(Coleção Auto-Conhecimento Brasil) Manuel Querino - A Raça Africana e Os Seus Costumes Na Bahia-P55 Edição (1916)
(Coleção Auto-Conhecimento Brasil) Manuel Querino - A Raça Africana e Os Seus Costumes Na Bahia-P55 Edição (1916)
(Coleção Auto-Conhecimento Brasil) Manuel Querino - A Raça Africana e Os Seus Costumes Na Bahia-P55 Edição (1916)
A RAÇA
AFRICANA
E OS SEUS
COSTUMES
NA BAHIA
“O projeto tem apoio financeiro do Estado da Bahia através da Secretaria
de Cultura e da Fundação Pedro Calmon (Programa Aldir Blanc Bahia)
via Lei Aldir Blanc, direcionada pela Secretaria Especial da Cultura do
Ministério do Turismo, Governo Federal”.
APOIO FINANCEIRO:
MANUEL QUERINO
A RAÇA
AFRICANA
E OS SEUS
COSTUMES
NA BAHIA
BAHIA / 2021
A mou profundamente o passado e as tradições. O
seu livro “A Bahia de Outrora”, escrito sem pre-
ocupações de sociólogo, é um magnifico repositório de
observações de todo um passado da vida social baiana.
Muita coisa terá o estudioso a colher nesta interessante
documentação: sobrevivências africanas, autos popula-
res, vida social no século passado, múltiplas questões
sociológicas a que apenas teria que dar uma nomen-
clatura científica: mobilidade social, distâncias sociais,
problemas de casta e de classe, color line, assimilação,
aculturação... que sei mais? O que outros fizeram com
relação a outros setores da civilização brasileira, fê-lo
Manuel Querino, na Bahia, modestamente, sem alardes,
sem exibição cientifica, mas com os mesmos propósitos
de análise das relações de raça e de cultura, principal-
mente entre o africano e o luso-brasileiro, na nova so-
ciedade em formação.
Por isso tudo, “A Bahia de Outrora” deve cons-
tituir um dos livros clássicos, para o conhecimento dos
problemas de origem e formação da vida social e fami-
liar, no Brasil. Os outros trabalhos seus, sobre problemas
culturais e sociais, giram em torno destes dois estudos
citados. “O colono preto como fator da civilização bra-
sileira”, “A arte culinária da Bahia” e outros artigos de
menor porte, acentuam a contribuição do africano na
obra de formação da sociedade brasileira.
Manuel Raymundo Querino nasceu a 28 de ju-
lho de 1851, na cidade de Santo Amaro, na Bahia. A sua
infância foi atribulada, como aliás toda a sua vida. A
epidemia de 1855, em Santo Amaro, levara-lhe os pais.
Foi confiado aos cuidados de um tutor, o professor Manuel
Correia Garcia, que o iniciou nas primeiras letras.
Tendo apenas o curso primário, Manuel Queri-
no lançou-se a aventura, aos 17 anos, alistando-se como
recruta, viajando pelos sertões de Pernambuco e Piauí,
e aí unindo-se a um contingente que se destinava ao
Paraguai, em 1865.
O seu físico franzino não lhe permitiu, porém,
como era o seu desejo, combater nos campos do Paraguai.
Ficou no Rio, onde, por suas habilitações, ficou empre-
gado na escrita do quartel, a que pertencia. Em 1870,
foi promovido a cabo de esquadra, e logo depois teve
baixa do serviço militar.
Voltando à Bahia, começou a trabalhar nas fai-
nas modestas de pintor e decorador. Sobrava-lhe tempo,
porém, para estudar francês e português, no Colégio 25
de Março e no Liceu de Artes e Ofícios, de que foi um
dos fundadores. Com as suas inclinações para o desenho,
matriculou-se na Escola de Belas Artes, onde se distin-
guiu entre os primeiros alunos. Obteve o diploma de
desenhista em 1882. Seguiu depois o curso de arquiteto,
com aprovações distintas. Obteve várias medalhas em
concursos e exposições promovidos pela Escola de Belas
Artes e o Liceu de Artes e Ofícios.
Distinguiu-se no magistério, exercendo os cargos
de lente de desenho geométrico no Liceu de Artes e Ofícios
e no Colegio dos Orfãos de S. Joaquim.
Interessou-se pela política. Foi republicano, liberal,
abolicionista. ComVirgilio Damásio Lellis Piedade, Spino-
la de Athayde e outros do grupo da Sociedade Libertadora
Sete de Setembro, assinou o manifesto republicano de 1870.
Fundou os primórdios “A Provincia” e o “O Trabalho”, onde
defendeu os seus ideais republicanos e abolicionistas.
Combateu, na Sociedade Libertadora, e em
outros núcleos, ao lado de Pamphilo da Santa Cruz,
diretor da “Gazeta da Tarde”, Eduardo Carigé, Sergio
Cardoso, Anselmo Fonseca, Frederico Lisboa, Rogaciano
Teixeira, Cesar Zama e tantos outros, todos empolgados
pela campanha abolicionista, na Bahia.
Manuel Querino foi um dos mais ativos traba-
lhadores do grupo, havendo escrito para a “Gazeta da
Tarde”, uma série de artigos sobre a extinção do ele-
mento servil.
Bateu-se pelas causas trabalhistas e operárias,
tornando-se um verdadeiro líder da sua classe, em
campanhas memoráveis, que o conduziram à Câmara
Municipal. Ali – escreve um dos seus biógrafos – foi
ele contrário às leis de exceções, às reformas injustas,
descontentando aos senhores da situação, mas ao mesmo
tempo ganhando as simpatias daqueles que seriam pre-
judicados por tais reformas, que apenas serviriam para
acomodar a amigos e protegidos da situação dominante.
Nessa mesma ocasião formou um bloco com outros e por
uma indicação fez voltarem aos seus cargos vários fun-
cionários dispensados por uma reforma injusta; e isso
custou-lhe a não reeleição, retirando-se satisfeito para
a sua obscuridade, desvanecido de que soubera cumprir
o seu dever, ficando bem com a sua consciência de fun-
cionário público.
E assim foi toda a sua vida. No seu modesto cargo
de 3º oficial da Secretaria da Agricultura, sofreu os mais
incríveis vexames. Foi consecutivamente preterido em to-
das as ocasiões em que lhe era a promoção. Esqueciam-no
os poderosos do momento. Secretários e chefes de serviço se
desinteressavam-se da sorte do Negro, que iria passar um
dia à historia do seu país. Onde estão todos eles? Quem
se lembra de seus nomes? Servirão para se contar apenas,
em futuro, a história do funcionalismo no Brasil, fun-
cionalismo sem quadros técnicos fixos, oscilando entre as
vontades dos poderosos do momento.
Manuel Querino foi bem o símbolo deste tipo
de funcionário médio, trabalhador e cumpridor de seus
deveres, mas sem a regalia desta coisa incrível que no
Brasil foi batizada com o nome de pistolão. Dito sim-
plesmente, Manuel Querino foi um funcionário sem
pistolão.
Foi reformado administrativamente em 1916.
amargurado e descrente, refugiou-se no Matatú Gran-
de, no aconchego de sua família e dos seus amigos, ou
nas reuniões do Instituto Geográfico e Histórico acolhia
carinhosamente o brasileiro descendente de africanos,
que tantas páginas decisivas escrevera o destino do seu
povo em terras do Novo Mundo. Os homens de ciência
compensaram o que não souberam fazer os homens do
governo.
Manuel Querino faleceu a 14 de fevereiro de
1923. E então os seus trabalhos começaram a ter cer-
ta notoriedade na Bahia. Escreveram-se louvores à sua
memória. Os seus biógrafos contaram a história do hu-
milde professor negro, do artista devotado ao seu tra-
balho, do exemplar chefe de família e amigo dedicado,
do defensor das causas dos trabalhadores e operários do
seu nivel, do estudioso das questões do Negro no Brasil.
A 13 de maio de 1928, inaugurando o seu re-
trato juntamente com o do grande mestre Nina Rodri-
gues, a casa da Bahia prestou-lhe uma homenagem à
altura dos seus meritos. Justificando essa homenagem,
escreveu Bernadino de Souza que foram eles, Nina Ro-
drigues e Manuel Querino, “até agora na Bahia, os dois
maiores estudiosos da raça africana” .
Seu nome – falou AntonioVianna, traçando-lhe
o perfil, na ocasião – seu nome visceralmente ligado ao
problema libertador, intimamente unido ao movimen-
to operário no Brasil, confundindo nos maiores ideais
de independência e de evolução, seu nome ficará para
honra do seu tempo definindo as qualidades elevadas
do homem de cor.
