Universidade de São Paulo Campus Da Capital Programa de Pós-Graduação Interunidades em Ensino de Ciências
Universidade de São Paulo Campus Da Capital Programa de Pós-Graduação Interunidades em Ensino de Ciências
Universidade de São Paulo Campus Da Capital Programa de Pós-Graduação Interunidades em Ensino de Ciências
CAMPUS DA CAPITAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO INTERUNIDADES EM ENSINO DE CIÊNCIAS
São Paulo
2022
Rafael Matias de Moura
Versão Corrigida
A versão original encontra-se disponível tanto na Biblioteca da Unidade que aloja o
Programa quanto na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP (BDTD).
São Paulo
2022
FICHA CATALOGRÁFICA
Preparada pelo Serviço de Biblioteca e Informação
do Instituto de Física da Universidade de São Paulo
USP/IF/SBI-057/2021
Rafael Matias de Moura
(BEZERRA, 2019c)
RESUMO
Este trabalho discute as percepções e tensões de egressos de uma licenciatura em Biologia numa
universidade pública do Nordeste brasileiro. A ênfase da tese encontra-se nas experiências
desenvolvidas na trajetória formativa, com destaque às atividades de pesquisa e ensino.
Outrossim, investigou-se as referidas atividades durante a formação inicial e como elas
contribuem no processo de conquista da autonomia intelectual, emancipação humana e
empoderamento. Ao mesmo tempo, o objetivo geral ocupa-se de tentar responder a esta grande
questão da pesquisa. Já os específicos, são os seguintes: estudar os limites das racionalidades
técnica e prática no contexto da formatação docente; identificar os movimentos de subjetivação
ocorridos a partir das ações de empoderamento durante a formação inicial; e, por fim, analisar
as experiências em pesquisa e ensino durante o processo de formação à luz da teorização acerca
da Formação de Si. Para tanto, constituiu-se um arcabouço teórico a partir dos objetivos
elencados no formato de um estado da questão e seguiu-se o trabalho metodológico nos aportes
da Metodologia Interativa. A metodologia revelou-se empoderadora no que concerne à
participação dos pesquisados na primeira etapa de análise do agregado de entrevistas e sínteses
parciais feitas pelo pesquisador. Também possibilitou a produção de dados relevantes que foram
analisados em dois momentos: numa primeira etapa, por meio da elaboração da síntese
interativa; logo após, pela análise hermenêutica-dialética-interativa. Os principais resultados
dizem respeito à predominância da racionalidade técnica no contexto formativo, com a
supervalorização do apego ao conhecimento biológico. A perspectiva de formação centrada nas
escolas também foi percebida. Por outro lado, a única ação de empoderamento em que os
pesquisados sentiram-se engajados foi algum tipo de fortalecimento pessoal e coletivo
percebido nas relações interpessoais entre colegas de turmas e os professores formadores do
curso. A formatação docente também foi confirmada nas motivações e aspirações dos
pesquisados, em que a maioria diz respeito à conquista de um lugar ao sol dado pela conquista
de um emprego público de professor, seja na rede básica de ensino ou na própria universidade
em que estudaram. A principal contribuição desta pesquisa diz respeito à importância de se falar
em uma mudança de perspectiva na formação inicial do professor de Biologia como uma
possibilidade contra-hegemônica aos ditames neoliberais: por um lado, possibilitando o
descentramento da subjetivação como também das ações formativas voltadas às racionalidades
técnica e prática para que haja espaço de luta e resistência; por outro, materializando a
importância de se pensar e lutar por uma formação que contemple um mix de racionalidades
que se ocupem de uma formação sob a perspectiva ética-estética-política-humana. Dessa forma,
enxerga-se um horizonte de trabalho que objetiva formar professores enquanto intelectuais
transformadores, críticos, autônomos e contra-hegemônicos, ao contrário de meros
transmissores de conteúdo escolar e reprodutores de esquemas de currículo prescrito pelos
ditames do neoliberalismo educacional.
This thesis discusses the perceptions and tensions of graduates of a formation in Biology at a
public university in northeastern Brazil. The thesis´ emphasis is on the experiences developed
in the formative trajectory, with emphasis on research and teaching activities. Furthermore,
these activities were investigated during initial formation and how They contribute to the
processo of acheving intelectual autonomy, human emancipation and empowerment. At same
time, the general objective is concerned with trying to answer this great research question. The
specific ones are as follows: study the limits of technical and practical rationalities in the
contexto of teacher formation; identify the subjectivation movements that occured from the
empowerment actions during initial formation; and, finally, to analyze the experiences in
reserarch and teaching during the formation process in light of theorization about Formation of
Self. For that, a theoretical framework was constituted from the objectives listed in the formato
f a state of the matter and followed by the methodological work in the contributions of the
Interactive Methodology. The methodology proved to be empoweringwith regard to the
participation of those surveyed in the first stage of analysis of the aggregate of interviews and
partial synthesis made by the researcher. It also enabled the production of relevant data that
were analyzed in two stages: in a first stage, through the elaboration of the interactive synteshis;
soon after, by the hermeneutic-dialetic-interactive analysis. The perspective of training centered
on schools was also perceived. On the other hand, the only empowering action in which the
respondentes felt engaged was some kind of personal and collective strengthening perceived in
the interpersonal relationships between classmates and the teacher-trainers of the course. The
teaching format was also confirmed in the motivations and aspirations of the respondentes, in
which the majority concerns the achievement of a place in the sun given by the achievement of
a public job as a teacher, either in the basic education or in the university where they studied.
The main contribution of this research concerns the importance of talking about a change of
perspective in the initial training of biology teachers as a conter-hegemonic possibility of
neoliberal dictates: on the one hand, enabling the decentering of subjectivation as well as
formative actions aimed at technical and practical rationalities so that there is space for struggle
and resistance; on the other hand, materializing the importance of thinking and fighting for an
education that contemplates a mix of rationalities that deal with an ethical-aesthetic-political-
human perspective. In this way, we see a work horizon that aims to train teachers as
transformative, critical, autonomous and counter-hegemonic intellectuals, as opposed to mere
transmitters of school content and reproducers of curriculum schemes prescribed by the dictates
of educational neoliberalism.
Tabela 1 – Descritores do Ranking Folha para o curso de Ciências Biológicas na UNEAL …...... 102
Tabela 2 – Frequência simples das formas nominais …………………………………....... 124
Tabela 3 – Palavras de destaque complementar na análise de similitude.……………........ 132
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
INTRODUÇÃO
1
Estamos nos referindo aos documentos normativos da recente reforma do ensino médio e das diretrizes
curriculares da formação inicial e continuada de professores publicadas nestes últimos três anos.
5
vida melhor por meio da continuidade dos estudos em nível da pós-graduação. É nesse
entendimento que os pesquisados definiram “seu lugar ao sol”. De uma forma geral, as
práticas “que estabelecem ligações entre poder, conhecimento e consciência podem ser
as que incluem as relações dentro do aparato pedagógico, e as outras, não tão visíveis,
que ocorrem nas relações sociais vividas pelos estudantes” (CUNHA; LEITE, 2009, p.
77).
Destarte, nossos objetivos e questão de pesquisa surgiram por duas vias: primeiro,
considerando a formação como um processo permanente de reforma do sujeito
cognoscente por meio de suas experiências de vida (VOSS, 2005; 2009; 2013) e o quanto
essas experiências empoderam estes professores-biólogos em relação aos seus propósitos
de vida e às conquistas do binômio empoderamento-emancipação.
Com relação aos pesquisados, foram voluntários egressos das últimas turmas
formadas no campus em que se realizou a pesquisa. Alguns estão às portas do mestrado
tanto na Biologia Aplicada como na área de Ensino de Ciências. Outros estão motivados
por um projeto de vida que se resume à conquista de um lugar no magistério via concurso
público como maneira de viver seu “lugar ao sol”. Os critérios de inclusão e exclusão
estão explicados no capítulo 4, em que nos ocupamos no desenho metodológico desta
pesquisa.
Os três primeiros capítulos constituem a base teórica. No capítulo 1, partimos de
intenção de superar a ideia de um estado de arte com o levantamento de um conjunto de
teses e dissertações para construir um estado da questão (NÓBREGA-THERRIEN;
THERRIEN, 2004) sobre a nossa tensão formativa. Destacar os aspectos de uma
formação mais humana partiu do pressuposto de criticar as bases do modelo formativo
atual e propor nossa leitura criativa, positiva e transformadora.
Esses aspectos da formação entrelaçam a subjetividade no capítulo 2, nos
entremeios de uma formação eminentemente propedêutica, movendo a curiosidade em
questionar valores, crenças e motivações de uma possibilidade de formação alternativa,
numa perspectiva ética-estética-política-humana. Lançamos o olhar diante de
perspectivas teóricas que entendem a subjetivação que convidam o sujeito em formação
às práticas de si e à criação de valores. Dessa forma, buscamos pensar como sujeitos
(re)formam-se por meio das práticas de si durante a graduação e compreender a natureza
dos discursos e regimes de verdade que impactam num tipo de formação para a vida que
é muito mais do que uma capacitação para o mundo do trabalho. Nossas lentes teóricas
buscam mais que formar os profissionais competentes, mas também os sujeitos de
6
Por isso, sem desejar concluir nossa introdução, encerramos nossas palavras
iniciais com as deduções brilhantes de Platão, citadas por Bezerra (2019a) em sua
epígrafe:
É vulgar, servil e inteiramente indigno chamar de educação uma formação que
visa somente à aquisição de dinheiro, do vigor físico ou mesmo alguma
habilidade mental destituída de sabedoria e justiça [...] aqueles que são
corretamente educados se tornam, via de regra, bons, e em caso algum a
educação deve ser depreciada, pois ela é o primeiro dos maiores bens que
proporcionamos aos melhores homens [...] (PLATÃO, As Leis apud
BEZERRA, 2019a).
9
CAPÍTULO 1 –
CONTEXTUALIZANDO A FORMATAÇÃO DOCENTE
Não diga que se, se sou professor de biologia, não posso me alongar
em considerações outras, que devo apenas ensinar biologia, como se
o fenômeno vital pudesse ser compreendido fora da trama histórico-
social, cultural e política. Como se a vida, a pura vida, pudesse ser
vivida de maneira igual em todas as dimensões [...] se sou professor
de biologia, obviamente, devo ensinar biologia, mas, ao fazê-lo, não
posso secioná-lo daquela trama.
(FREIRE, 1992, p.79).
em formação num diálogo permanente com as práticas e com as outras teorias vinculadas,
percebidas nos caminhos de apropriação de conhecimentos. Por fim, advogaremos em favor
de que os professores em formação exercitem um trabalho pedagógico para além do
trabalho docente no chão da escola. Ou seja, “os professores constroem conhecimento a
partir da análise crítica do trabalho e da ressignificação das teorias”. (CURADO SILVA,
2019, p. 111)
Em outras palavras, é uma formação que ocorre por meio de todo o movimento de
“dessubjetivar-subjetivar” (Eckert-Hoff, 2008; Dias, 2012; 2019) das práticas formativas
em comunhão com a teoria imanente ao seu currículo. Dessa forma, para além de uma
subjetivação docente pelos caminhos foucaultianos do “Cuidado de Si” (FOUCAULT,
2017a), compreendemos a importância das práticas de si que envolvem um currículo
mobilizado pela reflexão e pelo exercício de “escrever através do currículo” e “reconhecer
que o ensino não pode se basear apenas na transmissão docente” (CARLINO, 2017, p.
177).
Para realizar o trabalho de discutir com lentes teóricas apropriadas que permitam
iluminar a questão da formação inicial em Biologia bem como subsidiar as análises do
trabalho empírico, decidimos ir além de um estado da arte que se ocupa com o caráter
descritivo da produção acadêmica e científica acerca do tema, dado certo espaço de tempo.
Destarte, nossas lentes teóricas se constituirão por um levantamento bibliográfico nas
possibilidades de um estado da questão (NÓBREGA-THERRIEN; THERRIEN, 2004, p.
11): uma fundamentação teórica que “tem a finalidade de deixar clara a contribuição
pretendida pela pesquisa ao tema investigado e ao estudo como um todo”.
Ao invés de realizar um trabalho descritivo das teses, dissertações e artigos que
problematizam a formação de professores de Biologia, optamos por constituir um
arcabouço que promove o balanço de debate entre estudos, posições e tensões dos últimos
trinta anos da história da formação de professores no Brasil, com ênfase ao período pós-
LDBEN 9394/96. Acreditamos que a nossa atual LDBEN é um marco histórico em três
vias: primeiro, é um ponto de partida da preocupação com a universalização da
escolarização básica, atando definitivamente o objetivo da educação aos propósitos
neoliberais; segundo, também principia e motiva os documentos curriculares de formação
em todos os níveis e modalidades da escolarização na perspectiva neoliberal de formação
para o mundo do trabalho; por fim, constitui um marco das reflexões mais densas sobre a
relação entre a formação de professores e um projeto de sociedade dominada pelo
neotecnicismo (FREITAS, 2011).
12
formação possa ser mais voltada à criação de valores humanos ao invés de produzir
técnicos executores de habilidades e competências definidas por documentos normativos
elaborados em gabinetes técnicos, sob a influência dos reformadores empresariais da
educação.
1.2. Características da Formação e da Formatação Docente
2
Os motivos pelos quais são negadas aos estudantes as possibilidades do estudo como modo de vida fogem
ao espaço deste estado da questão.
14
dos gabinetes técnicos e plataformas virtuais cada vez mais ricas de reprodutores acríticos
e ideologicamente fieis ao neoliberalismo.
Percebemos assim que a reprodução social é retomada no contexto de
neotecnicismo (FREITAS, 2011; ALVES, 2011), em que o contexto da autoformação
intelectual reafirma a meritocracia, o autoritarismo e a ausência de pensamento próprio.
A sociedade atual apregoa a valorização de um profissional cada vez mais técnico,
formatado, mais comprometido com o cumprimento de metas quantitativas do que com o
exercício da reflexão sobre sua prática e de qualquer outra possibilidade intelectual.
Em outras palavras: as elites empresariais no comando político incutem nas
classes populares a perspectiva de que a meritocracia promoverá a ascensão social, assim,
todos devem se submeter às normas de uma economia que transformou tudo em mercado,
inclusive a educação. Por isso, a educação pública que se entende como “eficaz e de boa
qualidade” é fortemente atrelada ao mundo do trabalho. Nesse ínterim, emergem políticas
públicas de larga escala que valorizam o tipo de formação cada vez mais pautada por
critérios e conteúdos mínimos, enxergando a formação básica e superior como um meio
de capacitação preparatória para se desempenhar as competências e habilidades desejadas
num mercado de trabalho cada vez mais instável e competitivo.
Giroux (2003, p. 55-56) descreve o tamanho do problema da reforma empresarial
da educação e suas tendências de formatação docente, pois
(...) a ascensão de uma de uma cultura empresarial reafirma a primazia da
privatização e do individualismo, há um crescente apelo para que aspessoas se
rendam ou limitem suas capacidades de participarem de umapolítica engajada,
em troca de uma noção de identidade baseada no mercado, a qual sugere que
renunciemos a nossos papéis como sujeitossociais, em favor do papel limitado
de sujeitos consumidores. De maneira semelhante, à medida que a cultura
empresarial se estende de forma mais profunda nas instituições básicas da
sociedade civil epolítica, ocorre um enfraquecimento simultâneo das esferas
públicas que ainda não foram mercantilizadas – aquelas instituições engajadas
em que o diálogo, a educação e a aprendizagem – abordam a relação entre o
self e a vida pública, por um lado, e, por outro, a responsabilidade social. Sem
essas esferas públicas críticas, o poder empresarial fica descontrolado e a
política se torna insensível, cínica e opressiva.
Giroux (1997; 2003) demonstra os impactos da rede política de
desempoderamento e neotecnicismo no contexto da reforma empresarial da educação.
Desde a conferência de Jontiem, em 1990, que as orientações neoliberais buscam
universalizar a educação pelo motivo central de adequar a escolarização ao mercado de
trabalho.
Na formação de professores, os documentos normativos produzidos após a
LDBEN materializam a possibilidade de aglutinar, por meio da valorização de
competências e habilidades, elementos tanto de uma racionalidade técnica que valoriza a
16
formação de especialistas como de uma formação prática, centrada nas escolas. Este tipo
de proposta ensaia um esboço de sociedade que subentende que o trabalho é a única
finalidade da formação humana e, portanto, atividade digna de mérito relacionado à
ascensão social.
Assim, as questões subjetivas devem estar presentes sempre na periferia do escopo
central da educação, que é preparar para o trabalho. Uma periferia perigosa e marginal a
ser esquecida na metrópole do capitalismo globalizado.
Dessa forma, passamos ao entendimento de que a formação de professores de
Biologia inter-relaciona duas racionalidades: a técnica e a prática. De um lado, temos a
clássica formação que prioriza os conteúdos de Biologia em detrimento do conhecimento
pedagógico. Por outro, encontramos uma racionalidade emergente após a atual LDBEN,
em consonância com as tendências mundiais, de centrar a formação de professores nas
escolas de educação básica (NÓVOA, 1995a; 1995b). No contexto indicado, a formação
de intelectuais críticos e transformadores fica relegada a um plano secundário e
negligenciável.
Ensaiamos afirmar que as licenciaturas em Ciências Biológicas atuais entremeiam
elementos da racionalidade técnica e da epistemologia da prática: consideram que se
aprende a dar aulas por meio da inserção prática nas escolas, mas não apresentam os
elementos de uma reflexão teórica sobre a mesma prática, apesar de defenderem o jargão
do professor-pesquisador-reflexivo. Ocuparemo-nos dessa discussão de forma mais
específica na seção seguinte.
Para concluir este tópico, passamos a criticar a formação que reproduz tanto o
modelo da racionalidade técnica como a epistemologia da prática, que formata os atores
sociais envolvidos aos ideais de mercado, ou seja, a formatação docente.
3
“3 + 1” é um típico formato inicial das licenciaturas em Ciências no Brasil, com 3 anos de preparação
específica e 1 ano de formação pedagógica. Destacamos, porém, que ainda encontramos este tipo de
formação em diversas universidades no formato presencial e à distância.
18
4
As devidas referências de cada autor serão indicadas no decorrer da discussão.
19
humanos, para seres humanos” (op. cit., p. 31). Porém, ao mesmo tempo em que
defendemos a interatividade em todos os aspectos teórico-metodológicos possíveis, a
formação precisa se voltar essencialmente à emancipação de sujeitos enquanto
intelectuais críticos e reflexivos, e não apenas de atores sociais na condição de
profissionais interativos e dóceis aos interesses do capital.
Sobrepor os aspectos práticos em relação às dimensões mais profundas da
subjetivação docente tende a mascarar o aspecto formativo de um “trabalho de si, em si, por
si e para si” (Hadot,2014). Enxergamos o perigo de reduzir esta relação da subjetividade
com a formação técnica, voltada ao desenvolvimento de competências, habilidades e
destrezas profissionais de alta especialização. Por outro lado, acreditamos em duas
alternativas mediadoras desta relação com o saber alternativo e contra-hegemônico:
a) O conhecimento poderoso (Young, 2007; 2011) enquanto mediador de
racionalidades formativas. Ou seja, a formação passa a ser concebida a partir dos
conhecimentos considerados essenciais pela comunidade científica mas sem
perder o seu poder de aplicação e reflexão em questões práticas da vida pessoal e
profissional;
b) A Formação de Si (BEZERRA, 2019b; MOURA, 2021) como a possibilidade de
uma formação ética-estética-política-humana. Por uma associação simbiótica com
o conhecimento poderoso, defenderemos a possibilidade de construir os alicerces
de uma formação mais humana, voltada à criação de valores e à conquista de
autonomia intelectual a partir dos interesses formativos.
