Daston Obj Cient Preternatural
Daston Obj Cient Preternatural
Daston Obj Cient Preternatural
E OBJETIVIDADE
Comitê Científico
HISTORICIDADE
E OBJETIVIDADE
Organização
Tiago Santos Almeida
Tradução:
Derley Menezes Alves
Francine Iegelski
1ª edição
LiberArs
São Paulo 2017
Historicidade e Objetividade
ISBN 978-85-9459-060-2
Editores
Fransmar Costa Lima
Lauro Fabiano de Souza Carvalho
Revisão técnica
Cesar Lima
Revisão da tradução
Francine Iegelski; Tiago Santos Almeida
Editoração e capa
Editora LiberArs
Daston, Lorraine
D256h Historicidade e objetividade / Lorraine Daston ; tradução de
Derley Menezes Alves e Francine Iegelski (org. Tiago Santos
Almeida) São Paulo : LiberArs, 2017.
ISBN 978-85-9459-060-2
CDD 300
CDU 30
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das páginas que compõem este livro, para uso não individual, mesmo para fins didáticos,
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Foi feito o depósito legal.
PREFÁCIO ......................................................................................................... 9
APRESENTAÇÃO:
HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS,
TEORIA DA HISTÓRIA, HISTÓRIA INTELECTUAL
(Tiago Santos Almeida e Francine Iegelski)......................................... 11
OBJETIVIDADE E IMPARCIALIDADE:
VIRTUDES EPISTÊMICAS NAS HUMANIDADES .................................. 127
O QUE PODE SER UM OBJETO CIENTÍFICO?
REFLEXÕES SOBRE MONSTROS E METEOROS*
O que pode se tornar objeto de investigação científica e por que? Por que
não temos uma ciência das espirais de poeira num dia ventoso? Por que temos
uma ciência do interior dos corpos dos animais, ou das formas dos cristais, ou
da genealogia das línguas? Que aspectos ontológicos, epistemológicos,
metodológicos, funcionais, simbólicos e/ou estéticos qualificam ou
desqualificam sonhos, o movimento de projéteis, o crescimento e diminuição
do produto nacional bruto, nascimentos monstruosos ou a valência dos
elétrons como objetos científicos?
A resposta de Aristóteles para esta questão é ao mesmo tempo a mais
antiga e, de forma um tanto diluída, a mais duradoura. As ciências só podem
*
Tradução de Derley Menezes Alves.
Bulletin of the American Academy of Arts and Sciences, vol.
52, n°. 2, nov. - dez., 1998, pp. 35-50.
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outros. Se não temos uma ciência das espirais de poeira num dia ventoso, não é
somente, nem mesmo principalmente, devido ao caráter irregular do
fenômeno.
Se a regularidade não é uma condição suficiente para a objetividade
científica, ela é pelo menos condição necessária? Meu objetivo nesta palestra
será discordar até dessa pretensão mínima por meio de contraexemplos
históricos. Nos séculos XVI e XVII, filósofos naturais e mesmo alguns
matemáticos devotaram sua atenção para fenômenos anômalos aqueles
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estranhas que eram seus objetos expandiam enormemente o domínio dos
fenômenos que requeriam explicação filosófica. Embora os aristotélicos nunca
tenham negado a existência de raras exceções ao curso comum da natureza ou
nunca tenham duvidado que estas poderiam ser explicadas por causas
naturais, eles excluíram tais estranhezas do alcance da filosofia natural por não
serem regulares nem, a fortiori, demonstráveis. Em contraste, os primeiros
filósofos modernos do preternatural, como Pietro Pomponazzi, Girolamo
Cardano, Bernard Palissy e Francis Bacon, deslocaram as maravilhas da
natureza da periferia para o centro de sua filosofia e tentaram explicar até os
fenômenos mais singulares.
Em segundo lugar, a filosofia preternatural expandiu o alcance das
explicações bem como dos objetos a serem explicados. Enquanto filósofos
naturais medievais, seguindo Galeno, reconheciam a existência de
propriedades escondidas ou ocultas em certos animais, ervas e pedras, eles se
contentavam em atr
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descartados alguns, como os fluidos etéreos e a imaginação, permaneceram
centrais para a ciência do Iluminismo mas sim porque seus princípios
unificadores foram desvendados.
daquelas coisas que podem ser julgadas milagres, por assim dizer, da natureza,
serem reduzidas a e compreendidas em alguma forma de lei; de modo que toda
irregularidade ou singularidade possa ser descoberta como dependente de
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granizo e gafanhotos. Simpatias e antipatias entre espécies de animais e
plantas também pertenciam a esta categoria de propriedades ocultas: porque
lobos e ovelhas eram inimigos eternos, um tambor feito de pele de ovelha não
*.