“Estudando os seus irmãos, Manuel Querino
estudou a si mesmo. Descobrindo riquezas no sangue
e na alma do preto, denunciou a matéria de que ele
mesmo era feito, dessa materia de heróis, dessa matéria
de fortes...”
Escreveu muitos trabalhos, entre livros, mono-
grafias e simples artigos de revista e de jornal. Pode-
mos citar, entre os seus trabalhos principais: “As artes
na Bahia”; “Desenho linear nas classes elementares”;
“Elementos de desenho geométrico”; “Artistas Baianos”;
“A raça africana e seus costumes na Bahia”; “O colo-
no preto como fator da colonização brasilieira”; “Bailes
pastoris”; “A Bahia de outrora”; “A arte culinária na
Bahia” (publicação póstuma); vários artigos na Revista
do Instituto Geográfico e Historico da Bahia: “Notícia
histórica sobre o 2 de julho e sua comemoração”; “Os
homens de cor preta”; “Um baiano ilustre”; “Candomblé
de caboclo”...
Reuni neste volume, os trabalhos de Manuel
Querino dedicados aos estudos de etnografia religiosa,
folclore e tradições sociais do Negro no Brasil e que se
poderão enquadrar num título geral – “Costumes afri-
canos no Brasil”.
Abrangem: a) a memória “A raça africana e os
seus costumes na Bahia, apresentada ao 5º Congresso
Brasileiro de Geografia, realizado na Bahia”, em 1916,
e publicada no Iº volume dos Anais do mesmo Congresso;
b)a memória “O colono preto como fator da civilização
brasileira”, apresentada ao 6º Congresso Brasileiro de
Geografia, de Belo Horizonte, e publicada em separata
na Bahia, em 1918; c) o trabalho póstumo “A arte culi-
nária na Bahia”, publicado em 1928, por iniciativa do
Sr. Alberto Moraes Martins Catharino, em homenagem
à familia do saudoso professor; d) excetos de “A Bahia
de outrora”, livro publicado na Bahia, em 1922, com o
sub-título de “Vultos e fatos populares”, excetos em que
há referências a assuntos negro-brasileiros e por isso
reunidos agora com o titulo de “Notas de folclore negro”.
Nestes dois últimos trabalhos, há realmente muita coisa
de tradições e sobrevivências folclóricas, ameríndias e
branco-europeias, penínsulares, mas com o aporte negro
em quase tudo. Por isso mesmo, não hesitei em inclui-los
no atual volume.
Num apêndice de “A raça africana e seus costumes
na Bahia”, acrescentei ainda a curta nota “Candomblé de
caboclo”, publicada na Revista do Instituto Geográfico e
Histórico, da Bahia, volume 45.
Muito haveria que discutir e retocar nestes ensaios
de Manuel Querino. Os estudos de africanologia tomaram
em nossos dias um rumo vertiginoso. Os metódos se aper-
feiçoam e há a preoccupação dos herdeiros da Escola de
Nina Rodrigues em manter as rígidas tradições da escola,
no setor dos estudos negro-brasileiros. Manuel Querino, au-
to-didata, trabalhando com independência metodológica,
sem ligações diretas com as tradições da Escola Bahiana,
deixou-se resvalar em falhas e senões que de certo modo
tiram a alguns de seus trabalhos, o exato sabor científico.
Estas falhas convertem-se em mérito, porém, se
atentarmos nas condições deficitárias em que trabalhou
e pesquisou, sem quaisquer meios de ajuda, sem estímu-
los do ambiente, isolado com os seus segredos e as suas
decepções. Fugiu para o estudo dos da sua raça, como
uma evasão, no recôndito dos candomblés, auscultando
os velhos Pais de terreiro do Gantois, ele voltava às cos-
tas a um mundo que lhe fora quase hostil.
E dali a imensa onda de compreensão huma-
na que resalta das páginas da sua obra. Ela deve, por
isto, ser publicada sem acréscimos e sem retoques. Ape-
nas, aqui e ali, sem nenhuma alteração do texto, appuz
algumas notas indispensáveis à compreensão de certos
pontos, hoje familiares aos africanólogos brasileiros,
mas que poderiam lançar certa confusão no espírito dos
leitores despreocupados.
Tenho a agradecer a boa vontade da família do
Professor Manuel Querino, tudo me facilitando para a
publicação deste livro; aos prezados amigos Drs. Hosan-
nah de Oliveira e Hermilo Guerreiro de Castro, inter-
mediários nos entendimentos havidos, e que me propor-
cionaram o conhecimento de alguns trabalhos esgotados
de Manuel Querino, e outras informações de inestimável
valor; ao Dr. Bernandino José de Souza, por sua preciosa
cooperação, apontando-me alguns estudos do autor, na
coleção da Revista do Instituto Geográfico e Histórico
da Bahia; a outros dedicados amigos e colaboradores, da
Bahia e do Rio, interessados todos nesta obra de reivin-
dicação a um dos maiores estudiosos do Negro, no Brasil.
Arthur Ramos
Rio, janeiro de 1938
“Como pesquisa etnográfica,
nenhuma das levas colonizadoras
merece-nos mais atenção
do que as importadas da
Costa d’África e sua prole”.
1
Rocha Pombo – História do Brasil.Volume 2º.
das tribos que por largos anos conviveram entre
nós, e, sobretudo, porque se extinguiram, preci-
samente, os africanos que, sendo aqui escraviza-
dos, ocuparam, na terra natal, posição social ele-
vada, como guia dos destinos da tribo, ou como
depositários dos segredos da seita religiosa.
Assim, este nosso trabalho é apenas um es-
boço, uma como tentativa.
Apesar da reserva, rigorosamente mantida
pelos africanos, com relação às suas práticas feti-
cistas, conseguimos colher, nas melhores fontes,
seguras informações acerca da religião das tribos
que aqui se extinguiram.
Tanto quanto nos foi possível penetrar os
misteriosos recessos do rito africano, vencendo
resistências oriundas da prevenção e da descon-
fiança, acreditamos haver apreendido as princi-
pais cerimônias que formam o corpo da seita.
Apreciando-se devidamente o coeficiente
de contribuição da raça africana no caldeamento
da população brasileira, não é para desprezar os
estudos dos usos e costumes da mesma raça, aqui
introduzidos e até certo ponto conservados, deli-
beramo-nos a escrever a presente monografia, no
empenho exclusivo de prestar diminuto e desin-
teressado serviço às letras pátrias.
Não presumimos ter produzido um traba-
lho de nota; mas estamos convencidos de que não
é ele inteiramente destituido de valor.
O que podemos asseverar é que nos custou
muito esforço e atividade, afim de que o resulta-
do de nossas pesquisas tivesse o selo da verdade
incontroversa, característica que é dos empreen-
dimentos desta natureza.
As nossas investigações compreenderam os
próprios africanos e estenderam-se aos seus des-
cendentes mais diretos, indivíduos sabedores das
práticas religiosas dos ascendentes.
Incontestavelmente, o fetichismo africano
exerceu notória influência sobre nossos costu-
mes; e nos daremos por bem pago se o reduzido
material que reunimos puder contribuir para o
estudo da psicose nacional no indivíduo e na so-
ciedade. E, aproveitando o ensejo, deixamos aqui
consignado o nosso protesto contra o modo des-
denhoso e injusto por que se procura deprimir o
africano, acoimando-o constantemente de boçal
e rude, como qualidade congênita e não simples
condição circunstancial, comum, aliás, a todas as
raças não evoluídas.2
Não. Primitivamente, todos os povos fo-
ram passíveis dessa boçalidade e estiveram subju-
gados à tirania da escravidão, criada pela opressão
do forte contra o fraco.
Entre nós, o elemento português fez do
africano e sua descendência a máquina inscons-
ciente do trabalho, um instrumento de produção,
sem retribuir-lhe o esforço, antes torturando-o
com toda a sorte de vexames.
Quem desconhecerá, por ventura, o prestí-
gio do grande cidadão americano Booker Washin-
gton, o educador emérito, o orador consumado, o
sábio, o mais genuíno representante da raça negra
na União Americana?
2
Note-se,como, já em seu tempo, Manoel Querino se insurgira contra
o preconceito de inferioridade antropológica do Negro, atribuindo
o seu atraso a contigências sócio-culturais, e não a inferioridade de
raça (A.R.)
A luta que nobremente sustentou, no
Brasil, o elemento africano, com heroísmo ine-
gualável, em favor de sua liberdade mereceu de
ilustre escritor patrício estes memoráveis con-
ceitos: “Quem havia de pensar que estes homens
sem instrução, mas só guiados pela observação e
pela liberdade, foram os primeiros que no Brasil
fundaram uma república, quando é certo que ain-
da naquele tempo, não se conhecia tal forma de
governo, nem dela se falava no país?”.3
O Padre Vieira, referindo-se aos naturais
da Ilha de Cabo Verde, em carta dirigida ao con-
fessor de S.S. Altezas, em 25 de Dezembro de
1652, externou-se assim: “Há aqui clérigos e cô-
negos tão negros como o azeviche, mas tão com-
postos, tão autorizados, tão doutos, tão grandes
músicos, tão discretos e bem morigerados que
fazem invejas aos que lá vemos nas nossas cate-
drais”.
