A Erva Do Diabo Os Ensinamento de Dom Juan

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando


por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo
nível."
ÍNDICE
PREFÁCIO
EM LOUVOR DESTE LIVRO...
AGRADECIMENTOS
INTRODUÇÃO
PARTE UM – OS ENSINAMENTOS
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
PARTE DOIS – UMA ANÁLISE ESTRUTURAL
A ORDEM OPERACIONAL
A PRIMEIRA UNIDADE
HOMEM DE CONHECIMENTO
A SEGUNDA UNIDADE
UM HOMEM DE CONHECIMENTO TEM UM ALIADO
A TERCEIRA UNIDADE
UM ALIADO TEM UM REGULAMENTO
A QUARTA UNIDADE
O REGULAMENTO ERA CORROBORADO POR CONSENSO ESPECIAL
A ORDEM CONCEITUAL
O APRENDIZ
RESUMO
APÊNDICES
APÊNDICE A – O PROCESSO DE COMPROVAR O CONSENSO
ESPECIAL
APÊNDICE B — ESBOÇO DE ANALISE ESTRUTURAL
A ERVA DO DIABO

As experiências indígenas com plantas alucinógenas reveladas


por Dom Juan

Carlos Castaneda
PREFÁCIO
Este livro é etnografia e alegoria.
Carlos Castaneda, sob a orientação de Dom Juan, nos conduz por aquele
momento no crepúsculo, por aquela fresta no universo que há entre o claro e o
escuro, para um mundo que não é apenas diferente do nosso, mas também de
uma ordem de realidade inteiramente diferente. A fim de alcança-lo ele teve o
auxilio de mescalito, yerba del diablo e humito – peiote, datara e cogumelos. Mas
esta não é uma simples narrativa de experiências alucinógenas, pois as sutis
manipulações de Dom Juan conduzem o viajante enquanto suas interpretações
dão significado aos fatos que nós, através do aprendiz de feiticeiro, temos a
oportunidade de experimentar.
Os antropólogos nos ensinam que o mundo tem definições diversas em
diversos lugares. Não é só que os povos tenham costumes diferentes: não é só que
os povos acreditem em deuses diferentes e esperem diferentes destinos após a
morte. É, antes, que os mundos de povos diferentes têm formas diferentes. Os
próprios pressupostos metafísicos variam: o espaço não se conforma com a
geometria euclidiana, o tempo não constitui um fluxo contínuo de sentido único,
as causas não se conformam com a lógica aristotélica, o homem não se
diferencia do não-homem nem a vida da morte, como no nosso mundo.
Conhecemos alguma coisa da forma desses outros mundos pela lógica dos
idiomas nativos e pelos mitos e cerimônias, conforme registrados pelos
antropólogos. Dom Juan nos mostrou uns vislumbres do mundo de um feiticeiro
y aqui, e como o vemos sob a influência de substâncias alucinógenas, nós os
captamos com uma realidade totalmente diversa daquelas outras fontes. Nisso
reside a principal virtude desta obra.
Castaneda afirma, com razão, que este mundo, com todas as suas diferenças
de percepção, tem sua lógica interna. Ele procurou explicar isso do interior,
pode-se dizer -de dentro de suai experiências ricas e intensamente pessoais,
quando sob a tutela de Dom Juan em vez de examiná-lo nos termos de nossa
lógica. O fato de ele não conseguir nisso um êxito total deve-se a uma limitação
que nossa cultura e nossa língua impõem sobre a percepção, e não a sua
limitação pessoal; no entanto, em seus esforços ele une para nós o mundo de um
feiticeiro y aqui com o nosso, o mundo da realidade não ordinária com o mundo
da realidade ordinária.
A importância primordial de entrar em mundos outros que não os nossos – e,
pois, da própria antropologia – reside no fato de que essa experiência nos leva a
compreender que o nosso próprio mundo é também um complexo cultural.
Experimentando outros mundos, vemos o nosso como ele é e assim podemos
também ver de relance como deve de fato ser o mundo verdadeiro, aquele entre
o nosso próprio complexo cultural e aqueles outros mundos. Daí a alegoria, bem
como a etnografia. A sabedoria e a poesia de Dom Juan, e a habilidade e poesia
de seu escriba, nos dão uma visão de nós e da realidade. Como em todas as boas
alegorias, o que se vê está com o espectador, e não precisa de exegese aqui.
As entrevistas de Carlos Castaneda com Dom Juan tiveram início quando ele
era estudante de antropologia na Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
Temos uma dívida para com ele por sua paciência, sua coragem e perspicácia ao
procurar e enfrentar o desafio de seu duplo aprendizado e por nos relatar os
detalhes de suas experiências. Nesta obra ele demonstra a habilidade essencial da
boa etnografia -a capacidade de ingressar num mundo estranho. Acredito que ele
encontrou um caminho com o coração.
WALTER GOLDSCHMIDT

EM LOUVOR DESTE LIVRO...


"Não posso exprimir direito a emoção que senti ao ler essa narrativa. A toda
hora eu largava o manuscrito e me levantava para andar... De repente, tanta
coisa até então ambígua passava a ter sentido. Mais que isso: tinha um significado
profundamente humano.
"Ora, para alguns antropólogos, o mundo verdadeiro não é aquilo que se vive,
mas sim as estruturas ocultas (leis) que governam as aparências. Assim, eles
pretendem tornar a antropologia uma ciência do mesmo tipo que as ciências
físicas, pois estas também rejeitam as aparências e insistem em que a realidade
não reside nelas, e sim nas leis que as governam. "O que me perturba nesse
método, quando utilizado exclusivamente, é que conduz a uma rejeição do
mundo dos sentidos, até mesmo à rejeição da experiência primária. Creio que
isso se aplica à maior parte dos livros sobre antropologia. Seu isolamento
intelectual os separa da realidade essencial -a realidade humana. Sua seriedade e
vocabulário corroem a margem viva. Tenho de forçar meus poderes de
sensibilidade para estabelecer com eles a intimidade humana que eles não
conseguem estabelecer comigo. Considero a maior parte deles muito afastada da
experiência humana original, num setor que seria injusto chamar de particular,
pois seus autores procuram povoá-los oficialmente.
"É por isso que A Erva do Diabo foi, para mim, uma experiência
emocionante. Relata uma realidade humana, não um equivalente da realidade. O
fato de ser lindamente escrito é óbvio. O fato de ser verdadeiro talvez seja
igualmente óbvio, mas talvez seja mais verdadeiro para o antropólogo que se
tenha ocupado com essas experiências."
— Edmund Carpenter
Professor de Antropologia do Carnegie Stevens College
Universidade da Califórnia em Santa Cruz
Para mi solo recorrer los caminos que tienen corazon, cualquier camino que
tenga corazon.
Por ahi yo recorro, y Ia unica prueba que vale es atravesar todo su largo. Y por
ahi yo recorro mirando, mirando, sin alinto.
(Para mim só existe percorrer os caminhos que tenham coração, qualquer
caminho que tenha coração.
Ali viajo, e o único desafio que vale é atravessá-lo em toda a ma extensão. E
por ali viajo olhando, olhando, arquejante.)
DOM JUAN
. . . não se pode tentar mais nada do que estabelecer o principio e a direção de
uma estrada infinitamente longa. A pretensão de qualquer plenitude sistemática e
definitiva seria, pelo mente, uma auto-ilusão. Aqui a perfeição só pode ser obtida
pelo estudante individual no sentido subjetivo, de que ele comunica tudo quanto
conseguiu ver.
GEORGE SIMMEL
AGRADECIMENTOS

Desejo exprimir minha profunda gratidão ao Professor Clement Meighan, que


iniciou e traçou o rumo de meu trabalho de campo na antropologia; ao Professor
Harold Garfinkel, que me deu o modelo e o espírito das indagações exaustivas; ao
Professor Robert Fdgerton, que comentou meu trabalho desde o início; aos
Professores William Bright e Pedro Carrasco por suas críticas e encorajamentos;
e ao Professor Lawrence Watson por seu valioso auxílio no esclarecimento de
minha análise. Finalmente, agradeço à Sra. Grace Stimson e ao Sr. F. A. Guilford
a sua colaboração no preparo deste manuscrito.
INTRODUÇÃO

No verão de 1960, quando eu era estudante de antropologia na Universidade


da Califórnia, em Los Angeles, fiz várias viagens ao Sudoeste a fim de coligir
informações sobre as plantas medicinais utilizadas pelos índios do local. Os fatos
que descrevo aqui começaram durante uma de minhas viagens. Eu estava
esperando numa cidade da fronteira para tomar um ônibus, conversando com
um amigo que tinha sido meu guia e auxiliar na pesquisa. De repente ele chegou
bem junto de mim e cochichou que o homem sentado defronte da janela, um
velho índio de cabelos brancos, era grande conhecedor de plantas, especialmente
o peiote. Pedi a meu amigo que me apresentasse ao homem.
Meu amigo cumprimentou-o e em seguida apertou a mão dele. Depois de
conversarem um pouco, meu amigo me fez sinal para ir para junto deles, mas
logo me deixou sozinho com o velho, sem nem se dar ao trabalho de nos
apresentar. Ele não ficou nada constrangido. Dei o meu nome e ele disse que se
chamava Juan e que estava às minhas ordens. Usava o tratamento de cortesia em
espanhol. Nós nos apertamos as mãos, por iniciativa minha, e depois ficamos
calados por um momento. Não era um silêncio forçado, mas um sossego, natural
e descansado, de ambas as partes. Embora sua cara e pescoço escuros fossem
enrugados, mostrando sua idade, achei que o corpo dele era ágil e musculoso.
Então, contei-lhe que estava interessado em obter informações sobre plantas
medicinais. Embora, na verdade, eu fosse quase totalmente ignorante a respeito
do peiote, fiz de conta que sabia muita coisa a respeito, sugerindo até que seria
vantajoso para ele conversar comigo. Enquanto eu tagarelava, ele meneava a
cabeça, devagar, mas não dizia nada. Eu evitava os olhos dele e acabamos
ficando os dois num silêncio total. Por fim, depois do que pareceu muito tempo,
Dom Juan levantou-se e ficou olhando pela janela. O ônibus dele tinha chegado.
Despediu-se e saiu da estação.
Fiquei aborrecido por ter falado tolices com ele, e por ter sido penetrado por
aqueles olhos extraordinários. Quando meu amigo voltou, procurou consolar-me
por não ter conseguido aprender nada com Dom Juan. Explicou que o velho
muitas vezes ficava calado, ou não se metia, mas o efeito perturbador daquele
primeiro encontro não passou muito facilmente.
Fiz questão de descobrir onde morava Dom Juan e depois visitei-o várias
vezes. Em todos os encontros eu procurava levá-lo a falar sobre o peiote, porém
sem sucesso. Mas nós nos tornamos bons amigos e a minha investigação
científica ficou esquecida, ou pelo menos foi novamente dirigida para canais que
ficavam a um mundo de distância de meu propósito original.
O amigo que me apresentou a Dom Juan explicou depois que o velho não era
nativo do Arizona, onde nos encontramos, e sim um índio y aqui de Sonora,
México.
A princípio eu considerava Dom Juan simplesmente como um homem meio
especial, que sabia muita coisa sobre peiote e que falava espanhol muito bem.
Mas o pessoal com quem ele morava acreditava que ele tinha uma espécie de
"sabedoria secreta", que ele era um brujo. A palavra espanhola brujo significa
em português bruxo, curandeiro, feiticeiro. Denota essencialmente uma pessoa
que tenha poderes extraordinários e geralmente maléficos.
Eu já conhecia Dom Juan havia um ano quando ele afinal resolveu confiar
em mim. Um dia ele me explicou que possuía um certo conhecimento, que
aprendera com um mestre, um "benfeitor", como ele dizia, que o dirigira numa
espécie de aprendizagem. Dom Juan, por sua vez, me escolhera para servir de
seu aprendiz, mas ele me avisou que eu teria de assumir um compromisso muito
sério e de que o treinamento seria longo e árduo.
Ao descrever seu mestre, Dom Juan usou a palavra diablero. Mais tarde eu
soube que diablero é um termo usado somente pelos índios sonoras. Refere-se a
uma pessoa perversa que pratica a magia negra e é capaz de se transformar num
animal -um pássaro, um cão, um coiote ou qualquer outra criatura. Em uma de
minhas idas a Sonora eu tive uma experiência estranha, que ilustra as reações dos
índios para com os diableros. Eu estava dirigindo de noite em companhia de dois
amigos índios quando vi um animal que parecia ser um cão atravessando a
estrada. Um de meus companheiros disse que não era um cão, e sim um enorme
coiote. Diminuí a marcha e parei à margem da estrada para olhar bem para o
animal. Ele ficou focalizado pelas luzes dos faróis mais uns segundos e depois
correu para o chaparral. Não havia dúvida de que era um coiote, mas era o
dobro do tamanho normal. Falando muito agitados, meus amigos concordaram
que era animal muito singular e um deles sugeriu que podia ser diablero. Resolvi
utilizar uma versão dessa experiência para interrogar os índios daquela região a
respeito de suas crenças na existência de diableros. Conversei com muita gente,
contando a história e fazendo perguntas. As três conversas que se seguem
indicam o que eles sentiam.
─ Você acha que foi um coiote, Choy ? -perguntei a um rapazinho, depois de
ele ouvir a história.
─ Quem sabe? Um cão, sem dúvida. Grande demais para um coiote.
─ Acha que pode ter sido um diablero?
─ Isso é tudo besteira. Não existem essas coisas.
─ Por que diz isso, Choy ?
─ As pessoas imaginam coisas. Aposto que, se você tivesse pegado aquele
animal, teria visto que era um cachorro. Caos vez eu tinha negócios em outra
cidade e me levantei de aceda e arreei um cavalo. Quando eu estava saindo, vi
na estrada uma sombra escura, que parecia um animal imenso. Meu cavalo
empinou, lançando-me fora da sela. Também bem assustado, mas, quando fui
ver, a sombra era uma mulher caminhando para a cidade.
─ Quer dizer, Choy, que você não acredita que existem diablero?
─ Diableros! O que é um diablero? Diga-me o que é um diablero! -Não sei,
Choy. Manuel, que estava comigo naquela noite, dissse que o coiote podia se um
diablero. Talvez possa que é um diablero?
─ Dizem que um diablero é um brujo que se transforma em qualquer forma
que ele queira adotar. Mas todo mundo sabe que isso é besteira pura. Os velhos
daqui estão cheios de histórias de diableros. Você não encontra essas coisas entre
nós jovens.
─ Que tipo de animal acha que foi, Dona Luz? -perguntei a uma mulher de
meia-idade.
─ Só Deus pode saber ao certo, mas não creio que tenha sido um coiote. Há
coisas que parecem ser coiote, mas não são. O coiote estava correndo, ou estava
comendo?
─ Estava parado de pé, a maior parte do tempo, mas quando eu o vi, logo no
começo, acho que estava comendo alguma coisa.
─ Tem certeza de que não estava carregando nada na boca?
─ Talvez estivesse. Mas diga-me, isso faria alguma diferença?
─ Faria, sim. Se estivesse carregando alguma coisa na boca, não era um
coiote.
─ O que era, então?
─ Um homem ou uma mulher.
─ Como é que a senhora chama essas pessoas, Dona Luz?
Não respondeu. Continuei a lhe fazer perguntas, mas sem nada conseguir. Por
fim ela disse que não sabia. Perguntei-lhe se essas pessoas eram chamadas
diableros e ela respondeu que diablero era um dos nomes que lhes eram dados.
─ Conhece algum diablero? -perguntei -Conheci uma mulher -respondeu ela.
-Foi morta. Aconteceu quando eu era menininha. Dizem que a mulher se
transformava numa cadela. E uma vez um cachorro entrou na casa de um
homem branco, para roubar queijo. O homem matou o cão com uma
espingarda, e no mesmo momento em que o cachorro morreu na casa do branco
a mulher morria na sua cabana. Os parentes dela se reuniram e foram ao
branco, pedir indenização. O homem pagou um bom dinheiro por tê-la matado.
─ Como é que eles puderam pedir indenização se ele só matou um cachorro?
─ Disseram que o branco sabia que não era um cão, pois havia outras pessoas
com ele e todos viram que o cão se punha de pé nas patas traseiras como um
homem, para alcançar o queijo, que estava numa bandeja pendurada do teto. Os
homens estavam esperando o ladrão porque o queijo do branco roubado todas as
noites. E assim o homem matou o ladrão sabendo que não era um cachorro.
─ E hoje existem diableros, Dona Luz?
Essas coisas são muito misteriosas. Dizem que não há mais diableros, mas eu
duvido, pois um membro da família de um diablero tem de aprender o que o
diablero sabe. Os diableros têm suas próprias leis, e uma delas é que o diablero
tece de ensinar seus segredos a um membro de sua família.
─ O que acha que era o animal, Genaro? -perguntei s um homem muito
velho.
─ Um cachorro de um dos ranchos da região. Que mais havia da ser?
─ Podia ser um diablero! -Um diablero? Você está maluco? Não existem
diableros.
─ Quer dizer que não existem hoje, ou que nunca existiram?
─ Antigamente existiam, sim. Todo mundo sabe disso. Mas as pessoas tinham
muito medo deles e os mataram a todos.
─ Quem os matou, Genaro?
─ Todos os membros da tribo. O último diablero de que tive notícia foi S . . .
Ele matou dúzias, talvez até centenas de pessoas com sua feitiçaria. Não
podíamos suportar aquilo e o pessoal se juntou e o pegou de surpresa uma noite e
o queimou.
─ Há quanto tempo foi isso, Genaro?
─ Em 1942.
─ Você o viu com seus olhos?
─ Não, mas as pessoas ainda falam disso. Dizem que não restaram cinzas,
embora a fogueira fosse feita de madeira troe. No fim sobrou apenas uma
grande poça de gordura.
Embora Dom Juan classificasse seu benfeitor como um diablero nunca
mencionou o local onde adquirira seu conhecimento, nem identificou seu mestre.
Na verdade, Dom Juan revelou muito pouco acerca de sua vida pessoal. Ele só
contou que tinha nascido no Sudoeste, em 1891; que tinha passado quase toda a
vida no México; que em 1900 sua família fora exilada pelo governo mexicano
para o México Central, junto com milhares de outros índios sonoras, e que viveu
no México Central e do Sul até 1940. Assim, como Dom Juan viajou muito, sua
sabedoria pode ter sido o resultado de muitas influências. E embora ele se
considerasse um índio de Sonora, eu não tinha certeza se devia situar o contexto
de seus conhecimentos inteiramente na cultura dos índios sonoras. Mas não
pretendo aqui determinar seu meio cultural preciso. Comecei meu aprendizado
com Dom Juan em junho de 1961. Antes disso eu o vira em várias ocasiões, mas
sempre como observador antropológico. Durante essas primeiras conversas, eu
tomava notas de maneira disfarçada. Depois, de memória, eu reconstruía a
conversa toda. Quando comecei a participar como aprendiz, porém, esse método
de tomar notas tornou-se muito difícil, pois nossa conversa versava sobre muitos
assuntos diferentes.Então, Dom Juan -sob fortes protestos -permitiu que eu
registrasse abertamente tudo o que fosse dito. Eu também queria tirar fotografias
e gravar coisas, mas ele não o permitiu.
Fiz meu aprendizado primeiro no Arizona e depois em Sonora, pois Dom Juan
se mudou para o México, durante meu treinamento. O método que eu usava era
estar com ele por alguns dias, de vez em quando. Minhas visitas se tornaram mais
frequentes e duraram mais tempo nos meses do verão de 1961, 1962, 1963 e
1964. Em retrospecto, acho que esse método de aprendizado impediu que o
treinamento tivesse êxito, pois retardou o advento do comprometimento total que
eu precisava para me tornar um feiticeiro. No entanto, o método foi benéfico de
meu ponto de vista pessoal, pois me permitiu um certo alheamento, o que por sua
vez provocava um senso de exame crítico que seria impossível de conseguir se
eu tivesse participado continuamente, sem interrupção. Em setembro de 1965,
voluntariamente parei com o aprendizado.
Vários meses depois de me retirar, pensei pela primeira vez na possibilidade
de organizar minhas anotações de campo de maneira sistemática. Como os dados
que eu coligira eram muito volumosos e incluíam muitas informações variadas,
comecei tentando fazer um sistema de classificação. Dividi os dados em setores
de conceitos e métodos relacionados e arrumei os setores hierarquicamente de
acordo com sua importância subjetiva -isto é, em termos do impacto que cada
qual teve sobre mim. Desse modo cheguei à seguinte classificação: alucinógenas;
processos e fórmulas utilizados na feitiçaria; aquisição e manipulação de objetos
de poder; de plantas medicinais; canções e lendas.
Refletindo sobre os fenômenos que eu experimentara, verifiquei que minha
tentativa de classificação não produzira mais do que um inventário de categorias;
e qualquer tentativa de refinar meu plano, portanto, só redundaria num inventário
mais complexo. Não era isso que eu queria. Nos meses que se seguiram à minha
retirada do aprendizado, precisei compreender o que experimentara, e o que
experimentara era o ensinamento de um sistema coerente de crenças por meio
de um método pragmático e experimental. Fora óbvio para mim desde a
primeira sessão de que participei que os ensinamentos de Dom Juan possuíam
uma coesão interna. Uma vez que resolveu definitivamente comunicar-me seu
conhecimento, passou a apresentar suas explicações em gradações ordenadas.
Descobrir essa ordem e compreendê-la foi para mim uma tarefa muito difícil.
Minha incapacidade de chegar a uma compreensão parece dever-se ao fato
de que, depois de quatro anos de aprendizado, eu era ainda um principiante. Era
claro que o conhecimento de Dom Juan e seu método de transmiti-lo eram os de
seu benfeitor assim, minhas dificuldades em compreender os ensinamentos dele
devem ter sido análogas às que ele mesmo tinha encontrado. Dom Juan aludiu à
nossa semelhança como principiantes por comentários ocasionais sobre sua
incapacidade de compreender seu mestre durante sua própria aprendizagem.
Esses comentários me levaram a crer que, para qualquer principiante, índio ou
não-índio, o conhecimento da feitiçaria se tornava incompreensível devido às
características extraordinárias dos fenômenos que ele experimentava.
Pessoalmente, como ocidental, achava essas características tão fantásticas que
era impossível explicá-las em termos de minha própria vida duna, e fui forçado a
concluir que qualquer tentativa de classificar meus dados de campo em meus
próprios termos seria inútil.
Assim, tornou-se óbvio para mim que os conhecimentos de Dom Juan tinham
de ser examinados em termos de como ele mesmo os compreendia; e só nesses
termos é que poderiam tornar-se evidentes e convincentes. Tentando conciliar
meus pontos de vista com os de Dom Juan, porém, verifiquei que, sempre que
ele procurava explicar-me seus conhecimentos, usava conceitos que tornassem
as coisas "inteligíveis" para ele. Como esses conceitos me eram estranhos,
minhas tentativas de compreender sua sabedoria da maneira como ele a
compreendia me colocaram em outra posição insustentável. Portanto, meu
primeiro trabalho foi conceituação dele. Trabalhando nesse sentido, verifiquei
que Dom Juan dava ênfase especial a um certo setor de seus ensinamentos -para
ser preciso, as utilizações das plantas alucinógenas. Baseando-me nisso, repassei
todo o meu esquema de categorias.
Dom Juan utilizava, separadamente e em ocasiões diferentes, três plantas
alucinógenas: o peiote (Lophophora williamsii), a datura (Datura inoxia sy n. D.
meteloides) e um cogumelo (possivelmente Psilocybe mexicana). Desde antes de
seu contato com os europeus, os índios americanos já conheciam as propriedades
alucinógenas dessas três plantas. Devido a suas propriedades, elas têm sido
vastamente empregadas para o prazer, para curas, para a feitiçaria e para atingir
um estado de êxtase. No contexto específico de seus ensinamentos, Dom Juan
associava o uso da Datura inoxia e da Psilocy be mexicana para a aquisição do
poder, um poder que ele denominava "aliado". Associava o uso da Lophophora
williamsii à aquisição da sabedoria, ou o conhecimento da maneira certa de
viver.
Para Dom Juan, a importância dessas plantas residia em sua capacidade de
provocar estados de uma percepção especial num ser humano. Assim, ele me
levou a experimentar uma série desses estados com o objetivo de expor e dar
validez a seu conhecimento. Eu os denominei "estados de realidade não comum",
significando uma realidade incomum, ao contrário da realidade da vida de todo
dia. A distinção baseia-se no significado inerente dos estados da realidade não
comum. No contexto do conhecimento de Dom Juan eram considerados reais,
embora sua realidade fosse diferenciada da realidade comum.
Dom Juan acreditava que os estados de realidade não comum eram a única
forma de aprendizagem pragmática e o único meio de se adquirir o poder.
Transmitia a impressão de que os outros ramos de seus ensinamentos eram
secundários, diante da aquisição do poder. Este ponto de vista penetrava a atitude
de Dom Juan em tudo o que não se relacionasse diretamente com os estados de
realidade não comum. Espalhadas em minhas anotações de campo há
referências esparsas ao modo de sentir de Dom Juan. Por exemplo, em uma
conversa com ele sugeriu que há alguns objetos que possuem um certo poder em
si mesmos. Embora ele em pessoa não tivesse consideração por objetos de
poder, disse que eram muitas vezes utilizados como apoios por brujos menos
experientes. Muitas vezes lhe perguntei a respeito desses objetos, mas ele parecia
inteiramente desinteressado de falar sobre eles. Mas quando o assunto surgiu
novamente em outra ocasião, ele consentiu, com relutância em falar a respeito.
─ Existem certos objetos que são imbuídos do poder – disse ele. – Há dezenas
desses objetos, que são criados por homens poderosos, com o auxilio de espíritos
benignos. Esses objetos são ferramentas... não ferramentas comuns, mas sim
ferramentas da morte. No entanto, são apenas instrumentos; não têm o poder de
ensinar. A falar a verdade, são do reino de objetos de guerra, destinados à luta:
são feitos para matar, para serem lançados.
─ Que tipo de objetos são eles, Dom Juan?
─ Não são propriamente objetos; são, antes, tipos de poder.
─ Como se pode obter esses tipos de poder, Dom Juan?
─ Isso depende do tipo de objeto que você queira.
─ Quantos tipos existem?
─ Como já disse, há dezenas de vezes. Qualquer coisa pode ser um objeto de
poder.
─ Bem, então, quais são os mais poderosos?
─ O poder de um objeto depende de seu possuidor, do tipo de homem que ele
é. Um objeto de poder criado por um brujo sem importância é quase uma
brincadeira; por outro lado, um brujo forte e poderoso empresta sua força a suas
ferramentas.
─ Então, quais são os objetos de poder mais comuns? Quais os que a maioria
dos brujos prefere?
─ Não há preferências. São todos objetos de poder, igualmente.
─ Possui algum deles, Dom Juan?
─ Não respondeu; ficou olhando para mim e riu. Permaneceu calado muito
tempo e eu achei que minhas perguntas o estavam aborrecendo.
─ Há limites para esses tipos de poder -continuou ele. -Mas estou certo de que
isso lhe seria incompreensível. Levei quase uma vida para entender que, sozinho,
um aliado pode revelar todos os segredos desses poderes secundários, tornando-
os meio infantis. Tive dessas ferramentas um dia, quando era muito jovem.
─ Que objetos de poder você tinha?
─ Maíz-pinto, cristais e penas.
─ O que é maíz-pinto, Dom Juan?
─ É um grãozinho de milho que tem um traço vermelho no meio.
─ É um grão só?
─ Não. Um brujo possui 48 grãos.
─ O que fazem os grãos, Dom Juan?
─ Cada um deles pode matar um homem se entrar no corpo dele.
vE como é que um grão entra num corpo humano?
─ É um objeto de poder e seu poder consiste, entre outras coisas, em entrar no
corpo.
─ O que é que faz quando entra no corpo?
─ Ele se embebe no corpo; instala-se no peito, ou nos intestinos. O homem
fica doente, e a não ser que o homem que o esteja curando seja mais forte do
que o feiticeiro, ele morre dentro de três meses depois que o grão lhe penetrou no
corpo.
─ Existe alguma maneira de curá-lo?
-O único meio é chupar para fazer sair o grão, mas há muito poucos brejos
que ousariam fazer isso. Um brejo poderá chupar e fazer o grão sair, mas a não
ser que ele seja suficientemente forte para repeli-lo, o grão entra no corpo dele e
o mata.
─ Mas como é que um grão consegue entrar no corpo de alguém?
─ Para explicar isso, preciso contar-lhe a respeito da feitiçaria do milho, que é
uma das mais poderosas feitiçarias que conheço. O feitiço é feito por dois grãos.
Um deles é colocado dentro do broto de uma flor amarela. A flor então é
colocada num lugar em que entre em contato com a vítima: a estrada em que ela
anda todo dia, ou qualquer lugar em que esteja habitualmente. Assim que a
vítima pisa no grão, ou o toca de alguma maneira, o feitiço está feito. O grão
embebe-se no seu corpo.
─ O que acontece com o grão depois que o homem o tocou?
─ Todo seu poder entra dentro do homem, e o grão fica livre. Torna-se apenas
mais um grão. Pode ser deixado no local do feitiço, ou pode ser varrido dali; não
importa. É melhor varrê-lo para o mato rasteiro, onde será comido por um
pássaro.
─ Os pássaros não o comem antes de o homem tocá-lo?
─ Não. Nenhum pássaro é assim tão burro eu lhe asseguro. Os pássaros não
chegam perto dele.
Dom Juan então descreveu um processo muito complexo, pelo qual esses
grãos de poder podem ser obtidos.
─ Deve ter em mente que maíz-pinto é um simples instrumento, não um
aliado -disse ele. -Depois que estabelecer essa diferença, não terá mais
problema. Mas se considerar que esses instrumentos são supremos, será um tolo.
─ Os objetos de poder são tão poderosos quanto um aliado? -perguntei.
Dom Juan riu com desprezo antes de responder. Parecia que ele estava-se
esforçando muito para ser paciente comigo.
─ Maíz-pinto, cristais e penas são simples brinquedos, comparados com um
aliado disse ele. -Esses objetos de por só são necessários quando o homem não
tem um aliado. É uma perda de tempo procurá-los, especialmente no seu caso.
Você devia estar procurando arranjar um aliado; quando o conseguir, há de
compreender o que lhe digo agora. Os objetos de poder são como uma
brincadeira de criança.
─ Não me interprete mal, Dom Juan -protestei eu. -Quero ter um aliado, mas
também desejo saber tudo o que puder. Você mesmo já disse que saber é poder.
─ Não! -disse ele, com ênfase. -O poder reside no tipo do poder que a gente
tem. De que adianta saber coisas inúteis?
No sistema de crenças de Dom Juan, a aquisição de um aliado significava
exclusivamente a exploração dos estados de não comum que ele produzia em
mim pela utilização de plantas alucinógenas. Ele acreditava que, concentrando-
me nesses estados e omitindo outros aspectos do conhecimento que ele ensinava,
eu chegaria a uma visão coerente dos fenômenos que eu experimentara.
Por isso, dividi este livro em duas partes. Na primeira, apresento passagens de
minhas anotações de campo que tratam dos estados de realidade não comum que
experimentei em meu aprendizado. Como dispus minhas notas para servirem à
continuidade da narração, elas nem sempre estão em ordem cronológica.
Sempre escrevi minha descrição de um estado de realidade não comum vários
dias depois de o ter experimentado, esperando até ser capaz de tratá-lo calma e
objetivamente. Mas as minhas conversas com Dom Juan eram anotadas assim
que ocorriam, logo após cada estado de realidade não comum. Portanto, minhas
descrições dessas conversas precedem a plena descrição de uma experiência.
Minhas anotações de campo revelam a versão subjetiva do que eu percebia
enquanto tinha a experiência. Essa versão é apresentada aqui assim como eu a
narrava a Dom Juan, que exigia uma rememoração completa e fiel de todos os
detalhes e a narração completa de cada experiência. No momento de anotar
essas experiências, acrescentei detalhes secundários, para procurar retratar o
ambiente total de cada estado de realidade não comum. Queria descrever o
impacto emocional que experimentara o mais completamente possível.
Minhas anotações de campo revelam ainda o conteúdo do sistema de crenças
de Dom Juan. Condensei longas páginas de perguntas e respostas entre Dom Juan
e eu, a fim de não ter de reproduzir as repetições das conversas. Mas também
desejo refletir com precisão o estado de espírito feral de nossas conversas, e por
isso só suprimi os diálogos que em nada contribuíam para minha compreensão do
seu método de conhecimento. As informações que Dom Juan me dava sobre seu
método de conhecimento eram sempre esporádicas, e para cada explicação da
parte dele havia sempre horas de perguntas de minha parte. Não obstante, houve
inúmeras ocasiões em que ele expôs seu conhecimento livremente.
Na segunda parte deste livro, apresento uma análise estrutural baseada
exclusivamente sobre os dados expostos na primeira parte. Em minha análise,
procuro justificar as seguintes premissas: (1) Dom Juan apresentava seus
ensinamentos como um sistema de pensamento lógico; (2) o sistema só fazia
sentido quando examinado à luz de suas unidades estruturais; e (3) o sistema era
concebido para dirige um aprendiz a um nível de conceituação que explicava a
ordem dos fenômenos que ele experimentava.
PARTE UM – OS ENSINAMENTOS

