Os Votos

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OS VOTOS

UM CHAMADO À TRANSFORMAÇÃO
Quinn R. Conners, O. Carm.

projeto diretório

espiritual carmelitano Horizontes17


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OS VOTOS

UM CHAMADO À TRANSFORMAÇÃO
Quinn R. Conners, O. Carm.

Comunicações Carmelitanas

Melbourne Austrália

1999
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COMISSÃO INTERNACIONAL PARA O CARISMA E A ESPIRITUALIDADE

HORIZONTES:

Rumo ao Carisma do Carmelo

Projeto para um novo Diretório Espiritual

No Capítulo Geral de 1989 um projeto ambicioso foi apresentado e aprovado. Seu

objetivo era promover o conhecimento, a interiorização e a experiência da espiritualidade

carmelitana e do carisma da Ordem. A coordenação foi confiada à uma comissão

internacional. Este projeto, que já produziu alguns frutos concretos com a publicação de

subsídios para estudo, a promoção de cursos e outras iniciativas, foi confirmado pelo

Capítulo Geral de 1995.

Os objetivos gerais do projeto são:

- promover uma nova descoberta e uma nova vivência dos valores específicos do carisma

carmelitano;

- estimular e promover o estudo da tradição espiritual carmelitana;


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- publicar textos, traduções e estudos sobre os diversos aspectos de nossa tradição e de

nossa espiritualidade.

Um novo Diretório Carmelitano

Entre os objetivos específicos desse processo está a elaboração de um novo

Diretório Espiritual Carmelitano. Ele pretende ser uma síntese atual de nossa tradição e de

nossa espiritualidade, considerando as contribuições das décadas recentes no estudo e na

compreensão de nossas fontes e de nossos valores, que devemos ler com sensibilidade

eclesial e cultural, inspiradas pelo Evangelho. Seria destinado ao uso de nossos formadores

em seu trabalho e na formação de comunidades. E também como um manual ou guia para

os leigos que desejam beber de nossa espiritualidade para um melhor serviço na Igreja.

Queremos conhecer e viver mais profundamente a realidade que foi implantada em

nós pelo dom do Espírito. É neste contexto dinâmico e comunitário que queremos situar o

esforço na elaboração do novo Diretório. Tomara que o Projeto do Diretório possa atrair

uma ampla participação dos membros da Ordem da Família Carmelitana. (De fato, o

Diretório destina-se a toda a Família Carmelitana e isto deverá ser constantemente

lembrado durante sua preparação. Precisaremos elencar elementos comuns a todos, as

características específicas dos diferentes grupos e elucidar alguns problemas que nos são

propostos, como por exemplo, a relação entre carisma e espiritualidade, a relação entre os

carismas congregacionais das irmãs e dos leigos e o carisma comum da Família

Carmelitana, como participamos e integramos o carisma comum e assim por diante).


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O Projeto do Diretório

A Comissão Internacional para o Carisma e a Espiritualidade, estabelecida em 1989

e confirmada em 1995, propôs um esboço de temas a serem incluídos no Diretório. Após

consultar as equipes de formação nas províncias e comissariados, as comunidades de

formação, as monjas e as irmãs e vários peritos, a Comissão decidiu não prosseguir com a

preparação imediata do Diretório, e sim fazer circular primeiro uma série de livretos.

Primeiramente, eles buscam ser úteis no processo de formação. Em segundo lugar, querem

estimular – através do esforço colaborativo de estudo e de experiência, especialmente em

comunidades de formação – uma contribuição adicional, alicerçada na experiência, para o

desenvolvimento contínuo do Diretório.

Na preparação dos livretos, que estão relacionados abaixo, a Comissão sugeriu que

cada autor respeite certos critérios que foram considerados essenciais ao projeto:

- interdisciplinariedade;

- uma abordagem que seja:

- histórica e fenomenológica

- bíblica e teológica

- espiritual

- antropológica

- hermenêutica

- pedagógica;

- cada livreto, de aproximadamente 50 páginas, deve oferecer uma forma de

compreensão e de interiorização do tema através da oração (especialmente com

sugestões para lectio divina, textos de orações, etc.), e através do estudo pessoal e
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comunitário (com sugestões adicionais para trabalhos e questões para reflexão ou

discussão);

- a linguagem deve ser simples sem ser simplista e num estilo discursivo-sapiencial.

Os temas escolhidos para os livretos terão em vista o Diretório, mas não aparecerão

necessariamente da mesma forma. Na redação final do Diretório:

- eles serão inseridos no amplo contexto da experiência espiritual vinda do coração da

Trindade, que manifesta seu amor e o impulsiona através do dom do Espírito como uma

experiência da Igreja, fiel esposa do Senhor;

- dever-se-á levar em conta as diferentes situações nas quais esses valores são vividos nos

diferentes segmentos da Família Carmelitana.

Eis os temas dos livretos planejados no momento, embora outros possam ser

acrescentados se parecerem úteis ou necessários:

1. A Regra do Carmelo

2. O Cristocentrimo do Carisma Carmelitano

3. A experiência carismática das origens

4. A dinâmica espiritual da vida carmelitana

5. O profeta Elias

6. Maria, Mãe e Irmã

7. A dimensão contemplativa do Carmelo

8. A dimensão apostólica do Carmelo

9. Fraternidade: crescer como irmãos


7

10. Lectio divina e Carmelo

11. A oração no Carmelo

12. A espiritualidade litúrgica do Carmelo

13. O silêncio na vida carmelitana

14. A pureza do coração na tradição bíblica e carmelitana

15. O deserto e o Carmelo

16. Símbolos carmelitanos

17. Os votos: um chamado à transformação

18. Justiça e paz

19. Carmelitas ilustres: professores, testemunhas, fundadores

20. Vacare Deo

Primeira Etapa do Projeto

Os livretos serão entregues à Ordem assim que estiverem disponíveis e não na

ordem citada. O trabalho é planejado para quatro anos. É importante enfatizar que os

livretos são manuais. Não são definitivos ou perfeitos, mas visam ser um meio de trabalho

voltado para o Diretório, reunindo observações, conselhos, contribuições e sugestões

baseadas na experiência daqueles que os manuseiam. Seria bom se fossem usados acima de

tudo em comunidades de formação, que esperamos estejam motivadas a colaborar na

revisão de cada tema tendo em vista o Diretório.

O uso desses subsídios poderia seguir esta metodologia:


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- estudo pessoal e comunitário do texto (usando as sugestões para a lectio divina; as

sugestões para o estudo e as questões para reflexão e discussão ou, se houver

necessidade, criando um modelo semelhante para tal reflexão);

- reflexão pessoal e comunitária sobre o que foi lido;

- indicação, se necessário, do que está faltando no livreto, ou dos assuntos que precisam

ser tratados de forma diferente ou mais ampla;

- sugerir meios pelos quais nossa experiência hoje possa ser incorporada ao Projeto do

Diretório, para enriquecer e desenvolver nossa tradição (supondo que esta tradição seja

uma realidade dinâmica);

- oferecer uma avaliação do material como um todo: o que precisa ser acrescentado?

retirado? melhorado? que aspectos foram mais úteis na prática?

A Comissão Internacional para o Carisma e a Espiritualidade está convencida de

que esses livretos podem ser usados tanto na formação inicial quanto na formação contínua.

Seu uso efetivo deveria provocar reações e contribuições que nos ajudarão a melhorá-los

até que o processo culmine no Diretório de Espiritualidade Carmelitana. A Comissão

agradece fraternalmente a qualquer pessoa ou comunidade que colaborar nesse processo

dinâmico, que é sem dúvida ambicioso, mas que está cheio de grande esperança. À medida

que novas tecnologias tornam-se mais disponíveis, esperamos que elas possam fornecer

meios mais dinâmicos para a ampla participação de todos no trabalho de reflexão,

permitindo elaborar um novo Diretório que deve ser fiel tanto à nossa tradição antiga

quanto à nossa rica experiência contemporânea.


9

As comunicações podem ser encaminhadas ao Conselho Geral responsável pelos

trabalhos da Comissão.

Fr. Wilmar Santin, O.Carm.

Curia Generalizia dei Carmelitani

Via Giovanni Lanza, 138

00184 Roma

Itália

Número de Fax: 3906 4620 1847

e-mail: [email protected].

Comissão Internacional para o Estudo do Carisma e da Espiritualidade Carmelitanas

Wilmar Santin – Hein Blommestijn – Emanuele Boaga – Paul Chandler

Carlos Mesters – Alberto Neglia – John Welch


10

NOTA SOBRE REFERÊNCIAS:

Numeração da Regra

A numeração da Regra de Santo Alberto segue o novo sistema aprovado pelos

Conselhos Gerais dos Carmelitas e da Ordem dos Carmelitas Descalços em Janeiro de

1999. A numeração é a seguinte:

Números Antigos Números Novos

Prólogo nn.1-3

Cap. 1 n.4

Cap. 2 n.5

Cap. 3 n.6

Cap. 4 n.7

Cap. 5 n.8

Cap. 6 n.9

Cap. 7 n.10

Cap. 8 n.11

Cap. 9 nn.12-13

Cap. 10 n.14

Cap. 11 n. 15

Cap. 12 n. 16

Cap. 13 n.17

Cap. 14 nn.18-19
11

Cap. 15 n.20

Cap. 16 n.21

Cap. 17 n.22

Cap. 18 n.23

Epílogo n.24

Quando há referência à Regra nas notas de rodapé, ela é apresentada pela abreviação

RA (Regula S. Alberti) seguida pelo número do parágrafo (ex.: RA 6).

