Hermenêutica - Compreender Direito by Lenio Luiz Streck

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Copyright© 2019 by Lenio Luiz Streck

Editor Responsável: Aline Gostinski


Lenio Luiz Streck
Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros

Conselho Editorial Científico:


Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de
S895Jurídicas
Investigações Streck, Lenio
da UNAM Luiz
- México
Juarez Tavares
Catedrático de Direito
Compreender direito - hermenêutica / Lenio Luiz Streck.
– 1.ed.
Penal –
daSão Paulo : Tirant
Universidade
112 p.
lo Blanch,
do Estado do Rio de2019.
Janeiro - Brasil COMPREENDER
Luis López Guerra
Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da
Universidade Carlos III de ISBN:
Owen M. Fiss
Madrid 978-85-9477-394-4
- Espanha DIREITO -
1. Hermenêutica. 2. Direito.deI.Yale
Título.

HERMENÊUTICA
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade - EUA
Tomás S. Vives Antón
CDU: 340.132
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

S895 Streck, Lenio Luiz 1ª edição


Compreender direito – hermenêutica [livro eletrônico] /
Lenio Luiz Streck. – 1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch,
2019.
1Mb. ; e-book

ISBN: 978-85-9477-395-1

1. Hermenêutica. 2. Direito. I. Título.

CDU: 340.132

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou
editoriais.
A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à
busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).
Todos os direitos desta edição reservados à Tirant Empório do Direito Editoral Ltda.

Todos os direitos desta edição reservados à Tirant lo Blanch. Compreender


Avenida Nove de Julho nº 3228, sala 404, ed. First Office Flat Direito
Bairro Jardim Paulista, São Paulo - SP
CEP: 01406-000
www.tirant.com/br - [email protected]
São Paulo
Impresso no Brasil / Printed in Brazil 2019
Copyright© 2019 by Lenio Luiz Streck
Editor Responsável: Aline Gostinski
Lenio Luiz Streck
Capa e Diagramação: Carla Botto de Barros

Conselho Editorial Científico:


Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot
Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Investigador do Instituto de
S895Jurídicas
Investigações Streck, Lenio
da UNAM Luiz
- México
Juarez Tavares
Catedrático de Direito
Compreender direito - hermenêutica / Lenio Luiz Streck.
– 1.ed.
Penal –
daSão Paulo : Tirant
Universidade
112 p.
lo Blanch,
do Estado do Rio de2019.
Janeiro - Brasil COMPREENDER
Luis López Guerra
Magistrado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Catedrático de Direito Constitucional da
Universidade Carlos III de ISBN:
Owen M. Fiss
Madrid 978-85-9477-394-4
- Espanha DIREITO -
1. Hermenêutica. 2. Direito.deI.Yale
Título.

HERMENÊUTICA
Catedrático Emérito de Teoria de Direito da Universidade - EUA
Tomás S. Vives Antón
CDU: 340.132
Catedrático de Direito Penal da Universidade de Valência - Espanha

S895 Streck, Lenio Luiz 1ª edição


Compreender direito – hermenêutica [livro eletrônico] /
Lenio Luiz Streck. – 1.ed. – São Paulo : Tirant lo Blanch,
2019.
1Mb. ; e-book

ISBN: 978-85-9477-395-1

1. Hermenêutica. 2. Direito. I. Título.

CDU: 340.132

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou
editoriais.
A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art.184 e §§, Lei n° 10.695, de 01/07/2003), sujeitando-se à
busca e apreensão e indenizações diversas (Lei n°9.610/98).
Todos os direitos desta edição reservados à Tirant Empório do Direito Editoral Ltda.

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São Paulo
Impresso no Brasil / Printed in Brazil 2019
SUMÁRIO

Por que estamos condenados a interpretar . . . . . . . . . . . . . . 7


A hermenêutica e a argumentação jurídica . . . . . . . . . . . . . 21
A hermenêutica e o alerta sobre os riscos do
pamprincipiologismo para a democracia . . . . . . . . . . . . . . 25
A importância da teoria dos princípios . . . . . . . . . . . . . . . 31
As críticas à concepção de princípio de Robert Alexy . . . . . . . 35
A Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) como oposição à
discricionariedade e ao ativismo judicial . . . . . . . . . . . . . . 39
A hermenêutica e o direito fundamental à Resposta
Adequada à Constituição (RAC) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
As semelhanças e diferenças entre a RAC da CHD e a tese
de Dworkin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
O estado da arte do Direito e da crítica do Direito . . . . . . . . . 57

De como Kelsen não defendia que se aplicasse “a letra da lei” . 67


Do precedentalismo brasileiro; dos enunciados, dos
conceitos sem coisa, da tópica sem tópica . . . . . . . . . . . . . . 69

O “saber nenhum” que obnubila a hermenêutica . . . . . . . . . 83


A angústia epistemológica e a filosofia no Direito . . . . . . . . . 89
Os modelos de... professor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
Meus livros, quem sou. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Sugestões de leitura e referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105

5
SUMÁRIO

Por que estamos condenados a interpretar . . . . . . . . . . . . . . 7


A hermenêutica e a argumentação jurídica . . . . . . . . . . . . . 21
A hermenêutica e o alerta sobre os riscos do
pamprincipiologismo para a democracia . . . . . . . . . . . . . . 25
A importância da teoria dos princípios . . . . . . . . . . . . . . . 31
As críticas à concepção de princípio de Robert Alexy . . . . . . . 35
A Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) como oposição à
discricionariedade e ao ativismo judicial . . . . . . . . . . . . . . 39
A hermenêutica e o direito fundamental à Resposta
Adequada à Constituição (RAC) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
As semelhanças e diferenças entre a RAC da CHD e a tese
de Dworkin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
O estado da arte do Direito e da crítica do Direito . . . . . . . . . 57

De como Kelsen não defendia que se aplicasse “a letra da lei” . 67


Do precedentalismo brasileiro; dos enunciados, dos
conceitos sem coisa, da tópica sem tópica . . . . . . . . . . . . . . 69

O “saber nenhum” que obnubila a hermenêutica . . . . . . . . . 83


A angústia epistemológica e a filosofia no Direito . . . . . . . . . 89
Os modelos de... professor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
Meus livros, quem sou. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Sugestões de leitura e referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105

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Por que estamos condenados a interpretar

A palavra “Hermenêutica” deriva de “Hermes”, figura


mitológica grega cuja principal responsabilidade era transmitir
aos mortais o que os deuses falavam. Ocorre que nunca se
soube o que os deuses disseram: só se soube o que Hermes
dissera acerca do que os deuses disseram. Que podemos nós,
contemporâneos, compreender do modo como os gregos
enxergavam a relação do homem com os sentidos? Primeiro,
que existir e interpretar são duas faces de uma mesma moeda.
Não há escapatória. O ser humano, enquanto ser no mundo,
está condenado a interpretar. Como no mito de Sísifo, levamos
a pedra todos os dias ao alto da montanha e a pedra rola de
volta. No dia seguinte começa tudo de novo. A pedra não fica
no alto porque não existe o significado final, perfeito, acabado.
Não existe o “sentido último”. Jamais alcançaremos um sentido
que contenha todas as respostas de antemão. Pelo contrário.
Portanto, retornemos, Hermes e Sísifo nos legaram
lições importantes. Chamamos a esse fenômeno circular de
hermenêutica. E é justamente a ausência, ou impossibilidade
de acesso aos sentidos últimos que faz do homem Homem,
e não Deus. Tivéssemos acesso direto ao sentido, Hermes
teria sido desnecessário. Na medida em que não temos
acesso direto às coisas e aos seus sentidos, temos de “nos
contentar” com o que sobra. E o que sobra? Sobra aquilo que
conseguimos desvelar. Por isso a palavra grega Aletheia quer
dizer desvelamento (a-letheia, onde o “a” é a antítese de velar;
logo, des-velar, descobrir, descortinar).
7
Por que estamos condenados a interpretar

A palavra “Hermenêutica” deriva de “Hermes”, figura


mitológica grega cuja principal responsabilidade era transmitir
aos mortais o que os deuses falavam. Ocorre que nunca se
soube o que os deuses disseram: só se soube o que Hermes
dissera acerca do que os deuses disseram. Que podemos nós,
contemporâneos, compreender do modo como os gregos
enxergavam a relação do homem com os sentidos? Primeiro,
que existir e interpretar são duas faces de uma mesma moeda.
Não há escapatória. O ser humano, enquanto ser no mundo,
está condenado a interpretar. Como no mito de Sísifo, levamos
a pedra todos os dias ao alto da montanha e a pedra rola de
volta. No dia seguinte começa tudo de novo. A pedra não fica
no alto porque não existe o significado final, perfeito, acabado.
Não existe o “sentido último”. Jamais alcançaremos um sentido
que contenha todas as respostas de antemão. Pelo contrário.
Portanto, retornemos, Hermes e Sísifo nos legaram
lições importantes. Chamamos a esse fenômeno circular de
hermenêutica. E é justamente a ausência, ou impossibilidade
de acesso aos sentidos últimos que faz do homem Homem,
e não Deus. Tivéssemos acesso direto ao sentido, Hermes
teria sido desnecessário. Na medida em que não temos
acesso direto às coisas e aos seus sentidos, temos de “nos
contentar” com o que sobra. E o que sobra? Sobra aquilo que
conseguimos desvelar. Por isso a palavra grega Aletheia quer
dizer desvelamento (a-letheia, onde o “a” é a antítese de velar;
logo, des-velar, descobrir, descortinar).
7
COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

Ao nascer, o homem depara-se com um mundo já interpretação/aplicação do Direito. Quando me refiro a uma
posto, desconhecido ainda a ele. Um lugar onde existem lei, o seu sentido – que me é sempre antecipado pela pré-com-
sentidos anteriores à sua própria existência. Os nomes já preensão – já me proporciona o sentido, que me é possibilitado
foram dados. Resta ao homem “correr atrás” para capturar pela diferença ontológica. Não percebo um texto sem “coisa”.
os sentidos. Compreendê-los. Heidegger diz que o ato de Não me deparo com conceitos sem coisas. Sustentar que
interpretar é um roubo (Das Raub). Sim, apropriamo-nos dos há uma diferença (ontológica) entre texto e norma não significa
sentidos que estão no mundo. George Steiner dirá que esse é que haja uma cisão estrutural entre ambos (o mesmo valendo
um ato comparativo: hermenêutica é situar o objeto diante de para a dualidade vigência-validade). O que se quer dizer é que
nós em um contexto inteligível capaz de conferir-lhe sentido. o texto não subsiste como texto (algo como “um conceito em
Vejam a feliz semelhança no francês entre as palavras raison e abstrato”). Não há texto sem contexto, assim como não há texto
comparaison. No paradigma hermenêutico-interpretativo, razão jurídico isolado da norma que se atribui a esse texto. O texto já
e comparação andam juntas. Esse(s) sentido(s) não está(ão) nem nos aparece com alguma norma, que é produto da atribuição
na essência das coisas e nem na nossa consciência ou mente. de sentido do intérprete. O intérprete não é livre para atribuir
Assim, no Direito, podemos dizer que as palavras da lei não são qualquer sentido ao texto. Ele sempre estará inserido em uma
unívocas. E que as palavras não refletem a essência das coisas. determinada tradição, que sobre ele exerce constrangimento.
E ainda podemos dizer que as palavras não são propriedade
do intérprete. Ele não pode fazer o que quiser com as palavras. Tudo para mostrar que nem o “juiz boca da lei” (o exe-
geta) e nem o “juiz dono da lei” (aquele que decide como quer
Portanto, não basta a palavra da lei. Ela precisa também e disfarça seus dribles na lei) estão certos. Longe disso. Acredi-
das coisas a que se refere. Lei, apenas, não se iguala ao Di- tem: o sentido da lei só existe no seu contexto. O texto da lei só
reito. Consequentemente, o texto da lei, sem facticidade, não existe na sua norma; e a norma só existe a partir do seu texto.
contém a norma, como bem disse Friedrich Müller. Por isso,
acrescento1, entre o texto da lei e a norma (o seu sentido) existe Nesse contexto, o intérprete-juiz – inserido em uma
uma diferença, que eu chamei, a partir de Heidegger, de “dife- tradição jurídica que, em uma democracia, impõe-lhe
rença ontológica”. Não há uma cisão entre aplicar e interpretar; responsabilidade política – tem um papel de mediação; o
porque, afinal, “interpretar” é (também) apreender, explicar, papel de realizar o devido ajuste institucional. É uma questão
traduzir, comparar, aplicar, representar; interpretar pressupõe de applicatio, que, no Direito, explico como a norma(tização) do
uma interação de significados, de possibilidades. Em todos os texto jurídico. A Constituição é o resultado de sua interpretação.
momentos, aplicamos a diferença. Quando olhamos para algo, A língua fala, diria Heidegger; e a fonte ontológica é anterior
essa coisa já nos aparece “enquanto algo”. Assim acontece na ao homem-enquanto-homem; ao juiz-enquanto-juiz.
É impossível reproduzir sentidos. E é por isso que não se pode
1 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 11. ed. Porto mais falar em Auslegung – extrair sentido –, e, sim, em Sinngebung
Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

Ao nascer, o homem depara-se com um mundo já interpretação/aplicação do Direito. Quando me refiro a uma
posto, desconhecido ainda a ele. Um lugar onde existem lei, o seu sentido – que me é sempre antecipado pela pré-com-
sentidos anteriores à sua própria existência. Os nomes já preensão – já me proporciona o sentido, que me é possibilitado
foram dados. Resta ao homem “correr atrás” para capturar pela diferença ontológica. Não percebo um texto sem “coisa”.
os sentidos. Compreendê-los. Heidegger diz que o ato de Não me deparo com conceitos sem coisas. Sustentar que
interpretar é um roubo (Das Raub). Sim, apropriamo-nos dos há uma diferença (ontológica) entre texto e norma não significa
sentidos que estão no mundo. George Steiner dirá que esse é que haja uma cisão estrutural entre ambos (o mesmo valendo
um ato comparativo: hermenêutica é situar o objeto diante de para a dualidade vigência-validade). O que se quer dizer é que
nós em um contexto inteligível capaz de conferir-lhe sentido. o texto não subsiste como texto (algo como “um conceito em
Vejam a feliz semelhança no francês entre as palavras raison e abstrato”). Não há texto sem contexto, assim como não há texto
comparaison. No paradigma hermenêutico-interpretativo, razão jurídico isolado da norma que se atribui a esse texto. O texto já
e comparação andam juntas. Esse(s) sentido(s) não está(ão) nem nos aparece com alguma norma, que é produto da atribuição
na essência das coisas e nem na nossa consciência ou mente. de sentido do intérprete. O intérprete não é livre para atribuir
Assim, no Direito, podemos dizer que as palavras da lei não são qualquer sentido ao texto. Ele sempre estará inserido em uma
unívocas. E que as palavras não refletem a essência das coisas. determinada tradição, que sobre ele exerce constrangimento.
E ainda podemos dizer que as palavras não são propriedade
do intérprete. Ele não pode fazer o que quiser com as palavras. Tudo para mostrar que nem o “juiz boca da lei” (o exe-
geta) e nem o “juiz dono da lei” (aquele que decide como quer
Portanto, não basta a palavra da lei. Ela precisa também e disfarça seus dribles na lei) estão certos. Longe disso. Acredi-
das coisas a que se refere. Lei, apenas, não se iguala ao Di- tem: o sentido da lei só existe no seu contexto. O texto da lei só
reito. Consequentemente, o texto da lei, sem facticidade, não existe na sua norma; e a norma só existe a partir do seu texto.
contém a norma, como bem disse Friedrich Müller. Por isso,
acrescento1, entre o texto da lei e a norma (o seu sentido) existe Nesse contexto, o intérprete-juiz – inserido em uma
uma diferença, que eu chamei, a partir de Heidegger, de “dife- tradição jurídica que, em uma democracia, impõe-lhe
rença ontológica”. Não há uma cisão entre aplicar e interpretar; responsabilidade política – tem um papel de mediação; o
porque, afinal, “interpretar” é (também) apreender, explicar, papel de realizar o devido ajuste institucional. É uma questão
traduzir, comparar, aplicar, representar; interpretar pressupõe de applicatio, que, no Direito, explico como a norma(tização) do
uma interação de significados, de possibilidades. Em todos os texto jurídico. A Constituição é o resultado de sua interpretação.
momentos, aplicamos a diferença. Quando olhamos para algo, A língua fala, diria Heidegger; e a fonte ontológica é anterior
essa coisa já nos aparece “enquanto algo”. Assim acontece na ao homem-enquanto-homem; ao juiz-enquanto-juiz.
É impossível reproduzir sentidos. E é por isso que não se pode
1 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 11. ed. Porto mais falar em Auslegung – extrair sentido –, e, sim, em Sinngebung
Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

– atribuir sentido. O processo hermenêutico é sempre produtivo. de ilhéus, descobriu que, no início do povoamento da ilhota,
Não há grau zero de sentido. Ponto. Por isso, applicatio quer dizer os peixes eram grandes e abundantes, não cabendo nas
que desde sempre já estou operando com esse conjunto de frigideiras. Consequentemente, cortavam a cabeça e o rabo.
elementos e categorias que me levam à compreensão. Mesmo O Hermeneuta, assim, compreendeu o fenômeno que se
quando Mesmo quando raciocino com exemplos abstratos, encobria aos moradores mais jovens da ilha, os quais, ao serem
estou aplicando. questionados do porquê de agirem dessa maneira, respondiam:
Dessa forma, o texto jurídico (uma lei, a Constituição) “Não sei… Mas as coisas sempre foram assim por aqui”! Eis o
só pode ser entendido a partir de sua aplicação, isto é, diante senso comum. Eis a naturalização de uma prática. Desse pro-
de uma coisa, um fato, um caso concreto. cesso – que é como se o fenômeno fosse “descascado aos pou-
Portanto, nós não inventamos os sentidos. Temos cos” – exsurge “o sentido da coisa”, que já não será aquela que
responsabilidade diante da tradição e daquilo que chamamos o intérprete vislumbrou no início. Com o revolvimento do chão
de “mundo”. O modo como vamos lidar com o mundo é que linguístico, o fenômeno exsurgiu “como ele é”, por assim dizer.
fará a diferença. Como dizer corretamente o nome das coisas? Num exemplo jurídico: remeto a um caso de furto qua-
Ou: como não dar respostas equivocadas, arbitrárias? De que lificado por escalada (como se sabe, a pena do furto qualifica-
modo podemos nos livrar da tentação de dar “chutes”, palpites, do é o dobro da do furto simples). O acusado (apelante no pro-
opiniões pessoais? A hermenêutica responde, e, no Direito, a cesso) fora condenado a três anos porque (comprovadamente)
saída está na interpretação construtiva. pulara o muro para chegar até à res furtivae. Os manuais de di-
Antes, um passo atrás. Há muito utilizo uma metáfora reito penal dirão apenas que escalada é subir em alguma coisa.
para ilustrar essa responsabilidade que nos deve (e é) ser Fazendo a reconstrução da história institucional do instituto
imposta diante do mundo ao interpretar os fenômenos que penal em pauta, ver-se-á que o tipo penal qualificado é dos
nele (e por nós) passam. A metáfora do Hermeneuta2 na ilha anos 40. Construíam-se altos muros para proteger as casas. E
dos peixes sem cabeça. O Hermeneuta, ao chegar em uma ilha como o CP protege mais a propriedade do que a vida, a pena
habitada, constata que aqueles que la viviam, apesar da fome do furto dobra se alguém escalar o obstáculo. E o caso concre-
e escassez de alimentos, tinham o contraintuitivo costume to? Neste processo, a foto juntada aos autos mostrava que o
de cortar o rabo e a cabeça dos peixes, que, de tão pequenos, muro não tinha mais de um metro e sessenta, além de ter uma
sequer ocupavam por inteiras as frigideiras. Intrigado, caixinha com relógio marcador da conta d’água da companhia
revolveu o chão linguístico em que estava assentada a tradição que vende água, que serviu de apoio à “escalada”. Olhando o
e reconstruiu a história institucional daquele “instituto”, e, ao problema a partir da simples semântica e dos manuais – enfim,
entrar em contato com o membro mais velho da comunidade do senso comum teórico – estava caracterizada, subsuntiva-
mente, a qualificadora da escalada. Mas o fenômeno, recons-
2 STRECK, Lenio Luiz. Lições de crítica hermenêutica do direito. Porto truído, já não era o da “primeira vista”. Aquilo, obviamente,
Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

– atribuir sentido. O processo hermenêutico é sempre produtivo. de ilhéus, descobriu que, no início do povoamento da ilhota,
Não há grau zero de sentido. Ponto. Por isso, applicatio quer dizer os peixes eram grandes e abundantes, não cabendo nas
que desde sempre já estou operando com esse conjunto de frigideiras. Consequentemente, cortavam a cabeça e o rabo.
elementos e categorias que me levam à compreensão. Mesmo O Hermeneuta, assim, compreendeu o fenômeno que se
quando Mesmo quando raciocino com exemplos abstratos, encobria aos moradores mais jovens da ilha, os quais, ao serem
estou aplicando. questionados do porquê de agirem dessa maneira, respondiam:
Dessa forma, o texto jurídico (uma lei, a Constituição) “Não sei… Mas as coisas sempre foram assim por aqui”! Eis o
só pode ser entendido a partir de sua aplicação, isto é, diante senso comum. Eis a naturalização de uma prática. Desse pro-
de uma coisa, um fato, um caso concreto. cesso – que é como se o fenômeno fosse “descascado aos pou-
Portanto, nós não inventamos os sentidos. Temos cos” – exsurge “o sentido da coisa”, que já não será aquela que
responsabilidade diante da tradição e daquilo que chamamos o intérprete vislumbrou no início. Com o revolvimento do chão
de “mundo”. O modo como vamos lidar com o mundo é que linguístico, o fenômeno exsurgiu “como ele é”, por assim dizer.
fará a diferença. Como dizer corretamente o nome das coisas? Num exemplo jurídico: remeto a um caso de furto qua-
Ou: como não dar respostas equivocadas, arbitrárias? De que lificado por escalada (como se sabe, a pena do furto qualifica-
modo podemos nos livrar da tentação de dar “chutes”, palpites, do é o dobro da do furto simples). O acusado (apelante no pro-
opiniões pessoais? A hermenêutica responde, e, no Direito, a cesso) fora condenado a três anos porque (comprovadamente)
saída está na interpretação construtiva. pulara o muro para chegar até à res furtivae. Os manuais de di-
Antes, um passo atrás. Há muito utilizo uma metáfora reito penal dirão apenas que escalada é subir em alguma coisa.
para ilustrar essa responsabilidade que nos deve (e é) ser Fazendo a reconstrução da história institucional do instituto
imposta diante do mundo ao interpretar os fenômenos que penal em pauta, ver-se-á que o tipo penal qualificado é dos
nele (e por nós) passam. A metáfora do Hermeneuta2 na ilha anos 40. Construíam-se altos muros para proteger as casas. E
dos peixes sem cabeça. O Hermeneuta, ao chegar em uma ilha como o CP protege mais a propriedade do que a vida, a pena
habitada, constata que aqueles que la viviam, apesar da fome do furto dobra se alguém escalar o obstáculo. E o caso concre-
e escassez de alimentos, tinham o contraintuitivo costume to? Neste processo, a foto juntada aos autos mostrava que o
de cortar o rabo e a cabeça dos peixes, que, de tão pequenos, muro não tinha mais de um metro e sessenta, além de ter uma
sequer ocupavam por inteiras as frigideiras. Intrigado, caixinha com relógio marcador da conta d’água da companhia
revolveu o chão linguístico em que estava assentada a tradição que vende água, que serviu de apoio à “escalada”. Olhando o
e reconstruiu a história institucional daquele “instituto”, e, ao problema a partir da simples semântica e dos manuais – enfim,
entrar em contato com o membro mais velho da comunidade do senso comum teórico – estava caracterizada, subsuntiva-
mente, a qualificadora da escalada. Mas o fenômeno, recons-
2 STRECK, Lenio Luiz. Lições de crítica hermenêutica do direito. Porto truído, já não era o da “primeira vista”. Aquilo, obviamente,
Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

não podia ser enquadrado como “escalada”. esses são pequenos. Mesmo que as frigideiras sejam maiores
O trabalho, portanto, do intérprete comprometido com o que os peixes, os ilhéus continuam a cortar a cabeça e o rabo.
ato de interpretar, dentro do contexto da metáfora apresentada, Sempre foi assim... E assim continuam”. Essa estória se repete
é detectar o DNA do problema decorrente da ingenuidade dos no nosso cotidiano. E na interpretação do Direito.
ilhéus que desperdiçam proteína, cortando a cabeça e o rabo Qual é o sentido dos fenômenos? Esse é o trabalho do
dos peixes. Nessa linha, tem-se como responsabilidade do intérprete. Pode-se atribuí-lo simplesmente dando palpites?
Hermeneuta livrar-se da tentação de “chutar uma resposta”. O Pode-se “chutar” uma das alternativas? Para a infelicidade de
mundo não é um quiz show. A realidade também não. muitos, a resposta é não. O jurista, ao se deixar levar por uma
Se o Hermeneuta não buscar a melhor resposta, ficará doutrina rasa e por uma “jurisprudência” prêt-à-porter, prêt-à-
jogando pérolas aos porcos. Sequer adianta levar um(a) parler e prêt-à-penser, comporta-se como alguém que mora na
nutricionista para explicar aos ilhéus que é errado o que eles ilha. Ignora a própria ignorância.
fazem, principalmente levando em conta a escassez de peixes. Direito é um fenômeno complexo. Não há respostas
Não adiantará explicar o fenômeno a partir dos nutrientes antes das perguntas. Aqui, introduzo um conceito importante:
desperdiçados, porque não há racionalidade no ato dos ilhéus intersubjetividade. A grande descoberta da intersubjetividade
(raison, comparaison). (Heidegger, Gadamer, Wittgenstein e, no Brasil, principalmente
Só a partir do revolvimento do chão linguístico em que por Ernildo Stein) é a seguinte: há sempre um a priori que
está assentada a tradição (inautêntica, equivocada) dos ilhéus compartilhamos mesmo sem nos darmos conta. Isso só é
é que o fenômeno poderá ser compreendido. E, uma vez possível porque vivemos em tempos de relação sujeito-sujeito.
compreendido o fenômeno, o equívoco poderá ser desfeito. Nossa linguagem é pública. Muito mais ainda a
Não é por menos que Coleridge dirá que a linguagem do poeta linguagem do Direito. Não há espaço para uma linguagem
permite que reconheçamos aquilo que não sabíamos conhecer. privada. Hermenêutica, no modo como a trabalhamos, é
O Hermeneuta terá que buscar a resposta, investigando antisolipsista. O solipsista, cuja tradução é Selbstsüchtiger
a raiz do problema. Ele terá que fazer isso de um modo que (o viciado em si mesmo, que também quer dizer egoísmo,
o próprio fenômeno fique descascado e que ele se “desvele”. em-si-mesmamento), interpreta o mundo a partir de si.
No caso da metáfora foi necessário ir em busca da pessoa Os limites dele (do juiz solipsista, para ficar na área da
mais velha da ilha. E ver que a “velha” – metaforicamente interpretação do Direito) são os limites da linguagem dele
ela representa o tempo e a história – conta que “no início, mesmo (do juiz). Por isso, o sentido do Direito será o que
haviam peixes em abundância e eles eram enormes. Não ele diz que é. E isso fere preceitos fundamentais do que
cabiam nas frigideiras. Por isso, cortavam a cabeça e rabo compreendemos como “Democracia”. Wittgenstein derrubou
dos peixes, descartando os restos. Hoje há falta de peixes e o solipsismo do sujeito-que-assujeita com o argumento da
linguagem privada: só pode dizer que pensa, e que por isso
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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

não podia ser enquadrado como “escalada”. esses são pequenos. Mesmo que as frigideiras sejam maiores
O trabalho, portanto, do intérprete comprometido com o que os peixes, os ilhéus continuam a cortar a cabeça e o rabo.
ato de interpretar, dentro do contexto da metáfora apresentada, Sempre foi assim... E assim continuam”. Essa estória se repete
é detectar o DNA do problema decorrente da ingenuidade dos no nosso cotidiano. E na interpretação do Direito.
ilhéus que desperdiçam proteína, cortando a cabeça e o rabo Qual é o sentido dos fenômenos? Esse é o trabalho do
dos peixes. Nessa linha, tem-se como responsabilidade do intérprete. Pode-se atribuí-lo simplesmente dando palpites?
Hermeneuta livrar-se da tentação de “chutar uma resposta”. O Pode-se “chutar” uma das alternativas? Para a infelicidade de
mundo não é um quiz show. A realidade também não. muitos, a resposta é não. O jurista, ao se deixar levar por uma
Se o Hermeneuta não buscar a melhor resposta, ficará doutrina rasa e por uma “jurisprudência” prêt-à-porter, prêt-à-
jogando pérolas aos porcos. Sequer adianta levar um(a) parler e prêt-à-penser, comporta-se como alguém que mora na
nutricionista para explicar aos ilhéus que é errado o que eles ilha. Ignora a própria ignorância.
fazem, principalmente levando em conta a escassez de peixes. Direito é um fenômeno complexo. Não há respostas
Não adiantará explicar o fenômeno a partir dos nutrientes antes das perguntas. Aqui, introduzo um conceito importante:
desperdiçados, porque não há racionalidade no ato dos ilhéus intersubjetividade. A grande descoberta da intersubjetividade
(raison, comparaison). (Heidegger, Gadamer, Wittgenstein e, no Brasil, principalmente
Só a partir do revolvimento do chão linguístico em que por Ernildo Stein) é a seguinte: há sempre um a priori que
está assentada a tradição (inautêntica, equivocada) dos ilhéus compartilhamos mesmo sem nos darmos conta. Isso só é
é que o fenômeno poderá ser compreendido. E, uma vez possível porque vivemos em tempos de relação sujeito-sujeito.
compreendido o fenômeno, o equívoco poderá ser desfeito. Nossa linguagem é pública. Muito mais ainda a
Não é por menos que Coleridge dirá que a linguagem do poeta linguagem do Direito. Não há espaço para uma linguagem
permite que reconheçamos aquilo que não sabíamos conhecer. privada. Hermenêutica, no modo como a trabalhamos, é
O Hermeneuta terá que buscar a resposta, investigando antisolipsista. O solipsista, cuja tradução é Selbstsüchtiger
a raiz do problema. Ele terá que fazer isso de um modo que (o viciado em si mesmo, que também quer dizer egoísmo,
o próprio fenômeno fique descascado e que ele se “desvele”. em-si-mesmamento), interpreta o mundo a partir de si.
No caso da metáfora foi necessário ir em busca da pessoa Os limites dele (do juiz solipsista, para ficar na área da
mais velha da ilha. E ver que a “velha” – metaforicamente interpretação do Direito) são os limites da linguagem dele
ela representa o tempo e a história – conta que “no início, mesmo (do juiz). Por isso, o sentido do Direito será o que
haviam peixes em abundância e eles eram enormes. Não ele diz que é. E isso fere preceitos fundamentais do que
cabiam nas frigideiras. Por isso, cortavam a cabeça e rabo compreendemos como “Democracia”. Wittgenstein derrubou
dos peixes, descartando os restos. Hoje há falta de peixes e o solipsismo do sujeito-que-assujeita com o argumento da
linguagem privada: só pode dizer que pensa, e que por isso
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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

existe, o sujeito que já está inserido em uma comunidade cuja Não esqueçamos que, afinal, o sujeito da modernidade
linguagem permite que esse sujeito articule a cogitatio em... sempre se apresentou “consciente-de-si-e-de-sua-certeza-
linguagem. No público-privado, o público vem antes. pensante”. E ele continua por aí. Forte. Não é um mero
O problema, em síntese, nem é o da aparente opção fantasma. Ele é a barbárie interior, que os constrangimentos
(ou permanência) pelo paradigma da filosofia da consciên- exteriores deveriam controlar e não o fazem, mormente no
cia (um exemplo para compreender o que é o paradigma da campo jurídico. Ocorre que, em uma dogmática jurídica como
filosofia da consciência é a “tese” de que o juiz decide con- a brasileira, com reforço de diversas teorias jurídicas, esse
forme sua consciência ou que ele possui livre convencimen- sujeito, em vez de ser constrangido/controlado, é incentivado
to). A questão a ser debatida é a vulgata deste paradigma a agir. E contra ele, qual é a nossa proteção?
feita pela dogmática jurídica. A literatura, como sempre, oferece um auxílio. Machado
Nesse momento, a vulgata da filosofia da consciência de Assis, no conto “Ideias de Canário”, expõe de forma magistral
aparece como um sintoma da discricionariedade judicial, a postura filósofica do ser-solipsista diante dos sentidos. O
como algo que está recrudescido no imaginário gnosiológico Canário, por sua vez, é o exemplo anti-hermenêutico; ele é o
dos juristas, que é a percepção de que a “liberdade de decisão próprio “solipsista”. Ler este conto é um excelente modo de
do juiz” está ligada a uma ideia de irresponsabilidade compreender direito–a hermenêutica, a partir do seu oposto
institucional, sempre baseada na subjetividade do magistrado. exposto por Assis, quando da demonstração do significado
Algo como dizer que o-juiz-constrói-sua-decisão-a-partir-de- da linguagem e dos perigos do solipsismo. Lendo esse conto
uma-simbiose-de-razões-e-sentimentos que são apenas seus machadiano, compreendemos os perigos da linguagem
(vale dizer, um juiz solipsista — um Selbstsüchtiger). privada e o acerto de Wittgenstein, Heidegger e Gadamer,
para falar apenas desses, que forjaram o giro ontológico-
Ora, dizer que o juiz decide conforme sua consciência linguístico. Vejam: quando Machado escreveu o conto, não
retira o caráter institucional e político que reveste as decisões se sabia ainda do valor da linguagem como condição de
do Poder Judiciário. Desse modo, o atrelamento a esse tipo de possibilidade. O linguistic turn estava ainda muito distante. A
concepção acaba por permitir que, por exemplo, juízes ainda genialidade de Machado fez um adiantamento de sentido na
acreditem na possibilidade de tomarem para si a condução história da filosofia da linguagem e na hermenêutica.
da prova no processo, como se a produção da prova pudesse
ser gerida a partir de sua consciência. Portanto, no Direito, Observemos a noção de imaginário no conto:
quando alguém diz que o juiz decide por livre convencimen- Um homem, Sr. Macedo, vê um canário em uma gaiola,
to ou que só obedece a sua consciência ou coisas do gênero, é pendurada em uma loja de quinquilharias. Ao indagar em
possível afirmar que ali ainda está presente o sujeito autori- voz alta quem teria aprisionado a pobre ave, esta responde
tário da modernidade. que ele estava enganado. Ninguém o prendera. O Sr. Macedo
perguntou-lhe se não tinha saudade do espaço azul e infinito,
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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

existe, o sujeito que já está inserido em uma comunidade cuja Não esqueçamos que, afinal, o sujeito da modernidade
linguagem permite que esse sujeito articule a cogitatio em... sempre se apresentou “consciente-de-si-e-de-sua-certeza-
linguagem. No público-privado, o público vem antes. pensante”. E ele continua por aí. Forte. Não é um mero
O problema, em síntese, nem é o da aparente opção fantasma. Ele é a barbárie interior, que os constrangimentos
(ou permanência) pelo paradigma da filosofia da consciên- exteriores deveriam controlar e não o fazem, mormente no
cia (um exemplo para compreender o que é o paradigma da campo jurídico. Ocorre que, em uma dogmática jurídica como
filosofia da consciência é a “tese” de que o juiz decide con- a brasileira, com reforço de diversas teorias jurídicas, esse
forme sua consciência ou que ele possui livre convencimen- sujeito, em vez de ser constrangido/controlado, é incentivado
to). A questão a ser debatida é a vulgata deste paradigma a agir. E contra ele, qual é a nossa proteção?
feita pela dogmática jurídica. A literatura, como sempre, oferece um auxílio. Machado
Nesse momento, a vulgata da filosofia da consciência de Assis, no conto “Ideias de Canário”, expõe de forma magistral
aparece como um sintoma da discricionariedade judicial, a postura filósofica do ser-solipsista diante dos sentidos. O
como algo que está recrudescido no imaginário gnosiológico Canário, por sua vez, é o exemplo anti-hermenêutico; ele é o
dos juristas, que é a percepção de que a “liberdade de decisão próprio “solipsista”. Ler este conto é um excelente modo de
do juiz” está ligada a uma ideia de irresponsabilidade compreender direito–a hermenêutica, a partir do seu oposto
institucional, sempre baseada na subjetividade do magistrado. exposto por Assis, quando da demonstração do significado
Algo como dizer que o-juiz-constrói-sua-decisão-a-partir-de- da linguagem e dos perigos do solipsismo. Lendo esse conto
uma-simbiose-de-razões-e-sentimentos que são apenas seus machadiano, compreendemos os perigos da linguagem
(vale dizer, um juiz solipsista — um Selbstsüchtiger). privada e o acerto de Wittgenstein, Heidegger e Gadamer,
para falar apenas desses, que forjaram o giro ontológico-
Ora, dizer que o juiz decide conforme sua consciência linguístico. Vejam: quando Machado escreveu o conto, não
retira o caráter institucional e político que reveste as decisões se sabia ainda do valor da linguagem como condição de
do Poder Judiciário. Desse modo, o atrelamento a esse tipo de possibilidade. O linguistic turn estava ainda muito distante. A
concepção acaba por permitir que, por exemplo, juízes ainda genialidade de Machado fez um adiantamento de sentido na
acreditem na possibilidade de tomarem para si a condução história da filosofia da linguagem e na hermenêutica.
da prova no processo, como se a produção da prova pudesse
ser gerida a partir de sua consciência. Portanto, no Direito, Observemos a noção de imaginário no conto:
quando alguém diz que o juiz decide por livre convencimen- Um homem, Sr. Macedo, vê um canário em uma gaiola,
to ou que só obedece a sua consciência ou coisas do gênero, é pendurada em uma loja de quinquilharias. Ao indagar em
possível afirmar que ali ainda está presente o sujeito autori- voz alta quem teria aprisionado a pobre ave, esta responde
tário da modernidade. que ele estava enganado. Ninguém o prendera. O Sr. Macedo
perguntou-lhe se não tinha saudade do espaço azul e infinito,
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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