1
As anotações sobre minha primeira sessão com Dom Juan são datadas de 23
de junho de 1961. Foi nessa ocasião que começaram os ensinamentos. Eu já
tinha estado com ele várias vezes antes disso, apenas como observador. Em todas
as oportunidades, pedia-lhe que me falasse a respeito do peiote. Todas as vezes
ele não fazia caso de meu pedido, mas nunca deixava o assunto inteiramente de
lado, e interpretei a hesitação dele como sendo uma possibilidade de poder falar
a respeito de seus conhecimentos com um pouco-mais de insistência.
Naquela determinada sessão, ele me mostrou claramente que poderia atender
à minha solicitação desde que eu possuísse a necessária clareza de espírito e de
propósito com relação ao que lhe perguntara. Era-me impossível satisfazer essa
condição, pois eu só lhe pedira para me falar sobre o peiote como um meio de
estabelecer uma comunicação com ele. Pensei que seu conhecimento do assunto
poderia torná-lo mais disposto a falar e mais aberto, possibilitando-me assim uma
entrada em seu conhecimento sobre as propriedades das plantas. Mas ele
interpretou meu pedido ao pé da letra, e estava preocupado com meus objetivos
ao querer saber acerca do peiote.
Sexta-feira, 23 de junho de 1961
─ Quer-me ensinar alguma coisa a respeito do peiote, Dom Juan?
─ Por que quer saber disso?
─ Eu queria mesmo saber a respeito. Só querer saber não basta como motivo?
─ Não! Tem de procurar em seu íntimo para saber por que um rapaz como
você quer empreender essa tarefa de aprendizagem.
─ Por que você mesmo aprendeu sobre isso, Dom Juan?
─ Por que quer saber?
─ Talvez nós dois tenhamos os mesmos motivos.
─ Duvido. Sou índio. Não temos os mesmos caminhos.
─ O único motivo que tenho é que desejo saber a respeito, só para aprender.
Mas asseguro-lhe, Dom Juan, não tenho más intenções.
─ Acredito em você. Já o fumeguei.
─ Perdão?
─ Não importa agora. Sei quais são suas intenções.
─ Quer dizer que leu meus pensamentos?
─ Poda ser.
─ Então quer-me ensinar?
─ Não! -Por eu não ser índio?
-Não. Porque você não conhece seu íntimo. O importante é você saber
exatamente por que quer envolver-se. Aprender a respeito de Mescalito é uma
coisa muito séria. Se você fosse índio, só o seu desejo seria suficiente. Muito
poucos índios têm esse desejo.
Domingo, 25 de junho de 1961
Fiquei com Dom Juan a tarde toda na sexta-feira. Eu ia partir por volta das
sete da noite. Estávamos sentados na varanda em frente da casa dele e eu resolvi
perguntar-lhe mais uma vez sobre os ensinamentos. Era quase uma pergunta de
rotina e eu já estava quase esperando que ele tornasse a recusar-se. Perguntei-
lhe se havia um jeito de ele aceitar apenas o meu desejo de aprender, como se
eu fosse um índio. Ele custou muito a responder. Fui obrigado a esperar, pois ele
parecia estar procurando resolver alguma coisa.
Por fim ele me disse que havia um meio, e passou á expor um problema.
Disse que eu estava muito cansado de ficar sentado no chão e que o que eu devia
fazer era encontrar um ponto (sitio) no chão em que eu pudesse sentar-me sem
me cansar. Eu estava sentado com os joelhos levantados, de encontro ao peito, e
os braços trançados em volta das pernas. Quando ele disse que eu estava
cansado, percebi que minhas costas estavam doendo e que eu estava quase
exausto.
Esperei que ele explicasse o que queria dizer um "ponto", mas ele não
procurou elucidar isso abertamente. Pensei que talvez ele quisesse dizer que eu
devia mudar de posição, de modo que me levantei e sentei mais perto dele.
Protestou contra meu movimento e frisou claramente que um ponto significava
um lugar em que a pessoa se sentisse naturalmente feliz e forte. Mostrou o lugar
em que estava sentado e disse que era o ponto dele, acrescentando que tinha
proposto um enigma que eu teria de resolver sozinho, sem mais conversas.
O que ele tinha proposto como um problema a ser resolvido era certamente
um enigma. Não tinha idéia de como começar, nem mesmo do que ele teria em
mente. Várias vezes pedi uma indicação, ou pelo menos uma sugestão, sobre
como proceder para encontrar um ponto em que me sentisse feliz e forte. Insisti
e argumentei, dizendo que eu não tinha idéia do que ele realmente queria dizer
porque não podia conceber o problema. Ele sugeriu que eu andasse pela varanda
até encontrar o ponto.
Levantei-me e comecei a andar pelo chão. Senti que estava fazendo papel de
bobo e sentei-me diante dele.
Ele ficou muito aborrecido comigo e me acusou de não prestar atenção e
disse que talvez eu não quisesse aprender. Depois de algum tempo, acalmou-se e
explicou que nem todos os lugares eram bons de se sentar ou estar, e que dentro
dos limites da varanda havia um ponto que era único, um ponto em que eu estaria
em minha melhor forma. Cabia a mim distingui-lo de todos os outros lugares. A
idéia geral era que eu teria de "sentir" todos os pontos possíveis que me fossem
acessíveis, até poder estabelecer, sem dúvida, qual o certo.
Argumentei que, embora a varanda não fosse muito grande (2,5 por 3,5 m), o
número de pontos possíveis era imenso e eu levaria muito tempo para verificar
todos, e como ele não tinha especificado o tamanho do ponto, as possibilidades
podiam ser infinitas. Meus argumentos foram em vão. Levantou-se e me avisou
muito severamente de que eu poderia levar dias para resolver aquilo, mas que, se
não resolvesse o problema, mais valia eu partir, pois ele não teria mais nada a
me dizer: Frisou que sabia onde ficava meu ponto, e que, portanto, eu não lhe
poderia mentir; disse que aquele era o único meio pelo qual ele poderia aceitar
meu desejo de aprender a respeito de Mescalito como motivo válido.
Acrescentou que no mundo dele, nada era dado de presente, e que tudo o que se
tinha de aprender tinha de ser aprendido com dificuldade.
Deu a volta à casa e foi ao chaparral, urinar. Depois, entrou em casa
diretamente pelos fundos.
Achei que a tarefa de encontrar o suposto ponto de felicidade era sua maneira
de me despachar, mas levantei-me e comecei a andar de um lado para outro. O
céu estava azul. Eu via tudo o que havia na varanda e perto dela. Devo ter andado
por uma hora ou mais, mas nada aconteceu para revelar a posição do ponto.
Fiquei cansado de andar e sentei-me; depois de alguns momentos, sentei-me em
outro lugar, e depois em outro, até ter percorrido todo o chão de maneira semi-
sistemática. Propositadamente, procurei "sentir" diferenças entre os lugares, mas
faltava-me o critério para a diferenciação. Senti que estava perdendo meu
tempo, mas fiquei ali. Raciocinei que tinha vindo de muito longe só para ver Dom
Juan, e não tinha mesmo mais nada para fazer.
Deitei-me de costas e pus as mãos debaixo da nuca, como um travesseiro.
Depois, rolei e fiquei deitado de bruços um pouco. Repeti esse processo de rolar
no chão todo. Pela primeira vez, achei que tinha encontrado um vago critério.
Sentia-me mais quente quando me deitava de costas.
Tornei a rolar, dessa vez na direção oposta e voltei a percorrer todo o chão,
ficando de bruços em todos os lugares em que tinha ficado da costas em minha
primeira volta rolada. Experimentei as mesmas sensações de frio e calor,
dependendo de minha posição, mas não havia diferença entre os pontos.
Então, ocorreu-me uma idéia que me pareceu brilhante: o ponto de Dom
Juan! Fiquei ali sentado, depois deitei-me, primeiro de bruços e depois de costas,
mas o lugar era igual a todos os outros. Levantei-me. Já bastava. Eu queria
despedir-me de Dom Juan, mas não queria acordá-lo. Olhei para meu relógio.
Eram duas horas da madrugada! Eu estava rolando havia seis horas.
Naquele momento, Dom Juan saiu da casa e foi para o chaparral. Depois
voltou e ficou junto da porta. Sentia-me completamente rejeitado e queria dizer-
lhe alguma coisa desagradável e ir embora. Mas percebi que não era culpa dele;
que eu mesmo é quem tinha querido passar por toda aquela tolice. Disse-lhe que
tinha fracassado; tinha passado a noite no chão da sua casa e ainda não conseguia
entender o enigma dele.
Riu e disse que aquilo não o surpreendia porque eu não agido direito. Não tinha
usado os olhos. Era verdade, o no entanto eu tinha muita certeza de que ele
dissera que eu tinha de sentir a diferença. Expus esse argumento, mas ele que a
gente pode sentir com os olhos, quando estes não olhando diretamente dentro das
coisas. Quanto a mim, disse ele, não tinha outro meio de resolver esse problema
a não fiado tudo o que eu tinha – meus olhos.
Foi para dentro. Eu tinha certeza de que ele me tinha atado observando. Achei
que não havia outro jeito de ele saber que eu não tinha usado os olhos.
Recomecei a rolar, pois era esse o sistema mais cômodo. Dessa vez, porém,
coloquei o queixo nas mãos e olhei pata todos os detalhes.
Depois de um intervalo, a escuridão em volta de mim mudou. Quando me
concentrava no ponto bem defronte de mim, toda a periferia de meu campo de
visão tornava-se brilhantemente colorida com um amarelo-esverdeado
homogêneo. O efeito era impressionante. Mantive os olhos fixos no ponto diante
de mim e comecei a rastejar de lado sobre a barriga, um pouquinho de cada vez.
De repente, num ponto perto do meio do chão, verifiquei outra modificação
de tonalidade. Num lugar à minha direita, ainda na periferia de meu campo de
visão, o amarelo esverdeado tornava-se intensamente roxo. Concentrei minha
atenção nele. O roso desmaiou para uma cor pálida, mas ainda brilhante que se
manteve constante enquanto eu concentrava a atenção nela.
Marquei o local com meu paletó e chamei Dom Juan. Ele saiu para a
varanda. Eu estava muito emocionado; tinha realmente visto a mudança nas
tonalidades. Ele não pareceu impressionar-se, e disse-me que me sentasse no
lugar e lhe que sensações tinha.
Sentei-me e depois deitei-me de costas. Ele ficou de pé a meu lado e me
perguntou várias vezes como eu me sentia; mas não senti nada de diferente. Por
uns quinze minutos procurei sentir ou ver alguma diferença, enquanto Dom Juan
ficava pacientemente a meu lado. Eu estava aborrecido. Tinha um gosto de
metal na boca. De repente, tive dor de cabeça. Tulha ânsias de vômito. A idéia de
minhas tentativas idiotas me irritava a ponto de me enfurecer. Levantei-me.
Dom Juan deve ter observado a minha profunda frustração.
Não riu; e muito sério, declarou que eu tinha de ser inflexível comigo mesmo,
se quisesse aprender. Eu só tinha duas opções, disse ele: desistir e ir para casa, e
nesse caso eu nunca havia de aprender; ou decifrar o enigma.
Tornou a entrar em casa. Eu queria sair logo, mas estava muito cansado para
dirigir; além disso, o fato de eu ter percebido as cores era tão impressionante que
eu estava certo de ser um critério qualquer, e talvez houvesse outras
modificações a serem percebidas. De qualquer forma, era muito tarde para
partir. Por isso, sentei-me, estiquei as pernas e recomecei tudo.
Dessa vez eu me movi rapidamente por cada lugar, passando pelo ponto de
Dom Juan, até o fim da varanda e depois virei-me para cobrir a extremidade
externa. Quando cheguei ao centro, vi que estava havendo outra modificação de
coloração em meu campo de visão. O verde-amarelado uniforme que eu via em
todo o setor transformava-se, em um ponto à minha direita, num verde forte.
Ficou assim por um momento e depois metamorfoseou-se em outro tom
constante, diferente do outro que eu tinha visto antes. Tirei um de meus sapatos e
marquei o ponto, continuando a rolar até ter coberto o chão em todas as direções
possíveis. Não se deu nenhuma outra mudança de coloração.
Voltei ao ponto marcado pelo meu sapato e examinei-o. Ficava a mais ou
menos 1,50 m do ponto marcado pelo meu paletó, numa direção sudeste. Perto
dele havia uma pedra grande. Fiquei ali deitado por algum tempo, procurando
descobrir alguma pista, olhando para todos os detalhes, mas não senti nada de
diferente.
Resolvi tentar o outro ponto. Rodopiei depressa nos joelhos e já ia deitando no
paletó quando senti uma apreensão anormal. Era mais como uma sensação física
de alguma coisa me empurrando no estômago. Dei um salto e recuei num
movimento só. Os cabelos de minha nuca se eriçaram. As pernas estavam
levemente arqueadas, o tronco debruçado para a frente, e os braços esticados na
mesma posição, rigidamente, com os dedos contraídos como garras. Reparei em
minha estranha posição e assustei-me ainda mais.
Sem querer, andei para trás e sentei-me na pedra junto de meu sapato. Da
pedra passei para o chão. Tentei imaginar o que teria acontecido para me
assustar assim. Achei que devia ser o cansaço que estava sentindo. Já era quase
dia. Sentia-me tolo e encabulado. No entanto, não tinha jeito de saber o que me
assustara, nem tinha descoberto o que era que Dom Juan queria.
Resolvi fazer uma última tentativa. Levantei-me e, devagar aproximei-me do
lugar marcado pelo paletó e tornei a sentir a mesma apreensão. Dessa vez, fiz
um grande esforço para me controlar. Sentei-me e depois ajoelhei-me para
deitar de bruços, mas, a despeito de minha vontade, não consegui deitar-me. Pus
as mãos no chão em frente de mim. Minha respiração estava ofegante; meu
estômago estava embrulhado. Tive uma nítida sensação de pânico, e lutei para
não fugir. Pensei que talvez Dom Juan me estivesse vigiando. Devagar, rastejei
até o outro ponto e encostei as costas na pedra. Queria repousar um pouco para
arrumar as idéias, mas adormeci.
Ouvi Dom Juan falando e rindo por cima de minha cabeça. Acordei.
─ Você encontrou o ponto -disse ele.
A principio, não entendi, mas ele me garantiu de novo que o lugar em que eu
adormecera era o ponto certo. Tornou a me perguntar como é que eu me sentia
deitado ali. Respondi que realmente não notava nenhuma diferença.
Disse-me que comparasse minhas sensações daquele momento com o que eu
tinha sentido deitado no outro ponto. Pela primeira vez, ocorreu-me que eu não
poderia explicar minha apreensão da noite. Incitou-me, numa espécie de desafio,
a me sentar no outro ponto. Por algum motivo inexplicável eu chegava a ter
medo do outro lugar, e não me sentei lá. Declarou que só um tolo podia deixar de
perceber a diferença.
Perguntei-lhe se cada um dos dois pontos tinha um nome especial. Ele disse
que o bom era chamado o sitio e o mau o inimigo: disse que os dois lugares eram
a chave do bem-estar do homem, especialmente para uma pessoa que buscava o
conhecimento. O simples ato de sentar no ponto da gente criava uma força
superior; por outro lado, o inimigo enfraquecia a pessoa e podia até provocar a
sua morte. Ele disse que eu tinha refeito a minha energia, que tinha gasto muito
na noite anterior, dormindo um pouco no meu ponto.
Disse ainda que as cores que eu tinha visto, associadas a cada ponto especial,
tinham o mesmo efeito geral, de dar ou de roubar a força.
Perguntei-lhe se para mim haveria outros pontos como os dois que eu
encontrara, e como deveria proceder para descobri-los. Respondeu que muitos
lugares no mundo seriam comparáveis àqueles dois, e que o melhor meio de
descobri-los seria verificar suas cores respectivas.
Eu não sabia bem se tinha ou não resolvido o problema, e nem estava mesmo
convencido de que tinha havido um problema: não podia deixar de sentir que toda
aquela experiência era forçada e arbitrária. Tinha certeza de que Dom Juan me
vigiara a noite toda e depois quisera agradar-me, dizendo que o local em que eu
adormecera era o lugar que eu procurava. No entanto, eu não via um motivo
lógico para isso, e quando ele me desafiou a sentar-me no outro ponto, não
consegui fazê-lo. Havia uma estranha divisão entre a minha experiência
pragmática de recear o "outro ponto" e minhas deliberações racionais sobre o
caso todo.
Dom Juan, por outro lado, estava muito certo de meu sucesso, e, agindo de
acordo com isso, disse-me que me ia ensinar a respeito do peiote.
─ Você me pediu que lhe falasse sobre Mescalito disse ele. -Queria descobrir
se tinha bastante fibra para encontrá-lo cara a cara. Mescalito não é brincadeira.
Você tem de ter domínio sobre si. Agora, sei que posso admitir o seu simples
desejo como um bom motivo para aprender.
─ Vai mesmo ensinar-me a respeito do peiote?
─ Prefiro chamá-lo Mescalito. Faça o mesmo.
─ Quando vai começar?
─ Não é assim tão simples. Primeiro, você tem de estar pronto.
─ Creio que estou pronto.
─ Isso não é brincadeira. Você tem de esperar até não haver nenhuma dúvida,
e então o encontrará.
─ Tenho de preparar-me?
─ Não. Só tem de esperar. Pode desistir de tudo, depois de algum tempo. Você
se cansa facilmente. Ontem, você queria desistir assim que ficou difícil.
Mescalito exige um propósito muito sério.