Do exposto devemos concluir que, so-
mente a falta de instrução destruiu o valor do
africano. Apesar disso, a observação há demons-
trado que entre nós, os descendentes da raça
negra têm ocupado posições de alto relevo, em
todos os ramos do saber humano, reafirmando a
sua honorabilidade individual na observância das
mais acrisoladas virtudes.
NOS SERTÕES AFRICANOS
3
Rocha Pombo – História do Brasil.
ainda observam em terras dos sertões do Niger
e do Congo, notícia que colhemos de velhos res-
peitáveis e que nos deram sem reservas nem sub-
terfúgios, porque em nós estas pessoas não viam
mais do que um amigo de sua raça, ou quem, com
sincera simpatia, sempre respeitou e soube fazer
justiça à gente que o cativeiro aviltou, insultou e
perseguiu, mas que não logrou jamais alterar-lhe
as qualidades inatas, afetivas.
Muitos dos costumes que ora passamos a
narrar deitaram raízes profundas no nosso meio;
outros desapareceram por incompatíveis com o
cristianismo dominante; outros modificaram-se
tanto e se infiltraram tão sutilmente através da
massa cosmopolita das nossas populações, que
muito dificilmente se lhes reconhecem traços na
vida da nossa sociedade atual.
Começaremos por descrever como, en-
tre os Nagôs n’África Central4, se pratica com
os recém-nascidos e como se batizam as crianças.
Estando a mulher nos últimos dias da gestação
davam-lhe de beber uma infusão de folhas, na
qual se embebia um retalho de pano com que se
umedecia o corpo da parturiente. Dada à luz à
criança, servia o pano para envolvê-la, depois de
lavada, dando-se-lhe de beber da mesma.
No umbigo do recém-nascido deitava-se
um emplastro daquelas folhas maceradas. Du-
rante três vezes era a criança imergida n’água,
do mesmo modo que pratica o indígena ameri-
cano. Estava batizada, e em seguida entregava-se
ao genitor. Decorrido algum tempo a criança era
4
Ficaria melhor dito “na África Ocidental”. (A. R.).
apresentada ao Sova do tribo, que confirmava o
batismo, estendendo sobre ela o seu manto.
Em diversos lugares observavam a seguin-
te prática: duas mulheres grávidas faziam esta
combinação: se dessem à luz a dois meninos se-
riam eles amigos e se fossem menino e menina se
casariam.
Outras vezes os casamentos eram contratados
depois de nascidos os filhos, ainda em tenra idade.
Assim ajustados, os parentes do noivo
mostravam o maior cuidado e interesse pela noiva
até o final, encarregando a um amigo de vigiar a
rapariga em todo lugar.
Na ocasião aprazada concluiam o ajuste.
Se o rapaz abusasse da intimidade, por ofensa ao
pudor, era condenado a grande indenização e des-
terrado definitivamente para outra tribo; se o de-
lito fora mais grave, com intervenção da feitiça-
ria, nesse caso a pena era capital, enterravam-no
vivo, em pé, tendo, apenas, a cabeça fora do solo.
Os parentes não se casavam entre si.
Na África Oriental, até o meiado do século
passado, era observada com rigor, a Pena de Talião.
O indivíduo que cometesse um assassinato
e fosse logo capturado, teria execução imediata,
antes de ser sepultada a vítima. Quando o indi-
gitado negava o crime, procediam do seguinte
modo: o Sova mandava vir um ídolo, lavava-o e a
água dava a beber ao delinquente.
Se o indivíduo vomitasse o líquido seria
considerado inocente; no caso contrário, a conde-
nação era inflexível. Armavam enorme fogueira,
em presença dos parentes e amigos do criminoso,
e, em momento dado, atiravam-no nas chamas.
Diferentes eram os meios empregados na
captura e apreensão de crianças e adultos, nos ín-
vios sertões do contigente negro. Autorizados pelo
Sova, governador local, que participava das pro-
ventos do negócio (vide Estampa n.2) e por isso
entendia-se diretamente com os negreiros, exer-
cendo ativa vigilância na costa para evitar a ação
dos cruzeiros que vigiavam os mares, os traficantes
de carne humana lançavam mão de toda a sorte de
simulação, conducente aos fins que visavam.
As crianças começavam por entretê-las
com frutos, acaçás, acarajés, pipocas e outras
iguarias, atraindo-as para lugares ermos e distan-
tes, entre cantigas e danças. Ao anoitecer, os in-
cautos, longe de suas choupanas, desconhecidos
os caminhos, impossibilitados de voltarem, eram
entregues aos mercadores. Com os adultos, varia-
vam o processo da cilada: improvisavam-se mer-
cados, e quando havia muita gente reunida davam
o cerco, e bem poucos eram os que escapavam.
Outras vezes, procuravam trabalhadores
para o amanho da terra, mediante rendoso salário;
depois de alguns dias surgiam os agenciadores que
se apoderavam, à viva força, dos incautos negros.
Em outras ocasiões, os interessados induziam os
caçadores de homens livres a promoverem festas
que, de ordinário, se efetuavam à noite. Em dado
momento, surgiam os agenciadores a tocarem
gaitas, a cantarem e a baterem palmas. Os que se
divertiam, segundo combinação prévia, vinham
ao encontro deles, e nesse momento fingiam uma
agressão, que degenerava logo em conflito.
O grupo assaltante amarrava os prisionei-
ros e conduzia-os à presença do Sova que, ime-
diatamente os remetia aos compradores, a troco
de fumo, aguardente, miçangas, pano de algodão,
espingardas e fardas velhas, facas, etc. Além disso,
os próprios africanos vendiam-se uns aos outros: e
neste caso, as crianças furtadas eram logo marca-
das com a tatuagem da tribo a que iam servir.
Haviam também outros que se faziam es-
cravos voluntariamente, escolhendo o indivíduo
a quem queria servir; apresentava-se dizendo que
queriam vender o corpo. Isto combinando, rece-
biam o pagamento, que constava de uma peça de
zuarte, um frasco de aguardente e dois lenços.
Os escravos assim adquiridos não podiam
ser vendidos fora do local ou exportados.
Em 1522, os mouros, rapazes e raparigas,
devido ao aperto da fome, ofereciam-se como
escravos, somente para obterem a alimentação;
e assim, embarcavam para Lisboa e Sevilha, para
onde os navios seguiam carregados.5 As viagens
do interior para o litoral tornavam-se penosas,
pois, seguiam os negros algemados, com dupla
canga de madeira que os prendia a dois e dois,
pelo pescoço. A marcha durava semanas e meses
através de rios e florestas, mal alimentados, sem
repouso, cabeças descobertas expostas ao sol ar-
dente, até o ponto de embarque, como fossem,
Lagos e toda a Costa de Guiné, que se constituí-
ram o maior empório de exportação de africanos
para o Brasil.
Os árabes foram os maiores e mais ousa-
dos traficantes do continente negro; armavam
5
Vida de Fr. Luiz de Souza – Curso de Literatura por Sotero dos Reis,
volume 2º.
caravanas para dar caça ao homem, e bem assim
compravam a mercadoria humana aos chefes locais
para revendê-las aos portugueses e a outros com-
pradores.
A crueldade dos árabes excedia ao que há
de mais hediondo e desumano. Se o escravizado
não podia seguir o bando, era esfaqueado, enfor-
cado ou deixado ao abandono, exausto de fome.
“Sempre o mesmo motivo para o assassínio; fu-
rioso pela perda do seu dinheiro, o dono alivia a
sua cólera matando o escravo que não pode conti-
nuar”.6 Os traficantes, ao receberem a mercadoria,
marcavam-na com um ferro em brasa, nos peitos,
nas costas, nos braços e no ventre, de acordo com
a senha convencionada pelos consignatários, no
Brasil. De modo que, aqui chegando, cada qual
distinguia o que era seu. Está averiguado que os
primeiros escravizados chegaram ao Brasil em
1538, em uma nau pertencente ao famigerado
Jorge Lopes Bixorda, que muito antes, em 1512,
levara para Europa alguns indígenas como espéci-
me do tráfico, ao preço de três mil e setecentos
réis, por cabeça.
E nessa razão eram dados aos tripulantes
dos navios em pagamento de etapas vencidas ou
trocados por mercadorias.
