sociais que assumiram uma
complexidade crescente; a c a b o u por ser o deus q u e preside a todos os
199 grupos, da família ao Estado. E r a preciso sobrepor ao s e u n o m e os epítetos
mais variados para se assinalarem todas as direcções da sua actividade:
Xénios quando presidia ao c u m p r i m e n t o dos deveres de hospitalidade,
H ó r q u i o s q u a n d o assistia aos j u r a m e n t o s , H i q u é s i o s q u a n d o protegia os
s u p l i c a n t e s , G e n é t l i o s q u a n d o e r a i n v o c a d o p a r a u m c a s a m e n t o , etc.
A e v o l u ç ã o é g e r a l m e n t e lenta e n a t u r a l ; m a s t a m b é m p o d e ser r á p i d a e
cumprir-se artificialmente diante dos próprios olhos dos adoradores do
deus. A s d i v i n d a d e s d o O l i m p o d a t a m dos p o e m a s h o m é r i c o s , q u e talvez
não as t e n h a m criado, m a s q u e lhes d e r a m a f o r m a e as atribuições que
lhes c o n h e c e m o s , q u e as c o o r d e n a r a m e n t r e si e as a g r u p a r a m à v o l t a de
Zeus, p r o c e d e n d o desta feita m a i s p o r s i m p l i f i c a ç ã o do q u e por compli-
cação. N e m p o r isso f o r a m m e n o s aceites p e l o s gregos, q u e c o n h e c i a m
contudo as circunstâncias e quase a data do seu n a s c i m e n t o . M a s n ã o era
necessário o génio dos poetas: u n i decreto do p r í n c i p e p o d i a bastar para
fazer o u desfazer deuses. S e m entrarmos n o p o r m e n o r d e s t a s inter-
venções, r e c o r d e m o s a p e n a s a m a i s r a d i c a l de t o d a s elas, a do f a r a ó q u e
tomou o n o m e de Akhenaton: suprimiu os deuses áo Egipto em proveito
d e u m ú n i c o d e e n t r e e l e s e c o n s e g u i u f a z e r aceita"! a t é à s u a m o r t e e s t a
espécie d e m o n o t e í s m o . Sabe-se, aliás, q u e o s f a r a ó s p a r t i c i p a v a m eles
próprios da divindade. Intitulavam-se desde os t e m p o s mais antigos
"filhos de Rá". E a tradição e g í p c i a de tratar o s o b e r a n o c o m o u m a divin-
dade prosseguiu sob os Ptolomeus. N ã o se l i m i t a v a ao Egipto. E n c o n
tramo-la i g u a l m e n t e na Síria, sob os S e l ê u c i d a s , na C h i n a e no Japão,
o n d e o i m p e r a d o r recebe as h o n r a s d i v i n a s d u r a n t e a sua v i d a e se torna
deus depois da morte, e n f i m em R o m a , o n d e o S e n a d o diviniza Júlio

162
A REI.IGIÃO ESTÁTICA

César antes de Augusto, Cláudio, Vespasiano, Tito, N e r v a e, por fim, todos 200
os i m p e r a d o r e s , p a s s a r a m a o c u p a r a c o n d i ç ã o de deuses. É certo q u e a
a d o r a ç ã o d o s o b e r a n o n ã o s e p r a t i c a e m t o d a a p a r t e c o i n a m e s m a serie-
dade. V a i u m a g r a n d e distância, por e x e m p l o , d a d i v i n d a d e d e u m impe-
rador r o m a n o à de um faraó. Esta ú l t i m a está perto da d i v i n d a d e do chefe
nas sociedades primitivas; talvez se ligue à ideia de um fluido especial ou
d e u m p o d e r m á g i c o c u j o d e t e n t o r s e r i a o s o b e r a n o , a o p a s s o q u e a pri-
m e i r a foi conferida a César por simples adulação e utilizada por Augusto
como u m instrumentum regni. T o d a v i a , o s e m i - c e p t i c i s m o q u e se m i s -
t u r a v a à a d o r a ç ã o d o s i m p e r a d o r e s foi, e m R o m a , a p a n á g i o d o s e s p í r i t o s
cultivados; n ã o era extensivo ao povo; não atingia decerto a província.
O m e s m o é dizer q u e os deuses da a n t i g u i d a d e p o d i a m nascer, morrer,
transformar-se segundo o gosto dos h o m e n s e das circunstâncias, e que a
f é d o p a g a n i s m o era d e u m a c o m p l a c ê n c i a s e m fronteiras.

P r e c i s a m e n t e porque o capricho dos h o m e n s e o acaso das circúnstân-


cias t i v e r a m u m a parte tão g r a n d e n a sua génese, o s deuses n ã o s e p r e s t a m
a classificações rigorosas. Q u a n d o m u i t o p o d e m o s destrinçar a l g u m a s
grandes direcções da fantasia mitológica; mas, ainda assim, n e n h u m a
delas d e i x o u d e ficar l o n g e d e ser r e g u l a r m e n t e seguida. C o m o a s m a i s
das vezes os h o m e n s se d a v a m deuses a f i m de os utilizarem, é natural
que de um m o d o geral lhes t e n h a m atribuído funções e que, em m u i t o s
casos, a i d e i a d e f u n ç ã o t e n h a s i d o p r e d o m i n a n t e . F o i o q u e s e p a s s o u e m
R o m a . P ô d e dizer-se q u e a e s p e c i a l i z a ç ã o d o s d e u s e s e r a c a r a c t e r í s t i c a d a
religião r o m a n a . Para as sementeiras tinha Saturno, para o florescimento
das árvores de fruto Flora, para a m a t u r a ç ã o do fruto P o m o n a , atribuía a
J a n o a g u a r d a d a p o r t a , a V e s t a a d o lar. D e p r e f e r ê n c i a a a t r i b u i r a o m e s -
m o d e u s f u n ç õ e s m ú l t i p l a s , a p a r e n t a d a s e n t r e si, t e n d i a a e s t a b e l e c e r 201
d e u s e s distintos, a i n d a q u e p u d e s s e dar-lhes o m e s m o n o m e corn qualifi-
cativos diferentes. H a v i a a V e n u s Victrix, a V e n u s Felix, a V é n u s Genetrix.
0 p r ó p r i o J ú p i t e r era. J u p i t e r F u l g u r , F e r e t r i u s , S t a t o r , V i c t o r , O p t i m u s '
M a x i m u s ; e tais d i v i n d a d e s e r a m a t é c e r t o p o n t o i n d e p e n d e n t e s ; repre-
s e n t a v a m outros tantos marcos do c a m i n h o q u e levava do Júpiter q u e

g o v e r n a a c h u v a e o b o m t e m p o a o q u e p r o t e g e o E s t a d o t a n t o 11a p a z
c o m o na guerra. M a s e n c o n t r a m o s p o r toda a parte, em graus diferentes,
a m e s m a tendência. Desde que o h o m e m cultiva a terra, t e m deuses q u e
s e i n t e r e s s a m p e l a c o l h e i t a , q u e d i s p e n s a m o c a l o r , q u e g a r a n t e m a regu-
l a r i d a d e d a s e s t a ç õ e s . E s t a s f u n ç õ e s a g r í c o l a s d e v e m 1er c a r a c t e r i z a d o
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

alguns dos deuses m a i s antigos, e m b o r a t e n h a m sido p e r d i d a s de vista


q u a n d o a e v o l u ç ã o d o d e u s f e z d e l e u m a p e r s o n a l i d a d e c o m p l e x a , carre-
gada de u m a longa história. É a s s i m q u e Osíris, a f i g u r a m a i s rica do
panteão egípcio, p a r e c e ter c o m e ç a d o p o r ser o d e u s da v e g e t a ç ã o , T a l era
a função p r i m i t i v a m e n t e atribuída a A d ó n i s pelos gregos. Tal t a m b é m a
de N i s a b a , na B a b i l ó n i a , q u e p r e s i d i u aos cereais a n t e s de se t o r n a r a
deusa d a Ciência. N o p r i m e i r o p l a n o das d i v i n d a d e s d a í n d i a f i g u r a m
Indra e Agni. Devem-se a Indra a chuva e a trovoada, q u e favorecem a
terra, a A g n i o f o g o e a p r o t e c ç ã o do l a r d o m é s t i c o ; e a q u i a d i v e r s i d a d e
das f u n ç õ e s é u m a v e z m a i s a c o m p a n h a d a p o r u m a d i f e r e n ç a de carácter,
distinguindo-se I n d r a pela sua força e A g n i pela sua sabedoria. A f u n ç ã o
m a i s elevada é, a l é m disso, a de V a r u n a , q u e p r e s i d e à o r d e m u n i v e r s a l .
V o l t a m o s a e n c o n t r a r na religião X i n t o , no Japão, a d e u s a da terra, a das
colheitas, as q u e v e l a m sobre as m o n t a n h a s e as á r v o r e s , etc. M a s n e n h u -
ma outra d i v i n d a d e do género t e m u m a personalidade m a i s acusada do '
que a D e m e t e r dos gregos, t a m b é m ela d e u s a do solo e d a s colheitas,
202 ocupando-se a l é m disso dos mortos, aos q u a i s f o r n e c e u m a m o r a d a , e
presidindo, p o r outro lado, sob o n o m e de T e s m ó f o r o s , à v i d a de f a m í l i a
e à v i d a social. T a l é a t e n d ê n c i a m a i s m a r c a d a da f a n t a s i a q u e cria os
deus.es.

Mas, atribuindo-lhes funções, atribui-lhes u m a soberania que t o m a


muito n a t u r a l m e n t e a f o r m a territorial. Supõe-se q u e os deuses p a r t i l h a m
entre si o universo. S e g u n d o os poetas védicos, as suas diversas zonas de
i n f l u ê n c i a são o céu, a terra e a a t m o s f e r a i n t e r m é d i a . Na c o s m o l o g i a
b a b i l ó n i c a , o c é u é o d o m í n i o de A n u e a t e r r a o de B e l ; n a s p r o f u n d i -
dades do m a r habita Ea. Os gregos d i v i d e m o . m u n d o entre Zeus, deus do
céu e da terra, Posídon, deus dos mares, e H a d e s , ao q u a l p e r t e n c e o r e i n o
infernal. Estamos perante d o m í n i o s delimitados pela própria natureza.
Ora, de c o n t o r n o s n ã o m e n o s n í t i d o s são os astros; são i n d i v i d u a l i z a d o s
p e l a s u a f o r m a , c o m o t a m b é m p e l o s s e u s m o v i m e n t o s , q u e p a r e c e m de-
p e n d e r deles; há um deles q u e d i s p e n s a a v i d a neste m u n d o terreno, e os
outros, n ã o t e n d o e m b o r a o m e s m o poder, n e m p o r isso d e i x a m d e ser d a
m e s m a n a t u r e z a ; t ê m , t a m b é m eles, o q u e é n e c e s s á r i o t e r p a r a s e r e m
deuses. F o i na A s s í r i a q u e a c r e n ç a na d i v i n d a d e d o s astros a s s u m i u a sua
f o r m a m a i s s i s t e m á t i c a . M a s a a d o r a ç ã o do sol, e t a m b é m a do céu, e n c o n
tram-se q u a s e p o r toda a parte: na religião X i n t o do Japão, em q u e a deusa
do Sol é erigida em soberana tendo, abaixo dela, um d e u s da lua e um

164
A REI.IGIÃO ESTÁTICA

d e u s das estrelas; na religião e g í p c i a p r i m i t i v a , em q u e a lua e o c é u são


e n c a r a d o s c o m o d e u s e s a o lado d o sol q u e o s d o m i n a ; n a religião v é d i c a
e m q u e M i t r a ( i d ê n t i c o a o M i t h r a i r a n i a n o q u e é u m a d i v i n d a d e solar)
a p r e s e n t a a t r i b u t o s q u e c o n v i r i a m a u m d e u s d o sol o u d a luz; n a a n t i g a
r e l i g i ã o c h i n e s a e m q u e o sol é u m d e u s pessoal; e n f i m e n t r e o s p r ó p r i o s
gregos, que t ê m em H é l i o s um dos deuses m a i s antigos. E n t r e os povos 203
indo-germânicos ém geral, o céu foi objecto de um culto particular. Sob
os n o m e s de Dyaus, Zeus, Júpiter, Ziu, é c o m u m aos indianos védicos,
a o s gregos, aos r o m a n o s e aos teutões, e m b o r a só na G r é c i a e em R o m a
seja o rei dos deusés, c o m o a d i v i n d a d e celeste dos M o n g ó i s o é na C h i n a .
E aqui, sobretudo, q u e se constata a t e n d ê n c i a q u e d e u s e s m u i t o antigos,
p r i m i t i v a m e n t e carregados de tarefas inteiramente materiais, revelam
de se e n r i q u e c e r e m de atributos m o r a i s à m e d i d a q u e a v a n ç a m na idade.
N a B a b i l ó n i a d o S u l , o sol q u e v ê t u d o t o r n o u - s e g u a r d i ã o d o d i r e i t o e d a
justiça; r e c e b e o t í t u l o de "juiz". O M i t r a i n d i a n o é o c a m p e ã o da v e r d a d e
e do d i r e i t o ; dá a v i t ó r i a à boa causa. E o O s í r i s e g í p c i o , q u e se c o n f u n d i u
c o m o d e u s s o l a r d e p o i s de t e r s i d o o da v e g e t a ç ã o , a c a b o u p o r ser
o grande juiz equitativo e misericordioso que reina sobre o país dos
mortos.

T o d o s estes d e u s e s e s t ã o l i g a d o s a coisas. M a s há-os t a m b é m - e mui-


tas vezes são os m e s m o s , encarados de um o u t r o p o n t o de vista - que se
d e f i n e m pelas suas relações c o m pessoas o u grupos. P o d e r á considerar-se
u m deus o génio o u o demónio próprio a u m indivíduo? O genius romano
era numen e não deus; não tinha figura n e m n o m e ; estava a u m passo de
se r e d u z i r a essa " p r e s e n ç a e f i c a z " q u e v i m o s ser o q u e há de p r i m i t i v o e
essencial n a divindade. O lar familiaris, que velava sobre a família, não
tinha m u i t o mais personalidade. M a s quanto m a i s i m p o r t a n t e é o grupo,
m a i o r o seu direito a um v e r d a d e i r o deus. No Egipto, p o r exemplo, cada
u m a d a s c i d a d e s p r i m i t i v a s t i n h a o s e u d e u s p r o t e c t o r . E s t e s d e u s e s dis-
tinguiam-se p r e c i s a m e n t e uns dos outros pelas suas relações c o m esta ou 204
aquela c o m u n i d a d e : dizer " 0 d e Edfu", " 0 d e N e k h e b " era suficiente para
os designar. M a s , as m a i s das vezes, eram. d i v i n d a d e s q u e p r e e x i s t i a m ao
grupo, e q u e este adoptara. F o i o q u e se passou, no p r ó p r i o Egipto, c o m
A m ó n - R ã , o deus de Tebas. Foi o q u e se passou na B a b i l ó n i a , o n d e a cidade
de Ur t i n h a por d e u s a a lua, a de U r u k o p l a n e t a V é n u s . E o m e s m o se
diga da Grécia, o n d e D e m é t e r se sentia e s p e c i a l m e n t e no seu lugar em
Eleusis, A t e n a na Acrópole, A r t e m i s a na Arcádia. Era frequente t a m b é m

I 165
?
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO

q u e p r o t e c t o r e s e p r o t e g i d o s f o s s e m s o l i d á r i o s ; o s d e u s e s d a c i d a d e bene-
f i c i a v a m c o m o e n g r a n d e c i m e n t o desta. A guerra tornava-se u m a luta
entre d i v i n d a d e s rivais. Estas p o d i a m , por outro lado, reconciliar-se e os
deuses do povo subjugado e n t r a v a m então no panteão do vencedor. M a s
a v e r d a d e é q u e a c i d a d e ou o i m p é r i o , p o r um lado, os s e u s d e u s e s tutela-
res p o r outro, f o r m a v a m u m c o n s ó r c i o v a g o cujo carácter d e v e ter v a r i a d o
indefinidamente.
Todavia, é para nossa c o m o d i d a d e q u e d e f i n i m o s e classificamos assim
os d e u s e s da fábula. N e n h u m a lei p r e s i d i u ao seu n a s c i m e n t o , e tão-pouco
ao seu d e s e n v o l v i m e n t o ; a h u m a n i d a d e d e i x o u aqui agir l i v r e m e n t e o
seu i n s t i n t o d e efabulação. Trata-se d e u m i n s t i n t o q u e n ã o v a i m u i t o
longe, s e m d ú v i d a , q u a n d o a b a n d o n a d o a s i m e s m o , m a s p r o g r i d e indefi-
n i d a m e n t e q u a n d o s e c o m p r a z e m e m exercê-lo. É grande a diferença,
sob este aspecto, e n t r e as m i t o l o g i a s d o s diferentes povos. A A n t i g u i d a d e
Clássica oferece-nos um e x e m p l o desta oposição:!a m i t o l o g i a r o m a n a é
p o b r e , a d o s g r e g o s s u p e r a b u n d a n t e . O s d e u s e s d a R o m a A n t i g a coin-
c i d e m c o m a f u n ç ã o de q u e são i n v e s t i d o s e, de certo m o d o , nela se imo-
bilizam. M a l c h e g a m a ter u m corpo, q u e r o e u dizer u m a f i g u r a imagi-
nável. M a l c h e g a m a ser deuses. Pelo contrário, cada um dos deuses da
205 Grécia A n t i g a t e m a sua f i s i o n o m i a , o seu carácter, a sua história. Vai e
v e m , age fora do exercício das suas funções. C o n t a m - s e as suas aventu-
ras, d e s c r e v e - s e a s u a i n t e r v e n ç ã o n o s n o s s o s a s s u n t o s . P r e s t a - s e a t o d a s
as fantasias do artista e do poeta. Seria, m a i s p r e c i s a m e n t e , um persona-
g e m de romance, se não tivesse um poder superior ao dos h o m e n s e o
p r i v i l é g i o d e r o m p e r , e m c e r t o s c a s o s p e l o m e n o s , a r e g u l a r i d a d e d a s leis
d a n a t u r e z a . E m s u m a , a f u n ç ã o e f a b u l a d o r a d o e s p í r i t o d e t e v e - s e n o pri-
m e i r o caso; l e v o u p o r d i a n t e o seu t r a b a l h o no s e g u n d o . M a s é s e m p r e a
m e s m a função. R e t o i n a r á se necessário o trabalho i n t e r r o m p i d o . Tal foi o
efeito da introdução da literatura e, m a i s geralmente, das ideias gregas
em Roma. É sabido c o m o os romanos identificaram alguns dos seus.
deuses c o m os da Hélade, conferindo-lhes assim u m a personalidade mais
acusada e fazendo tfs passar do repouso ao m o v i m e n t o .

D i s s e m o s desta f u n ç ã o e f a b u l a d o r a q u e seria defini-la m a l fazer dela


u m a v a r i e d a d e d a i m a g i n a ç ã o . E s t a ú l t i m a p a l a v r a t e m u m s e n t i d o sobre-
tudo negativo. C h a m a m o s imaginativas às representações concretas que
n ã o são n e m percepções n e m recordações. C o m o estas representações
n ã o d e s e n h a m u m o b j e c t o p r e s e n t e n e m u m a c o i s a p a s s a d a , são todas

166
A RELIGIÃO E STATIC A

e n c a r a d a s d a m e s m a m a n e i r a pelo senso c o m u m e d e s i g n a d a s p o r u m a
só e m e s m a p a l a v r a na l i n g u a g e m corrente. M a s n e m p o r isso o psicólogo
d e v e r á a g r u p á - l a s n a m e s m a c a t e g o r i a n e m l i g á - l a s à m e s m a f u n ç ã o . Dei-
x e m o s , p o i s , d e l a d o a i m a g i n a ç ã o , q u e n ã o p a s s a d e u m a p a l a v r a , e consi-
d e r e m o s u m a faculdade b e m definida do espírito, a de criar personagens
c u j a s h i s t ó r i a s n o s c o n t a m o s . E s t a f a c u l d a d e t o m a u m a s i n g u l a r intensi-
d a d e de v i d a entre os romancistas e os d r a m a t u r g o s . A l g u n s destes são
v e r d a d e i r a m e n t e obcecados pelos seus heróis; são p o r eles c o n d u z i d o s 206
m a i s do q u e os c o n d u z e m ; chega a custar-lhes d e s e m b a r a ç a r e m - s e deles
d e p o i s d e t e r e m a c a b a d o a s u a p e ç a o u o s e u r o m a n c e . N ã o são necessa-
r i a m e n t e estes os autores cuja o b r a alcança m a i s e l e v a d o valor; mas,
m e l h o r q u e outros, fazem-nos tocar a dedo a existência, pelo m e n o s a
a l g u n s d e e n t r e nós, d e u m a f a c u l d a d e e s p e c i a l d e a l u c i n a ç ã o v o l u n t á r i a .
P a r a d i z e r a v e r d a d e , e n c o n t r a m o - l a n u m g r a u o u n o u t r o e m t o d a a gente.
É m u i t o v i v a nas crianças. U m a delas m a n t e r á u m c o m é r c i o quotidiano
c o m u m p e r s o n a g e m i m a g i n á r i o , cujas i m p r e s s õ e s s o b r e c a d a u m dos
i n c i d e n t e s d o dia nos relatará. M a s a m e s m a f a c u l d a d e e n t r a e m jogo nos
que, s e m c r i a r e m eles p r ó p r i o s seres fictícios, se i n t e r e s s a m p o r ficções
c o m o o f a r i a m por realidades. Q u e poderá h a v e r de m a i s espantoso do
q u e v e r m o s e s p e c t a d o r e s q u e c h o r a m n o t e a t r o ? Dir-se-á q u e a p e ç a é
d e s e m p e n h a d a p o r a c t o r e s , q u e h á e m p a l c o h o m e n s d e c a r n e e osso.
Seja, mas p o d e m o s ser arrebatados q u a s e c o m a m e s m a força pelo
r o m a n c e q u e lemos, e simpatizar na m e s m a m e d i d a c o m os personagens
cuja h i s t ó r i a nos é contada. C o m o é possível q u e os psicólogos não se
t e n h a m s e n t i d o i m p r e s s i o n a d o s p e l o q u e u m a t a l f a c u l d a d e t e m d e mis-
t e r i o s o ? Responder-se-á q u e todas as n o s s a s f a c u l d a d e s são misteriosas,
110 sentido em que não c o n h e c e m o s o m e c a n i s m o interior de n e n h u m a
delas. S e m d ú v i d a ; m a s s e a q u i está fora d e c a u s a u m a r e c o n s t r u ç ã o
m e c â n i c a , t e m o s o direito de r e c l a m a r u m a e x p l i c a ç ã o psicológica. E a
e x p l i c a ç ã o é em psicologia o q u e é em biologia; deu-se c o n t a da existência
de u m a f u n ç ã o q u a n d o se mostrou c o m o e p o r q u ê é ela necessária à vida.
O r a , n ã o é d e c e r t o n e c e s s á r i o q u e h a j a r o m a n c i s t a s e d r a m a t u r g o s ; a facul-
d a d e de e f a b u l a ç ã o em geral n ã o c o r r e s p o n d e a u m a e x i g ê n c i a vital. M a s 207
s u p o n h a m o s q u e n u m p o n t o particular, a p l i c a d a a u m a c e r t o objecto,
esta f u n ç ã o seja indispensável à existência d o s i n d i v í d u o s c o m o à das
sociedades: c o n c e b e r e m o s s e m d i f i c u l d a d e que, d e s t i n a d a a esse trabalho,
a o q u a l é n e c e s s á r i a , seja e m s e g u i d a u t i l i z a d a , u m a v e z q u e p e r m a n e c e

167
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA REL1G1ÀO

presente, em simples jogos. De facto, passamos sem dificuldade do ro-


mance de hoje a contos mais ou menos antigos, às lendas, ao folclore, e
do folclore à mitologia, que não é a mesma coisa, mas que se constituiu
da mesma maneira; a mitologia, por seu turno, não fez mais que desen-
volver em história a personalidade, dos deuses, e esta última criação não
é senão a extensão de uma outra, mais simples, a das "potências semi-
-pessoais"ou "presenças eficazes"que estão, pensamos nós, na origem da
religião. Aqui tocamos no que mostrámos ser uma exigência fundamen-
tal da vida: esta exigência fez surgir a faculdade da efabulação; a função
efabuladora deduz-se assim das condições de existência da espécie hu-
mana. Sem retomar o que já longamente expusemos, lembremos que, no
domínio vital, o que aparece à análise como uma complicação infinita é
dado à intuição como um acto simples. O acto podia não se ter consu-
mado; mas se se consumou, foi porque atravessou de um golpe só todos
os obstáculos. Estes obstáculos, cada um dos quais fazia surgir outro, cons-
tituem uma multiplicidade indefinida, e é precisamente a eliminação
sucessiva de todos eles que se apresenta à nossa análise. Querer explicar
cada uma destas eliminações pela precedente seria um erro; todas elas se
explicam por uma operação única, que é o próprio acto na sua simplici-
dade. Assim, o movimento indiviso da flecha triunfa de uma só vez sobre
203 os mil e mil obstáculos que a nossa percepção, auxiliada pelo raciocínio
de Zenão, crê apreender nas imobilidades dos pontos sucessivos da linha
percorrida. Assim, o acto indiviso da visão, pelo simples facto de ser bem
sucedido, deixa para trás de um só golpe milhares de milhares de obstá-
culos; estes obstáculos vencidos são o que aparece à nossa percepção e à
nossa ciência na multiplicidade das células constitutivas do olho, na com-
plicação do aparelho visual, enfim nos mecanismos elementares da ope-
ração. Do mesmo modo, consideremos a espécie humana, quer dizer o
salto brusco por meio do qual a vida que evoluía chegou ao homem indi-
vidual e social: no mesmo lance dar-nos-emos a inteligência fabricadora
e depois um esforço que se prolongará, em virtude do seu impulso, para
além do simples fabrico para o qual fora feito, criando assim um perigo.
Se a espécie humana existe, é que o mesmo acto, através do qual era
posto o homem com a sua inteligência fabricadora, com o seu esforço da
inteligência continuado, corn o perigo criado pela continuação do esforço,
suscitava a função efabuladora. Esta não foi querida pois-pela natureza;
e todavia explica-se naturalmente. Com efeito, se a juntarmos a todas as

68
A RELIGIÃO E STATIC A

outras funções psicológicas, descobrimos que o conjunto exprime sob a


forma de multiplicidade o acto indivisível por meio do qual a vida saltou
do escalão onde se detivera até ao liomem.
Mas vejamos mais de perto porque é que esta faculdade efabuladora -
impõe as suas invenções com uma força excepcional quando se exerce
no domínio religioso. Está aí no seu lugar próprio, sem margem para
dúvidas; foi feita para fabricar espíritos e deuses; mas como prossegue
noutras partes o seu trabalho de efabulação, há motivo para nos pergun-
tarmos porque é que, continuando a operar da mesma maneira, já não
obtém o mesmo crédito. Para o que se encontrariam duas razões.
A primeira é que em matéria religiosa a adesão de cada um é reforçada 209
pela adesão de todos. Já no teatro, a docilidade do espectador às suges-
tões do dramaturgo é singularmente aumentada pela atenção e pelo inte-
resse da sociedade presente. Mas trata-se de uma sociedade com o tama- f
nho exacto da sala, e que não dura mais que a peça: que acontecerá, se a
crença individual for sustentada, confirmada por um povo inteiro, e tomar
o seu ponto de apoio tanto no passado como no presente? Que aconte-
cerá, se o deus for cantado pelos poetas, alojado nos templos, figurado
pela arte? Enquanto a ciência experimental não se tiver constituído soli-
damente, não haverá garante mais seguro da verdade que o consenti-
mento universal. A verdade será, muitas vezes, apenas esse mesmo con-
sentimento. Diga-se de passagem que tal é uma das razões de ser da
intolerância. O que não aceita a crença comum impede-a, enquanto nega,
de ser totalmente verdadeira. A verdade só recobrará a sua integridade se
ele se retratar ou desaparecer.
Não queremos dizer que a crença religiosa-não tenha podido ser, até
mesmo no politeísmo, uma crença individual. Cada romano tinha um
genius ligado à sua pessoa; mas só acreditava tãó firmemente no seu génio
pelo facto de cada um dos outros romanos ter o seu, e porque a sua fé,
pessoal nesse ponto, lhe era garantida por uma fé universal. Também
não queremos dizer que a religião tenha alguma vez sido de essência
mais social do que individual: vimos, na realidade, que a' funçãoefabulâ-
dora, inata no indivíduo, tem por primeiro objecto consolidar a sociedade;
mas sabemos que se destina igualmente a sustentar o próprio indivíduo,
e que de resto nisso reside o interesse da sociedade. Para dizer a verdade,
indivíduo e sociedade implicam-se reciprocamente: os indivíduos cons-
tituem a sociedade por meio da sua reunião; a sociedade determina todo

169
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO

210 um aspecto dos indivíduos através da sua prefiguração em cada um deles.


Indivíduo e sociedade condicionam-se, pois, circularmente. O círculo,
querido pela natureza, foi quebrado pelo homem no dia em que este se
pode reintegrar no impulso criador, impelindo em frente a natureza hu-
mana em vez de a deixar girar à volta sempre do mesmo lugar. E desse
dia que data uma religião essencialmente individual, embora com isso se
tornasse, é certo, mais profundamente social. Mas teremos de voltar a
este ponto. Digamos apenas que a garantia trazida pela sociedade à crença
individual, em matéria religiosa, bastaria já para tornar sem par estas
invenções da faculdade efabuladora.
Mas devemos ter em conta outra coisa ainda. Vimos como os anti-
gos assistiam, impassíveis, à génese deste ou daquele deus. Doravante,
acreditariam nele como em todos os outros. O que seria inadmissível, se
supuséssemos que a existência dos seus deuses era da mesma natureza
para eles que a dos objectos que viam e tocavam. Era real, mas de uma
realidade que não deixava de depender da vontade humana.
Os deuses da civilização pagã distinguem-se, com efeito, das entidades
mais antigas, elfos, gnomos, espíritos, das quais a fé popular nunca se
desprendeu. Essas entidades tinham decorrido quase imediatamente da
faculdade efabuladora, que nos é natural; e eram adoptadas como tinham
sido produzidas, naturalmente. Desenhavam o contorno exacto da neces-
sidade da qual tinham partido. Mas a mitologia, que é uma extensão do
trabalho primitivo, supera por todos os lados uma tal necessidade; o inter-
valo que deixa entre esse trabalho e si própria é preenchido por uma
matéria em cuja escolha o capricho humano ocupa uma larga parte, e a
adesão que lhe é dada ressente-se desse facto. É sempre a mesma facui-
211 dade que intervém e obtém, para o conjunto das suas invenções, o mesmo
crédito. Mas cada uma das invenções, isoladamente, é admitida com o
pensamento reservado de que uma outra teria sido possível. O panteão
existe independentemente do homem, mas depende do homem integrar
nele um deus, e conferir-lhe assim a existência. Surpreendemo-nos hoje
com esse estado de alma. Experimentamo-lo todavia em certos sonhos,
quando podemos introduzir num momento dado o incidente que deseja-
mos: este realiza-se em nós no interior de um conjunto que se pôs a si
mesmo, sern nós. Poderia dizer-se, do mesmo modo, que cada deus deter-
minado é contingente, enquanto a totalidade dos deuses, ou antes o deus
em geral, é necessário. Aprofundando este ponto, levando a lógica mais

170
A REI.IGIÃO ESTÁTICA

longe que os antigos, descobriríamos que nunca houve pluralismo defi-


nitivo a não ser na crença nos espíritos, e que o politeísmo propriamente
dito, com a sua mitologia, implica um monoteísmo latente, em que as
divindades múltiplas só secundariamente existem, como representativas
do divino.
Mas os antigos teriam tido estas considerações por acessórias. Só
teriam importância se a religião fosse do domínio do conhecimento ou
da contemplação. Poderia então tratar-sé uma narrativa mitológica como
uma narrativa histórica e, tanto num caso como no outro, levantar-se a
questão da autenticidade. Mas a verdade é que não há comparação possível
entre uma narrativa e outra, porque não são da mesma ordem. A história
é conhecimento, a religião é principalmente acção: só.se refere ao conhe-
cimento, como muitas vezes repetimos, na medida em que uma repre-
sentação intelectual é necessária para prevenir o perigo de uma certa
intelectualidade. Considerar à parte uma tal representação, criticá-la en- '
quanto representação, seria esquecer que forma uma amálgama com a
acção concomitante. E um erro deste género que cometemos quando nos 212
perguntamos como houve grandes espíritos que puderam aceitar o tecido
de puerilidades, e até de absurdos, que era a sua religião. Os gestos do
nadador pareciam igualmente ineptos e ridículos àquele que esquecesse
que há água, que essa água sustenta o nadador, e que os movimentos do
homem, a resistência do líquido, a corrente do rio, devem ser tomados
conjuntamente como um todo indiviso.
A religião reforça e disciplina. Para tanto são necessários exercícios
continuamente repetidos, como aqueles cujo automatismo acaba por fixar
no corpo do soldado a segurança moral de que precisará no dia do perigo.
O mesmo é dizei que não há religião sem ritos e cerimónias. A estes actos
Teîigiosos a representação religiosa serve sobretudo de ocasião. Emanam
sem dúvida da crença, mas reagem imediatamente sobre ela ë consoli-
dam-na: se há deuses, é preciso'votar-lhes úm culto; mas a partir do m õ :
mento em que há um culto, é porque existem deuses. Esta solidariedade
do deus e da homenagem quelhe éprestada f a z d a verdade-relígiosauma •• • •
coisa à parte, sem medida comum com a verdade especulativa, e que
depende até certo ponto do homem.
Os ritos e as cerimônias tendem precisamente a estreitar esta solida-
riedade. Poderíamos alongar-nos demoradamente a seu propósito. Diga
mos apenas uma palavra sobre os dois principais: o sacrifício e a prece.

