Pérola Na Areia - Tessa Afshar
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Tessa Afsh ar
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Moody Publishers, 820 N. LaSalle Blvd., Chicago, IL 60610 with
the title Pearl in the Sand, copyright ©2010 by Tessa Afshar.
Translated by permission.
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EDITOR RESPONSÁVEL
Claudio Rodrigues
COEDITOR
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9610/98. É expressamente
Thiago Rodrigues proibida a reprodução deste livro, no seu todo ou em parte, por quaisquer meios,
sem o devido consentimento por escrito.
ADAPTAÇÃO CAPA
Chayanne Maiara
DIAGRAMAÇÃO
Larissa Almeida
REVISÃO DE DIAGRAMAÇÃO
Hellen Arantes
TRADUÇÃO
Mitsue Siqueira
Os conceitos concebidos nesta obra não, necessariamente, representam a
opinião da BV Books, selo editorial BV Films Editora Ltda. Todo o cuidado e
PREPARAÇÃO DE TEXTO
esmero foram empregados nesta obra; no entanto, podem ocorrer falhas por
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REVISÃO DE ESTILO [email protected].
Christiano Titoneli
Gabriela Amaral
REVISÃO DE PROVAS Todos os direitos em língua portuguesa reservados à
Amanda Porto BV Films Editora ©2013.
AFSHAR, Tessa.
Pérola na Areia - A História de Raabe. Rio de Janeiro: BV Books, 2013.
ISBN 978-85-8158-028-9
1ª edição Junho | 2013
Impressão e Acabamento Promove
Categoria Ficção
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casou-se com Raabe, teve um filho com ela e o próprio Jesus
enumera a prostituta cananeia como uma de Suas ancestrais. No
entanto, a Bíblia não nos revela de que maneira esse casamento
aconteceu ou quais obstáculos a relação enfrentou.
Ler um romance não é a melhor maneira de estudar as
Escrituras, para isso temos a Bíblia. De forma alguma, esta
história tem a intenção de substituir o poder transformador que
o leitor encontrará nas Escrituras. Para uma melhor descrição
bíblica de Raabe, leia Josué 1-10, Mateus 1:1-7 e o livro de Rute.
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Capítulo
Um
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Esperando no limite mais afastado do pequeno terreno da
família, Joa, o filho mais novo, de 14 anos, olhava para o nada.
Raabe não o ouviu proferir mais do que três palavras durante
tantos dias; era como se a seca tivesse acabado também com sua
fala. Ela percebeu que o irmão estava com uma olheira muito forte
e com o corpo debilitado, apesar da alta estatura. Provavelmente,
ele tinha saído de casa sem comer nada. Raabe pegou o pão que
estava guardado em seu cinturão, dividiu-o em duas partes e
levou para Joa. O que não era o bastante nem mesmo para ela,
imagine tendo de dividir para dois.
“Coma isso, rapaz!”
Joa ignorou a irmã e ela perguntou: “Você quer que eu te
perturbe até chegarmos à lavoura, ou não?”
Ele olhou irritado para ela, mas estendeu a mão. Ela conti-
nuou por perto para certificar-se de que ele tinha comido, e em
seguida foi atrás do pai.
À medida que eles andavam em direção aos portões da cida-
de, os passos assumiam um ritmo mais acelerado. Raabe notou
que até mesmo Karem, que costumava não se preocupar, parecia
bastante angustiado. Finalmente, ele quebrou o silêncio que pai-
rava sobre eles. “Pai, fui até Hebrom, na venda que o senhor falou,
mas ele se recusou a vender óleo ou cevada por aquele preço. Ou
ele dobrou os preços desde a última vez que o senhor comprou,
ou o senhor se enganou em relação ao valor.”
“Então mande Raabe ir até lá. Foi ela quem negociou da
última vez.”
“Raabe. Tinha que ser”, Karem afirmou com um ar de
bondade reluzindo de seus olhos. “Apenas um olhar para esse
rostinho lindo que todas as possibilidades de lucros e quantias
desaparecem de Hebrom.”
“Não é bem assim!”, Raabe retrucou muito irritada. “Não
tem nada a ver com o meu rosto; eu apenas sou melhor nas
negociações do que você, só isso.”