Retomando o estado da questão, nossa crítica central aos epistemólogos da prática
diz respeito ao objetivo da reflexão que indicam nas ações formativas e experiências,
chamadas de reflexão-na-ação (Schön, 1997). A partir dos conceitos de Schön, os
epistemólogos da prática defendem que se deve refletir na ação docente e estabelece
consideráveis e relevantes relações com a teoria do habitus de Bourdieu, por exemplo,
como é feito por Perrenoud (2001). Entretanto, não indica que elementos teóricos devem
ser acionados no processo e tampouco descreve como o trabalho humano docente forja
um habitus e um éthos de professor enquanto sujeito intelectual-pesquisador-reflexivo.
Tanto Perrenoud quanto Schön exploram as relações entre a reflexão na ação e o
trabalho sobre o habitus docente, comparando o ofício de professor à formação laborativa
de um artesão, artista ou esportista. Contudo, esquece de discriminar que todos os tipos
de habitus e éthos profissional possuem seus caminhos de construção por uma aquisição
de capital cultural e social peculiar a cada profissão. Na formatação docente, sua ênfase
21
comum está localizada na realidade objetiva, ou seja, nos esquemas de ação incorporados
interiormente que se tornam ação identificada por seu agente, sem o imprescindível
diálogo com a sua subjetividade.
Uma outra questão que nos preocupa é aproximar a ideia de autoformação
intelectual a uma busca permanente de aperfeiçoamento (SCHÖN, 1997, p. 159),
corroborando nossas reflexões acerca da formatação docente. Estamos percebendo cada
vez mais o aumento de slogans como o número de 10 passos para ser um bom professor,
manual do professor reflexivo, como atingir uma educação de qualidade, como ser um
educador de sucesso etc. etc. Nesse contexto, são competências essenciais à formação:
afirmar a própria identidade, conceber e realizar projetos com êxito, aumentar a
capacidade de enfrentar a complexidade do mundo e de superar obstáculos” (op. cit., p.
159). Aqui, encontramos uma síntese do Santo Graal dos epistemólogos da prática.
Algumas variações de pensamento serão apresentadas ao longo do texto, principalmente
aquelas que colaboram com uma possibilidade formativa sustentada no conhecimento
poderoso e na Formação de Si.
Percebemos também a imbricação entre se formatar na perspectiva de capacitação
e do aperfeiçoamento com a concepção de empoderamento light5 (CORNWALL, 2018):
que o ator social se torne empoderado de forma a contribuir positivamente para o
crescimento da sociedade em que vive. Em outras palavras, estamos nos referindo ao
crescimento pessoal pela meritocracia e pela pedagogia da prosperidade, em três
perspectivas: primeiro, encarando as instituições educativas como garantidoras do êxito
na vida social; segundo, entendendo as pessoas como recursos a serem cada vez mais
explorados; e, por fim, compreendendo a noção individualizada de empoderamento por
meio de uma maior participação econômica no capitalismo tardio e da formação voltada
para o mercado de trabalho.
Assim, quando os epistemólogos da prática referem-se a atores sociais em busca
de aperfeiçoamento e protagonismo social, pode parecer uma forma de conceber a
formação sob um matiz empoderador, porém, é importante enfatizar que estamos diante
de empoderamento light, enquanto fortalecimento da noção de pessoas enquanto
mercadorias para o fortalecimento liberal.
5
Empoderamento light (Cornwall, 2018) é uma tendência atual de se incorporar minorias aos mercados de
trabalho sustentados por normas injustas e práticas discriminatórias. Seu objetivo essencial é investir nas
pessoas por meio do empreendedorismo a partir de uma associação direta entre projetos de emancipação de
minorias e o capitalismo neoliberal, pela instrumentalização para o desenvolvimento econômico.
22
6
Master class é um modelo formativo cada vez mais utilizado no mundo corporativo, que vem sendo cada
vez mais apropriado na formação de professores. Caracteriza-se pela presença online ou presencial de um
mentor, ou seja, uma personalidade notória e especialista nos temas que se deseja aprender. Assim, a
formação de professores por meio da master class dá-se por meio da interação entre os formandos e os
especialistas na área, que tanto podem ser os professores que acompanham os estudantes nas escolas quanto
os professores universitários e/ou grandes expoentes do mundo da educação.
23
formação, sempre enfatizando que o saber experiencial é aquele que mais confere
identidade profissional ao docente.
Tardif (2002a) também consolida suas teses na interatividade e dispensará ainda
mais o sujeito pedagógico e o desenvolvimento da autonomia intelectual na formação
profissional. Para o autor, a subjetivação docente (se) “remete ao fato de que os indivíduos
dão sentido à sua vida profissional e se entregam a ela como atores cujas ações e projetos
contribuem para definir e construir sua carreira” (op. cit., p. 80).
Tardif (2000; 2002a; 2002b) também consolida suas teses na interatividade e
dispensará ainda mais o sujeito pedagógico e o desenvolvimento da autonomia intelectual
na formação profissional. Para o autor, a subjetivação docente (se) “remete ao fato de que
os indivíduos dão sentido à sua vida profissional e se entregam a ela como atores cujas
ações e projetos contribuem para definir e construir sua carreira” (op. cit., p. 80).
Apesar das nossas críticas mordazes aos epistemólogos da prática, é preciso
destacar as suas contribuições no âmbito da educação brasileira nestes primeiros vinte
anos do século XXI. Por exemplo, o pensamento de Schön coopera na busca de uma
formação que valoriza a reflexão na ação docente, em todos os momentos da prática
pedagógica.
Perrenoud (2001; 2002) contribuiu com a noção de competência que extrapola a
transmissão de conteúdos e encara a capacidade de resolver problemas das pessoas
consigo e com o mundo ao seu redor. Também destacamos sua relevante contribuição na
busca de estratégias metodológicas para o desenvolvimento de habilidades e
competências, principalmente no que tange ao uso de tecnologias educativase por meio da
interatividade enquanto mola propulsora do interesse dos estudantes na aprendizagem em
sala de aula.
Tardif, por sua vez, apresenta sua contribuição amplamente relevante no que
concerne aos seguintes pontos: primeiro, auxiliou os países em desenvolvimento, como
Brasil, ao conferir um status profissional à docência; segundo, contribuiu na revelação
das dimensões sociológicas do trabalho docente e dos seus saberes profissionais; por fim,
enfatizando um saber experiencial que agrega todas as características possíveis para a sua
visão de docência: “prático, interativo, mobilizado, modelado, sincrético, plural,
heterogêneo, complexo, não-analítico, aberto, poroso, permeável, social e construído pelo
ator em interação com diversas formas sociais de conhecimentos, competências, atores
etc.” (2002a, p. 109-110).
Concordamos plenamente que a dimensão interativa da prática constitui um
avanço diante da racionalidade técnica, porém, é perceptível que os epistemólogos da
24
prática possuem um slogan comum: o bom professor é aquele que é um bom gestor de
pessoas e procedimentos interativos de aula. Assim, apesar da epistemologia da prática
afirmar “ter pouca coisa a ver com os modelos dominantes de conhecimento inspirados
na técnica, na ciência positiva e nas formas dominantes de trabalho material” (op. cit., p.
111), sua dimensão essencialmente interativa parece valorizar o que existe de mais
conservador em nossa sociedade contemporânea. Ou seja, quando afirma também que
ensinar é “desencadear um programa de interações com um grupo de alunos” (Idem, p.
118) em busca da concretização de um objetivo educacional, sua perspectiva de
aprendizagem legitima a desigualdade social e não enxerga a subjetivação que envolve
uma formação na conquista da autonomia intelectual.
Portanto, por mais que se considere um modelo que menospreze a técnica,
defende-se uma concepção de educação que referenda aqueles que possuem capital
cultural e social mais elevados diante de um modelo de sociedade estruturados nos
interesses e saberes das elites dominantes. Assim, estamos diante de uma racionalidade
que avança sobre a lógica técnica e instrumental, porém, não entende a formação em sua
condição ética-estética-política-humana e superestima o valor da prática e da interação na
perspectiva de treinamento e aperfeiçoamento.
E mais, quando se entende o professor como um “trabalhador interativo”,
despreza-se a natureza de atividade humana sensível do professor quando afirma que “a
tarefa do professor consiste, grosso modo, em transformar a matéria que ensina para que
os alunos possam compreendê-la e assimilá-la”. (Idem, p. 120) Dessa forma, permitimo-
nos inferir que a epistemologia da prática é uma proposta de desempoderamento do
sujeito pedagógico por sua afirmação de um mero ator social dentro de um processo de
capacitação e formatação docente aos ideais e valores do capitalismo neoliberal.
Tardif e os epistemólogos da prática entendem o ser-professor na condição
desumana de um mero executor de atividades padronizadas para o desenvolvimento de
habilidades nos estudantes. E o que é ainda pior: tais competências e habilidades são
definidas pela intencionalidade de um sistema educacional gerido por políticos-
empresários (Bezerra, 2019c) que se interessam apenas na formação de mão-de-obra “útil”
e qualificada aos interesses do mercado de trabalho do capitalismo. Dito de outra maneira,
toda forma de padronização é dominação. (Assim) A semiformação é a
manifestação de uma consciência alienada. Desse modo, a massificação da
formação se torna uma semiformação/pseudoformação, por estar voltada
apenas para o espírito de autoconservação do indivíduo, isto é,para atender às
necessidades de sobrevivência frente aos objetivos imediatos de qualificação e
às exigências do mercado. (BEZERRA, 2019a, p. 309)
25
7
Grifo do autor no texto original.
8
Grifo nosso.
9
Entendidas comumente como disciplinas acadêmicas ou componentes curriculares.
10
Que subentende o professor enquanto especialista em relações humanas.
26
No entanto, seu ativismo permite subentender que se aprende a dar aulas apenas
trabalhando e interagindo nas escolas. Pois, não podemos retroagir a um ponto em que a
docência se torne essencialmente um binômio constituído por know-how e savoir-faire11.
Dito de outra forma, podemos admitir um certo consenso acerca da universidade
na condição de melhor local de formação e apropriação do conhecimento ligado ao
exercício profissional. Porém, centrar a formação no treinamento realizado nas escolas é
uma forma de minimizar a importância da práxis educativa, valorizando um pragmatismo
utilitário que desqualifica uma sólida formação teórica e cultural, afirmando que se pode
aprender tudo pela interação da prática.
Nesse ínterim, os programas institucionais de Iniciação à Docência e à Residência
Pedagógica contribuíram positivamente ao possibilitar: primeiro, uma maior inserção dos
licenciandos na escola-campo na busca de formar profissionais mais engajados com os
problemas das escolas; segundo, no que diz respeito ao fornecimento de mão de obra
barata e qualificada para aumentar a produtividade e eficácia do ensino escolar.
Entretanto, sob o estigma da epistemologia da prática, a apropriação de saberes docentes
parece ser um amálgama entre o desempenho de habilidades e uma ação interativa de
ordem prática (que reside na base dos esquemas inconscientes do habitus).
11
No contexto de crítica desta tese, decidimos não sinonimizar os termos. De forma geral, entendemos
know-how enquanto saber prático, próprio das habilidades adquiridas pela experiência. No mesmo sentido,
savoir-faire diz respeito à forma mais antiga e à francesa de se referir à habilidade na condução de tarefas
com uma conotação que seja uma mescla de perícia profissional e elegância pessoal. Assim, tanto saber
como e saber fazer remetem-se à perspectiva de um profissional que atende às novas demandas do mercado
de trabalho, enquanto trabalhador eficaz por meio do exercício de habilidades valorizadas no mercado e
conquistadas pela experiência e das capacidades pessoais desenvolvidas na formação profissional.
29
12
O autor ainda sinaliza enfaticamente que os saberes procedimentais se constituem saberes sobre os
procedimentos, e não como savoir-faire.
13
Menos conscientes refere-se à dimensão além do inconsciente freudiano, valorizando processos mentais
como “intuição, faro, feeling, senso crítico, insight” (2001a, p. 165).
30
14
Grifo no texto original de Perrenoud (2001a, p. 184). A tradução mais próxima do termo diz respeito à
consciência de si que o profissional adquire no exercício de reflexão e metacomunicação de sua prática.
31
15
Decidimos trocar o termo “adaptados” citado pela versão da publicação em língua portuguesa da obra de
Giroux que tomamos por referência. Percebemos que adaptação, por tradução na nossa língua, pode ganhar
alguns contornos no sentido de ajuste ou adequação, não sendo a acepção original do autor quando se faz
uma avaliação mais ampliada de sua obra, seja em português ou em inglês.
16
Versão original do livro, em língua inglesa. A versão em português desta obra ganha sua primeira
publicação em 1997, sob o título: “Os Professores como Intelectuais – Rumo a uma pedagogia crítica da
aprendizagem”. Porto Alegre: Artmed, 1997.
17
Acreditamos ter respondido a este questionamento nos capítulos 2 e 3, quando discutimos de forma mais
precisa os contornos e nuances da Formação de Si, e com a análise dos nossos dados, nos capítulos 5 e 6.
33
18
Destaque do autor em seu original (ZEICHNER, 1995, p. 117).
34
19
Neste sentido, a expressão concorda com as acepções de Zabala e Perrenoud, nas quais saberfazer é mais
que um savoir-faire e know-how, pois envolve competências e habilidades de natureza conceitual,
procedimental e atitudinal.
35
20
Grifos dos autores na obra original. Numa interpretação geral das obras referenciadas, percebemos um
interesse no entendimento de atividade que se aproxima ao conceito de Lukács de uma “atividade humana
sensível”, no sentido que atua sobre o mundo a partir de um trabalho humano.
21
Depoimento de estudante que vivenciou a Formação de Si pelo Método da Leitura Imanente por meio do
grupo de pesquisa do professor Bezerra.
36
____________________________
22
Contreras (2012) possui um capítulo de livro inteiro discutindo com densidade os problemas relacionados
à autonomia dos professores (ou sua falta). Sua preocupação é essencialmente centrada nas mudanças e
exigências da docência no mundo contemporâneo, devastado pelo neoliberalismo.
38
23
O empoderamento light neoliberal destina-se a empoderar minorias (principalmente mulheres) para que
se tornem forças produtivas do ponto de vista econômico. Por exemplo, as mulheres costumeiramente
trabalham mais por menor remuneração em relação aos homens, ainda tendo que dar conta de tarefas
domésticas nas horas vagas. E mais: sua renda tende a se destinar ao conforto e benefício da família e
demonstra maior tendência em gastos com sabedoria e previdência.
39
24
É importante destacar que a intenção da tabela é revisar as concepções mais relevantes dos autores para
encaminhar a discussão do cenário brasileiro. Principalmente, no que diz respeito ao se constituir o estado
da questão: nossa ideia é realizar o levantamento teórico situando-nos criticamente e reflexivamente diante
dos autores enfrentados. Assim, a tabela não tem valor propedêutico, mas sim de constituir um balanço
do debate a partir dos limites e contribuições localizados no contexto da nossa pesquisa.
40
25
A Conferência de Jontiem marca, de forma mundial, o movimento de reforma empresarial da educação
nos moldes neoliberais que, entre vários aspectos, defende a universalização da educação básica e a
profissionalização da docência.
26
Constitui um dos pilares da Educação, a partir do relatório de Delors, em 1999: Segundo os quatro pilares
(aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a conviver; aprender a ser), a educação contemplaria uma
formação humana voltada para a vida cidadã em sociedade, não apenas como formação para o mercado de
trabalho. Deixaremos os méritos e deméritos desta discussão no campo das elucubrações possíveis diante
da realidade educacional brasileira.
41
27
Uma diferença essencial entre o pensamento da reprodução social de Bourdieu (BOURDIEU;
PASSERON, 2014) e cultural escolar legitimadora das vozes dominantes de Giroux (1997) e a tentativa
deste autor de focar seu pensamento no processo de empoderamento pela formação de intelectuais críticos
e transformadores da realidade social (GIROUX, 1997).
45
28
Original em língua espanhola. Tradução livre.
46
CAPÍTULO 2 –
SUBJETIVAÇÃO E FORMATAÇÃO DOCENTE
Diante do que foi discutido no capítulo anterior, foi defendido que formar os
professores tanto pela condição de técnicos especialistas como pela prática reflexiva
esvaziada de teoria, são caminhos para a formatação docente. Por mais que consideremos
o conhecimento biológico e sua importância enquanto conhecimento poderoso (YOUNG,
2007; 2011), essencial e pertinente à formação, o enraizamento teórico e o excesso de
atividades de ensino em uma licenciatura baseada na racionalidade técnica, permitem uma
formatação muito limitada. Ou seja, a formatação docente é o que existe de mais distante
na atualidade do que entendemos uma formação ética-estética-política-humana, baseada
em autonomia intelectual, empoderamento e emancipação humana.
No contraponto, por mais que consideremos um avanço na profissionalização o
entendimento da formatação permanente baseada na prática reflexiva, a prática esvaziada
de teoria também condiciona os professores e sua formatação ao atendimento de
burocracias escolares que são peculiares ao neotecnicismo (ALVES, 2011). Este tipo de
48
ideal formativo vem sendo defendido pela lógica das competências e habilidades há mais
de 20 anos, ou seja, vem se espalhando como um vírus social dos últimos tempos. Isso
foi apresentado no capítulo 1. Esse movimento pode ser caracterizado por um
redimensionamento de um mix de racionalidades, entre a técnica e a prática, referendada
por:
a) preocupações com as habilidades e competências essenciais para a educação
voltada à inserção no mercado de trabalho;
b) desejo de estabelecer currículos mínimos para a educação básica e projetos de
autoformação baseados em desenvolvimento pessoal e habilidades para o trabalho; e
c) necessidade de uma formação inicial e continuada de professores atrelada aos
propósitos “a” e “b” por meio dos elementos da prática e de uma base comum curricular
nacional para a docência.
Todavia, defendemos que uma formação docente socialmente relevante e sólida
teoricamente encontra-se baseada no conhecimento poderoso aliado à busca de uma
formação de si “que envolve o letramento e a produção de sentidos pelos seres humanos”
(BEZERRA, 2019c, p. 181). Partindo dessa perspectiva, podemos pensar que existe um
certo conjunto de conhecimentos, saberes e práticas essenciais à formação, sem perder de
vista a importância dos movimentos da subjetividade. Ou seja, defendemos ser factível
uma formação ética-estética-política-humana baseada em conhecimentos importantes à
formação que também valorize a subjetivação do sujeito pedagógico em questão sem
necessariamente ser refém dos ditames neoliberais da educação atual.
Dito de outra forma, os conceitos-chave e temas essenciais a formação, vindos dos
especialistas produtores de conhecimento nas universidades e demais centros produtores
de conhecimento especializado podem ser iluminados por olhares que enxergam a
subjetividade sem, necessariamente, constituir formações dicotômicas. Dessa forma, os
sujeitos em formação ingressam na comunidade de especialistas enquanto autônomos e
empoderados intelectualmente, o que pode ser entendido por alfabetização acadêmica
(CARLINO, 2017). A alfabetização acadêmica pretende superar os limites técnicos da
formatação e denotar qualidades imanentes do conhecimento especializado em
associação às trilhas de autonomia, empoderamento e emancipação humana.