ao que o canário perguntou:–“que coisa é essa de azul e infinito”? O conto dá uma tese. Todos os alunos (e professores)
Então o homem afinou a pergunta:–“que pensas do mundo, oh deveriam ler esse conto machadiano. Com isso aprenderiam
canário”? E este respondeu, com ar professoral: “o mundo é a diferença entre linguagem privada e linguagem pública.
uma loja de quinquilharias, com uma pequena gaiola de taquara, Vejam a linguagem privada do nosso preclaro “Dr. Canário”.
quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que Eis aí o solipsismo. O mundo está limitado pela linguagem
habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão”. E acrescentou: que o Canário possui. O mundo para o canário é o que ele
“Aliás, o homem da loja é, na verdade, o meu criado, servindo-me vê. O tamanho do mundo é o tamanho da linguagem que ele
comida e água todos os dias”. Encantado com a cena, o Sr. Macedo adquiriu até o momento. A realidade existe a partir de sua
comprou o canário e uma gaiola nova. Levou-o para a sua casa percepção. Para o canário, o mundo era exclusivamente a
para estudar o canário, anotando a experiência. Três semanas sua gaiola e o brechó. O resto era pura ilusão e mentira. Na
depois da entrada do canário na casa nova, pediu-lhe que lhe metáfora de Machado de Assis, o canário representa o sujeito
repetisse a definição do mundo. solipsista na medida em que o mundo se torna aquilo que ele
“O mundo”, respondeu ele, “é um jardim assaz largo privadamente diz que é.
com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, Pergunto: quantos juristas se comportam como o
ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do canário?
mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o Antes de Wittgenstein, Machado já mostrava a
resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.” impossibilidade e os limites da linguagem privada. Como
Dias depois, o canário fugiu. Triste, o homem foi passear diria Carlos Drummond de Andrade, “mundo, mundo, vasto
na casa de um amigo. Passeando pelo vasto jardim, eis que deu mundo... Se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima, não
de cara com o canário. seria uma solução”.
“Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu”? Ou seja, nem as coisas tem uma essência e nem as
“Eu desapareci?”, pergunta surpreso o Sr. Macedo. coisas são como eu quero; as coisas existem porque eu tenho
linguagem. E essa linguagem não é minha; não é privada; ela é
De todo modo, aproveitou para perguntar ao canário a pública; é adquirida. A linguagem vai surgindo na medida em
definição de mundo. “O mundo” concluiu solenemente “é um que ela nos faz falta. Por que (não) o nada? Vamos apontando
espaço infinito e azul, com o sol por cima” o mundo assim como a criança aponta as coisas que ela ainda
Indignado, o Sr. Macedo retorquiu-lhe: “Sim, o mundo não sabe dizer. Outra obra da literatura nacional, capaz de
era tudo, inclusive a gaiola e a loja de quinquilharias...”. proporcionar-nos uma melhor compreensão do fenômeno
Resposta do canário: linguístico, é Vidas Secas do Graciliano Ramos: os filhos
de Fabiano chegam à cidade. Lá eles veem tantas coisas e
“Que loja? Que gaiola? Estás louco?”
perguntam: quem fez isso? Se foi gente, quem dá nome a tudo
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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

ao que o canário perguntou:–“que coisa é essa de azul e infinito”? O conto dá uma tese. Todos os alunos (e professores)
Então o homem afinou a pergunta:–“que pensas do mundo, oh deveriam ler esse conto machadiano. Com isso aprenderiam
canário”? E este respondeu, com ar professoral: “o mundo é a diferença entre linguagem privada e linguagem pública.
uma loja de quinquilharias, com uma pequena gaiola de taquara, Vejam a linguagem privada do nosso preclaro “Dr. Canário”.
quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que Eis aí o solipsismo. O mundo está limitado pela linguagem
habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão”. E acrescentou: que o Canário possui. O mundo para o canário é o que ele
“Aliás, o homem da loja é, na verdade, o meu criado, servindo-me vê. O tamanho do mundo é o tamanho da linguagem que ele
comida e água todos os dias”. Encantado com a cena, o Sr. Macedo adquiriu até o momento. A realidade existe a partir de sua
comprou o canário e uma gaiola nova. Levou-o para a sua casa percepção. Para o canário, o mundo era exclusivamente a
para estudar o canário, anotando a experiência. Três semanas sua gaiola e o brechó. O resto era pura ilusão e mentira. Na
depois da entrada do canário na casa nova, pediu-lhe que lhe metáfora de Machado de Assis, o canário representa o sujeito
repetisse a definição do mundo. solipsista na medida em que o mundo se torna aquilo que ele
“O mundo”, respondeu ele, “é um jardim assaz largo privadamente diz que é.
com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, Pergunto: quantos juristas se comportam como o
ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do canário?
mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o Antes de Wittgenstein, Machado já mostrava a
resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.” impossibilidade e os limites da linguagem privada. Como
Dias depois, o canário fugiu. Triste, o homem foi passear diria Carlos Drummond de Andrade, “mundo, mundo, vasto
na casa de um amigo. Passeando pelo vasto jardim, eis que deu mundo... Se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima, não
de cara com o canário. seria uma solução”.
“Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu”? Ou seja, nem as coisas tem uma essência e nem as
“Eu desapareci?”, pergunta surpreso o Sr. Macedo. coisas são como eu quero; as coisas existem porque eu tenho
linguagem. E essa linguagem não é minha; não é privada; ela é
De todo modo, aproveitou para perguntar ao canário a pública; é adquirida. A linguagem vai surgindo na medida em
definição de mundo. “O mundo” concluiu solenemente “é um que ela nos faz falta. Por que (não) o nada? Vamos apontando
espaço infinito e azul, com o sol por cima” o mundo assim como a criança aponta as coisas que ela ainda
Indignado, o Sr. Macedo retorquiu-lhe: “Sim, o mundo não sabe dizer. Outra obra da literatura nacional, capaz de
era tudo, inclusive a gaiola e a loja de quinquilharias...”. proporcionar-nos uma melhor compreensão do fenômeno
Resposta do canário: linguístico, é Vidas Secas do Graciliano Ramos: os filhos
de Fabiano chegam à cidade. Lá eles veem tantas coisas e
“Que loja? Que gaiola? Estás louco?”
perguntam: quem fez isso? Se foi gente, quem dá nome a tudo
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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

isso? Como as coisas têm um nome? troca o significado dos significantes, já no seu cotidiano
Transportemos tudo isso para o Direito. Pensemos na não pode agir do mesmo modo. Interessante isso, não? Por
hermenêutica. O juiz não é dono dos sentidos. E nem os cria. consequência, o solipsismo judicial (jurídico-interpretativo)
Ele não é nem o escravo dos sentidos e nem o seu dono. Um só pode acontecer em uma dada institucionalidade.
modo mais simples ainda para compreender isso é a peça Procurando ser mais claro ainda: Gadamer diz que, se queres
Medida por Medida de Shakespeare3. O juiz não pode equi- compreender um texto – e texto são eventos, fenômenos –
parar-se ao Ângelo I, que condena Cláudio à morte porque deves deixar que o texto te diga algo. Isto quer dizer que
considera-se “escravo” de uma antiga lei que diz “aquele que não devemos ignorar esse grau mínimo de objetividade. É o
fornicar antes do casamento será condenado à morte”, e nem que chamo de “o mínimo (que) é”.
o Ângelo II, que, em troca da liberdade de Cláudio, propõe Nesse sentido, a realidade constrange. A estrutura, a
que a irmã do acusado ceda aos seus desejos sexuais. Ou seja, intersubjetividade, a tradição, enfim, essa linguagem públi-
em um primeiro momento, o “juiz Ângelo” é um “puro exe- ca constrange a todos nós cotidianamente para evitar que
geta” (escravo da lei), para, no dia seguinte, se transformar saiamos por aí fazendo coisas solipsistas. Não se pode tro-
no “dono da lei”. car o nome das coisas. Experimente fazer isso e você sentirá
O que isto quer dizer? Simples: do extremo objetivismo na pele as consequências. Não se pode “assujeitar” as coisas.
– a partir do qual a realidade e os sentidos são “entificados” e O solipsismo judicial se coloca na contramão desses cons-
estratificados–Ângelo vai ao completo subjetivismo, no qual trangimentos cotidianos, do mundo vivido. No Direito, em
os sentidos das coisas estão na sua mente, na sua consciência. face do lugar da fala e da sua autoridade, por vezes o juiz
Qual é o pior dos Ângelos? O “primeiro” ou o “segundo”? pensa que pode – e, ao fim e ao cabo, assim o faz – assujeitar
Minha resposta: Os dois são péssimos. Tenho usado muito os sentidos dos textos e dos fatos. Por vezes, nem a Cons-
essa peça de 1604 nas aulas. Já há várias dissertações por tituição constrange o aplicador (juiz ou tribunal). Por isso
mim orientadas que tratam de Medida por Medida. Todas elas o lema hermenêutico é: deixemos que os textos nos digam
buscam desvendar esse mistério entre o “mito do dado” e o algo. Deixemos que a Constituição dê o seu recado. Ela é
“voluntarismo”, entre concepções objetivistas e subjetivistas linguagem pública. Que deveria constranger epistemica-
e, fundamentalmente, buscando construir respostas para mente o seu destinatário, o juiz.
esse dilema entre Ângelo I e II. Sim, a Teoria do Direito tem Todo ato de recepção, em linguagem, em arte e em
respostas para isso. música é um ato de interpretação. Ler e aplicar é interpretar.
De um modo mais simples, pode-se dizer que, Quando lemos – prosa, poesia, texto de lei –, procuramos com-
se nos autos do processo (e no fórum ou tribunal) o juiz preender aquilo que temos diante de nós — a prosa, a poesia, o
texto de lei — dando-lhe um contexto que seja a nós inteligível,
3 Venho tratando sobre temas e obras como esta em um programa televisonado atribuindo-lhe um lugar naquele mundo que já nos era mun-
pela TV Unisinos e TV Justiça semanalmente denominado Direito e Literatura.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

isso? Como as coisas têm um nome? troca o significado dos significantes, já no seu cotidiano
Transportemos tudo isso para o Direito. Pensemos na não pode agir do mesmo modo. Interessante isso, não? Por
hermenêutica. O juiz não é dono dos sentidos. E nem os cria. consequência, o solipsismo judicial (jurídico-interpretativo)
Ele não é nem o escravo dos sentidos e nem o seu dono. Um só pode acontecer em uma dada institucionalidade.
modo mais simples ainda para compreender isso é a peça Procurando ser mais claro ainda: Gadamer diz que, se queres
Medida por Medida de Shakespeare3. O juiz não pode equi- compreender um texto – e texto são eventos, fenômenos –
parar-se ao Ângelo I, que condena Cláudio à morte porque deves deixar que o texto te diga algo. Isto quer dizer que
considera-se “escravo” de uma antiga lei que diz “aquele que não devemos ignorar esse grau mínimo de objetividade. É o
fornicar antes do casamento será condenado à morte”, e nem que chamo de “o mínimo (que) é”.
o Ângelo II, que, em troca da liberdade de Cláudio, propõe Nesse sentido, a realidade constrange. A estrutura, a
que a irmã do acusado ceda aos seus desejos sexuais. Ou seja, intersubjetividade, a tradição, enfim, essa linguagem públi-
em um primeiro momento, o “juiz Ângelo” é um “puro exe- ca constrange a todos nós cotidianamente para evitar que
geta” (escravo da lei), para, no dia seguinte, se transformar saiamos por aí fazendo coisas solipsistas. Não se pode tro-
no “dono da lei”. car o nome das coisas. Experimente fazer isso e você sentirá
O que isto quer dizer? Simples: do extremo objetivismo na pele as consequências. Não se pode “assujeitar” as coisas.
– a partir do qual a realidade e os sentidos são “entificados” e O solipsismo judicial se coloca na contramão desses cons-
estratificados–Ângelo vai ao completo subjetivismo, no qual trangimentos cotidianos, do mundo vivido. No Direito, em
os sentidos das coisas estão na sua mente, na sua consciência. face do lugar da fala e da sua autoridade, por vezes o juiz
Qual é o pior dos Ângelos? O “primeiro” ou o “segundo”? pensa que pode – e, ao fim e ao cabo, assim o faz – assujeitar
Minha resposta: Os dois são péssimos. Tenho usado muito os sentidos dos textos e dos fatos. Por vezes, nem a Cons-
essa peça de 1604 nas aulas. Já há várias dissertações por tituição constrange o aplicador (juiz ou tribunal). Por isso
mim orientadas que tratam de Medida por Medida. Todas elas o lema hermenêutico é: deixemos que os textos nos digam
buscam desvendar esse mistério entre o “mito do dado” e o algo. Deixemos que a Constituição dê o seu recado. Ela é
“voluntarismo”, entre concepções objetivistas e subjetivistas linguagem pública. Que deveria constranger epistemica-
e, fundamentalmente, buscando construir respostas para mente o seu destinatário, o juiz.
esse dilema entre Ângelo I e II. Sim, a Teoria do Direito tem Todo ato de recepção, em linguagem, em arte e em
respostas para isso. música é um ato de interpretação. Ler e aplicar é interpretar.
De um modo mais simples, pode-se dizer que, Quando lemos – prosa, poesia, texto de lei –, procuramos com-
se nos autos do processo (e no fórum ou tribunal) o juiz preender aquilo que temos diante de nós — a prosa, a poesia, o
texto de lei — dando-lhe um contexto que seja a nós inteligível,
3 Venho tratando sobre temas e obras como esta em um programa televisonado atribuindo-lhe um lugar naquele mundo que já nos era mun-
pela TV Unisinos e TV Justiça semanalmente denominado Direito e Literatura.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA

do. George Steiner definia a interpretação como uma câma-


ra de ecos, ecos de pressupostos históricos, sociais e técnicos
que informam o reconhecimento do novo, relacionando-o com A hermenêutica e a argumentação jurídica
aquilo que já lemos ou ouvimos antes e as nossas expectativas
em relação a essa forma de expressão nova que temos diante
de nós. Vale para a arte, para a literatura, vale para o Direito.
A interpretação é a explicitação daquilo que compreen-
Estamos condenados a interpretar.
demos. É o compreendido exposto ao mundo; o intercâmbio
entre a palavra e o mundo. Se compreendo algo, tenho de co-
municar isso. Sem falsear. Por isso a hermenêutica não nega a
importância da argumentação. Sempre interpretamos. Sempre
argumentamos. Precisamos argumentar.
Entretanto, é errado pensar que basta argumentar. No
Direito, há uma coisa antes da argumentação: a compreensão.
Se compreendo mal, argumentarei de forma equivocada.
Qual é o ponto fraco das teorias da argumentação? É que
elas se preocupam em justificar o que o juiz decidiu de forma
discricionária. As teorias argumentativas não se importam se
o juiz decide de forma discricionária ou até mesmo, arbitrária,
desde que bem argumente.
Mesmo que as teorias argumentativas neguem, ainda
estão presas ao paradigma da subjetividade. Mesmo que
algumas teorias da argumentação digam que estão lidando
com racionalidade discursiva, isso não está comprovado.
E, pior, as teorias argumentativas não sobrevivem sem a
ponderação. No entanto, a ponderação depende de escolhas
discricionárias. O “ponderador” escolhe os princípios a
ponderar. Isso é antidemocrático. A ponderação faz parte da
crise da filosofia da consciência (subjetivismo). Quer se salvar
dos estertores do sujeito da modernidade.
Aqui é necessário chamar a atenção para algo

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA

do. George Steiner definia a interpretação como uma câma-


ra de ecos, ecos de pressupostos históricos, sociais e técnicos
que informam o reconhecimento do novo, relacionando-o com A hermenêutica e a argumentação jurídica
aquilo que já lemos ou ouvimos antes e as nossas expectativas
em relação a essa forma de expressão nova que temos diante
de nós. Vale para a arte, para a literatura, vale para o Direito.
A interpretação é a explicitação daquilo que compreen-
Estamos condenados a interpretar.
demos. É o compreendido exposto ao mundo; o intercâmbio
entre a palavra e o mundo. Se compreendo algo, tenho de co-
municar isso. Sem falsear. Por isso a hermenêutica não nega a
importância da argumentação. Sempre interpretamos. Sempre
argumentamos. Precisamos argumentar.
Entretanto, é errado pensar que basta argumentar. No
Direito, há uma coisa antes da argumentação: a compreensão.
Se compreendo mal, argumentarei de forma equivocada.
Qual é o ponto fraco das teorias da argumentação? É que
elas se preocupam em justificar o que o juiz decidiu de forma
discricionária. As teorias argumentativas não se importam se
o juiz decide de forma discricionária ou até mesmo, arbitrária,
desde que bem argumente.
Mesmo que as teorias argumentativas neguem, ainda
estão presas ao paradigma da subjetividade. Mesmo que
algumas teorias da argumentação digam que estão lidando
com racionalidade discursiva, isso não está comprovado.
E, pior, as teorias argumentativas não sobrevivem sem a
ponderação. No entanto, a ponderação depende de escolhas
discricionárias. O “ponderador” escolhe os princípios a
ponderar. Isso é antidemocrático. A ponderação faz parte da
crise da filosofia da consciência (subjetivismo). Quer se salvar
dos estertores do sujeito da modernidade.
Aqui é necessário chamar a atenção para algo

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

importante. Sempre há uma pré-compreensão sobre o que Perguntaria, por exemplo, para um positivista exclusi-
falamos e interpretamos. Mas essa pré-compreensão não vo ou normativista (sobre o conceito de positivismo, ver meu
equivale a opinião pessoal, a ideologia ou crença política. Este Dicionário de Hermenêutica), de que modo a teoria lida com
é um equívoco que cometem vários de meus críticos. Acham juízes que “não cumprem o direito”? Já que o direito não obri-
que a hermenêutica é relativista, isto é, que, a partir dela, o ga ao juiz (de novo, para compreender melhor esse ponto, é
intérprete se libera das amarras da lei. Isto é absolutamente necessário entender o conceito de positivismo jurídico), de
falso. Pré-compreensão (Vorverständnis) não é algo do tipo que modo posso estabelecer critérios para ele decidir? Diria
“cada um tem a sua opinião”. Se olho para um fuzil e reconheço que são as teorias positivistas que não se preocupam e não
o fuzil enquanto fuzil, só consigo fazê-lo porque antes já sabia possuem uma teoria da decisão. A Crítica Hermenêutica do
o que era uma arma. Só que não fui eu que disse isso; não foi Direito – que venho construindo há duas décadas - tem na
minha consciência. Só que tampouco eu reconheci o fuzil como decisão sua principal preocupação. Mais adiante, mostrarei.
arma em razão de uma essência; não existe um essencialismo De todo modo, em todas as vezes em que falo da CHD
que torna essa arma uma arma. Hermenêutica é isso: entre o - Crítica Hermenêutica do Direito - remeto o leitor às diver-
objetivismo e o subjetivismo. sas obras em que desenvolvo essa minha teoria. Desenvolvo
O que os críticos da hermenêutica não entendem é que a a CHD ao longo de Verdade e Consenso, Lições de Crítica do
hermenêutica atua em um nível de racionalidade de primeiro Direito e Dicionário de Hermenêutica (que já tem versão em
nível, que é estruturante; um transcendental não clássico, como língua castelhana). A CHD é uma construção teórica que re-
bem diz Ernildo Stein; já as teorias da argumentação atuam a sulta da imbricação da hermenêutica de Gadamer e Heidegger
partir de um vetor de racionalidade de segundo nível, ficando, (que podemos chamar de fenomenologia hermenêutica) com
portanto, no plano lógico, e não filosófico (é a contraposição a teoria interpretativa de Ronald Dworkin. Faço apropriações
entre o como apofântico, wie, e o como hermenêutico, als). desses autores e de suas teses. O ponto central é minha forte
Ou seja: existe um “como hermenêutico” e um “como oposição a qualquer relativismo interpretativo; crítico forte-
apofântico”. Mas essas são realidades interdependentes, isto é, não mente o pamprincipiologismo; faço uma forte oposição às teo-
excludentes. Eu nunca desprezei a argumentação. O problema é rias objetivistas e subjetivistas (o que quer dizer, de um modo
mais simples, que afasto tanto o literalismo na interpretação
que muitas teorias discursivas no/do Direito acreditam que a
quanto qualquer postura voluntarista) e defendo a tese de que
decisão judicial se resolverá num conjunto de regras que possam
decidir não é um ato de escolha (há um verbete sobre o concei-
dirigir o processo argumentativo. Ficam no plano da analítica.
to de VERDADE no Dicionário de Hermenêutica). Portanto,
Entendo que esta tendência esquece o que se esconde aposto em uma teoria da decisão, justamente aquilo que as te-
por detrás na tentativa de formalizar/racionalizar o discurso. orias positivistas sempre deixaram de lado. Consequentemen-
Penso que os argumentativistas ou os analíticos, neste aspecto, te, a CHD trabalha com a possibilidade de respostas corretas,
contentam-se com o menos.
22 23
COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

importante. Sempre há uma pré-compreensão sobre o que Perguntaria, por exemplo, para um positivista exclusi-
falamos e interpretamos. Mas essa pré-compreensão não vo ou normativista (sobre o conceito de positivismo, ver meu
equivale a opinião pessoal, a ideologia ou crença política. Este Dicionário de Hermenêutica), de que modo a teoria lida com
é um equívoco que cometem vários de meus críticos. Acham juízes que “não cumprem o direito”? Já que o direito não obri-
que a hermenêutica é relativista, isto é, que, a partir dela, o ga ao juiz (de novo, para compreender melhor esse ponto, é
intérprete se libera das amarras da lei. Isto é absolutamente necessário entender o conceito de positivismo jurídico), de
falso. Pré-compreensão (Vorverständnis) não é algo do tipo que modo posso estabelecer critérios para ele decidir? Diria
“cada um tem a sua opinião”. Se olho para um fuzil e reconheço que são as teorias positivistas que não se preocupam e não
o fuzil enquanto fuzil, só consigo fazê-lo porque antes já sabia possuem uma teoria da decisão. A Crítica Hermenêutica do
o que era uma arma. Só que não fui eu que disse isso; não foi Direito – que venho construindo há duas décadas - tem na
minha consciência. Só que tampouco eu reconheci o fuzil como decisão sua principal preocupação. Mais adiante, mostrarei.
arma em razão de uma essência; não existe um essencialismo De todo modo, em todas as vezes em que falo da CHD
que torna essa arma uma arma. Hermenêutica é isso: entre o - Crítica Hermenêutica do Direito - remeto o leitor às diver-
objetivismo e o subjetivismo. sas obras em que desenvolvo essa minha teoria. Desenvolvo
O que os críticos da hermenêutica não entendem é que a a CHD ao longo de Verdade e Consenso, Lições de Crítica do
hermenêutica atua em um nível de racionalidade de primeiro Direito e Dicionário de Hermenêutica (que já tem versão em
nível, que é estruturante; um transcendental não clássico, como língua castelhana). A CHD é uma construção teórica que re-
bem diz Ernildo Stein; já as teorias da argumentação atuam a sulta da imbricação da hermenêutica de Gadamer e Heidegger
partir de um vetor de racionalidade de segundo nível, ficando, (que podemos chamar de fenomenologia hermenêutica) com
portanto, no plano lógico, e não filosófico (é a contraposição a teoria interpretativa de Ronald Dworkin. Faço apropriações
entre o como apofântico, wie, e o como hermenêutico, als). desses autores e de suas teses. O ponto central é minha forte
Ou seja: existe um “como hermenêutico” e um “como oposição a qualquer relativismo interpretativo; crítico forte-
apofântico”. Mas essas são realidades interdependentes, isto é, não mente o pamprincipiologismo; faço uma forte oposição às teo-
excludentes. Eu nunca desprezei a argumentação. O problema é rias objetivistas e subjetivistas (o que quer dizer, de um modo
mais simples, que afasto tanto o literalismo na interpretação
que muitas teorias discursivas no/do Direito acreditam que a
quanto qualquer postura voluntarista) e defendo a tese de que
decisão judicial se resolverá num conjunto de regras que possam
decidir não é um ato de escolha (há um verbete sobre o concei-
dirigir o processo argumentativo. Ficam no plano da analítica.
to de VERDADE no Dicionário de Hermenêutica). Portanto,
Entendo que esta tendência esquece o que se esconde aposto em uma teoria da decisão, justamente aquilo que as te-
por detrás na tentativa de formalizar/racionalizar o discurso. orias positivistas sempre deixaram de lado. Consequentemen-
Penso que os argumentativistas ou os analíticos, neste aspecto, te, a CHD trabalha com a possibilidade de respostas corretas,
contentam-se com o menos.
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que denomino de RAC (Respostas Adequadas a Constituição).
Em todos os meus livros e artigos, procuro resgatar o papel da
Doutrina, que deve voltar a doutrinar. A CHD, nesse sentido, A hermenêutica e o alerta sobre os riscos do
é uma tese que se coloca frontalmente contra o realismo jurídi- pamprincipiologismo para a democracia
co. Há critérios para alcançar a RAC. A CHD também aposta
em Constrangimentos Epistemológicos (há um verbete com
esse título no Dicionário de Hermenêutica). A defesa de um
O pamprincipiologismo – expressão que cunhei
elevado grau de autonomia do Direito é um dos pontos cen-
há alguns anos – está ligado à fragilização da autonomia
trais da CHD, com o que afasto as possibilidades de que juízos
do Direito. Se princípios são normas – e, com exceção dos
morais possam corrigir o Direito, o que não quer dizer, por
positivistas, não vejo ninguém falando o contrário – então eles
óbvio, que defendo a separação entre Direito e moral. Afinal,
são deontológicos, isto é, são normativos.
a CHD é uma teoria não-positivista. Este talvez seja um ponto
central da CHD: o Direito está indissociavelmente entrelaçado Princípios valem. Logo, não é qualquer coisa que pode
com a moral, com a política e com a economia. Seu processo de ser “um princípio”. Se fosse possível qualquer coisa ser um
formação inexoravelmente envolve essa conjuminação, enfim, princípio, esvaziaríamos a função do legislador. Bastaria o
essa cooriginariedade. No entanto, em um segundo momento, juiz ou advogado inventar um princípio (como, de fato, fazem
o Direito não pode ser corrigido por juízos morais. A pergun- todos os dias). Espanta-me ver que um princípio inventado
ta que faço por meio da CHD é: se a moral corrige o Direito, tenha o condão de revogar uma regra jurídica.
quem corrigirá a moral? Eis a complexidade: qual é o conceito O que está por trás deste fenômeno denominado
de Direito? Um ponto para entender essa problemática do pa- pamprincipiologismo é a velha tese de que “princípios
pel do juiz é perceber o modo como a CHD se apropria desses são valores”. Ora, se são valores, não são normas. Se são
autores (Gadamer, Heidegger e Dworkin - mormente esses). normas, não podem ser valores. Valores são contingenciais.
Nesse sentido, basta ver a importância do que diz Dworkin: Estão ligados à moral. E a moral é contingente. Moral não
juiz julga elaborando argumentos de princípio e não por argu- corrige o Direito. Esse é um problema sério. Se princípios são
mento de política(s). Daí a importância de o leitor consultar a valores e os valores estão ligados à moral (ou moralização
lista de obras que indico no final deste livro. do Direito), então a moral corrige o Direito. Pergunto, então:
quem corrige a moral?4.
Parcela da comunidade jurídica respondeu à pergunta

4 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas


fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. São
Paulo, Editora Casa do Direito, 2017, p. 159 a 210

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que denomino de RAC (Respostas Adequadas a Constituição).
Em todos os meus livros e artigos, procuro resgatar o papel da
Doutrina, que deve voltar a doutrinar. A CHD, nesse sentido, A hermenêutica e o alerta sobre os riscos do
é uma tese que se coloca frontalmente contra o realismo jurídi- pamprincipiologismo para a democracia
co. Há critérios para alcançar a RAC. A CHD também aposta
em Constrangimentos Epistemológicos (há um verbete com
esse título no Dicionário de Hermenêutica). A defesa de um
O pamprincipiologismo – expressão que cunhei
elevado grau de autonomia do Direito é um dos pontos cen-
há alguns anos – está ligado à fragilização da autonomia
trais da CHD, com o que afasto as possibilidades de que juízos
do Direito. Se princípios são normas – e, com exceção dos
morais possam corrigir o Direito, o que não quer dizer, por
positivistas, não vejo ninguém falando o contrário – então eles
óbvio, que defendo a separação entre Direito e moral. Afinal,
são deontológicos, isto é, são normativos.
a CHD é uma teoria não-positivista. Este talvez seja um ponto
central da CHD: o Direito está indissociavelmente entrelaçado Princípios valem. Logo, não é qualquer coisa que pode
com a moral, com a política e com a economia. Seu processo de ser “um princípio”. Se fosse possível qualquer coisa ser um
formação inexoravelmente envolve essa conjuminação, enfim, princípio, esvaziaríamos a função do legislador. Bastaria o
essa cooriginariedade. No entanto, em um segundo momento, juiz ou advogado inventar um princípio (como, de fato, fazem
o Direito não pode ser corrigido por juízos morais. A pergun- todos os dias). Espanta-me ver que um princípio inventado
ta que faço por meio da CHD é: se a moral corrige o Direito, tenha o condão de revogar uma regra jurídica.
quem corrigirá a moral? Eis a complexidade: qual é o conceito O que está por trás deste fenômeno denominado
de Direito? Um ponto para entender essa problemática do pa- pamprincipiologismo é a velha tese de que “princípios
pel do juiz é perceber o modo como a CHD se apropria desses são valores”. Ora, se são valores, não são normas. Se são
autores (Gadamer, Heidegger e Dworkin - mormente esses). normas, não podem ser valores. Valores são contingenciais.
Nesse sentido, basta ver a importância do que diz Dworkin: Estão ligados à moral. E a moral é contingente. Moral não
juiz julga elaborando argumentos de princípio e não por argu- corrige o Direito. Esse é um problema sério. Se princípios são
mento de política(s). Daí a importância de o leitor consultar a valores e os valores estão ligados à moral (ou moralização
lista de obras que indico no final deste livro. do Direito), então a moral corrige o Direito. Pergunto, então:
quem corrige a moral?4.
Parcela da comunidade jurídica respondeu à pergunta

4 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas


fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. São
Paulo, Editora Casa do Direito, 2017, p. 159 a 210

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

que sempre perturbou o Direito “o que fazer com a moral?” sido trazida de volta. Com isso, seríamos pós-positivistas.
exatamente com essa resposta: “Princípios são valores e Eis aí o “neoconstitucionalismo”, que seria o “bem”. Todavia,
trazem a moral para dentro do Direito”. Tal circunstância é falso dizer isso. Outra coisa errada que os juristas fazem
fragilizou sobremodo o necessário grau de autonomia que o todos os dias e repetem nas salas de aula: “O juiz boca da lei
Direito necessita preservar em uma democracia. Deveria ser morreu”. Porém, no lugar desse juiz “morto”, colocam o “juiz
rejeitada pelos juristas uma tese ou postura que permitisse dos princípios”. E ele passará a construir princípios conforme
que um standard qualquer tenha o condão de balizar o Direito sua consciência. Estamos, verdade, diante do eterno retorno
aprovado democraticamente pelo parlamento. Pois não foi aos Ângelos de Shakespeare.
isso que aconteceu e o que vem ocorrendo. Quando a regra (lei) não é justa ou não lhe agrada
Lamentavelmente o Direito foi inundado por uma pessoalmente, o juiz “pós-positivista” passa a lançar mão de
produção de standards valorativos, álibis teóricos pelos quais qualquer coisa, inclusive inventando axiomas subjetivistas
se pode dizer qualquer coisa sobre a interpretação da lei. Um que levam o nome de “princípio”. Resultado: uma hecatombe.
princípio – sem qualquer densidade deontológica – tem a Passou-se a utilizar os velhos princípios gerais do direito, que
“força” de derrotar o Direito posto, sem que o intérprete lance são axiomas do século XIX. E começam a surgir princípios
mão da jurisdição constitucional. líquidos ou gasosos. Fofos. Querem uma coisa mais fofinha e
O Direito, a partir do segundo pós-guerra, alcançou dúctil que o tal “princípio da afetividade”? Nele cabe tudo. E
um elevado grau de autonomia5. O Direito havia fracassado. quem seria contra esse princípio? Com isso, o jurista, inserido
Exsurge, então, uma novidade: as Constituições passam no senso comum teórico, passou a ter o poder de “passar
a ser normas. Sim: um dever ser. Daí a força normativa por cima” de leis votadas e aprovadas democraticamente. E
das Constituições. E elas abarcam uma espécie de ideal de passaram a moralizar as leis e o Direito. A pessoa quer ter
vida boa, como diriam os gregos. Portanto, a democracia três pais? Sem problemas. Em nome de vários princípios
possibilita que a moral passe a ser cooriginária ao direito, (afetividade, etc), tudo se torna possível. Quer manter o réu
como bem explica Habermas. preso? Use o princípio da confiança do juiz da causa. Façam
um teste. Substituam esses princípios por qualquer palavra e
Resultado ou consequência: não podemos admitir que veja se faz diferença. Em vez de “confiança no juiz da causa”,
a moral venha a corrigir o Direito depois. Mas os juristas, ponham “canglingon” (que não quer dizer absolutamente
principalmente em países periféricos como o Brasil, passaram nada). Perceberão que nada se altera. Lição: princípios não
a fazer uma dicotomia simplista. O positivismo seria um podem ser inventados desse modo. Eles são padrões que
sistema de regras e, portanto, expulsa a moral. O positivismo devem ser consolidados na história institucional de uma
seria, então, o mal. Com as novas constituições, a moral teria comunidade.
5 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 6. ed. revista e ampliada. São O pamprincipiologismo, por outro lado, é um
Paulo: Saraiva, 2017.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

que sempre perturbou o Direito “o que fazer com a moral?” sido trazida de volta. Com isso, seríamos pós-positivistas.
exatamente com essa resposta: “Princípios são valores e Eis aí o “neoconstitucionalismo”, que seria o “bem”. Todavia,
trazem a moral para dentro do Direito”. Tal circunstância é falso dizer isso. Outra coisa errada que os juristas fazem
fragilizou sobremodo o necessário grau de autonomia que o todos os dias e repetem nas salas de aula: “O juiz boca da lei
Direito necessita preservar em uma democracia. Deveria ser morreu”. Porém, no lugar desse juiz “morto”, colocam o “juiz
rejeitada pelos juristas uma tese ou postura que permitisse dos princípios”. E ele passará a construir princípios conforme
que um standard qualquer tenha o condão de balizar o Direito sua consciência. Estamos, verdade, diante do eterno retorno
aprovado democraticamente pelo parlamento. Pois não foi aos Ângelos de Shakespeare.
isso que aconteceu e o que vem ocorrendo. Quando a regra (lei) não é justa ou não lhe agrada
Lamentavelmente o Direito foi inundado por uma pessoalmente, o juiz “pós-positivista” passa a lançar mão de
produção de standards valorativos, álibis teóricos pelos quais qualquer coisa, inclusive inventando axiomas subjetivistas
se pode dizer qualquer coisa sobre a interpretação da lei. Um que levam o nome de “princípio”. Resultado: uma hecatombe.
princípio – sem qualquer densidade deontológica – tem a Passou-se a utilizar os velhos princípios gerais do direito, que
“força” de derrotar o Direito posto, sem que o intérprete lance são axiomas do século XIX. E começam a surgir princípios
mão da jurisdição constitucional. líquidos ou gasosos. Fofos. Querem uma coisa mais fofinha e
O Direito, a partir do segundo pós-guerra, alcançou dúctil que o tal “princípio da afetividade”? Nele cabe tudo. E
um elevado grau de autonomia5. O Direito havia fracassado. quem seria contra esse princípio? Com isso, o jurista, inserido
Exsurge, então, uma novidade: as Constituições passam no senso comum teórico, passou a ter o poder de “passar
a ser normas. Sim: um dever ser. Daí a força normativa por cima” de leis votadas e aprovadas democraticamente. E
das Constituições. E elas abarcam uma espécie de ideal de passaram a moralizar as leis e o Direito. A pessoa quer ter
vida boa, como diriam os gregos. Portanto, a democracia três pais? Sem problemas. Em nome de vários princípios
possibilita que a moral passe a ser cooriginária ao direito, (afetividade, etc), tudo se torna possível. Quer manter o réu
como bem explica Habermas. preso? Use o princípio da confiança do juiz da causa. Façam
um teste. Substituam esses princípios por qualquer palavra e
Resultado ou consequência: não podemos admitir que veja se faz diferença. Em vez de “confiança no juiz da causa”,
a moral venha a corrigir o Direito depois. Mas os juristas, ponham “canglingon” (que não quer dizer absolutamente
principalmente em países periféricos como o Brasil, passaram nada). Perceberão que nada se altera. Lição: princípios não
a fazer uma dicotomia simplista. O positivismo seria um podem ser inventados desse modo. Eles são padrões que
sistema de regras e, portanto, expulsa a moral. O positivismo devem ser consolidados na história institucional de uma
seria, então, o mal. Com as novas constituições, a moral teria comunidade.
5 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 6. ed. revista e ampliada. São O pamprincipiologismo, por outro lado, é um
Paulo: Saraiva, 2017.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