“Ainda que se saiba que havia nesse tempo
escravos mouros em Portugal, todavia entre os do-
cumentos que indagamos, nenhum dá a entender que
antes desta data outros tivessem vindo da África; fo-
ram, pois, os negros de Bixorda as primeiras semen-
tes que deviam fecundar a superfíce d’América”.7
6
Livingstone – Viagens de exploração, página 95.
Levados para bordo, completamente nus,
os adultos ocupavam lugar no convés da embarca-
ção e as crianças, de ambos os sexos, se alojavam
em torno do beliche do comandante.
Reproduzimos aqui o depoimento do Dr.
Cliffe, testemunha ocular dos horrores do tráfico
nefando:
“Os escravos são acumulados confusamente
e deitados de lado, em uma mistura geral de bra-
ços, pernas e pernas, de forma que é impossível a
um deles remexer-se sem que a massa inteira se
remexa também. Na mesma embarcação formam-
se, às vezes, duas ou mais cobertas, apinhadas de
escravos, e cuja altura não excede de pé e meio ou
mesmo de um pé.
Eles têm assim o lugar preciso para conser-
varem-se deitados, ou por assim dizer, achatados;
mas uma criança não poderia estar sentada nestas
longas linhas de catacumbas... São servidos por um
só homem, que faz descer-lhes uma cabaça de água
e uma ração de alimentos. Somente aqueles que
parecem mais abatidos, são içados para o convés,
ao ar livre.
Os navios perdem às vezes mais de metade
de sua carga, e até cita-se o exemplo de um car-
regamento de 100 negros, dos quais só 16 sobre-
viveram à viagem.
Nada pode dar uma ideia dos sofrimentos
a que estes desgraçados estão sujeitos por causa
principalmente da falta d’água. Como a presença
a bordo de uma grande quantidade d’água e de
barris expõe os negreiros ao apresamento, eles
7
Dr. Jaguaribe Filho – Os herdeiros de Caramuru.
têm chegado, depois de cálculos de uma odiosa
precisão, a reconhecer que, distribuindo uma vez
de três em três dias a cada indivíduo a água con-
tida em uma xícara de chá, isto bastaria para con-
servar-lhe a vida.
Nada igualmente pode dar ideia exata da
imundice horrível de um navio carregado de escra-
vos. Acumulados, ou antes embarrilados como se
acham os negros, torna-se quase impossível limpar
o navio, que é de ordinário abandonado, a falta de
um Hércules assaz temerário para varrer essas no-
vas estribarias d’Augias... Não resta dúvida de que,
se um branco fosse mergulhado na atmosfera em
que vivem os desgraçados negros, seria imediata-
mente asfixiado.
Para fazer chegar 65 mil negros ao Brasil,
fora preciso arrancar 100 mil da Costa d’África,
e que, desses 65 mil, morrem comumente 3, 4 ou
5 mil nos dois meses subsequentes à sua chegada.
Se as antigas matanças de prisioneiros de
guerra a fio de espada; se o degolamento dos ino-
centes; se as fogueiras ou autos de fé da inquisição,
crimes perpetrados na praça pública e no meio
do povo, parecem-nos horríveis, não obstante a
diferença dos tempos; o que diremos desse novo
gênero de suplício consumado, em grande parte,
nas praias desertas ou nas solidões do oceano, en-
tre o algoz e a vítima, e perante a majestade do
supremo vingador de todas as vítimas?”8
A vigilância era rigorosa, a fim de evitar
que eles se atirassem ao mar, como por vezes
acontecera, sendo que os mais salientes e peri-
gosos eram presos a fortes argolas, cravadas no
madeiramento do navio. Com toda propriedade
8
Apud Cartas do Solitário – do Dr. A. C.Tavares Bastos – Rio de
Janeiro, 1863.
assinalou este fato o genial poeta do “O Navio
Negreiro”, quando disse:
NA AMÉRICA PORTUGUESA
“...aos vinte anos, formei a
resolução de votar a minha vida, se as-
sim me fosse dado, ao serviço da raça
generosa entre todas que a desigual-
dade da sua condição enternecia em
vez de azedar e que por sua doçura no
sofrimento emprestava até mesmo à
opressão de que era vítima um reflexo
de bondade”.
Joaquim Nabuco
9
“Havia mais nesta cidade o terrível costume que todos os negros que chega-
vam da Costa d’África a este porto, logo que desembarcavam,... (cont. p 31)
O Argos Sant’Amarense foi mais preciso, afir-
mando que “o próprio presidente da Província, no
dia 21 de outubro de 1849, ao anoitecer, desembar-
cara na Cidade de Santo Amaro um grande número
de africanos novos que da capital tinha levado em
um barco, e os conduzia para seu engenho”.
O consul inglês reclamava do governo da en-
tão Província, medidas eficazes que proibissem a saída
de sete navios que se aprestavam para o tráfico.
Solicitava ainda o representante do governo
britânico que os navios fossem desarmados, ante-
cipando-se a violências que depois vieram. O Argos
Bahiano, comentando o fato observava: “É preciso
confessar que só o governo e, principalmente o seu
agente nesta província são os culpados de todas as
violências praticadas pelo cruzeiro inglês”. O emi-
nente geográfo Theophilo Lavallé, tratando do Bra-
sil, escrevia:
“O Brasil é uma país sem riquezas reais, sem
indústrias, sem trabalho. A população se compõe
de nobres orgulhosos e semi-bárbaros, de comer-
ciantes ávidos, de nômades selvagens e de negros
que sofrem o peso rigoroso da escravidão”. De fato
assim era. Só o africano era obrigado ao trabalho,
amanhando as terras e colhendo os produtos da se-
menteira, porque o regime estabelecido neste país
era a ambição do ouro sem o amor ao trabalho. Até
o clima servia de desculpa aos ociosos, e por isso
... entravam para a cidade, vinham para as ruas públicas e principais delas,
não só cheios de infinitas moléstias, mas nus; enquanto não têm mais ensi-
no, são o mesmo que qualquer outro bruto selvagem, no meio das ruas onde
estavam sentados em umas tábuas, que ali se estendiam, ali mesmo faziam
tudo quanto a natureza lhes lembrava, não só causando o maior fétido nas
mesmas ruas e vizinhanças, mas até sendo o espetáculo mais horroroso que
se podia apresentar aos olhos”. (Relatório do Marquês de Lavradio,Vice-Rei
do Rio de Janeiro, em 19 de Junho de 1779).
dizia José de Alencar: “O europeu não resistia; o
índio não se sujeitara; compraram o negro”.
Conduzidos os escravos às casas dos com-
pradores, aí ficavam por algum tempo, não se lhes
permitindo sair à rua, emquanto não compreen-
dessem alguns vocábulos da língua portuguesa.
Os africanos, aqui introduzidos, perten-
ciam a diversas tribos, como fossem: Cambinda,
Benin, Jeje, Savarú, Maqui, Mendobi, Cotopori, Daxá,
Angola, Mossambique, Tápa, Filanin, Egbá, Ioruba, Efon
ou cara queimada, Quêto, Ige-bú, Ótá, Oió, Iabaci, Con-
go, Galinha, Aussá, Igexa, Barba, Mina, Oondô Nagô,10
Bona, Clabar, Bornô, Gimun, a gente predileta ou pre-
ferida dos olhadores etc., tribos de que temos aqui
ainda alguns representantes.
O extensíssimo litoral que compreende a
Serra Leoa e a Libéria, designado pelo nome de
Guiné foi imenso empório da grande exportação de
africanos para o Brasil.
“Era principalmente para a Bahia, que fora
capital do Brasil durante muitos anos, que se enca-
minhavam os desgraçados filhos da adusta Líbia, e
por isso os naturais de Guiné ainda hoje dão o nome
de Bahia, ao Brasil, à América e até a Europa”.11
10
O vocabulo Nagô abrange as tribos seguintes: Mina Ioruba, Igexa,
Ijebus, Efon, Otá, Egbá, devido à grande extensão de território ue
compreende as terras da Costa dos Escravos.
As tribos Egbá e Iorubá as mais distintas, eram consideradas primi-
tivas. (Nota de M.Q). Manuel Querino confundiu, nesta enume-
ração de “tribos” africanas, nomes de nações e simples designações
de localidades, como ele próprio o reconhece mais adiante. Para a
critica as “listras” de povos negros importados do Brasil, vide o Negro
Brasileiro (pág.15) e As culturas Negras no Novo Mundo, págs.228
e segs. ( A. R).
11
Onesine Reclus – A terra Ilustrada, pág. 674.
“Os Minas, entre os quais se recrutou
uma infinidade de escravos para a América, são
homens de compleição atlética, pelo que no Bra-
sil eram estimados como servos, ao passo que se
tornaram temidos pela natural altivez, própria de
homens nascidos para a liberdade”.
