A Erva Do Diabo Os Ensinamento de Dom Juan
A Erva Do Diabo Os Ensinamento de Dom Juan
A Erva Do Diabo Os Ensinamento de Dom Juan
Sobre a obra:
Sobre nós:
Carlos Castaneda
PREFÁCIO
Este livro é etnografia e alegoria.
Carlos Castaneda, sob a orientação de Dom Juan, nos conduz por aquele
momento no crepúsculo, por aquela fresta no universo que há entre o claro e o
escuro, para um mundo que não é apenas diferente do nosso, mas também de
uma ordem de realidade inteiramente diferente. A fim de alcança-lo ele teve o
auxilio de mescalito, yerba del diablo e humito – peiote, datara e cogumelos. Mas
esta não é uma simples narrativa de experiências alucinógenas, pois as sutis
manipulações de Dom Juan conduzem o viajante enquanto suas interpretações
dão significado aos fatos que nós, através do aprendiz de feiticeiro, temos a
oportunidade de experimentar.
Os antropólogos nos ensinam que o mundo tem definições diversas em
diversos lugares. Não é só que os povos tenham costumes diferentes: não é só que
os povos acreditem em deuses diferentes e esperem diferentes destinos após a
morte. É, antes, que os mundos de povos diferentes têm formas diferentes. Os
próprios pressupostos metafísicos variam: o espaço não se conforma com a
geometria euclidiana, o tempo não constitui um fluxo contínuo de sentido único,
as causas não se conformam com a lógica aristotélica, o homem não se
diferencia do não-homem nem a vida da morte, como no nosso mundo.
Conhecemos alguma coisa da forma desses outros mundos pela lógica dos
idiomas nativos e pelos mitos e cerimônias, conforme registrados pelos
antropólogos. Dom Juan nos mostrou uns vislumbres do mundo de um feiticeiro
y aqui, e como o vemos sob a influência de substâncias alucinógenas, nós os
captamos com uma realidade totalmente diversa daquelas outras fontes. Nisso
reside a principal virtude desta obra.
Castaneda afirma, com razão, que este mundo, com todas as suas diferenças
de percepção, tem sua lógica interna. Ele procurou explicar isso do interior,
pode-se dizer -de dentro de suai experiências ricas e intensamente pessoais,
quando sob a tutela de Dom Juan em vez de examiná-lo nos termos de nossa
lógica. O fato de ele não conseguir nisso um êxito total deve-se a uma limitação
que nossa cultura e nossa língua impõem sobre a percepção, e não a sua
limitação pessoal; no entanto, em seus esforços ele une para nós o mundo de um
feiticeiro y aqui com o nosso, o mundo da realidade não ordinária com o mundo
da realidade ordinária.
A importância primordial de entrar em mundos outros que não os nossos – e,
pois, da própria antropologia – reside no fato de que essa experiência nos leva a
compreender que o nosso próprio mundo é também um complexo cultural.
Experimentando outros mundos, vemos o nosso como ele é e assim podemos
também ver de relance como deve de fato ser o mundo verdadeiro, aquele entre
o nosso próprio complexo cultural e aqueles outros mundos. Daí a alegoria, bem
como a etnografia. A sabedoria e a poesia de Dom Juan, e a habilidade e poesia
de seu escriba, nos dão uma visão de nós e da realidade. Como em todas as boas
alegorias, o que se vê está com o espectador, e não precisa de exegese aqui.
As entrevistas de Carlos Castaneda com Dom Juan tiveram início quando ele
era estudante de antropologia na Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
Temos uma dívida para com ele por sua paciência, sua coragem e perspicácia ao
procurar e enfrentar o desafio de seu duplo aprendizado e por nos relatar os
detalhes de suas experiências. Nesta obra ele demonstra a habilidade essencial da
boa etnografia -a capacidade de ingressar num mundo estranho. Acredito que ele
encontrou um caminho com o coração.
WALTER GOLDSCHMIDT
1
As anotações sobre minha primeira sessão com Dom Juan são datadas de 23
de junho de 1961. Foi nessa ocasião que começaram os ensinamentos. Eu já
tinha estado com ele várias vezes antes disso, apenas como observador. Em todas
as oportunidades, pedia-lhe que me falasse a respeito do peiote. Todas as vezes
ele não fazia caso de meu pedido, mas nunca deixava o assunto inteiramente de
lado, e interpretei a hesitação dele como sendo uma possibilidade de poder falar
a respeito de seus conhecimentos com um pouco-mais de insistência.
Naquela determinada sessão, ele me mostrou claramente que poderia atender
à minha solicitação desde que eu possuísse a necessária clareza de espírito e de
propósito com relação ao que lhe perguntara. Era-me impossível satisfazer essa
condição, pois eu só lhe pedira para me falar sobre o peiote como um meio de
estabelecer uma comunicação com ele. Pensei que seu conhecimento do assunto
poderia torná-lo mais disposto a falar e mais aberto, possibilitando-me assim uma
entrada em seu conhecimento sobre as propriedades das plantas. Mas ele
interpretou meu pedido ao pé da letra, e estava preocupado com meus objetivos
ao querer saber acerca do peiote.
Sexta-feira, 23 de junho de 1961
─ Quer-me ensinar alguma coisa a respeito do peiote, Dom Juan?
─ Por que quer saber disso?
─ Eu queria mesmo saber a respeito. Só querer saber não basta como motivo?
─ Não! Tem de procurar em seu íntimo para saber por que um rapaz como
você quer empreender essa tarefa de aprendizagem.
─ Por que você mesmo aprendeu sobre isso, Dom Juan?
─ Por que quer saber?
─ Talvez nós dois tenhamos os mesmos motivos.
─ Duvido. Sou índio. Não temos os mesmos caminhos.
─ O único motivo que tenho é que desejo saber a respeito, só para aprender.
Mas asseguro-lhe, Dom Juan, não tenho más intenções.
─ Acredito em você. Já o fumeguei.
─ Perdão?
─ Não importa agora. Sei quais são suas intenções.
─ Quer dizer que leu meus pensamentos?
─ Poda ser.
─ Então quer-me ensinar?
─ Não! -Por eu não ser índio?
-Não. Porque você não conhece seu íntimo. O importante é você saber
exatamente por que quer envolver-se. Aprender a respeito de Mescalito é uma
coisa muito séria. Se você fosse índio, só o seu desejo seria suficiente. Muito
poucos índios têm esse desejo.
Domingo, 25 de junho de 1961
Fiquei com Dom Juan a tarde toda na sexta-feira. Eu ia partir por volta das
sete da noite. Estávamos sentados na varanda em frente da casa dele e eu resolvi
perguntar-lhe mais uma vez sobre os ensinamentos. Era quase uma pergunta de
rotina e eu já estava quase esperando que ele tornasse a recusar-se. Perguntei-
lhe se havia um jeito de ele aceitar apenas o meu desejo de aprender, como se
eu fosse um índio. Ele custou muito a responder. Fui obrigado a esperar, pois ele
parecia estar procurando resolver alguma coisa.
Por fim ele me disse que havia um meio, e passou á expor um problema.
Disse que eu estava muito cansado de ficar sentado no chão e que o que eu devia
fazer era encontrar um ponto (sitio) no chão em que eu pudesse sentar-me sem
me cansar. Eu estava sentado com os joelhos levantados, de encontro ao peito, e
os braços trançados em volta das pernas. Quando ele disse que eu estava
cansado, percebi que minhas costas estavam doendo e que eu estava quase
exausto.
Esperei que ele explicasse o que queria dizer um "ponto", mas ele não
procurou elucidar isso abertamente. Pensei que talvez ele quisesse dizer que eu
devia mudar de posição, de modo que me levantei e sentei mais perto dele.
Protestou contra meu movimento e frisou claramente que um ponto significava
um lugar em que a pessoa se sentisse naturalmente feliz e forte. Mostrou o lugar
em que estava sentado e disse que era o ponto dele, acrescentando que tinha
proposto um enigma que eu teria de resolver sozinho, sem mais conversas.
O que ele tinha proposto como um problema a ser resolvido era certamente
um enigma. Não tinha idéia de como começar, nem mesmo do que ele teria em
mente. Várias vezes pedi uma indicação, ou pelo menos uma sugestão, sobre
como proceder para encontrar um ponto em que me sentisse feliz e forte. Insisti
e argumentei, dizendo que eu não tinha idéia do que ele realmente queria dizer
porque não podia conceber o problema. Ele sugeriu que eu andasse pela varanda
até encontrar o ponto.
Levantei-me e comecei a andar pelo chão. Senti que estava fazendo papel de
bobo e sentei-me diante dele.
Ele ficou muito aborrecido comigo e me acusou de não prestar atenção e
disse que talvez eu não quisesse aprender. Depois de algum tempo, acalmou-se e
explicou que nem todos os lugares eram bons de se sentar ou estar, e que dentro
dos limites da varanda havia um ponto que era único, um ponto em que eu estaria
em minha melhor forma. Cabia a mim distingui-lo de todos os outros lugares. A
idéia geral era que eu teria de "sentir" todos os pontos possíveis que me fossem
acessíveis, até poder estabelecer, sem dúvida, qual o certo.
Argumentei que, embora a varanda não fosse muito grande (2,5 por 3,5 m), o
número de pontos possíveis era imenso e eu levaria muito tempo para verificar
todos, e como ele não tinha especificado o tamanho do ponto, as possibilidades
podiam ser infinitas. Meus argumentos foram em vão. Levantou-se e me avisou
muito severamente de que eu poderia levar dias para resolver aquilo, mas que, se
não resolvesse o problema, mais valia eu partir, pois ele não teria mais nada a
me dizer: Frisou que sabia onde ficava meu ponto, e que, portanto, eu não lhe
poderia mentir; disse que aquele era o único meio pelo qual ele poderia aceitar
meu desejo de aprender a respeito de Mescalito como motivo válido.
Acrescentou que no mundo dele, nada era dado de presente, e que tudo o que se
tinha de aprender tinha de ser aprendido com dificuldade.
Deu a volta à casa e foi ao chaparral, urinar. Depois, entrou em casa
diretamente pelos fundos.
Achei que a tarefa de encontrar o suposto ponto de felicidade era sua maneira
de me despachar, mas levantei-me e comecei a andar de um lado para outro. O
céu estava azul. Eu via tudo o que havia na varanda e perto dela. Devo ter andado
por uma hora ou mais, mas nada aconteceu para revelar a posição do ponto.
Fiquei cansado de andar e sentei-me; depois de alguns momentos, sentei-me em
outro lugar, e depois em outro, até ter percorrido todo o chão de maneira semi-
sistemática. Propositadamente, procurei "sentir" diferenças entre os lugares, mas
faltava-me o critério para a diferenciação. Senti que estava perdendo meu
tempo, mas fiquei ali. Raciocinei que tinha vindo de muito longe só para ver Dom
Juan, e não tinha mesmo mais nada para fazer.
Deitei-me de costas e pus as mãos debaixo da nuca, como um travesseiro.
Depois, rolei e fiquei deitado de bruços um pouco. Repeti esse processo de rolar
no chão todo. Pela primeira vez, achei que tinha encontrado um vago critério.
Sentia-me mais quente quando me deitava de costas.
Tornei a rolar, dessa vez na direção oposta e voltei a percorrer todo o chão,
ficando de bruços em todos os lugares em que tinha ficado da costas em minha
primeira volta rolada. Experimentei as mesmas sensações de frio e calor,
dependendo de minha posição, mas não havia diferença entre os pontos.
Então, ocorreu-me uma idéia que me pareceu brilhante: o ponto de Dom
Juan! Fiquei ali sentado, depois deitei-me, primeiro de bruços e depois de costas,
mas o lugar era igual a todos os outros. Levantei-me. Já bastava. Eu queria
despedir-me de Dom Juan, mas não queria acordá-lo. Olhei para meu relógio.
Eram duas horas da madrugada! Eu estava rolando havia seis horas.
Naquele momento, Dom Juan saiu da casa e foi para o chaparral. Depois
voltou e ficou junto da porta. Sentia-me completamente rejeitado e queria dizer-
lhe alguma coisa desagradável e ir embora. Mas percebi que não era culpa dele;
que eu mesmo é quem tinha querido passar por toda aquela tolice. Disse-lhe que
tinha fracassado; tinha passado a noite no chão da sua casa e ainda não conseguia
entender o enigma dele.
Riu e disse que aquilo não o surpreendia porque eu não agido direito. Não tinha
usado os olhos. Era verdade, o no entanto eu tinha muita certeza de que ele
dissera que eu tinha de sentir a diferença. Expus esse argumento, mas ele que a
gente pode sentir com os olhos, quando estes não olhando diretamente dentro das
coisas. Quanto a mim, disse ele, não tinha outro meio de resolver esse problema
a não fiado tudo o que eu tinha – meus olhos.
Foi para dentro. Eu tinha certeza de que ele me tinha atado observando. Achei
que não havia outro jeito de ele saber que eu não tinha usado os olhos.
Recomecei a rolar, pois era esse o sistema mais cômodo. Dessa vez, porém,
coloquei o queixo nas mãos e olhei pata todos os detalhes.
Depois de um intervalo, a escuridão em volta de mim mudou. Quando me
concentrava no ponto bem defronte de mim, toda a periferia de meu campo de
visão tornava-se brilhantemente colorida com um amarelo-esverdeado
homogêneo. O efeito era impressionante. Mantive os olhos fixos no ponto diante
de mim e comecei a rastejar de lado sobre a barriga, um pouquinho de cada vez.
De repente, num ponto perto do meio do chão, verifiquei outra modificação
de tonalidade. Num lugar à minha direita, ainda na periferia de meu campo de
visão, o amarelo esverdeado tornava-se intensamente roxo. Concentrei minha
atenção nele. O roso desmaiou para uma cor pálida, mas ainda brilhante que se
manteve constante enquanto eu concentrava a atenção nela.
Marquei o local com meu paletó e chamei Dom Juan. Ele saiu para a
varanda. Eu estava muito emocionado; tinha realmente visto a mudança nas
tonalidades. Ele não pareceu impressionar-se, e disse-me que me sentasse no
lugar e lhe que sensações tinha.
Sentei-me e depois deitei-me de costas. Ele ficou de pé a meu lado e me
perguntou várias vezes como eu me sentia; mas não senti nada de diferente. Por
uns quinze minutos procurei sentir ou ver alguma diferença, enquanto Dom Juan
ficava pacientemente a meu lado. Eu estava aborrecido. Tinha um gosto de
metal na boca. De repente, tive dor de cabeça. Tulha ânsias de vômito. A idéia de
minhas tentativas idiotas me irritava a ponto de me enfurecer. Levantei-me.
Dom Juan deve ter observado a minha profunda frustração.
Não riu; e muito sério, declarou que eu tinha de ser inflexível comigo mesmo,
se quisesse aprender. Eu só tinha duas opções, disse ele: desistir e ir para casa, e
nesse caso eu nunca havia de aprender; ou decifrar o enigma.
Tornou a entrar em casa. Eu queria sair logo, mas estava muito cansado para
dirigir; além disso, o fato de eu ter percebido as cores era tão impressionante que
eu estava certo de ser um critério qualquer, e talvez houvesse outras
modificações a serem percebidas. De qualquer forma, era muito tarde para
partir. Por isso, sentei-me, estiquei as pernas e recomecei tudo.
Dessa vez eu me movi rapidamente por cada lugar, passando pelo ponto de
Dom Juan, até o fim da varanda e depois virei-me para cobrir a extremidade
externa. Quando cheguei ao centro, vi que estava havendo outra modificação de
coloração em meu campo de visão. O verde-amarelado uniforme que eu via em
todo o setor transformava-se, em um ponto à minha direita, num verde forte.
Ficou assim por um momento e depois metamorfoseou-se em outro tom
constante, diferente do outro que eu tinha visto antes. Tirei um de meus sapatos e
marquei o ponto, continuando a rolar até ter coberto o chão em todas as direções
possíveis. Não se deu nenhuma outra mudança de coloração.
Voltei ao ponto marcado pelo meu sapato e examinei-o. Ficava a mais ou
menos 1,50 m do ponto marcado pelo meu paletó, numa direção sudeste. Perto
dele havia uma pedra grande. Fiquei ali deitado por algum tempo, procurando
descobrir alguma pista, olhando para todos os detalhes, mas não senti nada de
diferente.
Resolvi tentar o outro ponto. Rodopiei depressa nos joelhos e já ia deitando no
paletó quando senti uma apreensão anormal. Era mais como uma sensação física
de alguma coisa me empurrando no estômago. Dei um salto e recuei num
movimento só. Os cabelos de minha nuca se eriçaram. As pernas estavam
levemente arqueadas, o tronco debruçado para a frente, e os braços esticados na
mesma posição, rigidamente, com os dedos contraídos como garras. Reparei em
minha estranha posição e assustei-me ainda mais.
Sem querer, andei para trás e sentei-me na pedra junto de meu sapato. Da
pedra passei para o chão. Tentei imaginar o que teria acontecido para me
assustar assim. Achei que devia ser o cansaço que estava sentindo. Já era quase
dia. Sentia-me tolo e encabulado. No entanto, não tinha jeito de saber o que me
assustara, nem tinha descoberto o que era que Dom Juan queria.
Resolvi fazer uma última tentativa. Levantei-me e, devagar aproximei-me do
lugar marcado pelo paletó e tornei a sentir a mesma apreensão. Dessa vez, fiz
um grande esforço para me controlar. Sentei-me e depois ajoelhei-me para
deitar de bruços, mas, a despeito de minha vontade, não consegui deitar-me. Pus
as mãos no chão em frente de mim. Minha respiração estava ofegante; meu
estômago estava embrulhado. Tive uma nítida sensação de pânico, e lutei para
não fugir. Pensei que talvez Dom Juan me estivesse vigiando. Devagar, rastejei
até o outro ponto e encostei as costas na pedra. Queria repousar um pouco para
arrumar as idéias, mas adormeci.
Ouvi Dom Juan falando e rindo por cima de minha cabeça. Acordei.
─ Você encontrou o ponto -disse ele.
A principio, não entendi, mas ele me garantiu de novo que o lugar em que eu
adormecera era o ponto certo. Tornou a me perguntar como é que eu me sentia
deitado ali. Respondi que realmente não notava nenhuma diferença.
Disse-me que comparasse minhas sensações daquele momento com o que eu
tinha sentido deitado no outro ponto. Pela primeira vez, ocorreu-me que eu não
poderia explicar minha apreensão da noite. Incitou-me, numa espécie de desafio,
a me sentar no outro ponto. Por algum motivo inexplicável eu chegava a ter
medo do outro lugar, e não me sentei lá. Declarou que só um tolo podia deixar de
perceber a diferença.
Perguntei-lhe se cada um dos dois pontos tinha um nome especial. Ele disse
que o bom era chamado o sitio e o mau o inimigo: disse que os dois lugares eram
a chave do bem-estar do homem, especialmente para uma pessoa que buscava o
conhecimento. O simples ato de sentar no ponto da gente criava uma força
superior; por outro lado, o inimigo enfraquecia a pessoa e podia até provocar a
sua morte. Ele disse que eu tinha refeito a minha energia, que tinha gasto muito
na noite anterior, dormindo um pouco no meu ponto.
Disse ainda que as cores que eu tinha visto, associadas a cada ponto especial,
tinham o mesmo efeito geral, de dar ou de roubar a força.
Perguntei-lhe se para mim haveria outros pontos como os dois que eu
encontrara, e como deveria proceder para descobri-los. Respondeu que muitos
lugares no mundo seriam comparáveis àqueles dois, e que o melhor meio de
descobri-los seria verificar suas cores respectivas.
Eu não sabia bem se tinha ou não resolvido o problema, e nem estava mesmo
convencido de que tinha havido um problema: não podia deixar de sentir que toda
aquela experiência era forçada e arbitrária. Tinha certeza de que Dom Juan me
vigiara a noite toda e depois quisera agradar-me, dizendo que o local em que eu
adormecera era o lugar que eu procurava. No entanto, eu não via um motivo
lógico para isso, e quando ele me desafiou a sentar-me no outro ponto, não
consegui fazê-lo. Havia uma estranha divisão entre a minha experiência
pragmática de recear o "outro ponto" e minhas deliberações racionais sobre o
caso todo.
Dom Juan, por outro lado, estava muito certo de meu sucesso, e, agindo de
acordo com isso, disse-me que me ia ensinar a respeito do peiote.
─ Você me pediu que lhe falasse sobre Mescalito disse ele. -Queria descobrir
se tinha bastante fibra para encontrá-lo cara a cara. Mescalito não é brincadeira.
Você tem de ter domínio sobre si. Agora, sei que posso admitir o seu simples
desejo como um bom motivo para aprender.
─ Vai mesmo ensinar-me a respeito do peiote?
─ Prefiro chamá-lo Mescalito. Faça o mesmo.
─ Quando vai começar?
─ Não é assim tão simples. Primeiro, você tem de estar pronto.
─ Creio que estou pronto.
─ Isso não é brincadeira. Você tem de esperar até não haver nenhuma dúvida,
e então o encontrará.
─ Tenho de preparar-me?
─ Não. Só tem de esperar. Pode desistir de tudo, depois de algum tempo. Você
se cansa facilmente. Ontem, você queria desistir assim que ficou difícil.
Mescalito exige um propósito muito sério.
2
Segunda-feira, 7 de agosto de 1961
Cheguei à casa de Dom Juan no Arizona por volta das sete horas da noite de
sexta- feira. Havia mais cinco índios sentados com ele na varanda da casa.
Cumprimentei-o e esperei que eles dissessem alguma coisa. Depois de um
silêncio formal, um dos homens levantou-se, chegou perto de mim e disse
"Buenas noches". Levantei-me e disse "Buenas noches". Depois todos os outros
homens se levantaram e se aproximaram de mim e nós todos murmuramos
"buenas noches" e nos apertamos as mãos, mal tocando uns nos dedos dos outros
ou pegando a mão por um instante e largando-a abruptamente.
Nós todos nos sentamos outra vez. Eles pareciam meio encabulados, sem
saber o que dizer, embora todos falassem espanhol.
Deviam ser umas sete e meia quando todos se levantaram de repente e foram
para os fundos da casa. Ninguém dizia uma palavra, fazia tempo. Dom Juan me
fez sinal para acompanhá-los e nós todos entramos numa velha camioneta
estacionada lá. Sentei-me atrás com Dom Juan e mais dois rapazes mais moços.
Não havia almofadas nem bancos e o chão de metal era duro de doer,
especialmente quando saímos da estrada pavimentada e passamos para uma de
terra. Dom Juan cochichou-me que íamos à casa de um amigo dele, que tinha
sete mescalitos para mim.
─ Não tem nenhum, Dom Juan? -perguntei-lhe.
─ Tenho, mas não podia oferecê-los a você. Entende, é outra pessoa que tem
de fazer isso.
─ Pode dizer-me por quê?
─ Talvez você não seja agradável a "ele" e "ele" não goste de você, e então
nunca poderá conhecê-lo com afeto, como se deve; e nossa amizade ficará
estragada.
─ Por que ele não havia de gostar de mim? Nunca lhe fiz nada.
─ Não precisa fazer nada para ele gostar de você ou não. Ou ele o recebe ou
o joga fora.
─ Mas se ele não me receber, não há alguma coisa que eu possa fazer para
obrigá-lo a gostar de mim?
Os dois outros homens pareceram ouvir minha pergunta e riram.
─ Não! Não sei de nada que se possa fazer – disse Dom Juan.
Virou-se meio de lado e não pude mais falar-lhe.
Devemos ter viajado pelo menos por uma hora antes de parar diante de uma
casinha.
Estava bem escuro e depois que o motorista desligou os faróis eu só conseguia
distinguir a silhueta vaga do prédio.
Uma moça, mexicana, a julgar pelo sotaque, estava gritando com um cão
para ele parar de latir. Saltamos do caminhão e entramos na casa. Os homens
resmungaram "Buenas noches" ao passarem pela moça. Ela os cumprimentou e
continuou a gritar com o cão.
A sala era grande e amontoada de um mundo de coisas. Uma luz fraca de
uma lâmpada elétrica muito pequenina tornava a cena muito, lúgubre. Havia
várias cadeiras de pernas quebradas e assentos caídos encostadas às paredes.
Três dos homens sentaram-se num sofá, que era o móvel maior da sala. Era
muito velho e estava apoiado no chão; à luz fraca parecia ser vermelho e sujo.
Nós outros nos sentamos nas cadeiras. Permanecemos calados por muito tempo.
De repente, um dos homens levantou-se e foi para outra sala. Tinha talvez uns
50 e poucos anos, e era moreno, alto e forte. Um momento depois voltou com
um vidro de café.
Abriu a tampa e entregou-me o vidro: dentro havia sete artigos de aparência
estranha. Eram de tamanhos e consistência variados. Uns eram quase redondos,
outros alongados. Ao tato, pareciam a polpa de nozes ou a superfície da cortiça.
Sua cor acastanhada os fazia parecer cascas de nozes duras e secas. Peguei
nelas, esfregando sua superfície por algum tempo.
─ Isso é para mascar (esto se masca) ─ cochichou Dom Juan.
Não tinha percebido que se havia sentado junto de mim, até ele falar. Olhei
para os outros homens, mas ninguém estava olhando para mim; estavam
conversando entre si, em voz baixa. Foi um momento de grande indecisão e
medo. Sentia-me quase incapaz de me controlar.
─ Tenho de ir ao banheiro -disse-lhe eu. ─ Vou até lá fora, dar uma volta.
Entregou-me o vidro de café e eu coloquei os botões de peiote ali. Já ia saindo
da sala, quando o homem que me dera o vidro se aproximou de mim e disse que
tinha uma privada no outro aposento.
O vaso ficava quase junto da porta. Junto dela, quase encostada ao vaso, havia
uma grande cama, ocupando mais da metade do quarto. A mulher estava ali
dormindo. Fiquei parado junto da porta um pouco e depois voltei à sala onde
estavam os outros homens. O dono da casa falou-me em inglês:
─ Dom Juan disse que você é da América do Sul. Lá existe mescal?
Respondi-lhe que nunca tinha ouvido falar nisso.
Pareceram estar interessados na América do Sul e conversamos um pouco
sobre os índios. Neste momento, um dos homens me perguntou por que eu queria
comer peiote. Eu disse que queria saber como era. Todos riram, encabulados.
Dom Juan me disse baixinho:
─ Masque, masque (masca, masca).
Minhas mãos estavam úmidas e meu estômago, contraído. O vidro com os
botões de peiote estava no chão ao lado de minha cadeira. Abaixei-me, peguei
um ao acaso e o pus na boca. Tinha um gosto de coisa velha. Mordi, dividindo-o
em dois, e comecei a mastigar um dos pedaços. Senti um amargo forte e
pungente; num momento, toda minha boca estava dormente. O amargo
aumentava enquanto eu mascava, forçando urna salivação incrível. Minhas
gengivas e a parte interna de minha boca estavam como se eu tivesse comido
carne- seca ou peixe salgados, parecendo obrigar-me a mascar mais. Pouco
depois, masquei o outro pedaço, e minha boca estava tão amortecida que eu nem
sentia mais o amargor. O botão de peiote tinha uma penca de fibras, como a
parte fibrosa da laranja ou da cana, e eu não sabia se devia engoli-la ou cuspi-la.
Naquele momento, o dono da casa levantou-se e convidou a todos Para saírem
para a varanda.
Saímos e ficamos sentados no escuro. Estava bastante agradável lá fora e o
anfitrião trouxe uma garrafa de tequila.
Os homens estavam sentados numa fileira, encostados à parede. Eu estava à
extrema direita da fila. Dom Juan, que continuava a meu lado, colocou o vidro
com os botões de peiote entre as minhas pernas. Depois, passou-me a garrafa,
que tinha vindo pela fila, e disse-me que bebesse um pouco de tequila para tirar o
amargor.
Cuspi os fiapos do primeiro botão e tomei um gole. Ele me disse que não ó
engolisse, mas apenas bochechasse para fazer parar a salivação. Não adiantou
muito para a saliva, mas certamente ajudou a tirar um pouco do amargo.
Dom Juan deu-me um pedaço de damasco seco, ou talvez fosse um figo seco
─ eu não conseguia ver no escuro, nem sentir o gosto ─ e disse-me que o
mastigasse bastante e devagar, sem me apressar. Tive dificuldade em engoli-lo;
parecia que não queria descer.
Depois de um curto intervalo a garrafa foi novamente passada. Dom Juan
deu-me um pedaço de carne-seca. Disse-lhe que não estava com vontade de
comer.
─ Isto não é comer ─ falou ele, com firmeza.
A função repetiu-se seis vezes. Lembro-me de já ter mascado seis botões de
peiote, quando a conversa ficou muito animada: embora eu não conseguisse
distinguir que língua estavam falando, o tema da conversa, da qual todos
participavam, era muito interessante, e eu procurei ouvir atentamente para
também poder participar. Mas quando tentei falar, vi que não conseguia; as
palavras passeavam a esmo pela minha cabeça.
Fiquei sentado, encostado à parede, escutando o que os homens falavam.
Estavam falando italiano e repetiam continuamente uma frase a respeito da
estupidez dos tubarões. Achei que era um assunto lógico e coerente. Eu havia
contado a Dom Juan que o rio Colorado no Arizona fora chamado pelos
primeiros espanhóis de "el rio de los tizones" (rio dos tições); e que alguém tinha
escrito errado ou entendido errado a palavra tizones e o rio foi chamado "el rio de
los tiburones" (rio dos tubarões). Eu tinha certeza de que estavam comentando
essa história, mas não me ocorreu pensar que nenhum deles sabia falar italiano.
Estava com muita vontade de vomitar, mas não me lembro se o fiz, de fato.
Perguntei se alguém poderia arranjar-me água. Estava com uma sede
insuportável.
Dom Juan me trouxe uma panela grande. Colocou-a no chão junto da parede.
Trouxe também uma canequinha. Mergulhou-a na panela e deu-a a mim,
dizendo que eu não podia beber, mas que devia apenas refrescar minha boca
com ela.
A água tinha um aspecto estranho, reluzente, como um verniz grosso. Quis
perguntar a Dom Juan a respeito e com dificuldade tentei formular meus
pensamentos em inglês, mas depois pensei que ele não sabia falar inglês. Houve
um momento de muita confusão e tive noção do fato de que, embora tivesse um
pensamento claro em minha cabeça, eu não podia falar. Queria comentar sobre
o. estranho aspecto da água, mas o que se seguiu não foi fala: era a sensação de
meus pensamentos não falados saindo de minha boca em forma líquida. Era uma
sensação fácil de vômito sem as contrações do diafragma. Era um agradável
fluxo de palavras líquidas.
Bebi. E a sensação de estar vomitando passou. A essa altura todos os sons
haviam desaparecido e vi que tinha dificuldade em focalizar os olhos. Procurei
Dom Juan e ao virar a cabeça notei que meu campo de visão tinha-se reduzido a
uma área circular defronte de meus olhos. Essa sensação não era nem
assustadora nem incômoda, ao contrário, era uma novidade; eu podia
praticamente varrer o solo, focalizando um ponto e depois movendo minha
cabeça devagar em qualquer direção. Quando eu havia saído para a varanda,
tinha reparado que estava toda no escuro, a não ser a luminosidade distante das
luzes da cidade. No entanto, dentro da área circular de minha visão, tudo era
claro. Esqueci-me de minha preocupação com Dom Juan e os outros homens e
entreguei-me totalmente a explorar o terreno com minha visão aguçada.
Vi a junção do chão da varanda com a parede. Virei minha cabeça
lentamente para a direita, seguindo a parede, e vi Dom Juan sentado de encontro
a ela. Movi a cabeça para a esquerda para focalizar a água. Encontrei o fundo da
panela; ergui minha cabeça ligeiramente e vi um cão preto de tamanho médio
aproximando-se. Notei que ele vinha em direção à água. O cão começou a
beber. Levantei a mão para espantá-lo da minha água; focalizei minha vista no
cão para executar o movimento e de repente eu vi que ele se tornava
transparente. A água era um líquido brilhante e viscoso. Eu a vi descendo pela
garganta do cachorro e entrando no corpo dele. Eu a vi percorrendo todo o corpo
dele e depois saindo por cada um dos pelos. Vi o fluido iridescente passando por
cada pelo individual e depois projetando-se dos pelos para formar uma juba
longa, branca e sedosa.
Naquele momento, tive a sensação de convulsões intensas e em poucos
instantes formou-se em volta de mim um túnel, muito baixo e estreito, duro e
estranhamente frio. Quando o toquei, parecia uma parede de folha sólida. Vi que
eu estava sentado no chão do túnel. Tentei levantar-me, mas dei com a cabeça no
teto de metal e o túnel contraiu-se até estar-me sufocando. Lembro-me de que
tive de arrastar-me até uma espécie de curva onde acabava o túnel; quando
finalmente cheguei lá, se é que cheguei, eu tinha esquecido completamente o
cão, Dom Juan e a mim mesmo. Estava exausto. Minhas roupas estavam
ensopadas, de um liquido frio e viscoso. Eu rolava para diante e para trás,
procurando encontrar uma posição para descansar, uma posição em que meu
coração não batesse tão forte. Num desses movimentos, tornei a ver o cão.
