Maria Alice Nogueira Familia Escola
Maria Alice Nogueira Familia Escola
Maria Alice Nogueira Familia Escola
1
Tomo aqui de empréstimo essa conhecida expressão de Karabel e Halsey (1977). Cabe
lembrar também que é essa conjuntura sociológica que assinala o reconhecimento e a insti-
tucionalização da própria sociologia da educação como disciplina científica e como campo de
investigação empírica.
2
Forquin (1995) explora bem a convergência desses estudos para um «modelo culturalista»
(v. capítulos 1 e 2).
3
A expressão aparece em francês no texto original, sem que a autora inglesa forneça sua
564 fonte.
A relação família-escola na contemporaneidade
muito vago, não fazendo mais do que designar aquelas famílias que se
caracterizariam por propiciarem um ambiente familiar estimulante e favorável
à escolarização, sem que se explore, no texto, a questão dos mecanismos
através dos quais esse ambiente afeta as desigualdades de oportunidades
escolares. Entretanto, a autora faz questão de ressaltar que esse tipo de
família vai se tornando mais freqüente conforme se sobe na escala social.
Duru-Bellat e Van Zanten (1999, p. 169) caracterizam assim esse mo-
mento: «O papel ativo da família no processo de escolarização foi negligen-
ciado nos primeiros trabalhos em sociologia da educação pela redução da
família à variável ‘pertencimento à classe de origem’ [...]»
Quanto aos anos 70, sabemos que seu contexto teórico foi dominado pelo
paradigma da «reprodução» tanto em sua vertente marxista — com a obra
de Baudelot e Establet (1971) na França e a de Bowles e Gintis (1976) nos
EUA — quanto em sua vertente «culturalista» — com os célebres trabalhos
de Bourdieu e Passeron (1964 e 1970) na França. Nesse período, os soció-
logos não fizeram senão postular a transmissão pela família — a seus des-
cendentes — de uma herança, seja ela de caráter material ou simbólico, a
qual seria determinante para os resultados escolares do indivíduo, benefician-
do os grupos socialmente bem aquinhoados com bens culturais e/ou mate-
riais. Nesse processo, a ação da escola seria sobretudo a de mascarar as
diferenças sociais sob a aparência de diferenças individuais. A escola, nesse
modelo interpretativo, torna-se, afirma Singly (2000a, p. 272), «uma sessão
de mágica onde os professores fazem desaparecer a origem familiar».
Isso significa que os comportamentos internos das famílias não eram
interrogados em si mesmos, mas sim inferidos a partir da constatação de
seus efeitos sobre os destinos escolares. Assim, essas análises, que tinham
um caráter macroscópico, eximiram-se da observação dos processos do-
mésticos e cotidianos de produção/manutenção das desigualdades escolares,
transformando a família numa mera correia de transmissão das diferentes
classes sociais.
Terrail (1997, pp. 69-70) resume bem a tônica desse período:
4
Quanto ao livro L’École capitaliste en France, de C. Baudelot e R. Establet, Singly
(2000a, p. 272) considera que nele a família é uma ilusão: ela impede de ver aquilo que
566 está em jogo por detrás dessa faixada de conveniência, a saber, a luta de classes.
A relação família-escola na contemporaneidade
5
Como observa Segalen (1993), capítulo 6, em nossas sociedades, as estratégias biológicas
570 e as estratégias educativas articulam-se fortemente às estratégias de reprodução social.
A relação família-escola na contemporaneidade
significado e o lugar que ocupa na família passarão, assim, por uma profun-
da modificação. De «elo da cadeia geracional», ela passa a «centro da
afetividade familiar» (Saraceno, 1997, p. 122), pois vem ao mundo sobre-
tudo para satisfazer necessidades afetivas e relacionais dos pais6.
O ponto de partida da descoberta desse novo lugar da infância situa-se
na obra do historiador francês Phillipe Ariès (1981), que, desde a década de
60, formulou as teses da família moderna voltada para seu interior, inaugu-
rando o amor conjugal e a intimidade familiar. Na esteira de sua obra, abriu-
-se toda uma discussão acerca do processo de sentimentalização das relações
familiares, cuja contrapartida seria o enfraquecimento das funções instru-
mentais da família (reprodução biológica, cuidados materiais, descendência),
em proveito de suas funções expressivas.
Entretanto, Montandon (2001) adverte que é preciso nuançar essas teses,
argumentando que seria equivocado pensar, por um lado, que todas as funções
instrumentais da família teriam desaparecido e, por outro, que as relações
afetivas fossem inteiramente inexistentes na pré-modernidade, embora a autora
reconheça que o aspecto afetivo tenha se desenvolvido e intensificado. Para
ela, «a criança constituiu e constitui sempre um duplo investimento para a
família, instrumental e afetivo, e as duas dimensões permanecem muito impor-
tantes, ainda que tenham sofrido certas transformações» (p. 25).
A conjugação de todos esses fatores acarretará uma reconfiguração do lugar
do filho, que terá por conseqüência um forte desenvolvimento e diversificação
do papel educativo da família. As funções de socialização, que anteriormente se
realizavam preponderantemente no meio social mais extenso (vizinhança, grupo
de pares, parentela extensa), ganham peso no interior da esfera doméstica, que
se torna palco de transmissões diversas (de posturas corporais, de valores e
condutas morais, de habilidades intelectuais, de saberes)7.