Iorubas, Egbás e Quêtos, muito considerados
em suas próprias terras, eram ali de ordinário
preferidos nas posições locais. Os que mais se
adaptaram à nossa civilização foram: o que deu
o tipo do capadócio, engraçado, o introdutor
da capoeira; o Ijexa, o Congo e notadamente o
Nagô, o mais inteligente de todos, de melhor ín-
dole, mais valente e mais trabalhador. Os Jejês
assimilaram um pouco os costumes locais,mas,
não em tudo. Eram muito dados a tocatas, a dan-
ças e um tanto fracos para o trabalho de lavoura.
Os mais ferozes e turbulentos eram os Efun ou
cara queimada.
Em geral, falavam os africanos diversos
dialetos, que pareciam derivados de grupos de
línguas diferentes; sendo a língua Iorubá a mais
importante pela extensão do seu domínio no con-
tinente negro.
Os nomes acima citados indicam, apenas,
localidades de nascimento ou de tribo onde a lin-
guagem primitiva sofreu alterações, originando
os diversos patuás.
A mistura de tantas tribos diversas na
mesma cidade tornou isso uma Babel africana, de
modo que se tornava comum, aos já aclimatados,
no meio da conversação mal entretida, o empre-
go de termos da língua portuguesa a fim de se
fazerem entender.12
O africano foi um grande elemento ou o maior
fator da prosperidade econômica do país: era o braço
ativo e nada se perdia do que ele pudesse produzir. O
seu trabalho incessante, não raro, sob o rigor dos açoi-
tes, tornou-se a fonte da fortuna pública e particular.
“Nas fazendas, os desgraçados sofriam a práti-
ca de uma regime de terror, porque o fazendeiro, te-
mendo a rebeldia do negro, a reação da besta, trazia-
-os enfreiados, como que tolhidos de toda e qualquer
ação intelectual, por um sistema de desumana disci-
plina. Inventou para esse fim os mais perfeitos ins-
trumentos de martírio – os troncos, as gargalheiras,
as escadas, os bacalhaus cortantes, os sinetes incan-
descentes, as tesouras para cortar lábios e orelhas, os
Anginhos e colares de ferro. De mais, quando o delito
era gravíssimo, amarravam os negros e os metiam vi-
vos no âmago das fornalhas ardentes dos engenhos”.13
E praticavam essas atrocidades os que se di-
ziam pioneiros da civilização e da cultura. Fora ele o
operário de todas as aplicações mecânicas e auxiliar
de artes liberais.
Apesar das injustiças que sofreu, apesar de
todo o esforço dispendido, toda a sua existência con-
sagrava-se à formação de fortunas, que se transmiti-
ram a mais de uma geração de senhores.
12
‘O missionário Clark fez confronto lexicológico de 299 línguas africanas.
Porém a obra mais completa, no gênero crítico e narrativo, obra que
sintetiza e examina miudamente todos os trabalhos anteriores, é a de R. N
Cust. A ela pode recorrer, com grande utilidade, quem queira dedicar-se a
investigações sobre qualquer...grupo africano, pois que, além de uma vasta
indicação das fontes, encerra a exata e completa enumeração de muitíssimas
línguas e dialetos”. Manual da Ciência da Linguagem, por Giacomo
Grigorio, pág. 104.
13
Gonzaga Duque – A Arte Brasileira.
Raça benemérita, escarnecida, explorada
“que atravessou três séculos de opróbio e de opres-
são, maldita de todos, perseguida por uma infinita
sucessão de violências e vergonhas” pelos que viviam
na ociosidade a ostentar luxo e grandeza, à custa do
seu trabalho.
“O negro, fruto da escravidão africana, foi
o verdadeiro elemento econômico, criador do país
e quase o único.
“Sem ele, a colonização seria impossível,
ao menos a dissipar-se a ilusão do ouro e das pe-
dras preciosas que alentaram, em grande parte, e a
princípio, os primeiros colonos”.
“Também por outro lado foi o negro o má-
ximo agente diferenciador da raça mista que no
fim de dois séculos já afirmaria a sua autonomia e
originalidade nacional”.14
Em 1625, tendo o governador, D. Francisco
Rolim de Moura, informado a El-Rei, Felipe III, do
serviço que havia aqui prestado à coroa um africano,
o qual durante a guerra dos holandeses, numa oca-
sião, trepado em um genipapeiro com um saco de
pedras, matava a pedradas quantos holandeses podia
alcançar, mandou El-Rei libertar o preto à custa da
Fazenda Pública, e fundar a fortaleza no lugar do
genipapeiro, com o nome de S. Antonio, por que
Antonio se chamava o preto, a quem o El-Rei fez
capitão comandante da mesma fortaleza.15
Como defensor do território nacional, diz
ilustre historiador patrício: “Não se pode fazer uma
ideia das conjuturas em que se viram as primeiras
feitorias e os primeiros núcleos da costa, aqui, à
14
João Ribeiro – História do Brasil.
15
Hoje serve de prisão civil denominada Casa da Correção, nesta cidade
mercê, quase indefesos, de investidas formidáveis
dos gentios. Não fosse o braço forte do negro o que
teria sido daquelas tentativas de fixação e domínio?
“Quando começaram a entrar os africanos,
a sua função principal foi a das armas, na repulsa
às temerosas agressões das hordas indígenas”.16
“Os negros africanos, importados no Bra-
sil desde os primeiros tempos do descobrimento,
sempre se mostraram dignos de consideração, pe-
los seus sentimentos afetivos, resignação estóica,
coragem, laboriosidade”.
Concorreu como auxiliar direto para a
emancipação política do Brasil, de modo que con-
quistou a liberdade para aqueles que depois disso
os conservaram na escravidão.
Durante a luta da independência, na Bahia,
criaram-se batalhões de milícias compostos de
crioulos, sob a denominação de Legião dos Henri-
ques, em homenagem aos grandes feitos d’armas
contra holandeses, em Pernambuco, praticados
pelo valente cabo de guerra Henrique Dias.
A essa legião foram incorporados alguns
batalhões compostos de africanos, sendo um co-
mandante de um deles o tenente coronel João
Baptista de Faria, africano falecido na cidade de
Cachoeira onde exercia o lugar de Procurador do
Foro. Este oficial fez parte da companhia de vete-
ranos que deu guarda de honra a S. M. D. Pedro II,
por ocasião de sua visita a esta província, em 1859.
Conta-se que o africano Domingos de tal,
morador à Ladeira de S. Thereza, costumava aí dar
funções de candomblés e, numa dessas ocasiões, foi-lhe
cercada a casa pela polícia. Exibindo a sua patente de
16
Rocha Pombo – História do Brasil.
tenente de milícias, teve que ser recolhido à sala livre
do Aljube. Um outro, sendo convidado a comparecer
na polícia, acusado de ter sido parte num levante, em
lá chegando fora mal recebido pela autoridade. Ime-
diatamente colocou no peito a venéra Ordem de Pe-
dro I, e a autoridade moderou logo o seu mau humor.
Francisco Nazareth, africano, capitão de
milícias, exerceu, por muito tempo, o lugar de
mestre da banda de barbeiros denominada – Ter-
no–. Como se vê, o africano prestou valiosos ser-
viços à conservação da unidade territorial e defesa
da integridade nacional, serviços que não foram
devidamente compensados.
Com resignação evangélica suportou todos
os martírios da civilização brasileira: nunca, porém,
deixou de ser o tipo da fidelidade, tendo por apa-
nágio a gratidão.
“A escrava martirizada ontem pela senhora, to-
ma-lhe hoje o filho e o cria, amorosa, solícita, com o
cuidado e a ternura da maternidade desinteressada”.
Por ocasião do levante de 1835, o africano li-
berto Duarte Mendes e sua parceira Sabina da Cruz,
denunciaram ou preveniram a insurreição planeja-
da, prestando desse modo relevante serviço à popu-
lação da capital. A Assembleia Provincial, tendo em
apreço esse ato de fidelidade, pelas leis nº 344, de 5
de agosto de 1848, e 405, de 2 de agosto de 1850,
dispensou os referidos africanos do pagamento dos
impostos provinciais a que eram obrigados.
Se o elemento africano não teve notória in-
fluência, no que diz respeito à moral, no meio em
que viveu, tambem não destruiu o que encontrou;
ao contrário, foi um sustentáculo persistente dos
bons costumes, no regime doméstico.
Como é sabido, refere conceituoso escritor
nacional, – a raça preta não só tem modificado o
caráter nacional, mas, tem até influído nas institui-
ções, nas letras, no comércio e nas ciências do país,
“Vivendo conosco no tempo e na ação, os escravos
dominaram às vezes de tão alto que a eles devemos
ensino e exemplos”.17
CULTO FETICHISTA
OS ORIXÁS
17
Mello Moraes e Filho.