Estes são exemplos de atrações e repulsas
naturais que não poderiam ser inferidas ou previstas a partir das propriedades
manifestas de quente, frio, úmido e seco. Embora, em princípio, propriedades
ocultas sejam tão regulares quanto as manifestas, elas eram opacas para a
observação e resistentes a explicações a não ser quando se recorria à
e, portanto,
além do alcance da filosofia natural convencional.
Outros objetos e fenômenos pertenciam à filosofia preternatural porque
eram raros: videiras barbudas, terremotos, três sóis no céu, chuvas de sangue,
gatos de duas cabeças, pessoas que dormiam por meses ou lavavam as mãos
em chumbo fundido, visões de exércitos guerreando nas nuvens. Não somente
indivíduos raros, espécies raras também poderiam se qualificar como objetos
da filosofia preternatural. Do mesmo modo que crocodilos empalhados e
pássaros do paraíso balançavam no teto de bem abastecidas
Wunderkammern**, eles também apareciam nas páginas dos tratados sobre
filosofia preternatural. O cirurgião francês Ambroise Paré regalava seus
leitores com relatos ilustrados não somente do potro nascido com cabeça
humana próximo a Verona em 1224, mas também de baleias, avestruzes,
girafas e outras espécies exóticas para os Europeus. Claro que não havia nada
intrinsecamente raro nessas criaturas as girafas certamente não
deslumbravam os africanos, assim como os elefantes os indianos. Sua raridade
era o artefato de uma perspectiva etnocêntrica europeia familiarizada com
espécies estrangeiras a partir de, no máximo, um único exemplar empalhado
(ou talvez apenas a partir de uma garra ou casco) e mais frequentemente por
meio de uma xilogravura feita a partir de relatos de segunda mão e plagiada
infinitamente, como no caso do rinoceronte de Dürer.
O desafio ao se explicar peculiaridades individuais era duplo. Primeiro,
muitas delas particularmente nascimentos monstruosos e aparições
celestiais eram interpretadas tradicionalmente como presságios, sinais
enviados diretamente de Deus para anunciar reformas religiosas ou desastres
iminentes. Durante as revoltas políticas e religiosas dos séculos XVI e
*
N. do T.: Frase presente em um tratado de magia do século XVI, Natural Magick, escrito
por John Baptista Porta, publicado em tradução inglesa no ano de 1658. O macaco era
entendido com um animal embriagado e o caracol como uma cura para a embriaguez,
de modo que haveria uma inimizade natural entre ambas as criaturas.
**
N. do T.: Gabinete de curiosidades ou quarto de maravilhas.
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princípios do XVII, a hermenêutica dos prodígios floresceu tanto nas páginas
em língua vernácula quanto nos tratados em latim por toda Europa. Vistos
como avisos divinos, fenômenos estranhos oscilavam no limite do
sobrenatural, não acessíveis a explicações naturais ou mesmo preternaturais.
Segundo, mesmo quando os prodígios eram classificados como maravilhas
naturais ao invés de presságios divinos, eles eram atribuí ou
seja, a um emaranhado de acidentes excepcionalmente combinados.
Desenredar tais coincidências, caso a caso, era a tarefa árdua e frequentemente
insolúvel do filósofo preternatural.
Se os filósofos preternaturais eram persistentes em sua aderência a
explicações exclusivamente naturais, eles, por outro lado, frequentemente
invocavam causas tão completamente extraordinárias quanto os efeitos a se
explicar. Influências celestiais, eflúvios sutis, a vis imaginativa, acaso,
princípios vegetativos e sexuais estendidos aos minerais, virtudes plásticas e o
simples capricho da natureza eram todas causas que poderiam oferecer um
dúbio pedigree aristotélico, mas que de fato derivavam tanto dos escritos de
Plínio, Avicena e Marcílio Ficino quanto da Meteorologia O Céu. O que era
característico de muitas, mas não de todas estas causas preternaturais, era a
ação de vapores rarefeitos sobre a matéria mole e flexível. Se cometas eram
presságio da morte de príncipes, isto se devia às mesmas exalações secas que
alimentavam o cometa afligirem os poderosos e elevados, cujos gostos
delicados e luxuriosos os faziam suscetíveis a impressões vívidas e doenças
agudas. As mulheres às vezes davam à luz a crianças com chifres e caudas, não
por terem dormido com demônios, mas porque suas imaginações exauridas
haviam impresso uma forma diabólica na matéria mole do feto. A famosa ágata
do Rei Pirro, representando Apolo e as nove musas, era originalmente uma
mente
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víduos.