2
Segunda-feira, 7 de agosto de 1961
Cheguei à casa de Dom Juan no Arizona por volta das sete horas da noite de
sexta- feira. Havia mais cinco índios sentados com ele na varanda da casa.
Cumprimentei-o e esperei que eles dissessem alguma coisa. Depois de um
silêncio formal, um dos homens levantou-se, chegou perto de mim e disse
"Buenas noches". Levantei-me e disse "Buenas noches". Depois todos os outros
homens se levantaram e se aproximaram de mim e nós todos murmuramos
"buenas noches" e nos apertamos as mãos, mal tocando uns nos dedos dos outros
ou pegando a mão por um instante e largando-a abruptamente.
Nós todos nos sentamos outra vez. Eles pareciam meio encabulados, sem
saber o que dizer, embora todos falassem espanhol.
Deviam ser umas sete e meia quando todos se levantaram de repente e foram
para os fundos da casa. Ninguém dizia uma palavra, fazia tempo. Dom Juan me
fez sinal para acompanhá-los e nós todos entramos numa velha camioneta
estacionada lá. Sentei-me atrás com Dom Juan e mais dois rapazes mais moços.
Não havia almofadas nem bancos e o chão de metal era duro de doer,
especialmente quando saímos da estrada pavimentada e passamos para uma de
terra. Dom Juan cochichou-me que íamos à casa de um amigo dele, que tinha
sete mescalitos para mim.
─ Não tem nenhum, Dom Juan? -perguntei-lhe.
─ Tenho, mas não podia oferecê-los a você. Entende, é outra pessoa que tem
de fazer isso.
─ Pode dizer-me por quê?
─ Talvez você não seja agradável a "ele" e "ele" não goste de você, e então
nunca poderá conhecê-lo com afeto, como se deve; e nossa amizade ficará
estragada.
─ Por que ele não havia de gostar de mim? Nunca lhe fiz nada.
─ Não precisa fazer nada para ele gostar de você ou não. Ou ele o recebe ou
o joga fora.
─ Mas se ele não me receber, não há alguma coisa que eu possa fazer para
obrigá-lo a gostar de mim?
Os dois outros homens pareceram ouvir minha pergunta e riram.
─ Não! Não sei de nada que se possa fazer – disse Dom Juan.
Virou-se meio de lado e não pude mais falar-lhe.
Devemos ter viajado pelo menos por uma hora antes de parar diante de uma
casinha.
Estava bem escuro e depois que o motorista desligou os faróis eu só conseguia
distinguir a silhueta vaga do prédio.
Uma moça, mexicana, a julgar pelo sotaque, estava gritando com um cão
para ele parar de latir. Saltamos do caminhão e entramos na casa. Os homens
resmungaram "Buenas noches" ao passarem pela moça. Ela os cumprimentou e
continuou a gritar com o cão.
A sala era grande e amontoada de um mundo de coisas. Uma luz fraca de
uma lâmpada elétrica muito pequenina tornava a cena muito, lúgubre. Havia
várias cadeiras de pernas quebradas e assentos caídos encostadas às paredes.
Três dos homens sentaram-se num sofá, que era o móvel maior da sala. Era
muito velho e estava apoiado no chão; à luz fraca parecia ser vermelho e sujo.
Nós outros nos sentamos nas cadeiras. Permanecemos calados por muito tempo.
De repente, um dos homens levantou-se e foi para outra sala. Tinha talvez uns
50 e poucos anos, e era moreno, alto e forte. Um momento depois voltou com
um vidro de café.
Abriu a tampa e entregou-me o vidro: dentro havia sete artigos de aparência
estranha. Eram de tamanhos e consistência variados. Uns eram quase redondos,
outros alongados. Ao tato, pareciam a polpa de nozes ou a superfície da cortiça.
Sua cor acastanhada os fazia parecer cascas de nozes duras e secas. Peguei
nelas, esfregando sua superfície por algum tempo.
─ Isso é para mascar (esto se masca) ─ cochichou Dom Juan.
Não tinha percebido que se havia sentado junto de mim, até ele falar. Olhei
para os outros homens, mas ninguém estava olhando para mim; estavam
conversando entre si, em voz baixa. Foi um momento de grande indecisão e
medo. Sentia-me quase incapaz de me controlar.
─ Tenho de ir ao banheiro -disse-lhe eu. ─ Vou até lá fora, dar uma volta.
Entregou-me o vidro de café e eu coloquei os botões de peiote ali. Já ia saindo
da sala, quando o homem que me dera o vidro se aproximou de mim e disse que
tinha uma privada no outro aposento.
O vaso ficava quase junto da porta. Junto dela, quase encostada ao vaso, havia
uma grande cama, ocupando mais da metade do quarto. A mulher estava ali
dormindo. Fiquei parado junto da porta um pouco e depois voltei à sala onde
estavam os outros homens. O dono da casa falou-me em inglês:
─ Dom Juan disse que você é da América do Sul. Lá existe mescal?
Respondi-lhe que nunca tinha ouvido falar nisso.
Pareceram estar interessados na América do Sul e conversamos um pouco
sobre os índios. Neste momento, um dos homens me perguntou por que eu queria
comer peiote. Eu disse que queria saber como era. Todos riram, encabulados.
Dom Juan me disse baixinho:
─ Masque, masque (masca, masca).
Minhas mãos estavam úmidas e meu estômago, contraído. O vidro com os
botões de peiote estava no chão ao lado de minha cadeira. Abaixei-me, peguei
um ao acaso e o pus na boca. Tinha um gosto de coisa velha. Mordi, dividindo-o
em dois, e comecei a mastigar um dos pedaços. Senti um amargo forte e
pungente; num momento, toda minha boca estava dormente. O amargo
aumentava enquanto eu mascava, forçando urna salivação incrível. Minhas
gengivas e a parte interna de minha boca estavam como se eu tivesse comido
carne- seca ou peixe salgados, parecendo obrigar-me a mascar mais. Pouco
depois, masquei o outro pedaço, e minha boca estava tão amortecida que eu nem
sentia mais o amargor. O botão de peiote tinha uma penca de fibras, como a
parte fibrosa da laranja ou da cana, e eu não sabia se devia engoli-la ou cuspi-la.
Naquele momento, o dono da casa levantou-se e convidou a todos Para saírem
para a varanda.
Saímos e ficamos sentados no escuro. Estava bastante agradável lá fora e o
anfitrião trouxe uma garrafa de tequila.
Os homens estavam sentados numa fileira, encostados à parede. Eu estava à
extrema direita da fila. Dom Juan, que continuava a meu lado, colocou o vidro
com os botões de peiote entre as minhas pernas. Depois, passou-me a garrafa,
que tinha vindo pela fila, e disse-me que bebesse um pouco de tequila para tirar o
amargor.
Cuspi os fiapos do primeiro botão e tomei um gole. Ele me disse que não ó
engolisse, mas apenas bochechasse para fazer parar a salivação. Não adiantou
muito para a saliva, mas certamente ajudou a tirar um pouco do amargo.
Dom Juan deu-me um pedaço de damasco seco, ou talvez fosse um figo seco
─ eu não conseguia ver no escuro, nem sentir o gosto ─ e disse-me que o
mastigasse bastante e devagar, sem me apressar. Tive dificuldade em engoli-lo;
parecia que não queria descer.
Depois de um curto intervalo a garrafa foi novamente passada. Dom Juan
deu-me um pedaço de carne-seca. Disse-lhe que não estava com vontade de
comer.
─ Isto não é comer ─ falou ele, com firmeza.
A função repetiu-se seis vezes. Lembro-me de já ter mascado seis botões de
peiote, quando a conversa ficou muito animada: embora eu não conseguisse
distinguir que língua estavam falando, o tema da conversa, da qual todos
participavam, era muito interessante, e eu procurei ouvir atentamente para
também poder participar. Mas quando tentei falar, vi que não conseguia; as
palavras passeavam a esmo pela minha cabeça.
Fiquei sentado, encostado à parede, escutando o que os homens falavam.
Estavam falando italiano e repetiam continuamente uma frase a respeito da
estupidez dos tubarões. Achei que era um assunto lógico e coerente. Eu havia
contado a Dom Juan que o rio Colorado no Arizona fora chamado pelos
primeiros espanhóis de "el rio de los tizones" (rio dos tições); e que alguém tinha
escrito errado ou entendido errado a palavra tizones e o rio foi chamado "el rio de
los tiburones" (rio dos tubarões). Eu tinha certeza de que estavam comentando
essa história, mas não me ocorreu pensar que nenhum deles sabia falar italiano.
Estava com muita vontade de vomitar, mas não me lembro se o fiz, de fato.
Perguntei se alguém poderia arranjar-me água. Estava com uma sede
insuportável.
Dom Juan me trouxe uma panela grande. Colocou-a no chão junto da parede.
Trouxe também uma canequinha. Mergulhou-a na panela e deu-a a mim,
dizendo que eu não podia beber, mas que devia apenas refrescar minha boca
com ela.
A água tinha um aspecto estranho, reluzente, como um verniz grosso. Quis
perguntar a Dom Juan a respeito e com dificuldade tentei formular meus
pensamentos em inglês, mas depois pensei que ele não sabia falar inglês. Houve
um momento de muita confusão e tive noção do fato de que, embora tivesse um
pensamento claro em minha cabeça, eu não podia falar. Queria comentar sobre
o. estranho aspecto da água, mas o que se seguiu não foi fala: era a sensação de
meus pensamentos não falados saindo de minha boca em forma líquida. Era uma
sensação fácil de vômito sem as contrações do diafragma. Era um agradável
fluxo de palavras líquidas.
Bebi. E a sensação de estar vomitando passou. A essa altura todos os sons
haviam desaparecido e vi que tinha dificuldade em focalizar os olhos. Procurei
Dom Juan e ao virar a cabeça notei que meu campo de visão tinha-se reduzido a
uma área circular defronte de meus olhos. Essa sensação não era nem
assustadora nem incômoda, ao contrário, era uma novidade; eu podia
praticamente varrer o solo, focalizando um ponto e depois movendo minha
cabeça devagar em qualquer direção. Quando eu havia saído para a varanda,
tinha reparado que estava toda no escuro, a não ser a luminosidade distante das
luzes da cidade. No entanto, dentro da área circular de minha visão, tudo era
claro. Esqueci-me de minha preocupação com Dom Juan e os outros homens e
entreguei-me totalmente a explorar o terreno com minha visão aguçada.
Vi a junção do chão da varanda com a parede. Virei minha cabeça
lentamente para a direita, seguindo a parede, e vi Dom Juan sentado de encontro
a ela. Movi a cabeça para a esquerda para focalizar a água. Encontrei o fundo da
panela; ergui minha cabeça ligeiramente e vi um cão preto de tamanho médio
aproximando-se. Notei que ele vinha em direção à água. O cão começou a
beber. Levantei a mão para espantá-lo da minha água; focalizei minha vista no
cão para executar o movimento e de repente eu vi que ele se tornava
transparente. A água era um líquido brilhante e viscoso. Eu a vi descendo pela
garganta do cachorro e entrando no corpo dele. Eu a vi percorrendo todo o corpo
dele e depois saindo por cada um dos pelos. Vi o fluido iridescente passando por
cada pelo individual e depois projetando-se dos pelos para formar uma juba
longa, branca e sedosa.
Naquele momento, tive a sensação de convulsões intensas e em poucos
instantes formou-se em volta de mim um túnel, muito baixo e estreito, duro e
estranhamente frio. Quando o toquei, parecia uma parede de folha sólida. Vi que
eu estava sentado no chão do túnel. Tentei levantar-me, mas dei com a cabeça no
teto de metal e o túnel contraiu-se até estar-me sufocando. Lembro-me de que
tive de arrastar-me até uma espécie de curva onde acabava o túnel; quando
finalmente cheguei lá, se é que cheguei, eu tinha esquecido completamente o
cão, Dom Juan e a mim mesmo. Estava exausto. Minhas roupas estavam
ensopadas, de um liquido frio e viscoso. Eu rolava para diante e para trás,
procurando encontrar uma posição para descansar, uma posição em que meu
coração não batesse tão forte. Num desses movimentos, tornei a ver o cão.
Todas as recordações me voltaram de repente, e tudo ficou claro em minha
mente. Virei-me para procurar Dom Juan, mas não conseguia distinguir nada
nem ninguém. Eu só conseguia ver o cão ficando iridescente; uma luz intensa se
irradiava de seu corpo. Torneia ver a água fluindo através dele, acendendo-o
como a uma fogueira. Cheguei até à água, afundei meu rosto na panela e bebi
com ele. Minhas mãos estavam diante de mim no chão e, enquanto eu bebia, vi o
fluido correndo por minhas veias e criando tonalidades de vermelho, amarelo e
verde. Bebi mais e mais. Bebi até estar todo em fogo; eu estava todo aceso. Bebi
até que o liquido saiu de meu corpo por todos os poros, projetando-se para fora
como fibras de seda, e eu também adquiri uma juba comprida, lustrosa e
iridescente. Olhei para o cachorro e a juba dele era igual à minha. Uma
felicidade suprema me encheu o corpo todo e corremos juntos para uma espécie
de calor amarelo que vinha de algum lugar indefinido. E ali brincamos.
Brincamos e lutamos até eu saber os desejos dele e ele saber os meus. Cada um
manipulava o outro à maneira dos teatros de fantoches. E o fazia mexer as
pernas quando torcia meus dedos dos pés e cada vez que ele batia a cabeça, eu
sentia um desejo irresistível de saltar. Mas a maior travessura dele era fazer com
que eu coçasse minha cabeça com o pé enquanto estava sentado, o que
conseguia abanando as orelhas de. um lado para outro. Isso para mim era inteira
e insuportavelmente engraçado. Uma tal graça e ironia; tanto domínio, pensei. A
euforia que se apossou de mim era indescritível. Eu ria até quase não poder
respirar.
Tinha a sensação nítida de não conseguir abrir os olhos; eu estava olhando por
um tanque de água. Era um estado longo e muito doloroso, cheio da ansiedade de
não poder despertar, e no entanto de sentir-me acordado. Então, de repente, o
mundo ficou claro e em foco. Meu campo de visão tornou-se novamente muito
redondo e amplo, e com isso surgiu um ato consciente comum, que foi o de
virar-me e procurar aquele ser maravilhoso. Nesse ponto, encontrei a transição
mais difícil. A passagem de meu estado normal se dera quase sem eu sentir: eu
tinha consciência; meus pensamentos e sentimentos eram um corolário dessa
consciência; e a passagem foi clara e suave. Mas essa segunda modificação, o
despertar para uma consciência clara e sóbria, foi verdadeiramente chocante. Eu
tinha esquecido que era homem! A tristeza de uma situação tão irreconciliável foi
tão intensa que eu chorei.
Sábado, S de agosto de 1961
Mais tarde naquela manhã, depois de tomar o café, o dono da casa, Dom Juan
e eu voltamos para a casa do segundo. Eu estava muito cansado, mas não
consegui dormir na camioneta. Só depois que o homem se foi é que eu adormeci,
na varanda da casa de Dom Juan.
Quando acordei já estava escuro; Dom Juan me cobrira com uma manta. Eu
o procurei, mas ele não estava em casa. Depois apareceu, trazendo uma panela
de feijão frito e um monte de tortillas. Eu estava com muita fome.
Depois de comermos, descansamos, e ele me pediu que lhe contasse tudo o
que me acontecera na véspera. Narrei minha experiência com muitos detalhes e
o mais precisamente possível. Quando terminei, ele meneou a cabeça e disse:
─ Acho que você está bem. É difícil explicar agora como e por quê. Mas
creio que as coisas foram bem para você. Sabe, às vezes ele é brincalhão, como
uma criança; outras vezes é terrível e temível. Ou ele brinca, ou fica muito sério.
É impossível saber de antemão como é que ele vai ser com outra pessoa. No
entanto, quando a gente o conhece bem. . . às vezes. Você brincou com ele hoje.
E a única pessoa que eu conheço que tenha tido um encontro desses.
─ De que modo a minha experiência é diferente da dos outros?
─ Você não é índio; por isso é difícil calcular o que é que há. No entanto, ele
ou aceita as pessoas ou as rejeita, não importando que sejam índias ou não. Isso
eu sei. Já vi muitas. Sei também que ele brinca, que faz umas pessoas rirem, mas
nunca o vi brincar com ninguém.
─ Pode dizer-me agora, Dom Juan, como é que o peiote protege. . .
Não me deixou terminar. Apertou meu ombro com força.
─ Nunca se refira a ele por esse nome. Você ainda não o viu o suficiente para
conhece-lo.
─ Como é que Mescalito protege as pessoas?
─ Ele aconselha. Responde a todas as perguntas que você fizer.
─ Então Mescalito é real? Quero dizer, é uma coisa que se possa ver?
Pareceu ficar confuso com minha pergunta. Ficou olhando para mim com
uma expressão vazia.
─ O que quero dizer é que Mescalito . . .
─ Eu ouvi o que você falou. Você não o viu ontem?
Eu queria dizer que só tinha visto um cachorro, mas reparei que ele estava
com um ar intrigado.
─ Então você acha que o que eu vi ontem foi ele?
Olhou para mim com desprezo. Riu, sacudiu a cabeça como se não pudesse
acreditar e, num tom de voz muito truculento, acrescentou: -A poco crees que era
tu... mamá (Não me diga que acreditas que era tua... mamãe?) Ele parou antes
de dizer mamá porque o que ele queria dizer era "tu chingada madre", expressão
idiomática usada como alusão desrespeitosa à mãe do outro. A palavra mamá
ficou tão disparatada que nós dois nos rimos muito.
Depois, percebi que ele tinha adormecido sem responder à minha pergunta.
Domingo, 6 de agosto de 1961
Levei Dom Juan de carro à casa onde eu tinha tomado peiote. No caminho,
ele me disse que o nome do homem que me "oferecera a Mescalito" era John.
Quando chegamos à casa, encontramos John sentado na varanda com dois
rapazes. Todos estavam muito alegres. Riam e conversavam livremente. Os três
falavam inglês com perfeição. Eu disse a John que tinha ido agradecer-lhe por
me ter ajudado.
Eu queria ter as impressões deles sobre meu comportamento durante a
experiência alucinógena, e disse-lhes que tinha estado procurando pensar no que
eu tinha feito naquela noite, e que não conseguia lembrar-me. Eles riram e
mostraram relutância em falar a respeito. Pareciam estar-se controlando por
causa de Dom Juan. Todos olharam para ele, como que esperando permissão
para continuar. Dom Juan deve ter dado alguma indicação, embora eu não
notasse nada, pois, de repente, John começou a me contar o que eu tinha feito
naquela noite.
Ele disse que sabia que eu tinha sido "aceito" quando me ouviu vomitando. Ele
calculou que eu devia ter vomitado umas 30 vezes. Dom Juan corrigiu-o, dizendo
que foram só dez vezes.
─ Depois nós todos fomos para junto de você ─ continuou John. ─ Estava duro
e com convulsões. Por muito tempo, ficou deitado de costas, mexendo com a
boca, como se estivesse falando. Em seguida, começou a bater com a cabeça no
chão e Dom Juan pôs um chapéu velho na sua cabeça e você parou. Tremeu e
gemeu durante várias horas, deitado no chão. Acho que nessa altura todos
adormeceram; mas eu o ouvia bufando e gemendo, enquanto dormia. Depois, eu
o ouvi gritar e acordei. Vi você dando saltos no ar, berrando. Depois, deu uma
corrida até à água, derrubou a panela e começou a nadar na poça d’água.
"Dom Juan lhe trouxe mais água. Você ficou sentado quieto diante da panela.
Em seguida, você se levantou de um salto e tirou toda a roupa. Estava, de joelhos
diante da água, bebendo em grandes goles. Depois, ficou ali sentado, olhando
pata o vazio. Pensamos que você ia ficar ali para sempre. Quase todos estavam
dormindo, inclusive Dom Juan, quando, de repente, você tornou a dar um pulo,
uivando e foi atrás do cão. O animal se assustou e uivou também, correndo para
os fundos da casa. Neste momento todos acordaram.
"Nós todos nos levantamos. Você voltou pelo outro lado, ainda perseguindo o
cão, que estava correndo na sua frente, latindo e uivando. Acho que você deve
ter dado umas 20 voltas ao redor da casa, correndo em círculos, latindo como um
cachorro. Fiquei com medo de que as pessoas ficassem curiosas. Não há vizinhos
por perto, mas seus uivos eram tão altos que podiam ser ouvidos a quilômetros.
Um dos rapazes acrescentou:
─ Você pegou o cachorro e o trouxe para a varanda no colo.
─ Então, começou a brincar com o cão ─ continuou John. ─ Lutou com ele, e
você e o cão se mordiam e brincavam. Achei que isso era engraçado.
Normalmente, meu cachorro não brinca. Mas dessa vez, você e o cão rolavam
um por cima do outro.
─ -Correu para a água e o cachorro bebeu com você disse o rapaz. ─ Correu
umas cinco ou seis vezes para a água com o cão.
─ Quanto tempo durou isso? -perguntei.
─ Horas ─ disse John. ─ A um dado momento, perdemos os dois de vista.
Acho que devem ter corrido para os fundos. Só ouvíamos vocês latindo e
grunhindo. Você fazia ruídos tão semelhantes aos do cachorro que não podíamos
distinguir os dois.
─ Talvez fosse só o cão ─ disse eu.
Eles riram, e John disse: ─ Era você que estava latindo, rapaz! ─ E depois, o
que aconteceu?
Os três homens se entreolharam e demonstraram ter dificuldade em resolver
o que tinha acontecido depois. Por fim, o rapaz que ainda não tinha dito nada
falou.
─ Ele se engasgou ─ disse ele, olhando para John.
vSim, você certamente se engasgou. Começou a chorar de maneira muito
estranha e depois caiu no chão. Pensamos que estivesse mordendo a língua; Dom
Juan abriu seus maxilares e despejou água no seu rosto. Então, você começou a
tremer e a ter convulsões de novo. Ficou imóvel por muito tempo. Dom Juan
disse que estava tudo acabado. Nesta altura, já era de manhã, de modo que o
cobrimos com uma manta e o deixamos dormindo na varanda.
Parou e olhou para os outros, que obviamente procuravam não rir. Virou-se
para Dom Juan e perguntou alguma coisa. Dom Juan sorriu e respondeu à
pergunta. John virou-se para mim e disse:
─ Nós o deixamos aqui na varanda porque estávamos com medo de que você
fosse urinar nos quartos todos.
Todos riram muito.
─ O que aconteceu comigo? ─ perguntei. ─ Eu...
─ Se você . . . ? ─ John parecia estar-me imitando. Não íamos falar disso, mas
Dom Juan disse que não faz mal. ─ Você urinou por cima do meu cachorro!
─ O que foi que eu fiz?
─ Você não pensa que o cachorro estivesse correndo porque estava com
medo de você, não é? O cão corria porque você estava mijando nele.
A essa altura todos riram muito. Tentei fazer perguntas a um dos rapazes, mas
estavam todos rindo e ele não me ouviu. John continuou:
─ Mas meu cachorro se desforrou; ele também mijou em você! Essa
declaração aparentemente era muito engraçada, pois eles todos morreram de rir,
inclusive Dom Juan. Depois que todos se aquietaram, perguntei muito sério:
─ É mesmo verdade? Isso aconteceu mesmo?
─ Juro que meu cão realmente mijou em você ─ respondeu John, ainda rindo.
Quando estávamos voltando para a casa de Dom Juan, perguntei-lhe:
─ Tudo aquilo aconteceu mesmo, Dom Juan?
─ Sim. Mas eles não sabem o que você viu. Não compreendem que você
estava brincando com "ele". Foi por isso que eu não o interrompi.
─ Mas esse negócio do cão e eu urinando um ao outro é verdade?
─ Não era um cão! Quantas vezes tenho de lhe dizer isso? É o único jeito de
compreendê-lo. O único jeito! Foi "ele" que brincou com você.
─ Você sabia que tudo isso estava acontecendo antes de eu lhe contar?
Vacilou um momento antes de responder.
─ Não, depois que você me contou eu me lembrei de como você estava
estranho. Eu desconfiava de que você estava bem porque você não parecia
assustado.
─ O cão brincou mesmo comigo como eles dizem?
─ Que diabo! Não era um cão!
Quinta-feira, 17 de agosto de 1961
Contei a Dom Juan o que eu sentia a respeito de minha experiência. Do ponto
de vista de meu pretenso trabalho, tinha sido uma coisa desastrosa. Disse que não
estava interessado em outro "encontro" desses com Mescalito. Concordei que
tudo o que me acontecera fora para lá de interessante, mas acrescentei que nada
daquilo poderia realmente me levar a procurá-lo outra vez. Eu acreditava
seriamente que não era feito para esse tipo de esforço. O peiote provocara em
mim, como reação posterior, uma estranha sensação de desconforto físico. Era
um medo ou infelicidade indefinidos; uma melancolia de algum tipo, que eu não
podia definir exatamente. E eu não considerava esse estado nobre, de maneira
alguma. Dom Juan riu e disse:
─ Você está começando a aprender.
─ Esse tipo de aprendizagem não me serve. Não fui feito para isso, Dom Juan.
─ Você sempre exagera.
─ Não é exagero.
─ É, sim. O problema com você é que você só exagera os pontos maus.
─ Não há pontos bons, a meu ver. Só sei é que isso me amedronta.
─ Não há nada de mau em se sentir medo. Quando se tem medo, vê-se as
coisas de modo diferente.
─ Mas não gosto de ver as coisas de modo diferente, Dom Juan. Acho que vou
deixar de lado a aprendizagem de Mescalito. Não estou preparado para isso,
Dom Juan. Esta situação é mesmo ruim para mim.
─ Claro que é ruim até para mim. Você não é o único que está confuso.
─ Por que você havia de estar confuso, Dom Juan?
─ Estive pensando no que vi na outra noite. Mescalito essa chegou a brincar
com você. Isso me deixou confuso, porque foi um indício (agouro).
─ Que tipo de indício, Dom Juan?
─ Mescalito estava indicando você para mim.
vPara quê?
─ Não estava claro para mim então, mas agora está. Ele queria dizer que
você era o "homem escolhido" (escogido). Mescalito me mostrou você e,
fazendo isso, me disse que você era o escolhido.
─ Quer dizer que eu fui escolhido entre outros para alguma tarefa, coisa
assim?
─ Não. O que quero dizer é que Mescalito me disse que você podia ser o
homem que estou procurando.
─ Quando foi que ele lhe disse isso, Dom Juan?
─ Brincando com você, ele me disse isso. Isso faz de você o homem escolhido
para mim.
─ O que significa ser o homem escolhido?
─ Há alguns segredos que conheço (Tengo secretos). Tenho segredos que não
poderei revelar a ninguém, a não ser que encontre o meu homem escolhido. Na
outra noite, quando eu o vi brincando com Mescalito, ficou claro para mim que
você era esse homem. Mas você não é índio. Que estranho!
─ Mas o que isso significa para mim, Dom Juan. O que tenho de fazer?
─ Já resolvi e vou ensinar-lhe os segredos que constituem o todo de um
homem de sabedoria.
─ Quer dizer os segredos sobre Mescalito?
─ Sim, mas não são só esses os segredos que conheço. Há outros, de um tipo
diferente, que eu gostaria de dar a alguém. Eu também tive um mestre, o meu
benfeitor, e também me tornei um homem escolhido ao executar certa façanha.
Ele me ensinou tudo o que sei.
Tornei a perguntar-lhe o que esse novo papel exigiria de mim; ele disse que a
única coisa necessária era aprender, aprender no sentido do que eu tinha
experimentado nas duas sessões com ele.
O modo como se modificara a situação era bem estranho. Eu tinha resolvido
dizer a ele que ia desistir da idéia de aprender a respeito do peiote, e então, antes
de eu poder fazê-lo entender, ele me oferecia para ensinar-me o seu
"conhecimento". Não sabia o que ele queria dizer com isso, mas senti que
reviravolta repentina era muito séria. Argumentei que não tinha qualificações
para essa tarefa, pois ela exigia um tipo raro de coragem que eu não possuía.
Disse-lhe que minha natureza era mais de comentar os atos praticados por outros.
Queria saber das opiniões dele sobre tudo. Disse-lhe que ficaria feliz se pudesse
ficar ali sentado e ouvi-lo falar por dias e dias. Para mim, isso seria aprender.
Escutou sem interromper. Falei muito tempo. Então, ele disse:
─ Tudo isso é muito fácil de entender. O medo é o primeiro inimigo natural
que o homem tem de vencer em seu caminho para o conhecimento. Além disso,
você é curioso. Isso acerta as coisas. E há de aprendera despeito de você mesmo,
é esta a regra.
Ainda protestei um pouco, procurando dissuadi-lo. Mas ele parecia estar
convencido de que não havia nada que eu pudesse fazer senão aprender.
─ Você não está pensando na ordem certa ─ disse ele. -Mescalito chegou a
brincar com você. É nisso que tem de pensar. Por que não medita sobre isso, em
vez de no seu medo?
─ Foi assim tão raro?
─ Foi a única pessoa que já vi brincar com ele. Você não está habituado com
este tipo de vida; portanto as indicações (agouros) lhe passam despercebidas. No
entanto, é uma pessoa séria, mas sua seriedade está ligada ao que você faz, não
ao que se passa fora de você. Preocupa-se muito com você. É este o problema. E
isso dá um cansaço horrível.
─ Mas o que mais se pode fazer, Dom Juan?
─ Procure e veja as maravilhas em volta de você.
Está cansado de olhar só para si, e essa fadiga o torna surdo e cego para todo o
resto.
─ Tem razão, Dom Juan, mas como posso modificar-me?
─ Pense na maravilha de Mescalito brincando com você. Não pense em mais
nada o resto virá por si.
Domingo, 20 de agosto de 1961
Ontem à noite Dom Juan começou a me conduzir ao reino de seu
conhecimento. Ficamos sentados defronte da casa dele, no escuro. De repente,
depois de um longo silêncio, ele começou a falar. Disse que ia aconselhar-me
com as mesmas palavras que o benfeitor dele usara no primeiro dia em que o
recebeu como aprendiz. Parece que Dom Juan tinha decorado as palavras, pois
ele as repetiu várias vezes, para ter a certeza de que eu não perdia nenhuma:
─ Um homem vai para o conhecimento como vai para a guerra, bem
desperto, com medo, com respeito e com uma segurança absoluta. Ir para o
conhecimento ou ir para a guerra de qualquer outra maneira é um erro, e quem
o cometer há de se arrepender.
Perguntei-lhe por que era isso e ele disse que, quando o homem preenche
esses quatro requisitos, não há erros que ele tenha de explicar; nessas condições,
seus atos perdem a qualidade desastrada dos atos de um tolo. Se um homem
desses fracassar, ou sofrer uma derrota, terá perdido apenas uma batalha, e não
haverá remorsos tristes por isso.
Depois ele disse que pretendia ensinar-me a respeito de um "aliado", da
mesmíssima maneira que seu benfeitor lhe Vista. Frisou bem a expressão
"mesmíssima", repetindo-a várias vezes.
Um "aliado", disse ele, é um poder que um homem pode introduzir em sua
vida para ajudá-lo, aconselhá-lo e dar-lhe a força necessária para executar atos,
grandes ou pequenos, certos ou errados. Este aliado é necessário para realçar a
vida de um homem, orientar suas ações e aumentar seus conhecimentos. De
fato, um aliado é o auxiliar indispensável do conhecimento. Dom Juan falou isso
com muita convicção e força. Pareceu escolher as palavras com cuidado.
Repetiu a seguinte frase quatro vezes:
─ Um aliado o fará ver e compreender coisas a respeito das quais nenhum ser
humano poderia esclarecê-lo.
─ Um aliado é assim como um anjo da guarda?
─ Não é guarda nem anjo. E um auxiliar.
─ Mescalito é seu aliado?
─ Não! Mescalito é outro tipo de poder. Um poder raro! Um protetor, um
mestre.
─ O que torna Mescalito diferente de um aliado?
─ Não pode ser domesticado e usado como se pode fazer com um aliado.
Mescalito está fora da gente. Ele resolve mostrar-se em muitas formas para
quem estiver defronte dele, não importando que essa pessoa seja um brujo ou
um peão de fazenda.
Dom Juan falava com grande fervor de Mescalito ser o mestre da maneira
certa de se viver. Perguntei-lhe como é que Mescalito ensinava a "maneira certa
de viver" e Dom Juan respondeu que Mescalito mostrava como se deve viver.
─ Como é que ele mostra? ─ perguntei.
─ Ele tem muitas maneiras de mostrar. Às vezes, mostra por sua mão, ou nas
pedras, ou nas árvores, ou apenas diante de você.
─ E como um quadro diante da gente?
─ Não. B um ensinamento diante de você.
─ Mescalito fala com a pessoa?
─ Sim. Mas não por palavras.
─ Como é que ele fala, então?
─ Fala de maneira diferente com cada homem.
Senti que minhas perguntas o aborreciam. Não perguntei mais nada. Ele
continuou a explicar que não havia passos precisos para se conhecer Mescalito;
por isso, ninguém podia ensinar a respeito dele, a não ser o próprio Mescalito.
Essa qualidade tornava-o um poder único; não era o mesmo para todos os
homens.
Por outro lado, para se adquirir um aliado era necessário, disse Dom Juan; o
ensinamento mais preciso e que se seguisse estágios ou passos sem um único
desvio. Existem muitos desses poderes aliados no mundo, falou, mas ele só
conhecia de perto dois. E pretendia conduzir-me a eles e seus segredos, mas
cabia a mim escolher um deles, pois eu só poderia ter um. d aliado do benfeitor
dele estava na y erba del dublo (erva-do-diabo), mas ele pessoalmente não
gostava dela, embora seu benfeitor lhe tivesse ensinado seus segredos. Seu
próprio aliado estava no humito (fuminho), falou Dom Juan, mas ele não
explicou a natureza do fumo.
Perguntei-lhe a respeito. Ficou calado. Depois de uma longa pausa, perguntei-
lhe:
─ Que tipo de poder tem um aliado?
─ É um auxílio. Já lhe disse.
─ Como é que auxilia?
─ Um aliado é um poder capaz de transportar o homem além dos limites dele
mesmo. É assim que um aliado pode revelar assuntos que nenhum ser humano
poderia revelar.
─ Mas Mescalito também leva a pessoa além dos seus limites. Isso não faz
dele um aliado?
─ Não. Mescalito tira a pessoa dela mesma para ensinar-lhe. Um aliado a tira
para lhe dar poder.
Pedi-lhe que me explicasse esse ponto mais detalhadamente, ou que me
descrevesse a diferença em efeitos entre os dois. Ele me olhou por muito tempo
e riu. Disse que aprender por conversas era não só uma perda de tempo, como
ainda era estupidez, pois aprender era a tarefa mais difícil que o homem poderia
empreender. Pediu-me para lembrar-me da ocasião em que tentei encontrar
meu ponto e como eu queria encontrá-lo sem trabalho, pois eu esperava que ele
me fornecesse todas as informações. Se ele tivesse feito isso, disse ele, eu nunca
teria aprendido. Mas saber como era difícil encontrar meu ponto e, acima de
tudo, saber que ele existia, dar-me-ia um raro senso de confiança. Disse que,
enquanto eu ficasse agarrado a meu "ponto bom", nada me poderia causar um m
£ físico, pois eu tinha a segurança de que, naquele deter ponto, eu estava no meu
máximo. Tinha o poder de me livrar de tudo quanto pudesse prejudicar-me.
Contudo, se ele me tivesse contado onde ele ficava, eu nunca teria tido a
confiança necessária para considerar aquilo o verdadeiro conhecimento. Assim,
saber era realmente poder.
Depois, Dom Juan disse que cada vez que o homem resolve aprender, ele tem
de trabalhar duro como eu trabalhei para encontrar aquele ponto, e os limites de
sua aprendizagem são determinados por sua própria natureza. Assim, ele não via
vantagem em falar sobre o conhecimento. Disse que certos tipos de
conhecimento eram poderosos demais para a força que eu possuía, e que falar
sobre eles só me faria mal. Parece que achava que não havia mais nada a dizer.
Levantou-se e foi para casa. Falei-lhe que a situação me confundia. Não era o
que ou imaginara ou queria que fosse.
Respondeu que os temores são naturais, que todos nós os sentimos e que não
há nada a fazer a respeito. Porém, por outro lado, por mais aterrador que seja o
conhecimento, é mais terrível ainda pensar num homem sem um aliado, ou sem
o conhecimento.

