Ana Beatriz BARROSO Incomunicabilidade e Cultura Midiatica

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COMUNICOLOGIA

Revista de Comunicação e Epistemologia da Universidade Católica de Brasília


ISSN 1981-2132

Incomunicabilidade e arte na cultura mediática


Ana Beatriz Barroso1

Resumo
O artigo gira em torno da obra de arte oriunda do silêncio e geradora
de silêncios originais e originantes, capazes de transformar aquele
que se lança no processo criativo e aquele que frui poeticamente a
arte. Pensa a contemporaneidade como momento favorável à
ampliação de uma série de conceitos e de práticas sociais, dentre eles
a arte, dada a multi-dimensionalidade experimentada na cultura
mediática. Trata, finalmente, da dinamização da força imaginante,
que une e confunde as instâncias do real e do virtual, da vida e da
obra, da ética e da estética, do ser, estar e devir. Propõe, assim, um
trânsito não-linear entre a incomunicabilidade original, a obra e a
fruição da arte, preparada e multiplicada pela comunicação direta do
artista sobre seu trabalho.

Palavras-chave: incomunicabilidade, arte, cultura mediática,


comunicação.

Abstract
This article is about the art work that comes from the silence and that
generates other originals and originating silences, able to transform
the one who enters in the creative process and the one who feels
poetically the art. It thinks the contemporary as a moment favourable
to the enlargement of a lot of concepts and social practicies, among
them, the art. This enlargement happens due to the multi-
dimensionality experimented at the media culture. Finally, it talks
about the dynamic imagination strengh, which puts toghether and
confounds the real and the virtual instances, life and art work, ethics
and esthetics, to being, staying and becoming someone. It proposes
a non-linear passage between the original incommunicability, the art
work and the fruition of art, prepared and multiplicated by the direct
communication of the artist about his work.

Key-words: incommunicability, art, media culture, communication.

The art of drawing idiosyncratically confirms the


old paradox that there is a way to communicate
what cannot be directly communicated2.

1
Doutora em Comunicação (UnB, 2008), professora do curso de Comunicação
Social da Universidade Católica de Brasília e artista visual.

BARROSO, Ana Beatriz. Incomunicabilidade e arte na cultura mediática. pp.29-40


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Procuro discutir neste artigo o problema da comunicação na


arte em algumas obras contemporâneas. A comunicação na arte é
aqui entendida como o espaço poético aberto por uma obra, onde
dois imaginários – o do artista e o do fruidor – interagem de modo
inusitado. Nesta interação se dá a experiência estética. Não há
comunicação no sentido estreito de uma mensagem que, através de
um canal, vai do emissor ao receptor. Na arte, o próprio sentido de
comunicação extravaza os limites do discurso para criar a sensação
de infinitude, de ilimitado ou confusão entre artista e fruidor. A obra
de arte, oriunda de silêncios, beira a incomunicabilidade. O que se
comunica nela é da ordem do indizível, do mutacional, do variante:
nela opera-se a metamorfose do ser poético em pura abertura ao
devir.
A discussão é conduzida pela filosofia da imaginação criadora,
de Bachelard. Na tentativa de comunicar uma percepção
extremamente particular, única (e portanto inalcançável pela
linguagem comum), o artista trabalha a matéria a fim de constituir
um lugar propício ao impulso criador – dele e do fruidor. Já não lhe
interessa passar uma idéia clara ou fechada, tampouco uma
impressão ambígua e vaga a respeito de um tema. A arte feita
assim, hoje, em pleno desdobramento de uma cultura mediática,
mundializada e participativa, é propaganda. Importa ao artista
contemporâneo criar um amálgama onde idéia e sensação se
interpenetrem, contaminando-se mutuamente. O que se quer é
gerar um fluxo capaz de dinamizar o potencial imaginante de quem
participa da obra.
Tal fluxo, oriundo de devaneios poéticos, poetiza aquele que
nele entra e se deixa levar, levando consigo ao mesmo tempo suas
correntezas particulares, seus próprios devaneios. “O sonho avança
linearmente, esquecendo seu caminho à medida que avança. O
devaneio opera como estrela. Retorna a seu centro para emitir
novos raios.”3 As correntezas particulares de cada um, e também do
artista no processo de criação, formam este centro irradiador de
luzes comunicantes. Não seria este centro extremamente
silencioso? Não seria ele uma das imagens da incomunicabilidade?
Precisamos talvez saber como e o que se comunica em uma
obra irradiante de mudez, dissoante do falatório mediático. Uma
obra assim, ou alguma coisa assim em uma obra, equivale ao
encontro de duas incomunicabilidades afins. Uma nova dimensão se
abre para o fruidor: a obra de arte se realiza nele, torna-o co-autor,

