Maria Alice Nogueira Familia Escola

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Maria Alice Nogueira* Análise Social, vol.

XL (176), 2005, 563-578

A relação família-escola na contemporaneidade:


fenômeno social/interrogações sociológicas**

Os cientistas sociais, de um modo geral, têm concordado quanto ao fato


de que novas dinâmicas sociais vêm acarretando a emergência de transfor-
mações importantes nos processos educativos. Neste texto, essas questões
serão consideradas especificamente da perspectiva de uma relação central
nesses processos que é a relação entre as famílias usuárias e a instituição
escolar. No interior desse vasto campo limitar-me-ei a refletir sobre o apa-
recimento, ao mesmo tempo, de uma nova problemática de análise na pes-
quisa sociológica em educação e de novos processos sociais envolvendo os
principais atores do campo educacional. A reflexão deverá se situar, portan-
to, na interseção de duas dimensões da realidade: a sociológica e a social. Na
primeira parte abordarei o desenvolvimento das problemáticas sociológicas e
as novas tendências no tratamento reservado à categoria «família» pelos
sociólogos da educação contemporâneos. Na segunda concentrar-me-ei no
exame das modificações sofridas pela família e pelo sistema escolar contem-
porâneos, naquilo que diz respeito ao tema em foco. Finalmente, tentarei
sinalizar as grandes tendências que se esboçam no cenário das relações entre
as famílias e a instituição escolar.

A ABERTURA DA CAIXA PRETA: A CATEGORIA FAMÍLIA


NA SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO

Não seria correto afirmar que a categoria «família» só recentemente


surgiu na pesquisa sociológica em educação, pois, ao menos no nível

* Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.


** A autora agradece à comissão organizadora o convite recebido para participar do
colóquio «Escola e modernidade: da regulação ao risco». 563
Maria Alice Nogueira

macroscópico de análise, a família já se fazia presente na literatura socioló-


gica desde as décadas de 50-60, com a corrente de pesquisas hegemônica
à época e que hoje denominamos «empirismo metodológico»1. O que cons-
titui novidade hoje é o modo de tratamento que as novas gerações de soció-
logos vêm a ela reservando. Vejamos.
Nos anos que se seguiram ao final da segunda guerra mundial, os principais
países ocidentais industrializados registraram um extraordinário crescimento de
seus sistemas nacionais de ensino, possibilitado pela prosperidade econômica
dos «trinta gloriosos anos» e pela constituição do «Estado do Bem-estar so-
cial». Nesse contexto, observou-se, nesses países, o aparecimento de toda
uma corrente de pesquisas, efetuadas por cientistas sociais, que tinha como
tema central as relações entre o sistema escolar e a estratificação/mobilidade
social e como metodologia de trabalho grandes levantamentos de dados quan-
titativos visando recensear e descrever a população escolar, mensurar seus
fluxos e seus rendimentos. Assim, todo um estoque de pesquisas empíricas
desenvolvidas entre os anos de 1950 e meados da década de 60 nos Estados
Unidos (o «relatório Coleman»), na Inglaterra (a «aritmética política») e na
França (a «demografia escolar») viu no meio familiar de origem, em particular
em sua dimensão sociocultural2, um poderoso fator explicativo das desigual-
dades de oportunidades escolares entre os educandos.
De um modo geral, tais pesquisas se atinham sobretudo às características
morfológicas do grupo familiar, expressas através de variáveis como a ren-
da, o nível de instrução e a ocupação dos pais, o número de filhos, o lugar
da criança na fratria, etc. Seus resultados indicavam que as vantagens
econômicas tinham sobre o desempenho escolar um efeito menor do que
aquele dos fatores socioculturais (nível de instrução, atitudes e aspirações
dos pais, clima familiar, hábitos lingüísticos, etc.). Assim, certas famílias
foram consideradas mais capazes do que outras de incitarem ao êxito escolar
devido a suas atitudes de valorização e interesse pelos estudos dos filhos, a
sua ação de encorajá-los, etc.
No texto Social Class Factors in Educational Achievement, editado pela
OCDE em 1961, Jean Floud, uma das principais representantes dessa cor-
rente de pesquisas na Inglaterra, chegou até mesmo a falar, nesse momento,
em familles educogènes. Entretanto, o emprego dessa noção3 tem caráter