Todas as recordações me voltaram de repente, e tudo ficou claro em minha
mente. Virei-me para procurar Dom Juan, mas não conseguia distinguir nada
nem ninguém. Eu só conseguia ver o cão ficando iridescente; uma luz intensa se
irradiava de seu corpo. Torneia ver a água fluindo através dele, acendendo-o
como a uma fogueira. Cheguei até à água, afundei meu rosto na panela e bebi
com ele. Minhas mãos estavam diante de mim no chão e, enquanto eu bebia, vi o
fluido correndo por minhas veias e criando tonalidades de vermelho, amarelo e
verde. Bebi mais e mais. Bebi até estar todo em fogo; eu estava todo aceso. Bebi
até que o liquido saiu de meu corpo por todos os poros, projetando-se para fora
como fibras de seda, e eu também adquiri uma juba comprida, lustrosa e
iridescente. Olhei para o cachorro e a juba dele era igual à minha. Uma
felicidade suprema me encheu o corpo todo e corremos juntos para uma espécie
de calor amarelo que vinha de algum lugar indefinido. E ali brincamos.
Brincamos e lutamos até eu saber os desejos dele e ele saber os meus. Cada um
manipulava o outro à maneira dos teatros de fantoches. E o fazia mexer as
pernas quando torcia meus dedos dos pés e cada vez que ele batia a cabeça, eu
sentia um desejo irresistível de saltar. Mas a maior travessura dele era fazer com
que eu coçasse minha cabeça com o pé enquanto estava sentado, o que
conseguia abanando as orelhas de. um lado para outro. Isso para mim era inteira
e insuportavelmente engraçado. Uma tal graça e ironia; tanto domínio, pensei. A
euforia que se apossou de mim era indescritível. Eu ria até quase não poder
respirar.
Tinha a sensação nítida de não conseguir abrir os olhos; eu estava olhando por
um tanque de água. Era um estado longo e muito doloroso, cheio da ansiedade de
não poder despertar, e no entanto de sentir-me acordado. Então, de repente, o
mundo ficou claro e em foco. Meu campo de visão tornou-se novamente muito
redondo e amplo, e com isso surgiu um ato consciente comum, que foi o de
virar-me e procurar aquele ser maravilhoso. Nesse ponto, encontrei a transição
mais difícil. A passagem de meu estado normal se dera quase sem eu sentir: eu
tinha consciência; meus pensamentos e sentimentos eram um corolário dessa
consciência; e a passagem foi clara e suave. Mas essa segunda modificação, o
despertar para uma consciência clara e sóbria, foi verdadeiramente chocante. Eu
tinha esquecido que era homem! A tristeza de uma situação tão irreconciliável foi
tão intensa que eu chorei.
Sábado, S de agosto de 1961
Mais tarde naquela manhã, depois de tomar o café, o dono da casa, Dom Juan
e eu voltamos para a casa do segundo. Eu estava muito cansado, mas não
consegui dormir na camioneta. Só depois que o homem se foi é que eu adormeci,
na varanda da casa de Dom Juan.
Quando acordei já estava escuro; Dom Juan me cobrira com uma manta. Eu
o procurei, mas ele não estava em casa. Depois apareceu, trazendo uma panela
de feijão frito e um monte de tortillas. Eu estava com muita fome.
Depois de comermos, descansamos, e ele me pediu que lhe contasse tudo o
que me acontecera na véspera. Narrei minha experiência com muitos detalhes e
o mais precisamente possível. Quando terminei, ele meneou a cabeça e disse:
─ Acho que você está bem. É difícil explicar agora como e por quê. Mas
creio que as coisas foram bem para você. Sabe, às vezes ele é brincalhão, como
uma criança; outras vezes é terrível e temível. Ou ele brinca, ou fica muito sério.
É impossível saber de antemão como é que ele vai ser com outra pessoa. No
entanto, quando a gente o conhece bem. . . às vezes. Você brincou com ele hoje.
E a única pessoa que eu conheço que tenha tido um encontro desses.
─ De que modo a minha experiência é diferente da dos outros?
─ Você não é índio; por isso é difícil calcular o que é que há. No entanto, ele
ou aceita as pessoas ou as rejeita, não importando que sejam índias ou não. Isso
eu sei. Já vi muitas. Sei também que ele brinca, que faz umas pessoas rirem, mas
nunca o vi brincar com ninguém.
─ Pode dizer-me agora, Dom Juan, como é que o peiote protege. . .
Não me deixou terminar. Apertou meu ombro com força.
─ Nunca se refira a ele por esse nome. Você ainda não o viu o suficiente para
conhece-lo.
─ Como é que Mescalito protege as pessoas?
─ Ele aconselha. Responde a todas as perguntas que você fizer.
─ Então Mescalito é real? Quero dizer, é uma coisa que se possa ver?
Pareceu ficar confuso com minha pergunta. Ficou olhando para mim com
uma expressão vazia.
─ O que quero dizer é que Mescalito . . .
─ Eu ouvi o que você falou. Você não o viu ontem?
Eu queria dizer que só tinha visto um cachorro, mas reparei que ele estava
com um ar intrigado.
─ Então você acha que o que eu vi ontem foi ele?
Olhou para mim com desprezo. Riu, sacudiu a cabeça como se não pudesse
acreditar e, num tom de voz muito truculento, acrescentou: -A poco crees que era
tu... mamá (Não me diga que acreditas que era tua... mamãe?) Ele parou antes
de dizer mamá porque o que ele queria dizer era "tu chingada madre", expressão
idiomática usada como alusão desrespeitosa à mãe do outro. A palavra mamá
ficou tão disparatada que nós dois nos rimos muito.
Depois, percebi que ele tinha adormecido sem responder à minha pergunta.
Domingo, 6 de agosto de 1961
Levei Dom Juan de carro à casa onde eu tinha tomado peiote. No caminho,
ele me disse que o nome do homem que me "oferecera a Mescalito" era John.
Quando chegamos à casa, encontramos John sentado na varanda com dois
rapazes. Todos estavam muito alegres. Riam e conversavam livremente. Os três
falavam inglês com perfeição. Eu disse a John que tinha ido agradecer-lhe por
me ter ajudado.
Eu queria ter as impressões deles sobre meu comportamento durante a
experiência alucinógena, e disse-lhes que tinha estado procurando pensar no que
eu tinha feito naquela noite, e que não conseguia lembrar-me. Eles riram e
mostraram relutância em falar a respeito. Pareciam estar-se controlando por
causa de Dom Juan. Todos olharam para ele, como que esperando permissão
para continuar. Dom Juan deve ter dado alguma indicação, embora eu não
notasse nada, pois, de repente, John começou a me contar o que eu tinha feito
naquela noite.
Ele disse que sabia que eu tinha sido "aceito" quando me ouviu vomitando. Ele
calculou que eu devia ter vomitado umas 30 vezes. Dom Juan corrigiu-o, dizendo
que foram só dez vezes.
─ Depois nós todos fomos para junto de você ─ continuou John. ─ Estava duro
e com convulsões. Por muito tempo, ficou deitado de costas, mexendo com a
boca, como se estivesse falando. Em seguida, começou a bater com a cabeça no
chão e Dom Juan pôs um chapéu velho na sua cabeça e você parou. Tremeu e
gemeu durante várias horas, deitado no chão. Acho que nessa altura todos
adormeceram; mas eu o ouvia bufando e gemendo, enquanto dormia. Depois, eu
o ouvi gritar e acordei. Vi você dando saltos no ar, berrando. Depois, deu uma
corrida até à água, derrubou a panela e começou a nadar na poça d’água.
"Dom Juan lhe trouxe mais água. Você ficou sentado quieto diante da panela.
Em seguida, você se levantou de um salto e tirou toda a roupa. Estava, de joelhos
diante da água, bebendo em grandes goles. Depois, ficou ali sentado, olhando
pata o vazio. Pensamos que você ia ficar ali para sempre. Quase todos estavam
dormindo, inclusive Dom Juan, quando, de repente, você tornou a dar um pulo,
uivando e foi atrás do cão. O animal se assustou e uivou também, correndo para
os fundos da casa. Neste momento todos acordaram.
"Nós todos nos levantamos. Você voltou pelo outro lado, ainda perseguindo o
cão, que estava correndo na sua frente, latindo e uivando. Acho que você deve
ter dado umas 20 voltas ao redor da casa, correndo em círculos, latindo como um
cachorro. Fiquei com medo de que as pessoas ficassem curiosas. Não há vizinhos
por perto, mas seus uivos eram tão altos que podiam ser ouvidos a quilômetros.
Um dos rapazes acrescentou:
─ Você pegou o cachorro e o trouxe para a varanda no colo.
─ Então, começou a brincar com o cão ─ continuou John. ─ Lutou com ele, e
você e o cão se mordiam e brincavam. Achei que isso era engraçado.
Normalmente, meu cachorro não brinca. Mas dessa vez, você e o cão rolavam
um por cima do outro.
─ -Correu para a água e o cachorro bebeu com você disse o rapaz. ─ Correu
umas cinco ou seis vezes para a água com o cão.
─ Quanto tempo durou isso? -perguntei.
─ Horas ─ disse John. ─ A um dado momento, perdemos os dois de vista.
Acho que devem ter corrido para os fundos. Só ouvíamos vocês latindo e
grunhindo. Você fazia ruídos tão semelhantes aos do cachorro que não podíamos
distinguir os dois.
─ Talvez fosse só o cão ─ disse eu.
Eles riram, e John disse: ─ Era você que estava latindo, rapaz! ─ E depois, o
que aconteceu?
Os três homens se entreolharam e demonstraram ter dificuldade em resolver
o que tinha acontecido depois. Por fim, o rapaz que ainda não tinha dito nada
falou.
─ Ele se engasgou ─ disse ele, olhando para John.
vSim, você certamente se engasgou. Começou a chorar de maneira muito
estranha e depois caiu no chão. Pensamos que estivesse mordendo a língua; Dom
Juan abriu seus maxilares e despejou água no seu rosto. Então, você começou a
tremer e a ter convulsões de novo. Ficou imóvel por muito tempo. Dom Juan
disse que estava tudo acabado. Nesta altura, já era de manhã, de modo que o
cobrimos com uma manta e o deixamos dormindo na varanda.
Parou e olhou para os outros, que obviamente procuravam não rir. Virou-se
para Dom Juan e perguntou alguma coisa. Dom Juan sorriu e respondeu à
pergunta. John virou-se para mim e disse:
─ Nós o deixamos aqui na varanda porque estávamos com medo de que você
fosse urinar nos quartos todos.
Todos riram muito.
─ O que aconteceu comigo? ─ perguntei. ─ Eu...
─ Se você . . . ? ─ John parecia estar-me imitando. Não íamos falar disso, mas
Dom Juan disse que não faz mal. ─ Você urinou por cima do meu cachorro!
─ O que foi que eu fiz?
─ Você não pensa que o cachorro estivesse correndo porque estava com
medo de você, não é? O cão corria porque você estava mijando nele.
A essa altura todos riram muito. Tentei fazer perguntas a um dos rapazes, mas
estavam todos rindo e ele não me ouviu. John continuou:
─ Mas meu cachorro se desforrou; ele também mijou em você! Essa
declaração aparentemente era muito engraçada, pois eles todos morreram de rir,
inclusive Dom Juan. Depois que todos se aquietaram, perguntei muito sério:
─ É mesmo verdade? Isso aconteceu mesmo?
─ Juro que meu cão realmente mijou em você ─ respondeu John, ainda rindo.
Quando estávamos voltando para a casa de Dom Juan, perguntei-lhe:
─ Tudo aquilo aconteceu mesmo, Dom Juan?
─ Sim. Mas eles não sabem o que você viu. Não compreendem que você
estava brincando com "ele". Foi por isso que eu não o interrompi.
─ Mas esse negócio do cão e eu urinando um ao outro é verdade?
─ Não era um cão! Quantas vezes tenho de lhe dizer isso? É o único jeito de
compreendê-lo. O único jeito! Foi "ele" que brincou com você.
─ Você sabia que tudo isso estava acontecendo antes de eu lhe contar?
Vacilou um momento antes de responder.
─ Não, depois que você me contou eu me lembrei de como você estava
estranho. Eu desconfiava de que você estava bem porque você não parecia
assustado.
─ O cão brincou mesmo comigo como eles dizem?
─ Que diabo! Não era um cão!
Quinta-feira, 17 de agosto de 1961
Contei a Dom Juan o que eu sentia a respeito de minha experiência. Do ponto
de vista de meu pretenso trabalho, tinha sido uma coisa desastrosa. Disse que não
estava interessado em outro "encontro" desses com Mescalito. Concordei que
tudo o que me acontecera fora para lá de interessante, mas acrescentei que nada
daquilo poderia realmente me levar a procurá-lo outra vez. Eu acreditava
seriamente que não era feito para esse tipo de esforço. O peiote provocara em
mim, como reação posterior, uma estranha sensação de desconforto físico. Era
um medo ou infelicidade indefinidos; uma melancolia de algum tipo, que eu não
podia definir exatamente. E eu não considerava esse estado nobre, de maneira
alguma. Dom Juan riu e disse:
─ Você está começando a aprender.
─ Esse tipo de aprendizagem não me serve. Não fui feito para isso, Dom Juan.
─ Você sempre exagera.
─ Não é exagero.
─ É, sim. O problema com você é que você só exagera os pontos maus.
─ Não há pontos bons, a meu ver. Só sei é que isso me amedronta.
─ Não há nada de mau em se sentir medo. Quando se tem medo, vê-se as
coisas de modo diferente.
─ Mas não gosto de ver as coisas de modo diferente, Dom Juan. Acho que vou
deixar de lado a aprendizagem de Mescalito. Não estou preparado para isso,
Dom Juan. Esta situação é mesmo ruim para mim.
─ Claro que é ruim até para mim. Você não é o único que está confuso.
─ Por que você havia de estar confuso, Dom Juan?
─ Estive pensando no que vi na outra noite. Mescalito essa chegou a brincar
com você. Isso me deixou confuso, porque foi um indício (agouro).
─ Que tipo de indício, Dom Juan?
─ Mescalito estava indicando você para mim.
vPara quê?
─ Não estava claro para mim então, mas agora está. Ele queria dizer que
você era o "homem escolhido" (escogido). Mescalito me mostrou você e,
fazendo isso, me disse que você era o escolhido.
─ Quer dizer que eu fui escolhido entre outros para alguma tarefa, coisa
assim?
─ Não. O que quero dizer é que Mescalito me disse que você podia ser o
homem que estou procurando.
─ Quando foi que ele lhe disse isso, Dom Juan?
─ Brincando com você, ele me disse isso. Isso faz de você o homem escolhido
para mim.
─ O que significa ser o homem escolhido?
─ Há alguns segredos que conheço (Tengo secretos). Tenho segredos que não
poderei revelar a ninguém, a não ser que encontre o meu homem escolhido. Na
outra noite, quando eu o vi brincando com Mescalito, ficou claro para mim que
você era esse homem. Mas você não é índio. Que estranho!
─ Mas o que isso significa para mim, Dom Juan. O que tenho de fazer?
─ Já resolvi e vou ensinar-lhe os segredos que constituem o todo de um
homem de sabedoria.
─ Quer dizer os segredos sobre Mescalito?
─ Sim, mas não são só esses os segredos que conheço. Há outros, de um tipo
diferente, que eu gostaria de dar a alguém. Eu também tive um mestre, o meu
benfeitor, e também me tornei um homem escolhido ao executar certa façanha.
Ele me ensinou tudo o que sei.
Tornei a perguntar-lhe o que esse novo papel exigiria de mim; ele disse que a
única coisa necessária era aprender, aprender no sentido do que eu tinha
experimentado nas duas sessões com ele.
O modo como se modificara a situação era bem estranho. Eu tinha resolvido
dizer a ele que ia desistir da idéia de aprender a respeito do peiote, e então, antes
de eu poder fazê-lo entender, ele me oferecia para ensinar-me o seu
"conhecimento". Não sabia o que ele queria dizer com isso, mas senti que
reviravolta repentina era muito séria. Argumentei que não tinha qualificações
para essa tarefa, pois ela exigia um tipo raro de coragem que eu não possuía.
Disse-lhe que minha natureza era mais de comentar os atos praticados por outros.
Queria saber das opiniões dele sobre tudo. Disse-lhe que ficaria feliz se pudesse
ficar ali sentado e ouvi-lo falar por dias e dias. Para mim, isso seria aprender.
Escutou sem interromper. Falei muito tempo. Então, ele disse:
─ Tudo isso é muito fácil de entender. O medo é o primeiro inimigo natural
que o homem tem de vencer em seu caminho para o conhecimento. Além disso,
você é curioso. Isso acerta as coisas. E há de aprendera despeito de você mesmo,
é esta a regra.
Ainda protestei um pouco, procurando dissuadi-lo. Mas ele parecia estar
convencido de que não havia nada que eu pudesse fazer senão aprender.
─ Você não está pensando na ordem certa ─ disse ele. -Mescalito chegou a
brincar com você. É nisso que tem de pensar. Por que não medita sobre isso, em
vez de no seu medo?
─ Foi assim tão raro?
─ Foi a única pessoa que já vi brincar com ele. Você não está habituado com
este tipo de vida; portanto as indicações (agouros) lhe passam despercebidas. No
entanto, é uma pessoa séria, mas sua seriedade está ligada ao que você faz, não
ao que se passa fora de você. Preocupa-se muito com você. É este o problema. E
isso dá um cansaço horrível.
─ Mas o que mais se pode fazer, Dom Juan?
─ Procure e veja as maravilhas em volta de você.
Está cansado de olhar só para si, e essa fadiga o torna surdo e cego para todo o
resto.
─ Tem razão, Dom Juan, mas como posso modificar-me?
─ Pense na maravilha de Mescalito brincando com você. Não pense em mais
nada o resto virá por si.
Domingo, 20 de agosto de 1961
Ontem à noite Dom Juan começou a me conduzir ao reino de seu
conhecimento. Ficamos sentados defronte da casa dele, no escuro. De repente,
depois de um longo silêncio, ele começou a falar. Disse que ia aconselhar-me
com as mesmas palavras que o benfeitor dele usara no primeiro dia em que o
recebeu como aprendiz. Parece que Dom Juan tinha decorado as palavras, pois
ele as repetiu várias vezes, para ter a certeza de que eu não perdia nenhuma:
─ Um homem vai para o conhecimento como vai para a guerra, bem
desperto, com medo, com respeito e com uma segurança absoluta. Ir para o
conhecimento ou ir para a guerra de qualquer outra maneira é um erro, e quem
o cometer há de se arrepender.
Perguntei-lhe por que era isso e ele disse que, quando o homem preenche
esses quatro requisitos, não há erros que ele tenha de explicar; nessas condições,
seus atos perdem a qualidade desastrada dos atos de um tolo. Se um homem
desses fracassar, ou sofrer uma derrota, terá perdido apenas uma batalha, e não
haverá remorsos tristes por isso.
Depois ele disse que pretendia ensinar-me a respeito de um "aliado", da
mesmíssima maneira que seu benfeitor lhe Vista. Frisou bem a expressão
"mesmíssima", repetindo-a várias vezes.
Um "aliado", disse ele, é um poder que um homem pode introduzir em sua
vida para ajudá-lo, aconselhá-lo e dar-lhe a força necessária para executar atos,
grandes ou pequenos, certos ou errados. Este aliado é necessário para realçar a
vida de um homem, orientar suas ações e aumentar seus conhecimentos. De
fato, um aliado é o auxiliar indispensável do conhecimento. Dom Juan falou isso
com muita convicção e força. Pareceu escolher as palavras com cuidado.
Repetiu a seguinte frase quatro vezes:
─ Um aliado o fará ver e compreender coisas a respeito das quais nenhum ser
humano poderia esclarecê-lo.
─ Um aliado é assim como um anjo da guarda?
─ Não é guarda nem anjo. E um auxiliar.
─ Mescalito é seu aliado?
─ Não! Mescalito é outro tipo de poder. Um poder raro! Um protetor, um
mestre.
─ O que torna Mescalito diferente de um aliado?
─ Não pode ser domesticado e usado como se pode fazer com um aliado.
Mescalito está fora da gente. Ele resolve mostrar-se em muitas formas para
quem estiver defronte dele, não importando que essa pessoa seja um brujo ou
um peão de fazenda.
Dom Juan falava com grande fervor de Mescalito ser o mestre da maneira
certa de se viver. Perguntei-lhe como é que Mescalito ensinava a "maneira certa
de viver" e Dom Juan respondeu que Mescalito mostrava como se deve viver.
─ Como é que ele mostra? ─ perguntei.
─ Ele tem muitas maneiras de mostrar. Às vezes, mostra por sua mão, ou nas
pedras, ou nas árvores, ou apenas diante de você.
─ E como um quadro diante da gente?
─ Não. B um ensinamento diante de você.
─ Mescalito fala com a pessoa?
─ Sim. Mas não por palavras.
─ Como é que ele fala, então?
─ Fala de maneira diferente com cada homem.
Senti que minhas perguntas o aborreciam. Não perguntei mais nada. Ele
continuou a explicar que não havia passos precisos para se conhecer Mescalito;
por isso, ninguém podia ensinar a respeito dele, a não ser o próprio Mescalito.
Essa qualidade tornava-o um poder único; não era o mesmo para todos os
homens.
Por outro lado, para se adquirir um aliado era necessário, disse Dom Juan; o
ensinamento mais preciso e que se seguisse estágios ou passos sem um único
desvio. Existem muitos desses poderes aliados no mundo, falou, mas ele só
conhecia de perto dois. E pretendia conduzir-me a eles e seus segredos, mas
cabia a mim escolher um deles, pois eu só poderia ter um. d aliado do benfeitor
dele estava na y erba del dublo (erva-do-diabo), mas ele pessoalmente não
gostava dela, embora seu benfeitor lhe tivesse ensinado seus segredos. Seu
próprio aliado estava no humito (fuminho), falou Dom Juan, mas ele não
explicou a natureza do fumo.
Perguntei-lhe a respeito. Ficou calado. Depois de uma longa pausa, perguntei-
lhe:
─ Que tipo de poder tem um aliado?
─ É um auxílio. Já lhe disse.
─ Como é que auxilia?
─ Um aliado é um poder capaz de transportar o homem além dos limites dele
mesmo. É assim que um aliado pode revelar assuntos que nenhum ser humano
poderia revelar.
─ Mas Mescalito também leva a pessoa além dos seus limites. Isso não faz
dele um aliado?
─ Não. Mescalito tira a pessoa dela mesma para ensinar-lhe. Um aliado a tira
para lhe dar poder.
Pedi-lhe que me explicasse esse ponto mais detalhadamente, ou que me
descrevesse a diferença em efeitos entre os dois. Ele me olhou por muito tempo
e riu. Disse que aprender por conversas era não só uma perda de tempo, como
ainda era estupidez, pois aprender era a tarefa mais difícil que o homem poderia
empreender. Pediu-me para lembrar-me da ocasião em que tentei encontrar
meu ponto e como eu queria encontrá-lo sem trabalho, pois eu esperava que ele
me fornecesse todas as informações. Se ele tivesse feito isso, disse ele, eu nunca
teria aprendido. Mas saber como era difícil encontrar meu ponto e, acima de
tudo, saber que ele existia, dar-me-ia um raro senso de confiança. Disse que,
enquanto eu ficasse agarrado a meu "ponto bom", nada me poderia causar um m
£ físico, pois eu tinha a segurança de que, naquele deter ponto, eu estava no meu
máximo. Tinha o poder de me livrar de tudo quanto pudesse prejudicar-me.
Contudo, se ele me tivesse contado onde ele ficava, eu nunca teria tido a
confiança necessária para considerar aquilo o verdadeiro conhecimento. Assim,
saber era realmente poder.
Depois, Dom Juan disse que cada vez que o homem resolve aprender, ele tem
de trabalhar duro como eu trabalhei para encontrar aquele ponto, e os limites de
sua aprendizagem são determinados por sua própria natureza. Assim, ele não via
vantagem em falar sobre o conhecimento. Disse que certos tipos de
conhecimento eram poderosos demais para a força que eu possuía, e que falar
sobre eles só me faria mal. Parece que achava que não havia mais nada a dizer.
Levantou-se e foi para casa. Falei-lhe que a situação me confundia. Não era o
que ou imaginara ou queria que fosse.
Respondeu que os temores são naturais, que todos nós os sentimos e que não
há nada a fazer a respeito. Porém, por outro lado, por mais aterrador que seja o
conhecimento, é mais terrível ainda pensar num homem sem um aliado, ou sem
o conhecimento.
3
Durante o espaço de mais de dois anos que se passou entre o momento em
que Dom Juan resolveu ensinar-me a respeito dos poderes dos aliados e o
momento em que ele achou que eu estava preparado para aprender a respeito
deles pragmaticamente, da forma participante que ele considerava como
aprendizagem, ele aos poucos definiu as características gerais dos dois aliados
em pauta. Preparou-me para o corolário indispensável de todas as verbalizações
e a consolidação de todos os ensinamentos, os estados de realidade não comum.
A princípio, ele falou sobre os poderes aliados de maneira muito normal. As
primeiras referências que tenho em minhas anotações estão intercaladas com
outros temas de conversas.
Quarta-feira, 23 de agosto de 1961
─ A erva-do-diabo (o estramônio) era aliada de meu benfeitor. Também
poderia ter sido minha, mas eu não gostava dela.
─ Por que não gostava da erva-do-diabo, Dom Juan?
─ Tinha um grave inconveniente.
─ É inferior aos outros poderes aliados?
─ Não. Não me interprete mal. Ela é tão poderosa quanto os melhores aliados,
mas há nela alguma coisa de que eu, pessoalmente, não gosto.
─ Pode dizer-me o que é?
─ Ela modifica os homens. Dá-lhes um gosto do poder cedo demais, sem lhes
fortificar os corações, tornando-os dominadores e imprevisíveis. Ela os torna
fracos, no meio de grande poder.
─ E não há um meio de evitar-se isso?
─ Há um meio de se vencer isso, mas não de evitá-lo. Quem quer que se
torne aliado da erva tem de pagar esse preço.
─ Como se pode vencer esse efeito, Dom Juan?
─ A erva-do-diabo tem quatro cabeças; a raiz, a haste e as folhas, as flores e
as sementes. Cada qual é diferente, e quem a tornar sua aliada tem de aprender a
respeito delas nessa ordem. A cabeça mais importante está nas raízes. O poder da
erva-do-diabo é conquistado por meio de suas raízes. A haste e as folhas são a
cabeça que cura as moléstias; usada direito, essa cabeça é uma dádiva para a
humanidade. A terceira cabeça fica nas flores e é usada para tornar as pessoas
malucas ou para fazê-las obedientes, ou para matá-las. O homem que tem a erva
por aliada nunca absorve as flores, nem meio a haste e as folhas, a não ser no
caso de ele mesmo estar doente; mas as raízes e as sementes são sempre
absorvidas; especialmente as sementes, que são a quarta cabeça da erva-do-
diabo e a mais poderosa das quatro.
─ Meu benfeitor dizia que as sementes são a "cabeça sóbria". . , a única parte
que poderia fortalecer o coração do homem. A erva-do-diabo é dura com seus
protegidos, dizia ele, porque pretende matá-los depressa, coisa que geralmente
consegue antes de eles descobrirem os segredos da "cabeça sóbria". Existem,
porém, histórias sobre homens que desvendaram os segredos da cabeça sóbria.
Que desafio para um homem de sabedoria!
─ Seu benfeitor desvendou esses segredos?
─ Não.
─ Conhece alguém que o tenha feito?
─ Não. Mas houve época em que esse conhecimento era importante.
─ Conhece alguém que tenha conhecido esses homens?
─ Não conheço, não.
─ O seu benfeitor conhecia?
─ Sim.
─ Por que ele não desvendou os segredos da cabeça sóbria?
─ Domesticar a erva-do-diabo para torná-la uma aliada é uma das tarefas
mais difíceis que conheço. Por exemplo, ela nunca se tornou minha aliada, talvez
porque eu nunca tivesse gostado dela.
─ E pode usá-la como aliada a despeito de não gostar dela?
─ Posso; não obstante, prefiro não o fazer. Talvez seja diferente com você.
─ Por que tem o nome de erva-do-diabo?
Dom Juan esboçou um gesto de indiferença, deu de ombros e ficou calado por
algum tempo. Por fim, disse que "erva-do-diabo" era seu nome provisório (su
nombre de feche). Disse ainda que havia outros nomes para erva-do-diabo, mas
que não deviam ser usados, pois o uso de um nome era coisa séria,
especialmente quando se está aprendendo a domesticar um poder aliado.
Perguntei-lhe por que usar um nome era coisa tão grave. Ele disse que os nomes
eram reservados para serem utilizados só quando se pede socorro, em momentos
de grande necessidade e tensão, e assegurou-me que esses momentos ocorrem
sempre, mais cedo ou mais tarde, nas vidas dos que procuram o conhecimento.
Domingo, 3 de setembro de 1961
Hoje à tarde Dom Juan apanhou duas plantas de Datura do campo.
Inesperadamente, ele abordou o assunto da erva-do-diabo em nossa conversa
e depois convidou-me a ir com ele procurar uma nos morros.
Tomamos o carro e fomos para as montanhas próximas. Peguei uma pá da
mala e fomos para uma das gargantas. Caminhamos por algum tempo, abrindo
caminho pelo chaparral, que era espesso na terra macia e arenosa. Ele parou
junto de uma plantinha de folhas verde-escuro e flores grandes, brancas, em
forma de sino.
─ Esta aqui ─ disse ele.
E começou logo a cavar. Quis ajudá-lo, mas ele recusou, sacudindo a cabeça
energicamente, e continuou a cavar um buraco circular em volta da planta: um
buraco em forma de cone, fundo nas beiradas e formando um montinho no
centro do círculo. Quando ele parou de cavar, ajoelhou-se junto da haste e com
os dedos limpou a terra macia em volta dela, descobrindo uns dez centímetros de
uma raiz grande, tuberosa e em forquilha, cuja espessura formava um contraste
marcante com a espessura da haste, que era frágil, em comparação.
Dom Juan olhou para mim e disse que a planta era masculina, porque a raiz se
bifurcava no ponto exato onde encontrava a haste. Depois, levantou-se e se
afastou, procurando algema coisa.
─ O que está procurando, Dom Juan?
─ Quero encontrar um pau.
Comecei a procurar, mas ele me impediu.
─ Você não! Sente-se ali. ─ Ele apontou para umas pedras, a uns seis metros
de distância. ─ Eu o encontrei.
Dali a pouco ele voltou com um galho comprido e seco. Usando-o como
enxada, ele soltou com cuidado a terra ao longo dos dois ramos da raiz. Limpou-
os até uma profundidade de mais ou menos 60 centímetros. Então, a terra ficou
tão compacta que era impossível penetrar mais fundo com o pau.
Parou e sentou-se para respirar. Sentei-me ao lado dele. Ficamos calados por
algum tempo.
─ Por que não cava com a pá? ─ perguntei.
─ Podia cortar e machucar a planta. Eu tinha de arranjar um pau que
pertencesse a essa região para que, se batesse na raiz, o dano não fosse tão sério
quanto o que fosse causado por uma pá ou outro objeto estranho.
-Que tipo de pau pegou?
-Qualquer galho seco da árvore paloverde serviria. Se não houver galhos
secos, você tem de cortar um.
─ Pode-se usar os galhos de outras árvores?
─ Já lhe disse, só o paloverde, nenhuma outra.
─ Por que isso, Dom Juan?
─ Porque a erva-do-diabo tem muito poucos amigos, e o paloverde nessa
região é a única árvore que se dá com ela. . . a única coisa que se agarra a ela (lo
único que prende). Se você danificar a raiz com uma pá, ela não vai crescer para
você quando a replantar, mas se você a danificar com um pau desses, o provável
é que a planta nem o sentirá.
─ O que você vai fazer com a raiz agora?
─ Vou cortá-la. Você tem de ir embora daqui. Vá procurar outra planta e
espere até que o chame.
─ Não quer que eu o ajude?
─ Só pode ajudar-me se eu lhe pedir!
Afastei-me e comecei a procurar outra planta, para combater o forte desejo
de me virar e espiá-lo. Depois de algum tempo ele se juntou a mim.
─ Agora, deixe eu procurar a fêmea ─ disse ele.
─ Como é que se distingue os dois?
─ A fêmea é mais alta e cresce acima do solo, de modo que parece uma
arvorezinha. O macho é grande e se espalha perto do solo, parecendo mais um
arbusto cerrado. Depois de cavarmos a fêmea, você verá que ela tem uma única
raiz que se estende por um pedação, até se ramificar. O macho, por outro lado,
tem uma raiz ramificada junto da haste.
Olhamos juntos pelo campo de Daturas. Depois, apontando para uma planta,
ele disse:
─ Aquela é uma fêmea. ─ E passou a cavá-la, como tinha feito com a outra
planta.
Assim que ele limpou a raiz eu pude ver que esta correspondia a sua previsão.
Tornei a deixa-lo quando ele ia cortar a raiz.