-v-,; • 171
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO

Na religião a que chamaremos dinâmica, a prece é indiferente à sua


expressão verbal; é uma elevação da alma, que poderia dispensar a pala-
vra. No seu grau inferior, por outro lado, não deixava de ter relação com
213 o encantamento mágico; visava então, senão forçar a vontade dos deuses
e sobretudo dos espíritos, pelo menos captar o seu favor. É a meio-cami-
nho entre estas duas extremidades que se situa comummente a prece, tal
como é entendida no politeísmo. A Antiguidade conheceu sem dúvida
formas de prece admiráveis, traduzindo uma aspiração da alma a tornar-
-se melhor. Mas estas formas foram excepções, e como que antecipações
de uma crença religiosa mais pura. É mais habitual ao politeísmo impor
à prece uma forma estereotipada, que se acompanha do pensamento
reservado segundo o qual não é apenas a significação da frase, mas tam-
bém a consecução das palavras e do conjunto dos gestos concomitantes
que lhe dará de facto a sua eficácia. Pode até mesmo dizer-se que, quanto
mais o politeísmo evolui, mais exigente se (orna neste ponto; a inter-
venção de um sacerdote torna-se cada vez mais necessária para garantir a
correcção do fiel. Como não veremos que este hábito de prolongar a ideia
do deus, uma vez evocada, em palavras prescritas e em atitudes predeter-
minadas confere à sua imagem uma objectividade superior? Mostrámos
outrora como aquilo que faz a realidade de uma percepção, aquilo que a
distingue de uma recordação ou de uma imaginação, é, antes de mais, o
conjunto dos movimentos nascentes que imprime no corpo e que a com-
pletam através de uma acção automaticamente começada. Movimentos
do mesmo género poderão desenhar-se devido a uma outra causa: a sua
actualidade refluirá também até à representação que os ocasionou, e con-
vertê-la-á praticamente em coisa.
Quanto ao sacrifício é, sem dúvida, antes de mais, uma oferenda des-
tinada a comprar o favor do deus ou a afastar a sua cplera. Será tanto
melhor acolhido quanto mais tiver custado, e quanto mãior for o valor da
sua vítima. É provavelmente assim que se explica em parte o hábito da
214 imolação de vítimas humanas, hábito que encontraríamos-na maior parte
das religiões antigas, talvez em todas se recuássemos- o suficiente no
tempo. Não há erro nem horror a que não possa conduzir a lógica, quando
se aplica a matérias que não relevam da pura inteligência. Mas há outra
coisa ainda no sacrifício: caso contrário, não poderíamos explicar que a
oferenda fosse necessariamente animal ou vegetal, quase sempre animal.
Em primeiro lugar, concorda-se de um modo geral em ver as origens do

172
A RELIGIÃO E STATIC A

sacrifício numa refeição que o deus e os seus adoradores se supunha


tomarem em comum. Em seguida, e sobretudo, o sangue tinha uma
virtude especial. Princípio de vida, conferia ao deus uma força que lhe
permitia ajudar melhor o homem e que talvez também (mas tratava-se
de um pensamento reservado e que mal chegava a ser consciente) se des-
tinasse a garantir-lhe mais solidamente a existência. Era, tal como a prece,
um laço entre o homem e a divindade.
Assim o politeísmo com a sua mitologia teve por duplo efeito elevar
cada vez mais alto as potências invisíveis que rodeiam o homem, e pôr
este último em relações cáda vez mais estreitas com essas potências.
Coextensivo às antigas civilizações, dilatou-se através de tudo o que elas
produziam, tendo inspirado a literatura e a arte, e delas recebido ainda
mais do que lhes dera. O mesmo é dizer que o sentimento religioso, na
Antiguidade, se compôs de elementos muito numerosos, variáveis de
pfevo para povo, mas que acabaram todos por se aglomerar em torno de
um núcleo primitivo. Foi a este núcleo centrai que atendemos, porque
quisemos apreender nas religiões antigas aquilo que tinham de especifi-
camente religioso. Algumas de entre elas, a da índia ou a da Pérsia, acom-
panharam-se de uma filosofia. Mas filosofia e religião permanecem sem-
pre distintas. Com efeito, as mais das vezes, a filosofia sobrevêm apenas
para dar satisfação a espíritos mais cultivados; a religião subsiste, no povo, zis
tal como a descrevemos. Até mesmo nos casos em que a mistura se opera,
os elementos conservam a sua individualidade: a religião terá veleidades
de especular, a filosofia não se desinteressará de agir; mas a primeira
nem por isso continuará menos a ser essencialmente acção, e a segunda,
acima de tudo, pensamento. Quando a religião se tornou realmente filo-
sofia entre os antigos, passou antes a desaconselhar a acção e renun-
ciou ao que viera fazer ao mundo. Tratar-se-ia ainda de religião? Podemos
dar às palavras o sentido que quisermos, contanto que comecemos por
defini-lo; mas seria um erro fazê-lo quando por acaso estamos diante de
uma palavra que designa um recorte natural das coisas: aqui deveremos
quando muito excluir da extensão do termo este ou aquele objecto que
nele tivesse sido acidentalmente incluído. É o que acontece com a reli-
gião. Mostrámos como se dá comummente esse nome a representa-
ções orientadas para a acção e suscitadas pela natureza segundo um inte-
resse determinado; foi excepcionalmente possível, e por razões das quais
é fácil apercebermo-nos, tornar a aplicação do termo extensível a repre-

173
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

sentações que têm outro objecto; a religião nem por isso deverá deixar de
ser definida em conformidade com aquilo a que chamámos a intenção da
natureza.
Explicámos muitas vezes o que devemos entender aqui por intenção.
E insistimos longamente, no presente capítulo, na função que a natureza
assinalara à religião. Magia, culto dos espíritos ou dos animais, adoração
dos deuses, mitologia, superstições de todo o género, parecerão muito
complexos se os tomarmos isoladamente. Mas o conjunto é bastante
simples.
216 0 homem é o único animal cuja acção se mostra pouco segura, que
hesita e tacteia, que forma projectos com a esperança de ser bem sucedido
e o receio de falhar. É o único que se sente exposto à doença, e o único
também que sabe que tem de morrer. O resto da natureza desabrocha
numa tranquilidade perfeita. As plantas e os animais bem podem estar
sujeitos a todos os acasos; nem por isso repousam menos no instante que
passa como o fariam sobre a eternidade. Respiramos qualquer coisa dessa
inalterável confiança num passeio pelo campo, do qual regressamos apazi-
guados. Mas ainda não é tudo. De todos os seres que vivem em sociedade,
o homem é o único capaz de desviar a linha social, cedendo a preo-
cupações egoístas quando está em causa o bem comum; em todos os
outros casos, o interesse individual mostra-se inevitavelmente coorde-
nado ou subordinado ao interesse geral. Esta dupla imperfeição é o tri-
buto pago pela inteligência. O homem não pode exercer a sua faculdade
de pensar sem se representar um futuro incerto, que desperta o seu medo
e a sua esperança. Não pode reflectir sobre o que a natureza lhe pede, na
medida em que esta fez dele um ser sociável, sem se dizer que muitas
vezes teria benefício, se descurasse os outros e cuidasse apenas de si
mesmo. Nos dois casos haveria uma ruptura da ordem normal, natural.
E contudo, foi a natureza que quis a nossa inteligência, que a pôs no
extremo de uma das duas grandes linhas da evolução animal para contra-
balançar o instinto mais perfeito, ponto terminal da outra. É impossível
que não tenha tomado as suas precauções para que a ordem, assim que a
inteligência a perturba, tenda a restabelecer-se automaticamente. De facto,
a função efabuladora, que pertence à inteligência mas não é apesar disso
inteligência pura, lern precisamente esse fim. O seu papel é elaborar a
religião de que temos vindo até aqui a tratar, aquela a que chamamos
217 estática e da qual diríamos que é a religião natural, se esta expressão não

1X4
A RELIGIÃO E STATIC A

tivesse adquirido já um outro sentido. Bastará, pois, que nos resumamos


para definirmos esta religião em termos precisos. É uma reacção defensiva
da natureza contra o que poderia haver de deprimente para o indivíduo, e
de dissolvente para a sociedade, no exercício da inteligência.
Terminemos com duas observações, destinadas a prevenir dois mal-
-entendidos. Quando dizemos que uma das funções da religião, tal como
foi querida pela natureza, é manter a vida social, não entendemos por
isso que haja solidariedade entre essa religião e a moral. A história teste-
munha o contrário. Pecar foi sempre ofender a divindade; mas a divin-
dade esteve muito longe de se sentir sempre ofendida pela imoralidade
ou até mesmo pelo crime: aconteceu-lhe prescrevê-los. A humanidade
parece ter em geral desejado, é certo, que os seus deuses fossem bons;
pôs muitas vezes as suas virtudes sob a sua invocação; talvez a própria
coincidência que assinalávamos entre a moral e a religião originais, uma
e outra rudimentares, tenha deixado Pio fundo da alma humana o vago
ideal de uma moral precisa e de uma religião organizada que se apoiariam
uma na outra. Nem por isso é menos verdade que a moral se precisou à
parte, que as religiões evoluíram à parte, e que os homens sempre rece-
beram os seus deuses da tradição sem lhes pedirem que exibissem um
certificado de moralidade nem que garantissem a ordem moral. Mas é
que devemos distinguir entre as obrigações sociais de um carácter muito
geral, sem as quais nenhuma vida em comum é possível, e o laço social
particular, concreto, que faz com que os membros de uma certa comuni-
dade estejam apegados à sua conservação. As primeiras destacaram-se,
pouco a pouco, do fundo confuso de costumes que mostrámos na origem;
destacaram-se através da purificação e da simplificação, da abstracção e 218
da generalização, para darem lugar a uma moral social. Mas o que liga
uns aos outros os membros de uma sociedade determinada é a tradição, a
necessidade, a vontade de defender este grupo contra os outros grupos e
de pôr o grupo acima de tudo. Conservar, estreitar um tal laço é o que
visa incontestavelmente a religião que considerámos natural: é comum
aos membros de um grupo, associa-os intimamente em ritos e cerimó-
nias, distingue o grupo dos outros grupos, garante o sucesso da empresa
comum e garante contra o perigo comum. Que a religião, tal como sai das
mãos da natureza, tenha cumprido ao mesmo tempo - para' empregar-
mos a nossa linguagem actual - as duas funções, moral e nacional, não
nos parece duvidoso: com efeito, as duas funções confundiam se neces-

175
AS DUAS FONTES DA MORAL, E DA RELIGIÃO

sariamente em sociedades rudimentares onde não havia senão costumes.


Mas que as sociedades, desenvolvendo-se, tenham arrastado a religião na
segunda direcção, é o que compreenderemos sem dificuldade quando
nos reportamos ao que atrás foi exposto. Ter-nos-íamos convencido rapi-
damente de que assim é, considerando que as sociedades humanas, no
exti'emo de uma das grandes linhas da evolução biológica, contrabalan-
çam as sociedades animais mais perfeitas, situadas no extremo da outra
grande linha, e que a função efabuladora, sem ser um instinto, desem-
penha nas sociedades humanas um papel simétrico ao do instinto nessas
sociedades animais.
A nossa segunda observação, da qual nos poderíamos dispensar depois
do que tantas vezes repetimos, refere-se ao sentido que damos à "intenção
da natureza", uma expressão de que nos servimos ao falar da "religião
219 natural". Para dizer a verdade, tratava-se menos desta religião em si mes-
ma do que do efeito por ela obtido. Há um impulso de vida qiie atravessa
a matéria e que dela tira o que pode, ainda que tenha de se cindir ao
fazê-lo. No extremo das duas principais linhas de evolução assim traça-
das encontram-se a inteligência e o instinto. Justamente porque a inte-
ligência é um sucesso, do mesmo modo que o instinto, não pode ser esta-
belecida sem que a acompanhe uma tendência que a leva a afastar o que
a impediria de produzir o seu pleno efeito. Esta tendência forma com ela,
como com tudo aquilo que a inteligência pressupõe, um bloco indiviso,
que se divide perante a nossa faculdade - inteiramente relativa à nossa
inteligência - de perceber e de analisar. Lembremos uma vez mais o que
dissemos sobre o olho e a visão. Há o acto de ver, que é simples, e há uma
infinidade de elementos, e de _acções recíprocas destes elementos uns
sobre os outros, com os quais o anatomista e o fisiologista reconstituem o
acto simples. Elementos e acçõès exprimem analiticamente e por assim
dizer negativamente, uma vez qiie são resistências opostas a outras resis-
tências, o acto indivisível, e só ele positivo, que a natureza efectivamente
obteve. Assim, as inquietações do homem lançado na terra, e as tenta-
ções que o indivíduo pode ter de se preferir a si mesmo à comunidade,
- inquietações e tentações que são próprias de um ser inteligente - pres-
tar-se-iam a uma enumeração sem fim. Indefinidas em número, também,
são as formas da superstição, ou antes da religião estática, que resistem a
essas resistências. Mas trata-se de uma complicação que se dissipa se
ressituarmos o homem no conjunto da natureza, se considerarmos que a

176
A RELIGIÃO E STATIC A

inteligência seria um obstáculo à serenidade com que deparamos por


toda a demais parte, e que o obstáculo deve ser superado, o equilíbrio
restabelecido. Encarado deste ponto de vista, que é o da génese e já não
da análise, tudo o que a inteligência aplicada à vida comportava de agi- 220
tação e de insuficiência, juntamente com tudo aquilo que as religiões
introduziram de apaziguamento, se torna uma coisa simplés. Perturbação
e efabulação compensam-se e anulam-se. A um deus, que olhasse lá de
cima, o todo pareceria indivisível, como a confiança das flores que abrem
na Primavera.

177
CAPÍTULO III
A RELIGIÃO DINÂMICA 221

Lancemos rapidamente para trás um olhar sobre a vida, cujo desenvolvi-


mento seguimos outrora até ao ponto onde a religião decorreria dela.
Uma grande corrente de energia criadora lança-se na matéria para dela
obter o que pode. Deteve-se na maior parte desses pontos; essas paragens
traduzem-se aos nossos olhos por outros tantos aparecimentos de espécies
vivas, quer dizer de organismos em que o nosso olhar, essencialmente
analítico e sintético, destrinça uma multiplicidade de elementos que se
coordenam para levar a cabo uma multiplicidade de funções; o trabalho
de organização não era, todavia, mais que a própria paragem, acto simples,
análogo ao enterrar-se do pé que determina instantaneamente milhares
de grãos de areia a combinarem-se de modo a formar um desenho. Numa
das linhas sobre as quais conseguira ir mais longe, ter-se ia podido crer
que esta energia vital transportaria consigo o que tinha de melhor e con-
tinuaria a direito e em frente o seu caminho; mas inflectiu-se, e tudo se
recurvou: surgiram seres cuja actividade girava indefinidamente segundo
o mesmo círculo, cujos órgãos eram instrumentos já feitos em vez de
deixarem lugar em aberto a uma invenção incessantemente renovada de
ferramentas, cuja consciência deslizava para o sonambulismo do instinto
em vez de reascender e de se intensificar em pensamento reflexivo. Tal é 222
o estado do indivíduo nessas sociedades de insectos cuja organização é
sábia, mas o automatismo completo. O esforço criador só foi bem suce-
dido ao atravessar a linha de evolução que desembocou no1 homem. Ao
atravessar a matéria, a consciência tomou desta feita, como n'um molde, a
forma da inteligência fabricadora. E a invenção, que traz consigo a refle-
xão, floresce em liberdade. r
Mas a inteligência não deixava de ter perigos. Até então, todos os seres
vivos tinham bebido avidamente na taça da vida. Saboreavam o mel que
a natureza pusera nos seus bordos; devoravam por acréscimo o restante,
sem chegarem a vê-lo. A inteligência, pelo seu lado, olhava para o fundo.
Porque o ser inteligente já não vivia apenas no presente; não há reflexão

179
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

sem previsão, não há previsão sem inquietação, não há inquietação sem


abrandamento momentâneo do apego à vida. Sobretudo, não há humani-
dade sem sociedade, e a sociedade pede ao indivíduo um desinteresse
que o insecto, no seu automatismo, leva até ao esquecimento de si mais
completo. Não devemos contar com a reflexão para sustentar este desin-
teresse. A inteligência, a menos que se trate da de um subtil filósofo mili-
tarista, aconselharia antes o egoísmo. Reclamava, pois, sob dois aspectos,
um contrapeso. Ou antes, encontrava-se já munida de um, porque a natu-
reza, uma vez mais, não faz os seres por meio de peças e pedaços: o que é
múltiplo na sua manifestação pode ser simples na sua génese. Uma espé-
cie que surge traz com ela, na indivisibilidade do acto que a estabelece,
todo o pormenor daquilo que a torna viável. A própria paragem do im-
pulso criador que se traduziu pelo aparecimento da nossa espécie deu
com a inteligência humana, no interior da inteligência humana, a função
223 efabuladora que elabora as religiões. Tal é pois o papel, tal é a signifi-
cação da religião a que chamámos estática ou natural. A religião é o que
deve preencher, em seres dotados de reflexão, um défice eventual do
apego à vida.
É verdade que nos apercebemos logo a seguir de uma outra solução
possível do problema. A religião estática apega o homem à vida e, por
conseguinte, o indivíduo à sociedade, contando-lhe histórias comparáveis
àquelas com que se embalam as crianças. Não são, sem dúvida, histórias
como as outras. Saídas da função efabuladora por necessidade, e não
devido ao simples prazer, contrafazem a realidade percebida ao ponto de
se prolongarem em acções: as outras criações imaginativas têm também
esta tendência, mas não exigem que nos deixemos levar por ela; podem
permanecer no estado de ideias; as primeiras, pelo contrário, são ideo-
motoras. Nem por isso passam a ser menos fábulas, que de facto alguns
espíritos críticos aceitarão, mas que de direitoHeveriam rejeitar. O princí-
pio activo, movente, cujo estacionamento único num ponto extremo se
exprimiu através da humanidade, exige sem dúvida de todas as espécies
criadas que estas se agarrem à vida. Mas, como mostrámos outrora, se
este princípio dá globalmente todas as espécies, à maneira de uma árvore
que lança em todas as direcções ramos rematados por botões, é o depósito,
na matéria, de uma energia livremente criadora, é o homem ou algum ser
com a mesma significação - não dizemos com a mesma forma - que é a
razão de ser do desenvolvimento no seu todo. O conjunto poderia ter

180
A RELIGIÃO E STATIC A

sido muito superior ao que é, e é isso provavelmente que se passa em


mundos em que a corrente é lançada através de uma matéria menos
refractária. Tal como também a corrente poderia nunca ter encontrado 224
passagem livre, nem sequer nessa medida insuficiente, e nesse caso nunca
teriam chegado a libertar-se no nosso planeta a qualidade e a quantidade
de energia criadora que a forma humana representa. Mas, seja como for,
a vida é coisa pelo menos tão desejável, até mesmo mais desejável para o
homem que para as outras espécies, uma vez que estas últimas a sofrem
como um efeito produzido de passagem pela energia criadora, ao passo
que ela é no homem o próprio sucesso, ainda que incompleto e precário,
desse mesmo esforço. Porque é que, sendo assim, o homem não redesco-
briria a confiança que lhe falta, ou que a reflexão pôde abalar, remon-
tando, para retomar impulso, na direcção de onde o impulso lhe veio?
Não seria pela inteligência, ou em todo o caso pela inteligência apenas,
que lhe seria possível fazê-lo: esta tenderia a encaminhar-se no sentido
oposto; a sua destinação é especial e, quando ascende às suas especula
ções, faz-nos quando muito conceber possibilidades, não toca uma reali-
dade. Mas sabemos que à volta da inteligência subsistiu uma franja de
intuição, vaga e evanescente. Não poderíamos fixá-la, intensificá-la e, so-
bretudo, completá-la em acção, uma vez que apenas se tornou pura visão
através c!e um enfraquecimento do seu princípio e, se assim nos podemos
exprimir, por meio de uma abstracção praticada sobre si mesma?
Uma alma capaz e digna de tal esforço não se perguntaria sequer se o
princípio com o qual se mantém agora em contacto é a causa trans-
cendente de todas as coisas ou se não passa da sua delegação terrestre.
Bastar-lhe-ia sentir que se deixa penetrar, sem que a sua personalidade
seja por ele absorvida, por um ser que pode imensamente mais do que
ela, como o ferro pelo fogo que o leva ao rubro. O seu apego à vida seria
doravante a sua inseparabilidade desse princípio, alegria na alegria, amor 225
do que não é senão amor. À sociedade dar-se-ia por acréscimo, mas a uma
sociedade que seria então a humanidade inteira, amada no amor daquilo
que é o seu princípio. A confiança que a religião estática trazia ao homem
achar-se-ia transfigurada: acabaria a preocupação com o futuro, o seu
virar-se inquieto para si mesmo; o objecto deixaria de se justificar mate-
rialmente, e assumiria moralmente uma significação demasiado elevada.
Seria agora de um desprendimento de cada coisa em particular que se
faria o apego à vida em geral. Mas deveríamos continuar então a falar de

181
AS DUAS FONTES DA M O R A L , E DA RELIGIÃO

religião? Ou deveríamos continuar a aplicar já o termo a todo o anterior?


As duas coisas não diferirão a ponto de se excluírem, e de não ser possível
dar-lhes o mesmo nome?
Há muitas razões, todavia, para falarmos de religião em ambos os
casos. Em primeiro lugar o misticismo - pois é nele que pensamos - bem
pode transportar a alma para um outro plano: não lhe garante menos,
sob urna forma eminente, a segurança e á serenidade que a religião está-
tica tem por função proporcionar. Mas é preciso considerarmos sobretu-
do que o misticismo puro é uma essência rara, que o encontramos as
mais das vezes no estado diluído, que nem por isso ele comunica menos
à massa a que se mistura a sua cor e o seu perfume, e que devemos deixá-
-lo com ela, praticamente inseparável dela, se o quisermos tomar como
actuante, uma vez que foi assim que acabou por se impor ao mundo.
Colocando-nos^deste ponto de vista, perceberíamos uma série de transi-
ções, e como que de diferenças de grau, onde há realmente uma diferença
radical de natureza. Digamos duas palavras mais acerca de cada um destes
pontos.
Definindo-o pela sua relação com o impulso vital, admitimos implici-
tamente que o verdadeiro misticismo era raro. Teremos de falar, um pouco
226 mais tarde, da sua significação e do seu valor. Limitemo-nos de momento
a notar que se situa, de acordo com o que precede, num ponto até ao qual
a corrente espiritual lançada através da matéria teria querido chegar, mas
não terá podido. Porque intervêm obstáculos com os quais a natureza
teve de conciliar-se e, por outro lado, não compreendemos a evolução da
vida, abstraindo das vias laterais que a força a fez tomar, se nâo a virmos
em busca de algo de inacessível a que o grande místico acede. Se todos os
homens, se muitos homens pudessem subir tão alto como esse homem
privilegiado, não seria na espécie humana que a natureza se teria detido,
porque estamos na realidade diante de algo mais que o homem. Das
outras formas de génio diríamos também a mesma coisa: todas são igual-
mente raras. Não é por acidente portanto, é em virtude da sua própria
essência que o verdadeiro misticismo é excepcional.
Mas quando fala há, no fundo da maior parte dos homens, qualquer
coisa que imperceptivelmente o ecoa.,Descobre-nos ou, antes, descobri r-
-nos-ia uma perspectiva maravilhosa se o quiséssemos: não o queremos
e, as mais das vezes, não o poderíamos querer; o esforço quebrar-nos-ia.
Nem por isso o encanto operou menos; e como acontece quando um

182
A RELIGIÃO E STATIC A

artista de génio produziu uma obra que nos excede, cujo espírito não
conseguimos assimilar, mas que nos faz sentir a vulgaridade das nossas
admirações anteriores, assim a religião estática, ainda que subsista, já
não é inteiramente o que era, não ousa sobretudo confessar quando sur
giu o grande misticismo. Será a ela ainda, ou pelo menos a ela principal-
mente, que a humanidade pedirá o apoio de que precisa; deixará conti-
nuar a trabalhar, reformando-a o melhor que pode, a função efabuladora; 227
em suma, a sua confiança na vida continuará a ser mais ou menos como
a natureza a instituíra. Mas fingirá sinceramente ter buscado e obtido
em certa medida esse contacto com o próprio princípio da natureza que
se traduz por um apego à vida completamente diferente, por uma con-
fiança transfigurada. Incapaz de ascender tão alto, esboçará o gesto,
tomará a atitude de o fazer e, nos seus discursos, reservará o mais belo
lugar a fórmulas que não chegam a encher-se para ela de todo o seu
sentido, como esses cadeirões que ficam vazios e que, numa cerimónia, '
haviam sido preparados para certos grandes personagens. Constituir-se-á
assim uma religião mista que implicará uma orientação nova da de
outrora, uma aspiração mais ou menos pronunciada do deus antigo, saído
da função efabuladora, a perder-se naquele que se revela efectivamente,
que ilumina e aquece com a sua presença as almas privilegiadas. Assim
se intercalam, como dizíamos, transições e diferenças aparentes de grau
entre duas coisas que diferem radicalmente de natureza e que não deve-
riam, dir-se-ia à primeira vista, ser chamadas da mesma maneira. Em
muitos casos o contraste é impressionante, por exemplo quando duas
nações em guerra afirmam uma e outra terem do seu lado um deus que
mostra assim ser o deus nacional do paganismo, quando o Deus do qual
imaginam falar é um Deus comum a todos os homens, cuja simples visão
por todos seria a abolição imediata da guerra. E, todavia, não deveríamos
tirar partido deste contraste para depreciar as religiões que, nascidas dõ :
misticismo, generalizaram o uso das suas fórmulas sem terem podido
penetrar a humanidade inteira da totalidade do seu espírito. Acontece a -
fórmulas quase vazias fazerem surgir aqui ou ali, verdadeiras palavras
mágicas, o espírito capaz de as preencher. Um professor medíocre, atra- 228
vés do ensino maquinal de uma ciência criada por homens de génio, des-
pertará num dos seus alunos a vocação que ele próprio não teve, e con-
vertê-lo-á inconscientemente em émulo desses grandes homens, invisíveis
e presentes na mensagem que transmite.

183
A3 DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

Há, contudo, uma diferença entre os dois casos e, se a tivermos em


conta, veremos atenuar-se, em matéria de religião, a oposição entre o "está-
tico" e o "dinâmico" na qual acabamos de insistir para melhor marcarmos
os caracteres de um e de outro. A grande maioria dos homens poderá
permanecer mais ou menos alheia às matemáticas, por exemplo, enquan-
to saúda o génio de um Descartes ou de um Newton. Mas os que se incli-
naram de longe diante da palavra mística, porque ouviam no fundo de si
mesmos o seu fraco eco, não ficarão indiferentes ao que ela anuncia. Se
tinham já crenças, e se não querem ou não podem desprender-se delas,
persuadir-se-ão de que as transformam, e desse modo acabarão por modi-
ficá-las efectivamente: os elementos subsistirão, mas magnetizados e
inflectidos noutro sentido pela nova força magnética. Um historiador
das religiões não terá dificuldade em descobrir, na materialidade de uma
crença vagamente mística que se difundiu entre os homens, elementos
míticos e mesmo mágicos. Provará assim que há uma religião estática,
natural ao homem, e que a natureza humana é invariável. Mas se se ficar
por aí, terá negligenciado alguma coisa, e talvez o essencial. Terá pelo
menos, sem o querer precisamente, lançado uma ponte entre o estático e
o dinâmico, e justificado o uso do mesmo termo em casos tão diferentes.
E, de facto, com uma religião que deparamos ainda, mas com uma reli-
gião nova.
229 Poderemos convencer-nos melhor do facto, veremos de um outro
ângulo ainda como as duas religiões se opõem e se unem, se tivermos em
conta as tentativas por parte da segunda de se instalar na primeira antes
de a suplantar. Para dizer a verdade, somos nós que, retroactivamente, as
convertemos em tentativas. Foram, quando se produziram, actos comple-
tos, que se bastavam a si mesmos, e só se tornaram começos ou pre-
parações a partir do dia em que foram transformadas em insucessos por
um êxito final, graças ao misterioso poder que o presente exerce sobre o
passado. Nem por isso nos servirão menos para demarcar um intervalo,
para analisarmos nos seus elementos virtuais o acto indivisível por meio
do qual a religião dinâmica se estabelece, e para mostrarmos no mesmo
lance, através da direcção evidentemente comum dos impulsos que não
resultaram, como o salto brusco que se revelou definitivo nada teve de
acidental.
Em primeiro plano, entre os esboços do misticismo futuro poremos
certos aspectos dos mistérios pagãos. E preciso que a palavra não nos

184^
A RF.LIGIÀO DINÂMICA

iluda: a maior parte dos mistérios nada tiveram de místico. Ligavam-se à


religião estabelecida, que achava inteiramente natural tê-los ao seu lado.
Celebravam os mesmos deuses, ou deuses saídos da mesma função efabu-
ladora. Reforçavam simplesmente nos iniciados o espírito religioso, acom-
panhando-o dessa satisfação que os homens sempre experimentaram em
formar pequenas sociedades no interior da grande e em erigirem-se
em privilegiados por meio de uma iniciação mantida secreta. Os membros
dessas sociedades fechadas sentiam-se mais perto do deus que invoca-
vam, que mais não fosse porque a representação das cenas mitológicas
desempenhava aqui um papel maior que nas cerimónias públicas. Em
certo sentido, o deus estava presente; os iniciados participavam até certo 230
ponto na sua divindade. Podiam pois esperar por outra vida melhor do
que o permitia a religião nacional. Mas não havia nisso, provavelmente,
muito mais que ideias importadas já feitas do estrangeiro: é sabido a que
ponto o Egipto sempre sé preocupara'CF>m ã sürte do h o m e m depois da
morte, e podemos recordar o testemunho de Heródoto, segundo o qual a
Deméter dos mistérios de Elêusis e o Dioniso do orfismo seriam transfor-
mações de ísis e de Osíris. Assim a celebração dos mistérios, ou pelo
menos o que dela conhecemos, nada nos oferece que se separe absoluta-
mente do culto público. À primeira vista, não descobriríamos, portanto,
mais misticidade nesta religião que na outra. Mas não devemos limitar-
nos ao aspecto que era provavelmente o único a interessar a maioria dos
iniciados. Devemos perguntar-nos se pelo menos alguns de entre estes
mistérios não exibiam a marca desta ou daquela grande personalidade,
cujo espírito poderiam fazer reviver. Devemos também notar que a maior
parte dos autores insistiram nas cenas de entusiasmo em que o deus toma-
va realmente posse da alma que o invocava. De facto, os mistérios mais
vivazes, que acabaram por arrastar no seu movimento os próprios mis-
térios de llêusis, foram os de Dioniso e do seu continuador Orfeu. Deus
estrangeiro, vindo da Trácia, Dioniso contrastava pela sua violência com
a serenidade dos olímpicos. Não foi de início o deus do vinho, mas nisso
se tornou.sem dificuldade, porque a embriaguez em que punha a alma
não deixava de ter semelhanças com a que o vinho produz. Sabè-se como
William James foi tratado por ter qualificado de místico, ou ter'estudado
como tal, o estado consecutivo a u m a inalação de prolóxido-de azoto.
Houve quem visse no seu juízo uma prova de irreligião. E tal seria o caso,
se o filósofo tivesse feito da "revelação interior" um equivalente psicoló- 231

185
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

gico do protóxido, o qual teria sido então, como dizem os metafísicos,


causa adequada do efeito produzido. Mas a intoxicação não devia ser aos
seus olhos mais do que uma ocasião. 0 estado de alma estava presente,
prefigurado sem dúvida a par de outros, e não esperava senão um sinal
para se desencadear. Teria podido ser evocado espiritualmente, por um
esforço cumprido no plano espiritual que era o seu. Mas podia sê-lo tam-
bém materialmente, por uma inibição daquilo que o inibia, pela supressão
de um obstáculo, e tal era o efeito inteiramente negativo do tóxico; o
psicólogo dirigia-se preferencialmente a este último, que lhe permitia
obter o resultado quando quisesse. Talvez não fosse honrar mais o vinho
comparar os seus efeitos à embriaguez dionisíaca. Mas não é este ponto
que importa. Trata-se de saber se uma tal embriaguez pode ser conside-
rada retrospectivamente, à luz do misticismo entretanto aparecido, como
anunciadora de certos estados místicos. Para respondermos à questão,
será suficiente relancearmos brevemente a evolução da filosofia grega.
Essa evolução foi puramente racional. Levou o pensamento humano
ao seu mais alto grau de abstracção e de generalidade. Deu às funções
dialécticas do espírito tanta força e flexibilidade que hoje ainda, para as
exercermos, é à escola dos gregos que nos dirigimos. Há, todavia, dois
pontos a notar. O primeiro é que na origem deste grande movimento
houve uma impulsão ou um abalo que não foi de ordem filosófica.
O segundo é que a doutrina a que o movimento deu lugar, e na qual o
pensamento helénico teve o seu remate acabado, pretendeu superar a
pura razão. Não é duvidoso, na realidade, que o entusiasmo dionisíaco se
232 tenha prolongado no orfismo, e que o orfismo se tenha prolongado em
pitagorismo: ora é a este, e talvez mesmo àquele, que remonta a inspiração
primeira do platonismo. Sabe-se que a atmosfera de mistério, no sentido
órfico da palavra, banha os mitos platónicos, e como a própria teoria das
Ideias foi inflectida por uma simpatia secreta pela teoria pitagórica dos
números. É certo que nenhuma influência de tal género é sensível em
Aristóteles e nos seus sucessores imediatos; mas a filosofia de Plotino, na
qual o desenvolvimento em causa culminou, e que deve tanto a Aristóteles
como a Platão, é incontestavelmente mística. Se sofreu a acção do pensa-
mento oriental, muito vivo no mundo alexandrino, foi sem consciência
por parte do próprio Plotino, que julgou não fazer outra coisa senão con-
densar toda a filosofia grega, precisamente em vista de a opor às doutri-
nas estrangeiras. Assim, em resumo, houve na origem uma penetração

186
A REI.IGIÃO ESTÁTICA

do orfismo e, no final, um desabrochar da dialéctica em mística. Daqui


poderíamos concluir que foi uma força extra-racional que suscitou este
desenvolvimento racional e o conduziu ao seu termo, pára além da razão.
E assim que os fenómenos lentos e regulares de sedimentação, os únicos
aparentes, são condicionados por invisíveis forças eruptivas que, levan-
tando por vezes a crosta terrestre, imprimem a sua direcção à actividade
sedimentar. Mas uma outra interpretação é possível; :e seria, em nosso
entender, mais verosímil. Podemos supor que o desenvolvimento do pen-
samento grego foi obra apenas da razão, e que a seu lado, independente-
mente dele, se produziu de longe em longe nalgumas almas predispostas
um esforço por ir buscar, por cima da inteligência, uma visão, um con-
tacto, a revelação de uma realidade transcendente. Tal esforço nunca teria
alcançado o alvo; mas uma e outra vez, no momento de se esgotar, teria
confiado â dialéctica o que restava de si mesmo em lugar de desaparecer
inteiramente; e assim, com ofraesmo dispêndio de força, uma nova tenta-
tiva podia não se deter senão depois de ter ido um pouco mais longe,
fazendo com que a inteligência se refizesse num ponto mais avançado de
um desenvolvimento filosófico que, no intervalo, adquirira maior elasti-
cidade e comportava uma maior misticidade. De facto, vemos uma pri-
meira vaga, puramente dionisíaca, perder-se no orfismo, que era de uma
intelectualidade superior; uma segunda, a que poderíamos chamar órfica,
desembocou no pitagorismo, quer dizer numa filosofia; por seu turno o
pitagorismo comunicou alguma coisa do seu espírito ao platonismo; e
este, tendo-a recolhido, abriu-se naturalmente mais tarde ao misticismo
alexandrino. Mas seja como for que nos representemos a relação entre as
duas correntes, uma intelectual, a outra extra-intelectual, é somente
quando nos colocamos no termo do percurso que podemos falar do supra-
-intelectual ou do místico, e considerar mística uma impulsão que partiu
dos mistérios.