1
Tomo aqui de empréstimo essa conhecida expressão de Karabel e Halsey (1977). Cabe
lembrar também que é essa conjuntura sociológica que assinala o reconhecimento e a insti-
tucionalização da própria sociologia da educação como disciplina científica e como campo de
investigação empírica.
2
Forquin (1995) explora bem a convergência desses estudos para um «modelo culturalista»
(v. capítulos 1 e 2).
3
A expressão aparece em francês no texto original, sem que a autora inglesa forneça sua
564 fonte.
A relação família-escola na contemporaneidade

muito vago, não fazendo mais do que designar aquelas famílias que se
caracterizariam por propiciarem um ambiente familiar estimulante e favorável
à escolarização, sem que se explore, no texto, a questão dos mecanismos
através dos quais esse ambiente afeta as desigualdades de oportunidades
escolares. Entretanto, a autora faz questão de ressaltar que esse tipo de
família vai se tornando mais freqüente conforme se sobe na escala social.
Duru-Bellat e Van Zanten (1999, p. 169) caracterizam assim esse mo-
mento: «O papel ativo da família no processo de escolarização foi negligen-
ciado nos primeiros trabalhos em sociologia da educação pela redução da
família à variável ‘pertencimento à classe de origem’ [...]»
Quanto aos anos 70, sabemos que seu contexto teórico foi dominado pelo
paradigma da «reprodução» tanto em sua vertente marxista — com a obra
de Baudelot e Establet (1971) na França e a de Bowles e Gintis (1976) nos
EUA — quanto em sua vertente «culturalista» — com os célebres trabalhos
de Bourdieu e Passeron (1964 e 1970) na França. Nesse período, os soció-
logos não fizeram senão postular a transmissão pela família — a seus des-
cendentes — de uma herança, seja ela de caráter material ou simbólico, a
qual seria determinante para os resultados escolares do indivíduo, benefician-
do os grupos socialmente bem aquinhoados com bens culturais e/ou mate-
riais. Nesse processo, a ação da escola seria sobretudo a de mascarar as
diferenças sociais sob a aparência de diferenças individuais. A escola, nesse
modelo interpretativo, torna-se, afirma Singly (2000a, p. 272), «uma sessão
de mágica onde os professores fazem desaparecer a origem familiar».
Isso significa que os comportamentos internos das famílias não eram
interrogados em si mesmos, mas sim inferidos a partir da constatação de
seus efeitos sobre os destinos escolares. Assim, essas análises, que tinham
um caráter macroscópico, eximiram-se da observação dos processos do-
mésticos e cotidianos de produção/manutenção das desigualdades escolares,
transformando a família numa mera correia de transmissão das diferentes
classes sociais.
Terrail (1997, pp. 69-70) resume bem a tônica desse período:

Se, portanto, as teorias da reprodução avançam a idéia de uma dife-


renciação na natureza das famílias segundo seu pertencimento de classe,
elas permanecem ao nível do princípio: as famílias não são interrogadas
por si mesmas nem por aquilo que fazem das determinações inerentes a
seu pertencimento de classe. Não lhes é demandado mais, ao final das
contas, do que personificar os diferentes meios sociais (que são aqui os
verdadeiros sujeitos da vida social e da atividade escolar).

A esse propósito, Singly (1996a e 2000a) chama a atenção para o


«evitamento» da categoria (mas não da palavra) «família» por parte
de Bourdieu e Passeron em A Reprodução, livro publicado em 1970, que 565
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— como se sabe — marcou o período e assinalou o aparecimento de um


novo paradigma na disciplina4. Segundo ele, a família estava lá, seguramen-
te, mas escondida sob um outro nome: «pertencimento de classe» (1996a,
p. 153), a fim de melhor fazer aparecer a contribuição da instituição escolar
para a reprodução (2000a, p. 272).
Ao tentar explicar esse fato, Singly recorre a dois elementos:
a) O contexto ideológico da época, que celebrava a «morte da família».
Aqui o autor faz referência ao movimento francês de maio/68, que
rejeitava a família como algo prejudicial porque repressora da ver-
dadeira identidade dos jovens e dos adultos, transformando-os em
indivíduos conformistas (Singly, 2000b, p. 16);
b) O zelo objetivista dos dois autores do livro, cujas disposições teóricas,
à época, recomendavam a adoção de uma perspectiva analítica que se
colocasse exteriormente aos sujeitos e que se mostrasse cautelosa
quanto a suas interações. Aqui o autor faz referência às idéias expos-
tas no livro Le métier de sociologue (Bourdieu et al., 1968) que
defendem a necessidade de que o sociólogo opere uma ruptura epis-
temológica com as representações espontâneas e o senso comum dos
atores sociais. Ora, estudar a família faz o pesquisador incorrer em
alto risco de resvalar para a vida pessoal, para as dimensões do
doméstico, da intimidade, da subjetividade dos indivíduos e, portanto,
arriscar-se a praticar uma «sociologia espontânea».