Referências Bíblicas

As abreviaturas para as referências bíblicas são tiradas da Bíblia de Jerusalém.


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Índice

1. Introdução

2. História

3. Os Votos

3.1 Obediência – A escuta como transformação

3.2 Pobreza – A matéria bruta em transformação

3.2.1 Partilhar

3.2.2 Viver de modo simples

3.2.3 Ser desapegado

3.2.4 Ser solidário

3.3 Castidade – Um amor transformador

3.3.1 Nossa Corporeidade

3.3.2 Relacionamentos em comunidade e ministérios

3.3.3 Oração

4. Conclusão

5. Perguntas para discussão


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1. Introdução

Os conselhos evangélicos que um religioso professa devem ser compreendidos num

determinado contexto. Os votos são uma realidade vivida. São valores evangélicos

proclamados publicamente na Igreja por homens e mulheres. Precisamos compreendê-los

menos como um ideal, ou um estado de perfeição para o qual trabalhamos, do que como um

contexto ou uma condição para seguir Jesus Cristo hoje. Eles apontam para o futuro, para o

eskáton. No entanto, eles também são um modo de viver e testemunhar hoje a presença

misericordiosa de Deus no mundo. Depois destes esclarecimentos, refletiremos sobre os

votos a partir de três princípios básicos ou contextuais.

Em primeiro lugar, a reflexão teológica para nossa discussão sobre os votos é a

encarnação de Jesus Cristo. Uma teologia pré-Vaticano II enfocava a natureza escatológica

dos votos, dando uma ênfase ao relacionamento espiritual com Cristo e com o mundo. Este

conceito de vida religiosa como um estado de perfeição baseava sua teologia na

interpretação da história do jovem rico (Mt 19,16-22), enfatizando a idéia de dois

caminhos. O melhor caminho é aquele dos conselhos evangélicos oferecidos a algumas

almas escolhidas com a pretensa superioridade do estado religioso definido mais tarde

como o estado da perfeição. Por outro lado, uma teologia inserida vê Jesus Cristo como a

encarnação do amor de Deus por nós. A realidade histórica de Jesus, e a entrada de Deus na

história humana através dele, mudou a forma de experimentarmos Deus. Por ter sido

agraciada por Deus em Jesus, a experiência humana é o principal veículo para a experiência

do amor de Deus. Então, no contexto dos votos, devemos encará-los como um meio
14

específico de viver a vida cristã e carmelitana hoje, sem considerá-los exclusivamente

como uma preparação para o eskáton ou como uma escolha privilegiada.

Em segundo lugar, a contribuição carmelitana para nossa discussão dos votos é a

Regra de Santo Alberto. Em resposta ao Espírito Santo os primeiros carmelitas

desenvolveram um modo de vida no seguimento de Jesus Cristo.1 Embora os votos na

Regra sejam apenas mencionados mas não explorados explicitamente, os elementos

fundamentais do carisma carmelitano expressos na Regra são o contexto no qual somos

chamados a viver os votos. A busca pela face de Deus2 no contexto da vida comunitária3 e

no serviço ao povo de Deus4 é o local e o processo para vivermos os conselhos

evangélicos.

Este carisma é uma expressão do chamado evangélico à constante conversão em

nossos relacionamentos com Deus. Ele é uma expressão do que significa seguir Jesus.

Então, os três votos tornam-se uma outra maneira de ajudar nesta experiência contínua de

conversão. Uma vida de oração, vivida em comunidade e no serviço aos outros, torna-se o

contexto para a vivência dos votos como religiosos. Os votos, vividos no contexto

carmelitano, deveriam nos ajudar no processo que “nos transforma na existência amorosa

de Deus”.5

Finalmente, o terceiro ponto para nossa discussão dos votos é o contexto cultural

que cada um de nós, incluindo este autor, leva para a vivência dos votos. Sou um homem

carmelitano que tem vivido os votos por quase trinta anos aqui na América do Norte. Estes

fatores culturais de gênero, de idade e de geografia na última década do século XX

influenciaram necessariamente minha perspectiva. Espero que estes fatores não interfiram

com sua capacidade de estudar este material e que o ajudem a crescer na compreensão e na

vivência destes votos. O desafio para cada um de nós é viver os votos em nosso próprio
15

contexto. Em outras palavras, o cenário histórico e cultural de cada carmelita é um

sacramento para nós. América do Norte e América do Sul, Europa ocidental e oriental,

África, Filipinas e Indonésia: cada frade representa uma inculturação da experiência

carmelitana dos votos. Esperemos que nossa resposta a Jesus Cristo, sendo carmelitas em

qualquer contexto, seja uma fonte de vida, de energia e de testemunho para a benevolência

de Deus em nosso mundo.


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2. História6

A história dos votos religiosos nos mostra uma evolução na vida da igreja. Ao

longo da história da Igreja, a forma e o conteúdo dos votos mudam de acordo com as

necessidades e expectativas da comunidade cristã. Em outras palavras, a vida religiosa nem

sempre foi identificada com os três conselhos evangélicos, tais como os conhecemos hoje.

Os primeiros eremitas e cenobitas não faziam uma profissão religiosa formal.

Enquanto a castidade, que possuía uma ênfase mais unitiva e mística, era a virtude

característica das mulheres que faziam votos ao serviço de Deus na Igreja, a virtude que

caracterizava a vida monástica era a obediência, que possuía uma ênfase mais ascética. Um

monge, por exemplo, ia para o deserto e colocava-se sob a obediência de um pai espiritual.

Este pai espiritual o guiaria em sua jornada espiritual e no desenvolvimento das outras

virtudes evangélicas, incluindo, é claro, a castidade e a pobreza.

Enquanto o estilo de vida cenobítico crescia, reunindo várias pessoas vivendo

juntas em comunidade, a obediência se tornou um meio de organizar e harmonizar a

comunidade. É difícil determinar quando o compromisso de obediência entrou na vida

monástica, mas nos primeiros anos do século VI, o abade não era visto simplesmente como

o guia espiritual, mas como aquele que está no lugar de Cristo, dirigindo a família

monástica de fé.

Com a Regra de São Bento foram introduzidas outras promessas. Bento exigiu que

o monge professasse a estabilidade, a mudança de vida e a obediência.7 Ele menciona a

castidade apenas uma vez como um dos setenta e dois Instrumentos das Obras de Caridade
17

no capítulo quatro de sua Regra. Caso o monge ainda não tivesse renunciado à sua

propriedade antes de entrar para o mosteiro, ele deveria doá-la ao mosteiro “não retendo

nada para si, sabendo com isso que, deste dia em diante, não seria dono nem de seu próprio

corpo”.8

Durante as Reformas Carolíngias, entre o fim do século VIII e início do século IX,

a Regra de São Bento tornou-se a regra normativa para os monges na Igreja ocidental.

Assim a profissão da obediência, da mudança de vida e da estabilidade eram os votos

religiosos padrões. Durante os séculos que se seguiram a Bento, especialmente do século

VIII até o século XI, muitas das abadias cresceram e se tornaram estabelecimentos muito

prósperos.

Enquanto a Regra Beneditina tornava-se universal entre os mosteiros da Europa

ocidental ao longo do século IX, surgiu uma forma alternativa de vida religiosa que

buscava inspiração em outro lugar. Um número significativo de monges e cônegos,

seguindo a Regra Agostiniana, que se desenvolveu no início do século XI, optaram por ser

eremitas orantes e um número de mosteiros começou a se reformar e a se voltar para um

estilo de vida mais simples. O século XII foi um período de revolução econômica na qual a

base da riqueza mudou do capitalismo feudal para o capitalismo comercial. Enquanto as

cidades se revitalizavam através da expansão do comércio, ocorreu uma revolução social. A

riqueza e o poder na sociedade passaram da nobreza rural para os comerciantes urbanos.

Esta revolução econômica gerou um tremendo sentimento de ansiedade moral, na

medida em que as pessoas viam a ordem estabelecida sucumbir e ser substituída. Nesta

tensão, surgiram muitos movimentos que glorificavam a pobreza evangélica. Os valdenses,

os umiliati e, finalmente, os franciscanos tentaram responder a esse momento,


18

especialmente este último grupo. Nasceu assim o movimento mendicante: uma proposta

radical de viver o evangelho.