Quando chegamos em casa ele abriu o embrulho em que tinha colocado as
plantas de Datura. Primeiro, pegou a maior, a masculina, e lavou-a numa grande
bandeja de metal. Com muito cuidado, esfregou toda a terra da raiz, haste e
folhas. Depois dessa limpeza meticulosa, separou a haste da raiz, fazendo uma
incisão superficial em volta de sua junção com uma faquinha serrilhada e
partindo as duas. Pegou a haste e separou dela todas as partes, fazendo montinhos
individuais das folhas, flores e sementes espinhosas. Jogou fora tudo 0 que estava
seco ou que tinha sido estragado pelos bichos, guardando somente as partes
intatas. Amarrou os dois ramos da raiz com pedaços de barbante, partiu-os em
dois depois de fazer um corte superficial na junção, e conseguiu dois pedaços de
raiz de tamanhos iguais.
Depois, pegou um pano grosseiro e colocou nele primeiro os dois pedaços de
raiz atados juntos; por cima disso colocou as folhas, num apanhado arrumado, e
em seguida as flores, as sementes e a haste. Dobrou o pano e deu um nó nos
cantos.
Repetiu exatamente o mesmo processo com a outra planta, a feminina, só que
quando chegou à raiz, em vez de corta-la, deixou a forquilha intata, como a letra
Y invertida. Depois, colocou todas as partes em outro embrulho de pano. Quando
acabou, já estava quase escuro.
Quarta-feira, 6 de setembro de 1961
Hoje, no fim da tarde, voltamos a falar sobre a erva-do-diabo.
─ Acho que devemos recomeçar a tratar daquela erva ─ disse Dom Juan de
repente.
Depois de um silêncio cortês, perguntei: ─ O que vai fazer com as plantas?
─ As plantas que eu cavei e cortei são minhas ─ disse ele. ─ É como se fosse
eu mesmo; com elas, vou ensinar-lhe o meio de domesticar a erva-do-diabo.
─ Como vai fazer isso?
─ A erva-do-diabo é dividida em porções (partes) . Cada uma dessas porções
é diferente; cada qual tem sua finalidade e serviços especiais.
Ele abriu a mão esquerda e mediu no chão uma distância desde a ponta do
polegar até à ponta de seu quarto dedo.
─ Esta é a minha porção. Você vai medir a sua com sua própria mão. Agora,
para ter domínio sobre a erva-do-diabo, tem de começar tomando a primeira
porção da raiz. Mas como eu o levei até ela, você tem de tomar a primeira
porção da raiz de minha planta. Medi-a para você, de modo que, na verdade, é a
minha porção que você deve tomar a princípio.
Ele entrou na casa e pegou um dos embrulhos de pano. Sentou-se e abriu-o.
Notei que era a planta masculina. Reparei ainda que só havia um pedaço de raiz.
Ele pegou o pedaço que restava dos dois e segurou-o diante de meu rosto.
─ Esta é a sua primeira porção ─ disse ele. ─ Eu a dou a você. Eu mesmo a
cortei para você. Medi-a com minha mão, agora eu a dou a você.
Por um momento, passou-me pela cabeça a idéia de que eu teria de mastigá-
la como uma cenoura, mas ele a colocou num saquinho de algodão branco.
Em seguida, foi até os fundos da casa. Ficou ali sentado no chão, de pernas
cruzadas, e com um mano redondo começou a amassar a raiz dentro do saco.
Trabalhava sobre uma pedra chata que servia de almofariz. De vez em quando
ele lavava as duas pedras com água de uma baciazinha chata, de madeira.
Enquanto amassava, entoava um cântico ininteligível, muito baixinho e
monótono. Depois de ter reduzido a raiz dentro do saco a uma polpa macia,
colocou-a na bacia de madeira. Tornou a pôr o pilão e o almofariz de pedra na
bacia, encheu-a de água e depois levou-a a uma espécie de cocho de porcos
triangular, encostado à cerca dos fundos.
Disse que a raiz tinha de ficar de molho a noite toda e permanecer do lado de
fora da casa para apanhar sereno.
─ Se amanhã for um dia quente, de sol, será um excelente augúrio ─ disse
ele.
Domingo, 10 de setembro de 1961
A quinta-feira, dia 7 de setembro, foi um dia muito límpido e quente. Dom
Juan pareceu estar muito satisfeito com o bom presságio e repetiu várias vezes
que a erva-do-diabo provavelmente tinha gostado de mim. A raiz tinha ficado de
molho a noite toda e, por volta das dez da manhã, fomos até os fundos da casa.
Ele pegou a bacia do cocho, colocou-a no chão e sentou-se ao lado dela. Pegou o
saco e esfregou-o no fundo da bacia. Segurou-o a alguns centímetros acima da
água e espremeu o conteúdo, depois deixou o saco cair na água de novo. Repetiu
isso mais três vezes, depois largou o saco, jogando-o no cocho, e deixou a bacia
ao sol quente.
Duas horas depois nós voltamos lá. Ele trouxe consigo uma chaleira média
com água fervendo, amarelada. Inclinou a bacia com muito cuidado e despejou
a água de cima, conservando o depósito grosso que se acumulara no fundo.
Despejou a água fervendo no depósito e tornou a deixar a bacia ao sol.
Essa sequência foi repetida mais três vezes, a intervalos de mais de uma hora.
Por fim, ele despejou a maior parte da água da bacia, inclinou-a para apanhar o
sol do fim da tarde e largou-a.
Quando voltamos, horas depois, já estava escuro. No fundo da bacia havia
uma camada de uma substância pegajosa. Parecia amido mal cozido,
esbranquiçado ou cinza-claro.
Havia talvez uma colher de chá daquilo. Levou a -bacia para dentro da casa e,
enquanto punha água para ferver, eu tirei pedaços de sujeira que o vento tinha
soprado para o depósito. Ele riu de mim.
─ Esse pingo de sujeira não vai fazer mal a ninguém.
Depois que a água ferveu, ele despejou mais ou menos uma xícara na bacia.
Era a mesma água amarelada que ele já usara antes. Aquilo dissolveu o depósito,
formando uma espécie de substância leitosa.
─ Que tipo de água é essa, Dom Juan?
─ Água de frutas e flores da garganta.
Ele despejou o conteúdo da bacia numa velha caneca de barro que parecia
um jarro de flores. Ainda estava muito quente, de modo que ele soprou para
esfriá-la. Tomou um gole e entregou-me a caneca.
─ Beba agora! ─ disse ele.
Peguei-a automaticamente e, sem refletir, bebi a água toda. Tinha um gosto
meio amargo, embora esse amargo quase não se percebesse. O que era
marcante era o odor pungente da água. Tinha cheiro de barata.
Quase imediatamente comecei a transpirar. Fiquei com muito calor e o
sangue me afluiu aos ouvidos. Vi um ponto vermelho em frente dos olhos e os
músculos de meu estômago começaram a contrair-se em cãibras dolorosas.
Depois, embora eu não sentisse mais dores, comecei a ficar frio e ensopado de
suor.
Dom Juan perguntou-me se eu estava vendo tudo escuro, ou se tinha pontos
pretos em frente dos olhos. Disse-lhe que estava vendo tudo vermelho.
Meus dentes batiam por causa de um nervoso incontrolável que me inundava,
em ondas, como que se irradiando do meio de meu peito.
Depois, perguntou-me se eu estava com medo. Suas perguntas me pareceram
sem sentido. Respondi que obviamente eu estava com medo, mas ele tornou a
me perguntar se eu estava com medo dela. Não entendi o que ele dizia e respondi
que sim. Ele riu e disse que eu não estava realmente com medo. Perguntou se eu
continuava a ver vermelho. Tudo o que eu via era um imenso ponto vermelho
diante dos olhos. Depois de algum tempo, senti-me melhor. Aos poucos os
espasmos nervosos desapareceram, deixando apenas um cansaço dolorido e
agradável e um forte desejo de dormir. Não conseguia manter os olhos abertos,
embora continuasse a ouvir a voz de Dom Juan. Adormeci. Mas a sensação de
estar imerso num vermelho profundo continuou a noite toda. Até sonhei em
vermelho.
Acordei no domingo, por volta das três da tarde. Tinha dormido quase dois
dias. Estava com uma ligeira dor de cabeça e meu estômago estava embrulhado
e sentia dores muito agudas e intermitentes nos intestinos. A não ser isso, tudo foi
como num despertar comum. Vi que Dom Juan estava sentado defronte de sua
casa, cochilando. Ele me sorriu.
─ Tudo foi bem, na outra noite ─ disse ele. -Você viu vermelho e isso é o
importante.
─ O que aconteceria se eu não visse vermelho?
─ Teria visto preto, e isso seria mau sinal.
─ Por quê?
─ Quando uma pessoa vê preto, isso significa que ela não foi feita para a
erva-do-diabo e ela vomita a alma, tudo verde e preto.
─ E morreria?
─ Não creio que alguém morresse, mas ficaria doente por muito tempo.
vO que acontece com aqueles que vêem vermelho?
─ Não vomitam, e a raiz lhes proporciona um efeito de prazer, o que significa
que eles são fortes e de natureza violenta... coisa de que a erva gosta. L assim que
ela atrai. A única desvantagem é que os homens acabam escravos da erva-do-
diabo, em retribuição ao poder que ela lhes dá. Mas isso são coisas sobre as quais
não temos controle. O homem só vive para aprender. E se aprende é porque é
essa a natureza de seu destino, para melhor ou para pior.
─ O que faço agora, Dom Juan?
─ Agora você tem de plantar um broto que eu cortei da outra metade da
primeira porção de raiz. Tomou a metade na outra noite, e agora a outra metade
tem de ser posta na terra. Tem de crescer e germinar antes que você possa
empreender o verdadeiro trabalho de domesticar a planta.
─ Como vou domesticá-la?
─ A erva-do-diabo é domesticada por meio da raiz. Passo a passo, você deve
aprender os segredos de cada porção da raiz. Deve absorvê-los a fim de
aprender os. segredos e conquistar o poder.
─ As porções diferentes são preparadas da mesma maneira que você
preparou a primeira?
─ Não, cada porção é diferente.
vQuais os efeitos específicos de cada porção?
─ Já disse, cada qual ensina um tipo diferente de poder. O que você tomou a
outra noite ainda não é nada. Qualquer pessoa pode fazer isso. Mas só o brujo
pode tomar as porções profundas. Não lhe posso dizer o que provocam porque
ainda não sei se ela o receberá. Temos de esperar.
─ Então quando me dirá?
─ Quando a sua planta tiver crescido e germinado.
─ Se a primeira porção pode ser tomada por qualquer para que é usada?
─ De forma diluída, é boa para tudo o que se refere à virilidade, gente velha
que perdeu o vigor, ou rapazes em busca de aventuras, ou mesmo mulheres que
desejam a paixão.
─ Você disse que a raiz só é usada para o poder, mas arejo que é também
usada para outros uns, além do poder. Estou cesto?
Ficou-me olhando muito tempo, com um olhar firme que me encabulou. Senti
que minha pergunta o irritara, mas não podia entender por quê.
─ Essa erva só é usada para o poder ─ disse ele por fim, num tom seco e
severo. ─ O homem que quer de volta asa vigor, os jovens que procuram
suportar a fadiga e a fome, o homem que quer matar outro homem, uma mulher
que quer ser fogosa... todos desejam o poder. E a erva lhes dará o poder! Acha
que gosta dela? -perguntou, depois de uma pausa.
─ Sinto um estranho vigor ─ disse eu, e era verdade. Eu o tinha observado ao
acordar e sentia-o naquele momento. Era uma sensação muito especial de
desconforto ou de frustração; todo meu corpo se movia e estendia com uma
leveza e força desusadas. Meus braços e pernas comichavam. Meus ombros
pareciam estar inchados; os músculos de minhas costas e de meu pescoço me
davam vontade de me encostar ou me esfregar contra as árvores. Parecia-me
que eu poderia demolir um muro, se me atirasse de encontro a ele.
Não falamos mais nada. Ficamos sentados na varanda, Por algum tempo.
Reparei que Dom Juan estava adormecendo; de bateu a cabeça algumas vezes e
depois simplesmente esticou as pernas, deitou-se no chão com as mãos por trás
da cabeça e dormiu. Levantei-me e fui para o quintal, onde consumi minha
energia física exagerada limpando o terreno; lembrei- me de que ele tinha dito
que gostaria que eu ajudasse a Um a limpeza nos fundos da casa.
Mais tarde, quando ele acordou e foi lá para os fundos, eu já catava mais
descansado.
Sentamo-nos para comer e, durante a refeição perguntou-me três vezes como
me sentia. Como isso era raro, anal eu falei:
─ Por que está preocupado com o que estou sentindo, Dom Juan? Espera que
eu tenha uma má reação por ter bebido o suco?
Ele riu. Pareceu-me que estava agindo como um menino levado que fez uma
travessura e está verificando os resultados de vez em quando. Ainda rindo, ele
disse:
─ Você não me parece doente. Ainda há pouco você até falou grosso comigo.
─ Não falei, não, Dom Juan ─ protestei. -Não me lembro de ter jamais falado
assim com você. ─ Eu fazia muita questão disso, pois não me lembrava de ter
alguma vez ficado zangado com ele.
─ Você a defendeu ─ disse ele.
─ Defendi quem?
─ Você estava defendendo a erva-do-diabo. Já parecia um amante.
Eu ia protestar ainda com maior vigor, mas me contive.
─ Não percebi que a estava defendendo.
─ Claro que não. Nem se lembra do que disse, não é?
─ Não me lembro, não. Tenho de confessá-lo.
─ Está vendo? A erva-do-diabo é assim. Ela se insinua em você como uma
mulher.
Você nem toma conhecimento. Só o que lhe interessa é que ela o faz sentir-se
bem e poderoso: os músculos intumescidos de força, os punhos comichando, as
solas dos pés ardendo para derrubar alguém. Quando o homem a conhece, ele
fica mesmo cheio de desejos. Meu benfeitor costumava dizer que a erva-do-
diabo conserva os homens que querem o poder e livra-se dos que não o sabem
usar. Mas naquele tempo o poder era mais comum; era procurado mais
avidamente. Meu benfeitor era um homem poderoso e, segundo o que ele me
disse, o benfeitor dele, por sua vez, era ainda mais dado à busca do poder. Mas
naqueles tempos havia bons motivos para se ser poderoso.
─ Você acha que hoje não há mais motivo para o poder?
─ O poder é bom para você agora. É jovem. Não é índio. Talvez a erva-do-
diabo fosse boa em suas mãos. Parece que você gostou dela. Ela o fez sentir-se
forte. Eu também já senti tudo isso. E, no entanto, não gostei.
─ Pode dizer-me por quê, Dom Juan?
─ Não gosto do poder dela! Não há mais utilidade para ele. Antigamente,
como nos dias de que falava meu benfeitor, teia motivos para se buscar o poder.
Os homens realizavam maravilhas fenomenais e eram admirados por sua força
e temidos e respeitados por sua sabedoria. Meu benfeitor me contou histórias de
feitos verdadeiramente fenomenais que eram realizados há muito, muito tempo.
Mas agora, nós, os índios, não mais esse poder. Hoje, os índios usam a erva para
se esfregarem. Usam as folhas e flores para outros fins; dizem até que curam
seus furúnculos. Mas não buscam seu poder, um poder que age como um ímã,
mais poderoso e mais perigo de se usar à medida que a raiz se aprofunda na
terra. Quando se chega a uma profundidade de quatro metros ─ e dizem que já
chegaram -encontra-se o centro do poder permanente, poder sem fim. Poucos
seres humanos já conseguiram isso no passado, e ninguém nos dias de hoje.
Estou-lhe dizendo, o poder da erva-do-diabo não nos é mais necessário, a nós
índios. Pouco a pouco, acho que perdemos o interesse e agora o poder não
importa mais. Eu próprio não o procuro e, no entanto, quando era da sua idade,
também o senti inchando dentro de mim. Senti-me como você hoje, só que 500
vezes mais fortemente. Matei um homem com um só golpe de meu braço. Eu
lançava pedras, pedras imensas que nem vinte homens conseguiam mover. Uma
vez, saltei tão alto que citei as folhas das árvores mais altas. Mas tudo em vão! A
única coisa que fiz foi assustar os índios... só os índios. Os outros, que não sabiam
nada daquilo, não acreditavam. Ou viam um índio doido, ou alguma coisa se
mexendo em cima das árvores.
Ficamos calados por muito tempo. Eu tinha de dizer alguma coisa.
─ Era diferente quando havia no mundo pessoas continuou ele ─ pessoas que
sabiam que um homem podia formar-se numa onça ou num passarinho ou que o
homem podia voar.
Por isso não uso mais a erva-do-diabo. Para quê? Para assustar os índios?
(Para que? Para assustar a lo indios?).
E eu vi que ele estava triste e senti uma profunda empatia. Queria dizer-lhe
alguma coisa, mesmo que fosse uma banalidade.
-Talvez, Dom Juan, seja essa a sorte de todos os homens que desejam saber.
─ Talvez ─ disse ele, muito quieto.
Quinta-feira, 23 de novembro de 1961
Não vi Dom Juan sentado em sua varanda, quando cheguei. Achei aquilo
estranho.
Chamei-o em voz alta e a nora dele saiu da casa.
─ Ele está lá dentro ─ disse ela.
Descobri que ele tinha torcido o tornozelo havia várias semanas. Tinha feito
seu próprio aparelho molhando tiras de pano numa papa feita de cacto e farinha
de ossos. As tiras, amarradas apertadas em volta do tornozelo, secaram,
formando um aparelho leve e aerodinâmico. Tinha a dureza do gesso mas não
seu volume.
─ Como foi que aconteceu? ─ perguntei.
A nora de Dom Juan, mexicana de Iucatã, que estava cuidando dele,
respondeu-me.
─ Foi um acidente! Ele caiu e quase quebrou o pé! Dom Juan riu e esperou
até a mulher sair da casa antes de responder.
─ -Acidente, o quê! Tenho um inimigo aqui perto. Uma mulher. "La Catalina!"
Ela me empurrou num momento de fraqueza e eu caí.
─ Por que essa mulher fez isso?
─ Queria matar-me, só isso.
─ Ela estava aqui com você?
─ Estava! -Por que a deixou entrar?
─ Não deixei. Ela entrou voando.
─ Perdão?
─ Ela é um melro (chanate). E muito eficiente, até. Fui apanhado de surpresa.
Há muito tempo que ela tenta liquidar-me. Dessa vez, quase conseguiu.
─ Você disse que ela é um melro? Quero dizer, um pássaro?
─ Lá vem você de novo com suas perguntas. Ela é um melro! Assim como eu
sou um corvo. Sou um homem ou um pássaro? Sou um homem que sabe tornar-
se pássaro. Mas voltando a "la Catalina", ela é uma bruxa endiabrada! Seu desejo
de me matar é tão forte que mal posso combatê-la. O melro entrou pela minha
casa adentro e eu não consegui impedi-lo.
─ Você pode transformar-se em pássaro, Dom Juan?
─ Posso! Mas isso é coisa de que vamos tratar depois.
─ Por que ela quer matá-lo?
─ Ah, é um velho problema entre nós. Descontrolou-se e agora parece que eu
terei de liquidá-la antes que ela me liquide.
─ Você vai usar feitiçaria? -perguntei, com muitas esperanças.
─ Não seja tolo. Nenhum feitiço teria efeito sobre ela. Tenho outros planos!
Um dia lhe contarei a respeito.
─ O seu aliado pode protegê-lo contra ela?
─ Não! O fuminho só me diz o que devo fazer. Então, devo me proteger
sozinho.
─ E Mescalito? Ele não o pode proteger dela?
─ Não! Mescalito é um mestre, não um poder a ser por motivos pessoais.
─ E a erva-do-diabo?
─ Já disse que preciso proteger-me, eu mesmo, seguindo as instruções de meu
aliado, o fumo. E, ao que eu saiba, o fumo consegue fazer qualquer negócio. Se
você quiser saber a respeito de qualquer coisa, o fumo lhe dirá. E ele lhe dará
mente o conhecimento, como também os meios de agir. É o aliado mais
maravilhoso que o homem pode ter.
─ O fumo é o melhor aliado para todos?
─ Não é o mesmo para todos. Há muitos que o temem e nem chegam perto
dele. O fumo é como tudo o mais: não foi feito para todos nós.
─ Que tipo de fumo é, Dom Juan?
─ O fumo dos adivinhos! Em sua voz havia um marcado tom de veneração,
coisa que eu nunca tinha notado antes.
─ Vou começar contando-lhe exatamente o que meu benfeitor me disse
quando começou a me ensinar a respeito. Muito embora naquela época, como
você agora, eu não poderia ter compreendido. "A erva-do-diabo é para aqueles
que querem o poder. O fumo é para aqueles que desejam contemplar e ver." E,
em minha opinião, o fumo não tem igual. Uma vez um homem entre em seus
domínios, todos os outros poderes estão a seu comando. E magnífico!
Naturalmente, leva tida. Leva anos só para a pessoa se familiarizar com suas
partes vitais: o cachimbo e a mistura do fumo. O Ido me foi dado por meu
benfeitor e, depois de tantos anos de mexer com ele, tornou-se meu. Cresceu em
minhas mãos. Passá-lo a suas mãos, por exemplo, será uma tarefa de verdade
para mim, e um grande feito para você. . . se conseguirmos! O cachimbo sentirá
a tensão de ser manuseado por outra pessoa; e se algum de nós cometer um erro,
não haverá meio de impedir que o cachimbo estoure por sua própria força, ou
que caia de nossas mãos para se espatifar, mesmo que caia num monte de palha.
Se isso acontecer, seria o nosso fim. Especialmente de mim. O fumo se voltaria
contra mim de maneiras incríveis.
─ Como poderia voltar-se contra você se é seu aliado?
Minha pergunta pareceu desviar seus pensamentos. Ele ficou calado um
tempão.
─ A dificuldade dos ingredientes -continuou ele, de repente -torna a mistura
uma das substâncias mais perigosas que conheço. Ninguém pode prepará-la sem
ser ensinado. p um veneno mortal para todos a não ser o protegido do fumo! O
cachimbo e a mistura devem ser tratados com um cuidado íntimo. E o homem
que quiser aprender deve preparar-se levando uma vida sossegada e dura. Seus
efeitos são tão tremendos que só os homens mais fortes podem suportar a mais
leve fumarada. Tudo é aterrador e confuso a princípio, mas cada nova baforada
torna as coisas mais precisas. E de repente o mundo se abre de novo!
Inimaginável! Quando isso acontece, o fumo torna-se nosso aliado e resolve
qualquer problema permitindo- nos a entrada em mundos inconcebíveis. p esta a
maior propriedade do fumo, seu maior dom. E realiza sua função sem prejudicar
em nada. Considero o fumo um verdadeiro aliado!
Como sempre, estávamos sentados em frente da casa dele, onde o chão de
terra é sempre limpo e batido; de repente, levantou-se e entrou em casa. Depois
de alguns momentos, voltou com um embrulhinho e tornou a sentar-se.
─ Este é o meu cachimbo ─ disse ele.
Inclinou-se para mim e mostrou-me um cachimbo que tirou de uma capa de
lona verde. Devia ter seus 25 centímetros de comprimento. A haste era de
madeira avermelhada; era simples, sem nenhum enfeite. O fornilho também
parecia ser feito de madeira, mas era meio volumoso, comparado com a haste
fina. Tinha um acabamento liso e era cinza-escuro, quase cor de carvão.
Ele segurou o cachimbo em frente de meu rosto. Pensei que o estivesse
entregando a mim. Estendi a mão para pegá-lo, mas ele o puxou depressa.
─ Este cachimbo me foi dado pelo meu benfeitor – disse ele. -Eu, por minha
vez, o passarei a você. Mas primeiro tem de vir a conhecê-lo. Cada vez que vier
aqui, eu o darei a você. Comece por tocá-lo. A princípio, segure-o só um
pouquinho, até que você e o cachimbo se acostumem um a outro. Depois, ponha-
o no bolso, ou talvez dentro da E por fim ponha-o na boca. Tudo isso deve ser
feito aos pouquinhos e de modo vagaroso e cuidadoso. Depois de estabelecida a
ligação (la amistad esto hecha), você fumará nele. Se seguir meu conselho e não
se precipitar, o fumo também poderá vir a ser seu aliado preferido.
─ Entregou-me o cachimbo, mas sem o largar. Estendi meu braço direito para
tocá-lo.
─ Com ambas as mãos ─ disse ele.
─ Toquei o cachimbo com as duas mãos por um instante. Não me estendeu
totalmente o objeto, de modo que eu o pudesse agarrar, mas só o suficiente para
eu poder tocá-lo. Depois, puxou-o de volta.
─ O primeiro passo é gostar do cachimbo. Isso leva tempo!
─ O cachimbo pode não gostar de mim?
─ Não. O cachimbo não pode ter aversão por você, mas tem de aprender a
gostar dele a fim de que, quando chegar o momento de fumar, o cachimbo ajude
você a não ter medo.
─ O que você fuma, Dom Juan?
─ Isto!
Ele abriu o colarinho e mostrou um saquinho que usava por baixo da camisa,
dependurado do pescoço como um medalhão. Tirou-o, desamarrou a ponta e,
com muito cuidado, um pouco do conteúdo na palma da mão.
Pelo que pude ver, a mistura parecia folhas de chá cortadas bem fino,
variando em cor do marrom-escuro ao verde-claro, com uns pontinhos de
amarelo-vivo.
Pôs a mistura de volta no saquinho, fechou-o, amarrou-o cordão de couro e
tornou a pô-lo por baixo da camisa.
─ Que tipo de mistura é essa?
-Há muitas coisas nela. Conseguir todos os ingredientes é uma tarefa muito
difícil. É preciso viajar longe. Os cogumelozinhos (los honguitos) necessários
para preparar a mistura em certas épocas do ano e em determinados lugares.
─ Você usa uma mistura diferente para cada tipo de auxílio de que precisa?
─ Não! Só há um fumo, e não há nenhum outro como ele.
Apontou para o saquinho em seu peito e levantou o cachimbo que estava entre
suas pernas.
─ Estes dois são um só! Um não pode passar sem o outro. Este cachimbo e o
segredo dessa mistura pertenciam a meu benfeitor. Foram passados a ele da
mesma maneira que o meu benfeitor os deu a mim. A mistura, embora difícil de
preparar, é possível de ser reposta.
Seu segredo reside em seus ingredientes e na maneira de eles serem tratados
e misturados. O cachimbo, por sua vez, é coisa de toda uma vida. Deve ser
tratado com o máximo cuidado. É resistente e forte, mas nunca se deve bater
nem esbarrar nele. Deve ser manuseado com mãos secas, nunca quando as
mãos estão suadas, e só deve ser usado quando se está só. E ninguém, ninguém
absolutamente, deve vê-lo, a não ser que você pretenda dá-lo a alguém. Foi isso o
que o meu benfeitor me ensinou, e foi assim que cuidei de meu cachimbo a vida
toda.
─ O que aconteceria se você perdesse ou quebrasse o cachimbo?
Ele sacudiu a cabeça, muito devagar, e olhou-me.
─ Eu morreria! -Todos os cachimbos dos feiticeiros são como o seu?
─ Nem todos têm cachimbos como o meu. Mas conheço alguns homens que
têm.
─ Sabe fazer um cachimbo como este, Dom Juan? insisti. ─ Digamos que
você não possuísse um, como é que poderia dar-me um se quisesse fazê-lo?
─ Seu eu não tivesse o cachimbo, não poderia nem haveria de querer dar um
cachimbo. Dar-lhe-ia outra coisa.
Pareceu estar meio zangado comigo. Guardou o cachimbo com muito
cuidado na capa, que devia ser forrada com um material macio, pois o
cachimbo, que cabia ali apertado, entrou facilmente. Dom Juan retornou à casa
para guardar o cachimbo.
─ Está zangado comigo, Dom Juan? ─ perguntei, quando ele voltou. Pareceu
ficar espantado com a minha pergunta.
─ Não! Nunca me zango! Nenhum ser humano pode fazer alguma coisa tão
importante que mereça isso. A gente se zanga, com as pessoas quando acha que
seus atos são importantes. Não sinto mais isso.
26 de dezembro de 1961
A ocasião específica para replantar o "broto", como Dom Juan chamava a
raiz, não estava marcada, embora devesse seguinte na domesticação do poder da
planta.
Cheguei à casa de Dom Juan no sábado, 23 de dezembro, da tarde. Ficamos
calados por algum tempo, Arte. O dia estava quente e nublado. Havia meses me
tinha dado a primeira porção. Está na hora de devolver a erva à terra -disse ele
de repente, -Mas primeiro vou arrumar uma proteção para você. Guarda-la-à e
a vigiará, e só deve ser vista por seus olhos. Como vou arrumá-la, eu também
vou vê-la. Isso não é com, pois, como já lhe disse, não gosto da erva-do-diabo.
Não somos um só. Mas minha memória não vai durar muito; sou velho demais.
Porém, você tem de resguardá-la dos olhos dos outros, pois, enquanto durar a
recordação de eles a terem o poder da proteção estará prejudicado.
Foi ao quarto dele e puxou três embrulhos de pano de debaixo uma velha
esteira. Depois, voltou à varanda e sentou-se.
Depois de um longo silêncio, abriu um dos embrulhos. Era Datara fêmea que
ele apanhara comigo; todas as folhas, e sementes que arrumara estavam secas.
Pegou o comprido pedaço de raiz em forma de Y e tornou a amarrar o
embrulho.
A raiz tinha secado e murchado e os galhos da forquilha mais separados e
contorcidos. Colocou a raiz no colo, abriu sua bolsa de couro e puxou de sua faca.
Segurou a raiz seca diante de mim.
─ Esta parte é para a cabeça ─ disse ele, e fez a primeira incisão na cauda do
Y, que, em posição invertida, asse-se à forma de um homem de pernas abertas. -
Esta o coração continuou, e cortou perto da junção do Y. Depois, cortou as pontas
da raiz, deixando uns sete centímetros de madeira em cada ramo do Y. Então,
devagar e paciência, esculpiu a forma de um homem.
A raiz era seca e fibrosa. A fim de esculpi-la, Dom Juan fez duas incisões e
descascou as fibras entre elas até à profundidade dos cortes. Mas quando chegou
aos detalhes, ele cinzelou a madeira, como ao fazer os braços e as mãos. O
resultado final foi uma figurinha vigorosa de um homem, de braços cruzados no
peito e as mãos entrelaçadas.
Dom Juan levantou-se e foi até junto de uma agave azul que crescia em
frente da casa, junto da varanda. Pegou o espinho duro de uma das folhas do
centro, polpudas, dobrou-o e girou-o três ou quatro vezes. O movimento circular
quase o destacou da folha; ele ficou pendurado. Dom Juan mordeu-o, ou melhor,
prendeu-o entre os dentes e puxou-o. O espinho saiu da polpa, levando consigo
um punhado de fibras compridas, como fios, presas à parte lenhosa como uma
cauda branca, de uns 60 centímetros de comprimento. Ainda com o espinho
preso nos dentes, ele torceu as fibras entre as palmas das mãos e fez um cordão,
que embrulhou nas pernas da figurinha, para juntá-las. Em seguida, envolveu a
parte inferior do corpo, até usar todo o cordão; com muita habilidade, trabalhou o
espinho como um furador por dentro da parte dianteira do corpo, por baixo dos
braços cruzados, até que a ponta aguçada aparecesse como que saindo das mãos
da estatueta. Tornou a usar os dentes e, puxando de leve, fez o espinho sair quase
todo. Parecia uma comprida lança saindo do peito da estatueta. Sem olhar mais
para ela, Dom Juan colocou-a dentro de sua bolsa de couro. Parecia estar
exausto do esforço. Deitou-se no chão e adormeceu.
Estava quase escuro quando ele acordou. Comemos os mantimentos que eu
lhe trouxera e ficamos sentados na varanda mais um bocado. Depois, Dom Juan
foi para os fundos da casa, levando os três embrulhos de pano. Cortou galhos e
ramos secos e fez uma fogueira. Ficamos sentados diante dela, à vontade, e ele
abriu os três embrulhos. Além do que continha as partes secas da planta fêmea,
havia outro com o que sobrara da planta masculina, e um terceiro, volumoso,
contendo pedaços verdes, recém-cortados, de Datura.
Dom Juan foi até ao cocho dos porcos e voltou com um almofariz de pedra,
muito fundo, que mais parecia uma panela com o fundo arredondado. Fez um
buraco raso e colocou o almofariz firmemente no chão. Colocou mais galhos
secos na fogueira e depois pegou os dois embrulhos com os pedaços secos de
plantas masculina e feminina e esvaziou-os todos de uma vez no almofariz.
Sacudiu o pano para verificar se todos os pedaços tinham caído no almofariz. Do
terceiro embrulho, pegou dois pedaços frescos de raiz de Datura.
-Vou prepará-los só para você -disse ele.
-Que tipo de preparação é essa, Dom Juan?
-Um desses pedaços vem de uma planta masculina, o outro de uma planta
feminina. Esta é a única ocasião em que as duas plantas devem ser colocadas
juntas. Os pedaços vem de uma profundidade de um metro.
Amassou-os dentro do almofariz com movimentos regulares do pilão.