No que diz respeito à sociologia da educação britânica, o livro de B. Berns-


tein (1971), representante sempre citado desse período, segue essa mesma
orientação. E, no que concerne aos Estados Unidos, a socióloga norte-
americana Annette Lareau (1987, p. 73) constata o mesmo fenômeno no
período em questão:

A influência do background familiar sobre a experiência educacional


da criança ocupa um curioso lugar no campo da sociologia da educação.
Por um lado, a questão tem dominado o campo. Utilizando instrumentos
metodológicos cada vez mais sofisticados, os cientistas sociais têm tra-
balhado para documentar, elaborar e comprovar a influência do back-
ground familiar sobre os destinos escolares [...] Mas, por outro lado, até
recentemente, as pesquisas sobre a questão focalizavam principalmente
os resultados educacionais; muito pouca atenção era dada aos processos

4
Quanto ao livro L’École capitaliste en France, de C. Baudelot e R. Establet, Singly
(2000a, p. 272) considera que nele a família é uma ilusão: ela impede de ver aquilo que
566 está em jogo por detrás dessa faixada de conveniência, a saber, a luta de classes.
A relação família-escola na contemporaneidade

através dos quais esses padrões educacionais são criados e reproduzidos


[os itálicos são da autora].

Em suma, se, por um lado, as análises sociológicas realizadas até fins da


década de 70 não deixam de reconhecer o papel da família na escolaridade
dos indivíduos (por meio dos processos de socialização primária), por outro,
elas promovem sua diminuição ao deduzi-lo a partir da condição de classe
do grupo familiar, desobrigando-se de submetê-lo à observação empírica.
Significa dizer que o funcionamento interno das famílias — em suas relações
com a escola — permanecia como uma caixa preta intocada.
E assim chegamos ao período atual, iniciado a partir dos anos 80, que se
caracteriza por um forte processo de reorientação dos objetos de conhecimen-
to e dos métodos investigativos da sociologia da educação no sentido de dar
conta das esferas microscópicas da realidade social. Nesse processo, usual-
mente definido por um deslocamento do olhar sociológico das macro-estrutu-
ras para as práticas pedagógicas cotidianas, novos enfoques e objetos vêm
emergindo — entre eles, o estabelecimento de ensino, a sala de aula, o cur-
rículo, a família —, numa clara demonstração de que os sociólogos começam
a voltar seus olhos para as pequenas unidades de análise (Forquin, 1995).
É nesse quadro que tem origem, na sociologia da educação, um novo
campo de estudos que se ocupa das trajetórias escolares dos indivíduos e
das estratégias utilizadas pelas famílias no decorrer desses itinerários esco-
lares. Trata-se de um novo referencial de análise que ambiciona ir além da
já clássica sociologia da escolarização — que fizera das desigualdades de
oportunidades uma evidência —, tentando construir uma sociologia dos co-
tidianos e das experiências escolares. Estas palavras de Henriot-Van Zanten
(1988, p. 188) explicitam bem o movimento de renovação do objeto:
Para descrever a evolução das problemáticas relativas à relação que as
famílias mantêm com a escola podemos, através de um resumo simplifi-
cador, notar a transição de uma sociologia das desigualdades de educação,
voltada para a análise dos determinismos sociais e culturais, para uma
sociologia que se interessa igualmente — mas não necessariamente de
modo exclusivo — pelas estratégias individuais face à escolarização.

Com efeito, o termo «estratégia» passará, a partir de então, a ser um


termo-chave para o sociólogo ocupado com a problemática das relações
família/escola. E os pesquisadores atuais partirão em busca da compreensão
das «múltiplas e variadas» estratégias desenvolvidas pelas famílias contem-
porâneas face à escolarização dos filhos (Henriot-Van Zanten e Migeot-
-Alvarado, 1995). Algumas mais explícitas, como, por exemplo, a escolha do
estabelecimento de ensino (Gewirtz et al., 1995; Ballion, 1982 e 1986;
Langouët e Léger, 1997) ou das atividades extra-escolares (Colin e Coridian,
1996). Outras mais implícitas, como o acompanhamento estreito e cotidiano 567
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da escolaridade do filho (Gissot et al., 1994); essas últimas, bem menos


acessíveis ao pesquisador, porque supõem um trabalho de observação direta,
muitas vezes dificultado em se tratando do cotidiano de uma instituição como
a família, ciosa da preservação de sua intimidade. A esse respeito, acredito
que os estudos que levam mais longe o propósito de adentrarem a «rotina
natural» das famílias são os conduzidos pela pesquisadora norte-americana
Annette Lareau (2002 e 2003). A partir de procedimentos etnográficos muito
finos (que chegam até mesmo a incluir o pernoite do pesquisador nos lares
investigados), essa autora desce a detalhes miúdos de como as diferenças de
classe relacionadas aos recursos culturais possuídos impactam a organização
do dia a dia da família e os destinos dos filhos.
Nesse novo contexto teórico, algumas questões de fundo passam a
estruturar o debate. A primeira delas associa-se ao grau de autonomia que
possuem as práticas e estratégias educativas da família em relação à sua
classe social de pertencimento. Na recensão que fazem dos estudos sobre
o tema, Duru-Bellat e Van Zanten (1999, p. 169) escrevem:

Hoje em dia, em contrapartida, numerosos trabalhos analisam os di-


versos efeitos das práticas educativas familiares sobre as trajetórias es-
colares dos alunos. Essas práticas se revelam, aliás, mais preditoras dos
destinos escolares do que a origem social, mesmo se existe uma forte
correlação entre os dois tipos de variáveis.

De fato, com o propósito de colocar em questão os determinismos so-


ciológicos e com o desejo de refinar sua compreensão sobre a influência da
origem social, os pesquisadores passaram a formular novas interrogações,
relativas seja à diversidade verificada entre as famílias de um mesmo meio
social no que concerne a sua história, projetos, modo de funcionamento
(Zéroulou, 1988; Terrail, 1990; Kellerhals e Montandon, 1991; Laurens, 1992;
Rochex, 1995; Ferrand et al., 1999), seja à heterogeneidade existente no
interior do próprio grupo familiar, no que se refere às disposições de cada um
de seus membros (Lahire, 1995), seja à própria divisão interna a um mesmo
indivíduo, que pode enfrentar ambivalências e tensões entre o desejo de ver
seu filho competitivo e bem sucedido escolarmente, ao mesmo tempo que
deseja vê-lo feliz e realizado quando isso se dá em detrimento do êxito escolar
(Singly, 1995, 1996b e 1997; Dubet e Martuccelli, 1996a e 1996b).
A mesma preocupação em combater tendências hipersociológicas leva tam-
bém o sociólogo de hoje a ver na noção de transmissão da herança um «obs-
táculo epistemológico» (Singly, 2000a) e a criticar a idéia de transmissão auto-
mática, de pais a filhos, dos diferentes tipos de recursos rentáveis no mercado
escolar (o capital cultural, em primeiro lugar). Com base em estudos empíricos,
vem-se demonstrando que a transmissão dos capitais não é inexorável, pois ela
568 requer que o «herdeiro aceite herdar a herança» e que ele desenvolva todo um
A relação família-escola na contemporaneidade

trabalho individual de apropriação que lhe permita tomar posse do patrimônio


parental (Bourdieu, 1993; Singly 1993 e 1996a; Lahire, 1995).
As questões acima encontram-se associadas a uma outra problemática
que emerge na atualidade e que diz respeito à natureza das lógicas que
regulam as estratégias das famílias em matéria de escolarização. De um
modo geral, os estudos sociológicos se dividem entre duas ênfases: aqueles
que sublinham o caráter «utilitarista» das práticas familiares, acentuando as
condutas de investimento que buscam a rentabilidade econômica e
ocupacional dos produtos da escolarização (diploma, distinção profissional),
e aqueles que acentuam a dimensão identitária das ações das famílias, que
encontram sua lógica na mobilização em favor da constituição da identidade
social e da aquisição de qualidades morais requeridas para uma boa integra-
ção a certos meios sociais (Henriot-Van Zanten, 1996).
Mas quais fatores teriam levado ao aparecimento dessas novas formas de
tratamento sociológico do objeto? Ou, mais especificamente, sob o peso de
quais fatores foram os sociólogos levados a superar o plano das análises
macroscópicas e das relações estatísticas entre a posição social dos pais e
a performance escolar dos filhos, a desejar conhecer os processos e as
dinâmicas intrafamiliares, as práticas socializatórias e as estratégias educati-
vas internas ao microcosmo familiar?
Por certo que a sociologia da educação não esteve refratária ao movimento
mais geral que afetou as ciências sociais nas últimas décadas, quando novos
modos de inteligibilidade do social passaram a enfatizar a autonomia relativa dos
sujeitos em suas ações, representações, valores, e a conceber a realidade social
como resultante de um trabalho de construção permanente por parte dos atores
sociais. Tem início então uma fase de grande impulsão de pesquisas sobre a vida
privada (Singly, 1991). Nesse sentido, a própria concepção de grupo familiar
sofre uma modificação. Sem ignorar o peso dos condicionantes externos, deixa-
-se de concebê-lo como mero reflexo da classe social para enxergar nele um ator
social portador de um projeto próprio e resultante de uma dinâmica interna.
A ênfase será posta agora na atividade própria do grupo familiar, definindo-se
sua especificidade por sua dinâmica e sua forma de se relacionar com o meio
social, em boa medida uma construção sua. Assim, o funcionamento e as
orientações familiares operariam como uma mediação entre, de um lado, a
posição da família na estratificação social e, de outro, as aspirações e condutas
educativas e a relação com a escolaridade dos filhos.
Mas esse fenômeno é também fruto de um novo contexto social, resul-
tante de mudanças tanto no seio da família quanto no âmbito dos processos
escolares. O aspecto mais visível desse novo contexto — e também o mais
importante para o que me interessa aqui — consiste no intenso processo de
aprofundamento dos laços que unem essas duas instâncias de socialização
infantil e juvenil que são a família e a escola, cujas esferas de atuação
passaram a se intersectar, com a escola reconhecendo cada vez mais na 569
Maria Alice Nogueira