Então, a formação docente pode ser mais que a formatação sob a égide
neotecnicista que invade as escolas e as universidades operacionais da
contemporaneidade. Sem perder o apego aos saberes essenciais à formação profissional,
um avanço notório à profissionalização docente, a apropriação e a socialização dos
49
saberes docentes podem ser vistas como formação humana dentro de uma proposta
curricular que seja teórica e pragmática. Nesse contexto, a solidez teórica caminha de
mãos dadas com a prática reflexiva e com a participação política dos sujeitos em formação
no exercício de seu empoderamento.
Se, por um lado, a formação humana não precisa abrir mão do conhecimento
poderoso constituinte do patrimônio cultural envolvido, não pretendemos supervalorizar
qualquer viés pragmático ou compartilhar de algumas visões reducionistas dos
epistemólogos da prática. Ou seja, não pretendemos desdizer tudo que foi escrito no
capítulo anterior. Continuamos acreditando que os teóricos neoliberais do profissional
reflexivo praticamente esquecem da importância política e da subjetividade como viés
formativo, visto que estão comprometidos com a formação para o mercado de trabalho e
de uma prática esvaziada de teorização.
Porém, se buscamos superar os limites das racionalidades formativas e defender
uma formação em que os sujeitos atinjam o máximo de seus potenciais, precisamos pensar
sobre que tipo de conhecimento precisa constituir um currículo, mas também com as
preocupações do escopo educacional, ou seja, acerca de “para quê?” e “para quem?”
ensejamos a nossa proposta formativa. Isto é, por meio do currículo é possível demonstrar
na teoria e na prática nosso compromisso com a elevação de autonomia intelectual dos
sujeitos em formação. Nesse processo, a subjetivação, através do moto contínuo
dessubjetivar-subjetivar, transforma os atores pedagógicos interativos e práticos em
sujeitos pedagógicos: intelectuais crítico-reflexivos a partir da leitura imanente e criativa
de sua prática à luz de estudos sistemáticos e regulares da teoria subjacente.
No redimensionamento do practicum reflexivo que se coaduna com a
alfabetização acadêmica no sentido da formação de intelectuais, podemos destacar, a
princípio, a contribuição de Giroux (1997; 2003; 2013; 2018): pois, formar intelectuais
transformadores, críticos, autônomos intelectualmente e contra-hegemônicos é uma
prerrogativa social para que se formem sujeitos empoderados no exercício de sua
autonomia intelectual. É nessa perspectiva que defendemos a categoria da alfabetização
acadêmica. Apesar do que já discutimos acerca do projeto neoliberal das sociedades
empresariais contemporâneas, sugerimos que a reflexividade possa ser algo mais do que um
conjunto de receitas padronizadas: ser intelectual, estudioso e reflexivo pode sertambém uma
“maneira de viver” (HADOT, 2014; 2016). Um modo de vida intelectual no qual desprezamos o
entendimento de formação reflexiva enquanto um somatório de habilidades e competências a
serem desenvolvidas mecanicamente no chão da escola e nas universidades operacionais.
50
Neste momento, é oportuno salientar que a entendemos não apenas como uma
alternativa contra- hegemônica à formação por meio de competências e habilidades, mas
também como uma proposta sólida de formação baseada em valores e no conhecimento
poderoso.
Concordamos com Young (2013, p. 232) sobre a relação entre a universalização
da educação e a desconfiança crescente no seu potencial emancipador. Nas palavras do
autor, “o próprio currículo precisa partir do aluno não como um aprendiz, mas sim do direito
ou do acesso do aluno ao conhecimento.” (op. cit., p. 233); isso vale tanto para o
conhecimento geral-específico como para o cotidiano escolar.
b) Alfabetização Acadêmica (CARLINO, 2017): Na visão da autora, é um termo de ampla
aceitação no contexto anglo-saxão que “assinala o conjunto de noções necessárias para
participar da cultura discursiva das disciplinas” da universidade (CARLINO, 2017, p. 17).
Também pontua as práticas e linguagens próprias do âmbito acadêmico superior e
“designa também o processo pelo qual se chega a pertencer a uma comunidade científica
e/ou profissional, precisamente em virtude de haver se apropriado de suas formas de
raciocínio instituídas através de certas convenções de discurso”. (op. cit., p. 17-18) Em
contexto, enxergamos as possibilidades de articular as perspectivas da alfabetização
acadêmica com uma base de conhecimento poderoso youngiano, densamente teórico mas
estreitamente vinculado à vida cotidiana dos sujeitos em formação.
c) Leitura de si e do mundo por meio da Dialogicidade (FREIRE, 1987): a formação
dialógica pressupõe a conscientização e o diálogo, diante do contato permanente com as
obras freireanas Educação como Prática da Liberdade (FREIRE, 1967), Conscientização
(FREIRE, 1979), Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1987), Pedagogia da Esperança
(FREIRE, 1992) e Pedagogia da Autonomia (FREIRE, 1996). No contexto de uma
formação humana, percebemos que o diálogo constitui o encontro dos homens
mediatizados pelo mundo, para além de uma relação eu-tu. (FREIRE, 1987, p. 91) Pois,
o diálogo é o melhor caminho para redescobrir nossa humanidade e nossos valores
universais por meio de uma educação que, mais do que ensino e instrução, é sempre
aprendizado.
29
Oportunamente, o autor faz uma descrição precisa do entendimento de sujeito, enquanto uma categoria
fundamental para se pensar a formação de si. Sujeitos são aqueles que governam e trabalham a natureza
para conservar sua existência, uma definição ancorada em Lukács. Sendo assim, “decidem sobre as normas
de associação, distribuição de poder e status de autoridade” (BEZERRA, 2019c, p. 58), determinando as
formas, condições e possibilidades de apropriação de recursos. Por isso, “sujeito” se diferencia em essência
de outras categorias próximas, como agente, ator social ou personagem social e pessoa. Dito de outra forma:
só podemos pensar em autonomia intelectual e emancipação social no contexto do sujeito como balizadores
de uma formação humana empoderadora.
52
em sua multidimensionalidade. Isto é, entendíamos cada vez mais onde (in) existia o
(des)empoderamento que mobilizou nossos interesses e questões.
E mais, ao longo do tempo, íamos percebendo que
O currículo se compõe, além de disciplinas, de ações em programas como o
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), em projetos
de extensão, em instâncias estudantis, em grupos de estudo, nas vivências,
entre tantas outras possibilidades; assim, seria interessante ver nessa
diversidade não necessariamente um problema, mas, pelo contrário, parte da
solução para a formação de professores (MOHR; WIELEWICKI, 2017, p. 11).
Necessitamos fazer alguns pequenos ajustes nas categorias “b” e “c”, de forma que a classificação de
30
31
Grifo nosso.
32
Habitus constitui o conjunto das disposições psíquicas, duráveis e transponíveis, que foram estruturadas
e possuem princípios de sua representação e funcionamento no sujeito (BOURDIEU, 1996; SETTON,
2002; NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004; MATON, 2018).
33
Até o momento, trata-se de uma concepção fundada na teoria, q u e tensionaremos no nível de
encontro com os fatos empíricos.
34
Explicamos a formatação docente no capítulo anterior.
56
a) seu habitus: quais suas percepções, ideias, expectativas, gostos e demais disposições
psíquicas; b) conhecer as condições com que o habitus foi construído; e c) a posição
social: que é o princípio de correlação e inteligibilidade da prática ou atividade
(CHARLOT, 2013). Em contexto, “o habitus é estruturado pelas condições materiais da
existência e também gera práticas, crenças, percepções, sentimentos etc., de acordo com
sua própria estrutura”. (MATON, 2018, p. 76)
Assim, pontuamos que existe uma relação direta entre as motivações e aspirações
da docência e a constituição do habitus docente, visto que são instâncias produtoras de
subjetividade, tanto na forma de valores culturais como de referências identitárias
(SETTON, 2002).
Para nós, a formação de professores em Ciências Biológicas envolve escolhas,
tomadas de decisão e disposições percebidas desde a opção do curso até os destinos de
carreira e projetos de vida. O olhar desta pesquisa para a subjetivação docente diz respeito
aos limites e possibilidades que os sujeitos em formação dispõem em todas as suas
atividades formativas. E mais: acreditamos que o habitus docente é forjado também no
trabalho pedagógico de estudo e pesquisa com mais força do que nas atividades de ensino,
que constitui o grande carro-chefe das licenciaturas.
Em outras palavras, passamos a nos perguntar: em uma licenciatura fortemente
marcada pela racionalidade técnica e suas atividades de ensino, que tipo de pesquisa pode
contribuir para uma formação mais humana em Ciências Biológicas? Seria este tipo de
pesquisa elitizada e voltada para os estudantes em tempo integral35 ?
35
Apenas uma pessoa entre as seis entrevistadas, Amora, apresentou familiaridade com a pesquisa
acadêmica e a produção no mundo da Biologia. Nome fictício.
57
36
Estamos nos referindo ao programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência e ao programa de
Residência Pedagógica (MEC/Capes).
58
37
Além de ser um termo polissêmico, existem várias formas de sua expressão. Podemos encontrar as
principais variações em biólogo-professor e biólogo-educador. A inversão do termo deu-se por dois
motivos: primeiro, por nossa própria predileção e escolha; e segundo, foi solicitado aos participantes da
pesquisa que se posicionasse diante desta questão, de forma que pudéssemos, a partir do jogo de palavras,
compreender que aspecto da formação os sujeitos da pesquisa dão mais carga valorativa.
38
Muitos cursos de licenciatura ainda possuem esse formato, classicamente convencionado como 3 + 1:
perfazendo 3 anos de preparação específica seguida de 1 ano de capacitação pedagógica. Em nosso
entendimento, este tipo de curso enquadra-se na categoria de formatação docente.
59
39
Aqui, temos uma congruência entre os educadores budistas (Ikeda e Makiguchi) e o referencial da
complexidade de Morin.
40
Interface entre o pensamento dos educadores japoneses descritos nesta tese e o pensamento humanístico
e dialógico de Paulo Freire.
60
Se tentássemos resumir tudo o que foi dito neste capítulo, teríamos um texto mais
ou menos assim: uma licenciatura voltada às práticas de si enseja a formação de um
sujeito crítico, reflexivo, transformador e contra-hegemônico, por meio da expressão
sociocultural das conquistas obtidas durante a licenciatura.
61
41
Na obra original: “Devido à riqueza da palavra empowerment, que significa a) dar poder a, b) ativar a
potencialidade criativa, c) desenvolver a potencialidade criativa do sujeito, dinamizar a potencialidade do
sujeito, mante[re]mos a palavra no original e em grifo. (FREIRE; SHOR, 2013, p. 26, formato Epub).
63
42
Período em que o autor se dedica à construção de uma genealogia do poder, com obras de destaque tais
como “Vigiar e Punir” e “Microfísica do Poder”.
64
43
No caso de uma formação humana e empoderamento, estamos nos remetendo à autonomia intelectual
com vistas à transformação social.
65
sociais concretas desempenhadas pelos mesmos” (GIROUX, 1997, p. 162). Nesse ponto,
é inevitável a reflexão sobre a formação com a finalidade de desenvolver autonomia
intelectual em seus cidadãos críticos e transformadores, pois, “para que uma formação
educacional ultrapasse as questões utilitárias da vida, é preciso aprender a olhar o mundo
do local onde se vive, ao obter os benefícios sociais e éticos de uma vida construída
comunitariamente” (VOSS, 2013, p. 51).
Acreditamos ser um desafio emergente, porém imprescindível, formar nossos
professores-biólogos com as perspectivas de formação humana, na condição de
intelectuais empoderados. Ou seja, enquanto sujeitos em formação crítica e reflexiva,
cuidando de si e dos outros, engajados e mobilizados com a sociedade e com a natureza,
pois, “o que realmente importa, em última instância, é o grau de responsabilidade que
cada indivíduo assume no trabalho para o bem comum e a melhoria da sociedade”
(MAKIGUCHI, 2002, p. 112-114).
Em outras palavras, qualquer formação humana deve estar pautada pelo trabalho
de si consigo, com os outros e com o mundo. Nas palavras de Foucault (2017b), este tipo
de trabalho envolve a possibilidade do cuidado de si à moda greco-romana que se encontra
relacionada a uma estética da existência. Bezerra (2019c) ainda complementa ao
caracterizar a formação humana enquanto uma ética das virtudes e uma estética da
existência. Nesse sentido, as práticas de si surgem nas mesmas dimensões do
empoderamento: individual, social e político. Pois, “o autoconhecimento resulta da
reflexão do que é um benefício para si e um bem para todos” (MAKIGUCHI, 2002, p.
74). Daí surgem as formas coletivas de empoderamento e exercício da autonomia e da
emancipação por meio das práticas educativas.
A formação educacional assim entendida como uma formação humana por meio
das práticas de si, envolve o exercício de suas técnicas de si, ou seja, envolve a criação
de valores aprioristicamente humanos: a criação de valores a serem exercidos nas práticas
sociais. Em contexto, a percepção da subjetivação docente voltada ao empoderamento
apropria-se de outro termo freireano: a autorreflexão como parte do processo de
formação em que nos questionamos e refletimos sobre as questões que povoam nossos
pensamentos, sentimentos e ações.
Retomando a perspectiva de alfabetização acadêmica que iniciamos neste
capítulo, acreditamos que a mesma só faz sentido (do ponto de vista freireano) se
encaminhada a uma proposta de autorreflexão, “que contribui para uma política de
educação crítica, visando atender ao interesse da autonomia e emancipação de cada
sujeito” (FORTUNA, 2015, p. 67).
68
44
Uma evocação ao termo de condição humana por meio do labor de Hanna Arendt (ARENDT, 2007).
Decidimos alocar a questão em uma nota de rodapé, para não incorrer em uma digressão diante do tema da
formação em questão.
70
sobre a complexa realidade em que insere a sua prática educativa, bem como refletir sobre
o sentido ético e político da mesma” (SILVA; INFANTE-MALACHIAS, 2013, p. 225).
Diante de tudo que foi exposto neste capítulo, acreditamos ter delineado a
importância da subjetivação, de seus movimentos e sua intersubjetividade na formação
de professores. Também acreditamos ter iluminado os caminhos para a discussão do
próximo capítulo sobre a Formação de Professores à luz de uma proposta alternativa, a
Formação de Si, de forma que os valores humanos e elementos teóricos aqui discutidos
trilhem pelas veredas do empoderamento, da autonomia intelectual, da criação de valores
e da emancipação humana.
72
Foi ao som de “Cálice” que nos encontramos com a Formação de Si. O trabalho
empírico que estávamos conduzindo após a fundamentação teórica dos capítulos 1 e 2
estava nos levando aos resultados que já tínhamos levantado teoricamente: uma
licenciatura fundada na racionalidade técnica permeada por elementos da epistemologia
da prática, tais como a lógica das competências e a ênfase na formação centrada nas
escolas. Ao mesmo tempo, entre as idas e vindas das leituras do agregado de entrevistas45,
emergiam percepções de sujeitos que se mostraram, mais que tudo, cansados por terem
vivido uma formação de muita teoria e pouca prática do conhecimento biológico, como
também de uma prática esvaziada de teoria e orientação no chão da escola.
Chamamos este tipo de formação paradoxal desde o capítulo 1 sob o rótulo de
formatação docente. À medida em que aumentava a tensão entre os limites da formatação
e se delineavam os horizontes de uma formação ética-estética-política-humana, os
egressos da licenciatura que foram ouvidos por nossas entrevistas contavam histórias que:
por um lado, enchiam nossos olhos de lágrimas diante de tantas dificuldades e
precariedades enfrentadas (algo bastante típico da formação de professores de uma
universidade estadual de pequeno porte localizada no Nordeste brasileiro); por outro,
mostravam uma felicidade estranha por terem aprendido receitas de experimentos e
metodologias ativas para aplicar em suas salas de aula (atuais e futuras), nas quais o
diálogo e a formação humana eram eventos festivos, de tão raros. Contavam bastante
também sobre a celebração da amizade entre companheiros de ofício em formação, dando
45
As releituras fazem parte do desenho metodológico escolhido para a pesquisa. Explicaremos melhor este
trabalho metodológico nos capítulos seguintes.
73
uma efetiva importância às relações interpessoais que foram constituídas durante o curso,
como também ao registro de eventos que se aproximam da mentoria e coaching realizados
pelos professores-formadores.
Sem incorrer na digressão de antecipar resultados da pesquisa, percebíamos de
uma forma geral que os aspectos humanos da formação parecem cada vez mais
esquecidos ou negligenciados. Sob a atual lógica das competências e habilidades, atingir
metas e objetivos tornou-se um sinônimo de formar para a cidadania e principal escopo
do desenvolvimento intelectual dos estudantes, sempre com vistas à participação
produtiva no mercado de trabalho capitalista.
Sob os pressupostos de buscar uma formação ética-estética-política-humana, a
partir de agora denominada “Formação de Si” (FSi), decidimos defender uma proposta
teórico-metodológica, alicerçando nossa proposta de trabalho a partir do método da leitura
imanente (BEZERRA, 2019a; 2019b; 2019c). Em perspectiva, lançamos mão de uma
base teórico-pedagógica que agrega potencial e valor aos referenciais que constituímos
até o momento: referimo-nos à teoria da Relação com o Saber, associada aos paradigmas
morinianos da Transdisciplinaridade e Complexidade (MORIN, 2011; 2013; 2015) e aos
princípios da Dialogicidade Freireana (FREIRE, 1967; 1987; 1989).
A partir de uma lógica contra-hegemônica, defendemos uma FSi que proporcione
condições para que os sujeitos possam ser eles mesmos, autores de suas histórias e que
elaborarem questões de pesquisa por meio dos diferentes campos de conhecimento,
abordagens e métodos; portanto, empoderados da apropriação da cultura envolvida na sua
formação por meio dos seus estudos realizados. Nesse tipo de formação, enxergamos
protagonismo e empoderamento, pois
deixamos a condição de ator, que nos obriga a agir burocraticamente sob
prescrição, para agirmos no mundo sob o juízo ético, estético e político da
nossa existência, assim, agimos em pesquisa e ganhamos consciência nas
ações da responsabilidade de sermos formadores de nós mesmos (BEZERRA,
2019b, p. 127).
Acreditamos assim que também estamos elucidando as lentes teóricas em que
analisaremos o trabalho empírico que será realizado nos capítulos vindouros. Nossa
intenção central é propor a perpsectiva de uma racionalidade alternativa que, por seu
caráter contra-hegemônico, rompe tanto com os aspectos neopositivistas e elitistas da
racionalidade técnica e instrumental como também da racionalidade prática, que prioriza
a prática em detrimento da teoria. Dessa forma, a FSi constitui algo mais que a nossa
teorização acerca de uma formação por uma racionalidade crítica e dialética, mas
também demonstra a nossa tentativa de professor-pesquisador-intelectual em valorizar a
74
condição de sujeito em uma formação cuja subjetividade docente estrutura-se por meio
de ações de empoderamento e desenvolvimento da autonomia intelectual.
A partir do exposto, nossa hipótese de trabalho, de agora em diante, passa a se
organizar em torno do estudo, ou seja: dimensionar a FSi enquanto trabalho pedagógico
empoderador que envolve a pesquisa por meio da leitura-escrita dos conhecimentos
como um modo específico de aquisição. Dito de outra forma, a FSi é baseada no trabalho
pedagógico em que se aprende pelo estudo e estuda-se escrevendo (BEZERRA, 2019b).