subproduto das teorias axiologistas que redundaram nesse em repertórios de glosas de decisões tribunalícias ad hoc.
neoconstitucionalismo “do bem” de que falei, que acaba Resultado: uma algaravia. Uma confusão. Ganha quem tiver
por fragilizar as efetivas conquistas que formaram o caldo mais poder. E o Direito, que foi feito para controlar o poder,
de cultura que possibilitou a consagração da Constituição transforma-se em mero instrumento... do poder.
brasileira de 1988. Esse pamprincipiologismo faz com que Darcy Ribeiro disse, certa vez, que Deus é tão treteiro, faz
– a pretexto de se estar aplicando princípios constitucionais as coisas tão recônditas e sofisticadas, que ainda necessitamos
– haja uma proliferação incontrolada de enunciados para dessa classe de gente, os cientistas, para desvelar as obviedades
resolver determinados problemas concretos, muitas vezes do óbvio. Parafraseio, pois, o grande antropólogo: ainda
ao alvedrio da própria legalidade constitucional. Como bem precisamos de uma certa classe de juristas para dizer o óbvio,
acentua Otavio Luiz Rodrigues Júnior, no âmbito do direito para dizer até mesmo platitudes; platitudes como a de que, em
civil essa proliferação de princípios vem comprometendo uma democracia, argumentos consequencialistas (morais, etc.)
a sua força normativa. Essa problemática se estende aos não devem valer mais do que aquilo que justamente foi feito
demais ramos e às disciplinas jurídicas. Não mais se respeita para resolver os nossos desacordos: o Direito.
os estatutos epistemológicos de cada ramo do Direito.
Definitivamente: princípios são normas. Nesse sentido,
Argumentos consequencialistas (sem empiria, diga- remeto o leitor, uma vez mais, ao meu Dicionário de Hermenêu-
se) não podem derrubar leis. Seria como admitir que um tica. Normas atuam no código lícito-ilícito. O resto são argu-
pamprincípio como o da “afetividade” valha mais do que um mentações retórico-morais ou moralizantes.
dispositivo do Código Civil, para usar um dos flertes dos
juristas para com a primazia da moral sobre o Direito. Como Sem qualquer possibilidade taxonômica acerca da
se um argumento retórico ad hoc tirado do bolso valesse mais matéria, esses enunciados (com pretensão assertórica e
que o estatuto epistemológico, autêntico e tradicional, de um performativa), que nomino como pamprincípios (por exemplo,
mesmo ramo específico do Direito. afetividade, confiança no juiz da causa, razoabilidade,
realidade, etc) cumprem a função de metarregras. São
Esse é o ponto. Quando não convém, ignora-se a retóricos. Com eles, qualquer resposta pode ser correta.
força normativa da Constituição. Agora, quando interessa, Aliás, sempre haverá um enunciado desse jaez aplicável ao
“constitucionaliza-se” tudo. A boa dogmática jurídica oferece “caso concreto”, que acaba sendo “construído” a partir de
uma resposta que não satisfaz a “consciência” do intérprete? grau zero de significado. Sua multiplicação se deve à errônea
Simples. “- Constitucionalize! Pamprincipie! Fica bonito”. compreensão da tese de que os princípios proporcionariam
Tudo isso ocorre porque nos acostumamos a colocar uma abertura interpretativa, quando, em verdade, sua função
argumentos morais, políticos e econômicos acima da lei e da é de fechamento interpretativo.
Constituição. Professores em sala de aula são useiros e vezeiros
nisso. E os livros de Direito foram sendo transformados
28 29
COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

subproduto das teorias axiologistas que redundaram nesse em repertórios de glosas de decisões tribunalícias ad hoc.
neoconstitucionalismo “do bem” de que falei, que acaba Resultado: uma algaravia. Uma confusão. Ganha quem tiver
por fragilizar as efetivas conquistas que formaram o caldo mais poder. E o Direito, que foi feito para controlar o poder,
de cultura que possibilitou a consagração da Constituição transforma-se em mero instrumento... do poder.
brasileira de 1988. Esse pamprincipiologismo faz com que Darcy Ribeiro disse, certa vez, que Deus é tão treteiro, faz
– a pretexto de se estar aplicando princípios constitucionais as coisas tão recônditas e sofisticadas, que ainda necessitamos
– haja uma proliferação incontrolada de enunciados para dessa classe de gente, os cientistas, para desvelar as obviedades
resolver determinados problemas concretos, muitas vezes do óbvio. Parafraseio, pois, o grande antropólogo: ainda
ao alvedrio da própria legalidade constitucional. Como bem precisamos de uma certa classe de juristas para dizer o óbvio,
acentua Otavio Luiz Rodrigues Júnior, no âmbito do direito para dizer até mesmo platitudes; platitudes como a de que, em
civil essa proliferação de princípios vem comprometendo uma democracia, argumentos consequencialistas (morais, etc.)
a sua força normativa. Essa problemática se estende aos não devem valer mais do que aquilo que justamente foi feito
demais ramos e às disciplinas jurídicas. Não mais se respeita para resolver os nossos desacordos: o Direito.
os estatutos epistemológicos de cada ramo do Direito.
Definitivamente: princípios são normas. Nesse sentido,
Argumentos consequencialistas (sem empiria, diga- remeto o leitor, uma vez mais, ao meu Dicionário de Hermenêu-
se) não podem derrubar leis. Seria como admitir que um tica. Normas atuam no código lícito-ilícito. O resto são argu-
pamprincípio como o da “afetividade” valha mais do que um mentações retórico-morais ou moralizantes.
dispositivo do Código Civil, para usar um dos flertes dos
juristas para com a primazia da moral sobre o Direito. Como Sem qualquer possibilidade taxonômica acerca da
se um argumento retórico ad hoc tirado do bolso valesse mais matéria, esses enunciados (com pretensão assertórica e
que o estatuto epistemológico, autêntico e tradicional, de um performativa), que nomino como pamprincípios (por exemplo,
mesmo ramo específico do Direito. afetividade, confiança no juiz da causa, razoabilidade,
realidade, etc) cumprem a função de metarregras. São
Esse é o ponto. Quando não convém, ignora-se a retóricos. Com eles, qualquer resposta pode ser correta.
força normativa da Constituição. Agora, quando interessa, Aliás, sempre haverá um enunciado desse jaez aplicável ao
“constitucionaliza-se” tudo. A boa dogmática jurídica oferece “caso concreto”, que acaba sendo “construído” a partir de
uma resposta que não satisfaz a “consciência” do intérprete? grau zero de significado. Sua multiplicação se deve à errônea
Simples. “- Constitucionalize! Pamprincipie! Fica bonito”. compreensão da tese de que os princípios proporcionariam
Tudo isso ocorre porque nos acostumamos a colocar uma abertura interpretativa, quando, em verdade, sua função
argumentos morais, políticos e econômicos acima da lei e da é de fechamento interpretativo.
Constituição. Professores em sala de aula são useiros e vezeiros
nisso. E os livros de Direito foram sendo transformados
28 29
A importância da teoria dos princípios

Quem melhor desenvolveu esse tema foi Ronald


Dworkin. No debate com seu professor Herbert Hart,
Dworkin foi vencedor. Hart dizia que o Direito era um sistema
de regras. E, nos chamados casos difíceis, isso se resolvia a
partir da discricionariedade dos juízes. Claro: Hart havia
lido Wittgenstein, em especial o livro Investigações Filosóficas.
E apostou no terceiro nível da semiótica, a pragmática. Com
isso, Wittgenstein resolvia o problema, porque apostava na
relação “signo com seus usuários”. Como as palavras são vagas
e ambíguas, o seu sentido se dá no contexto. Hart, ao perceber
isso, resolveu o problema do positivismo de regras, assumindo
que, nos casos que as regras não resolviam (nível da sintaxe e
semântica), era o caso de apelar à pragmática. E delegou ao
intérprete (juiz) a resolução dos casos difíceis.
A consequência disso é o sacrifício da situação concreta.
Assim, se no interior do modelo positivista de aplicação do
direito parece impossível impedir que os juízes decidam
“como queiram” – porque, afinal, “obedecem” apenas à
sua subjetividade (esquema sujeito-objeto) –, o próprio
positivismo elabora conceitualizações prévias (espécie de
“discursos de fundamentação prévios” elaborados sem os
pressupostos exigidos pela teoria do discurso habermasiana)
acerca do sentido dos textos jurídicos, buscando, desse modo,
“combater os excessos” decorrentes do próprio modelo. Em
outras palavras, é o positivismo travando um combate consigo
mesmo (remeto, uma vez mais, o leitor ao meu Dicionário, nos

31
A importância da teoria dos princípios

Quem melhor desenvolveu esse tema foi Ronald


Dworkin. No debate com seu professor Herbert Hart,
Dworkin foi vencedor. Hart dizia que o Direito era um sistema
de regras. E, nos chamados casos difíceis, isso se resolvia a
partir da discricionariedade dos juízes. Claro: Hart havia
lido Wittgenstein, em especial o livro Investigações Filosóficas.
E apostou no terceiro nível da semiótica, a pragmática. Com
isso, Wittgenstein resolvia o problema, porque apostava na
relação “signo com seus usuários”. Como as palavras são vagas
e ambíguas, o seu sentido se dá no contexto. Hart, ao perceber
isso, resolveu o problema do positivismo de regras, assumindo
que, nos casos que as regras não resolviam (nível da sintaxe e
semântica), era o caso de apelar à pragmática. E delegou ao
intérprete (juiz) a resolução dos casos difíceis.
A consequência disso é o sacrifício da situação concreta.
Assim, se no interior do modelo positivista de aplicação do
direito parece impossível impedir que os juízes decidam
“como queiram” – porque, afinal, “obedecem” apenas à
sua subjetividade (esquema sujeito-objeto) –, o próprio
positivismo elabora conceitualizações prévias (espécie de
“discursos de fundamentação prévios” elaborados sem os
pressupostos exigidos pela teoria do discurso habermasiana)
acerca do sentido dos textos jurídicos, buscando, desse modo,
“combater os excessos” decorrentes do próprio modelo. Em
outras palavras, é o positivismo travando um combate consigo
mesmo (remeto, uma vez mais, o leitor ao meu Dicionário, nos

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

verbetes Positivismo e Pós-Positivismo). quando da institucionalização daquilo que lhe constitui.


Eis aí o paradoxo. Essa reviravolta do positivismo São, portanto, elementos argumentativo-interpretativos que
“contra si mesmo” é fruto de uma espécie de adaptação permitem o controle dos sentidos que as decisões judiciais
darwiniana, que funciona a partir da elaboração de conceitos articulam. Princípios são o critério a partir do qual uma decisão
jurídicos com objetivos universalizantes, utilizando, inclusive, será correta ou incorreta.
os princípios constitucionais. Para explicar a dicotomia regra-princípio, Dworkin
Ou seja, os princípios constitucionais, que deveriam apresenta o caso do neto que matou o avô (caso Riggs
superar o modelo discricionário do positivismo, passaram v. Palmer). Não havia lei ou precedente que houvesse
a ser anulados por conceitualizações, que acabaram por antecipada a hipótese de um herdeiro, após cumprir a pena
transformá-los em regras (a conceitualização de um princípio por ter assassinado o próprio avó, retornasse e reinvindicasse
petrifica seu sentido). a herança legada por esse. Em tese, o neto tinha razão:
poderia receber a herança. Aliás, um dos juízes votou assim.
É por isso que, para Dworkin, ali onde Hart terminava Mas os outros dois disseram que havia um princípio capaz
ou resolvia o seu problema, tudo estava apenas começando. de solucionar adequadamente o caso, dentro da própria
A solução do problema de Hart se transformava, para tradição do Direito na comunidade política norte-americana.
Dworkin, no problema da solução, a partir da demonstração de Ou seja, havia um padrão instituído, i.e., institucionalizado,
que o poder discricionário do juiz era antidemocrático. E se o na sociedade (e isso, sim, é um princípio) que rege o
juiz diz o Direito de forma discricionária, ele constrói direito. comportamento: o de que ninguém pode se locupletar de sua
Mas ele não tem legitimidade para isso. Dworkin, então, própria torpeza. Com isso, a regra continuou valendo, mas
constrói a tese da resposta correta, mostrando que sempre não foi aplicada neste caso.
existe uma resposta correta (que eu chamo de RAC – Resposta Valeu o princípio em vez da regra. Uma coisa,
Adequada à Constituição), mesmo nos casos difíceis. talvez, eu tenha de divergência com Dworkin: não está
Aliás, para Dworkin, dizer que há uma diferença entre claro nele se é possível aplicar uma regra sem princípio e
casos fáceis e casos difíceis já é um caso difícil. Ele mostra isso um princípio sem regra.
a partir da tese de que o Direito é um sistema não só de regras, Na Crítica Hermenêutica do Direito – matriz teórica
mas de regras e princípios. E os princípios servem para resolver por mim fundada - uma regra sempre será aplicada por
esses problemas dos casos difíceis. Princípios servirão, assim, intermédio de um ou vários princípios. A regra é a enunciação
para fechar a interpretação. do princípio. E um princípio não pode ser aplicado sem
Os princípios, dito de outro modo – claro que quando uma regra, caso contrário ele seria uma super-regra. Tenho
entendidos em sua forma autêntica –, instituem o mundo pequenas divergências apenas. Minhas concordâncias são
prático no Direito, oferecendo o fechamento interpretativo enormes, principalmente no que diz respeito a questão da
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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

verbetes Positivismo e Pós-Positivismo). quando da institucionalização daquilo que lhe constitui.


Eis aí o paradoxo. Essa reviravolta do positivismo São, portanto, elementos argumentativo-interpretativos que
“contra si mesmo” é fruto de uma espécie de adaptação permitem o controle dos sentidos que as decisões judiciais
darwiniana, que funciona a partir da elaboração de conceitos articulam. Princípios são o critério a partir do qual uma decisão
jurídicos com objetivos universalizantes, utilizando, inclusive, será correta ou incorreta.
os princípios constitucionais. Para explicar a dicotomia regra-princípio, Dworkin
Ou seja, os princípios constitucionais, que deveriam apresenta o caso do neto que matou o avô (caso Riggs
superar o modelo discricionário do positivismo, passaram v. Palmer). Não havia lei ou precedente que houvesse
a ser anulados por conceitualizações, que acabaram por antecipada a hipótese de um herdeiro, após cumprir a pena
transformá-los em regras (a conceitualização de um princípio por ter assassinado o próprio avó, retornasse e reinvindicasse
petrifica seu sentido). a herança legada por esse. Em tese, o neto tinha razão:
poderia receber a herança. Aliás, um dos juízes votou assim.
É por isso que, para Dworkin, ali onde Hart terminava Mas os outros dois disseram que havia um princípio capaz
ou resolvia o seu problema, tudo estava apenas começando. de solucionar adequadamente o caso, dentro da própria
A solução do problema de Hart se transformava, para tradição do Direito na comunidade política norte-americana.
Dworkin, no problema da solução, a partir da demonstração de Ou seja, havia um padrão instituído, i.e., institucionalizado,
que o poder discricionário do juiz era antidemocrático. E se o na sociedade (e isso, sim, é um princípio) que rege o
juiz diz o Direito de forma discricionária, ele constrói direito. comportamento: o de que ninguém pode se locupletar de sua
Mas ele não tem legitimidade para isso. Dworkin, então, própria torpeza. Com isso, a regra continuou valendo, mas
constrói a tese da resposta correta, mostrando que sempre não foi aplicada neste caso.
existe uma resposta correta (que eu chamo de RAC – Resposta Valeu o princípio em vez da regra. Uma coisa,
Adequada à Constituição), mesmo nos casos difíceis. talvez, eu tenha de divergência com Dworkin: não está
Aliás, para Dworkin, dizer que há uma diferença entre claro nele se é possível aplicar uma regra sem princípio e
casos fáceis e casos difíceis já é um caso difícil. Ele mostra isso um princípio sem regra.
a partir da tese de que o Direito é um sistema não só de regras, Na Crítica Hermenêutica do Direito – matriz teórica
mas de regras e princípios. E os princípios servem para resolver por mim fundada - uma regra sempre será aplicada por
esses problemas dos casos difíceis. Princípios servirão, assim, intermédio de um ou vários princípios. A regra é a enunciação
para fechar a interpretação. do princípio. E um princípio não pode ser aplicado sem
Os princípios, dito de outro modo – claro que quando uma regra, caso contrário ele seria uma super-regra. Tenho
entendidos em sua forma autêntica –, instituem o mundo pequenas divergências apenas. Minhas concordâncias são
prático no Direito, oferecendo o fechamento interpretativo enormes, principalmente no que diz respeito a questão da
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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA

resposta correta e a aversão ao discricionarismo.


Acompanhado de Dworkin, posso dizer que os
princípios autênticos conduzem a argumentação àquilo que dá As críticas à concepção de princípio de Robert
o sentido mais coerente ao todo de nossa prática institucional. Alexy
Dworkin foi quem melhor criticou o positivismo pós-exegético.
E o que é positivismo pós-exegético? É o positivismo de
vários matizes, como o de Hart, Kelsen, Alf Ross, Ferrajoli, Existem diferenças fundamentais entre a Crítica
Joseph Raz, Shapiro, Coleman, etc. Em comum, a (impossível) Hermenêutica do Direito e as diversas Teorias Discursivas,
separação conceitual entre Direito e moral, que insiste em mormente a Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy.
uma falaciosa dicotomia entre fato e valor; dicotomia que não Enquanto essas compreendem os princípios (apenas) como
se sustenta no paradigma hermenêutico, exatamente pelas mandados de otimização, circunstância que chama à colação
razões expostas naquilo que introduz esta obra. Interpretar é a subjetividade do intérprete, aquela parte da tese de que os
aplicar, aplicar é valorar, valorar é interpretar; dizer o que é é princípios introduzem o mundo prático no Direito, “fechando”
dizer o que deve ser. Não há fatos brutos; os fatos no Direito a interpretação, isto é, diminuindo – ao invés de aumentar – o
são fatos institucionais, eivados de normatividade. espaço da discricionariedade do intérprete.
Claro que, para tanto, a CHD salta à frente para
defender que, primeiro, os atos de interpretação e aplicação
são incindíveis (com o que se supera o método) e, segundo, não
há diferença estrutural entre casos que se resolvem mediante
a mera aplicação silogística de uma regra jurídica válida e
aqueles que, pela vagueza e ambiguidade de sua expressão,
como os direitos fundamentais, seriam resolvidos, ao final do
procedimento, pela lei da ponderação.
É nesse contexto que deve ser analisado o emprego
da regra da proporcionalidade pela teoria dos princípios de
Alexy, por exemplo. Nela, a proporcionalidade é a “chave”
para resolver casos de colisões entre princípios a partir
das três submáximas da adequação, da necessidade e da
proporcionalidade em sentido estrito.
Ou seja, na medida em que a proporcionalidade só “é

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA

resposta correta e a aversão ao discricionarismo.


Acompanhado de Dworkin, posso dizer que os
princípios autênticos conduzem a argumentação àquilo que dá As críticas à concepção de princípio de Robert
o sentido mais coerente ao todo de nossa prática institucional. Alexy
Dworkin foi quem melhor criticou o positivismo pós-exegético.
E o que é positivismo pós-exegético? É o positivismo de
vários matizes, como o de Hart, Kelsen, Alf Ross, Ferrajoli, Existem diferenças fundamentais entre a Crítica
Joseph Raz, Shapiro, Coleman, etc. Em comum, a (impossível) Hermenêutica do Direito e as diversas Teorias Discursivas,
separação conceitual entre Direito e moral, que insiste em mormente a Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy.
uma falaciosa dicotomia entre fato e valor; dicotomia que não Enquanto essas compreendem os princípios (apenas) como
se sustenta no paradigma hermenêutico, exatamente pelas mandados de otimização, circunstância que chama à colação
razões expostas naquilo que introduz esta obra. Interpretar é a subjetividade do intérprete, aquela parte da tese de que os
aplicar, aplicar é valorar, valorar é interpretar; dizer o que é é princípios introduzem o mundo prático no Direito, “fechando”
dizer o que deve ser. Não há fatos brutos; os fatos no Direito a interpretação, isto é, diminuindo – ao invés de aumentar – o
são fatos institucionais, eivados de normatividade. espaço da discricionariedade do intérprete.
Claro que, para tanto, a CHD salta à frente para
defender que, primeiro, os atos de interpretação e aplicação
são incindíveis (com o que se supera o método) e, segundo, não
há diferença estrutural entre casos que se resolvem mediante
a mera aplicação silogística de uma regra jurídica válida e
aqueles que, pela vagueza e ambiguidade de sua expressão,
como os direitos fundamentais, seriam resolvidos, ao final do
procedimento, pela lei da ponderação.
É nesse contexto que deve ser analisado o emprego
da regra da proporcionalidade pela teoria dos princípios de
Alexy, por exemplo. Nela, a proporcionalidade é a “chave”
para resolver casos de colisões entre princípios a partir
das três submáximas da adequação, da necessidade e da
proporcionalidade em sentido estrito.
Ou seja, na medida em que a proporcionalidade só “é

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

chamada à colação” quando necessário um juízo ponderativo relaciona bem com a democracia. E essa questão continua
para os casos difíceis – uma vez que para os “casos simples” na ordem do dia, mormente em países como o Brasil. Com
(aqueles solucionados mediante a aplicação de uma regra) efeito, as teorias que pretenderam resolver o problema
bastaria a dedução/subsunção – caberá ao intérprete a tarefa da (in)determinabilidade do Direito, das vaguezas e das
de “hierarquizar” e “decidir” qual o princípio aplicável no ambiguidades próprias do ordenamento jurídico, apostando
caso do conflito/colisão. na discricionariedade ou em discursos adjudicadores com
Ora, se, ao fim e ao cabo, cabe ao intérprete hierarquizar pretensão de correção do Direito, vão estar tão somente
(e escolher) o princípio aplicável, a pergunta inexorável é: qual reforçando aquilo que pretendemos criticar.
é a diferença entre o “intérprete ponderador” e o “intérprete Por isso, defendo, ao lado de Dworkin e Ferrajoli,
do positivismo”, que, discricionariamente, escolhe qual a que os princípios não abrem a interpretação, e, sim, fecham/
“melhor” interpretação? limitam. Os princípios (re)inserem a facticidade no Direito, e
É evidente que devemos reconhecer que a teoria dos espelham uma determinada tradição jurídica que permitirá
princípios conjugada com uma teoria da argumentação, um diálogo constante entre a decisão particular com todo o
como no caso da teoria de Alexy, que é a mais sofisticada e ordenamento. Deste modo, proporcionam que a atividade
complexa, responderá que há um conjunto de critérios que jurisdicional, por intermédio da fundamentação, que é
deverão sempre balizar a decisão. Mas, pergunto novamente: condição de possibilidade, torne público o sentido que será,
qual é a diferença disso na comparação com as fórmulas assim, intersubjetivamente controlado, e tenderá a manter
dos velhos métodos de interpretação, cujo calcanhar de ilesa a coerência e integridade do Direito.
Aquiles é exatamente não ter um critério para definir qual
o melhor critério, que venho denominando de “ausência ou
impossibilidade” de um Grundmethode (método dos métodos)?
Mutatis mutandis, a lei da ponderação, que seria o
método para resolver a colisão entre princípios, ao fim e ao cabo
recorre a uma teoria da argumentação que aceita argumentos
morais nas insuficiências dos padrões jurídicos. É a esse
problema que me refiro quando critico o esquema sujeito-
objeto: entender que a discricionariedade é algo inerente à
aplicação do Direito é, no fundo, um retorno ao paradigma da
filosofia da consciência.
Como venho afirmando, a discricionariedade não se

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

chamada à colação” quando necessário um juízo ponderativo relaciona bem com a democracia. E essa questão continua
para os casos difíceis – uma vez que para os “casos simples” na ordem do dia, mormente em países como o Brasil. Com
(aqueles solucionados mediante a aplicação de uma regra) efeito, as teorias que pretenderam resolver o problema
bastaria a dedução/subsunção – caberá ao intérprete a tarefa da (in)determinabilidade do Direito, das vaguezas e das
de “hierarquizar” e “decidir” qual o princípio aplicável no ambiguidades próprias do ordenamento jurídico, apostando
caso do conflito/colisão. na discricionariedade ou em discursos adjudicadores com
Ora, se, ao fim e ao cabo, cabe ao intérprete hierarquizar pretensão de correção do Direito, vão estar tão somente
(e escolher) o princípio aplicável, a pergunta inexorável é: qual reforçando aquilo que pretendemos criticar.
é a diferença entre o “intérprete ponderador” e o “intérprete Por isso, defendo, ao lado de Dworkin e Ferrajoli,
do positivismo”, que, discricionariamente, escolhe qual a que os princípios não abrem a interpretação, e, sim, fecham/
“melhor” interpretação? limitam. Os princípios (re)inserem a facticidade no Direito, e
É evidente que devemos reconhecer que a teoria dos espelham uma determinada tradição jurídica que permitirá
princípios conjugada com uma teoria da argumentação, um diálogo constante entre a decisão particular com todo o
como no caso da teoria de Alexy, que é a mais sofisticada e ordenamento. Deste modo, proporcionam que a atividade
complexa, responderá que há um conjunto de critérios que jurisdicional, por intermédio da fundamentação, que é
deverão sempre balizar a decisão. Mas, pergunto novamente: condição de possibilidade, torne público o sentido que será,
qual é a diferença disso na comparação com as fórmulas assim, intersubjetivamente controlado, e tenderá a manter
dos velhos métodos de interpretação, cujo calcanhar de ilesa a coerência e integridade do Direito.
Aquiles é exatamente não ter um critério para definir qual
o melhor critério, que venho denominando de “ausência ou
impossibilidade” de um Grundmethode (método dos métodos)?
Mutatis mutandis, a lei da ponderação, que seria o
método para resolver a colisão entre princípios, ao fim e ao cabo
recorre a uma teoria da argumentação que aceita argumentos
morais nas insuficiências dos padrões jurídicos. É a esse
problema que me refiro quando critico o esquema sujeito-
objeto: entender que a discricionariedade é algo inerente à
aplicação do Direito é, no fundo, um retorno ao paradigma da
filosofia da consciência.
Como venho afirmando, a discricionariedade não se

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A Crítica Hermenêutica do Direito (CHD)
como oposição à discricionariedade e ao
ativismo judicial

Essa problemática exige algumas observações


preliminares. Inicialmente, é preciso dizer que a CHD tem como
fundamento filosófico a Filosofia Hermenêutica (Heidegger),
a Hermenêutica Filosófica (Gadamer) e no plano da Teoria do
Direito compartilha de/com elementos da teoria integrativa de
Ronald Dworkin.
Mas é necessário fazer uma ressalva: os referidos
pensadores, cada um em seu nível de contribuição epistêmica,
foram incorporados antropofagicamente para constituir a
CHD. Ou seja, não é Heidegger e nem Gadamer simplesmente
aplicados ao Direito, de modo direto/instrumental. Isso seria
um equívoco, uma vez que ambos não trataram diretamente
das especificidades do fenômeno jurídico. Deste modo,
contribuem enquanto cosmovisão básica.
No mesmo sentido, a CHD apesar de se aproximar
da ideia do Direito como integridade (law as integrity), não é
uma teoria dworkiniana. Se assim fosse, teria que partilhar
o todo da obra de Dworkin – o que não ocorre – assim, não
seria outra teoria, mas apenas uma aplicação do jurista
norte-americano à realidade brasileira.
Assim, resultando de (des)leituras antropofágicas, a
CHD se constitui como uma matriz autônoma, não escon-
dendo seus aportes basilares e o(s) seu(s) lugar(es) de fala.

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A Crítica Hermenêutica do Direito (CHD)
como oposição à discricionariedade e ao
ativismo judicial

Essa problemática exige algumas observações


preliminares. Inicialmente, é preciso dizer que a CHD tem como
fundamento filosófico a Filosofia Hermenêutica (Heidegger),
a Hermenêutica Filosófica (Gadamer) e no plano da Teoria do
Direito compartilha de/com elementos da teoria integrativa de
Ronald Dworkin.
Mas é necessário fazer uma ressalva: os referidos
pensadores, cada um em seu nível de contribuição epistêmica,
foram incorporados antropofagicamente para constituir a
CHD. Ou seja, não é Heidegger e nem Gadamer simplesmente
aplicados ao Direito, de modo direto/instrumental. Isso seria
um equívoco, uma vez que ambos não trataram diretamente
das especificidades do fenômeno jurídico. Deste modo,
contribuem enquanto cosmovisão básica.
No mesmo sentido, a CHD apesar de se aproximar
da ideia do Direito como integridade (law as integrity), não é
uma teoria dworkiniana. Se assim fosse, teria que partilhar
o todo da obra de Dworkin – o que não ocorre – assim, não
seria outra teoria, mas apenas uma aplicação do jurista
norte-americano à realidade brasileira.
Assim, resultando de (des)leituras antropofágicas, a
CHD se constitui como uma matriz autônoma, não escon-
dendo seus aportes basilares e o(s) seu(s) lugar(es) de fala.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

Dito isso, posso então afirmar que a CHD tem como razão desenraizada de sua condição fática e histórica, isto é,
ponto de partida o problema de haver decisões judiciais que não existe um “grau zero de sentido”, como venho dizendo.
não são democráticas, ou seja, nas quais o juiz procedeu de A hermenêutica não proíbe que se trabalhe em
modo arbitrário, conforme a sua consciência individual, e um nível lógico ou argumentativo, mas sabe que há uma
isso é um desrespeito ao Estado Democrático de Direito que dimensão interpretativa ou existencial (se quisermos chamar
estabelece as regras do jogo no qual o juiz atua. assim) que antecede e que é condição de possibilidade para
Em suma, o problema enfrentado é o ato interpretativo qualquer discurso. Por essa razão que Ernildo Stein afirma,
do juiz no momento de decidir. Por isso há a ênfase na na apresentação do meu Verdade e Consenso, que “esse nível
necessidade de uma teoria da decisão. Assim, dentre os seus apofântico perde algo de essencial quando desconhece na linguagem
intentos, a CHD procura despertar a comunidade jurídica jurídica, por exemplo, a dimensão hermenêutica, como primeira e
acerca do problema da discricionariedade (e seus derivados antecipada em todo o enunciado”.
ou genéricos). Aquilo que entendo como teoria da decisão judicial tem
Defender que a decisão jurídica pressupõe um juízo como pressuposto que o Direito é um sistema constituído por
discricionário de um juiz que, com seu livre convencimento regras e princípios, em que os últimos não serão comandos
(motivado ou não – o que dá no mesmo), pode decidir a que, por sua vagueza semântica, podem ser cumpridos em
partir de sua consciência, é esquecer que estamos desde maior ou menor grau ou intensidade.
sempre inseridos num mundo em que as significações se dão A hermenêutica sabe que as regras jurídicas não
intersubjetivamente. conseguem abarcar de antemão todas as hipóteses fáticas
Logo, a jurisdição não pode ser compreendida como que poderão ser atribuídas a sua previsão semântica, ao
uma escolha personalista. Ao contrário, deve ser entendida passo que para as teorias positivistas essa abertura semântica
como um processo que requer responsabilidade política. era/é preenchida pela discricionariedade do juiz. Aliás, essa
Partindo de uma teoria da decisão, como tento fazer é uma característica fundamental do positivismo jurídico.
a partir de Verdade e Consenso, Jurisdição Constitucional, e, em Por se tratar de uma complexa corrente teórica acabou
especial, da terceira edição de Lições de Crítica Hermenêutica do recebendo muitas variações, mas a discricionariedade se faz
Direito, procuro demonstrar que o juiz encontra-se, queira ele presente em todas elas, seja como um pressuposto teórico,
ou não, submetido a um contexto intersubjetivo de significação seja como uma consequência.
e que os sentidos dos textos jurídicos (e dos fatos) com que Veja-se que um positivista ético/normativo, por
lida não estão à disposição de sua livre apreciação para exemplo, dirá que quando as regras não são claras (sem
avaliá-los da maneira que ele, subjetivamente, entende mais adentrar no problema que é dizer quando uma regra é clara)
conveniente. O mundo que conhecemos não é produto de uma é inevitável que o juízo utilize-se de critérios extrajurídicos

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

Dito isso, posso então afirmar que a CHD tem como razão desenraizada de sua condição fática e histórica, isto é,
ponto de partida o problema de haver decisões judiciais que não existe um “grau zero de sentido”, como venho dizendo.
não são democráticas, ou seja, nas quais o juiz procedeu de A hermenêutica não proíbe que se trabalhe em
modo arbitrário, conforme a sua consciência individual, e um nível lógico ou argumentativo, mas sabe que há uma
isso é um desrespeito ao Estado Democrático de Direito que dimensão interpretativa ou existencial (se quisermos chamar
estabelece as regras do jogo no qual o juiz atua. assim) que antecede e que é condição de possibilidade para
Em suma, o problema enfrentado é o ato interpretativo qualquer discurso. Por essa razão que Ernildo Stein afirma,
do juiz no momento de decidir. Por isso há a ênfase na na apresentação do meu Verdade e Consenso, que “esse nível
necessidade de uma teoria da decisão. Assim, dentre os seus apofântico perde algo de essencial quando desconhece na linguagem
intentos, a CHD procura despertar a comunidade jurídica jurídica, por exemplo, a dimensão hermenêutica, como primeira e
acerca do problema da discricionariedade (e seus derivados antecipada em todo o enunciado”.
ou genéricos). Aquilo que entendo como teoria da decisão judicial tem
Defender que a decisão jurídica pressupõe um juízo como pressuposto que o Direito é um sistema constituído por
discricionário de um juiz que, com seu livre convencimento regras e princípios, em que os últimos não serão comandos
(motivado ou não – o que dá no mesmo), pode decidir a que, por sua vagueza semântica, podem ser cumpridos em
partir de sua consciência, é esquecer que estamos desde maior ou menor grau ou intensidade.
sempre inseridos num mundo em que as significações se dão A hermenêutica sabe que as regras jurídicas não
intersubjetivamente. conseguem abarcar de antemão todas as hipóteses fáticas
Logo, a jurisdição não pode ser compreendida como que poderão ser atribuídas a sua previsão semântica, ao
uma escolha personalista. Ao contrário, deve ser entendida passo que para as teorias positivistas essa abertura semântica
como um processo que requer responsabilidade política. era/é preenchida pela discricionariedade do juiz. Aliás, essa
Partindo de uma teoria da decisão, como tento fazer é uma característica fundamental do positivismo jurídico.
a partir de Verdade e Consenso, Jurisdição Constitucional, e, em Por se tratar de uma complexa corrente teórica acabou
especial, da terceira edição de Lições de Crítica Hermenêutica do recebendo muitas variações, mas a discricionariedade se faz
Direito, procuro demonstrar que o juiz encontra-se, queira ele presente em todas elas, seja como um pressuposto teórico,
ou não, submetido a um contexto intersubjetivo de significação seja como uma consequência.
e que os sentidos dos textos jurídicos (e dos fatos) com que Veja-se que um positivista ético/normativo, por
lida não estão à disposição de sua livre apreciação para exemplo, dirá que quando as regras não são claras (sem
avaliá-los da maneira que ele, subjetivamente, entende mais adentrar no problema que é dizer quando uma regra é clara)
conveniente. O mundo que conhecemos não é produto de uma é inevitável que o juízo utilize-se de critérios extrajurídicos

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no momento de decidir. Esse é o pressuposto teórico adotado garantias fundamentais, podemos concluir que o Poder
para resolver as “insuficiências” ônticas do Direito. Judiciário somente pode deixar de aplicar uma lei ou
Por outro lado, um positivista descritivista (positivismo dispositivo de lei nas seis seguintes hipóteses. É o que reuni
exclusivo) dirá que juízes não estão obrigados a decidirem de em minha proposta de teoria da decisão, uma theory of
acordo com o Direito se este for moralmente inaceitável, sendo adjudication verdadeiramente brasileira:
que, para isso, admite o uso de critérios extrajurídicos. a) quando a lei (o ato normativo) for inconstitucional,
Ou seja, o positivista que pretende apenas descrever caso em que deixará de aplicá-la (controle difuso de
o Direito não está preocupado como um juiz deve decidir, constitucionalidade stricto sensu) ou a declarará incons-
pois recebe a decisão (e a discricionariedade) como algo titucional mediante controle concentrado; as especifici-
“dado” e busca apenas descrevê-la. Eis, portanto, a aceitação dades podem ser encontradas nos respectivos desdo-
da discricionariedade como uma consequência da sua bramentos da presente;
metodologia teórica. b) quando for o caso de aplicação dos critérios de reso-
Veja-se, como observação aos alunos e profissionais do lução de antinomias. Nesse caso, há que se ter cuidado
Direito em geral: devemos parar de tratar o positivismo por com a questão constitucional, pois, v.g., a lex posterioris,
intermédio de caricaturas, como se houvesse apenas um tipo que derroga a lex anterioris, pode ser inconstitucional,
de positivismo e que este fosse apenas o velho exegetismo do com o que as antinomias deixam de ser relevantes;
tipo “juiz-boca-da-lei”. Pensar assim é prestar um desserviço
ao Direito. Também sempre é preciso remeter o leitor ao c) quando aplicar a interpretação conforme a Constitui-
Dicionário de Hermenêutica, verbete Positivismo. ção (verfassungskonforme Auslegung), ocasião em que se
torna necessária uma adição de sentido ao artigo de lei
Por isso, aqui, explico e volto à importância do papel dos para que haja plena conformidade da norma à Consti-
princípios e sua normatividade no combate à discricionariedade tuição. Nesse caso, o texto de lei (entendido na sua “li-
proposto pela CHD. Os princípios, assim, passam a fechar – e teralidade” ou no seu significado convencional, como
não abrir – a interpretação jurídica. Da mesma maneira, nos diria Victoria Iturralde Sesma) permanecerá intacto.
casos em que deve ser aplicada a “literalidade” da regra, isso O que muda é o seu sentido, alterado por intermédio
só é possível porque ela vem justificada por um princípio que de interpretação que o torne adequado à Constituição.
lhe sustenta. Trabalha-se, nesse ponto, com a relação “texto-norma”.
Não há uma cisão estrutural entre regras e princípios. Como poderá ser visto amiúde mais adiante, a inter-
A partir dessa estrutura e levando em consideração que pretação conforme, a nulidade parcial sem redução de
o direito brasileiro é constituído sob as bases de uma texto e as demais sentenças interpretativas são impor-
Constituição cujo cerne prevê um extenso rol de direitos e tantes elementos para confirmar a força normativa da