2
“A arte de desenhar idiossincraticamente confirma o velho paradoxo de que há
uma maneira de comunicar o que não pode ser diretamente comunicado.”
METZGER, Rainer. Gustav Klimt. Drawings & Watercolours. United Kingdom:
Thames & Hudson Ltd, 2005: 15.
3
BACHELARD, Gaston. A Psicanálise do Fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1994: 22.

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co-partícipe, co-poeta. Nesse sentido, somando-se à idéia


primordial de Schleiermacher, que via tanta arte no fazer quanto no
fruir, todos os homens são artistas4. Tocados pelo silêncio profundo
da superfície imagética, tornamo-nos artistas – criamos sentidos
para isso que é absurdo: a existência e seus meandros. Somos
convidados a completar a obra e a sentir que ela continuará
incompleta, como a vida, querendo que um dia voltemos para revê-
la, assim como amanhã acordaremos novamente loucos para viver.
É assim uma obra de Chantal Dupont, videoartista canadense. O
nome é Une poétique numérique de l'espace comme lieux
d'inscription de la mémoire dans une pratique de l'installation audio
vidéo numérique.5 Trata-se de um tríptico videográfico que ocupa
uma parede inteira, temos que colocar fones para ouvir um cello e
alguns efeitos sonoplásticos. Visualmente, uma água densa, escura,
cai para fora das telas, seguida de um ambiente caseiro, uma sala
vazia e uns vultos que passam cá e lá. Em algum momento, neste
ambiente, uma cabeça raspada (a cabeca da própria artista) vira de
um lado, de outro, deixando entrever algumas cicatrizes, linhas
vermelhas. O que pensar disso tudo? O pensamento já está
bastante sensibilizado. O que sentir disso tudo?
Sem a devida distinção, chamamos de imagem isso que vai
caracterizar-se pelo fato de ser algo que se forma na imaginação,
como nos ensina Sartre6. Não importa rigorosamente se teve
origem no texto, nos sons ou nas formas plásticas. Importa
perceber que são entidades mentais e, portanto, subjetivas. Cientes
disso, podemos entender o potencial transformador da imagem
poética. “A imagem poética, de natureza imemorial, não se
confundiria com instantâneos visuais ou aparições figurais em nossa
interioridade, já que não se origina da percepção ocular ou de nossa
iconografia imemorial.”7 Ela é transformadora na medida em que
nos lança àquela região silenciosa, onde o tempo fica suspenso e
sentimos o pulsar frágil e misterioso da vida – generosa e cruel,
doce e árida. A ilusão da linearidade do tempo, ilusão de um
historicismo tão fortemente arraigado em nós, desfaz-se. É a
verticalidade do instante que sentimos quando o indizível consegue
se comunicar. Ele não é comunicado. Ele se comunica. Há algo
mágico nisso tudo. Realizar essa magia é a ciência do artista.

4
Cf. SCHLEIERMACHER, Friedrich. Esthétique. Tous les hommes sont des artistes.
Paris: Cerf, 2004.
5
“Uma poética numérica do espaço como lugar de inscrição da memória em uma
prática de instalação audiovisual numérica”, exibida no 7º Encontro de Arte e
Tecnologia. Brasília: Museu Nacional, 2008.
6
SARTRE, Jean Paul. L’Imaginaire. Paris: Gallimard, 1986.
7
MURAD, Carlos Alberto. No olhar da imagem. In: Arte & Ensaio. Revista do
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. EBA/UFRJ. Ano XV, número 16,
julho de 2008: 66.