Partimos assim das seguintes categorias teóricas:
1) O método da leitura imanente (MLI) é “trabalho pedagógico de estudo e
pesquisa” (BEZERRA, 2019a, 2019b; 2019c) e recebeu uma
recontextualização a partir dos pressupostos pedagógicos de Makiguchi,
passando a deixar claro que “o objetivo da educação deve coincidir com a
finalidade maior da vida dos educandos” (MAKIGUCHI, 2002, p. 36). Assim,
a leitura imanente passa a ser uma possibilidade de empoderamento de si
consigo mesmo, com os outros e com o mundo.
2) A partir da necessidade de contrapor a lógica das competências e “formar um
sujeito engajado no mundo” (VOSS, 2013, p. 129) que não se limita à atuação
no mercado de trabalho, consolidamos uma segunda categoria:
autorrealização. A priori, a FSi entende que “é preciso o reconhecimento de
que a principal força motriz da educação é o interesse do aluno, o qual pode
ser canalizado, redirecionado e focalizado, mas nunca ignorado ou reprimido”
(NORTON, 2002, p. 225). Logo, a FSi abarca uma categoria que compreende
a autorreflexão e a autorrealização enquanto ponto de partida e de chegada de
uma trilha em que o autoconhecimento é um modo de vida e constitui um
exercício fundamental de empoderamento. Ou seja, desenvolvemos uma
mobilização para o saber, tomada de atitudes mais conscientes, aumento de
autoconfiança e autoestima bem como agregar propósitos de vida que alinhem
a vida pessoal com a profissional.
Por meio do empoderamento conquistado pelo binômio autoconhecimento-
autorrealização em busca da autonomia intelectual emancipadora, “a educação deve se
concentrar no fornecimento de orientação para os processos de aquisição de
conhecimento e criação de valores” (MAKIGUCHI, 2002, p. 171). Assim, a FSi advoga
em favor da máxima pedagógica: “diante da constatação de que o educando só aprende
se quiser, é preciso fazer o ensino intrinsecamente desejável” (PARO, 2010, p. 31).
75
46
Posição é a nossa forma de indicar a localização do trecho citado em um e-book sob formato Kindle.
47
Em linhas gerais, Foucault entende que a autoconstituição do sujeito envolve a experiência com o outro,
na constituição intersubjetiva do cuidado de si. Hadot (2014; 2016) amplia esta visão demonstrando que as
práticas de si adquirem a terminologia de “ascese” ou “exercícios espirituais”, na forma de um trabalho de
si consigo mesmo e com os outros. No pensamento original de Foucault, estudam-se as cadernetas de notas
pessoais e a correspondência entre filósofos. Para Hadot, a ascese é uma forma de vida, incluindo hábitos
físicos, intelectuais, políticos e religiosos. Em cadernos, cartas ou exercícios espirituais, como a meditação,
o sujeito está se constituindo diante do processo de narrar a si mesmo, (re)construindo sua subjetividade à
medida em que escreve sobre si.
48
Grifo nosso.
49
Adaptação entre as acepções do autor na versão original (GIROUX, 1988) e a tradução em Português
(GIROUX, 1997).
77
50
Estamos nos referindo ao exercício de incorporar à FSi, no bojo do método da leitura imanente, os
elementos da pedagogia de criação de valores de Makiguchi (2002).
51
Os itens destacados constituem elementos centrais da teoria de Charlot, aqui mencionado sumariamente,
visto que já apresentamos qual é o nosso interesse na referida teoria. Para saber mais, recomendamos as
obras de referência de Charlot (2000; 2013; 2020).
79
52
Popularmente chamado de Último Foucault, o autor preocupou-se nos últimos anos de sua vida com o
modo de vida greco-romana, de forma a compreender a estética da existência e o cuidado de si, entre outros
conceitos. Explicando melhor, “Foucault descreve quatro técnicas de si: cartas, exame de consciência,
interpretação de sonhos e ascese, divididas, por sua vez, em exercícios de pensamento (melete) e exercícios
na realidade (gymnasia)”. (ORTEGA, 1999, p. 69)
53
Foge-nos ao espaço da tese discutir a etimologia adequada entre indíviduo, agente, ator social ou sujeito.
Fazê-lo poderia nos sujeitar a uma digressão desnecessária para este momento da discussão da FSi, todavia,
destacamos nossa unívoca preferência pelo termo “sujeito”.
80
54
Neste caso, Freire (2019) refere-se à Madalena Freire, filha do nosso patrono da educação brasileira.
55
Nesse contexto, agregamos tanto a ética das virtudes como elemento das práticas de si que proporcionam
a governamentalidade de si e dos outros como também a importância ética de se pensar o empoderamento
em suas dimensões individual, coletiva e política.
56
Comungamos com os referenciais da FSi apresentados pelo professor Bezerra (2019a, 2019b, 2019c) que
entende o estudo como um trabalho pedagógico de pesquisa, aceitando as acepções marxiana e lukacsiana
do trabalho humano enquanto atividade humana sensível. Podemos encontrar outras considerações sobre a
natureza do trabalho pedagógico nas obras do professor Victor Henrique Paro (2010; 2018).
82
Dito de outra forma, a FSi é uma formação humana que mobiliza o sujeito ao
empoderamento em suas atividades que produzem sentido58 através das formas concretas
de trabalho humano59, em níveis:
57
O próprio Bourdieu pensou em uma Pedagogia Racional em que a compreensão dos mecanismos de
reprodução sociocultural e da violência simbólica permite-nos pensar nas estratégias de superação das
limitações sociais (BOURDIEU; PASSERON, 2014; NOGUEIRA & NOGUEIRA, 2004). Um segundo autor
que compartilha esta linha de pensamento é Giroux (1983), concebendo uma Pedagogia Radical como
tentativa de construir contornos mais específicos à tentativa de superar a dominação da elite cultural e
econômica sobre os menos favorecidos socialmente.
58
Compartilhamos a concepção de sentido (saber e aprender) em comunhão com Charlot: o sentido de
aprender e compreender, quer na escola, quer fora dele [...] é uma questão de mobilização, pois, “ninguém
aprende sem desenvolver uma atividade intelectual, [...] e assim, só se engaja em uma atividade [intelectual]
quem lhe confere um sentido (CHARLOT, 2013, p. 145-156).
59
Concordamos com a tese marxista e lukacsiana de que o trabalho humano é uma atividade humana sensível,
também defendida pelo professor Bezerra (2019a). Porém, para não incorrer em uma digressão sociológica
mais profunda, que fujam ao escopo desta tese, não desenvolveremos tal discussão sociopolítica.
83
individual – realizado nas práticas de leitura e escrita sobre os temas expressos nos
conhecimentos a partir de suas categorias, conceitos e ideias; coletivo ou organizacional
– é a socialização do conhecimento apropriado a partirdos movimentos de discussões e
debates que se realizam colaborativamente; e, por fim, político: mobiliza as experiências
locais dos educandos como elemento-chave de apropriação do conhecimento socialmente
legitimado, despertando uma relação de confiança no saber e possibilitando a
transformação social. Sendo assim, o trabalho pedagógico de pesquisa envolve o
empoderamento em seus três níveis: individual, coletivo e político (BAQUERO, 2012).
Assim, atrelado ao empoderamento, estudar não se constitui um trabalho comum,
pois envolve pesquisa individual, trabalho colaborativo e engajamento político. Desse
modo, como nós, professores-formadores, poderemos sair à luta pela FSi diante de um
cenário em que a escolarização para todos pulveriza conhecimentos e opera sob a lógica
das competências e habilidades para o mercado de trabalho?
Todos nós vivemos a maior parte de nossas vidas nas organizações responsáveis
pela produção, socialização e apropriação de conhecimentos, as organizações de ensino.
Participamos do gênero humano envolvendo-nos com atividades nas quais
(re)construímos a cultura humana. Por mais que não se tenha uma plena consciência disso,
sempre estamos nesse movimento de transformação diante do patrimônio cultural que nos
é de direito, logo nos constituímos enquanto atores ou sujeitos pedagógicos, apropriando-
nos de e (re)produzindo a cultura. A pesquisa imanente ao ato de estudar é um exemplo
dessa atividade, uma forma de trabalho intelectual sobre a cultura ou uma atividade
humana sensível (BEZERRA, 2019a).
Entretanto, para se analisar a questão “é preciso interessar-se pelo sentido da
atividade [intelectual] e pela sua eficácia” (CHARLOT, 2013, p. 144): precisamos
também indicar duas questões textualmente mais simplistas, porém, essenciais para esta
discussão: primeiramente, “por que e para que um aluno estuda?” (Idem, p. 144); e outra:
“a atividade de pesquisa é mais significativa para a apropriação e a socialização dos
conhecimentos do que o ensino?” (BEZERRA, 2019b, p. 309).
É quase um consenso afirmar que existe na Internet uma ritualização de estudo,
principalmente para concursos e vestibulares, com vídeos, aplicativos, tutoriais e manuais
para se estudar mais e melhor. A mesma prerrogativa vale para escrever. Dito de outra
84
forma, os manuais de escrita para exames e para a academia estão presentes de maneira
significativa sob a forma de manuais de fácil leitura (CHAUÍ, 2001) e acesso pela web.
Em todos os locais de aprendizagem de leitura e escrita pode-se validar a seguinte tese: é
possível conquistar o letramento pelos caminhos de ler escrevendo, preferencialmente,
estudando por longas horas o patrimônio cultural caracterizado pelo conhecimento
poderoso atinente à sua formação.
Porém, se apenas o número de horas ou o conteúdo estudado com disciplina
teórica e listas de exercícios garantissem o sucesso escolar, seria improvável admitir o
fracasso dos chamados “concurseiros”. Questões sempre interferem no contexto do
estudo, tais como a apropriação do território onde se estuda e as tensões de uma escola
meritocrática que defende a pedagogia do dom e ainda subentende o sucesso escolar como
“produto de uma inteligência ou talento naturais” (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p.
92).
Mesmo assim tornamo-nos estudiosos em um longo processo de escolarização em
que contextos e semelhanças mobilizam atividades e sentidos diferentes, com resultados
diversos. A tríade saber-poder-sujeito caracteriza-se por uma permanente busca de
expressão das formas de ser no mundo, que se organizam por meio de categorias que
passamos a estruturar conforme ampliamos nossas fronteiras de apropriação de
conhecimentos.
De forma intimamente relacionada com as questões do capítulo anterior, a
subjetivação torna-se elemento central na validação das respostas dos sujeitos quanto aos
seus desejos, virtudes e asceses. Em paralelo, destacamos as contribuições de Hadot
(2012; 2016; 2017; 2019) no que diz respeito ao entendimento de trabalho de si como um
exercício espiritual, uma ascese que envolve desejos, virtudes e o “sentimento de presença
no mundo” (HADOT, 2016, p. 104).
Agregar o raciocínio hadotiano da filosofia como “maneira de viver” (HADOT, 2017)
ajuda-nos a transpor a camada teórica desta discussão aparentemente filosófica e promove
um elemento pragmático: antes de saber como estudar, entendemos que a ascese do
autoconhecimento-autorrealização constitui o elemento central dos motivos e sentidospelos
quais estudamos. Sobremaneira, o oráculo délfico “Conhece-te a ti mesmo” ganha uma
dimensão de prazer e terror, na qual se permite enxergar os “componentes de nossa relação
com o mundo” (HADOT, 2016, p. 215). Nessa dimensão, encontramos mais elementos da
intersubjetividade, tais como estremecimento, estupefação e intensificação da consciência.
Assim, a vida filosófica institui uma reflexão cotidiana: considerando nosso potencial humano
para sermos estudiosos, por que as pessoas estudam muito pouco,em geral?
85
Uma formação humana pode assim perder espaço nos interesses das pessoaspor
dois motivos: primeiro, as famílias geralmente buscam no estudo um caminho de
ascensão social, logo, as preocupações éticas, estéticas, políticas e humanas são relegadas
a um plano secundário; segundo, constituem pessoas que vivemum rigorismo ascético de
forma a investir mais na formação dos filhos, e possibilitar o retorno socioeconômico do
que fora investido.
Haveria ainda um terceiro motivo, no que diz respeito à boa vontade cultural (op.
cit., p. 79) das classes trabalhadoras em adquirir o patrimônio cultural das classes
dominantes, com uma forma laboriosa e dedicada de conviver com as elites. Assim,
tomam-se para si a ideia de que o “conhecimento dos poderosos” (GALIAN, 2014) é o
melhor para si, pois sua ascensão pretendida busca a transição para as elites. Por fim,
podemos inferir que, apesar da escolarização ser para todos, há um grupo de pessoas que
mais atribui valor à educação escolar, quase sempre com vistas ao crescimento econômico
a partir do mercadode trabalho.
Dessa maneira, os estudantes das classes trabalhadoras que conquistam o sucesso
na escola passam a constituir uma exceção digna de evidência social, em que se valoriza
o mérito individual diante da Educação para Todos, conforme já discutimos no capítulo
1. A meritocracia da formação por competências e habilidades despreza as limitações
socioeconômicas dos estudantes afirmando que é possível para todos conquistar o sucesso
profissional através da escolarização. É assim que a formação humana perde espaço para
a formação neoliberal, em que se pretende garantir o sucesso na formação para vida e
para o mercado de trabalho defendendo uma falsa igualdade de oportunidades na escola
e no mercado. Por outro lado, mesmo diante das constatações de que a educação deve ser
universalizada, as agências internacionais nunca terão condições financeiras de prover
recursos para que os mais pobres possuam uma educação de qualidade por meio de
recursos do Estado. Nas palavras de Charlot (2013, p. 53),
O Banco Mundial tem uma doutrina oficial: Pensa que a qualidade da educação
é para lutar contra a pobreza, mas que não tem e nunca terá dinheiro público
suficiente para desenvolver uma educação de qualidade. Daí o Banco Mundial
concluir que é preciso dinheiro privado. Considera que os quatro ou cinco anos
de educação primária cabem ao Estado, mas que a educação secundária ou
superior deve ser paga pelos pais. Acha também que nos países pobres, em
particular os da África, é preciso diminuir o salário dos professores, para
reduzir a diferença entre o que eles ganham e a renda dos camponeses...
Endossando o raciocínio de Charlot, Bezerra (2019c, p. 27-50) luta radicalmente contra a
educação neoliberal, defendendo que a escolarização e a formação superior tencionam atender
apenas aos interesses do capital, por meio da qualificação profissional e a formação voltada à
produtividade para o trabalho assalariado. Assim,
87
60
Chamamos este tipo de capacitação no capítulo 1 de Formatação Docente.
88
61
No levantamento bibliográfico, constatamos que a maioria das publicações constituem trabalhos quereúnem
manuais com dicas e técnicas para a produção de textos e estudos sistemáticos.
89
Por isso, defendemos uma formação omnilateral e reflexiva do estudioso com vistas à
emancipação humana. Por mais que à primeira vista pensemos em método em uma lógica
positivista-cartesiana, a essência da FSi é algo do tipo: cuide de seus estudos e seja dono
de sua vida.
Dessa maneira, concluída a caracterização da FSi, sentimos a necessidade de
apresentar nossas escolhas metodológicas e dialogá-las com os pressupostos do
empoderamento e da emancipação humana que discutimos nestes três capítulos dedicados
à teorização.
92
CAPÍTULO 4 –
POR UMA METODOLOGIA EMPODERADORA
Para atender aos objetivos acima, fomos aprendendo a estabelecer métodos que
fossem sistemáticos, sensíveis e interpretativos para que pudéssemos aprender os
caminhos de contexto para responder nossas questões e objetivos. Assim,
93
62
O CHD será explicando logo adiante no decorrer do capítulo 5.
94
63
Grifo nosso.
95
64
Para melhor compreensão, dividimos as quatro bases em dois grupos para apresentar com mais clareza a
evolução histórica da MI.
97
Quadro 2
Esquema dos pressupostos teóricos da Metodologia Interativa
Domínio Teórico Aplicação na Metodologia Interativa
Hermenêutica Interpretação da realidade em seu contexto
histórico (Gadamer, 2007).
98
65
Ranking universitário Folha, em 2018. Disponível em https://ruf.folha.uol.com.br/2018/perfil/
universidade-estadual-de-alagoas-uneal-5242.shtml. Acesso em 17/11/2019.
66
O limite temporal de cinco anos foi estabelecido por se tratar da quantidade de tempo em que somos
docentes do referido Campus e puderam ser estabelecidas questões com maior pertinência à formação e ao
que dispõe o PPC.
103
67
A saber: Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes, aplicado pelo Ministério da Educação com
destino a mensurar indicadores de avaliação nacional para os cursos de ensino superior.
68
Todos os nomes são fictícios, no desejo de preservar o anonimato os sujeitos da pesquisa. A
caracterização mencionada foi feita a partir dos dados obtidos em triangulação com a proposta
metodológica e os interesses da pesquisa.
104
Fonte: Google Imagens. Legendas baseadas em Oliveira (2010; 2014; 2021) e Silveira (2017).
106
Por exemplo, em um CHD composto por quatro entrevistados69 (P1, P1, P3 e P4)
são realizadas quatro entrevistas, geralmente, sob o formato semiestruturado em que os
temas da conversa são definidos por um roteiro elaborado pelo pesquisador. Entretanto,
cabe ao pesquisador conduzir a conversa de forma que o entrevistado transcorra
livremente sobre os pontos do roteiro e garantir que todos os temas sejam contemplados.
Assim, a transcrição da entrevista de P1 é feita pelo pesquisador logo após o trabalho
empírico. Logo após a transcrição, o pesquisador escreverá a primeira versão de sua
síntese parcial, por meio de tópicos, considerando o que foi dito pelo entrevistado e suas
observações pessoais tomadas no diário de bordo da pesquisa.
O trabalho seguirá com a entrevista realizada com P2, a partir da mesma dinâmica
realizada anteriormente. Após a entrevista, o pesquisador mostrará sua síntese parcial dos
tópicos elencados a partir do que foi dito pelo entrevistado anterior. Nesse momento, P2
terá a oportunidade de posicionar-se, tecendo suas contribuições e indicando
contradições. O pesquisador retorna ao trabalho de transcrição e a síntese parcial do
segundo entrevistado é fornecida após a entrevista com P3, que também fará suas
contribuições e reflexões. O trabalho transcorrerá com a mesma dinâmica até o
entrevistado P4.
Uma observação importante para a compreensão da metodologia diz respeito ao
fechamento do círculo. Conforme explicamos, no vai-e-vem das entrevistas e sínteses
parciais, nota-se que apenas o entrevistado P1 não teve a oportunidade de ler uma síntese
parcial e indicar suas contribuições, contradições e reflexões. Porém, isso não acontece.
Pois, o mecanismo de fechamento do CHD em dois momentos: No primeiro, o CHD é
encerrado com o retorno ao primeiro entrevistado, que poderá contribuir diante da síntese
parcial da última entrevista, permitindo assim uma participação de todos os sujeitos de
pesquisa no trabalho de pré-análise do pesquisador; no segundo momento, o pesquisador
proporciona um encontro entre todos os entrevistados para que possam dar as suas
contribuições e construir colaborativamente a síntese interativa – versão final da síntese
percolada no CHD. Quanto ao número de participantes, Oliveira (2001; 2010) recomenda uma
quantidade entre quatro e oito participantes, de modo que “o investigador elabora uma síntese
com os elementos participantes do círculo, e os convida para um momento de apreciação,
negociação e inserção de novos elementos à realidade escrita por eles” (SILVEIRA, 2017, p. 93).