Enquanto o fazia, entoava em voz baixa, parecendo cantarolar monotonamente e
sem ritmo. As palavras para mim. Ele estava absorto em seu trabalho.
Depois de completamente amassadas as raízes, ele pegou Olhas de Datura do
embrulho. Estavam limpas e tinham sido apanhadas havia pouco e todas estavam
isentas de bichos e de cortes. Colocou-as no almofariz, uma a uma. Pegou um
punhado de flores de Datura e também as colocou no almofariz, do mesmo
modo paciente. Contei 14 de cada. Depois, pegou um punhado de sementes
frescas e verdes com todas as suas espigas e ainda fechadas. Não pude conta-las,
pois ele as jogou no almofariz todas de uma vez, mas supus que também
houvesse 14 delas. Juntou três hastes de Datura, sem as folhas. Eram vermelhas,
escuras, e limpas, e pareciam vir de plantas grandes, a julgar por suas múltiplas
ramificações.
Depois de colocadas todas essas coisas no almofariz, reduziu-as a uma polpa
com os mesmos movimentos regulares. Em dado momento, inclinou o almofariz
e com a mão raspou finta para uma panela velha. Dom Juan me estendeu a mão,
e eu pensei que ele queria que a enxugasse. Mas, em vez disso pegou minha mão
esquerda e, com um movimento muito rápido, separou o mais que pôde os dedos
do meio e o quarto. Depois, com a ponta da faca, feriu-me entre os dois dedos,
cortando a pele do quarto dedo. Agiu com tanta habilidade e rapidez que, quando
puxei a mão, estava com um corte profundo, e o sangue jorrava em profusão.
Tornou a agarrar minha mão, colocou-a sobre a panela e apertou-a para forçar a
saída de mais sangue.
Meu braço ficou dormente. Eu estava em estado de choque, estranhamente
frio e rígido, com uma sensação de opressão em meu peito e ouvidos. Senti que
estava escorregando no assento. Eu estava desmaiando! Dom Juan largou minha
mão e mexeu o conteúdo da panela. Quando voltei a mim do choque, fiquei
realmente zangado com ele. Levei algum tempo para me controlar.
Ele arrumou três pedras em volta da fogueira e colocou a panela em cima
delas. A todos os ingredientes, acrescentou uma coisa que me pareceu ser um
pedaço grande de cola de marceneiro e uma chaleira de água, deixando tudo
aquilo a ferver. As plantas de Datura, por si, já têm um cheiro muito especial.
Combinadas com a cola de marceneiro, que exalou um cheiro forte quando a
mistura começou a ferver, formavam um vapor tão intenso que tive de fazer
força para não vomitar.
A mistura ferveu muito tempo, enquanto ficávamos sentados ali imóveis,
diante dela. Às vezes, quando o vento soprava o vapor em minha direção, o fedor
me envolvia e eu prendia a respiração, procurando evitá-lo.
Dom Juan abriu a bolsa de couro e tirou a estatueta, ele a entregou a mim
com cuidado e disse-me que a colocasse dentro da panela, sem queimar os
dedos. Levei-a com cuidado para a papa fervente. Ele pegou a faca e, por um
instante, pensei que ia tornar a me cortar; em vez disso, empurrou a figurinha
com a ponta da faca e a afundou.
Ficou olhando a papa ferver por mais um momento e depois começou a
limpar o almofariz. Ajudei-o. Quando terminamos, ele colocou o almofariz e o
pilão junto da cerca. Entramos em casa e a panela ficou nas pedras a noite toda.
No dia seguinte, de madrugada, Dom Juan mandou que eu tirasse a estatueta
da cola e a dependurasse no telhado, de frente para o leste, para secar ao sol. Ao
meio-dia estava dura como arame. O calor tinha soldado a cola e o verde das
folhas se misturara a ela. A estatueta tinha um acabamento lustroso e estranho.
Dom Juan pediu-me que pegasse a estatueta. Em seguida, deu-me uma bolsa
de couro que havia feito de um velho casaco de camurça que eu lhe dera havia
tempos. A bolsa parecia com a dele, sendo a única diferença que a dele era feita
de um couro marrom macio.
─ Ponha sua "imagem" dentro da bolsa e feche-a disse ele.
Dom Juan não olhou para mim, propositadamente mantendo a cabeça virada.
Depois que guardei a estatueta dentro da bolsa, ele me deu uma sacola de linha e
disse-me que pusesse a panela de barro dentro dela.
Foi até meu carro, pegou a sacola de minhas mãos e prendeu-a ao porta-
luvas, que estava aberto.
─ Venha comigo ─ disse ele.
Acompanhei-o. Deu a volta à casa, fazendo um círculo completo, no sentido
dos ponteiros do relógio. Parou na varanda e tornou a dar volta à casa, dessa vez
em sentido contrário e voltando de novo à varanda. Ficou parado um pouco e
depois sentou-se.
Eu estava condicionado a crer que tudo o que ele fazia tinha algum
significado. Estava pensando no significado dos círculos em volta da casa, quando
ele disse:
─ Ei! Esqueci onde o coloquei.
Perguntei-lhe o que é que ele estava procurando. Respondeu que se tinha
esquecido de onde colocara o broto que eu tinha de replantar. Tornamos a andar
em volta da casa antes de ele se lembrar onde estava.
Mostrou-me um potinho de vidro num pedaço de tábua pregado à parede
debaixo do telhado. O pote continha a outra metade da primeira porção da raiz de
Datura. O broto tinha umas folhinhas crescendo em sua extremidade superior. O
pote tinha um pouquinho de água, mas não tinha terra.
─ Por que não tem terra? ─ perguntei.
─ Nem todos os solos são iguais, e a erva-do-diabo só deve conhecer o solo
em que há de viver e crescer. E agora está na hora de ela voltar à terra, antes que
os bichos a estraguem.
─ Podemos plantá-la aqui perto da casa? ─ perguntei.
─ Não! Não! Aqui não. Ela deve voltar a um lugar de seu gosto.
─ Mas onde posso encontrar um lugar de meu gosto?
─ Não sei. Pode tornar a plantá-la onde quiser. Mas ela tem de ser cultivada e
cuidada, pois tem de viver para você ter o poder que precisa. Se ela morrer, isso
quer dizer que não o quer, e você não deve perturbá-la mais. Quer dizer que você
não terá poder sobre ela. Portanto, precisa cuidar e tratar dela, para que cresça.
Mas não deve mimá-la.
─ Por que não?
─ Porque, se não for vontade dela crescer, não adianta agradá-la. Mas, por
outro lado, você tem de provar que gosta dela. Livre-a dos bichos e dê-lhe água
quando a visitar. Isso deve ser feito com regularidade, até ela germinar. Depois
de germinar a primeira semente, teremos certeza de que o deseja.
─ Mas, Dom Juan, não me é possível cuidar da raiz como você quer.
─ Se quiser o poder dela, tem de fazê-lo! Não há outro meio!
─ Não pode cuidar dela quando eu não estiver aqui, Dom Juan?
─ Não! Eu não! Não posso fazer isso! Cada um tem de nutrir seu próprio
broto. Tive o meu. Agora, você tem de ter o seu. E só depois de ele germinar,
como já lhe disse, é que você pode considerar-se pronto para aprender.
─ Onde acha que eu devo plantá-la?
─ Isso só você pode decidir! E ninguém pode saber do lugar, nem mesmo eu!
É assim que a replanta tem de ser feita. Ninguém, mas ninguém mesmo, pode
saber onde está sua planta. Se um estranho o acompanhar, ou o vir, pegue a raiz e
corra para outro lugar. Ele lhe poderia causar males incríveis, manipulando o
broto. Poderia aleijá-lo ou matá-lo. É por isso que nem eu posso saber onde está
sua planta. Leve-o agora. -E entregou-me o potinho com o broto.
Peguei-o. Então, ele quase me arrastou para meu carro.
─ Agora você tem de ir. Vá e escolha o lugar onde vai replantar ó broto. Cave
um buraco fundo, na terra fofa, junto de um lugar com água. Lembre-se, ele
tem de estar perto da água para poder crescer. Cave o buraco só com suas mãos,
mesmo que elas sangrem. Coloque o broto no centro do buraco e faça um
montinho (pilón) em volta dele. Depois, ensope-o de água. Quando esta se
infiltrar, encha a cova com terra fofa. Depois, escolha um lugar a dois passos do
broto, naquela direção (apontou para sudeste). Cave ali outro buraco fundo,
também com as mãos e jogue ali o que está na panela. Depois, quebre-a e
enterre-a em outro lugar, longe de onde está seu broto. Após enterrar a panela,
volte a seu broto e torne a regá-lo. Em seguida, pegue a sua estatueta, segure-a
entre os dedos onde está a sua ferida e, de pé no local onde você sepultou a cola,
toque de leve no broto com a agulha. Dê a volta ao broto quatro vezes, parando
cada vez no mesmo lugar para tocá-lo.
─ Tenho de seguir uma direção especial, quando der a volta ao broto?
-Qualquer direção serve. Mas tem sempre de se lembrar em que direção
você enterrou a cola, e que direção tomou ao andar em volta do broto. Toque de
leve no broto em todas as vezes menos na última; então, empurre fundo. Mas
faça-o com cuidado; ajoelhe-se para ter a mão mais firme, pois não deve
quebrar a ponta dentro do broto. Se quebrar, está liquidado. A raiz não lhe servirá
de nada.
─ Tenho de pronunciar alguma palavra, enquanto ando em volta do broto?
─ Não. Farei isso por você.
Sábado, 27 de janeiro de 1962
Assim que cheguei à casa dele hoje de manhã, Dom Juan me disse que me ia
ensinar a preparar a mistura do fumo. Fomos para os morros e entramos bem
longe em' uma das gargantas. Ele parou perto de um arbusto alto e esguio, cuja
cor formava um contraste marcante com a vegetação em volta. O chaparral ao
redor do arbusto era amarelado, mas este era de um verde-vivo.
─ Desta arvorezinha você tem de levar as folhas e as flores ─ disse ele. ─ A
época propícia para apanhá-las é o Dia de Finados (el día de las ánimas).
Pegou sua faca e cortou a extremidade de um ramo fino. Escolheu outro
ramo semelhante e também cortou a ponta. Repetiu essa operação até ter um
punhado de pontas de ramos. Depois, sentou-se no chão.
─ Olhe aqui ─ disse ele. -Cortei todos os galhos acima da forquilha formada
por duas ou mais folhas e a haste. Está vendo? São todos iguais. Só usei a ponta de
cada galho, onde as folhas são frescas e tenras. Agora, temos de procurar um
lugar de sombra.
Caminhamos até ele demonstrar haver encontrado o que procurava. Pegou
um cordão comprido do bolso e amarrou-o ao trunco e aos galhos mais baixos de
dois arbustos, fazendo uma espécie de varal, onde ele pendurou os galhos, com as
pontas para baixo. Arrumou-os pelo cordão em ordem; enganchados pela
forquilha entre as folhas e a haste, eles pareciam uma longa fileira de cavaleiros
verdes.
─ E preciso que as folhas sequem à sombra -disse Dom Juan. ─ O lugar deve
ser isolado e de difícil acesso. Assim, as folhas ficam protegidas. Devem ser
deixadas para secar num lugar onde seja quase impossível encontrá-las. Depois
de secas, devem ser postas num embrulho e lacradas.
Apanhou as folhas do cordão e atirou-as nos arbustos Próximos. Parecia que
só pretendia ensinar-me o processo.
Continuamos a caminhar e ele escolheu três flores diferentes, dizendo que
eram parte dos ingredientes e que deviam ser colhidas ao mesmo tempo. Mas as
flores tinham de ser colocadas em potes de barro separados e postas para secar
no escuro; era preciso pôr uma tampa em cada pote para as flores mofarem lá
dentro. Ele disse que a função das folhas e das flores era adocicar a mistura do
fumo.
Saímos da garganta e caminhamos para o leito do rio. Depois de uma volta
grande, voltamos para a casa dele. Tarde da noite, ficamos sentados no seu
quarto, coisa que ele raramente me permitia fazer, ocasião em que me contou a
respeito do último ingrediente; os cogumelos.
─ O verdadeiro segredo da mistura reside nos cogumelos -disse ele. ─ São o
ingrediente mais difícil de colher. A ida ao lugar onde crescem é longa e
perigosa, e escolher a qualidade certa é ainda mais arriscado. Há outros tipos de
cogumelos que crescem juntos deles, e que não valem nada; estragariam os bons
se fossem secados juntos. Leva tempo para se conhecer bem os cogumelos, e
não se errar. Sérios males podem resultar, se se usar o tipo errado ─ mal para o
homem e para o cachimbo. Conheço homens que caíram mortos por terem
usado um mau fumo. Assim que os cogumelos são colhidos, devem ser
colocados numa cabaça, de modo que não há meio de verificá-los novamente.
Entende, eles têm de ser estraçalhados para poderem passar pelo gargalo estreito
da cabaça.
─ Como se pode evitar o erro?
─ Tendo cuidado e sabendo como escolher. Já lhe disse que é difícil. Nem
todos podem domesticar o fumo; a maior parte das pessoas nem tenta.
─ Por quanto tempo você guarda os cogumelos dentro da cabaça?
─ Por um ano. Todos os outros ingredientes também são lacrados por um ano.
Então, partes iguais deles são medidas e moídas separadamente num pó muito
fino. Os cogumelozinhos não têm de ser moídos porque já por si tornam-se um
pó fininho; basta amassar os pedaços. Quatro partes de cogumelos são
acrescentadas a uma parte de todos os outros ingredientes juntos. Depois, são
todos misturados e colocados numa bolsa como a minha. ─ Apontou para o
saquinho pendurado debaixo de sua camisa. -Em seguida, todos os ingredientes
são novamente colhidos e depois de postos para secar você está pronto para
fumar a mistura que acabou de preparar. No seu caso, vai fumar no ano que
vem. E no ano posterior, a mistura será toda sua, pois você a terá colhido sozinho.
Da primeira vez que você fumar, acenderei seu cachimbo. Vai fumar toda a
mistura no fornilho e vai esperar. A fumaça virá. Você a sentirá. Ela o libertará
para ver tudo o que quiser ver. A bem dizer, é um aliado incomparável. Mas
quem o procurar tem de ter um propósito e uma vontade irrepreensíveis. Ele
precisa disso porque tem de pretender e querer sua volta, do contrário o fumo
não o deixará voltar. Em segundo lugar, ele tem de pretender e querer lembrar-
se de tudo o que o fumo lhe permitiu ver, do contrário tudo não passará de uma
neblina em sua mente.
Sábado, 8 de abril de 1962
Em nossas conversas, Dom Juan sempre usava ou se referia à expressão
"homem de conhecimento", mas nunca explicava o que queria dizer com isso.
Perguntei-lhe a respeito.
─ Um homem de conhecimento é aquele que seguiu honestamente as
dificuldades da aprendizagem ─ disse ele. Um homem que, sem se precipitar
nem hesitar, foi tão longe quanto pôde para desvendar os segredos do poder e da
sabedoria.
─ Qualquer pessoa pode ser um homem de conhecimento?
─ Não; não qualquer pessoa.
─ -Então o que é preciso fazer para se tornar um homem de conhecimento?
─ O homem tem de desafiar e vencer seus quatro inimigos naturais.
─ Ele será um homem de conhecimento depois de vencer esses quatro
inimigos?
─ Sim. Um homem pode chamar-se um homem de conhecimento somente
se for capaz de vencer os quatro.
─ Então, qualquer pessoa que conseguir vencer esses inimigos pode ser um
homem de conhecimento?
─ Qualquer pessoa que os vencer torna-se um homem de conhecimento.
─ Mas há algum requisito especial que o homem tenha de atender antes de
lutar contra esses inimigos?
─ Não. Qualquer pessoa pode tentar tornar-se um homem de conhecimento;
muito poucos homens o conseguem, realmente, mas isso é natural. Os inimigos
que um indivíduo encontra no caminho do saber para tornar-se um homem de
conhecimento são realmente formidáveis; a maioria dos homens sucumbe a eles.
─ Que tipos de inimigos são, Dom Juan?
Recusou-se a falar sobre os inimigos. Disse que se passaria muito tempo até
que o assunto fizesse sentido para mim. Procurei manter a conversa e perguntei-
lhe se ele achava que eu poderia tornar-me um homem de conhecimento.
Respondeu que ninguém poderia dizer isso ao certo. Mas eu insisti para saber se
havia algum indício que ele pudesse usar para saber se eu tinha ou não
possibilidade de me tornar um homem de conhecimento. Falou que dependia de
minha luta contra os quatro inimigos ─ se eu conseguiria derrotá-los ou ser
derrotado por eles -mas que era impossível prever o resultado dessa luta.
Perguntei-lhe se ele podia usar feitiços ou adivinhação para ver o resultado da
luta. Declarou claramente que os resultados da luta não poderiam ser previstos
por meio algum, porque tornar-se um homem de conhecimento era uma coisa
temporária. Quando pedi que ele explicasse isto, respondeu:
─ Ser um homem de conhecimento não tem permanência. Nunca se é um
homem de conhecimento, não de verdade. Ou antes, a pessoa se torna um
homem de conhecimento por um instante muito breve, depois de derrotar os
quatro inimigos naturais.
─ Você tem de me dizer, Dom Juan, que tipo de inimigos eles são.
Não respondeu. Tornei a insistir, mas ele mudou de assunto e começou a falar
sobre outra coisa.
Domingo 15 de abril de 1962
Quando eu estava me preparando para partir, tornei a lhe perguntar acerca
dos inimigos do homem de conhecimento. Argumentei que ia passar algum
tempo sem voltar, e que seria uma boa idéia escrever as coisas que ele tivesse a
dizer e pensar a respeito enquanto estivesse fora. Hesitou um pouco, mas depois
começou a falar:
─ Quando um homem começa a, aprender, ele nunca sabe muito claramente
quais seus objetivos. Seu propósito é fumo; sua intenção, vaga. Espera
recompensas que nunca se materializarão, pois não conhece nada das
dificuldades da aprendizagem. Devagar, ele começa a aprender... a princípio,
pouco a pouco, e depois em porções grandes. E logo seus pensamentos entram
em choque. O que aprende nunca é o que ele imaginava, de modo que começa a
ter medo. Aprender nunca é o que se espera. Cada passo da aprendizagem é uma
nova tarefa, e o medo que o homem sente começa a crescer impiedosamente,
sem ceder. Seu propósito torna-se um campo de batalha. "E assim ele se deparou
com o primeiro de seus inimigos naturais - o Medo! Um inimigo terrível,
traiçoeiro, e difícil de vencer. Permanece oculto em todas as voltas do caminho,
rondando, à espreita. E se o homem, apavorado com sua presença, foge, seu
inimigo terá posto um fim à sua busca.
─ O que acontece com o homem se ele fugir com medo?
─ Nada lhe acontece, a não ser que nunca aprenderá. Nunca se tornará um
homem de conhecimento. Talvez se torne um tirano, ou um pobre homem
apavorado e inofensivo; de qualquer forma, será um homem vencido. Seu
primeiro inimigo terá posto um fim a seus desejos.
─ E o que pode ele fazer para vencer o medo?
─ A resposta é muito simples. Não deve fugir. Deve desafiar o medo, e, a
despeito dele, deve dar o passo seguinte na aprendizagem, e o seguinte, e o
seguinte. Deve ter medo, mente, e no entanto não deve parar. É esta a regra! E o
momento chegará em que seu primeiro inimigo recua. O homem começa a se
sentir seguro de si. Seu propósito torna-se mais forte. Aprender não é mais uma
tarefa aterradora. Quando cesse momento feliz, o homem pode dizer sem hesitar
que derrotou seu primeiro inimigo natural.
─ Isso acontece de uma vez, Dom Juan, ou aos poucos?
─ Acontece aos poucos e no entanto o medo é vencido da repente e depressa.
─ Mas o homem não terá medo outra vez, se lhe acontecer alguma coisa
nova?
─ Não. Uma vez que o homem venceu o medo, fica livre dele o resto da vida,
porque, em vez do medo, ele adquiriu a clareza de espírito que apaga o medo.
Então, o homem já conhece seus desejos; sabe como satisfazê-los. Pode
antecipar os novos passos na aprendizagem e uma clareza viva cerca tudo. O
homem sente que nada se lhe oculta. E assim ele encontra seu segundo inimigo: a
Clareza! Essa clareza de espírito, que é tão difícil de obter, elimina o medo, mas
também cega.
"Obriga o homem a nunca duvidar de si. Dá-lhe a segurança de que ele pode
fazer o que bem entender, pois ele vê tudo claramente. E ele é corajoso porque é
claro e não pára diante de nada porque é claro. Mas tudo isso é um engano; é
como uma coisa incompleta. Se o homem sucumbir a esse poder de faz-de-
conta, sucumbiu a seu segundo inimigo e tateará com a aprendizagem. Vai
precipitar-se quando devia ser paciente, ou vai ser paciente quando devia
precipitar-se. E tateará com a aprendizagem até acabar incapaz de aprender
mais qualquer coisa.
─ O que acontece com um homem que é derrotado assim, Dom Juan? Ele
morre por isso?
─ Não, não morre. Seu inimigo acaba de impedi-lo de se tornar um homem
de conhecimento; em vez disso, o homem pode tornar-se um guerreiro valente,
ou um palhaço. No entanto, a clareza, pela qual ele pagou tão caro, nunca mais
se transformará de novo em trevas ou medo. Será claro enquanto viver, mas não
aprenderá nem desejará nada.
─ Mas o que tem de fazer para não ser vencido?
─ Tem de fazer o que fez com o medo: tem de desafiar sua clareza e usá-la só
para ver, e esperar com paciência e medir com cuidado antes de dar novos
passos; deve pensar, acima de tudo, que sua clareza é quase um erro. E virá um
momento em que ele compreenderá que sua clareza era apenas um ponto diante
de sua vista. E assim ele terá vencido seu segundo inimigo, e estará numa posição
em que nada mais poderá prejudicá-lo. Isso não será um engano. Não será um
ponto diante da vista. Será o verdadeiro poder. Ele saberá a essa altura que o
poder que vem buscando há tanto tempo é seu, por fim. Pode fazer o que quiser
com ele. Seu aliado está às suas ordens. Seu desejo é a ordem. Vê tudo o que está
em volta. Mas também encontrou seu terceiro inimigo: o Poder! O poder é o
mais forte de todos os inimigos. E naturalmente a coisa mais fácil é ceder; afinal
de contas, o homem é realmente invencível. Ele comanda; começa correndo
riscos calculados e termina estabelecendo regras, porque é um senhor. "Um
homem nesse estágio quase nem nota seu terceiro inimigo se aproximando. E de
repente, sem saber, certamente terá perdido a batalha. Seu inimigo o terá
transformado num cruel e caprichoso.
─ E ele perderá o poder?
─ Não, ele nunca perderá sua clareza nem seu poder.
─ Então o que o distinguirá de um homem de conhecimento?
─ Um homem que é derrotado pelo poder morre sem mente saber manejá-
lo. O poder é apenas uma carga em 'ice destino. Um homem desses não tem
domínio sobre si, e não sabe quando ou como usar seu poder.
─ A derrota por algum desses inimigos é uma derrota final?
─ Claro que é final. Uma vez que esses inimigos dominem o homem, não há
nada que ele possa fazer.
─ Será possível, por exemplo, que o homem derrotado pelo poder veja seu
erro e se emende?
─ Não. Uma vez que o homem cede, está liquidado.
─ Mas, e se ele estiver temporariamente cego pelo poder, e depois recusar?
─ Isso significa que a batalha continua. Isso significa que ele ainda está
tentando ser um homem de conhecimento. O indivíduo é derrotado quando não
tenta mais e se abandona.
─ Mas então, Dom Juan, será possível que um homem se entregue ao medo
durante anos, mas que no fim ele o vença.
─ Não, isso não é verdade. Se ele ceder ao medo, nunca o vencerá porque se
desviará do conhecimento e nunca mais tentará. Mas sé procurar aprender
durante anos no meio de seu medo, acabará dominando-o, porque nunca se
entregou realmente a ele.
─ E como o homem pode vencer seu terceiro inimigo, Dom Juan?
─ Também tem de desafiá-lo, propositadamente. Tem de vir a compreender
que o poder que parece ter adquirido, na nunca é seu. Deve controlar-se em
todas as ocasiões, Com cuidado e lealdade tudo o que aprendeu. Se conseguir ver
que a clareza e o poder, sem seu controle sobre si, são piores do que os erros, ele
chegará a um ponto em que lado. Então, saberá quando e como usar seu poder. E
assim terá derrotado seu terceiro inimigo. O homem estará, então, no fim de sua
jornada do saber, e quase sem perceber encontrará seu último inimigo: a
Velhice! Este inimigo é o mais cruel de todos, o único que ele não conseguirá
derrotar completamente, mas apenas afastar. É o momento em que o homem
não tem mais receios, não tem mais impaciências de clareza de espírito... um
momento em que todo seu poder está controlado, mas também o momento em
que ele sente um desejo irresistível de descansar. Se ele ceder completamente a
seu desejo de se deitar e esquecer, se ele se afundar na fadiga, terá perdido o
último round, e seu inimigo o reduzirá a uma criatura velha e débil. Seu desejo de
se retirar dominará toda sua clareza, seu poder e sabedoria. Mas se o homem
sacode sua fadiga, e vive seu destino completamente, então poderá ser chamado
de um homem de conhecimento, nem que seja no breve momento em que ele
consegue lutar contra o seu último inimigo invencível. Esse momento de clareza,
poder e conhecimento é o suficiente.
4
Era raro Dom Juan falar abertamente sobre Mescalito. Sempre que eu
indagava sobre o assunto, ele se recusava a falar, mas sempre dizia o suficiente
para criar uma impressão a respeito de Mescalito, uma impressão que era
sempre antropomórfica. Mescalito era masculino, não só por causa da regra
gramatical que dá à palavra o gênero masculino, mas também devido a suas
qualidades constantes de protetor e meie. Dom Juan reiterava essas
características de vários motes, sempre que conversávamos.
Domingo, 24 de dezembro de 1961
─ A erva-do-diabo nunca protegeu ninguém. Só serve para dar poder. Já
Mescalito, por outro lado, é delicado como um bebê.
─ Mas você disse que por vezes Mescalito é assustador.
─ Claro que é assustador, mas depois que você passa a conhece-lo, é delicado
e bom.
─ Como mostra sua bondade?
─ É protetor e mestre.
─ Como ele protege?
─ Você o pode conservar consigo sempre e ele velará pira que nada de mau
lhe aconteça.
─ Como se pode conservá-lo sempre?
─ Numa bolsinha, preso debaixo do braço ou pendurado no pescoço por um
cordão.
─ Você o tem com você?
─ Não, porque tenho um aliado. Mas outras pessoas o têm.
─ O que ele ensina?
─ Ensina a viver direito.
─ Como ele ensina?
─ Mostra coisas e diz o que são (enzeña las cosas te dice lo que son).
─ Como?
─ Você terá de ver por si.
Terça-feira, 30 de janeiro de 1962
─ O que você vê quando Mescalito o leva com ele, Dom Juan?
─ Não se pode falar dessas coisas. Não lhe posso dizer.
─ Se dissesse, alguma coisa má lhe aconteceria?
─ Mescalito é um protetor, um protetor bom e delicado; mas isso não significa
que se possa caçoar dele. Como é um protetor bom, também pode ser um horror
em si com aqueles de quem não gosta.
─ Não pretendo caçoar dele. Só quero saber o que faz os outros executarem
ou verem.
Descrevi-lhe tudo o que Mescalito me fez ver, Dom Juan.
─ Com você é diferente, talvez porque não conheça os costumes dele. Tem de
aprender os costumes dele como uma criança aprende a caminhar.
─ Por quanto tempo ainda tenho de aprender?
─ Até que ele próprio comece a fazer sentido para você.
─ E depois?
─ Então, você vai entender por si. Não vai mais ter de contar nada.
─ Pode dizer-me onde é que Mescalito o leva?
─ Não posso falar disso.
─ Só quero saber é se existe um outro mundo ao qual ele leva as pessoas.
─ Existe.
─ É o céu?
─ Ele o leva pelo céu.
─ Quero dizer, é o céu onde Deus está?
─ Agora você está sendo burro. Não sei onde Deus está.
─ Mescalito é Deus? O único Deus? Ou é um dos deuses?
─ Ele é apenas um protetor e mestre. É um poder.
─ É um poder dentro de nós?
─ Não. Mescalito não tem nada a ver conosco. Ele está fora de nós.
─ Então, todos os que tomam Mescalito devem vê-lo da mesma forma.
─ Não, nada disso. Ele não é o mesmo para todos.
Quinta-feira, 12 de abril de 1962
─ Por que não me conta mais a respeito de Mescalito, Dom Juan?
─ Não há nada a contar.
─ Deve haver milhares de coisas que eu deva saber antes ë tornar a encontrá-
lo.
─ Não. Talvez para você não haja nada que tenha de Como já lhe disse, ele
não é o mesmo para todos.
─ Sei, mas assim mesmo eu gostaria de saber como é que os outros se sentem
a respeito dele.
─ A opinião daqueles que gostam de falar a respeito dele não vale grande
coisa. Você verá. Provavelmente, vai y ' dele até certo ponto, e daí em diante
nunca mais o fará.
─ Pode contar-me a respeito de sua primeira experiência?
─ Para quê?
─ Dessa forma, saberei como agir com Mescalito.
─ Você já sabe mais do que eu. Chegou a brincar com ele. Um dia verá como
o protetor foi bondoso para com você. Daquela primeira vez, estou certo de que
ele lhe disse muitas e muitas coisas, mas você estava surdo e cego.
Sábado, 14 de abril de 1962
─ Mescalito assume alguma forma, quando se revela?
─ Sim, qualquer forma.
─ Então, quais são as formas mais comuns que você conhece?
─ Não há formas comuns.
─ Quer dizer, Dom Juan, que ele aparece sob qualquer forma, mesmo para
homens que o conhecem bem?
─ Não. Ele aparece em qualquer forma para aqueles que só o conhecem um
pouco, mas para aqueles que o conhecem bem, é sempre constante.
─ Como é que ele é constante?
─ Ele lhes aparece, às vezes, como homem, como nós, ou como uma luz.
Apenas uma luz.
─ Mescalito muda sua forma permanente com aqueles que o conhecem bem?
─ Não que eu saiba.
Sexta-feira, 6 de julho de 1962
Dom Juan e eu saímos numa viagem na tarde de sábado, dia 23 de junho. Ele
disse que íamos procurar honguitos (cogumelos) no Estado de Chihuahua. Falou
que ia ser uma viagem demorada e difícil. E tinha razão. Chegamos a uma
cidadezinha de mineração no norte de Chihuahua às dez da noite da quarta-feira,
27 de junho. Estacionei o carro nos arredores da cidade e caminhamos para a
casa dos amigos dele, um índio tarahumara e a mulher. Dormimos lá.
No dia seguinte, o homem nos acordou por volta das cinco horas. Trouxe-nos
uma papa e feijão. Sentou-se e conversou com Dom Juan enquanto comíamos,
mas não disse nada a respeito de nossa viagem.
Depois de comermos, o homem pôs água em meu cantil e dois pãezinhos na
mochila. Dom Juan entregou-me o cantil, prendeu a mochila com uma cordilha
nos seus ombros, agradeceu ao homem suas gentilezas e, virando-se para mim,
disse:
─ Está na hora de irmos.
Caminhamos pela estrada de terra por um quilômetro e meio. Dali, cortamos
caminho pelos campos e dentro de duas horas estávamos ao pé dos morros ao sul
da cidade. Subimos as encostas suaves em direção ao sudoeste. Quando
chegamos às encostas mais íngremes, Dom Juan mudou de direção e seguimos
um vale alto para leste. Apesar de sua idade avançada, ele andava tão
incrivelmente depressa que, ao meio-dia, eu estava completamente exausto.
Sentamo-nos e abrimos o saco de pão.
-Pode comer tudo, se quiser ─ disse ele.
─ E você?
─ Não estou com fome, e não vamos precisar dessa comida mais tarde.
Estava muito cansado e com fome, e aceitei o oferecimento dele. Achei que
seria uma boa ocasião para falar sobre o objetivo de nossa viagem, e perguntei,
com naturalidade:
─ Acha que nos vamos demorar aqui?
─ Estamos aqui para colher um pouco de Mescalito. Vamos ficar até amanhã.
─ Onde está Mescalito?
─ Em volta de nós.
Cactos de muitas espécies cresciam em profusão em toda a região, mas eu
não conseguia distinguir o peiote entre eles.
Recomeçamos a andar e, às três horas, chegamos a um vale comprido e
estreito com morros íngremes dos lados. Sentia-me estranhamente excitado com
a idéia de encontrar o peiote, que eu nunca vira em seu ambiente natural.
Entramos no vale e devemos ter caminhado uns 120 metros, quando, de repente,
vi três plantas que deviam ser, por certo, peiote. Estavam num feixe, poucos
centímetros acima do solo, em frente a mim, à esquerda do caminho. Pareciam
rosas verdes, redondas e polpudas. Corri para elas, mostrando-as a Dom Juan.