A Regra que Alberto de Jerusalém deu aos primeiros carmelitas exigia que os

eremitas professassem apenas a obediência.9 Nesta ocasião a autoridade era vista cada vez

mais como algo adquirido pelos cidadãos que escolhiam seus líderes para governar, a partir

de um consenso entre o povo. Esta mudança social se refletia num novo estilo de liderança

fraterna nas comunidades religiosas deste período. As novas comunidades rejeitaram o

governo abacial em favor dos priores que governavam suas comunidades com o

consentimento do capítulo. A obediência determinada na Regra Carmelitana refletiu este

novo espírito ao exigir consistentemente assensus aliorum fratrum, vel sanioris partis.

O chamado para um único voto na Regra não sobreviveu à mitigação de 1247 de

Inocêncio IV. Uma das modificações era expressar diretamente que os carmelitas

professam “obediência – que, ao prometer, o carmelita deve tentar fazer de seu ato uma

verdadeira reflexão – e também a castidade e a renúncia da propriedade”. 10 É interessante

observar que a fórmula de profissão não foi mudada para mencionar a castidade e a

renúncia da propriedade até as Constituições de John Soreth em 1462.11

A razão precisa para esta mudança, que afetou todos os mendicantes, não está

clara. Obviamente os frades não poderiam assumir os votos monásticos, já que a

estabilidade era contrária à visão de Francisco, que queria que seus frades pregassem o

evangelho de cidade em cidade. De fato, para Francisco o que substituía a estabilidade era a

pobreza. Enquanto a Igreja do tempo de Bento necessitava de monges que respondessem a

um pai espiritual confiável, a Igreja no tempo de Francisco necessitava de religiosos que

possuíssem aquela santidade testemunhada pela pobreza. A pobreza dos valdenses (um

grupo de radicais seguidores do evangelho) e a pobreza e a castidade reconhecidamente


19

rigorosa dos cátaros (um grupo radical no movimento de vita apostolica) exigia que estas

virtudes fossem intensamente vividas pelos frades. Portanto, faz sentido que a Igreja tenha

ligado estas duas virtudes à obediência, apresentando-as como as qualidades essenciais da

vida religiosa no começo do século XIII.

Quanto ao voto de pobreza, originalmente os mendicantes queriam um novo estilo

de pobreza. Não significava simplesmente que o indivíduo não tinha qualquer bem pessoal,

mas também obrigava a própria comunidade à pobreza. As ricas abadias não eram mais o

ideal. Os dominicanos e os franciscanos tinham visões ligeiramente diferentes a respeito

desta pobreza comum. Embora nenhum dos dois possuísse propriedades de produção de

renda, os dominicanos tiveram a permissão de possuir conventos com as plantações que

forneciam alimento para sua mesa, ao passo que os franciscanos não possuíam nem o título

de suas casas. Gregório IX impôs um estilo de pobreza franciscana aos carmelitas em sua

Bula de 1229, Ex officii nostri:

“... proibimos estritamente de qualquer forma que vocês aceitem ou ousem manter

como sua propriedade tanto suas ermidas ou bens ou casas ou outra renda...”

Já que Gregório IX foi um admirador e confidente de Francisco, era natural para

ele impor o ideal de Francisco como o modelo a partir do qual os outros religiosos

deveriam se confrontar. No entanto, tal idealismo não resistiu ao século. Na verdade, nas

últimas décadas do século XIII as comunidades carmelitanas não apenas possuíam seus

conventos e hortas, mas também propriedades com produção de renda, tais como casas

particulares, vinhas, lojas, fazendas e igrejas paroquiais.


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Assim, os votos têm sido uma realidade que evoluiu na vida religiosa. A forma

tríplice tem se mantido em vigor desde o século XIII. Contudo, está claro que seu papel na

vida religiosa e o significado dos votos particulares mudou através de toda história da vida

religiosa. Então, é importante perceber que como símbolos de um compromisso interior

eles querem ser uma personificação de um valor evangélico vivido num determinado

momento histórico. Eles precisam falar com renovado vigor em cada situação nova que os

religiosos e suas comunidades enfrentam. A história nos ensina que apenas as coisas que

estão abertas para um renovador significado e para uma compreensão nova, sobrevivem de

uma geração à outra e continuam a contribuir para a vida do corpo de Cristo.


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3. Os Votos

Os três votos professados por religiosos e religiosas estão enraizados nas Escrituras.

Eles são uma expressão dos valores do Evangelho. Contudo, eles se encarnam num

determinado momento histórico, refletindo assim as necessidades e as esperanças

psicológicas e espirituais das pessoas e do tempo em que vivem. Nossa discussão sobre

cada um dos votos partirá de suas raízes espirituais ou teológicas.

Reconhecemos que os votos não são entidades autônomas. Cada voto tenta exaltar

um lado distinto da vida humana, dos valores evangélicos, da vida cristã e carmelitana. No

entanto, cada voto está relacionado intimamente ao outro. A partir de nossa breve

abordagem histórica, veremos que antigamente todos os votos estavam subordinados ao

voto de obediência. Este inter-relacionamento dos votos fica evidente quando tentamos

descrever cada um deles.

3.1 Obediência – A Escuta como Transformação

A forma mais radical de obediência na Bíblia é a escuta fiel da voz de Deus que

vem a nós através da comunidade, através de nossos mestres e líderes e através dos fatos da

história. Deuteronômio 6,4-9 é a expressão perfeita da virtude bíblica da obediência.


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Ouça, Israel! Javé nosso Deus é o único Javé. Portanto, ame a Javé seu Deus com

todo o seu coração, com toda a sua alma e com toda a sua força. Que estas palavras, que

hoje eu lhe ordeno, estejam em seu coração. Você as inculcará em seus filhos, e delas

falará sentado em sua casa e andando em seu caminho, estando deitado e de pé. Você

também as amarrará em sua mão como sinal, e elas serão como faixa entre seus olhos.

Você as escreverá nos batentes de sua casa e nas portas da cidade.

Este credo, o famoso Shema, capta concisamente a noção judaica de como a vida

dos judeus é totalmente centrada em Deus. Por Israel estar tão convencido da presença

amorosa de Deus na história, por estar tão agarrada à realidade de Deus, sua única resposta

é aquela de obediência reverente e de abertura confiante na direção amorosa de Deus feitas

diariamente.

As grandes figuras do Antigo Testamento nos mostram que este tipo de obediência é

um desafio. O exemplo de obediência radical destas figuras pode coexistir com a confusão

e a ira diante dos caminhos misteriosos de Deus. Por exemplo, Moisés, que tira suas

sandálias em reverência diante da presença de Deus na sarça ardente, também pode quebrar

as tábuas de Deus com ira diante da estupidez do povo de Deus e dos confusos caminhos de

Deus. O Salmista, cuja poesia lírica louva o poder e a grandeza criadora de Deus, também

pode captar a raiva e a frustração diante das exigências de Deus. Jeremias, o profeta que

fala de Deus como um fogo ardente em seus ossos, também pode chamar Deus de um rio

enganador que corre para o deserto apenas para desaparecer em terras áridas. A obediência

é uma experiência humana e multidimensional.

No Novo Testamento, Jesus se torna a plena expressão da obediência. Ele conhecia

o poder da fé bíblica. Jesus foi o único Filho em quem Deus permaneceu. Ele foi
23

plenificado com o Espírito de Deus, buscando muitas vezes a comunhão silenciosa com seu

“Abba”. No evangelho de João ouvimos muitas vezes sua confiança de conhecer Deus e de

ser conhecido por Deus. Contudo, antes do mistério da paixão e da morte, Jesus também se

tornou o Filho obediente de Deus, enquanto esbravejava contra a escuridão e o silêncio da

voz de Deus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Sl 22,1).

Jesus lutou para ser fiel ao Pai: “Embora sendo Filho de Deus, aprendeu a ser

obediente através de seus sofrimentos” (Hb 5,8). Ele fez muitas orações para se tornar

capaz de conquistar esta posição (Hb 5,7; Lc 22,41-6). Mas ele não foi conquistado.

Ninguém, nenhuma autoridade em qualquer época foi capaz de interferir neste segredo

mais profundo de Jesus. Aqueles que tentaram interferir chocaram-se com uma parede

impenetrável. Ele foi obediente até a morte, e morte de cruz (Fl 2,8).

A comunhão entre Jesus e o Pai não foi automática, mas sim o fruto da luta que

Jesus travou dentro de si mesmo para obedecer ao Pai em tudo e para estar sempre unido a

ele. Jesus disse: “Eu não posso fazer nada por mim mesmo. Eu julgo conforme o que

escuto” (Jo 5,30). “O Filho não pode fazer nada por sua própria conta; ele faz apenas o que

vê o Pai fazer” (Jo 5,19). Como e onde Jesus viu e ouviu o que o Pai queria dele? Como a

vontade do Pai se manifestou a Jesus?