Restaria saber, então, se o termo do movimento foi um misticismo


completo. Podemos dar às palavras o sentido que quisermos, contanto
que comecemos por defini-lo. Aos nossos olhos, o desfecho do misticismo
é uma tomada de contacto e, por conseguinte, uma coincidência parcial
com o esforço criador que a vida manifesta. Este esforço é de Deus, se
não for o próprio Deus. O grande místico seria uma individualidade que
transporia os limites marcados à espécie pela sua materialidade, que conti-
nuaria e prolongaria assim a acção divina. Tal é a nossa definição. Somos

Ar ' 187
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO

livres de a pôr, contanto que nos perguntemos se alguma vez encontra o


234 seu ponto de aplicação, se se aplica aí a este ou àquele caso determinado.
No que se refere a Plotino, a resposta não deixa margem para dúvidas.
Foi-lhe dado ver a terra prometida, mas não pisar o seu chão. Chegou até
ao êxtase, um estado em que a alma se sente ou crê sentir-se na presença
de Deus, sendo iluminada pela sua luz; não franqueou esta última etapa
para chegar ao ponto em que, vindo a contemplação humana mergulhar
na acção, a vontade humana se confunde com a vontade divina. Plotino
cria-se no cume mais alto: ir mais longe teria para ele sido descer. Foi o
que exprimiu numa linguagem admirável, mas que não é a do misticismo
pleno: "a acção, diz ele, é um enfraquecimento da contemplação"'. Per-
manece assim fiel ao intelectualismo grego, resume-o até numa fórmula
siderante; e tê-lo-á pelo menos fortemente impregnado de misticidade.
Numa palavra, o misticismo, no sentido absoluto em que entendemos
tomá-lo, não foi atingido pelo pensamento helénico.^Teria querido sê-lo
sem dúvida; simples virtualidade, bateu várias vezes à porta. Esta última
entreabriu-se cada vez mais amplamente, mas nunca até lhe dar inteira-
mente passagem.
A distinção é aqui radical entre a mística e a dialéctica; só de longe em
longe se reúnem. Noutros lugares, pelo contrário, misturaram-se cons-
tantemente, entreajudando-se na aparência, talvez impedindo-se recipro-
camente de irem até ao fim. Foi o que aconteceu, pensamos nós, no caso
do pensamento hindu. Não empreenderemos aqui a tarefa de a aprofun-
dar ou de a resumir. O seu desenvolvimento estende-se ao longo de perío-
dos consideráveis. Filosofia e religião, diversificou-se segundo os tempos
235 e os lugares. Exprimiu-se numa língua da qual muitos matizes escapam,
até mesmo àqueles que melhor a conhecem. As palavras desta língua
estão, aliás, longe de terbm conservado um sentido invariável, a supormos
que esse sentido tenha r sido sempre preciso ou que alguma vez o tenha
sido. Mas, para o objecto que nos ocupa, um olhar de relance ao conjunto
das doutrinas bastará. E como, a fim de obtermos uma tal visão global,
teremos necessariamente de nos contentar com sobrepor várias figuras
já fixadas, teremos alguma probabilidade, considerando de preferência
as linhas que coincidem, de não nos enganarmos.

1
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jcp&Çiv 7roioí)VTai ( E n . II!, VIU, 4 | .

88
A RELIGIÃO DINÂMICA

Digamos em primeiro lugar que a índia sempre praticou uma religião


comparável à da Grécia Antiga. Os deuses e os espíritos desempenhavam
nela o mesmo papel que em todos os outros lugares. Os ritos e as cerimô-
nias eram análogos. 0 sacrifício tinha uma importância extrema. Estes
cultos persistiram através do bramanismo, do jainismo e do budismo.
Como podiam sér compatíveis com um ensinamento como o de Buda?
Deve notar-se que o budismo, que trazia aos homens a libertação, conside-
rava que os próprios deuses precisavam de ser libertados. Tratava, por-
tanto, homens e deuses como seres da mesma espécie, submetidos à
mesma fatalidade. O que se conceberia bem nos termos de uma hipótese
como a nossa: o homem vive naturalmente em sociedade e, pelo efeito de
uma função natural a que chamámos efabuladora, projecta à sua volta
seres fantasmáticos que vivem uma vida análoga à sua, mais elevada do
que a sua, solidária da sua; tal é a religião que temos por natural. Os pen-
sadores da índia terão alguma vez Representado assimas boisas? É pouco 1 "' 1 '
provável. Mas qualquer espírito que se cometa com a via mística, fora da
cidade, sente mais ou menos confusamente que deixa atrás de si os homens
e os deuses. É por isso mesmo que os vê como um conjunto só.
Agora, até onde foi na sua via o pensamento hindu? Não se trata, bem 236
entendido, senão da velha índia, a sós consigo, antes da influência que
terá podido exercer sobre ela a civilização ocidental ou a necessidade de
reagir contra esta. Estática ou dinâmica, com efeito, tomamos a religião
nas suas origens. Descobrimos que a primeira estava prefigurada na natu-
reza; vemos agora na segunda um salto para fora da natureza, e considera-
mos antes de mais o salto nos casos em que o impulso foi insuficiente ou
contrariado. Dir-se-ia que a alma hindu ensaiou um tal impulso segundo
dois métodos diferentes.
Um deles é ao mesmo tempo fisiológico e psicológico. Descobriría-
mos a sua mais remota origem numa prática comum aos hindus e aos
iranianos, antes, por conseguinte, da sua separação: o'recurso à - bebida • •
inebriante a que uns e outros chamavam "soma". Era uma embriaguez
divina, comparável à que os-adeptos fervorosos, de. Dioniso. pediam .ao...
vinho. Mais tarde veio um conjunto de exercícios destinados a suspender
a sensação, a abrandar a actividade mental, a induzir, enfim, estados com-
paráveis ao da hipnose; foram sistematizados no "yoga". Tratar-se-ia de
misticismo, no sentido em que tomamos a palavra? Os estados hipnóticos
nada têm de místico por si mesmos, mas poderão tornar-se místicos, ou

! . • 189
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

pelo menos anunciar e preparar o misticismo verdadeiro, pela sugestão


que neles venha inserir-se. Tornar-se-ão místicos com facilidade, a sua
forma estará predisposta a deixar-se encher pela matéria mística, se dese-
nharem já visões, êxtases, suspendendo a função crítica da inteligência.
Tal deve ter sido, sob um certo aspecto pelo menos, a significação dos
exercícios que acabaram por se organizar em "yoga". O misticismo só em
esboço aí estava presente; mas um misticismo mais acusado, concentração
237 puramente espiritual, podia valer-se do ioga no que este tinha de material
e, por isso mesmo, espiritualizá-lo. De facto, o ioga parece ter sido, segundo
os tempos e os lugares, uma forma mais popular da contemplação mística
ou um conjunto que a englobava.
Resta saber o que terá sido. em si mesma esta contemplação, e que
relação poderia ter com o misticismo tal como nós o entendemos aqui.
O hindu especuloú, desde os tempos mais antigos, sobre o ser em geral,
sobre a natureza, sobre a vida. Mas o seu esforço, que se prolongou du-
rante um tão grande número de séculos, não desembocou, como o dos
filósofos gregos, nesse conhecimento susceptível de um desenvolvimento
indefinido que a ciência helénica fora já. A razão está no facto de o conhe-
cimento ter sido sempre aos seus olhos mais um meio do que um fim.
Tratava-se para ele de se evadir da vida, que lhe era particularmente cruel.
E pelo suicídio não teria obtido a evasão, porque a alma passaria para um
outro corpo depois da morte, e o resultado seria, perpetuamente, um
recomeço da vida e do sofrimento. Mas persuadiu-se desde os primeiros
tempos do bramanismo de que se chegava à libertação por meio da renún-
cia. Esta renúncia era uma absorção no Todo, como também de cada um
em si mesmo. O budismo, que veio inflectir o bramanismo, não o modifi-
cou essencialmente. Fez, sobretudo, dele algo de mais sábio. Até então,
constatara-se que a vida era sofrimento: Buda remontou até à causa do
sofrimento; descobriu-a no desejo geral, na sede de viver. Assim pôde ser
traçado com urna precisão mais elevada o caminho da libertação. Bra-
manismo, budismo e até mesmo jainismo pregaram, portanto, com uma
força crescente.a extinção do querer-viver, e a sua predicação apresenta-
-se à primeira vista como um apelo à inteligência, diferindo apenas as
238 três doutrinas pelo seu grau mais ou menos elevado de intelectualidade.
Mas, vendo de mais perto, damo-nos conta de que a convicção que visa-
vam implantar estava longe de ser um estado puramente intelectual, fá
no bramanismo antigo não é pelo raciocínio, não é pelo estudo, que se

190
A RELIGIÃO E STATIC A

obtém a convicção última: esta consiste numa visão, comunicada por


aquele que viu. O budismo, mais sábio por um lado, é por outro ainda
mais místico. 0 estado para o qual encaminha a alma está para além da
felicidade e do sofrimento, para além da consciência. É através de uma
série de etapas, e através de toda uma disciplina mística, que acede ao
nirvanà, supressão do desejo durante a vida e do karma depois da morte.
Não devemos esquecer que na origem da missão do Buda está a ilumi-
nação que teve na sua primeira juventude. Tudo o que o budismo tem de
exprimível em palavras pode sem dúvida ser tratado como uma filosofia;
mas o essencial é a revelação definitiva, transcendente à razão como à
palavra. É a convicção, gradualmente conquistada e subitamente obtida,
de que o fim foi atingido: acaba-se o sofrimento, que é tudo o que há de
determinado, e por conseguinte de propriamente existente, na existên-
cia. Se considerarmos que não estamos aqui perante uma visão teórica,
mas perante uma experiência que se assemelha muito.a uin êxtase, que i
num esforço por coincidir com o impulso criador uma alma poderia tomar
a via assim descrita e só falharia por ter parado a meio-caminho, desligada
da vida humana mas sem alcançar a vida divina, suspensa entre duas
actividades na vertigem do nada, não hesitaremos em ver no budismo
um misticismo. Mas compreenderemos também porque não é o budismo
um misticismo completo. Este seria acção, criação, amor.
Não, decerto, que o budismo tenha ignorado a caridade. Recomen- 239
dou-a, pelo contrário, em termos de uma extrema elevação. Ao preceito
acrescentou o exemplo. Mas faltou-lhe calor. Como muito justamente
disse um historiador das religiões, ignorou "o dom total e misterioso de si
mesmo". Acrescentemos - e talvez seja, no fundo, a mesma coisa - que
não acreditou na eficácia da acção humana. Não teve confiança nela. Só
esta confiança se pode tornar força e mover as montanhas. Um misti-
cismo completo teria ido até ela. Talvez tenha acabado por aparecer na .. ....
"índia, mas muito mais tarde. É, com efeito, uma c-aridade ardente, é um.,
misticismo comparável ao misticismo cristão, o que encontramos num
. Ramakrishna ou num Vivekananda, para falarmos apenas dos mais: recen-
tes. Mas, precisamente, o cristianismo surgira entretanto. A sua influência
sobre a índia - à qual o islamismo, por outro lado, chegara - fora muito
superficial, mas basta a almas predispostas uma simples sugestão, um
sinal. Admitamos, todavia, que a acção directa do cristianismo, enquanto
dogma, foi mais ou menos nula na índia. Como penetrou toda a civiliza-

191
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

ção ocidental, respiramo-lo como um perfume, naquilo que essa civiliza-


ção traz consigo. Ö próprio industrialismo, como tentaremos mostrar,
dele deriva indirectamente. Ora foi o industrialismo, foi a nossa civiliza-
ção ocidental, que desencadeou o misticismo de um Ramakrishna ou de
um Vivekananda. Nunca um tal misticismo ardente, actuante, se teria
produzido no tempo em que o hindu se sentia esmagado pela natureza e
em que era inútil toda a intervenção humana. Que fazer, quando fomes
inevitáveis condenam milhões de infelizes a morrer de fome? O pessimis-
240 mo hindu tinha esta impotência por origem principal. E foi o pessimismo
que impediu a índia de ir até ao f i m do seu misticismo, uma vez que o
misticismo completo é acção. Mas chegam as máquinas que aumentam o
rendimento da terra e que sobretudo fazem circular os seus produtos,
chegam também as organizações políticas e sociais que provam experi-
mentalmente que as massas não estão condenadas a unia vida de servidão
e de miséria como a uma necessidade inelutável: a libertação torna-se
possível num sentido inteiramente novo; a pressão mística, se se exercer
algures com força suficiente, deixará de se deter sem mais perante as
impossibilidades de agir; deixará de ser recalcada por doutrinas de renún-
cia ou práticas de êxtase; em vez de se absorver em si mesma, a alma
abrir-se-á de par em par a um amor universal. Ora as invenções e as orga-
nizações em causa são de essência ocidental; foram elas que aqui per-
mitiram ao misticismo ir até ao f i m de si mesmo. Concluamos, pois, que
nem na Grécia nem na velha Índia houve misticismo completo, ora
porque o impulso foi insuficiente, ora porque foi contrariado pelas cir-
cunstâncias materiais ou por uma intelectualidade demasiado estreita.
É o seu aparecimento num momento preciso que nos faz assistir retros-
pectivamente à sua preparação, como o vulcão que surge de repente escla-
rece no passado uma longa série de tremores de terra \
O misticismo completo é, na realidade, o dos grandes místicos cristãos.
Dejxemos de lado, de momento, o seu cristianismo, e consideremos neles
a forma sem a matéria. Não é duvidoso que a maior parte desses místicos
tenham passado por estados que se assemelham aos diversos pontos de
241 desfecho do misticismo antigo. Mas não fizeram mais do que passar por

1
Não ignoramos que, além do neoplatonismo e do budismo, houve na Antiguidade
outros misticismos. Mas, dado o objecto que nos ocupa, basta-nos considerar aqui os que
avançaram alé mais longe.

192
r
A RELIGIÃO DINÂMICA

eles: concentrando-se em si mesmos para se crisparem num esforço intei-


ramente novo, romperam um dique; retomou-os uma corrente imensa de
vida; da sua vitalidade acrescida desprendeu-se uma energia, uma audá-
cia, uma força de concepção e de realização extraordinárias. Pensemos
no que levaram a cabo, no domínio da acção, um S. Paulo, uma Santa
Teresa, uma Santa Catarina de Siena, um S. Francisco, uma Joana d'Arc, e
tantos outros 1 . Quase todas as transbordantes actividades em causa se
dedicaram à propagação do cristianismo. Há contudo excepções, e o caso
de Joana d'Arc bastaria para mostrar que a forma é separável da matéria.
Quando tomamos assim pelo seu termo a evolução interior dos
grandes místicos, perguntamo-nos como foi possível que eles tivessem
sido assimilados a doentes. Vivemos, é certo, num estado de equilíbrio
instável, e a saúde média do espírito, como também a do corpo, é coisa
pouco fácil de definir. Há, todavia, uma saúde intelectual solidamente
alicerçada, excepcional, que se reconhece sem esforço. Manifesta-sefpelo
gosto da acção, a faculdade de adaptação e de readaptação às circunstân-
cias, a firmeza unida à flexibilidade, o discernimento profético do possível
e do impossível, um espírito de simplicidade que triunfa das compli-
cações, enfim um bom senso superior. Não será isto precisamente que
encontramos nos místicos de que estamos a falar? E não poderiam eles 242
próprios servir de referência à própria definição da robustez intelectual?
Se se pôde pensar de outro modo, foi devido aos estados anormais
que muitas vezes preludiam ein tais casos a transformação definitiva. Os
místicos falam das suas visões, dos seus êxtases, dos seus arrebatamen-
tos. São fenómenos que se produzem igualmente em certos doentes, e
que são constitutivos da sua doença. Foi recentemente dada à estampa
um importante trabalho sobre o êxtase considerado como uma mani-
festação psicasténica 2 . Mas há estadcts mórbidos que são imitações de
estados saudáveis: estes últimos nemipor isso são menos sãos, nem os

1
O Sr. Ilenri Delacroix chamou a atenção para o que há de essencialmente actuante
nos grandes místicos cristãos, num livro que.mereceria tornar-se um clássico (Études
d'histoire et de psychologie du mysticisme, Paris, 1908). Encontrar-se-ão ideias análogas
nos traballios importantes de Evelyn Underbill (Mysticism, Londres, 1 9 1 1 ; e The mystic
way, Londres, 1 9 1 3 ) Este último autor articula alguns dos seus pontos de vista com os
que nós expúnhamos em L'Évolution créatrice e que retomamos, prolongando-os, no
presente capítulo. Ver em particular, acerca deste ponto, The mystic way.
' Janet, Pierre, De l'angoisse à l'extase.

193
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

outros menos mórbidos. Um louco julgar-se-á imperador; pelos seus ges-


tos, pelas suas palavras e pelos seus actos dar-se-á uma aparência sistema-
ticamente napoleónica, e tal será justamente a sua loucura: afectará esta
num grau ou noutro o próprio Napoleão? Poderá igualmente parodiar-se
o misticismo, e haverá assim uma loucura mística: seguir-se-á daí que
o misticismo seja loucura? Todavia é incontestável que êxtases, visões,
arrebatamentos são estados anormais, e que é difícil distinguir entre o
anormal e o mórbido. Tal foi, além disso, a opinião dos próprios grandes
místicos. Foram os primeiros a prevenir os seus discípulos contra as
visões que podiam ser puramente alucinatórias. E às suas próprias visões,
quando as tinham, não atribuíram em geral senão uma importância
secundária: eram incidentes de percurso; fora preciso superá-las, deixar
para trás arrebatamentos e êxtases antes de chegar ao termo do caminho,
que era a identificação da vontade humana com a vontade divina. A ver-
dade é que tais estados anormais, a sua semelhança e por vezes sem
243 dúvida a sua participação em estados mórbidos, se compreenderão sem
dificuldade se pensarmos na alteração que representa a passagem do está-
tico ao dinâmico, do fechado ao aberto, da vida habitual à vida mística.
Quando as profundidades obscuras cla alma são agitadas, o que sobe à
superfície e chega à consciência assume nesta, se a intensidade for sufi-
ciente, a forma de uma imagem ou de uma emoção. A imagem é as mais
das vezes alucinação pura, como a emoção não passa de agitação vã. Mas
uma e outra podem querer dizer que a perturbação é um reordenamento
sistemático em vista de um equilíbrio superior: a imagem é então sim
bólica daquilo que se prepara, e a emoção é uma concentração da alma
na expectativa de uma transformação. Este último caso é o do misticismo,
mas pode participar de um outro estado; o que é simplesmente anormal
pode ser acompanhado por aquilo que é puramente mórbido; quando se
alteram as relações habituais entre o consciente e o inconsciente corre-se
• um risco. Não devemos, pois, surpreender-nos se frequentemente virmos
perturbações nervosas acompanhando o misticismo; encontramo-las
igualmente noutras formas do génio, nomeadamente nos. músicos. Não
devemos tê-las por mais do que simples acidentes. As primeiras perturba-
ções não são a mística, do mesmo modo que as segundas não são a música.
Abalada nas suas profundidades pela corrente que a arrastará, a alma
deixa de girar sobre si mesma, escapando por um instante à lei que quer
que a espécie e o indivíduo se condicionem uma ao outro, circularmente.

194
A RELIGIÃO DINÂMICA

Detém-se, como se escutasse uma voz que a chama. Depois deixa-se levar,
a direito e em frente. Não percebe directamente a força que a move, mas
sente a sua presença indefinível, ou adivinha-a através de uma visão sim-
bólica. Vem então uma imensa alegria, êxtase em que ela se absorve ou 244
arrebatamento que sofre: aí está Deus, e ela nele. Deixa de haver mistério.
Os problemas dissipam-se, asobscuridades desvanecem-se; è uma ilumi-
nação. Mas por quanto tempo? Uma imperceptível inquietação, que
planava sobre o êxtase, desce e apega-se-lhe como se fosse a sua sombra.
Bastaria já, ainda que sem os estados de espírito que se vão seguir, para
distinguir o misticismo verdadeiro, completo, do que foi outrora a sua
imitação antecipada ou a sua preparação. Com efeito, mostra que a alma
do grande místico não se detém no êxtase como no termo de uma viagem.
Trata-se efectivamente de repouso, se assim se quiser, mas como numa
estação onde a máquina continuasse sob pressão, persistindo o movi-
mento como uma vibração que nao sai do mèsmò lugar na expëc'tativa'de
um novo salto em frente. Digamos mais precisamente: a união com Deus
bem pode ser estreita, só seria definitiva se fosse total. Deixa decerto de
haver distância entre o pensamento e o objecto do pensamento, uma vez
que caíram os problemas que mediam e até mesmo constituíam o inter-
valo. Deixa de haver separação radical entre o que ama e o que é amado:
Deus está presente e a alegria é sem limites. Mas se a alma se absorve em
Deus pelo pensamento e pelo sentimento, alguma coisa dela fica de fora;
é a vontade: a sua acção, se agisse, procederia simplesmente dela. A sua
vida não é pois divina ainda. A alma sabe-o; vagamente, inquieta-se com
isso, e esta agitação no repouso é característica daquilo a que chamamos
o misticismo completo: exprime que fora tomado impulso a fim de se ir
mais longe, que o êxtase interessa de facto a faculdade da visão e da
comoção, mas que há também o querer, e que seria necessário recolocá-
-lo, também a ele, em Deus. Quando este sentimento cresce até ocupar
todo o lugar, o êxtase cai, a alma redescobre^e'sô e pór vezes dèsóla-sé."
Habituada por um tempo à luz deslumbrante, já nada distingue na som- 245
bra. Não se dá conta do trabalho profundo que nela se cumpre obscura-
mente. Sente que perdeu muito; não sabe ainda que é para ganhar tudo
que o perdeu. Tal é "noite obscura" de que falaram os grandes místicos, e
que talvez seja o que há de mais significativo, e em todo o caso de mais
instrutivo, no misticismo cristão. Prepara-se a fase definitiva, caracterís-
tica do grande misticismo. Analisar esta preparação final é impossível,

195
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO

uma vez que os próprios místicos mal chegaram a entrever o seu meca-
nismo. Limitemo-nos a dizer que uma máquina de um aço formidavel-
mente resistente, construída em vista de um fim extraordinário, se encon-
traria sem dúvida num estado análogo se tomasse consciência de si
mesma no momento da montagem. Sendo as suas peças submetidas, uma
à uma, às mais duras provas, sendo algumas de entre elas rejeitadas e
substituídas por outras, a máquina teria o sentimento de uma privação
aqui ou ali, e de uma dor por toda a parte. Mas esta dor, inteiramente
superficial, não precisaria de mais que aprofundar-se para se perder na
expectativa e na esperança de um instrumento maravilhoso. A alnra mís-
tica quer ser este instrumento. Elimina da sua substância tudo o que não
é suficientemente puro, suficientemente resistente e flexível, para poder
ser utilizado por Deus. Sentia já Deus presente, acreditava já percebê-lo
em visões simbólicas, unia-se já a ele no êxtase; mas eis que nada de tudo
isso era duradouro porque tltdo isso não passava de contemplação: a acção
reconduzia a alma a si mesma e desligava-a assim de Deus. Agora é Deus
que age nela, por ela: a união é total e, por conseguinte, definitiva. Então,
palavras como mecanismo e instrumento evocam imagens que será me-
lhor deixai de lado. Podiam servir para nos dar uma ideia do trabalho de
246 preparação. Nada com elas poderemos aprender do resultado final. Diga-
mos que este é doravante, para a alma, uma superabundância de vida.
É um impulso imenso. É um ímpeto irresistível que a lança nos empreen-
dimentos mais vastos. Uma serena exaltação de todas as suas faculdades
faz com que ela veja grande e, por fraca que seja, realize poderosamente.
Sobretudo vê simples, e esta simplicidade, que impressiona tanto nas
suas palavras como na sua conduta, guia-a através das complicações que
parece não notar sequer. Urna ciência inata, ou antes uma inocência adqui-
= rida, sugere-lhe assim desde o primeiro instante a operação útil, o acto
1
decisivo, a palavra sem réplica. Todavia, o esforço continua a ser indis-
pensável, e o mesmo se diga da persistência e da perseverança. Mas vêm
por si sós, desdobram-se por si mesmos numa alma ao mesmo tempo
? agente e "agida", cuja liberdade coincide com a actividade divina. Repre-
sentam um enorme dispêndio de energia, mas esta energia é fornecida
- ao mesmo tempo que requerida, porque a superabundância de vitalidade
que reclama corre de uma fonte que é a própria fonte da vida. Agora as
visões estão longe: a divindade não poderia manifestar-se do exterior a
uma alma doravante preenchida por ela. Já nada há que pareça distinguir

196
A RELIGIÃO DINÂMICA

essencialmente um tal homem dos outros homens por entre os quais


circula. Só ele se dá conta de uma mudança que o eleva à condição dos
adjutores Dei, pacientes no que se refere a Deus, agentes no que se refere
aos homens. Da sua elevação não extrai de resto orgulho algum. Grande
é, pelo contrário, a sua humildade. Como não seria humilde, quando pôde
constatar em encontros silenciosos, a sós/com tinia'emoção há q u a l ã s u à
alma se sentia fundir por completo, aquilo a que poderíamos chamar a
humildade divina?
Preformava se já uma certa acção no misticismo que se detinha no
êxtase, quer dizer na contemplação. Experimentava-se já, ao descer do 247
céu para a terra, a exigência de ensinar os homens. Era preciso anunciar
a todos que o mundo percebido pelos olhos do corpo é sem dúvida real,
mas que há outra coisa, e que isso não é simplesmente possível ou prová-
vel, como o poderia ser a conclusão de um raciocínio, mas certo como
unia experiência: houve alguém'^ue viu, alguém 'quê tocólV, 'alguém 'que '"" 1 '
sabe. Mas não havia ainda deste modo mais do que uma veleidade de
apostolado. O empreendimento era, com efeito, desencorajador: como
propagar por meio de discursos a convicção que se extrai de uma expe-
riência? E como sobretudo exprimir o inexprimível? Mas estas questões
não chegam sequer a pôr-se ao grande místico. Este sentiu a verdade
correr nele da fonte, como uma força actuante. Não poderia impedir-se
de a difundir, tal como o sol não pode impedir-se de derramar a sua luz.
Simplesmente, não será por meio de simples discursos que a propagará.
Porque o amor que o consome já não é simplesmente o amor de um
homem por Deus, é o amor de Deus por todos os homens. Através de
Deus, por Deus, ele ama a humanidade inteira com um divino amor. Não
se trata da fraternidade que os filósofos recomendaram em nome da
razão, arguindo que todos os homens participam originalmente de uma
mesma essência razoável: perante um ideal tão nobre inclinar-nos-emos
com respeito; esforçar-nos-emospdf reâlifcá-io; se' hSö'för'demäsiädö incó-
modo para o indivíduo e para a comunidade; não nos apegaremos a ele
cheios de paixão. Ou então será que respirámos, neste ou naquele recanto
da nossa civilização, o perfume inebriante que o misticismo aí deixou. Os
próprios filósofos teriam afirmado com tanta segurança o princípio, tão
poucu em conformidade com a experiência corrente, da igual participação
de todos os homens numa essência superior, se não tivessem existido 248
místicos para abranger a humanidade inteira num único amor indivisí-

197
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

vel? Não sc trata, pois, aqui da fraternidade cuja ideia se construiu para
dela se fazer um ideal. E também não se trata da intensificação de uma
simpatia inata do homem pelo homem. A propósito de um tal instinto
podemos, por outro lado, perguntar-nos se existiu alguma vez fora da
imaginação dos filósofos, onde terá surgido por razões de simetria. Uma
vez que família, pátria, humanidade surgem como outros tantos círculos
cada vez mais largos, pensou-se que o homem devia amar naturalmente
a humanidade como amamos a nossa pátria e a nossa família, quando na
realidade o grupo familiar e o grupo social são os únicos que foram queri-
dos pela natureza, os únicos aos quais correspondem instintos, e quando
os instintos sociais levariam as sociedades a lutar umas contra as outras
bem mais depressa do que a unirem-se para se constituírem efectivamen-
te em humanidade. Quando muito o sentimento familiar e social poderá
acidentalmente superabundar e ser aplicado para além das suas frontei-
ras naturais, por luxo ou por jogo; o que nunca chegará muito longe. Bem
diferente é o amor místico da humanidade. Não prolonga um instinto,
não deriva de uma ideia. Não releva nem do sensível nem do racional.
É uma coisa e outra implicitamente, e efectivamente muito mais do que
isso. Porque um tal amor está na própria raiz da sensibilidade e da razão,
como do resto das coisas. Coincidindo com o amor de Deus pela sua obra,
amor que tudo fez, entregaria a quem soubesse interrogá-lo o segredo da
criação. É de essência metafísica ainda mais que moral. Quereria, com a
ajuda de Deus, completar a criação da espécie humana e fazer da huma-
nidade o que ela teria imediatamente sido se tivesse podido constituir-se
definitivamente sem o auxílio do próprio homem. Ou, para empregar
249 palavras que dizem, como veremos, a mesma coisa numa outra lingua-
gem: a sua direcção é a mesma que a do impulso da vida; é esse próprio
impulso, comunicado integralmente a homens privilegiados que quere-
riam imprimi-lo então na humanidade inteira e, através de uma contra-
dição realizada, converter em esforço criador essa coisa criada que é uma
espécie, fazer um movimento daquilo que é por definição uma paragem.
Consegui-lo-á? Se o misticismo vier a transformar a humanidade,
só poderá fazê-lo transmitindo passo a passo, lentamente, uma parte de
si mesmo. Os místicos sentem-no bem. O grande obstáculo com que depa
rarão é o mesmo que impediu a criação de uma humanidade divina.
O homem tem de ganhar o pão com o suor do seu rosto: noutros termos,
a humanidade é uma espécie animal, submetida como tal à lei que rege o