Ele não fez caso de mim e propositadamente manteve-se de costas quando se
afastou. Eu sabia que tinha cometido um erro, e o resto da tarde andamos em
silêncio, movendo-nos devagar pelo solo chato do vale, que era coberto de
pedrinhas aguçadas. Movíamo-nos no meio dos cactos, perturbando muitos
lagartos e, de vez em quando, um pássaro solitário. E passei por montes de
plantas de peiote sem dizer uma palavra.
Às seis horas, estávamos ao pé das montanhas que marcavam o fim do vale.
Subimos para uma saliência. Dom Juan deixou cair a mochila e sentou-se.
Eu estava com fome outra vez, mas não tínhamos mais comida; sugeri que
colhêssemos Mescalito e voltássemos à cidade. Pareceu ficar aborrecido e
estalou os lábios. Disse que íamos passar a noite ali.
Ficamos sentados, calados. À esquerda, havia uma parede de rochedos e, à
direita, estava o vale que acabávamos de atravessar. Este se estendia por alguma
distância e parecia ser mais largo e não tão plano quanto eu pensava. Visto do
lugar onde eu estava, era cheio de morrinhos e protuberâncias.
─ Amanhã vamos começar a voltar ─ disse Dom Juan, sem olhar para mim,
e apontando para o vale. ─ Vamos voltar e colhê-lo quando atravessarmos o
campo. Isto é, só o apanharemos quando ele estiver no nosso caminho. Ele nos
encontrará, e não vice-versa. Ele nos encontrará... se quiser.
Dom Juan descansou as costas na parede de pedra e, com a cabeça virada de
lado, continuou a falar como se ali houvesse mais alguém, além de mim.
─ Mais uma coisa. Só eu posso colhê-lo. Você talvez carregue o saco, ou ande
adiante de mim... ainda não sei. Mas amanhã você não vai apontar para ele
como fez hoje!
─ Desculpe-Dom Juan.
─ Não tem importância. Você não sabia.
─ Seu benfeitor lhe ensinou tudo isso a respeito de Mescalito?
─ Não! Ninguém me ensinou sobre ele. O próprio protetor foi meu mestre.
─ Então Mescalito é como uma pessoa, com quem se pode falar?
─ Não é, não.
─ Então como é que ele ensina?
Ele ficou calado por um instante. Depois, disse:
─ Lembra-se da vez que você brincou com ele? Você entendia o que ele
queria dizer, não?
─ Entendia! ─ É assim que ele ensina. Não sabia na ocasião, mas se lhe
tivesse prestado atenção, ele lhe teria falado.
─ Quando?
─ Quando você o viu pela primeira vez.
Dom Juan pareceu estar muito aborrecido com minhas perguntas. Disse-lhe
que tinha de fazer todas essas perguntas porque queria descobrir tudo o que
pudesse.
─ Não pergunte a mim! ─ Sorriu com malícia. ─ Pergunte a ele. Da próxima
vez que o vir, pergunte tudo o que quer saber.
─ Então Mescalito é mesmo uma pessoa com quem se pode falar...
Ele não me deixou terminar. Virou-se de costas, pegou o cantil, desceu da
saliência e desapareceu atrás do rochedo. Eu não queria ficar ali sozinho e,
embora não me tivesse convidado para ir com ele, acompanhei-o. Andamos por
uns 150 metros e chegamos a um riachinho. Lavou as mãos e o rosto e encheu o
cantil. Bochechou com a água, mas não bebeu. Peguei água nas mãos em
concha e bebi, mas ele me fez parar, dizendo que não era preciso beber.
Entregou-me o cantil e começou a voltar para a saliência. Quando chegamos
lá, tornamos a nos sentar de frente para o vale, de costas para a parede de rocha.
Perguntei se podíamos fazer uma fogueira. Dom Juan reagiu como se fosse
inconcebível fazer uma pergunta daquelas. Disse que naquela noite éramos
hóspedes de Mescalito e que ele nos aqueceria.
Já estava anoitecendo. Dom Juan tirou do saco duas mantas leves, de algodão,
e jogou uma no meu colo; depois, sentou-se de pernas cruzadas com a outra
sobre os ombros. Abaixo de nós o vale estava escuro, suas bordas já difusas na
névoa da noite.
Dom Juan ficou sentado, imóvel, olhando para o campo de peiote. Um vento
constante soprava em meu rosto.
─ O crepúsculo é a fresta entre os mundos ─ disse ele baixinho, sem se virar
para mim.
Não perguntei o que ele queria dizer com isso. Meus olhos estavam cansados.
De repente, senti-me exaltado; senti uma vontade estranha e avassaladora de
chorar!
Deitei-me de bruços; o chão de pedra era duro e incômodo e eu tinha de
trocar de posição a cada instante. Por fim, sentei-me e cruzei as pernas, pondo a
manta sobre os ombros. Para espanto meu, essa posição era extremamente
cômoda, e eu adormeci.
Quando acordei, ouvi Dom Juan falando comigo. Estava muito escuro. Eu não
o via muito bem. Não entendi o que ele dizia, mas acompanhei-o quando desceu
da saliência. Andávamos com cuidado, ou pelo menos eu o fazia, por causa do
escuro. Paramos na base do paredão de pedra. Dom Juan sentou-se e me fez
sinal para sentar-me à sua esquerda. Abriu a camisa e tirou um saco de couro,
que abriu e colocou no chão diante de si. Continha uma porção de botões de
peiote secos.
Depois de uma longa pausa, pegou um dos botões. Segurou-o em sua mão
direita, esfregando-o várias vezes entre o polegar e o indicador, enquanto entoava
alguma coisa baixinho. De repente, soltou um grito tremendo.
─ Aiiii!
Foi fantástico e inesperado. Fiquei apavorado. Vagamente, vi que ele punha o
botão de peiote na boca e começava a mastigá-lo. Depois de um momento,
pegou o saco todo, inclinou-se para mim e me disse, num cochicho, para pegar o
saco, escolher um Mescalito, tornar a pôr o saco defronte de nós e depois fazer
exatamente o que ele fazia.
Peguei um botão de peiote e esfreguei-o como Dom Juan tinha feito.
Enquanto isso, ele cantarolava, balançando-se para frente e para trás. Tentei pôr
o botão em minha boca várias vezes, mas estava encabulado para gritar. Então,
como que num sonho, um grito incrível partiu de mim: Ahiiii! Por um momento,
pensei que fosse outra pessoa. Tornei a sentir os efeitos de um choque em meu
estômago. Estava caindo de costas. Estava desmaiando. Pus o botão de peiote na
boca e mastiguei-o. Depois de algum tempo, Dom Juan pegou outro do saco.
Fiquei aliviado ao ver que ele o punha na boca depois de um breve canto. Passou-
me o saco e eu tornei a colocá-lo diante de nós, depois de ter pegado um botão.
Este ciclo se repetiu cinco vezes, antes de eu reparar que estava com sede.
Peguei o cantil para beber, mas Dom Juan me disse que lavasse a boca, sem
beber, senão eu podia vomitar.
Bochechei bem com a água. Num certo ponto, beber foi uma tentação
tremenda, e engoli um pouco de água. Imediatamente, meu estômago começou
a contorcer-se. Esperava ter um fluxo indolor e sem esforço de liquido na boca,
como acontecera em minha primeira experiência com o peiote, mas, para
surpresa minha, só tive a sensação normal do vômito. Mas não durou muito.
Dom Juan pegou outro botão e me entregou o saco, e o ciclo se renovou e
repetiu até que eu tivesse mascado 14 botões. A essa altura, todas as minhas
primeiras sensações de sede, frio e desconforto tinham desaparecido. Em seu
lugar, senti uma sensação estranha de calor e excitação. Peguei o cantil para
refrescar minha boca, mas ele estava vazio.
-Podemos ir ao riacho, Dom Juan?
O som de minha voz não se projetou para fora, mas chocou-se com o céu de
minha boca, voltou a minha garganta e ficou ressonando entre os dois. O eco era
suave e musical e parecia ter asas, que batiam dentro de minha garganta. Aquele
contato me aliviou. Acompanhei seus movimentos para diante e para trás até
desaparecer. Repetia pergunta. Minha voz tinha o som como se eu estivesse
falando dentro de uma tumba.
Dom Juan não respondeu. Levantei-me e virei-me na direção do riacho. Olhei
para ver se ele vinha, mas Dom Juan parecia estar ouvindo alguma coisa com
atenção.
Fez um gesto imperioso com a mão, indicando que eu ficasse quieto.
-Abutho! (?) já está aqui! -disse ele.
Nunca tinha ouvido aquela palavra e estava pensando se devia perguntar-lhe a
respeito, quando percebi um barulho zunindo em meus ouvidos. O som foi
ficando mais alto aos poucos, até tornar-se como a vibração causada por um
imenso rugido de touro. Durou só um momento e foi-se apagando até que tudo
ficou quieto de novo. A violência e a intensidade do ruído me aterraram. Tremia
tanto que mal me sustentava em pé, e, no entanto, estava perfeitamente lúcido.
Se tinha estado sonolento alguns minutos antes, essa sensação tinha desaparecido
completamente, dando lugar a um estado de extrema lucidez. O barulho me fazia
lembrar um filme de ficção científica em que uma abelha gigantesca movia as
asas, ao sair de uma zona de radiação atômica. Ri da idéia. Vi Dom Juan voltando
a sua posição relaxada. E de repente a imagem de uma abelha gigantesca tornou
a ocorrer-me. Era mais real do que pensamentos normais. Estava sozinha,
rodeada por uma claridade extraordinária. Tudo o mais foi expulso de minha
mente. Esse estado de clareza mental, sem precedentes em minha vida,
provocou outro momento de terror.
Comecei a transpirar. Inclinei-me para Dom Juan para dizer-lhe que estava
com medo. O rosto dele estava a alguns centímetros do meu. Estava olhando
para mim, mas os olhos dele eram olhos de abelha. Pareciam vidros redondos,
com uma luz própria no escuro. Seus lábios estavam protuberantes e deles partia
um barulho tamborilante: "Petuh-peh-tuhpet-tuh." Dei um salto para trás, quase
batendo de encontro ao paredão de pedra. Por uns momentos aparentemente
intermináveis senti um medo insuportável. Eu estava ofegante e gemendo. O suor
tinha-se congelado em minha pele, dando-me uma rigidez desajeitada. Então,
ouvia voz de Dom Juan dizendo:
─ Levante-se! Mexa-se! Levante-se!
A imagem desapareceu e eu torneia ver seu rosto conhecido.
─ Vou buscar um pouco de água ─ disse eu, depois de outro momento
interminável. Minha voz parecia rachada. Mal podia articular as palavras. Dom
Juan meneou a cabeça concordando. Quando me afastei, percebi que meu medo
tinha desaparecido tão depressa e misteriosamente como tinha vindo.
Quando me aproximei do riacho, reparei que via todos os objetos do caminho.
Lembrei-me de que acabava de ver Dom Juan claramente, enquanto antes eu
mal distinguia os contornos de seu vulto. Parei e olhei para longe, e até via do
outro lado do vale. Umas pedras do outro lado tornaram-se perfeitamente
visíveis. Achei que devia ser de manhã cedo, mas ocorreu-me que devia ter
perdido noção do tempo. Olhei pesa o relógio. Eram dez para as doze! Verifiquei
o relógio para ver se estava funcionando. Não poma ser meio-dia; tinha de ser
meia-noite! Pretendia dar uma corrida até à água e voltar às pedras, mas vi Dom
Juan descendo e esperei por ele. Disse-lhe que estava enxergando no escuro.
Ele fitou-me por muito tempo, sem dizer nada; se falou, talvez eu não o tenha
ouvido, pois estava-me concentrando na minha nova e rara faculdade de ver no
escuro. Distinguia as pedrinhas diminutas na areia. Em certos momentos, as
coisas todas estavam tão claras que parecia que era de manhã cedo. Em seguida,
escurecia; depois, ficava claro de novo. Logo percebi que a claridade
correspondia à diástole de meu coração, e a escuridão, à sua sístole. O mundo
mudava do claro para o escuro e para o claro de novo com cada batida de meu
coração.
Estava absorto nessa descoberta, quando o mesmo som estranho que eu já
tinha ouvido se fez ouvir de novo. Meus músculos enrijeceram.
─ Anuhctal (foi como entendi a palavra dessa vez) está aqui ─ disse dom
Juan. Imaginei o rugido tão trovejante, tão avassalador, que nada mais
importava. Depois que passou, percebi um súbito aumento no volume da água. O
riacho, que um minuto antes era de menos de 30 centímetros de largura,
expandiu-se até tornar-se um lago imenso. Uma luz que parecia vir de cima dele
tocava a superfície, como se brilhasse através de uma folhagem espessa. De vez
em quando a água brilhava por um segundo, dourada e negra. Depois ficava
escura, sem luz, quase desaparecendo de vista, e no entanto estranhamente
presente.
Não me lembro por quanto tempo fiquei ali só olhando, agachado na margem
do lago negro. Enquanto isso, o rugido deve ter passado, pois o que me, levou de
volta (à realidade?) foi novamente um zunido tremendo. Virei-me para procurar
Dom Juan. Eu o vi subindo na saliência da pedra e desaparecendo atrás dela. No
entanto, a sensação de estar sozinho não me aborrecia em absoluto; fiquei ali
agachado num estado de completa confiança e abandono. O rugido se fez ouvir
outra vez; era muito intenso, como o ruído provocado por um vento forte.
Escutando com a maior atenção, consegui distinguir uma melodia definida. Era
uma miscelânea de sons agudos, como vozes humanas, acompanhada de um
bombo profundo. Focalizei toda minha atenção na melodia, e tornei a reparar que
a sístole e a diástole de meu coração coincidiam com o som do bombo e com a
música.
Levantei-me, e a melodia parou. Procurei ouvir a batida de meu coração,
mas não consegui. Tornei a agachar-me, pensando que talvez a posição de meu
corpo tivesse provocado os sons! Mas nada aconteceu! Nem um som! Nem
mesmo 0 meu coração! Achei que bastava, mas quando me ia levantando para
sair dali, senti a terra tremer. A terra debaixo de meus pés estava sacudindo. Eu
estava perdendo o equilíbrio. Caí para trás e fiquei deitado de costas, enquanto a
terra tremia violentamente. Tentei segurar uma pedra ou uma planta, mas
alguma coisa deslizava por baixo de mim. Levantei-me de um salto, fiquei de pé
por um momento, e depois tornei a cair. A terra em que eu estava sentado estava-
se movendo, deslizando para dentro da água como uma jangada. Fiquei imóvel,
paralisado por um terror que era, como tudo o mais, único, ininterrupto e
absoluto.
Movia-me pela água do lado negro empoleirado num torrão de terra que
parecia uma tora. Tinha a impressão de estar indo para o sul, transportado pela
corrente. Via a água se movendo e girando em volta. Estava fria, e
estranhamente pesada ao tato. Imaginei que estivesse viva.
Não havia margens ou marcos visíveis e não me lembro dos pensamentos
nem das sensações que devo ter tido durante essa viagem. Depois do que me
pareceram horas de viajar, minha jangada deu uma guinada para a esquerda,
para leste. Continuou a viajar na água por um trecho curto e inesperadamente
bateu de encontro a alguma coisa. O impacto me atirou para frente. Fechei os
olhos e senti uma dor aguda quando meus joelhos e braços esticados bateram na
terra. Depois de um momento, olhei para cima. Estava deitado no chão. Era
como se meu toro de terra se tivesse fundido com o pó. Sentei-me e olhei em
volta. A água estava recuando! Movia-se para trás, como uma onda recuando,
até desaparecer.
Fiquei ali sentado muito tempo, procurando compor as idéias e juntar tudo o
que acontecera numa unidade coerente. Estava com o corpo todo dolorido.
Minha garganta parecia uma chaga aberta; eu tinha mordido os lábios quando
"aterrei". Levantei-me. O vento me fez perceber que estava com frio. Minhas
roupas estavam molhadas. As mãos, queixo e joelhos tremiam tão violentamente
que tive de me deitar de novo. Gotas de transpiração caíam em meus olhos e os
faziam arder, até eu gritar de dor.
Depois de algum tempo, recuperei um pouco de estabilidade e levantei-me.
No luscofusco, a cena era muito clara. Dei alguns passos. Ouvi um som nítido de
muitas vozes humanas. Pareciam estar falando alto. Acompanhei o som; andei
uns 50 metros e parei de repente. Tinha chegado a um beco sem saída. O lugar
em que eu estava era um curral formado por rochas imensas. Distinguia outra
fileira delas, depois outra e mais outra, até se fundirem na montanha. Do meio
delas vinha a música mais suave. Era um fluxo fluido, ininterrupto e misterioso
de sons.
Ao pé de um dos rochedos, vi um homem sentado no chão, o rosto virado
quase de perfil. Aproximei-me dele até estar a uns três metros de distância; ele
virou a cabeça e olhou para mim. Parei. . . seus olhos eram a água que eu
acabava de ver! Tinham o mesmo volume enorme, o brilho de ouro e negro. A
cabeça dele era pontuda como um morango; sua pele era verde, cheia de muitas
verrugas. A não ser a forma pontuda, a cabeça dele era exatamente igual à
superfície da planta de peiote. Fiquei defronte dele, olhando; não conseguia
afastar os olhos dele. Senti que ele estava propositadamente empurrando meu
peito com o peso de seus olhos. Eu estava sufocando. Perdi o equilíbrio e caí no
chão. Desviou o olhar. Ouvi que falava comigo. A princípio, a voz dele era como
0 farfalhar de uma brisa suave. Depois a ouvi como uma música ─ uma melodia
de vozes ─ e "sabia" que estava dizendo: “O que quer?"
Ajoelhei-me diante dele e falei sobre a minha vida e depois chorei. Tornou a
olhar para mim. Senti que seus olhos me puxavam e pensei que aquele momento
seria o momento de minha morte. Fez-me sinal para me aproximar. Vacilei por
um momento antes de me adiantar um passo. Quando me aproximei, desviou os
olhos de mim e mostrou-me as costas da mão. A melodia dizia: "Olhe!" Havia
um furo redondo no meio da mão dele. "Olhe!", tornou a dizer a melodia. Olhei
através do buraco e vi minha própria imagem. Eu estava muito velho e fraco e
estava correndo encurvado, com faíscas brilhantes voando em volta de mim.
Então, três das fagulhas me atingiram, duas na cabeça e uma no ombro
esquerdo. A figura, no buraco, ergueu-se por um momento, até estar
inteiramente vertical, e depois desapareceu com o buraco.
Mescalito voltou novamente seus olhos para mim. Estavam tão perto de mim
que eu os "ouvi" ribombar baixinho com aquele ruído especial que eu já ouvira
tantas vezes naquela noite. Foram-se aquietando aos poucos, até se tornarem
como uma lagoa tranquila, arrepiada por brilhos dourados e negros.
Desviou o olhar de novo e saltou como um grilo por uns 50 metros. Pulou
várias vezes e depois desapareceu.
Quando dei por mim de novo, comecei a andar. Muito racionalmente,
procurei reconhecer certos pontos, como as montanhas à distância, a fim de me
orientar. Em toda a experiência, eu tinha estado obcecado com os pontos cardiais,
e acreditava que o norte tinha de estar à minha esquerda. Caminhei naquela
direção por algum tempo, antes de compreender que era dia, e que eu não estava
mais usando minha "visão noturna". Lembrei-me de que tinha um relógio e olhei
as horas. Marcava oito horas.
Eram quase dez horas quando cheguei à saliência onde tinha estado na noite
anterior. Dom Juan estava deitado no chão, dormindo.
─ Onde você esteve? ─ perguntou ele.
Sentei-me para tomar fôlego. Depois de um longo silêncio, ele perguntou: ─
Você o viu?
Comecei a lhe contar a sequência de minhas experiências desde o princípio,
mas ele me interrompeu, dizendo que só 0 que interessava era se eu o havia visto
ou não. Perguntou- me a que distância Mescalito tinha estado de mim. Disse-lhe
que quase o havia tocado.
Essa parte de minha história interessou-lhe. Escutou atentamente todos os
detalhes sem comentários, interrompendo somente para fazer perguntas a
respeito da forma do ser que eu tinha visto, sua disposição e outros detalhes. Era
mais ou menos meio-dia quando Dom Juan pareceu estar satisfeito com minha
história. Levantou-se e prendeu um saco de lona em meu peito, disse-me que
andasse atrás dele e que ia soltar Mescalito e que eu tinha de recebe-lo em
minhas mãos e colocá-lo no saco com delicadeza.
Bebemos um pouco de água e começamos a caminhar. Quando chegamos à
borda do vale, ele pareceu hesitar um momento, antes de decidir qual a direção a
tomar. Quando resolveu, começamos a andar em linha reta.
Cada vez que chegávamos a uma planta de peiote, agachava-se defronte dela
e com muito cuidado cortava a ponta com sua faquinha serrilhada. Fazia uma
incisão paralela ao solo e polvilhava a "ferida", conforme ele a chamava, com
um pó de enxofre puro que trazia num saquinho de couro. Segurava o botão novo
em sua mão esquerda e espalhava o pó com a direita. Depois se levantava e me
entregava o botão, que eu recebia com ambas as mãos, conforme ele ensinara, e
colocava no saco.
─ Fique reto e não deixe o saco encostar no chão nem nos arbustos nem em
nada repetia ele, como se achasse que eu ia esquecer.
Colhemos 65 botões. Quando o saco estava completamente cheio, colocou-o
em minhas costas e prendeu um novo em meu peito. Quando atravessamos o
planalto, já tínhamos dois sacos cheios, contendo 110 botões de peiote. Os sacos
eram tão pesados e volumosos que eu mal podia andar com aquele peso e
volume.
Dom Juan me cochichou que os sacos estavam pesados porque Mescalito
queria voltar à terra. Disse que era a tristeza de deixar sua morada que fazia
Mescalito pesar; meu verdadeiro trabalho era não deixar que os sacos tocassem
no chão, pois, se isso acontecesse, Mescalito nunca permitiria que eu tornasse a
pegá-lo.
Num dado momento, a pressão das tiras em meus ombros tornou-se
insuportável. Alguma força estava exercendo uma pressão tremenda para me
puxar para baixo. Eu estava muito apreensivo, e reparei que tinha começado a
andar mais depressa, quase correndo; de certo modo, estava trotando atrás de
Dom Juan.
De repente, o peso em minhas costas e meu peito diminuiu. O fardo tornou-se
leve. Corri livremente para alcançar Dom Juan, que estava a minha frente.
Disse-lhe que não estava mais sentindo o peso. Ele explicou que já tínhamos
saído da morada de Mescalito.
Terça-feira, 3 de julho de 1962
─ Acho que Mescalito já quase o aceitou ─ disse Dom Juan.
─ Por que diz que ele quase me aceitou, Dom Juan?
─ Ele não o matou, nem lhe fez mal. Deu-lhe um bom susto, mas não foi
sério. Se ele não o tivesse aceito de todo, ter-lhe-ia aparecido como monstruoso e
cheio de raiva. Algumas pessoas aprenderam o significado do horror, quando o
encontraram e não foram aceitos por ele.
─ Se ele é tão terrível, por que não me contou a respeito antes de me levar ao
campo?
─ Você não tem coragem para procurá-lo propositadamente, Achei melhor
você não saber.
─ Mas eu podia ter morrido, Dom Juan!
─ Sim, podia. Mas eu tinha certeza de que tudo se iria bem com você. Ele
brincou com você uma vez. Não lhe fez mal. Achei que também desta vez teria
compaixão de você.
Perguntei-lhe se achava realmente que Mescalito tivera compaixão de mim.
A experiência fora aterradora; parecia-me que eu quase morrera de susto.
Ele disse que Mescalito tinha sido muito bom comigo; mostrara-me uma cena
que era uma resposta a uma pergunta. Juan disse que Mescalito me dera uma
lição. Perguntei-lhe qual a lição e o que significava. Respondeu que seria
impossível responder àquela pergunta porque eu estava com medo para saber
exatamente o que perguntara a Mescalito.
Dom Juan perscrutou minha memória sobre o que eu dissera a Mescalito
antes de ele me mostrar a cena em sua mão. Mas eu não conseguia lembrar-me.
Só me lembrava de ter caído de joelhos e "confessado meus pecados" a ele.
Dom Juan não pareceu interessado em continuar a falar respeito. Perguntei-
lhe:
─ Pode ensinar-me a letra das cantigas que cantou?
─ Não posso, não. Aquelas palavras são minhas, palavras que o próprio
protetor me ensinou. As canções são minhas canções. Não lhe posso dizer o que
são.
─ Por que não pode dizer-me, Dom Juan?
─ Porque essas canções são um elo entre o protetor e eu. Estou certo de que
um dia ele lhe ensinará suas próprias canções. Espere até então; e nunca, mas
nunca mesmo, copie ou faço perguntas sobre canções que pertencem a outro.
─ Qual foi o nome que você falou? Pode dizer-me isso, Dom Juan?
─ Não. O nome dele nunca pode ser dito, a não ser para chamá-lo.
─ E se eu o quiser chamar, eu mesmo?
─ Se algum dia ele o aceitar, ele lhe dirá seu nome. Esse nome será só para
você usar, ou para chamá-lo em voz alta ou para murmurar baixinho para si.
Talvez lhe diga que o nome dele é José. Quem sabe?
─ Por que é errado usar o nome dele quando se fala dele?
─ Você já viu os olhos dele, não viu? Não se pode brincar com um protetor. E
por isso que não me consigo habituar com a idéia de que ele quis brincar com
você!
─ -Como é que ele pode ser protetor se faz mal a algumas pessoas?
─ A resposta é muito simples. Mescalito é um protetor porque ele está à
disposição de todos os que o procuram.
─ Mas não é verdade que tudo no mundo está à disposição de todos que o
procuram?
─ Não, isso não é verdade. Os poderes aliados só estão disponíveis para os
brujos, mas qualquer pessoa pode ter parte de Mescalito.
─ Mas então por que ele faz mal a algumas pessoas?
─ Nem todos gostam de Mescalito; no entanto, todos o procuram com o intuito
de se aproveitarem, sem qualquer trabalho. Naturalmente, o encontro dessas
pessoas com ele é sempre horripilante.
─ O que acontece quando ele aceita uma pessoa completamente?
─ Ele aparece a essa pessoa como um homem, ou como uma luz. Quando
uma pessoa consegue esse tipo de aceitação, Mescalito é constante. Depois disso,
ele nunca muda. Talvez quando você q encontrar de novo ele seja uma luz, e
algum dia ele poderá até levá-lo para voar e lhe revelar todos os seus segredos.
─ O que devo fazer para chegar a esse ponto, Dom Juan?
─ Tem de ser um homem forte, e sua vida tem de ser verdadeira.
─ O que é uma vida verdadeira?
─ Uma vida vivida com propósito, uma vida forte e boa.
5
6
O estágio seguinte nos ensinamentos de Dom Juan foi um novo aspecto no
domínio da segunda porção da raiz de Datura. No período decorrido entre os dois
estágios da aprendizagem, Dom Juan só perguntava a respeito do
desenvolvimento de minha planta.
Quinta-feira, 27 de junho de 1963
─ É um bom hábito testar a erva-do-diabo antes de seguir plenamente o
caminho dela ─ disse Dom Juan.
─ Como se testa a planta, Dom Juan?
─ Deve tentar outro feitiço com os lagartos. Já tem todos os elementos
necessários para fazer mais uma pergunta aos lagartos, dessa vez sem a minha
ajuda.
─ E muito necessário que eu faça esse feitiço, Dom Juan?
─ É o melhor meio de testar os sentimentos da erva-do-diabo relação a você.
Esta planta está sempre testando você, de modo que é justo que você também a
ponha à prova, e se, em algum ponto no caminho dela, você achar que por algum
motivo não deve continuar, então deve simplesmente parar.
Sábado, 29 de junho de 1963
Abordei o assunto erva-do-diabo. Queria que Dom Juan me contasse mais a
respeito, e no entanto não queria comprometer-me a participar.
─ A segunda porção é só usada para adivinhar, não é, Dom Juan? -perguntei,
para iniciar a conversa.
─ Não só para adivinhar. A gente aprende o feitiço dos lagartos com a segunda
porção, e ao mesmo tempo a gente põe à prova a erva-do-diabo; mas, na
verdade, a segunda porção é utilizada para outros fins. O feitiço dos lagartos é só
o começo.
─ Então para que é usada, Dom Juan?
Não respondeu. Mudou de assunto bruscamente e perguntou-me de que
tamanho eram as plantas de Datura que cresciam em volta da minha planta. Fiz
um gesto para mostrar o tamanho.
─ Já lhe ensinei como distinguir o macho da fêmea disse Dom Juan. ─ Agora
vá até às suas plantas e me traga ambos. Vá primeiro para a sua planta antiga e
olhe atentamente para o caminho feito pela chuva. A essa altura, ela já deve ter
levado as sementes para longe. Olhe para as gretas (zanjitas) feitas pela
enxurrada e daí verifique a direção da água. Depois veja a planta que cresce
mais afastada da sua. Todas as plantas da erva-do-diabo que crescem no meio
são suas. Mais tarde, quando sementearem, poderá ampliar o tamanho de seu
território seguindo o curso da água de cada planta no caminho.
Deu-me instruções meticulosas sobre como conseguir um instrumento
cortante. O corte da raiz, disse ele, tinha de ser feito da maneira seguinte:
primeiro, eu tinha de escolher a planta que ia cortar e limpar toda a terra em
volta do lugar onde a raiz se unia ao caule. Depois, tinha de executar exatamente
a mesma dança que tinha dançado quando replantei a raiz. Em terceiro lugar,
tinha de cortar fora a haste e deixar a raiz na terra. O último passo era cavar 40
centímetros de raiz. Aconselhou-me que não falasse nem demonstrasse
sentimento algum durante esses atos.
-Você deve levar dois pedaços de pano -disse ele. -Estenda-os no chão e
coloque as plantas neles. Depois, corte-as em pedaços e empilhe-as. A ordem
depende de você; mas deve lembrar-se sempre da ordem que seguiu, pois é
assim que você deve sempre fazê-lo. Traga- me as plantas assim que as tiver.
6 de julho de 1963
Na segunda-feira, 1° de julho, cortei as plantas de Datura que Dom Juan tinha
pedido. Esperei até estar bem escuro para dançar em volta das plantas, pois não
queria que me vissem. Eu estava bem apreensivo. Estava certo de que alguém ia
presenciar meus atos estranhos. Já tinha escolhido as plantas que eu achava que
eram masculina e feminina. Tive de cortar 40 centímetros da raiz de cada uma,
e cavar tudo isso com um pedaço de pau não foi brincadeira. Levei horas. Tive
de acabar o trabalho numa escuridão total, e quando estava pronto para cortá-las
precisei usar uma lanterna. Meu medo original de que alguém pudesse ver-me
era irrisório comparado com o medo de que alguém pudesse reparar na luz nos
arbustos.
Levei as plantas para a casa de Dom Juan na terça-feira, 2 de julho. Abriu os
embrulhos e examinou os pedaços. Disse que ainda teria de me dar as sementes
de suas plantas. Empurrou um almofariz para minha frente. Pegou um pote de
vidro e esvaziou seu conteúdo ─ sementes secas aglomeradas ─ no almofariz.
Perguntei-lhe o que eram, e ele disse que eram sementes comidas pelos
gorgulhos. Havia muitos bichinhos entre as sementes ─ gorgulhos pretos. Falou
que eram bichos especiais, e que tínhamos de tirá-los e pô-los num pote
separado. Entregou-me outro pote, cheio até um terço do mesmo tipo de
gorgulhos. Um pedaço e papel estava metido no pote para não deixar os
gorgulhos escaparem.
─ Da próxima vez você terá de usar os bichinhos de suas plantas ─ disse Dom
Juan. ─ O que tem de fazer é cortar as sementes que tenham buraquinhos; elas
estão cheias de bichos. Abra as sementes e raspe tudo e ponha num pote. Junte
um punhado de bichos e ponha-os noutra vasilha. Trate-os com brutalidade. Não
seja delicado com eles. Meça um punhado das sementes aglomeradas que os
bichos comeram e um punhado do pó de bichos e enterre o resto em qualquer
lugar naquela direção (nesta altura, apontou para sudeste) de sua planta. Depois,
colha sementes boas e secas e guarde-as separadamente. Pode colher quantas
quiser. Sempre poderá usá-las. É uma boa idéia tirar as sementes das favas lá,
para poder enterrar tudo de uma vez.
Dom Juan me disse para moer primeiro as sementes aglomeradas, depois os
ovos de gorgulhos; em seguida os bichos e, por fim, as sementes boas e secas:
Depois de estar tudo triturado num pó fino, Dom Juan pegou os pedaços de
Datura que eu tinha cortado e empilhado. Separou a raiz masculina e embrulhou-
a com cuidado num pedaço de pano. Entregou-me o resto e disse que eu cortasse
tudo em pedacinhos, amassasse- os bem e depois pusesse todo o suco num pote.
Disse que eu tinha de amassá-los na mesma ordem em que os tinha arrumado.