família um parceiro importante — bem mais do que no passado — para a


realização de suas finalidades de formação.

MUDANÇAS DA FAMÍLIA E TRANSFORMAÇÕES DA ESCOLA

Desde meados do século XX, especialmente em suas últimas décadas, mu-


danças importantes vêm afetando, ao mesmo tempo, a instituição familiar e o
sistema escolar, levando ao aparecimento de novos traços e desenhando novos
contornos nas relações entre essas duas grandes instâncias de socialização.
Instituição social mutante por excelência, a família apresenta configura-
ções próprias a cada sociedade e a cada momento histórico, embora sua
existência seja um fato observado universalmente (Segalen, 1993).
No que tange à família ocidental, característica dos países industrializa-
dos, um rápido balanço demográfico de suas principais mutações inclui: (a)
decréscimo do número de casamentos, em benefício de novas formas de
conjugalidade (em particular, as uniões livres); (b) as elevações constantes
da idade de casamento (e de procriação) e da taxa de divórcios; (c) a
diversificação dos arranjos familiares, com a difusão de novos tipos de
famílias (monoparentais, recompostas, monossexuais); (d) a limitação da
prole, associada à generalização do trabalho feminino, ao avanço das técnicas
de contracepção, às mudanças nas mentalidades. Se, no passado, a procria-
ção constituía a finalidade principal (e «natural») do casamento e altas taxas
de mortalidade infantil tornavam incerta a sobrevivência de um filho, na
contemporaneidade este deriva de uma decisão do casal, que agora detém
meios de controlar o tamanho da prole e o momento de procriação.
Do mesmo modo, um breve sobrevôo pela economia mostra que — ao
longo do tempo — a família passou de unidade de produção a unidade de
consumo. Uma conjunção de fatores — dentre os quais se incluem sobre-
tudo a proibição do trabalho infantil, a extensão dos períodos de escolaridade
obrigatória e a criação dos sistemas de seguridade social — fez com que os
filhos deixassem de representar para os pais uma perspectiva de aumento da
renda familiar ou de recurso contra suas inseguranças no momento da ve-
lhice. Se ainda hoje eles permanecem como posse dos pais, é menos como
futura força de trabalho (para os desfavorecidos) ou como garantia de su-
cessão (no caso dos favorecidos) e cada vez mais como objeto de afeto e
de cuidados, razão de viver, modo de se realizar. Limitar a prole torna-se
então o meio principal de investir o máximo em cada filho para poder
oferecer a ele as melhores oportunidades possíveis5.
De «capital», a criança se metamorfoseia em «custo econômico», ou, nas
palavras de Kellerhals et al. (1984), em «bem de consumo afetivo». Seu

5
Como observa Segalen (1993), capítulo 6, em nossas sociedades, as estratégias biológicas
570 e as estratégias educativas articulam-se fortemente às estratégias de reprodução social.
A relação família-escola na contemporaneidade

significado e o lugar que ocupa na família passarão, assim, por uma profun-
da modificação. De «elo da cadeia geracional», ela passa a «centro da
afetividade familiar» (Saraceno, 1997, p. 122), pois vem ao mundo sobre-
tudo para satisfazer necessidades afetivas e relacionais dos pais6.
O ponto de partida da descoberta desse novo lugar da infância situa-se
na obra do historiador francês Phillipe Ariès (1981), que, desde a década de
60, formulou as teses da família moderna voltada para seu interior, inaugu-
rando o amor conjugal e a intimidade familiar. Na esteira de sua obra, abriu-
-se toda uma discussão acerca do processo de sentimentalização das relações
familiares, cuja contrapartida seria o enfraquecimento das funções instru-
mentais da família (reprodução biológica, cuidados materiais, descendência),
em proveito de suas funções expressivas.
Entretanto, Montandon (2001) adverte que é preciso nuançar essas teses,
argumentando que seria equivocado pensar, por um lado, que todas as funções
instrumentais da família teriam desaparecido e, por outro, que as relações
afetivas fossem inteiramente inexistentes na pré-modernidade, embora a autora
reconheça que o aspecto afetivo tenha se desenvolvido e intensificado. Para
ela, «a criança constituiu e constitui sempre um duplo investimento para a
família, instrumental e afetivo, e as duas dimensões permanecem muito impor-
tantes, ainda que tenham sofrido certas transformações» (p. 25).
A conjugação de todos esses fatores acarretará uma reconfiguração do lugar
do filho, que terá por conseqüência um forte desenvolvimento e diversificação
do papel educativo da família. As funções de socialização, que anteriormente se
realizavam preponderantemente no meio social mais extenso (vizinhança, grupo
de pares, parentela extensa), ganham peso no interior da esfera doméstica, que
se torna palco de transmissões diversas (de posturas corporais, de valores e
condutas morais, de habilidades intelectuais, de saberes)7.
No plano das relações internas à família, um processo de democratização
tenderá a se instalar8, fazendo com que cada vez menos a posição e o poder