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Assim como sempre ou eventualmente sentimo-nos


desgarrados, incapazes de comunicar certas sensações, de falar de
certos medos, de tantos prazeres ou de cantar outros desesperos,
um fragmento de tempo também se desgarra da falsa corrente do
tempo histórico e condensa-se no instante poético incrustado em
passagens essenciais da vida ou na obra de arte, aberta à qualquer
eternidade. “O tempo, se podemos intuir essa identidade, é uma
ilusão: a indiferenciação e a inseparabilidade de um momento de
seu aparente ontem e de outro de seu aparente hoje bastam para
desintegrá-lo. (...) a vida é pobre demais para não ser também
imortal.”8 A vida somos nós vivendo a vida. A vida não seria a
própria condição humana?
Em um desenho de Gustav Klimt não é a fixação de um
fragmento de tempo indomável o que vejo, tampouco é a imagem
figural de uma mulher beijando que me toca. Embora eu veja o
beijo, não é o beijo visto que me tira de órbita. Também não é a
lembrança de outros beijos que já dei, nem a vontade de outros a
dar que me lançam no instante poético do beijo. O que se comunica
ali não é nada sobre o beijo, mas sim a beleza eterna e a delícia do
beijar. Poderia ser a beleza do dormir, do se exibir ou se
abandonar. A obra funciona como uma chave para um tempo que
não é de ninguém, nem do artista, nem meu, nem da coisa/pessoa
retratada. É um tempo humano, da condição humana: o tempo da
ação e do esquecimento. Na arte, a ação é poética do olhar e o
esquecimento é atraído sempre de volta ao centro estelar, aquele
centro de incomunicabilidade irradiante: o silêncio de onde vem
nossas falas mais reveladoras e nossos (des)caminhos não-lineares.
Na cultura mediática, compreendida como um conjunto de
novos costumes, hábitos e práticas sociais, não só ligadas, mas
dependentes dos meios de comunicação, há uma série de
alterações significativas em relação a esse tempo humano9. Fala-se
aí de uma condição pós-humana. Não se trata, como pode parecer,
de uma condição desumana, mas de uma condição diferente da que
estamos habituados e que passa, necessariamente, pela percepção
que temos do tempo, do espaço e da nossa condição temporal-
espacial (condição humana), em suma, passa pela percepção que
temos da realidade. O pós-humano vive em uma realidade ampliada
em termos de informação e em termos de relacionamento. Se há
empobrecimento de relações inter-pessoais diretas e de
conhecimento, não nos cabe aferir. Cabe-nos indagar como o
artista, de trás do seu silêncio, tem sentido e trabalhado essa
realidade multi-cultural e multi-dimensional.

8
Borges, Jorge Luis. História da eternidade. São Paulo: Globo, 2001: 33.
9
Cf. NOVAES, Adauto. Mutações. Ensaios sobre as novas configurações do mundo.
Rio de Janeiro: Agir; São Paulo: Edições SESC SP, 2008.

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Eis, então, que surge algo tipicamente mediático. Queremos


que o artista fale, revele-nos algo, mas não apenas através de sua
obra. Queremos que ele fale também através de uma comunicação
direta sobre si mesmo, sua obra e o que ela diz! E isso já vem
desde o raiar da cultura mediática. O artista reage a seu modo, ora
lançando-se à escrita ou à fala, ora recolhendo-se em silêncio e
remetendo-nos à obra. “I have the gift of neither the spoken nor
the written word, specially if I have to say something about myself
or my work... Whoever wants to know something about me – as an
artist, the only notable thing – ought to look carefully at my
pictures and try to see in them what I am and what I want to do.”10
Esse cuidado e essa paciência de olhar ou sentir uma imagem e
deixar que ela nos comunique um mundo em sua mudez é algo que
se exercita. Este é o exercício da fruição poética, sem o qual, não
importa a ciência do artista, a obra permanece muda, impenetrável,
em estado de incomunicabilidade. A arte contemporânea não se
impõe, como a moderna, apresenta-se.
O hábito de ouvir uma comunicação direta sobre a obra é
tornou-se corriqueiro na cultura mediática. Há pressa em se
informar. Mas a arte, se pode comunicar o incomunicável, não nos
informa sobre nada. Outra vez, a arte informativa é propaganda.
Fruir uma obra de arte requer sintonizar-se com o silêncio dela,
com o incomunicável que ela consegue comunicar. Desde fins do
século XIX e, mais acintosamente, no raiar do século XX, o artista é
incitado a falar sobre arte. Klimt figura como exceção e suas poucas
palavras são tomadas por preciosidades. A vanguarda européia
aderiu em peso à comunicação direta, paralela à obra. Os pintores
modernistas foram profícuos escritores – de cartas, livros, teorias,
aforismas, artigos e manifestos. Na contemporaneidade, o sistema
da arte (instiuições, público e artistas) também exige comunicações
diretas sobre a obra. O texto deve abrir portas para a imagem. Ou
então, imagem e texto formam um todo indissociável, onde
conceito e forma se interpenetram. A comunicação, então, se
sobrepõe à arte: ora a estereliza, tirando do artista e do fruidor o
prazer de entrar no silêncio comunicante da obra, quebrando-lhe o
mistério ou deixando patente sua balbúrdia incomunicante, ora
viabiliza sua entrada na cultura mediática e sua abertura ao fluxo
comunicacional mediatizado. Isso não desmerece a obra nem o
trabalho do artista, ao contrário, se bem explorado, o conceito
comunicado de forma direta – em um texto de apresentação, em