Em primeiro lugar, Jesus descobriu a vontade do Pai assumindo sua condição de

pobre. O que para alguns era a condenação do destino, para Jesus era a manifestação da

vontade do Pai. Jesus nasceu pobre. Continuar ao lado dos pobres foi a decisão do Filho

querendo ser obediente ao Pai até a morte e “morte na Cruz”.

Em segundo lugar, Jesus descobriu a vontade do Pai nas Sagradas Escrituras e na

história de seu povo. Jesus buscou as Escrituras como a fonte da autoridade (Lc 4,18). Ele

se orientou através das profecias do Servo de Deus e do Filho do Homem para realizar sua
24

missão como Messias (Mc 1,11; 8,31). Foi nas Escrituras que ele encontrou as respostas

contra as tentações que experimentou. “Não faço nada por mim mesmo, pois falo apenas

aquilo que o Pai me ensinou” (Jo 8,28). A Boa Nova do Reino foi e continua sendo, antes

de mais nada, a face do Pai a ser revelada ao povo, especialmente aos pobres.

Assim, a obediência bíblica é elaborada no contexto das escolhas da vida real. O

sofrimento, as frustrações, a aridez espiritual, são preços a serem pagos. Mas o povo das

Escrituras apega-se ferozmente à sua fé na realidade da presença de Deus na história, sua

história pessoal.

Os carmelitas entram nesta tradição bíblica da obediência em seu voto. Pelo voto,

que está enraizado no chamado para a obediência absoluta dirigida igualmente a cada

cristão no batismo, o religioso carmelitano situa seu total compromisso com a vontade de

Deus no contexto de uma comunidade que caminha nas pegadas de Jesus Cristo.

A Regra (n.º 22 e n.º 23) propõe como assumir esta obediência. Alberto se refere ao

ofício do prior, que é apresentado primeiramente no n.º 4. Aqui o ofício do prior foi

estabelecido num nível estrutural para a boa ordem da comunidade. Contudo, nos nn. 22 e

23 o prior e a comunidade têm que descobrir Cristo na “mútua co-responsabilidade da

obediência”.12 Alberto nos recomenda ver Jesus Cristo como o único centro de nossas

vidas. Permanecer em nossas celas é “permanecer na vinha”. Aprendendo a não possuir

nada, experimentamos como Jesus não possuía lugar para recostar sua cabeça. Celebrando

juntos a Eucaristia, nos tornamos pedras vivas com Cristo como a pedra fundamental.

Quando nos reunimos no capítulo e na correção fraterna, ele está em nosso meio.13

Basicamente, somos obedientes ao poder do Espírito de Cristo manifestado em nós

mesmos, em nossa comunidade e sob sua liderança.


25

No nível do humano, o voto de obediência levanta a questão de como usamos nosso

poder e nossa liberdade, tanto comunitária como pessoalmente. A última metade do século

XX viu a queda do patriarcado como vimos nos anos 60 e 70 com as revoltas estudantis,

nos blocos comerciais unindo muitas nações ocidentais, o fim dos regimes coloniais,

militares e outros regimes repressores e o crescimento do feminismo. Concomitantemente,

este período também testemunhou um individualismo excessivo e uma obsessão pela auto-

realização, especialmente no hemisfério ocidental, que causou forte impacto em muitas

partes do mundo.

Estes fatores históricos e culturais influenciam nossa compreensão e o exercício do

poder,14 a esfera política da vida, que interfere no voto de obediência. Ao assumir este voto

nos confrontamos com as mesmas perguntas que qualquer outro ser humano faz. Que poder

tenho sobre os outros? Que esforço comum posso utilizar? Qual minha contribuição para a

vida da sociedade e da comunidade? Qual minha influência em determinar direções

comuns? Embora todos os cristãos se engajem nestas questões, o contexto em que elas se

realizam varia muito. Para os religiosos, o contexto é a comunidade com a qual estão

comprometidos.

Professando a obediência os religiosos dizem que querem usar sua capacidade de

dialogar com os outros na busca pela vontade de Deus. O poder deles é mais humano e

eficaz quando ouvem e agem de acordo com as inspirações pessoais que Deus lhes oferece.

Estas inspirações vêm através de muitos meios. Basicamente, a obediência vem pela

ponderação da Palavra de Deus e pelos sinais da presença de Deus em nosso mundo, de

acordo com nossos irmãos e irmãs no Carmelo e com aqueles que escolhemos para liderar a

comunidade.
26

Em primeiro lugar, a obediência exige um confronto contínuo com a Palavra de

Deus. As Escrituras, refletidas individual e comunitariamente, nos dão acesso à revelação

da presença de Deus no meio das comunidades judeu-cristãs do passado. É a revelação de

como Deus se comunicou com seu povo e é uma fonte de discernimento da presença de

Deus entre nós hoje. Devemos conhecer as Escrituras com nossos corações e nossas mentes

para penetrar no coração e na mente de Deus.

Em segundo lugar, a vontade de Deus também está presente nos sinais dos tempos.

A meditação da Palavra de Deus deve ser feita no contexto de nossa realidade para

conhecermos a vontade de Deus. Nossas circunstâncias históricas devem dialogar com as

Escrituras, para discernirmos o lugar para onde a obediência nos chama. Estas

circunstâncias históricas têm muitos níveis: o individual/pessoal, o apostólico, a

comunidade local e provincial, as lideranças locais e provinciais e o social. Qualquer uma

destas áreas pode exigir mais atenção e significado numa determinada hora, dependendo da

situação. Então a obediência se torna mais desafiadora e o discernimento da vontade de

Deus requer maior disciplina e humildade.

Num terceiro ponto vemos que a obediência se realiza no diálogo com nossa

comunidade e sua liderança. O chamado para a vida comunitária é fundamental para o

carisma carmelitano. Desse modo, acreditamos que o Espírito de Deus se move através da

voz coletiva da comunidade e daqueles que escolhemos para liderá-la. Qualquer

discernimento da vontade de Deus deve incluir necessariamente nossa escuta da

comunidade. Além disso, a obediência religiosa pode ser um verdadeiro testemunho

evangélico, pela compreensão do poder que ela transmite, especialmente em nossas

estruturas governamentais. Muitas comunidades, principalmente as congregações

femininas, estão trabalhando rumo a estruturas mais participativas. Surgem novos modelos
27

de governo, tais como grupos regionais que se encontram regularmente, capítulos onde

todos os membros participam ativamente, líderes engajados num processo comunitário de

tomar decisões. Desta forma, eles revelam uma maneira diferente de exercer o poder e a

autoridade, longe do antigo modelo hierárquico e patriarcal. Estes modelos participativos

permitem que cada membro possa discernir a vontade de Deus assim como exercer o poder

coletivo na comunidade.

A liderança em tais modelos é realmente um chamado ao serviço (Lc 22,26-27). Ela

exige um novo jeito de administrar a complexidade da vida religiosa, a habilidade em

conduzir a atenção da comunidade para uma visão partilhada que unirá os esforços

individuais, inspirados pela missão da província e da comunidade local, e a capacidade de

formular estratégias para alcançar tudo isso.15 Esta liderança pede a habilidade de entender

as estruturas subjacentes, os modelos e as forças que devem ser avaliados para se ir de um

ponto ao outro.

Finalmente, a obediência é realmente o cultivo de uma união amorosa com Deus.

Esta união se torna a base de todas as nossas escolhas que, por sua vez, nos une

profundamente com Deus. Ao estarmos conscientemente mais unidos com Deus,

começamos a ver tudo com os olhos de Deus e a buscar a verdade no amor. Em muitas

circunstâncias pode existir apenas uma escolha para nós. No entanto, em outras situações

podem existir várias escolhas. Nem sempre existe uma escolha que é melhor do que as

outras. Nem é o caso de Deus ter pré-julgado o que devemos fazer. Buscar a vontade de

Deus, obedecer a Deus é fazer as escolhas e tomar a decisão mais amorosa que podemos

em qualquer momento. A longo prazo, a obediência consiste formalmente no como e no

porquê fazemos uma certa escolha, em vez de o que realmente escolhemos.16


28

Como carmelitas caminhando nas pegadas de Jesus Cristo, a obediência deveria nos

levar à liberdade para escolher a vida como Jesus o fez. Em qualquer circunstância em que

ele se encontrava – na festa de casamento em Caná, com a samaritana junto ao poço, na

morte de seu amigo Lázaro ou na sua própria morte – ele escolheu fazer a vontade de seu

Pai, mesmo quando ele não a compreendia. O contexto no qual buscamos a vontade de

Deus é essencialmente contemplativo. É um meio de sondar e procurar, um modo de

escutar e de orar que é transformador. Os anseios do Espírito de Deus em nós, a

comunidade, a liderança comunitária, o povo e o tempo ao qual servimos, deveriam nos

levar a uma maior generosidade e liberdade, para melhor testemunharmos a presença

amorosa de Deus no mundo.