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

no momento de decidir. Esse é o pressuposto teórico adotado garantias fundamentais, podemos concluir que o Poder
para resolver as “insuficiências” ônticas do Direito. Judiciário somente pode deixar de aplicar uma lei ou
Por outro lado, um positivista descritivista (positivismo dispositivo de lei nas seis seguintes hipóteses. É o que reuni
exclusivo) dirá que juízes não estão obrigados a decidirem de em minha proposta de teoria da decisão, uma theory of
acordo com o Direito se este for moralmente inaceitável, sendo adjudication verdadeiramente brasileira:
que, para isso, admite o uso de critérios extrajurídicos. a) quando a lei (o ato normativo) for inconstitucional,
Ou seja, o positivista que pretende apenas descrever caso em que deixará de aplicá-la (controle difuso de
o Direito não está preocupado como um juiz deve decidir, constitucionalidade stricto sensu) ou a declarará incons-
pois recebe a decisão (e a discricionariedade) como algo titucional mediante controle concentrado; as especifici-
“dado” e busca apenas descrevê-la. Eis, portanto, a aceitação dades podem ser encontradas nos respectivos desdo-
da discricionariedade como uma consequência da sua bramentos da presente;
metodologia teórica. b) quando for o caso de aplicação dos critérios de reso-
Veja-se, como observação aos alunos e profissionais do lução de antinomias. Nesse caso, há que se ter cuidado
Direito em geral: devemos parar de tratar o positivismo por com a questão constitucional, pois, v.g., a lex posterioris,
intermédio de caricaturas, como se houvesse apenas um tipo que derroga a lex anterioris, pode ser inconstitucional,
de positivismo e que este fosse apenas o velho exegetismo do com o que as antinomias deixam de ser relevantes;
tipo “juiz-boca-da-lei”. Pensar assim é prestar um desserviço
ao Direito. Também sempre é preciso remeter o leitor ao c) quando aplicar a interpretação conforme a Constitui-
Dicionário de Hermenêutica, verbete Positivismo. ção (verfassungskonforme Auslegung), ocasião em que se
torna necessária uma adição de sentido ao artigo de lei
Por isso, aqui, explico e volto à importância do papel dos para que haja plena conformidade da norma à Consti-
princípios e sua normatividade no combate à discricionariedade tuição. Nesse caso, o texto de lei (entendido na sua “li-
proposto pela CHD. Os princípios, assim, passam a fechar – e teralidade” ou no seu significado convencional, como
não abrir – a interpretação jurídica. Da mesma maneira, nos diria Victoria Iturralde Sesma) permanecerá intacto.
casos em que deve ser aplicada a “literalidade” da regra, isso O que muda é o seu sentido, alterado por intermédio
só é possível porque ela vem justificada por um princípio que de interpretação que o torne adequado à Constituição.
lhe sustenta. Trabalha-se, nesse ponto, com a relação “texto-norma”.
Não há uma cisão estrutural entre regras e princípios. Como poderá ser visto amiúde mais adiante, a inter-
A partir dessa estrutura e levando em consideração que pretação conforme, a nulidade parcial sem redução de
o direito brasileiro é constituído sob as bases de uma texto e as demais sentenças interpretativas são impor-
Constituição cujo cerne prevê um extenso rol de direitos e tantes elementos para confirmar a força normativa da

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

Constituição. São sentenças interpretativas e perfeita- o princípio só existe a partir de uma regra – pensemos,
mente legítimas, quando proferidas sob o império de por exemplo, na regra do furto, que é “suspensa” em
uma adequada teoria da decisão; casos de “insignificância”).
d) quando aplicar a nulidade parcial sem redução de (Tal circunstância, por óbvio, acarretará um
texto (Teilnichtigerklarung ohne Normtextreduzierung), compromisso da comunidade jurídica, na medida em que,
pela qual permanece a literalidade do dispositivo, sen- a partir de uma exceção, casos similares exigirão – mas
do alterada apenas a sua incidência, ou seja, ocorre a exigirão mesmo – aplicação similar, graças à integridade e à
expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de deter- coerência. Trata-se de entender os princípios em seu caráter
minada(s) hipótese(s) de aplicação (Anwendungsfalle) deontológico e não meramente teleológico. Como uma regra
do programa normativo sem que se produza alteração só existe – no sentido da applicatio hermenêutica – a partir de
expressa do texto legal. Assim, enquanto, na interpre- um princípio que lhe densifica o conteúdo, a regra só persiste,
tação conforme, há uma adição de sentido, na nulidade naquele caso concreto, se não estiver incompatível com um
parcial sem redução de texto ocorre uma abdução de ou mais princípios. A regra permanece vigente e válida; só
sentido (conforme item específico no capítulo em que deixa de ser aplicada naquele caso concreto. Se a regra é,
discuto esses mecanismos de aplicação do Direito);
em definitivo, inconstitucional, então se aplica a hipótese 1.
e) quando for o caso de declaração de inconstitucionali- Por outro lado, há que ser claro que um princípio só adquire
dade com redução de texto, ocasião em que a exclusão existência hermenêutica por intermédio de uma regra. Logo,
de uma palavra conduz à manutenção da constitucio- é dessa diferença ontológica [ontologische Differenz] que se
nalidade do dispositivo; extrai o sentido para a resolução do caso concreto.)
f) quando – e isso é absolutamente corriqueiro e co- Esses, naturalmente, são critérios negativos. Para além
mum – for o caso de deixar de aplicar uma regra em dessas seis hipóteses, não vislumbro possibilidade de o juiz
face de um princípio, entendidos estes não como stan- deixar, no exercício da jurisdição, de aplicar uma lei, quer ele
dards retóricos ou enunciados performativos, mas como subjetivamente concorde ou não com a sua disposição.
padrões deontológicos, ajustados institucionalmente à Ao juiz não é dado o direito, muito menos o dever, de
moralidade política filtrada pelo Direito da comunida- gostar ou não da lei. Não é (nem deve ser) a vontade do juiz a
de em questão. Claro que isso somente tem sentido fora atribuir normatividade e validade jurídica a um preceito legal.
de qualquer pamprincipiologismo. É por meio da apli-
Por isso o papel decisivo que a doutrina passa a exercer,
cação principiológica que será possível a não aplicação
pois ela tem o papel não apenas de reproduzir as decisões
da regra a determinado caso (a aplicação principiológi-
produzidas pelos Tribunais, mas de prescrever como eles
ca sempre ocorrerá, já que não há regra sem princípio e
devem decidir. É o que venho chamando de Constrangimento

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

Constituição. São sentenças interpretativas e perfeita- o princípio só existe a partir de uma regra – pensemos,
mente legítimas, quando proferidas sob o império de por exemplo, na regra do furto, que é “suspensa” em
uma adequada teoria da decisão; casos de “insignificância”).
d) quando aplicar a nulidade parcial sem redução de (Tal circunstância, por óbvio, acarretará um
texto (Teilnichtigerklarung ohne Normtextreduzierung), compromisso da comunidade jurídica, na medida em que,
pela qual permanece a literalidade do dispositivo, sen- a partir de uma exceção, casos similares exigirão – mas
do alterada apenas a sua incidência, ou seja, ocorre a exigirão mesmo – aplicação similar, graças à integridade e à
expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de deter- coerência. Trata-se de entender os princípios em seu caráter
minada(s) hipótese(s) de aplicação (Anwendungsfalle) deontológico e não meramente teleológico. Como uma regra
do programa normativo sem que se produza alteração só existe – no sentido da applicatio hermenêutica – a partir de
expressa do texto legal. Assim, enquanto, na interpre- um princípio que lhe densifica o conteúdo, a regra só persiste,
tação conforme, há uma adição de sentido, na nulidade naquele caso concreto, se não estiver incompatível com um
parcial sem redução de texto ocorre uma abdução de ou mais princípios. A regra permanece vigente e válida; só
sentido (conforme item específico no capítulo em que deixa de ser aplicada naquele caso concreto. Se a regra é,
discuto esses mecanismos de aplicação do Direito);
em definitivo, inconstitucional, então se aplica a hipótese 1.
e) quando for o caso de declaração de inconstitucionali- Por outro lado, há que ser claro que um princípio só adquire
dade com redução de texto, ocasião em que a exclusão existência hermenêutica por intermédio de uma regra. Logo,
de uma palavra conduz à manutenção da constitucio- é dessa diferença ontológica [ontologische Differenz] que se
nalidade do dispositivo; extrai o sentido para a resolução do caso concreto.)
f) quando – e isso é absolutamente corriqueiro e co- Esses, naturalmente, são critérios negativos. Para além
mum – for o caso de deixar de aplicar uma regra em dessas seis hipóteses, não vislumbro possibilidade de o juiz
face de um princípio, entendidos estes não como stan- deixar, no exercício da jurisdição, de aplicar uma lei, quer ele
dards retóricos ou enunciados performativos, mas como subjetivamente concorde ou não com a sua disposição.
padrões deontológicos, ajustados institucionalmente à Ao juiz não é dado o direito, muito menos o dever, de
moralidade política filtrada pelo Direito da comunida- gostar ou não da lei. Não é (nem deve ser) a vontade do juiz a
de em questão. Claro que isso somente tem sentido fora atribuir normatividade e validade jurídica a um preceito legal.
de qualquer pamprincipiologismo. É por meio da apli-
Por isso o papel decisivo que a doutrina passa a exercer,
cação principiológica que será possível a não aplicação
pois ela tem o papel não apenas de reproduzir as decisões
da regra a determinado caso (a aplicação principiológi-
produzidas pelos Tribunais, mas de prescrever como eles
ca sempre ocorrerá, já que não há regra sem princípio e
devem decidir. É o que venho chamando de Constrangimento

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA

Epistemológico (ver verbete correspondente no meu


Dicionário de Hermenêutica), um dever de exigir que os juízes
não fragilizem a força normativa da Constituição por meio de A hermenêutica e o direito fundamental à
argumentos pessoais, morais (no sentido de sua moralidade Resposta Adequada à Constituição (RAC)
privada), econômicos ou políticos.
É a isso que me refiro quando digo que nessa quadra
da história o Direito possui um acentuado grau de autonomia. Todos os jurisdicionados possuem o direito
Trata-se de uma blindagem contra-argumentos exógenos fundamental a obter uma resposta correta, isto é, uma decisão
que, se utilizados como critérios de fundamentação das que esteja de acordo com a Constituição. Juiz não escolhe. Juiz
decisões, passam a flexibilizar e relativizar as disposições decide. Há uma diferença entre escolher, que está no plano da
constitucionais, ou seja, os direitos e garantias fundamentais. razão prática, e decisão, que está no plano da responsabilidade
política e da intersubjetividade. Neste ponto fica bem clara a
necessidade de separar a pessoa do juiz no seu cotidiano do
juiz autoridade, que possui responsabilidade política.
Nem juiz, nem promotor são juiz e promotor vinte e
quatro horas por dia. O juiz que dá aula é professor naquele
momento. E quando vai ao açougue não é autoridade e não
decide que uma picanha pode ser uma maminha ou vice-versa.
Por isso, não deve importar o que o juiz pensa sobre
as coisas (política, economia, futebol, religião, etc). Importa
é que, quando decide, tem de suspender seus pré-juízos,
seus preconceitos (no sentido comum da palavra). Se ele
não conseguir fazer isso, não pode ser juiz. Um juiz, pelo
fato de desgostar da lei, não pode se recusar a aplicá-la. Ele
até pode não aplicar a lei, desde que esteja alicerçado nas
seis hipóteses já delineadas.
Uma advertência: é evidente que não quero um sistema
jurídico no qual os juízes sejam a boca “fria” da lei. Igualmente
não quero um sistema jurídico no qual os juízes sejam a boca
do precedente ou a boca das súmulas. Também é óbvio que

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA

Epistemológico (ver verbete correspondente no meu


Dicionário de Hermenêutica), um dever de exigir que os juízes
não fragilizem a força normativa da Constituição por meio de A hermenêutica e o direito fundamental à
argumentos pessoais, morais (no sentido de sua moralidade Resposta Adequada à Constituição (RAC)
privada), econômicos ou políticos.
É a isso que me refiro quando digo que nessa quadra
da história o Direito possui um acentuado grau de autonomia. Todos os jurisdicionados possuem o direito
Trata-se de uma blindagem contra-argumentos exógenos fundamental a obter uma resposta correta, isto é, uma decisão
que, se utilizados como critérios de fundamentação das que esteja de acordo com a Constituição. Juiz não escolhe. Juiz
decisões, passam a flexibilizar e relativizar as disposições decide. Há uma diferença entre escolher, que está no plano da
constitucionais, ou seja, os direitos e garantias fundamentais. razão prática, e decisão, que está no plano da responsabilidade
política e da intersubjetividade. Neste ponto fica bem clara a
necessidade de separar a pessoa do juiz no seu cotidiano do
juiz autoridade, que possui responsabilidade política.
Nem juiz, nem promotor são juiz e promotor vinte e
quatro horas por dia. O juiz que dá aula é professor naquele
momento. E quando vai ao açougue não é autoridade e não
decide que uma picanha pode ser uma maminha ou vice-versa.
Por isso, não deve importar o que o juiz pensa sobre
as coisas (política, economia, futebol, religião, etc). Importa
é que, quando decide, tem de suspender seus pré-juízos,
seus preconceitos (no sentido comum da palavra). Se ele
não conseguir fazer isso, não pode ser juiz. Um juiz, pelo
fato de desgostar da lei, não pode se recusar a aplicá-la. Ele
até pode não aplicar a lei, desde que esteja alicerçado nas
seis hipóteses já delineadas.
Uma advertência: é evidente que não quero um sistema
jurídico no qual os juízes sejam a boca “fria” da lei. Igualmente
não quero um sistema jurídico no qual os juízes sejam a boca
do precedente ou a boca das súmulas. Também é óbvio que

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

não quero um sistema jurídico em que o juiz esteja proibido tantas perplexidades, parece não restar dúvida de que uma
de interpretar. Mas também não quero um sistema jurídico em resposta mínima pode e deve ser dada a essas indagações: o
que o juiz interprete como quer e solte o acusado quando quer. constitucionalismo – nesta sua versão social, compromissória e
Ou prenda alguém sem motivo, só porque ele, pessoalmente, dirigente – não pode repetir equívocos positivistas, proporcio-
“quer acabar com a impunidade”. nando decisionismos ou discricionariedades interpretativas.
Só quero um mínimo de previsibilidade, que advém da Então, finalmente, por favor, que não se venha com
aplicação do Direito, e não da moral. Quem acha que a moral a velha história de que “cumprir a letra ‘fria’ [sic] da lei” é
(por exemplo, a visão individual-moral do juiz lhe dizendo “— assumir uma postura positivista! Aliás, o que seria essa “letra
Esse cara não merece ser solto”) pode vir a corrigir o Direito, fria da lei”? Haveria um sentido-em-si-mesmo da lei?
deveria fazer o curso de filosofia moral. E assim por diante. Na verdade, confundem-se conceitos. As diversas
Se a moral ou a política corrigem o Direito, quem vai corrigir formas de positivismo não podem ser colocadas no mesmo
esses elementos predadores? patamar e tampouco podemos confundir uma delas (ou as
Eis o busílis da questão. Se simplesmente olhar o duas mais conhecidas) com a sua superação pelo e no interior
processo e tomar a decisão com base na percepção pessoal é do paradigma da linguagem.
“decisão jurídica”, então qualquer pessoa pode decidir6. Tentarei explicar isso melhor: positivismo exegético
E aqui surge a pergunta: afinal, aplicar a lei é ser (que era a forma do positivismo primitivo) separava direito
positivista? Por tudo que vimos, evidente que essa é uma e moral, além de confundir texto e norma, lei e direito, ou
vulgata. Parece não haver dúvida de que o positivismo – seja, tratava-se da velha crença – ainda muito presente no
compreendido lato sensu (ou seja, as diversas facetas do imaginário dos juristas – em torno da proibição de interpretar,
positivismo) – não conseguiu aceitar a viragem interpretativa corolário da vetusta separação entre fato e Direito, algo que
ocorrida na filosofia do direito (invasão da filosofia pela nos remete ao período pós-revolução francesa e todas as
linguagem) e suas consequências no plano da doutrina e da consequências políticas que dali se seguiram.
jurisprudência. Depois veio o positivismo normativista, seguido
Se isto é verdadeiro – e penso que é – a pergunta que das mais variadas formas e fórmulas que – identificando
cabe é: como é possível continuar a sustentar o positivismo (arbitrariamente) a impossibilidade de um “fechamento
nesta quadra da história? Como resistir ou obstaculizar o cons- semântico” do direito – relegou o problema da interpretação
titucionalismo que revolucionou o direito no século XX? Entre jurídica a uma “questão menor” (lembremos, aqui, de Kelsen).
Atente-se: nessa nova formulação do positivismo, o problema
6 STRECK, Lenio Luiz. O juiz soltou os presos; já Karl Max deixou de estudar do direito não está(va) no modo como os juízes decidem, mas,
e foi vender droga. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo,
21 de maio, 2015. Disponível em < https://www.conjur.com.br/2015-mai-21/ simplesmente, nas condições lógico-deônticas de validade das
senso-incomum-juiz-solta-21-karl-max-deixou-estudar-foi-vender-droga>

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

não quero um sistema jurídico em que o juiz esteja proibido tantas perplexidades, parece não restar dúvida de que uma
de interpretar. Mas também não quero um sistema jurídico em resposta mínima pode e deve ser dada a essas indagações: o
que o juiz interprete como quer e solte o acusado quando quer. constitucionalismo – nesta sua versão social, compromissória e
Ou prenda alguém sem motivo, só porque ele, pessoalmente, dirigente – não pode repetir equívocos positivistas, proporcio-
“quer acabar com a impunidade”. nando decisionismos ou discricionariedades interpretativas.
Só quero um mínimo de previsibilidade, que advém da Então, finalmente, por favor, que não se venha com
aplicação do Direito, e não da moral. Quem acha que a moral a velha história de que “cumprir a letra ‘fria’ [sic] da lei” é
(por exemplo, a visão individual-moral do juiz lhe dizendo “— assumir uma postura positivista! Aliás, o que seria essa “letra
Esse cara não merece ser solto”) pode vir a corrigir o Direito, fria da lei”? Haveria um sentido-em-si-mesmo da lei?
deveria fazer o curso de filosofia moral. E assim por diante. Na verdade, confundem-se conceitos. As diversas
Se a moral ou a política corrigem o Direito, quem vai corrigir formas de positivismo não podem ser colocadas no mesmo
esses elementos predadores? patamar e tampouco podemos confundir uma delas (ou as
Eis o busílis da questão. Se simplesmente olhar o duas mais conhecidas) com a sua superação pelo e no interior
processo e tomar a decisão com base na percepção pessoal é do paradigma da linguagem.
“decisão jurídica”, então qualquer pessoa pode decidir6. Tentarei explicar isso melhor: positivismo exegético
E aqui surge a pergunta: afinal, aplicar a lei é ser (que era a forma do positivismo primitivo) separava direito
positivista? Por tudo que vimos, evidente que essa é uma e moral, além de confundir texto e norma, lei e direito, ou
vulgata. Parece não haver dúvida de que o positivismo – seja, tratava-se da velha crença – ainda muito presente no
compreendido lato sensu (ou seja, as diversas facetas do imaginário dos juristas – em torno da proibição de interpretar,
positivismo) – não conseguiu aceitar a viragem interpretativa corolário da vetusta separação entre fato e Direito, algo que
ocorrida na filosofia do direito (invasão da filosofia pela nos remete ao período pós-revolução francesa e todas as
linguagem) e suas consequências no plano da doutrina e da consequências políticas que dali se seguiram.
jurisprudência. Depois veio o positivismo normativista, seguido
Se isto é verdadeiro – e penso que é – a pergunta que das mais variadas formas e fórmulas que – identificando
cabe é: como é possível continuar a sustentar o positivismo (arbitrariamente) a impossibilidade de um “fechamento
nesta quadra da história? Como resistir ou obstaculizar o cons- semântico” do direito – relegou o problema da interpretação
titucionalismo que revolucionou o direito no século XX? Entre jurídica a uma “questão menor” (lembremos, aqui, de Kelsen).
Atente-se: nessa nova formulação do positivismo, o problema
6 STRECK, Lenio Luiz. O juiz soltou os presos; já Karl Max deixou de estudar do direito não está(va) no modo como os juízes decidem, mas,
e foi vender droga. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo,
21 de maio, 2015. Disponível em < https://www.conjur.com.br/2015-mai-21/ simplesmente, nas condições lógico-deônticas de validade das
senso-incomum-juiz-solta-21-karl-max-deixou-estudar-foi-vender-droga>

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

“normas jurídicas”. legalidade e fundadora do espaço público democrático. Isso


O ponto, então, é que positivismo não é “aplicar a letra tem consequências drásticas para a concepção do direito como
‘fria’ [sic] da lei”. Talvez já tenha sido quando, na França, a Es- um todo! Quero dizer: saltamos de um legalismo rasteiro,
cola da Exegese, baseada em Montesquieu dizia que o juiz era que reduzia o elemento central do direito ora a um conceito
a bouche de la loi (“a boca da lei”). Lembremos, contudo, que “a estrito de lei (como no caso dos códigos oitocentistas, base
lei” ainda era a lei do Code Napoléon. Desde então, o juiz mu- para o positivismo primitivo), ora a um conceito abstrato-
dou, a lei mudou, a França mudou, o Brasil mudou, o mundo universalizante de norma (que se encontra plasmado na ideia
mudou. Por óbvio, mudou o positivismo também — mas, ao de Direito presente no positivismo normativista), para uma
que parece, ainda insistem que sou um positivista por dizer concepção da legalidade que só se constitui sob o manto da
que o texto legal importa, e talvez seja pelo mesmo motivo que constitucionalidade.
ainda ressoe, nas salas de aula, que Kelsen era um exegeta. O que quero dizer – e me recordo aqui de Elias Dias – é
Positivismo é muito mais do que aquilo que foi a que não seríamos capazes, nesta quadra da história, de admi-
sua formulação original: o legalismo (seja ele manifestado tir uma legalidade inconstitucional. Isso deveria ser eviden-
pelo exegetismo francês, da jurisprudência dos conceitos na te. Portanto, não devemos confundir “alhos” com “bugalhos”.
Alemanha, ou por meio da da jurisprudência analítica inglesa Obedecer à risca o “texto da lei” (significado convencional
— inaugurada, em certa medida, por Jeremy Bentham. autêntico – no sentido hermenêutico da palavra) democrati-
camente construído (já superada a questão da distinção entre
A tradição dominante do positivismo jurídico nunca Direito e moral) não tem nada a ver com a “exegese” à moda
disse que o juiz tem um dever de aplicar o texto legal. Mais: antiga (positivismo primitivo). No primeiro caso, a moral fi-
a tradição positivista dominante jamais disse nada sobre a cava de fora; agora, no Estado Democrático de Direito, ela é
atuação do juiz per se. Característica típica do juspositivismo é, cooriginária. Tão complexo, e, ao mesmo tempo, tão simples.
justamente, não se preocupar com a decisão judicial.
Digo isso porque discussão sobre a possibilidade e
Como defender que os juízes respeitem a lei invocando necessidade de respostas corretas no Direito tem raízes na
uma teoria cuja tradição dominante nada tem a dizer sobre a história da filosofia e na própria discussão fundamental sobre
forma como os juízes devem se comportar? a verdade. Não por acaso, o debate jurídico contemporâneo
Ou seja: uma coisa todos esses positivismos têm até retoma a luta contra os diversos tipos de ceticismo, tentando não
hoje em comum: a discricionariedade (que acaba não se reincidir no seu oposto ingênuo que defenderia fundamentos
fixando sequer nos limites da “moldura” semântica). E tenho últimos e absolutos para o conhecimento (“formalismos”,
a convicção de que isso se deve a um motivo muito simples: “jurisprudência mecânica”... alguns “jusnaturalismos” – sempre
a tradição continental, pelo menos até o segundo pós-guerra, de ocasião, sem uma epistemologia – e etc.).
não havia conhecido uma Constituição normativa, invasora da Em qualquer teoria que defenda a discricionariedade,
50 51
COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

“normas jurídicas”. legalidade e fundadora do espaço público democrático. Isso


O ponto, então, é que positivismo não é “aplicar a letra tem consequências drásticas para a concepção do direito como
‘fria’ [sic] da lei”. Talvez já tenha sido quando, na França, a Es- um todo! Quero dizer: saltamos de um legalismo rasteiro,
cola da Exegese, baseada em Montesquieu dizia que o juiz era que reduzia o elemento central do direito ora a um conceito
a bouche de la loi (“a boca da lei”). Lembremos, contudo, que “a estrito de lei (como no caso dos códigos oitocentistas, base
lei” ainda era a lei do Code Napoléon. Desde então, o juiz mu- para o positivismo primitivo), ora a um conceito abstrato-
dou, a lei mudou, a França mudou, o Brasil mudou, o mundo universalizante de norma (que se encontra plasmado na ideia
mudou. Por óbvio, mudou o positivismo também — mas, ao de Direito presente no positivismo normativista), para uma
que parece, ainda insistem que sou um positivista por dizer concepção da legalidade que só se constitui sob o manto da
que o texto legal importa, e talvez seja pelo mesmo motivo que constitucionalidade.
ainda ressoe, nas salas de aula, que Kelsen era um exegeta. O que quero dizer – e me recordo aqui de Elias Dias – é
Positivismo é muito mais do que aquilo que foi a que não seríamos capazes, nesta quadra da história, de admi-
sua formulação original: o legalismo (seja ele manifestado tir uma legalidade inconstitucional. Isso deveria ser eviden-
pelo exegetismo francês, da jurisprudência dos conceitos na te. Portanto, não devemos confundir “alhos” com “bugalhos”.
Alemanha, ou por meio da da jurisprudência analítica inglesa Obedecer à risca o “texto da lei” (significado convencional
— inaugurada, em certa medida, por Jeremy Bentham. autêntico – no sentido hermenêutico da palavra) democrati-
camente construído (já superada a questão da distinção entre
A tradição dominante do positivismo jurídico nunca Direito e moral) não tem nada a ver com a “exegese” à moda
disse que o juiz tem um dever de aplicar o texto legal. Mais: antiga (positivismo primitivo). No primeiro caso, a moral fi-
a tradição positivista dominante jamais disse nada sobre a cava de fora; agora, no Estado Democrático de Direito, ela é
atuação do juiz per se. Característica típica do juspositivismo é, cooriginária. Tão complexo, e, ao mesmo tempo, tão simples.
justamente, não se preocupar com a decisão judicial.
Digo isso porque discussão sobre a possibilidade e
Como defender que os juízes respeitem a lei invocando necessidade de respostas corretas no Direito tem raízes na
uma teoria cuja tradição dominante nada tem a dizer sobre a história da filosofia e na própria discussão fundamental sobre
forma como os juízes devem se comportar? a verdade. Não por acaso, o debate jurídico contemporâneo
Ou seja: uma coisa todos esses positivismos têm até retoma a luta contra os diversos tipos de ceticismo, tentando não
hoje em comum: a discricionariedade (que acaba não se reincidir no seu oposto ingênuo que defenderia fundamentos
fixando sequer nos limites da “moldura” semântica). E tenho últimos e absolutos para o conhecimento (“formalismos”,
a convicção de que isso se deve a um motivo muito simples: “jurisprudência mecânica”... alguns “jusnaturalismos” – sempre
a tradição continental, pelo menos até o segundo pós-guerra, de ocasião, sem uma epistemologia – e etc.).
não havia conhecido uma Constituição normativa, invasora da Em qualquer teoria que defenda a discricionariedade,
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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA

nenhuma das partes tem realmente direito a algo, devendo


o Judiciário reconhecer esse direito por meio da melhor
interpretação. O problema? O direito em questão será As semelhanças e diferenças entre a RAC da
puramente dependente da interpretação que o juiz escolher. CHD e a tese de Dworkin
E isso não é democrático, porque desloca o polo de sentido do
Direito em direção à discricionariedade judicial.
Para diferenciarmos minimamente as duas teses, há que
se dizer que uma é feita para o common law e a outra para o civil
law. A de Dworkin tem a hermenêutica filosófica implícita. A
minha é explícita e agrega Dworkin. Há muitas parecenças
entre Dworkin e Gadamer7. Veja: eu não estou dizendo – e
nunca disse – que Dworkin é gadameriano. Sempre disse que
há coisas em comum e existem algumas coisas que Dworkin
buscou em Gadamer. Há apenas duas menções de Dworkin a
Gadamer. Mas o conceito de direito de Dworkin se aproxima
sobremodo da hermenêutica. A coerência e a integridade têm
relação com a tradição e a autoridade da tradição propostas
por Gadamer.
Para além disso, veja-se: uma leitura apressada de
Dworkin – e isso também ocorre com quem lê Gadamer
como um filólogo, fato que ocorre não raras vezes no Direito
– dá a falsa impressão de que Hércules, o juiz ideal tal como
postulado em O Império do Direito, representa o portador de
uma “subjetividade assujeitadora”.
Ora, como já referido, enquanto as múltiplas teorias
que pretendem justificar o conhecimento buscam “superar”
o sujeito do esquema sujeito-objeto, eliminando-o ou
substituindo-o por estruturas comunicacionais, redes ou
sistemas e, algumas de forma mais radical, até mesmo por
7 STRECK, L. L.. Hermenêutica e Jurisdição: diálogos com Lenio Streck. 1.
ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA

nenhuma das partes tem realmente direito a algo, devendo


o Judiciário reconhecer esse direito por meio da melhor
interpretação. O problema? O direito em questão será As semelhanças e diferenças entre a RAC da
puramente dependente da interpretação que o juiz escolher. CHD e a tese de Dworkin
E isso não é democrático, porque desloca o polo de sentido do
Direito em direção à discricionariedade judicial.
Para diferenciarmos minimamente as duas teses, há que
se dizer que uma é feita para o common law e a outra para o civil
law. A de Dworkin tem a hermenêutica filosófica implícita. A
minha é explícita e agrega Dworkin. Há muitas parecenças
entre Dworkin e Gadamer7. Veja: eu não estou dizendo – e
nunca disse – que Dworkin é gadameriano. Sempre disse que
há coisas em comum e existem algumas coisas que Dworkin
buscou em Gadamer. Há apenas duas menções de Dworkin a
Gadamer. Mas o conceito de direito de Dworkin se aproxima
sobremodo da hermenêutica. A coerência e a integridade têm
relação com a tradição e a autoridade da tradição propostas
por Gadamer.
Para além disso, veja-se: uma leitura apressada de
Dworkin – e isso também ocorre com quem lê Gadamer
como um filólogo, fato que ocorre não raras vezes no Direito
– dá a falsa impressão de que Hércules, o juiz ideal tal como
postulado em O Império do Direito, representa o portador de
uma “subjetividade assujeitadora”.
Ora, como já referido, enquanto as múltiplas teorias
que pretendem justificar o conhecimento buscam “superar”
o sujeito do esquema sujeito-objeto, eliminando-o ou
substituindo-o por estruturas comunicacionais, redes ou
sistemas e, algumas de forma mais radical, até mesmo por
7 STRECK, L. L.. Hermenêutica e Jurisdição: diálogos com Lenio Streck. 1.
ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2017.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

um pragmatismo fundado na Wille zur Macht (por todas, vale considerar-se como um complexo empreendimento em
referir as teorias desconstrutivistas e o realismo dos Critical cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturas,
Legal Studies), Dworkin e Gadamer, cada um ao seu modo, convenções e práticas são a história; é seu trabalho
cada um à sua maneira, procuram controlar esse subjetivismo continuar essa história no futuro por meio do que ele
e essa subjetividade solipsista a partir da tradição, do não- faz agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes
relativismo, do círculo hermenêutico, da diferença ontológica, porque tem a responsabilidade de levar adiante a
do respeito à integridade e da coerência do Direito, de maneira incumbência que tem em mãos e não partir em alguma
que, fundamentalmente, ambas as teorias são antimetafísicas, nova direção. Portanto, deve determinar, segundo seu
porque rejeitam, peremptoriamente, os diversos dualismos próprio julgamento, o motivo das decisões anteriores,
que a tradição (metafísica) nos legou desde Platão (a principal qual realmente é, tomando como um todo, o propósito
delas é a incindibilidade entre interpretação e aplicação, ou o tema da prática até então”. 8
pregadas tanto por Dworkin como por Gadamer).
Vejam o que diz Dworkin sobre seu modelo de juiz (o Veja-se, então, o modo como Dworkin foge à
único desses constructos teóricos que me agrada!). Um cético determinação causal do Direito pelas práticas jurídicas
teimoso poderia insistir que se trata de um mito, mas, como convencionais, como foge também da sua “invenção” pelas
Dworkin adverte, sua obstinação e seu êxito valem como preferências pessoais do juiz ou por metas políticas. Ter um
argumentos de que não se trata de um mito. Trata-se de uma direito deve ser algo diferente disso tudo, algo que não se
força observável que coordena as práticas jurídicas. legitima por um teste mecânico de pedigree, nem é uma espécie
Assim, tentando oferecer uma melhor explicação filosó- de “direito sem direitos” em que tudo é negociável a cada
fica para o fenômeno fenômeno jurídico, Dworkin demonstra momento. Cada juiz se posiciona na história institucional,
como ele mobiliza a identificação das práticas jurídicas com devendo interpretar o que aconteceu e dar-lhe continuidade
sua leitura sob a melhor luz, atendendo na decisão a uma ade- da melhor maneira possível.
quação institucional e a uma melhor justificativa substantiva: Cada tomada de decisão deve se articular ao todo
coerente do Direito, mantendo uma consistência com
“qualquer juiz obrigado a decidir uma demanda os princípios constitutivos da comunidade. Dworkin se
descobrirá, se olhar nos livros adequados, registros de compromete com decisões judiciais corretas por intermédio
muitos casos plausivelmente similares, decididos há da da coerência e integridade normativas.
décadas ou mesmo séculos por muitos outros juízes, Em relação ao que eu digo, Dworkin coloca a questão da
de estilos e filosofias judiciais e políticas diferentes, em
períodos nos quais o processo e as convenções judiciais 8 DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005,
eram diferentes. Ao decidir o novo caso, cada juiz deve p. 235.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

um pragmatismo fundado na Wille zur Macht (por todas, vale considerar-se como um complexo empreendimento em
referir as teorias desconstrutivistas e o realismo dos Critical cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturas,
Legal Studies), Dworkin e Gadamer, cada um ao seu modo, convenções e práticas são a história; é seu trabalho
cada um à sua maneira, procuram controlar esse subjetivismo continuar essa história no futuro por meio do que ele
e essa subjetividade solipsista a partir da tradição, do não- faz agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes
relativismo, do círculo hermenêutico, da diferença ontológica, porque tem a responsabilidade de levar adiante a
do respeito à integridade e da coerência do Direito, de maneira incumbência que tem em mãos e não partir em alguma
que, fundamentalmente, ambas as teorias são antimetafísicas, nova direção. Portanto, deve determinar, segundo seu
porque rejeitam, peremptoriamente, os diversos dualismos próprio julgamento, o motivo das decisões anteriores,
que a tradição (metafísica) nos legou desde Platão (a principal qual realmente é, tomando como um todo, o propósito
delas é a incindibilidade entre interpretação e aplicação, ou o tema da prática até então”. 8
pregadas tanto por Dworkin como por Gadamer).
Vejam o que diz Dworkin sobre seu modelo de juiz (o Veja-se, então, o modo como Dworkin foge à
único desses constructos teóricos que me agrada!). Um cético determinação causal do Direito pelas práticas jurídicas
teimoso poderia insistir que se trata de um mito, mas, como convencionais, como foge também da sua “invenção” pelas
Dworkin adverte, sua obstinação e seu êxito valem como preferências pessoais do juiz ou por metas políticas. Ter um
argumentos de que não se trata de um mito. Trata-se de uma direito deve ser algo diferente disso tudo, algo que não se
força observável que coordena as práticas jurídicas. legitima por um teste mecânico de pedigree, nem é uma espécie
Assim, tentando oferecer uma melhor explicação filosó- de “direito sem direitos” em que tudo é negociável a cada
fica para o fenômeno fenômeno jurídico, Dworkin demonstra momento. Cada juiz se posiciona na história institucional,
como ele mobiliza a identificação das práticas jurídicas com devendo interpretar o que aconteceu e dar-lhe continuidade
sua leitura sob a melhor luz, atendendo na decisão a uma ade- da melhor maneira possível.
quação institucional e a uma melhor justificativa substantiva: Cada tomada de decisão deve se articular ao todo
coerente do Direito, mantendo uma consistência com
“qualquer juiz obrigado a decidir uma demanda os princípios constitutivos da comunidade. Dworkin se
descobrirá, se olhar nos livros adequados, registros de compromete com decisões judiciais corretas por intermédio
muitos casos plausivelmente similares, decididos há da da coerência e integridade normativas.
décadas ou mesmo séculos por muitos outros juízes, Em relação ao que eu digo, Dworkin coloca a questão da
de estilos e filosofias judiciais e políticas diferentes, em
períodos nos quais o processo e as convenções judiciais 8 DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005,
eram diferentes. Ao decidir o novo caso, cada juiz deve p. 235.