3
Durante o espaço de mais de dois anos que se passou entre o momento em
que Dom Juan resolveu ensinar-me a respeito dos poderes dos aliados e o
momento em que ele achou que eu estava preparado para aprender a respeito
deles pragmaticamente, da forma participante que ele considerava como
aprendizagem, ele aos poucos definiu as características gerais dos dois aliados
em pauta. Preparou-me para o corolário indispensável de todas as verbalizações
e a consolidação de todos os ensinamentos, os estados de realidade não comum.
A princípio, ele falou sobre os poderes aliados de maneira muito normal. As
primeiras referências que tenho em minhas anotações estão intercaladas com
outros temas de conversas.
Quarta-feira, 23 de agosto de 1961
─ A erva-do-diabo (o estramônio) era aliada de meu benfeitor. Também
poderia ter sido minha, mas eu não gostava dela.
─ Por que não gostava da erva-do-diabo, Dom Juan?
─ Tinha um grave inconveniente.
─ É inferior aos outros poderes aliados?
─ Não. Não me interprete mal. Ela é tão poderosa quanto os melhores aliados,
mas há nela alguma coisa de que eu, pessoalmente, não gosto.
─ Pode dizer-me o que é?
─ Ela modifica os homens. Dá-lhes um gosto do poder cedo demais, sem lhes
fortificar os corações, tornando-os dominadores e imprevisíveis. Ela os torna
fracos, no meio de grande poder.
─ E não há um meio de evitar-se isso?
─ Há um meio de se vencer isso, mas não de evitá-lo. Quem quer que se
torne aliado da erva tem de pagar esse preço.
─ Como se pode vencer esse efeito, Dom Juan?
─ A erva-do-diabo tem quatro cabeças; a raiz, a haste e as folhas, as flores e
as sementes. Cada qual é diferente, e quem a tornar sua aliada tem de aprender a
respeito delas nessa ordem. A cabeça mais importante está nas raízes. O poder da
erva-do-diabo é conquistado por meio de suas raízes. A haste e as folhas são a
cabeça que cura as moléstias; usada direito, essa cabeça é uma dádiva para a
humanidade. A terceira cabeça fica nas flores e é usada para tornar as pessoas
malucas ou para fazê-las obedientes, ou para matá-las. O homem que tem a erva
por aliada nunca absorve as flores, nem meio a haste e as folhas, a não ser no
caso de ele mesmo estar doente; mas as raízes e as sementes são sempre
absorvidas; especialmente as sementes, que são a quarta cabeça da erva-do-
diabo e a mais poderosa das quatro.
─ Meu benfeitor dizia que as sementes são a "cabeça sóbria". . , a única parte
que poderia fortalecer o coração do homem. A erva-do-diabo é dura com seus
protegidos, dizia ele, porque pretende matá-los depressa, coisa que geralmente
consegue antes de eles descobrirem os segredos da "cabeça sóbria". Existem,
porém, histórias sobre homens que desvendaram os segredos da cabeça sóbria.
Que desafio para um homem de sabedoria!
─ Seu benfeitor desvendou esses segredos?
─ Não.
─ Conhece alguém que o tenha feito?
─ Não. Mas houve época em que esse conhecimento era importante.
─ Conhece alguém que tenha conhecido esses homens?
─ Não conheço, não.
─ O seu benfeitor conhecia?
─ Sim.
─ Por que ele não desvendou os segredos da cabeça sóbria?
─ Domesticar a erva-do-diabo para torná-la uma aliada é uma das tarefas
mais difíceis que conheço. Por exemplo, ela nunca se tornou minha aliada, talvez
porque eu nunca tivesse gostado dela.
─ E pode usá-la como aliada a despeito de não gostar dela?
─ Posso; não obstante, prefiro não o fazer. Talvez seja diferente com você.
─ Por que tem o nome de erva-do-diabo?
Dom Juan esboçou um gesto de indiferença, deu de ombros e ficou calado por
algum tempo. Por fim, disse que "erva-do-diabo" era seu nome provisório (su
nombre de feche). Disse ainda que havia outros nomes para erva-do-diabo, mas
que não deviam ser usados, pois o uso de um nome era coisa séria,
especialmente quando se está aprendendo a domesticar um poder aliado.
Perguntei-lhe por que usar um nome era coisa tão grave. Ele disse que os nomes
eram reservados para serem utilizados só quando se pede socorro, em momentos
de grande necessidade e tensão, e assegurou-me que esses momentos ocorrem
sempre, mais cedo ou mais tarde, nas vidas dos que procuram o conhecimento.
Domingo, 3 de setembro de 1961
Hoje à tarde Dom Juan apanhou duas plantas de Datura do campo.
Inesperadamente, ele abordou o assunto da erva-do-diabo em nossa conversa
e depois convidou-me a ir com ele procurar uma nos morros.
Tomamos o carro e fomos para as montanhas próximas. Peguei uma pá da
mala e fomos para uma das gargantas. Caminhamos por algum tempo, abrindo
caminho pelo chaparral, que era espesso na terra macia e arenosa. Ele parou
junto de uma plantinha de folhas verde-escuro e flores grandes, brancas, em
forma de sino.
─ Esta aqui ─ disse ele.
E começou logo a cavar. Quis ajudá-lo, mas ele recusou, sacudindo a cabeça
energicamente, e continuou a cavar um buraco circular em volta da planta: um
buraco em forma de cone, fundo nas beiradas e formando um montinho no
centro do círculo. Quando ele parou de cavar, ajoelhou-se junto da haste e com
os dedos limpou a terra macia em volta dela, descobrindo uns dez centímetros de
uma raiz grande, tuberosa e em forquilha, cuja espessura formava um contraste
marcante com a espessura da haste, que era frágil, em comparação.
Dom Juan olhou para mim e disse que a planta era masculina, porque a raiz se
bifurcava no ponto exato onde encontrava a haste. Depois, levantou-se e se
afastou, procurando algema coisa.
─ O que está procurando, Dom Juan?
─ Quero encontrar um pau.
Comecei a procurar, mas ele me impediu.
─ Você não! Sente-se ali. ─ Ele apontou para umas pedras, a uns seis metros
de distância. ─ Eu o encontrei.
Dali a pouco ele voltou com um galho comprido e seco. Usando-o como
enxada, ele soltou com cuidado a terra ao longo dos dois ramos da raiz. Limpou-
os até uma profundidade de mais ou menos 60 centímetros. Então, a terra ficou
tão compacta que era impossível penetrar mais fundo com o pau.
Parou e sentou-se para respirar. Sentei-me ao lado dele. Ficamos calados por
algum tempo.
─ Por que não cava com a pá? ─ perguntei.
─ Podia cortar e machucar a planta. Eu tinha de arranjar um pau que
pertencesse a essa região para que, se batesse na raiz, o dano não fosse tão sério
quanto o que fosse causado por uma pá ou outro objeto estranho.
-Que tipo de pau pegou?
-Qualquer galho seco da árvore paloverde serviria. Se não houver galhos
secos, você tem de cortar um.
─ Pode-se usar os galhos de outras árvores?
─ Já lhe disse, só o paloverde, nenhuma outra.
─ Por que isso, Dom Juan?
─ Porque a erva-do-diabo tem muito poucos amigos, e o paloverde nessa
região é a única árvore que se dá com ela. . . a única coisa que se agarra a ela (lo
único que prende). Se você danificar a raiz com uma pá, ela não vai crescer para
você quando a replantar, mas se você a danificar com um pau desses, o provável
é que a planta nem o sentirá.
─ O que você vai fazer com a raiz agora?
─ Vou cortá-la. Você tem de ir embora daqui. Vá procurar outra planta e
espere até que o chame.
─ Não quer que eu o ajude?
─ Só pode ajudar-me se eu lhe pedir!
Afastei-me e comecei a procurar outra planta, para combater o forte desejo
de me virar e espiá-lo. Depois de algum tempo ele se juntou a mim.
─ Agora, deixe eu procurar a fêmea ─ disse ele.
─ Como é que se distingue os dois?
─ A fêmea é mais alta e cresce acima do solo, de modo que parece uma
arvorezinha. O macho é grande e se espalha perto do solo, parecendo mais um
arbusto cerrado. Depois de cavarmos a fêmea, você verá que ela tem uma única
raiz que se estende por um pedação, até se ramificar. O macho, por outro lado,
tem uma raiz ramificada junto da haste.
Olhamos juntos pelo campo de Daturas. Depois, apontando para uma planta,
ele disse:
─ Aquela é uma fêmea. ─ E passou a cavá-la, como tinha feito com a outra
planta.
Assim que ele limpou a raiz eu pude ver que esta correspondia a sua previsão.
Tornei a deixa-lo quando ele ia cortar a raiz.
Quando chegamos em casa ele abriu o embrulho em que tinha colocado as
plantas de Datura. Primeiro, pegou a maior, a masculina, e lavou-a numa grande
bandeja de metal. Com muito cuidado, esfregou toda a terra da raiz, haste e
folhas. Depois dessa limpeza meticulosa, separou a haste da raiz, fazendo uma
incisão superficial em volta de sua junção com uma faquinha serrilhada e
partindo as duas. Pegou a haste e separou dela todas as partes, fazendo montinhos
individuais das folhas, flores e sementes espinhosas. Jogou fora tudo 0 que estava
seco ou que tinha sido estragado pelos bichos, guardando somente as partes
intatas. Amarrou os dois ramos da raiz com pedaços de barbante, partiu-os em
dois depois de fazer um corte superficial na junção, e conseguiu dois pedaços de
raiz de tamanhos iguais.
Depois, pegou um pano grosseiro e colocou nele primeiro os dois pedaços de
raiz atados juntos; por cima disso colocou as folhas, num apanhado arrumado, e
em seguida as flores, as sementes e a haste. Dobrou o pano e deu um nó nos
cantos.
Repetiu exatamente o mesmo processo com a outra planta, a feminina, só que
quando chegou à raiz, em vez de corta-la, deixou a forquilha intata, como a letra
Y invertida. Depois, colocou todas as partes em outro embrulho de pano. Quando
acabou, já estava quase escuro.
Quarta-feira, 6 de setembro de 1961
Hoje, no fim da tarde, voltamos a falar sobre a erva-do-diabo.
─ Acho que devemos recomeçar a tratar daquela erva ─ disse Dom Juan de
repente.
Depois de um silêncio cortês, perguntei: ─ O que vai fazer com as plantas?
─ As plantas que eu cavei e cortei são minhas ─ disse ele. ─ É como se fosse
eu mesmo; com elas, vou ensinar-lhe o meio de domesticar a erva-do-diabo.
─ Como vai fazer isso?
─ A erva-do-diabo é dividida em porções (partes) . Cada uma dessas porções
é diferente; cada qual tem sua finalidade e serviços especiais.
Ele abriu a mão esquerda e mediu no chão uma distância desde a ponta do
polegar até à ponta de seu quarto dedo.
─ Esta é a minha porção. Você vai medir a sua com sua própria mão. Agora,
para ter domínio sobre a erva-do-diabo, tem de começar tomando a primeira
porção da raiz. Mas como eu o levei até ela, você tem de tomar a primeira
porção da raiz de minha planta. Medi-a para você, de modo que, na verdade, é a
minha porção que você deve tomar a princípio.
Ele entrou na casa e pegou um dos embrulhos de pano. Sentou-se e abriu-o.
Notei que era a planta masculina. Reparei ainda que só havia um pedaço de raiz.
Ele pegou o pedaço que restava dos dois e segurou-o diante de meu rosto.
─ Esta é a sua primeira porção ─ disse ele. ─ Eu a dou a você. Eu mesmo a
cortei para você. Medi-a com minha mão, agora eu a dou a você.
Por um momento, passou-me pela cabeça a idéia de que eu teria de mastigá-
la como uma cenoura, mas ele a colocou num saquinho de algodão branco.
Em seguida, foi até os fundos da casa. Ficou ali sentado no chão, de pernas
cruzadas, e com um mano redondo começou a amassar a raiz dentro do saco.
Trabalhava sobre uma pedra chata que servia de almofariz. De vez em quando
ele lavava as duas pedras com água de uma baciazinha chata, de madeira.
Enquanto amassava, entoava um cântico ininteligível, muito baixinho e
monótono. Depois de ter reduzido a raiz dentro do saco a uma polpa macia,
colocou-a na bacia de madeira. Tornou a pôr o pilão e o almofariz de pedra na
bacia, encheu-a de água e depois levou-a a uma espécie de cocho de porcos
triangular, encostado à cerca dos fundos.
Disse que a raiz tinha de ficar de molho a noite toda e permanecer do lado de
fora da casa para apanhar sereno.
─ Se amanhã for um dia quente, de sol, será um excelente augúrio ─ disse
ele.
Domingo, 10 de setembro de 1961
A quinta-feira, dia 7 de setembro, foi um dia muito límpido e quente. Dom
Juan pareceu estar muito satisfeito com o bom presságio e repetiu várias vezes
que a erva-do-diabo provavelmente tinha gostado de mim. A raiz tinha ficado de
molho a noite toda e, por volta das dez da manhã, fomos até os fundos da casa.
Ele pegou a bacia do cocho, colocou-a no chão e sentou-se ao lado dela. Pegou o
saco e esfregou-o no fundo da bacia. Segurou-o a alguns centímetros acima da
água e espremeu o conteúdo, depois deixou o saco cair na água de novo. Repetiu
isso mais três vezes, depois largou o saco, jogando-o no cocho, e deixou a bacia
ao sol quente.
Duas horas depois nós voltamos lá. Ele trouxe consigo uma chaleira média
com água fervendo, amarelada. Inclinou a bacia com muito cuidado e despejou
a água de cima, conservando o depósito grosso que se acumulara no fundo.
Despejou a água fervendo no depósito e tornou a deixar a bacia ao sol.
Essa sequência foi repetida mais três vezes, a intervalos de mais de uma hora.
Por fim, ele despejou a maior parte da água da bacia, inclinou-a para apanhar o
sol do fim da tarde e largou-a.
Quando voltamos, horas depois, já estava escuro. No fundo da bacia havia
uma camada de uma substância pegajosa. Parecia amido mal cozido,
esbranquiçado ou cinza-claro.
Havia talvez uma colher de chá daquilo. Levou a -bacia para dentro da casa e,
enquanto punha água para ferver, eu tirei pedaços de sujeira que o vento tinha
soprado para o depósito. Ele riu de mim.
─ Esse pingo de sujeira não vai fazer mal a ninguém.
Depois que a água ferveu, ele despejou mais ou menos uma xícara na bacia.
Era a mesma água amarelada que ele já usara antes. Aquilo dissolveu o depósito,
formando uma espécie de substância leitosa.
─ Que tipo de água é essa, Dom Juan?
─ Água de frutas e flores da garganta.
Ele despejou o conteúdo da bacia numa velha caneca de barro que parecia
um jarro de flores. Ainda estava muito quente, de modo que ele soprou para
esfriá-la. Tomou um gole e entregou-me a caneca.
─ Beba agora! ─ disse ele.
Peguei-a automaticamente e, sem refletir, bebi a água toda. Tinha um gosto
meio amargo, embora esse amargo quase não se percebesse. O que era
marcante era o odor pungente da água. Tinha cheiro de barata.
Quase imediatamente comecei a transpirar. Fiquei com muito calor e o
sangue me afluiu aos ouvidos. Vi um ponto vermelho em frente dos olhos e os
músculos de meu estômago começaram a contrair-se em cãibras dolorosas.
Depois, embora eu não sentisse mais dores, comecei a ficar frio e ensopado de
suor.
Dom Juan perguntou-me se eu estava vendo tudo escuro, ou se tinha pontos
pretos em frente dos olhos. Disse-lhe que estava vendo tudo vermelho.
Meus dentes batiam por causa de um nervoso incontrolável que me inundava,
em ondas, como que se irradiando do meio de meu peito.
Depois, perguntou-me se eu estava com medo. Suas perguntas me pareceram
sem sentido. Respondi que obviamente eu estava com medo, mas ele tornou a
me perguntar se eu estava com medo dela. Não entendi o que ele dizia e respondi
que sim. Ele riu e disse que eu não estava realmente com medo. Perguntou se eu
continuava a ver vermelho. Tudo o que eu via era um imenso ponto vermelho
diante dos olhos. Depois de algum tempo, senti-me melhor. Aos poucos os
espasmos nervosos desapareceram, deixando apenas um cansaço dolorido e
agradável e um forte desejo de dormir. Não conseguia manter os olhos abertos,
embora continuasse a ouvir a voz de Dom Juan. Adormeci. Mas a sensação de
estar imerso num vermelho profundo continuou a noite toda. Até sonhei em
vermelho.
Acordei no domingo, por volta das três da tarde. Tinha dormido quase dois
dias. Estava com uma ligeira dor de cabeça e meu estômago estava embrulhado
e sentia dores muito agudas e intermitentes nos intestinos. A não ser isso, tudo foi
como num despertar comum. Vi que Dom Juan estava sentado defronte de sua
casa, cochilando. Ele me sorriu.
─ Tudo foi bem, na outra noite ─ disse ele. -Você viu vermelho e isso é o
importante.
─ O que aconteceria se eu não visse vermelho?
─ Teria visto preto, e isso seria mau sinal.
─ Por quê?
─ Quando uma pessoa vê preto, isso significa que ela não foi feita para a
erva-do-diabo e ela vomita a alma, tudo verde e preto.
─ E morreria?
─ Não creio que alguém morresse, mas ficaria doente por muito tempo.
vO que acontece com aqueles que vêem vermelho?
─ Não vomitam, e a raiz lhes proporciona um efeito de prazer, o que significa
que eles são fortes e de natureza violenta... coisa de que a erva gosta. L assim que
ela atrai. A única desvantagem é que os homens acabam escravos da erva-do-
diabo, em retribuição ao poder que ela lhes dá. Mas isso são coisas sobre as quais
não temos controle. O homem só vive para aprender. E se aprende é porque é
essa a natureza de seu destino, para melhor ou para pior.
─ O que faço agora, Dom Juan?
─ Agora você tem de plantar um broto que eu cortei da outra metade da
primeira porção de raiz. Tomou a metade na outra noite, e agora a outra metade
tem de ser posta na terra. Tem de crescer e germinar antes que você possa
empreender o verdadeiro trabalho de domesticar a planta.
─ Como vou domesticá-la?
─ A erva-do-diabo é domesticada por meio da raiz. Passo a passo, você deve
aprender os segredos de cada porção da raiz. Deve absorvê-los a fim de
aprender os. segredos e conquistar o poder.
─ As porções diferentes são preparadas da mesma maneira que você
preparou a primeira?
─ Não, cada porção é diferente.
vQuais os efeitos específicos de cada porção?
─ Já disse, cada qual ensina um tipo diferente de poder. O que você tomou a
outra noite ainda não é nada. Qualquer pessoa pode fazer isso. Mas só o brujo
pode tomar as porções profundas. Não lhe posso dizer o que provocam porque
ainda não sei se ela o receberá. Temos de esperar.
─ Então quando me dirá?
─ Quando a sua planta tiver crescido e germinado.
─ Se a primeira porção pode ser tomada por qualquer para que é usada?
─ De forma diluída, é boa para tudo o que se refere à virilidade, gente velha
que perdeu o vigor, ou rapazes em busca de aventuras, ou mesmo mulheres que
desejam a paixão.
─ Você disse que a raiz só é usada para o poder, mas arejo que é também
usada para outros uns, além do poder. Estou cesto?
Ficou-me olhando muito tempo, com um olhar firme que me encabulou. Senti
que minha pergunta o irritara, mas não podia entender por quê.
─ Essa erva só é usada para o poder ─ disse ele por fim, num tom seco e
severo. ─ O homem que quer de volta asa vigor, os jovens que procuram
suportar a fadiga e a fome, o homem que quer matar outro homem, uma mulher
que quer ser fogosa... todos desejam o poder. E a erva lhes dará o poder! Acha
que gosta dela? -perguntou, depois de uma pausa.
─ Sinto um estranho vigor ─ disse eu, e era verdade. Eu o tinha observado ao
acordar e sentia-o naquele momento. Era uma sensação muito especial de
desconforto ou de frustração; todo meu corpo se movia e estendia com uma
leveza e força desusadas. Meus braços e pernas comichavam. Meus ombros
pareciam estar inchados; os músculos de minhas costas e de meu pescoço me
davam vontade de me encostar ou me esfregar contra as árvores. Parecia-me
que eu poderia demolir um muro, se me atirasse de encontro a ele.
Não falamos mais nada. Ficamos sentados na varanda, Por algum tempo.
Reparei que Dom Juan estava adormecendo; de bateu a cabeça algumas vezes e
depois simplesmente esticou as pernas, deitou-se no chão com as mãos por trás
da cabeça e dormiu. Levantei-me e fui para o quintal, onde consumi minha
energia física exagerada limpando o terreno; lembrei- me de que ele tinha dito
que gostaria que eu ajudasse a Um a limpeza nos fundos da casa.
Mais tarde, quando ele acordou e foi lá para os fundos, eu já catava mais
descansado.
Sentamo-nos para comer e, durante a refeição perguntou-me três vezes como
me sentia. Como isso era raro, anal eu falei:
─ Por que está preocupado com o que estou sentindo, Dom Juan? Espera que
eu tenha uma má reação por ter bebido o suco?
Ele riu. Pareceu-me que estava agindo como um menino levado que fez uma
travessura e está verificando os resultados de vez em quando. Ainda rindo, ele
disse:
─ Você não me parece doente. Ainda há pouco você até falou grosso comigo.
─ Não falei, não, Dom Juan ─ protestei. -Não me lembro de ter jamais falado
assim com você. ─ Eu fazia muita questão disso, pois não me lembrava de ter
alguma vez ficado zangado com ele.
─ Você a defendeu ─ disse ele.
─ Defendi quem?
─ Você estava defendendo a erva-do-diabo. Já parecia um amante.
Eu ia protestar ainda com maior vigor, mas me contive.
─ Não percebi que a estava defendendo.
─ Claro que não. Nem se lembra do que disse, não é?
─ Não me lembro, não. Tenho de confessá-lo.
─ Está vendo? A erva-do-diabo é assim. Ela se insinua em você como uma
mulher.
Você nem toma conhecimento. Só o que lhe interessa é que ela o faz sentir-se
bem e poderoso: os músculos intumescidos de força, os punhos comichando, as
solas dos pés ardendo para derrubar alguém. Quando o homem a conhece, ele
fica mesmo cheio de desejos. Meu benfeitor costumava dizer que a erva-do-