“E você chama isso de negociação? Dar piscadinhas com os
olhos não me parece negociação.”
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“Eu vou é dar vassouradas se você não tomar cuidado com o
que fala.”
“Chega!”, ordenou o pai deles. “Assim vocês me deixam com
dor de cabeça.”
“Perdão, papai”, disse Raabe corrigindo-se imediatamente.
Seu pai não precisava de mais problemas e ela deveria aprender
a controlar seus impulsos. Ele já estava com tantas preocupações
pesando sobre os ombros que ela queria ser um conforto, não um
fardo a mais.
Raabe não conseguia o consolar em palavras. Em vez disso,
seguindo seus instintos, ela estendeu a mão à procura da mão do
pai e a segurou. Por um instante, ele pareceu não perceber sua
presença. Em seguida, virando-se para ela e meio disperso, ele
percebeu a proximidade. Raabe lhe ofereceu um sorriso recon-
fortante, mas ele afastou a mão.
“Você já está muito grande para andar de mãos dadas.”
Ela ficou envergonhada e escondeu a mão por entre as
roupas. Diminuindo o ritmo de seus passos, Raabe ficou para trás
andando sozinha e seguindo as pegadas dos três homens.
Na lavoura, os quatro examinaram cada parte da plantação
buscando por sinais de vida. Salvo alguns besouros com cascas
grossas, eles não encontraram nada. Quase ao meio-dia, Raabe
estava abatida demais para continuar e se sentou enquanto eles
concluíam cuidadosamente a inspeção. Quando eles voltaram,
seu pai murmurou em voz baixa: “O que nós vamos fazer? O que
vamos fazer?”
Raabe desviou o olhar. “Vamos para casa, papai.”
Em casa, ela abriu a velha cortina que servia como porta
principal e entrou, mas sua mãe a escorraçou gesticulando: “Dê
um pouco de privacidade a mim e ao seu pai”.
Raabe consentiu com a cabeça e saiu. Em seguida, se recostou
na parede repleta de lodo em meio às grandes sombras. Ela só
queria achar uma forma de ajudar a família, mas nem mesmo
seus irmãos conseguiram arrumar trabalho na cidade. A cidade
de Jericó, que já estava abarrotada de lavradores desesperados em
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busca de trabalho, não os animava muito. De que jeito ela, uma
simples menina, poderia ser útil? O som de seu nome ecoando
pela janela resgatou sua mente distraída.
“Deveríamos tê-la oferecido como esposa de Ian no ano
passado em vez de esperar uma oferta melhor”, disse a mãe.
“Como iríamos saber que enfrentaríamos uma seca que nos
levaria à falência? De qualquer modo, o dote que ele nos ofereceu
não daria para nos sustentar nem por dois meses.”
“Mas seria melhor do que nada. Fale com ele, Inri.”
“Mulher, ele não a quer mais. Eu já perguntei, e ele está na
mesma situação que a nossa.”
Raabe prendeu a respiração tentando não perder detalhe
algum da conversa. Em circunstâncias normais, a vontade de
escutar a conversa alheia jamais passaria por sua cabeça, mas algo
na voz de seu pai a fez especular. Raabe se arrastou como uma
lagartixa pela parede e continuou ouvindo.
“Inri, se fizermos isso não teremos como voltar atrás.”
“O que mais podemos fazer? Diga.” Um silêncio intenso se
juntou à ira de seu pai. Quando ele falou novamente, a voz dele
estava mais calma e aparentemente cansada. “Não há outro jeito.
Ela é a nossa única esperança.”
Raabe sentiu um enjoo no estômago. Em que seu pai estaria
pensando? As vozes ficaram muito baixas para ouvir. Frustrada,
ela foi andando até o fim das terras de sua família. Em uma
estrebaria quase destruída, dois cabritos definhados roíam
um arbusto ressequido no qual não havia mais nada a não ser
madeira. Com os homens e Raabe trabalhando na lavoura todos
os dias, ninguém teve tempo de cuidar da estrebaria. O cheiro
pútrido agredia seus sentidos — um pano de fundo perfeito para
suas emoções mais intensas, ela pensou. Seus pais se referiram a
ela como a única forma de salvar a família, mas eles não falavam
sobre casamento. De que outra maneira uma menina de quinze
anos conseguiria ganhar dinheiro? Com a respiração rápida,
Raabe levou as mãos ao rosto. Papai nunca me obrigaria a fazer
isso. Nunca. Ele preferiria morrer. Tudo não passava de um mal-
entendido. Mas o enjoo no estômago se intensificava cada vez
mais.