18
Sem estudos etnográficos aprofundados, Manuel Querino avançou afirma-
ções, como esta, que não correspondem à realidade (A. R).
19
A magia era reservada aos reis e sacerdotes.
20
Os ídolos de pequenas dimensões têm os nomes de Ochê ou Iché, conforme
a tribo
ficou com as duas crenças. Encontrou no Brasil a
superstição, consequência fatal aos povos em sua
infância. Fácil lhe foi aceitar para cada moléstia ou
ato da vida um santo protetor, por exemplo: para
as moléstias de garganta, S. Braz; casos de feridas e
chagas, S. Roque; contra o raio, S. Bárbara; contra a
peste, S. Francisco Xavier; contra bicheira de animais,
S. Marcos; contra queimaduras, S. Lourenço; para o
casamento, S. Gonçalo. Santo Antonio, então era
solicitado a propiciar diversas e numerosas preten-
ções: dar conta de escravos fugidos, de objetos per-
didos, etc. Dest’arte não teve o africano dificuldade
em encontrar uma como semelhança entre as divin-
dades do culto católico e os ídolos de seu fetichismo,
conforme o poder milagroso de cada um.
Assim é que a Santo Antonio chamou Ogun;
a S. Jorge, Oxosse; à Santa Anna, Anamburucu; à San-
ta Bárbara, Iansã; a S. Jeronimo, Barú; a S. Bento,
Omoulú; à N. S. do Rosário, Iemanjá; à N. S. da Con-
ceição, Oxun; à S. Francisco, Rôco, abrandando o som
forte da primeira consoante, simbolicamente repre-
sentado por uma gameleira velha ou figueira brava;
e S. Caetano, pela gameleira nova.
Ossonhe é um outro orixá e corresponde ao
Caipóra que só tem uma perna. O africano nutre
a mesma crença do indígena, neste particular. “O
Caapóra, vulgarmente Caipora, veste as feições de
um índio, anão de estatura, com as armas propor-
cionadas ao seu tamanho, habita o tronco das ár-
vores carcomidas para onde atrai os meninos que
encontra desgarrados nas florestas. Outras vezes
divagam sobre um tapir ou governam uma vara
de infinitos caititus cavalgando o maior deles. Os
vagalumes são os seus batedores, é tão forte o seu
condão que o índio que por desgraça o avistasse
era mal sucedido em todos os seus passos. D’aqui
vem chamar-se caipora ao homem a quem tudo sai
ao réves!”21
GUNUCÔ
21
Gonçalves Dias – Obras Póstumas,Vol.VI, pág. 130.
22
Filha de santo ou feita é a designação que se dá à mulher que, depois de
satisfazer as obrigações do rito, tem entrada no grêmio fetichista.
23
Mãe de santo é a mulher que dirige o terreiro.
em outros dias. Dest’arte, as mulheres fetichistas
se tornam entre si conhecidas; e no entanto, essa
circunstância passa despercebida às pessoas indife-
rentes às manifestações exteriores do culto.
Os trajes variam conforme o santo: se a rou-
pa é branca, as filhas de santo são obrigadas a trazer
contas, pulseiras de búzios e adereços de pescoço da
mesma cor; e não lhes é permitido tratar de qualquer
negócio tendente ao orago sem as vestes da seita, pois
cada encantado tem o seu emblema característico.
Os dias da semana são assim consagrados
aos diversos santos da religião da tribo:
Segunda-feira é de Omolu
Terça-feira - Nanan Buruku
Quarta-feira - Iansã e Xangô
Quinta-feira - Oxosse e Ogun
Sexta-feira - Oxalá
Sábado - Iemanjá e Oxum
PEGI
O INHAME NOVO
O IFÁ
26
Apesar da incorreção das notações musicais, este clichê e os de págs.
108-109, vão reproduzidos do trabalho original do Autor, nos Anais do 5º
Congresso Brasileiro de Geografia (A. R).
Os instrumentos do olhador são: Obi, ourô-
bô, pimenta da Costa e o opélé-ifá, espécie de rosário,
cujos padre-nossos são representados por caroços
de manga, em pequenas rodas.
Ás vezes contém dezesseis moedas de pra-
ta. Ás mulheres só é permitido olhar com búzios.
Adivinhador – Olhador, Babalaô são designa-
ções aplicadas aos indivíduos que têm o privilégio
de prever o futuro e descobrir também os maléfi-
cios praticados por outrem.
Curandeiro – é o indivíduo que pratica a me-
dicina, prepara drogas e medicamentos, sem outra
intenção que não seja benfazeja.
Candomblezeiro – é um sacerdote do rito
fetichista: sua missão é preparar postulantes para
receber o santo, e dirigir os atos da cerimônia li-
túrgica. O Feiticeiro pode acumular as funções de
olhador; mas, todo o seu trabalho consiste em cau-
sar dano a outrem: é o malfeitor da seita. Se o in-
divíduo procura fazer mal a alguém e é atingido
pelo mesmo mal, costumam os feiticeiros explicar
o caso do modo seguinte: “Quem não tem motivos
para fazer a desgraça do seu semelhante, o feitiço
procura seu destino e, não encontrando a pessoa
designada, nem objeto de seu uso, recai inteiro so-
bre o interessado e aí produz o efeito”.
É o caso do feitiço contra o feiticeiro.
A FESTA DA MÃE D’ÁGUA
28
Gonçalves Dias – Op. Cit. –Vol.VI – pág. 130.
29
Barbosa Rodrigues – O Miyrakitã – 1889 – pág. 130.
mendação para benefícios futuros. Um pequeno
saveiro de papelão, armado de velas e outros uten-
sílios de naútica era lançado ao mar, conduzindo
como dadiva à mãe d’água, figuras ou bonecos de
pano, milho cozido, inhame com azeite de dendê,
uma caneta e pena, e pequenos frascos de perfu-
maria.
De volta à casa de onde partiu o presente, as
pessoas que tomaram parte na comitiva ajoelham-
se, proferem algumas palavras cabalísticas e tocam a
cabeça no solo, como é do ritual.
30
Obi é uma pequena fruta da África, indispensável nos negócios fetichistas.
copo, um prato com obis.30 Aproxima-se então o
executor da cerimônia, homem ou mulher, ume-
dece os dedos da mão direita n’água da quartinha,
bate três vezes na mão esquerda fechada e diz:
Ouri-apêrê – isto é, “a cabeça da iniciante ajude a
todos”; e descansa a mão direita na cabeça da ini-
ciante, o que equivale a invocar o anjo da guarda.
Depois, o oficiante eleva o prato dos obi à al-
tura da fronte, num gesto de oferenda, profere algu-
mas palavras no sentido de ser satisfeito ao pedido.
Parte um obi, fecha-o nas mãos, faz uma in-
vocação, e ato contínuo atira-o ao chão. Em confor-
midade com a posição que tomam os fragmentos
do fruto, dá-se a interpretação de pedido, podendo
também significar uma circunstância alheia ao ato.
Por exemplo: caindo três fragmentos do obi
voltados para cima e um para baixo, não está bem
encaminhado o negócio. Recomeça-se a operação:
se cairem dois fragmentos voltados para cima, e
outros tantos voltados para baixo ou todos quatro
pra cima, é sinal certo de que a oferta foi bem re-
cebida. Para esta cerimônia só se empregam obi de
quatro olhos, pois os de cinco ou seis, não produ-
zem o efeito que se pretende. O executor da ce-
rimônia tritura, em seguida, na boca um pedaço
de obis; segura a cabeça da iniciante com ambas as
mãos, aconchega-a aos lábios, faz o pedido e expe-
le os fragmentos do fruto.
Depois, come parte do obi, bebe um pouco
d’água e divide o restante com as pessoas presen-
tes. Ato contínuo, apresenta-se uma mulher, que
faz entrega de alguma aves, como sejam: pombos,
galinhas, ditas de Angola, e um catassol ou cara-
mujo, recebendo a espórtula desse serviço. Nessa
ocasião o mestre da cerimônia canta uns salmos
especiais, toca as aves no corpo dos assistentes, e,
depois faz o mesmo à pessoa que dá comida à cabe-
ça, a qual então, diz em segredo, ao ouvido de uma
das aves, o que pretende. Isto feito, as entrega para
o sacrifício, à exceção do catassol que, depois de
partido, é colocado à cabeça da iniciante.
Os assistentes molham os dedos n’água da
quartinha e passam na cabeça.