Quando acabei, ele me disse que pegasse uma xícara de água fervendo e a
misturasse com tudo na panela, e depois juntasse mais duas xícaras. Entregou-
me um pedaço de osso bem liso. Misturei a papa com aquilo e levei a panela ao
fogo. Depois, ele disse que tínhamos de preparar a raiz, e que para isso tínhamos
de usar o pilão maior, pois a raiz masculina não podia ser cortada de todo. Fomos
para os fundos da casa. Ele estava com o pilão pronto, e eu amassei a raiz como
já tinha feito antes. Deixamos a raiz de molho na água, exposta ao sereno, e
fomos para dentro.
Disse-me que vigiasse a mistura na panela. Eu devia deixar que ela fervesse
até ficar encorpada -até ficar dura de se mexer. Depois, deitou-se em sua esteira
e foi dormir. A papa já estava fervendo havia pelo menos uma hora quando
reparei que estava ficando cada vez mais dura de mexer. Achei que devia estar
pronta e tirei-a do fogo. Coloquei-a na sacola de linha dependurada do teto e fui
dormir.
Acordei quando Dom Juan se levantou. O sol estava brilhando num céu azul.
Era um dia quente e seco. Dom Juan tornou a comentar que tinha certeza de que
a erva-do-diabo gostava de mim.
Fomos tratar da raiz, e no fim do dia tínhamos um bocado de substância
amarelada no fundo da tigela. Dom Juan despejou a água de cima. Achei que
teso devia ser o fim do processo, mas ele tornou a encher a tigela com água
fervendo.
Pegou a panela com a papa que estava dependurada no telhado. A papa
parecia estar quase seca. Levou a panela para dentro de casa, colocou-a no chão
com cuidado e sentou-se. Neste momento, começou a falar.
─ Meu benfeitor me disse que era permitido misturar a planta com banha. E é
isso que você vai fazer. Meu benfeitor misturou-a com banha para mim, mas,
como já disse, eu nunca fui muito amigo da planta e nunca tentei realmente me
tornar um só com ela. Meu benfeitor me disse que, para obter melhores
resultados, para aqueles que realmente desejam o poder, o certo é misturar a
planta com a banha de um porco-do-mato. A gordura dos intestinos é a melhor.
Mas você é quem escolhe. Talvez o destino resolva que você tome a erva-do-
diabo como aliada, e nesse caso eu lhe aconselho, como meu benfeitor me
aconselhou, a caçar um javali e tirar-lhe a gordura dos intestinos (sebo de tripa).
Em outras épocas, quando a erva-do-diabo era a tal, os brujos iam em caçadas
especiais para conseguir banha dos javalis. Procuravam os machos maiores e
mais fortes; deles tiravam um poder especial, tão especial que era difícil
acreditar, mesmo naquela época. Mas aquele poder está perdido. Não sei nada a
respeito. Nem conheço alguém que saiba. Talvez a própria erva lhe ensine tudo
isso.
Dom Juan mediu um punhado de banha, colocou-a na tigela com a papa seca
e raspou a banha que ficou em sua mão na beirada da tigela. Disse-me que
misturasse o conteúdo até estar tudo liso e bem misturado.
Bati a mistura durante quase três horas. Dom Juan de quando olhava e achava
que ainda não estava boa. Por fim pareceu estar satisfeito. O ar batido para
dentro da pasta lhe dera uma coloração cinza-clara e a consistência de gelatina.
Ele pendurou a tigela do teto, junto da outra tigela. Disse que ia deixa-la ali até o
dia seguinte, porque seriam necessários dois dias para preparar essa segunda
porção. Disse que, enquanto isso, eu não comesse nada. Podia beber água, mas
não sorver nenhum alimento.
No dia seguinte, quinta-feira, 4 de julho, Dom Juan mandou que eu lixiviasse a
raiz quatro vezes. Da última vez que d a água da tigela, ela já estava escura.
Ficamos sentados na varanda. Ele colocou as duas tigelas em frente dele. O
extrato da raiz deu uma colher de chá de uma goma esbranquiçada. Colocou-a
numa xícara e juntou água. Girou a xícara na mão para dissolver a substância e
depois a entregou-me. Disse que eu bebesse tudo o que estava na xícara. Bebi
depressa e depois pus a xícara no chão e me recostei. Meu começou a disparar;
parecia que eu não conseguia respirar. Dom Juan mandou, com naturalidade, que
eu despisse todas as minhas roupas. Perguntei-lhe por que e ele disse ia de me
esfregar com a pasta. Hesitei. Não sabia se me ou não. Dom Juan insistiu,
dizendo que eu me apressasse. Disse que havia muito pouco tempo para estar
desperdiçando-o. Tirei toda a roupa.
Pegou seu pedaço de osso e cortou duas linhas horizontais na superfície da
pasta, desse modo dividindo o conteúdo da tigela em três partes iguais. Depois,
começando do centro da linha superior, cortou uma linha vertical, perpendicular
às outras duas, dividindo a pasta em cinco partes. Apontou para a parte direita
inferior, e disse que aquela era para meu pé esquerdo. A parte acima dela era
para minha perna esquerda. A parte superior, a maior, era para meus órgãos
genitais. A seguinte, abaixo, à esquerda, .era para minha perna direita e a de
baixo à esquerda era para o pé direito. Disse-me que aplicasse a parte da pasta
designada para meu pé esquerdo à sola de meu pé e a esfregasse bem. Depois
ensinou-me a aplicar a pasta à parte interna de toda a minha perna esquerda, em
meus órgãos genitais, no lado de dentro de minha perna direita e por fim na sola
de meu pé direito.
Segui as instruções dele. A pasta estava fria e tinha um cheiro especialmente
forte. Quando acabei de aplicá-la, endireitei o corpo. O cheiro da mistura
penetrou em minhas narinas. Parecia-me sufocante. O odor ativo estava mesmo
me sufocando. Parecia um tipo de gás. Tentei respirar pela boca e falar com
Dom Juan, mas não consegui.
Dom Juan estava olhando para mim, fixamente. Dei um passo em direção a
ele. Minhas pernas pareciam elásticas e compridas, extraordinariamente
compridas. Dei outro passo. As juntas de meus joelhos pareciam flexíveis, como
uma vara de salto; tremiam e vibravam e se contraíam como elástico. Fiz um
movimento para a frente. O movimento de meu corpo era lento e trêmulo; era
mais como um tremor que se adiantava e subia. Olhei para baixo e vi Dom Juan
sentado abaixo de mim, muito abaixo de mim. O impulso me levou mais um
passo à frente, que foi ainda mais elástico e longo do que o anterior. E dali eu me
elevei no ar. Lembro-me de que desci uma vez; então, dei um impulso com os
dois pés, dei um salto para trás e planei de costas. Via o céu escuro acima de
mim e as nuvens passando. Sacudi o corpo, para poder olhar para baixo. Vi a
massa escura das montanhas. Minha velocidade era extraordinária. Meus braços
estavam fixos, dobrados ao lado do corpo. Minha cabeça era a unidade de
direção. Se eu a conservasse dobrada para trás, fazia círculos verticais. Mudava
de direção virando a cabeça para o lado. Eu gozava de uma liberdade e
velocidade como jamais conhecera. A maravilhosa escuridão me dava uma
sensação de tristeza, talvez de saudade. Era como se tivesse encontrado um lugar
ao qual noite. Tentei olhar em volta, noite era serena, e no entanto encerrava
muito poder.
De repente, sabia que estava na hora de descer; era como se me tivessem
dado uma ordem a que eu tinha de obedecer. E comecei a descer como uma
pluma, com movimentos laterais. Esse tipo de movimento me enjoava muito.
Era lento e irregular, como se eu estivesse sendo abaixado por roldanas. Fiquei
enjoado. Minha cabeça doía terrivelmente. Uma espécie de negrume envolveu-
me. Tinha plena consciência de estar penso nele.
A próxima coisa de que me lembro foi a sensação de despertar. Estava na
minha cama, em meu quarto. Sentei-me e a imagem de meu quarto dissolveu-
se. Levantei-me. Estava despido! O movimento de ficar de pé me fez enjoar de
novo.
Reconheci alguns pontos do lugar. Estava a mais ou menos um quilômetro da
casa de Dom Juan, perto do lugar das plantas de Datura dele. De repente, tudo se
focalizou, e percebi que teria de andar até à casa dele, nu. Ser privado de roupas
era uma profunda desvantagem psicológica, mas não havia nada que eu pudesse
fazer para resolver o problema. Pensei em fazer-me uma saia de galhos de
árvores, mas a idéia parecia absurda e, além disso, já estava amanhecendo.
Esqueci de meu desconforto e meu enjôo e comecei a caminhar para a casa.
Estava obcecado com o medo de ser descoberto. Fiquei atento para a presença
de gente e de cachorros. Tentei correr, mas machuquei os pés nas pedrinhas
afiadas. Caminhei devagar. Já estava bem claro. Então, vi alguém andando pela
estrada, e depressa escondi-me atrás das moitas. Minha situação me parecia
ridícula. Um momento antes eu experimentava o prazer inacreditável de voar; no
minuto seguinte estava-me escondendo, encabulado com minha própria nudez.
Pensei em tornar a saltar para a estrada e correr na passando pela pessoa que
pudesse estar-se aproximando. Pensei que ela ficaria tão espantada que, quando
percebesse que era um homem nu, eu já estaria longe. Pensei em tudo isso, mas
não ousei mexer-me.
A pessoa que vinha pela estrada estava pertinho de mim e parou de andar.
Ouvi que chamava meu nome. Era Dom Juan, e estava com as minhas roupas.
Enquanto eu as vestia, ele olhou para mim e riu; riu tanto que também eu acabei
rindo.
Naquele mesmo dia, sexta-feira 5 de julho, no fim da tarde, Dom Juan pediu-
me que narrasse os detalhes da experiência. Com o máximo de cuidado, narrei
todo o episódio.
─ A segunda porção da erva-do-diabo é usada para voar ─ disse ele, quando
terminei. O unguento sozinho não basta. Meu benfeitor diz que é a raiz que dá a
direção e a sabedoria, e é a causa do vôo. A medida que aprende mais, e toma
mais para poder voar, você começa a ver tudo com muita clareza. Pode elevar-
se pelo ar por centenas de quilômetros, para ver o que está acontecendo em
qualquer lugar que queira, ou para desfechar um golpe fatal em seus inimigos
bem longe. Quando se familiarizar com a erva-do-diabo, ela lhe ensinará como
fazer essas coisas. Por exemplo, já lhe ensinou como mudar de direção. Do
mesmo modo, ela lhe ensinará coisas inimagináveis.
─ Como o quê, Dom Juan?
─ Isso eu não posso dizer. Cada homem é diferente. Meu benfeitor nunca me
disse o que ele aprendeu. Disse-me como agir, mas nunca o que via. Isso é só
para a gente.
─ Mas conto-lhe tudo o que vejo, Dom Juan.
vAgora, sim. Mais tarde, não contará. Da próxima vez que você tomar a erva-
do-diabo, você o fará por si, junto de suas próprias plantas, pois é lá que vai voltar
à terra, junto de suas plantas. Lembre-se disso. Foi por isso que eu vim procurá-lo
aqui, junto de minhas plantas.
Ele não disse mais nada e eu adormeci. Quando acordei de noitinha, sentia-
me revigorado. Por algum motivo, eu exsudava uma espécie de satisfação física.
Estava feliz, satisfeito. Dom Juan perguntou-me:
─ Gostou da noite? Ou foi assustadora?
Disse-lhe que a noite tinha sido realmente magnífica.
─ E a sua dor de cabeça? Foi muito ruim? ─ perguntou ele.
─ A dor de cabeça foi tão forte quanto todas as outras sensações. Foi a pior dor
que já tive ─ disse eu.
─ Isso o impediria de querer provar novamente o poder da erva-do-diabo?
─ Não sei. Não o desejo agora, mas posso desejá-lo depois. Não sei mesmo,
Dom Juan.
Havia uma pergunta que eu queria fazer-lhe. Sabia que ele ia esquivar-se, de
modo que esperei que ele mencionasse o assunto; esperei o dia inteiro. Por fim,
antes de partir naquela noite, tive de perguntar-lhe:
─ Voei de verdade, Dom Juan?
─ Foi o que me disse. Não voou?
─ Sei, Dom Juan. Quero dizer, meu corpo voou? Levantei vôo como um
passarinho?
─ Sempre me faz perguntas que não posso responder. Voou. É para isso que
serve a segunda porção da erva-do-diabo. Quando tomar mais dela, vai aprender
a voar perfeitamente. Não é uma coisa simples. Um homem voa com o auxilio
da segunda porção da erva-do-diabo. E só isso que lhe posso dizer. O que quer
saber não faz sentido. Os pássaros voam como pássaros e um homem que tomou
a erva-do-diabo voa como tal (el enverbado vuela así).
─ Assim como os pássaros? (?Así como los pájaros?)
─ Não, voa como um homem que tomou a erva (No, así como los
enverbados).
vEntão, realmente não voei, Dom Juan. Voei em minha imaginação, só em
minha mente. Onde estava meu corpo?
─ Nas moitas ─ respondeu ele, mordaz, mas logo caiu na gargalhada outra
vez. ─ O problema é que você só entende as coisas de um jeito. Não acha que
um homem voa; e no entanto, um brujo pode mover-se mil quilômetros por
segundo para ver o que está acontecendo. Pode desfechar um golpe em seus
inimigos a distâncias imensas. Então, ele voa ou não?
─ Sabe, Dom Juan, você e eu estamos orientados de maneira diferente.
Suponhamos, para argumentar, que um de meus colegas tivesse estado aqui
comigo quando tomei a erva-do-diabo. Ele teria podido ver-me voando?
─ Lá vem você outra vez com suas perguntas de que aconteceria se... Não
adianta falar assim. Se seu amigo, ou qualquer outra pessoa, tomar a segunda
porção da erva, só vai poder voar. Agora, se só estivesse olhando para você,
poderia ter visto você voando, ou não. Depende da pessoa.
─ Mas o que quero dizer, Dom Juan, é que, se você e eu olharmos para um
pássaro e o virmos voando, concordamos que está voando. Mas se dois de meus
amigos me tivessem visto voando como voei ontem, concordariam em que eu
estava voando?
─ Bom, podiam ter concordado. Você concorda que os pássaros voam porque
já os viu voando. Voar é coisa comum, com os pássaros. Mas não vai concordar
com outras coisas que os pássaros fazem, pois nunca viu pássaros fazendo tais
coisas. Se seus amigos soubessem a respeito dos homens voarem com a erva-do-
diabo, então eles haviam de concordar.
─ Vamos dizer a coisa em outras palavras, Dom Juan. O que quero dizer é
que, se estivesse amarrado a uma pedra, com uma corrente pesada, ainda assim
eu teria voado, pois meu corpo nada tinha a ver com meu vôo.
Dom Juan olhou para mim, incrédulo.
-Se você se amarrar a uma pedra ─ disse ele ─ acho que terá de voar
segurando a pedra com sua corrente pesada.
7
Reunir os ingredientes e prepará-los para a mistura do fumo constituíam um
ciclo anual. No primeiro ano Dom Juan ensinou-me o processo. Em dezembro de
1962, o segundo ano, quando o ciclo se renovou, Dom Juan apenas me dirigiu; eu
mesmo reuni os ingredientes, preparei-os e os guardei até o ano seguinte.
Em dezembro de 1963 um novo ciclo teve início pela terceira vez. Dom Juan
então me mostrou domo combinar os secos que eu colhera e preparara no ano
anterior. Pôs a mistura do fumo numa bolsinha de couro e saímos mais uma vez
para colher os vários componentes para o ano seguinte.
Dom Juan raramente mencionou o "fuminho" durante o se passou entre as
duas colheitas. Cada vez que eu ia, porém, ele me dava seu cachimbo para eu
segurar, e o processo de "me familiarizar" com o cachimbo seguiu havia
descrito. Colocou o cachimbo em minhas mãos gradativamente. Exigia uma
concentração completa e t naquele ato e dava-me orientações explicitas.
Qualquer mal jeito com o cachimbo resultaria inevitavelmente em minha morte
ou na dele, dizia.
Assim que terminamos o terceiro ciclo da coleta e preparação, Dom Juan
começou a falar do fumo como aliado pela primeira vez, em mais de um ano.
Segunda-feira, 23 de dezembro de 1963
Estávamos voltando de carro para a casa dele depois de colher umas flores
amarelas para a mistura. Eram um dos ingredientes necessários. Observei que
naquele ano não tínhamos seguido a mesma ordem de colher os ingredientes que
no ano anterior. Ele riu e disse que o fumo não era temperamental nem
mesquinho, como a erva-do-diabo. Para o fumo, a ordem da coleta era sem
importância; o que era necessário era que o homem que usasse a mistura fosse
preciso e exato.
Perguntei a Dom Juan o que iríamos fazer com a mistura que ele tinha
preparado e me dado para guardar. Respondeu que era minha, e acrescentou que
eu tinha de utiliza-la o mais breve possível. Perguntei quanto era necessário de
cada vez. O saquinho que ele me dera continha mais ou menos três vezes a
quantidade que uma bolsinha de fumo normal conteria. Disse-me que eu teria de
usar todo o conteúdo de meu saco em um ano, e a quantidade que eu precisaria
cada vez que fumasse era assunto pessoal.
Queria saber o que aconteceria se eu nunca acabasse o saco. Dom Juan disse
que nada aconteceria; o fumo não exigia nada. Ele mesmo não precisava mais
fumar, e no entanto todos os anos preparava uma nova mistura. Depois,
emendou-se e disse que raramente tinha de fumar. Perguntei-lhe o que fazia com
a mistura que não fumava, mas ele não respondeu. Disse que a mistura não
prestava mais, se não fosse usada dentro de um ano.
Nesse ponto, tivemos uma longa discussão. Não formulei minhas perguntas
direito, e as respostas dele pareciam confusas. Eu queria saber se a mistura
perderia suas propriedades alucinógenas, ou seu poder, depois de um ano, assim
tornando necessário o ciclo anual, mas ele insistiu que a mistura não perderia seu
poder em época alguma. A única coisa que acontecia, falou, era que um homem
não precisaria mais dela, pois teria preparado um novo suprimento; tinha de
dispor do que sobrasse da mistura velha de determinada maneira, que Dom Juan
não me quis revelar nesse ponto.
Terça-feira, 24 de dezembro de 1963
─ Disse que não precisa mais fumar, Dom Juan?
─ Sim, porque o fumo é meu aliado e não preciso mais fumar. Posso chamá-
lo a qualquer momento, em qualquer lugar.
─ Quer dizer que ele vem mesmo que você não fume?
─ Quero dizer que vou até ele livremente.
─ Também poderei fazer isso?
─ Se conseguir fazer dele seu aliado, sim.
Terça-feira, 31 de dezembro de 1963
Na quinta-feira, 26 de dezembro, tive minha primeira experiência com o
aliado de Dom Juan, o fumo. O dia todo andei de carro com ele, e trabalhei para
ele. Voltamos para casa à tardinha. Mencionei que não tínhamos comido nada o
dia todo. Não se preocupou nem um pouco; em vez disso, começou a dizer-me
que era essencial que eu me familiarizasse com o fumo. Disse que eu tinha de
experimentá-lo eu mesmo para compreender sua importância como aliado.
Sem me dar oportunidade de dizer coisa alguma, Dom Juan me disse que ia
acender o cachimbo dele para mim, naquele momento. Procurei dissuadi-lo,
argumentando que não acreditava estar preparado. Disse-lhe que achava que não
tinha 0 o cachimbo por bastante tempo. Mas ele angu u que não me restava mais
muito tempo para aprender, eu tinha de usar o cachimbo muito breve. Pegou o
cachimbo da bolsinha e afagou-o. Sentei-me no chão ao lado dele e tentei
desesperadamente ficar enjoado e desmaiar – fazer qualquer coisa para adiar
esse passo inevitável.
O quarto estava quase escuro. Dom Juan tinha acendido s querosene e o
colocara no canto. Geralmente o mantinha o quarto numa semi-escuridão
repousante, a luz amarela sempre calmante. Mas, dessa vez, a luz fraca e
inusitadamente vermelha; era enervante. Desamarrou seu saquinho de mistura
sem tirá-lo do cordão preso pescoço. Pegou o cachimbo pertinho dele, colocou-o
de sua camisa e pôs um pouco da mistura dentro do Fez com que eu observasse
aquilo, dizendo que, se mistura se derramasse, cairia dentro da camisa.
Don Juan encheu três quartos do fornilho e depois amarrou o saquinho com
uma das mãos, enquanto segurava o cachimbo com a outra. Pegou um pratinho
de barro, deu-o a mim, e pediu que fosse buscar uns carvõezinhos do fogo lá
fora. Fui para os fundos da casa e peguei um punhado de carvão do fogão de
tijolo. Voltei depressa para o quarto. Eu estava muito preocupado. Era como um
pressentimento.
Sentei-me junto de Dom Juan e entreguei-lhe o pratinho. Olhou para o prato e
calmamente disse que os carvões eram grandes demais. Queria menores, que
coubessem dentro do fornilho do cachimbo. Voltei para o fogão e peguei outros.
Segurou o prato de carvões e colocou-o diante de si. Estava sentado de pernas
cruzadas e metidas embaixo dele. Olhou para mim pelo canto do olho e
debruçou-se para a frente, até o queixo quase encostar nos carvões. Segurou o
cachimbo na mão esquerda e, com um movimento muito rápido de sua mão
direita, pegou um pedacinho de carvão em brasa e colocou-o no fornilho do
cachimbo; depois, sentou reto e, segurando o cachimbo nas duas mãos, levou-o à
boca e tirou três baforadas. Estendeu os braços para mim e, num cochicho forte,
disse-me que pegasse o cachimbo com as duas mãos e o fumasse.
A idéia de recusar o cachimbo e fugir me passou pela cabeça por um
momento; mas Dom Juan tornou a dizer, ainda num sussurro, que eu pegasse o
cachimbo e fumasse. Olhei para ele. Seus olhos estavam fitos em mim. Mas seu
olhar era amigo, preocupado. Era claro que eu fizera a escolha havia muito
tempo; não tinha alternativa senão fazer o que ele dizia.
Peguei o cachimbo e quase o deixei cair. Estava quente! Levei-o a minha
boca com muito cuidado, pois imaginava que seu calor fosse intolerável a meus
lábios. Mas não senti calor algum.
Dom Juan me disse para inspirar. A fumaça entrou em minha boca e pareceu
circular por ela. Era pesada! Parecia que eu estava com a boca cheia de massa.
A imagem me ocorreu, embora nunca tivesse estado com a boca cheia de
massa. A fumaça também parecia mentol e o interior de minha boca, de repente,
ficou frio. Foi uma sensação refrescante. "Outra vez! Outra vez!", ouvi Dom Juan
sussurrando. Senti a fumaça penetrar livremente dentro de meu corpo, quase
sem meu controle. Não precisei que Dom Juan me incitasse mais.
Mecanicamente, continuei a tragar.
De repente, Dom Juan debruçou-se e pegou o cachimbo de minhas mãos.
Com delicadeza, bateu as cinzas no prato com os carvões, depois molhou o dedo
com saliva e passou-o dentro do fornilho para limpar os lados. Soprou várias
vezes pelo cabo. Vi que ele guardava o cachimbo em sua capa. Eu concentrava
meu interesse em seus atos.
Depois que ele acabou de limpar o cachimbo e guardá-lo, ficou olhando para
mim e percebi que todo meu corpo estava dormente, mentolado. Meu rosto
estava pesado e meu queixo dolorido. Não conseguia ficar com a boca fechada,
mas não estava salivando. A boca estava seca e ardendo, e no entanto eu não
estava com sede. Comecei a sentir um calor desusado pela minha cabeça. Um
calor frio! Meu hálito parecia cortar as narinas e o lábio superior cada vez que eu
expirava. Mas não queimava; doía como um pedaço de gelo.
Dom Juan sentou-se a meu lado, à minha direita, e sem se mexer segurou a
capa do cachimbo de encontro ao chão, como que mantendo-o lá à força.
Minhas mãos estavam pesadas. Meus braços estavam pendurados, puxando meus
ombros para baixo. Meu nariz estava pingando. Limpei-o com as costas da mão,
e o lábio superior desapareceu! Enxuguei o rosto, e toda a pele desapareceu!
Estava derretendo! Sentia-me como se minha pele estivesse mesmo se
derretendo. Levantei-me de um salto e procurei agarrar alguma coisa – qualquer
coisa -para me apoiar. Estava sentindo um terror como nunca havia
experimentado antes. Agarrei-me a uma vara que Dom Juan mantém espetada
no chão no centro do quarto. Fiquei ali de pé por um momento, e depois virei-me
para olhar para ele. Continuava ali sentado imóvel, segurando o cachimbo,
olhando para mim.
Minha respiração estava dolorosamente quente (ou fria?). Estava-me
sufocando. Inclinei a cabeça para a frente para repousa-la na vara, mas parece
que não a encontrei, e minha cabeça continuou a se mover para baixo, além do
ponto onde estava a vara. Parei quando já estava quase no chão. Endireitei-me. A
vara estava ali defronte de meus olhos! Novamente tentei apoiar a cabeça nela.
Tentei controlar-me e ficar consciente e conservei os olhos abertos ao me
debruçar para tocar a vara com a testa. Estava a alguns centímetros de meus
olhos, mas, quando encostei a cabeça nela, tive a sensação estranha de estar
atravessando-a.
Numa busca desesperada por uma explicação racional, concluí que meus
olhos estavam modificando a profundidade e que a vara devia estar a uns três
metros de distância, embora eu a visse diretamente diante de meu rosto. Então,
concebi um meio lógico, racional, de verificar a posição da vara. Comecei a me
mover de lado em volta dela, um passo de cada vez. Meu argumento era que,
andando em volta da vara assim, não poderia descrever um círculo de mais de
um metro e meio de diâmetro; se a vara realmente estivesse a três metros de
mim, ou fora de meu alcance, chegaria um momento em que estaria de costas
para ela. Eu esperava que, naquele momento, a vara desaparecesse, pois
realmente estaria atrás de mim.
Então, passei a fazer um círculo em volta da vara, mas ela permaneceu diante
de meus olhos enquanto eu dava a volta. Num acesso de frustração, agarrei-a
com ambas as mãos, mas minhas mãos passaram através dela. Estava agarrando
o ar. Calculei com cuidado a distância entre a vara e eu. Imaginei que devia ser
de um metro. Isto é, meus olhos a percebiam como um metro. Por um
momento, brinquei com a percepção de profundidade, mexendo a cabeça de um
lado para outro, focalizando um olho de cada vez na vara e depois no fundo do
quarto. Segundo minha avaliação da profundidade, a vara estava inegavelmente
diante de mim, talvez a um metro de distância. Estendendo os braços para
proteger minha cabeça, investi com toda a força. A sensação foi a mesma...
atravessei a vara. Dessa vez, caí ao comprido no chão. Tornei a levantar-me. E
levantar-me foi talvez o ato mais estranho de todos os que pratiquei naquela noite.
Levantei-me por pensamento! Para levantar-me, não utilizai meus músculos
nem meu esqueleto como estou acostumado a fazer, pois não tinha mais controle
sobre eles. Soube disso no momento em que caí ao chão. Mas minha curiosidade
a respeito da vara era tal que me "levantei por pensamento", numa espécie de
ação reflexa. E antes de entender plenamente que não podia mover-me, já
estava de pé.
Pedi ajuda a Dom Juan. Num momento, gritei freneticamente em altos
brados, mas Dom Juan não se mexeu. Continuou a olhar para mim, pelo canto do
olho, como se não quisesse virar a cabeça para me olhar de frente. Dei um passo
em direção a ele, mas, em vez de andar para a frente, cambaleei para trás e caí
de encontro à parede. Eu sabia que tinha batido de encontro à mesma com as
costas, no entanto não parecia dura; eu estava completamente suspenso numa
substância macia e esponjosa -era a parede. Meus braços estavam estendidos
para os lados, e lentamente meu corpo todo pareceu afundar-se na parede. Só
conseguia olhar para a frente, para o quarto. Dom Juan ainda me estava
espiando, mas não fez qualquer movimento para me ajudar. Fiz um esforço
supremo para tirar meu corpo da parede, mas ele só afundou cada vez mais. No
meio de um terror indescritível, senti que a parede esponjosa se fechava sobre
meu rosto. Tentei fechar os olhos, mas eles estavam abertos e fixos.
Não me lembro de mais nada do que aconteceu. De repente Dom Juan estava
na minha frente, pertinho. Estávamos no outro quarto. Vi a mesa dele e o fogão
com o fogo aceso o canto do olho, distingui a cerca do lado de fora da casa. Via
tudo muito claramente. Dom Juan tinha trazido a lanterna de querosene e a
dependurara da viga no meio do quarto. Tentei olhar em outra direção, mas meus
olhos só estavam preparados para olhar bem em frente. Não distinguia, nem
sentia, qualquer parte de meu corpo. Minha respiração ,não podia ser notada.
Mas meus pensamentos estavam extremamente lúcidos. Estava claramente
consciente de tudo o que se passava diante de mim. Dom Juan acercou-se de
mim e clareza do espírito acabou. Alguma coisa pareceu parar de mim. Não
havia mais pensamentos. Vi Dom Juan aproximando e odiei-o. Queria
estraçalhá-lo. Podia tê-lo naquele momento, mas não conseguia mexer-me. A
princípio senti vagamente uma pressão na cabeça, mas isso desapareceu. Só
reatava uma coisa... uma raiva avassaladora contra Dom Juan. Eu o via a alguns
centímetros de Queria despedaçá-lo com as unhas. Senti que estava gemendo.
Alguma coisa dentro de mim começou a convulsionar-se. Ouvi Dom Juan
falando comigo. Sua voz era suave e calmante e, pareceu-me, infinitamente
agradável. Chegou ainda mais perto e começou a recitar uma canção espanhola
de ninar.
“Senhora Santana, por que chora o bebê? Por uma maçã que perdeu. Eu lhe
darei uma. Darei duas. Uma para o menino e uma para você". ("Senora Santa
Ana, porque llora el nino? Por una manzana que se le ha perdido. Yo Ie dará una.
Yo le daré dos. Una para el niño y otra para vos!") Um calor invadiu-me. Era um
calor do coração e dos sentimentos. As Dom Juan eram um eco distante.
Lembravam as recordações esquecidas da infância.
A violência que eu sentira antes desapareceu. O ressentimento transformou-se
num anseio Terça-feira, um afeto alegre por Dom Juan. Falou que eu devia
esforçar-me por não adormecer; que eu não tinha mais corpo e que estava livre
para transformar-me naquilo que quisesse. Deu um passo atrás. Meus olhos
estavam num nível normal, como se eu estivesse de pé diante dele. Estendeu-me
os dois braços e disse que eu entrasse dentro deles.
Ou eu avancei, ou ele se aproximou de mim. As mãos dele estavam já no
meu rosto, nos meus olhos, embora eu não as sentisse.
— Entre dentro de meu peito — ouvi-o dizer. Senti como se o estivesse
engolindo. Era a mesma sensação de esponjosidade da parede.
Então, ouvi a voz dele me ordenando para olhar e ver. Não o distinguia mais.
Aparentemente meus olhos estavam abertos, pois via lampejos de luz num
campo vermelho; era como se eu estivesse olhando para uma luz de olhos
fechados. Então, meus pensamentos se ligaram de novo. Voltaram numa rápida
barragem de imagens -rostos, cenas. Cenas sem qualquer coerência apareciam e
sumiam. Era como um sonho rápido, em que as imagens se sobrepõem e
mudam. Os pensamentos começaram a diminuir em número e intensidade e
logo desapareceram de novo. Só havia uma consciência de afeição, de estar
feliz. Não conseguia distinguir formas nem luz. De repente, fui puxado para
cima. Senti distintamente que estava sendo levantado. E estava livre, movendo-
me com uma extraordinária leveza e velocidade na água ou no ar. Nadava como
uma enguia; contorcia-me e virava e me alçava e baixava à vontade. Sentia um
vento frio soprando em volta de mim, e comecei a flutuar como uma pluma,
para diante e para trás, para baixo, e para baixo e para baixo.
Sábado, 28 de dezembro de 1963
Acordei ontem no fim da tarde. Dom Juan me disse que eu tinha dormido
calmamente durante quase dois dias. Tinha uma dor de cabeça de rachar. Bebi
um pouco d’água e fiquei enjoado. Sentia-me cansado, extremamente cansado, e
depois de comer tornei a dormir.
Hoje, sentia-me novamente perfeitamente descansado. Dom Juan e eu
conversamos sobre minha experiência com o fuminho. Pensando que ele queria
que eu contasse a história toda como eu sempre fazia, comecei a descrever
minhas impressões, mas ele me fez parar, dizendo que não era preciso. Disse-me
que, na verdade, eu não tinha feito nada, e que tinha adormecido logo, de modo
que não havia nada para contar.
— E aquilo tudo que senti? Não é importante? — insisti.
— Não, não com o fumo. Mais tarde, quando você aprender a viajar,
conversaremos; quando aprender a entrar nas coisas.
— A gente "entra" mesmo nas coisas?
— Não se lembra? Você entrou e atravessou aquela parede.
— Acho que eu estava fora de meu juízo.
— Não estava, não.