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Esse não era um acontecimento inusitado em Canaã. Muitos
pais jogavam suas filhas na prostituição para sobreviver. Mas,
mesmo assim, ainda que a escolha de seu pai não fosse nada fora
do comum, Raabe não se conformou. Havia nada mais sujo e
baixo para ela do que viver como prostituta.
Seu pai estava respirando rápida e intensamente. “No templo
você vai ter reconhecimento. Você será bem tratada.”
Raabe se esforçou para falar, como se alguém a estivesse en-
forcando. “Não. Eu não vou para o templo.”
“Você vai me obedecer!”, seu pai gritou. Em seguida, mexendo
com a cabeça, ele abrandou a voz. “Precisamos de dinheiro, filha.
Senão, morreremos de fome, inclusive você.”
Raabe segurou o grito contendo-se para parecer tranquila.
“Não estou me recusando a obedecer ao senhor, meu pai. Apenas
estou dizendo que não irei a templo algum. Se temos de fazer isso,
não vamos incluir os deuses nessa história.”
“Seja sensata, Raabe. Lá, você terá proteção e respeito.”
“Você chama o que eles fazem de proteção? Eu não quero o
respeito que as mulheres conseguem no templo.” Ela se virou e
olhou para ele diretamente nos olhos, mas ele desviou. Ele sabia
sobre o que Raabe estava falando. No ano anterior, a irmã mais
velha de Raabe, Izzie, ofereceu o primeiro filho ao deus Moloque.
O bebê era uma grande alegria, e desde o momento em que sua
irmã disse que estava grávida, Raabe sentiu que tinha uma ligação
especial com ele. Ela o segurou minutos depois de seu nascimen-
to, revestindo-o e embalando-o, admirando sua boquinha per-
feita que abria e fechava como se estivesse mandando beijos para
ela. O amor por ele a invadiu desde aquele momento de pureza.
Mas sua irmã preferiu a estabilidade financeira, pois estava can-
sada da pobreza. Então, ela e seu marido Gerazim concordaram
em oferecer o filho a Moloque para o próprio bem do menino.
Eles não deram a mínima atenção quando Raabe implorou
que eles mudassem de ideia. Os dois estavam decididos. “Nós te-
remos outro filho”, disseram eles. “Ele será tão lindo quanto esse
e terá tudo o que quiser, o que é melhor do que ser criado na
pobreza e passar necessidade.”
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Raabe foi ao templo com eles no dia do sacrifício na esperan-
ça de fazê-los mudar de ideia. Mas nada do que ela disse conven-
ceu o casal.
Seu sobrinho não foi o único bebê sacrificado naquele dia.
Havia pelo menos uns doze. O lugar estava cheio de pessoas que
assistiam aos sacrifícios, e algumas encorajavam os sacerdotes,
que ficavam diante de fogueiras enormes cobertos do pescoço até
os tornozelos, a oferecer sacrifício. Raabe se apavorou com o que
viu e ficou pensando em como seria a natureza de um deus que
prometia uma vida boa às custas da morte de um bebê indefeso.
Que tipo de felicidade alguém poderia comprar por esse preço?
Ela manteve o filho de sua irmã nos braços até quando pôde,
murmurando palavras de conforto enquanto observava aquele
pequeno corpo. Ele exalava o cheiro do leite e do pão de mel mais
doces. Raabe o apertou contra o peito pela última vez enquanto
lhe dava beijos de despedida. O bebê gritou quando mãos brutas
o arrancaram do colo de Raabe, mas aquilo não foi nada em com-
paração ao seu último grito à medida que o sacerdote se aproxi-
mava da fogueira ardente...
Raabe deu um passo incerto na direção de Gerazim, mas viu
que Izzie já estava em seus braços.
Naquele dia, Raabe prometeu que jamais se curvaria diante
de tais deuses. Ela os odiava. Apesar de todos encantos fulgentes,
ela tinha visto quem eles realmente eram: consumidores da hu-
manidade.