-se gradualmente atenuados em atrações à distância,
da filosofia pr
pesquisado todas as ervas e pedras que vem das Índias, seria necessário ter
*
N. do T.: Bacon, Of the transmission and influx of immateriate virtues, and the force of
the imagination. In: Works in Tem Volumes. Vol II. London: H. Bryer, Bridge-Street,
Blackfriars, 1803.
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daquela apresentada pela economia colecionadora dos Wunderkammer dos
séculos XVI e XVII, objetos preternaturais poderiam perder seu caráter
especial devido a superexposição. Assim como inundar o mercado com chifres
poderiam ser explicadas pelos ventos fortes que carregavam tanto animais e
mesmo pedras para grandes alturas. Mas, por outro lado, os filósofos
preternaturalistas eram aficionados por maravilhas, seus tratados
transbordando de histórias (stories) e exemplos que não apenas poderiam,
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mas de fato encontraram seu caminho rumo às compilações descaradamente
populares de maravilhas.
Os usos e abusos das maravilhas na filosofia natural foi um tema que
recebeu considerável atenção em meados do sec. XVII, em parte devido à
admiration
[estonnement
como uma estátua, de modo que não se percebe nada mais do objeto além da
primeira impressão, de modo que não é possível adquirir mais conhecimento
oferecendo-
Deslumbrar com maravilhas era uma forma de competição galante,
particularmente em casamentos e coroações, quando embaixadores e
potentados visitantes estariam presentes. Príncipes que seduziam seus
convidados com maravilhas, similarmente se banhavam na luz que emanava
delas, chegando mesmo a inspirar reverência bem como admiração. As
maravilhas do príncipe eram imitações dos milagres de Deus.
A morte do preternatural
A filosofia preternatural não teve, por assim dizer, uma morte natural.
Suas ontologia, epistemologia e sensibilidade características foram
canibalizadas pela filosofia natural de fins do século XVII e começo do XVIII. A
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persistiu até as primeiras décadas do século XVIII, como dão amplos
testemunhos os primeiros números dos Philosophical Transactions of the Royal
Society of London e da Histoire et Mémoires de l'Académie Royale des Sciences,
preencher todos os
interstícios entre os corpos, é muito semelhante aos eflúvios dos filósofos
preternaturalistas, tanto em função quanto em forma, pois Descartes
notadamente invocava isto para explicar as atrações misteriosas do magneto e
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respeitáveis o bastante para pertencer a estas sociedades ainda pensavam em
colecionar estas esquisitices e suas explicações em livro. A filosofia
preternatural deixou de ser um gênero. Isto não quer dizer que seus exemplos
tenham sido desacreditados como sendo fabulosos, pelo menos não em larga
escala. Embora os primeiros naturalistas modernos professassem ceticismo
sobre este ou aquele item da história natural de Plínio Conrad Gesner
duvidava que as raízes da mandrágora gritassem quando arrancadas; Thomas
Browne duvidava que elefantes fossem privados de articulações do joelho
(mas não de que eles pudessem falar) qualquer desmascaramento empírico
era por necessidade lento e gradual. Tampouco foi a filosofia preternatural a
vítima de uma eliminação completa daquilo que passou a ser chamado de
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Retomando a questão com a qual comecei: o que pode ser um objeto
científico e por que? No caso da filosofia preternatural, o problema é
duplamente desafiador: não somente seus fenômenos característicos não mais
excitam atenção científica sustentada; a coerência da categoria como um todo
nos desconcerta. O que uma ovelha de três cabeças tem a ver com pedras
caindo do céu? O que estes estranhos fenômenos tinham em comum, no
contexto das primeiras investigações naturalistas modernas, era que eles
desafiavam explicações convencionais e, portanto, suscitavam o
maravilhamento. Eles estimularam aquilo que era, indiscutivelmente, o mais
ambicioso programa naturalizante que a ciência jamais havia visto, e jamais
viu desde então, incomparável em sua amplitude e determinismo obstinado.
Ambição explicativa grandiosa é algo que sobreviveu ao fim da filosofia
preternatural, mas, o maravilhamento, não. Somente em apresentações
públicas edificantes de ciência, em museus e programas do canal Nova, o
espanto ainda é permitido. Esta tornou-se uma emoção para os consumidores,
não para os produtores da ciência. Ai do cientista (ou, a propósito, do
historiador) que confessa estar maravilhado em um encontro profissional.
Mas, para Bacon, Descartes e seus contemporâneos, o maravilhamento ainda
era uma paixão cognitiva e fazedora de objetos científicos.
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