diabo conserva os homens que querem o poder e livra-se dos que não o sabem
usar. Mas naquele tempo o poder era mais comum; era procurado mais
avidamente. Meu benfeitor era um homem poderoso e, segundo o que ele me
disse, o benfeitor dele, por sua vez, era ainda mais dado à busca do poder. Mas
naqueles tempos havia bons motivos para se ser poderoso.
─ Você acha que hoje não há mais motivo para o poder?
─ O poder é bom para você agora. É jovem. Não é índio. Talvez a erva-do-
diabo fosse boa em suas mãos. Parece que você gostou dela. Ela o fez sentir-se
forte. Eu também já senti tudo isso. E, no entanto, não gostei.
─ Pode dizer-me por quê, Dom Juan?
─ Não gosto do poder dela! Não há mais utilidade para ele. Antigamente,
como nos dias de que falava meu benfeitor, teia motivos para se buscar o poder.
Os homens realizavam maravilhas fenomenais e eram admirados por sua força
e temidos e respeitados por sua sabedoria. Meu benfeitor me contou histórias de
feitos verdadeiramente fenomenais que eram realizados há muito, muito tempo.
Mas agora, nós, os índios, não mais esse poder. Hoje, os índios usam a erva para
se esfregarem. Usam as folhas e flores para outros fins; dizem até que curam
seus furúnculos. Mas não buscam seu poder, um poder que age como um ímã,
mais poderoso e mais perigo de se usar à medida que a raiz se aprofunda na
terra. Quando se chega a uma profundidade de quatro metros ─ e dizem que já
chegaram -encontra-se o centro do poder permanente, poder sem fim. Poucos
seres humanos já conseguiram isso no passado, e ninguém nos dias de hoje.
Estou-lhe dizendo, o poder da erva-do-diabo não nos é mais necessário, a nós
índios. Pouco a pouco, acho que perdemos o interesse e agora o poder não
importa mais. Eu próprio não o procuro e, no entanto, quando era da sua idade,
também o senti inchando dentro de mim. Senti-me como você hoje, só que 500
vezes mais fortemente. Matei um homem com um só golpe de meu braço. Eu
lançava pedras, pedras imensas que nem vinte homens conseguiam mover. Uma
vez, saltei tão alto que citei as folhas das árvores mais altas. Mas tudo em vão! A
única coisa que fiz foi assustar os índios... só os índios. Os outros, que não sabiam
nada daquilo, não acreditavam. Ou viam um índio doido, ou alguma coisa se
mexendo em cima das árvores.
Ficamos calados por muito tempo. Eu tinha de dizer alguma coisa.
─ Era diferente quando havia no mundo pessoas continuou ele ─ pessoas que
sabiam que um homem podia formar-se numa onça ou num passarinho ou que o
homem podia voar.
Por isso não uso mais a erva-do-diabo. Para quê? Para assustar os índios?
(Para que? Para assustar a lo indios?).
E eu vi que ele estava triste e senti uma profunda empatia. Queria dizer-lhe
alguma coisa, mesmo que fosse uma banalidade.
-Talvez, Dom Juan, seja essa a sorte de todos os homens que desejam saber.
─ Talvez ─ disse ele, muito quieto.
Quinta-feira, 23 de novembro de 1961
Não vi Dom Juan sentado em sua varanda, quando cheguei. Achei aquilo
estranho.
Chamei-o em voz alta e a nora dele saiu da casa.
─ Ele está lá dentro ─ disse ela.
Descobri que ele tinha torcido o tornozelo havia várias semanas. Tinha feito
seu próprio aparelho molhando tiras de pano numa papa feita de cacto e farinha
de ossos. As tiras, amarradas apertadas em volta do tornozelo, secaram,
formando um aparelho leve e aerodinâmico. Tinha a dureza do gesso mas não
seu volume.
─ Como foi que aconteceu? ─ perguntei.
A nora de Dom Juan, mexicana de Iucatã, que estava cuidando dele,
respondeu-me.
─ Foi um acidente! Ele caiu e quase quebrou o pé! Dom Juan riu e esperou
até a mulher sair da casa antes de responder.
─ -Acidente, o quê! Tenho um inimigo aqui perto. Uma mulher. "La Catalina!"
Ela me empurrou num momento de fraqueza e eu caí.
─ Por que essa mulher fez isso?
─ Queria matar-me, só isso.
─ Ela estava aqui com você?
─ Estava! -Por que a deixou entrar?
─ Não deixei. Ela entrou voando.
─ Perdão?
─ Ela é um melro (chanate). E muito eficiente, até. Fui apanhado de surpresa.
Há muito tempo que ela tenta liquidar-me. Dessa vez, quase conseguiu.
─ Você disse que ela é um melro? Quero dizer, um pássaro?
─ Lá vem você de novo com suas perguntas. Ela é um melro! Assim como eu
sou um corvo. Sou um homem ou um pássaro? Sou um homem que sabe tornar-
se pássaro. Mas voltando a "la Catalina", ela é uma bruxa endiabrada! Seu desejo
de me matar é tão forte que mal posso combatê-la. O melro entrou pela minha
casa adentro e eu não consegui impedi-lo.
─ Você pode transformar-se em pássaro, Dom Juan?
─ Posso! Mas isso é coisa de que vamos tratar depois.
─ Por que ela quer matá-lo?
─ Ah, é um velho problema entre nós. Descontrolou-se e agora parece que eu
terei de liquidá-la antes que ela me liquide.
─ Você vai usar feitiçaria? -perguntei, com muitas esperanças.
─ Não seja tolo. Nenhum feitiço teria efeito sobre ela. Tenho outros planos!
Um dia lhe contarei a respeito.
─ O seu aliado pode protegê-lo contra ela?
─ Não! O fuminho só me diz o que devo fazer. Então, devo me proteger
sozinho.
─ E Mescalito? Ele não o pode proteger dela?
─ Não! Mescalito é um mestre, não um poder a ser por motivos pessoais.
─ E a erva-do-diabo?
─ Já disse que preciso proteger-me, eu mesmo, seguindo as instruções de meu
aliado, o fumo. E, ao que eu saiba, o fumo consegue fazer qualquer negócio. Se
você quiser saber a respeito de qualquer coisa, o fumo lhe dirá. E ele lhe dará
mente o conhecimento, como também os meios de agir. É o aliado mais
maravilhoso que o homem pode ter.
─ O fumo é o melhor aliado para todos?
─ Não é o mesmo para todos. Há muitos que o temem e nem chegam perto
dele. O fumo é como tudo o mais: não foi feito para todos nós.
─ Que tipo de fumo é, Dom Juan?
─ O fumo dos adivinhos! Em sua voz havia um marcado tom de veneração,
coisa que eu nunca tinha notado antes.
─ Vou começar contando-lhe exatamente o que meu benfeitor me disse
quando começou a me ensinar a respeito. Muito embora naquela época, como
você agora, eu não poderia ter compreendido. "A erva-do-diabo é para aqueles
que querem o poder. O fumo é para aqueles que desejam contemplar e ver." E,
em minha opinião, o fumo não tem igual. Uma vez um homem entre em seus
domínios, todos os outros poderes estão a seu comando. E magnífico!
Naturalmente, leva tida. Leva anos só para a pessoa se familiarizar com suas
partes vitais: o cachimbo e a mistura do fumo. O Ido me foi dado por meu
benfeitor e, depois de tantos anos de mexer com ele, tornou-se meu. Cresceu em
minhas mãos. Passá-lo a suas mãos, por exemplo, será uma tarefa de verdade
para mim, e um grande feito para você. . . se conseguirmos! O cachimbo sentirá
a tensão de ser manuseado por outra pessoa; e se algum de nós cometer um erro,
não haverá meio de impedir que o cachimbo estoure por sua própria força, ou
que caia de nossas mãos para se espatifar, mesmo que caia num monte de palha.
Se isso acontecer, seria o nosso fim. Especialmente de mim. O fumo se voltaria
contra mim de maneiras incríveis.
─ Como poderia voltar-se contra você se é seu aliado?
Minha pergunta pareceu desviar seus pensamentos. Ele ficou calado um
tempão.
─ A dificuldade dos ingredientes -continuou ele, de repente -torna a mistura
uma das substâncias mais perigosas que conheço. Ninguém pode prepará-la sem
ser ensinado. p um veneno mortal para todos a não ser o protegido do fumo! O
cachimbo e a mistura devem ser tratados com um cuidado íntimo. E o homem
que quiser aprender deve preparar-se levando uma vida sossegada e dura. Seus
efeitos são tão tremendos que só os homens mais fortes podem suportar a mais
leve fumarada. Tudo é aterrador e confuso a princípio, mas cada nova baforada
torna as coisas mais precisas. E de repente o mundo se abre de novo!
Inimaginável! Quando isso acontece, o fumo torna-se nosso aliado e resolve
qualquer problema permitindo- nos a entrada em mundos inconcebíveis. p esta a
maior propriedade do fumo, seu maior dom. E realiza sua função sem prejudicar
em nada. Considero o fumo um verdadeiro aliado!
Como sempre, estávamos sentados em frente da casa dele, onde o chão de
terra é sempre limpo e batido; de repente, levantou-se e entrou em casa. Depois
de alguns momentos, voltou com um embrulhinho e tornou a sentar-se.
─ Este é o meu cachimbo ─ disse ele.
Inclinou-se para mim e mostrou-me um cachimbo que tirou de uma capa de
lona verde. Devia ter seus 25 centímetros de comprimento. A haste era de
madeira avermelhada; era simples, sem nenhum enfeite. O fornilho também
parecia ser feito de madeira, mas era meio volumoso, comparado com a haste
fina. Tinha um acabamento liso e era cinza-escuro, quase cor de carvão.
Ele segurou o cachimbo em frente de meu rosto. Pensei que o estivesse
entregando a mim. Estendi a mão para pegá-lo, mas ele o puxou depressa.
─ Este cachimbo me foi dado pelo meu benfeitor – disse ele. -Eu, por minha
vez, o passarei a você. Mas primeiro tem de vir a conhecê-lo. Cada vez que vier
aqui, eu o darei a você. Comece por tocá-lo. A princípio, segure-o só um
pouquinho, até que você e o cachimbo se acostumem um a outro. Depois, ponha-
o no bolso, ou talvez dentro da E por fim ponha-o na boca. Tudo isso deve ser
feito aos pouquinhos e de modo vagaroso e cuidadoso. Depois de estabelecida a
ligação (la amistad esto hecha), você fumará nele. Se seguir meu conselho e não
se precipitar, o fumo também poderá vir a ser seu aliado preferido.
─ Entregou-me o cachimbo, mas sem o largar. Estendi meu braço direito para
tocá-lo.
─ Com ambas as mãos ─ disse ele.
─ Toquei o cachimbo com as duas mãos por um instante. Não me estendeu
totalmente o objeto, de modo que eu o pudesse agarrar, mas só o suficiente para
eu poder tocá-lo. Depois, puxou-o de volta.
─ O primeiro passo é gostar do cachimbo. Isso leva tempo!
─ O cachimbo pode não gostar de mim?
─ Não. O cachimbo não pode ter aversão por você, mas tem de aprender a
gostar dele a fim de que, quando chegar o momento de fumar, o cachimbo ajude
você a não ter medo.
─ O que você fuma, Dom Juan?
─ Isto!
Ele abriu o colarinho e mostrou um saquinho que usava por baixo da camisa,
dependurado do pescoço como um medalhão. Tirou-o, desamarrou a ponta e,
com muito cuidado, um pouco do conteúdo na palma da mão.
Pelo que pude ver, a mistura parecia folhas de chá cortadas bem fino,
variando em cor do marrom-escuro ao verde-claro, com uns pontinhos de
amarelo-vivo.
Pôs a mistura de volta no saquinho, fechou-o, amarrou-o cordão de couro e
tornou a pô-lo por baixo da camisa.
─ Que tipo de mistura é essa?
-Há muitas coisas nela. Conseguir todos os ingredientes é uma tarefa muito
difícil. É preciso viajar longe. Os cogumelozinhos (los honguitos) necessários
para preparar a mistura em certas épocas do ano e em determinados lugares.
─ Você usa uma mistura diferente para cada tipo de auxílio de que precisa?
─ Não! Só há um fumo, e não há nenhum outro como ele.
Apontou para o saquinho em seu peito e levantou o cachimbo que estava entre
suas pernas.
─ Estes dois são um só! Um não pode passar sem o outro. Este cachimbo e o
segredo dessa mistura pertenciam a meu benfeitor. Foram passados a ele da
mesma maneira que o meu benfeitor os deu a mim. A mistura, embora difícil de
preparar, é possível de ser reposta.
Seu segredo reside em seus ingredientes e na maneira de eles serem tratados
e misturados. O cachimbo, por sua vez, é coisa de toda uma vida. Deve ser
tratado com o máximo cuidado. É resistente e forte, mas nunca se deve bater
nem esbarrar nele. Deve ser manuseado com mãos secas, nunca quando as
mãos estão suadas, e só deve ser usado quando se está só. E ninguém, ninguém
absolutamente, deve vê-lo, a não ser que você pretenda dá-lo a alguém. Foi isso o
que o meu benfeitor me ensinou, e foi assim que cuidei de meu cachimbo a vida
toda.
─ O que aconteceria se você perdesse ou quebrasse o cachimbo?
Ele sacudiu a cabeça, muito devagar, e olhou-me.
─ Eu morreria! -Todos os cachimbos dos feiticeiros são como o seu?
─ Nem todos têm cachimbos como o meu. Mas conheço alguns homens que
têm.
─ Sabe fazer um cachimbo como este, Dom Juan? insisti. ─ Digamos que
você não possuísse um, como é que poderia dar-me um se quisesse fazê-lo?
─ Seu eu não tivesse o cachimbo, não poderia nem haveria de querer dar um
cachimbo. Dar-lhe-ia outra coisa.
Pareceu estar meio zangado comigo. Guardou o cachimbo com muito
cuidado na capa, que devia ser forrada com um material macio, pois o
cachimbo, que cabia ali apertado, entrou facilmente. Dom Juan retornou à casa
para guardar o cachimbo.
─ Está zangado comigo, Dom Juan? ─ perguntei, quando ele voltou. Pareceu
ficar espantado com a minha pergunta.
─ Não! Nunca me zango! Nenhum ser humano pode fazer alguma coisa tão
importante que mereça isso. A gente se zanga, com as pessoas quando acha que
seus atos são importantes. Não sinto mais isso.
26 de dezembro de 1961
A ocasião específica para replantar o "broto", como Dom Juan chamava a
raiz, não estava marcada, embora devesse seguinte na domesticação do poder da
planta.
Cheguei à casa de Dom Juan no sábado, 23 de dezembro, da tarde. Ficamos
calados por algum tempo, Arte. O dia estava quente e nublado. Havia meses me
tinha dado a primeira porção. Está na hora de devolver a erva à terra -disse ele
de repente, -Mas primeiro vou arrumar uma proteção para você. Guarda-la-à e
a vigiará, e só deve ser vista por seus olhos. Como vou arrumá-la, eu também
vou vê-la. Isso não é com, pois, como já lhe disse, não gosto da erva-do-diabo.
Não somos um só. Mas minha memória não vai durar muito; sou velho demais.
Porém, você tem de resguardá-la dos olhos dos outros, pois, enquanto durar a
recordação de eles a terem o poder da proteção estará prejudicado.
Foi ao quarto dele e puxou três embrulhos de pano de debaixo uma velha
esteira. Depois, voltou à varanda e sentou-se.
Depois de um longo silêncio, abriu um dos embrulhos. Era Datara fêmea que
ele apanhara comigo; todas as folhas, e sementes que arrumara estavam secas.
Pegou o comprido pedaço de raiz em forma de Y e tornou a amarrar o
embrulho.
A raiz tinha secado e murchado e os galhos da forquilha mais separados e
contorcidos. Colocou a raiz no colo, abriu sua bolsa de couro e puxou de sua faca.
Segurou a raiz seca diante de mim.
─ Esta parte é para a cabeça ─ disse ele, e fez a primeira incisão na cauda do
Y, que, em posição invertida, asse-se à forma de um homem de pernas abertas. -
Esta o coração continuou, e cortou perto da junção do Y. Depois, cortou as pontas
da raiz, deixando uns sete centímetros de madeira em cada ramo do Y. Então,
devagar e paciência, esculpiu a forma de um homem.
A raiz era seca e fibrosa. A fim de esculpi-la, Dom Juan fez duas incisões e
descascou as fibras entre elas até à profundidade dos cortes. Mas quando chegou
aos detalhes, ele cinzelou a madeira, como ao fazer os braços e as mãos. O
resultado final foi uma figurinha vigorosa de um homem, de braços cruzados no
peito e as mãos entrelaçadas.
Dom Juan levantou-se e foi até junto de uma agave azul que crescia em
frente da casa, junto da varanda. Pegou o espinho duro de uma das folhas do
centro, polpudas, dobrou-o e girou-o três ou quatro vezes. O movimento circular
quase o destacou da folha; ele ficou pendurado. Dom Juan mordeu-o, ou melhor,
prendeu-o entre os dentes e puxou-o. O espinho saiu da polpa, levando consigo
um punhado de fibras compridas, como fios, presas à parte lenhosa como uma
cauda branca, de uns 60 centímetros de comprimento. Ainda com o espinho
preso nos dentes, ele torceu as fibras entre as palmas das mãos e fez um cordão,
que embrulhou nas pernas da figurinha, para juntá-las. Em seguida, envolveu a
parte inferior do corpo, até usar todo o cordão; com muita habilidade, trabalhou o
espinho como um furador por dentro da parte dianteira do corpo, por baixo dos
braços cruzados, até que a ponta aguçada aparecesse como que saindo das mãos
da estatueta. Tornou a usar os dentes e, puxando de leve, fez o espinho sair quase
todo. Parecia uma comprida lança saindo do peito da estatueta. Sem olhar mais
para ela, Dom Juan colocou-a dentro de sua bolsa de couro. Parecia estar
exausto do esforço. Deitou-se no chão e adormeceu.
Estava quase escuro quando ele acordou. Comemos os mantimentos que eu
lhe trouxera e ficamos sentados na varanda mais um bocado. Depois, Dom Juan
foi para os fundos da casa, levando os três embrulhos de pano. Cortou galhos e
ramos secos e fez uma fogueira. Ficamos sentados diante dela, à vontade, e ele
abriu os três embrulhos. Além do que continha as partes secas da planta fêmea,
havia outro com o que sobrara da planta masculina, e um terceiro, volumoso,
contendo pedaços verdes, recém-cortados, de Datura.
Dom Juan foi até ao cocho dos porcos e voltou com um almofariz de pedra,
muito fundo, que mais parecia uma panela com o fundo arredondado. Fez um
buraco raso e colocou o almofariz firmemente no chão. Colocou mais galhos
secos na fogueira e depois pegou os dois embrulhos com os pedaços secos de
plantas masculina e feminina e esvaziou-os todos de uma vez no almofariz.
Sacudiu o pano para verificar se todos os pedaços tinham caído no almofariz. Do
terceiro embrulho, pegou dois pedaços frescos de raiz de Datura.
-Vou prepará-los só para você -disse ele.
-Que tipo de preparação é essa, Dom Juan?
-Um desses pedaços vem de uma planta masculina, o outro de uma planta
feminina. Esta é a única ocasião em que as duas plantas devem ser colocadas
juntas. Os pedaços vem de uma profundidade de um metro.
Amassou-os dentro do almofariz com movimentos regulares do pilão.
Enquanto o fazia, entoava em voz baixa, parecendo cantarolar monotonamente e
sem ritmo. As palavras para mim. Ele estava absorto em seu trabalho.
Depois de completamente amassadas as raízes, ele pegou Olhas de Datura do
embrulho. Estavam limpas e tinham sido apanhadas havia pouco e todas estavam
isentas de bichos e de cortes. Colocou-as no almofariz, uma a uma. Pegou um
punhado de flores de Datura e também as colocou no almofariz, do mesmo
modo paciente. Contei 14 de cada. Depois, pegou um punhado de sementes
frescas e verdes com todas as suas espigas e ainda fechadas. Não pude conta-las,
pois ele as jogou no almofariz todas de uma vez, mas supus que também
houvesse 14 delas. Juntou três hastes de Datura, sem as folhas. Eram vermelhas,
escuras, e limpas, e pareciam vir de plantas grandes, a julgar por suas múltiplas
ramificações.
Depois de colocadas todas essas coisas no almofariz, reduziu-as a uma polpa
com os mesmos movimentos regulares. Em dado momento, inclinou o almofariz
e com a mão raspou finta para uma panela velha. Dom Juan me estendeu a mão,
e eu pensei que ele queria que a enxugasse. Mas, em vez disso pegou minha mão
esquerda e, com um movimento muito rápido, separou o mais que pôde os dedos
do meio e o quarto. Depois, com a ponta da faca, feriu-me entre os dois dedos,
cortando a pele do quarto dedo. Agiu com tanta habilidade e rapidez que, quando
puxei a mão, estava com um corte profundo, e o sangue jorrava em profusão.
Tornou a agarrar minha mão, colocou-a sobre a panela e apertou-a para forçar a
saída de mais sangue.
Meu braço ficou dormente. Eu estava em estado de choque, estranhamente
frio e rígido, com uma sensação de opressão em meu peito e ouvidos. Senti que
estava escorregando no assento. Eu estava desmaiando! Dom Juan largou minha
mão e mexeu o conteúdo da panela. Quando voltei a mim do choque, fiquei
realmente zangado com ele. Levei algum tempo para me controlar.
Ele arrumou três pedras em volta da fogueira e colocou a panela em cima
delas. A todos os ingredientes, acrescentou uma coisa que me pareceu ser um
pedaço grande de cola de marceneiro e uma chaleira de água, deixando tudo
aquilo a ferver. As plantas de Datura, por si, já têm um cheiro muito especial.
Combinadas com a cola de marceneiro, que exalou um cheiro forte quando a
mistura começou a ferver, formavam um vapor tão intenso que tive de fazer
força para não vomitar.
A mistura ferveu muito tempo, enquanto ficávamos sentados ali imóveis,
diante dela. Às vezes, quando o vento soprava o vapor em minha direção, o fedor
me envolvia e eu prendia a respiração, procurando evitá-lo.
Dom Juan abriu a bolsa de couro e tirou a estatueta, ele a entregou a mim
com cuidado e disse-me que a colocasse dentro da panela, sem queimar os
dedos. Levei-a com cuidado para a papa fervente. Ele pegou a faca e, por um
instante, pensei que ia tornar a me cortar; em vez disso, empurrou a figurinha
com a ponta da faca e a afundou.
Ficou olhando a papa ferver por mais um momento e depois começou a
limpar o almofariz. Ajudei-o. Quando terminamos, ele colocou o almofariz e o
pilão junto da cerca. Entramos em casa e a panela ficou nas pedras a noite toda.