198
A RELIGIÃO DINÂMICA

mundo animal e que condena o ser vivo a alimentar-se do ser vivo. Sendo-
-lhe assim o seu alimento disputado, tanto pela natureza em geral como
pelos seus congéneres, aplica necessariamente o seu esforço a tentar obtê-
-lo, e a sua inteligência é justamente de molde a fornecer-lhe armas e
ferramentas em vista dessa luta e desse trabalho. Como viraria, em tais
condições, a humanidade para o céu uma atenção essencialmente ligada
à terra? Se puder vir a fazê-lo, será apenas por meio da aplicação simul-
tânea ou sucessiva de dois métodos muito diferentes. O primeiro con-
sistiria em intensificar de tal modo o trabalho intelectual, em levar a inteli-
gência tão para além do que a natureza quis para ela, que a simples
ferramenta cedesse lugar a um imenso sistema de máquinas capaz de
libertar a actividade humana, sendo esta libertação consolidada, por outro
lado, através de uma organização política e social que garantisse ao
maquinismo o seu destino verdadeiro. Meio perigoso, porque a mecânica,
ao desenvolver-se, poderá voltar-se contra a mística: mais ainda, será em 250
reacção aparente contra ela que a mecânica se desenvolverá mais com-
pletamente. Mas há riscos que é preciso correr: uma actividade de ordem
superior, que tem necessidade de uma actividade mais baixa, deverá sus-
citá-la ou pelo menos deixá-la agir, pronta a defender-se dela se disso for
caso; a experiência mostra que se de duas tendências contrárias mas com-
plementares uma tiver crescido a ponto de querer ocupar para si todo
o lugar, a outra acabará por beneficiar desse crescimento, contanto que
tenha sabido manter-se: a sua vez regressará, e ela colherá então proveito
de tudo o que foi feito sem ela, que foi até mesmo vigorosamente con-
duzido contra ela. Seja como for, este meio só poderia ser utilizado muito
mais tarde e haveria, entretanto, um método completamente diferente a
seguir. Seria o de não sonhar para o impulso místico uma propagação
geral imediata, evidentemente impossível, mas comunicá-lo, ainda que já ;
enfraquecido, a um pequeno número de privilegiados que formariam
juntos uma sociedade espiritual; as sociedades deste género poderiam
enxamear; cada uma delas, através daqueles de entre os seus membros
que se revelassem excepcionalmente dotados, daria origem a uma ou r
várias outras; assim se conservaria, assim se continuaria o impulso até ao
dia em que uma mudança profunda das condições materiais impostas à
humanidade pela natureza permitisse, do lado espiritual, uma radical
transformação. Tal foi o método que os grandes místicos seguiram. Foi
por necessidade, e porque não podiam fazer mais, que consagraram

199
sobretudo a fundar conventos ou ordens religiosas a sua energia super-
abundante. Não lhes cabia olhar de momento mais longe. O impulso de
amor que os levava a elevar a humanidade até Deus e a rematar a cria-
ção divina não podia ser bem sucedido, aos seus olhos, senão com a ajuda
251 de Deus, do qual eram instrumentos. Todo o seu esforço devia concen-
trar-se, portanto, numa tarefa muito grande, muito difícil, mas limitada.
Outros esforços viriam, outros tinham de resto vindo já; todos seriam
convergentes, uma vez que Deus constituía a sua unidade.
A verdade é que simplificámos as coisas em extremo. Em vista de
uma maior clareza, e sobretudo para seriar as dificuldades, raciocinámos
como se o místico cristão, portador de uma revelação interior, sobreviesse
numa humanidade que nada soubesse dela. De facto, os homens aos quais
ele se dirige têm já uma religião, que era, aliás, a do próprio místico. Se
este tinha visões, estas apresentavam-lhe em imagens aquilo que a sua
religião lhe inculcara sob a forma de ideias. Se tinha êxtases, estes uniam-
no a um Deus que superava sem dúvida tudo aquilo que ele imaginara,
mas que correspondia ainda à descrição abstracta que a religião lhe forne-
cera. Poderíamos até mesmo perguntar-nos se tais ensinamentos abstrac-
tos não estarão na origem do misticismo, e se este fez alguma vez outra
coisa que não fosse percorrer de novo a letra do dogma para o escrever
desta feita em caracteres de fogo. O papel dos místicos seria então ape-
nas o de trazerem à religião, para a reaquecer, alguma coisa do calor que
os anima. E, decerto, o que professe tal opinião não terá dificuldade
em fazê-la admitir. Os ensinamentos da religião endereçam-se com efeito,
como qualquer ensinamento, à inteligência, e aquilo que é de ordem inte-
lectual pode tornar-se acessível a todos. Adira-se ou não à religião, con-
seguir-se-á sempre assimilá-la intelectualmente, ainda que se consinta em
representar como misteriosos os seus mistérios. Pelo contrário, o misti-
cismo não diz nada, absolutamente nada, ao que não experimentou
qualquer coisa dele. Toda a gente poderá, pois, compreender que o misti-
252 cismo venha de longe em longe inserir-se, original e inefável, numa reli-
gião preexistente formulada em termos de inteligência, ao passo que será
difícil fazer aceitar a ideia de uma religião que existisse apenas através
do misticismo, do qual seria um extracto intelectualmente formulável e,
por conseguinte, generalizável. Não nos incumbe investigar qual destas
interpretações se mostra mais em conformidade com a ortodoxia reli
giosa. Digamos simplesmente que, do ponto de vista do psicólogo, a

200
A RELIGIÃO DINÂMICA

segunda é muito mais verosímil do que a primeira. De uma doutrina que


não é senão doutrina dificilmente sairá o entusiasmo ardente, a ilumi-
nação, a fé que move montanhas. Mas comecemos por pôr esta incan-
descência, a matéria em ebulição vazar-se-á sem esforço no molde de uma
doutrina, ou transformar-se-á até nessa doutrina ao solidificar-se. Repre-
sentamo-nos, pois, a religião como a cristalização, operada por um sábio
arrefecimento, daquilo que o misticismo veio depositar, abrasador, na
alma da humanidade. Graças a ela, todos podem obter um pouco daquilo
que só alguns privilegiados plenamente possuiriam. É verdade que terá
tido de aceitar muita coisa, para poder ser também aceite. A humanidade
não compreende bem o novo a não ser tomando-o na continuidade do
antigo. Ora o antigo era, por um lado, o que os filósofos gregos tinham
construído e, por outro, o que as religiões antigas tinham imaginado.
Que o cristianismo tenha recebido muito, ou antes tirado muito, de uns e
de outras, tal é um facto indubitável. Encontra-se carregado de filosofia
grega, e conservou muitos ritos, cerimónias,'até mesmo crenças da reli-
gião a que chamávamos estática ou natural. Tal era o seu interesse, porque
a sua adopção parcial do neoplatonismo aristotélico lhe permitia reunir
a si o pensamento filosófico, e os seus empréstimos tomados junto das
antigas religiões eram de molde a ajudar uma religião nova, de direcção
oposta, nada tendo de comum com as de outrora à excepção do nome, a
tornar-se popular. Mas nada de tudo isso era essencial: a essência da nova 253
religião devia ser a difusão do misticismo. Há uma vulgarização nobre,
que respeita os contornos da verdade científica, e que permite a espíritos
simplesmente cultivados representarem-na para si a traço grosso até ao
dia em que um esforço suplementar lhes descubra os pormenores e, sobre-
tudo, os leve a penetrar a sua significação em profundidade. Do mesmo
género nos parece ser a propagação pela religião da misticidade. Neste
sentido, a religião está para o misticismo como a vulgarização está para a
ciência. * • '
O que o místico encontra à sua frente é, portanto, uma húmanidádè
que foi preparada.para o ouvir por outros místicos, invisíveis e presentes
na religião que.é ensinada. O seu. próprio misticismo está-impregnado
desta religião, pois foi por ela que ele começou. A sua teologia estará em
geral em conformidade com a dos teólogos. A sua inteligência e a sua
imaginação utilizarão, para exprimir em palavras aquilo que experimenta
e em imagens materiais o que vê espiritualmente, o ensino dos teólogos.

201
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA R E L I G I Ã O

E tal ser-lhe-á fácil, uma vez que a teologia captou precisamente uma
corrente que tem a sua fonte na misticidade. Assim, o seu misticismo
beneficia da religião, enquanto a religião espera a vez de se enriquecer
com o seu misticismo. É por aqui que se explica o papel que ele se-sente
de início chamado a desempenhar, o de um intensificador da fé religiosa.
A sua pressa é enorme. Na realidade, para os grandes místicos o que
está em causa é transformar radicalmente a humanidade começando por
dar eles próprios o exemplo. O alvo só seria atingido se no f i m houvesse
o que teoricamente deveria ter existido na origem, u m a humanidade
divina.
254 Misticismo e cristianismo condicionam-se, pois, um ao outro, indefi-
nidamente. Mas é preciso que, seja como for, tenha havido um começo.
De facto, na origem do cristianismo há o Cristo. Do ponto de vista em que
nos colocamos, e do qual a divindade aparece a todos os homens, jDouco
importa que o Cristo se chame ou não se chame um homem. Não importa
sequer que se chame Cristo. Os que chegaram ao ponto de negar a exis-
tência de (esus não impedirão o Sermão da Montanha de figurar no
Evangelho, juntamente com outras palavras divinas. Ao autor dar-se-á o
nome que se queira, o que não significará, porém, que não tenha havido
autor. São problemas que, por conseguinte, não nos cabe pór aqui. Diga-
mos simplesmente que, se os grandes místicos são de facto como os des-
crevemos, surgem como imitadores e continuadores originais, mas incom-
pletos, daquilo que o Cristo dos Evangelhos foi completamente.
O próprio Cristo pode ser considerado como o continuador dos profe-
tas de Israel. Não é duvidoso que o cristianismo tenha sido uma transfor-
mação profunda do judaísmo. Foi dito e repetido: a uma religião que era
ainda essencialmente nacional substituiu-se u m a religião capaz de se tor-
nar universal. A um Deus que se distiõguia sem dúvida de todos os outros
pela sua justiça ao mesmo tempo quê pelo seu poder, mas cujo poder se
exercia em benefício do seu povo e cuja justiça se referia antes de mais
aos seus súbditos, sucedeu um Deus de amor, e que amava a humanidade
inteira. É precisamente por isso que hesitamos em classificar os profetas
judeus entre os místicos da Antiguidade: Javé era um juiz demasiado
severo, entre Israel e o seu Deus não havia intimidade bastante, para que
o judaísmo fosse o misticismo que definimos. E, contudo, nenhuma cor-
255 rente de pensamento ou de sentimento contribuiu tanto como o profe-
tismo judeu para suscitar o misticismo a que chamamos completo, o dos

202
A RELIGIÃO DINÂMICA

místicos cristãos. A razão está em que se outras correntes levaram certas


almas a um misticismo contemplativo e mereceram por isso ser tidas por
místicas, foi na contemplação pura que desembocaram. Para a trans-
posição do intervalo entre o pensamento e a acção era necessário um
impulso, qtie faltou. Encontramos esse impulso entre os profetas: tiveram
a paixão da justiça, reclamarärivfia'ein nöttie do'Deus de Israel; e o cris- •
tianismo, que sucedeu ao judaísmo, ficou a dever em grande parte aos
profetas judeus o seu misticismo actuante, capaz de partir à conquista do
mundo.

Se o misticismo é de facto o que acabamos de dizer, deve fornecer um


meio de abordarmos de certo modo experimentalmente o problema da
existência e da natureza de Deus. Não vemos de resto como o abordaria a
filosofia de outra maneira. De um modo geral, consideramos que um
objecto que existe é um objecto qiîté'e percöbidö'Oü 1 que poderia >sèdo. in anu
É portanto dado numa experiência, real ou possível. Somos livres de cons-
truir a ideia de um objecto ou de um ser, como o geómetra faz com uma
figura geométrica; mas só a experiência estabelecerá se ele existe efecti-
vamente fora da ideia assim construída. Dir-me-ão que é aí que está toda
a questão, e que se trata precisamente de saber se um certo Ser não se
distinguiria de todos os outros por ser inacessível à nossa experiência e,
contudo, tão real como os demais. Posso admiti-lo por um instante,
embora uma afirmação desse género, e os raciocínios que se lhe acrescen-
tam, me pareçam implicar uma ilusão fundamental. Mas faltará estabele-
cer que o Ser assim definido, assim demonstrado, é de facto Deus. Alegar- 256
-se-á que o é por definição, e que somos livres de dar às palavras que
definimos o sentido que entendermos? Admiti-lo-ei uma vez mais, mas
se se atribuir à palavra um sentido radicalmente diferente daquele que
comummente tem, será a um objecto novo que ela se aplicará; os raciocí- -..,
nios que se fizerem deixarão de referir-se ao- antigo-objecto; -teremos de
entender, portanto, que é de outra coisa que se está a falar. Tal é precisa-
mente o caso, em geral, quando a filosofia fala de Deus. Trata-se tão pouco ,
do Deus. em que pensa a maior parte dos homens que, se por milagre, e
contra a opinião dos filósofos, o Deus assim definido descesse ao campo
da experiência, ninguém o reconheceria. Estática ou dinâmica, a verdade
é que a religião o tem sobretudo por um Ser que pode entrar em relação
connosco: ora é disso que é precisamente incapaz o Deus de Aristóteles,

203
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

adoptado com algumas modificações pela maior parte dos seus suces-
sores. Sem entrarmos aqui num exame aprofundado da concepção aris-
totélica da divindade, digamos simplesmente que ela parece suscitar uma
dupla questão: i.° porque pós Aristóteles como primeiro princípio um
Motor Imóvel, Pensamento que se pensa a si mesmo, fechado em si mes-
mo, e que não age senão por meio da atracção da sua perfeição; 2° porque
foi que, tendo posto este princípio, Aristóteles lhe chamou Deus? Mas a
resposta é fácil nos dois casos: a teoria platónica das Ideias dominou
todo o pensamento antigo, enquanto esperava o momento de penetrar a
filosofia moderna; ora, a relação do primeiro princípio de Aristóteles com
o mundo é a mesma que Platão estabeleceu entre a Ideia e a coisa. Para
quem não vê nas ideias mais que produtos da inteligência social e indi-
vidual, nada há de surpreendente em que ideias com um número deter-
minado, imutáveis, correspondam às coisas indefinidamente variáveis e
257 mutantes da nossa experiência: arranjamos, com efeito, maneira de des-
cobrir semelhanças entre as coisas apesar da sua diversidade, e para assu-
mir sobre elas pontos de vista estáveis apesar da sua instabilidade; obte-
mos assim ideias sobre as quais temos domínio ao passo que as coisas
nos escorregam por entre as mãos. Tudo isto é de fabrico humano. Mas
aquele que começa a filosofar, quando a sociedade levou já bastante longe
o seu trabalho, e descobre os respectivos resultados armazenados na lin-
guagem pode sentir-se ferido de admiração por este sistema de ideias,
pelo qual as coisas parecem regular-se. Não seriam as ideias, na sua imuta-
bilidade, modelos que as coisas mutantes e moventes se limitam a imi-
tar? Não seriam a realidade verdadeira, e mudança e movimento não
traduziriam a incessante.e inútil tentativa de coisas quase inexistentes,
correndo de certo modo atrás de si mesmas, em vista de coincidirem com
a imutabilidade da Ideia? Compreende-se, assim, que tendo posto acima
do mundo sensível uma hierarquia de Ideias dominadas por essa ideia
das Ideias que é a Ideia do Bem, Platão tenha julgado que as Ideias em
geral, e por maioria de razão o Bem, agiam mediante a atracção da sua
perfeição. Tal é precisamente, segundo Aristóteles, o modo de acção do
Pensamento do Pensamento, que não deixa de ter relação com a Ideia das
Ideias. É verdade que Platão não identificava esta última com Deus: o
Demiurgo do Timeu, que organiza o mundo, é distinto da Ideia do Bem.
Mas o Timeu é um diálogo mítico; o Demiurgo não tem, portanto, senão
uma semi existência; e Aristóteles, que renuncia aos mitos, faz coincidir

204
A RELIGIÃO DINÂMICA

com a divindade um Pensamento que mal chega a ser, dir-se-ia, um Ser


pensante, é ao qual nós chamaríamos Ideia de preferência a Pensamento.
Sob este aspecto, o Deus de Aristóteles nada tem em comum com os que
os gregos adoravam; também não se assemelha mais ao Deus da Bíblia,
do Evangelho. Estática ou dinâmica a religião apresenta à filosofia um 258
Deus que suscita problemas completamente diferentes. Nô entanto, foi '
ao primeiro que a metafísica em geral atendeu, ainda que dispondo-se a
adorná-lo com este ou aquele atributo incompatível com a sua essência.
Porque não foi procurá-lo na origem? Tê-lo-ia visto formar-se através da
compressão de todas as ideias numa só. Porque não considerou estas
ideias, por seu turno? Teria visto que servem antes de mais para preparar
a acção do indivíduo e da sociedade sobre as coisas, que é para isso que a
sociedade as fornece ao indivíduo, e que erigir em divindade a sua quin-
tessência consiste muito simplesmente na divinização do social. Porque
não analisou, enfim, as condições sociais de uma tal acção individual, e a
natureza do trabalho que o indivíduo leva a cabo com o auxílio da socie-
dade? Teria constatado que se, para simplificar o trabalho e também para
facilitar a cooperação, começamos por reduzir as coisas a um pequeno
número de categorias ou de ideias traduzíveis em palavras, cada uma
dessas ideias representa uma propriedade ou um estado estável colhido
ao longo de um devir: o real é movente, ou antes movimento, e nós não
percebemos senão continuidades de mudança; mas para agir sobre o real,
e em particular para levar a bom termo o trabalho de fabrico que é o
objecto próprio da inteligência humana, devemos fixar estádios por meio
do pensamento, do mesmo modo que esperamos por alguns instantes
de abrandamento 011 de paragem relativa para disparar sobre um alvo
móvel. Mas estes repousos, que não são mais que acidentes do movimento
e que se reduzem de resto a puras aparências, estas qualidades que não
são mais que instantâneos tomados sobre a mudança, tornam-se aos
nossos olhos o real e o essencial, justamente porque são de molde a inte-
ressar à nossa acção sobre as coisas. O repouso torna-se assim para nós
anterior e superior ao movimento, que não passaria de uma agitação 259
visando alcançá-lo. A imutabilidade estaria assim acima da mutabilidade,
que não seria senão uma deficiência, uma privação, uma busca da forma
definitiva. Bem mais ainda, é por esta distância entre o ponto onde a
coisa é e aquele onde deveria, onde quereria ser, que se irá definir e até
mesmo medir o movimento e a mudança. A duração torna-se assim uma

205
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

degradação do ser, o tempo uma privação de eternidade. É toda esta


metafísica que a concepção aristotélica da divindade implica. Consiste
em divinizar tanto o trabalho social que prepara a linguagem como o
trabalho individual de fabrico que exige padrões ou modelos: o et5oç
(Ideia ou Forma) é o que corresponde a este duplo trabalho; depara-se,
portanto, que a Ideia das Ideias ou Pensamento do Pensamento é a própria
divindade. Quando reconstituímos assim a origem e a significação do
Deus de Aristóteles, perguntamo-nos como podem os modernos tratar da
existência e da natureza de Deus embaraçando-se com problemas insolú-
veis que só se põem quando encaramos Deus do ponto de vista aristotélico
e se consentirmos em dar esse nome a um ser que aos homens nunca
ocorreu invocar.
Quanto a estes problemas, será a experiência mística a resolvê-los?
Vemos bem as objecções que suscita. Afastámos as que consistem em
fazer de todo e qualquer místico um desequilibrado, de todo e qualquer
misticismo um estado patológico. Os grandes místicos, que são os únicos
de que nos ocupamos, foram geralmente homens ou mulheres de acção,
de um bom senso superior: pouco importa que tenham tido por imitado-
res desequilibrados, ou que algum de entre eles se tenha ressentido, em
certos momentos, de uma tensão extrema e prolongada da inteligência e
da vontade; tal foi o caso de muitos outros homens de génio. Mas há uma
outra série de objecções que é impossível não considerarmos. Alega-se,
com efeito, que a experiência destes grandes místicos é individual e excep-
cional, que não pode ser controlada pelo comum dos homens, que não é
comparável, por conseguinte, à experiência científica e não pode resolver
problemas. - Muito haveria a dizer sobre este ponto. Em primeiro lugar,
está muito longe de ser certo que u m a experiência científica, ou mais
geralmente uma observação registada pela ciência, seja sempre suscep-
tível de repetição ou de controlo. .Nos tempos em que a África Central era
terra incognita, a geografia reportava-se à descrição de um explorador
singular, se este oferecesse garantias suficientes de honestidade e de com-
petência. O traçado, das viagens de Livingstone figurou durante muito
tempo nos nossos mapas. Responder-se-á que a verificação era possível
de direito, senão de facto, que outros viajantes tinham a liberdade de
ir aos mesmos lugares, se os quisessem ver, e que, além disso, o mapa
traçado a partir das indicações de um único viajante era provisório e
teria de. esperar por explorações posteriores que o tornassem definitivo.

206
A RELIGIÃO DINÂMICA

Concedo-o; mas o místico, também ele, fez uma viagem que outros podem
refazer de direito, senão de facto; e os que são efectivamente capazes
disso são pelo menos tão numerosos como os que teriam a audácia e a
energia de um Stanley ao pôr-se em busca de Livingstone. O que não é
tudo. A par das almas que seguiriam até ao fim a via mística, há muitas
outras que "efectuariam pelo menos uma parte do trajecto: quantos não
deram nessa via alguns passos, quer por meio de um esforço da vontade,
quer por uma disposição da sua natureza! William James declarava nunca
ter passado por estados místicos; mas acrescentava que, quando ouvia
falar deles um homem que os conhecia por experiência, "qualquer coisa
despertava um eco" no seu íntimo. A maioria de nós está provavelmente 261
no mesmo caso. De nada serve que se lhes oponham os protestos indigna-
dos dos que não vêem no misticismo mais que charlatanismo ou loucura.
Alguns, sem dúvida, são completamente fechados à experiência mística,
incapazes de a experimentar minimamente, de miniríiamente a imagi-
nar. Mas conhecemos também pessoas para as quais a música não passa
de um ruído; e algumas de entre elas exprimem-se com a mesma cólera,
com o mesmo tom de rancor pessoal, a respeito dos músicos. Daí ninguém
tirará um argumento contra a música. Deixemos, portanto, de lado estas
negações, e vejamos se o exame mais superficial da experiência mística
criaria ou não já uma presunção em favor da sua validade.
Devemos começar por notar o acordo dos místicos entre si. O facto é
impressionante entre os místicos cristãos. Para alcançarem a deificação
definitiva, passam por uma série de estados. Estes estados podem variar
de místico para místico, mas assemelham-se muito. Em todo o caso, o
caminho percorrido é o mesmo, a supormos que as estações o balizem de
modos diferentes. E, em todo o caso, o ponto de chegada é sempre o
mesmo. Nas descrições do estado definitivo encontjamos as mesmas
expressões; as mesmas imagens, as-mesmas comparações, ao mesmo
tempo que em geral os autores não se conhecem mutuamente. Replica--
-se que por vezes se conheceram, e que existe, aliás, uma tradição mística,
cuja influência todos os místicos puderam sofrer. Concedemo-lo,,mas é
preciso notar que os grandes místicos se preocupam pouco com essa
tradição; cada um deles tem a sua originalidade, que não é querida, que
não foi desejada, mas à qual sentimos bem que o místico está essencial-
mente ligado: significa que ele é objecto de um favor excepcional, ainda
que imerecido. Dir-se-á que a comunidade de religião basta para explicar 262

2 0
7
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO

a semelhança, que iodos os místicos cristãos se alimentaram do Evange-


lho, que todos receberam o mesmo ensino teológico? Seria esquecer que,
se as semelhanças entre as visões se explicam, na realidade, pela comuni-
dade de religião, tais visões ocupam pouco lugar na vida dos grandes
místicos; depressa são deixadas para trás e aos olhos deles não possuem
mais que um valor simbólico. No que se refere ao ensino teológico em
geral, parecem de facto aceitá-lo com absoluta docilidade e, em particular,
obedecer ao seu confessor; mas, como houve quem finamente observasse,
"só obedecem a si mesmos, e um instinto seguro condu-los ao homem
que os dirigirá precisamente pela via que querem seguir. Se lhe aconte-
cesse afastar-se dela, os nossos místicos não hesitariam em sacudir a sua
autoridade e, valendo-se das suas relações directas com a divindade, em
prevalecer-se de uma liberdade superior" \ Seria, com efeito, interessante
estudarmos aqui de perto as relações entre dirigente e dirigido. Descobri-
ríamos que aquele dos dois que aceitou com humildade ser dirigido se
tornou em mais de um caso, com não menor humildade, director. Mas
n ã o é este ponto que mais nos importa. Queremos somente dizer que, se
as semelhanças exteriores entre místicos cristãos podem ligar-se a uma
comunidade de tradição e de ensino, o seu acordo profundo é sinal de
uma identidade de intuição que se explicaria da maneira mais simples
pela existência real do Ser com o qual se crêem em comunicação. Que
acontecerá se considerarmos que os outros misticismos, antigos ou mo-
dernos, vão mais ou menos longe, se detêm aqui ou ali, mas assinalam
todos a mesma direcção?
263 Reconhecemos, todavia, que a experiência mística, deixada a si mesma,
não pode trazer aa filósofo a certeza definitiva. Só seria inteiramente
convincente se este tivesse chegado por outra via, como a experiência
sensível e o raciocínio baseado nela, a encarar como verosímil a existên-
cia de uma experiência privilegiada, através da qual o homem entrasse
em comunicação com um princípio transcendente. A descoberta, entre
os místicos, desta experiência tal como seria de esperar permitiria então
reforçar os resultados adquiridos, ao passo que estes resultados fariam
recair sobre a experiência mística alguma coisa da sua própria objectivi-
dade. Não há outra fonte, de conhecimento além da experiência. Mas,

1
M. de Montmorand, Psychologie des mystiques catholiques orthodoxes, Paris, 1920,
p. 17.

208
A RELIGIÃO DINÂMICA

como a notação intelectual do facto supera necessariamente o facto bruto,


nem todas as experiências, longe disso, são igualmente concludentes ou
autorizam a mesma certeza. Muitas de entre elas conduzem-nos a con-
clusões simplesmente prováveis. Todavia, as probabilidades podem adi-
cionar-se, e a adição dar um resultado que èquivalha praticamente à
certeza. Falávamos outrora dessas "linhas de factos", cada uma das quais
fornece apenas a direcção da verdade por não ir suficientemente longe:
prolongando duas de entre elas até ao ponto onde se cortam, chegaremos,
contudo, à própria verdade. O agrimensor mede a distância de um ponto
inacessível visando-o alternadamente de dois pontos aos quais tem acesso.
Consideramos que este método de recorte é o único capaz de fazer avançar
definitivamente a metafísica. Por meio dela estabelecer-se-á uma colabo-
ração entre filósofos; a metafísica, como a ciência, progredirá através da
acumulação gradual cie resultados adquiridos, em vez de ser um sistema
completo, a pegar cfu largar, sempre contestado, sempre a recomeçar.
Ora acontece precisamente que o aprofundamento de uma certa ordem
de problemas, muito diferentes do problema religioso, nos conduziu a
conclusões que tornavam provável a existência de uma experiência sin-
gular, privilegiada, como a experiência mística. E por outro lado a expe-
riência mística, estudada por si mesma, fornece-nos indicações capazes
de se somarem aos ensinamentos obtidos num domínio completamente
diferente, através de um método completamente distinto. Há efectiva-
mente aqui reforço e complemento recíprocos. Comecemos pelo primeiro
ponto.
Foi seguindo de tão perto quanto possível os dados da biologia que
chegámos à concepção de um impulso vital e de uma evolução criadora.
Mostrámo-lo no início do capítulo anterior: uma tal concepção nada tinha
de comum com as hipóteses sobre as quais se constroem as metafísicas;
era uma condensação de factos, um resumo de resumos. Agora, de onde
vinha o impulso, e qual era o seu princípio? Se se bastava a si mesmo,
que seria então em si mesmo e que sentido seria necessário dar ao con-
junto das suas manifestações?, A estas .questões ,os..factos .considerados,
não traziam resposta alguma; mas apercebíamo-nos bem de onde pode-
ria a resposta chegar. A energia lançada através da matéria surgira-nos,
com efeito, como infraconsciente ou supracònsciente, em todo o caso da
mesma espécie que a consciência. Tivera de contornar múltiplos obstá-
culos, de se retrair para poder passar, de se dividir entre linhas de evo-

2Q"9
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

lução divergentes; finalmente, foi no extremo de duas linhas principais


que encontrámos os dois modos de conhecimento nos quais ela se ana-
lisara para se materializar, o instinto do insecto e a inteligência do homem.
O instinto era intuitivo, a inteligência reflectia e raciocinava. É verdade
265 que a intuição tivera de se degradar para se tornar instinto; ficara hipno-
tizada pelo interesse da espécie, e aquilo que conservara de consciência
tomara a forma do sonambulismo. Mas do mesmo modo que em torno
do instinto animal subsistia uma franja de inteligência, assim a inteligên-
cia humana se aureolava de intuição. Esta, no homem, permanecera plena-
mente desinteressada e consciente, mas não passava de um clarão, e que
não se projectava lá muito longe. Seria dela, porém, que a luz viria, se
alguma vez o interior do impulso vital, a sua significação e o seu destino
viessem a esclarecer-se. Porque se virava para dentro; e se, através de
uma primeira intensificação, nos fazia apreender a continuidade da nossa
vida interior, se a maior parte de nós não ia mais longe, uma intensifi-
cação superior levá-la-ia talvez até às raízes do nosso ser e, assim, até ao
próprio princípio da vida em geral. A alma mística não tinha justamente
um tal privilégio?
Chegávamos deste modo ao que acabamos de anunciar como o
segundo ponto. A questão era antes de mais a de sabermos se os místicos
eram ou não simples desequilibrados, se a descrição das suas experiên-
cias era ou não pura fantasia. Mas essa questão decidia-se rapidamente,
pelo menos no que se refere aos grandes místicos. Tratava-se, em seguida,
de saber se o misticismo seria apenas um maior ardor da fé, forma imagi-
nativa que a religião tradicional pode tomar nas almas apaixonadas, ou
se, assimilando embora tudo o que pode daquela religião, pedindo-lhe
embora confirmação, tomando-lhe embora de empréstimo a linguagem,
não teria uni conteúdo original, extraído directamente da própria fonte
da religião, independente do que a religião deve à tradição, à teolôgia, às
Igrejas. No primeiro caso, permaneceria necessariamente arredado da
266 filosofia, porque esta deixa de lado a revelação que tem uma data, as
instituições que a transmitiram, a fé que a aceita: deve ater-se à experiên-
cia e ao raciocínio. Mas, no segundo, bastaria tomarmos o misticismo em
estado puro, desligado das visões, das alegorias, das fórmulas teológicas
por meio das quais se exprime, para fazermos dele um poderoso auxiliar
da investigação filosófica. Destas duas concepções das suas relações com
a religião, foi a segunda que nos pareceu impor-se. Teremos então de ver

210
A RELIGIÃO DINÂMICA

em que medida a experiência mística prolonga a que nos conduz à dou


trina do impulso vital. Tudo o que forneça de informação à filosofia ser-
-lhe-á devolvido por esta sob a forma de confirmação.
Notemos, para começar, que os místicos deixam de lado aquilo a que
chamávamos os "falsos problemas". Dir-se-á talvez que eles não se põem
problema algum, verdadeiro ou falso, e com razão. Nem por isso é menos
certo que nos trazem a resposta implícita a questões que devem preo-
cupar o filósofo, e que certas dificuldades perante as quais a filosofia
cometeu o erro de se deter são implicitamente pensadas por eles como
inexistentes. Mostrámos outrora qué uma parte da metafísica gravita,
conscientemente ou não, em torno da questão de saber o porquê de exis-
tir alguma coisa: porquê a matéria, ou porquê espíritos, ou porquê Deus,
em vez de nada? Mas a questão pressupõe que a realidade preenche um
vazio, que sob o ser há o nada, que de direito nada haveria, que então é
necessário Ixplicar porque é que, de facto, há alguma coisa. E tal pres-
suposto é ilusão pura, porque a ideia de nada absoluto tem justamente
tanto sentido como a de um quadrado redondo. Sendo sempre a ausência
de alguma coisa a presença de outra - que preferimos ignorar porque
não é a que nos interessa ou a que esperávamos -, uma supressão nunca 267
é mais do que uma substituição, uma operação de duas faces que convi-
mos em olhar apenas de um dos lados: a ideia de uma abolição de tudo
destrói-se, portanto, a si mesma, é inconcebível; é uma pseudo-ideia, uma
miragem de representação. Mas, por razões que expúnhamos outrora, a
ilusão é natural; tem a sua fonte nas profundidades do entendimento.
Suscita questões que são a principal origem da angústia metafísica. Tais
questões, um místico considerará que não se põem sequer: ilusões de
óptica interna, devidas à estrutura da inteligência'humana, apagam-se e
desaparecem, à medida que ascendemos acima do ponto de vista humano.
Por razões análogas, o místico também não se inquietará das dificuldades
acumuladas pela filosofia em torno dos atributos "metafísicos" da divin-
dade; nada tem a ver com determinações que são negações e que só nega
tivamente se podem exprimir; crê ver o que Deus é, não tem visão alguma
do que Deus não é. É, pois, sobre a natureza de Deus, imediatamente
apreendida no que tem de positivo, quero eu dizer de perceptível aos
olhos da alma, que o filósofo deverá interrogá-lo.
Trata-se de uma natureza que o filósofo depressa poderia definir se
quisesse dar uma fórmula ao misticismo. Deus é amor, e é objecto de

211
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO

amor: toda a contribuição do misticismo se encontra aqui. Deste duplo


amor nunca terá o místico acabado de falar. A sua descrição é intermi-
nável porque a coisa a descrever é inexprimível. Mas o que ela diz clara-
mente é que o amor divino não-é qualquer coisa de Deus: é o próprio
Deus. É a esta indicação que atenderá o filósofo que tem Deus por uma
268 pessoa e que não quer, todavia, adoptar um antropomorfismo grosseiro.
Pensará, por exemplo, no entusiasmo que pode abrasar uma alma, con-
sumir o que nela haja e ocupar doravante todo o lugar. A pessoa coincide
então com essa emoção; nunca, contudo, foi também tão ela própria: sim-
plificada, unificada, intensificada. Nunca também esteve tão cheia de.
pensamento, se é verdade, como dizíamos, que há duas espécies de emo-
ção, uma infra-intelectual, que não é mais que uma agitação consecutiva
a uma representação, outra supra-intelectual, que precede a ideia e que é
mais que ideia, mas desabrocharia em ideias se quisesse, alma inteira-
mente pura, dar-se um corpo. Que haverá de mais construído, de mais
sábio que uma sinfonia de Beethoven? Mas ao longo de todo o seu traba-
lho de arranjo, de rearranjo e de escolha que prosseguia no plano intelec-
tual, o músico remontava a caminho de um ponto situado fora do plano
para aí buscar a aceitação ou a recusa, a direcção, a inspiração: nesse
ponto tinha sede uma indivisível emoção que a inteligência ajudava sem
dúvida a explicitar-se em música, mas que era ela própria mais que música
e mais que inteligência. No pólo oposto da emoção infra-intelectual, per-
manecia sob a dependência da vontade. Para se reportar a ela, o artista
tinha de proceder de cada nova vez a um esforço, como os olhos que
fazem reaparecer uma estrela que logo a seguir volta a mergulhar na
noite. Uma emoção deste género assemelha-se sem dúvida, ainda que de
muito longe, ao sublime amor que é para o místico a essência mesma
de Deus. Em todo o caso o filósofo deverá pensar nela quando estreitar
cacfa vez mais fortemente a intuição mística a f i m de a exprimir em ter-
mos de inteligência.