— Agiu da mesma maneira quando fumou pela primeira vez, Dom Juan?
— Não, não foi igual. Temos personalidades diferentes.
— Como foi que você se comportou?
Dom Juan não respondeu. Reformulei a pergunta e tornei a indagar. Mas ele
disse que não se lembrava de suas experiências e que minha pergunta era o
mesmo que perguntar a um pescador o que ele sentira da primeira vez que
pescara.
Falou que o fumo como aliado era único; e lembrei-lhe de ele também dissera
que Mescalito era único. Argumentou que cada qual era único, mas que eram
diferentes em qualidade.
— Mescalito é um protetor porque fala com você e pode guiar seus atos —
disse ele. — Mescalito ensina a maneira certa de viver. E você pode vê-lo porque
ele está fora de você. O fumo por outro lado, é um aliado. Transforma você e lhe
dá poder sem jamais mostrar a sua presença. Não pode conversar com ele. Mas
sabe que ele existe porque leva embora seu corpo e o torna leve como o ar. No
entanto, você nunca o vê. Mas está ali, dando-lhe poder para realizar coisas
inimagináveis, como quando lhe tira seu corpo.
— Senti mesmo como se tivesse perdido meu corpo, Dom Juan.
— E perdeu.
— Quer dizer, eu não tinha mesmo corpo?
— O que é que você acha?
— Bem, não sei. Só posso dizer-lhe o que eu sentia.
— É só isso que existe, na realidade... o que você sentia.
— Mas como é que você me via, Dom Juan? Como é que eu lhe aparecia?
— Como eu o via não importa. É como na ocasião em agarrou a vara. Sentia
que não estava ali e deu a volta à vara para se certificar de que estava lá. Mas
quando saltou em cima dela, tornou a sentir que não estava ali, realmente.
— Mas você me via como estou agora, não?
— Não! Não estava como está agora! — É verdade! Isso admito. Mas tinha
meu corpo, não tinha, embora não pudesse senti-lo?
— Não! Que diabo! Não tinha um corpo como o que tem hoje! — Então o
que aconteceu com meu corpo?
— Eu pensava que você entendesse. O fuminho levou seu corpo.
— Mas para onde foi?
— Como, afinal, você espera que eu saiba disso?
Era inútil insistir em tentar obter uma explicação "racional". Disse-lhe que não
queria discutir, nem fazer perguntas bobas, mas se eu aceitasse a idéia de que era
possível perder meu corpo, perderia toda minha racionalidade.
Respondeu que eu estava exagerando, como sempre, e que não tinha perdido
nem ia perder nada por causa do fuminho.
Terça-feira, 28 de janeiro de 1964
Perguntei a Dom Juan o que ele achava da idéia de dar o fumo a qualquer
pessoa que desejasse ter a experiência.
Respondeu, indignado, que agir assim seria o mesmo que matá-la, pois ela não
teria ninguém para guiá-la. Pedi a Dom Juan para explicar o que queria dizer.
Falou que eu estava ali, vivo e conversando, porque ele me trouxera de volta.
Tinha restaurado meu corpo. Sem ele eu nunca teria acordado.
— Como foi que restaurou meu corpo, Dom Juan?
— Mais tarde aprenderá isso, mas terá de aprender a fazê-lo sozinho. É por
isso que eu quero que você aprenda o máximo que puder enquanto ainda estou
por aqui. Já desperdiçou muito tempo fazendo perguntas burras sobre bobagens.
Mas talvez não seja o seu destino aprender tudo a respeito do fuminho.
— Bem, então o que devo fazer?
— Deixe que o fumo lhe ensine tudo o que puder aprender.
— O fumo também ensina?
— Claro que ensina.
— Ensina como Mescalito?
— Não, não é um mestre como Mescalito. Não mostra as mesmas coisas.
— Mas então o que é que o fumo ensina?
— Ensina-lhe como usar seu poder, e a saber que deve tantas vezes quantas
puder.
— Seu aliado é muito assustador, Dom Juan. Foi diferente de tudo o que já
experimentei. Achei que tinha perdido o juízo.
Por algum motivo, foi essa a imagem mais impressionante que me veio à
cabeça. Considerava o acontecimento global do ponto de vista especial de ter tido
outras experiências alucinógenas com as quais compará-lo, e a única coisa que
me ocorria, repetidamente, era que, com o fumo, a gente perde o juízo.
Dom Juan não fez caso de minha imagem, dizendo que o que eu sentia era seu
poder inimaginável. E para lidar com aquele poder, disse ele, é preciso viver
uma vida forte. A idéia de vida forte não só pertence ao período de preparação,
como também acarreta a atitude do homem depois da experiência. Disse que o
fumo é tão forte que a gente só pode enfrentá-lo com força; senão, a vida da
pessoa seria despedaçada.
Perguntei-lhe se o fumo tinha o mesmo efeito sobre todo mundo. Respondeu
que produzia uma transformação, mas não em todo mundo.
— Então, qual o motivo especial por que o fumo produziu a transformação em
mim? perguntei.
— Acho que esta é uma pergunta muito tola. Seguiu obedientemente todos os
passos necessários. Não é mistério que o fumo o tenha transformado.
Pedi-lhe novamente para me contar a respeito de meu aspecto. Queria saber
como tinha ficado, pois a idéia de um corpo que ele incutira em minha mente
era, compreensivelmente, insuportável.
Ele disse que, para dizer a verdade, tivera medo de olhar para mim; sentiu-se
do mesmo modo que seu benfeitor devia ter-se sentido ao vê-lo fumando pela
primeira vez.
— Por que teve medo? Eu estava assim tão assustador? — indaguei.
— Nunca havia visto ninguém fumando antes.
— Nunca viu seu benfeitor fumando?
— Não.
— Nunca viu nem a si mesmo?
— Como poderia ver-me?
— Poderia fumar diante de um espelho.
Não respondeu, mas voltou-se para mim e sacudiu a cabeça. Tornei a
perguntar se era possível olhar num espelho. Respondeu que seria possível,
embora inútil, pois a pessoa provavelmente morreria de susto, se não de outra
coisa.
— Então a gente deve ficar assustador — falei.
— A vida toda pensei sobre isso mesmo — disse ele. _ No entanto, nunca fiz
perguntas, nem espiei no espelho. Nem me lembrei disso.
— Então, como posso descobrir?
— Terá de esperar, assim como eu fiz, até você dar o fumo a outra pessoa...
se algum dia o dominar, é claro. Então verá como fica o homem. É essa a regra.
— O que aconteceria se eu fumasse em frente a uma câmara e tirasse um
retrato de mim?
— Não sei. O fumo provavelmente se voltaria contra você. Mas suponho que
o considere tão inofensivo que pensa que pode brincar com ele.
Disse-lhe que não pretendia brincar, mas que ele já me havia dito que o fumo
não exigia estágios, e pensei que não havia mal em querer saber qual a aparência
da pessoa fumando. Corrigiu-me, explicando que tinha querido dizer que não
havia necessidade de seguir uma ordem determinada, como no caso da erva-do-
diabo; o que era necessário com o fumo era a atitude adequada, disse ele. Desse
ponto de vista, a gente tinha de ser exato ao seguir a regra. Deu-me um exemplo,
explicando que não fazia diferença qual o ingrediente da mistura a ser apanhado
primeiro, contanto que a quantidade fosse correta.
Perguntei se haveria algum mal em contar a terceiros a respeito de minha
experiência. Respondeu que os únicos segredos que nunca podiam ser revelados
eram como fazer a mistura, como se mover e como voltar; os outros assuntos
não tinham importância.
8
Meu último encontro com Mescalito foi um conjunto de quatro sessões
realizadas em quatro dias consecutivos. Dom Juan chamou essa longa sessão um
mitote. Era uma cerimônia de pey oteros e aprendizes. Havia dois homens mais
velhos, mais ou menos da idade de Dom Juan, um dos quais e cinco homens mais
moços, inclusive eu. A cerimônia teve lugar no Estado de Chihuahua, no México
próximo à fronteira do Texas. Consistia em cantar e ingerir o peiote durante a
noite. Na parte do dia, serventes mulheres, que ficavam fora dos limites do local
dá cerimônia, forneciam água aos homens, e somente uma amostra de alimentos
rituais eram consumidos cada dia.
Sábado, 12 de setembro de 1964
Na primeira noite da cerimônia, quinta-feira, 3 de setembro, tomei oito botões
de peiote. Não tiveram efeito sobre mim, ou, se tiveram, foi muito ligeiro. Fiquei
de olhos fechados a maior parte da noite. Sentia-me muito melhor assim. Não
dormi, nem fiquei cansado. No fim da sessão, o canto extraordinário. Por um
momento, senti-me exaltado e tive vontade de chorar, mas quando terminou o
canto a sensação sumiu.
Nós todos nos levantamos e fomos para fora. As mulheres nos deram água.
Alguns dos homens gargarejaram com ela; outros a beberam. Os homens não
falavam nada, mas as mulheres conversavam e riam o dia todo. Os alimentos
rituais eram servidos ao meio-dia. Consistiam em milho cozido.
Ao pôr-do-sol, na sexta-feira, 4 de setembro, começou a segunda sessão. O
líder cantou sua canção de peiote e recomeçou o ciclo de cânticos peiotes e o
consumo de botões de peiote. Terminou de manhã, cada homem cantando sua
própria canção, em uníssono com os outros.
Quando saí, não vi tantas mulheres quanto na véspera. Alguém me deu água,
mas eu não estava mais preocupado com o ambiente. Mais uma vez eu ingerira
oito botões, mas o efeito fora diferente.
Deve ter sido no fim da sessão que a cantoria se acelerou muito, todo mundo
cantando ao mesmo tempo. Percebi que alguma coisa ou alguém do lado de fora
da casa queria entrar. Não sabia se a cantoria era para evitar que a coisa entrasse
ou para atraí-la para o interior.
Era o único que não tinha uma canção. Todos pareciam olhar para mim com
curiosidade, especialmente os mais jovens. Fiquei encabulado e fechei os olhos.
Então, percebi que eu podia ver o que se passava muito melhor de olhos
fechados. Essa idéia ocupou toda minha atenção. Fechei os olhos e vi os homens
em minha frente. Abri os olhos, e a imagem continuava igual. O ambiente era
exatamente igual para mim, de olhos fechados ou abertos.
Da repente, tudo desapareceu, ou se desfez, e apareceu a figura viril de
Mescalito que eu vira dois anos antes. Ele estava sentado a certa distância, de
perfil para mim. Olhei-o fixamente, mas ele não olhou para mim; não se virou
nem uma vez.
Achei que estava fazendo alguma coisa errada, alguma coisa que o estava
afastando. Levantei-me e fui para junto dele, para perguntar-lhe. Mas meu
movimento dissolveu a imagem. Começou a desaparecer e os vultos dos homens
que estavam comigo se superpuseram sobre ela. Tornei a ouvir a cantoria alta e
frenética.
Fui para os arbustos próximos e andei um pouco. Tudo estava muito nítido.
Reparei que eu estava vendo no escuro, mas dessa vez importava muito pouco. O
importante era saber por que Mescalito me evitava.
Voltei para junto do grupo e quando ia entrar na casa, ouvi um ronco pesado e
senti um tremor. A terra estava tremendo. Era o mesmo ruído que eu ouvira no
vale de peiote dois arcos atrás.
Tornei a correr para dentro dos arbustos. Sabia que Mescalito estava lá, e que
eu ia encontrá-lo. Mas ele não estava. Esperei até de manhã e me juntei aos
outros pouco antes de terminar a sessão.
O mesmo ritual foi repetido no terceiro dia. Não estava cansado mas dormi
durante a tarde.
Na noite de sábado, 5 de setembro, o velho cantou sua canção peiote para
recomeçar o ciclo. Naquela sessão, só mastiguei um botão e não escutei
nenhuma das canções, nem prestei atenção a nada do que se passou. Desde o
primeiro momento, todo meu ser se concentrou unicamente em um ponto. Sabia
que uma coisa muito importante para o meu bem-estar estava faltando.
Enquanto os homens cantavam, pedi a Mescalito, em voz alta, que me
ensinasse uma canção. Meu pedido misturou-se com os cantos altos dos homens.
Imediatamente, ouvi uma canção em meus ouvidos. Virei-me e sentei-me de
costas para o grupo e escutei. Ouvi a letra e a melodia várias vezes e as repeti até
ter aprendido toda a canção. Era uma canção comprida, em espanhol. Então,
cantei-a para o grupo, várias vezes. E pouco depois uma nova canção insinuou-se
nos meus ouvidos. Quando chegou a manhã, tinha cantado ambas as canções
inúmeras vezes. Sentia-me renovado, revigorado.
Depois de nos darem água, Dom Juan deu-me um saco e nós todos fomos
para os morros. Foi uma caminhada longa e fatigante até uma meseta. Ali vi
várias plantas de peiote. Mas por algum motivo, não quis olhar para elas. Depois
de atravessarmos o pequeno planalto, o grupo se espalhou. Dom Juan e eu
voltamos, colhendo botões de peiote, tal como tínhamos feito da primeira vez que
o ajudei.
Voltamos no fim da tarde do domingo, 6 de setembro. De noite o líder reabriu
o ciclo. Ninguém disse nada, mas eu sabia perfeitamente que era a última
reunião. Dessa vez, o velho cantou uma canção nova. Foi passado em volta um
saco com botões frescos de peiote. Era a primeira vez que eu provava um botão
fresco. Era polpudo mas duro de mascar. Parecia uma fruta verde e dura e era
mais amargo do que os botões secos. Pessoalmente, achei o peiote fresco muito
mais vivo.
Mastiguei 14 botões. Contei-os com cuidado. Não terminei o último, pois ouvi
o ruído especial que marcava a presença de Mescalito. Todos cantavam
freneticamente, e eu sabia que Dom Juan e todos os outros tinham ouvido o
barulho. Recusei-me a pensar que sua reação fosse uma resposta a um sinal dado
por um deles, só para me enganar.
Naquele momento, senti uma grande onda de sabedoria me invadir. Uma
suposição que eu alimentava havia três anos transformou-se em certeza. Levara
três anos para compreender, ou melhor, para descobrir, que o que quer que
esteja encerrado no cacto Lophophora williamsii não tinha nada a ver comigo
para existir como entidade; existia por si lá fora, solta. Então eu o soube.
Cantei febrilmente, até não poder mais pronunciar as palavras. Sentia como se
as canções estivessem dentro de meu corpo, sacudindo-me incontrolavelmente.
Tinha de sair e encontrar Mescalito, senão explodiria. Encaminhei-me para o
campo de peiote. Continuei a cantar minhas canções. Sabia que eram minhas,
individualmente — prova indiscutível de minha singularidade. Sentia cada passo;
eles ressoavam na terra; seu eco produzia a euforia indescritível de ser homem.
Cada uma das plantas de peiote no campo brilhava com uma luz azulada e
cintilante. Uma das plantas tinha uma luz muito clara. Sentei-me diante dela e
cantei-lhe minhas canções. Enquanto eu cantava, Mescalito saiu de dentro da
planta -o mesmo vulto de homem que eu já vira antes. Olhou para mim. Com
grande audácia, para uma pessoa do meu temperamento, cantei para ele. Ouvi o
som de flautas, ou do vento, uma vibração musical conhecida. Pareceu dizer-me,
como dissera dois anos antes: "O que você quer?"
Falei bem alto. Disse que eu sabia que havia algo de errado em minha vida e
meus atos, mas que não conseguia descobrir o que fosse. Implorei-lhe que me
dissesse o que havia de errado comigo e também para me dizer seu nome, para
eu poder chamá-lo quando precisasse dele. Olhou para mim, alongou a boca
como uma trompa, até ela alcançar minha orelha, e depois me disse seu nome.
De repente, vi meu próprio pai de pé no meio do campo de peiote; mas o
campo desaparecera e a cena era minha velha casa, o lar de minha infância.
Meu pai e eu estávamos de pé ao lado de uma figueira. Abracei meu pai e
depressa comecei a contar-lhe coisas que nunca tinha podido dizer antes. Todos
meus pensamentos eram concisos e coerentes. Era como se não tivéssemos
tempo e eu tivesse de dizer tudo de uma vez. Falei coisas arrasadoras a respeito
de meus sentimento para com ele, coisas que eu nunca teria podido exprimir, em
circunstâncias normais.
Meu pai não disse nada. Só ficou ouvindo e depois foi puxado, ou sugado.
Fiquei sozinho outra vez. Chorei de remorso e tristeza.
Passei pelo campo de peiote chamando o nome que Mescalito me ensinara.
Alguma coisa surgiu de uma luz estranha, como de estrela, numa planta de
peiote. Era um objeto comprido e luminoso — um bastão de luz do tamanho de
um homem. Por um momento, iluminou todo o campo com uma luz intensa,
amarelada ou âmbar; depois iluminou todo o céu, criando um espetáculo
maravilhoso e portentoso. Achei que ia ficar cego, se continuasse a olhar; cobri
os olhos e enterrei a nos braços.
Tive uma idéia clara de que Mescalito me havia dito comer mais um botão de
peiote. Pensei: "Não posso fazer isso, pois não tenho faca para cortá-lo." — Coma
um do chão — disse-me ele, do mesmo modo estranho.
Deitei-me de bruços e mastiguei a ponta de uma planta. Aquilo me acendeu.
Encheu todos os cantos de meu corpo com calor e clareza. Tudo estava vivo.
Tudo tinha detalhes delicados e complicados, e no entanto tudo era tão simples.
Eu estava em toda parte; podia ver para cima e para baixo e em volta, tudo ao
mesmo tempo.
Aquela sensação especial durou o suficiente para eu tomar conhecimento
dela. Então, mudou para um terror opressivo, um terror que não me veio de
repente, mas rapidamente. A princípio, meu mundo maravilhoso de silêncio foi
abalado por ruídos agudos, mas não me preocupei. Depois, os ruídos foram se
tornando mais fortes e eram ininterruptos, como se me estivessem envolvendo. E
aos poucos perdi a sensação de estar flutuando num mundo tão diferenciado,
indiferente e belo. Os ruídos se tornaram passadas gigantescas. Alguma coisa
enorme respirava e se movia em volta de mim. Achei que me estava caçando.
Corri e escondi-me debaixo de um rochedo e procurei ver dali o que é que me
perseguia. Em dado momento, saí de meu esconderijo para olhar, e meu
perseguidor, fosse quem fosse, avançou. Era como uma alga marinha. Lançou-
se sobre mim. Pensei que seu peso fosse esmagar-me, mas encontrei-me dentro
de um cano, ou cavidade. Vi claramente que a alga não tinha coberto toda a
superfície do solo em volta de mim. Ainda restava um pouco de terra livre
debaixo do rochedo. Comecei a rastejar para baixo dele. Vi imensos pingos de
líquido caindo da alga. Eu "sabia" que ela estava segregando ácido digestivo a fim
de me dissolver. Um pingo caiu no meu braço; tentei esfregar o ácido com pó e
apliquei saliva, enquanto cavava mais. Em certo momento, fiquei quase
vaporoso. Estava sendo empurrado para cima, para uma luz. Achei que a alga
me dissolvera. Vagamente, vi uma luz que se tornava mais forte; estava saindo de
debaixo da terra e por fim irrompeu no que reconheci como sendo o sol
erguendo-se por detrás dos montes.
Aos poucos, comecei a recuperar meus processos sensoriais normais. Deitei-
me de bruços com o queixo sobre meus braços cruzados. A planta de peiote
diante de mim começou a iluminar-se de novo e, antes que eu pudesse mexer os
olhos, apareceu novamente a luz comprida. Pairou sobre mim. Sentei-me. A luz
tocou em meu corpo todo com uma força tranquila, e depois rolou e
desapareceu.
Corri até o lugar onde estavam os outros homens. Todos voltamos para a
cidade. Dom Juan e eu ficamos mais um dia com Roberto, o líder de peiote.
Dormi o tempo todo que passamos lá. Quando já íamos embora, os rapazes que
tinham tomado parte nas sessões de peiote foram procurar-me. Abraçaram-me,
um por um, e riram, encabulados. Cada qual se apresentou. Conversei horas com
eles, sobre tudo menos as sessões de peiote.
Dom Juan disse que estava na hora de partirmos. Os rapazes me abraçaram
de novo.
— Volte — disse um deles.
— Já estamos esperando por você — acrescentou outro.
Fui embora devagar, procurando ver os homens mais velhos, mas nenhum
estava lá.
Quinta-feira, 10 de setembro de 1964
Contar uma experiência a Dom Juan sempre me obrigava a relembrá-la
passo a passo, o melhor que eu pudesse. Parecia ser este o único meio de me
lembrar de tudo.
Hoje, contei-lhe os detalhes de meu último encontro com Mescalito. Ouviu
minha história atentamente até o ponto em que Mescalito me disse seu nome.
Então, Dom Juan me interrompeu.
— Agora está por si — disse ele. — O protetor o aceitou. De agora em diante,
lhe serei de pouca ajuda. Não me precisa contar mais nada a respeito de seu
relacionamento com ele. Já sabe o nome dele; e nem seu nome nem suas
relações com você devem ser mencionados para qualquer ser vivo.
Insisti que queria contar-lhe todos os detalhes da experiência, pois não fazia
sentido para mim. Disse-lhe que precisava da ajuda dele para interpretar o que
eu havia visto. Respondeu que eu podia fazer isso sozinho, que era melhor
começar a pensar por mim. Argumentei que estava interessado em ouvir as
opiniões dele, porque eu levaria muito tempo para chegar a opiniões próprias, e
não sabia como proceder.
— Veja as canções, por exemplo — disse eu. — O que significam?
— Só você pode decidir sobre isso — respondeu. – Como vou saber o que
significam? Só o protetor pode contar-lhe isso, assim como só ele pode ensinar-
lhe suas canções. Se eu fosse contar-lhe o que significam, seria o mesmo que
você aprender as canções de outra pessoa.
— O que quer dizer com isso, Dom Juan?
— Você pode saber quem são os impostores ouvindo as pessoas cantando as
canções do protetor. Só as canções com alma são dele e foram ensinadas por ele.
As outras são cópias das canções dos outros homens. As vezes, as pessoas são
assim, enganadoras. Cantam as canções dos outros sem nem saber o que as
mesmas dizem.
Falei que fazia tenção de perguntar para que se usavam as canções.
Respondeu que as canções que eu tinha aprendido era para chamar o protetor e
que sempre devia usá-las em conjunto com o nome dele, para chamá-lo. Depois,
Mescalito provavelmente me ensinaria outras canções para outras finalidades,
disse Dom Juan.
Perguntei-lhe, então, se achava que o protetor me havia aceito plenamente.
Ele riu, como se achasse minha pergunta boba. Disse que o protetor me aceitara
e fizera questão que eu soubesse que ele me aceitara, mostrando-se a mim como
uma luz, por duas vezes. Dom Juan parecia estar muito impressionado com o fato
de eu ter visto a luz duas vezes. Frisou esse aspecto de meu encontro com
Mescalito.
Disse-lhe que não sabia como seria possível ser aceito pelo protetor e no
entanto ficar aterrorizado por ele.
Dom Juan ficou muito tempo sem responder. Parecia estar confuso. Por fim,
disse:
— Mas é tão claro. O que ele queria é tão claro que não sei como é que você
pode deixar de entender.
— Tudo ainda é. incompreensível para mim, Dom Juan.
— Leva tempo para realmente ver e compreender o que Mescalito quer dizer;
deve pensar em suas lições até elas ficarem claras.
Sexta feira, 11 de setembro de 1964
Mais uma vez insisti para que Dom Juan interpretasse minhas experiências
visionárias. Despistou um pouco. Depois, falou como se já estivéssemos
conversando a respeito de Mescalito.
— Não vê como é tolo perguntar se ele é uma pessoa com quem se pode
conversar? disse Dom Juan. — Ele não se parece com nada que você já tenha
visto. É como um homem, mas, ao mesmo tempo, não é nada como um homem.
É difícil explicar isso a pessoas que não sabem nada sobre ele e que querem
saber tudo a seu respeito de repente. E depois, suas lições são tão misteriosas
quanto ele mesmo. Que eu saiba, ninguém pode prever seus atos. Se lhe fizer
uma pergunta, ele lhe mostra o caminho, mas não lhe conta a respeito da mesma
maneira que você e eu conversamos. Agora entende o que ele faz?
— Não creio que eu tenha dificuldade em entender isso. O que não consigo
decifrar é o significado dele.
— Pediu-lhe para lhe dizer o que há de errado com você, e ele lhe deu o
quadro completo. Não pode haver engano! Não pode dizer que não entendeu.
Não foi uma conversa e, no entanto, foi. Depois, fez-lhe outra pergunta, e ele lhe
respondeu exatamente da mesma maneira. Quanto ao que ele queria dizer, não
estou certo de entendê-lo, pois você resolveu não me dizer qual foi sua pergunta.
Repeti com cuidado as perguntas que me lembrava de ter feito; coloquei-as na
ordem em que as fizera: "Estou fazendo o que é certo? Estou no caminho certo?
O que devo fazer da minha vida?" Dom Juan disse que as perguntas que eu
formulara eram simples palavras; era melhor não pronunciar as perguntas, e sim
fazê-las de dentro. Disse-me que o protetor querido dar-me uma lição; e para
provar que queria dar uma lição, e não assustar-me para eu fugir, ele se
mostrara duas vezes como luz.
Falei que ainda assim não podia entender por que Mescalito me aterrorizava,
se me aceitava. Lembrei a Dom Juan que, segundo suas declarações, ser aceito
por Mescalito implicava que sua forma era constante e não mudava da felicidade
para o pesadelo. Dom Juan tornou a rir de mim e disse eu pensasse sobre a
pergunta que tinha no coração quando falei com Mescalito, então eu próprio
havia de compreender a lição.
Pensar na pergunta que eu tivera em meu "coração" era um problema difícil.
Disse a Dom Juan que tinha tido muitas coisas em mente. Quando perguntei se
estava no caminho certo eu queria dizer: Tenho um pé em cada um dos dois
mundos? Qual o mundo certo? Que rumo minha vida deve tomar?
Dom Juan ouviu minhas explicações e concluiu que eu não tinha uma visão
clara do mundo, e que o protetor me dera uma lição lindamente clara. Ele disse:
— Você acha que há dois mundos para você... dois caminhos. Mas só existe
um. O protetor mostrou-lhe isso com uma clareza inacreditável. O único mundo
possível para você é o mundo dos homens, e esse mundo você não pode resolver
largar. É um homem! O protetor lhe mostrou o mundo da felicidade, onde não há
diferença entre as coisas porque lá não ninguém que indague pela diferença. Mas
esse não é o mundo dos homens. O protetor o sacudiu dali para fora e lhe
mostrou como é que o homem pensa e luta. Este é o mundo do homem! E ser
um homem é estar condenado a esse mundo. Você tem a presunção de crer que
vive em dois mundos, mas isso é apenas vaidade. Só existe um único mundo para
nós. Somos homens, e temos de seguir o mundo dos homens satisfeitos.
— Creio que foi esta a lição.
9
Dom Juan aparentemente queria que eu trabalhasse o mais possível com a
erva-do-diabo. Essa atitude estava em desacordo com sua propalada aversão
pelo poder. Ele próprio explicou o fato dizendo que estava próximo o momento
em que eu teria de fumar de novo, e que então já deveria ter adquirido um
melhor conhecimento do poder da erva-do-diabo.
Sugeriu várias vezes que eu devia pelo menos testar a erva-do-diabo por meio
de mais uma feitiçaria com os lagartos. Cogitei da idéia por muito tempo. A
insistência de Dom Juan aumentou dramaticamente, até sentir-me obrigado a
atender ao pedido dele. E um dia resolvi fazer uma adivinhação a respeito de uns
objetos roubados.
Segunda-feira, 28 de dezembro de 1964
No sábado, 19 de dezembro, cortei a raiz de Datura. Esperei até estar bem
escuro para executar minha dança em volta da planta. Preparei o extrato da raiz
durante a noite e, no domingo, por volta das seis da manhã, fui ao local de minha
Datura. Sentei-me diante da planta. Tinha tomado nota cuidadosamente dos
ensinamentos de Dom Juan sobre o processo. Tornei a ler minhas anotações e vi
que não era obrigado a moer as sementes ali. Por algum motivo, o simples fato
de estar diante da planta me dava uma rara estabilidade emocional, uma clareza
de pensamentos ou um poder de me concentrar em meus atos que eu
normalmente não possuía.
Segui todas as instruções meticulosamente, calculando o tempo de modo que a
pasta e a raiz ficassem prontas no fim da tarde. Por volta das cinco horas, estava
empenhado em pegar um par de lagartos. Durante uma hora e meia tentei todos
os métodos que me ocorreram, mas fracassei em todas as tentativas.
Estava sentado defronte da planta de Datura, tentando imaginar uma maneira
prática de atingir meu propósito, quando de repente lembrei-me de que Dom
Juan dissera que é preciso conversar com os lagartos. A princípio, senti-me
ridículo falando com os bichos. Era como estar encabulado ao falar diante de
uma platéia. Mas a sensação logo desapareceu e continuei a falar. Estava quase
escuro. Levantei uma pedra. Debaixo dela havia um lagarto. Tinha o aspecto de
estar dormente. Apanhei-o. E então vi que havia outro lagarto duro debaixo de
outra pedra. Eles nem se contorceram.
Costurar a boca e os olhos foi a tarefa mais difícil. Reparei que Dom Juan
tinha dado um sentido de irrevogabilidade meus atos. A atitude dele era que,
quando um homem começa um ato, não há meio de parar. No entanto, se eu
tivesse querido parar, não havia nada que me impedisse. Talvez eu não quisesse
parar.
Soltei um dos lagartos e ele foi numa direção nordeste — presságio de uma
experiência boa, porém difícil. Prendi o outro lagarto a meu ombro e besuntei as
têmporas conforme o ordenado. O lagarto estava duro; por um momento, pensei
que tivesse morrido, e Dom Juan não me dissera o que devia fazer se isso
acontecesse. Mas o lagarto estava só dormente.
Bebi a poção e esperei. Não senti nada de extraordinário. Comecei a esfregar
a pasta em minhas têmporas. Apliquei-a 25 vezes. Depois, mecanicamente,
como se eu estivesse distraído, espalhei-a repetidamente por toda a testa. Percebi
meu engano e depressa limpei a pasta. Minha testa estava molhada de suor;
fiquei febril. Uma ansiedade intensa me dominou, pois Dom Juan me avisara
sempre de que não passasse a pasta na testa. O medo transformou- se numa
sensação de completa solidão, uma sensação de estar condenado. Estava ali
sozinho. Se alguma coisa de ruim ia acontecer-me, não havia ninguém para me
ajudar. Queria fugir. Tinha uma sensação alarmante de indecisão, de não saber o
que fazer. Um mundo de pensamentos me passou pela cabeça, numa velocidade
extraordinária. Reparei que eram pensamentos meio estranhos; isto é, eram
estranhos no sentido de que pareciam surgir de maneira diferente de
pensamentos comuns. Sei a maneira como penso. Meus pensamentos têm uma
ordem definida que é minha, e qualquer desvio é perceptível.
Um dos pensamentos estranhos foi sobre uma declaração feita por um autor.
Lembro- me vagamente de que era mais como uma voz, ou alguma coisa dita
em algum lugar nos fundos. Aconteceu tão depressa que me assustou. Parei para
pensar nele, mas transformou-se num pensamento comum. Estava certo de ter
lido a declaração, mas não conseguia lembrar- me do nome do autor. De
repente, lembrei-me de que era Alfred Kroeber. Então, outro pensamento
estranho apareceu e "disse" que não era Kroeber, e sim Georg Simmel quem
fizera tal declaração. Insisti que era Kroeber, e quando vi estava discutindo
comigo mesmo. E tinha esquecido da sensação de estar condenado.
Minhas pálpebras estavam pesadas, como se eu tivesse tomado comprimidos
para dormir. Embora eu nunca tivesse tomado essas coisas, foi a imagem que me
ocorreu. Estava adormecendo. Queria ir para meu carro e entrar nele, mas não
consegui mover-me.
Depois, de repente, acordei, ou melhor, senti claramente que tinha acordado.
Meu primeiro pensamento foi a respeito da hora. Olhei em volta. Não estava em
frente da planta de Datura. Displicentemente, aceitei o fato de estar tendo mais
uma experiência de adivinhação. Eram 12:35 por um relógio acima de minha
cabeça. Sabia que era de tarde.
Vi um rapaz carregando uma pilha de papéis. Eu estava quase tocando-o. Vi as
veias do pescoço dele pulsando e ouvi batidas rápidas de seu coração. Eu estava
absorto no que via e, até então, não tinha consciência da qualidade de meus
pensamentos. Então, ouvi uma "voz" no meu ouvido descrevendo a cena, e
percebi que a "voz" era o pensamento estranho em minha cabeça.
Fiquei tão absorto em escutar que a cena perdeu seu interesse visual para
mim. Ouvi a voz em meu ouvido direito, acima de meu ombro. Ela realmente
criava a cena, descrevendo-a. Mas obedecia à minha vontade, pois eu podia
pará-la a qualquer momento e examinar os detalhes do que dizia à minha
vontade. "Ouvi-vi" toda a sequência dos atos do rapaz. A voz continuou a explicá-
los detalhadamente, mas, por algum motivo, a ação não era importante. A
vozinha é que era a questão extraordinária. Três vezes, no curso da experiência,
tentei virar- me para ver quem estava falando. Tentei virar a cabeça
completamente para a direita, ou virar de repente para ver se havia alguém ali.