As terras de Izzie e Gerazim estavam tão devastadas quanto
as de Inri, e eles fizeram tanto em favor das bênçãos de Moloque.
Ela nunca recorreria a ele. Não, o templo não era lugar para ela.
“Raabe”, seu pai argumentou enquanto mordia uma das
unhas já roídas, “pense em como será a sua vida fora do templo.
Você é jovem, não entende”.
Não se tratava de não ter medo. A vida das prostitutas fora dos
templos era difícil, arriscada e vergonhosa. Mas ela sentia menos
medo de ter aquela vida do que de servir aos deuses de Canaã.
“Pai, por favor. Não sei se consigo aguentar a vida no templo.”
Esperava-se que as filhas obedecessem aos seus pais sem hesitar, e
as objeções e os argumentos de Raabe poderiam ser considerados
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desobediência. Seu pai poderia levá-la à força para qualquer
templo e vendê-la sem que ela tivesse chance de se defender. Ela
imaginou que seu pai nunca se rebaixaria a tal comportamento,
mas depois se lembrou da noite anterior em que também achava
que ele nunca exigiria que ela se prostituísse. Raabe perdeu o
chão, e nada mais lhe parecia seguro.
Karem, que chegou no meio da conversa entre os dois, afir-
mou de repente: “Pai, o senhor não pode fazer isso com essa me-
nina. A vida dela será destruída!”
Inri deu um golpe no ar com um gesto impaciente. “E por
acaso você descobriu alguma outra maneira de mantermos nossa
família durante o inverno? Você arrumou algum trabalho? Ou
conseguiu herdar dinheiro de algum tio que nós não conhece-
mos?”
“Não, mas eu ainda não tentei tudo. Há outros trabalhos, ou-
tras possibilidades.” O coração de Raabe bateu mais forte com
esperança por causa do apoio de seu irmão, mas a esperança logo
se acabou com a resposta do pai.
“Quando você se der conta de que não tem mais nada, sua
linda esposa e seu filho que ainda nem nasceu morrerão de fome.
Raabe é a única certeza de que sobreviveremos. Esse é o único
jeito”, repetiu ele com uma convicção absurda.
Karem abaixou a cabeça e não falou mais nada.
Raabe caiu no chão sem conseguir conter as lágrimas. Inri foi
para o outro lado da casa e sentou-se em um canto olhando para
o nada. A discussão findou à medida que suas palavras não ditas
os separavam. Em meio àquele silêncio, Raabe sentiu que uma
parede havia se erguido entre ela e o pai, e que a parede era tão
inabalável quanto os muros da cidade.
Aconteceu que os dois estavam sentindo muita vergonha;
Inri, porque tinha fracassado como pai — como protetor — e ela,
por causa do que estava prestes a se tornar. Raabe ficou paralisada
pela traição do pai, e um sentimento de solidão mais sombrio do
que tudo que ela conhecia fora aprisionado em seu coração como
um corpo na sepultura.
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vezes que Zedeque viu Raabe, ele olhava para ela com um desejo
tão intenso que não lhe restava dúvida. Ela sabia que ele não a
queria como esposa, pois se quisesse, já teria pedido ao seu pai.
Contudo, Raabe sabia que ele pagaria bem pelos seus serviços, e
ela queria fazê-lo pagar um bom preço. Já que era preciso passar
por essa situação horrível, ela queria conquistar um pouco mais
do que o alimento que garantiria a sobrevivência de sua família
durante a seca. Raabe se libertaria do pai; ela ainda o amava e sua
dedicação pela família continuava a mesma, mas estava determi-
nada a nunca mais depender da proteção dele.
“O que Zedeque tem a ver com isso?”, perguntou a mãe.
Inri não respondeu. Ele fechou os olhos, esfregou as mãos na
cabeça e disse: “Nada não”.
Raabe saiu em silêncio para chorar sozinha.
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Sua voz sumiu. Ela mal conseguia pensar em passar por aquilo de
noite em noite, com homens diferentes entrando e saindo de sua
vida. Talvez ter um cliente com alguma estabilidade a faria tolerar
a situação por mais tempo.