6
Sarmento (2004) adverte, entretanto, quanto ao risco de ocultarmos, por debaixo dessas
tendências gerais, as situações concretamente verificadas de rejeição, abandono, sevícias, por
parte dos pais sobre os filhos.
7
Sarmento (2002) afirma, ao contrário, que a família contemporânea tem perdido
progressivamente o papel de «instância primeira de socialização», usando o argumento da
multiplicação dos agentes socializadores e da importância crescente da socialização entre
pares. É preciso, no entanto, levar em conta que sua afirmação se dá em referência às classes
populares em situação de exclusão social. Isso é importante porque já se sabe (cf.
Chamboredon, 1971) que a extensão do controle e do enquadramento da socialização aumenta
fortemente nas famílias pertencentes aos meios sociais mais elevados (controle da sociabi-
lidade, da sexualidade, dos sentimentos, etc.).
8
A efervescência cultural da década de 60 parece ter sido crucial para o desenvolvimento
desse processo de democratização familiar, sem desconsiderar os efeitos específicos da difusão
do trabalho feminino sobre esse fenômeno (cf. Kellerhals e Roussel, 1987). 571
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de cada membro assentem em elementos estatutários, como o sexo e a


idade, em benefício da valorização das opções e da vida privada de cada
membro, vistas como expressão de seu verdadeiro «eu». A família igualitária
vai assim, pouco a pouco, substituindo a família hierárquica.
Na família contemporânea, a noção de respeito não desapareceu, ela
mudou de sentido. Ela marca, doravante, o reconhecimento, não mais de
uma autoridade superior, mas do direito de todo indivíduo, pequeno ou
grande, de ser considerado uma pessoa (Singly, 1996b, p. 113).
No bojo desse movimento emergem novos valores educacionais, preco-
nizando o respeito pela individualidade e pela autonomia juvenis, o liberalismo
nas relações entre pais e filhos, que agora devem se pautar não mais pelo
autoritarismo, mas sim pela comunicação e pelo diálogo. Em suma, os pais
tornam-se provedores de bem-estar psicológico para os filhos.
Esse novo modelo de família alarga de forma intensa a responsabilidade
parental em relação aos filhos. Estes últimos funcionam como um espelho
onde os pais vêem refletidos os acertos e erros de suas concepções e
práticas educativas, os quais costumam se fazer acompanhar de sentimentos
de orgulho ou, ao contrário, de culpabilidade. Para o sociólogo da família F.
Godard (1992), este é um dos elementos que compõem o quadro da ressig-
nificação do filho na família contemporânea. Ele escreve:

Tudo se passa como se o êxito do filho constituísse uma espécie de


símbolo do êxito pessoal dos pais, do bem fundado de seus valores e de
sua concepção de educação; como se esse êxito se tornasse para os pais
um critério fundamental de sua auto-estima [p. 119].

Os pais tornam-se, assim, os responsáveis pelos êxitos e fracassos (es-


colares, profissionais) dos filhos, tomando para si a tarefa de instalá-los da
melhor forma possível na sociedade. Para isso mobilizam um conjunto de
estratégias visando elevar ao máximo a competitividade e as chances de
sucesso do filho, sobretudo face ao sistema escolar, o qual, por sua vez,
ganha importância crescente como instância de legitimação individual e de
definição dos destinos ocupacionais. Tendo se tornado quase impossível a
transmissão direta dos ofícios dos pais aos filhos, o processo de profissio-
nalização passa cada vez mais por agências específicas, dentre as quais a
mais importante é, sem dúvida, a escola.
Ao lado desses fenômenos, modificações importantes atingiram também o
sistema escolar e os processos de escolarização. Sob o peso de fatores como
as legislações de extensão da escolaridade obrigatória, as políticas de democra-
tização do acesso ao ensino, a complexificação das redes escolares e a diver-
sificação dos perfis dos estabelecimentos de ensino, as mudanças internas nos
572 currículos, nos princípios e métodos pedagógicos, é todo o funcionamento
A relação família-escola na contemporaneidade