No dia seguinte, de madrugada, Dom Juan mandou que eu tirasse a estatueta
da cola e a dependurasse no telhado, de frente para o leste, para secar ao sol. Ao
meio-dia estava dura como arame. O calor tinha soldado a cola e o verde das
folhas se misturara a ela. A estatueta tinha um acabamento lustroso e estranho.
Dom Juan pediu-me que pegasse a estatueta. Em seguida, deu-me uma bolsa
de couro que havia feito de um velho casaco de camurça que eu lhe dera havia
tempos. A bolsa parecia com a dele, sendo a única diferença que a dele era feita
de um couro marrom macio.
─ Ponha sua "imagem" dentro da bolsa e feche-a disse ele.
Dom Juan não olhou para mim, propositadamente mantendo a cabeça virada.
Depois que guardei a estatueta dentro da bolsa, ele me deu uma sacola de linha e
disse-me que pusesse a panela de barro dentro dela.
Foi até meu carro, pegou a sacola de minhas mãos e prendeu-a ao porta-
luvas, que estava aberto.
─ Venha comigo ─ disse ele.
Acompanhei-o. Deu a volta à casa, fazendo um círculo completo, no sentido
dos ponteiros do relógio. Parou na varanda e tornou a dar volta à casa, dessa vez
em sentido contrário e voltando de novo à varanda. Ficou parado um pouco e
depois sentou-se.
Eu estava condicionado a crer que tudo o que ele fazia tinha algum
significado. Estava pensando no significado dos círculos em volta da casa, quando
ele disse:
─ Ei! Esqueci onde o coloquei.
Perguntei-lhe o que é que ele estava procurando. Respondeu que se tinha
esquecido de onde colocara o broto que eu tinha de replantar. Tornamos a andar
em volta da casa antes de ele se lembrar onde estava.
Mostrou-me um potinho de vidro num pedaço de tábua pregado à parede
debaixo do telhado. O pote continha a outra metade da primeira porção da raiz de
Datura. O broto tinha umas folhinhas crescendo em sua extremidade superior. O
pote tinha um pouquinho de água, mas não tinha terra.
─ Por que não tem terra? ─ perguntei.
─ Nem todos os solos são iguais, e a erva-do-diabo só deve conhecer o solo
em que há de viver e crescer. E agora está na hora de ela voltar à terra, antes que
os bichos a estraguem.
─ Podemos plantá-la aqui perto da casa? ─ perguntei.
─ Não! Não! Aqui não. Ela deve voltar a um lugar de seu gosto.
─ Mas onde posso encontrar um lugar de meu gosto?
─ Não sei. Pode tornar a plantá-la onde quiser. Mas ela tem de ser cultivada e
cuidada, pois tem de viver para você ter o poder que precisa. Se ela morrer, isso
quer dizer que não o quer, e você não deve perturbá-la mais. Quer dizer que você
não terá poder sobre ela. Portanto, precisa cuidar e tratar dela, para que cresça.
Mas não deve mimá-la.
─ Por que não?
─ Porque, se não for vontade dela crescer, não adianta agradá-la. Mas, por
outro lado, você tem de provar que gosta dela. Livre-a dos bichos e dê-lhe água
quando a visitar. Isso deve ser feito com regularidade, até ela germinar. Depois
de germinar a primeira semente, teremos certeza de que o deseja.
─ Mas, Dom Juan, não me é possível cuidar da raiz como você quer.
─ Se quiser o poder dela, tem de fazê-lo! Não há outro meio!
─ Não pode cuidar dela quando eu não estiver aqui, Dom Juan?
─ Não! Eu não! Não posso fazer isso! Cada um tem de nutrir seu próprio
broto. Tive o meu. Agora, você tem de ter o seu. E só depois de ele germinar,
como já lhe disse, é que você pode considerar-se pronto para aprender.
─ Onde acha que eu devo plantá-la?
─ Isso só você pode decidir! E ninguém pode saber do lugar, nem mesmo eu!
É assim que a replanta tem de ser feita. Ninguém, mas ninguém mesmo, pode
saber onde está sua planta. Se um estranho o acompanhar, ou o vir, pegue a raiz e
corra para outro lugar. Ele lhe poderia causar males incríveis, manipulando o
broto. Poderia aleijá-lo ou matá-lo. É por isso que nem eu posso saber onde está
sua planta. Leve-o agora. -E entregou-me o potinho com o broto.
Peguei-o. Então, ele quase me arrastou para meu carro.
─ Agora você tem de ir. Vá e escolha o lugar onde vai replantar ó broto. Cave
um buraco fundo, na terra fofa, junto de um lugar com água. Lembre-se, ele
tem de estar perto da água para poder crescer. Cave o buraco só com suas mãos,
mesmo que elas sangrem. Coloque o broto no centro do buraco e faça um
montinho (pilón) em volta dele. Depois, ensope-o de água. Quando esta se
infiltrar, encha a cova com terra fofa. Depois, escolha um lugar a dois passos do
broto, naquela direção (apontou para sudeste). Cave ali outro buraco fundo,
também com as mãos e jogue ali o que está na panela. Depois, quebre-a e
enterre-a em outro lugar, longe de onde está seu broto. Após enterrar a panela,
volte a seu broto e torne a regá-lo. Em seguida, pegue a sua estatueta, segure-a
entre os dedos onde está a sua ferida e, de pé no local onde você sepultou a cola,
toque de leve no broto com a agulha. Dê a volta ao broto quatro vezes, parando
cada vez no mesmo lugar para tocá-lo.
─ Tenho de seguir uma direção especial, quando der a volta ao broto?
-Qualquer direção serve. Mas tem sempre de se lembrar em que direção
você enterrou a cola, e que direção tomou ao andar em volta do broto. Toque de
leve no broto em todas as vezes menos na última; então, empurre fundo. Mas
faça-o com cuidado; ajoelhe-se para ter a mão mais firme, pois não deve
quebrar a ponta dentro do broto. Se quebrar, está liquidado. A raiz não lhe servirá
de nada.
─ Tenho de pronunciar alguma palavra, enquanto ando em volta do broto?
─ Não. Farei isso por você.
Sábado, 27 de janeiro de 1962
Assim que cheguei à casa dele hoje de manhã, Dom Juan me disse que me ia
ensinar a preparar a mistura do fumo. Fomos para os morros e entramos bem
longe em' uma das gargantas. Ele parou perto de um arbusto alto e esguio, cuja
cor formava um contraste marcante com a vegetação em volta. O chaparral ao
redor do arbusto era amarelado, mas este era de um verde-vivo.
─ Desta arvorezinha você tem de levar as folhas e as flores ─ disse ele. ─ A
época propícia para apanhá-las é o Dia de Finados (el día de las ánimas).
Pegou sua faca e cortou a extremidade de um ramo fino. Escolheu outro
ramo semelhante e também cortou a ponta. Repetiu essa operação até ter um
punhado de pontas de ramos. Depois, sentou-se no chão.
─ Olhe aqui ─ disse ele. -Cortei todos os galhos acima da forquilha formada
por duas ou mais folhas e a haste. Está vendo? São todos iguais. Só usei a ponta de
cada galho, onde as folhas são frescas e tenras. Agora, temos de procurar um
lugar de sombra.
Caminhamos até ele demonstrar haver encontrado o que procurava. Pegou
um cordão comprido do bolso e amarrou-o ao trunco e aos galhos mais baixos de
dois arbustos, fazendo uma espécie de varal, onde ele pendurou os galhos, com as
pontas para baixo. Arrumou-os pelo cordão em ordem; enganchados pela
forquilha entre as folhas e a haste, eles pareciam uma longa fileira de cavaleiros
verdes.
─ E preciso que as folhas sequem à sombra -disse Dom Juan. ─ O lugar deve
ser isolado e de difícil acesso. Assim, as folhas ficam protegidas. Devem ser
deixadas para secar num lugar onde seja quase impossível encontrá-las. Depois
de secas, devem ser postas num embrulho e lacradas.
Apanhou as folhas do cordão e atirou-as nos arbustos Próximos. Parecia que
só pretendia ensinar-me o processo.
Continuamos a caminhar e ele escolheu três flores diferentes, dizendo que
eram parte dos ingredientes e que deviam ser colhidas ao mesmo tempo. Mas as
flores tinham de ser colocadas em potes de barro separados e postas para secar
no escuro; era preciso pôr uma tampa em cada pote para as flores mofarem lá
dentro. Ele disse que a função das folhas e das flores era adocicar a mistura do
fumo.
Saímos da garganta e caminhamos para o leito do rio. Depois de uma volta
grande, voltamos para a casa dele. Tarde da noite, ficamos sentados no seu
quarto, coisa que ele raramente me permitia fazer, ocasião em que me contou a
respeito do último ingrediente; os cogumelos.
─ O verdadeiro segredo da mistura reside nos cogumelos -disse ele. ─ São o
ingrediente mais difícil de colher. A ida ao lugar onde crescem é longa e
perigosa, e escolher a qualidade certa é ainda mais arriscado. Há outros tipos de
cogumelos que crescem juntos deles, e que não valem nada; estragariam os bons
se fossem secados juntos. Leva tempo para se conhecer bem os cogumelos, e
não se errar. Sérios males podem resultar, se se usar o tipo errado ─ mal para o
homem e para o cachimbo. Conheço homens que caíram mortos por terem
usado um mau fumo. Assim que os cogumelos são colhidos, devem ser
colocados numa cabaça, de modo que não há meio de verificá-los novamente.
Entende, eles têm de ser estraçalhados para poderem passar pelo gargalo estreito
da cabaça.
─ Como se pode evitar o erro?
─ Tendo cuidado e sabendo como escolher. Já lhe disse que é difícil. Nem
todos podem domesticar o fumo; a maior parte das pessoas nem tenta.
─ Por quanto tempo você guarda os cogumelos dentro da cabaça?
─ Por um ano. Todos os outros ingredientes também são lacrados por um ano.
Então, partes iguais deles são medidas e moídas separadamente num pó muito
fino. Os cogumelozinhos não têm de ser moídos porque já por si tornam-se um
pó fininho; basta amassar os pedaços. Quatro partes de cogumelos são
acrescentadas a uma parte de todos os outros ingredientes juntos. Depois, são
todos misturados e colocados numa bolsa como a minha. ─ Apontou para o
saquinho pendurado debaixo de sua camisa. -Em seguida, todos os ingredientes
são novamente colhidos e depois de postos para secar você está pronto para
fumar a mistura que acabou de preparar. No seu caso, vai fumar no ano que
vem. E no ano posterior, a mistura será toda sua, pois você a terá colhido sozinho.
Da primeira vez que você fumar, acenderei seu cachimbo. Vai fumar toda a
mistura no fornilho e vai esperar. A fumaça virá. Você a sentirá. Ela o libertará
para ver tudo o que quiser ver. A bem dizer, é um aliado incomparável. Mas
quem o procurar tem de ter um propósito e uma vontade irrepreensíveis. Ele
precisa disso porque tem de pretender e querer sua volta, do contrário o fumo
não o deixará voltar. Em segundo lugar, ele tem de pretender e querer lembrar-
se de tudo o que o fumo lhe permitiu ver, do contrário tudo não passará de uma
neblina em sua mente.
Sábado, 8 de abril de 1962
Em nossas conversas, Dom Juan sempre usava ou se referia à expressão
"homem de conhecimento", mas nunca explicava o que queria dizer com isso.
Perguntei-lhe a respeito.
─ Um homem de conhecimento é aquele que seguiu honestamente as
dificuldades da aprendizagem ─ disse ele. Um homem que, sem se precipitar
nem hesitar, foi tão longe quanto pôde para desvendar os segredos do poder e da
sabedoria.
─ Qualquer pessoa pode ser um homem de conhecimento?
─ Não; não qualquer pessoa.
─ -Então o que é preciso fazer para se tornar um homem de conhecimento?
─ O homem tem de desafiar e vencer seus quatro inimigos naturais.
─ Ele será um homem de conhecimento depois de vencer esses quatro
inimigos?
─ Sim. Um homem pode chamar-se um homem de conhecimento somente
se for capaz de vencer os quatro.
─ Então, qualquer pessoa que conseguir vencer esses inimigos pode ser um
homem de conhecimento?
─ Qualquer pessoa que os vencer torna-se um homem de conhecimento.
─ Mas há algum requisito especial que o homem tenha de atender antes de
lutar contra esses inimigos?
─ Não. Qualquer pessoa pode tentar tornar-se um homem de conhecimento;
muito poucos homens o conseguem, realmente, mas isso é natural. Os inimigos
que um indivíduo encontra no caminho do saber para tornar-se um homem de
conhecimento são realmente formidáveis; a maioria dos homens sucumbe a eles.
─ Que tipos de inimigos são, Dom Juan?
Recusou-se a falar sobre os inimigos. Disse que se passaria muito tempo até
que o assunto fizesse sentido para mim. Procurei manter a conversa e perguntei-
lhe se ele achava que eu poderia tornar-me um homem de conhecimento.
Respondeu que ninguém poderia dizer isso ao certo. Mas eu insisti para saber se
havia algum indício que ele pudesse usar para saber se eu tinha ou não
possibilidade de me tornar um homem de conhecimento. Falou que dependia de
minha luta contra os quatro inimigos ─ se eu conseguiria derrotá-los ou ser
derrotado por eles -mas que era impossível prever o resultado dessa luta.
Perguntei-lhe se ele podia usar feitiços ou adivinhação para ver o resultado da
luta. Declarou claramente que os resultados da luta não poderiam ser previstos
por meio algum, porque tornar-se um homem de conhecimento era uma coisa
temporária. Quando pedi que ele explicasse isto, respondeu:
─ Ser um homem de conhecimento não tem permanência. Nunca se é um
homem de conhecimento, não de verdade. Ou antes, a pessoa se torna um
homem de conhecimento por um instante muito breve, depois de derrotar os
quatro inimigos naturais.
─ Você tem de me dizer, Dom Juan, que tipo de inimigos eles são.
Não respondeu. Tornei a insistir, mas ele mudou de assunto e começou a falar
sobre outra coisa.
Domingo 15 de abril de 1962
Quando eu estava me preparando para partir, tornei a lhe perguntar acerca
dos inimigos do homem de conhecimento. Argumentei que ia passar algum
tempo sem voltar, e que seria uma boa idéia escrever as coisas que ele tivesse a
dizer e pensar a respeito enquanto estivesse fora. Hesitou um pouco, mas depois
começou a falar:
─ Quando um homem começa a, aprender, ele nunca sabe muito claramente
quais seus objetivos. Seu propósito é fumo; sua intenção, vaga. Espera
recompensas que nunca se materializarão, pois não conhece nada das
dificuldades da aprendizagem. Devagar, ele começa a aprender... a princípio,
pouco a pouco, e depois em porções grandes. E logo seus pensamentos entram
em choque. O que aprende nunca é o que ele imaginava, de modo que começa a
ter medo. Aprender nunca é o que se espera. Cada passo da aprendizagem é uma
nova tarefa, e o medo que o homem sente começa a crescer impiedosamente,
sem ceder. Seu propósito torna-se um campo de batalha. "E assim ele se deparou
com o primeiro de seus inimigos naturais - o Medo! Um inimigo terrível,
traiçoeiro, e difícil de vencer. Permanece oculto em todas as voltas do caminho,
rondando, à espreita. E se o homem, apavorado com sua presença, foge, seu
inimigo terá posto um fim à sua busca.
─ O que acontece com o homem se ele fugir com medo?
─ Nada lhe acontece, a não ser que nunca aprenderá. Nunca se tornará um
homem de conhecimento. Talvez se torne um tirano, ou um pobre homem
apavorado e inofensivo; de qualquer forma, será um homem vencido. Seu
primeiro inimigo terá posto um fim a seus desejos.
─ E o que pode ele fazer para vencer o medo?
─ A resposta é muito simples. Não deve fugir. Deve desafiar o medo, e, a
despeito dele, deve dar o passo seguinte na aprendizagem, e o seguinte, e o
seguinte. Deve ter medo, mente, e no entanto não deve parar. É esta a regra! E o
momento chegará em que seu primeiro inimigo recua. O homem começa a se
sentir seguro de si. Seu propósito torna-se mais forte. Aprender não é mais uma
tarefa aterradora. Quando cesse momento feliz, o homem pode dizer sem hesitar
que derrotou seu primeiro inimigo natural.
─ Isso acontece de uma vez, Dom Juan, ou aos poucos?
─ Acontece aos poucos e no entanto o medo é vencido da repente e depressa.
─ Mas o homem não terá medo outra vez, se lhe acontecer alguma coisa
nova?
─ Não. Uma vez que o homem venceu o medo, fica livre dele o resto da vida,
porque, em vez do medo, ele adquiriu a clareza de espírito que apaga o medo.
Então, o homem já conhece seus desejos; sabe como satisfazê-los. Pode
antecipar os novos passos na aprendizagem e uma clareza viva cerca tudo. O
homem sente que nada se lhe oculta. E assim ele encontra seu segundo inimigo: a
Clareza! Essa clareza de espírito, que é tão difícil de obter, elimina o medo, mas
também cega.
"Obriga o homem a nunca duvidar de si. Dá-lhe a segurança de que ele pode
fazer o que bem entender, pois ele vê tudo claramente. E ele é corajoso porque é
claro e não pára diante de nada porque é claro. Mas tudo isso é um engano; é
como uma coisa incompleta. Se o homem sucumbir a esse poder de faz-de-
conta, sucumbiu a seu segundo inimigo e tateará com a aprendizagem. Vai
precipitar-se quando devia ser paciente, ou vai ser paciente quando devia
precipitar-se. E tateará com a aprendizagem até acabar incapaz de aprender
mais qualquer coisa.
─ O que acontece com um homem que é derrotado assim, Dom Juan? Ele
morre por isso?
─ Não, não morre. Seu inimigo acaba de impedi-lo de se tornar um homem
de conhecimento; em vez disso, o homem pode tornar-se um guerreiro valente,
ou um palhaço. No entanto, a clareza, pela qual ele pagou tão caro, nunca mais
se transformará de novo em trevas ou medo. Será claro enquanto viver, mas não
aprenderá nem desejará nada.
─ Mas o que tem de fazer para não ser vencido?
─ Tem de fazer o que fez com o medo: tem de desafiar sua clareza e usá-la só
para ver, e esperar com paciência e medir com cuidado antes de dar novos
passos; deve pensar, acima de tudo, que sua clareza é quase um erro. E virá um
momento em que ele compreenderá que sua clareza era apenas um ponto diante
de sua vista. E assim ele terá vencido seu segundo inimigo, e estará numa posição
em que nada mais poderá prejudicá-lo. Isso não será um engano. Não será um
ponto diante da vista. Será o verdadeiro poder. Ele saberá a essa altura que o
poder que vem buscando há tanto tempo é seu, por fim. Pode fazer o que quiser
com ele. Seu aliado está às suas ordens. Seu desejo é a ordem. Vê tudo o que está
em volta. Mas também encontrou seu terceiro inimigo: o Poder! O poder é o
mais forte de todos os inimigos. E naturalmente a coisa mais fácil é ceder; afinal
de contas, o homem é realmente invencível. Ele comanda; começa correndo
riscos calculados e termina estabelecendo regras, porque é um senhor. "Um
homem nesse estágio quase nem nota seu terceiro inimigo se aproximando. E de
repente, sem saber, certamente terá perdido a batalha. Seu inimigo o terá
transformado num cruel e caprichoso.
─ E ele perderá o poder?
─ Não, ele nunca perderá sua clareza nem seu poder.
─ Então o que o distinguirá de um homem de conhecimento?
─ Um homem que é derrotado pelo poder morre sem mente saber manejá-
lo. O poder é apenas uma carga em 'ice destino. Um homem desses não tem
domínio sobre si, e não sabe quando ou como usar seu poder.
─ A derrota por algum desses inimigos é uma derrota final?
─ Claro que é final. Uma vez que esses inimigos dominem o homem, não há
nada que ele possa fazer.
─ Será possível, por exemplo, que o homem derrotado pelo poder veja seu
erro e se emende?
─ Não. Uma vez que o homem cede, está liquidado.
─ Mas, e se ele estiver temporariamente cego pelo poder, e depois recusar?
─ Isso significa que a batalha continua. Isso significa que ele ainda está
tentando ser um homem de conhecimento. O indivíduo é derrotado quando não
tenta mais e se abandona.
─ Mas então, Dom Juan, será possível que um homem se entregue ao medo
durante anos, mas que no fim ele o vença.
─ Não, isso não é verdade. Se ele ceder ao medo, nunca o vencerá porque se
desviará do conhecimento e nunca mais tentará. Mas sé procurar aprender
durante anos no meio de seu medo, acabará dominando-o, porque nunca se
entregou realmente a ele.
─ E como o homem pode vencer seu terceiro inimigo, Dom Juan?
─ Também tem de desafiá-lo, propositadamente. Tem de vir a compreender
que o poder que parece ter adquirido, na nunca é seu. Deve controlar-se em
todas as ocasiões, Com cuidado e lealdade tudo o que aprendeu. Se conseguir ver
que a clareza e o poder, sem seu controle sobre si, são piores do que os erros, ele
chegará a um ponto em que lado. Então, saberá quando e como usar seu poder. E
assim terá derrotado seu terceiro inimigo. O homem estará, então, no fim de sua
jornada do saber, e quase sem perceber encontrará seu último inimigo: a
Velhice! Este inimigo é o mais cruel de todos, o único que ele não conseguirá
derrotar completamente, mas apenas afastar. É o momento em que o homem
não tem mais receios, não tem mais impaciências de clareza de espírito... um
momento em que todo seu poder está controlado, mas também o momento em
que ele sente um desejo irresistível de descansar. Se ele ceder completamente a
seu desejo de se deitar e esquecer, se ele se afundar na fadiga, terá perdido o
último round, e seu inimigo o reduzirá a uma criatura velha e débil. Seu desejo de
se retirar dominará toda sua clareza, seu poder e sabedoria. Mas se o homem
sacode sua fadiga, e vive seu destino completamente, então poderá ser chamado
de um homem de conhecimento, nem que seja no breve momento em que ele
consegue lutar contra o seu último inimigo invencível. Esse momento de clareza,
poder e conhecimento é o suficiente.