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resposta correta como one right answer, traduzida por muitos


como única resposta certa. Eu digo que o que devemos buscar
é “a” resposta correta, nem a única, nem uma entre várias. A O estado da arte do Direito e da crítica do
melhor interpretação. Eis, então, uma questão relevante: o Direito
papel da Constituição e sua força normativa. Dworkin não
pensou em uma Constituição como a nossa. Por isso, por aqui
é até mais fácil fazer a reconstrução da história institucional e
A crítica à dogmática jurídica já vem sendo feita de há
fazer a parametricidade constitucional.
muito. A dogmática jurídica confunde-se com o senso comum
O que fica, afinal, é isso: a partir de um modelo her- teórico dos juristas. É um mix de diversas teses, posturas,
menêutico (Crítica Hermenêutica do Direito) ou integrativo ideologias, etc. Vou me fixar, aqui, no plano da crítica que
(dworkiniano), sentenças e acórdãos são atos de decisão e também não conseguiu superar as armadilhas da dogmática
não de escolha. São atos de poder em nome do Estado. Esse jurídica, que somente podem ser ultrapassadas por intermédio
é o ponto. de uma crítica que leve em conta os paradigmas filosóficos.
Como algumas correntes críticas percebem o Direi-
to? Tudo se resume à decisão ou a doutrina – no sentido
de “doutrina que deve doutrinar” – tem alguma “chance”?
Venho trabalhando há anos em uma Teoria da Decisão. Sei
que esse assunto desagrada parcela considerável de juristas.
Alguns, por ignorância (no sentido de ignorare, portanto,
sem ofensa), não se dão conta de que o problema do prota-
gonismo judicial (vitaminado por discricionariedades, livre
convencimento, etc) é um problema d(à) própria democra-
cia; outros se dispersam no entremeio de diversas posturas,
algumas críticas (sem, no entanto, enfrentar o problema da
decisão) e outras reprodutoras de velhas fórmulas, com a
aposição de ornamentos discursivos como ponderação, teo-
ria de precedentes, etc., podendo ser subdivididos em gru-
pos (sempre com o risco de fazer algum reducionismo ou
até mesmo supervalorizações).
De minha parte, a partir da CHD, permito-me insistir

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resposta correta como one right answer, traduzida por muitos


como única resposta certa. Eu digo que o que devemos buscar
é “a” resposta correta, nem a única, nem uma entre várias. A O estado da arte do Direito e da crítica do
melhor interpretação. Eis, então, uma questão relevante: o Direito
papel da Constituição e sua força normativa. Dworkin não
pensou em uma Constituição como a nossa. Por isso, por aqui
é até mais fácil fazer a reconstrução da história institucional e
A crítica à dogmática jurídica já vem sendo feita de há
fazer a parametricidade constitucional.
muito. A dogmática jurídica confunde-se com o senso comum
O que fica, afinal, é isso: a partir de um modelo her- teórico dos juristas. É um mix de diversas teses, posturas,
menêutico (Crítica Hermenêutica do Direito) ou integrativo ideologias, etc. Vou me fixar, aqui, no plano da crítica que
(dworkiniano), sentenças e acórdãos são atos de decisão e também não conseguiu superar as armadilhas da dogmática
não de escolha. São atos de poder em nome do Estado. Esse jurídica, que somente podem ser ultrapassadas por intermédio
é o ponto. de uma crítica que leve em conta os paradigmas filosóficos.
Como algumas correntes críticas percebem o Direi-
to? Tudo se resume à decisão ou a doutrina – no sentido
de “doutrina que deve doutrinar” – tem alguma “chance”?
Venho trabalhando há anos em uma Teoria da Decisão. Sei
que esse assunto desagrada parcela considerável de juristas.
Alguns, por ignorância (no sentido de ignorare, portanto,
sem ofensa), não se dão conta de que o problema do prota-
gonismo judicial (vitaminado por discricionariedades, livre
convencimento, etc) é um problema d(à) própria democra-
cia; outros se dispersam no entremeio de diversas posturas,
algumas críticas (sem, no entanto, enfrentar o problema da
decisão) e outras reprodutoras de velhas fórmulas, com a
aposição de ornamentos discursivos como ponderação, teo-
ria de precedentes, etc., podendo ser subdivididos em gru-
pos (sempre com o risco de fazer algum reducionismo ou
até mesmo supervalorizações).
De minha parte, a partir da CHD, permito-me insistir

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na tese de que hermenêutica quer dizer responsabilidade e numa prancheta, pois é desde sempre mergulhada no mundo
compromisso com a Constituição. Portanto, textos jurídicos prático. Só que a prática também não existe “em si”, mas
(leis) são mais importantes que o “sentimento pessoal” do articulada num universo interpretativo.
intérprete. Princípios não são valores; juiz não tem poder de Sendo assim, a Teoria também importa! Precisamos
livre convencimento; moral não corrige o Direito; é o Direito dela para organizar os sentidos, para projetar um horizonte.
que corrige a moral; princípios não podem ser inventados; Para resumir de um modo simples: a ambição descritiva não
direito não pode se resumir à construção de estratégias; há pode sufocar a prescritiva. Fundamentalmente, devemos
algo a mais na Teoria do Direito do que discutir argumentação evitar que a decisão seja dada por ideologia, subjetividade
jurídica. ou por interesses pessoais (espaço em que entra o sujeito
Em síntese, do modo como diversos juristas deslocam o solipsista mais especificamente — sim, aquele “sujeito-viciado-
polo de tensão do Direito em direção ao juiz, cabe a pergunta: em-si-mesmo” e que continua infernizando o que resta da
por que ainda existem pesquisas no e sobre o Direito, se tudo modernidade).
se transformou em “relações de poder”? Mas tranquilizemo-nos: o juiz não é uma figura
Poderíamos, na visão de parcela dos (próprios) juristas, inerte, neutra. Se permitir que juízes decidam conforme sua
transformar os cursos de direito em cursos de economia consciência é um ataque a democracia, proibir os juízes do
política, relações de poder, gestão, estratégia, etc. O problema ato de interpretar, como alguns, equivocadamente, vivem
é que, ao fazerem isso, correm o risco de se transformarem em apregoando, é, além de impossível, equivalente a sufocar a
profetas do passado, como se o tempo fosse uma sucessão de própria democracia, esquecer, inclusive, a diferença ontológica
“agoras”. entre lei-norma, na linha do que foi abordado anteriormente.
É certo que não podemos desconsiderar a práxis. Afinal, Veja-se que nem os positivistas contemporâneos
o Direito não é “um aglomerado de conceitos sem coisas”. proíbem os juízes de interpretar (embora nas salas de aula pelo
Também é certo que a falta de pesquisas empíricas tende a Brasil afora os professores ensinem que “positivismo é o juiz
gerar uma doutrina vazia, puramente especulativa. boca da lei” – isto que denominei anteriormente de “caricatura
Mas o outro extremo, a “empiricização”, pode levar a do positivismo”).
um direito cego, sem imaginação institucional, sem horizonte. Portanto, não há dúvida de que pulsa um coração no
Uma pessoa sem horizontes é aquela que não consegue ver peito dos juízes. Não é disso que trata a temática da teoria
nada além das coisas imediatas. Ela diz: “é assim mesmo”. da decisão e da hermenêutica. Tenha-se claro que discutir
A CHD que fundei é uma das matrizes jurídicas que teoria da decisão não tem absolutamente nada a ver com a
tenta acabar com esse abismo entre teoria (vazia) e prática repristinação do juiz boca da lei ou outras coisas rasas como
(cega). A Teoria não nasce do céu dos conceitos, desenhada essa. E não percamos mais tempo com essas aleivosias.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

na tese de que hermenêutica quer dizer responsabilidade e numa prancheta, pois é desde sempre mergulhada no mundo
compromisso com a Constituição. Portanto, textos jurídicos prático. Só que a prática também não existe “em si”, mas
(leis) são mais importantes que o “sentimento pessoal” do articulada num universo interpretativo.
intérprete. Princípios não são valores; juiz não tem poder de Sendo assim, a Teoria também importa! Precisamos
livre convencimento; moral não corrige o Direito; é o Direito dela para organizar os sentidos, para projetar um horizonte.
que corrige a moral; princípios não podem ser inventados; Para resumir de um modo simples: a ambição descritiva não
direito não pode se resumir à construção de estratégias; há pode sufocar a prescritiva. Fundamentalmente, devemos
algo a mais na Teoria do Direito do que discutir argumentação evitar que a decisão seja dada por ideologia, subjetividade
jurídica. ou por interesses pessoais (espaço em que entra o sujeito
Em síntese, do modo como diversos juristas deslocam o solipsista mais especificamente — sim, aquele “sujeito-viciado-
polo de tensão do Direito em direção ao juiz, cabe a pergunta: em-si-mesmo” e que continua infernizando o que resta da
por que ainda existem pesquisas no e sobre o Direito, se tudo modernidade).
se transformou em “relações de poder”? Mas tranquilizemo-nos: o juiz não é uma figura
Poderíamos, na visão de parcela dos (próprios) juristas, inerte, neutra. Se permitir que juízes decidam conforme sua
transformar os cursos de direito em cursos de economia consciência é um ataque a democracia, proibir os juízes do
política, relações de poder, gestão, estratégia, etc. O problema ato de interpretar, como alguns, equivocadamente, vivem
é que, ao fazerem isso, correm o risco de se transformarem em apregoando, é, além de impossível, equivalente a sufocar a
profetas do passado, como se o tempo fosse uma sucessão de própria democracia, esquecer, inclusive, a diferença ontológica
“agoras”. entre lei-norma, na linha do que foi abordado anteriormente.
É certo que não podemos desconsiderar a práxis. Afinal, Veja-se que nem os positivistas contemporâneos
o Direito não é “um aglomerado de conceitos sem coisas”. proíbem os juízes de interpretar (embora nas salas de aula pelo
Também é certo que a falta de pesquisas empíricas tende a Brasil afora os professores ensinem que “positivismo é o juiz
gerar uma doutrina vazia, puramente especulativa. boca da lei” – isto que denominei anteriormente de “caricatura
Mas o outro extremo, a “empiricização”, pode levar a do positivismo”).
um direito cego, sem imaginação institucional, sem horizonte. Portanto, não há dúvida de que pulsa um coração no
Uma pessoa sem horizontes é aquela que não consegue ver peito dos juízes. Não é disso que trata a temática da teoria
nada além das coisas imediatas. Ela diz: “é assim mesmo”. da decisão e da hermenêutica. Tenha-se claro que discutir
A CHD que fundei é uma das matrizes jurídicas que teoria da decisão não tem absolutamente nada a ver com a
tenta acabar com esse abismo entre teoria (vazia) e prática repristinação do juiz boca da lei ou outras coisas rasas como
(cega). A Teoria não nasce do céu dos conceitos, desenhada essa. E não percamos mais tempo com essas aleivosias.

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Como sofro de LEER (Lesão por Esforço Epistêmico advogados, estagiários, bacharéis dos mais variados (tem
Repetitivo), digo: se o Direito tem um grau de autonomia e cerca de um milhão e meio no Brasil), todos eles vieram de
se temos uma Constituição normativa — portanto, ela é lei um lugar comum: a faculdade.
— então temos que construir as condições epistêmicas para Qual é o problema? As faculdades vão mal. O ensino
que uma decisão não seja fruto de opiniões pessoais ou de jurídico vai muito mal porque ele não ensina direito o Direito.
influências políticas, econômicas ou da mídia. Parece paradoxal isso. O que ele ensina é uma duvidosa teoria
Trata-se de discutir a democracia. Não creio que política do poder. Não se discute o Direito mas como ele deve
Habermas, Dworkin, Hart, entre tantos outros, tenham ou deveria ser na opinião pessoal do professor. Além disso se
escrito inutilmente sobre o Direito e mereçam o desprezo de descrevem simplesmente decisões dos tribunais, ficando numa
um certo imaginário refém do senso comum teórico ou até espécie de glosa. Neste sentido, o Direito ajudou a produzir
mesmo caudatário de teorias críticas “espertas”, que trazem a essa onda reacionária.
novidade tipo “direito é poder; direito é superestrutura; direito Há duas frases fortes que tenho utilizado. Uma é “Se
é valor”. Dou o meu irônico parabéns pela descoberta de que o os juristas fossem médicos, eles fariam passeatas contra
Direito não é neutro e que é composto de elementos políticos, antibióticos e vacinas”. A segunda: “Defender o Direito e a
econômicos, sociológicos e morais. legalidade hoje é uma atitude revolucionária”.
Tudo o que escrevo é para mostrar que é possível fazer Ministrar aulas de Direito Constitucional de forma
a coisa certa no Direito. Se quisermos brincar com a filosofia ortodoxa é quase ser subversivo. Nós temos que voltar ao
moral exercitada por autores como Michael Sandel, que paciente zero. Mas vai demorar.
pergunta acerca de como se pode fazer a coisa certa, podemos
afirmar que, sim, é possível colocar a moral pública acima da Porque tudo isso está interligado: é o Direito que filtra
moral privada. Aliás, Wittgenstein já dissera de há muito que a política, e não o contrário. Logo, se estamos em uma crise
não há linguagem privada. Ou seja: minha opinião privada não política desde sempre (o discurso não é sempre esse?), muito
pode tiranizar ou pautar a esfera pública, mormente se eu for disso é porque o Direito vai mal. E se o Direito vai mal é porque
um agente do Estado com responsabilidade política. não se ensina Direito... direito.
Mas qual é a origem disso tudo? Esse é o ponto. É Como dizia a Rainha Vermelha, de Alice no País das
preciso identificar o paciente zero. O ovo da serpente. Maravilhas, é preciso correr muito para ficar no mesmo
lugar. Com efeito, como tudo no Brasil chega tardiamente,
Vamos tomar um exemplo da medicina. Numa epide- sobrevinda a Constituição, em um primeiro momento foi
mia, você busca o paciente zero. Ao fazer o diagnóstico do necessário desmi(s)tificar as posturas formalistas ainda
estado do Direito hoje, o equivalente ao paciente zero são as sustentadas no positivismo clássico, o tradicional juiz boca
faculdades de Direito. Ministros, juízes, promotores, rábulas, da lei. Só que isso não estava claro no âmbito da dogmática

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

Como sofro de LEER (Lesão por Esforço Epistêmico advogados, estagiários, bacharéis dos mais variados (tem
Repetitivo), digo: se o Direito tem um grau de autonomia e cerca de um milhão e meio no Brasil), todos eles vieram de
se temos uma Constituição normativa — portanto, ela é lei um lugar comum: a faculdade.
— então temos que construir as condições epistêmicas para Qual é o problema? As faculdades vão mal. O ensino
que uma decisão não seja fruto de opiniões pessoais ou de jurídico vai muito mal porque ele não ensina direito o Direito.
influências políticas, econômicas ou da mídia. Parece paradoxal isso. O que ele ensina é uma duvidosa teoria
Trata-se de discutir a democracia. Não creio que política do poder. Não se discute o Direito mas como ele deve
Habermas, Dworkin, Hart, entre tantos outros, tenham ou deveria ser na opinião pessoal do professor. Além disso se
escrito inutilmente sobre o Direito e mereçam o desprezo de descrevem simplesmente decisões dos tribunais, ficando numa
um certo imaginário refém do senso comum teórico ou até espécie de glosa. Neste sentido, o Direito ajudou a produzir
mesmo caudatário de teorias críticas “espertas”, que trazem a essa onda reacionária.
novidade tipo “direito é poder; direito é superestrutura; direito Há duas frases fortes que tenho utilizado. Uma é “Se
é valor”. Dou o meu irônico parabéns pela descoberta de que o os juristas fossem médicos, eles fariam passeatas contra
Direito não é neutro e que é composto de elementos políticos, antibióticos e vacinas”. A segunda: “Defender o Direito e a
econômicos, sociológicos e morais. legalidade hoje é uma atitude revolucionária”.
Tudo o que escrevo é para mostrar que é possível fazer Ministrar aulas de Direito Constitucional de forma
a coisa certa no Direito. Se quisermos brincar com a filosofia ortodoxa é quase ser subversivo. Nós temos que voltar ao
moral exercitada por autores como Michael Sandel, que paciente zero. Mas vai demorar.
pergunta acerca de como se pode fazer a coisa certa, podemos
afirmar que, sim, é possível colocar a moral pública acima da Porque tudo isso está interligado: é o Direito que filtra
moral privada. Aliás, Wittgenstein já dissera de há muito que a política, e não o contrário. Logo, se estamos em uma crise
não há linguagem privada. Ou seja: minha opinião privada não política desde sempre (o discurso não é sempre esse?), muito
pode tiranizar ou pautar a esfera pública, mormente se eu for disso é porque o Direito vai mal. E se o Direito vai mal é porque
um agente do Estado com responsabilidade política. não se ensina Direito... direito.
Mas qual é a origem disso tudo? Esse é o ponto. É Como dizia a Rainha Vermelha, de Alice no País das
preciso identificar o paciente zero. O ovo da serpente. Maravilhas, é preciso correr muito para ficar no mesmo
lugar. Com efeito, como tudo no Brasil chega tardiamente,
Vamos tomar um exemplo da medicina. Numa epide- sobrevinda a Constituição, em um primeiro momento foi
mia, você busca o paciente zero. Ao fazer o diagnóstico do necessário desmi(s)tificar as posturas formalistas ainda
estado do Direito hoje, o equivalente ao paciente zero são as sustentadas no positivismo clássico, o tradicional juiz boca
faculdades de Direito. Ministros, juízes, promotores, rábulas, da lei. Só que isso não estava claro no âmbito da dogmática

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jurídica. Aliás, até hoje, nas salas de aula, em parcela da a diferença, remeto às três perguntas da minha teoria da
doutrina e nas práticas jurisprudenciais, ainda se pensa que decisão que explano também aqui neste livro.
positivismo é igual a juiz boca da lei. Esquecem-se de que o Inserido em um habitus dogmaticus, o jurista não se
próprio Kelsen foi um positivista pós-exegético, olvidam o que dá conta das contradições do sistema jurídico. Estas não
foi produzido pelos positivistas pós-hartianos, que apontaram “aparecem” aos olhos do jurista, uma vez que há um processo
suas baterias para longe do velho exegetismo — isto porque de justificação/fundamentação da “coerência” do seu próprio
o positivismo da era pós-Hart já não obriga(va) os juízes. Só discurso.
que os juristas brasileiros (e falo apenas destes para não criar
incidentes internacionais) não se deram conta deste “pequeno” Por isso, esse processo de justificação não
detalhe, porque continua(ra)m a pensar que positivismo é(ra) prescinde, para sua elucidação, do entendimento acerca do
cumprir a letra da lei. funcionamento da ideologia. Em outras palavras, ainda é
necessário estudar o (velho) conceito de ideologia, que parece
Talvez por causa desses detalhes nebulosos é que, ter sido esquecido nas salas de aula das tantas faculdades de
em um segundo momento, parte da doutrina se enebriou Direito existentes pelo país afora.
com certas teorias argumentativas e com uma vulgata da
ponderação — essa de que falei há pouco, que provocou um Ideologia, sempre brinco, é pedir segunda opinião
verdadeiro estado de natureza interpretativo —, tornando quando alguém diz que está chovendo. E o Direito no Brasil
necessário, então, que os juristas críticos começássemos a é ideológico no pior dos sentidos. Porque é ensinado como
elaborar críticas aos diversos voluntarismos. teoria política do poder, assentada em má metafísica.
Dito de outro modo, a crítica do Direito não poderia Só que é ainda mais grave: o que ocorre é que não
ser uma crítica fora de ordem. Tão grave é essa questão queremos nem admitir que ideologizamos — para usar uma
que, passados mais de 30 anos da Constituição, ainda há palavra suave — a aplicação da lei no país.
forte resistência à tese de que os juízes não possuem livre Daí a pergunta que deve ser respondida: o Direito, ao
convencimento. fim e ao cabo, é o que dele se diz por aí ou, melhor, ele é o que
E o protagonismo judicial foi se tornando cada dia o Judiciário diz que ele é?
mais intenso. As fragilidades do presidencialismo de coalizão Mas se isso é assim, se já se “naturalizou” essa concepção,
(Sérgio Abranches) foram ajudando a tornar o judiciário cada por que continuamos a estudar ou escrever sobre o Direito?
vez mais proativo, passando a ditar “políticas” ad hoc, sem Não seria melhor deixar que “quem decide é quem sabe”?
a devida preocupação com os requisitos da judicialização, Nestes (mais de) 30 anos da Constituição, ainda há um
dentro da diferença entre essa e o ativismo – a primeira, déficit considerável acerca do verdadeiro papel do Estado. As
contingencial e necessária num país de modernidade tardia; faculdades de Direito colaboraram enormemente para que o
o segundo, sempre deletério, porque antidemocrático. Para
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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

jurídica. Aliás, até hoje, nas salas de aula, em parcela da a diferença, remeto às três perguntas da minha teoria da
doutrina e nas práticas jurisprudenciais, ainda se pensa que decisão que explano também aqui neste livro.
positivismo é igual a juiz boca da lei. Esquecem-se de que o Inserido em um habitus dogmaticus, o jurista não se
próprio Kelsen foi um positivista pós-exegético, olvidam o que dá conta das contradições do sistema jurídico. Estas não
foi produzido pelos positivistas pós-hartianos, que apontaram “aparecem” aos olhos do jurista, uma vez que há um processo
suas baterias para longe do velho exegetismo — isto porque de justificação/fundamentação da “coerência” do seu próprio
o positivismo da era pós-Hart já não obriga(va) os juízes. Só discurso.
que os juristas brasileiros (e falo apenas destes para não criar
incidentes internacionais) não se deram conta deste “pequeno” Por isso, esse processo de justificação não
detalhe, porque continua(ra)m a pensar que positivismo é(ra) prescinde, para sua elucidação, do entendimento acerca do
cumprir a letra da lei. funcionamento da ideologia. Em outras palavras, ainda é
necessário estudar o (velho) conceito de ideologia, que parece
Talvez por causa desses detalhes nebulosos é que, ter sido esquecido nas salas de aula das tantas faculdades de
em um segundo momento, parte da doutrina se enebriou Direito existentes pelo país afora.
com certas teorias argumentativas e com uma vulgata da
ponderação — essa de que falei há pouco, que provocou um Ideologia, sempre brinco, é pedir segunda opinião
verdadeiro estado de natureza interpretativo —, tornando quando alguém diz que está chovendo. E o Direito no Brasil
necessário, então, que os juristas críticos começássemos a é ideológico no pior dos sentidos. Porque é ensinado como
elaborar críticas aos diversos voluntarismos. teoria política do poder, assentada em má metafísica.
Dito de outro modo, a crítica do Direito não poderia Só que é ainda mais grave: o que ocorre é que não
ser uma crítica fora de ordem. Tão grave é essa questão queremos nem admitir que ideologizamos — para usar uma
que, passados mais de 30 anos da Constituição, ainda há palavra suave — a aplicação da lei no país.
forte resistência à tese de que os juízes não possuem livre Daí a pergunta que deve ser respondida: o Direito, ao
convencimento. fim e ao cabo, é o que dele se diz por aí ou, melhor, ele é o que
E o protagonismo judicial foi se tornando cada dia o Judiciário diz que ele é?
mais intenso. As fragilidades do presidencialismo de coalizão Mas se isso é assim, se já se “naturalizou” essa concepção,
(Sérgio Abranches) foram ajudando a tornar o judiciário cada por que continuamos a estudar ou escrever sobre o Direito?
vez mais proativo, passando a ditar “políticas” ad hoc, sem Não seria melhor deixar que “quem decide é quem sabe”?
a devida preocupação com os requisitos da judicialização, Nestes (mais de) 30 anos da Constituição, ainda há um
dentro da diferença entre essa e o ativismo – a primeira, déficit considerável acerca do verdadeiro papel do Estado. As
contingencial e necessária num país de modernidade tardia; faculdades de Direito colaboraram enormemente para que o
o segundo, sempre deletério, porque antidemocrático. Para
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ensino do Direito viesse a ser substituído por péssimas teorias proliferação de manuais, que procuram “explicar” o direito a
políticas do poder. partir de verbetes jurisprudenciais ahistóricos e atemporais
Resultado: na hora em que precisamos de resistência (portanto, metafísicos). De novo: realidade demais... A
constitucional, o debate é tomado por posições ideológicas, dogmática é cronofóbica e factumfóbica.
em que soçobra(ra)m as garantias constitucionais, mormente Essa cultura, então, alicerça-se em casuísmos didáticos.
no âmbito do processo penal. Com efeito, além de invocações O positivismo, de que tanto já falei, ainda é a regra, calcado,
de argumentos morais, políticos e econômicos, parcela de um lado, em um objetivismo que não diferencia texto e
considerável dos tribunais ainda inverte o ônus da prova nas norma e, de outro, em um subjetivismo que ignora os limites
ações penais; sequer conseguimos implementar o artigo 212 semânticos do texto jurídico.
do CPP, por uma equivocada compreensão acerca do sentido Leitor: desconfie tanto do professor que diz que a lei
do que seja um sistema acusatório. contém um sentido em si mesmo como daquele que, pensando
A teoria do Direito, inserida em um senso comum ser crítico, diz para os alunos: “a lei não importa muito, pois
teórico (sempre homenageando o mestre Luis Alberto Warat) ela é apenas a ponta do iceberg...” – os dois são positivistas. A
insiste em abstrações. Insiste em desexistencializar o Direito, única dúvida é saber qual é mais positivista!
um fenômeno que só se dá em sua facticidade. Talvez o A doutrina que sustenta o saber jurídico resume-se a
problema, em um país como o Brasil, seja, efetivamente, o um conjunto de comentários resumidos de ementários de
excesso de realidade...! jurisprudência, desacompanhados dos respectivos contextos.
A cultura calcada em manuais, muitos de duvidosa Cada vez mais, a doutrina doutrina menos; isto é, a doutrina
cientificidade, ainda predomina na maioria das faculdades não mais doutrina – é, sim, doutrinada pelos tribunais! É nisso
de Direito. Forma-se, assim, um imaginário que simplifica que se baseia o casuísmo didático: a partir da construção de
o ensino jurídico, torna o ensino algo “técnico”, a partir da “categorias”, produzem-se raciocínios “dedutivos”, como se a
construção de standards e lugares comuns, repetidos nas realidade pudesse ser aprisionada no paraíso dos conceitos do
salas de aula e, posteriormente, nos cursos de preparação pragmatismo positivista dominante.
para concursos (hoje já existem cursinhos de preparação para A dogmática jurídica trabalhada nas salas de aula (e
ingresso nos cursinhos!), bem como nos fóruns e Tribunais. reproduzida em boa parte dos manuais) considera o Direito
Os próprios exemplos utilizados em sala de aula ou como sendo uma mera racionalidade instrumental. Em termos
em determinadas obras jurídicas estão desconectados do metodológicos, predomina esse “dedutivismo” [sic]. Nesse
que acontece no cotidiano da sociedade. Isto decorre de uma contexto, o próprio ensino jurídico é encarado como uma
cultura estandardizada, no interior da qual a dogmática terceira coisa, no interior da qual o professor é nada mais que
jurídica trabalha com prêt-à-porters significativos. Há uma um outsider do sistema.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

ensino do Direito viesse a ser substituído por péssimas teorias proliferação de manuais, que procuram “explicar” o direito a
políticas do poder. partir de verbetes jurisprudenciais ahistóricos e atemporais
Resultado: na hora em que precisamos de resistência (portanto, metafísicos). De novo: realidade demais... A
constitucional, o debate é tomado por posições ideológicas, dogmática é cronofóbica e factumfóbica.
em que soçobra(ra)m as garantias constitucionais, mormente Essa cultura, então, alicerça-se em casuísmos didáticos.
no âmbito do processo penal. Com efeito, além de invocações O positivismo, de que tanto já falei, ainda é a regra, calcado,
de argumentos morais, políticos e econômicos, parcela de um lado, em um objetivismo que não diferencia texto e
considerável dos tribunais ainda inverte o ônus da prova nas norma e, de outro, em um subjetivismo que ignora os limites
ações penais; sequer conseguimos implementar o artigo 212 semânticos do texto jurídico.
do CPP, por uma equivocada compreensão acerca do sentido Leitor: desconfie tanto do professor que diz que a lei
do que seja um sistema acusatório. contém um sentido em si mesmo como daquele que, pensando
A teoria do Direito, inserida em um senso comum ser crítico, diz para os alunos: “a lei não importa muito, pois
teórico (sempre homenageando o mestre Luis Alberto Warat) ela é apenas a ponta do iceberg...” – os dois são positivistas. A
insiste em abstrações. Insiste em desexistencializar o Direito, única dúvida é saber qual é mais positivista!
um fenômeno que só se dá em sua facticidade. Talvez o A doutrina que sustenta o saber jurídico resume-se a
problema, em um país como o Brasil, seja, efetivamente, o um conjunto de comentários resumidos de ementários de
excesso de realidade...! jurisprudência, desacompanhados dos respectivos contextos.
A cultura calcada em manuais, muitos de duvidosa Cada vez mais, a doutrina doutrina menos; isto é, a doutrina
cientificidade, ainda predomina na maioria das faculdades não mais doutrina – é, sim, doutrinada pelos tribunais! É nisso
de Direito. Forma-se, assim, um imaginário que simplifica que se baseia o casuísmo didático: a partir da construção de
o ensino jurídico, torna o ensino algo “técnico”, a partir da “categorias”, produzem-se raciocínios “dedutivos”, como se a
construção de standards e lugares comuns, repetidos nas realidade pudesse ser aprisionada no paraíso dos conceitos do
salas de aula e, posteriormente, nos cursos de preparação pragmatismo positivista dominante.
para concursos (hoje já existem cursinhos de preparação para A dogmática jurídica trabalhada nas salas de aula (e
ingresso nos cursinhos!), bem como nos fóruns e Tribunais. reproduzida em boa parte dos manuais) considera o Direito
Os próprios exemplos utilizados em sala de aula ou como sendo uma mera racionalidade instrumental. Em termos
em determinadas obras jurídicas estão desconectados do metodológicos, predomina esse “dedutivismo” [sic]. Nesse
que acontece no cotidiano da sociedade. Isto decorre de uma contexto, o próprio ensino jurídico é encarado como uma
cultura estandardizada, no interior da qual a dogmática terceira coisa, no interior da qual o professor é nada mais que
jurídica trabalha com prêt-à-porters significativos. Há uma um outsider do sistema.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA

Repito: o professor é nada mais que um outsider do


sistema. Foi pensando nisso que, tal como se fez por aí na
doutrina (Dworkin, Sunstein, Ost) com os modelos de juiz, De como Kelsen não defendia que se aplicasse
eu imaginei os modelos de professor. Para entender de onde “a letra da lei”
surgiu a epidemia que assola a área jurídica.

Falei de como positivismo nada tem a ver com aplicar


“a letra” da lei. E, mais adiante, falarei sobre os modelos de
professor. Obrigatório, então, desmi(s)tificar a vulgata de
Kelsen, tão repristinada pelas Faculdades de Direito que não
ensinam Direito direito. Serei muito direto.
A ideia de que Kelsen defendia que os juízes deviam
aplicar a lei é tão difundida quanto equivocada. Kelsen não
separou Direito e moral; Kelsen jamais preconizou uma aplicação
legalista do Direito.
Dizer o contrário é mal compreender o título da obra
mais lida de Kelsen quando o assunto é este: Teoria Pura do
Direito. É a teoria que é pura, não o Direito; como (muito) bem
dizia o saudoso Luis Alberto Warat, que compreendeu Kelsen
como poucos, a pureza está no olhar, e não no objeto olhado.
Como bem ressalta Leonel Severo Rocha, que, com Warat,
sabe dizer que, em Kelsen, “[o] Direito é a linguagem-objeto, a
ciência do Direito é a metalinguagem: dois planos distintos e
incomunicáveis” 9.
Ou seja: em Kelsen, há uma cisão, não entre Direito e
Moral, mas pelo contrário, há uma cisão entre Direito e Ciência
do Direito. Para Kelsen, o Direito, linguagem objeto, deve ser

9 DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes,


2005, p. 235.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA

Repito: o professor é nada mais que um outsider do


sistema. Foi pensando nisso que, tal como se fez por aí na
doutrina (Dworkin, Sunstein, Ost) com os modelos de juiz, De como Kelsen não defendia que se aplicasse
eu imaginei os modelos de professor. Para entender de onde “a letra da lei”
surgiu a epidemia que assola a área jurídica.

Falei de como positivismo nada tem a ver com aplicar


“a letra” da lei. E, mais adiante, falarei sobre os modelos de
professor. Obrigatório, então, desmi(s)tificar a vulgata de
Kelsen, tão repristinada pelas Faculdades de Direito que não
ensinam Direito direito. Serei muito direto.
A ideia de que Kelsen defendia que os juízes deviam
aplicar a lei é tão difundida quanto equivocada. Kelsen não
separou Direito e moral; Kelsen jamais preconizou uma aplicação
legalista do Direito.
Dizer o contrário é mal compreender o título da obra
mais lida de Kelsen quando o assunto é este: Teoria Pura do
Direito. É a teoria que é pura, não o Direito; como (muito) bem
dizia o saudoso Luis Alberto Warat, que compreendeu Kelsen
como poucos, a pureza está no olhar, e não no objeto olhado.
Como bem ressalta Leonel Severo Rocha, que, com Warat,
sabe dizer que, em Kelsen, “[o] Direito é a linguagem-objeto, a
ciência do Direito é a metalinguagem: dois planos distintos e
incomunicáveis” 9.
Ou seja: em Kelsen, há uma cisão, não entre Direito e
Moral, mas pelo contrário, há uma cisão entre Direito e Ciência
do Direito. Para Kelsen, o Direito, linguagem objeto, deve ser

9 DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes,


2005, p. 235.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA

descrito pela Ciência do Direito, metalinguagem. No primeiro,


as normas, que exsurgem de um ato de vontade (do legislador
na elaboração das leis, do juiz na interpretação e na sentença), Do precedentalismo brasileiro; dos enunciados,
carregam, em si, um espaço de mobilidade sob o qual se dos conceitos sem coisa, da tópica sem tópica
movimenta o intérprete, em razão dos problemas semânticos
que se verificam na aplicação de um signo linguístico.
Agora, no segundo, a interpretação é ato de Com o advento do Código de Processo Civil de 2015,
conhecimento: na descrição do Direito, em metalinguagem, parte da doutrina brasileira passou a falar sobre uma suposta
a Ciência do Direito produz proposições inter-relacionáveis, criação de um “sistema brasileiro de precedentes”, ou “sistema
de maneira lógico-formal. Daí fica muito claro que Kelsen não de criação de teses judiciais”, chegando a se falar até de sta-
só nunca separou Direito e moral como, inclusive, entendia re decisis como coroamento de um common law à brasileira.10
completamente o contrário; em Kelsen, o Direito é política Querem transformar o nosso direito em um “sistema” de pre-
jurídica, envolve moral, subjetivismos. Isso é muito claro. cedentes e teses.
Kelsen teve seu célebre debate constitucional com Carl O Ministro Roberto Barroso, do STF, é entusiasta das
Schmitt no ano de 1933; em 1934 escreve Teoria Pura do Direito. “teses”. Como se precedente fosse uma tese ou uma tese fos-
No conhecido Capítulo VIII, Kelsen desenvolve pela primeira se igual a um precedente. Na verdade, por trás disso, há uma
vez a questão da interpretação, onde prevê que a norma — que tese, consciente ou inconsciente, de cunho realista: querem
é sempre o sentido objetivo de um ato de vontade — opera substituir o Direito posto (leis, Constituição Federal) por teses
sempre de uma determinada “moldura”, metáfora esta que feitas pelas Cortes Superiores. Ou “decretar” que já vivemos,
representa bem a ideia de limites semânticos do texto. Na com o novo CPC, no common law porque adotamos o stare de-
segunda versão de Teoria Pura do Direito, porém, lançada em cisis. Resultado: o Direito é aquilo que as Cortes Superiores
1960, Kelsen abandona a ideia de moldura, determinando que a dizem que é. E as decisões são resultantes de um ato de von-
norma pode ser produzida ainda que “se situe completamente tade. É o que sustentam os adeptos da tese de que os tribunais
fora da moldura”. Com isso, fica claro que até mesmo Kelsen superiores devem ser Tribunais de Precedentes. Ou Cortes de
abandona a ideia de que os limites semânticos do texto servem Vértice. Realismo-de-precedentes.
para impor uma limitação nos tribunais.
Vejam que não questiono, obviamente, a necessidade
de se dar maior racionalidade ao sistema de justiça brasileiro.
Batalho por isso há anos. É claro que algo vai mal quando se
admitem, por exemplo, muito mais recursos extraordinários
10 ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia Jurídica e Democracia. 2. ed. São
Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 72.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA

descrito pela Ciência do Direito, metalinguagem. No primeiro,


as normas, que exsurgem de um ato de vontade (do legislador
na elaboração das leis, do juiz na interpretação e na sentença), Do precedentalismo brasileiro; dos enunciados,
carregam, em si, um espaço de mobilidade sob o qual se dos conceitos sem coisa, da tópica sem tópica
movimenta o intérprete, em razão dos problemas semânticos
que se verificam na aplicação de um signo linguístico.
Agora, no segundo, a interpretação é ato de Com o advento do Código de Processo Civil de 2015,
conhecimento: na descrição do Direito, em metalinguagem, parte da doutrina brasileira passou a falar sobre uma suposta
a Ciência do Direito produz proposições inter-relacionáveis, criação de um “sistema brasileiro de precedentes”, ou “sistema
de maneira lógico-formal. Daí fica muito claro que Kelsen não de criação de teses judiciais”, chegando a se falar até de sta-
só nunca separou Direito e moral como, inclusive, entendia re decisis como coroamento de um common law à brasileira.10
completamente o contrário; em Kelsen, o Direito é política Querem transformar o nosso direito em um “sistema” de pre-
jurídica, envolve moral, subjetivismos. Isso é muito claro. cedentes e teses.
Kelsen teve seu célebre debate constitucional com Carl O Ministro Roberto Barroso, do STF, é entusiasta das
Schmitt no ano de 1933; em 1934 escreve Teoria Pura do Direito. “teses”. Como se precedente fosse uma tese ou uma tese fos-
No conhecido Capítulo VIII, Kelsen desenvolve pela primeira se igual a um precedente. Na verdade, por trás disso, há uma
vez a questão da interpretação, onde prevê que a norma — que tese, consciente ou inconsciente, de cunho realista: querem
é sempre o sentido objetivo de um ato de vontade — opera substituir o Direito posto (leis, Constituição Federal) por teses
sempre de uma determinada “moldura”, metáfora esta que feitas pelas Cortes Superiores. Ou “decretar” que já vivemos,
representa bem a ideia de limites semânticos do texto. Na com o novo CPC, no common law porque adotamos o stare de-
segunda versão de Teoria Pura do Direito, porém, lançada em cisis. Resultado: o Direito é aquilo que as Cortes Superiores
1960, Kelsen abandona a ideia de moldura, determinando que a dizem que é. E as decisões são resultantes de um ato de von-
norma pode ser produzida ainda que “se situe completamente tade. É o que sustentam os adeptos da tese de que os tribunais
fora da moldura”. Com isso, fica claro que até mesmo Kelsen superiores devem ser Tribunais de Precedentes. Ou Cortes de
abandona a ideia de que os limites semânticos do texto servem Vértice. Realismo-de-precedentes.
para impor uma limitação nos tribunais.
Vejam que não questiono, obviamente, a necessidade
de se dar maior racionalidade ao sistema de justiça brasileiro.
Batalho por isso há anos. É claro que algo vai mal quando se
admitem, por exemplo, muito mais recursos extraordinários
10 ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia Jurídica e Democracia. 2. ed. São
Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 72.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