69
Legendas escritas pelo pesquisador em orientação virtual com a autora e a partir de seus trabalhos, tais
como Oliveira (2010; 2021).
107
Fonte: Google Imagens. Legendas adaptadas a partir de Oliveira (2010; 2014; 2021) pelo autor.
No CHD, consideramos a importância da interatividade, pois, além das sínteses
parciais, o fechamento do círculo dá-se quando o ciclo de entrevistas se encerra, mas
também possui sua culminância com a reunião dos participantes. Essa reunião é de
extrema importância para que o grupo, no exercício do seu empoderamento, conduza as
pré-análises do pesquisador a uma versão final da SI.
109
Em outras palavras, o CHD fecha-se após uma dupla rodada de contribuições dos
seus participantes: primeiro, de forma individual, diante de uma síntese prévia elaborada
pelo pesquisador; depois, em um encontro no qual o grupo debate sobre o agregado de
pré-análises apresentadas pelo pesquisador e constroem, colaborativamente, o texto
final70.
No sentido de promover uma maior interação entre os participantes e a autoria
colaborativa, seu trabalho de redação final foi realizado por meio de uma oficina entre os
mesmos, que produziram um texto em tópicos, a partir dos modelos apresentados pelo
pesquisador durante o CHD. Surgiram assim duas grandes contribuições dessa pesquisa
com a elaboração da SI de forma mais participativa e colaborativa:
1) As pessoas foram motivadas a escrever um texto com a identificação do grupo.
Para tanto, desejaram escrever na primeira pessoa do plural, sugestão que foi
acatada pelo pesquisador;
2) As pré-análises do pesquisador foram apresentadas no início da oficina,porém,
com um diferencial: o pesquisador instrumentalizou a escrita colaborativa
apresentando as análises realizadas com o Iramuteq. Os dados do software
constituíram uma forma de complementar e didatizar a apresentação e
mediação do pesquisador.
Um terceiro destaque pode ser inferido com relação ao encontro final: é um
momento que já se constitui em devolutiva, mesmo que de forma prévia, dos dados da
pesquisa aos seus colaboradores. Assim, o encontro final também permitiu a apresentação
de outras perspectivas da realidade pesquisada e dados objetivos a partir das entrevistas
iniciais e das sínteses previamente elaboradas pelo pesquisador.
Desse modo, acreditamos que o Iramuteq contribuiu para respeitar ao máximo a
participação e protagonismo dos entrevistados, como também diminuiu os impactos da
subjetividade do pesquisador perante os dados da pesquisa.
70
Na maioria dos casos, o pesquisador elabora o texto final e apenas apresenta aos participantes para suas
contribuições e colaborações. Na nossa pesquisa, dadas as propícias condições de campo, decidimos ousar
na implementação do Iramuteq e investir na autoria colaborativa do grupo.
110
71
O corpus textual é constituído pelo agregado da transcrição das entrevistas, somando-se as sínteses
parciais do pesquisador, as colaborações específicas dos participantes no percurso do CHD e as notas do
diário de bordo ou campo do pesquisador.
111
mais de uma hora de conversa), permitindo que o aplicativo tivesse uma relevância de
dados de 78,9%72.
É importante salientar que, em nossa metodologia, utilizamos o Iramuteq como
uma ferramenta instrumentalizadora à síntese em que culminância o CHD. Por isso
mesmo, apresentaremos neste item a variedade de recursos analíticos do Iramuteq, porém,
no caso desta pesquisa, faremos alguns recortes de utilização bem específicos. Por
exemplo:
a) As classificações obtidas foram essenciais para uma caracterização da SI por
meio de blocos temáticos, e não instrumentalizadora de uma análise de
conteúdo (como é de costume);
b) Os blocos temáticos dividiram e organizaram as percepções em relação ao que
fora questionado nas entrevistas, como também em sintonia com os objetivos
e a grande questão do pesquisador;
c) Apresentar as palavras mais citadas e suas devidas localizações em cada
entrevistado permitiu uma maior apropriação do texto pelo grupo, além de
enxergar algumas contribuições e contradições relevantes.
As classes são obtidas por meio da semelhança léxica, em que os segmentos de
textos (ST) de maior semelhança são agrupados em uma mesma classe. (CAMARGO,
2005) Dessa maneira, cada classe é representada por uma cor específica e por diversos
formatos visuais e estatísticas simples, com destaque para o dendrograma, que é a figura
em que apresenta uma classificação colorida, onde as palavras estão dispostas de acordo
com a frequência, de maior a menor tamanho em relação à frequência obtida.
Existe um segundo recurso que será relevante para nosso trabalho de pré-análise
e elaboração da SI: a Nuvem de Palavras. De um formato visual bastante chamativo e
comum aos softwares de análises qualitativa, a nuvem representada as palavras de maior
incidência em maior tamanho e posição centralizada. Em outras palavras, em uma nuvem,
o tamanho da palavra e sua centralidade na imagem indica sua frequência e estabelece
relações de força na classificação.
No caso do Iramuteq, existe uma observação importante a ser feita: podemos
utilizar filtros de seleção para escolher as classes gramaticais de maior força. No caso,
podemos optar por uma maior valoração em substantivos e verbos. Além de ser um
recurso visualmente interessante, denotamos a importância da nuvem de palavras que
72
Números acima de 70% são considerados viáveis para a consolidação das análises.
112
apresenta um retrato panorâmico das evocações para a apresentação dos dados para o
grupo e subsidiar a redação da SI na forma de uma síntese na parceria entre o pesquisador
e os entrevistados, ou seja, um texto construído colaborativamente. Portanto, olhando a
nuvem como um todo, percebemos que a maior preocupação nas evocações gira em torno
da palavra central na nuvem.
Desse modo, acreditamos ter contribuído com a MI no sentido de respeito máximo
à produção colaborativa dos sujeitos envolvidos mediante orientação do pesquisador e
fidelização às falas originais.
73
Por meio de um grupo de WhatsApp, o pesquisador apresentou o Iramuteq aos participantes, enviando
um conjunto de tutoriais disponíveis na internet e explanações a partir do seu manual (SALVIATI, 2017).
113
74
Esquema baseado na Análise Textual Discursiva de Moraes e Galiazzi (2016).
115
75
Grifo nosso.
116
Complexidade A compreensão totalizante na forma de síntese final tem constitui uma unidade
em que o todo que supera a soma das partes isoladas.
Fonte: Adaptado a partir das convergências entre Oliveira (2021) e Moraes e Galiazzi (2016).
Destacamos que aliar a MI aos pressupostos da ATD consolidou expectativas
positivas, consolidadas a partir das contribuições do Iramuteq. Ou seja, o software
demonstrou precisão e confiabilidade na análise textual como também produziu dados
atrativos que, na forma de metatextos, promoveram o protagonismo do grupo de trabalho
na versão final da SI, em sua primeira fase. Podemos sintetizar as etapas da primeira fase
da MI nos seguintes tópicos (OLIVEIRA, 2010):
• Construção dos instrumentos de pesquisa;
• Aplicação dos instrumentos de pesquisa ou coleta de dados;
• Transcrição das entrevistas;
• Identificação dos elementos essenciais para a construção da síntese;
• Síntese parcial das informações após cada entrevista com
adições/comentários/sugestões;
• Condensação da síntese;
• Encontro final com os entrevistados.
Acreditamos que a aplicação de softwares de pesquisa qualitativa constitui um
campo promissor na primeira fase de trabalho nos moldes da MI, que principia com as
transcrições das entrevistas e possui culminância com a materialização da versão final da
SI. Por fim, a utilização de evocações diretas do corpus textual na SI junto às pré-análises
também amenizou a tensão permanente da pesquisa qualitativa: entre a minimização da
subjetividade do pesquisador e sua contextualização participativa. Nos entremeios desse
processo, mantivemo-nos na tensão entre o empoderamento e a autonomia intelectual dos
participantes da pesquisa, como também na busca permanente de caminhos que atendam
de forma específica a teorização e nossas questões de pesquisa, além de capturar a maior
quantidade possível de emergentes por meio do CHD.
Fonte: Elaborado pelo autor a partir da interface entre Minayo (2008), Oliveira (2010) e Silveira (2017) .
Por mais que possa parecer uma construção reducionista, por buscar um certo
consenso, o principal objetivo da SI é construir um entendimento global da realidade
pesquisada, de forma complexo-dialógica, de forma que se caracterize certa realidade
histórica para um determinado número de pessoas envolvidas com a pesquisa. Nesse
sentido, a SI possui uma perspectiva de intervenção na realidade e colaboração, na qual
um sujeito pode intervir na fala do outros e, no encontro de ideias, fazer surgir a
colaboração e os novos emergentes, por meio de um texto que é plural, mas não despreza
o brilho das percepções individuais. Logo, entendemos a SI numa perspectiva
intervencionista, que se encontra na margem oposta do reducionismo e da segregação de
conhecimentos, atendendo aos pressupostos da hermenêutica, da dialética, da
complexidade e da dialogicidade.
Entretanto, o processo de síntese, por meio de sua própria dialética, é um processo
que, além de provocar unificações, gera conflitos. Esta é uma tensão dinâmica e
construtiva de duas formas: o primeiro ponto diz respeito às questões que se destacam no
corpus textual e à utilização na SI das evocações dos próprios pesquisados; e, em segundo
lugar, sempre existe uma tensão entre a posição do pesquisado individualmente e sua
participação em um grupo de trabalho.
Por outro lado, acreditamos que a referida tensão é criativa, assim, defendemos
que a MI possui um aporte teórico-metodológico de enriquecimento didático do grupo de
trabalho, pois proporciona crescimentos individuais e coletivos durante sua trajetória.
Retomando as questões do capítulo anterior, as evocações predominantes e
algumas estatísticas textuais foram obtidas através do IRAMUTEQ. Destacaremos uma
análise sobre as palavras mais frequentes do corpus, o dendrograma e a nuvem de
palavras.
No aplicativo, as palavras são organizadas e aproximadas por lematização76. O
corpus é transformado em segmentos de textos77 (com tamanho aproximado de três linhas
ou quarenta palavras): as frequências são identificadas e geram um dicionário de forma
que proporciona a categorização que será apresentada adiante.
A indicação de palavras mais citadas e da organização de um dicionário com classes
gramaticais e suas frequências nos textos tornou-se um instrumental importante para a construção
e reconstrução do texto-síntese das entrevistas. Por outro lado, também permitiu uma visão geral
76
Lematização é uma técnica geralmente utilizada por softwares buscadores de palavras a partir de seus
radicais, ignorando tempo verbal, gênero, plural etc.
77
Um segmento de texto (ST) possui o tamanho aproximado de três linhas ou quarenta palavras do corpus
textual.
124
78
Em linhas gerais, o aproveitamento do texto pelo software deve ser superior a 70%.
79
Ocorrências são palavras, formas ou vocábulos.
80
Frequência simples.
81
Foi escolhida uma forma verbal diante da importância do trabalho no contexto das falas dos atores
sociais.
125
No programa que foi desenvolvido, de certa forma, ele nos deixou um bom
conhecimento, mas também deixou várias lacunas, por exemplo, há esse
distanciamento do específico para o pedagógico e os professores usam muito
data show. Eu acho que o bom professor é aquele que envolve, que faz coisas
diferentes dos demais... Porque o aluno percebe a diferença do professor que
tem uma boa metodologia, tira as dúvidas e conversa, mas também ensina e
não fica apenas no âmbito da sala de aula... (Igor)
Quando você lê e debate nas aulas da faculdade é uma coisa, quando chega na
prática, é totalmente diferente, eu sei que ainda não sou um bom professor,
ainda me falta experiência de sala de aula. (Heitor)
Eu acho que o tradicional não dá mais conta de toda essa complexidade porque
a criança está ali em busca de muitas coisas que nem sempre é o conteúdo da
aula, sem falar na falha da base familiar... (Aurora)
Acho que organizam o curso dessa forma para segurar a onda da evasão, que
mesmo assim é alta, aí contam o curso como a coisa mais maravilhosa do
mundo, aí não tem transparência com os alunos nem contam das diversas
possibilidades de carreira que podemos seguir, sem falar que temos apenas
umas disciplinas pedagógicas no começo que são meio “nada a ver”... Sem
falar que algumas delas não tem professor ou são ministradas em curso de
férias, eu mesma conheço muita gente que foi pagar Didática no Campus III...
deveria ser uma disciplina tão importante, não sei porque falta professor
justamente nessa área... (Aurora)
Essa divisão do curso tem uma questão política, mas acho que deveria ter uma
disciplina em que se pudesse investigar a origem social e as motivações dos
alunos... Também seria legal que eles pudessem contar suas trajetórias e
projetos de vida, mas isso teria que ser logo no início do curso.82 (Victor)
82
Esse trecho foi relacionado repetidamente dada a sua importância em cada contexto utilizado.
127
Eu acho que o bom professor lá a liberdade par o aluno falar o que pensa,
quando ele se expressa, ele aprende mais... Acho que o papel do professor não
é apenas seguir o roteiro dos conteúdos da disciplina, por mais que transmitir
os assuntos de biologia seja muito importante. (Amora)
Teve um aluno meu que disse que queria fazer biologia e eu achei isso muito
gratificante, não só porque foi na minha aula, mas porque eu sei que esse aluno
vai entrar gostando das coisas da universidade porque falei disso nas minhas
aulas... (Igor)
A maioria dos professores e alunos parecem que só estão ali para cumprir
horário... acho que a ideia de ter amor ao que se faz é parte da ideia de valorizar
aquilo que ensina e ser um bom professor. (Igor)
f Pessoa: São formas que relacionam essencialmente a valorização da pessoa
do aluno, da mesma forma que aconteceu com “gente”. Complementando as
falas citadas acima, também destacamos a relação de motivação dos
professores e outros aspectos interpessoais da trajetória formativa e indicam
componentes morais voltados a um objetivo geral da educação.
Eu gosto também de estar na escola pública porque estendo a minha vida com
o social... eu penso que meu olhar é diferenciado quando vejo as coisas das
escolas e penso nos problemas sociais que as pessoas possuem... (Aurora)
Penso que tendo um bom professor é mais fácil ser um bom aluno, já que nem
todo mundo vai ser cientista político nem jogador, mas todos devem ser boas
pessoas. (Igor)
Eu não desisti do curso pela força das pessoas que queriam o meu bem, a
primeira metade do curso foi ruim, tinha muita Biologia e eu trabalhava
demais. Tinha dia que eu saía daqui e voltava para fazer a limpeza da loja ou
algum trabalho que ficou pendente, fiquei muito até a madrugada, era muito
puxado. (...) Foi muito importante o contato pessoal com dois professores que
me ajudaram nas disciplinas e dando força nos momentos fora de sala, foi aí
que comecei a entender que trabalhar com as pessoas é olhar nos olhos e tentar
decifrar o que ela traz para a aula... aí me pergunto se é próximo do que eu
tenho, do que passei na vida, eu gosto de enxergar as trajetórias sem perguntar,
e dar o meu melhor para tornar as pessoas melhores. (Victor)
Eu quase desisti do curso, se não fosse a ajuda dos colegas... As pessoas aqui
se ajudam bastante. Eu precisei vender brigadeiro para me manter aqui antes
de conseguir a bolsa do PIBID e eles me ajudaram. A Amora, por exemplo, é
uma das pessoas mais incríveis que eu já conheci, não tem tempo ruim para
128
Eu não achava que ia ser professor tão cedo, mas aí surgiu a oportunidade e eu
precisava trabalhar... (Igor)
Além de destacar as palavras mais presentes no corpus textual por meio da
lematização, uma contribuição fundamental do Iramuteq é a organização dos segmentos
de texto em classes, por meio da Classificação Hierárquica Descendente. Essa
organização em classes é dada pela relação entre os vocábulos e os temas semelhantes,
dispostos em um esquema hierárquico de classes. Tal classificação permite que o
pesquisador, ao analisar cada agrupamento de dados, possa categorizar as classes por
temáticas afins, a partir da compreensão teórica aliada ao conteúdo que emerge de
palavras e frases em cada grupo. Essa classificação foi de extrema pertinência para a
organização de unidades de análise ou sentido para a segunda fase da análise que será
discutida no próximo capítulo.
O conteúdo analisado foi categorizado em cinco classes: Classe 1, com 56 ST
(21,21%); Classe 2, com 65 ST (24,62%); Classe 3, com 50 ST (18,94%); Classe 4, com58
ST (21,97%); e Classe 5, com 35 ST (13,26%). Denota-se uma predominância das falas em
relação às atividades realizadas durante o curso, com ênfase na pesquisa e as perspectivas de
carreira no mundo acadêmico (classe 2). Logo em seguida, destacam-se as práticas de si durante
a formação (classe 1), com destaque às ações na escola e às relações interpessoais com os colegas
de turma.
Vale ressaltar que as cinco classes se encontram em duas grandes ramificações (ver figura
3), com as seguintes proporções estatísticas:
129
Figura 3
Dendrograma dos agrupamentos na classificação hierárquica descendente.
83
Houve um destaque nas falas de Belchior, que relatou a superação da dificuldade de falar em público
durante a formação.
84
São evocadas relações: entre ciência e tecnologia, entre professores e licenciandos bem como as relações
de poder envolvendo a gestão do curso.
85
Demonstram interesse pelo bacharelado em Ciências Biológicas, porém, por se tratar de curso de regime
diurno, alegam a impossibilidade de realizar uma formação neste formato.
86
Neste trabalho, decidimos não utilizar os dados fornecidos pelo teste de Quiquadrado e das análises
fatoriais por distribuição e por correspondência, por considerar que o excesso de dados estatísticos fugiria
da intenção de utilizar as análises do software como subsídio à elaboração colaborativa da síntese interativa.
131
Figura 4
Comparação entre as palavras distribuídas no plano fatorial e suas variáveis88.
87
Nessa variável, percebe-se o destaque entre a preocupação com questões sociopolíticas em Aurora. Já
nas falas de Victor, percebe-se um envolvimento maior com as questões de natureza pessoal.
88
Para esta pesquisa, por questões operacionais, foram elencadas apenas as variáveis relacionadas aos
sujeitos da pesquisa.
89
A escrita do parágrafo não teve qualquer intenção de dividir os atores sociais por sexo, a redação foi
dada apenas pela similaridade dos discursos.
132
Figura 5
Árvore de similitude do agregado das entrevistas.
90
Os grafos são estruturas matemáticas que envolvem as relações de similitude entre os objetos de um
determinado conjunto.
91
Foram abordadas separadamente por motivo de estarem dispostas em posições distintas na árvore.
133
Eu acho tenso é que a gente estuda muita coisa que não vai ensinar na escola e
também não estuda aquilo que está lá no livro didático. Eu vejo o pessoal
reclamando disso nos grupos quando estão fazendo a Residência Pedagógica.