4
Era raro Dom Juan falar abertamente sobre Mescalito. Sempre que eu
indagava sobre o assunto, ele se recusava a falar, mas sempre dizia o suficiente
para criar uma impressão a respeito de Mescalito, uma impressão que era
sempre antropomórfica. Mescalito era masculino, não só por causa da regra
gramatical que dá à palavra o gênero masculino, mas também devido a suas
qualidades constantes de protetor e meie. Dom Juan reiterava essas
características de vários motes, sempre que conversávamos.
Domingo, 24 de dezembro de 1961
─ A erva-do-diabo nunca protegeu ninguém. Só serve para dar poder. Já
Mescalito, por outro lado, é delicado como um bebê.
─ Mas você disse que por vezes Mescalito é assustador.
─ Claro que é assustador, mas depois que você passa a conhece-lo, é delicado
e bom.
─ Como mostra sua bondade?
─ É protetor e mestre.
─ Como ele protege?
─ Você o pode conservar consigo sempre e ele velará pira que nada de mau
lhe aconteça.
─ Como se pode conservá-lo sempre?
─ Numa bolsinha, preso debaixo do braço ou pendurado no pescoço por um
cordão.
─ Você o tem com você?
─ Não, porque tenho um aliado. Mas outras pessoas o têm.
─ O que ele ensina?
─ Ensina a viver direito.
─ Como ele ensina?
─ Mostra coisas e diz o que são (enzeña las cosas te dice lo que son).
─ Como?
─ Você terá de ver por si.
Terça-feira, 30 de janeiro de 1962
─ O que você vê quando Mescalito o leva com ele, Dom Juan?
─ Não se pode falar dessas coisas. Não lhe posso dizer.
─ Se dissesse, alguma coisa má lhe aconteceria?
─ Mescalito é um protetor, um protetor bom e delicado; mas isso não significa
que se possa caçoar dele. Como é um protetor bom, também pode ser um horror
em si com aqueles de quem não gosta.
─ Não pretendo caçoar dele. Só quero saber o que faz os outros executarem
ou verem.
Descrevi-lhe tudo o que Mescalito me fez ver, Dom Juan.
─ Com você é diferente, talvez porque não conheça os costumes dele. Tem de
aprender os costumes dele como uma criança aprende a caminhar.
─ Por quanto tempo ainda tenho de aprender?
─ Até que ele próprio comece a fazer sentido para você.
─ E depois?
─ Então, você vai entender por si. Não vai mais ter de contar nada.
─ Pode dizer-me onde é que Mescalito o leva?
─ Não posso falar disso.
─ Só quero saber é se existe um outro mundo ao qual ele leva as pessoas.
─ Existe.
─ É o céu?
─ Ele o leva pelo céu.
─ Quero dizer, é o céu onde Deus está?
─ Agora você está sendo burro. Não sei onde Deus está.
─ Mescalito é Deus? O único Deus? Ou é um dos deuses?
─ Ele é apenas um protetor e mestre. É um poder.
─ É um poder dentro de nós?
─ Não. Mescalito não tem nada a ver conosco. Ele está fora de nós.
─ Então, todos os que tomam Mescalito devem vê-lo da mesma forma.
─ Não, nada disso. Ele não é o mesmo para todos.
Quinta-feira, 12 de abril de 1962
─ Por que não me conta mais a respeito de Mescalito, Dom Juan?
─ Não há nada a contar.
─ Deve haver milhares de coisas que eu deva saber antes ë tornar a encontrá-
lo.
─ Não. Talvez para você não haja nada que tenha de Como já lhe disse, ele
não é o mesmo para todos.
─ Sei, mas assim mesmo eu gostaria de saber como é que os outros se sentem
a respeito dele.
─ A opinião daqueles que gostam de falar a respeito dele não vale grande
coisa. Você verá. Provavelmente, vai y ' dele até certo ponto, e daí em diante
nunca mais o fará.
─ Pode contar-me a respeito de sua primeira experiência?
─ Para quê?
─ Dessa forma, saberei como agir com Mescalito.
─ Você já sabe mais do que eu. Chegou a brincar com ele. Um dia verá como
o protetor foi bondoso para com você. Daquela primeira vez, estou certo de que
ele lhe disse muitas e muitas coisas, mas você estava surdo e cego.
Sábado, 14 de abril de 1962
─ Mescalito assume alguma forma, quando se revela?
─ Sim, qualquer forma.
─ Então, quais são as formas mais comuns que você conhece?
─ Não há formas comuns.
─ Quer dizer, Dom Juan, que ele aparece sob qualquer forma, mesmo para
homens que o conhecem bem?
─ Não. Ele aparece em qualquer forma para aqueles que só o conhecem um
pouco, mas para aqueles que o conhecem bem, é sempre constante.
─ Como é que ele é constante?
─ Ele lhes aparece, às vezes, como homem, como nós, ou como uma luz.
Apenas uma luz.
─ Mescalito muda sua forma permanente com aqueles que o conhecem bem?
─ Não que eu saiba.
Sexta-feira, 6 de julho de 1962
Dom Juan e eu saímos numa viagem na tarde de sábado, dia 23 de junho. Ele
disse que íamos procurar honguitos (cogumelos) no Estado de Chihuahua. Falou
que ia ser uma viagem demorada e difícil. E tinha razão. Chegamos a uma
cidadezinha de mineração no norte de Chihuahua às dez da noite da quarta-feira,
27 de junho. Estacionei o carro nos arredores da cidade e caminhamos para a
casa dos amigos dele, um índio tarahumara e a mulher. Dormimos lá.
No dia seguinte, o homem nos acordou por volta das cinco horas. Trouxe-nos
uma papa e feijão. Sentou-se e conversou com Dom Juan enquanto comíamos,
mas não disse nada a respeito de nossa viagem.
Depois de comermos, o homem pôs água em meu cantil e dois pãezinhos na
mochila. Dom Juan entregou-me o cantil, prendeu a mochila com uma cordilha
nos seus ombros, agradeceu ao homem suas gentilezas e, virando-se para mim,
disse:
─ Está na hora de irmos.
Caminhamos pela estrada de terra por um quilômetro e meio. Dali, cortamos
caminho pelos campos e dentro de duas horas estávamos ao pé dos morros ao sul
da cidade. Subimos as encostas suaves em direção ao sudoeste. Quando
chegamos às encostas mais íngremes, Dom Juan mudou de direção e seguimos
um vale alto para leste. Apesar de sua idade avançada, ele andava tão
incrivelmente depressa que, ao meio-dia, eu estava completamente exausto.
Sentamo-nos e abrimos o saco de pão.
-Pode comer tudo, se quiser ─ disse ele.
─ E você?
─ Não estou com fome, e não vamos precisar dessa comida mais tarde.
Estava muito cansado e com fome, e aceitei o oferecimento dele. Achei que
seria uma boa ocasião para falar sobre o objetivo de nossa viagem, e perguntei,
com naturalidade:
─ Acha que nos vamos demorar aqui?
─ Estamos aqui para colher um pouco de Mescalito. Vamos ficar até amanhã.
─ Onde está Mescalito?
─ Em volta de nós.
Cactos de muitas espécies cresciam em profusão em toda a região, mas eu
não conseguia distinguir o peiote entre eles.
Recomeçamos a andar e, às três horas, chegamos a um vale comprido e
estreito com morros íngremes dos lados. Sentia-me estranhamente excitado com
a idéia de encontrar o peiote, que eu nunca vira em seu ambiente natural.
Entramos no vale e devemos ter caminhado uns 120 metros, quando, de repente,
vi três plantas que deviam ser, por certo, peiote. Estavam num feixe, poucos
centímetros acima do solo, em frente a mim, à esquerda do caminho. Pareciam
rosas verdes, redondas e polpudas. Corri para elas, mostrando-as a Dom Juan.
Ele não fez caso de mim e propositadamente manteve-se de costas quando se
afastou. Eu sabia que tinha cometido um erro, e o resto da tarde andamos em
silêncio, movendo-nos devagar pelo solo chato do vale, que era coberto de
pedrinhas aguçadas. Movíamo-nos no meio dos cactos, perturbando muitos
lagartos e, de vez em quando, um pássaro solitário. E passei por montes de
plantas de peiote sem dizer uma palavra.
Às seis horas, estávamos ao pé das montanhas que marcavam o fim do vale.
Subimos para uma saliência. Dom Juan deixou cair a mochila e sentou-se.
Eu estava com fome outra vez, mas não tínhamos mais comida; sugeri que
colhêssemos Mescalito e voltássemos à cidade. Pareceu ficar aborrecido e
estalou os lábios. Disse que íamos passar a noite ali.
Ficamos sentados, calados. À esquerda, havia uma parede de rochedos e, à
direita, estava o vale que acabávamos de atravessar. Este se estendia por alguma
distância e parecia ser mais largo e não tão plano quanto eu pensava. Visto do
lugar onde eu estava, era cheio de morrinhos e protuberâncias.
─ Amanhã vamos começar a voltar ─ disse Dom Juan, sem olhar para mim,
e apontando para o vale. ─ Vamos voltar e colhê-lo quando atravessarmos o
campo. Isto é, só o apanharemos quando ele estiver no nosso caminho. Ele nos
encontrará, e não vice-versa. Ele nos encontrará... se quiser.
Dom Juan descansou as costas na parede de pedra e, com a cabeça virada de
lado, continuou a falar como se ali houvesse mais alguém, além de mim.
─ Mais uma coisa. Só eu posso colhê-lo. Você talvez carregue o saco, ou ande
adiante de mim... ainda não sei. Mas amanhã você não vai apontar para ele
como fez hoje!
─ Desculpe-Dom Juan.
─ Não tem importância. Você não sabia.
─ Seu benfeitor lhe ensinou tudo isso a respeito de Mescalito?
─ Não! Ninguém me ensinou sobre ele. O próprio protetor foi meu mestre.
─ Então Mescalito é como uma pessoa, com quem se pode falar?
─ Não é, não.
─ Então como é que ele ensina?
Ele ficou calado por um instante. Depois, disse:
─ Lembra-se da vez que você brincou com ele? Você entendia o que ele
queria dizer, não?
─ Entendia! ─ É assim que ele ensina. Não sabia na ocasião, mas se lhe
tivesse prestado atenção, ele lhe teria falado.
─ Quando?
─ Quando você o viu pela primeira vez.
Dom Juan pareceu estar muito aborrecido com minhas perguntas. Disse-lhe
que tinha de fazer todas essas perguntas porque queria descobrir tudo o que
pudesse.
─ Não pergunte a mim! ─ Sorriu com malícia. ─ Pergunte a ele. Da próxima
vez que o vir, pergunte tudo o que quer saber.
─ Então Mescalito é mesmo uma pessoa com quem se pode falar...
Ele não me deixou terminar. Virou-se de costas, pegou o cantil, desceu da
saliência e desapareceu atrás do rochedo. Eu não queria ficar ali sozinho e,
embora não me tivesse convidado para ir com ele, acompanhei-o. Andamos por
uns 150 metros e chegamos a um riachinho. Lavou as mãos e o rosto e encheu o
cantil. Bochechou com a água, mas não bebeu. Peguei água nas mãos em
concha e bebi, mas ele me fez parar, dizendo que não era preciso beber.
Entregou-me o cantil e começou a voltar para a saliência. Quando chegamos
lá, tornamos a nos sentar de frente para o vale, de costas para a parede de rocha.
Perguntei se podíamos fazer uma fogueira. Dom Juan reagiu como se fosse
inconcebível fazer uma pergunta daquelas. Disse que naquela noite éramos
hóspedes de Mescalito e que ele nos aqueceria.
Já estava anoitecendo. Dom Juan tirou do saco duas mantas leves, de algodão,
e jogou uma no meu colo; depois, sentou-se de pernas cruzadas com a outra
sobre os ombros. Abaixo de nós o vale estava escuro, suas bordas já difusas na
névoa da noite.
Dom Juan ficou sentado, imóvel, olhando para o campo de peiote. Um vento
constante soprava em meu rosto.
─ O crepúsculo é a fresta entre os mundos ─ disse ele baixinho, sem se virar
para mim.
Não perguntei o que ele queria dizer com isso. Meus olhos estavam cansados.
De repente, senti-me exaltado; senti uma vontade estranha e avassaladora de
chorar!
Deitei-me de bruços; o chão de pedra era duro e incômodo e eu tinha de
trocar de posição a cada instante. Por fim, sentei-me e cruzei as pernas, pondo a
manta sobre os ombros. Para espanto meu, essa posição era extremamente
cômoda, e eu adormeci.
Quando acordei, ouvi Dom Juan falando comigo. Estava muito escuro. Eu não
o via muito bem. Não entendi o que ele dizia, mas acompanhei-o quando desceu
da saliência. Andávamos com cuidado, ou pelo menos eu o fazia, por causa do
escuro. Paramos na base do paredão de pedra. Dom Juan sentou-se e me fez
sinal para sentar-me à sua esquerda. Abriu a camisa e tirou um saco de couro,
que abriu e colocou no chão diante de si. Continha uma porção de botões de
peiote secos.
Depois de uma longa pausa, pegou um dos botões. Segurou-o em sua mão
direita, esfregando-o várias vezes entre o polegar e o indicador, enquanto entoava
alguma coisa baixinho. De repente, soltou um grito tremendo.
─ Aiiii!
Foi fantástico e inesperado. Fiquei apavorado. Vagamente, vi que ele punha o
botão de peiote na boca e começava a mastigá-lo. Depois de um momento,
pegou o saco todo, inclinou-se para mim e me disse, num cochicho, para pegar o
saco, escolher um Mescalito, tornar a pôr o saco defronte de nós e depois fazer
exatamente o que ele fazia.
Peguei um botão de peiote e esfreguei-o como Dom Juan tinha feito.
Enquanto isso, ele cantarolava, balançando-se para frente e para trás. Tentei pôr
o botão em minha boca várias vezes, mas estava encabulado para gritar. Então,
como que num sonho, um grito incrível partiu de mim: Ahiiii! Por um momento,
pensei que fosse outra pessoa. Tornei a sentir os efeitos de um choque em meu
estômago. Estava caindo de costas. Estava desmaiando. Pus o botão de peiote na
boca e mastiguei-o. Depois de algum tempo, Dom Juan pegou outro do saco.
Fiquei aliviado ao ver que ele o punha na boca depois de um breve canto. Passou-
me o saco e eu tornei a colocá-lo diante de nós, depois de ter pegado um botão.
Este ciclo se repetiu cinco vezes, antes de eu reparar que estava com sede.
Peguei o cantil para beber, mas Dom Juan me disse que lavasse a boca, sem
beber, senão eu podia vomitar.
Bochechei bem com a água. Num certo ponto, beber foi uma tentação
tremenda, e engoli um pouco de água. Imediatamente, meu estômago começou
a contorcer-se. Esperava ter um fluxo indolor e sem esforço de liquido na boca,
como acontecera em minha primeira experiência com o peiote, mas, para
surpresa minha, só tive a sensação normal do vômito. Mas não durou muito.
Dom Juan pegou outro botão e me entregou o saco, e o ciclo se renovou e
repetiu até que eu tivesse mascado 14 botões. A essa altura, todas as minhas
primeiras sensações de sede, frio e desconforto tinham desaparecido. Em seu
lugar, senti uma sensação estranha de calor e excitação. Peguei o cantil para
refrescar minha boca, mas ele estava vazio.
-Podemos ir ao riacho, Dom Juan?
O som de minha voz não se projetou para fora, mas chocou-se com o céu de
minha boca, voltou a minha garganta e ficou ressonando entre os dois. O eco era
suave e musical e parecia ter asas, que batiam dentro de minha garganta. Aquele
contato me aliviou. Acompanhei seus movimentos para diante e para trás até
desaparecer. Repetia pergunta. Minha voz tinha o som como se eu estivesse
falando dentro de uma tumba.
Dom Juan não respondeu. Levantei-me e virei-me na direção do riacho. Olhei
para ver se ele vinha, mas Dom Juan parecia estar ouvindo alguma coisa com
atenção.
Fez um gesto imperioso com a mão, indicando que eu ficasse quieto.
-Abutho! (?) já está aqui! -disse ele.
Nunca tinha ouvido aquela palavra e estava pensando se devia perguntar-lhe a
respeito, quando percebi um barulho zunindo em meus ouvidos. O som foi
ficando mais alto aos poucos, até tornar-se como a vibração causada por um
imenso rugido de touro. Durou só um momento e foi-se apagando até que tudo
ficou quieto de novo. A violência e a intensidade do ruído me aterraram. Tremia
tanto que mal me sustentava em pé, e, no entanto, estava perfeitamente lúcido.
Se tinha estado sonolento alguns minutos antes, essa sensação tinha desaparecido
completamente, dando lugar a um estado de extrema lucidez. O barulho me fazia
lembrar um filme de ficção científica em que uma abelha gigantesca movia as
asas, ao sair de uma zona de radiação atômica. Ri da idéia. Vi Dom Juan voltando
a sua posição relaxada. E de repente a imagem de uma abelha gigantesca tornou
a ocorrer-me. Era mais real do que pensamentos normais. Estava sozinha,
rodeada por uma claridade extraordinária. Tudo o mais foi expulso de minha
mente. Esse estado de clareza mental, sem precedentes em minha vida,
provocou outro momento de terror.
Comecei a transpirar. Inclinei-me para Dom Juan para dizer-lhe que estava
com medo. O rosto dele estava a alguns centímetros do meu. Estava olhando
para mim, mas os olhos dele eram olhos de abelha. Pareciam vidros redondos,
com uma luz própria no escuro. Seus lábios estavam protuberantes e deles partia
um barulho tamborilante: "Petuh-peh-tuhpet-tuh." Dei um salto para trás, quase
batendo de encontro ao paredão de pedra. Por uns momentos aparentemente
intermináveis senti um medo insuportável. Eu estava ofegante e gemendo. O suor
tinha-se congelado em minha pele, dando-me uma rigidez desajeitada. Então,
ouvia voz de Dom Juan dizendo:
─ Levante-se! Mexa-se! Levante-se!
A imagem desapareceu e eu torneia ver seu rosto conhecido.
─ Vou buscar um pouco de água ─ disse eu, depois de outro momento
interminável. Minha voz parecia rachada. Mal podia articular as palavras. Dom
Juan meneou a cabeça concordando. Quando me afastei, percebi que meu medo
tinha desaparecido tão depressa e misteriosamente como tinha vindo.
Quando me aproximei do riacho, reparei que via todos os objetos do caminho.
Lembrei-me de que acabava de ver Dom Juan claramente, enquanto antes eu
mal distinguia os contornos de seu vulto. Parei e olhei para longe, e até via do
outro lado do vale. Umas pedras do outro lado tornaram-se perfeitamente
visíveis. Achei que devia ser de manhã cedo, mas ocorreu-me que devia ter
perdido noção do tempo. Olhei pesa o relógio. Eram dez para as doze! Verifiquei
o relógio para ver se estava funcionando. Não poma ser meio-dia; tinha de ser
meia-noite! Pretendia dar uma corrida até à água e voltar às pedras, mas vi Dom
Juan descendo e esperei por ele. Disse-lhe que estava enxergando no escuro.
Ele fitou-me por muito tempo, sem dizer nada; se falou, talvez eu não o tenha
ouvido, pois estava-me concentrando na minha nova e rara faculdade de ver no
escuro. Distinguia as pedrinhas diminutas na areia. Em certos momentos, as
coisas todas estavam tão claras que parecia que era de manhã cedo. Em seguida,
escurecia; depois, ficava claro de novo. Logo percebi que a claridade
correspondia à diástole de meu coração, e a escuridão, à sua sístole. O mundo
mudava do claro para o escuro e para o claro de novo com cada batida de meu
coração.
Estava absorto nessa descoberta, quando o mesmo som estranho que eu já
tinha ouvido se fez ouvir de novo. Meus músculos enrijeceram.
─ Anuhctal (foi como entendi a palavra dessa vez) está aqui ─ disse dom
Juan. Imaginei o rugido tão trovejante, tão avassalador, que nada mais
importava. Depois que passou, percebi um súbito aumento no volume da água. O
riacho, que um minuto antes era de menos de 30 centímetros de largura,
expandiu-se até tornar-se um lago imenso. Uma luz que parecia vir de cima dele
tocava a superfície, como se brilhasse através de uma folhagem espessa. De vez
em quando a água brilhava por um segundo, dourada e negra. Depois ficava
escura, sem luz, quase desaparecendo de vista, e no entanto estranhamente
presente.
Não me lembro por quanto tempo fiquei ali só olhando, agachado na margem
do lago negro. Enquanto isso, o rugido deve ter passado, pois o que me, levou de
volta (à realidade?) foi novamente um zunido tremendo. Virei-me para procurar
Dom Juan. Eu o vi subindo na saliência da pedra e desaparecendo atrás dela. No
entanto, a sensação de estar sozinho não me aborrecia em absoluto; fiquei ali
agachado num estado de completa confiança e abandono. O rugido se fez ouvir
outra vez; era muito intenso, como o ruído provocado por um vento forte.
Escutando com a maior atenção, consegui distinguir uma melodia definida. Era
uma miscelânea de sons agudos, como vozes humanas, acompanhada de um
bombo profundo. Focalizei toda minha atenção na melodia, e tornei a reparar que
a sístole e a diástole de meu coração coincidiam com o som do bombo e com a
música.
Levantei-me, e a melodia parou. Procurei ouvir a batida de meu coração,
mas não consegui. Tornei a agachar-me, pensando que talvez a posição de meu
corpo tivesse provocado os sons! Mas nada aconteceu! Nem um som! Nem
mesmo 0 meu coração! Achei que bastava, mas quando me ia levantando para
sair dali, senti a terra tremer. A terra debaixo de meus pés estava sacudindo. Eu
estava perdendo o equilíbrio. Caí para trás e fiquei deitado de costas, enquanto a
terra tremia violentamente. Tentei segurar uma pedra ou uma planta, mas
alguma coisa deslizava por baixo de mim. Levantei-me de um salto, fiquei de pé
por um momento, e depois tornei a cair. A terra em que eu estava sentado estava-
se movendo, deslizando para dentro da água como uma jangada. Fiquei imóvel,
paralisado por um terror que era, como tudo o mais, único, ininterrupto e
absoluto.
Movia-me pela água do lado negro empoleirado num torrão de terra que
parecia uma tora. Tinha a impressão de estar indo para o sul, transportado pela
corrente. Via a água se movendo e girando em volta. Estava fria, e
estranhamente pesada ao tato. Imaginei que estivesse viva.
Não havia margens ou marcos visíveis e não me lembro dos pensamentos
nem das sensações que devo ter tido durante essa viagem. Depois do que me
pareceram horas de viajar, minha jangada deu uma guinada para a esquerda,
para leste. Continuou a viajar na água por um trecho curto e inesperadamente
bateu de encontro a alguma coisa. O impacto me atirou para frente. Fechei os
olhos e senti uma dor aguda quando meus joelhos e braços esticados bateram na
terra. Depois de um momento, olhei para cima. Estava deitado no chão. Era
como se meu toro de terra se tivesse fundido com o pó. Sentei-me e olhei em
volta. A água estava recuando! Movia-se para trás, como uma onda recuando,
até desaparecer.
Fiquei ali sentado muito tempo, procurando compor as idéias e juntar tudo o
que acontecera numa unidade coerente. Estava com o corpo todo dolorido.
Minha garganta parecia uma chaga aberta; eu tinha mordido os lábios quando
"aterrei". Levantei-me. O vento me fez perceber que estava com frio. Minhas
roupas estavam molhadas. As mãos, queixo e joelhos tremiam tão violentamente
que tive de me deitar de novo. Gotas de transpiração caíam em meus olhos e os
faziam arder, até eu gritar de dor.
Depois de algum tempo, recuperei um pouco de estabilidade e levantei-me.
No luscofusco, a cena era muito clara. Dei alguns passos. Ouvi um som nítido de
muitas vozes humanas. Pareciam estar falando alto. Acompanhei o som; andei
uns 50 metros e parei de repente. Tinha chegado a um beco sem saída. O lugar
em que eu estava era um curral formado por rochas imensas. Distinguia outra
fileira delas, depois outra e mais outra, até se fundirem na montanha. Do meio
delas vinha a música mais suave. Era um fluxo fluido, ininterrupto e misterioso
de sons.
Ao pé de um dos rochedos, vi um homem sentado no chão, o rosto virado
quase de perfil. Aproximei-me dele até estar a uns três metros de distância; ele
virou a cabeça e olhou para mim. Parei. . . seus olhos eram a água que eu
acabava de ver! Tinham o mesmo volume enorme, o brilho de ouro e negro. A
cabeça dele era pontuda como um morango; sua pele era verde, cheia de muitas
verrugas. A não ser a forma pontuda, a cabeça dele era exatamente igual à
superfície da planta de peiote. Fiquei defronte dele, olhando; não conseguia
afastar os olhos dele. Senti que ele estava propositadamente empurrando meu
peito com o peso de seus olhos. Eu estava sufocando. Perdi o equilíbrio e caí no
chão. Desviou o olhar. Ouvi que falava comigo. A princípio, a voz dele era como
0 farfalhar de uma brisa suave. Depois a ouvi como uma música ─ uma melodia
de vozes ─ e "sabia" que estava dizendo: “O que quer?"
Ajoelhei-me diante dele e falei sobre a minha vida e depois chorei. Tornou a
olhar para mim. Senti que seus olhos me puxavam e pensei que aquele momento
seria o momento de minha morte. Fez-me sinal para me aproximar. Vacilei por
um momento antes de me adiantar um passo. Quando me aproximei, desviou os
olhos de mim e mostrou-me as costas da mão. A melodia dizia: "Olhe!" Havia
um furo redondo no meio da mão dele. "Olhe!", tornou a dizer a melodia. Olhei
através do buraco e vi minha própria imagem. Eu estava muito velho e fraco e
estava correndo encurvado, com faíscas brilhantes voando em volta de mim.
Então, três das fagulhas me atingiram, duas na cabeça e uma no ombro
esquerdo. A figura, no buraco, ergueu-se por um momento, até estar
inteiramente vertical, e depois desapareceu com o buraco.
Mescalito voltou novamente seus olhos para mim. Estavam tão perto de mim
que eu os "ouvi" ribombar baixinho com aquele ruído especial que eu já ouvira
tantas vezes naquela noite. Foram-se aquietando aos poucos, até se tornarem
como uma lagoa tranquila, arrepiada por brilhos dourados e negros.
Desviou o olhar de novo e saltou como um grilo por uns 50 metros. Pulou
várias vezes e depois desapareceu.
Quando dei por mim de novo, comecei a andar. Muito racionalmente,
procurei reconhecer certos pontos, como as montanhas à distância, a fim de me
orientar. Em toda a experiência, eu tinha estado obcecado com os pontos cardiais,
e acreditava que o norte tinha de estar à minha esquerda. Caminhei naquela
direção por algum tempo, antes de compreender que era dia, e que eu não estava
mais usando minha "visão noturna". Lembrei-me de que tinha um relógio e olhei
as horas. Marcava oito horas.
Eram quase dez horas quando cheguei à saliência onde tinha estado na noite
anterior. Dom Juan estava deitado no chão, dormindo.
─ Onde você esteve? ─ perguntou ele.
Sentei-me para tomar fôlego. Depois de um longo silêncio, ele perguntou: ─
Você o viu?
Comecei a lhe contar a sequência de minhas experiências desde o princípio,
mas ele me interrompeu, dizendo que só 0 que interessava era se eu o havia visto
ou não. Perguntou- me a que distância Mescalito tinha estado de mim. Disse-lhe
que quase o havia tocado.
Essa parte de minha história interessou-lhe. Escutou atentamente todos os
detalhes sem comentários, interrompendo somente para fazer perguntas a
respeito da forma do ser que eu tinha visto, sua disposição e outros detalhes. Era
mais ou menos meio-dia quando Dom Juan pareceu estar satisfeito com minha
história. Levantou-se e prendeu um saco de lona em meu peito, disse-me que
andasse atrás dele e que ia soltar Mescalito e que eu tinha de recebe-lo em
minhas mãos e colocá-lo no saco com delicadeza.
Bebemos um pouco de água e começamos a caminhar. Quando chegamos à
borda do vale, ele pareceu hesitar um momento, antes de decidir qual a direção a
tomar. Quando resolveu, começamos a andar em linha reta.
Cada vez que chegávamos a uma planta de peiote, agachava-se defronte dela
e com muito cuidado cortava a ponta com sua faquinha serrilhada. Fazia uma
incisão paralela ao solo e polvilhava a "ferida", conforme ele a chamava, com
um pó de enxofre puro que trazia num saquinho de couro. Segurava o botão novo
em sua mão esquerda e espalhava o pó com a direita. Depois se levantava e me
entregava o botão, que eu recebia com ambas as mãos, conforme ele ensinara, e
colocava no saco.
─ Fique reto e não deixe o saco encostar no chão nem nos arbustos nem em
nada repetia ele, como se achasse que eu ia esquecer.
Colhemos 65 botões. Quando o saco estava completamente cheio, colocou-o
em minhas costas e prendeu um novo em meu peito. Quando atravessamos o
planalto, já tínhamos dois sacos cheios, contendo 110 botões de peiote. Os sacos
eram tão pesados e volumosos que eu mal podia andar com aquele peso e
volume.
Dom Juan me cochichou que os sacos estavam pesados porque Mescalito
queria voltar à terra. Disse que era a tristeza de deixar sua morada que fazia
Mescalito pesar; meu verdadeiro trabalho era não deixar que os sacos tocassem
no chão, pois, se isso acontecesse, Mescalito nunca permitiria que eu tornasse a
pegá-lo.
Num dado momento, a pressão das tiras em meus ombros tornou-se
insuportável. Alguma força estava exercendo uma pressão tremenda para me
puxar para baixo. Eu estava muito apreensivo, e reparei que tinha começado a
andar mais depressa, quase correndo; de certo modo, estava trotando atrás de
Dom Juan.
De repente, o peso em minhas costas e meu peito diminuiu. O fardo tornou-se
leve. Corri livremente para alcançar Dom Juan, que estava a minha frente.
Disse-lhe que não estava mais sentindo o peso. Ele explicou que já tínhamos
saído da morada de Mescalito.
Terça-feira, 3 de julho de 1962
─ Acho que Mescalito já quase o aceitou ─ disse Dom Juan.
─ Por que diz que ele quase me aceitou, Dom Juan?
─ Ele não o matou, nem lhe fez mal. Deu-lhe um bom susto, mas não foi
sério. Se ele não o tivesse aceito de todo, ter-lhe-ia aparecido como monstruoso e
cheio de raiva. Algumas pessoas aprenderam o significado do horror, quando o
encontraram e não foram aceitos por ele.
─ Se ele é tão terrível, por que não me contou a respeito antes de me levar ao
campo?
─ Você não tem coragem para procurá-lo propositadamente, Achei melhor
você não saber.
─ Mas eu podia ter morrido, Dom Juan!
─ Sim, podia. Mas eu tinha certeza de que tudo se iria bem com você. Ele
brincou com você uma vez. Não lhe fez mal. Achei que também desta vez teria
compaixão de você.
Perguntei-lhe se achava realmente que Mescalito tivera compaixão de mim.
A experiência fora aterradora; parecia-me que eu quase morrera de susto.
Ele disse que Mescalito tinha sido muito bom comigo; mostrara-me uma cena
que era uma resposta a uma pergunta. Juan disse que Mescalito me dera uma
lição. Perguntei-lhe qual a lição e o que significava. Respondeu que seria
impossível responder àquela pergunta porque eu estava com medo para saber
exatamente o que perguntara a Mescalito.
Dom Juan perscrutou minha memória sobre o que eu dissera a Mescalito
antes de ele me mostrar a cena em sua mão. Mas eu não conseguia lembrar-me.
Só me lembrava de ter caído de joelhos e "confessado meus pecados" a ele.
Dom Juan não pareceu interessado em continuar a falar respeito. Perguntei-
lhe:
─ Pode ensinar-me a letra das cantigas que cantou?
─ Não posso, não. Aquelas palavras são minhas, palavras que o próprio
protetor me ensinou. As canções são minhas canções. Não lhe posso dizer o que
são.
─ Por que não pode dizer-me, Dom Juan?
─ Porque essas canções são um elo entre o protetor e eu. Estou certo de que
um dia ele lhe ensinará suas próprias canções. Espere até então; e nunca, mas
nunca mesmo, copie ou faço perguntas sobre canções que pertencem a outro.
─ Qual foi o nome que você falou? Pode dizer-me isso, Dom Juan?
─ Não. O nome dele nunca pode ser dito, a não ser para chamá-lo.
─ E se eu o quiser chamar, eu mesmo?
─ Se algum dia ele o aceitar, ele lhe dirá seu nome. Esse nome será só para
você usar, ou para chamá-lo em voz alta ou para murmurar baixinho para si.
Talvez lhe diga que o nome dele é José. Quem sabe?
─ Por que é errado usar o nome dele quando se fala dele?
─ Você já viu os olhos dele, não viu? Não se pode brincar com um protetor. E
por isso que não me consigo habituar com a idéia de que ele quis brincar com
você!
─ -Como é que ele pode ser protetor se faz mal a algumas pessoas?
─ A resposta é muito simples. Mescalito é um protetor porque ele está à
disposição de todos os que o procuram.
─ Mas não é verdade que tudo no mundo está à disposição de todos que o
procuram?
─ Não, isso não é verdade. Os poderes aliados só estão disponíveis para os
brujos, mas qualquer pessoa pode ter parte de Mescalito.
─ Mas então por que ele faz mal a algumas pessoas?
─ Nem todos gostam de Mescalito; no entanto, todos o procuram com o intuito
de se aproveitarem, sem qualquer trabalho. Naturalmente, o encontro dessas
pessoas com ele é sempre horripilante.
─ O que acontece quando ele aceita uma pessoa completamente?
─ Ele aparece a essa pessoa como um homem, ou como uma luz. Quando
uma pessoa consegue esse tipo de aceitação, Mescalito é constante. Depois disso,
ele nunca muda. Talvez quando você q encontrar de novo ele seja uma luz, e
algum dia ele poderá até levá-lo para voar e lhe revelar todos os seus segredos.
─ O que devo fazer para chegar a esse ponto, Dom Juan?
─ Tem de ser um homem forte, e sua vida tem de ser verdadeira.
─ O que é uma vida verdadeira?
─ Uma vida vivida com propósito, uma vida forte e boa.
5