das instituições escolares que passa a influenciar intensamente o dia a dia das
famílias. Em um texto de grande argúcia, Perrenoud (2001) oferece uma
descrição detalhada das formas e da intensidade com que a escola de hoje
influi e interfere na vida cotidiana da família contemporânea.
Como sabemos, já a partir de inícios do século XX, com o movimento
escolanovista, os métodos pedagógicos tradicionais passam a ser questiona-
dos e contrapostos às pedagogias centradas no aluno, que recusam a con-
cepção da criança como um adulto em miniatura e defendem a necessidade
de se atentar para as características próprias da infância e de se adaptar o
ensino à natureza do educando. Essas novas perspectivas encaram o aluno
como um elemento ativo do processo de ensino-aprendizagem. Tais princí-
pios, que se prolongaram no tempo, revestem-se, nos dias atuais, de uma forte
preocupação com a coerência entre, de um lado, os processos educativos que
se dão na família e, de outro, aqueles que se realizam na escola. O que
significa que a instituição escolar hodierna deve conceber seu trabalho edu-
cativo em conexão com as vivências trazidas de casa pelo educando. Hoje,
mais do que nunca, o discurso da escola afirma a necessidade de se conhe-
cer a família para bem se compreender a criança, assim como para obter
uma continuidade entre sua própria ação educacional e a da família. E o meio
privilegiado para a realização desses ideais pedagógicos será — ao menos no
plano do discurso — o permanente diálogo com os pais.
Além disso, outro fator vem reforçar esse quadro. Refiro-me à tendência
atual da escola, para além de suas funções tradicionais de desenvolvimento
cognitivo, de chamar para si certa parcela de responsabilidade pelo bem-estar
psicológico e pelo desenvolvimento emocional do educando. Em alusão a
essa nova faceta escolar, Montandon (2001, pp. 17-18) afirma:

Na medida em que [...] há uma maior preocupação com a felicidade


e o desenvolvimento da criança, onde os educadores não se atêm exclu-
sivamente ao desenvolvimento cognitivo da criança, na medida em que a
escola utiliza uma pedagogia invisível e em que a socialização aí feita tem
vindo a ser menos neutra, mais personalizada, o território afetivo da
família é, de qualquer forma, invadido [pela escola].

Assim, sob o argumento da necessidade de se conhecer o aluno para a


ele ajustar a ação pedagógica, o coletivo de educadores da escola (profes-
sores, orientadores e outros) busca hoje ativamente e detém efetivamente
informações sobre os acontecimentos mais íntimos da vida familiar, como
crises e separações conjugais, doenças, desemprego, etc.
No mesmo sentido, a escola estende agora sua área de atuação em
direção a terrenos reservados, no passado, à socialização familiar, como, por
exemplo, a educação afetivo-sexual. A esse respeito, os sociólogos falam hoje
de uma verdadeira redefinição da divisão do trabalho entre as duas instâncias 573
Maria Alice Nogueira

(cf. Montandon, 1994a). Um sintoma desse fato seria o surgimento, no


interior do sistema escolar, de todo um conjunto de serviços oferecidos por
especialistas (psicólogos, psico-pedagogos, fonoaudiólogos, etc.), visando
auxiliar as famílias.
A complexificação das redes escolares contemporâneas constitui um
outro componente desse quadro de mudanças no panorama escolar. Se, no
passado, as redes escolares apresentavam um volume (número de estabele-
cimentos) bem mais reduzido e uma composição (diferenças entre eles) bem
mais homogênea, hoje em dia os pais se vêem na contingência — em maior
ou menor grau, conforme o meio social de pertencimento — de escolherem
entre diferentes perfis de estabelecimentos de ensino que variam segundo
múltiplos aspectos: localização, infra-estrutura, clientela, grau de tradição,
qualidade do ensino, clima disciplinar, proposta pedagógica9, para citar os
mais importantes. Ora, esse ato de escolha proporcionará às famílias mais
uma oportunidade de aproximação do universo escolar, pois pressupõe, entre
outras coisas, a observação e a busca de informações sobre os diferentes
estabelecimentos e seus modos de funcionamento (cf. Nogueira, 1998).
Se, portanto, a família vem penetrando crescentemente os espaços esco-
lares, a escola também, por sua vez, alargou consideravelmente sua zona de
interação com a instituição familiar.