Pode não ser músico, mas é em geral escritor; e a análise do seu pró-
prio estado de alma, quando compõe, ajudá-lo-á a compreender como o
269 amor em que os místicos vêem a própria essência da divindade pode ser,
ao mesmo tempo que uma pessoa, uma potência de criação. Mantém-se
comummente, quando escreve, na região dos conceitos e das palavras.
A sociedade fornece-lhe, elaboradas pelos seus predecessores e armazena-
das na linguagem, ideias que ele combina de uma maneira nova depois

212
A RELIGIÃO DINÂMICA

de as ter, também a elas, até certo ponto remodelado a fim de as fazer


entrar na combinação. Este método dará uin resultado mais ou menos
satisfatório, mas que será sempre um resultado, e alcançado num tempo
restrito. A obra produzida poderá, aliás, ser original e forte; muitas vezes
enriquecerá o pensamento humano. Mas será apenas um aumento do
rendimento do ano; a inteligência social continuará a Viver do "mesmo
fundo, dos mesmos valores. Agora, há um outro método de composição,
mais ambicioso, menos seguro, incapaz de dizer quando chegará ao resul-
tado ou sequer se resultará. Consiste em remontar, do plano intelectual e
social, até um ponto da alma de onde parte uma exigência de criação.
Esta exigência, o espírito onde tem sede pode não a ter sentido plena-
mente senão uma vez na sua vida, mas ela continua presente, emoção
única, abalo ou impulso recebido do próprio fundo das coisas. Para lhe
obedecer por completo, seria necessário forjar palavras, criar ideias, mas
isso já não seria comunicár' nèm, por conseguinte, escrever. O escritor '
tentará, todavia, realizar o irrealizável. Irá buscar a emoção simples, for-
ma que quereria criar a sua matéria, e levar-se-á com ela ao encontro das
ideias já feitas, das palavras já existentes, enfim dos recortes sociais do
real. Ao longo de todo o seu caminho, senti-la-á explicitar-se em signos
saídos dela, quero eu dizer em fragmentos da sua própria materialização.
Estes elementos, cada um dos quais único no seu género, como será possí-
vel levá-los a coincidir com palavras que já exprimem coisas? Será preciso 270
violentar as palavras, forçar os elementos. Mas o sucesso nunca será
garantido; o escritor pergunta-se a cada instante se lhe será de facto dado
ir até ao fim; agradece ao acaso cada realização parcial, como um inven-
tor de jogos verbais poderia agradecer às palavras que lhe aparecem no
caminho o terem-se prestado ao seu jogo. Mas, se conseguir, será de um
pensamento capaz de tomar um aspecto novo para cada geração nova,
será de um capital indefinidamente produtivo de rendimentos e já não - —
de uma soma a despender de imediato, quê terá enriquecido a humani-
dade. Tais são os dois métodos de composição literária. Embora não se

excluam em absoluto, nem -por- isso-se distinguem menos radicalmente.


No segundo, na imagem que pode dar de uma criação da matéria pela
forma, deverá pensar o filósofo, para se representar como energia criadora
o amor em que o místico vê a própria essência de Deus.
Este amor terá um objecto? Notemos que uma emoção de ordem supe-
rior se basta a si mesma. Certa música sublime exprime o amor. Não se

213
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO

trata, contudo, do amor de ninguém. Uma outra música será um outro


amor. Haverá aqui duas atmosferas de sentimento distintas, dois perfu-
mes diferentes e, nos dois casos, o amor será qualificado pela sua essência,
não pelo seu objecto. Todavia, é difícil concebermos um amor actuante
que não se dirija a ninguém. De facto, os místicos são unânimes quando
testemunham que Deus tem necessidade de nós, como nós temos neces-
sidade de Deus. Porque teria ele necessidade de nós, se não fosse para nos
amar? Tal será, com efeito, a conclusão do filósofo que se consagra à expe-
riência mística. A Criação aparecer-lhe-á como um empreendimento de
Deus visando criar criadores, acompanhar-se de seres dignos do seu amor.
271 Hesitaríamos em admiti-lo, se estivessem em causa apenas os medío-
cres habitantes do canto do universo a que chamamos Terra. Mas, já o
dissemos outrora, é verosímil que a vida anime todos os planetas suspen-
sos de todas as estrelas. Aí toma sem dúvida, em razão da diversidade das
condições que encontra, as formas mais variadas e mais afastadas do que
nós imaginamos; mas tem a mesma essência em toda a parte, a essência
de acumular gradualmente energia potencial que depois despende brus-
camente em acções livres. Poderíamos ainda hesitar em admiti-lo, se con-
siderássemos acidental o aparecimento, entre os animais e as plantas que
povoam a terra, de um ser vivo como o homem, capaz de amar e de se
fazer amar. Mas mostrámos já que esse aparecimento, se não foi prede-
terminado, não foi também um acidente. Embora tenha havido outras
linhas de evolução ao lado da que conduz ao homem, e apesardo que há
de incompleto no próprio homem, podemos dizer, atendo-nos de perto à
experiência, que é o homem que é a razão de ser da vida no nosso planeta.
Enfim, haveria motivo para hesitarmos ainda, se acreditássemos que o
universo é essencialmente matéria bruta e que a vida veio sobreacrescen-
tar-se à matéria. Mas mostrámos, pelo contrário, que a matéria e a vida,
tal como as definimos, são dadas conjunta e solidariamente. Em tais
condições, nada impede o filósofo de levar até ao fim a ideia, que o misti-
cismo lhe sugere, de um universo que não seria mais que o aspecto visível
e tangível do amor e da necessidade de amar, com todas as consequên-
cias que acarreta esta emoção criadora, quero eu dizer com o apareci-
mento de seres vivos nos quais a emoção descobre o seu complemento,
e de uma infinidade de outros seres vivos sem os quais os primeiros não
272 teriam podido aparecer e, por fim, de uma imensidão de materialidade
sem a qual a vida não teria sido possível.

214
A RELIGIÃO DINÂMICA

Vamos assim para além, sem dúvida, das conclusões de "A Evolu-
ção Criadora". Tínhamos querido então permanecer tão perto dos factos
quanto possível. Não dizíamos nada que não pudesse ser um dia confir-
mado pela biologia. À espera dessa confirmação, tínhamos resultados
que o método filosófico, tal como o entendemos, nos autorizava a consi-
derar verdadeiros. Aqui estamos apenas no domínio do verosímil. Mas
nunca repetiremos demais que a certeza filosófica comporta graus, que
faz apelo à intuição ao mesmo tempo que ao raciocínio, e que, se a intui-
ção animada à ciência é susceptível de ser prolongada, só o poderá ser
pela intuição mística. De facto, as conclusões que acabamos de apresentar
completam naturalmente, ainda que não necessariamente, as dos nos-
sos trabalhos anteriores. Uma energia criadora que fosse amor, e que
quisesse tirar de si mesma seres dignos de serem amados, poderia assim
semear mundos cuja materialidade, por oposição à espiritualidade divina,
exprimiria simplesmente a distinção erttre o que é criado e d que cria,
entre as notas sobrepostas da sinfonia e a emoção indivisível que as
deixou sair de si. Em cada um destes mundos, impulso vital e matéria
bruta seriam os dois aspectos complementares da criação, guardando
a vida da matéria que atravessa a sua subdivisão em seres distintos, e
permanecendo as forças das quais é portadora conjuntamente confun-
didas, na medida em que o permita a espacialidade da matéria que as
manifesta. Esta interpenetração não foi possível no nosso planeta; tudo
leva a crer que a matéria que aqui se mostrou complementar da vida era
pouco de molde a favorecer o seu impulso. A impulsão original resultou 273
assim em progressos evolutivos divergentes, em vez de se manter indivisa
até ao fim. Na própria linha por onde passou o essencial da impulsão,
esta acabou por esgotar o seu efeito, ou antes o movimento converteu-
-se, de rectilíneo, em movimento circular. A humanidade, que está no
extremo desta linha, gira nesSe círculo; Tal era a nossa conclusão:Pára a
prolongarmos, sem cair em suposições arbitrárias, só teríamos de seguir
a indicação do místico. Quanto-à corrente vital que atravessa a matéria,
e que é sem dúvida a sua ra-zão de ser,- tomávamo-la-por simplesmente
dada. Da humanidade, que está no extremo da direcção principal, per-
guntávamo-nos se teria outra razão de ser além de si mesma. Trata-se de
uma dupla questão que a intidção mística põe ao responder-lhe, Foram
chamados à existência seres que estavam destinados a amar e a ser ama-
dos, uma vez que a energia criadora deve definir-se pelo amor. Distintos

/1 /. Z15
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

de Deus, que é essa energia ela mesma, só podiam surgir num universo,
e foi por isso que o universo surgiu. Na porção de universo que é o
nosso planeta, provavelmente em todo o nosso sistema solar, tais seres,
para se produzirem, tiveram de constituir uma espécie, e esta espécie
tornou necessária uma multiplicidade de outras que f o r a m a sua pre-
paração, o seu apoio, ou o seu desperdício: noutros lugares talvez não
haja senão indivíduos radicalmente distintos, a supor que sejam ainda
múltiplos, ainda mortais; talvez tenham sido também realizados de uma
vez só e plenamente. Na terra, em todo o caso, a espécie que é a razão de
ser de todas as outras só parcialmente é ela mesma. Não pensaria sequer
em vir a sê-lo por completo se alguns dos seus representantes não tives-
sem conseguido, através de um esforço individual que se acrescentou ao
274 trabalho geral da vida, quebrar a resistência que o instrumento opunha,
triunfar sobre a materialidade, redescobrir, enfim, Deus. Tais homens
são os místicos. Abriram um caminho por onde outros homens poderão
andar. Indicaram, por isso mesmo, ao filósofo de onde vinha e para onde-
ia a vida.
Não nos cansamos de repetir que o h o m e m é muito pouca coisa sobre
a terra, como a terra no universo. Todavia, até mesmo pelo seu corpo, o
homem está longe de ocupar apenas o lugar mínimo que comummente
se lhe atribui, e com o qual o próprio Pascal se contentava quando o
reduzia a "cana pensante" e a não ser, materialmente, mais do que isso
mesmo. Porque se o nosso corpo é a matéria à qual a"nossa consciência se
aplica, é coextensivo à nossa consciência, compreende tudo o que percebe-
mos, estende-se até às estrelas. Mas este corpo imenso muda a cada ins-
tante, e por vezes radicalmente, através do mais leve deslocar-se de uma
parte de si mesmo que ocupa o seu centro e que cabe num espaço mínimo.
Este corpo interior e central, relativamente invariável, está sempre pre-
sente. Não só está presente, mas é também actuante: é através dele, e só
dele, que podemos mover outras partes do grande corpo. E como a acção
é o que conta, como está entendido que estamos e somos onde agimos, é
costume fechar-se a consciência no corpo mínimo e negligenciar o corpo
imenso. De resto, parecemos autorizados pela ciência a fazê-lo, uma vez
que esta considera a percepção exterior um epifenómeno dos processos
intracerebrais que lhe correspondem: tudo o que é percebido do corpo
maior não seria, portanto, mais que um fantasma projectado pelo mais
pequeno no exterior. Desmascarámos a ilusão que esta metafísica com-

216
A RELIGIÃO D I N Â M I C A

porta 1 . Se a superficie do nosso tão pequeno corpo organizado (orga- 275


nizado precisamente em vista da acção imediata) é o lugar dos nossos
movimentos actuais, o nosso grande corpo inorgânico é o lugar das nossas
acções eventuais e teoricamente possíveis: sendo os centros perceptivos
do cérebro os batedores c os preparadores destas acções eventuais e dese- :
nhando interiormente o seu plano, tudo se passa como se as nossas per-
cepções exteriores fossem construídas pelo nosso cérebro e projectadas ;
por ele no espaço. Mas a verdade é completamente diferente, e nós esta-
mos realmente, ainda que através de partes de nós mesmos que variam
incessantemente e onde só têm sede acções virtuais, em tudo o que per- "
cebemos. Tomemos as coisas por este lado, e já não diremos sequer do
nosso corpo que está perdido na imensidão do universo.
É verdade que, quando se fala da pequenez do homem e da grandeza
do universo, é na complicação deste que se pensa tanto como na sua
dimensão. Uma pessoa produz o efeito de ser siínples; o mundo material
é de uma complexidade que desafia qualquer imaginação: a mais pequena
parcela visível de matéria é já em si mesma um mundo. Como admitir
que este não tenha outra razão de ser para além de aquela? Mas não nos
deixemos intimidar. Quando nos encontramos perante partes cuja enu-
meração prossegue sem fim, é possível que o todo seja simples, e que
sejamos nós que o olhamos pelo lado mau. Leve o leitor a mão de um
ponto para outro: é para si, que o percebe de dentro, um gesto indivisível.
Mas eu, que o percebo de fora, e que fixo a minha atenção na linha per-
corrida, digo-me que o gesto teve de começar por transpor a primeira
metade do intervalo, depois a metade da outra metade, depois a metade
do que resta, e assim sucessivamente: poderia continuar durante biliões
de séculos, nunca chegaria ao f i m da enumeração dos actos nos quais se 276
decompõe aos meus olhos o movimento que o leitor sente indivisível.
Assim o gesto que%uscita a espécie humana, ou mais geralmente os objec-
tos de amor para ö Criador, poderia muito bem exigir condições que exi-
gem outras, as quais, passo a passo, acarretam uma infinidade. Impossível
pensarmos nesta multiplicidade sem sermos tomados de vertigens; mas
ela não passa do reverso de um indivisível. É verdade que os actos infini-
tamente numerosos em que decompomos um gesto da mão são pura-
mente virtuais, determinados necessariamente na sua virtualidade pela

1
Matière et Mémoire, Paris, 1896. Ver todo o primeiro capítulo.

217
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO

actualidade do gesto, enquanto as partes constitutivas do universo, e as


partes dessas partes, são realidades: quando são vivas, têm uma esponta-
neidade que pode chegar à actividade livre. Por isso, não pretendemos
que a relação do complexo com o simples seja a mesma nos dois casos.
Só quisemos mostrar por meio desta aproximação que a complicação,
ainda que sem limites, não é sinal de importância, e que uma existência
simples pode exigir condições cujo encadeamento é sem fim.
Esta será a nossa conclusão. Atribuindo um tal lugar ao homem e uma
tal significação à vida, parecerá muito optimista. Imediatamente depois
surgirá o quadro dos sofrimentos que cobrem o domínio da vida, desde o
grau inferior da consciência até ao homem. Em vão faríamos observar
que na série animal este sofrimento está longe de ser o que pensamos:
sem chegarmos à teoria cartesiana dos animais máquinas, podemos pre-
sumir que a dor é singularmente reduzida em seres que não têm uma
memória activa, que não prolongam o seu passado no seu presente e qrfe
não são completamente pessoas; a sua consciência é de natureza sonam-
277 búlica; nem os seus prazeres nem as suas dores têm as ressonâncias pro-
fundas e duradouras das nossas: contaremos nós como dores reais as que
experimentámos em sonhos? No próprio homem, o sofrimento físico não
se deverá muitas vezes à imprudência e à imprevidência, ou a gostos
demasiado refinados, ou a necessidades artificiais? Quanto ao sofrimento
moral, é pelo menos com igual frequência acarretado por nossa culpa,
e de qualquer maneira não seria tão agudo se não tivéssemos sobreexci-
tado a nossa sensibilidade ao ponto de a tornarmos mórbida; a nossa dor
é indefinidamente prolongada e multiplicada pela reflexão que faze-
mos sobre ela. Em suma, seria fácil acrescentar alguns parágrafos à Teo-
diceia de Leibniz. Mas não sentimos a mais pequena vontade de o fazer.
O filósofo pode comprazer-se em especulações deste género na solidão
do seu gabinete: que pensará, diante de uma mãe que acaba de ver mor-
rer o seu filho? Não, o sofrimento é uma terrível realidade, e é um opti-
mismo insustentável definir a priori o mal, ainda que reduzido ao que
efectivamente é, como um bem menor. Mas há um optimismo empírico
que consiste simplesmente na constatação de dois factos: em primeiro
lugar, que a humanidade julga a vida boa no seu conjunto, u m a vez que a
ela se apega; em seguida, que existe uma alegria sem mescla, situada para
além do prazer e da dor, que é o estado de alma definitivo do místico.
Neste duplo sentido, e deste duplo ponto de vista, o optimismo impõe-se,

218
A RELIGIÃO DINÂMICA

sem que o filósofo tenha de advogar a causa de Deus. Dir-se-á que se a


vida é boa no seu conjunto teria contudo sido melhor sem o sofrimento,
e que o sofrimento não pode ter sido querido por um Deus de amor? Mas
nada prova que o sofrimento tenha sido querido. Expusemos como aquilo
que aparece, por um lado, como uma imensa multiplicidade de coisas,
em cujo número se conta com efeito o sofrimento, pode mostrar-se, por 278
outro lado; como um acto indivisível; pelo que eliminar uma parte seria
suprimir o todo. Alegar-se-á que o todo teria podido ser diferente, e de tal
modo que a dor não fizesse parte dele; que por conseguinte a vida, ainda
que sendo boa, teria podido ser melhor. De onde se concluirá que se há
realmente um princípio, e se esse princípio é amor, não pode porém tudo,
não é portanto Deus. Mas é aqui precisamente que a questão se põe. Que
significa ao certo a "omnipotência"? Mostrávamos que a ideia de "nada" é
qualquer coisa como a ideia de um quadrado redondo, que se dissipa à
análise para deixar atrás de si somente uma palavra, que se trata, enfim,
de uma pseudo-ideia. Não se passaria o mesmo coin a ideia de "tudo",
quando se pretende designar por meio desta palavra não só o conjunto
do real, mas também o conjunto do possível? Represento-me, em rigor,
qualquer coisa quando me falam da totalidade do existente, mas na tota-
lidade do inexistente não vejo mais que uma montagem verbal. É, pois,
de uma pseudo-ideia, de uma entidade verbal que uma vez mais se extrai
aqui uma objecção. Mas podemos ir mais Songe: a objecção liga-se a toda
uma série de argumentos que implicam um vício radical de método. Cons-
trói-se a priori urna certa representação, convém-se em dizer que se trata
da ideia de Deus; deduzem-se daí, em seguida, os caracteres que o mundo
deveria apresentar; e se o mundo os não apresenta, conclui-se que Deus é
inexistente. Como não ver que, se a filosofia é obra de experiência e de
raciocínio, deverá seguir o método inverso, interrogar ä experiência sobre
o que ela nos pode ensinar de iim Sei' transcendente à realidade sensível
como à consciência humana, e determinar então a natureza de Deus
reflectindo sobre o que a experiência lhe tiver dito? A natureza de
Deus aparecerá, assim, nas próprias razões que tereniós para' crer nü'äüä 279'
existência: renunciaremos a deduzir a sua existência ou a sua não-exis-
tência de uma concepção arbitrária da sua natureza. Se nos pusermos de
acordo sobre este ponto, poderemos falar sem inconveniente da omnipo-
tência divina. Encontramos expressões deste género nos místicos, aos
quais nos endereçamos precisamente a propósito da experiência do

219
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA KELiGlAO

divino. É evidente que eles entendem por isso uma energia sem limites
assinaláveis, uma potência de criar e de amar que ultrapassa toda a imagi
nação. Não evocam decerto um conceito fechado, ainda menos uma defini-
ção de Deus que permita concluir o que é ou deveria ser o mundo.
O mesmo método se aplica a todos os problemas do além. Podemos,
com Platâb, estabelecer a priori uma definição da alma que a torna inde-
componível por ser simples, incorruptível por ser indivisível, imortal ern
virtude da sua essência. Daí passar-se-á, por via de dedução, à ideia de
uma queda das almas no Tempo, depois à de uma reintegração na Eterni-
dade. Que responder àquele que contestar a existência da alma assim
definida? E como poderiam os problemas relativos a uma alma real, à sua
origem real, ao seu destino real, ser resolvidos segundo a realidade, ou
sequer postos em termos de realidade, quando tudo o que se fez foi espe-
cular sobre uma concepção talvez vazia de espírito ou, para encararmos o
melhor dds casos, precisar convencionalmente o sentido da palavra que a
sociedade inscreveu sobre um recorte do real praticado em vista de tor-
nar a conversação mais cómoda? Por isso a afirmação continua a ser tão
estéril como a definição era arbitrária. A concepção platónica não fez
avançar um passo o nosso conhecimento da alma, apesar de dois mil
anos de meditação a seu respeito. Era definitiva como a do triângulo, e
280 pelas mesmas razões. Como não ver, todavia, que se há efectivamente um
problema da alma, é em termos de experiência que deverá ser posto, em
termos de experiência que será progressiva, e sempre parcialmente, resol-
vido? Não voltaremos aqui a um tema que tratámos já noutro lugar. Lem-
bremos apenas que a observação, pelos sentidos e pela consciência, dos
factos normais e dos estados mórbidos nos revela a insuficiência das expli-
cações fisiológicas da memória, a impossibilidade de atribuir a con-
servação das recordações ao cérebro e, por outro lado, a possibilidade de.
seguir traço a traço as dilatações sucessivas da memória, do ponto em
que se estreita de modo a não fornecer mais do que o estritamente
necessário à acção presente, até ao plano extremo onde desdobra na sua
plena inteireza o indestrutível passado: dizíamos metaforicamente que
íamos assim do topo à base do cone. É só pelo seu vértice que o cone se
insere na matéria; assim que o deixamos, entramos num novo domínio.
Que domínio? Digamos que é o espírito, falemos ainda, se se quiser, de
uma alma, mas reformando então a operação da linguagem, incluindo no
termo um conjunto de experiências e não uma definição arbitrária. Deste

220
A RELIGIÃO DINÂMICA

aprofundamento experimental concluiremos pela possibilidade, e até


mesmo pela probabilidade de uma sobrevivência da alma, uma vez que
teremos observado e como que tocado a dedo, cá em baixo, alguma coisa
da sua independência relativamente ao corpo. Tratar-se-á apenas de um
dos aspectos desta independência; ficaremos muito incompletamente
informados sobre as condições dá'sobrevivência e/em particular, sobre a
sua duração: será por um tempo, será para sempre? Mas teremos pelo
menos descoberto um ponto sobre o qual a experiência tem preensão,
e tornar-se-á possível uma afirmação incontestável, bem como um pro-
gresso eventual do nosso conhecimento. Isto, quanto àquilo a que chama- 281
ríamos a experiência deste mundo. Transportemo-nos agora para cima;
teremos uma experiência de um outro género, a intuição mística. Seria
uma participação da essência divina. Pois bem, unir-se-ão as duas expe-
riências? A sobrevivência que parece garantida a todas as almas pelo facto
de, já neste mundo, uma boapárte da stia actividade sei""independente do" • ""
corpo, confundir-se-á com aquela onde vêm, neste mundo já, inserir-se
certas almas privilegiadas? Só um prolongamento e um aprofundamento
das duas experiências no-lo ensinará: o problema tem de permanecer em
aberto. Mas é já alguma coisa termos obtido, em pontos essenciais, um
resultado de uma probabilidade capaz de se transformar em certeza e,
quanto ao resto, no que se refere ao conhecimento da alma e do seu des-
tino, a possibilidade de um progresso sem fim. É verdade que esta solução
não satisfará de início nem uma nem outra das duas escolas que se digla-
diam em torno da definição a priori da alma, afirmando ou negando cate-
goricamente. Os que negam, porque se recusam a erigir em realidade
uma construção talvez vazia do espírito, persistirão na sua negação na
própria presença da experiência que se lhes proporcione, crendo que con-
tinuará a tratar-se da mesma coisa ainda. Os que afirmam não terão^mais

• que desdém por ideias que a si mesmas se declaram provisórias ê per-' - •


fectíveis; não verão nelas outraxoisa senão a suaprópria' tese, diminuída'
e empobrecida. Demorarão tempo a compreender que a sua tese fora
extraída tal qual da linguagem corrente. A sociedade segue, sem dúyida ; •
certas sugestões da experiência interior quando fala da alma; mas forjou
este último termo, tal como todos os outros, tendo apenas em vista a sua
comodidade. Designou por meio dele qualquer coisa que se distingue do
corpo. Quanto mais radical for a distinção, melhor o termo corresponderá
ao seu destino: ora esta distinção não poderia ser mais radical a não ser 282

221
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

que se fizesse das propriedades da alma, pura e simplesmente, negações


das da matéria. Tal é a ideia que o filósofo, demasiadas vezes por intermé-
. dio da linguagem, recebeu já feita e completa da sociedade. Parece repre-
. sentar a espiritualidade mais completa, justamente porque vai até ao fim
de alguma coisa. Mas este alguma coisa é negação apenas. Do vazio nada
se tira, e o conhecimento de uma alma semelhante é naturalmente inca-
paz de progresso; deixando de lado o facto de a ideia soar a oco a partir
do momento em que uma filosofia antagónica a fere. Muito melhor será,
pois, reportarmo-nos às vagas sugestões da consciência das quais partíra-
mos, aprofundá-las, conduzi-las até à intuição clara! Tal é o método que
nós preconizamos. Uma vez mais, não agradará nem a uns nem a outros.
Corremos o risco, ao aplicá-lo, de ficar entalados entre a árvore e a sua
casca. Mas pouco importa. A casca soltar-se-á, se a velha árvore se intu-
mescer sob um novo surto de seiva.

222
CAPÍTULO IV
OBSERVAÇÕES FINAIS
M E C Â N I C A E MÍSTICA 283

Um dos resultados da nossa análise foi distinguir profundamente, no


domínio social, o fechado do aberto. A sociedade fechada é aquela cujos
membros se mantêm entre si, indiferentes ao resto dos homens, sempre
prontos a atacar ou a defenderem-se, em obediência a uma atitude de
combate. Tal é a sociedade humana quando sai das mãos da natureza.
O homem estava feito para ela como a formiga para o formigueiro. Não
devemos forçar talvez a analogia; mas devemos em todo o caso notar
que as comunidades de himenópteros se encontram no extremo de uma
das duas principais linhas da evolução animal, como as sociedades hu-
manas no extremo da outra, e que nesse sentido se contrabalançam. As
primeiras têm sem dúvida uma forma estereotipada, ao passo que as
outras variam; umas obedecem ao instinto, outras à inteligência. Mas se
a natureza, precisamente porque nos fez inteligentes, nos deixou livres
de escolher até um certo ponto o nosso tipo de organização social, impôs-
-nos também que vivêssemos em sociedade. Uma força de direcção cons-
tante, que está para a alma como o peso para o corpo, garante a coesão do
grupo inclinando num mesmo sentido as vontades individuais. Tal é a
obrigação moral. Mostrámos que pode alargar-se na sociedade que se
abre, mas que fora feita para uma sociedade fechada. E mostrámos tam- 284
bém como uma sociedade fechada não pode viver, resistir a certa acção
dissolvente da inteligência, conservar e comunicar a cada um dos seus
membros a confiança indispensável, a não ser por umaireligião prove-
niente da função efabuladora. Esta religião, a que chamámos estática, e
esta obrigação, que consiste numa pressão, são constitutivas da socie-
dade fechada.
Da sociedade fechada à sociedade aberta, da cidade à humanidade,
nunca se passará por via de alargamento. Não são da mesma essência.
A sociedade aberta é a que compreenderia em princípio a humanidade
inteira. Sonhada, de longe em longe, por almas de elite, realiza alguma
coisa de si mesma em sucessivas criações, cada uma das quais, por meio

223
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO

de uma transformação mais ou menos profunda do homem, permite


superar dificuldades até então inultrapassáveis. Mas a seguir a cada uma
delas o círculo momentaneamente aberto volta a fechar-se. Uma parte do
novo vazou-se no molde do antigo; a aspiração individual tornou-se
pressão social; a obrigação recobre o todo. Far-se-ão estes progressos numa
mesma direcção? Será entendido que a direcção é a mesma, a partir do
momento em que se assentou em dizer que é de progressos que se trata.
Cada um deles se definirá então como um passo em frente. 0 que não
será, todavia, mais que uma metáfora, e se houvesse realmente uma direc-
ção preexistente ao longo da qual nos contentássemos com avançar, as
renovações morais seriam previsíveis; não seria necessário, para cada uma
delas, um esforço criador. A verdade é que podemos sempre pegar na
última, defini-la por um conceito, e dizer que as outras continham uma
maior ou menor quantidade daquilo que o seu conceito encerra, que todas
eram, por conseguinte, um encaminhar-se na sua direcção. Mas as coisas
só retrospectivamente tomam esta forma; as mudanças eram qualitati-
vas e não quantitativas; desafiavam qualquer previsão. Contudo, por um
lado, apresentavam ein si mesmas, e não só na sua tradução conceptual,
qualquer coisa de comum. Todas queriam abrir o que estava fechado; o
grupo, que desde a abertura anterior se retraíra em si mesmo, era recon-
duzido a cada nova vez à humanidade. Vamos mais longe: estes esforços
sucessivos não eram precisamente a realização progressiva de um ideai,
uma vez que nenhuma ideia, forjada por antecipação, podia representar
um conjunto de aquisições das quais cada uma, ao criar-se, criaria a sua
ideia; e, contudo, a diversidade dos esforços resumir-se-ia bem em
qualquer coisa de único: um impulso, que resultara em sociedades fecha-
das porque não era capaz de arrastar até mais longe a matéria, mas que
em seguida buscará e retomará, à falta da espécie, esta ou aquela indivi-
dualidade privilegiada. Este impulso é assim continuado por intermédio
de certos homens, cada um dos quais acaba por constituir uma espécie
composta de um só indivíduo. Se o indivíduo tiver plena consciência do
facto, se a franja de intuição que rodeia a sua inteligência se alargar o
suficiente para se aplicar inteiramente ao seu objecto, será a vida mística.
A religião dinâmica que assim surge opõe-se à religião estática, saída da
função efabuladora, como a sociedade aberta à sociedade fechada. Mas
do mesmo modo que a nova aspiração moral só toma corpo tomando de
empréstimo à sociedade fechada a sua forma natural, que é a obrigação,