3.2 Pobreza – A matéria bruta em transformação

Ao contrário da obediência, encontrar as raízes bíblicas da pobreza exige algum

esforço. Obediência é uma palavra bíblica bem comum, enquanto que pobreza ocorre com

menos freqüência. Contudo, a chave para a pobreza é a consciência de que ela deve estar

enraizada na fé e no amor que nos une a Deus. De fato, num sentido bíblico a pobreza e a

obediência estão intimamente relacionadas. Se obediência é o compromisso de ouvir a voz

de Deus, a pobreza é o compromisso de responder a esta voz.

Em geral, as Escrituras olham a pobreza de um modo bem prático. Basicamente, os

bens materiais são apresentados de uma maneira positiva. Eles são um dom de Deus,

reflexo da criação de Deus. Por outro lado, a pobreza e a espoliação não são boas. Elas

representam uma distorção da bondade de Deus. Portanto, um dos compromissos da


29

Aliança era que todos mereciam atenção: ninguém deveria passar necessidades, ninguém

deveria ser pobre. Quando Lucas retrata a comunidade de Jerusalém após a Páscoa, ele a

descreve precisamente nestes termos como a realização da comunidade ideal ansiada por

Israel: “Todos os que abraçaram a fé eram unidos e colocavam em comum todas as coisas...

conforme a necessidade de cada um” (At 2,44-45).

Contudo, Israel e as igrejas do Novo Testamento também conheciam a tentação em

ter tantos bens. As divisões entre os ricos e os pobres emergiram desde cedo na história de

Israel. Eventualmente vozes proféticas, de Elias a Jeremias, surgiam contra os ricos e

poderosos porque eles maltratavam os indefesos. Amós e Oséias denunciavam os ricos por

ignorarem os pobres.

Assim, surgem duas correntes bíblicas sobre os bens nas escrituras hebraicas e

persistem até o Novo Testamento. Primeiramente, os bens são bons quando servem como

instrumentos e expressões da dignidade humana que recebemos como filhos de Deus. Em

segundo lugar, numa comunidade baseada na fé em um Deus que é misericordioso e

compassivo, ninguém deveria sofrer com a falta de alguma coisa.17

O Novo Testamento também tem uma visão prática dos bens. Uma grande riqueza é

vista com ceticismo que nasceu da experiência. Jesus viveu num tempo onde existia uma

grande divisão entre ricos e pobres. Ter muitos bens exige sua atenção nas coisas, não em

Deus. “Onde está o seu tesouro, está o seu coração”. As pessoas que possuem muita

colheita necessitam construir muitos celeiros, em vez de pensarem sobre o destino de suas

almas. Aqueles que pisam em Lázaro e em suas feridas para entrarem nos salões do

banquete estão também muito preocupados para ouvirem a voz da profecia. Aqueles que

encontram conforto e poder naquilo que possuem podem estar cultuando a riqueza como se

fosse seu Deus.


30

Estes são os exemplos de Jesus sobre riqueza e bens. Eles são pragmáticos e

baseados na experiência. “Algumas de suas intuições mais explícitas sobre os bens são

estabelecidas no contexto de metáforas sobre viagens”.18 Carregue apenas um cajado.

Muita riqueza é simplesmente muita bagagem. O jovem rico foi embora muito triste – tinha

muita bagagem. Zaqueu, buscando a aprovação de Jesus, dá metade de suas riquezas.

Caminhar nas pegadas de Jesus é uma jornada de fé e de serviço. Devemos estar

livres para esta jornada. Esta realidade influencia as parábolas de Jesus sobre os bens:

“Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois,

quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas quem perde a sua vida por causa de mim

e da Boa Notícia, vai salvá-la. Com efeito, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro,

se perde a própria vida?” (Mc 8,34-36).

Quando os discípulos hesitam, imaginando que se arriscaram muito, Jesus lembra

mais uma vez o chamado da liberdade:

Pedro começou a dizer a Jesus: “Eis que nós deixamos tudo e te seguimos”. Jesus

respondeu: “Eu garanto a vocês: quem tiver deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, filhos,

campos, por causa de mim e da Boa Notícia, vai receber cem vezes mais. Agora, durante

esta vida, vai receber casas, irmãos, irmãs, mãe, filhos e campos, junto com perseguições.

E, no mundo futuro, vai receber a vida eterna” (Mc 10,28-30).

O pensamento de Jesus é claro: “O que chamamos de pobreza evangélica é aquilo

que os evangelhos chamam de colocar de lado qualquer coisa que nos impeça de seguir
31

Jesus. Jesus era totalmente livre, livre para seguir a orientação do Espírito, livre para trilhar

pelas margens da sociedade de seu tempo, livre para estar em comunhão com os pobres,

livre para tocar naqueles que precisavam de cura, livre para acolher a raiva e a violência,

livre para ouvir a voz de Deus”.19

A Bíblia fala positivamente do pobre, mas não da pobreza. Os pobres são o objeto

da compaixão de Deus e, por isso, deveriam ser do interesse do povo de Deus. Aos olhos da

Bíblia os pobres têm uma vantagem sobre os ricos: é menos provável que eles sejam

seduzidos por uma profusão de bens. Por estarem indefesos e vulneráveis sua única força é

Deus.

Assim, as raízes bíblicas da pobreza são simples. Bem-aventurados os pobres

porque deles é o reino de Deus. Bem-aventurados os que têm fome de Deus e de seu reino

que colocam de lado todos os empecilhos, toda bagagem e seguem Jesus para a realização

de suas esperanças.

Existem duas motivações bíblicas óbvias para deixarmos de lado os bens. Primeiro,

o voto de pobreza nos permite a liberdade de colocarmos o excesso de nossos bens à

disposição dos necessitados. Segundo, o voto nos torna livres daquelas posses que

poderiam nos impedir de seguir Jesus.20

Na Regra, a pobreza aparece no n. 12. A visão é aquela das primeiras comunidades

apostólicas cujo objetivo é preservar o bem comum. A pobreza em si não é o ideal. O bem

de todos os irmãos e irmãs é o ideal. Portanto, partilhamos o que temos uns com os outros

de modo que ninguém tenha necessidade de qualquer coisa.

Contudo, o bem comum em si não é um tipo de comportamento nivelador ou cego

de modo que a singularidade de cada pessoa se perca ou desapareça sob uma monotonia ou

uniformidade superficial. O objetivo de partilhar todas as coisas em comum é colocado no


32

contexto onde também saibamos reconhecer as necessidades individuais – “conforme cada

qual estiver precisando, levando-se em consideração as idades e as necessidades de cada

um”.21 A Regra nos desafia a assumir nossa responsabilidade em determinar o que

precisamos e avaliá-las no contexto das necessidades da comunidade.

O voto, em seu ideal e em sua realidade, nos une à esfera econômica da vida

humana. Cada ser humano estabelece algum tipo de relacionamento com o mundo

econômico. Universalmente as pessoas tendem a medir o sucesso na vida através deste

relacionamento. O que eu ganho na esfera econômica? De quantas maneiras posso ser

dominado pelo mundo que me rodeia? A minha doação é benéfica ou maléfica, libertadora

ou escravizante?

Ao professarmos a pobreza não escapamos destas perguntas e da luta que elas

representam. Estamos simplesmente dizendo que, através de nossa profissão para ser

verdadeiramente humanos, queremos partilhar o que temos, viver simplesmente,

desenvolver um espírito de desprendimento e sermos solidários com os necessitados e

pobres de fato.

3.2.1 Partilhar

Partilhar não significa necessariamente dar um testemunho poderoso, mas é uma

prática que nos une e nos ensina sobre nossa dependência de Deus e dos outros. A solidão e

a indiferença mútua que experimentamos algumas vezes na vida comunitária estão muitas

vezes relacionadas com questões envolvendo os bens comunitários. Muitos bens e

conveniências pessoais embaralham nossas mentes e nossos corações e nos afastam de


33

qualquer necessidade sentida na vida comunitária. A necessidade de partilhar nossos bens,

de chegar a um acordo em nossas preferências, de estar satisfeitos com o bem-estar comum

– tudo isso proporciona várias oportunidades para aquele apoio e desafio que são a essência

da vida comunitária. A partilha dos bens por sua vez, proporciona um meio de também

partilhar os interesses, as preocupações, as memórias, as aspirações e a oração.

3.2.2 Viver de modo simples

Viver de modo simples em nosso mundo consumista é um grande desafio. Muitos

bens materiais podem nos provocar o esquecimento de quem nos fez e do porquê estamos

aqui. Uma vida mais austera abre perspectivas, novas ou esquecidas no conhecimento de

Deus. Libertados das distrações e da busca ilusória de nossos pequenos confortos e luxos,

permanecemos diante de Deus um pouco mais como somos – como seres humanos com

fome de Deus, necessitados da misericórdia de Deus, nunca realizados ou satisfeitos a não

ser em Deus (vacare Deo).

A austeridade de vida nunca é fácil para um indivíduo ou para uma comunidade.