do que se consegue julgar em um ano (para fazer referência, exaustivas pesquisas que levei a cabo com pesquisadores por
aqui, a outra tese do Ministro Barroso). E, lido adequadamente, mim orientados, Raatz e Morbach11. Sintetizo aqui.
parece-me que o CPC/2015 poderia oferecer, com seu Historicamente, em Portugal, desenvolveu-se o ins-
contraditório e seu dever de fundamentação fortalecidos, tituto dos assentos, por meio dos quais a Corte responsável,
uma mudança efetiva do modelo deliberativo dos tribunais, supostamente, “interpretaria autenticamente a lei”, fixando o
que viabilizaria, com integridade e coerência, uma estabilidade entendimento para os juízes posteriores. A prática de emitir
legítima e a inibição da litigiosidade aventureira. Nesse sentido, assentos normativos perdurou em Portugal até 1993, data na
veio muito bem o novo CPC a exigir que a jurisprudência seja qual, em sede de controle concreto de constitucionalidade, o
íntegra, estável e coerente (artigo 926), para que se gerem Tribunal Constitucional português declarou a prática inconsti-
expectativas aos cidadãos sobre suas reais chances e se possa tucional, uma vez que esses assentos não constituíam fonte le-
vislumbrar o uso de recursos meramente protelatórios. gítima de Direito e implicavam, na prática, em poderes legisla-
Esse é o ponto. Batalhei pela inclusão da coerência e da tivos exercidos pelo Judiciário. Valendo-se dos ensinamentos
integridade no CPC exatamente porque acredito na coerência de Castanheira Neves, o Tribunal Constitucional português
e na integridade como a solução que dispensa um suposto tomou, como base para a sua decisão, o entendimento de que
sistema de precedentes que, sem epistemologia, funciona o legislador teria atribuído aos assentos uma obrigatoriedade
como prótese para fantasmas. jurídica geral, uma vinculação normativo-jurídica própria das
Precedentes, quando legítimos, não fixam teses normas gerais do sistema jurídico. Desse modo, os assentos
obrigatórias, gerais e generalizantes, para o futuro. O apresentar-se-iam com caráter prescritivo, constituindo verda-
precedente é uma concreta decisão jurisprudencial, vinculada deiras normas jurídicas com o valor de quaisquer outras nor-
como tal ao caso historicamente concreto que decidiu e que se mas do sistema, revestidas de caráter imperativo e força obri-
toma como padrão normativo casuístico em decisões análogas gatória geral, obrigando não apenas os tribunais, mas todas as
ou para casos de aplicação concretamente analógica. restantes autoridades, a comunidade jurídica na sua expressão
global. As semelhanças com o Brasil são óbvias.
O que isso quer dizer? Simples. Que o precedente,
autêntico, não ultrapassa o plano da facticidade; seu A diferença? Aqui, não se declarou a
padrão será sempre do particular (caso) para o particular inconstitucionalidade do precedentalismo, abraçado pelo
(caso). O que pretende fazer o precedentalismo brasileiro é Supremo (sem uma epistemologia clara, diga-se; a doutrina
desexistencializar o Direito: do geral e abstrato (tese) para o é adotada sem que se explique seus fundamentos). Vejam:
particular e concreto (caso). Nesse sentido, fica muito claro que O Tribunal Constitucional português, amparado na doutrina
o (suposto) “precedente” brasileiro está muito mais próximo do 11 STRECK, Lenio Luiz; RAATZ, Igor; MORBACH, Gilberto. Da genealogia
velho (e inconstitucional) instituto dos assentos portugueses dos mecanismos vinculantes brasileiros: dos assentos portugueses às ‘teses’
dos Tribunais Superiores. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM,
do que do stare decisis legítimo. Cheguei a essa conclusão em vol 14,, n. 01, artigo eletrônico 07, 2019.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

do que se consegue julgar em um ano (para fazer referência, exaustivas pesquisas que levei a cabo com pesquisadores por
aqui, a outra tese do Ministro Barroso). E, lido adequadamente, mim orientados, Raatz e Morbach11. Sintetizo aqui.
parece-me que o CPC/2015 poderia oferecer, com seu Historicamente, em Portugal, desenvolveu-se o ins-
contraditório e seu dever de fundamentação fortalecidos, tituto dos assentos, por meio dos quais a Corte responsável,
uma mudança efetiva do modelo deliberativo dos tribunais, supostamente, “interpretaria autenticamente a lei”, fixando o
que viabilizaria, com integridade e coerência, uma estabilidade entendimento para os juízes posteriores. A prática de emitir
legítima e a inibição da litigiosidade aventureira. Nesse sentido, assentos normativos perdurou em Portugal até 1993, data na
veio muito bem o novo CPC a exigir que a jurisprudência seja qual, em sede de controle concreto de constitucionalidade, o
íntegra, estável e coerente (artigo 926), para que se gerem Tribunal Constitucional português declarou a prática inconsti-
expectativas aos cidadãos sobre suas reais chances e se possa tucional, uma vez que esses assentos não constituíam fonte le-
vislumbrar o uso de recursos meramente protelatórios. gítima de Direito e implicavam, na prática, em poderes legisla-
Esse é o ponto. Batalhei pela inclusão da coerência e da tivos exercidos pelo Judiciário. Valendo-se dos ensinamentos
integridade no CPC exatamente porque acredito na coerência de Castanheira Neves, o Tribunal Constitucional português
e na integridade como a solução que dispensa um suposto tomou, como base para a sua decisão, o entendimento de que
sistema de precedentes que, sem epistemologia, funciona o legislador teria atribuído aos assentos uma obrigatoriedade
como prótese para fantasmas. jurídica geral, uma vinculação normativo-jurídica própria das
Precedentes, quando legítimos, não fixam teses normas gerais do sistema jurídico. Desse modo, os assentos
obrigatórias, gerais e generalizantes, para o futuro. O apresentar-se-iam com caráter prescritivo, constituindo verda-
precedente é uma concreta decisão jurisprudencial, vinculada deiras normas jurídicas com o valor de quaisquer outras nor-
como tal ao caso historicamente concreto que decidiu e que se mas do sistema, revestidas de caráter imperativo e força obri-
toma como padrão normativo casuístico em decisões análogas gatória geral, obrigando não apenas os tribunais, mas todas as
ou para casos de aplicação concretamente analógica. restantes autoridades, a comunidade jurídica na sua expressão
global. As semelhanças com o Brasil são óbvias.
O que isso quer dizer? Simples. Que o precedente,
autêntico, não ultrapassa o plano da facticidade; seu A diferença? Aqui, não se declarou a
padrão será sempre do particular (caso) para o particular inconstitucionalidade do precedentalismo, abraçado pelo
(caso). O que pretende fazer o precedentalismo brasileiro é Supremo (sem uma epistemologia clara, diga-se; a doutrina
desexistencializar o Direito: do geral e abstrato (tese) para o é adotada sem que se explique seus fundamentos). Vejam:
particular e concreto (caso). Nesse sentido, fica muito claro que O Tribunal Constitucional português, amparado na doutrina
o (suposto) “precedente” brasileiro está muito mais próximo do 11 STRECK, Lenio Luiz; RAATZ, Igor; MORBACH, Gilberto. Da genealogia
velho (e inconstitucional) instituto dos assentos portugueses dos mecanismos vinculantes brasileiros: dos assentos portugueses às ‘teses’
dos Tribunais Superiores. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM,
do que do stare decisis legítimo. Cheguei a essa conclusão em vol 14,, n. 01, artigo eletrônico 07, 2019.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

de Castanheira Neves, tinha plena ciência de que os assentos falar em ilegalidade do flagrante”.
não se confundem com os precedentes judiciais do common
law, exatamente pela razão por mim acima elencada: o “Não há nulidade da audiência de custódia por suposta
precedente revela-se em uma relação particular-particular, violação da Súmula Vinculante 11 do STF, quando
nunca geral-particular. Embora originados de um acórdão do devidamente justificada a necessidade do uso de
Tribunal Pleno, os assentos não eram o próprio acórdão, mas algemas pelo segregado”.
estritamente as proposições normativas de estrutura geral
Vejamos este: “O tipo penal descrito no artigo 33 da
e abstrata que se autonomizam, formal e normativamente,
Lei 11.343/2006 é de ação múltipla e de natureza permanente,
desses acórdãos. O TC Português disse ser isso incompatível
razão pela qual a prática criminosa se consuma, por exemplo,
com o princípio da separação de poderes, sepultando de vez
a depender do caso concreto, nas condutas de ‘ter em
os assentos.
depósito’, ‘guardar’, ‘transportar’ e ‘trazer consigo’, antes
Aqui? Insiste-se em ignorar que precedentes não mesmo da atuação provocadora da polícia, o que afasta a
são teses. Que, no common law, não apenas há uma série de tese defensiva de flagrante preparado.” A depender do caso
abordagens doutrinárias que sugerem distintas maneiras concreto! Exatamente! A tese é autoimplosiva. Quer dizer
de identificação da ratio decidendi12, em nenhum desses que só essa depende do caso concreto? As outras não? Mas e
entendimentos é possível equiparar a ratio de um caso a uma se depende do caso concreto, como devem ser encarados os
tese generalizante, enunciada pelo Tribunal previamente tais exemplos? O rol é taxativo?
com esse fim.
Sigo. Falei há pouco que, em Portugal – e no Brasil – a
Ilustro com uma provocação. Em março de 2019, o STJ proposta vai muito claramente do geral e abstrato para o par-
divulgou 11, onze, teses, sobre prisão em flagrante. Onze te- ticular. No common law, ao contrário, onde a relação é particu-
ses. Sobre um assunto. Em um mês. Teses, gerais e abstratas, lar-particular, caso-caso, ainda assim há, repito, uma série de
sobre prisão em flagrante. Pois é. E estou falando de um só interpretações distintas acerca do que constitui a força vincu-
exemplo ilustrativo. lante do precedente. Há quem diga que a ratio constitui uma
“No flagrante esperado, a polícia tem notícias de que regra: regra extraída do caso A, a ter seus fundamentos apli-
uma infração penal será cometida e passa a monitorar cáveis no caso B. Do caso para o caso. Há quem sustente um
a atividade do agente de forma a aguardar o melhor modelo de analogia particular, no qual cada caso é tratado
momento para executar a prisão, não havendo que se como um exemplo de decisão acertada, considerados todos
os fatos, servindo então de modelo aos casos subsequentes.
12 STRECK, Lenio Luiz; RAATZ, Igor; MORBACH, Gilberto. Da complexidade Do caso para o caso. E há, finalmente, quem sugira que o
à simplificação na identificação da ratio decidendi: será mesmo que estamos a que há mesmo de vinculante num precedente são os princí-
falar de precedentes no Brasil?. Revista Jurídica Unicuritiba, vol. 01, n. 54,
pp. 317-341, 2019. pios que sustentam a razão de decidir no caso concreto. Do

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

de Castanheira Neves, tinha plena ciência de que os assentos falar em ilegalidade do flagrante”.
não se confundem com os precedentes judiciais do common
law, exatamente pela razão por mim acima elencada: o “Não há nulidade da audiência de custódia por suposta
precedente revela-se em uma relação particular-particular, violação da Súmula Vinculante 11 do STF, quando
nunca geral-particular. Embora originados de um acórdão do devidamente justificada a necessidade do uso de
Tribunal Pleno, os assentos não eram o próprio acórdão, mas algemas pelo segregado”.
estritamente as proposições normativas de estrutura geral
Vejamos este: “O tipo penal descrito no artigo 33 da
e abstrata que se autonomizam, formal e normativamente,
Lei 11.343/2006 é de ação múltipla e de natureza permanente,
desses acórdãos. O TC Português disse ser isso incompatível
razão pela qual a prática criminosa se consuma, por exemplo,
com o princípio da separação de poderes, sepultando de vez
a depender do caso concreto, nas condutas de ‘ter em
os assentos.
depósito’, ‘guardar’, ‘transportar’ e ‘trazer consigo’, antes
Aqui? Insiste-se em ignorar que precedentes não mesmo da atuação provocadora da polícia, o que afasta a
são teses. Que, no common law, não apenas há uma série de tese defensiva de flagrante preparado.” A depender do caso
abordagens doutrinárias que sugerem distintas maneiras concreto! Exatamente! A tese é autoimplosiva. Quer dizer
de identificação da ratio decidendi12, em nenhum desses que só essa depende do caso concreto? As outras não? Mas e
entendimentos é possível equiparar a ratio de um caso a uma se depende do caso concreto, como devem ser encarados os
tese generalizante, enunciada pelo Tribunal previamente tais exemplos? O rol é taxativo?
com esse fim.
Sigo. Falei há pouco que, em Portugal – e no Brasil – a
Ilustro com uma provocação. Em março de 2019, o STJ proposta vai muito claramente do geral e abstrato para o par-
divulgou 11, onze, teses, sobre prisão em flagrante. Onze te- ticular. No common law, ao contrário, onde a relação é particu-
ses. Sobre um assunto. Em um mês. Teses, gerais e abstratas, lar-particular, caso-caso, ainda assim há, repito, uma série de
sobre prisão em flagrante. Pois é. E estou falando de um só interpretações distintas acerca do que constitui a força vincu-
exemplo ilustrativo. lante do precedente. Há quem diga que a ratio constitui uma
“No flagrante esperado, a polícia tem notícias de que regra: regra extraída do caso A, a ter seus fundamentos apli-
uma infração penal será cometida e passa a monitorar cáveis no caso B. Do caso para o caso. Há quem sustente um
a atividade do agente de forma a aguardar o melhor modelo de analogia particular, no qual cada caso é tratado
momento para executar a prisão, não havendo que se como um exemplo de decisão acertada, considerados todos
os fatos, servindo então de modelo aos casos subsequentes.
12 STRECK, Lenio Luiz; RAATZ, Igor; MORBACH, Gilberto. Da complexidade Do caso para o caso. E há, finalmente, quem sugira que o
à simplificação na identificação da ratio decidendi: será mesmo que estamos a que há mesmo de vinculante num precedente são os princí-
falar de precedentes no Brasil?. Revista Jurídica Unicuritiba, vol. 01, n. 54,
pp. 317-341, 2019. pios que sustentam a razão de decidir no caso concreto. Do

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caso para o caso, e isso fica muito claro na medida em que, go de Processo Civil de 2015.
em caso de distinguishing, essa interpretação entende que um É óbvio que um sistema jurídico deve garantir um
caso subsequente é passível da prática quando a justificativa mínimo grau de previsibilidade aos jurisdicionados. Mas
para o resultado atingido na decisão precedente não é capaz não existe maior segurança jurídica que a certeza de que a
de ser razoavelmente aplicada aos fatos distintos que estive- atividade decisória será exercida num contexto de respeito aos
rem em questão, ainda que presente na ratio da decisão13. princípios da tradição jurídico-institucional.
Ao que tudo indica, o precedente no common law Não há melhor maneira de respeitar a lei do que
funciona sempre como o STJ pareceu entender com relação a interpretá-la à (melhor) luz dos princípios que lhe dão forma.
só uma de suas “teses”. Depende do caso concreto. Não há vinculação mais autêntica que respeitar as demandas e
Por vezes devemos desocultar o óbvio. Com relação a as exigências a que deve atender aquele que respeita o ideal de
esses enunciados todos – teses de Tribunais, enunciados de coerência e a integridade do Direito.
workshops de magistrados – é possível apresentar uma pro- Guardar coerência com o Direito exige respeito aos
posta de especificação de quatro categorias no sentido de que, seus princípios próprios, e não uma vinculação mecanicista às
invariavelmente, todos estarão acomodados em uma delas. respostas pretensamente vinculantes que surgem de cima pra
Trabalho com esse modelo desde o início dos anos 90 na classi- baixo. Esse é o ponto. Assim:
ficação das súmulas. Assim: quando os enunciados não forem
(i) inconstitucionais, (ii) contra legem ou (iii) extra legem, serão... Primeiro: um precedente legítimo nunca vai do geral
(iv) tautológicos. Porque se referem às leis. E, por vezes, são para o particular.
enunciados inseridos nessa quarta categoria que surgem para, Segundo: Tribunais não têm a competência de fixar
vejam só, corrigir aqueles que estiverem inseridos nas outras normas gerais e abstratas, sob pena de inconstitucionalidade.
Mas isso é secundário. Por incrível que pareça. O mais Terceiro: vinculante, no civil law, jamais poderá ser um
importante: um sistema jurídico que respeita as exigências do precedente, mas a lei a que ele se refere.
ideal de coerência e integridade dispensa as teses gerais e abs- Quarto: o ideal de coerência e integridade, quando
tratas tribunalícias. Primeiro, porque respeitar a integridade respeitado, já garante tudo que se quer quando se pede
confere estabilidade decisória e segurança jurídica ao sistema; segurança jurídica.
segundo, porque uma vinculação cega, rígida, mecânica pode
Quinto: teses mecânicas, rígidas, tornam um sistema
contrariar o próprio ideal de integridade, consagrado no Códi-
hermético e, atreladas a um paradigma já superado, podem
contrariar o próprio ideal de integridade.
13 BANKOWSKI, Zenon; MACCORMICK, Neil; MORAWSKI, Lech; RUIZ
MIGUEL, Alfonso. Rationales for Precedent. In: MACCORMICK, Neil; Dizem que o Brasil tem um sistema de precedentes a par-
SUMMERS, Robert S. GOODHART, Arthur L. Interpreting Precedents. Nova
York: Routledge, 2016. tir do qual teremos segurança jurídica. Ora, o que temos é uma

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

caso para o caso, e isso fica muito claro na medida em que, go de Processo Civil de 2015.
em caso de distinguishing, essa interpretação entende que um É óbvio que um sistema jurídico deve garantir um
caso subsequente é passível da prática quando a justificativa mínimo grau de previsibilidade aos jurisdicionados. Mas
para o resultado atingido na decisão precedente não é capaz não existe maior segurança jurídica que a certeza de que a
de ser razoavelmente aplicada aos fatos distintos que estive- atividade decisória será exercida num contexto de respeito aos
rem em questão, ainda que presente na ratio da decisão13. princípios da tradição jurídico-institucional.
Ao que tudo indica, o precedente no common law Não há melhor maneira de respeitar a lei do que
funciona sempre como o STJ pareceu entender com relação a interpretá-la à (melhor) luz dos princípios que lhe dão forma.
só uma de suas “teses”. Depende do caso concreto. Não há vinculação mais autêntica que respeitar as demandas e
Por vezes devemos desocultar o óbvio. Com relação a as exigências a que deve atender aquele que respeita o ideal de
esses enunciados todos – teses de Tribunais, enunciados de coerência e a integridade do Direito.
workshops de magistrados – é possível apresentar uma pro- Guardar coerência com o Direito exige respeito aos
posta de especificação de quatro categorias no sentido de que, seus princípios próprios, e não uma vinculação mecanicista às
invariavelmente, todos estarão acomodados em uma delas. respostas pretensamente vinculantes que surgem de cima pra
Trabalho com esse modelo desde o início dos anos 90 na classi- baixo. Esse é o ponto. Assim:
ficação das súmulas. Assim: quando os enunciados não forem
(i) inconstitucionais, (ii) contra legem ou (iii) extra legem, serão... Primeiro: um precedente legítimo nunca vai do geral
(iv) tautológicos. Porque se referem às leis. E, por vezes, são para o particular.
enunciados inseridos nessa quarta categoria que surgem para, Segundo: Tribunais não têm a competência de fixar
vejam só, corrigir aqueles que estiverem inseridos nas outras normas gerais e abstratas, sob pena de inconstitucionalidade.
Mas isso é secundário. Por incrível que pareça. O mais Terceiro: vinculante, no civil law, jamais poderá ser um
importante: um sistema jurídico que respeita as exigências do precedente, mas a lei a que ele se refere.
ideal de coerência e integridade dispensa as teses gerais e abs- Quarto: o ideal de coerência e integridade, quando
tratas tribunalícias. Primeiro, porque respeitar a integridade respeitado, já garante tudo que se quer quando se pede
confere estabilidade decisória e segurança jurídica ao sistema; segurança jurídica.
segundo, porque uma vinculação cega, rígida, mecânica pode
Quinto: teses mecânicas, rígidas, tornam um sistema
contrariar o próprio ideal de integridade, consagrado no Códi-
hermético e, atreladas a um paradigma já superado, podem
contrariar o próprio ideal de integridade.
13 BANKOWSKI, Zenon; MACCORMICK, Neil; MORAWSKI, Lech; RUIZ
MIGUEL, Alfonso. Rationales for Precedent. In: MACCORMICK, Neil; Dizem que o Brasil tem um sistema de precedentes a par-
SUMMERS, Robert S. GOODHART, Arthur L. Interpreting Precedents. Nova
York: Routledge, 2016. tir do qual teremos segurança jurídica. Ora, o que temos é uma

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proposta de fixação de teses gerais e abstratas tribunalícias que Trata-se do fetichismo das palavras, que, de um lado,
desexistencializam o Direito, ignorando que o fenômeno jurídi- cai no problema semântico, de outro, cai no convenciona-
co, interpretativo por essência, só se dá na facticidade. lismo. Algo como “antes dos conceitos, nada existe ou, se
O que dizer, então, do recente fenômeno dos enuncia- existe, não tem relevância suficiente para alterar o conceito
dos no direito brasileiro, produzidos em workshops de magis- que formularei”.
trados que, por vezes, chegam a dispor contra legem? Veja-se Percebem o paradoxo comum a esses problemas to-
até que ponto chega o caos do decisionismo brasileiro. Juízes dos? Precedentes (que não o são genuinamente, diga-se),
reunindo-se para elaborar conceitos abstratos, com a preten- enunciados, súmulas, enfim... a velha busca pela verdade
são de responder antes mesmo de a pergunta surgir, que po- correspondencial. Mas como buscar essa verdade correspon-
dem ser aplicados à self service. Como os precedentes [sic]. dencial quando sequer explicito o que exatamente desejo
Ora, Heidegger já destruiu isso de há muito: a proposi- fazer corresponder? Ignora-se a facticidade, produz-se um
ção não é o lugar da verdade; ao contrário, a verdade é o lugar da conceito sem coisa.
proposição. E veja: trata-se de verdade como tal, verdade trans- Ernildo Stein lembra – e bem, como de costume – que
cendental. Não acredito que verdade seja consenso, menos não é a realidade que é contraditória; os nossos discursos so-
ainda que seja algo subjetivo, apenas uma palavra sem sentido bre a realidade é que são contraditórios. É precisamente por
da linguagem ordinária. Falo de uma verdade fundamentada, isso que temos de ter cuidado para não confundir a estrutura
para a qual se tem critérios por meio dos quais será possível dos nossos discursos com a estrutura da realidade.
dizê-la ou não. Como dizia Heráclito: o logos das coisas é um; o logos
Afinal, então, como se pode fazer, ou mesmo pretender dos filósofos – intérpretes –, outro. Por isso a simetria entre os
fazer, proposições “adivinhatórias”, prospectivas? Critérios, dois logos será sempre ideal. Ou... ilusória.
critérios. Essa é a chave. Veja-se, ilustrando, o personagem Roquentin, de
Quando a proposição se desprende do contexto, seu La Nausée (A Náusea), de Sartre. Roquentin espera que a
fundamento único (e último) é, precisamente, o sujeito que realidade, para ser descrita, já deveria possuir as próprias
põe a proposição (seja ela o enunciado, o precedente, a súmu- estruturas da própria linguagem. Genial, porque isso também
la). É ou não um verdadeiro retorno à relação sujeito-objeto? estava em Wittgenstein (o primeiro, no Tratactus), de maneira
Pura personificação da filosofia da consciência e seu problema que a comunidade, de forma lógica, seria a precondição para a
da semântica. Um sujeito propõe. Pois bem. Mas de que lugar? adequação representacional. Ou seja, resta que a pretensão de
Qual é a fundamentação? Uma outra palavra ou um conjunto isomorfia é ilusória. Impossível.
de palavras. Uma analítica que se autofunda. Como diz Rose-
Assim, quando afirmo que é o caso concreto que definirá
miro Leal, uma Tópica sem Tópica.
o sentido de uma determinada lei e que, no direito, não pode

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proposta de fixação de teses gerais e abstratas tribunalícias que Trata-se do fetichismo das palavras, que, de um lado,
desexistencializam o Direito, ignorando que o fenômeno jurídi- cai no problema semântico, de outro, cai no convenciona-
co, interpretativo por essência, só se dá na facticidade. lismo. Algo como “antes dos conceitos, nada existe ou, se
O que dizer, então, do recente fenômeno dos enuncia- existe, não tem relevância suficiente para alterar o conceito
dos no direito brasileiro, produzidos em workshops de magis- que formularei”.
trados que, por vezes, chegam a dispor contra legem? Veja-se Percebem o paradoxo comum a esses problemas to-
até que ponto chega o caos do decisionismo brasileiro. Juízes dos? Precedentes (que não o são genuinamente, diga-se),
reunindo-se para elaborar conceitos abstratos, com a preten- enunciados, súmulas, enfim... a velha busca pela verdade
são de responder antes mesmo de a pergunta surgir, que po- correspondencial. Mas como buscar essa verdade correspon-
dem ser aplicados à self service. Como os precedentes [sic]. dencial quando sequer explicito o que exatamente desejo
Ora, Heidegger já destruiu isso de há muito: a proposi- fazer corresponder? Ignora-se a facticidade, produz-se um
ção não é o lugar da verdade; ao contrário, a verdade é o lugar da conceito sem coisa.
proposição. E veja: trata-se de verdade como tal, verdade trans- Ernildo Stein lembra – e bem, como de costume – que
cendental. Não acredito que verdade seja consenso, menos não é a realidade que é contraditória; os nossos discursos so-
ainda que seja algo subjetivo, apenas uma palavra sem sentido bre a realidade é que são contraditórios. É precisamente por
da linguagem ordinária. Falo de uma verdade fundamentada, isso que temos de ter cuidado para não confundir a estrutura
para a qual se tem critérios por meio dos quais será possível dos nossos discursos com a estrutura da realidade.
dizê-la ou não. Como dizia Heráclito: o logos das coisas é um; o logos
Afinal, então, como se pode fazer, ou mesmo pretender dos filósofos – intérpretes –, outro. Por isso a simetria entre os
fazer, proposições “adivinhatórias”, prospectivas? Critérios, dois logos será sempre ideal. Ou... ilusória.
critérios. Essa é a chave. Veja-se, ilustrando, o personagem Roquentin, de
Quando a proposição se desprende do contexto, seu La Nausée (A Náusea), de Sartre. Roquentin espera que a
fundamento único (e último) é, precisamente, o sujeito que realidade, para ser descrita, já deveria possuir as próprias
põe a proposição (seja ela o enunciado, o precedente, a súmu- estruturas da própria linguagem. Genial, porque isso também
la). É ou não um verdadeiro retorno à relação sujeito-objeto? estava em Wittgenstein (o primeiro, no Tratactus), de maneira
Pura personificação da filosofia da consciência e seu problema que a comunidade, de forma lógica, seria a precondição para a
da semântica. Um sujeito propõe. Pois bem. Mas de que lugar? adequação representacional. Ou seja, resta que a pretensão de
Qual é a fundamentação? Uma outra palavra ou um conjunto isomorfia é ilusória. Impossível.
de palavras. Uma analítica que se autofunda. Como diz Rose-
Assim, quando afirmo que é o caso concreto que definirá
miro Leal, uma Tópica sem Tópica.
o sentido de uma determinada lei e que, no direito, não pode

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existir “conceito sem coisa”, quero apenas insistir na tese de que cios aos pulmões e, consequentemente, diminuir a expectativa
não há essências ou conceitos universais. Mas, se os sentidos se de vida da população. Trabalhando a partir dessa lógica, um
dão a partir da concretude, enfim, das situações de aplicação dos professores sugeria que todas as palavras, especialmente
(applicatio), isto não significa que não haja algo antes do caso as longas, fossem suprimidas, de forma que comunicássemo-
concreto. -nos apenas recorrendo apenas ao uso de sílabas. A solução
Ou seja, não basta dizer que a lei não contém o direito. não agradou a todos: outro acadêmico de Lagado sugeria que
Não basta “descolar” a norma do texto ou a palavra da coisa. a empreitada fosse mais além, abolindo as palavras de uma
vez por todas. Em vez de palavras — essas coisinhas tão incon-
Por sinal, isso não é novo. Os sofistas sofreram uma venientes, que variam de idioma para idioma —, usássemos...
crítica contundente de Sócrates, no diálogo Crátilo, escrito objetos. Se eu pretendo falar de um livro, diz o professor, por
por Platão. Crátilo acreditava na perfeição das palavras, por que não mostrar um livro? Livro, libro, book, Buch, livre... objeti-
acreditar que os nomes tinham origens divinas — o que os ficar a palavra é muito mais simples.
tornaria necessariamente corretos. Sócrates, porém, traz à sua
Não precisávamos de nada disso... tivéssemos
atenção a imperfeição de várias palavras, incapazes de capturar
compreendido as exigências da coerência e da integridade.
verdadeiramente os objetos que pretendiam significar.
Exatamente porque, quando se tem coerência e integridade,
O descontentamento de Crátilo com isso que, para não há que se falar em mecanismos vinculantes da forma
ele, significava uma verdadeira ausência de estabilidade do como esses existem no ordenamento brasileiro.
mundo, levou-o a defender... que não mais falássemos, mas
Por uma série de fatores: (i) temos um sistema de civil
apenas levantássemos um dedo quando desejássemos nos
law, no qual, por razões tão óbvias que são quase autoexplicati-
expressar.
vas, o que há de vinculante não é a súmula, a decisão, o enun-
Pronto. Ora, se o simples convencionalismo (a não ciado, o precedente, mas a(s) lei(s) a que esses todos referem-se; (ii)
imanência entre palavras e coisas, entre significantes e o respeito à coerência e à integridade já, de pronto, resolve(ria)
significados) bastasse, os bravos sofistas já teriam resolvido m aquilo que a atribuição de efeito vinculante às “teses” tribu-
esse problema mais de cinco séculos antes de Cristo. nalícias tem como sua razão de ser; notadamente, a estabilidade
Vejam o genial Swift, em Gulliver: é em Lagado, capital decisória, a previsibilidade, a segurança jurídica; e, somando-se
da nação de Balnibarbi, que Gulliver encontra a Academia de esses dois elementos, temos que (iii) uma vez positivado – exa-
Projetistas. Entre seus diversos projetos, destaco, aqui, uma de tamente porque o Brasil é um país na tradição do civil law, e
suas salas, na qual os sábios locais discutiam as possibilidades porque a lei é o que há de vinculante numa democracia –, o ide-
de se simplificar a linguagem. Era um consenso em Balnibarbi al de coerência e integridade simplesmente deve ser respeitado,
que o discurso, além de complexo, fazia mal à saúde — afinal, por uma questão deontológica. A lei exige, e o Direito é uma
o simples ato de falar poderia, a longo prazo, trazer malefí- questão de respeito à lei.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

existir “conceito sem coisa”, quero apenas insistir na tese de que cios aos pulmões e, consequentemente, diminuir a expectativa
não há essências ou conceitos universais. Mas, se os sentidos se de vida da população. Trabalhando a partir dessa lógica, um
dão a partir da concretude, enfim, das situações de aplicação dos professores sugeria que todas as palavras, especialmente
(applicatio), isto não significa que não haja algo antes do caso as longas, fossem suprimidas, de forma que comunicássemo-
concreto. -nos apenas recorrendo apenas ao uso de sílabas. A solução
Ou seja, não basta dizer que a lei não contém o direito. não agradou a todos: outro acadêmico de Lagado sugeria que
Não basta “descolar” a norma do texto ou a palavra da coisa. a empreitada fosse mais além, abolindo as palavras de uma
vez por todas. Em vez de palavras — essas coisinhas tão incon-
Por sinal, isso não é novo. Os sofistas sofreram uma venientes, que variam de idioma para idioma —, usássemos...
crítica contundente de Sócrates, no diálogo Crátilo, escrito objetos. Se eu pretendo falar de um livro, diz o professor, por
por Platão. Crátilo acreditava na perfeição das palavras, por que não mostrar um livro? Livro, libro, book, Buch, livre... objeti-
acreditar que os nomes tinham origens divinas — o que os ficar a palavra é muito mais simples.
tornaria necessariamente corretos. Sócrates, porém, traz à sua
Não precisávamos de nada disso... tivéssemos
atenção a imperfeição de várias palavras, incapazes de capturar
compreendido as exigências da coerência e da integridade.
verdadeiramente os objetos que pretendiam significar.
Exatamente porque, quando se tem coerência e integridade,
O descontentamento de Crátilo com isso que, para não há que se falar em mecanismos vinculantes da forma
ele, significava uma verdadeira ausência de estabilidade do como esses existem no ordenamento brasileiro.
mundo, levou-o a defender... que não mais falássemos, mas
Por uma série de fatores: (i) temos um sistema de civil
apenas levantássemos um dedo quando desejássemos nos
law, no qual, por razões tão óbvias que são quase autoexplicati-
expressar.
vas, o que há de vinculante não é a súmula, a decisão, o enun-
Pronto. Ora, se o simples convencionalismo (a não ciado, o precedente, mas a(s) lei(s) a que esses todos referem-se; (ii)
imanência entre palavras e coisas, entre significantes e o respeito à coerência e à integridade já, de pronto, resolve(ria)
significados) bastasse, os bravos sofistas já teriam resolvido m aquilo que a atribuição de efeito vinculante às “teses” tribu-
esse problema mais de cinco séculos antes de Cristo. nalícias tem como sua razão de ser; notadamente, a estabilidade
Vejam o genial Swift, em Gulliver: é em Lagado, capital decisória, a previsibilidade, a segurança jurídica; e, somando-se
da nação de Balnibarbi, que Gulliver encontra a Academia de esses dois elementos, temos que (iii) uma vez positivado – exa-
Projetistas. Entre seus diversos projetos, destaco, aqui, uma de tamente porque o Brasil é um país na tradição do civil law, e
suas salas, na qual os sábios locais discutiam as possibilidades porque a lei é o que há de vinculante numa democracia –, o ide-
de se simplificar a linguagem. Era um consenso em Balnibarbi al de coerência e integridade simplesmente deve ser respeitado,
que o discurso, além de complexo, fazia mal à saúde — afinal, por uma questão deontológica. A lei exige, e o Direito é uma
o simples ato de falar poderia, a longo prazo, trazer malefí- questão de respeito à lei.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

O que isso tudo quer dizer? Sintetizo com um quarto integridade do que a repetição de erros pretéritos simplesmente
elemento: (iv) respeitar as exigências da integridade, por vezes, porque o Tribunal que errou tinha o condão de atribuir efeito
é antitético a uma aplicação mecânica de mecanismos vinculantes. vinculante ao próprio erro.
Da soma de todos esses quatro fatores por mim elencados, Aplicação mecânica, seja de leis, de rationes decidendi, de
meu ponto torna-se muito simples: não apenas o respeito enunciados, de teses, de súmulas, seja do que for – aplicação me-
à coerência e à integridade do ordenamento dispensam a cânica é ignorar que a integridade está para muito além de uma
atribuição de efeito vinculante a enunciados produto dos rigidez ainda atrelada a um paradigma que não se abriu à facti-
Tribunais e Cortes Superiores e Supremas (para usar os termos cidade.
dos precedentalistas), a atribuição própria desse efeito pode
contrariar as exigências que a integridade impõe. Veja-se: o que é isto – o Direito? É um fenômeno interpre-
tativo; e porque interpretativo, é um fenômeno que se insere em
Por uma razão muito simples: coerência e integridade uma dada tradição. Atribuir efeito vinculante, ou pretender fazê-
é uma questão de respeito à lei interpretada sob sua melhor -lo, a “teses” que exsurgem da atividade decisória dos Tribunais,
luz; a decisão judicial íntegra e coerente é aquela que se man- e (pretender) exigir uma aplicação subsequente por parte dos
tém fiel às exigências que o Direito impõe em uma democra- tribunais ditos “inferiores” é desexistencializar o Direito. Esse é
cia, e essas exigências impõem ao intérprete os limites colo- o ponto.
cados pela tradição jurídica. Muito mais do que uma rigidez
interpretativa; aliás, pelo contrário.
Dou um passo atrás para tornar isso tudo mais claro. Não
é difícil imaginar por que defino os mecanismos vinculantes
como a pretensão de respostas antes das perguntas: são
enunciados que se pretendem aplicáveis ex ante, dado que –
supostamente – aplicáveis a casos posteriores.
Só que, vejam: se as respostas vêm antes das perguntas,
assim que essas perguntas surgirem, essas respostas podem
estar erradas. E a aplicação de respostas erradas contraria as
exigências da integridade. E, por essa razão, não se encaixam
em nossa prática jurídica; porque é a nossa prática jurídica
que diz que se deve respeitar a coerência e a integridade do
sistema.
Não há nada mais contrário ao ideal de coerência e

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

O que isso tudo quer dizer? Sintetizo com um quarto integridade do que a repetição de erros pretéritos simplesmente
elemento: (iv) respeitar as exigências da integridade, por vezes, porque o Tribunal que errou tinha o condão de atribuir efeito
é antitético a uma aplicação mecânica de mecanismos vinculantes. vinculante ao próprio erro.
Da soma de todos esses quatro fatores por mim elencados, Aplicação mecânica, seja de leis, de rationes decidendi, de
meu ponto torna-se muito simples: não apenas o respeito enunciados, de teses, de súmulas, seja do que for – aplicação me-
à coerência e à integridade do ordenamento dispensam a cânica é ignorar que a integridade está para muito além de uma
atribuição de efeito vinculante a enunciados produto dos rigidez ainda atrelada a um paradigma que não se abriu à facti-
Tribunais e Cortes Superiores e Supremas (para usar os termos cidade.
dos precedentalistas), a atribuição própria desse efeito pode
contrariar as exigências que a integridade impõe. Veja-se: o que é isto – o Direito? É um fenômeno interpre-
tativo; e porque interpretativo, é um fenômeno que se insere em
Por uma razão muito simples: coerência e integridade uma dada tradição. Atribuir efeito vinculante, ou pretender fazê-
é uma questão de respeito à lei interpretada sob sua melhor -lo, a “teses” que exsurgem da atividade decisória dos Tribunais,
luz; a decisão judicial íntegra e coerente é aquela que se man- e (pretender) exigir uma aplicação subsequente por parte dos
tém fiel às exigências que o Direito impõe em uma democra- tribunais ditos “inferiores” é desexistencializar o Direito. Esse é
cia, e essas exigências impõem ao intérprete os limites colo- o ponto.
cados pela tradição jurídica. Muito mais do que uma rigidez
interpretativa; aliás, pelo contrário.
Dou um passo atrás para tornar isso tudo mais claro. Não
é difícil imaginar por que defino os mecanismos vinculantes
como a pretensão de respostas antes das perguntas: são
enunciados que se pretendem aplicáveis ex ante, dado que –
supostamente – aplicáveis a casos posteriores.
Só que, vejam: se as respostas vêm antes das perguntas,
assim que essas perguntas surgirem, essas respostas podem
estar erradas. E a aplicação de respostas erradas contraria as
exigências da integridade. E, por essa razão, não se encaixam
em nossa prática jurídica; porque é a nossa prática jurídica
que diz que se deve respeitar a coerência e a integridade do
sistema.
Não há nada mais contrário ao ideal de coerência e