10
“Eu não tenho o dom, nem da palavra falada, nem da palavra escrita,
especialmente se eu tiver que falar alguma coisa sobre mim e sobre meu
trabalho... Quem quiser saber alguma coisa sobre mim – como artista, a única
coisa notável – deve olhar cuidadosamente minhas pinturas e tentar ver nelas o
que eu sou e o que eu quero fazer.” METZGER, Rainer, op. cit.: 370.

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entrevistas ou publicações – provoca a predisposição ao


entendimento sensível da obra de arte.
A comunicação direta prepara intelectualmente o fruidor para
a fruição poética integral da obra, que já não é, na
contemporaneidade, de ordem puramente sensual. Sentimos, sim,
mas só sentimos integralmente a obra de arte se nossa imaginação
puder se abrir ao seu composto conceito-imagem. Sem essa
abertura e entrega, tendemos à comodidade dos pré-conceitos, dos
velhos gostos, das antigas artes exclusivamente retinianas, do
sentimentalismo romântico. Fechamo-nos à complexidade deste
mundo já imerso na cultura mediática, complexidade essa que nos
chega esteticamente por obras híbridas, operantes de uma
comunicação “que não é a imagem nem a linguagem, mas essa
imagem acompanhada de linguagem, que se poderia chamar de
comunicação logoicônica.”11 Esta comunicação, como aponta
Barthes, ainda é pouco estudada.
Esta comunicação se encontra freqüentemente em peças
publicitárias e jornalísticas, onde texto, imagem visual e som
formam um composto fechado e transparente, posto que mal se
deixa ver – traz-nos sem maiores complicações a mensagem e leva-
nos imediatamente à coisa (produto, serviço, recorte do fato). Na
arte tal composto tende a ser opaco. O artista contemporâneo não
esconde o meio (suporte, canal), ele quer nos fazer parar ali, na
opacidade turbulenta ou tranqüila da obra, e nos sugar para dentro
dela. O artista quer nos fazer transgredir a superficialidade da
imagem – a qual a cultura mediática foi nos habituando. Ele nos
convida a desconfiar dessa superficilidade e nos instiga a vontade
de conhecer o que há por baixo dela. Convida-nos a entrar em seu
silêncio e descobrir-lhe sua espessura para, nessa espessura,
descobrirmo-nos outros. Ele não está interessado em nos transmitir
esteticamente uma mensagem a respeito de uma coisa ou de uma
percepção sua, forçosamente pessoal, passageira e inapreensível.
Não. O que se vê é mais fino e menos direto. Ele quer nos fazer
participar da sua busca, buscar com a realização (e com a fruição
estética) da obra o desconhecido, o centro estelar do seu devaneio
poético, irradiante de indagações, seguro de respostas relativas,
pontuais, ligadas intimamente ao desejo original de comunicar algo
que parecia tão incomunicável. Esse desejo é mais forte que
qualquer tradição, desrepeita, por assim dizer, a cultura
estabelecida – seja ela mediática, livresca, escultórica, artística – e
instaura na obra um espaço concreto de fruição do tempo de vida
humana, já pós-humana, multi-dimensional, simultaneamente

11
BARTHES, Roland. Inéditos, vol.3 – imagem e moda. São Paulo: Martins Fontes,
2005: 79.

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natural e cultural, matérica e simbólica. Assim Ernesto Neto nos fala


de uma dessas procuras e achados em uma de suas obras.