Concluída a matança das aves, catam-se-
lhes as penas mais finas e delicadas e as colocam
úmidas do sangue do sacrifício, na fronte da inicia-
da. Parte-se novamente um obi a fim de verificar-
se a aceitação do sacrifício; e, diante do resultado
positivo, preparam-se as comidas, enquanto o cele-
brante, fora do lugar, chama três vezes pela inicia-
da, a qual no último chamamento é que responde,
levantando-se imediatamente.31
Preparada a comida, a que se ajuntam aca-
çás, angu de inhame com azeite de dendê, acarajés e efó,
retira-se a comida da cabeça em primeiro lugar, e
coloca-se em vaso especial.
Em seguida, a parte pertencente a quem
está dando comida à cabeça; sendo a parte restante
distribuída entre os assistentes. Das bebidas alcoó-
licas só o vinho é permitido.
Terminada a refeição, cantam, dançam em
regozijo do bom acolhimento que obtiveram, por
parte do santo ou espírito protetor, e dá-se por ter-
minada a cerimônia. Conforme a resposta obtida,
31
Nas cerimônias consagradas a Nanan Buruku os animais não são sacrifica-
dos, à faca, mas por outro processo: são amarrados, os olhos vendados com uma
folha de taioba e atirados no chão, as pessoas presentes cantam, dançam até
que o animal desfaleça, sem que se lhe toque. Não podemos admitir o envene-
namento prévio, porque do animal preparado ao fogo, todos comem.
ao partir-se de novo o obi, a pessoa que deu comida
à cabeça pode sair à rua no dia imediato ou não; na
hipótese desfavorável, lhe é vedada a saída de casa
durante três dias, é a noite durante oito dias.
FAZER SANTO
32
A expressão Anjo da Guarda – quer dizer – o guia protetor de cada pessoa.
A mulher grávida, dizem eles, não deve acompanhar cortejo fúnebre, para
que a alma do extinto não encarne na criança. O homem pode ter como anjo
da guarda, uma santa; e uma mulher, um santo, conforme a designação que
traga. Ainda ocorre o fato de um indivíduo ter por protetor uma divindade, e
outra apossar-se dele e reger-lhe os destinos.Também acontece que a criança
que nasce no período dos festejos de um santo é este tomado por protetor do
recém-nascido.
temão escolhidas, contadas e colocadas em grande
vaso de barro, pertencente ao santo.
Acabada a ablução, a roupa que trazia, aí
fica para se guardar, com a condição de não ser
mais restituída.
A seguir, recolhe-se a neófita à camarinha,
que é um grande quarto ou sala espaçosa. Às três
horas da tarde de determinado dia, os atabaques
dão sinal de que há cerimônia no Pegi. A mãe do
terreiro, revestida das insígnias do ritual e escolta-
da por dois Ogãs confirmados, e com os seus aven-
tais respectivos, dá começo á cerimônia.
Todos os presentes cantam uníssonos. É a
invocação. Sacrificam-se cágados, galinhas, pombos,
galinhas de Angola, etc. Surge a neófita que na hi-
pótese é mulher, com o cabelo apenas tosquiado
e então umedecem-lhe a cabeça com o sangue dos
animais mortos, com penas de aves, formando uma
pasta. Continua os cânticos e os atabaques soam.
A iniciante, em dado momento, levanta-se;
estende a perna direita sobre um cordeiro, na po-
sição de quem vai montá-lo; e finalmente, é este
animal entregue ao – Achôgun, o ôgan sacrificador,
que, executado o trabalho, entrega a cabeça do ani-
mal à mãe do terreiro. Esta coloca uma faca, em
cruz, sobre a parte golpeada, operação que é repe-
tida pelos dois auxiliares. As pessoas que assistem
ao ato não sendo dignidades do rito, conservam-se
de joelhos, tocando a cabeça no solo durante todo
o trabalho. Isso feito, a neófita volta à camarinha e
aí, assentada a um cepo, lhe rapam todo o cabelo
da cabeça, operação a que se segue o banho, que é
assim preparado: uma pessoa entendida, e de con-
fiança, que esteja limpa de corpo, se dirige ao local
levando obi e pimenta da Costa na boca, mastiga-os
e assim triturados, atira-os sobre a vegetação do
campo; depois, dança, canta e coloca no chão qual-
quer quantia em dinheiro.
Em seguida, procede à colheita das ervas
preciosas, que são de vinte e uma espécies diferen-
tes; e o banho há de conter dezeseis folhas de cada
qualidade. Acontece, às vezes, que esta porção não
é suficiente para o efeito desejado; neste caso, au-
menta-se a quantidade de folhas até que produza
resultado. Concluído o banho, a iniciante fica pri-
vada de qualquer ação consciente, ignorando dali
por diante tudo quanto se lhe passa em torno.
Imediatamente, faz-se-lhe o Efum, isto é,
pinta-se-lhe a cabeça, descrevendo círculos con-
cêntricos com as cores: branca, azul e vermelha; e
com as mesmas tintas se lhe desenham no rosto os
sinais característicos do santo.
É esta operação que produz o fenômeno da
entrada do santo no corpo da professanda. Algumas
das folhas empregadas nesse mister são de ação tão
enérgica, que as pessoas incubidas de moê-las en-
tre as mãos metidas em vasilha d’água, têm que
friccionar a estas com o limo da Costa, substância
gordurosa, a fim de extinguir a sensação de ardên-
cia produzida por aquela operação.
Ainda de referência às folhas empregadas
nos banhos, temos que acrescentar: uma delas
produz visões no cérebro, e, tomada como me-
dicamento, predispõe ao gosto pelas bebidas al-
coólicas; outra que os africanos fumam depois de
seca, desprende um aroma ligeiramente agradá-
vel;33 e, ainda uma outra que, ao que parece, con-
tém – iodo e morfina.
À medida que sol vai declinando para o oca-
so, lavam a cabeça da noviça, para o fim de extin-
guir os sinais feitos à tinta.
A camarinha é uma tenda, onde a mulher
aprende as obrigações que tem a desempenhar,
com respeito às funções em que vai ser investida.
Às cinco horas da manhã levanta-se, faz
ablução e bebe de uma água preparada com folhas
consagradas ao santo da guarda da iniciada. No
período de três, quatro ou seis meses, a noviça aí
permanece internada, podendo, apenas, passear
em torno da casa.
A tribo dos Jejes, porém, conserva a noviça,
um ano de camarinha.
Conhecedora das obrigações indispensáveis
à seita, a que se vai devotar, já iniciada, enfim, se-
gue-se nova cerimônia: faz-se na cabeça da mulher
uma cruz com o sangue de aves ou animais sacri-
ficados no momento; depois derrama-se aí, mais
um pouco de sangue de pombos, patos, galinhas,
cágados, etc. Todas as despesas correm por conta
da iniciante ou de alguém por ela. Ao período da
iniciação sucede grande função porque, em regra,
33
Esta planta que no Rio de Janeiro tem o nome de Pango, em Alagoas
chamam-na – Maconha e na Bahia, Macumba. Por uma postura da Câmara
Minicipal do Rio de Janeiro, em 4 de Outubro de 1830 fora proibido o seu
uso. O vendedor pagaria 20$000 de multa, e o escravo que a usasse seria
condenado a 3 dias de cadeia.
Em 1915 o Dr. J. R. da Costa Doria apresentou ao Congresso Científico
da América do Norte uma memória sobre esta planta, reconhecendo nela a
qualidade afrodisíaca. (M.Q). O trabalho do Professor Doria tem o titulo “Os
fumantes de maconha: efeitos e males do vício”; foi apresentado ao 2º Con-
gresso Científico Pan-Americano, reunido emWashington, a 27 de Dezembro
de 1925, e publicado na Bahia, Imprensa Oficial, 1916. Nunca ouvi, na
Bahia, a denominação de Macumba para Diamba ou Maconha.(A .R).
o africano só experimenta verdadeiro regozijo,
dançando e comendo. Essa festa é denominada -
Dia de dar o nome. Depois do banho aromático, e
verificado que todas as abluções foram feitas com
água fria, dão começo à cerimônia.
Os olhadores invocam o santo que, atingin-
do à cabeça da noviça, faz com que ela declare
o anjo da guarda que deve presidir aos seus des-
tinos. Nesse momento, a iniciada é considerada
feita, isto é, entra na posse das obrigações, já faz
parte da seita.
Agora trata-se de pagar um tributo ao pai
ou mãe do terreiro.
Para isso, a mulher sai acompanhada de ou-
tras pessoas que ostentam sinais, contas, amuletos e
trajes simbólicos do santo, conduzindo grande cuia
para angariar donativos de toda a espécie, inclusive
dinheiro, entre as pessoas entendidas no ritual.
O produto da arrecadação é dividido com
o pai de terreiro.
Segue-se a compra. Em que dia previamente
combinado arma-se uma quitanda bem sortida de
frutas, carne, peixe, hortaliças, utensílios de uso
doméstico, como ferro de engomar, gamela, lenha,
carvão, etc.