(Igor)
Tem esse abismo entre teoria e realidade... um dia você trabalha as questões
históricas e filosóficas do ensino e, no dia seguinte, chega na escola e tem um
monte de aluno com sérios problemas familiares e atécom fome... Isso é uma
triste realidade e a universidade ainda não dá muita conta disso, como questões
de pesquisa. O que vemos é uma pena coletiva e uma tendência de culpa o
governo ou o gestor mais próximo...(Victor)
Acho legal fazer uma abordagem prévia para ver o que o aluno sabe e dosar a
parte expositiva com algum jogo ou dinâmica, também acho legal quando os
alunos também pesquisam em casa e debatem na sala...eu vi muito disso no
estágio. Também pesquiso sempre alguma reportagem atual do assunto da aula
na internet ou nas redes sociais (Igor)
Uma vez, no início do curso, eu fui sentar na biblioteca para ler um livroe uma
colega chegou para mim e disse: “E aí, vamos ou bora?” Eu respondi que estava
ali pesquisando... aí ela disse que eu não tava pesquisando e que deveria
procurar o curso de pedagogia, que ali não era para mim, ainda disse que sabia
que eu gostava de artes e sugeriu que eu procurasse um curso nessa área, por
que era mais fácil. Nessa hora, eu fiquei brabo e disse poucas e boas para
ela. Depois nosentendemos, e hoje somos até amigos. (Belchior)
O que contou como muito positivo na minha formação foi, em primeiro lugar, o
grupo de pesquisa... [...]
Eles mostram muito a pesquisa no início do curso e isso ajuda muito, né? O
calouro já vai entrar gostando de Biologia e vai gostar ainda mais... É
verdade que eu falei que o curso não volta para ser professor, mas isso também
não vai do aluno? (Amora)
Dessa forma, é notável uma preocupação com a questão social e do vínculo com
a comunidade local. Também se denota a distância entre saberes universitários e escolares
bem como a falta da discussão de questões sistematizadas sobre o que realmente acontece
em sala de aula durante a formação universitária. Por fim, a fala de Heitor mostra a
importância de estar vinculado física e afetivamente à escola em que trabalha, sendo um
aspecto motivador para se gostar do que faz que não depende da formação diretamente.
134
92
Estamos somando as falas sobre pesquisa e pesquisar por se tratarem de temas afins e possuírem o
mesmo radical.
93
Uma segunda questão bastante evidente, é a vontade de desistir que foi citada pela maioria dos
entrevistados. Contudo, ela foi evidenciada em uma outra árvore de similitude, construída com todas as
palavras de força do corpus, com alta poluição visual. Para minimizar esse efeito, a árvore de similitude
apresentada neste relatório trabalha apenas com palavras de força com frequência simples acima de 10
citações no corpus textual.
135
Nesse sentido, pode-se inferir que, de maneira geral, os discursos dos atores
sociais, além de dialogarem com a literatura que foi apresentada no referencial teórico,
demonstra alguns aspectos relevantes da subjetivação na licenciatura por meio de práticas
de si e ações de empoderamento, principalmente no que se refere à pesquisa e à escola.
Também se revelam aspectos fundamentais relacionados à caracterização do perfil dos
licenciandos: a maioria são trabalhadores-estudantes e o trabalho é um elemento central
para o projeto de vida dos mesmos.
A última análise do Iramuteq é a Nuvem de Palavras. A análise por meio da nuvemé a que
possui maior interesse no aspecto visual, pois as palavras são organizadas em nuvem com
tamanhos diferentes, em que as palavras maiores são as que detêm maior importância no corpus95.
Ou seja, “a fim de agrupar as palavras e as organizar graficamente em função da sua relevância,
sendo as maiores as que possuem maior frequência, considerando-se apenas a que tinham
frequência mínima 10” (MELO et al.,2020, p. 484).
94
Em conformidade com a nota anterior, essas questões também foram evidenciadas na primeira árvore
de similitude, com todas as palavras do corpus. Decidimos fazer uma “limpeza” para as palavras com mais
de10 citações no intuito de evitar a poluição visual e permitir a leitura dos dados obtidos.
136
Figura 6
Nuvem de Palavras.
95
A indicação é feita por meio de frequência simples.
137
4 (Aspirações) Escolhemos a licenciatura, porém, estamos mais interessados pelo mundo da Biologia
do que pela opção de sermos professores. Não entendemos bem essa ideia de sermos
professores-biólogos. A formação interessa-nos por ser a única opção de licenciatura
na região que possui diversas possibilidades de atuação além da escola. Não pudemos
pensar na possibilidade de outro curso por questões financeiras e sociais.
Estamos aqui também pela influência de nossos professores de Biologia, mas não
influências únicas. Também gostávamos de outras disciplinas no Ensino Médio, mas
de Biologia era um pouco mais. Outras pessoas também nos influenciaram, como os
colegas de turmas anteriores que já conhecíamos antes de entrar aqui e até de nossos
familiares. Somos estudantes de classe média ou média baixa, precisamos trabalhar
para o nosso sustento e enfrentamos dificuldades constantes.
Viemos da escola pública para a universidade pública, dessa maneira, somos
influenciados também por nossos familiares e, principalmente, por nossa realidade
social.
Viemos aqui para procurando um lugar melhor na sociedade.
Nós também somos omissos, não nos envolvemos nas questões políticas, não
conseguimos nos organizar para construir o nosso espaço acadêmico ou fazer
funcionar a casa do estudante.
A universidade deveria ser o espaço para nos inspirar, entender e sentir nosso sonho
como uma realidade possível. Não percebemos que nossos sonhos são valorizados.
Para o futuro, desejamos conseguir um emprego concursado. Porém, nossa
preocupação real é nos formarmos e encontrar um lugar melhor no mercado de
trabalho. Depois do doutorado, talvez ensinar na universidade. Se possível, aqui
mesmo.
140
Dessa forma, a síntese do CHD apresenta um pouco de tudo que foi falado e
analisado em cada categoria. A correlação direta com as classes facilitou a sua
organização para o corpo deste relatório. As conclusões estão pautadas nos fundamentos
extraídos nas unidades de análise, da fundamentação teórica e do vai-e-vem das
entrevistas dentro do CHD, como também as diversas contribuições no encontro final e
das análises realizadas. Palavras centrais da investigação revelam-se em vários trechos,
permeando diversas classes, tais como trabalhar, escola, curso e pesquisa.
As palavras destacadas emergiram diretamente das análises feitas pelo Iramuteq
como também se originam matriz geral das categorias. Outras delas foram a partir da
concordância com as palavras centrais, também dadas pela classificação realizada pelo
software.
Todos os aspectos organizacionais foram explicados no preâmbulo do encontro
coletivo para a apresentação da síntese e discussão de colaborações que encerraram o
texto coletivo. O encontro final foi realizado por meio de uma reunião coletiva, de forma
similar a um grupo focal. As colaborações, contribuições e comentários foram gravadas
e transcritas.
Por mais que as indicações fornecidas pelo Iramuteq possam ter contido
tendências para a elaboração do texto colaborativo, nunca esgotamos as possibilidades de
ouvir as individualidades dos sujeitos pesquisados em todos os momentos do trabalho de
campo. Os comentários mais direcionados ao texto em si foram classificados e
organizados em uma tabela, que consta no anexo deste trabalho, logo após a apresentação
do corpus colorido das falas dos atores sociais entrevistados. Abaixo, citarei apenas
alguns deles, para que se elucide o processo de colaboração e construção coletiva:
141
Quadro 8
Principais comentários dos pesquisados sobre o conteúdo da SI.
Tópicos Comentários
Somos estudantes de classe média Sou pobre e a única pessoa da minha casa a entrar no ensino superior.
ou média baixa, precisamos (Amora)
trabalhar para o nosso sustento e Eu preciso trabalhar e ainda tenho que me virar para cursar as disciplinas
para nossas famílias e enfrentamos fora do horário e do período em que estou matriculado
dificuldades socioeconômicas Tenho que trabalhar e conciliar as aulas, visto que o curso foi ofertado
constantemente. para o período noturno, e que pela falta de professores, acaba tendo mais
aulas pela tarde. (Victor)
Os professores não se sensibilizam com o fato de que precisamos
trabalhar ou fingem não entender a nossa realidade. Eles não enxergam
a realidade que viemos também. Estamos na busca de conhecimento e
na realização do sonho do ensino superior, infelizmente, precisamos
trabalhar para viver. Isso não é colocado na mesa. (Igor)
Todo dia é uma luta, só tenho tempo de fazer as coisas de casa e daqui
na madrugada, ou quando temos folga de horário das disciplinas à noite.
(Aurora)
Nunca nos apresentaram o projeto Nunca nos apresentaram o projeto do curso, acho que é por questão
pedagógico do curso... política. Não querem abrir a caixa preta e admitir que as disciplinas
pedagógicas são totalmente ou, na melhor das hipóteses, parcialmente
negligenciadas, pois muitas nem possuem o professor para ministrá-las.
Nesse curso, a intenção do projeto é fazer com que o professor morra
antes de nascer... (Victor)
Pensamos em desistir do curso pelo A desistência do curso é algo que nos persegue, principalmente quando
menos uma vez... precisamos desafiar as disciplinas que são ofertadas no período
vespertino. (Aurora)
Já pensei em desistir por conta das disciplinas. (Belchior)
Já pensei em desistir muitas vezes. Tem aula que acontece aqui que a
pessoa sai com vontade de nunca mais voltar. Aí depois, essa mesma
pessoa, faz uma prova com coisas que ela nunca ensinou... Bingo, um
monte de gente vai para a final e até reprova! (Victor)
Para participar de um grupo de O grupo de Parasitologia Humana é só para uma elite de queridinhos do
pesquisa é necessário ter dedicação professor e que também são nerds e podem morar aqui na universidade.
exclusiva. Esses grupos são Infelizmente, nem sou filhinho de papai, nem gosto de bajulação, nem
elitizados e não parecem ter sou fã do jeito arrogante dele [professor]. (Heitor)
interesse de se entenderem com a Já tentei me envolver nos projetos, mas fica difícil também para quem
área de ensino. mora em outro município. (Belchior)
Não participo de grupo de pesquisa porque ele toma todo o tempo do
aluno. (Aurora)
Não fazemos maiores pesquisas e Em relação aos projetos como o PIBID e Residência, não fazemos
não realizamos publicações na área maiores pesquisas na área, ficamos apenas nas vivências de sala de aula.
de ensino de Biologia (Aurora)
Não nos sentimos preparados para Tenho medo de travar... (Belchior)
enfrentar sozinhos a realidade das Falta maior preparação aqui na universidade. (Heitor)
escolas Não estamos preparados para a sala de aula, pois a maioria não nos
mostra a melhor maneira de ensinar os conteúdos da disciplina que
ministram. (Amora)
Não somos bem informados sobre as Tenho muita dificuldade de saber detalhadamente as áreas em que posso
áreas de atuação tanto para ser atuar como biólogo. Ficaria muito feliz se alguém nos informasse, pois
professor quanto para ser biólogo... durante a faculdade nos apaixonamos por algumas disciplinas, mas não
temos conhecimento para atuação. (Heitor)
Fonte: Dados da pesquisa (2021).
142
96
Grifo nosso.
144
CAPÍTULO 6
AHDI – A análise propriamente dita
97
Oliveira (2021) prefere a opção “interativa” ao invés de “complexo-dialógica” que, ao nosso entender,
constitui uma forma mais pertinente aos referenciais da MI. Por questões operacionais, no entanto,
utilizamos a sigla original da autora, sob a alcunha de AHDI, de forma a facilitar as análises, compreensões
e considerações.
145
98
Cada pesquisado escolheu seu nome fictício a partir de uma lista prévia apresentada pelo pesquisador
antes da realização da entrevista por meio do CHD.
146
transparência e
gestão democrática
Fonte: O autor.
A partir do exposto, segue-se a análises das categorias uma a uma, entretanto, as
unidades de análise serão ilustradas com trechos do corpus, no intuito de tornar a análise
mais consistente e relevante. Primeiramente, as categorias teóricas articulam os elementos
centrais da teorização desenvolvida no capítulo 1. Já as categorias empíricas situam-se na
mediação entre a teoria e os pesquisados por meio da elaboração de um roteiro
semiestruturado de entrevistas pelo pesquisador. Por fim, as unidades de análise, seja por
meio de tópicos ou de excertos das entrevistas, constituem as respostas dos pesquisados
frente às questões instigadas pelo pesquisador.
As categorias teóricas envolvem nossas críticas concernentes ao (des)
empoderamento, à Formatação docente e às práticas de si, contrapostas a uma lógica de
formação acadêmica. Assim, algumas categorias aproximam-se das outras com maior ou
menor força, porém, constituem três grandes campos da teorização desenvolvida no
capítulo 1. Após a análise pontual, traçaremos algumas considerações na forma de
(in)conclusões, em que pontuaremos nossos achados e estabeleceremos uma triangulação
entre a fundamentação, as questões de pesquisa e os resultados.
A segunda unidade de análise diz respeito aos agentes que influenciam as escolhas
de curso, para além da dimensão econômica, relatada anteriormente. Abaixo, as falas dos
pesquisados ilustram o papel condicionante de atores sociais diferenciados na opção de
curso.
O meu sonho, desde os 10 anos, levava para a Biologia. Eu ganhei um livro
sobre “Animais do Brasil” da minha professora do terceiro ano. Esse foi o
primeiro passo para eu estar aqui conversando com o senhor... Eu terminei a
escola primária em 1988 e esse livro está comigo até hoje.(Heitor)
Teve alguma influência da família, pois eu sempre escutei meus pais antes das
grandes decisões da vida e conversei também com outras pessoas que já faziam
ou fizeram o curso... (Victor)
Já tinha alguns colegas que faziam Biologia por aqui e falavam muito bem, aí
decidi ficar aqui mesmo na cidade... (Amora)
99
Foi descartado um levantamento socioeconômico pois a experiência diária do pesquisador por quase dez
anos no campo de pesquisa indicou a possibilidade de compreendermos o contexto socioeconômico dos
licenciandos a partir da interpretação das falas das entrevistas.
149
100
Artigo publicado acerca da análise documental do PPC da licenciatura pesquisada.
150
Agora, minha turma, ela foi muito importante. Teve uma época que eu quase
desisti do curso, não por desinteresse, mas por questão financeiramesmo. Tinha
que trabalhar e tal. A turma me ajudou muito. Comecei a vender doces aqui na
Faculdade. Eles compravam e me incentivavam. A gente se aproximou e se
apoiou... (Igor)
Em segundo lugar, por mais que os estudantes se entendam pela condição de
unidos em termos de formação de grupos na turma, diagnosticamos a falta de um espaço
físico e social para que os estudantes estejam mais juntos e, consequentemente,
politicamente unidos. A fala de Aurora ilustra bem a questão a ausência das ações
coletivas:
Os estudantes precisam se relacionar mais do ponto de vista social. [...] O
Campus precisa de um centro acadêmico e eu tentei implementar coma galera,
mas não deu certo. Foi frustrante. Isso é triste. [...] (Aurora)
A unidade III é um complemento da unidade anterior, em que se observa uma falta
de envolvimento político e até mesmo um certo incômodo pela falta de expressão política
do coletivo dos alunos. A fala de Aurora, que foi a única participante com real
engajamento político, é bastante elucidativa:
Os alunos não estão nem aí. Nem sei se é falta de interesse ou medo de
perseguição política, porque não temos uma universidade democrática e
transparente. O portal da transparência não é nada transparente, ninguém
convida aluno para reunião, e os alunos ficam passivos, quase que de forma
inocente. Se não houver esse diálogo dentro da universidade, os alunos vão
continuar achando que está tudo bem. Essa instituição foi a primeira faculdade
aqui na região e a gente tem que valorizar, correr atrás. Falta consciência
política no aluno daqui. É algo bem enraizado culturalmente. A gente tá muito
acostumada a seguir a manada, vai com um e com outro... (Aurora)
151
Por outro lado, como houve respostas que se remetiam a diferentes agentes que se
relacionam institucionalmente por diversas vias de comunicação, o único ponto
convergente que nos parece claro é a indicação de valor às experiências com os colegas
de curso. E mais, indicam a necessidade de possuírem um espaço físico para, além de
estarem juntos, terem uma organização política mais efetiva, pois “a necessidade
premente do grupo é a estruturação de uma rotina que localize mais e mais as perguntas:
‘onde estou?’, ‘com quem estou?’ e ‘quem cuida de mim?” (FREIRE, 2019, p. 125)
A unidade IV refere-se à pesquisa que, além de uma questão a ser retomada em
outras unidades, é um dos pontos de partida nesta pesquisa. Uma grande questão desta
tese versa sobre a pesquisa no contexto da formação inicial gira em torno de três
perguntas: como os trabalhadores-estudantes podem participar dos grupos de pesquisa se
a maioria só funciona durante o dia, enquanto eles trabalham? Por que tão poucos
estudantes podem se envolver nos grupos de pesquisa para além das limitações
socioeconômicas? Que tipo de estudo pode haver nas pesquisas de forma que sejam
mobilizadas questões de interesseindividual e coletivo dos participantes dos grupos de
pesquisa?
Responder a estas questões no momento seria precipitado, pois ainda temos um
longo caminho de análises inconclusivas a percorrer. Porém, algumas pistas foram dadas
pelos pesquisados na construção da SI, ou seja: a pesquisa é elitista e apenas para aqueles
que podem estudar durante o dia, com disponibilidade de horários. Todos os outros
estudantes são alijados do mundo da pesquisa, constituindo um grande grupo de
desempoderados por uma forma(ta)ção baseada no ensino por meio da pedagogia
bancária.
Por outro lado, não podemos deixar de destacar o caráter empoderador da pesquisa
para as seletas pessoas que participam dos referidos grupos. A fala de Amora demonstra
a importância de participar de um grupo de pesquisa e dos programas institucionais de
iniciação científica como elementos importantes para a dimensão de crescimento
individual no empoderamento durante a trajetória formativa:
Acho que os grupos de pesquisa e os programas que eu participei, Pibic e Pibid,
ajudam muito a você crescer aqui dentro. São programas importantes que
acabam envolvendo o indivíduo. (Amora)
Apesar de suas falas não se apresentarem suficientemente claras, a pesquisa foi
decisiva na trajetória acadêmica de Amora. Por mais que ela também destaque o Pibic eo
Pibid, em sua entrevista, foram contabilizadas 11 citações sobre o grupo de pesquisa em
Parasitologia que participa. Porém, apesar de decisivos na formação, os grupos de
pesquisa ainda são para poucos. E mais: as experiências pessoais passam por uma
152
organização estrutural que envolve uma orientação curricular que envolve o privilégio
das disciplinas específicas durante toda a formação como também um regime de verdade
de um discurso de organização de projetos institucionais e de grupos de pesquisa
orientado para poucos estudantes – aqueles que possam estudar e pesquisar durante
o dia (MOURA, 2021). A contribuição dos programas de pesquisa e iniciação à docência
seriam melhor vivenciados se fossem geridos em perspectiva democráritca e de acesso
mais facilitado à comunidade acadêmica a partir de diversos formatos de funcionamento.
A unidade IV envolve uma questão que se relaciona diretamente ao que foi
discutido no parágrafo anterior: a falta de transparência e gestão democrática. O grande
problema é uma questão decisória de poder. Os interesses dos professores são diferentes
dos interesses dos licenciandos. O projeto de valorização da pesquisa acadêmica é mais
atrelado à ascensão profissional da carreira dos professores universitários do que na
orientação do desenvolvimento de uma carreira acadêmica para os licenciandos. Nisto,
concordamos com Cunha e Leite (2009, p. 91), que indicam a pesquisa de forma
extremamente valorizada e como a “atividade preferencial do professor”. Pois, por meio
da pesquisa,
Ele se qualifica como profissional e é reconhecido na sua comunidade
científica. Os problemas de pesquisa quase sempre estão ligados aos ‘interesses
e desenvolvimento das ciências’ e, poucas vezes, estão vinculados a problemas
concretos da prática social, mesmo que a médio e/ou longo prazo este objetivo
se concretize. (Idem)
Por isso, decidimos tratar das vivências dos professores-biólogos nos programas
e apresentar suas percepções em uma categoria empírica organizada dentro da categoria
teórica C, que se ocupa das tensões específicas da formação inicial em Ciências
Biológicas. Ou seja,
é preciso compreender a matriz ideológica na qual o sujeito é produzido. Tal
vertente do pensamento científico está de acordo com o entendimento das
aprendizagens do estudante. Estas guardam a matriz das relações de classe, na
geração da voz, através da socialização da família, e são formalizadas, passam
a ter voz, pelas regras de reconhecimento, por exemplo, a universidade como
produtora de mercadoria e preparadoras de quadros para a gestão da sociedade
(CUNHA; LEITE, 2009, p. 76-77).