Cada grupo etário, cada tipo de personalidade, cada cultura humana tem seus pontos fortes

e suas fraquezas neste domínio. É um desafio avaliar continuamente nosso estilo de vida,

com respeito uns pelos outros e fazer cada vez as mudanças necessárias que nos levarão

para mais perto de Deus, dos outros e do povo de Deus ao nosso redor.
34

3.2.3 Ser desapegado

O voto de pobreza sem uma simplicidade material é certamente considerado

suspeito. Contudo, a observância fiel do voto não pode ser medida em termos puramente

econômicos. O significado mais profundo de nosso voto de pobreza nos desafia a um

desapego, tanto espiritual como material. Nos capítulos 1-8 de seu livro Noite Escura, João

da Cruz descreve enfaticamente a transformação a qual Deus nos chama através deste

espírito de desprendimento.

Freqüentemente, de modo inconsciente e sutil, possuímos (ou somos possuídos por)

funções, hábitos, tarefas, pessoas e lugares. É normal para nós reafirmarmos nossos

sentimentos de segurança e de auto-estima em tarefas especiais, às quais nos apegamos

tenazmente, ou em rotinas e práticas que canonizamos desnecessariamente, ou em

instituições que controlamos, ou em lugares especiais dos quais pensamos não poder nos

afastar. Tais ligações são geralmente o resultado de grande dedicação e compromisso. Mas

o compromisso paralisa quando não está aberto à mudança. O que começou como um bem

torna-se prejudicial – para nós pessoalmente e para a missão de nossa comunidade. Ele nos

impede de ouvir novos chamados e de experimentar novos desafios. Nossa ligação

excessiva com um bem muitas vezes não nos deixa livres para muitos outros bens.

Tais ligações com coisas não-materiais são difíceis de se identificar e de se

enfrentar. Freqüentemente os outros as percebem em nós antes do que nós mesmos. O

espírito de obediência nos desafia a ouvir os outros quando eles nos questionam. O espírito

de pobreza nos desafia a deixar tais posições e nos promete uma nova liberdade.
35

3.2.4 Ser solidário

A pobreza voluntária não pode estar separada ou independente da pobreza

involuntária experimentada por tanta gente do povo de Deus em nosso planeta. Se estamos

realmente caminhando nas pegadas de Jesus, então o interesse dele pelos pobres, pelos

sofredores e fracos de nosso mundo deve tornar-se também nosso. Jesus viveu no meio de

pessoas que eram consideradas impuras: publicanos, pecadores, prostitutas, leprosos (Mc

2,16. 1,40; Lc 7,37). Ele reconheceu a riqueza e o valor que os pobres possuíam (Mt 11,25-

6; Lc 21,1-4). Ele os proclamou felizes porque o Reino é deles, dos pobres (Lc 6,20: Mt

5,3). Ele definiu sua missão como “anunciar a Boa Notícia aos pobres” (Lc 4,18). Ele

mesmo viveu com os pobres, sem possuir nada, nem mesmo uma pedra onde repousar a

cabeça (Lc 9,58). Ele ordenou, a quem quisesse segui-lo, que escolhesse Deus ou o dinheiro

(Mt 6,24). Ele ordenou fazer uma opção pelos pobres (Mc 10,21). Como realizamos isto?

Em primeiro lugar, um grande desafio para nós é redirecionar nosso trabalho nos

ministérios atuais. Justiça para os pobres – aquela justiça que é “parte essencial do

evangelho”22 – deveria ser uma preocupação em tudo o que realizamos. Quando

trabalhamos entre os saciados e os ricos, o desafio é motivá-los a ajudar, a ampliar seu

pensamento e a estimular sua boa vontade. Os trabalhos em nossas paróquias, escolas, etc.,

precisam envolver também os participantes ricos, para que eles possam experimentar

realmente os problemas dos pobres e dos marginalizados.

Um segundo caminho é nossa própria experiência direta, trabalhando com os

pobres. Conviver e olhar nos olhos, uns dos outros, é absolutamente necessário. Podemos

não resolver os problemas das pessoas, mas podemos aprender a ficar mais perto e a sentir

mais profundamente as dores daqueles que não receberam tantos privilégios quanto nós. O
36

tempo real que gastamos trabalhando lado a lado, muitas vezes nos abre os olhos e os

corações para os problemas. Assim, o processo para crescer no amor de Jesus pelos pobres

é, paradoxalmente, aprender como ser pobre com os próprios pobres. Eles podem nos

formar na dependência radical em Deus que este voto testemunha.

Provavelmente o modo mais importante de viver este voto é ser solidário com os

pobres. A carência material é um mal. Não queremos idealizá-la, mas superá-la tão

eficazmente quanto possível. Não podemos fingir sermos exatamente como os pobres. Mas

podemos conhecê-los e partilhar seus interesses e seus fardos mais plenamente. Nossa

educação e influência como religiosos podem ajudar a dar voz e compreensão à luta dos

pobres. A experiência única que eles têm de Deus e da divina providência é um presente

para nós. Temos muito a dar e a receber uns aos outros. Este é o significado da

solidariedade – “permanecemos juntos como Maria permaneceu com João aos pés da cruz e

experimentamos uma nova fonte de poder”.23 Tal postura é observada em nossa tradição

carmelitana. Estaremos realmente próximos de Jesus na medida em que experimentarmos

esta transformação em nossa solidariedade para com o pobre. Quanto mais estivermos perto

dos pobres, experimentaremos esta transformação em nosso relacionamento com Jesus.

3.3 Castidade – Um Amor Transformador

A Bíblia tem uma visão muito positiva da sexualidade. Não no seu sentido

romântico, mas como uma expressão humana vital do poder criador de Deus. A visão

bíblica era “crescer e multiplicar”. Por isso, as crianças – especialmente o filho, numa
37

cultura de aldeia patriarcal – eram não apenas um sinal de bênção e de segurança, mas uma

expressão de obediência.

A infecundidade e a esterilidade, por outro lado, eram uma maldição e um motivo

para alguém ser ridicularizado. A Bíblia não traz hinos sobre a virgindade e poucas

palavras de elogio à vida celibatária. Mais típico é o doloroso quadro de Ana, desfeita em

pranto ao orar no santuário de Silo, implorando a Deus para livrá-la da vergonha da

esterilidade. Então, onde encontramos um fundamento bíblico para o voto de castidade?

Desde o início da história cristã, aqueles que escolheram a castidade celibatária

recorreram a dois textos como a base bíblica para esta decisão. Mateus 19 e 1Coríntios 7.

Em Mateus, Jesus proclamou seu ensinamento sobre o matrimônio e aparentemente anulou

a possibilidade do divórcio. Os discípulos atordoados dizem a ele: “‘Se a situação do

homem com a mulher é assim, então é melhor não se casar’. Jesus respondeu: ‘Nem todos

entendem isso, a não ser aqueles a quem é concedido. De fato, há homens castrados, porque

nasceram assim; outros, porque os homens os fizeram assim; outros, ainda, se castraram por

causa do Reino do Céu. Quem puder entender, entenda’” (Mt 19,10-12). Ainda que o

estudo bíblico moderno sugira que esta passagem está mais relacionada com o casamento

do que com o celibato, muitos sentem que ela ainda é um importante indício para um

fundamento bíblico do voto.24

Nesta passagem de Mateus, a frase chave é por causa do Reino do céu. A noção

sugerida no texto grego não é a de que alguém se torna eunuco para ir para o Reino, mas

que o reino fez algo para que a pessoa se tornasse um eunuco. “Em outras palavras, a lei de

Deus – Deus – apodera-se de uma pessoa com uma paixão tão forte, tão dominante que ela

toma conta da vida desta pessoa, a leva a uma decisão que a Bíblia dificilmente pode

contemplar (e diante da qual os discípulos hesitam)”.25


38

Na passagem de 1Coríntios, Paulo tem um enfoque semelhante. Ao nos

aproximarmos do fim dos tempos, “quem não tem esposa, cuida das coisas do Senhor”. Ele

diz isso a eles não para armar uma cilada, mas “para que possam permanecer sem distração

junto ao Senhor” (1Cor 7,32-35). Assim, um enfoque semelhante é dado: a castidade

celibatária torna-se uma opção cristã apenas porque a ardente paixão por Deus toma conta

da vida da pessoa.

Tal fundamento lógico tem uma base espiritual sólida. As pessoas estéreis que

lamentam seu vazio e sua esterilidade descobrem que Deus preenche suas vidas. Deus tira a

vergonha de Ana; Deus sopra vida no útero de Isabel; e o Espírito de Deus leva vida ao

útero de Maria. A única paixão que pode substituir a paixão do amor sexual é a paixão da

fé. Assim, as escrituras sugerem que o voto de castidade, como os votos de obediência e de

pobreza, “tira seu significado radical do vibrante elo primordial entre Deus e o fiel”.26

A Regra primitiva não menciona a castidade ou o celibato. Ela assume que a

obediência no seguimento de Cristo ipso facto significa viver uma vida casta. A castidade é

mencionada especificamente na adaptação da Regra pelo papa Inocêncio.27 Pouco mais é

escrito, a não ser na passagem do n. 19. O objetivo da Regra é tentar estabelecer estruturas

(por exemplo, silêncio, jejum, autoridade) que sustentarão o discipulado fundamental que

os carmelitas buscam. Caminhar nas pegadas de Jesus nos chama para aquela busca

concentrada do reino de Deus que o voto de castidade possibilita e testemunha.