Essa situação, essa operação construtiva simbólica do nó,


embora seja real, porque o nó segura tudo, correspondia
eticamente ao que procurava, que ainda estava mal
resolvido; com aquele nó, de alguma forma, segurava o
tempo; era como se tivesse segurado todo o universo por
um simples nó. Acho isso de uma poesia incrível! Até hoje
lembro quando encontrei pela primeira vez Carlos
Basualdo, acho que em 91 ou 92, que morava nos EUA e
falou na precariedade do meu trabalho. Eu não via
precariedade no meu trabalho, pelo contrário, precário é
fazer uma escultura cheia de parafuso. Botar em pé uma
coisa dessas, toda equilibrada e feita toda com nó, isso é
sofisticação. O que eles achavam precário, eu achava
sofisticado; com a menor possibilidade de recursos, você
consegue um melhor resultado poético.12

Quando a obra vem da incomunicabilidade, o desejo de


comunicação se resolve de modo extremamente sofisticado e segue
imune a críticas. O processo passa a ser tão importante quanto o
resultado e a consciência desse processo dá à obra um valor
inabalável para o artista, valor este que pode ser partilhado com o
público através do texto, da comunicação direta. Isso não vai
obrigatoriamente alterar a sensação que a obra nos causa, não vai
obrigatoriamente fazer com que nos sintamos tocados, mas pode
vir a nos abrir, intelectualmente, uma via até então fechada (pela
própria cultura tradicional) à sensualidade de um objeto – neste
exemplo, um objeto escultórico. No campo das artes, a
comunicação logoicônica encontra infinitas formas de se articular.
Nas artes plásticas, o texto na maioria das vezes não faz
parte da peça, mas ao se referir, no contexto da exposição ou no
hipertexto da malha mediática, à pintura, escultura, instalação,
fotografia, vídeo ou, ainda, à obra inteira de um artista, esse texto
vai ampliando nossas possibilidades de fruição estética.
Experimentamos assim um alargamento conceitual significativo da
noção de arte (de teatro, de escultura, de fotografia, de vídeo etc).
Se tal alargamento dá margem a inúmeras realizações e
interpretações estéticas infecundas, é verdade também que nos
lança em uma dimensão poética mais maleável e fluida, onde os
pares conceito-imagem, entendimento-sensibilidade, razão-emoção
se fundem em uma instância propriamente imageante. Nela não é a
memória (resto de noções e afetos), nem a percepção ocular (resto

12
NETO, Ernesto. A gente vai para o que ama. In: Arte & Ensaio. Revista do
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. EBA/UFRJ. Ano XV, número 16,
julho de 2008: 17.

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de presente), que contam, mas a potência de dinamização do


imaginário, daquilo que ainda não é concretamente, mas já é em
realidade psíquica. A imaginação criadora nos lança em um estado
de pré-visão e de pré-idéia. Tudo ali é devir. “Pensar no interior do
devir da imagem poética significa não pensar com as
representações racionais e, sim, atuar na instância da
imprevisibilidade de um ante-pensamento e pré-percepção, campo
privilegiado dos devaneios criadores operantes.”13 Não somos
levados apenas pelos impulsos inconscientes, passionais e culturais.
A força imageante nos leva pela mão e atua em uma espécie de
ante-consciência, plena de sabor, que nos faz estar e não estar
imersos na realidade, viver e sentirmo-nos vivos, apenas vivos.
Vida e método de criação se confundem na existência deste artista-
fluxo.14 “Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que
brotam de várias camas, (...) viver é extremamente tolerável, viver
ocupa e distrai, viver faz rir. E me faz sorrir no meu mistério. (...) A
isso tudo ainda chamo ter a necessária modéstia de viver.”15 Aí
tudo se complica, torna-se refinado, exigente de um cultivo
particular. Se viver pode ser simples e misterioso, falar da
simplicidade e do mistério desse viver em aspectos particulares, em
detalhes, já é fazer arte, poesia, literatura. Uma poética da
incomunicabilidade acontece justamente nessa dimensão onde arte
e vida, não só se encontram, mas se transformam uma na outra,
indistintamente, a cada instante, emudecendo-nos para a espera-
preparo-sensação do outro. Tal estado em nada se equivale à
(in)quietude do ensimesmado, indiferente ao outro ou ansioso por
entendê-lo e dominá-lo. Aqui, busca-se o outro no tempo suspenso
do outro e de si, no tempo do tempo-vida-acontecendo como sonho
e surpresa, devaneio poético e acontecimento-arte.
Uma fotografia de Henri-Cartier Bresson nos traz uma
imagem dessa poética da incomunicabilidade. Em um ambiente
luminoso e calmo, doméstico (uma sala, um ateliê?), vemos perto
da janela uma gaiola aberta, pombos em cima dela e, em uma
poltrona, ao centro, um velhinho segurando e olhando um pombo
na mão. Ele parece conversar com o pombo. Entramos na mudez
dessa imagem. Sentimos a paz, o silêncio, o insólito da cena.
Bastaria. Contudo já sabíamos que o velhinho da foto é Matisse. A
fera em silêncio dialoga com o pássaro. Além da foto, em função de
vivermos no fluxo informacional de uma cultura mediática, outras
possibilidades de interação estético-intelectivas se abrem para nós.
Outras dimensões de fruição se nos apresentam e inundam. Quem
seria o autor dessa foto? Bresson, que instantaneamente se faz