Todavia, nos quadros construídos pela formação analisada não se observou um
amadurecimento no entendimento de ações individuais para o empoderamento. Assim, os
licenciandos confirmam que a aprendizagem essencial é ser um aluno padrão, ou seja,
“aquele que segue as normas do seu curso” (op. cit., p. 77), com atividades padronizadas
de sentido da formação relacionadas ao “sair-se bem nas provas e terminar o curso em
tempo hábil”.
153
101
O projeto político-pedagógico de curso contém no perfil do egresso o domínio de competências e
habilidades que não constam no programa de nenhum componente da trajetória formativa.
155
É perceptível uma preocupação com as pessoas que vivem o processo educativo, tanto
na escola como na universidade. O que parece confuso na análise desta categoria empírica é
a dificuldade de estruturação de ações individuais dentro de um projeto coletivo mais amplo,
de uma luta pela formação emancipatória, o que foi quase evidenciado na categoria empírica
anterior.
102
Dos entrevistados, apenas Igor cursou o Ensino Fundamental e o primeiro ano do Ensino Médio em
escola particular. Entretanto, suas falas decisivas sobre suas experiências escolares remetem-se à escola
pública, nos últimos anos do Ensino Médio.
156
Como dá para perceber, eu gosto muito do social que se volta para a formação
de sujeitos mais autônomos e participantes. (Victor)
Por mais que Aurora evidencie uma importante questão sociocientífica de ordem
multicultural e Victor declare seu apreço à emancipação humana, as citações foram
pontuais e terminam nos excertos destacados. Isto é, quando foram solicitados a
complementar suas falas, eles desviaram-se do assunto ou se puseram reticências, uma
provável pista de que o domínio das questões sociais existe sub-repticiamente. Esses
depoimentos dos pesquisados mostram claramente as preocupações diante das decisões
pessoais ligadas à importância das questões sociais na formação dos educandos na
comunidade em que vivem, em conformidade com as proposições teóricas acerca da
formatação docente no contexto do desempoderamento e de uma subjetivação constituída
na lógica das competências e habilidades docentes.
Em outra questão, temos a importância dada com as questões pessoais dos alunos,
em questões como “saber ouvir” e “incentivos pessoais durante as aulas”. São percepções
que atendem aos aspectos que poderiam envolver uma pedagogia de criação de valores
se não estivessem mais comprometidas com a ideia do “empresariado de si mesmo”
(CHAUÍ, 2000), sob a lógica da formação por competências. Assim, novamente se
percebe uma ausência de sistematização das ações pessoais com os educandos e de uma
agenda comprometida com a luta pela emancipação humana por meio de uma formação
empoderadora.
Em outras palavras, parece que basta apenas saber ouvir e incentivar durante as
aulas, sem qualquer suporte teórico-metodológico. As falas de Heitor, Igor e Victor
demonstram essa preocupação em diferentes perspectivas.
157
Tenho muito contato com os alunos e gosto de conversar com eles... (Heitor)
Depois que eu conheci a Maria, ela mudou totalmente minha visão de mundo...
(Igor)
Em Genética, quero ser “professor-biólogo”, eu acho que o peso social cai mais
na ideia de professor do que de biólogo, por mais que a maioria das disciplinas
sejam de Biologia mesmo. (Igor)
Contam o curso como a coisa mais maravilhosa do mundo, mas sem ver o
projeto, acho que aí não tem transparência com os alunos... (Amora)
Pensava que o curso tinha sido maravilhoso, agora que percebo muitas
lacunas... Também gostaria de conhecer o projeto do curso, para entender
melhor tudo isso. (Heitor)
Num balanço geral da categoria, nota-se um vasto leque de percepções. Destacam-se
a influência dos professores de Ciências/Biologia da educação básica como influência
marcante para se gostar de Biologia. Dialogando com Paro (2010), temos: “não basta
conhecer determinado conteúdo e ‘explicá-lo’ a seus alunos, é preciso saber como ensinar os
conteúdos da cultura de modo que se alcance a formação da personalidade do educando”
(p. 32). Também se denota uma opção identitária bastante insegura quando se identificam
como professores-biólogos. Temos aí um elemento-chave para questionar que tipo de
formação a instituição deseja proporcionar e o que os licenciados esperam e vivenciam do
curso.
Os professores do Ensino Médio parecem ser mais espelhos de professores
exemplares para os licenciandos do que uma influência modelar ou exemplar pelas aulas de
Biologia experienciadas em si. Dessa forma, no contexto da formatação docente, o papel do
professor enquanto mediador de conhecimento poderoso é secundário em relação ao
entendimento do professor como um formador de opinião e influenciador de opções de vida
de seus alunos. Essa influência social constitui-se um elemento da identidade para as
práticas docentes relacionadas pelos entrevistados. Assim, o que o faz gostar de Biologia e
o envolvimento com o social é uma questão essencial na construção e reconstrução de
identidade em qualquer etapa da formação docente. Assim, enredamos as duas primeiras
categorias empíricas em um eixo aglutinador: o gosto pela Biologia e as preocupações
sociais. Registramos as seguintes falas:
Eu gosto muito de estar na escola pública porque estendo a minha vida com o
social... eu penso que meu olhar é diferenciado, quando vejo as coisas das
escolas, eu penso nos problemas sociais que as pessoas possuem... (Aurora)
É importante ressaltar que existe um gosto pela Biologia que também se relaciona ao
gosto pelas coisas da escola, principalmente nas falas de Victor e Aurora. Na formatação
docente, as racionalidades oscilam. Assim, se por um lado, o ensino é propedêutico e
valoriza a Biologia aplicada, por outro, quase toda a formação docente é centrada na
experiência com as escolas.
Entretanto, consideramos que gosto pela disciplina essencial do curso é uma
possibilidade de preparar sobre a vida, para a vida e exercitando a vida, porém, o que
encontramos na formatação docente é outro tipo de ensino. É aquele que acontece “com a
desculpa de lhes ensinar a viver e de ensinar conhecimentos e informações úteis, assim lhes
proporcionamos um ensino chato e omitimos o mais importante, que é ensinar aos alunos a
se apropriarem da cultura inteira e se fazerem humanos-históricos” (PARO, 2010, p. 97).
Também concentram uma relação direta com as experiências escolares das pessoas
com que se relaciona durante a formação, sob o pressuposto do modelo de professor
exemplar (PIMENTA e LIMA, 2012). Assim, este fator é um condicionante não apenas do
gostar da Biologia, mas também da sua percepção de “professor-biólogo”e sua identificação
com o trabalho docente.
Na segunda categoria empírica, os devires da subjetivação encontram as
perspectivas profissionais, de vida e os planos para a formação permanente. De uma forma
geral, o gosto pela escola remete-se um anseio social em ser professor de Ciências/Biologia
que se une ao interesse em construir carreira na escola, por meio do ingresso no serviço
público por meio de concurso. Belchior e Heitor são categóricos ao dizerem que seu
objetivo é um emprego concursado, na condição de professores de Ciências104:
Eu quero deixar meu emprego para ser professor, mas cadê o concurso?(Heitor)
Eu quero um emprego meu, concursado, fichado, com tudo que tem direito.
Meu foco é emprego mesmo, meu emprego de professor de Ciências.
(Belchior)
O anseio social pela estabilidade que é buscada pela área de ensino é suavizado por
Victor quando sua fala confirma seu objetivo de terminar o doutorado e “buscar um lugar
ao sol”.
O futuro é me encontrar nessa questão de formar professores e me consolidar
como um professor-pesquisador. Claro que eu gostaria do meu lugar ao sol,
numa universidade, na área de ensino, mas tudo tem seu tempo. (Victor)
103
Eles também abordam um desejo de serem professores da comunidade em que vivem,
preferencialmente.
163
Fiz uma promessa para a minha professora, a Maria. Eu disse que ia ser melhor
que ela. Não como pessoa, mas que faria meu doutorado e seria professor de
Genética. (Igor)
Analisando essas falas pode-se inferir que o projeto profissional está bastante ligado
a um projeto de vida. Esse projeto, que é uma culminância das motivações e aspirações
socioculturais, constitui um aspecto importante na subjetivação docente. Por outro lado,
percebe-se a relevância social da profissão e o desejo por estar nela, contudo, segue-se um
senso comum de que “se é para ser docente, que seja na universidade” (Igor e Amora).
O interesse pelo curso de doutorado foi mais delineado em Victor, que já está
percorrendo as trilhas da pós-graduação, na área de ensino de Ciências. Para outros dois
sujeitos da pesquisa que falaram sobre a questão, Igor entende a pós-graduação como um
caminho natural para se tornar professor-pesquisador e Amora106 entende que o doutorado
é uma etapa essencial do caminho de pesquisa na sua área.
De uma forma geral, acreditamos que a segurança financeira é um projeto de vida
que permeia todas as unidades, porém, é mais entendida como uma saga homérica do que
uma consequência inerente ao exercício da profissão. Concordamos assim com Paro (2018)
no que tange aos projetos e qualidade de vida do professor, pois “seu salário precisa ser tão
justo e compensador, de tal modo que isso nem sequer seja motivo de preocupação,
104
Amora, Igor e Victor fazem menção específica sobre serem professores universitários, destacando a
possibilidade de retornarem ao Campus de formação inicial.
164
estando ele livre e tranquilo para realizar seu trabalho, voltando-se para os interesses que de
fato contribuem para a boa realização de seu produto”. (PARO, 2018 p.113)
A terceira unidade de análise agrega elementos das duas anteriores e retoma o
compromisso social do professor de Biologia sob a forma de “ser alguém na vida”.
Destacamos dois entendimentos de docência: um que está relacionado ao campo de trabalho
e outro que se relaciona à própria finalidade da docência. Para entender mais essa questão,
no roteiro de entrevista foi pedido que eles relacionassem exemplos e características de bons
professores de Biologia que já se consideram ou que desejam ser, com um recorte mais
voltado nas possíveis contribuições sociais no âmbito da escola pública.
Logo após, foi solicitado que os mesmos se avaliassem em que grau se entendem
enquanto bons professores neste momento da carreira e a conversa continuava para que eles
justificassem a escolha.
Dos seis entrevistados, apenas Heitor107 não possuía uma experiência atual com a
docência, mesmo trabalhando numa escola. Apesar disso, falou com bastante veemência do
seu amor pela profissão e dos seus interesses em estar com os alunos, ensinar e aprender
com eles. Aurora é educadora social atualmente, e seu compromisso social é mais destacado
do que a presença dos elementos de uma epistemologia da prática docente.Já a Amora possui
a situação oposta de Heitor, mesmo não tendo nenhuma relação trabalhista atual com uma
escola básica, suas atividades recentes do estágio e do programa de Residência Pedagógica
validam sua experiência docente, mesmo ainda em fase de consolidação da identidade
profissional.
Igor demonstrou claramente não se definir como um bom professor, por outro lado,
confirma seu desejo de ser melhor do que a Maria, sua professora de Biologia do Ensino
Médio, um típico exemplo de formação por imitação de modelos exemplares.
Victor e Igor são os únicos que possuem uma experiência contratual de professor de
Ciências no momento em que as entrevistas foram realizadas. Mostram amadurecimento de
ideias sobre a docência e uma imersão na experiência de estar na escola, e por mais que
saibam caracterizar um bom professor, possuem concepções diversas sobre uma avaliação
pessoal de suas práticas. Por outro lado, associam diretamente a ideia de ser um bom
professor com a condição ontológica de “ser alguém na vida”. Em suas palavras:
105
Para relembrar, Amora participa do grupo de pesquisa em Parasitologia e Igor faz parte do grupo de
pesquisa em Genética. Dos 6, apenas Victor tem uma vinculação com a pesquisa em ensino, estando, no
momento da pesquisa, iniciando sua experiência formativa na pós-graduação Stricto Sensu.
106
Heitor é vigilante em uma escola pública há mais de 10 anos.
165
Eu ainda não sou um bom professor. Ainda me falta mais experiência de sala
de aula. Quando você vai dar aula no sexto ou nono ano, tem hora que dá
vontade de sentar num canto e chorar, mas eu ainda chego lá... quero ser um
bom professor de Genética. (Igor)
107
As questões sobre ser pesquisador serão retomadas na próxima categoria teórica, em que será melhor
discutida a produção acadêmica e atividades de pesquisa dentro da formação.
166
O Pibid ajudou muito a complementar essa formação mais na escola, mas vejo
que cada um faz o seu caminho. Tem gente que ia lá e só enrolava. Acho que
ainda hoje é assim. Eu me dediquei mesmo... (Victor)
Minha história é muito particular. Antes do Pibid e até de trabalhar nocomércio,
eu substituía professores no Ensino Fundamental I quando tava lá no Médio,
ia lá para a escola do sítio e ganhava uma diária. Como o Magistério era à noite,
também ajudava meu pai na obra quando precisava, carregava tijolo, mexia
massa e por aí vai. Hoje, issotudo me faz dar valor ao que tenho e a querer
ainda mais. E a entenderas pessoas, olhar nos olhos e tentar decifrar o que ela
traz para a aula, eme pergunto se é próximo do que eu tenho, passei na vida...
Eu gosto de enxergar as trajetórias sem perguntar, e dar o meu melhor para tornar
pessoas melhores. Acho que eu sempre gostei de ensinar, isso também sempre
me ajudou a seguir em frente apesar das dificuldades. E foram muitas, mas
estamos aqui... (Victor)
Por outro lado, a falta de sistematização da experiência nas escolas também pode
ser percebida. A segunda fala de Victor mostra que a imersão na escola muitas vezes
acontece sem a supervisão docente, e sim uma prática de si como uma forma de
subemprego, mas que se torna uma experiência docente.
Tornar a formação centrada nas escolas como uma forma de proporcionar mão de
obra barata e qualificada é um dos engendramentos neoliberais da escola e universidade
operacionais. Na segunda unidade de análise, existe uma incisiva abordagem da carência
de acompanhamento das atividades nas escolas, o que descaracteriza a experiência de
subjetivação do Pibid em seu escopo de prática reflexiva. A fala de Amora é praticamente
uma denúncia:
Isso detona com a gente porque tem o programa de iniciação à docência, mas não
tem professor para acompanhar que direcione as atividades... Aí parece que é
só mais um programa para ter bolsa na universidade do que uma proposta
realmente comprometida com a formação. (Amora)
Na terceira unidade de análise, as falas reclamam a falta de atividades reflexivas
sobre a prática. Mencionaram a apresentação de trabalhos no Fórum de Licenciaturas da
Universidade e nada mais. A ausência de uma perspectiva reflexiva metanalítica foi
registrada também durante o exercício da MI, quando Belchior nos informou que gostaria
de ter tido mais experiências assim, participativas e reflexivas em sua formação. De uma
forma geral,
O falar de si, de sua história, permite diversas maneiras de experimentar a
identidade de professor, de mantê-la à distância, de simulá-la, de idolatrá-la,
de reconstruí-la, de reinventá-la. Isso não se dá por estabilidade, mas por meio
de movimentos, flexibilidades, em vista de um imaginário formado acerca do
‘ser professor’ (ECKERT-HOFF, 2008, p. 77).
Por outro lado, pontuamos as dificuldades do que se entende por prática reflexiva
enquanto trabalho colaborativo. Ou seja, esse movimento de construção de relações mais
democráticas e solidárias no interior das práticas escolares é complexo, pois se encontra
167
Para entender melhor como os aspectos da formação que estão sendo apresentados
foram efetivamente trabalhados durante o curso (ou não), construímos a terceira categoria
teórica. Pela expressão da categoria “Formação de Si versus Formação Acadêmica”,
pretende-se criar tensão e uma descrição com maior clareza dos agentes da subjetivação
e seus papéis nas práticas do curso que foram relatadas pelos atores sociais nesta
investigação.
168
devo trabalhar a unidade entre meu discurso, minha ação e a utopia que me
move. É neste sentido que devo aproveitar toda oportunidade de testemunhar
meu compromisso com a realização de um mundo melhor, mais justo, menos
feio, mais substantivamente democrático (FREIRE, 2016, posição 427).
Por outro lado, a segunda unidade de análise diz respeito tanto à racionalidade
técnica como ao ensino tradicional, típicos da universidade operacional de Chauí (2000).
Dos seis entrevistados, apenas Amora não teve nenhuma experiência com reprovação
durante o curso. O discurso transparece em falas que detona uma formação baseada no
ensino, em aulas de formato tradicional que culminam em provas e reprovações. Victor e
Aurora mostraram-se até pensar em desistir do curso em algum momento, diante da
dificuldade em conciliar seus trabalhos junto às disciplinas que ocorrem no período
vespertino, passando pelas experiências da “prova final” e da “reprovação” em alguma
disciplina.
Temos mais disciplinas à tarde do que à noite, dependendo dos professores que
estão naquele período. Aí o curso fica quase queintegral. (Aurora)
Era difícil até porque havia algumas disciplinas à tarde e dava problema no
trabalho, mas eu segurava a onda. À noite também não era fácil, costumava
chegar após as 8 da noite, por causa das demandas do trabalho. Isso ocasionou
a perda de algumas disciplinas na primeira metade do curso, por reprovação e
desistência. Só ganhou outra direçãoa minha vida quando entrei no PIBID, por
volta do quarto período. Foium divisor de águas, porque larguei a empresa e
fiquei só com a bolsa do PIBID. (Victor)
Por outro lado, apesar de relatarem dificuldades com as disciplinas, os
pesquisados não parecem demonstrar a curiosidade epistemológica indicada por Freire
(1996, 2001), tão necessária num contexto de Formação de Si. Se a FSi exige reflexão
crítica, não se enxerga a forma com que as disciplinas de caráter conteudista despertam a
curiosidade, o aprender a aprender e o educar pela pesquisa por meio da autoria (DEMO,
2010; BEZERRA, 2019b). Por outro lado, entendemos que a FSi demanda que o professor
em formação, no âmbito das diversas práticas pedagógicas, alimente a necessidade de que
“individual ou grupalmente, tenha a possibilidade de produzir algo de forma reflexiva,
nunca perdendo de vista a análise de situações-problema reais e significativos, à luz da
teoria” (HENGEMÜHLE, 2008, p. 40).
Na terceira unidade de análise, destacamos a produção acadêmica, pelos seguintes
motivos: Primeiro, para triangular as questões do ensino tradicional anteriormente
indicadas; segundo, porque os pesquisados relataram baixa ou nenhuma produção
acadêmica; e, por fim, se considerarmos a pesquisa como um trabalho pedagógico
empoderador dentro da formação, a produção acadêmica é uma forma de diagnosticar sua
escala de amplitude, para além dos índices de produtividade exigidos no contexto da
171
universidade operacional (CHAUÍ, 2000). Ainda existe uma questão complementar que
indica a possibilidade de que o texto acadêmico é uma escrita de si importante na
formação, pois discute questões específicas que envolveu seu autor em uma realidade
específica.