224
OBSERVAÇÕES FINAIS

assim a religião dinâmica se propaga apenas por meio das imagens e dos
símbolos que a função efabuladora fornece. Inútil voltarmos a estes dife-
rentes pontos. Queríamos simplesmente vincar a distinção que tínhamos
feito entre a sociedade aberta e a sociedade fechada.
Quando a consideramos devidamente, vemos que grandes problemas
se dissipam, que outros s e p õ e m em termos novos. Quando se procede à'
crítica ou à apologia da religião, ter-se-á sempre em conta aquilo que a
religião tem de especificamente religioso? Adoptam-se ou recusam-se
narrativas das quais ela talvez tenha necessidade para obter um estado
de alma que se propaga; mas a religião é essencialmente esse mesmo
estado. Discutem-se as definições que põe e as teorias que expõe; serviu-
-se, com efeito, de uma metafísica para se dar um corpo; mas teria podido
em rigor tomar uma outra, e até mesmo não tomar metafísica alguma.
O erro está em crer que se passa, por aumento ou por aperfeiçoamento,
do estático ao dinâmico, dta demonstração ou da efabulação, ainda que
verídica, à intuição. Confunde-se assim a coisa com a sua expressão ou
com o seu símbolo. Tal é o erro comum de um intelectualismo radical.
Voltamos a encontrá-lo quando passamos da religião à moral. Há uma
moral estática, que existe de facto, num momento dado, numa sociedade
dada, e que se fixou nos costumes, nas ideias, nas instituições; o seu
carácter obrigatório reconduz-se, em última análise, à exigência, pela natu-
reza, da vida em comum. Há, por outro lado, uma moral dinâmica que é.
impulso, e que se liga à vida em geral, criadora da natureza que criou a
exigência social. A primeira obrigação, enquanto pressão, é infra-racional.
A segunda, enquanto aspiração, é supra-racional. Mas a inteligência sobre-
vêm. Procura o motivo de cada uma das prescrições, quer dizer o seu
conteúdo intelectual; e como é sistemática, crê que o problema é o da
recondução de todos os motivos morais a um só. Não tem de resto outro
embaraço senão o da escolha. Interesse geral, interesse pessoal, amor-
-próprio, simpatia, piedade, coerência racional, etc., não há princípio dc
acção do qual não seja mais ou menos possível deduzir-se a moral geral-
mente admitida. É verdade que a facilidade da operação e o carácter sim-
plesmente aproximativo do resultado que dá nos deveriam servir de pre-
venção contra ela. Se regras de conduta quase idênticas se deixam extrair
melhor ou pior de princípios tão diferentes, é provavelmente por nenhum
dos princípios ser tomado naquilo que tem de específico. O filósofo tora
colhê-lo a um meio social, onde tudo se compenetra, em que o egoísmo e

225
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

a vaidade se lastram de sociabilidade: nada tem, pois, de surpreendente


que encontre em cada um deles a moral que lá foi posta ou deixada. Mas
a própria moral continua por explicar, uma vez que teria sido preciso
escavar a vida social enquanto disciplina exigida.pela natureza, e escavar
a própria natureza enquanto criada pela vida em geral. Chegar- se ia assim
à raiz mesma da moral, que o puro intelectualismo em vão procura: este
último não pode senão dar conselhos, alegar razões que nada nos impe-
dirá de combater por meio de outras razões. Para dizer a verdade, suben-
tende sempre que o motivo por ele invocado é "preferível" aos outros,
que há entre os motivos diferenças de valor, que existe um ideal geral ao
qual o real pode ser referido. Assegura-se, portanto, um refúgio na teoria
platónica, com uma Ideia do Bem que domina todas as outras: as razões
de agir escalonar-se-iam abaixo da Ideia do Bem, sendo as melhores as
que mais se aproximassem daquela; a atracção exercida pelo Bem seria o
princípio da obrigação. Mas tolher-nos-á, então, um grande embaraço se
tivermos de dizer por que sinal reconhecemos que uma conduta é mais
ou menos próxima do Bem ideal: se o soubéssemos, o sinal seria o essen-
cial e a Ideia do Bem tornar-se-ia inútil. Igual dificuldade teríamos em
288 explicar como cria esse ideal uma obrigação imperiosa, sobretudo a mais
estrita entre todas as obrigações, a que se associa ao costume nas socie-
dades primitivas essencialmente fechadas. A verdade é que um ideal não
pode tornar-se obrigatório se não for já actuante; e então não é a sua ideia
que obriga, mas a sua acção. Ou antes, o ideal não será mais que a palavra
por meio da qual designamos o efeito supostamente último dessa acção,
sentida como contínua, o termo hipotético do movimento que nos arre-
bata já. No fundo de todas as teorias encontramos, portanto, as duas ilu-
sões que muitas vezes denunciámos. A primeira, muito geral, consiste
em representarmos o movimento como a diminuição gradual de um inter-
valo entre a posição do móbil, que é uma imobilidade, e o seu termo
supostamente atingido, que é imobilidade também, enquanto as posiçõe.s
não são mais que visões que o espírito tem do movimento indivisível:
daqui a impossibilidade de restabelecermos a mobilidade verdadeira, quer
dizer, as aspirações e as pressões que constituem, indirecta ou directa-
mente, a obrigação. A segunda diz mais especialmente respeito à evolução
da vida. Porque um processo evolutivo foi observado a partir de uin certo
ponto, quer-se que esse ponto tenha sido atingido pelo mesmo processo
evolutivo, quando a evolução anterior pode ter sido diferente, quando

226
OBSERVAÇÕES FINAIS

pode mesmo não ter até então havido evolução. Porque constatamos um
enriquecimento gradual da moral, queremos que não haja moral pri-
mitiva, irredutível, aparecida com o homem. E, contudo, devemos estabe-
lecer esta moral original ao mesmo tempo que a espécie humana, e
atribuir no começo uma sociedade fechada.
Agora, a distinção entre o fechado e o aberto, necessária para resolver -
ou suprimir os problemas teóricos, poderá servir-nos praticamente? Seria
sem grande utilidade se a sociedade fechada se tivesse constituído sempre 289
voltando a fechar-se depois de se ter momentaneamente aberto. Bem
poderíamos então remontar indefinidamente no passado, nunca chega-
ríamos ao primitivo; o natural não seria mais que uma consolidação do
adquirido. Mas acabamos de o dizer, a verdade é completamente outra.
Há uma natureza fundamental e há aquisições que, sobrepondo-se à natu-
reza, a imitam sem se confundirem com ela. Pouco a pouco, transporlar-
-nos-íamos a uma sociedade fechada original, cujo plano geral aderiria ao ,
desenho da nossa espécie como o formigueiro à formiga, com a diferença,
porém, de no segundo caso ser o pormenor da organização social que é
dado de antemão, ao passo que no outro há apenas as grandes linhas,
algumas direcções, apenas o que basta de prefiguração natural para asse-
gurar imediatamente aos indivíduos um meio social apropriado. O conhe-
cimento deste plano nâo ofereceria hoje, sem dúvida, mais que um inte-
resse histórico se as suas disposições tivessem sido eliminadas por outros.
Mas a natureza é indestrutível. Engana-se quem diz "quando se expulsa o
natural, este regressa a galope", porque o natural não se deixa expulsar.
Está sempre presente. Sabemos o que devemos pensar da transmissibili-
dade dos caracteres adquiridos. É pouco provável que alguma vez um
hábito se transmita: se tal facto se produz, liga-se ao encontro acidental
de um tão grande número de condições favoráveis que não se repetirá
decerto de maneira a implantar o hábito na espécie. É nos.costumes, nas.,,. , . ..
instituições, na própria linguagem que se depositam asaquisições morais; .
estas comunicam-se em seguida através de uma educação de todos os
instantes; assim passam, de geração em geração hábitos que acabamos
por crer hereditários. Mas tudo conspira no sentido de encorajar a falsa
interpretação: um amor-próprio mal colocado, um optimismo superfi- 290
ciai, um desconhecimento da verdadeira natureza do progresso, enfim e
sobretudo uma confusão muito difundida entre a tendência inata, que é
de facto transmissível do pai para o filho, e o hábito adquirido que veio

227
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO

muitas vezes enxertar-se na tendência natural. Não é duvidoso que esta


crença tenha pesado na própria ciência positiva que a aceitou do senso
comum, apesar do número restrito e do carácter discutível dos factos
invocados em seu apoio, e que a remeteu de novo para o senso comum
reforçando-a com a sua autoridade indiscutida. Nada mais instrutivo a
este respeito do que a obra biológica e psicológica de Herbert Spencer.
Esta assenta quase inteiramente na ideia da transmissão hereditária dos
caracteres adquiridos. Impregnou, durante o seu tempo de popularidade,
o evolucionismo dos cientistas. Ora não passava em Spencer da generali-
zação de uma tese, apresentada nos seus primeiros trabalhos, sobre o
progresso social: o estudo das sociedades começara por ser a sua preo-
cupação exclusiva; só tarde chegaria à abordagem dos fenómenos da vida.
E assim que uma sociologia que imagina tomar de empréstimo da biologia
a ideia de uma transmissão hereditária do adquirido se limita a retomar
o que de início lhe emprestara. A tes! filosófica indemonstrada assumiu
um falso ar de segurança científica passando pela ciência, mas continua
a ser filosofia, e está mais longe do que nunca de se encontrar demons-
trada. Atenhamo-nos, pois, aos factos que podemos comprovar e às pro-
babilidades que sugerem: consideramos que se se eliminasse do homem
actual o que nele depôs uma educação de todos os instantes, o descobri-
ríamos idêntico, ou quase, aos seus antepassados mais longínquos
Que conclusão tiraremos daqui? Uma vez que as disposições da espé-
cie subsistem, imutáveis, no fundo de cada um de nós, é impossível que o
moralista e o sociólogo não devam tê-las em conta. Só a um pequeno
número, decerto, foi dado escavar primeiro abaixo do adquirido, e depois
da natureza, até se recolocar no próprio impulso da vida. Se semelhante
esforço pudesse generalizar-se, não teria sido na espécie humana, nem

' Dizemos "ou quase", porque é preciso ter em conta as variações que o ser vivo
executou, cie certo modo, sobre o tema fornecido pelos seus progenitores. Mas, sendo
estas variações acidentais e produzindo-se em não importa que sentido, não podem adi-
cionar-se. na sucessão dos tempos de maneira a modificar a espécie. Sobre a tese da
transmissibilidade dos caracteres adquiridos, e sobie uni evolucionismo que nela se fun-
dasse, ver L'Évolution créatrice (cap. i).
Acrescentemos, como já fizemos notar, que o salto brusco que deu a espécie humana
pode ter sido tentado em mais do que urn ponto do espaço e do tempo com um sucesso
incompleto, desembocando assirn em "homens", a que podemos dar esse nome se quiser-
mos, mas que não são necessariamente nossos antepassados.

228
OBSERVAÇÕES FINAIS

por conseguinte numa sociedade fechada, que o impulso se teria detido


como num beco. Nem por isso é menos verdade que aqueles privilegia-
dos quereriam arrastar consigo a humanidade; não podendo comunicar
a todos o seu estado de alma no que tem de profundo, transpõem-no
superficialmente; procuram uma tradução do dinâmico em estático que
a sociedade seja capaz de aceitar e tornar definitiva através da educação.
Ora, só serão bem sucedidos na medida em que tiverem tomado a natu-
reza em consideração. A humanidade não poderia forçar esta natureza
no seu conjunto. Mas pode contorná-la. E só a contornará se lhe conhecer
a configuração. A tarefa seria difícil, se levá-la a cabo exigisse o estudo da
psicologia em geral. Mas trata-se apenas de um ponto particular; a natu-
reza humana enquanto predisposta para uma certa forma social. Dize-
mos que há uma sociedade humana natural, vagamente prefigurada em
nós, cujo esquema a natureza cuidou de nos fornecer de antemão, tendo
sido deixada toda a latitude à nossa inteligência è à nossa vontade no que 292
se refere à observância das indicações fornecidas. Este esquema vago e
incompleto corresponderia, no domínio da actividade razoável e livre, ao
que é o desenho, desta feita preciso, do formigueiro ou da colmeia no
caso do instinto, no outro ponto terminal da evolução. Portanto, não se
trataria senão de redescobrir um esquema simples.
Mas como redescobri-lo, se o adquirido recobre o natural? A nossa
resposta ver-se-ia embaraçada, se tivéssemos de fornecer um meio de
investigação automaticamente aplicável. A verdade é que devemos pro-
ceder por aproximação e recorte, seguir ao mesmo tempo vários métodos
diferentes, cada um dos quais não conduziria mais que a possibilidades
ou probabilidades; interferindo entre si, os resultados neutralizar-se-ão
ou reforçar se-ão mutuamente; haverá verificação e correcção recípro-
cas. Assim, ter-se-ão em conta os "primitivos", sem esquecer que também
neles uma camada de aquisições recobre a natureza, ainda que se trate de
uma camada talvez menos espessa do que no nosso caso. Observar-se-ão
as crianças, sem esquecer que a natureza contemplou as diferenças de
idade, e que o natural da infância não é necessariamente o natural
humano; sobretudo, a criança imita, e o que nela nos parece espontâneo
é muitas vezes o efeito de uma educação que lhe damos sem disso nos
darmos conta, Mas a fonte de informação por excelência será a intros-
pecção. Teremos de partir em busca desse fundo de sociabilidade, e tam-
bém de insociabilidade, que surgiria à nossa consciência se a sociedade

229
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO

constituída não tivesse posto em nós os hábitos e disposições que nos


adaptam a ela. fá só de longe em longe temos a sua revelação, num relâm-
pago. Teremos de a reevocar e de a fixar.

293 Digamos, antes de mais, que o homem foi feito para sociedades peque-
nas. Admite-se geralmente que assim tenham sido as sociedades primiti-
vas. Mas devemos acrescentar que o antigo estado de alma subsiste, dis-
simulado sob hábitos sem os quais não haveria civilização. Recalcado,
impotente, permanece todavia nas profundidades da consciência. Se não
chega a obter actos, manifesta-se por meio de palavras. Numa grande
nação, as comunas podem ser administradas com a aprovação da gene-
ralidade; mas que governo se decidirão os governados a declarar bom?
Considerarão louvá-lo o suficiente quando disserem que é o menos mau
de todos e, nesse sentido, apenas o melhor. É que aqui o descontentamento
é congénito. Notemos que a arte de governar um grande povo é a única
para a qual não existe técnica preparatória, nem educação eficaz, sobre-
tudo no que se refere às funções mais elevadas. A extrema raridade dos
homens políticos de certa envergadura liga-se ao facto de terem de resol-
ver a todo o momento, em pormenor, um problema que a extensão assu-
mida pelas sociedades talvez tenha tornado insolúvel. Estudemos a
história das grandes nações modernas: encontraremos nela numerosos
grandes sábios, grandes artistas, grandes soldados, grandes especialistas
em todas as matérias, mas quantos grandes homens de Estado?
A natureza, que quis sociedades pequenas, abriu contudo a porta ao
seu crescimento. Porque quis também a guerra, ou pelo menos criou
para o homem condições de vida que tornavam a guerra inevitável. Ora,
as ameaças de guerra podem determinar várias sociedades pequenas a
unir-se para enfrentarem o perigo comum. É verdade que Jais uniões
raramente são duradouras. Desembocam em todo o caso nuína reunião
de sociedades que é da mesma ordem de grandeza que cada uma delas.
294 É antes num outro sentido que a guerra está na origem dos -impérios.
Estes nasceram da conquista. Ainda que a guerra não visasse inicialmente
a conquista, é a uma conquista que acaba por levar, tão cómodo o vence-
dor considera apropriar-se das terras do vencido e, até, das suas popula-
ções, a f i m de poder aproveitar-se do seu trabalho. Assim se formaram
outrora os grandes impérios asiáticos. Todos eles caíram em deconv
posição, sob influências diversas, e na realidade porque eram demasiado

230
OBSERVAÇÕES FINAIS

grandes para viver. Quando o vencedor concede às populações subjuga


das uma aparência de independência, a reunião dura mais tempo, como
o testemunha o caso do império Romano. Mas não é duvidoso que o
instinto primitivo subsista, que continue a exercer a sua acção disruptiva.
Basta deixá-lo agir para que a construção política se desmorone. Foi assim
que a feudalidade surgiu em países diferentes, na sequência de aconteci
mentos diferentes, em condições diferentes; de comum só houve a supres-
são da força que impedia a sociedade de se desagregar; depois, a desagre-
gação fez-se por si só. Se nos tempos modernos puderam constituir-se
solidamente grandes nações, foi porque a coerção, força de coesão que se
exerce do exterior e de cima para baixo sobre a sociedade, foi cedendo
pouco a pouco lugar a um princípio de união que sobe do fundo de cada
uma das sociedades elementares reunidas, quer dizer da própria região
das forças disruptivas às quais se trata de opor uma resistência ininter-
rupta. liste princípio, só ele capaz de neutralizar a tendência para a desa-
gregação, é o patriotismo. Os antigos conheceram-no bem; adoravam a
pátria, e foi um dos seus poetas que disse que era doce morrer por ia.
Mas a distância é grande entre este apego à cidade, grupo ainda colocado
sob a invocação do deus que o assiste 110 combate, e o patriotismo que t
uma virtude de paz tanto como de guerra, que pode tingir-se de misticí- 295
dade mas que não mistura na sua religião cálculo algum, que cobre um
grande país e levanta uma nação, que chama a si o que há de melhor nas
almas, que enfim se compôs lentamente, piedosamente, com recordações
e esperanças, com poesia e amor, com um pouco de todas as belezas mo-
rais que há debaixo do céu, à maneira do mel com as flores. Era necessário
um sentimento tão elevado, imitador do estado místico, para prevalecer
sobre um sentimento tão profundo como o egoísmo da tribo.
Agora, qual é o regime de uma sociedade que sai das mãos da natu-
reza? É possível que a humanidade tenha começado de facto por agrupa-
mentos familiares, isolados e dispersos. Mas esses grupos seriam quando
muito sociedades embrionárias, e o filósofo não deve procurar neles as
tendências essenciais da vida social do mesmo modo que o naturalista
não se informará sobre os hábitos de uma espécie atendendo apenas ao
embrião. É necessário considerar a sociedade no momento em que ela se
encontra completa, quer dizer capaz de se defender e, por conseguinte,
por pequena que seja, organizada para a guerra. Qual será então, neste
sentido preciso, o seu regime natural? Se não fosse profanar as palavras

231
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO

gregas aplicá-las a uma barbárie, diríamos que é monárquico ou oligár-


quico, provavelmente as duas coisas ao mesmo tempo. Um e outro regime
confundem-se no estado rudimentar: é preciso um chefe, e não há comu-
nidade sem privilegiados que.tomem de empréstimo do chefe qualquer
coisa do seu prestígio, ou que lho dêem, ou antes que o recebam, com ele,
de alguma potência sobrenatural. O comando é absoluto de um lado, a
obediência é absoluta do outro. Dissemos muitas vezes que as sociedades
humanas e as sociedades de himenópteros ocupavam os extremos das
duas linhas principais da evolução biológica. Deus nos guarde de as assi-
296 milarmos uma à outra! O homem é inteligente e livre. Mas devemos ter
sempre presente que a vida social se encontrava compreendida no piano
de estrutura da espécie humana como no da abelha, que era necessária,
que a natureza não pôde confiar-se exclusivamente nas nossas vontades
livres, que por isso teve de fazer as coisas de maneira a que um só ou só
alguns comandassem, enquanto os outros obedeciam. No mundo dos
insectos, a diversidade das funções sociais está ligada a uma diferença de
organização; há "polimorfismo". Diremos então que nas sociedades
humanas há "dimorfismo", já não físico e psíquico ao mesmo tempo como
no insecto, mas apenas psíquico? É o que cremos, na condição, todavia,
de ficar entendido que este dimorfismo não separa os homens em duas
categorias irredutíveis, nascendo uns chefes e outros súbditos. O erro de
Nietzsche foi acreditar numa tal separação: de um lado os "escravos",
do outro os "senhores". A verdade é que o dimorfismo faz, as mais das
vezes, de cada um de nós, ao mesmo tempo, um chefe que tem o instinto
de comandar e um súbdito que está pronto a obedecer, ainda que a se-
gunda tendência prevaleça a ponto de se tornar a única aparente entre a
maioria dos homens. É comparável ao dos insectos na medida ern que
implica duas organizações, dois sistemas indivisíveis de qualidades (algu-
mas das quais seriam defeitos aos olhos do moralista): optamos por um
sistema ou por outro, não em pormenor, como aconteceria se se tratasse
de.contrair hábitos, mas de uma só vez, de modo caleidoscópico, tal como
resulta de um dimorfismo natural, inteiramente comparável ao do em-
brião que tem a escolha entre os dois sexos. É do que temos uma visão
nítida em tempos de revolução. Cidadãos modestos, até então humildes e
297 obedientes, despertam uma manhã com a pretensão de serem condu-
tores de homens. O caleidoscópio, que se mantivera fixo, girou um grau
e houve metamorfose. O resultado é algumas vezes bom: revelaram-se,

232
OBSERVAÇÕES FINAIS

assim, grandes homens de acção que ignoravam, eles mesmos, que o eram.
Mas é em geral perturbador. Em seres honestos e mansos surge de súbito
uma personalidade inferior, feroz, que é a de um chefe falhado. E aqui
aparece um traço característico do "animal político" que é o homem.
Não chegaremos, com efeito, ao ponto de dizer que um dos atributos
do chefe que dorme nó fundo âë nós seja a ferocidade. Mas é certo que a
natureza, que massacra os indivíduos ao mesmo tempo que engendra as
espécies, deve ter querido implacável o chefe quando previu os chefes.
A história inteira o testemunha. Hecatombes inauditas, precedidas dos
piores suplícios, foram ordenadas com um perfeito sangue-frio por
homens que no-lo contam eles próprios, gravando-o na pedra. Dir-se-á
que tais coisas se passavam em tempos muito antigos. Mas se a forma
mudou, se o cristianismo pôs fim a certos crimes, ou conseguiu pelo
menos que estes deixassem de ser reclamados como título de glória, o
, ; . j c; - toucs i- ues^f b • • •.- I..'*.. ••<?, .... ^ M„v.
assassínio continua com demasiada rrequencia a ser a ratio ultima, quan-
do não a prima, da política. Monstruosidade, sem dúvida, mas pela qual a
natureza é tão responsável como o homem. Com efeito, a natureza não
dispõe nem da prisão nem do exílio; não conhece senão a condenação à
morte. Seja-nos permitido evocar uma recordação. Aconteceu-nos ver
nobres estrangeiros, vindos de longe mas vestidos como nós, falando
francês como nós, passearem, afáveis e amáveis, pelo meio de nós. Pouco
tempo depois sabíamos por um jornal que, regressados ao seu país e
filiados em partidos diferentes, um dos dois mandara enforcar o outro,
com todo o aparato da justiça, simplesmente para se desembaraçar de 298
um adversário incómodo. Ao relato juntava-se a fotografia do patíbulo.
0 correcto homem de sociedade, semi nu, balouçava no ar diante dos
olhos da multidão. Visão de horror! O instinto político original declarara-
-se entre "civilizados" para fazer explodir a civilização e deixar passar a
natureza. Homens que se julgariam obrigados a proporcionar o castigo
à ofensa, caso estivessem perante um culpado, passam directamente a
dar a morte ao inocente quando a política se faz ouvir. Do mesmo modo,
as abelhas operárias apunhalam os machos quando consideram que a
colmeia deixa de precisar deles.
Mas deixemos de lado o temperamento do "chefe", e consideremos os
sentimentos respectivos dos dirigentes e dos dirigidos. Estes sentimentos
serão mais nítidos onde a linha de demarcação for mais visível, numa
sociedade já grande que tenha crescido sem modificação radical da

2
33
AS f K J A S FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

"sociedade natural". A classe dirigente, na qual incluiremos o rei se houver


um rei, pode ter sido recrutada de caminho por métodos diferentes: mas
crer-se-á sempre de uma raça superior. O que nada tem de surpreendente.
O mais surpreendente para nós, porém, se não tivéssemos presente o
dimorfismo do homem social, é o facto de o próprio povo se mostrar
persuadido dessa superioridade inata. A oligarquia dedica-se sem dúvida
a cultivar esse sentimento. Se deve a sua origem à guerra, acreditará e
fará acreditar em virtudes militares que seriam nela congénitas, que se
transmitiriam hereditariamente. Conserva, aliás, uma real superioridade
de força, graças à disciplina que se impõe, e às medidas que toma para
impedir a classe inferior de por sua vez se organizar. A experiência deve-
ria, contudo, mostrar em semelhante caso aos dirigidos que os dirigentes
299 são feitos da mesma massa que eles. Mas o instinto resiste. Só começa a
ceder quando a própria classe superior a isso o convida. Ora o faz
involuntariamente, através de uma incapacidade evidente, de abusos tão
gritantes que desencoraja a fé nela posta. Ora o convite é voluntário, uma
vez que estes ou aqueles de entre os seus membros se viram contra ela,
muitas vezes por ambição pessoal, algumas vezes por um sentimento de
justiça: quando se debruçam sobre a classe inferior, dissipam então a
ilusão que a distância mantinha. Houve assim nobres que colaboraram
na Revolução de 1789, que aboliu os privilégios de sangue. De uma ma-
neira geral, a iniciativa dos assaltos conduzidos contra a desigualdade
- justificada ou injustificada - veio sobretudo de cima, do meio dos mais
beneficiados, e não de baixo, como teríamos podido esperar se em
presença estivessem apenas interesses de classe. Foram assim burgueses,
e não operários, a desempenhar o papel preponderante nas revoluções
de 1830 e de 1848, dirigidas (sobretudo a segunda) contra o privilégio da
riqueza. Mais tarde foram homens da classe instruída que reclamaram a
instrução para todos. A verdade é que se uma aristocracia acredita natural-
mente, religiosamente, na sua superioridade nativa, o respeito que inspira
é não menos religioso, não menos natural.
Compreende-se, portanto, que a humanidade só tarde tenha chegado
à democracia (porque foram falsas democracias as cidades antigas, edifica-
das sobre a escravatura, desembaraçadas por meio dessa iniquidade fun
damental dos problemas maiores e mais angustiantes). De todas as con-
cepções políticas é ela, na realidade, a mais afastada da natureza, a única
que transcende, pelo menos em intenção, as condições da "sociedade

234 f
OBSERVAÇÕES FINAIS

fechada". Atribui ao homem direitos invioláveis. Estes direitos, para per-


manecerem inviolados, exigem da parte de todos uma fidelidade inal- 300
terável ao dever. Toma por matéria, pois, um homem ideal, respeitador
dos outros como de si mesmo, inserindo-se em obrigações que tem por
absolutas, coincidindo de tal maneira com esse absoluto que já não pode-
mos dizer se é o dever que confere o direito ou 'o direito que impõe ò
dever. O cidadão assim definido é ao mesmo tempo "legislador e súbdito",
para falarmos como Kant. O conjunto dos cidadãos, quer dizer o povo, é
portanto soberano. Tal é a democracia teórica. Proclama a liberdade, recla-
ma a igualdade, e reconcilia estas duas irmãs inimigas lembrando-lhes
que são irmãs, pondo acima de tudo a fraternidade. Se tomarmos nesta
perspectiva a divisa republicana, descobriremos que o terceiro termo
levanta a contradição tantas vezes assinalada entre os outros dois, e que a
fraternidade é o essencial: o que permitiria dizer que a democracia é de
essência evangélica, e que terá o amor por motor. Descobriríamos as suas
origens sentimentais na alma de Rousseau, os princípios filosóficos na
obra de Kant, o fundo religioso em Rousseau e em Kant conjuntamente:
é sabido o que Kant deve ao seu pietismo, Rousseau a um protestantismo
e a um catolicismo ambos interferentes. A Declaração de Independência
americana (1776), que serviu de modelo à Declaração dos Direitos do
Homem em 1 7 9 1 , tem, além disso, ressonâncias puritanas: "Temos por
evidente... que todos os homens foram dotados pelo seu Criador de certos
direitos inalienáveis..., etc." As objecções 1 extraídas do que há de vago na
fórmula democrática provêm do facto de se ter desconhecido o seu
carácter originalmente religioso. Como pedir uma definição precisa da
liberdade e da igualdade, quando o futuro deve permanecer aberto a todos
os progressos, nomeadamente à criação de condições novas onde se torna-
rão possíveis formas de liberdade e de igualdade hoje irrealizáveis, talvez 301
inconcebíveis? Tudo o que-é possível é traçar quadros, e estes serão cada
vez melhor preenchidos s"e a fraternidade o providenciar. Ama, et fac
quod vis. A fórmula de uma sociedade não democrática, que quisesse que
a sua divisa correspondesse, termo a termo, à da-democracia, seria "Autov
ridade, hierarquia, fixidez". Eis pois a democracia na sua essência. É óbvio
que nela devemos ver simplesmente um ideal, ou antes uma direcção
segundo a qual encaminhar a humanidade. Em primeiro lugar, foi sobre-
tudo como protesto que se introduziu no mundo. Cada uma das frases da
Declaração dos Direitos do Homem é um desafio lançado a um abuso.

235
AS DUAS FONTES DA M O R A L E DA RELIGIÃO

Tratava-se de pôr f i m a sofrimentos intoleráveis. Resumindo os agravos


apresentados nos cadernos dos Estados Gerais, Emile Faguet escreveu
algures que a Revolução não se fizera pela liberdade e pela igualdade,
mas simplesmente "porque se morria de fome". A supormos que seja
exacto, seria necessário explicar porque foi só a partir de um certo mo
mento que não se quis "morrer de fome". Nem por isso é menos verdade
que se a Revolução formulou o que devia ser, foi para afastar o que era.
Ora acontece que a intenção na qual uma ideia foi lançada a ela perma-
neça invisivelmente aderente, como à flecha a sua direcção. As fórmulas
democráticas, enunciadas de início como um pensamento de protesto,
ressentiram-se da sua origem. Mostram-se cómodas para impedir, para
rejeitar, para derrubar; é menos fácil extrair delas uma indicação posi-
tiva do que se deve fazer. Sobretudo, só se tornam aplicáveis se as trans-
pusermos, absolutas e quase evangélicas, em termos de moralidade pura-
mente relativa, ou antes de interesse geral; e a transposição corre sempre
o risco de introduzir uma inflexão no sentido dos interesses particulares.
302 Mas é inútil enumerarmos as objecções levantadas contra a democracia e
as respostas que lhes são dadas. Quisemos simplesmente mostrar no
estado de alma democrático um grande esforço em sentido inverso ao da
natureza.
Acabamos, assim, de indicar alguns traços da sociedade natural. Estes
combinam-se e compõem-lhe uma fisionomia que se interpretará sem
dificuldade. Ensimesmamento, coesão, hierarquia, autoridade absoluta
do chefe, tudo isto significa disciplina, espírito de guerra. A natureza
terá querido a guerra? Repitamos, uma vez mais, que a natureza nada
quis, se por vontade entendermos uma faculdade de tomar decisões par-
ticulares. Mas não pode estabelecer uma espécie animal sem desenhar
implicitamente as atitudes e movimentos que resultam da sua estrutura
e que são seus prolongamentos. Foi neste sentido que os quis. Dotou o
homem de uma inteligência fabricadora. Em vez de lhe fornecer instru-
mentos, como fez no caso de bom número de espécies animais, preferiu
que fosse ele próprio a construí-los. Ora o homem tem necessariamente a
propriedade dos seus instrumentos, pelo menos enquanto deles se serve.
Mas porque são desligados dele, podem ser-lhe tomados; tomá-los já feitos
é mais fácil que fazê-los. Sobretudo, devem agir sobre uma matéria, servir
de armas de caça ou de pesca, por exemplo; o grupo do qual o homem é
membro terá afirmado os seus direitos sobre uma floresta, um lago, um

236 \
OBSERVAÇÕES FINAIS

rio; por sua vez, um outro grupo poderá considerar também mais con-
veniente instalar-se nesse mesmo lugar que procurar um outro. A partir
desse momento, será necessário combater. Estamos a falar de uma floresta
onde se caça, de um lago onde se pesca: poderão ser também terras a
cultivar, mulheres a tomar, escravos a obter. Do mesmo modo,; será
também por razões variáveis que se justificará o que for feito. Mas pouco 303
importa a coisa que se toma e o motivo que de tal se dá: a origem da
guerra é a propriedade, individual ou colectiva, e como a humanidade
está predestinada à propriedade pela sua estrutura, a guerra é natural.
O instinto guerreiro é tão forte que é o primeiro a aparecer quando rasga-
mos a crosta da civilização em busca da natureza. É sabido como os rapa-
zes pequenos gostam de bater-se. Receberão golpes. Mas terão tido a satis-
fação de aplicar outros. Tem sido dito, com razão, que os jogos da criança
são os exercícios preparatórios a que a natureza a convida em vista da
tarefa que incumbe ao homem feito. M a l podemos ir mais longe, e ver
exercícios preparatórios ou jogos na maior parte das guerras registadas
pela história. Quando consideramos a futilidade dos motivos que provo-
caram bom número de entre elas, pensamos nos duelistas de Marion
Delorme que se matavam uns aos outros "por nada, só pelo prazer", ou
ainda no irlandês citado por Lord Bryce, que não podia ver dois homens
trocar murros na rua sem perguntar: "É um assunto privado, ou pode-se
entrar na partida?" Em compensação, se confrontarmos as querelas aci-
dentais com as guerras decisivas, que culminaram no aniquilamento de
um povo, compreendemos que as segundas foram a razão de ser das pri-
meiras: era necessário um instinto de guerra, e porque este existia em
vista de guerras ferozes a que poderíamos chamar naturais, uma massa
de guerras acidentais teve lugar, simplesmente para impedir a arma de
ganhar ferrugem. - Pensemos agora na exaltação dos povos no início de
uma guerra! Há aqui sem dúvida uma reacção defensiva contra o medo,
uma estimulação automática das coragens. Mas há também o sentimento
de se ter sido feito para uma vida de risco e de aventura, como se a paz
não fosse mais que uma pausa entre duas guerras. A exaltação em breve 304
cai, porque o sofrimento é grande. Mas se deixarmos de parte a última
guerra, cujo horror superou tudo o que se cria possível, é curioso ver
como os sofrimentos da guerra depressa se esquecem durante a páz. Pre
tende-se que existem na mulher mecanismos específicos de esquecimento
no que se refere às dores do parto: uma recordação demasiado completa