13
MURAD, op. cit.: 66.
14
Bachelard, Gaston. L’intuition de l’instant. Paris: Éditions Stock, 1992.
15
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998: 57.

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espaço? Matisse, que emana paz e luta? Eu, que me transmuto


neles e já sou outra? O tempo-espaço dessa vivência poética?
“L’original est devant nous. C’est nous-mêmes en nous-mêmes
transmués. Toute nature qui se voit opère en elle-même cette
contestation et cette transformation. C’est encore une méthode”.16
A originalidade é uma espécie de coragem de ser si mesmo
em metamorfoses constantes, originadas de embates terríveis com
nossas contradições. O arbítrio desses embates é interno. Não há,
nem tem como haver, juízo externo. O que vem para fora ou o que
vem de fora já é matéria de discussão, já conduz a uma verdade. O
que se passa na interioridade criadora é de outra ordem. É da
ordem da incomunicabilidade. É uma questão de princípio e
princípios não se negociam, nem se discutem. Não precisam sequer
serem ditos, posto que originam ações, que falam por si sem se
preocuparem em ser entendidas. São como as imagens poéticas.
Ética e estética têm portanto essa raiz comum, qual seja: o silêncio
gerador, a incomunicabilidade original, propulsora de atitudes
valorizantes e de processos criativos. Não importa a modalidade
deste processo, se resulta em verso, em prosa, canção, fotografia,
cinema, escultura, pintura, espetáculo teatral, circense, em website.
Importa neste momento de convergência, onde diferentes
linguagens se cruzam, umas se apropriando de códigos, referências
e fragmentos da outra, nesta cultura propriamente multimediática,
nesse falatório geral, importa frisar o valor da incomunicabilidade
original. Lembrar que o artista é esse que permanece silencioso,
que sente a vida enquanto a vive. Mesmo que dê entrevistas ou
escreva artigos e livros, ele é silente, sua obra é fruto deste silêncio
desejoso de comunicação, de uma real comunicação, não
industrializada, nem previsível.
Há um sentido bonito e já esquecido da palavra comunicação.
O termo communicatio é forjado para referenciar uma prática social
muito específica surgida no século IV d.C. em mosteiros cenobitas
europeus.17 O termo designava a prática de se tomar a refeição da
noite em comum. Nesses mosteiros os monges deviam passar o dia
isolados, cada qual em sua cela, dedicando-se a atividades diversas
– orações, estudos, reflexões. Quando a luz do dia se acabava, era
hora de encontrar os outros para jantar. Nesse contexto, eles
experimentam uma relação de troca a qual denominam, em latim,
communicatio. Assim, segundo esta etimologia, a comunicação,
16
“O original é diante de nós. É nós mesmos em nós mesmos transmutados. Toda
natureza que se vê opera nela mesma esta contestação e esta transformação. É
ainda um método.” LESCURE, Jean. Introduction a la poétique de Bachelard. In:
Bachelard, 1992, op.cit.:125.
17
Cf. MARTINO, Luiz. De qual comunicação estamos falando? In: HOHLFELDT,
Antônio; MARTINO, Luiz ; FRANÇA, Vera. (Orgs.). Teorias da Comunicação.
Petrópolis: Vozes, 2001.