Contudo, o diagnóstico registrou de que a pesquisa é quase nula tanto para as áreas
de ensino como as específicas. Apenas Amora relatou alguma experiência recente com a
produção e apresentação de trabalhos em congresso. Victor relata a realização do TCC na
área de ensino e está seguindo a pós-graduação na área, porém, também relatou somente
a participação em eventos regionais da área de ensino, o que ainda é contrastado com seu
desejo anteriormente indicado em ser um bom pesquisador.
Sou um dos poucos estudantes que fizeram TCC na área de ensino e decidiu
seguir na carreira acadêmica... (Victor)
A hipótese desta pesquisa carregava a ideia de que haveria diversas formas de expressão
da pesquisa, principalmente da pesquisa em ensino, constituindo ações de empoderamento na
formação. Contudo, dada a realidade das experiências nas escolas e a realidade da produção
acadêmica, somadas a uma realidade curricular marcada pela racionalidade técnica, a referida
109
A saber: Belchior, Igor e Victor.
173
Não adianta uma pessoa dominar todo o conteúdo que vai transmitir. Ela tem
que saber conversar, explicar, entender o aluno e, ao mesmo tempo, controlar
a disciplina. Na universidade, só o professor de Estágio falou um pouco disso,
mas muito pouco. Ele deu até um exemplo, dizendo que a universidade prepara
a pessoa para nadar numa piscina e ir para a sala de aula é nadar no mar. Até
hoje esse exemplo não sai da minha cabeça... (Heitor)
174
Eu achei legal ter que preparar aulas. Eu fiquei com muito medo de ir para fora
demais da caixinha e a instituição não gostar. Hoje, você vai para a internet e
coloca “aulas práticas” e sai um monte de coisa. Aí eu investi muito nas aulas
práticas, com materiais de baixo custo, por que a escola que a gente fez o
Estágio estava com o laboratório parado há muito tempo. A gente foi lá, limpou
e fez algumas aulas. Foi interessante pesquisar sobre isso porque me deu
algumas noções. [...] Eu sentia que estava faltando a visualização de alguma
coisa, o que é muito importante. Tem que ver um vídeo e ver como funciona.
Quando eu passei slides ou documentário para os alunos, vi que eles se
interessavam mais. No laboratório, eu vi que eles ficavam curiosos e prestando
mais atenção... (Amora)
Por mais que as respostas não contenham grandes reflexões ou caracterize alguma
forma de empoderamento, mostram que foram categóricas sobre a sua importância de
realizar atividades nas escolas. Novamente, encontramos a tese de que o tempo dedicado
às escolas de educação básica durante a formação é um momento em que os atores sociais
se reconhecem como professores-biólogos, sujeitos de suas práticas, apesar das mesmas
carecerem de reflexividade e não frutificar produção acadêmica.
Na próxima categoria, finalizando o tripé ensino-pesquisa-extensão, evidenciou-
se a unidade de análise que descreve as atividades extensionistas. A única menção de
atividade descrita foi mencionada por Amora e Aurora: a horta comunitária mantida pelo
grupo de pesquisa em Etnobotânica. Mesmo assim, elas demonstraram não ter um
envolvimento com as práticas de implementação e manutenção da mesma. Aurora
descreve um pouco a história desse projeto:
Para fazer a horta que foi implementada aqui, fizeram uma pesquisa na
comunidade ao redor e se perguntou quais os chás que as pessoas maisusavam,
de forma medicinal. Esse estudo com a linha “etno” me interessa muito... eu
não me engajei de forma direta, pois não tinha tempo. Mas acompanhei as
conversas nos grupos de WhatsApp e com as pessoas que são do grupo. Esse
projeto não deu certo porque a professora se transferiu e não deram
continuidade, pelo menos, até o momento. Também soube que falou mais
recurso que interesse... eles só valorizam quando o recurso é para montar
laboratório convencional... (Aurora)
Considerei um aspecto relevante nenhum dos entrevistados ter participado das
ações do projeto acima relacionado, principalmente por ser o único do curso dentro do
Campus em que se realizou esta pesquisa. Isso é corroborado pela fala de Aurora que
caracteriza os grupos de pesquisa como espaços de convivência em que se demanda um tempo
que geralmente os trabalhadores-estudantes não possuem :
Esses grupos são elitizados, só servem para quem não precisa trabalhar.
(Aurora)
Essa questão de o curso demandar uma dedicação de tempo durante o dia é uma
preocupação recorrente dos alunos. A oferta do curso sempre é para o período noturno, porém,
em todos os períodos há disciplinas ofertadas à tarde.
175
110
Refere-se ao desenvolvimento de pesquisa fomentada pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica fomentadas pela Universidade através de Fundo de Amparo à Pesquisa no Estado de Alagoas
(Fapeal).
177
111
Vale relembrar que apenas Heitor não participou do Pibid de nenhuma forma.
178
Acho que deveria ter uma disciplina de fundamentos, no início do curso, que
investigasse a origem social e as motivações dos alunos. (Victor)
... Mantive contato com dois professores, isso também me ajudou muitotanto
nas disciplinas como nos momentos fora da sala... estavam ali presentes, dando
conselhos. (Victor)
179
Já a próxima unidade de análise merece uma discussão atenta, no que diz respeito
à própria natureza da formação. Ao inferir que “Transmite-se na universidade um
conteúdo diferente do que é ensinado na escola”, as falas dos entrevistados retomam os
grandes problemas da formação docente em Biologia, alguns já discutidos: o primeiro, se
relaciona às dificuldades de se ensinar Química e Física como habilitações correlatas; e
segundo, mostra uma falta de preocupação de se produzir um conhecimento biológico
que possa ser ensinado nas escolas de educação básica.
Anteriormente, Igor pontuou a dificuldade de não aprendeu o que é ensinado na
escola como também não ter no currículo da universidade os conteúdos dos livros
didáticos das escolas. Victor admitiu ter sua questão de pesquisa do TCC motivada por
suas próprias dificuldades de ensinar Química e Física no nono ano do ensino
fundamental e atestou seu desconforto em ter que ensino algo que não aprendeu na
universidade e tampouco no Ensino Médio.
Continuando a discussão sobre o papel docente, os entrevistados continuaram
indicando a unidade de análise desta categoria, sobre o que deve ser aprendido na
universidade e ensinado nas escolas, denotaram a ausência da prática pedagógica nas
disciplinas específicas. As falas retornaram às preocupações sociais com os conteúdos de
Biologia, o que já foi indicado na terceira unidade de análise da categoria empírica A-3 e
A-4. Igor descreve de forma clara o que está sendo problematizado quando remete a ideia
do preparo de aulas:
Eu estou aprendendo a fazer aula a cada três dias, para ter tudo pronto bem
antes e não ficar desesperado, porque eu não tive preparo na faculdade... (Igor)
Como última questão a ser discutida, no final do roteiro de entrevista, foi pedido
que se acrescentasse algo que foi conversado durante a entrevista ou comentar alguma
lacuna que o entrevistado gostaria de ser perguntado sobre as experiências da formação.
180
Se eu tivesse que acrescentar algo, seria que todo aluno deveria fazer um
exercício desse tipo, uma retrospectiva da formação. Acho que no Estágio ou
na apresentação do TCC, sei lá. Mas eu achei muito legal! (Amora)
Nos três depoimentos encontrei adendos relevantes para concluir este momento
da AHDI e encaminhar esta tese às suas considerações finais. O primeiro depoimento
atesta o interesse pela avaliação do discurso coletivo e de fazer os contrapontos com suas
percepções. Já o segundo, mostra uma importante contribuição: investigar o início da
docência. Finalizando, a terceira fala é um retrato da importância das práticas de si dentro
da formação do professor.
CONSIDERAÇÕES
Não se esqueça de sua tarefa cotidiana,
Da ação que você deve realizar a serviço dos homens,
numa palavra: seu dever.
(HADOT, 2019, p. 171)
Os dados analisados, até o momento, na perspectiva de triangular as entrevistas
realizadas no CHD e a SI da Metodologia Interativa, revelaram alguns aspectos
importantes para as questões para a formação docente em Ciências Biológicas. Nossas
análises destacaram os aspectos de empoderamento e subjetivação como também
considerações específicas para a licenciatura analisada, porém, nossa maior percepção e
surpresa gira em torno da própria relação entre formação inicial, autonomia intelectual e
possibilidades de empoderamento: constatamos que se trata de uma relação que não é
dada, mas sim um campo de luta, uma arena de disputas e conflitos.
Esse trecho do trabalho carrega a intenção de se constituir em “recomendações e
considerações” por se referir mais diretamente ao ponto de chegada neste momento da
pesquisa, a conclusão de um curso de doutorado. De forma que ainda não enxergamos
uma resposta finalista para nossa grande questão de pesquisa, mas podemos indicar
limites e possibilidades, ao invés de “conclusões”. Foi com essa lente crítica que
conseguimos formular considerações mais provocativas do que respostas objetivas à
questão de pesquisa ou à ideia de uma proposta formativa clara e definida, pois, a esta
altura do campeonato, encontramo-nos com mais perguntas do que respostas.
O primeiro ponto se refere à contribuição social de uma licenciatura que forma
professores no sofrido e pobre interior alagoano. Destinado a trabalhadores-estudantes
em sua maioria, pessoas de classe média baixa, buscam oportunidades de uma vida
melhor seja pela ascensão acadêmica como socioeconômica. Diante da falta de opção por
outros cursos, influência de pessoas próximas e pressões por melhoria de vida, surge a
opção de curso pela licenciatura em Ciências Biológicas. Considerando uma motivação à
brasileira, surpreendeu-nos encontrar uma licenciatura tão estruturada nos ditames da
racionalidade técnica em uma universidade operacional.
Por mais que o projeto do curso pareça não convidar os professores-biólogos à
participação coletiva em suas deliberações, nossa preocupação de pesquisa buscava ter
encontrado um horizonte menos aterrador. Como sujeitos à margem da gestão colegiada
do curso, as falas dos professores-biólogos contam um pouco dos anseios por
empoderamento de sujeitos quase sempre desfavorecidos pela imensa carência econômica
182
Esta pesquisa também contribuiu para uma maior compreensão das questões deste
curso diante da necessidade da graduação e qualificação de professores. Todavia, apontou
os mesmos diagnósticos de outras pesquisas em cursos de ciências (MOURA, 2011;
2013; 2021): a universidade operacional proporciona cursos possuem um tom
bacharelesco, movido pela racionalidade técnica, em que os aspectos pedagógicos e a
função social do conhecimento relacionado à formação humana são relegados a um
segundo plano na formação, principalmente alocados em uma falsa segunda metade do
curso.
Como já foi discutido, esse tom bacharelesco é corroborado com a participação
nos elitizados grupos de pesquisa, voltados apenas aos licenciandos que não precisam
trabalhar. Porém, alguns trabalhadores-estudantes indicaram a possibilidade de que as
bolsas recebidas nos programas institucionais contribuíram para o abandono de seus
subempregos no comércio local, proporcionando uma maior dedicação às atividades do
curso.
Identificamos também muitas contradições, sendo que a mais central diz respeito
à organização das experiências de ensino-pesquisa-extensão no âmbito da racionalidade
técnica, aspecto que aflora das respostas dos sujeitos pesquisados nos dados coletados e
triangulados com a fundamentação teórica. As questões do roteiro de entrevista que
informam sobre a vida acadêmica revelam que a disciplinas de caráter científico estiveram
sempre em destaque, bem como nas informações sobre experiências relevantes do curso.
Entretanto, a motivação pessoal e as relações interpessoais entre professores e colegas de
turma também ganharam destaque, como grandes incentivos para superar os entraves
vividos na trajetória de formação inicial.
Conforme visto em alguns itens analisados, os professores-biólogos disseram ter
intenções de ensinar Biologia de forma que valorizem o compromisso com as questões
sociais e a formação de sujeitos críticos e reflexivos. Contudo, as falas não continham a
explicitação clara de como eles fariam (ou fazem) em suas ações na educação básica e
contaram que essas questões foram tratadas no curso de forma superficial.
Uma grande lacuna na grande questão de pesquisa permanece após a conclusão
deste relatório, cabendo perspectivas de continuidade dos estudos com esse tipo de
formação que enxerguem melhor as ações de empoderamento na formação de forma que
a relação entre educação e emancipação seja mais que uma luta, mas sim uma prática.
185
Todavia, por mais que tenha apresentado diversas evocações desses atores sociais
em formação e muitos dados específicos sobre as mesmas, é impossível quantificar o
crescimento destes sujeitos a partir dessa formação112.
Como possibilidade de continuidade dos estudos, parece-nos importante indicar
dois encaminhamentos fundamentais: o primeiro seria utilizar um questionário
semiestruturado que possa delinear o perfilsocioeconômico e cultural dos professores-
biólogos e utilizar-se uma análise mais sociológica. Por outro lado, vislumbramos a
possibilidade de acompanhar as práticas docentes nos programas institucionais por um
período mais longo, por meio da observação participante ou de uma pesquisa etnográfica.
As duas ações metodológicas acima descritas responderiam a uma tentativa de
recolher mais dados consistentes sobre a realidade destes sujeitos e realizar uma análise
bem mais profunda, para chegar até as raízes dos diversos problemas ligados a esta
realidade pesquisada e superar alguns conflitos e lacunas surgiram no decorrer do
trabalho.
Também recomendamos que sejam ouvidos outros sujeitos envolvidos na
formação, em possibilidades alternativas, como os professores-formadores,
coordenadores de curso e demais agentes que se envolvem na gestão do curso, para que
as posições possam ser dialeticamente analisadas.
Assim, entre as recomendações mais notórias, entendemos a importância de
construir um perfil socioeconômico e cultural do professor-biólogo nesta formação,
entendendo que ele é um sujeito que objetiva a melhoria de sua condição socioeconômica
e possui o desejo de ensinar e contribuir com a sociedade. Esse perfil constitui uma
possibilidade de não se tratar o licenciado como um sujeito que não possui saberes
pertinentes à profissão que já exerce ou que é um sujeito acomodado que objetiva ganhar
apenas mais dinheiro para suas necessidades pessoais e/ou uma carreira estável.
Outra recomendação importante seria realizar o “Acompanhamento de Prática
Pedagógica” (GOULART; PANIZ; FREITAS, 2008). Sistematizar as ações pedagógicas
junto às atividades acadêmicas e realizar uma integração com os programas institucionais
é uma possibilidade formativa viável como também empoderadora para os professores-
biólogos. Dentro deste viés metodológico, cogita-se o potencial de incentivar uma maior
produção acadêmica na área de ensino de Biologia, com a supervisão de professores da
área, de forma a contornar o contexto de baixa produção acadêmica.
112
Podemos até nos questionar se este tipo de licenciatura se constitui em uma formação. Para saber mais,
ver Chauí (2000; 2003).
186
Por outro lado, pensamos que o curso também precisa pensar em toda a população
carente da região por meio de ações extensionistas e de um diálogo mais consistente com
a sociedade local, em uma formação na qual os interesses dos licenciandos e a realidade
local (regional) sejam considerados como objeto permanente de estudos e reflexões.
Defendemos que esse potencial da FSi também se constitui numa perspectiva de pesquisa
futura.
Outro ponto a ser direcionado do que foi visto pelas percepções dos professores-
biólogos, foi a importância de se investir na pesquisa e que se proponha um curso que
proporcione instrumentação para que eles também se melhores pesquisadores na
realidade que já atuam. Essa recomendação vale tanto para Biologia aplicada como na
área de ensino, para que possam planejar experiências mais ricas e ter maior produção
acadêmica.
Também se deve frisar a necessidade de oportunização logística para a realização
as pesquisas com acompanhamento dos professores-formadores, para além do
Acompanhamento de Prática Pedagógica. Pois, as falas apontaram a falta de
acompanhamento principalmente nas atividades realizadas nas escolas por meio dos
programas institucionais de iniciação à docência e uma baixa quantidade de produção
acadêmica na área.
A partir desta consideração e da experiência pessoal enquanto professor-formador
do curso pesquisado, cabe-me denunciar que mesmo estas poucas experiências só foram
possíveis a partir de ações organizadas com recursos próprios, pois nem o seguro
obrigatório para os estagiários é pago pela instituição. Os convênios com os órgãos
públicos poderiam e devem gerar a disponibilização de recursos para as atividades do
curso e algumas demandas burocráticas precisam ser cumpridas pelos gestores,
principalmente nos programas de iniciação à docência e nos estágios.
Continuando a discussão sobre oportunidades dentro do curso, existe uma grande
lacuna da relação com o saber pedagógico que pode desmotivar os interesses relacionados
à docência. Considerando a cisão entre os componentes curriculares específicos e
pedagógicos, vislumbramos um cenário de privilégios e preconceitos sobre a Biologia
Aplicada. Visto que a maioria consegue ter experiência docente na formação, há uma rica
possibilidade de investigação sistemática das questões pedagógicas nas disciplinas do
curso, na forma que se valorize a realidade da sala de aula como ponto de partida para a
formulação e desenvolvimento das propostas das disciplinas pedagógicas. Uma segunda
questão diz respeito à urgência de mobilizar as disciplinas específicas que possuem carga
187
existentes. Voltar-se à produção de artigos e resumos dos dados relevantes já obtidos até
o momento é o próximo passo metodológico desta pesquisa, a ser efetivado em nossos
encargos docentes de trabalho na referida universidade.
Compartilhar nossas conclusões e discuti-la com os colegas de pesquisa no ensino
superior é um possível encaminhamento futuro, de forma que pensemos juntos como se
deve construir uma licenciatura que atenda melhor aos anseios didáticos necessários a um
ensino empoderador voltado ao compromisso social. Em tempo, discutir também como
os sujeitos em formação podem exercitar a Formação de Si de forma que cresçam também
como sujeitos intelectuais e contribuam positivamente para a educação básica dos
municípios do sertão alagoano. Licenciatura que, embora comprometida socialmente, não
perde a essência de uma Relação com o Saber alicerçada no apego excessivo aos
conhecimentos biológicos essenciais à formação de um bom professor de Biologia.
A relevância social desta pesquisa também mostra a necessidade de expansão da
universidade, para que mais opções de licenciatura sejam oferecidas nos campi do interior
do estado, proporcionando melhoria de vida para mais pessoas. E, visto o interesse pela
pós-graduação apontado nos questionários, pensar propostas de continuidade dos estudos,
com especialização de enfoque menos técnico e mais educacional-social e a promoção de
um mestrado no campus do sertão alagoano, também se torna uma recomendação
pertinente.
Por fim, por mais que a questão central da pesquisa ainda não se encontre
respondida, consideramos ter obtido dados relevantes acerca da realidade pesquisada.
Algumas respostas foram similares ao que já se evidenciou na literatura da formação de
professores de Biologia, ao longo dos anos. Entretanto, os novos emergentes captados,
essencialmente relacionados na síntese interativa e neste texto de recomendações,
acreditamos que nossas perguntas e objetivos foram atendidos parcialmente. Para tanto,
acreditamos que constituem uma linha de continuidade da pesquisa para nossa
consolidação enquanto professor-pesquisador na área de ensino de Biologia, pois
constituíram aspectos que validam o trabalho realizado pelo pesquisador em parceira com
os atores envolvidos em toda a trajetória desta pesquisa.
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para se tornar um professor reflexivo. Educação & Sociedade, Campinas, v. 22, n. 74,
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