O celibato consagrado, ao qual o voto de castidade nos chama, é um aspecto da vida

religiosa que é distinto do caminho para o qual todos os discípulos são chamados. O

celibato religioso foi descrito por Sandra Schneiders28 como um ícone, uma abertura no

mistério de Deus. Este mistério nunca é plenamente revelado nem compreendido. Contudo,

ele transmite aquele Deus misteriosamente presente no mundo. O amor celibatário na sua
39

melhor forma evangeliza por sua absorção total em Deus, e por sua inclusão e seu

extravasar do eu no outro. O celibato consagrado aponta para a irrupção do reino de Deus e

para a totalidade de suas exigências.

A castidade celibatária trata da esfera pessoal ou doméstica de nossas vidas. Aqui o

sucesso ou a realização na vida é muitas vezes medido em termos de relacionamentos

íntimos. Que tipo de companheiros tenho e o que significo para eles? Quem conheço e

como? Como me relaciono comigo mesmo e com meu corpo? Meus relacionamentos

humanos e íntimos são libertadores ou escravizantes de alguma forma?

Ao professar a castidade celibatária, os religiosos não escapam destas questões e da

genuína luta humana que elas representam. Ao professar buscar este relacionamento

exclusivamente com Deus em sua vida, a pessoa não evita a profunda solidão ou o vazio

que o fato de estar sem um parceiro permanente, ou uma família, carrega em si. Na

verdade, a experiência da castidade celibatária é a de trabalhar com este vazio durante toda

a vida da pessoa. Não é necessário dizer que existem muitos outros tipos de

relacionamentos e de responsabilidades que aparecem em nosso caminho através da

liberdade que o voto de castidade nos dá. Mas podemos esperar que nosso desejo e nossas

necessidades por relacionamentos humanos serão, pelo menos às vezes, particularmente

intensos.

Os religiosos que não vivem um amor intenso por Deus encontrarão o vazio

esmagador. Freqüentemente eles procuram outras compensações: carreira, trabalho,

conforto, bens, relacionamentos que comprometem potencialmente seu voto. Outros ficam

deprimidos e retraídos na comunidade, severos e frios no ministério. Este é um voto

perigoso. David Fleming, S.M., afirma: “Nenhum nível de maturidade, nenhuma técnica de
40

desenvolvimento humano e religioso, nenhuma combinação de ministério e de amizade nos

isolarão da dor e do desafio do celibato por causa do Reino”.29

Que oportunidades na vida religiosa estão disponíveis para nos ajudar a viver este

voto com integridade, humanidade e generosidade? Para viver a castidade celibatária os

religiosos devem crescer na compreensão de sua corporeidade, devem desenvolver uma

abertura para o relacionamento na sua comunidade e nos ministérios e devem viver uma

vida de contínua oração.

3.3.1 Nossa Corporeidade

No passado, numa tentativa de incentivar a castidade, parte de nossa formação

religiosa voltou-se para um tipo de angelismo. Nem sempre houve um reconhecimento e

uma apreciação positiva das necessidades de nossos corpos.

Quando nos relacionamos com outras pessoas, sempre o fazemos através de nosso

corpo. É importante para nós voltar ao contato com a expressão natural do corpo e não

negar seu valor como parte da criação de Deus. O voto de castidade não elimina nossa

expressão corporal.

Sentir e tocar (um tapinha nas costas, um abraço, um aperto de mão caloroso, um

beijo) são uma parte natural do relacionamento humano. As culturas variam muito no

significado de tais gestos, mas em toda cultura o corpo exerce um papel importante ao

expressar calor e afeição. Quando se reprime a expressão corporal somos tentados à

sensualidade e ao erotismo compulsivos que poderiam ser expressos, por exemplo, na

masturbação compulsiva ou no vício da pornografia. A melhor ajuda para a castidade não é


41

a inibição, mas um zelo contínuo e respeitoso por nossas necessidades físicas e psíquicas.

Este zelo se manifesta em comportamentos como: uma dieta saudável, exercícios regulares,

repouso adequado, relaxamento e recreação. Quando este zelo é parte da vida celibatária,

nossos corpos se tornam parte de uma pessoa madura, percebida como um todo, como um

canal de encanto e de graciosidade.

Um respeito maduro e equilibrado por nossos corpos é parte do agradecimento pela

criação da santidade unificada à qual somos chamados. Tais atitudes sustentam nossa

vivência do voto em vez de miná-la. Elas são ajudas importantes à castidade. O voto de

castidade não é um voto de ignorar o corpo. “Ele é certamente um voto onde se canalizam

as energias criativas e significativas de nossos corpos para a vida de santidade”.30

Para viver o voto de castidade devemos crescer na aceitação e no respeito de nossos

corpos. Este crescimento inclui aceitação e respeito por nossa sexualidade e por nossos

desejos sexuais. Um desafio quando se busca integrar o próprio desejo por uma união

sexual com outra pessoa, desejo este que pode ser muito poderoso. No entanto, tais desejos

são parte da ação de Deus em nós. Eles não podem ser negados ou ignorados sem nos

causarem problemas mais profundos. É valioso para nós refletirmos se existe um medo

exagerado ou um puritanismo sobre a dimensão do corpo em nossas vidas. Em vez de

reprimir qualquer interesse ou atenção pelo corpo humano (o nosso próprio corpo ou o

corpo de outra pessoa), devemos aprender a sermos gratos e felizes por esta parte da criação

de Deus. O resultado pode ser um relaxamento maior e uma atenção maior ao que nosso

corpo nos diz sobre o todo de nossa natureza corpo-espírito. Se isto ocorreu, então de fato,

seremos mais plenamente templos do Espírito Santo.


42

3.3.2 Relacionamentos em Comunidade e Ministérios

A intimidade humana é essencial para vivermos uma vida de castidade celibatária.

Ser íntimo é deixar outra pessoa participar de nossa vida de tal modo que sua presença se

torna uma parte do que somos. Isto aprofunda nossa auto-estima. A intimidade envolve

uma certa morte para o eu e amar nosso próximo como a nós mesmos. Os relacionamentos

são complicados e não saímos bem deles sem cicatrizes. Já que a intimidade é perigosa,

temos muitas maneiras de nos proteger e de nos defender contra ela. Contudo, alguns

relacionamentos íntimos são necessários para uma vida plenamente integrada e generosa.

Evidentemente a intimidade na vida religiosa é mais difícil do que na vida do leigo.

Quanto mais próximos ficamos de uma pessoa, mais difícil é deixá-la ir. Contudo, o amor

celibatário, em sua universalidade, implica na disposição de deixar muitas pessoas entrarem

em nossas vidas mas também na boa vontade de deixá-las sair. Já que o processo de deixar

partir é muito doloroso, os religiosos podem ter a tendência de desenvolver uma forte

resistência à qualquer tipo de intimidade.

Além disso, a intimidade por sua própria natureza pede uma expressão física.

Assim, o desenvolvimento da intimidade dentro de uma comunidade religiosa celibatária ou

num ambiente ministerial pode criar, às vezes, uma tensão com respeito à expressão física

que também será dolorosa e difícil de ser tratada. O que fazer? O caminho mais fácil seria

evitar a intimidade em vez de desenvolver atitudes e comportamentos apropriados para a

intimidade celibatária. Para evitar a intimidade usamos a repressão e a compensação que

são reações psicologicamente doentias. O que ocorre então é o retraimento da intimidade e

o investimento de nossa auto-estima em coisas, não em pessoas: trabalho, papéis, funções,

realizações, conforto, etc.


43

Jesus não tinha medo da intimidade. Ela estava presente em muitos de seus

relacionamentos: com os discípulos, com Marta e Maria, com Lázaro. A intimidade,

incluindo a intimidade com o próprio Senhor, é um fato marcante nas vidas de muitos

santos como Teresa e João da Cruz. O ideal deste voto é valorizar a intimidade com muitas

pessoas, especialmente com os menores: os pobres, os doentes, as crianças, os deficientes.

Assim, a vivência da intimidade dentro de uma vida religiosa celibatária torna-se um

compromisso de solidariedade com os pobres, os sofredores, os marginalizados.

O religioso celibatário pode viver uma genuína vida de intimidade. Mas a

consciência da sexualidade deve estar integrada com o desejo de viver o amor universal,

integrador, redentor e piedoso de Cristo.