237
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO

impedi-la-ia de querer recomeçar. Algum mecanismo do mesmo género


parece deveras funcionar no que se refere aos horrores da guerra, sobre-
tudo entre os povos jovens. - A natureza tomou sob este aspecto outras
precauções ainda. Interpôs entre os estrangeiros e nós um véu habilmente
tecido de ignorâncias, de prevenções e de preconceitos. Que não se
conheça um país onde nunca se foi, o facto nada tem de surpreendente.
Mas que, não o conhecendo, o julguemos, e quase sempre desfavoravel-
mente, é já um facto que reclama explicação. Quem quer que tenha vivido
fora do seu país, e querido a seguir iniciar os seus compatriotas naquilo a
que chamamos uma "mentalidade" estrangeira, pôde constatar neles uma
resistência instintiva. A resistência não é mais forte quando se trata de
um país mais longínquo. Muito pelo contrário, variará antes na razão
inversa da distância. Aqueles que é mais provável encontrarmos são os
que menos queremos conhecer. Foi assim que a natureza arranjou ma-
neira de fazer de todo o estrangeiro um inimigo virtual, porquê se um
perfeito conhecimento recíproco não é necessariamente simpatia, exclui
pelo menos o ódio. Pudemos comprová-lo durante a última guerra. Certo
professor de alemão era tão bom patriota, tão pronto a sacrificar a sua
vida, até mesmo tão "arrebatado" contra a Alemanha como qualquer outro
francês, mas não era a mesma coisa. Havia um canto reservado que subsis-
305 tia. Aquele que conhece a fundo a língua e a literatura de um povo não
pode ser completamente seu inimigo. Deveríamos tê-lo presente quando
pedimos à educação que prepare um entendimento entre as nações.
O domínio de uma língua estrangeira, tornando possível uma impregna-
ção do espírito pela literatura e pela civilização correspondentes, pode
fazer cair de um só golpe a prevenção querida pela natureza contra o
estrangeiro em geral. Mas não temos de enumerar aqui todos os efeitos
exteriores visíveis da prevenção oculta. Digamos apenas que as duas
máximas opostas Homo homini deus e Homo homini lupus se conciliam
azadamente. Quando se formula a primeira, pensa-se nalgum compa-
triota. A outra reporta-se aos estrangeiros.
Acabamos de dizer que a par das acidentais há guerras essenciais,
para as quais parece ter sido feito o instinto guerreiro. A este número
pertencem as guerras de hoje. Cada vez menos se procura conquistar por
conquistar. Já não se combate pelo amor-próprio ferido, pelo prestígio,
pela glória. Combate-se, ao que nos dizem, para não se ser reduzido à
fome, mas na realidade para se manter um certo nível de vida, abaixo do

238
OBSERVAÇÕES FINAIS

qual se crê já não valer a pena viver. A representação da nação deixou de


ser delegada num numero restrito de soldados. Na guerra já não há nada
que se pareça com um duelo. São todos a ter de bater-se contra todos,
como fizeram as hordas dos primeiros tempos. Mas o combate trava-se
com as armas forjadas pela nossa civilização, e os massacres são de um
horror que os antigos não poderiam imaginar sequer. Pelo caminho que
a ciência leva, aproxima-se o dia em que um dos adversários, detentor de
um segredo mantido reservado, disporá do meio de suprimir o outro.
Talvez do vencido não fique o mais pequeno rasto neste mundo.
As coisas seguirão o seu curso? Homens que não hesitamos em classi-
ficar entre os benfeitores da humanidade têm vindo felizmente a inter- 306
por-se. Como todos os grandes optimistas, começaram por supor resolvido
o problema a resolver. Fundaram a Sociedade das Nações. Consideramos
que os resultados obtidos superam já o que se podia esperar. Porque a
dificuldade de suprimir as guerras é maior ainda do que imaginam em
geral aqueles que não acreditam na sua supressão. Pessimistas põem-se
de acordo com os optimistas quando consideram o caso de dois povos
que vão bater-se análogo ao de dois indivíduos que têm uma querela;
simplesmente pensam que os primeiros nunca poderão, como os segun-
dos, ser materialmente coagidos a levar o litígio aos juízes e a aceitar a
sua decisão. A diferença é, porém, radical. Ainda que a Sociedade das Na-
ções dispusesse de uma força armada aparentemente suficiente (e ainda
assim o recalcitrante continuaria a ter sobre ela a vantagem do impulso;
ainda assim o imprevisto da descoberta científica tornará cada vez mais
imprevisível a natureza da resistência que a Sociedade deveria preparar)
esbarraria no profundo instinto de guerra que recobre a civilização, en-
quanto os indivíduos confiam aos juízes o cuidado de decidir de um dife-
rendo e a isso são obscuramente encorajados pelo instinto de disciplina
imanente a uma sociedade fechada: uma disputa afastara-os acidental-
mente da posição normal, que era uma inserção exacta na sociedade, e a
esta última regressam como o pêndulo à posição vertical. A dificuldade é,
portanto, muito mais grave. Será vão, todavia, procurar, superá-la?
Não o pensamos. O presente trabalho tinha por objecto investigar as
origens da moral e da religião. Chegámos a certas conclusões. Poder-nos-
-íamos ficar por elas. Mas, uma vez que no fundo das nossas conclusões 307
havia uma distinção radical entre a sociedade fechada e a sociedade
aberta, uma vez que as tendências da sociedade fechada nos pareceram

239
r
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

subsistir, inextirpáveis, na sociedade que se abre, uma vez que todos


esses instintos de disciplina convergiam primitivamente no instinto de
guerra,-devemos perguntar-nos em que medida o instinto original poderá
ser reprimido ou contornado e responder, por meio de algumas conside-
. rações adicionais, a uma questão que muito naturalmente se nos põe.
O instinto guerreiro bem pode existir por si mesmo: nem por isso se
agarra menos a motivos racionais. A história ensina-nos que estes motivos
têm sido muito variados. Reduzem-se cada vez mais, à medida que as
guerras se tornam mais terríveis. A última guerra, tal como as que entre-
vemos no futuro se por desgraça tivermos de continuar a ter guerras,
ligou-se ao carácter industrial da nossa civilização. Se quisermos proceder
a uma figuração esquemática, simplificada e estilizada, dos conflitos de
hoje, deveremos começar por representar as nações como populações
puranymte agrícolas. Vivem dos produtos das suas terras. Suponhamos
que têm à justa o suficiente para se alimentar. Crescerão na medida em
que obtenham da terra um melhor rendimento. Até aqui tudo vai bem.
Mas se houver um excesso de população, e se esta não quiser distribuir-se
pelo exterior, ou se não puder fazê-lo porque o estrangeiro lhe fecha as
portas, onde poderá encontrar o alimento necessário? A indústria arran-
jará as coisas. A população excedentária tornar-se-á operária. Se o país
não possuir força motriz para fazer funcionar máquinas, ferro para as
construir, matérias-primas para o processo de fabrico, tentará ir busca-
dos ao estrangeiro. Pagará a sua dívida, e receberá suplementarmente os
308 géneros alimentares de que não dispunha, exportando para o estrangeiro
produtos manufacturados. Os operários descobrir-se-ão assim "emigra-
dos do interior". O estrangeiro emprega-os como teria feito no seu terri-
tório; prefere deixá-los - ou talvez tenham sido eles a preferir ficar - onde
estão; mas é do estrangeiro que dependem. Se o estrangeiro deixar de
aceitar os seus produtos, ou deixar de lhes fornecer os meios que permi-
tem fabricá-los, ei-los condenados a morrer de fome. A menos que se
decidam, arrastando o país atrás de si, a partir à conquista do que lhes é
recusado. Será a guerra. É óbvio que as coisas nunca se passam tão sim-
plesmente. Embora não se esteja em rigor sob a ameaça de morrer de
fome, considerarse-á que a vida é sem interesse à falta de conforto,
de diversão, de luxo; julgar-se-á a indústria nacional insuficiente se esta
se limitar a viver, se não produzir riqueza; um país acha-se incompleto se
não dispõe de bons portos, de colónias, etc. De tudo isto pode resultar a

240
OBSERVAÇÕES FINAIS

guerra. Mas o esquema que acabamos de traçar assinala suficientemente


as causas essenciais: aumento da população, perda de vias de escoamento,
privação de combustível e de matérias-primas.
Eliminar estas causas ou atenuar o seu efeito, tal é a tarefa por exce-
lência de um organismo internacional que visa a abolição da guerra.
A mais grave de entre elas é o excesso populacional. Num paíá com uma
natalidade demasiado fraca como a França, o Estado deve fomentar sem
dúvida o crescimento da população: um economista que foi ao mesmo
tempo o maior inimigo do "estatismo" reclamava que as famílias rece-
bessem uma recompensa monetária por cada novo filho que tivessem
além do terceiro. Mas nâo se poderia então, inversamente, nos países
com uma população superabundante, impor taxas mais ou menos pesa-
das por cada filho a mais? O Estado teria o direito de intervir, de investi-
gar a paternidade, de tomar, enfim, medidas que noutros casos seriam
inquisitoriais, uma vez que é com ele que tacitamente se conta para garan-
tir a subsistência do país e, por conseguinte, a da criança que se chamou
à vida. Reconhecemos a dificuldade de fixar administrativamente um
limite à população, ainda que deixando ao número de filhos uma certa
elasticidade. Se aqui esboçamos uma solução, é simplesmente para vincar
que o problema não nos parece insolúvel: outros, mais competentes do
que nós, descobrirão melhor. Mas o que é certo é que a Europa está sobre-
povoada, que em breve o estará também o mundo, e que se não se "racio-
nalizar" a produção do próprio homem como se começa a fazer com o
trabalho, teremos a guerra. Em nenhum outro caso é mais perigoso con-
fiarmo-nos ao instinto. A mitologia antiga compreendera-o bem quando
associava a deusa do amor ao deus dos combates. Deixai agir Vénus, e ela
trar-vos-á Marte. Não evitaremos a regulamentação (palavra desagradável,
mas que diz de facto o que quer dizer, na medida em que impõeampera-
tivamente limites através de regras e de regulamentos). Que se passará;
quando se manifestarem problemas quase de igual gravidade, o da repar--
tição das matérias-primas, o da circulação mais livre ou menos livre dos
produtos e, mais geralmente, o de reconhecer exigências antagónicas apre-
sentadas por um lado e pelo outro como vitais? É um erro perigoso acre-
ditar que um organismo internacional obterá a paz definitiva sem intervir,
com autoridade, na legislação dos diversos países e até mesmo talvez na
sua administração. Mantenha-se o princípio da soberania do Estado, se
assim se quiser: este terá necessariamente de ser inflectido na sua apli

241
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

cação aos casos particulares. U m a v e z mais, nenhuma destas dificuldades


310 será insuperável se.uma porção suficiente da humanidade se decidir a
ultrapassá-las. Mas devemos olhá-las de frente e saber no que estamos a
consentir quando pedimos a supressão das guerras.
Agora, não seria possível abreviar o caminho a percorrer, e até mesmo
talvez aplanar de um golpe só as dificuldades em vez de as contornar-
mos uma a uma? Deixemos de lado a questão principal, a da popula-
ção, que será necessário resolver em si mesma, aconteça o que acontecer.
As outras referem-se sobretudo à direcção que a nossa existência tomou,
a partir do grande desenvolvimento da indústria. Reclamamos o con-
forto, o bem estar, o luxo. Queremos divertir-nos. O que aconteceria se
a nossa vida se tornasse mais austera? O misticismo está incontesta-
velmente na origem das grandes transformações morais. A humanidade
parece, sem dúvida, mais do que nunca longe dele. Mas quem sabe? Ao
longo do nosso último capítulo, julgáramos entrever uma relação entre o
misticismo do Ocidente e a sua civilização industrial. Seria preciso exami-
nar as coisas mais atentamente. Toda a gente sente que o futuro imediato
vai depender em grande parte da organização da indústria, das condições
que esta impuser ou que aceitar. Acabamos de ver que deste problema
está suspenso o da paz entre as nações. O da paz interna dele depende
pelo menos na mesma medida. Deveremos temer, deveremos esperar?
Entendeu-se durante muito tempo que industrialismo e maquinismo
fariam a felicidade do género humano. Hoje, atribuir-se-lhes-iam facil-
mente os males de que sofremos. Nunca, ao que se diz, a humanidade
teve tanta sede de prazer, de luxo e de riqueza. Uma força irresistível
parece impeli-la cada vez mais violentamente à busca da satisfação dos
seus desejos mais grosseiros. É possível, mas remontemos à impulsão na
311 sua origem. Se foi enérgica, pode ter bastado um ligeiro desvio no início
para produzir uma distância cada vez mais considerável entre o alvo
visado e o objecto alcançado. Em tal caso, não deveríamos preocupar-nos
tanto com o desvio como com a impulsão. As coisas nunca se fazem
decerto por si sós. A humanidade não se modificará a não ser que queira
modificar-se. Mas talvez tenha já arranjado meios que lhe permitam
fazê-lo. Talvez esteja mais perto do alvo do que ela própria supõe. Veja-
mos, pois, o que se passa. Uma vez que pusemos em causa o esforço
industrial, cinjamos mais de perto a sua significação. Tal será a conclusão
do presente trabalho.

242
OBSERVAÇÕES FINAIS

Tem-se falado muitas vezes das alternâncias de fluxo e de refluxo que


se observam na história. Toda a acção prolongada em certo sentido traria
uma reacção em sentido contrário. Depois a primeira recomeçaria, e o
pêndulo oscilaria indefinidamente. É verdade que o pêndulo é aqui
dotado de memória e que ao regressar já não é o mesmo que partiu, pois
se alimentou entretanto da experiência intermédia. É por isso que a ima-
gem de um movimento em espiral, que por vezes se evoca, seria mais
justa do que a da oscilação pendular. Para dizer a verdade, há causas psi-
cológicas e sociais das quais poderíamos anunciar a priori que produzi-
rão efeitos que tais. O gozo ininterrupto de um ganho que anteriormente
se buscara engendra o cansaço ou a indiferença; raramente o ganho con
fere tudo o que parecia prometer; acompanha-se de inconvenientes que
não haviam sido previstos; acaba por pôr em relevo o lado vantajoso do
que se deixou para trás e inspira a vontade de o reaver. Inspira-a sobretudo
às novas gerações, que não terão feito a experiência dos antigos males,
nem tiveram de se esforçar para deles sair. Enquanto os pais se congratu-
lam com o estado presente como com uma aquisição que se lembram ter-
-lhes custado caro, os filhos não lhes prestam mais atenção do que ao ar 312
que respiram; em contrapartida, serão sensíveis a inconvenientes que
não passam do reverso dos ganhos dolorosamente conquistados em sua
intenção. Nascerão assim veleidades de voltar atrás. Estes vaivéns são
característicos do Estado moderno, não em virtude de alguma fatalidade
histórica, mas porque o regime parlamentar foi justamente concebido,
em grande parte, para canalizar o descontentamento. Os governantes não
recolhem senão elogios moderados pelo que fazem de bom; estão no seu
lugar para fazerem bem feito o que fazem; mas são-lhes contadas as mais
pequenas faltas; persistem na totalidade, até que o seu peso acumulado
acarrete a queda do governo. Se houver em presença dois partidos adver-
sos, e só dois, o jogo prosseguirá com uma regularidade perfeita. Cada
uma das suas equipas regressará ao poder com o prestígio que dão princí-
pios que permaneceram na aparência intactos durante todo o tempo em
que não havia responsabilidades a tomar: os princípios residem na
oposição. Na realidade esta terá beneficiado, se for inteligente, da expe-
riência que terá deixado o outro partido fazer; terá mais ou menos modi-
ficado o conteúdo das suas ideias e, por conseguinte, a significação dos
seus princípios- Torna-se assim possível o progresso, apesar da oscilação
ou antes por meio dela, contanto que exista a preocupação de o conseguir.

243
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO

Mas, em casos deste género, os movimentos de ida e volta entre os dois


contrários resultam de certos dispositivos muito simples montados pelo
homem social ou de certas disposições muito visíveis do homem indivi-
dual. Não manifestam uma necessidade que domine as causas particula-
res de alternância e que se imponha, de uma maneira geral, aos aconte-
cimentos humanos. Existirão tais causas?
313 Não acreditamos na fatalidade da história. Não há obstáculo que von-
tades suficientemente esforçadas não possam quebrar, se a isso se apli-
carem a tempo. Não há, portanto, lei histórica inelutável. Mas há leis bioló-
gicas; e as sociedades humanas, enquanto queridas sob certos aspectos
pela natureza, relevam nesse ponto particular da biologia. Se a evolução
do mundo organizado se cumpre segundo certas leis, quero eu dizer em
virtude de certas forças, é impossível que a evolução psicológica do
homem individual e social renuncie por completo a esses hábitos da vida.
Ora nós mostrávamos outrora que a essência de uma tendência vital é
desenvolver-se em forma de feixe, criando, pelo simples facto do seu
crescimento, direcções divergentes entre as quais se distribuirá o impulso.
Acrescentávamos que esta lei nada tem de misterioso. Exprime simples-
mente o facto de uma tendência ser o surto de uma multiplicidade indis-
tinta a qual, por outro lado, só é indistinta e só é multiplicidade se a con-
siderarmos retrospectivamente, quando diversas perspectivas retrospec-
tivamente tomadas da sua indivisão passada a compõem com elementos
que foram na realidade criados pelo seu desenvolvimento. Imaginemos
que o laranja é ainda a única cor a ter aparecido no mundo: compor-se-á
já de vermelho e de amarelo? É evidente que não. Mas terá sido composta
de amarelo e de vermelho quando por seu turno estas duas cores existi-
rem: o laranja primitivo poderá ser então encarado do duplo ponto de
vista do vermelho e do amarelo; e se supuséssemos, por meio de um jogo
da fantasia, que o amarelo e o vermelho surgiram de uma intensificação
do laranja, teríamos um exemplo muito simples daquilo a que chamamos
o crescimento em forma de feixe. Mas não há necessidade de fantasia nem
de comparação. Basta olharmos a vida, sem um pensamento reservado
de síntese artificial. Alguns têm o acto voluntário por um reflexo com-
314 posto, outros veriam no reflexo uma degradação do voluntário. A verdade
é que o reflexo e o voluntário materializam duas perspectivas possíveis
de uma actividade primordial, indivisível, que não era uma coisa nem
outra, mas que se torna retroactivamente, através deles, as duas coisas ao

244
OBSERVAÇÕES FINAIS

mesmo tempo. Outro tanto diríamos do instinto e da inteligência, da vida


animal e da vida vegetal, de muitos outros pares de tendências divergen-
tes e complementares. Simplesmente, na evolução geral da vida, as ten-
dências assim criadas por via de dicotomia desenvolvem-se, as mais das
vezes, em espécies distintas; vão, cada uma pelo seu lado, buscar fortuna
no mundo; a materialidade que se deram impede-as de se soldarem de
novo para reconduzirem, mais forte e mais complexa, a tendência origi-
nal. O mesmo não se passa na evolução da vida psicológica e social. É no
mesmo indivíduo, ou na mesma sociedade, que evoluem aqui as tendên-
cias que se constituíram por dissociação. E, ein geral, não podem desen-
volver-se senão sucessivamente. Se forem duas, como normalmente acon-
tece, será a uma delas sobretudo que se atenderá para começar; ir-se-á
com ela mais ou menos longe, em geral o mais longe possível; depois,
com o que se tiver ganho ao longo desta evolução, voltar-se-á em busca da
que se deixou para tf ás. Esta será por seu turno desenvolvida, enquanto a -
primeira se verá agora negligenciada, e este novo esforço prolongar-se-á
até que, reforçado por novas aquisições, seja possível retomar a primeira
tendência levando-a mais longe ainda. Como, durante a operação, é intei-
ramente que uma das duas tendências se impõe, como é só ela que conta,
dir-se-ia com facilidade que é a única positiva e que a outra não passa da
sua negação: se se quiserem pôr as coisas nesses termos, a outra é efecti-
vamente o contrário. Constatar-se-á - o que será mais ou menos verda- 3is
deiro segundo os casos, - que o progresso se fez através de uma oscilação
entre os dois contrários, não sendo também a situação a mesma e tendo
sido realizado um ganho quando o pêndulo regressa ao seu ponto de
partida. Pode, todavia, acontecer que a expressão seja rigorosamente justa,
e que tenha sido de facto entre contrários que houve oscilação. É o que se
passa quando uma tendência, vantajosa em si mesma, é incapaz de se
moderar de outro modo que não seja pela acção^de uma tendência anta-
gónica, que assim se mostra igualmente vantajosa. Dir-se-ia que a sabedo- •
ria aconselharia então uma cooperação das duas tendências, intervindo a
primeira quando as circunstâncias o reclamam, retendo-a a .outra nq.,
momento em que esteja prestes a exceder a medida. Infelizmente, é difícil
dizer onde começa o exagero e o perigo. Por vezes, o simples facto de
impelir o movimento mais longe do que parecia razoável conduz a uma
circunstância nova, cria uma situação nova, que suprime o perigo ao
mesmo tempo que acentua a vantagem. É o que se passa sobretudo com

245
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

as tendências muito gerais qiie determinam a orientação de uma socie-


dade e cujo desenvolvimento se reparte necessariamente por um número
mais ou menos considerável de gerações. Uma inteligência, ainda que
sobre-humana, não poderia dizer onde seremos conduzidos, uma vez
que a acção em movimento cria o seu próprio caminho, cria em grande
parte as condições em que se consumará, e desafia assim o cálculo.
Avançar-se-á assim até cada vez mais longe; não se parará, muitas vezes,
a não ser perante a iminência de uma catástrofe. A tendência antagónica
ocupa assim o lugar que ficou vazio; só, por seu turno, irá tão longe quanto
lhe seja possível ir. Será reacção, se a outra se chamou acção. Como as
duas tendências, se tivessem caminhado juntas, se teriam moderado uma
316 à outra, como a sua interpenetração numa tendência primitiva indivisa é
precisamente aquilo por que se deve definir a moderação, o simples facto
de ocupar todo o lugar comunica a cada uma delas um impulso que pode
ir até à exaltação, à medida que os obstáculos vão caindo, tornando-a
qualquer coisa de frenético. Não abusemos da palavra "lei" num domínio
que é o da liberdade, mas usemos deste termo cómodo quando nos acha-
mos diante de grandes factos que apresentam uma regularidade sufi-
ciente: chamaremos lei de dicotomia à que parece provocar a realiza-
ção, através da sua dissociação simples, de tendências que de início não
eram senão perspectivas diferentes sobre uma mesma tendência simples.
E proporemos, então, que se chame lei de duplo frenesim a exigência,
imanente a cada uma das duas tendências uma vez realizada pela sua
separação, de ser seguida até ao fim, - como se houvesse um fim! Uma
vez mais: é difícil não nos perguntarmos se a tendência simples não teria
feito melhor em crescer sem se desdobrar, mantida na justa medida pela
própria coincidência da força de impulsão com um poder de paragem,
que então não seria virtualmente mais que uma força de impulsão dife-
rente. Não nos arriscaríamos a cair no absurdo, estaríamos garantidos
contra a catástrofe. Sim, mas não teríamos obtido o máximo de criação
tanto em quantidade como em qualidade. Temos de nos cometer a fundo
com uma das direcções para sabermos qual o seu resultado: quando não
pudermos avançar mais, regressaremos, trazendo tudo o que assim adqui-
rimos, para nos lançarmos na direcção negligenciada ou abandonada.
Quando observamos de fora estes movimentos de ida e volta, não vemos
senão o antagonismo das duas tendências, as vãs tentativas de uma no
sentido de contrariar o progresso da outra, o fracasso final desta e a des-

246
OBSERVAÇÕES FINAIS

forra da primeira: a humanidade gosta do drama; de bom grado recolhe, 317


no conjunto de uma história mais ou menos longa, os traços que lhe
imprimem a forma de uma luta entre dois partidos, ou duas sociedades,
ou dois princípios; cada um deles, por sua vez, teria arrebatado a vitória.
Mas a luta não é aqui senão o aspecto superficial de um progresso. A ver-
dade é que uma tendência sobre a qual duas perspectivas diferentes são
possíveis não pode fornecer o seu máximo, em quantidade e em quali-
dade, a não ser que materialize estas duas possibilidades em realidades
moventes, cada uma das quais se precipita em frente e açambarca o lugar,
enquanto a outra a espreita sem descanso para saber se terá chegado,
enfim, a sua vez. Desenvolver-se-á assim o conteúdo da tendência origi-
nal, se é que podemos falar de conteúdo quando ninguém, nem a própria
tendência tornada consciente, poderá dizer o que dela sairá. Fornece o
esforço, e o resultado é uma surpresa. Tal é a operação da natureza: as
lutas cujo espectáculo nos oferece não se resolvem tanto em hostilidades f
como em curiosidades. E é precisamente quando imita a natureza, quando
se entrega à impulsão primitivamente recebida, que a marcha da humani-
dade assume uma certa regularidade e se submete, de resto muito imper-
feitamente, a leis como as que enunciamos. Mas chegou o momento de
fecharmos o nosso parênteses demasiado longo. Mostremos apenas como
se aplicariam as nossas duas leis no caso que no-lo fez abrir.
Tratava-se do intento de conforto e de luxo que parece ter-se tornado a
preocupação principal da humanidade. Quando vemos como desenvolveu
o espírito de invenção, como muitas invenções são aplicações da nossa
ciência, como a ciência está destinada a crescer sem fim, sentir-nos-íamos
tentados a crer que haverá um progresso indefinido na mesma direcção.
Com efeito, nunca as satisfações que invenções novas trazem a antigas 318
necessidades determinam a humanidade a ficar-ße por elas; novas necessi-
dades surgem, igualmente imperiosas, cada vez fem maior número. Vimos
a corrida ao bem-estar ir-se acelerando, numa pista em que se precipita-
vam multidões cada vez mais compactas. Hoje, transformou-se numa
enxurrada. Mas não deveria precisamente este frenesim abrir-nos os
olhos? Não haveria algum outro frenesim, que o actual prolongaria, e que
tivesse desenvolvido em sentido oposto uma actividade a cujo comple-
mento hoje assistimos? De facto, é a partir do século XV ou do século XV!
que os homens parecem começar a aspirar a uma extensão da vida mate-
rial. Durante toda a Idade Média predominara um ideal de ascetismo.

247
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO

Inútil recordar os exageros a que conduzira; já então houvera frenesim.


Dir-se-á que esse ascetismo foi obra de um pequeno número, e com razão.
Mas do mesmo modo que o misticismo, privilégio de alguns, foi vulgari-
zado pela religião, assim também o ascetismo concentrado, que foi sem
dúvida excepcional, se diluiu para o comum dos homens numa indife-
rença geral frente às condições da existência quotidiana. Havia, para toda
a gente, uma falta de conforto que nos surpreende. Ricos e pobres dispen-
savam coisas supérfluas que nós temos por necessidades. Houve quem
tenha feito notar que, se o senhor vivia melhor do que o camponês, deve-
mos por isso entender, sobretudo, que se alimentava mais abundante-
mente \ Quanto ao resto, a diferença era estreita. Portanto, estamos aqui
perante duas tendências divergentes que se sucederam e que se compor-
taram, uma e outra, freneticamente. É-nos permitido presumir que corres-
319 pondam a duas perspectivas opostas sobre uma tendência primordial,
que teria assim descoberto meio de tirar de si mesma, em quantidade e
em qualidade, tudo o que podia e até mesmo mais do que possuía,
adoptando as duas vias alternadamente, voltando a pôr-se numa das direc-
ções enriquecida por tudo o que fora recolhido ao longo da outra. Have-
ria, pois, oscilação e progresso, progresso por oscilação. E seria necessário
prever, depois da complicação incessantemente crescente da vida, um
regresso à simplicidade. Tal regresso não é evidentemente garantido; o
futuro da humanidade continua a ser indeterminado, porque depende
dela. Mas se, do lado do futuro, não há mais que possibilidades ou proba-
bilidades, que em breve examinaremos, o mesmo não acontece com o
passado: os dois desenvolvimentos opostos que acabamos de assinalar
são de facto os de uma só tendência original.
Já a história das ideias o testemunha. Do pensamento socrático, segui-
do em dois sentidos contrários que em Sócrates eram complementares,
saíram as doutrinas cirenaica e cínica: uma queria que pedíssemos à vida
o maior número possível de satisfações, a outra que aprendêssemos.a
dispensá-las. Prolongaram-se no epicurismo e no estoicismo com os seus
dois princípios opostos, relaxamento e tensão. Se duvidássemos da comu-
nidade de essência entre os dois estados de alma aos quais estes princípios
correspondem, bastaria notar que na própria escola epicurista, ao lado
do epicurismo popular que se confundia muitas vezes com a busca desen
1
Ver o interessante trabalho de Gina Lombroso, La rançon du machinisme, I'aris,
1930.

248
OBSERVAÇÕES FINAIS

freada do prazer, houve o epicurismo de Epicuro, segundo o qual o prazer


supremo era não termos necessidade dos prazeres. A verdade é que os
dois princípios estão no fundo da ideia que sempre se fez da felicidade.
Designa-se por. esta última palavra qualquer coisa de complexo e de con-
fuso, um desses conceitos que a humanidade quis deixar no vago para 320
que cada um o determinasse à sua maneira. Mas, seja qual for o sentido
em que se entenda, não há felicidade serii segurança, quero eu dizer sem
perspectiva de duração para um estado em que nos instalámos. Podemos
encontrar esta segurança ou num poder de disposição sobre as coisas, ou
num domínio de si que nos torne independentes das coisas. Nos dois
casos, é da nossa própria força que gozamos, ou porque a percebemos de
dentro, ou porque ela se exibe fora de nós: estaremos, assim ou no cami-
nho do orgulho ou no da vaidade. Mas simplificação e complicação da
vida resultam com efeito de uma "dicotomia", são com efeito susceptíveis
de se desenvolverem em "duplo frenesim", têm com efeito enfim o
necessário para se sucederem periodicamente.
Em tais condições, como se disse acima, um regresso à simplicidade
nada tem de inverosímil. A própria ciência bem nos poderia mostrar o
seu caminho. Enquanto a física e a química nos ajudam a satisfazer e nos
convidam assim a multiplicar as nossas necessidades, podemos prever
que a fisiologia e a medicina nos revelarão cada vez melhor o que há de
perigoso nessa multiplicação, e de decepcionante na maior parte das nos-
sas satisfações. Aprecio um bom prato de came: certo vegetariano, que
outrora o apreciava tanto como eu, não pode hoje olhar para a carne sem
repulsa. Dir-se-á que temos um e outro razão, e que não se devem discutir
os gostos nem as cores. Talvez; mas não posso impedir-me de constatar a
certeza inabalável em que ele, o vegetariano, está de jamais voltar à sua
antiga disposição, ao passo que eu me sinto muito menos seguro de con-
servar para sempre a minha. Ele fez as duas experiências; eu apenas uma
das duas. A sua repugnância intensifica-se quando a sua atenção se fixa
nela, ao passo que a minha satisfação tem qualquer coisa de distraído e 321
tende a empalidecer à luz; creio que se dissiparia se experiências decisi-
vas viessem a provar, como não é impossível que aconteça, qüe ao comer
carne nos envenenamos especificamente, lentamente 1 . Ensinavam-nos
1
Apressemo-nos a dizer que não dispomos de quaisquer luzes particulares a este
respeito. Escolhemos o exemplo da carne como poderíamos ter tomado o de qualquer
outro alimento habitual.
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO

no colégio que a composição das substâncias alimentares era conhecida,


as exigências do nosso organismo igualmente, e que podíamos deduzir
daí o que é necessário e o que é suficiente como ração de manutenção.
Ter-nos-íamos sentido bem surpreendidos se nos dissessem que a análise
química deixava escapar as "vitaminas'j cuja presença na alimentação é
indispensável à nossa saúde. Sem dúvida, viremos com o tempo a dar-
-nos conta que mais do que uma doença, hoje rebelde aos esforços da
medicina, tem a sua origem longínqua em "carências" de que não suspei-
tamos. O único meio seguro de absorvermos tudo aquilo de que temos
necessidade seria não submetermos os nossos alimentos a elaboração
alguma, talvez até mesmo (quem sabe?) não os cozermos. Também aqui
a crença na hereditariedade do adquirido fez grandes danos. Há quem
goste de dizer que o estômago humano se desabituou, que já não pode-
ríamos alimentar-nos como o homem primitivo. O que se justifica, se se
entender por isso que deixamos adormecidas desde a nossa infância dis-
posições naturais, e que nos seria difícil despertá-las passada uma certa
idade. Mas que nasçamos modificados é pouco provável: a supormos
que o nosso estômago difere do dos nossos antepassados pré-históricos, a
diferença não será devida a simples hábitos contraídos na sucessão dos
tempos. A ciência em breve nos esclarecerá acerca destas questões no seu
conjunto. Suponhamos que o faça no sentido que prevemos: a simples
322 reforma da nossa alimentação teria repercussões inumeráveis sobre a
nossa indústria, o nosso comércio, a nossa agricultura, que se veriam con-
sideravelmente simplificados. Que dizer das nossas outras necessidades?
As exigências do sentido genésico são imperiosas, mas depressa as esgo-
taríamos se nos ativéssemos à natureza. Simplesmente, em torno de uma
sensação forte mas pobre, tomada como nota fundamental, a humani-
dade fez surgir um número incessantemente crescente de harmónicas;
tirou dela uma variedade tão rica de timbres que hoje qualquer objecto,
se o tomarmos por este ou aquela lado, produz o som que se tornou obses-
são. Trata-se de um constante apelo ao sentido através da imaginação.
Toda a nòssa civilização é afrodisíaca. Também aqui a ciência tem a
sua palavra a dizer, e di-la-á um dia com tanta nitidez que será, de facto,
preciso escutá-la: deixará de haver prazer de tanto amarmos, o prazer.
A mulher apressará a chegada desse momento, na medida em que quiser
realmente, sinceramente, tornar-se igual ao homem, em vez de continuar
a ser o instrumento que ainda é, à espera de vibrar sob o arco do músico.