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ainda que antiga na história do homem, só foi designada quando


percebida a partir de (ou em contraste a) um pano de fundo de
isolamento. O que se comunica vem da solidão e da intimidade.
Fruto da incomunicabilidade, o processo criativo busca meios
de comunicar suas origens. A obra de arte pós-Duchamp é qualquer
coisa que resulta dessa busca. É também a doce radicalidade de ser
si mesmo em meio a tanta gente que se vê, se fala, se troca e imita
o tempo todo, embalado pela cultura mediática que tende a achatar
as individualidades. Ela não é massificadora no sentido moderno,
frankfurtiano. Ela permite e até estimula as individualidades, só não
dá tempo e espaço para que o indivíduo ganhe espessura, centro,
variabilidade. A cultura mediática prefere o indivíduo-imagem-
barulhenta, espelhar – um não-lugar, como diz Augé18 – isto é,
aquela imagem que não suga, que não acolhe ou embaraça, nem
faz imaginar. A imagem barulhenta nos leva logo para fora dela:
para o referente direto ou simbólico, e também para a legenda, o
slogan, a bula de entendimento ao lado da obra que nada diz. A
imagem poética, ao contrário, nos poetiza, nos faz artistas.
Percebe-se que aquela qualquer coisa resultante da busca de
meios de comunicar origens – a obra de arte pós-duchampiana –
não é tão qualquer coisa assim. Na cultura mediática, o artista do
incomunicável desenvolve-se na convergência de uma filosofia e de
uma ciência da arte com uma filosofia e ciência da comunicação. Ele
estuda uma e outra. Ele transforma uma na outra de modo que na
obra já não saibamos mais onde começa a comunicação e termina a
arte e vice-versa. Ele se perde e se acha de tal modo no fazer (no
processo criativo), que já não é mais ele que está ali na obra – ela é
puro espaço-tempo para a fruição. O fruidor é quem faz a arte,
dando continuidade ao processo criativo, tornando-se também
artista nesse processo, nesse contato, nessa entrada na obra,
aberta a novos devaneios originalizantes. Nesse sentido, podemos
falar em uma ciência da arte e em uma ciência da comunicação que
se discutem, ainda que seus princípios filosóficos, ou éticos,
estejam fora de questão. Podemos falar em um artista que avança
em sua trajetória vida-obra, que pratica experimentos, que partilha
diretamente com a comunidade resultados provisórios, que está e
que é artista. O que entra em discussão não se enquadra nas
categorias clássicas do certo ou errado, do feio ou bonito, do
inteligente ou estúpido. Discute-se a adequação das decisões
processuais – técnicas, estéticas, comunicológicas – em relação ao
princípio incomunicante. Discute-se, partilha-se, frui-se, no fundo, o
método como um todo, caso haja afinidade pessoal com o artista.
Sem tal afinidade, qualquer discussão é inútil.

18
AUGÉ, Marc. Não-lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade.
Campinas, SP: Papirus, 1994.

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Por fim, entende-se a poética da incomunicabilidade também


como um não-fazer e não-dizer que, por um jogo de contraste,
lançam, da obscuridade, uma luz sobre o dito e feito. Dentro desta
perspectiva contemporânea, de arte-vida, o universo negado é tão
relevante quanto aquilo que se faz. Fazer e não-fazer formam um
composto integralmente significativo. Esta compreensão surge
como herança justamente de Duchamp. Pensando em sua vida-
obra, percebemos longos espaços de silêncio: um quadro, nada, um
urinol, nada, um grande vidro, nada, uma caixa verde, nada,
xadrez, xadrez, xadrez... um livro sobre xadrez. Uma fidelidade
absurda a si mesmo e suas convicções. Um tipo de teimosia. A
mesma teimosia de Ibbieta, personagem de O Muro, de Sartre.
Depois de já ter vivido sua última noite de homem vivo, condenado
à não-vida, depois de já ter sentido o cheiro da morte, ao anúncio
de que continuará vivo Ibbieta ri, chora e ri, “je riais si fort que les
larmes me vinrent aux yeux.”19 Como o urinol ficaria desmoralizado
se depois dele Duchamp tivesse pintado uma bela tela! Bastaria
uma e todo o trabalho-não-trabalho estaria perdido. A lição que
tiramos dessa trajetória é precisa: anti-arte e arte funcionam como
um todo inseparável.