3.3.3 Oração

A experiência religiosa, cultivada numa vida consistente de oração, é a chave para a

vivência significativa da castidade. Deus é o relacionamento permanente e mais importante

em nossas vidas. Assumir o voto significa que nenhum ser humano é mais importante para

nós do que Deus. É claro que este fato é verdadeiro para todos os seres humanos, mas a

vida religiosa estimula a experiência de nossa solidão fundamental, tornando-o mais

evidente e óbvio.

Uma vida de oração proporciona a oportunidade de experimentar este Deus que nos

chamou a partilhar nosso eu com todos. Vamos para Deus com a experiência deste

chamado em todas as suas ramificações: alegria e sofrimento, intimidade e vazio. Este tipo

de vida é assumido adequadamente apenas na fé, certos de que Deus nos transformará.
44

Apenas Deus fará de nosso coração uma fonte doadora de vida, desinteressada, aberta ao

amor universal.

Uma vida de oração permite que continuemos a crescer nesta transformação e

conscientização. Ser fiel à oração proporciona a oportunidade de estar em contato com o

desejo que temos por Deus e com o desejo de Deus por nós assim como com as

racionalizações e compensações que desenvolvemos para preencher a solidão.

Basicamente, oramos porque sabemos que precisamos de Deus. Precisamos que Deus nos

preencha e transforme nosso amor, para que ele possa ser libertado para interesses mais

amplos e vastos em nosso mundo.

A castidade celibatária é um dom no qual crescemos. É um processo de crescimento

perpétuo, não um voto que é medido apenas pelo fato de sermos ou não castos. É verdade

que a atividade genital é algo que fazemos ou não. Mas, além disso, este voto é um

chamado viver apenas para Deus, crescendo em nossos relacionamentos, tanto com

companheiros religiosos como com o povo a quem servimos, buscando a integração mais

profunda de todas as dimensões de nossa humanidade, canalizando nossas tendências para a

sexualidade e criando relacionamentos que sejam um dom genuíno e saudável do eu para

outras pessoas. Tudo isto exige crescimento constante e é uma experiência contínua que

levamos a Deus em nossa oração.

Deus transforma nosso amor pelo bem do reino. Deus usa nosso amor para

transformar o mundo. Este processo não é angelical. É humano. Oramos como pessoas

corporificadas. Oramos com as experiências de relacionamentos que temos em comunidade

e no ministério. Levamos todas estas experiências para nosso relacionamento com Deus e é

lá que elas são transformadas na energia e na generosidade que Deus necessita no nosso

mundo.
45

4. Conclusão

Concluirei com três breves reflexões que me ocorreram neste estudo dos votos.

Primeiramente, os votos expressam um desejo profundamente sentido pelo próprio

Deus. Este desejo é uma fome que aprisiona o coração de qualquer pessoa chamada à vida

religiosa. É uma fome que consome todos os outros desejos ou paixões em nossas vidas. Os

votos de obediência, pobreza e castidade se tornam um meio para sobrevivermos a esta

fome. A santidade de vida é a força que nos guia e os votos dão forma a esta força.

Em segundo lugar nós, como carmelitas, cremos que podemos viver melhor estes

votos no contexto da oração contemplativa, da comunidade e do serviço profético. Este

triplo modo de vida proporciona uma estrutura e um meio para satisfazermos esta fome e

partilharmos o dom desta satisfação com o povo de Deus. O carisma carmelitano, um

importante dom na vida da Igreja por mais de 800 anos, contextualiza estes votos. Ele dá a

eles um lar e uma face humana.

Num terceiro ponto vemos que os votos são fundamentalmente uma experiência

evolucionária. Nenhum de nós vive os votos perfeitamente. Cada estágio de nossa vida nos

proporciona a oportunidade de experimentar os votos de modo diferente e mais profundo e,

assim, dar maior testemunho à gratuidade, à compaixão e à misericórdia de Deus. Sabemos

que o Carmelo tanto é um lugar quanto uma jornada.31 O Carmelo é um lugar onde a

jornada dos votos pode ser vivida, um lugar onde sempre podemos estar no caminho

buscando a plenitude do Reino de Deus.


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Então, basicamente, os votos se tornam parte daquela experiência transformadora

que a vida no Carmelo nos chama a viver. Os votos tocam em alguns dos mais profundos

anseios humanos presente em nós. Estes anseios são transformados pela graça de Deus nas

lutas que cada um de nós experimenta. Este processo de transformação nos torna

transparentes, de modo que podemos dizer com Paulo: “Eu vivo, mas já não sou eu que

vivo, pois é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).


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5. Perguntas para Discussão

História

1) O que a história dos votos me sugere sobre a natureza da vida religiosa?

2) Qual a relação entre os votos e as necessidades da Igreja e do mundo hoje?

3) O que a Igreja e o mundo necessitam neste momento da história dos religiosos que

assumiram os votos?

Obediência

1) Que símbolo, história ou provérbio do Antigo ou do Novo Testamento lhe ocorre como

uma imagem da obediência? Descreva o que significa para você.

2) Que símbolo, história ou provérbio da história atual, de sua própria experiência ou da

experiência de outras pessoas lhe ocorre como uma imagem de obediência? Descreva o

que ela significa para você.

3) Que vantagem você percebe na vivência deste voto?

4) Que compromissos você traz para a vivência deste voto?


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Pobreza

1) Que símbolo, história ou provérbio do Antigo ou do Novo Testamento lhe ocorre como

uma imagem da pobreza? Descreva o que ele significa para você.

2) Que símbolo, história ou provérbio da história atual, de sua própria experiência ou da

experiência de outras pessoas lhe ocorre como uma imagem da pobreza? Descreva o

que ele significa para você.

3) Que vantagens você percebe na vivência deste voto?

4) Que compromissos você traz para a vivência deste voto?

Castidade

1) Que símbolo, história ou provérbio do Antigo ou do Novo Testamento lhe ocorre como

uma imagem da intimidade celibatária? Descreva o que isto significa para você.

2) Que símbolo, história ou provérbio da história atual, de sua experiência pessoal ou da

experiência de outras pessoas lhe ocorre como uma imagem da intimidade celibatária?

Descreva o que isto significa para você.

3) Que vantagens você percebe na vivência deste voto?

4) Que compromissos você traz para a vivência deste voto?


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1
RA 1-3.
2
RA 10, 11, 21.
3
RA 4-6, 7, 10, 12-13, 15.
4
RA 9, 16, 17.
5
Ratio Institutionis Vitae Carmelitane, 28, Roma, Cúria Geral da Ordem Carmelitana, 1998.
6
Agradeço a Patrick McMahon, O.Carm., Ph.D., membro da Comunidade dos Padres Brancos e membro da
União Teológica de Washington, por esta seção sobre a história dos votos.
7
A Regra Sagrada de nosso Santíssimo Pai São Bento, ed. Monges da Arquiabadia de São Meinrad. São
Meinrad, IN: Grail Publications, 1956, Capítulo 58.
8
Ibid.
9
Carlo Cicconetti, O.Carm., La regola del Carmelo: origine, natura, significato. Roma: Institutum
Carmelitanum, 1973, p. 209.
10
Ibid., p. 202.
11
Ibid., p. 210.
12
Kees Waarjman, O.Carm., A identidade carmelitana a partir da perspectiva da Regra, 13º Conselho das
Províncias (Nantes). Publicações Carmelitanas: Melbourne, 1994, p. 48.
13
Ibid., pp. 48-49.
14
Congregação para Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica. Diretivas sobre a
formação nos institutos religiosos, # 12. Origens, 19 (20 de março de 1992).
15
D. Nygren e M. Ukeritis, ‘O futuro das ordens religiosas nos Estados Unidos’. Origens 22 (1992), 267. Os
autores relatam que a incapacidade de formular uma estratégia para alcançar um propósito ou uma missão é a
fraqueza mais surpreendente entre os líderes atuais.
16
S. M. Schneiders, I.H.M. Odres novos: Reimaginando a vida religiosa hoje. Mahwah, NJ: Paulist Press,
1986, p. 142.
17
D. Senior, C. P. “Vivendo neste ínterim: princípio bíblico para a vida religiosa”. Em P. Philibert, O.P.,
(ed.), Vivendo neste ínterim. Mahwah, NJ: Paulist Press, 1994, p. 63.
18
Senior, p. 64.
19
Ibid.
20
Senior, p. 65.
21
RA 12.
22
Justiça no Mundo, Declaração do Sínodo dos Bispos, 1971.
23
D. A. Fleming, S.M. Anotações do peregrino: uma experiência de vida religiosa. Maryknoll, NY: Orbis,
1992, p. 35.
24
Senior, p. 66.
25
Ibid.
26
Ibid, p. 67.
27
RA, 19.
28
Schneiders, pp. 114-136.
29
Fleming, p. 39.
30
Fleming, p. 44.
31
C. Fitzgerald, O.C.D. “Jornada e lugar: Símbolos do mito da vida carmelitana”. Em Atas do 33º Capítulo
Provincial, 1987, p. 12-24, Darien, IL: PCM Province, 1987.

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