No plano das relações internas à família, um processo de democratização
tenderá a se instalar8, fazendo com que cada vez menos a posição e o poder
6
Sarmento (2004) adverte, entretanto, quanto ao risco de ocultarmos, por debaixo dessas
tendências gerais, as situações concretamente verificadas de rejeição, abandono, sevícias, por
parte dos pais sobre os filhos.
7
Sarmento (2002) afirma, ao contrário, que a família contemporânea tem perdido
progressivamente o papel de «instância primeira de socialização», usando o argumento da
multiplicação dos agentes socializadores e da importância crescente da socialização entre
pares. É preciso, no entanto, levar em conta que sua afirmação se dá em referência às classes
populares em situação de exclusão social. Isso é importante porque já se sabe (cf.
Chamboredon, 1971) que a extensão do controle e do enquadramento da socialização aumenta
fortemente nas famílias pertencentes aos meios sociais mais elevados (controle da sociabi-
lidade, da sexualidade, dos sentimentos, etc.).
8
A efervescência cultural da década de 60 parece ter sido crucial para o desenvolvimento
desse processo de democratização familiar, sem desconsiderar os efeitos específicos da difusão
do trabalho feminino sobre esse fenômeno (cf. Kellerhals e Roussel, 1987). 571
Maria Alice Nogueira
das instituições escolares que passa a influenciar intensamente o dia a dia das
famílias. Em um texto de grande argúcia, Perrenoud (2001) oferece uma
descrição detalhada das formas e da intensidade com que a escola de hoje
influi e interfere na vida cotidiana da família contemporânea.
Como sabemos, já a partir de inícios do século XX, com o movimento
escolanovista, os métodos pedagógicos tradicionais passam a ser questiona-
dos e contrapostos às pedagogias centradas no aluno, que recusam a con-
cepção da criança como um adulto em miniatura e defendem a necessidade
de se atentar para as características próprias da infância e de se adaptar o
ensino à natureza do educando. Essas novas perspectivas encaram o aluno
como um elemento ativo do processo de ensino-aprendizagem. Tais princí-
pios, que se prolongaram no tempo, revestem-se, nos dias atuais, de uma forte
preocupação com a coerência entre, de um lado, os processos educativos que
se dão na família e, de outro, aqueles que se realizam na escola. O que
significa que a instituição escolar hodierna deve conceber seu trabalho edu-
cativo em conexão com as vivências trazidas de casa pelo educando. Hoje,
mais do que nunca, o discurso da escola afirma a necessidade de se conhe-
cer a família para bem se compreender a criança, assim como para obter
uma continuidade entre sua própria ação educacional e a da família. E o meio
privilegiado para a realização desses ideais pedagógicos será — ao menos no
plano do discurso — o permanente diálogo com os pais.
Além disso, outro fator vem reforçar esse quadro. Refiro-me à tendência
atual da escola, para além de suas funções tradicionais de desenvolvimento
cognitivo, de chamar para si certa parcela de responsabilidade pelo bem-estar
psicológico e pelo desenvolvimento emocional do educando. Em alusão a
essa nova faceta escolar, Montandon (2001, pp. 17-18) afirma:
9
No Brasil, na linguagem ordinária dos atores, é comum, por exemplo, a referência a
574 estabelecimentos de tipo «conteudista» ou de tipo «alternativo».
A relação família-escola na contemporaneidade
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SINGLY, F. de (1991), «Avant propos in Singly, F. de (org.)», in La famille, l’état des savoirs,
Paris, La Découverte, pp. 5-9.
SINGLY, F. de (1993), «Savoir hériter: la transmission du goût de la lecture chez les étudiants
in Fraisse, E. (org.)», in Les étudiants et la lecture, Paris, PUF, pp. 49-71.
SINGLY, F. de (1995), «Elias ou le romantisme éducatif», in Cahiers internationaux de
sociologie, 99, Julho-Dezembro, pp. 279-291.
SINGLY, F. de (1996a), «L’appropriation de l’héritage culturel», in Lien social et politi-
ques — RIAC, 35, Primavera, pp. 153-165.
SINGLY, F. de (1996b), Le soi, le couple, la famille, Paris, Nathan.
SINGLY, F. de (1997), «La mobilisation familiale pour le capital scolaire in Dubet, F. (org.)»,
in École, familles: le malentendu, Paris, Textuel, pp. 45-58.
SINGLY, F. de (2000a), «L’école et la famille in Van Zanten, A. (org.)», in L’École, l’état
des savoirs, Paris, La Découverte, pp. 271-279.
SINGLY, F. de (2000b), «La réinvention de la famille», in Label France, 39, Abril, pp. 16-17.
TERRAIL, J. P. (1990), Destins ouvriers. La fin d’une classe?, Paris, PUF.
TERRAIL, J. P. (1997), «La sociologie des interactions famille-école», in Sociétés contempo-
raines, 25, pp. 67-83.
ZEROULOU, Z. (1988), «La réussite scolaire des enfants d’immigrés — l’apport d’une approche
en termes de mobilisation», in Revue française de sociologie, XXIX, pp. 447-470.
578