Mas cada vez que o fazia, minha visão se turvava. Pensei: "O motivo por que não
me posso virar é que a cena não está no reino da realidade normal". E esse
pensamento era meu.
Daí em diante, concentrei minha atenção apenas na voz. Parecia vir de meu
ombro. Era perfeitamente clara, embora fosse uma vozinha fraca. Mas não era
voz de criança nem de falsete, e sim a voz de um homem em miniatura.
Tampouco era minha voz. Supus que fosse inglês, o que eu estava ouvindo.
Sempre que tentava propositadamente pilhar a voz, ela parava totalmente, ou
abaixava, e a cena desaparecia. Pensei imagem. A voz era como a imagem
criada por partículas de poeira nas pestanas, ou os vasos sanguíneos na córnea do
olho, uma forma de verme que pode ser vista enquanto a gente não olha
diretamente para ela; mas no momento em que a gente procura olhá-la, sai de
foco com o movimento do globo ocular.
Desinteressei-me completamente da ação. Enquanto escutava, a voz tornou-se
mais complexa. O que eu pensava ser uma voz, era mais como alguma coisa
cochichando idéias em meu ouvido. Mas isso não era certo. Alguma coisa estava
pensando por mim. Os pensamentos eram fora de mim. Eu sabia que era assim,
porque podia conter as minhas idéias e as idéias do “outro” ao mesmo tempo.
Em certo ponto, a voz criou cenas representadas pelo rapaz, que nada tinham
a ver com minha pergunta originária sobre os objetos perdidos. O rapaz fazia
coisas muito complexas. A ação se tornara importante de novo e não dei mais
atenção a voz. Comecei a perder a paciência; eu queria parar. “Como posso fazer
isso parar?", pensei. A voz em meu ouvido disse que eu devia voltar à garganta.
Perguntei como, e a voz respondeu que eu devia pensar em minha planta.
Pensei em minha planta. Geralmente, sentava-me em frente dela. Já fizera
isso tantas vezes que foi bem fácil visualiza-la. Acreditei que vê-la, como a vi
naquele momento, era mais outra alucinação, mas a voz dizia que eu estava "de
volta”! Esforcei-me para escutar. Só havia silêncio. A planta de Datura ira diante
de mim parecia tão real quanto tudo o mais que eu havia visto, mas podia tocá-la,
podia mover-me.
Levantei-me e fui para meu carro. O esforço me deixou exausto; sentei-me e
fechei os olhos. Estava tonto e com vontade de vomitar. Sentia um zumbido nos
ouvidos.
Alguma coisa deslizou para meu peito. Era o lagarto, Lembrei-me da
advertência de Dom Juan, para soltá-lo. Voltei para a planta e desprendi o
lagarto. Nem queria ver se estava vivo ou morto. Quebrei o pote de barro com a
pasta e chutei um pouco de terra por cima. Entrei em meu carro e adormeci.
Quinta-feira, 24 de dezembro de 1964
Hoje, narrei toda a experiência a Dom Juan. Como sempre, escutou sem me
interromper. No final, tivemos o seguinte diálogo:
— Fez uma coisa muito errada.
— Eu sei. Foi um erro muito estúpido, um acidente.
— Não há acidentes quando se trata da erva-do-diabo. Disse-lhe que ela o
poria à prova o tempo todo. Na minha opinião, ou você é muito forte, ou a erva
realmente gosta de você. O centro da testa é só para os grandes brujos, que
sabem como tratar o poder dela.
— O que costuma acontecer quando o homem esfrega a testa com a pasta,
Dom Juan?
— Se o homem não for um grande brujo, nunca voltará da viagem.
— Já esfregou a pasta na testa, Dom Juan?
— Nunca! Meu benfeitor disse que muito poucas pessoas voltam dessa
viagem. O homem poderia partir por meses, e teria de ser tratado por outros.
Meu benfeitor falou que os lagartos podiam levar o homem até o fim do mundo e
mostrar-lhe os segredos mais maravilhosos, se solicitados.
— Conhece alguém que já tenha feito essa viagem?
— Sim, meu benfeitor. Mas nunca me ensinou como se volta.
— E assim tão difícil voltar, Dom Juan?
— É, sim. É por isso que seu ato é realmente surpreendente para mim. Tinha
passos a seguir, e temos de seguir certos passos, pois é nos passos que o homem
encontra força. Sem eles, não somos nada.
Ficamos calados durante horas. Ele parecia estar absorto numa meditação
profunda.
Sábado, 26 de dezembro de 1964
Dom Juan perguntou-me se eu tinha procurado os lagartos. Disse-lhe que sim,
mas que não os conseguira encontrar. Perguntei-lhe o que teria acontecido se um
dos lagartos morresse enquanto o segurava. Respondeu que a morte de um
lagarto seria um acontecimento infeliz. Se o lagarto de boca costurada tivesse
morrido a qualquer momento, não haveria mais razão para continuar com o
feitiço, disse ele. Também teria significado que os lagartos tinham retirado sua
amizade e eu teria de desistir de aprender a respeito da erva-do-diabo muito
tempo.
— Por quanto tempo, Dom Juan?
— Dois anos ou mais.
— O que aconteceria se o outro lagarto tivesse morrido?
— Se o segundo lagarto morresse, você estaria em perigo real. Estaria
sozinho, sem um guia. Se morresse antes de começar o feitiço, você poderia
parar; mas se parasse, também teria de abandonar de vez a erva-do-diabo. Se o
lagarto morresse enquanto estivesse em seu ombro, depois de começar o feitiço,
teria de continuar com ele, e isso seria mesmo loucura.
— Por que seria uma loucura?
— Porque nessas condições, nada faz sentido. Está sozinho, sem um guia,
vendo coisas assustadoras e sem nexo.
— O que quer dizer "coisas sem nexo"?
— Coisas que vemos sozinhos. Coisas que vemos quando não temos direção.
Quer dizer que a erva-do-diabo está procurando livrar-se de você e finalmente
expulsando-o.
— Conhece alguém que já tenha experimentado isso?
— Conheço, sim. Eu. Sem a sabedoria dos lagartos, fiquei maluco.
— O que viu, Dom Juan?
— Uma porção de tolices. Que mais haveria de ver, sem direção?
Segunda-feira, 28 de dezembro de 1964
— Você me disse, Dom Juan, que a erva-do-diabo põe os homens a prova. O
que queria dizer com isso?
— A erva-do-diabo é como uma mulher, e como mulher, lisonjeia os homens.
Prepara armadilhas para eles a cada passo. Fez isso com você, quando o forçou a
passar a pasta na testa. Há de tentar de novo, e você provavelmente cairá. Estou-
lhe advertindo. Não a tome com paixão, a erva-do-diabo é apenas um dos
caminhos para os segredos de um homem de conhecimento. Há outros
caminhos. Mas a armadilha dela é fazê-lo crer que o caminho dela é o único.
Digo que é inútil desperdiçar a vida num caminho, especialmente se esse
caminho não tiver coração.
— Mas como é que sabe quando o caminho não tem coração, Dom Juan?
— Antes de segui-lo, você faz a pergunta: esse caminho tem coração? Se a
resposta for não, você o saberá, e então deve escolher outro caminho.
— Mas como saberei ao certo se um caminho tem ou não coração?
— Qualquer pessoa sabe isso. O problema é que ninguém faz a pergunta; e
quando o homem afinal descobre que tomou um caminho sem coração, o
caminho está pronto para matá-lo. Nesse ponto muito poucos homens conseguem
parar para pensar e deixar o caminho.
— Como devo fazer para perguntar direito, Dom Juan?
— Pergunte, apenas.
— Quero dizer, existe um método apropriado, para não mentir a mim mesmo,
acreditando que a resposta é sim quando na verdade é não?
— Por que havia de mentir?
— Talvez porque no momento o caminho seja agradável.
— Isso é tolice. Um caminho sem coração nunca é agradável. Tem de
trabalhar muito até para segui-lo. Por outro lado, um caminho com coração é
fácil; não o faz trabalhar para gostar dele.
De repente, Dom Juan mudou de assunto e rudemente apresentou-me a idéia
de que eu gostava da erva-do-diabo. Tive de confessar que tinha pelo menos uma
preferência por ela.
Perguntou o que eu achava do aliado dele, o fumo, e tive de lhe dizer que a
simples idéia dele me assustava barbaramente.
— Já lhe disse que, para escolher um caminho, você deve estar livre do medo
e da ambição. Mas o fumo o cega de medo, e a erva-do-diabo o cega de
ambição.
Argumentei que a gente precisa de ambição até para tomar algum caminho, e
que a afirmação dele, de que a gente tinha de ser livre de ambição, não tinha
sentido. Uma pessoa tem de ter ambição para poder aprender.
— O desejo de aprender não é ambição — disse ele. – É nosso destino como
homens querer saber, mas procurar a erva-do-diabo é querer o poder, e isso é
ambição, pois você não está querendo saber. Não deixe que a erva-do-diabo o
segue. Já o fisgou. Engoda os homens e lhes dá uma sensação de poder; ela os faz
sentir que podem fazer coisas que nenhum homem comum pode fazer. Mas isso
é a armadilha dela. E em seguida o caminho sem coração se volta contra os
homens e os destrói. Não custa muito morrer, e procurar a morte é não procurar
nada.
10
A ORDEM OPERACIONAL
A PRIMEIRA UNIDADE
HOMEM DE CONHECIMENTO
Num estágio muito primário de minha aprendizagem, Dom Juan declarou que
o objetivo de seus ensinamentos era "mostrar como me tornar um homem de
conhecimento". Uso essa declaração como ponto de partida. 8 óbvio que tornar-
se um homem de conhecimento era um objetivo operacional. L igualmente
óbvio que todas as partes dos ensinamentos ordenados de Dom Juan estavam
ligados à execução desse objetivo, de uma maneira ou de outra. Meu raciocínio
aqui é que, nas circunstâncias, sendo "homem de conhecimento" um objetivo
operacional, isso deve ter sido indispensável para explicar alguma "ordem
operacional". Então, justifica-se concluir, que, a fim de compreender essa ordem
operacional, é preciso compreender seu objetivo: homem de conhecimento.
Depois de estabelecer "homem de conhecimento" como primeira unidade
estrutural, foi possível organizar com segurança os seguintes sete conceitos como
seus componentes próprios: (1) tornar-se um homem de conhecimento era
questão de aprendizagem; (2) um homem de conhecimento tem um propósito
inflexível; (3) um homem de conhecimento tem clareza de espírito; (4) para ser
um homem de conhecimento é preciso um trabalho exaustivo; (5) um homem de
conhecimento é um guerreiro; (6) ser um homem de conhecimento é um
processo incessante; e (7) um homem de conhecimento tem um aliado.
Esses sete conceitos são temas. Percorrem os ensinamentos, determinando
todo o caráter do conhecimento de Dom Juan. Como objetivo operacional de seu
ensinamento era produzir um homem de conhecimento, tudo o que ensinava era
imbuído das características específicas de cada um dos sete temas. Juntos
formava o conceito "homem de conhecimento" como uma maneira de a pessoa
se conduzir, um comportamento que era o resultado final de um treinamento
longo e arriscado. "Homem de conhecimento", porém, não era um guia de
comportamento, e sim uma série de princípios que abrangiam todas as
circunstâncias fora do comum pertinentes ao conhecimento que era ensinado.
Cada um dos sete temas é composto, por sua vez, de vários outros conceitos,
que abrangem suas facetas diferentes.
Pelas declarações de Dom Juan era possível supor-se que um homem de
conhecimento podia ser um diablero, isto é, um feiticeiro de magia negra.
Declarou que seu mestre era um diablero e ele também, no passado, embora
tivesse deixado de se ocupar de certos aspectos da prática da feitiçaria. Como o
objetivo de seus ensinamentos era mostrar como ser um homem de
conhecimento, e como seu conhecimento consistia em ser um diablero, podia
haver uma conexão inerente entre homem de conhecimento e diablero. Embora
Dom. Juan nunca usasse os dois termos indiferentemente, a probabilidade de
serem relacionados suscitava a possibilidade de que "homem de conhecimento",
com seus sete temas e seus conceitos componentes, abrangia, teoricamente,
todas as circunstâncias que poderiam surgir no curso de se tornar a pessoa um
diablero.
Tornar-se um Homem de Conhecimento – É uma Q uestão de
Aprendizagem
O primeiro tema tornava implícito o fato de que a aprendizagem era o único
meio possível para um homem tornar-se um homem de conhecimento, e isso,
por sua vez, implicava no ato de se fazer um esforço resoluto para conseguir um
objetivo. Ser um homem de conhecimento era o resultado final de um processo,
em oposição a uma aquisição imediata por um ato de graça ou pela doação por
poderes sobrenaturais. A plausibilidade de aprender a ser um homem de
conhecimento justificava a existência de um sistema para ensinar a consegui-lo.
O primeiro tema tinha três componentes: (1) não havia requisitos claros para
ser um homem de conhecimento; (2) havia alguns requisitos disfarçados; (3) a
decisão quanto a quem poderia aprender a ser um homem de conhecimento era
tomada por um poder impessoal.
Aparentemente, não havia pré-requisitos claros que poderiam determinar
quem seria, ou quem não seria qualificado para aprender como ser um homem
de conhecimento. Teoricamente, a tarefa estava às ordens de qualquer pessoa
que quisesse executá-la. No entanto, na prática, tal teoria não se coadunava com
o fato de que Dom Juan, como mestre, escolhia seus aprendizes.
De fato, qualquer mestre, nas circunstâncias, teria escolhido seus aprendizes,
pelo expediente de expô-los a alguns pré-requisitos disfarçados. A natureza
específica desses pré-requisitos nunca era formalizada; Dom Juan só insinuava
que havia certos indícios que a pessoa tinha de ter em mente quando considerava
um aprendiz em perspectiva. Os indícios a que se referia deviam revelar se o
candidato tinha ou não certa disposição de caráter, que Dom Juan denominava
"propósito inflexível".
Não obstante, a decisão final no que dizia respeito a quem podia aprender a
tornar-se um homem de conhecimento era deixada a um poder impessoal que
Dom Juan conhecia, mas que estava fora de sua esfera de vontade. O poder
impessoal parece que apontava a pessoa certa, permitindo que ela praticasse um
feito de natureza extraordinária, ou então criando uma série de circunstâncias
especiais em torno daquela pessoa. Daí, nunca havia qualquer conflito entre a
ausência de pré-requisitos claros e a existência de pré-requisitos disfarçados, não
revelados.
O homem que fosse destacado assim tornava-se o aprendiz. Dom Juan o
chamava o escogido, "aquele que foi escolhido". Mas ser um escogido significava
mais do que ser um simples aprendiz. Um escogido, pelo simples ato de ser
escolhido, por um poder, já era considerado diferente dos homens comuns. Já
era considerado um recipiente de uma quantidade mínima de poder, que devia
aumentar com a aprendizagem.
Mas aprender era um processo de uma busca inacabável, e o poder que
tomava a primeira decisão, ou um poder semelhante, deveria tomar decisões
semelhantes sobre se um escogido devia continuar a aprender ou se tinha sido
vencido. Essas decisões se manifestavam por meio de augúrios que ocorriam em
qualquer ponto dos ensinamentos. Quanto a isso, quaisquer circunstâncias
especiais a respeito de um aprendiz eram consideradas augúrios.
Um Homem de Conhecimento Tem um Propósito Inflexível
A idéia de que um homem de conhecimento precisa de um propósito
inflexível refere- se ao exercício da vontade. Ter um propósito inflexível quer
dizer ter a vontade de realizar um processo necessário, mantendo-se em todos os
momentos rigidamente dentro dos limites do conhecimento que está sendo
ensinado. Um homem de conhecimento precisa de uma vontade rígida a fim de
suportar a qualidade de obrigação que possuíam todos os atos quando executados
dentro do contexto de seu conhecimento.
A qualidade de obrigação de todos os atos executados dentro desse contexto e
o fato de serem inflexíveis e predeterminados sem dúvida eram desagradáveis
para todos os homens, e por isso uma certa percentagem de propósito inflexível
era procurada como o único requisito disfarçado necessário a um pretenso
aprendiz.
Um propósito inflexível compunha-se de: (1) frugalidade, (2) firmeza de
julgamento, e (3) falta de liberdade para inovar.
Um homem de conhecimento precisa da frugalidade porque a maior parte de
seus atos obrigatórios trata de situações ou dê elementos ou fora dos limites da
vida quotidiana, ou não habituais nas atividades comuns; e o homem que tivesse
de agir de acordo com eles precisa' de um esforço extraordinário cada vez que
agisse. Estava i., elícito que a pessoa só seria capaz de um esforço tão
extraordinário se fosse frugal em qualquer outra atividade que não tratasse
diretamente desses atos predeterminados.
Como todos os atos eram predeterminados e obrigatórios, um homem de
conhecimento precisa de firmeza de julgamento. Esse conceito não implica no
bom senso, mas sim a capacidade de avaliar as circunstâncias envolvendo
qualquer necessidade de agir. Uma orientação para uma tal avaliação era dada
juntando, como fundamento lógico, todas as partes dos ensinamentos que
estivessem ao comando da pessoa no momento dado em que qualquer ação
tivesse de ser executada. Assim, a orientação estava sempre mudando, à medida
que se aprendia mais partes; e no entanto, implicava sempre na convicção de que
todo ato obrigatório que se pudesse ter de desempenhar seria, de fato, o mais
apropriado nas circunstâncias.
Como todos os atos são preestabelecidos e compulsórios, ter de desempenhá-
los significa uma falta de liberdade para inovar. O sistema de Dom Juan para
transmitir o conhecimento estava tão bem estabelecido que não havia
possibilidade de alterá-lo de maneira alguma.
Um Homem de Conhecimento Tem Clareza de Espírito
Clareza de espírito é o tema que dá o sentido de direção. O fato de todos os
atos serem predeterminados significa que a orientação da pessoa dentro do
ensinamento sendo prestado é igualmente predeterminada; consequentemente, a
clareza de espírito dá apenas um sentido de direção. Reafirma continuamente a
validez do rumo tomado por meio das idéias componentes de: (1) liberdade de
buscar um caminho, (2) noção do propósito específico e (3) ser fluido.
Acreditava-se que a pessoa tivesse liberdade de procurar um caminho. Ter a
liberdade de escolher não era incompatível com a falta de liberdade de inovar;
essas duas idéias não eram opostas, nem interferiam uma com a outra. A
liberdade de buscar um caminho referia-se à liberdade de escolher entre
diferentes possibilidades de ação, que eram igualmente eficientes e utilizáveis. O
critério de escolher era a vantagem de uma possibilidade sobre as outras,
baseada na preferência da pessoa. Na verdade, a liberdade de escolher um
caminho implicava num sentido de direção pela expressão das tendências
pessoais.
Outro meio de criar um sentido de direção era pela idéia de que há um
propósito específico para cada ato executado no contexto do conhecimento sendo
transmitido. Por isso, o homem de conhecimento precisa de clareza de espírito a
fim de corresponder a suas próprias razões para agir com o propósito específico
de cada ação. O conhecimento do propósito especifico de cada ação era o guia
que usava para julgar as circunstâncias que envolvessem qualquer necessidade
de agir.
Outra faceta da clareza de espírito era a idéia de que um homem de
conhecimento, a fim de reforçar o desempenho de seus atos obrigatórios, precisa
reunir todos os recursos que os ensinamentos colocaram a seu dispor. Era esta a
idéia de ser fluido. Criava um sentido de direção dando à pessoa a sensação de
ser maleável e ter expediente. A qualidade compulsiva de todos os atos teria
imbuído a pessoa com uma sensação de rigidez ou esterilidade, se não fosse a
idéia de que um homem de conhecimento tem de ser fluido.
Para Ser um Homem de Conhecimento E Preciso um Trabalho
Exaustivo
Um homem de conhecimento tem de possuir, ou de adquirir no decurso de
seu treinamento, uma capacidade total de trabalho. Dom Juan declarou que, para
ser um homem de conhecimento, é preciso um trabalho exaustivo. Um trabalho
exaustivo demonstrava uma capacidade: (1) de fazer esforços dramáticos; (2) de
conseguir a eficiência; e (3) enfrentar um desafio.
No caminho do homem de conhecimento, um conhecimento do drama era,
sem dúvida, o fato isolado mais importante, e um tipo especial de esforços era
necessário para corresponder às circunstâncias que exigiam a exploração
dramática; isto é, um homem de conhecimento precisava do esforço dramático.
Tomando como exemplo o comportamento de Dom Juan, à primeira vista podia
parecer que sua atuação dramática era apenas sua própria mania de teatralidade.
No entanto, seus esforços dramáticos eram sempre muito mais do que uma
simples representação; eram, antes, um profundo estado de crença. Pelos
esforços dramáticos, transmitia a qualidade especial de finalidade a todos os atos
que praticava. Consequentemente, seus atos passavam-se num palco em que a
morte era um dos principais protagonistas. Era implícito que a morte era uma,
possibilidade real durante a aprendizagem, devido à nata= inerentemente
perigosa dos fatos com que lidava o homem de conhecimento; portanto, era
lógico que o esforço teatral criado pela convicção de que a morte era um ator
onipresente fosse mais do que simplesmente dramático.
Os esforços não acarretam apenas o drama, mas também a necessidade da
eficiência. Os esforços tinham de ser eficazes; tinham de possuir a qualidade de
serem devidamente canalizados, de serem adequados. A idéia da morte iminente
criava não só o drama necessário para a ênfase geral, mas também a convicção
de que todo ato envolvia uma luta pela sobrevivência, a convicção de que
sobreviria a aniquilação, se os esforços da pessoa não satisfizessem os requisitos
de ser eficazes.
Os esforços também encerram a idéia de desafio, isto é, o ato de verificar -e
provar se a pessoa é capaz de desempenhar um ato devido dentro dos limites
rigorosos do conhecimento objeto de ensinamento.
Um Homem de Conhecimento É um Guerreiro
A existência de um homem de conhecimento é uma luta incessante, e a idéia
de que ele é um guerreiro, levando vida de guerreiro, dava à pessoa os meios de
conseguir a estabilidade emocional. A idéia de um homem em guerra abrange
quatro conceitos: (1) um homem de conhecimento tem de ter respeito; (1.) ele
tem de ter medo; (3) ele tem de estar bem desperto; (4) ele tem de ter confiança
em si. Daí, ser um guerreiro é uma forma de autodisciplina que frisa a realização
individual; no entanto, é uma posição em que os interesses pessoais são reduzidos
a um mínimo, pois, na maioria dos casos, o interesse pessoal é incompatível com
o rigor necessário para executar qualquer ato predeterminado obrigatório.
Um homem de conhecimento em seu papel de guerreiro era obrigado a ter
uma atitude de consideração diferente pelas coisas com que lidava; tinha de
imbuir tudo que se relacionava com seu conhecimento com um respeito
profundo, a fim de colocar tudo numa perspectiva significativa. Ter respeito era o
equivalente a avaliar seus próprios recursos insignificantes diante do
Desconhecido.
Se a pessoa permanecesse nesse estado de espírito, a idéia de respeito
estendia-se logicamente para incluir a própria pessoa, pois o eu era tão
desconhecido quanto o próprio Desconhecido. Um sentimento de respeito tão
moderador transformava a aprendizagem desse conhecimento específico, que,
de outra forma, poderia parecer absurda, numa alternativa muito racional.
Outra necessidade da vida de um guerreiro era a necessidade de
experimentar e avaliar com cuidado a sensação do medo. O ideal era que, a
despeito do medo, a pessoa teria de prosseguir com seus atos. Supunha-se que o
medo fosse vencido e havia um momento dado na vida de um homem de
conhecimento em que era vencido, mas primeiro a pessoa tinha de ter
consciência de estar com medo e avaliar essa sensação. Dom Juan afirmava que
a pessoa só seria capaz de vencer o medo enfrentando-o.
Como guerreiro, um homem de conhecimento também precisava estar bem
desperto. Um homem em luta tinha de estar alerta para ter conhecimento da
maior parte dos fatores pertinentes aos dois aspectos obrigatórios da consciência:
(1) consciência de propósito e (2) consciência do fluxo esperado.
Consciência de propósito era o ato de ter conhecimento dos fatores envolvidos
no relacionamento entre o propósito específico de qualquer ato obrigatório e o
propósito específico da pessoa para agir. Como todos os atos obrigatórios têm um
propósito definido, um homem de conhecimento tem de estar bem desperto; isto
é, precisa ser capaz em todas as ocasiões de relacionar o propósito definido de
cada ato obrigatório com o motivo definido que ele tenha em mente para desejar
agir.
Um homem de conhecimento, estando consciente desse relacionamento,
também é capaz de tomar ciência do que se acredita poder esperar do fluxo. O
que chamei aqui de "consciência do fluxo esperado" refere-se à certeza de que
se é capaz em todos os momentos de verificar os importantes elementos
variáveis envolvidos no relacionamento entre o propósito específico de cada ato e
a razão específica da pessoa para agir. Estando consciente do fluxo esperado, a
pessoa devia poder verificar as modificações mais sutis. Essa consciência
propositada das modificações explica o reconhecimento e a interpretação de
augúrios e outros acontecimentos fora do comum.
O último aspecto da idéia do comportamento de um guerreiro era a
necessidade da confiança em si, isto é, a garantia de que o propósito específico
de um ato que a pessoa possa ter querido desempenhar era a única alternativa
plausível para seus próprios motivos específicos de agir. Sem a confiança em si, a
pessoa teria sido incapaz de preencher um dos aspectos mais importantes dos
ensinamentos: a capacidade de reivindicar o conhecimento como poder.
Ser um Homem de Conhecimento É um Processo Incessante
Ser um homem de conhecimento não é um estado que implique em
permanência. Nunca há a certeza de que, desempenhando-se passos
predeterminados do conhecimento ensinado, a pessoa se torne um homem de
conhecimento. Está implícito que a função dos passos é apenas mostrar como se
tornar um homem de conhecimento. Assim, tornar-se um homem de
conhecimento é uma tarefa que não se pode realizar plenamente; ou melhor, é
um processo incessante, que envolve: (1) a idéia de que é preciso renovar a
busca para ser um homem de conhecimento; (2) a idéia da transitoriedade da
pessoa; e (3) a idéia de que é preciso seguir um caminho com um coração.
A renovação constante da busca de se tornar um homem de conhecimento é
expressa no tema dos quatro inimigos simbólicos encontrados no caminho do
conhecimento: medo, clareza, poder e velhice. Renovar a busca implica em
conquistar e manter o controle sobre si mesmo. Um verdadeiro homem de
conhecimento deve combater cada um dos quatro inimigos, sucessivamente, até
o último momento de sua vida, a fim de se manter ativamente empenhado em
tornar-se um homem de conhecimento. No entanto, a despeito da verdadeira
renovação da busca, as circunstâncias eram inevitavelmente contra o homem;
ele sucumbiria a seu último inimigo simbólico. Era essa a idéia de
transitoriedade.
Contrabalançando o valor negativo da transitoriedade da pessoa, há a noção de
que é preciso seguir "o caminho com um coração". O caminho com coração é
uma maneira metafórica de asseverar que, a despeito de ser transitória, a pessoa
ainda assim tem de prosseguir e tem de ser capaz de encontrar satisfação e
realização pessoal no ato de escolher a alternativa mais acessível e identificar-se
completamente com ela.
Dom Juan sintetizou o fundamento lógico de todo seu conhecimento na
metáfora de que o importante para ele era encontrar o caminho com coração e
depois percorrer a sua extensão, significando que a identificação com a
alternativa acessível era o suficiente para ele. A viagem em si era suficiente;
qualquer esperança de chegar a uma posição permanente estava fora dos limites
de seu conhecimento.
A SEGUNDA UNIDADE
O APRENDIZ
A ORDEM OPERACIONAL
A PRIMEIRA UNIDADE
HOMEM DE CONHECIMENTO
SER UM HOMEM DE CONHECIMENTO É QUESTÃO DE APRENDER
Não havia exigências declaradas
Havia algumas exigências disfarçadas
Um aprendiz era escolhido por um poder impessoal
Aquele que era escolhido (escogido)
As decisões do poder eram indicadas por augúrios
UM HOMEM DE CONHECIMENTO TINHA PROPÓSITO INFLEXÍVEL
Frugalidade
Solidez de julgamento
Falta de liberdade para inovar
UM HOMEM DE CONHECIMENTO TINHA CLAREZA DE ESPÍRITO
Liberdade de procurar um caminho
Conhecimento do propósito específico
Ser fluido
SER UM HOMEM DE CONHECIMENTO ERA QUESTÃO DE TRABALHO
ÁRDUO
Esforços dramáticos
Eficiência Desafio
UM HOMEM DE CONHECIMENTO ERA UM GUERREIRO
Tinha de ter respeito
Tinha de ter medo
Tinha de ser alerta
Consciência de propósito
Consciência do fluxo esperado
Tinha de ter autoconfiança
SER UM HOMEM DE CONHECIMENTO ERA UM PROCESSO
INCESSANTE
Ele tinha de renovar a busca de ser um homem de conhecimento
Era impermanente
Tinha de seguir o caminho com coração
A SEGUNDA UNIDADE
UM HOMEM DE CONHECIMENTO TINHA UM ALIADO
UM ALIADO NÃO TINHA FORMA
UM ALIADO ERA PERCEBIDO COMO UMA QUALIDADE
O aliado contido na Datura inoxia:
Era feminino
Era possessivo
Era violento
Era imprevisível
Tinha efeito nocivo sobre o caráter de seus seguidores
Dava poder superfluido
O aliado contido na Psilocy be mexicana:
Era masculino
Era desapaixonado
Era gentil
Era previsível
Tinha efeito benéfico sobre o caráter de seus seguidores
Dava êxtase
UM ALIADO ERA DOMESTICÁVEL
Um aliado era um veículo
O aliado contido na Datura inoxia era imprevisível
O aliado contido na Psilocy be mexicana era previsível
Um aliado era um auxiliar
A TERCEIRA UNIDADE
UM ALIADO TINHA UM REGULAMENTO
O REGULAMENTO ERA INFLEXÍVEL
Exceção devida à intervenção direta do aliado
O REGULAMENTO NÃO ERA CUMULATIVO
O REGULAMENTO ERA CORROBORADO PELA REALIDADE COMUM
O REGULAMENTO ERA CORROBORADO PELA REALIDADE NÃO
COMUM
Os estados de realidade não comum
A realidade não comum era utilizável
A realidade não comum tinha elementos constituintes
Os elementos constituintes tinham estabilidade
Tinham singularidade
Faltava-lhes consenso comum
Os propósitos específicos do regulamento:
Primeiro propósito específico, prova (Datara inoxia)
Técnica de manipulação, ingestão
Segundo propósito específico, adivinhação (Datura
inoxia)
Técnica de manipulação, ingestão-absorção
Terceiro propósito específico, vôo corporal (Datura
inoxia)
Técnica de manipulação, ingestão-absorção
Quarto propósito específico, prova (Psilocy be
mexicana)
Técnica de manipulação, ingestão-inspiração
Quinto propósito específico, movimento (Psilocy be
mexicana)
Técnica de manipulação, ingestão-inspiração
Sexto propósito específico, movimento adotando forma
diferente (Psilocy be mexicana)
Técnica de manipulação, ingestão-inspiração
A QUARTA UNIDADE
O REGULAMENTO ERA CORROBORADO POR CONSENSO ESPECIAL
O BENFEITOR
Preparando o consenso especial
Os outros estados de realidade não comum
Eram provocados por Mescalito:
Era contido
O recipiente era o próprio poder
Não tinha regulamento
Não precisava de aprendizado
Era um protetor
Era um mestre
Tinha forma definida
A realidade não comum era utilizável
A realidade não comum tinha elementos constituintes
Os estados especiais de realidade comum:
Eram produzidos pelo mestre
Sugestões sobre o ambiente
Sugestões sobre o comportamento
A recapitulação da experiência:
Recordação dos fatos
Descrição dos elementos constituintes
Ênfase
Ênfase positiva
Ênfase negativa
Falta de ênfase
Dirigindo o consenso especial
O nível extrínseco da realidade não comum
O período preparatório
O período anterior à realidade não comum
O período seguinte à realidade não comum
Os estágios de transição
A supervisão do mestre
O nível intrínseco de realidade não comum
Progresso para o específico
Formas individuais específicas
Complexidades progressiva dos detalhes percebidos
Progressão do conhecido para formas desconhecidas
Resultados totais específicos
Progressão para um âmbito de apreciação mais extenso
Âmbito dependente
Âmbito independente
Progressão para uma utilização mais pragmática da realidade não comum
Progressão para o específico em estados especiais da realidade comum
A ORDEM CONCEITUAL
O APRENDIZ
A adoção capciosa da ordem conceitual
A adoção de boa-fé da ordem conceitual
Realidade do consenso especial
A realidade do consenso especial tinha valor pragmático