“Eu vou pedir, mas não espere que ele aceite.”
“É um bom negócio. Ele aceitará. Mas olha, três meses e nem
mais um dia.” Seu pai olhou como nunca havia olhado para ela
antes; talvez ele não a conhecesse. Nem mesmo ela conhecia a si
mesma.
Zedeque era um homem gordo e dentuço. Ele se vestia muito
bem, ornado com ouro da cabeça aos pés, com enfeites em sua
barba e guizos delicados nos sapatos de tecido. Quando ele viu
Raabe e o pai entrando no comércio, foi direto ao encontro deles
atropelando alguns clientes. “Bom dia, Inri!”, disse ele olhando
fixamente para Raabe.
Pelas pupilas escuras de Zedeque, ela conseguia ver o reflexo
do próprio rosto — seu nariz pequeno, seus lábios arredondados
e seus olhos grandes, inchados por causa das lágrimas. Raabe ha-
via lavado os cabelos para aquela visita; seus cachos escapavam
por debaixo do véu, as mechas castanhas em forma de espiral da-
vam forma ao seu rosto e caíam em cascata sobre as costas. Ao
se lembrar do motivo que a fez lavar os cabelos, ela demonstrou
vergonha e desespero — e pensou no olhar de Zedeque.
Seu pai pigarreou. “Podemos falar com você, meu senhor?
Em particular?”
Zedeque barganhou o quanto pôde, mas Inri, pensando em si
mesmo, não cedeu. Zedeque olhou para Raabe, passou os dedos
nos lábios e fez uma última tentativa. Quando Inri a negou gesti-
culando com a cabeça, Zedeque virou as costas e saiu. Raabe se-
gurou a mão do pai e se levantou para ir embora; o pai lançou-lhe
um olhar desesperado, mas ela continuou irredutível e ele cedeu.
Zedeque, vendo a determinação dos dois, voltou e aceitou a ofer-
ta. Raabe percebeu que seu pai parecia espantado, mas assumiu
uma feição branda, disfarçando a própria surpresa. Assim como
seu pai, ela mal podia acreditar que Zedeque estava disposto a
pagar tanto por ela.
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Pelos três meses seguintes, Zedeque foi seu mestre. Ele gosta-
va de ver que ela não sabia nada, e gostou de vê-la chorando du-
rante a primeira semana. Depois, ele também gostou de consolá-
-la e não foi cruel. Ele nunca bateu ou abusou de Raabe. E se algo
lhe despertou repugnância ou nojo, tanto dela mesma quanto
dele, ela jamais o deixou perceber.
Quando os três meses se passaram, Zedeque entregou uma
sacola cheia de ouro a Raabe. Além da sacola, ele deu algumas
tornozeleiras conforme ela havia pedido. Ao conferir a quantia,
Raabe percebeu que ele havia lhe entregado dinheiro a mais e
voltou para prestar contas. “Meu senhor”, ela disse, “o senhor me
deu dinheiro a mais.”
“Minha querida Raabe está recusando dinheiro?”
“Eu não trapaceio meus clientes.”
“Clientes?” Ele revirou os olhos. “Você só teve um, e não está
me trapaceando, menina. Eu estou dando a você.”
Raabe se curvou agradecendo e segurou a sacola de dinheiro
com firmeza, quase desejando que Zedeque pedisse para ela ficar
por mais tempo. Ele estava certo; ela não tinha conhecido homem
algum além dele. Raabe não gostava do contato com ele, mas ela
preferia estar apenas com um homem a ser um brinquedinho de
muitos outros. No entanto, Zedeque não mostrou interesse em
continuar com ela. Certamente ele já estava satisfeito.
Ela voltou para casa e entregou a sacola de ouro ao pai. “Ze-
deque mandou o pagamento pelos três meses.”
Seu pai olhou fixamente para dentro da sacola e exclamou: “É
muito! Nunca pensei que ele pagaria tanto!”
“E não vai haver mais outra. Zedeque já está satisfeito. Ele não
me quer mais.” Raabe tentou repelir as lágrimas.
“E o que você esperava?” Inri olhou de relance para ela an-
tes de fixar o olhar novamente na sacola. “Foi muito bom ele ter
ficado todo esse tempo com você, Raabe. Ele é um cidadão do
mundo e está acostumado com o melhor.”