Aí faz ela exercícios inerentes à vida do-
méstica; para se for atingida pela desventura, não
haver proibição da parte do ritual.
O pretendente à compra da filha de santo apre-
senta-se ao pai do terreiro e manifesta a sua intenção.
Ciente da preferência, retribui imediata-
mente a graça concedida com a importância de
vinte, trinta, cinquenta mil réis, conforme o ajuste.
O comprador só pode ser um homem acei-
to pela mulher, e quase sempre é quem faz as des-
pesas de iniciação, durante o tempo que a noviça se
conservou na camarinha.
No caso contrário, ela se compra a si mes-
ma, para não ficar dependente. Efetuada a compra,
nova função se realiza; vão todos à igreja do Senhor
do Bonfim, e na volta visitam as pessoas conheci-
das. Por último vão entregar a mulher ao compra-
dor. Este ato é assinalado por lauta mesa, brindes,
danças, muita alegria, e, afinal, retiram-se todos,
ficando I-a-ô em seu aposento. A compra obriga
a mulher a viver com o comprador, só lhe sendo
permitido retirar-se daquela companhia, por con-
sentimento deste ou em caso de maus tratos. Nes-
ta hipótese reúne-se um conselho deliberativo. A
mulher feita tem mãe de santo que lhe observa os
preceitos a cumprir, dirigindo-lhe as cerimônias,
e bem assim outra pessoa, como auxiliar daquela,
e que tem o nome de Jibonan. A cerimônia do ba-
nho é uma formalidade para justificar a crença no
fenômeno da entrada do santo no corpo da noviça.
Nada existe de sobrenatural.
A auto-sugestão adquirida nas práticas da ca-
marinha, as bebidas e os banhos aromáticos de ervas
narcóticas e de efeitos outros condizentes às neces-
sidades rituais, atuando sobre o organismo, tudo isso
contribui para a formação da crença na existência de
um espírito que encarna no corpo da noviça, com
poderes para dirigí-la.
Quando o pai do terreiro diz que o santo
está bravo e por isso se faz mister a imolação de no-
vas vítimas, é porque não entrou na composição
do banho a quantidade precisa de folhas, ou então
o organismo da noviça é mais exigente e poderoso.
Há pessoas que, apesar de pertencerem à
seita, todavia não se querem prestar a dançar e a
cantar de público, na ocasião em que o santo chega
inesperadamente.
Nesse caso, evita-se a manifestação, não
completando o trabalho; restringe-se a cerimônia
com a supressão da rapagem da cabeça, e não se
espargindo sobre ela o efún.
Rara é a classe ou agremiação em que se
não insinue uma especulação. Em matéria de
crença religiosa, o fetichismo é severamente des-
confiado. Para verificar a intrusão de uma mulher
que se apresenta como feita ou se está possuida do
santo, convidam-na a colocar as mãos numa vasi-
lha contendo azeite de palma a ferver; e bem as-
sim, açoitar o pescoço e os braços com um ramo
de cansanção. As mulheres feitas em Santa Bárba-
ra, introduzem na boca pavios de algodão acesos,
depois de embebidos em azeite de dendê e não
experimentam o mais leve acidente.
Do mesmo modo, as filhas de Ogun inter-
nam-se na floresta próxima e dali trazem ofídios em
torno do pescoço, com que dançam à toada dos cân-
ticos fetichistas e depois soltam-nos sem que sejam
vítimas das venenosas presas.
As pessoas que duvidam do poder sobrena-
tural do santo são castigadas do seguinte modo: com
os joelhos em terra, cavam o chão com as unhas,
açoitam-se com o arbusto denominado cansanção,
ou mastigam folhas de urtiga.
QUIZILA
***
CAIR NO SANTO
DESPACHAR O SANTO
34
Para o estudo científico do “estado de santo”, vide Nina Rodrigues, O
animismo fetichista dos negros baianos, cap.III e o capítuloVIII de “O Negro
Barsileiro”. (A. R).
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A expressão é a técnica entre os africanos.
é como passamos a descrever. Quem está com o
santo abraça os assistentes, dá conselhos, improvi-
sa cantigas, previne o mal que está para suceder,
aperta as mãos de todos, e corteja-os conforme a
hierarquia de cada um. Em seguida deita-se, co-
brem-no com um lençol e depois de breve descan-
so, dá três gemidos com intervalos. Quem está en-
carregado do despacho molha a mão direita n’água
fria e toca-a na testa, nos seios, na nuca e nos pés
da vítima. Depois, levantando o lençol, sacode-o e
chama pelo santo.
Nesse momento, o cavalo do santo levanta-
se estonteado, com indícios de que tem a cabeça
atordoada; dencança por alguns instantes, e está
despachado o santo. Durante os dias em que a mu-
lher está com o santo, não come, não dorme; e se
beber água despacha-o forçosamente, o que não
é permitido. O ato de despachar o santo é um mo-
mento melindroso; é mister muita vigilância para
não suceder que pessoas de má índole aproveitem a
ocasião para dar comida ou bebida contraria ao anjo
da guarda da pessoa, sob pena de fazê-la perder a
fala por algum tempo, ter a cabeça sem governo e
dar-se ao abuso de bebidas alcoólicas. A embriaguez,
neste caso, é produzida por uma planta medicinal
que, propinada em dose excessiva, ocasiona esse
vício, que o africano tanto condena.
A TROCA DA CABEÇA
DESPACHO
O ÔGÃ
A PROCISSÃO
A PRAGMÁTICA
A INDÚSTRIA
A LENDA
***
CARACTERÍSTICO DAS
DIVERSAS TRIBOS
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Araripe Junior – Gregório de Mattos.
Quem assumiu a direção do candomblé
designa um dia, de ordinário, depois dos sufrágios
pela alma do antecessor, para realização daquele ato.
Cada pessoa feita contribue com a quantia de cinco
mil réis, e mais uma navalha nova, pombos, galinhas,
patos, etc. No dia marcado reúnem-se todos na casa
do candomblé. Aí o indivíduo mais idoso toma da
navalha que traz um dos presentes, e com ela proce-
de à depilação da cabeça. À medida que se vai con-
cluindo essa operação sacrifica-se uma das aves e o
sangue é derramado na cabeça depilada, sendo que
as mulheres o conservam coagulado até ao dia se-
guinte, quando procedem a lavagem da cabeça.
Este preceito é de rigor e tem por fim obstar
a que seja vítima de algum malefício a pessoa que o
deixar de observar.
DO CARNAVAL
DOS FUNERAIS
***
Encerramos este capítulo com algumas
saudações aos diversos “santos” por ocasião dos
festejos anuais, seguidas dos cânticos e respectiva
música:
CORO
Ôkum-kum biri-biri
A ja lê mori ô korim-kam.
CORO
Ô rôlu, ulô mon iá aochê
(Os santos que nos dominam).
Mofi la do fê, auá – ô loquê.
Ô dê arolê, mofi dalofe. A uê bô-ô
Um loquê: ê i jô ô um á kiram.
DOS MALÊS39
40
Esta palavra á assim escrita – Bismillak, que eles pronunciam – Bi-si-mi-
-lai. As expressões consignadas nesta monografia, tanto na linguagem árabe
como na de outras tribos são escritas conforme a pronúncia.
mudo-li-lai (Louvor ao Senhor do Universo). A
qualquer ato que o Malê tinha que praticar, antece-
dia a expressão: Bi-si-mi-lai – (Em nome de Deus
clemente e misericordioso)40. Terminada a oração
cortejavam-se uns aos outros, dizendo: barica-da
suba – (Deus lhe dê um bom dia).
O lugar em que se pratica esse ato chama-se
– Mo-ça-la-si – (Oratório ou capela).
São estas as dignidades do rito – malê:
Xerife – espécie de profeta, cargo esse só
desempenhado por pessoa idosa, cuja opinião se
respeita como um oráculo.
Ali-ramudo lilái.
Rabili alamina.
A ramano araini.
Maliqui iáu midina.
Iá canan abudo.
Oiá canan cita-ino.
Errê diman cirata.
Ali mucitaquino.
Cirata alazina.
Ani-amutá alê-im.
Gair-le-mangalôbe.
A lei-y-uá-la-lobina.
Em vernáculo:
***
Por muito tempo acreditou-se que o Malê
tinha por hábito quebrar os ossos ou desconjun-
tar os seus mortos, no ato de colocá-los no caixão.
Não é isso exato; apenas os deitam de lado e não de
frente, como é costume.
O JEJUM DO MALÊ
CANDOMBLÉ DE CABOCLO
Imagem da capa
Jean Baptiste Debret
ISBN: 978-85-8325-007-4
1.Brasil – História. 2 Bahia – História 3.Negros –
Costumes - Bahia I.Título. II.Série.
CDD 981
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