À GUISA DE CONCLUSÃO: AS METAMORFOSES


DE UMA RELAÇÃO

A literatura sociológica tem defendido a idéia de que, no passado, as


relações entre a família e a escola eram bem menos freqüentes e, sobretudo,
mais restritas em sua natureza, isto é, o campo e o teor das trocas eram bem
mais limitados, sendo impensável uma interferência dos pais em questões
internas ao ensino ou à sala de aula ( Montandon, 2001; Glasman, 1992;
Migeot-Alvarado, 2000). Mas seria certamente um equívoco se pensássemos
que em períodos anteriores ao nosso inexistiam relações sociais entre as
famílias e as instituições escolares, embora elas fossem seguramente mais
esporádicas, menos intensas e de natureza diferente.
Quanto ao detalhamento das características de que se reveste hoje essa
relação, remeto o leitor ao informado e minucioso livro de Pedro Silva
(2003), que realiza uma consistente revisão da literatura anglo-saxônica e
francófona sobre o tema. Tentarei aqui apenas esboçar, à guisa de conclu-
são, o que me parecem ser as grandes tendências e os contornos dessa

9
No Brasil, na linguagem ordinária dos atores, é comum, por exemplo, a referência a
574 estabelecimentos de tipo «conteudista» ou de tipo «alternativo».
A relação família-escola na contemporaneidade

relação. Eu diria que três processos respondem fundamentalmente pelas


metamorfoses assistidas nas relações entre as famílias e a escola na atuali-
dade.
O primeiro é o processo de aproximação dessas duas instâncias no âmbito
da sociedade ou, nas palavras de Terrail (1997, p. 67), uma «imbricação de
territórios». Escola e família intensificam suas relações de modo nunca antes
conhecido. A presença dos pais no recinto escolar e sua participação nas
atividades de ensino tornam-se cada vez mais comuns. Os contatos formais
e informais se multiplicam e se diversificam. No cotidiano, os canais de
comunicação parecem se ampliar para além da tradicional participação nas
associações de pais e mestres e da presença em reuniões oficiais com profes-
sores. Hoje há projetos pedagógicos, palestras, cursos e jornadas envolvendo
os pais; há as «festas da família», a agenda escolar do aluno, os bilhetes, os
contatos telefônicos, as conversas na entrada e na saída das aulas e ainda,
segundo Perrenoud (1995), a mais importante das formas de contato: a própria
criança, através da qual se dá a maior parte da comunicação.
O segundo processo, decorrente do primeiro mas não completamente
redutível a ele, é o de individualização da relação. Como assinala Henriot-
-Van Zanten (1988), há hoje uma nítida acentuação das interações face a
face entre pais e educadores.
E, por fim, o terceiro processo — já acima mencionado — refere-se à
redefinição dos papéis ou, em outros termos, da divisão do trabalho educa-
tivo entre as duas partes. De um lado, a escola não se limita mais às tarefas
voltadas para o desenvolvimento intelectual dos alunos, estendendo sua ação
aos aspectos corporais, morais, emocionais, do processo de desenvolvimen-
to. De outro, a família passa a reivindicar o direito de intervir no terreno da
aprendizagem e das questões de ordem pedagógica e disciplinar. Não há mais
uma clara delimitação de fronteiras. Sem pretender estabelecer aqui as cau-
sas desse último fenômeno, que seguramente são muito mais complexas,
atenho-me apenas a lembrar que fatores como a elevação do nível geral de
escolaridade da população e a grande disseminação dos discursos especiali-
zados sobre a educação das crianças e dos jovens vêm permitindo aos pais
se apropriarem de conhecimentos relativos a princípios e métodos pedagó-
gicos e, até mesmo, questioná-los. Além disso, a difusão das idéias relativas
aos direitos das crianças e dos pais autoriza a família a cobrar da escola uma
prestação de contas sobre o conteúdo e a natureza do ensino que oferece.
Seria, no entanto, ingênuo acreditar que todos esses processos ocorrem
sem tensões ou contradições. Os próprios títulos dos estudos atuais sobre
o assunto convergem no diagnóstico das dificuldades que envolvem a relação
família/escola: «relação armadilhada» (Silva, 2003), «diálogo impossível»
(Montandon e Perrenoud, 2001), «incompreensão mútua» (Montandon,
1994b), «mal-entendido» (Dubet, 1997), «proximidade distante» (Santos, 575
Maria Alice Nogueira

2001), «dificuldades de uma cooperação» (Comeau e Salomon, 1994). O fato


é que ambigüidades, reticências, resistências por parte dos atores envolvidos,
são incessantemente verificadas pela investigação sociológica, embora não
seja este o objeto a me ocupar neste trabalho, que pretendeu tão-somente
refletir sobre a gênese de um fenômeno.

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