Como se ela não fosse boa o bastante. Raabe se deixou cair
em uma almofada, e as palavras de seu pai a fizeram ver uma
verdade que ela não ousava admitir para si mesma. Depois que
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um homem a conhecesse daquela forma, ele a rejeitaria. De qual-
quer maneira, ela seria indesejável ou não seria o bastante. Seu
pai sabia disso; Zedeque sabia disso, e agora ela também sabia. De
repente, ela se sentiu gélida. Raabe apoiou a cabeça nos joelhos,
envolveu as pernas com os braços e começou a tremer. Seu pai foi
até seus irmãos e sua mãe mostrar a sacola de ouro. Se não fosse
pelo trigo e pelo óleo que Zedeque deu, a família já teria morrido
de fome. Aquela quantia de ouro era o bastante para o ano inteiro
e para comprar sementes para a colheita do ano seguinte.
Através da velha cortina que separava os cômodos, Raabe ou-
viu a voz abafada dos pais enquanto conversavam. “Inri, o que
vai ser dela agora?”, perguntou a mãe com uma voz aguda. “Você
consegue convencer Zedeque a ficar com ela?”
“E como eu poderia fazer isso? Ele já está cheio dela, é isso.”
“E o que devemos fazer? Ninguém vai querer se casar com
ela agora.”
“Você sabia a resposta para isso desde o primeiro dia, mulher.
Ela terá de tirar proveito disso, assim como todos nós. Sua beleza
será útil a ela; ainda deve haver outros homens interessados. Bem,
pelo menos por um tempo.”
Raabe se retraiu ainda mais e engoliu um gemido. Sem pen-
sar, ela pegou uma parte do grande tecido de seda do vestido em
cada uma das mãos, amaciando-o como uma criança assustada
faria com o cobertor. Ela se sentia apavorada pelo medo à medida
que pensava no futuro — e em todos os Zedeques que entrariam
e sairiam de sua vida e de sua cama.
Ela lamentou pelos sonhos que jamais se realizariam e pelo
destino que ela jamais teria. Raabe lamentou pelas escolhas que
não fez e, por fim, cansada de tanto chorar, ela fechou os olhos e se
deitou no chão frio. Em meio ao desespero, um pensamento lhe
ocorreu. Ainda lhe restava uma escolha; embora estivesse sujeita
a vender seu corpo por dinheiro, ela poderia escolher seus aman-
tes. Escolheria cada homem de acordo com sua vontade própria.
Raabe tinha sido rejeitada por Zedeque, e aquilo foi muito difí-
cil de engolir. Pelo menos aquela amargura ela evitaria. Ela seria
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dona do seu próprio coração, sem deixar que ninguém entrasse,
e expulsaria cada homem antes mesmo de ele se dar conta de que
ela não merecia ser amada, como fez Zedeque.
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ela não amasse mais a família como antes. Muitas vezes, em sua
estalagem, ela sentia falta deles; porém, descobriu que estar com
sua família apenas a fazia sentir-se mais solitária. Então, cada vez
mais ela dedicou o tempo às necessidades de sua estalagem.
A maioria das donas de estalagem em Canaã também eram
prostitutas, e isso era tão comum que os dois quase significavam
a mesma coisa. Todavia, Raabe pensava em sua profissão separa-
damente. Nem todos que entravam eram recebidos em sua cama.
Ela fazia questão de que sua estalagem fosse reconhecida como
um lugar de elegância e conforto. Decorando-a com tapeçarias
e com carpetes valiosos, ela recusou-se a aderir à ornamentação
pomposa das outras estalagens. A localização ajudava: os muros
ainda eram uma parte exclusiva de Jericó e, apesar do tamanho
pequeno das residências e estabelecimentos construídos naque-
la região, eles eram algumas das propriedades mais cobiçadas de
Jericó. Quando Raabe fez vinte e seis anos, sua estalagem era tão
popular quanto ela, apesar de não ser tão acessível quanto seu
corpo. Foi essa exclusividade que fez a entrada em sua estalagem
ser tão requisitada.
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SÉRIE A MENSAGEM
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SUA VIDA À PROVA DE FOGO
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