250
OBSERVAÇÕES FINAIS

Que a transformação se opere: a nossa vida será mais séria ao mesmo


tempo que mais simples. Aquilo que a mulher exige de luxo para agradar
ao homem e, por ricochete, para se agradar a si mesma tornar-se-á em
grande parte inútil. Haverá menos desperdício, e também menos inveja.
- Aliás, luxo, prazer e bem-estar mantêm relações de proximidade sem
terem, contudo, entre si a relação que em geral iniàginarhos. Dispomo-los ' ' '
ao longo de uma escala: do bem-estar passar-se-ia ao luxo por via de uma
gradação ascendente; depois de nos garantirmos o bem-estar, quereríamos
sobrepor-lhe o prazer; viria depois o amor do luxo. Mas trata-se de uma
psicologia puramente intelectualista, que crê poder decalcar os nossos
estados de alma sobre os seus objectos. Porque o luxo custa mais caro
que o simplesmente agradável, e o prazer mais caro que o bem-estar, 323
representamo-nos o crescimento progressivo de não sei que desejo corres-
pondente. A verdade é que é as mais das vezes por amor do luxo que se
deseja o bem-estar, porque o bem-estar fjue se não tem surge como um
luxo, e porque se querem imitar, igualar, aqueles que estão em condições
de o ter. No princípio era a vaidade. Quantos pratos são procurados apenas
pelo seu preço? Durante anos os povos civilizados despenderam uma
boa parte do seu esforço exterior tentando conseguir especiarias. Ficamos
estupefactos quando descobrimos que foi esse o objectivo supremo da
navegação, ao tempo tão perigosa; que milhares de homens assim jogaram
as suas vidas; que a coragem, a energia e o espírito de aventura de que
resultou por acaso a descoberta da América se consagraram essencial-
mente a obter gengibre e cravo da índia, pimenta e canela. Quem se preo-
cupa com esses aromas, durante tanto tempo deliciosos, a partir do mo-
mento que é possível comprá-los barato na mercearia da esquina? Estas
observações são de molde a contristar o moralista. Mas se reflectirmos
melhor nelas, tornar-se-ão também motivos de esperança. A necessidade
sempre crescente de bem-estar, a sede de diversão, o gosto desenfreado
do luxo, tudo o que nos inspira uma tão'grande inquietação quanto-ao •
futur.o da humanidade, porque esta nisso parece descobrir satisfações
sólidas, tudo isso se revelará como um balão que furiosamente se enche
de ar e que a seguir desinchará também de uma vez só. Sabemos que um
frenesim convoca o frenesim antagónico. Mais particularmente, a com-
paração dos factos actuais com os de outrora convidamos a considerarmos
transitórios gostos que parecem definitivos. E uma vez que a posse de um
automóvel é hoje para tantos homens a ambição suprema, reconheçamos

251
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

324 os serviços incomparáveis que o automóvel presta, admiremos essa mara-


vilha da mecânica, desejemos que se multiplique e difunda por toda a
parte onde se faça sentir a sua necessidade, mas digamo-nos que, en-
quanto coisa agradável ou prazer do luxo, poderá dentro em breve já não
ser tão desejado - o que não significará, esperamo-lo bem, que seja aban-
donado, como hoje é o caso do cravo da índia e da canela.
Tocamos aqui o ponto essencial da nossa discussão. Acabamos de citar
uma satisfação de luxo resultante de uma invenção mecânica. Muitos
crêem que foi a invenção mecânica em geral que desenvolveu o gosto do
luxo, como também do simples bem-estar. Mais ainda, se comummente
se admite que as nossas necessidades materiais continuarão a crescer e a
exasperar-se, é porque se não vê razão para que a humanidade abandone
a via da invenção mecânica, depois de nela ter entrado. Acrescentemos
que, quanto mais a ciência avança, mais invenções as suas descobertas
sugerem; muitas vezes da teoria à aplicação não vai mais do que um
passo; e como a ciência não poderá parar, dir-se-ia, pois, que não devem
ter fim a satisfação das nossas antigas necessidades, a criação de necessi-
dades novas. Mas deveríamos começar por perguntar se o espírito de
invenção suscitará necessariamente necessidades artificiais, ou se não
terá sido a necessidade artificial a orientar aqui o espírito de invenção.
A segunda hipótese é de longe a mais provável. É confirmada por
investigações recentes sobre as origens do maquinismo \ Tem-se lem-
brado que o homem sempre inventou máquinas, que a Antiguidade conhe-
cera algumas notáveis, que foram imaginados dispositivos engenhosos
325 muito antes da eclosão da ciência moderna e em seguida, muitas vezes,
independentemente dela: há ainda hoje simples operários, sem cultura
científica, que descobrem aperfeiçoamentos nos quais os mais sabedores
engenheiros não tinham pensado. A invenção mecânica é um dom natu-
ral. Foi sem dúvida limitada nos seus efeitos enquanto se reduziu a utili-
zar energias actuais e, de certo modo, visíveis: esforço muscular, força do
vento ou de uma queda de água. A máquina só deu todo o seu rendimento
à partir do dia em que se soube como pôr ao seu serviço, por meio de um
simples detonador, energias potenciais armazenadas durante milhões de
anos, extraídas do sol, depositadas na hulha, no petróleo, etc. Mas esse

' Remetemos uma vez mais para o belo livro de Gina Lombroso. Cf. Mantoux, La
Révolution industrielle au dix huitième siècle.

252
OBSERVAÇÕES FINAIS

dia foi o da invenção da máquina a vapor, e sabemos que este não saiu de
considerações teóricas. Apressemo-nos a acrescentar que o progresso, de
início lento, se efectuou a passos de gigante quando a ciência entrou em
campo. Nem por isso é menos verdade que o espírito de invenção mecâ-
nica, que corre num leito estreito enquanto é deixado a si mesmo, que se
alarga indefinidamente depois de ter encontrado a ciência, continua a '
distinguir-se desta última e poderia em rigor separar-se dela. Assim, o
Ródano entra no Lago de Genebra, parece confundir com as dele as suas
águas e mostra, ao sair, que conservou a sua independência.
Não houve pois, como poderíamos ser levados a crer, uma exigência
da ciência que impusesse aos homens, simplesmente através do seu
desenvolvimento, necessidades cada vez mais artificiais. Se assim fosse,
a humanidade estaria votada a uma materialidade crescente, porque o
progresso da ciência não se deterá. Mas a verdade é que a ciência deu o
que se lhe pedia e que aqui não lhe coube a iniciativa; foi o espírito de
invenção que nem sempre se exerceu segundo os melhores interesses da
humanidade. Criou uma massa de necessidades novas; não se preocupou 326
o bastante com assegurar à maioria, a todos se fosse possível, a satisfação
das antigas necessidades. Mais simplesmente: sem negligenciar o
necessário pensou demasiado no supérfluo. Dir-se-á que estes dois ter-
mos não se deixam definir com clareza, que aquilo que é luxo para uns é
uma necessidade para outros. Sem dúvida; perder-nos-íamos aqui facil-
mente em distinções subtis. Mas há casos em que é preciso ver a traço
grosso. Há milhões de homens que não comem o suficiente. E há outros
que morrem de fome. Se a terra produzisse muito mais, haveria muito
menos probabilidades de haver quem não comesse o suficiente', quem
morresse de fome. Alega-se que a terra tem falta de braços. É possível;
mas porque exige a terra aos braços mais força do que aquela que eles
deveriam dar-lhe? Se o maquinismo errou, foi em não se ter consagrado
o bastante a auxiliar o homem neste trabalho tão duro. Responder-se-á
que há máquinas agrícolas, e que o seu uso se encontra hoje muito difun-
dido. Concedo-o, mas o que a máquina fez para aliviar o fardo do homem, ... .

1
Há sem dúvida crises de "sobrepi odução" que se estendem aos produtos agrícolas,
e que podem até mesmo começar por eles. Mas não se ligam evidentemente ao facto de
haver excesso de alimentos para a humanidade. Acontece simplesmente que, não se
encontrando a produção em geral suficientemente organizada, os produtos se vêem impe-
didos de trocar se.

253
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

o que a ciência fez, por seu lado, para aumentar o rendimento da terra,
é comparativamente restrito. Sentimos bem que a agricultura, que ali-
menta o homem, deveria dominar o resto, ser em todo o caso a primeira
preocupação da própria indústria. De uma maneira geral, a indústria não
se preocupou o suficiente com a maior ou menor importância das neces-
sidades a satisfazer. Seguia com facilidade a moda, fabricava sem outro
pensamento que não fosse o de vender. Quereríamos ver, aqui como
327 noutros lugares, um pensamento central, organizador, que coordenasse a
indústria com a agricultura e fixasse às máquinas o seu lugar racional,
aquele em que podem prestar mais serviços à humanidade. Quando se
move um processo ao maquinismo, descura-se a acusação essencial.
Acusam-no em primeiro lugar de reduzir o operário ao estado de máqui-
na, em seguida de desembocar numa uniformidade de produção que
choca o sentido artístico. Mas se a máquina proporcionar ao operário um
maior número de horas de repouso, e se o operário empregar esse suple-
mento de ócio a outra coisa que não às pretensas diversões, que um indus-
trialismo mal dirigido pôs ao alcance de todos, dará à sua inteligência o
desenvolvimento que tiver escolhido, em vez de se ater ao que lhe impo-
ria, em limites sempre restritos, o regresso (de resto impossível} à ferra-
menta, após a supressão da máquina. No que se refere à uniformidade do
produto, o seu inconveniente seria negligenciável se a economia de tempo
e de trabalho, assim realizada pelo conjunto da nação, permitisse levar
mais longe a cultura intelectual e desenvolver as verdadeiras originali-
dades. Censurou-se aos americanos o facto de usarem todos eles o mesmo
chapéu. Mas a cabeça deve ter prioridade sobre o chapéu. Façam com
que me seja possível mobilar a minha cabeça segundo o meu próprio
gosto, e aceitarei para ela o chapéu de toda a gente. A nossa acusação
contra o maquinismo é diferente. Sem contestar os serviços que prestou
aos homens desenvolvendo largamente os meios de satisfazer necessi-
dades reais, acusá-lo-emos de ter encorajado excessivamente necessida-
des artificiais, de ter impelido ao luxo, de ter favorecido as cidades em
detrimento dos campos, de ter alargado, enfim, a distância e transforma-
do as relações entre o patrão e o operário, entre o capital e o trabalho.
Todos estes efeitos poderiam, por outro lado, ser corrigidos; a máquina
não seria então mais que a grande benfeitora. Seria necessário que a
328 humanidade empreendesse a simplificação da sua existência com tanto
frenesim como aquele que pôs em complicá-la. A iniciativa só pode vir

254
OBSERVAÇÕES FINAIS

dela, porque foi ela, e não a pretensa força das coisas, menos ainda uma
fatalidade inerente à máquina, quem lançou numa certa pista o espírito
de invenção.
Mas tê-lo-á inteiramente querido? A impulsão que de início imprimiu
seria exactamente na direcção que o industrialismo tomou? O que à par-
tida não é senão um desvio imperceptíveltorna-se-uma distância consi-
derável à chegada, depois de se ter continuado a avançar em linha recta e
de a marcha ter sido prolongada. Ora, não é duvidoso que os primeiros
lineamentos do que seria mais tarde o maquinismo se tenham desenhado
ao mesmo tempo que as primeiras aspirações à democracia. O parentesco
entre as duas tendências torna-se plenamente visível no século xvin.
É impressionante nos enciclopedistas. Não deveremos supor então que
foi um sopro democrático que impeliu em frente o espírito de invenção,
tão velho como a humanidade, mas insuficientemente activo enquanto
não lhe foi concedido lugar bastante? Não se pensava decerto no luxo
para todos, nem no bem-estar para todos sequer; mas para todos podia
desejar-se a existência material garantida, a dignidade na segurança. Seria
o voto consciente? Não acreditamos no inconsciente em história: as
grandes correntes subterrâneas de pensamento, das quais tanto se tem
falado, devem-se ao facto de massas de homens terem sido arrastadas
por um ou vários de entre eles. Estes sabiam o que faziam, mas não pre-
viam todas as suas consequências. Nós que conhecemos o que se seguiu,
não podemos impedir-nos de fazer recuar a sua imagem até à origem: o
presente, percebido no passado por um efeito de miragem, é então aquilo
a que chamamos o inconsciente de outrora. A retroactividade do pre-
sente está na origem de muitas das ilusões filosóficas. Evitaremos, por- 329
tanto, atribuir aos séculos X.V, XVI e xviu (e menos ainda ao século XVil,
tão diferente, e que foi considerado como um parênteses sublime) preo-
cupações democráticas comparáveis às nossas. Também não lhes empres-
taremos a visão daquilo que o espírito de invenção em si continha de
potência. Nem por isso é menos verdade que a Reforma, o Renascimento
e os primeiros sintomas ou prpdromos do surto inventivo são da mesma
época. Não é impossível que tenha havido aqui três reacções, aparenta-
das entre si, contra a forma que tomara até esse momento o ideal cristão.
Este ideal não deixava de subsistir, mas surgia como um astro que tivesse •
voltado para a humanidade sempre a mesma face: começava agora a
entrever-se a outra, e nem sempre se dava conta de que era do mesmo

2
55
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

astro que se tratava. Está fora de dúvida que o misticismo atraia o asce-
tismo. Um e outro serão sempre apanágio de um pequeno número. Mas
que o misticismo verdadeiro, completo, actuante, aspira a difundir-se, em
virtude da caridade que é a sua essência, não é também menos certo.
Como se propagaria, ainda que diluído e atenuado como será necessaria-
mente o caso, numa humanidade mergulhada no medo de não ter o sufi-
ciente para matar a fome? O homem não se erguerá acima da terra a
menos que um poderoso aparelho lhe forneça o ponto de apoio. Terá de
apoiar-se sobre a matéria se quiser desligar-se dela. Noutros termos, a
mística atrai a mecânica. O que não tem sido suficientemente notado,
porque a mecânica, por um acidente de encaminhamento, se viu lançada
numa via em cujo termo havia o bem-estar exagerado e o luxo para um
certo número, em vez de a libertação para todos, impressionados pelo
resultado acidental, não vemos o maquinismo naquilo que ele deveria
330 ser, no que faz a sua essência. Vamos mais longe. Se os nossos órgãos são
instrumentos naturais, os nossos instrumentos são por isso mesmo órgãos
artificiais. A ferramenta do operário continua o seu braço; a panóplia da
humanidade é, pois, um prolongamento do seu corpo. A natureza, ao
dotar-nos de uma inteligência essencialmente fabricadora, preparara
assim para nós um certo crescimento. Mas máquinas que funcionam a
petróleo, a carvão, a "hulha branca", e que convertem em movimento ener-
gias potenciais acumuladas durante milhões de anos, vieram dar ao nosso
organismo uma extensão tão vasta e uma potência tão formidável, tão
sem proporção com a sua dimensão e a sua força, que decerto nada de
tudo isso se encontrava previsto no plano de estrutura da nossa espécie:
foi uma oportunidade única, o maior sucesso material do homem no
planeta. Talvez uma impulsão espiritual tenha intervindo no começo:
a extensão fez-se automaticamente, servida pela enxada da acidental que
embateu debaixo da terra num tesouro miraculoso \ Ora, neste corpo
desmesuradamente dilatado, a alma continua a ser o que era, demasiado
pequena agora para o preencher, demasiado fraca para o dirigir. Daí o
vazio entre ela e ele. Daí os temíveis problemas sociais, políticos, interna-
cionais, que são outras tantas definições desse vazio e que, para o preen-
cher, provocam hoje tantos esforços desordenados e ineficazes: seriam

1
Falamos em sentido figurado, como é óbvio. O carvão era conhecida muito antes
de a máquina a vapor o ter convertido em tesouro.

256
OBSERVAÇÕES FINAIS

necessárias novas reservas de energia potencial, desta feita moral. Não nos
limitamos portanto a dizer, como fazíamos acima, que a mística atrai
a mecânica. Acrescentemos que o corpo que cresceu espera um suple-
mento de alma, e que a mecânica exigiria uma mística. As origens desta
mecânica são talvez mais místicas do que poderíamos julgar; e ela só
redescobrira a sua direcção verdadeira, só prestará serviços ria proporção
da sua potência, :se a humanidade, que ela curvou ainda mais para a terra,
conseguir através dela reerguer-se e olhar o céu.
Numa obra, cuja profundidade e força nunca admiraremos demais, o
Sr. Ernest Seilliére mostra como as ambições nacionais se atribuem mis-
sões divinas: o "imperialismo" torna-se comummente "misticismo". Se der-
mos a este último termo o sentido que possui para o Sr. Ernest Seilliére \
e que uma longa série de trabalhos definiu suficientemente, o facto é
incontestável; constatando-o, ligando-o às suas causas e seguindo-o nos
seus efeitos, o autor traz uma contribuição inestimável à filosofia dá
história. Mas ele próprio consideraria provavelmente que o misticismo
assim entendido, assim compreendido, aliás, pelo "imperialismo" tal como
ele o apresenta, não é mais que uma contrafacção do misticismo verda-
deiro, da "religião dinâmica" que estudámos no nosso último capítulo.
Cremos dar-nos conta do mecanismo da contrafacção. Tratou-se de um
empréstimo da "religião estática" dos antigos, à qual se retirou a marca e
se manteve a forma estática sob a nova etiqueta fornecida pela religião
dinâmica. A contrafacção não tinha afinal qualquer intenção delituosa;
mal chegava a ser voluntária. Lembremos, com efeito, que a "religião está-
tica" é natural no homem, e que a natureza humana não muda. As crenças
inatas dos nossos antepassados subsistem no mais profundo de nós mes-
mos; reaparecem, a partir do momento em que deixem de ser recalcadas
por forças antagónicas. Ora um dos traços essenciais das religiões anti-
gas era a ideia da existência de um laço entre os agrupamentos humanos
e divindades associadas'a cada um deles.*Os deuses da cidade combatiam
por ela, com ela. Esta crença é incompatível com o misticismo verdadeiro,
quero eu dizer com o sentimento que-certas almas têm de ser os instru-
mentos de um Deus que ama todos os homens com um amor igual, e que
lhes pede que se amem entre si. Mas, remontando das profundidades

1
Sentido do qual só consideramos aqui uma parte, tal como fazemos também no
que se refere ao termo "imperialismo".

257
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO

obscuras da alma à superfície da consciência, e descobrindo nesta a ima


gem do misticismo verdadeiro conforme os místicos modernos a apre-
sentaram ao mundo, orna-se com ela instintivamente: atribui ao Deus do
místico moderno o nacionalismo dos antigos deuses. É neste sentido que
o imperialismo se faz misticismo. Sendo que se nos ativermos ao misti-
cismo verdadeiro, o consideraremos incompatível com o imperialismo.
Quando muito poderá dizer-se, como acabamos de o fazer, que o misti-
cismo não se poderia difundir sem uma "vontade de poder" muito parti-
cular. Tratar-se-á de um império a exercer, não sobre os homens, mas
sobre as coisas, precisamente para que o homem deixe de ter tanto impé-
rio sobre o homem.
Que um génio místico surja; arrastará atrás de si uma humanidade
com o corpo já imensamente aumentado, com a alma transfigurada por
ele. Quererá fazer dela uma espécie nova, ou antes livrá-la da necessidade
de ser uma espécie: quem diz espécie diz estacionamento colectivo, e a
existência completa é mobilidade na individualidade. O grande sopro de
vida que passou sobre o nosso planeta levara a organização tão longe
como o permitia uma natureza ao mesmo tempo dócil e rebelde. Sabe-se
que designamos assim o conjunto das complacências e das resistências
que a vida encontra na matéria bruta, - conjunto que tratamos, a exemplo
do biólogo, como se pudéssemos atribuir-lhe intenções. Um corpo que
333 comportava a inteligência fabricadora, rodeada por uma franja de intui-
ção, era o que a natureza pudera fazer de mais completo. Tal era o corpo
humano. A evolução da vida detinha-se aí. Mas eis que a inteligência,
elevando o fabrico dos seus instrumentos a um grau de complicação e de
perfeição que a natureza (tão inapta para a construção mecânica) não
previra sequer, derramando nessas máquinas reservas de energia em que
a natureza (tão ignorante da economia) não pensara sequer, nos dotou de
forças por comparação com as quais à do nosso corpo mal chega a contar:
serão ilimitadas, quando a ciência souber libertar a força que representa,
condensada, a mais pequena parcela de matéria ponderável. O obstáculo
material quase caiu. Amanhã a via estará livre, na própria direcção do
sopro que conduzira a vida ao ponto em que ela devia ter-se detido. Chega
então o apelo do herói: nem todos o seguiremos, mas todos sentiremos
que deveríamos fazê-lo e conheceremos o caminho que alargaremos, se
por ele passarmos. No mesmo lance esclarecer-se-á para toda a filosofia o
mistério da obrigação suprema: fora iniciada uma viagem, tornara-se

258
OBSERVAÇÕES FINAIS

necessário interrompê-la; ao retomarmos o caminho, não fazemos mais


que continuar a querer o que queríamos já. É sempre a paragem que
reclama uma explicação, não o movimento.
Mas não contemos demasiado com o aparecimento de uma grande
alma privilegiada. À falta dela, outras influências poderiam desviar a
nossa atenção das bagatelas que nos divertem e das miragens em torno
das quais nos batemos.
Com efeito, vimos como o talento de invenção, ajudado pela ciência,
pusera à disposição do homem energias insuspeitadas. Eram energias
físico-químicas, e era uma ciência que incidia na matéria. Mas o espírito?
Terá sido cientificamente aprofundado tanto como teria podido sê-lo?
Saberemos em que poderia resultar um tal aprofundamento? A ciência
começou por dedicar-se à matéria; durante três séculos não teve outro
objecto; hoje ainda, quando não acrescentamos à palavra um qualifica-
tivo, subentende-se que é da ciência da matéria que se está a falar. Disse-
mos outrora por que razões assim é. Indicámos o porquê de o estudo
científico da matéria ter precedido o do espírito. Fora preciso andar de-
pressa. A geometria existia já; fora levada bastante longe pelos antigos;
devia começar-se por extrair da matemática tudo o que ela podia fornecer
no que se referia à explicação do mundo em que vivemos. Não era, de
resto, desejável que se começasse pela ciência do espírito: esta não chegou
por si própria à exactidão, ao rigor, à preocupação com a prova, que se
propagaram da geometria para a física, para a química e para a biolo-
gia, antes de ressaltarem sobre ela. Todavia, por outro lado, não deixou
de sofrer os efeitos de chegar tão tarde. A inteligência humana pôde, de
facto, no intervalo, fazer legitimar a ciência e investir assim de uma auto-
ridade incontestada o seu hábito de tudo ver no espaço, de tudo explicar
por meio da matéria. Passa depois a incidir na alma? Dá-se então urna*
representação espacial da vida interior; estende ao seu novo objecto a
imagem que conservou do antigo: de onde os erros de uma psicologia
atomista, que não leva em conta a penetração recíproca dos estados de
consciência; de onde os esforços inúteis de uma filosofia que pretende-
atingir o espírito sem o procurar na duração. Tratar-se-á da relação entre
a alma e o corpo? A confusão torna-se ainda mais grave. Não se limitou a
pôr a metafísica numa falsa pista; afastou também a ciência da observação
de certos factos, ou antes, impediu de nascer certas ciências antecipa
damente excomungadas em nome de não sei que dogma. Entendeu-se,
AS DUAS FONTES DA M O R A I . E DA RELIGIÃO

então, que o concomitante material da actividade mental a ela equivalia:


supunha-se que toda a realidade tinha u m a base espacial, que não se pode-
ria encontrar no espírito nada que um fisiologista sobre-humano não
pudesse 1er no cérebro correspondente. Notemos que esta tese é u m a
pura hipótese metafísica, interpretação arbitrária dos factos. Mas não
menos arbitrária é a metafísica espiritualista que se lhe opõe, e segundo
a qual cada estado de alma utilizaria um estado cerebral que lhe serviria
simplesmente de instrumento; também para ela, a actividade mental seria
coextensiva à actividade cerebral e correspondei: lhe ia ponto por ponto
na vida presente. A segunda teoria é, aliás, influenciada pela primeira,
cujo fascínio sempre sofreu. Tentámos estabelecer, afastando as ideias
preconcebidas que dos dois lados se aceitam,-cingindo tão estreitamente
quanto possível o contorno dos factos, que o papel do corpo é completa-
mente diferente. A actividade do espírito tem efectivamente um concomi-
tante material, mas que desenha apenas u m a sua parte; o resto permanece
no inconsciente. O corpo é efectivamente para nós um meio de agirmos,
mas é também um impedimento de percebermos. O seu papel é levar a
cabo em todas as ocasiões a operação útil; precisamente para tanto, deverá
afastar da consciência, juntamente com as recordações que não esclarece-
riam a situação presente, a percepção de objectos sobre os quais não tería-
mos qualquer domínio É, como se queira, um filtro ou u m a barreira.
Mantém no estado virtual tudo .o que pudesse perturbar a acção actuali-
336 zando-se. Ajuda-nos a olhar em frente, no interesse daquilo que temos a
fazer; em contrapartida, impede-nos de olhar para a direita e para a es-
querda, por nosso simples prazer. Colhe-nos u m a vida psicológica real no
campo imenso do sonho. Em suma, o nosso .cérebro não é n e m criador
nem conservador da nossa representação; limita-a simplesmente, de ma-
neira a torná-la actuante. É o órgão da atenção à vida. M a s daqui resulta
que deve haver, ou no corpo ou na consciência que limita, dispositivos
especiais cuja f u n ç ã o é afastar da percepção h u m a n a os objectos subtraí-
dos pela sua natureza à acção do h o m e m . Que estes mecanismos se per-
turbem e entreabrir-se-á a porta que mantêm fechada: alguma coisa passa
de um "lá fora" que é talvez um "além". É destas percepções anormais que

1
Mostrámos antes de que modo um sentido como a vista leva mais longe, porque o
seu instrumento torna esta extensão inevitável. (V. p. 148. Cf. Matière et mémoire, todo
o primeiro capítulo).

260
OBSERVAÇÕES FINAIS

a "ciência psíquica" se ocupa. As resistências com que depara são em certa


medida explicáveis. Toma o seu ponto de apoio no testemunho humano,
sempre sujeito a caução. O tipo do cientista é para nós o físico; a sua
atitude de legítima confiança perante uma matéria que evidentemente
não se diverte a enganá-lo tornou-se para nós característica de toda a
ciência. Temos dificuldade em chamar ainda científica a uma investigação
que exige dos investigadores que estejam a todo o momento atentos aos
riscos de mistificação. A sua desconfiança causa-nos mal-estar, e a sua
confiança mais mal-estar ainda: é sabido que depressa nos desabituamos
de continuar prevenidos; é um terreno inclinado e escorregadio o que
medeia entre a curiosidade e a credulidade. Uma vez mais, explicam-se
assim certas repugnâncias. Mas só poderemos compreender a rejeição
posta por verdadeiros cientistas à "investigação psíquica" pela circunstân-
cia de considerarem à partida os factos referidos como "inverosímeis"; e
eles diriam até que "impossíveis", se não soubessem que não existe meio
válido algum de estabelecer a impossibilidade de um facto; estão todavia 337
convencidos, no fundo, da sua impossibilidade. E estão convencidos dela
porque julgam incontestável, definitivamente provada, uma certa relação
entre o organismo e a consciência, entre o corpo e o espírito. Acabamos
de ver que tal relação é puramente hipotética, que não é demonstrada
pela ciência, mas exigida por uma metafísica. Os factos sugerem uma
hipótese muito diferente; e se a admitirmos, os fenómenos assinalados
pela "ciência psíquica" ou pelo menos alguns de entre eles, tornam-se tão
verosímeis que nos surpreenderíamos, sobretudo com o tempo que foi
necessário esperar antes de o seu estudo começar a ser empreendido.
Mas não insistiremos aqui num ponto que discutimos noutro lugar. Limi
temo-nos a dizer, para falarmos apenas do que parece melhor estabele-
cido, que se se puser em dúvida, por exemplo, a realidade idas "mani-
festações telepáticas", depois dos milhares de depoimentos concordantes
recolhidos sobre elas, será o testemunho humano em geral que teremos
de declarar inexistente aos olhos da ciência: em que se tornará a história?
A verdade é que há uma escolha a fazer entre os resultados qne a ciência
psíquica nos apresenta; ela está até longe de lhes conferir a todos o mesmo
estatuto; distingue entre o que lhe parece certo e o que é simplesmente
provável ou quando muito possível. Mas, ainda que retenhamos apenas
uma parte daquilo que tem por certo, fica o bastante para nos deixar
adivinhar a imensidão da terra incognita cuja exploração ela mal chegou

261
AS DUAS FONTES DA MORAI. E DA RELIGIÃO

ainda a começar. Suponhamos que um clarão desse mundo desconhecido


nos chegue, visível aos olhos do corpo. Que transformação numa humani-
dade geralmente habituada, diga o que disser, a não aceitar por existente
senão aquilo que vê e toca! A informação que assim nos chegasse talvez
338 se referisse apenas ao que há de inferior nas almas, ao grau mais baixo da
espiritualidade. Mas talvez não fosse preciso mais para converter em rea-
lidade viva e actuante uma crença no a l é m que se encontra na maior
parte dos homens, embora permaneça as mais das vezes verbal, abstracta,
ineficaz. Para sabermos em que medida conta, basta olharmos a avidez
com que à nossa volta se procura o prazer: este não seria tão importante
se nele se não visse uma conquista arrancada ao nada, um meio de escar-
necer da morte. Na verdade, se estivéssemos certos, absolutamente certos
de sobreviver, não poderíamos pensar noutra coisa. Os prazeres subsis-
tiriam, mas baços e descoloridos, porque a sua intensidade não passa da
atenção que neles fixamos. Empalideceriam como a luz das nossas lâm-
padas ao sol da manhã. O prazer seria eclipsado pela alegria.
Alegria seria, com efeito, a simplicidade de vida que propagaria no
mundo uma intuição mística difusa, alegria, ainda, o que se seguiria a
uma visão de além numa experiência científica alargada. À falta de uma
reforma moral tão completa, será necessário recorrer a expedientes, obe-
decer a uma "regulamentação" cada vez mais invasora, contornar um a
um os obstáculos que a nossa natureza ergue contra a nossa civilização.
Mas, quer se opte pelos grandes meios ou pelos pequenos, impõe-se uma
decisão, A humanidade geme, meio esmagada sob o peso dos progressos
que fez. Não sabe suficientemente que o seu futuro depende dela. Cabe-
lhe ver, para começar, se quer continuar a viver. Cabe-lhe perguntar-se,
em seguida, se quer viver somente, ou fornecer o esforço necessário para
que se cumpra, até mesmo no nosso planeta refractário, a função essen-
cial do universo, que é uma máquina de fazer deuses.

262
Títulos publicados nesta colecção:

Filosofia dos Valores, Johannes Hessen


Os Problemas da Filosofia, Bertrand Rüssel
A Justiça e o Direito Natural, Hans Kelsen
A Filosofia dos Valores, Jean Paul "Resweber
Introdução à Metodologia da Ciência, Javier Echeverria
Corpo e Alma, Pedro Lain Entralgo
A Desumanização da Arte, José Ortega y Gasset
Conjecturas e Refutações, Karl Popper
Homo Aestheticus, Luc Ferry
Os Mestres da Humanidade, Karl Jaspers
Deus, a Morte e o Tempo, Emmanuel Lévinas
Pensamento Pós-Metafísico, Jürgen Habermas
Henri Bergson, filósofo e escritor francês 1859-1941 . estudou no liceu
Condorcet e na Escola Normal Superior. Tendo ensinado em várias escolas,
em 1898 começa a leccionar na Escola \ormal Superior e. dois anos mais
tarde, aceita a cátedra de Filosofia \nt.isa
O no Collège
O de France. Considerado
um dos expoentes máximos da Filosofia da sua época, em 1914 é eleito membro
da Academia Francesa e, em 1928, torna-se Prémio \obel da Literatura.

Colecção STYDÏYM

"Les Deux Sources de la Morale et de la religion ... é publicado em 1932.


Bergson tem setenta e três anos e demorou vinte e cinco anos a preparar este
livro. Como em qualquer um dos seus textos, honrará pois os seus leitores
com a humildade de apenas propor como obra um trabalho no mais elevado
grau de precisão, rigor e maturação; e, num mesmo movimento, como sempre
mostrará a que ponto é exigente o tempo da filosofia e árdua a tarefa do
pensador •[...] O primeiro capítulo, dedicado à Obrigação Moral, facilmente
poderia ser lido de modo autónomo; o segundo e terceiro capítulos,
respectivamente dedicados à Religião Estática e à Religião Dinâmica formam
em conjunto um novo ponto de configuração bem delineada; o último
câpítulo intitulado Considerações Finais. Mecânica e Mística encerra o livro
com um terceiro momento bem marcado. E, no entanto, é um mesmo tecido
que estes fios de reflexão conseguem urdir, o da decifração laboriosa da vida
e da humanidade (pie não se pode dizer no esquecimento do próprio homem."*

Jn Yota de Apresentação de Luís António Umbelino

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