O ready-made é uma arma de dois gumes: se se


transforma em obra de arte, malogra o gesto de
profanação; se preserva sua neutralidade, converte o
gesto em obra. Nessa armadilha caíram, em sua
maioria, os seguidores de Duchamp: não é fácil jogar
com facas. (...) Mais difícil que desprezar o dinheiro é
resistir à tentação de fazer obras ou de transformar-
se a si mesmo em obra.20

Enfim, resistência e invenção operam juntas na luta por um


imaginário que transite das regiões da incomunicabilidade para a
obra de arte, obra que não é um amontoado de feituras, mas que
tem tantas dimensões (de silêncios, materiais e processos) quantas
tem a vida do artista. Embora tenhamos falado da arte
contemporânea, esta não existe assim como um monobloco. Ela é
plural, abarca tendências, técnicas, referências e propostas as mais
diversas. Em sua pluralidade, porém, deixa entrever alguns
aspectos comuns, aqui abordados, relativos ao momento cultural
que hoje experimentamos e que se liga estreitamente à presença
ostensiva dos meios de comunicação, intermediando nossa relação
com o mundo, com a arte, com as pessoas e abrindo uma nova

19
“eu ria tão forte que as lágrimas me vinham aos olhos”. SARTRE, Jean-Paul. Le
mur. Paris: Gallimard, 1939: 38.
20
PAZ, Octávio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva,
2004: 28-29.

BARROSO, Ana Beatriz. Incomunicabilidade e arte na cultura mediática. pp.29-40


COMUNICOLOGIA
Revista de Comunicação e Epistemologia da Universidade Católica de Brasília
ISSN 1981-2132

perspectiva sócio-individual, que vem sendo pensada como pós-


humana. Nessa perspectiva, percebemo-nos seres multi-
dimensionais, no sentido de termos extremamente ampliadas
nossas sensações de espaço e de tempo, nosso senso de realidade.
Surge, então, a possibilidade de entrarmos em contato ou
convivermos com valores muito diferentes, com princípios éticos
variáveis de indivíduo para indivíduo, e de discutirmos os processos
criativos que nos levam a realizar na arte esses diferentes valores.
A comunicação direta do artista sobre a arte e sobre suas
obras de arte alarga o horizonte conceitual do sistema Arte e
convida o fruidor a participar poeticamente da obra; participação
essa que não equivale à interação exclusivamente mecânica, mas
abrange tudo, inclusive a contemplação emocionada de obras em
suportes tradicionais. O fruidor, entrando em sintonia com o silêncio
da obra – que é busca de completude – ativa sua imaginação
criadora: instância mental que não é pura memória, nem pura
intelecção, mas que atua como consciência despojada, aberta à
confluência de sensações, percepções e lembranças originais. Nessa
confluência, esconde-se o estado de incomunicabilidade e, nele, o
potencial artístico do ser humano interessado em experimentar o
outro – em si mesmo, no pós-si e no próximo. No presente-devir.
Na comunicação real-virtual, imprevisível.

Referências

AUGÉ, Marc. Não-lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade.


Campinas, SP: Papirus, 1994.
BACHELARD, Gaston. A Psicanálise do Fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1994: 22.
Bachelard, Gaston. L’intuition de l’instant. Paris: Éditions Stock, 1992.
BARTHES, Roland. Inéditos, vol.3 – imagem e moda. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
Borges, Jorge Luis. História da eternidade. São Paulo: Globo, 2001.
HOHLFELDT, Antônio; MARTINO, Luiz ; FRANÇA, Vera. (Orgs.). Teorias da
Comunicação. Petrópolis: Vozes, 2001.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
METZGER, Rainer. Gustav Klimt. Drawings & Watercolours. United Kingdom:
Thames & Hudson Ltd, 2005.
MURAD, Carlos Alberto. No olhar da imagem. In: Arte & Ensaio. Revista do
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. EBA/UFRJ. Ano XV, número
16, julho de 2008.
NETO, Ernesto. A gente vai para o que ama. In: Arte & Ensaio. Revista do
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. EBA/UFRJ. Ano XV, número
16, julho de 2008.
NOVAES, Adauto. Mutações. Ensaios sobre as novas configurações do mundo. Rio
de Janeiro: Agir; São Paulo: Edições SESC SP, 2008.
PAZ, Octávio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva,
2004.
SARTRE, Jean Paul. L’Imaginaire. Paris: Gallimard, 1986.
SCHLEIERMACHER, Friedrich. Esthétique. Tous les hommes sont des artistes. Paris:
Cerf, 2004.

BARROSO, Ana Beatriz. Incomunicabilidade e arte na cultura mediática. pp.29-40

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