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O “saber nenhum” que obnubila a
hermenêutica

MacIntyre abre After Virtue, sua magnum opus, com uma


metáfora “perturbadora” (“a disquieting suggestion”): ele pede
que imaginemos, hipoteticamente, um cenário absolutamente
catastrófico nas ciências naturais, no qual a população em
geral passa a culpar os cientistas por uma série de desastres
naturais. Essa responsabilização acaba por gerar uma série de
revoltas populares — laboratórios são queimados, físicos são
linchados, livros são queimados.
Mais do que isso, as revoltas acabam por levar ao
poder um movimento político chamado Know-Nothing (algo
que poderia ser traduzido como “Saber-Nenhum”, “Nada-
Saber”), que, além de proibir o ensino científico nas escolas
e universidades, prende e executa os cientistas que ainda
exerciam a função.
Algum tempo depois, há uma reação contra o Know-
Nothing: um grupo de pessoas pretende trazer a ciência de
volta à tona. O problema é que esse grupo, embora iluminado,
esqueceu grande parte do que a ciência realmente era; havia
como ser diferente? Tudo que eles ainda tinham consigo era
nada mais que “fragmentos”: um certo “conhecimento sobre
alguns experimentos do passado”, mas completamente
“apartado de qualquer conhecimento acerca do contexto
teórico que a eles conferia significado”; “meios capítulos de
livros”; “páginas individuais de alguns artigos, nem sempre
83
O “saber nenhum” que obnubila a
hermenêutica

MacIntyre abre After Virtue, sua magnum opus, com uma


metáfora “perturbadora” (“a disquieting suggestion”): ele pede
que imaginemos, hipoteticamente, um cenário absolutamente
catastrófico nas ciências naturais, no qual a população em
geral passa a culpar os cientistas por uma série de desastres
naturais. Essa responsabilização acaba por gerar uma série de
revoltas populares — laboratórios são queimados, físicos são
linchados, livros são queimados.
Mais do que isso, as revoltas acabam por levar ao
poder um movimento político chamado Know-Nothing (algo
que poderia ser traduzido como “Saber-Nenhum”, “Nada-
Saber”), que, além de proibir o ensino científico nas escolas
e universidades, prende e executa os cientistas que ainda
exerciam a função.
Algum tempo depois, há uma reação contra o Know-
Nothing: um grupo de pessoas pretende trazer a ciência de
volta à tona. O problema é que esse grupo, embora iluminado,
esqueceu grande parte do que a ciência realmente era; havia
como ser diferente? Tudo que eles ainda tinham consigo era
nada mais que “fragmentos”: um certo “conhecimento sobre
alguns experimentos do passado”, mas completamente
“apartado de qualquer conhecimento acerca do contexto
teórico que a eles conferia significado”; “meios capítulos de
livros”; “páginas individuais de alguns artigos, nem sempre
83
COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

legíveis”; enfim, fragmentos, e nada além disso. vam como ciência era incompatível com o subjetivismo”.
Esse saber, embora fragmentado, passou a ser reutilizado Avancemos a partir da pergunta colocada pelo próprio
em práticas que (re)levavam nomes como “física”, “química” e MacIntyre: qual seria a justificativa para construir hipotetica-
“biologia”. A partir desses novos-velhos, velhos-novos tópicos, mente esse mundo distópico, em “grave estado de desordem”,
ressignificados a partir dos fragmentos, “adultos discutiam similar àquele que “alguns autores de ficção científica já cons-
entre si acerca dos méritos da teoria da relatividade, teoria truíram”? O próprio autor responde, sustentando que a hipó-
da evolução, teoria da combustão”, “possuindo apenas um tese que planeja desenvolver é a de que “no mundo real, que
conhecimento muito parcial sobre cada uma delas”. Crianças habitamos, a linguagem moral está no mesmo estado de grave
aprendiam e “decoravam as parcelas sobreviventes da tabela desordem que aquele pelo qual passava a linguagem da ciên-
periódica”, e “recitavam como palavras mágicas alguns dos cia natural no mundo imaginário que descrevi”.
teoremas de Euclides”. O problema? “Ninguém, ou quase Tudo o que temos hoje, para MacIntyre, são nada
ninguém, percebia que aquilo que se fazia não era, de forma mais que “fragmentos de um sistema conceitual, partes que
alguma, ciência natural em qualquer sentido autêntico”. agora carecem dos contextos dos quais seus significados
Nessa hipotéticas (e catastróficas) circunstâncias de originalmente derivam”; temos “simulacra” da moralidade,
um saber fragmentado — que era o saber disponível —, os utilizamos muitas de seus conceitos centrais, mas “perdemos
cidadãos “utilizam expressões como ‘neutrino’, ‘massa’, ‘gra- — em grande parte, senão completamente — nossa
vidade específica’, ‘massa atômica’, de modo sistemático e, compreensão, prática e teórica, da moralidade”.
geralmente, inter-relacionado”, de um modo que, em algum Se os conceitos de massa, gravidade, etc., eram
sentido, “em maior ou menor grau”, “parecia-se com os meios utilizados de forma fragmentária — e, portanto, afastados de
pelos quais tais expressões eram empregadas e utilizadas an- seus sentidos originais (e autênticos) — na distopia das ciências
tes que o conhecimento científico tivesse sido tão grandiosa- naturais, MacIntyre diz que é exatamente isso que ocorre, de
mente perdido”. fato, com relação aos conceitos próprios da linguagem moral
Ainda assim, “muitas das crenças outrora pressupostas em nosso debate moral contemporâneo: conceitos como
pelo uso dessas expressões foram perdidas”, de modo que, no “virtude”, “justiça”, “dever”, todos tornaram-se outra coisa,
cenário do saber fragmentado, havia um “elemento de arbitra- com um significado distinto daquele que se identificava na
riedade e até de escolha em sua aplicação” que pareceria, a nós, variedade de contextos em que se originavam.
muito surpreendente. “Premissas aparentemente rivais e anta- “Kant deixa de ser parte da história da Prússia”, “Hume
gônicas pelas quais nenhum tipo de argumento seria possível já não é mais um escocês”: tratamos “Platão e Hume e Mill”
tornar-se-iam abundantes”, de modo que “teorias subjetivistas como contemporâneos um do outro e de nós próprios, abstra-
da ciência surgiriam”, e seriam “criticadas por aqueles que sus- ímos suas obras de seu contexto cultural e social e conferimos
tentavam que a noção de verdade subjacente àquilo que toma-
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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

legíveis”; enfim, fragmentos, e nada além disso. vam como ciência era incompatível com o subjetivismo”.
Esse saber, embora fragmentado, passou a ser reutilizado Avancemos a partir da pergunta colocada pelo próprio
em práticas que (re)levavam nomes como “física”, “química” e MacIntyre: qual seria a justificativa para construir hipotetica-
“biologia”. A partir desses novos-velhos, velhos-novos tópicos, mente esse mundo distópico, em “grave estado de desordem”,
ressignificados a partir dos fragmentos, “adultos discutiam similar àquele que “alguns autores de ficção científica já cons-
entre si acerca dos méritos da teoria da relatividade, teoria truíram”? O próprio autor responde, sustentando que a hipó-
da evolução, teoria da combustão”, “possuindo apenas um tese que planeja desenvolver é a de que “no mundo real, que
conhecimento muito parcial sobre cada uma delas”. Crianças habitamos, a linguagem moral está no mesmo estado de grave
aprendiam e “decoravam as parcelas sobreviventes da tabela desordem que aquele pelo qual passava a linguagem da ciên-
periódica”, e “recitavam como palavras mágicas alguns dos cia natural no mundo imaginário que descrevi”.
teoremas de Euclides”. O problema? “Ninguém, ou quase Tudo o que temos hoje, para MacIntyre, são nada
ninguém, percebia que aquilo que se fazia não era, de forma mais que “fragmentos de um sistema conceitual, partes que
alguma, ciência natural em qualquer sentido autêntico”. agora carecem dos contextos dos quais seus significados
Nessa hipotéticas (e catastróficas) circunstâncias de originalmente derivam”; temos “simulacra” da moralidade,
um saber fragmentado — que era o saber disponível —, os utilizamos muitas de seus conceitos centrais, mas “perdemos
cidadãos “utilizam expressões como ‘neutrino’, ‘massa’, ‘gra- — em grande parte, senão completamente — nossa
vidade específica’, ‘massa atômica’, de modo sistemático e, compreensão, prática e teórica, da moralidade”.
geralmente, inter-relacionado”, de um modo que, em algum Se os conceitos de massa, gravidade, etc., eram
sentido, “em maior ou menor grau”, “parecia-se com os meios utilizados de forma fragmentária — e, portanto, afastados de
pelos quais tais expressões eram empregadas e utilizadas an- seus sentidos originais (e autênticos) — na distopia das ciências
tes que o conhecimento científico tivesse sido tão grandiosa- naturais, MacIntyre diz que é exatamente isso que ocorre, de
mente perdido”. fato, com relação aos conceitos próprios da linguagem moral
Ainda assim, “muitas das crenças outrora pressupostas em nosso debate moral contemporâneo: conceitos como
pelo uso dessas expressões foram perdidas”, de modo que, no “virtude”, “justiça”, “dever”, todos tornaram-se outra coisa,
cenário do saber fragmentado, havia um “elemento de arbitra- com um significado distinto daquele que se identificava na
riedade e até de escolha em sua aplicação” que pareceria, a nós, variedade de contextos em que se originavam.
muito surpreendente. “Premissas aparentemente rivais e anta- “Kant deixa de ser parte da história da Prússia”, “Hume
gônicas pelas quais nenhum tipo de argumento seria possível já não é mais um escocês”: tratamos “Platão e Hume e Mill”
tornar-se-iam abundantes”, de modo que “teorias subjetivistas como contemporâneos um do outro e de nós próprios, abstra-
da ciência surgiriam”, e seriam “criticadas por aqueles que sus- ímos suas obras de seu contexto cultural e social e conferimos
tentavam que a noção de verdade subjacente àquilo que toma-
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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

a elas uma falsa independência. Esse (ainda) não é o diagnós- por um sem-número de abordagens, propostas, posturas,
tico (completo) oferecido por MacIntyre; é, em verdade, uma institutos e “métodos” que, igualmente, servem tão somente
das causas e um dos sintomas que nos remete ao diagnóstico de justificativas fictícias para o decisionismo judicial.
per se: o debate moral contemporâneo tem sido, segundo Ma- Se não é possível um consenso em uma sociedade
cIntyre, dominado pelo emotivismo, “a doutrina segundo a dominada pelo emotivismo, se há uma rejeição à objetividade
qual juízos valorativos” — ou, mais especificamente, “todos moral domina a raiz dos desacordos, a resposta, objetiva, deve
os juízos morais” — “são nada mais que expressões de prefe- vir a partir da objetividade da tradição do próprio Direito.
rência, de atitude, de sentimentos, na medida em que tenham
caráter moral ou valorativo”. Vivemos em tempos nos quais o pluralismo tornou-
se um relativismo raso que permite que se diga qualquer
Por que digo, por que trago tudo isso a este livro que coisa sobre qualquer coisa. Um pesadelo para um ouriço
trata de hermenêutica jurídica? como Dworkin, que visualizava um Direito capaz de
Porque, no Direito, estamos vivendo a era do prover aos cidadãos respostas institucionalmente justas,
emotivismo. A era do saber nenhum. A era da distopia de justamente institucionais, equânimes, íntegras, e dentro da
MacIntyre. E isso é muito grave. ordem constitucional, observados os limites semânticos e as
É grave porque, na era do emotivismo, o Direito possibilidades interpretativas do texto.
deveria ser exatamente o critério para resolver os Ora, não se admitem mais posturas solipsistas e já
desacordos. Pois é: emotivizaram o critério. Direito virou aprendemos no passado que isso não dá certo. O processo
questão de opinião, de juízo subjetivo. Trocaram o Direito de decisão deve ser compartilhado de forma transparente e
pelo emotivismo da auctoritas. fundamentada, respeitando a coerência e a integridade do Direito
Como na distopia de MacIntyre, como em seu diagnóstico – o que já foi, no Brasil, institucionalizado de forma até mesmo
acerca do discurso moral contemporâneo, também o discurso positivada, com muita luta, no Código de Processo Civil 2015.
jurídico brasileiro de nosso tempo parece convencido (ou, no Jürgen Habermas é sábio quando diz que é por
mínimo, condescendente) diante da ideia que não há uma intermédio do procedimento argumentativo que se busca
objetividade autêntica naquilo que se diz no Direito. uma cooperação verdadeira, e que existe uma relação de
Se, para MacIntyre, o discurso moral contemporâneo dependência nos processos democráticos das decisões
pode ser caracterizado por uma miríade de enunciados que, públicas, legislativas e judiciais. Aliado ao pensamento de
na mesma medida em que se pretendem teorias éticas, são Dworkin, percebemos que um empreendimento político dessa
nada mais que ficções que servem meramente a conferir uma magnitude está em constante desenvolvimento.
espécie de verniz filosófico a posturas subjetivistas, pensamos Este reconhecimento é ainda mais necessário no
que o direito brasileiro pode ser igualmente caracterizado contexto brasileiro, caracterizado pela intensa judicialização,

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

a elas uma falsa independência. Esse (ainda) não é o diagnós- por um sem-número de abordagens, propostas, posturas,
tico (completo) oferecido por MacIntyre; é, em verdade, uma institutos e “métodos” que, igualmente, servem tão somente
das causas e um dos sintomas que nos remete ao diagnóstico de justificativas fictícias para o decisionismo judicial.
per se: o debate moral contemporâneo tem sido, segundo Ma- Se não é possível um consenso em uma sociedade
cIntyre, dominado pelo emotivismo, “a doutrina segundo a dominada pelo emotivismo, se há uma rejeição à objetividade
qual juízos valorativos” — ou, mais especificamente, “todos moral domina a raiz dos desacordos, a resposta, objetiva, deve
os juízos morais” — “são nada mais que expressões de prefe- vir a partir da objetividade da tradição do próprio Direito.
rência, de atitude, de sentimentos, na medida em que tenham
caráter moral ou valorativo”. Vivemos em tempos nos quais o pluralismo tornou-
se um relativismo raso que permite que se diga qualquer
Por que digo, por que trago tudo isso a este livro que coisa sobre qualquer coisa. Um pesadelo para um ouriço
trata de hermenêutica jurídica? como Dworkin, que visualizava um Direito capaz de
Porque, no Direito, estamos vivendo a era do prover aos cidadãos respostas institucionalmente justas,
emotivismo. A era do saber nenhum. A era da distopia de justamente institucionais, equânimes, íntegras, e dentro da
MacIntyre. E isso é muito grave. ordem constitucional, observados os limites semânticos e as
É grave porque, na era do emotivismo, o Direito possibilidades interpretativas do texto.
deveria ser exatamente o critério para resolver os Ora, não se admitem mais posturas solipsistas e já
desacordos. Pois é: emotivizaram o critério. Direito virou aprendemos no passado que isso não dá certo. O processo
questão de opinião, de juízo subjetivo. Trocaram o Direito de decisão deve ser compartilhado de forma transparente e
pelo emotivismo da auctoritas. fundamentada, respeitando a coerência e a integridade do Direito
Como na distopia de MacIntyre, como em seu diagnóstico – o que já foi, no Brasil, institucionalizado de forma até mesmo
acerca do discurso moral contemporâneo, também o discurso positivada, com muita luta, no Código de Processo Civil 2015.
jurídico brasileiro de nosso tempo parece convencido (ou, no Jürgen Habermas é sábio quando diz que é por
mínimo, condescendente) diante da ideia que não há uma intermédio do procedimento argumentativo que se busca
objetividade autêntica naquilo que se diz no Direito. uma cooperação verdadeira, e que existe uma relação de
Se, para MacIntyre, o discurso moral contemporâneo dependência nos processos democráticos das decisões
pode ser caracterizado por uma miríade de enunciados que, públicas, legislativas e judiciais. Aliado ao pensamento de
na mesma medida em que se pretendem teorias éticas, são Dworkin, percebemos que um empreendimento político dessa
nada mais que ficções que servem meramente a conferir uma magnitude está em constante desenvolvimento.
espécie de verniz filosófico a posturas subjetivistas, pensamos Este reconhecimento é ainda mais necessário no
que o direito brasileiro pode ser igualmente caracterizado contexto brasileiro, caracterizado pela intensa judicialização,

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA

que coloca o Judiciário no centro do debate político e pela


dificuldade de se fazer cumprir a Constituição.
Hermeneuticamente, é possível afirmar que há sempre A angústia epistemológica e a filosofia no
um chão linguístico no qual está assentada a tradição que Direito
envolve um determinado conceito ou enunciado. A resposta
nunca pode vir antes das perguntas; perguntas, por sua vez
implicam o necessário estabelecimento de critérios a partir dos Dia desses lia sobre a angústia e o seu surgimento. A
quais se pode encontrar respostas adequadas. angústia é um fenômeno moderno. Tinha-se a angústia mas
Esse é o ponto. Em um cenário de predomínio não se sabia que se tinha.
subjetivista subjacente aos desacordos que nos definem A partir de Kierkegaard, que podemos chamar de
enquanto sociedade, o Direito deve resolvê-los para além primeiro filósofo de cunho mais existencial, e depois com
dessa fatalidade emotivista. A resposta correta, portanto, está Sartre e Heidegger, é que a temática da angústia teve o lugar
na tradição do próprio Direito enquanto fenômeno; não está central. Freud entendeu bem isso e buscou explicar o papel da
na preferência, na atitude, na vontade do intérprete. angústia. Pois bem. A hermenêutica tem um caráter existencial.
As respostas não vêm antes das perguntas e o Direito Claro, falo da hermenêutica filosófica, herdeira
é um fenômeno interpretativo; não encerraríamos questões da filosofia hermenêutica. Warat, embora não fosse um
tão complexas aqui nem mesmo se quiséssemos. Ainda assim, hermeneuta, bem falava que seu objetivo como professor era
é possível dizer que só há saída democrática a partir de um provocar angústia nos alunos. Ele chamava a isso de angústia
fenômeno jurídico compreendido em consonância com nossa epistemológica. Eu tinha acabado de ter a primeira aula com
facticidade, nossas próprias circunstâncias que definem as Warat. Saí esburacado. Warat abriu um rombo nas minhas
instituições do país. parcas certezas. Isso foi em 1983.
Nesse sentido, é papel da doutrina engajar-se na Pois a hermenêutica e a psicanálise fazem isso:
busca de uma teoria da decisão judicial, fiel ao Direito e aos desconcertam. Tiram as certezas das cartografias pré-
sentidos que a tradição da própria pratica impõe; uma teoria modernas. Pascal olha para o firmamento e vê todas aquelas
responsável, ela, sim, por estabelecer esses critérios que estrelas e diz: como fico angustiado. Dasein, o ser-aí de
definem as diretrizes de uma resposta institucional adequada Heidegger, vem a ser saber que sabemos. Por que estou
e democrática, a única que pode resolver nossos desacordos dizendo isso? Simples. E complexo.
para além do emotivismo que nos tem derrotado.
A literatura tem esse mesmo papel que é exercido pela
O Direito tem sido já de há muito o lócus privilegiado hermenêutica e pela psicanálise. Pela ficção ou pelo realismo,
do Saber Nenhum. ou seja, por qualquer corrente literária que for, nossas certezas

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA

que coloca o Judiciário no centro do debate político e pela


dificuldade de se fazer cumprir a Constituição.
Hermeneuticamente, é possível afirmar que há sempre A angústia epistemológica e a filosofia no
um chão linguístico no qual está assentada a tradição que Direito
envolve um determinado conceito ou enunciado. A resposta
nunca pode vir antes das perguntas; perguntas, por sua vez
implicam o necessário estabelecimento de critérios a partir dos Dia desses lia sobre a angústia e o seu surgimento. A
quais se pode encontrar respostas adequadas. angústia é um fenômeno moderno. Tinha-se a angústia mas
Esse é o ponto. Em um cenário de predomínio não se sabia que se tinha.
subjetivista subjacente aos desacordos que nos definem A partir de Kierkegaard, que podemos chamar de
enquanto sociedade, o Direito deve resolvê-los para além primeiro filósofo de cunho mais existencial, e depois com
dessa fatalidade emotivista. A resposta correta, portanto, está Sartre e Heidegger, é que a temática da angústia teve o lugar
na tradição do próprio Direito enquanto fenômeno; não está central. Freud entendeu bem isso e buscou explicar o papel da
na preferência, na atitude, na vontade do intérprete. angústia. Pois bem. A hermenêutica tem um caráter existencial.
As respostas não vêm antes das perguntas e o Direito Claro, falo da hermenêutica filosófica, herdeira
é um fenômeno interpretativo; não encerraríamos questões da filosofia hermenêutica. Warat, embora não fosse um
tão complexas aqui nem mesmo se quiséssemos. Ainda assim, hermeneuta, bem falava que seu objetivo como professor era
é possível dizer que só há saída democrática a partir de um provocar angústia nos alunos. Ele chamava a isso de angústia
fenômeno jurídico compreendido em consonância com nossa epistemológica. Eu tinha acabado de ter a primeira aula com
facticidade, nossas próprias circunstâncias que definem as Warat. Saí esburacado. Warat abriu um rombo nas minhas
instituições do país. parcas certezas. Isso foi em 1983.
Nesse sentido, é papel da doutrina engajar-se na Pois a hermenêutica e a psicanálise fazem isso:
busca de uma teoria da decisão judicial, fiel ao Direito e aos desconcertam. Tiram as certezas das cartografias pré-
sentidos que a tradição da própria pratica impõe; uma teoria modernas. Pascal olha para o firmamento e vê todas aquelas
responsável, ela, sim, por estabelecer esses critérios que estrelas e diz: como fico angustiado. Dasein, o ser-aí de
definem as diretrizes de uma resposta institucional adequada Heidegger, vem a ser saber que sabemos. Por que estou
e democrática, a única que pode resolver nossos desacordos dizendo isso? Simples. E complexo.
para além do emotivismo que nos tem derrotado.
A literatura tem esse mesmo papel que é exercido pela
O Direito tem sido já de há muito o lócus privilegiado hermenêutica e pela psicanálise. Pela ficção ou pelo realismo,
do Saber Nenhum. ou seja, por qualquer corrente literária que for, nossas certezas

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caem por terra. Veja o papel das distopias. Como elas acabam que vem depois.
se realizando, para desgraça da humanidade. É claro que, O papel do intérprete-juiz é o de fazer ajustes (fit).
no Direito, falar em utopias e distopias provoca ruídos. Isso Esse é o ponto em que se encontram Direito e literatura: no
angustia o jurista. tratamento da angústia epistemológica. O jurista, inserido
O problema é que por vezes ele sequer sabe que está no senso comum teórico, não sabe que não sabe. A literatura
angustiado. Por vezes ele nem quer enfrentar isso. Não quer o metaforiza essa relação inconclusa. Nomina coisas. Faz coisas
estranhamento. Por que os juristas gostam tanto de conceitos com palavras, como diria Austin – não o do positivismo, mas o
prontos, enunciados, súmulas? Porque isso lhes dá uma tran- da linguagem ordinária. J. L. Austin.
quilidade. É como voltar ao ventre da pré-modernidade, em Por isso, no princípio era a angústia epistemológica,
que tudo está posto. Todas as cartografias asseguram a certeza. pode-se dizer. Nada que Shakespeare, Machado,
Respostas antes das perguntas, eis a terra prometida Cervantes e Swift não possam tratar. Por fim, com relação
pelo pensamento dogmático do direito, herdeiro do velho à desconfiança de Ernildo Stein em relação à questão
positivismo. A literatura ajuda a existencializar o direito. metodológica da relação direito e literatura, eu posso dizer
Por isso, o que está sempre mais próximo da literatura que a compreendo, no mesmo modo que eu desconfio da
é a hermenêutica. A angústia, para ser “tratada”, exige Filosofia do Direito. Talvez ele não aceite que a literatura
intermediação. Exige o outro. Não dá mais para fazer seja apenas um ornamento no discurso jurídico, assim
sacrifícios aos deuses. Agora estamos frente a frente com nós como eu não quero que a filosofia seja apenas ornamental
mesmos. Com nossos fantasmas. Com a existência nossa e no direito. Nisso estamos juntos. A filosofia tem de ser no
dos outros. Deus morreu, e agora é que não podemos fazer Direito. E não “do”. E a literatura está no cerne existencial
tudo. Ou qualquer coisa. do Direito. E não apenas para fazer erudição ou retórica
Pois o Direito trata dessa nossa relação com o mundo,
com as coisas. Democracia, direitos sociais, cidadania: isso
ocorre como uma conquista intermediada. Literatura faz
intermediação existencial. Hermenêutica, no sentido que a
trabalho na minha Crítica Hermenêutica do Direito, também.
Não é por nada que a tese central de Dworkin é o
romance em cadeia para descrever a resposta-sentença no
Direito: uma atividade construtivo-interpretativa conjunta, na
qual cada autor-juiz dá continuidade à prática, em respeito ao
que veio antes, colocando-a sob sua melhor luz em nome do

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

caem por terra. Veja o papel das distopias. Como elas acabam que vem depois.
se realizando, para desgraça da humanidade. É claro que, O papel do intérprete-juiz é o de fazer ajustes (fit).
no Direito, falar em utopias e distopias provoca ruídos. Isso Esse é o ponto em que se encontram Direito e literatura: no
angustia o jurista. tratamento da angústia epistemológica. O jurista, inserido
O problema é que por vezes ele sequer sabe que está no senso comum teórico, não sabe que não sabe. A literatura
angustiado. Por vezes ele nem quer enfrentar isso. Não quer o metaforiza essa relação inconclusa. Nomina coisas. Faz coisas
estranhamento. Por que os juristas gostam tanto de conceitos com palavras, como diria Austin – não o do positivismo, mas o
prontos, enunciados, súmulas? Porque isso lhes dá uma tran- da linguagem ordinária. J. L. Austin.
quilidade. É como voltar ao ventre da pré-modernidade, em Por isso, no princípio era a angústia epistemológica,
que tudo está posto. Todas as cartografias asseguram a certeza. pode-se dizer. Nada que Shakespeare, Machado,
Respostas antes das perguntas, eis a terra prometida Cervantes e Swift não possam tratar. Por fim, com relação
pelo pensamento dogmático do direito, herdeiro do velho à desconfiança de Ernildo Stein em relação à questão
positivismo. A literatura ajuda a existencializar o direito. metodológica da relação direito e literatura, eu posso dizer
Por isso, o que está sempre mais próximo da literatura que a compreendo, no mesmo modo que eu desconfio da
é a hermenêutica. A angústia, para ser “tratada”, exige Filosofia do Direito. Talvez ele não aceite que a literatura
intermediação. Exige o outro. Não dá mais para fazer seja apenas um ornamento no discurso jurídico, assim
sacrifícios aos deuses. Agora estamos frente a frente com nós como eu não quero que a filosofia seja apenas ornamental
mesmos. Com nossos fantasmas. Com a existência nossa e no direito. Nisso estamos juntos. A filosofia tem de ser no
dos outros. Deus morreu, e agora é que não podemos fazer Direito. E não “do”. E a literatura está no cerne existencial
tudo. Ou qualquer coisa. do Direito. E não apenas para fazer erudição ou retórica
Pois o Direito trata dessa nossa relação com o mundo,
com as coisas. Democracia, direitos sociais, cidadania: isso
ocorre como uma conquista intermediada. Literatura faz
intermediação existencial. Hermenêutica, no sentido que a
trabalho na minha Crítica Hermenêutica do Direito, também.
Não é por nada que a tese central de Dworkin é o
romance em cadeia para descrever a resposta-sentença no
Direito: uma atividade construtivo-interpretativa conjunta, na
qual cada autor-juiz dá continuidade à prática, em respeito ao
que veio antes, colocando-a sob sua melhor luz em nome do

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Os modelos de... professor

Se juízes, integrantes do Ministério Público e advogados


passaram pela Faculdade de Direito, talvez seja lá que esteja
o paciente zero da epidemia do direito brasileiro. Então,
em contraposição aos modelos de juiz, tracei seis tipos de
professores.
Professor neoconstitucionalista: faz show para os
alunos. Comunica, de forma espetacular, que o juiz boca
da lei morreu e em seu lugar está o juiz dos princípios.
Ele também leciona Direito fofinho. É o professor
pamprincipiologista. Tem um caso difícil? Use um princípio.
Ele se diz pós-positivista. Por exemplo, uma regra do Código
Civil que trata do direito sucessório pode ser derrotada
por um “princípio” como o da afetividade. Esse modelo
de professor parece usar o fator Groucho Marx: esses são
os meus princípios; mas se você não gosta deles, eu tenho
outros! Sempre tem chance de ser o paraninfo da turma.
Professor realista-retrô: diz para os alunos que o Direito
é o que o Judiciário diz que é. Usa preferentemente livros com
prêt-à-porters jurisprudenciais e ementários. Também se diz
pós-positivista. O Direito será sempre o que algum verbete
jurisprudencial ou súmula disser que é. Gosta também de
usar enunciados feitos em workshops jurídicos. Também
gosta de usar a pesquisa dos juízes de Israel, que “constatou”
que os juízes com fome são mais rígidos. Conclusão: o Direito
é o que a fome dos juízes diz que é. E coisas desse gênero.
A única coisa que o professor realista retrô não explica é o
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Os modelos de... professor

Se juízes, integrantes do Ministério Público e advogados


passaram pela Faculdade de Direito, talvez seja lá que esteja
o paciente zero da epidemia do direito brasileiro. Então,
em contraposição aos modelos de juiz, tracei seis tipos de
professores.
Professor neoconstitucionalista: faz show para os
alunos. Comunica, de forma espetacular, que o juiz boca
da lei morreu e em seu lugar está o juiz dos princípios.
Ele também leciona Direito fofinho. É o professor
pamprincipiologista. Tem um caso difícil? Use um princípio.
Ele se diz pós-positivista. Por exemplo, uma regra do Código
Civil que trata do direito sucessório pode ser derrotada
por um “princípio” como o da afetividade. Esse modelo
de professor parece usar o fator Groucho Marx: esses são
os meus princípios; mas se você não gosta deles, eu tenho
outros! Sempre tem chance de ser o paraninfo da turma.
Professor realista-retrô: diz para os alunos que o Direito
é o que o Judiciário diz que é. Usa preferentemente livros com
prêt-à-porters jurisprudenciais e ementários. Também se diz
pós-positivista. O Direito será sempre o que algum verbete
jurisprudencial ou súmula disser que é. Gosta também de
usar enunciados feitos em workshops jurídicos. Também
gosta de usar a pesquisa dos juízes de Israel, que “constatou”
que os juízes com fome são mais rígidos. Conclusão: o Direito
é o que a fome dos juízes diz que é. E coisas desse gênero.
A única coisa que o professor realista retrô não explica é o
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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

que foi ou é efetivamente a teoria do realismo jurídico (norte todo a lei de Hume: do “é” ele tira um “deve ser”. Só o que
americano ou escandinavo). ele não explica é o que, de fato, é o dualismo metodológico.
Professor TPP (teórico político do poder): esse é mix E nunca ouviu falar de David Hume. É consequencialista,
dos dois primeiros modelos. Prefere fazer teoria política do mas nunca leu nada sobre isso.
ser possível. Direito para ele é Poder. E pronto. Fica falando Professor macete: acha que está dando aula no cursinho
em ponderação a todo momento, embora não saiba o que seja de preparação para concursos. Confunde os dois mundos: da
a teoria alexyiana. Passa um semestre ou ano inteiro falando faculdade e do cursinho. Por isso usa resumos, resuminhos,
em ponderar, mas não explica, com o cuidado necessário, o livros facilitados e coisas do gênero. O forte dele é o decoreba.
que Alexy propõe. Sustenta que, sem ponderar, é impossível Para isso, usa macetes. Fala mal de quem escreve de forma
decidir. Também critica o positivismo, que, para ele, está sofisticada. Diz que não lê textão. Faz muito sucesso junto aos
morto, anunciando essa “boa nova” do mesmo modo como alunos. Mais um que sempre tem chance de ser paraninfo.
o professor neoconstitucionalista. E finalmente...
Professor dualista-metodológico: ele é um adepto O sexto modelo é o mais tradicional e ao mesmo
do dualismo, só não sabe que é. Diz-se pós-positivista, tempo simples: é o professor que ensina uma coisa velha
só que nunca explicou por quê. Para ele, vale mais a voz chamada Direito. Pode-se chamá-lo de Maestro. Já desde
das ruas que a Constituição. Se há uma dúvida entre um o primeiro dia diz a que vem. Mostra as Eumênides, da
juízo moral e o Direito, ele fica com os juízos morais. Sem trilogia Oresteia. Faz isso para ensinar que a vingança não
se dar conta de que quem disse isso foi Jellinek, fala todo pode se sobrepor ao Direito o Direito. Apresenta para os
tempo que as Constituições escritas rígidas não podem alunos um combo epistêmico que extrai da Oresteia: Direito
evitar que se desenvolva junto a elas e contra elas um Penal, Processual, Teoria do Direito e Direito Constitucional.
Direito Constitucional não escrito, que vem das ruas e da O primeiro julgamento da história é da mitologia. Mas o
consciência social. Assim, o professor dualista contrapõe professor Maestro demonstra como esse julgamento marca a
a realidade social à Constituição e fica, obviamente, com a história civilizacional do Direito. O modelo Maestro dispensa
realidade social, pouco importando a força normativa da resumos e não gosta que os alunos fiquem usando celular em
Constituição. Até acha que existem direitos demais e poucos sala de aula. Cobra questões dissertativas nas provas. Usa da
deveres na Constituição. Faz piada com a Constituição, algo interdisciplinaridade. Quase nunca é escolhido paraninfo. E
como “o peso da Constituição se sente quando alguém a atira seu emprego sempre está em risco. Comparado aos modelos
em nossa cabeça” e coisas “engraçadas” assim. Quando fala de juiz, o Maestro se assemelha ao minimalista de Cass
da presunção da inocência, diz que tem muita violência por Sunstein ou de Hermes, de Ost (guardadas as minhas reservas
aí e por isso a interpretação do STF deve ser a que manda ao conceito que o autor belga deu ao modelo Hércules).
prender desde logo. Esse modelo de professor viola o tempo

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

que foi ou é efetivamente a teoria do realismo jurídico (norte todo a lei de Hume: do “é” ele tira um “deve ser”. Só o que
americano ou escandinavo). ele não explica é o que, de fato, é o dualismo metodológico.
Professor TPP (teórico político do poder): esse é mix E nunca ouviu falar de David Hume. É consequencialista,
dos dois primeiros modelos. Prefere fazer teoria política do mas nunca leu nada sobre isso.
ser possível. Direito para ele é Poder. E pronto. Fica falando Professor macete: acha que está dando aula no cursinho
em ponderação a todo momento, embora não saiba o que seja de preparação para concursos. Confunde os dois mundos: da
a teoria alexyiana. Passa um semestre ou ano inteiro falando faculdade e do cursinho. Por isso usa resumos, resuminhos,
em ponderar, mas não explica, com o cuidado necessário, o livros facilitados e coisas do gênero. O forte dele é o decoreba.
que Alexy propõe. Sustenta que, sem ponderar, é impossível Para isso, usa macetes. Fala mal de quem escreve de forma
decidir. Também critica o positivismo, que, para ele, está sofisticada. Diz que não lê textão. Faz muito sucesso junto aos
morto, anunciando essa “boa nova” do mesmo modo como alunos. Mais um que sempre tem chance de ser paraninfo.
o professor neoconstitucionalista. E finalmente...
Professor dualista-metodológico: ele é um adepto O sexto modelo é o mais tradicional e ao mesmo
do dualismo, só não sabe que é. Diz-se pós-positivista, tempo simples: é o professor que ensina uma coisa velha
só que nunca explicou por quê. Para ele, vale mais a voz chamada Direito. Pode-se chamá-lo de Maestro. Já desde
das ruas que a Constituição. Se há uma dúvida entre um o primeiro dia diz a que vem. Mostra as Eumênides, da
juízo moral e o Direito, ele fica com os juízos morais. Sem trilogia Oresteia. Faz isso para ensinar que a vingança não
se dar conta de que quem disse isso foi Jellinek, fala todo pode se sobrepor ao Direito o Direito. Apresenta para os
tempo que as Constituições escritas rígidas não podem alunos um combo epistêmico que extrai da Oresteia: Direito
evitar que se desenvolva junto a elas e contra elas um Penal, Processual, Teoria do Direito e Direito Constitucional.
Direito Constitucional não escrito, que vem das ruas e da O primeiro julgamento da história é da mitologia. Mas o
consciência social. Assim, o professor dualista contrapõe professor Maestro demonstra como esse julgamento marca a
a realidade social à Constituição e fica, obviamente, com a história civilizacional do Direito. O modelo Maestro dispensa
realidade social, pouco importando a força normativa da resumos e não gosta que os alunos fiquem usando celular em
Constituição. Até acha que existem direitos demais e poucos sala de aula. Cobra questões dissertativas nas provas. Usa da
deveres na Constituição. Faz piada com a Constituição, algo interdisciplinaridade. Quase nunca é escolhido paraninfo. E
como “o peso da Constituição se sente quando alguém a atira seu emprego sempre está em risco. Comparado aos modelos
em nossa cabeça” e coisas “engraçadas” assim. Quando fala de juiz, o Maestro se assemelha ao minimalista de Cass
da presunção da inocência, diz que tem muita violência por Sunstein ou de Hermes, de Ost (guardadas as minhas reservas
aí e por isso a interpretação do STF deve ser a que manda ao conceito que o autor belga deu ao modelo Hércules).
prender desde logo. Esse modelo de professor viola o tempo

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

Defender a legalidade constitucional — conceito zendo uma blague, pode-se dizer que as consequências vêm
que aprendi há décadas com o grande constitucionalista sempre depois, como “lecionava” o Conselheiro Acácio, carica-
espanhol Elias Diaz — é, como falei, um ato revolucionário, to personagem do romance Primo Basílio, de Eça de Queiroz.
a ponto de poder afirmar que Professor Bingo é, hoje, um Porque nada é por acaso, porque sempre há um paciente zero.
subversivo, se trabalhar, efetivamente, com a força normativa Se se ensinasse Direito direito, a crise não seria tão grave. Não
da Constituição. Esse professor, se estiver acompanhado de se insistiria, para dar um exemplo, em coisas como “Kelsen era
outros pesquisadores (quatro ou mais), corre sempre o risco de um exegeta” ou “temos um sistema de precedentes”...!
ser processado pelo crime de obstrução epistêmica da justiça.
Aqui, uma advertência: a “classificação” dos modelos
de professor que lancei acima pretende apenas metaforizar
o problema da crise do Direito. Uma crítica sempre corre o
risco de provocar generalizações e até mesmo exageros. Não
é minha intenção. Minhas críticas ao ensino jurídico vêm de
mais de duas décadas. Warat ensinava que o ensino jurídico era
responsável pela reprodução de uma dogmática jurídica que
produzia próteses para fantasmas. Carlos Cárcova chamava
a essa reprodução de “opacidade do Direito”. Isso ocorre
graças ao senso comum teórico que predomina no imaginário
jurídico. Com toda a lhaneza e fidalguia acadêmica, é possível
dizer, face ao estado da arte da doutrina e da jurisprudências
pátrias, que precisamos de professores que perfazem o perfil
do sexto modelo. A vantagem é que ele não é excludente. E
nem epistemicamente discriminatório.
O que importa referir, ao fim e ao cabo, é que o deci-
sionismo se dá porque o Direito ensinado nas Faculdades se
confunde com a moral, a economia e a política. Em vez de o Di-
reito filtrar a moral, a política e a economia, acaba, ele próprio,
sendo filtrado por estes seus predadores naturais (de novo, é
preciso dizer que a afirmação de que o Direito não pode ser
corrigido por argumentos morais não significa, sob qualquer
hipótese, que isto seja uma assertiva positivista). Por isso, fa-

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

Defender a legalidade constitucional — conceito zendo uma blague, pode-se dizer que as consequências vêm
que aprendi há décadas com o grande constitucionalista sempre depois, como “lecionava” o Conselheiro Acácio, carica-
espanhol Elias Diaz — é, como falei, um ato revolucionário, to personagem do romance Primo Basílio, de Eça de Queiroz.
a ponto de poder afirmar que Professor Bingo é, hoje, um Porque nada é por acaso, porque sempre há um paciente zero.
subversivo, se trabalhar, efetivamente, com a força normativa Se se ensinasse Direito direito, a crise não seria tão grave. Não
da Constituição. Esse professor, se estiver acompanhado de se insistiria, para dar um exemplo, em coisas como “Kelsen era
outros pesquisadores (quatro ou mais), corre sempre o risco de um exegeta” ou “temos um sistema de precedentes”...!
ser processado pelo crime de obstrução epistêmica da justiça.
Aqui, uma advertência: a “classificação” dos modelos
de professor que lancei acima pretende apenas metaforizar
o problema da crise do Direito. Uma crítica sempre corre o
risco de provocar generalizações e até mesmo exageros. Não
é minha intenção. Minhas críticas ao ensino jurídico vêm de
mais de duas décadas. Warat ensinava que o ensino jurídico era
responsável pela reprodução de uma dogmática jurídica que
produzia próteses para fantasmas. Carlos Cárcova chamava
a essa reprodução de “opacidade do Direito”. Isso ocorre
graças ao senso comum teórico que predomina no imaginário
jurídico. Com toda a lhaneza e fidalguia acadêmica, é possível
dizer, face ao estado da arte da doutrina e da jurisprudências
pátrias, que precisamos de professores que perfazem o perfil
do sexto modelo. A vantagem é que ele não é excludente. E
nem epistemicamente discriminatório.
O que importa referir, ao fim e ao cabo, é que o deci-
sionismo se dá porque o Direito ensinado nas Faculdades se
confunde com a moral, a economia e a política. Em vez de o Di-
reito filtrar a moral, a política e a economia, acaba, ele próprio,
sendo filtrado por estes seus predadores naturais (de novo, é
preciso dizer que a afirmação de que o Direito não pode ser
corrigido por argumentos morais não significa, sob qualquer
hipótese, que isto seja uma assertiva positivista). Por isso, fa-

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Meus livros, quem sou.

Sendo este um livro que quer, afinal, Compreender


Direito direito, e, nisso, ultrapassar o senso comum teórico,
nada mais adequado que, além de referências, recomendar
livros que ajudam o leitor a... Compreender Direito direito, e,
nisso, ultrapassar o senso comum teórico.
Abaixo, o leitor encontra uma série de referências, no
sentido mais próprio do termo. Mas, antes, retomo aqui coisas
que disse ainda em 2014, quando, em depoimento, falei sobre
os livros de minha vida e a importância que tem a literatura
para mim. Então, é claro, falei sobre mim e sobre minha vida.
Falando sobre meus livros, falei sobre quem sou.
Foi na escola que tive o primeiro contato com a leitura.
Li e reli a cartilha que contava o cotidiano de Olavo e Élida e
seu cachorro Bodoque. Depois vieram os livros do Monteiro
Lobato, que falava do personagem Jeca Tatu. O livro era Urupês,
com várias narrativas. Jeca era a representação do sujeito
abandonado pelo Estado, um lumpen sujeito à enfermidades
tropicais e explorado ao extremo. Claro que eu não entendia
isso na época.
Paradoxalmente, ao lado do realismo de Lobato, ao
mesmo tempo me deliciava com a figura do caboclo idealizado,
retratado pelas músicas sertanejas. Lia todos os livrinhos que
tinham as letras das músicas das duplas caipiras, como Jacó
e Jacozinho, Liu e Leo, Tião Carreiro e Pardinho, Silveira e
Silveirinha, Tonico e Tinoco e mais duas dezenas de duplas.

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Meus livros, quem sou.

Sendo este um livro que quer, afinal, Compreender


Direito direito, e, nisso, ultrapassar o senso comum teórico,
nada mais adequado que, além de referências, recomendar
livros que ajudam o leitor a... Compreender Direito direito, e,
nisso, ultrapassar o senso comum teórico.
Abaixo, o leitor encontra uma série de referências, no
sentido mais próprio do termo. Mas, antes, retomo aqui coisas
que disse ainda em 2014, quando, em depoimento, falei sobre
os livros de minha vida e a importância que tem a literatura
para mim. Então, é claro, falei sobre mim e sobre minha vida.
Falando sobre meus livros, falei sobre quem sou.
Foi na escola que tive o primeiro contato com a leitura.
Li e reli a cartilha que contava o cotidiano de Olavo e Élida e
seu cachorro Bodoque. Depois vieram os livros do Monteiro
Lobato, que falava do personagem Jeca Tatu. O livro era Urupês,
com várias narrativas. Jeca era a representação do sujeito
abandonado pelo Estado, um lumpen sujeito à enfermidades
tropicais e explorado ao extremo. Claro que eu não entendia
isso na época.
Paradoxalmente, ao lado do realismo de Lobato, ao
mesmo tempo me deliciava com a figura do caboclo idealizado,
retratado pelas músicas sertanejas. Lia todos os livrinhos que
tinham as letras das músicas das duplas caipiras, como Jacó
e Jacozinho, Liu e Leo, Tião Carreiro e Pardinho, Silveira e
Silveirinha, Tonico e Tinoco e mais duas dezenas de duplas.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

Meu tio Leonel fazia dupla com seu amigo Xará. Tudo o que mestrado. Quando fui apresentado à Teoria Pura do Direito,
existia de caderninhos de letras ele tinha. As músicas caipiras, em 1983, pensei: impossível entender isso...
em muitos casos, contam tragédias, como que a repetir o que Larguei o futebol para estudar e trabalhar. Queria
as óperas retratam. Mas ópera só vim a conhecer depois que mesmo era jogar futebol. Tive uma breve experiência semi-
casei. Tenho até hoje uma vitrola para escutar vinis. Escutar profissional no ludopedismo. Optei pelo Direito, que me
Fidélio tomando um bom vinho na Dacha de São José do pareceu adequado ao que eu pensava sobre a sociedade, a
Herval não tem preço. Com aquele chiadinho que só o disco ditadura militar.
de vinil possui.
Achava que o Direito era o modo de enfrentar isso.
Ainda menino, durante o ensino fundamental, devorava Quando menino, vi meu pai ser levado pelo exército, logo
a Revista do Esporte e o jornal da época que meu pai assinava após o golpe militar. Aquilo me marcou profundamente. E, é
(e que vinha atrasado), o Correio do Povo. Lá onde eu nasci, claro, queria cursar direito para ganhar algum dinheiro, já que
na Várzea do Agudo (terra do Bagualossauro, o mais antigo vinha de um périplo de sobrevivência. Quando eu era criança,
dinossauro do mundo!), onde o mato não tem fecho, como meu pai me ensinou a dizer, em alemão, que eu queria ser
diria Guimarães Rosa, tudo chegava tarde. Acho que até eu, advogado para tirar o dinheiro dos trouxas. Em todo lugar – o
porque muito cedo me mudei para tentar a sorte na cidade. que me envergonha às pampas - ele me chamava e perguntava:
Na escola, o livro que mais me influenciou foi o o que tu vais ser quando crescer? E eu declinava a ladainha.
Compêndio de História do Brasil. Ele me influenciou tanto que, “Quando eu for grande...”. Decorei e era mais ou menos assim:
terminada a graduação em Direito, fiz dois cursos de pós- Wenn ich gross bin, möchte ich ein Avokat sein, zu die Dummen das
graduação em História, uma da América Latina e outra do Rio Geld abnehmen. Dizia “Avokat” em vez de Anwalt. E a frase nem
Grande do Sul. estava bem correta. Mas foi a que decorei.
Um pouco mais velho, passei a me interessar mais por Meus livros. Fui salvo pelos livros. A literatura narra o
gibis. Tinha inveja dos meninos que tinham coleções de gibis. mundo melhor que o direito e a própria história. A certidão de
No colegial morava com minha irmã e era obrigado a ser o nascimento do Brasil é um texto literário, A Carta de Pero Vaz de
primeiro da classe. Lia o que os professores indicavam. No Caminha. E quem poderia contar melhor o Brasil que Machado
colegial, lia sobre a história do Brasil, além de José Lins do de Assis, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Monteiro
Rego e Machado de Assis. Lobato? Como entender o Direito Penal sem ler o conto Suje-
Eu cursei a Faculdade de Direito com meia dúzia de se Gordo, de Machado? Ou entender o patrimonialismo e o
livros. Era o que se tinha, além das xerox que desbotavam. estamentismo sem ler Memórias Póstumas de Brás Cubas, cujo
Cursei Direito com muita dificuldade. Ouvi falar de Kelsen maior feito foi o de não ter deixado herdeiros, de tão pilantra
quando fiz pós-graduação em Teoria Geral do Direito, antes do e patife que era?

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

Meu tio Leonel fazia dupla com seu amigo Xará. Tudo o que mestrado. Quando fui apresentado à Teoria Pura do Direito,
existia de caderninhos de letras ele tinha. As músicas caipiras, em 1983, pensei: impossível entender isso...
em muitos casos, contam tragédias, como que a repetir o que Larguei o futebol para estudar e trabalhar. Queria
as óperas retratam. Mas ópera só vim a conhecer depois que mesmo era jogar futebol. Tive uma breve experiência semi-
casei. Tenho até hoje uma vitrola para escutar vinis. Escutar profissional no ludopedismo. Optei pelo Direito, que me
Fidélio tomando um bom vinho na Dacha de São José do pareceu adequado ao que eu pensava sobre a sociedade, a
Herval não tem preço. Com aquele chiadinho que só o disco ditadura militar.
de vinil possui.
Achava que o Direito era o modo de enfrentar isso.
Ainda menino, durante o ensino fundamental, devorava Quando menino, vi meu pai ser levado pelo exército, logo
a Revista do Esporte e o jornal da época que meu pai assinava após o golpe militar. Aquilo me marcou profundamente. E, é
(e que vinha atrasado), o Correio do Povo. Lá onde eu nasci, claro, queria cursar direito para ganhar algum dinheiro, já que
na Várzea do Agudo (terra do Bagualossauro, o mais antigo vinha de um périplo de sobrevivência. Quando eu era criança,
dinossauro do mundo!), onde o mato não tem fecho, como meu pai me ensinou a dizer, em alemão, que eu queria ser
diria Guimarães Rosa, tudo chegava tarde. Acho que até eu, advogado para tirar o dinheiro dos trouxas. Em todo lugar – o
porque muito cedo me mudei para tentar a sorte na cidade. que me envergonha às pampas - ele me chamava e perguntava:
Na escola, o livro que mais me influenciou foi o o que tu vais ser quando crescer? E eu declinava a ladainha.
Compêndio de História do Brasil. Ele me influenciou tanto que, “Quando eu for grande...”. Decorei e era mais ou menos assim:
terminada a graduação em Direito, fiz dois cursos de pós- Wenn ich gross bin, möchte ich ein Avokat sein, zu die Dummen das
graduação em História, uma da América Latina e outra do Rio Geld abnehmen. Dizia “Avokat” em vez de Anwalt. E a frase nem
Grande do Sul. estava bem correta. Mas foi a que decorei.
Um pouco mais velho, passei a me interessar mais por Meus livros. Fui salvo pelos livros. A literatura narra o
gibis. Tinha inveja dos meninos que tinham coleções de gibis. mundo melhor que o direito e a própria história. A certidão de
No colegial morava com minha irmã e era obrigado a ser o nascimento do Brasil é um texto literário, A Carta de Pero Vaz de
primeiro da classe. Lia o que os professores indicavam. No Caminha. E quem poderia contar melhor o Brasil que Machado
colegial, lia sobre a história do Brasil, além de José Lins do de Assis, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Monteiro
Rego e Machado de Assis. Lobato? Como entender o Direito Penal sem ler o conto Suje-
Eu cursei a Faculdade de Direito com meia dúzia de se Gordo, de Machado? Ou entender o patrimonialismo e o
livros. Era o que se tinha, além das xerox que desbotavam. estamentismo sem ler Memórias Póstumas de Brás Cubas, cujo
Cursei Direito com muita dificuldade. Ouvi falar de Kelsen maior feito foi o de não ter deixado herdeiros, de tão pilantra
quando fiz pós-graduação em Teoria Geral do Direito, antes do e patife que era?

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

Quantos Conselheiros Acácios, personagem de Primo todos do Bertolt Brecht, especialmente A Santa Joana dos Ma-
Basílio, de Eça de Queiroz, encontramos por ai todos os tadouros e o O Círculo de Giz Caucasiano. E quem resiste a Cem
dias? Sua máxima: “As consequências vêm sempre depois”! E Anos de Solidão? “Naquela pequena Macondo, as coisas ainda
quando vemos neonéscios por ai, como explicá-los sem ler A eram tão recentes, que, para dirigirmo-nos a elas tínhamos que
Teoria do medalhão, de Machado, em que o pai dá conselhos ao apontar com o dedo, porque ainda não tinham nome.”
filho com inópia mental, como “Em vez de fazer um tratado Li várias vezes o livro 1984, de George Orwell, para en-
sobre carneiros, compre um e asse para os amigos que você tender o papel do passado, presente e futuro e o valor da lin-
quer influenciar”. guagem. Além desse, também tive de reler O Senhor das Mos-
É demais, não? Livros «à mancheias”, como dizia cas, de William Golding, para revisitar a teoria contratualista
Castro Alves. Quer estudar hermenêutica? Como não, para de Hobbes e O Nome da Rosa, de Eco, para entender o nomina-
tanto, ignorar Medida por Medida, de Shakespeare? E a noção lismo e de como este é uma forma de positivismo.
de imaginário, adiantada em cem anos por Machado de Assis, Tenho muito interesse por filosofia. Acho que não
com o conto Ideias de Canário? há mundo sem filosofia, e não há Direito sem filosofia. Os
Tenho os meus livros favoritos, como Antígona, de Sófo- juristas acham que é possível estudar direito blindando-o
cles, onde se discute pela primeira vez a relação “lei-Direito”; da filosofia. Tem até autores importantes como Alexy que,
Hécuba, de Eurípedes, em que se mostra a tragédia da guerra ao que parece, acredita ser possível fazer teoria do direito
pela voz das mulheres; Oresteia, de Ésquilo, onde aparece pela sem filosofia. Mas não dá.
primeira vez a autonomia do Direito; O Nome da Rosa, de Um- Gosto também de poemas. Meus preferidos são
berto Eco, em que podemos aprender o papel do nominalis- Manoel de Barros e cito de cor um pedaço de O Apanhador de
mo e da semiótica; O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil, Desperdícios:
maior romance do século XX, que mostra, antes de começar, o
declínio do homem na era da técnica; As Vinhas da Ira, roman- “Uso as palavras para compor meus silêncios; não
ce político de engajamento de John Steinbeck; As Aventuras gosto das palavras fatigadas de informar; queria que
de Gulliver, de Swift, pelo qual podemos aprender a relação minha voz tivesse um formato de canto; porque eu não
regra-princípio; Alice Através do Espelho, de Lewis Carroll, em sou da informática; eu sou da invencionática: só uso as
que o personagem Humpty Dumpty é a própria encarnação palavras para compor meus silêncios”.
do juiz solipsista — que decide pela própria vontade. A Novela
do Curioso Impertinente, de Cervantes. Por ali podemos apreen- Não é lindo? E o que dizer de Stephen Georg: “Que nada
der o que é a verdade real, na qual acreditava o personagem seja onde fracassa a palavra”, de onde eu tirei uma espécie de
Alcelmo, buscando uma espécie de “fidelidade essencialista”. poema meu, em que digo: “A palavra é pá-que-lavra, porque
Veremos, ali, a “trampa” que é a tal “verdade real”. E gosto de vai abrindo sulcos na imaginação, onde nascem as sementes

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

Quantos Conselheiros Acácios, personagem de Primo todos do Bertolt Brecht, especialmente A Santa Joana dos Ma-
Basílio, de Eça de Queiroz, encontramos por ai todos os tadouros e o O Círculo de Giz Caucasiano. E quem resiste a Cem
dias? Sua máxima: “As consequências vêm sempre depois”! E Anos de Solidão? “Naquela pequena Macondo, as coisas ainda
quando vemos neonéscios por ai, como explicá-los sem ler A eram tão recentes, que, para dirigirmo-nos a elas tínhamos que
Teoria do medalhão, de Machado, em que o pai dá conselhos ao apontar com o dedo, porque ainda não tinham nome.”
filho com inópia mental, como “Em vez de fazer um tratado Li várias vezes o livro 1984, de George Orwell, para en-
sobre carneiros, compre um e asse para os amigos que você tender o papel do passado, presente e futuro e o valor da lin-
quer influenciar”. guagem. Além desse, também tive de reler O Senhor das Mos-
É demais, não? Livros «à mancheias”, como dizia cas, de William Golding, para revisitar a teoria contratualista
Castro Alves. Quer estudar hermenêutica? Como não, para de Hobbes e O Nome da Rosa, de Eco, para entender o nomina-
tanto, ignorar Medida por Medida, de Shakespeare? E a noção lismo e de como este é uma forma de positivismo.
de imaginário, adiantada em cem anos por Machado de Assis, Tenho muito interesse por filosofia. Acho que não
com o conto Ideias de Canário? há mundo sem filosofia, e não há Direito sem filosofia. Os
Tenho os meus livros favoritos, como Antígona, de Sófo- juristas acham que é possível estudar direito blindando-o
cles, onde se discute pela primeira vez a relação “lei-Direito”; da filosofia. Tem até autores importantes como Alexy que,
Hécuba, de Eurípedes, em que se mostra a tragédia da guerra ao que parece, acredita ser possível fazer teoria do direito
pela voz das mulheres; Oresteia, de Ésquilo, onde aparece pela sem filosofia. Mas não dá.
primeira vez a autonomia do Direito; O Nome da Rosa, de Um- Gosto também de poemas. Meus preferidos são
berto Eco, em que podemos aprender o papel do nominalis- Manoel de Barros e cito de cor um pedaço de O Apanhador de
mo e da semiótica; O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil, Desperdícios:
maior romance do século XX, que mostra, antes de começar, o
declínio do homem na era da técnica; As Vinhas da Ira, roman- “Uso as palavras para compor meus silêncios; não
ce político de engajamento de John Steinbeck; As Aventuras gosto das palavras fatigadas de informar; queria que
de Gulliver, de Swift, pelo qual podemos aprender a relação minha voz tivesse um formato de canto; porque eu não
regra-princípio; Alice Através do Espelho, de Lewis Carroll, em sou da informática; eu sou da invencionática: só uso as
que o personagem Humpty Dumpty é a própria encarnação palavras para compor meus silêncios”.
do juiz solipsista — que decide pela própria vontade. A Novela
do Curioso Impertinente, de Cervantes. Por ali podemos apreen- Não é lindo? E o que dizer de Stephen Georg: “Que nada
der o que é a verdade real, na qual acreditava o personagem seja onde fracassa a palavra”, de onde eu tirei uma espécie de
Alcelmo, buscando uma espécie de “fidelidade essencialista”. poema meu, em que digo: “A palavra é pá-que-lavra, porque
Veremos, ali, a “trampa” que é a tal “verdade real”. E gosto de vai abrindo sulcos na imaginação, onde nascem as sementes

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA

da significação”.
Gosto também de Hilde Domin, que diz: “Palavras
e coisas jaziam juntos, tinham a mesma temperatura”. E Sugestões de leitura e referências:
eu acrescentei: “E depois se separaram e nunca mais se
encontraram”. O próprio Heidegger tem poemas, como: “A
linguagem é a casa do ser, nessa casa mora o homem, os poetas ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 2. ed.
e os pensadores são os vigilantes dessa morada”. Ou T.S. Eliot: São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
“Em um país de fugitivos, quem anda na contramão parece
que está fugindo”. BANKOWSKI, Zenon; MACCORMICK, Neil; MORAWSKI,
Lech; RUIZ MIGUEL, Alfonso. Rationales for Precedent. In:
“Em um país de fugitivos, quem anda na contramão MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. GOODHART, Arthur
parece que está fugindo”. É isso. Finalmente, então, deixo o L. Interpreting Precedents. Nova York: Routledge, 2016.
leitor com aquilo que serviu mais diretamente de referência
expressa a estes escritos. E que o caro leitor não se esqueça BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia
que, em um país de fugitivos, quem anda na contramão parece do Direito. Tradução e notas de Márcio Pugliesi, Edson Bini, e
Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.
estar fugindo; que, em um país de voluntaristas e realistas,
quem defende a legalidade é taxado de “positivista” — o que BIX, Brian. Law, Language, and Legal Determinacy. Oxford:
não apenas significa ignorância, como também um sintoma Clarendon Press, 2003.
dos efeitos deletérios que uma má teoria do Direito provocou,
e continua provocando, no seio do direito brasileiro. BIX, Brian. Jurisprudence. 8 ed. Londres: Sweet & Maxwell,
2019.
Mas há cura: a boa leitura. Então, com saudações
acadêmicas, BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. A Breve História do Positivismo
Boa leitura! Que se angustiem! Como diria Dworkin, Descritivo: O que Resta do Positivismo Jurídico Depois de H. L. A.
Hart? Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, vol. 20, n. 1, jan.-abr.
apenas assim correrão o perigo de se tornarem interessantes. 2015, pp. 309-327.
Do Lenio Streck, escrito na Dacha de São José do
Herval, no inverno de 2019, ilhado por forte nevoeiro CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Contribuições para
– que insiste em coçar as costas no janelão que dá vista uma teoria crítica da Constituição. Belo Horizonte, Arraes Editores,
ao vale que se estende entre as montanhas –, sorvendo, 2017.
com Rosane, goles generosos de uma bela infusão de
Ilex Paraguaienses. DALLA BARBA, Rafael Giorgio. Nas fronteiras da
argumentação: a discricionariedade judicial na teoria discursiva
de Robert Alexy. Salvador: Juspodivm, 2016.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA

da significação”.
Gosto também de Hilde Domin, que diz: “Palavras
e coisas jaziam juntos, tinham a mesma temperatura”. E Sugestões de leitura e referências:
eu acrescentei: “E depois se separaram e nunca mais se
encontraram”. O próprio Heidegger tem poemas, como: “A
linguagem é a casa do ser, nessa casa mora o homem, os poetas ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 2. ed.
e os pensadores são os vigilantes dessa morada”. Ou T.S. Eliot: São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
“Em um país de fugitivos, quem anda na contramão parece
que está fugindo”. BANKOWSKI, Zenon; MACCORMICK, Neil; MORAWSKI,
Lech; RUIZ MIGUEL, Alfonso. Rationales for Precedent. In:
“Em um país de fugitivos, quem anda na contramão MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. GOODHART, Arthur
parece que está fugindo”. É isso. Finalmente, então, deixo o L. Interpreting Precedents. Nova York: Routledge, 2016.
leitor com aquilo que serviu mais diretamente de referência
expressa a estes escritos. E que o caro leitor não se esqueça BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia
que, em um país de fugitivos, quem anda na contramão parece do Direito. Tradução e notas de Márcio Pugliesi, Edson Bini, e
Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.
estar fugindo; que, em um país de voluntaristas e realistas,
quem defende a legalidade é taxado de “positivista” — o que BIX, Brian. Law, Language, and Legal Determinacy. Oxford:
não apenas significa ignorância, como também um sintoma Clarendon Press, 2003.
dos efeitos deletérios que uma má teoria do Direito provocou,
e continua provocando, no seio do direito brasileiro. BIX, Brian. Jurisprudence. 8 ed. Londres: Sweet & Maxwell,
2019.
Mas há cura: a boa leitura. Então, com saudações
acadêmicas, BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. A Breve História do Positivismo
Boa leitura! Que se angustiem! Como diria Dworkin, Descritivo: O que Resta do Positivismo Jurídico Depois de H. L. A.
Hart? Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, vol. 20, n. 1, jan.-abr.
apenas assim correrão o perigo de se tornarem interessantes. 2015, pp. 309-327.
Do Lenio Streck, escrito na Dacha de São José do
Herval, no inverno de 2019, ilhado por forte nevoeiro CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Contribuições para
– que insiste em coçar as costas no janelão que dá vista uma teoria crítica da Constituição. Belo Horizonte, Arraes Editores,
ao vale que se estende entre as montanhas –, sorvendo, 2017.
com Rosane, goles generosos de uma bela infusão de
Ilex Paraguaienses. DALLA BARBA, Rafael Giorgio. Nas fronteiras da
argumentação: a discricionariedade judicial na teoria discursiva
de Robert Alexy. Salvador: Juspodivm, 2016.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

DE MORAIS, Fausto Santos. Ponderação e arbitrariedade: a HART, H. L. A. O conceito de direito. 3 ed. Lisboa: Fundação
inadequada recepção de Alexy pelo STF. Salvador: Juspodivm, Calouste, 1994.
2016.
HEIDEGGER, Martin. Introdução à filosofia. Tradução de
DUXBURY, Neil. English Jurisprudence between Austin Marco Antônio Casanova. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
and Hart. Virginia Law Review, vol. 91, n. 01, mar. 2005, pp. 02-
91. KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: Martins
Fontes, 2010. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2009.
DWORKIN, Ronald. Freedom’s Law: The Moral Reading of the
American Constitution. Oxford: Oxford University Press, 2005. KRAMER, Matthew. H.L.A. Hart. Cambridge: Polity, 2018.

DWORKIN, Ronald. Justiça para ouriços. Lisboa: Almedina, MACINTYRE, Alasdair. After Virtue: A Study in Moral Theory.
2016. Londres: Bloomsbury, 2007.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: MORAIS DA ROSA, Alexandre. Procedimentos e Nulidades no
Martins Fontes, 1999. Jogo Processual Penal. Florianópolis: Emais, 2018.

DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia Jurídica e Democracia.
Fontes, 2005. 2. ed. São Leopoldo: Unisinos, 2003.

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Estatuto epistemológico
Martins Fontes, 2001. do Direito civil contemporâneo na tradição de civil law
em face do neoconstitucionalismo e dos princípios. O
FERREIRA NETO, Arthur Maria. Metaética e a Fundamentação Direito 143.º (2011), II, 43-66.
do Direito. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015.
RODRÍGUEZ, Ramón. Del sujeto y la verdad. Madrid, ES: Ed.
FULLER, Lon L. The Law in Quest of Itself. Boston: Beacon Sintese, 2004.
Press, 1940.
RODRÍGUEZ, Ramón. Hermenéutica y subjetividad. 2. ed.
FULLER, Lon L. The Morality of Law. Edição revisada. New Madrid, ES: Editorial Trotta, 2010.
Haven: Yale University Press, 1964.
RODRÍGUEZ, Ramón. La pretensión de verdad de la
GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. 3. ed. Stanford: Stanford tradición y la experiencia hermenéutica. Fundacion Dialnet.
University Press, 2013. La Rioja, ES, t. 14, fasc. 28, p. 335-345, 2011.
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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

DE MORAIS, Fausto Santos. Ponderação e arbitrariedade: a HART, H. L. A. O conceito de direito. 3 ed. Lisboa: Fundação
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Martins Fontes, 2009.
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DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia Jurídica e Democracia.
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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

STEIN, Ernildo; STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin
Epistemologia: 50 anos de Verdade e Método. 2. ed. rev. Porto Heidegger. Porto Alegre: Edipucrs, 2011.
Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
STEIN, Ernildo. Nota do tradutor. In: HEIDEGGER, Martin. Que é
STRECK, Lenio Luiz. 30 Anos da CF em 30 Julgamentos - Uma Metafísica? São Paulo: Duas Cidades, 1969.
Radiografia do STF. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
STEIN, Ernildo. Pensar é pensar a diferença. 2. ed. Ijuí: Unijuí,
STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a letra da lei é uma atitude positivista? 2006.
Revista Novos Estudos Jurídicos, vol. 15, n. 1, pp. 158-173, jan./abr.
2010. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. São Paulo,
Editora Casa do Direito, 2017.
STEIN, Ernildo. A caminho de uma fundamentação
pósmetafísica. Porto Alegre: Edipucrs, 1997. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e Decisão Jurídica: questões
epistemológicas. Hermenêutica e Epistemologia. 50 anos de
STEIN, Ernildo. A questão do método na filosofia: Um estudo Verdade e Método. 2. ed. revista. STEIN, Ernildo. e STRECK, Lenio
do modelo heideggeriano. Porto Alegre: Movimento, 1983. Luiz. (Orgs.). Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2015.

STEIN, Ernildo. Apresentação: Novos caminhos para uma STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: 11.
filosofia da constitucionalidade. Jurisdição Constitucional e ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
Hermenêutica – Uma Nova Crítica do Direito, 3. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional. 6. ed. Belo
Horizonte: GEN, 2019.
STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. 2. ed.
Porto Alegre: Edipucrs, 2010. STRECK, Lenio Luiz. Lições de crítica hermenêutica do
direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
STEIN, Ernildo. Às voltas com a metafísica e a fenomenologia. Ijuí:
Unijuí, 2014. STRECK, Lenio Luiz. The models of Judges. Between judicial
activism and fundamental rights. Saarbrücken, Lambert Academic
STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude: estrutura e Publishing, 2016.
movimento da interrogação heideggeriana. 1. ed. Ijuí: Unijuí, 2001.
STRECK, Lenio Luiz. O fator Julia Roberts ou quando o Supremo
STEIN, Ernildo. Diferença e metafísica: Ensaios sobre a Tribunal erra. Consultor Jurídico, São Paulo, 25 out. 2012.
desconstrução. 2. ed. Ijuí: Unijuí, 2008. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-out-25/senso-
incomum-fatorjulia- roberts-ou-quando-supremo-erra. Acesso em:
STEIN, Ernildo. Exercícios de fenomenologia: Limites de um 29 ago. 2015.
paradigma. Ijuí: Unijuí, 2004.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

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Epistemologia: 50 anos de Verdade e Método. 2. ed. rev. Porto Heidegger. Porto Alegre: Edipucrs, 2011.
Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
STEIN, Ernildo. Nota do tradutor. In: HEIDEGGER, Martin. Que é
STRECK, Lenio Luiz. 30 Anos da CF em 30 Julgamentos - Uma Metafísica? São Paulo: Duas Cidades, 1969.
Radiografia do STF. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
STEIN, Ernildo. Pensar é pensar a diferença. 2. ed. Ijuí: Unijuí,
STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a letra da lei é uma atitude positivista? 2006.
Revista Novos Estudos Jurídicos, vol. 15, n. 1, pp. 158-173, jan./abr.
2010. STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. São Paulo,
Editora Casa do Direito, 2017.
STEIN, Ernildo. A caminho de uma fundamentação
pósmetafísica. Porto Alegre: Edipucrs, 1997. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e Decisão Jurídica: questões
epistemológicas. Hermenêutica e Epistemologia. 50 anos de
STEIN, Ernildo. A questão do método na filosofia: Um estudo Verdade e Método. 2. ed. revista. STEIN, Ernildo. e STRECK, Lenio
do modelo heideggeriano. Porto Alegre: Movimento, 1983. Luiz. (Orgs.). Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2015.

STEIN, Ernildo. Apresentação: Novos caminhos para uma STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: 11.
filosofia da constitucionalidade. Jurisdição Constitucional e ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
Hermenêutica – Uma Nova Crítica do Direito, 3. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional. 6. ed. Belo
Horizonte: GEN, 2019.
STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. 2. ed.
Porto Alegre: Edipucrs, 2010. STRECK, Lenio Luiz. Lições de crítica hermenêutica do
direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
STEIN, Ernildo. Às voltas com a metafísica e a fenomenologia. Ijuí:
Unijuí, 2014. STRECK, Lenio Luiz. The models of Judges. Between judicial
activism and fundamental rights. Saarbrücken, Lambert Academic
STEIN, Ernildo. Compreensão e finitude: estrutura e Publishing, 2016.
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STRECK, Lenio Luiz. O fator Julia Roberts ou quando o Supremo
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desconstrução. 2. ed. Ijuí: Unijuí, 2008. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-out-25/senso-
incomum-fatorjulia- roberts-ou-quando-supremo-erra. Acesso em:
STEIN, Ernildo. Exercícios de fenomenologia: Limites de um 29 ago. 2015.
paradigma. Ijuí: Unijuí, 2004.

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

STRECK, Lenio Luiz. O juiz soltou os presos; já Karl Marx deixou da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
de estudar e foi vender droga. Revista Eletrônica Consultor
Jurídico, São Paulo, 21 de maio, 2015. Disponível em < https:// TOMAZ DE OLIVEIRA, Rafael. Decisão judicial e o conceito
www.conjur.com.br/2015-mai-21/senso-incomum-juiz-solta-21- de princípio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
karl-max-deixou-estudar-foi-vender-droga>
VAN CAENEGEM, R. C. Juízes, legisladores e professores.
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – a exigência de coerência Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
e integridade No novo Código de Processo Civil. In: STRECK,
Lenio Luiz; ARRUDA ALVIM, Eduardo; SALOMÃO, George WALDRON, Jeremy. A Dignidade da Legislação. São Paulo:
Leite. Hermenêutica e Jurisprudência no Novo Código de Martins Fontes, 2003.
Processo Civil: coerência e integridade. São Paulo: Saraiva, 2016
WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. Oxford: Oxford
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha University Press, 1999.
consciência? 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017.
WALUCHOW, W. J. Inclusive Legal Positivism. Oxford: Oxford
STRECK, Lenio Luiz. Precedentes judiciais e hermenêutica. University Press, 2003.
2. ed. Salvador: Juspodivm, 2019.
WARAT, Luís Alberto. A pureza do poder: Uma análise crítica de
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 6. ed. revista e teoria jurídica. Florianópolis: Editora da UFSC, 1983.
ampliada. São Paulo: Saraiva, 2017.
WARAT, Luís Alberto. O direito e sua linguagem. 2. ed. Porto
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e jurisdição: diálogos com Alegre: S. A. Fabris, 1995.
Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017.
WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito. Porto
STRECK, Lenio Luiz; RAATZ, Igor; MORBACH, Gilberto. Da Alegre: S. A. Fabris, 1994. v. I.
complexidade à simplificação na identificação da ratio decidendi:
será mesmo que estamos a falar de precedentes no Brasil?. Revista WARAT, Luiz Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos
Jurídica Unicuritiba, vol. 01, n. 54, pp. 317-341, 2019. juristas. Revista Sequência, Florianópolis, v. 03, n. 05, 1982.

STRECK, Lenio Luiz; RAATZ, Igor; MORBACH, Gilberto. Da WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Trad. de
genealogia dos mecanismos vinculantes brasileiros: dos assentos José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Nova Cultura, 2000.
portugueses às ‘teses’ dos Tribunais Superiores. Revista WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus.
Eletrônica Do Curso de Direito da UFSM, vol. 14, n. 01, artigo Trad. de Luiz Henrique Lopes dos Santos. 3. ed. São Paulo: EDUSP,
eletrônico 07, 2019. 2010.
TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: Limites

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COMPREENDER DIREITO - HERMENÊUTICA LENIO LUIZ STRECK

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TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: Limites

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