Dom Juan indagava periodicamente, com naturalidade, a respeito do estado


de minha planta Datura. No ano que se passou desde que eu plantei de novo a
raiz, a planta, cresceu e se tornou um arbusto grande. Tinha sementeado e as
sementes tinham secado. E Dom Juan achou que estava na hora de eu aprender
mais a respeito da erva-do-diabo.
Domingo, 27 de janeiro de 1963
Hoje Dom Juan deu-me a informação preliminar sobre a “segunda porção"
da raiz de Datura, o segundo passo para aprender a tradição. Ele disse que a
segunda porção da raiz o verdadeiro princípio da aprendizagem; comparada com
a primeira porção era brincadeira de criança. A segunda porção tinha de ser
dominada; tinha de ser absorvida pelo menos 20 vezes, disse ele, antes de se
poder passar ao terceiro passo.
─ O que faz a segunda porção? ─ perguntei.
─ A segunda porção da erva-do-diabo é usada para ver. Com ela, o homem
pode flutuar pelo ar para ver o que se passa qualquer lugar que ele queira.
─ O homem pode mesmo voar pelo ar, Dom Juan?
─ Por que não? Como já lhe disse, a erva-do-diabo é para aqueles que
buscam o poder.
O homem que domina a segunda porção pode usar a erva-do-diabo para fazer
coisas inimagináveis, para conquistar mais poder.
─ Que tipo de coisas, Dom Juan?
─ Não lhe posso dizer. Cada homem é diferente.
Segunda-feira, 28 de janeiro de 1963
─ Se você completar o segundo passo com êxito, só poderei mostrar-lhe mais
um passo ─ disse Dom Juan. ─ Durante a aprendizagem sobre a erva-do-diabo,
compreendi que ela não servia para mim, e não continuei mais no seu caminho.
─ O que o levou á se decidir assim, Dom Juan?
─ A erva-do-diabo quase me matava cada vez que eu tentava usá-la. Uma vez
foi tão ruim que eu pensei que estava liquidado. No entanto, eu podia ter evitado
todo esse sofrimento.
─ Como? Há um meio especial de se evitar o sofrimento?
─ Sim, há um Meio.
─ É uma fórmula, um processo, ou o quê?
─ É um modo de se agarrar as coisas. Por exemplo, quando eu estava
aprendendo a respeito da erva-do-diabo, era por demais ansioso. Agarrava as
coisas assim como as crianças agarram bala. A erva-do-diabo é apenas um entre
um milhão de caminhos. Tudo é um entre um milhão de caminhos (un comino
entre cantidades de caminos). Portanto, você deve sempre manter em mente que
um caminho não é mais do que um caminho; se achar que não deve segui-lo, não
deve permanecer nele, sob nenhuma circunstância. Para ter uma clareza dessas,
é preciso levar uma vida disciplinada. Só então você saberá que qualquer
caminho não passa de um caminho, e não há afronta, para si nem para os outros,
em largá-lo se é isso o que seu coração lhe manda fazer. Mas sua decisão de
continuar no caminho ou largá-lo deve ser isenta de medo e de ambição. Eu lhe
aviso. Olhe bem para cada caminho, e com propósito. Experimente-o tantas
vezes quanto achar necessário. Depois, pergunte-se, e só a si, uma coisa. Essa
pergunta é uma que só os muito velhos fazem. Meu benfeitor certa vez me
contou a respeito, quando eu era jovem, e meu sangue era forte demais para
poder entendê-la. Agora eu a entendo. Dir-lhe-ei qual é: esse caminho tem
coração? Todos os caminhos são os mesmos: não conduzem a lugar algum. São
caminhos que atravessam o mato, ou que entram no mato.
Em minha vida posso dizer que já passei por caminhos compridos, mas não
estou em lugar algum. A pergunta de meu benfeitor agora tem um significado.
Esse caminho tem um coração? Se tiver, o caminho é bom; se não tiver, não
presta. Ambos os caminhos não conduzem a parte alguma; mas um tem coração
e o outro não. Um torna a viagem alegre; enquanto você o seguir, será um com
ele. O outro o fará maldizer sua vida. Um o torna forte; o outro o enfraquece.
Domingo, 21 de abril de 1963
Na tarde de terça-feira, 16 de abril, Dom Juan e eu fomos pata os morros
onde estão suas plantas de Datura. Pediu-me que o deixasse sozinho lá, e que o
esperasse no carro. Voltou quase três horas depois, carregando um embrulho
envolto num pano vermelho. Quando começamos a voltar para casa, ele mostrou
o embrulho e disse que era seu último presente para mim.
Perguntei se ele queria dizer que não ia mais me ensinar. Explicou que se
referia ao fato de eu ter uma planta completamente madura e não precisar mais
das plantas dele.
No fim da tarde, nós nos sentamos no seu quarto; ele pegou um almofariz e
pilão muito bem acabados. O almofariz tinha uns, 15 centímetros de diâmetro.
Ele desfez um embrulho grande, cheio de pacotinhos, escolheu dois e colocou-os
numa esteira a meu lado; depois, juntou mais quatro pacotinhos do mesmo
tamanho do embrulho que ele tinha trazido para casa. Disse que eram sementes,
e que eu teria de moê-las fiara fazer um pó fino. Abriu o primeiro pacote e pôs
parte do conteúdo no almofariz. As sementes eram secas, redondas e de uma cor
de caramelo amarelado.
Comecei a trabalhar com o pilão; depois de certo tempo, ele me corrigiu.
Disse que eu primeiro empurrasse o pilão de encontro a um dos lados do
almofariz e depois o passasse pelo indo, subindo pelo outro lado. Perguntei o que
ele ia fazer com o pó. Ele não quis falar a respeito.
A primeira batelada de sementes era extremamente dura de moer. Levei
quatro horas para terminar. Minhas costas me doíam devido à posição em que
me sentei. Deitei-me e queria dormir ali mesmo, mas Dom Juan abriu o segundo
pacotinho e despejou parte do conteúdo dentro do almofariz. Dessa vez, as
sementes eram um pouco mais escuras do que as primeiras, e estavam
aglomeradas. O resto do conteúdo do pacote era uma espécie de pó, feito de
grânulos pequeninos, redondos e escuros.
Eu queria comer alguma coisa, mas Dom Juan disse que, se eu quisesse
aprender, tinha de seguir as regras, e estas diziam que eu só podia beber um
pouquinho de água enquanto estivesse aprendendo os segredos da segunda
porção.
O terceiro saquinho continha um punhado de gorgulhos vivos, pretos. E no
último pacote havia sementes frescas e brancas, quase pastosas de tão macias,
mas fibrosas e difíceis de moer numa pasta fina, como ele esperava que eu
fizesse. Depois que acabei de moer o conteúdo dos quatro pacotes, Dom Juan
mediu duas xícaras de uma água esverdeada, despejou-a numa panela de barro
e a pôs no fogo. Quando a água ferveu, despejou a primeira batelada de
sementes trituradas. Mexeu a mistura com um pedaço de madeira ou de osso
longo e pontudo, que tinha na bolsa de couro. Assim que a água tornou a ferver,
despejou as outras substâncias uma por uma, seguindo o mesmo processo.
Depois, juntou mais uma xícara da mesma água e deixou a mistura ferver no
fogo brando.
Então, disse-me que estava na hora de amassar a raiz. Com cuidado, extraiu
um pedaço comprido da raiz de Datura do embrulho que tinha levado para casa.
A raiz tinha uns 40 centímetros de comprimento. Era grossa, tendo talvez uns três
centímetros de diâmetro. Falou que era a segunda porção, e novamente mediu a
segunda porção ele mesmo, pois ainda era a raiz dele. Disse que da próxima vez
que eu experimentasse a erva-do-diabo teria de medir minha própria raiz.
Empurrou-me o grande almofariz e eu passei a moer a raiz exatamente da
mesma maneira como ele tinha moído a primeira porção. Dirigiu-me nos
mesmos passos e mais uma vez deixamos a raiz amassada de molho na água,
exposta ao sereno. A essa altura, a mistura fervente tinha-se solidificado na
panela de barro. Dom Juan tirou a panela do fogo, colocou-a dentro de uma
sacola de linha e pendurou-a numa viga no meio do quarto.
Por volta das oito horas da manhã, no dia 17 de abril, Dom Juan e eu
começamos a lixiviar o extrato da raiz com água. Era um dia límpido,
ensolarado, e Dom Juan interpretou o bom tempo como um augúrio de que a
erva-do-diabo gostava de mim; disse que quando eu estava presente, ele só podia
lembrar-se de como ela tinha sido malvada com ele.
O processo que usamos na lixívia do extrato de raiz foi p mesmo que eu tinha
observado na primeira porção. No fim da tarde, depois de despejar a água de
cima pela oitava vez, havia uma colherada de uma substância amarelada no
fundo da panela.
Voltamos ao quarto dele, onde ainda havia dois saquinhos, que ele ainda não
tinha tocado. Abriu um deles, meteu a mão Ah e amassou a ponta aberta em
volta do pulso, com a outra mão. Parecia estar segurando alguma coisa, a julgar
pelo modo como sua mão se mexia dentro do saco. De repente, com um gesto
brusco, tirou o saco da mão como quem descalça uma ao virando-o do avesso, e
empurrou a mão para junto do meu rosto. Estava segurando um lagarto. A
cabeça do bicho estava a poucos centímetros de meus olhos. Havia alguma coisa
estranha na boca do lagarto. Fiquei um momento olhando para ela, e depois
recuei involuntariamente. A boca do ficho estava cozida com pontos grosseiros.
Dom Juan mandou que eu segurasse o lagarto com minha mão esquerda.
Agarrei-o e ele se contorceu na minha palma. Eu estava enjoado. Minhas mãos
estavam molhadas de suor.
Dom Juan pegou o último saquinho e, repetindo os mesmos gestos, tirou outro
lagarto. Também o segurou junto do meu rosto. Vi que seus olhos estavam
cozidos. Mandou que eu segurasse esse lagarto na minha mão direita.
Quando peguei os dois lagartos nas duas mãos, eu já estava quase vomitando.
Sentia um desejo imenso de largá-los o sair dali.
─ Não os aperte! ─ disse ele, e sua voz me devolveu sentido de alívio e de
direção. Perguntou-me o que é que havia comigo. Tentou ficar sério, mas não
conseguiu e desatou a rir. Tentei afrouxar os dedos, mas minhas mãos estavam
transpirando tanto que os lagartos começaram a se contorcer tentado sair delas.
Suas garrinhas afiadas arranhavam minhas mãos, provocando uma sensação
incrível de nojo e náusea. Fechei os olhos e trinquei os dentes. Um dos lagartos já
estava escorregando para meu pulso; bastava livrar a cabeça de entre meus
dedos para libertar-se. Tive uma sensação esquisita de desespero físico e um
supremo desconforto. Rosnei para Dom Juan, entre os dentes, para me livrar das
malditas coisas. Minha cabeça sacudia, involuntariamente. Ele olhou para mim,
curioso. Eu rosnava como um urso, sacudindo o corpo. Pôs os lagartos em seus
saquinhos e começou a rir. Eu também queria rir, mas estava com o estômago
virado. Deitei-me.
Expliquei-lhe que o que me afetara era a sensação das garras deles nas
minhas palmas; ele disse que havia muitas coisas que podiam enlouquecer uma
pessoa, especialmente se ela não tivesse a resolução e o propósito necessários
para aprender; mas que quando um homem tinha um espírito claro e inflexível,
os sentimentos não eram em absoluto um obstáculo, pois ele era capaz de
controlá-los.
Dom Juan esperou um pouco, e depois, com os mesmos gestos, tornou a
entregar-me os lagartos. Disse-me que segurasse as cabeças deles para cima e
os esfregasse de leve contra minhas têmporas enquanto lhes perguntava qualquer
coisa que quisesse saber.
A princípio, não entendi o que ele queria que eu fizesse. Tornou a dizer-me que
perguntasse aos lagartos a respeito de qualquer coisa que eu não pudesse
descobrir sozinho. Deu-me uma série de exemplos: podia saber a respeito de
pessoas que eu não via habitualmente, ou sobre objetos perdidos, ou lugares que
eu não tinha visto. Então, percebi que ele estava falando a respeito de
adivinhação. Fiquei muito entusiasmado. Meu coração começou a bater com
força. Senti que estava perdendo o fôlego.
Advertiu-me de que não fizesse perguntas pessoais, da primeira vez; disse que
eu devia pensar em alguma coisa que não tivesse nenhuma relação comigo. Eu
tinha de pensar depressa e com clareza, pois não haveria jeito de inverter meus
pensamentos.
Tentei desesperadamente pensar em alguma coisa que eu quisesse saber. Dom
Juan me incitava imperiosamente, e fiquei espantado ao ver que não havia nada
que eu quisesse "perguntar" aos lagartos.
Depois de uma espera dolorosamente longa, pensei numa coisa. Algum tempo
atrás, um número grande de livros tinha sido roubado de uma sala de leitura. Não
era um assunto pessoal, e no entanto eu estava interessado naquilo. Não tinha
idéias preconcebidas sobre a identidade da pessoa ou pessoas que tinham tirado
os livros. Esfreguei os lagartos de encontro às têmporas, perguntando-lhes quem
era o ladrão.
Depois de algum tempo, Dom Juan colocou os lagartos dentro de seus sacos e
disse que não havia grandes segredos quanto à raiz e à pasta. A pasta era feita
para dar a direção; a raiz tornava as coisas claras. Mas o verdadeiro mistério
eram os lagartos. Eram o segredo de todo o feitiço da segunda porção, disse ele.
Perguntei se era algum tipo especial de lagartos. Respondeu que eram. Tinham
de vir da região da planta da pessoa; tinham de ser amigos da gente. E para se ter
lagartos como amigos, disse ele, era preciso um longo período de preparação.
Era preciso desenvolver uma sólida amizade com eles, dando-lhes comida e
dizendo-lhes palavras amáveis.
Perguntei por que a amizade deles era tão importante. Ele disse que os
lagartos só se deixavam apanhar se conhecessem o homem, e quem quer que
levasse a sério a erva-do-diabo tinha de tratar os lagartos com seriedade. Disse
que, em geral, os lagartos deviam ser apanhados depois que a pasta e a raiz
fossem preparadas. Deviam ser apanhados no fim da tarde. Se a pessoa não
fosse íntima dos lagartos, disse ele, podia-se passar dias e dias tentando capturá-
los, sem o conseguir; e a pasta só dura um dia. Então, deu-me uma longa série de
instruções a respeito do processo a seguir depois de unhados os lagartos.
-Uma vez apanhados os bichos, ponha-os em sacos separados. Depois, pegue
o primeiro e fale com ele. Peça desculpas por machucá-lo e peça que o ajude. E
com uma agulha de madeira, costure-lhe a boca. Use fibras de agave e um
espinho de choy a para costurar. Aperte bem os pontos. Em seguida, diga as
mesmas coisas ao outro lagarto e costure-lhe as pálpebras. Quando a noite
começar a cair, você estará pronto. Pegue o lagarto com a boca costurada e
explique-lhe o assunto que você quer saber. Peça que ele vá ver por você; diga-
lhe que teve de lhe costurar a boca para ele voltar depressa para você, sem falar
com mais ninguém. Deixe que ele ande pela pasta, depois de a ter esfregado na
cabeça dele; depois, ponha-o no chão. Se ele for na direção de sua boa forte, o
feitiço terá êxito e será fácil. Se for na direção oposta, não terá sucesso. Se o
lagarto se dirigir para você (sul), pode gerar mais do que uma boa sorte comum;
mas se ele se dirigir para longe de você (norte), o feitiço será muito difícil. Você
poderá até morrer! Por isso, se ele se afastar de você, será um bom momento
para desistir. Nesse ponto, você pode tear a decisão de desistir. Se o fizer, perderá
sua faculdade de comandar os lagartos, mas isso é melhor do que perder a lida.
Por outro lado, pode resolver continuar o feitiço, a despeito de minha
advertência. Se o fizer, o passo seguinte é pegar o outro lagarto e dizer-lhe que
escute a história do irmão depois a descreva a você.
─ Mas como é que o lagarto de boca costurada pode dizer-me o que vê? A
boca dele não foi fechada para evitar que ele fale?
─ Costurara boca do bicho impede que ele conte a história para estranhos.
Diz-se que os lagartos são tagarelas, que param para falar em toda parte. De
qualquer forma, o passo seguinte é besuntar pasta na cabeça do bicho, e depois
esfregar a cabeça dele na sua têmpora direita, conservando a pasta longe do
centro de sua testa. No princípio de sua aprendizagem será uma boa idéia
prender o lagarto a seu ombro direito com um cordão. Então, você não o perderá
nem lhe fará mal. Mas, à medida que você for progredindo e se familiarizar com
o poder da erva-do-diabo, os lagartos vão aprendendo a obedecer às suas ordens
e ficarão empoleirados em seu ombro. Depois de espalhar a pasta em sua
têmpora direita com o lagarto, mergulhe os dedos das duas mãos na papa;
primeiro esfregue-a nas duas têmporas e depois espalhe-a nos dois lados de sua
cabeça. A pasta seca muito depressa, e pode ser aplicada tantas vezes quantas for
necessário. Comece todas as vezes usando primeiro a cabeça do lagarto e depois
seus dedos. Mais cedo ou mais tarde o lagarto que foi ver volta e conta ao irmão
a respeito da viagem, e o lagarto cego a descreve corso se você fosse da espécie
deles. Quando o feitiço terminar, você põe o lagarto no chão e o deixa partir, mas
não espia onda ele vai. Cave um buraco fundo com as suas mãos e enterre nele
tudo o que usou.
Por volta das seis da tarde, Dom Juan raspou o extrato de raiz da panela para
cima de uma pedra chata; havia menos de uma colher de chá de uma goma
amarelada. Pôs a metade numa xícara e juntou um pouco de água amarelada.
Girou a xícara na mão, para dissolver a substância. Depois, deu-me a xícara e
disse-me que bebesse a mistura. Não tinha gosto, mas deixou um sabor meio
amargo em minha boca. A água estava quente demais, e isso me aborreceu. Meu
coração começou a disparar, mas logo me acalmei.
Dom Juan pegou a outra vasilha com a pasta. Esta parecia sólida e tinha uma
superfície lustrosa. Tentei meter o dedo na crosta, mas Dom Juan deu um salto
para mim e empurrou minha mão para longe da vasilha. Ficou muito aborrecido;
disse que era muita tolice de minha parte fazer aquilo, e que se eu realmente
quisesse aprender não devia ser descuidado. Aquilo era o poder, disse ele,
apontando para a pasta, e ninguém sabia dizer ao certo que tipo de poder era
realmente. Já era bem ruim termos de mexer com aquilo para nossos próprios
fins -coisa que não podemos deixar de fazer porque somos homens, disse ele -
mas pelo menos podíamos tratá-lo com o devido respeito. A mistura
assemelhava-se à aveia. Parece que tinha suficiente amido para lhe dar aquela
consistência. Pediu-me para pegar os sacos com os lagartos. Segurou o lagarto
com a boca costurada e com cuidado entregou-o a mim. Fez-me pegá-lo com a
mão esquerda e disse que eu pegasse um pouco da pasta com o dedo e a
esfregasse na cabeça do lagarto e depois pusesse o lagarto na panela e o
segurasse ali até a pasta cobrir todo o corpo dele.
Em seguida, disse para eu tirar o lagarto da panela. Pegou esta e me levou a
um local cheio de pedras, não muito longe da sua casa. Apontou para uma pedra
grande e me disse para sentar diante dela, como se fosse minha planta de Datura
e, segurando o lagarto diante de meu rosto, que eu lhe explicasse de novo o que
queria saber, e pedir-lhe que fosse descobrir a resposta para mim. Aconselhou-
me que dissesse ao lagarto que eu sentia muito ter de lhe causar algum
desconforto, prometendo-lhe que seria bondoso para com todos os lagartos, em
compensação. Depois, disse que eu o segurasse entre o terceiro e quarto dedos de
minha mão esquerda, onde ele uma vez tinha feito um corte, e que eu danças e
volta da pedra fazendo exatamente o que fizera quando tinha replantado a raiz da
erva-do-diabo; perguntou-me se eu me lembrava de tudo o que tinha feito
naquela ocasião. Respondi que sim. Frisou que tudo tinha de ser igualzinho, e que,
se eu não me lembrasse, tinha de esperar até que tudo ficasse claro em minha
cabeça. Avisou-me com veemência que, se eu agisse muito depressa, sem
deliberação, eu me machucaria. Sua última instrução foi no sentido de que eu
colocasse o lagarto de boca costurada no chão e olhasse para ver onde ele ia,
para poder verificar o resultado da experiência. Disse que eu não devia desviar
os olhos do lagarto, nem por um instante, pois era um truque comum dos lagartos
distraírem a gente e depois fugirem. Ainda não estava completamente escuro.
Dom Juan olhou para o céu.
─ Vou deixá-lo sozinho ─ disse ele, afastando-se.
Segui todas as instruções e depois coloquei o lagarto no chão. Ele ficou imóvel
onde eu o colocara. Depois, olhou para mim e correu para as pedras no leste e
desapareceu entre elas.
Sentei-me no chão diante da pedra, como se estivesse em frente de minha
planta. Uma tristeza profunda envolveu-me. Fiquei pensando no lagarto com sua
boca costurada. Pensei em sua estranha viagem e em como me tinha olhado
antes de fugir. Era um pensamento estranho, uma projeção aborrecida. A meu
jeito, eu também era um lagarto, em outra estranha jornada. Meu destino talvez
fosse apenas ver; naquele momento, eu sentia que nunca seria capaz de contar o
que tinha visto. A essa altura, já estava muito escuro. Eu mal podia ver as pedras
a minha frente. Pensei nas palavras de Dom Juan: "O crepúsculo é a fresta entre
os mundos."
Depois de muito hesitar, comecei a seguir os passos determinados. A pasta,
embora parecesse aveia, não tinha a consistência da aveia. Era muito lisa e fria.
Tinha um cheiro especial e forte. Produzia uma sensação de frio na pele e
secava depressa. Esfreguei minhas têmporas onze vezes, sem observar qualquer
efeito. Procurei cuidadosamente perceber qualquer modificação na percepção
ou no estado de espírito, pois nem sabia o que devia antecipar. Na verdade, não
tinha idéia da natureza da experiência, e estava à procura de indícios.
A pasta tinha secado e descascado em parte de minhas têmporas. Ia esfregar
mais, quando percebi que estava sentado de cócoras, como os japoneses. Antes,
estava sentado de pernas cruzadas, e não me lembrava de ter mudado de
posição. Levei algum tempo para perceber plenamente que eu estava sentado no
chão numa espécie de claustro com arcos altos. Achei que eram arcos de tijolos,
mas, ao examiná-los, vi que eram de pedra.
A transição foi muito difícil. Veio tão de repente que eu não estava pronto para
acompanhá-la. Minha percepção dos elementos da visão era difusa, como se eu
estivesse sonhando. E no entanto, os componentes não mudavam. Continuavam
constantes e eu podia parar ao lado de qualquer deles e examiná-los. A visão não
era tão clara nem tão real quanto a provocada pelo peiote. Tinha um caráter
nebuloso, uma qualidade pastel muito agradável.
Pensei se poderia levantar-me ou não, e quando vi já me tinha movido. Estava
no topo de uma escadaria e H., uma amiga minha, estava ao pé da escada. Tinha
os olhos febris e neles havia um brilho de loucura. Ela riu alto e com uma tal
intensidade que se tornava aterradora. Começou a subir as escadas. Eu queria
fugir ou me esconder, pois ela "já tinha sido louca". Foi essa a idéia que me veio
à mente. Escondi-me por detrás de uma coluna e ela passou por mim sem olhar.
“Ela agora vai fazer uma longa viagem" foi outra idéia que ocorreu então; e por
fim, o último pensamento de que me recordo foi: "Ela ri cada vez que está
prestes a endoidecer."
De repente, a cena tornou-se muito clara; não parecia mais um sonho. Era
uma cena comum, mas eu parecia estar olhando através de vidraças. Tentei
tocar uma coluna, mas só senti que não me podia mover; mas eu sabia que
poderia ficar ali o tempo que quisesse, olhando a cena. Eu estava nela, e no
entanto não fazia parte dela.
Experimentei uma barragem de pensamentos e argumentos racionais. Ao que
eu soubesse, eu estava num estado normal de consciência sóbria. Todos os
elementos pertenciam ao temo de meus processos normais. E no entanto eu sabia
que não era um estado comum.
A cena mudou abruptamente. Era de noite. Eu estava no hall de um edifício. A
escuridão dentro do prédio me fez sentir que na cena anterior o Sol tinha sido
lindamente brilhante. No entanto, tinha sido tão comum que na ocasião eu nem
tinha reparado. Quando olhei mais para a nova visão, vi um rapaz saindo de uma
sala, carregando um grande saco de lona nos ombros. Não sabia quem ele era,
embora o tivesse teto uma ou duas vezes. Passou por mim e desceu as escadas.
A, essa altura eu tinha esquecido minha apreensão e meus dilemas racionais.
"Quem é aquele camarada?", pensei. "Por que é que o vi?"
A cena tornou a mudar e eu estava vendo o rapaz danificado livros; ele colava
algumas das páginas juntas, apagava marcas e o mais. Depois, eu o vi
arrumando os livros em num caixote de madeira. Havia uma pilha de caixotes.
Não estavam no quarto dele, e sim num depósito. Outras imagens me vieram à
cabeça, mas não eram claras. A cena tornou-se nublada. Tive uma sensação de
estar girando.
Dom Juan sacudiu-me pelo ombro e eu acordei. Ajudou-me a levantar e nós
voltamos para a casa dele. Tinham-se três horas e meia desde o momento em
que eu comecei a esfregar a pasta em minhas têmporas até o momento em que
acordei, mas o estado de visão não podia ter durado mais e dez minutos. Não
senti nenhum efeito maléfico. Só com fome e sono.
Quinta-feira, 18 de abril de 1963
Ontem, Dom Juan me pediu para descrever minha experiência recente, mas
eu estava com muito sono para poder falar a respeito. Não conseguia concentrar-
me. Hoje, assim que acordei, tornou a pedir.
─ Quem lhe disse que essa moça H. tinha estado louca? ─ perguntou ele,
quando acabei a história.
─ Ninguém. Foi apenas um dos pensamentos que tive.
─ Você acha que eram seus pensamentos?
Respondi-lhe que eram meus pensamentos, embora não tivesse motivo algum
para pensar que H. tinha estado doente. Eram pensamentos estranhos. Pareciam
brotar em minha cabeça não sei de onde. Olhou para mim com curiosidade.
Perguntei-lhe se não me acreditava; ele riu e disse que era costume meu ser
descuidado com o que fazia.
─ O que foi que eu fiz de errado, Dom Juan?
─ Você devia ter escutado os lagartos.
─ Como eu devia ter escutado?
─ O lagartinho no seu ombro estava descrevendo tudo o que o irmão estava
vendo. Estava falando com você. Estava-lhe contando tudo, e você não prestou
atenção. Ao contrário, pensou que as palavras do lagarto eram seus próprios
pensamentos.
─ Mas eram mesmo os meus pensamentos, Dom Juan.
─ Não eram. É esta a natureza desse feitiço. Na verdade, a visão é para ser
escutada, mais do que vista. A mesma coisa aconteceu comigo. Ia avisá-lo
quando me lembrei de que meu benfeitor não me avisou.
─ Sua experiência foi como a minha, Dom Juan?
─ Não. A minha foi uma viagem infernal. Quase morri.
─ Por que foi infernal?
─ Talvez fosse porque a erva-do-diabo não gostasse de mim ou porque eu não
soubesse claramente o que queria perguntar. Como você ontem. Devia estar
pensando naquela moça quando perguntou a respeito dos livros.
─ Não me lembro.
─ Os lagartos nunca erram; consideram todos os pensamentos uma pergunta.
O lagarto voltou e lhe contou coisas a respeito de H. que nunca ninguém poderá
compreender, pois nem mesmo você sabia quais eram seus pensamentos.
─ E a outra visão que tive?
─ Seus pensamentos deviam estar firmes quando você fez pergunta. E é assim
que esse feitiço deve ser conduzido, com clareza.
─ Quer dizer que a visão da moça não deve ser levada a sério?
─ Como pode ser levada a sério se você não sabe que perguntas os lagartinhos
estavam respondendo?
─ Ficaria mais claro para o lagarto se a pessoa só perguntasse uma coisa?
─ Sim. Seria mais claro, se você pudesse firmar-se num pensamento.
─ Mas o que aconteceria, Dom Juan, se a única pergunta não fosse simples?
─ Enquanto seu pensamento for firme, e não se ocupar de outras coisas, ele é
claro para os pequenos lagartos, e então a resposta deles será clara para você.
─ Pode-se fazer mais perguntas aos lagartos, durante a visão?
─ Não. A visão é olhar para tudo o que os lagartos lhe estão dizendo. É por isso
que eu disse que é mais uma visão de ouvir do que de ver. É por isso que lhe pedi
que tratasse de assuntos impessoais. Geralmente, quando a pergunta é a respeito
de pessoas, seu desejo de tocá-las ou falar com elas é forte demais e o lagarto
pára de falar e o feitiço se desfaz. Deve saber muito mais do que sabe agora
antes de tentar ver coisas que lhe dizem respeito pessoalmente. Da próxima vez,
mm de ouvir com atenção. Estou certo de que os lagartos lhe disseram muitas e
muitas coisas, mas que você não estava ouvindo.
Sexta-feira, 19 de abril de 1963
─ O que eram aquelas coisas que eu moí para a pasta, Na Juan?
─ Sementes de erva-do-diabo e os gorgulhos que vivem das sementes. A
medida é um punhado de cada. ─ Encolheu a mão direita para me mostrar a
quantidade.
Perguntei-lhe o que aconteceria se se usasse um dos elementos sozinho, sem
os outros. Respondeu que isso só faria hostilizar a erva-do-diabo e os lagartos.
─ Não se deve hostilizar os lagartos ─ disse ele ─ pois, no dia seguinte, no fim
da tarde, tem de voltar ao local de sua planta. Fale com todos os lagartos e peça
aos dois que o ajudaram em seu feitiço que tornem a aparecer. Procure bem, até
ficar bem escuro. Se não conseguir encontrá-los, tem de tentar de novo no dia
seguinte. Se você for forte, encontrará os dois, e então terá de comê-los, ali
mesmo. E será dotado para sempre da faculdade de ver o desconhecido. Nunca
mais terá de apanhar lagartos para fazer esse feitiço. Desde então eles passarão a
viver dentro de você.
─ O que devo fazer se só encontrar um deles?
─ Se só encontrar um, tem de deixá-lo ir-se, no fim de sua busca. Se o
encontrar no primeiro dia, não o guarde, na esperança de encontrar o outro no
dia seguinte. Isso só fará estragar sua amizade com eles.
─ O que acontece se eu não os encontrar de todo?
─ Acho que isso seria o melhor para você. Quer dizer que você terá de
apanhar dois lagartos toda vez que quiser a ajuda deles, mas significa também
que você está livre.
─ O que quer dizer com livre?
─ Livre de ser escravo da erva-do-diabo. Se os lagartos vão viver dentro de
você, a erva-do-diabo nunca o deixará ir-se.
─ Isso é mau?
─ Claro que sim. Ela o cortará de tudo o mais. Terá de passar a vida cuidando
dela como aliada. Ela é possessiva. Uma vez que o dominar, só há um caminho a
seguir... o caminho dela.
─ E se eu descobrir que os lagartos estão mortos?
─ Se você encontrar um ou ambos mortos, não deve tentar fazer esse feitiço
por algum tempo. Afaste-se por um período. Acho que isso é tudo o que tenho de
lhe dizer; o que lhe falei é a regra. Sempre que você fizer esse feitiço sozinho,
tem de seguir todos os passos que descrevi enquanto se senta em frente de sua
planta. Mais uma coisa. Não pode comer nem beber até terminar o feitiço.

6
O estágio seguinte nos ensinamentos de Dom Juan foi um novo aspecto no
domínio da segunda porção da raiz de Datura. No período decorrido entre os dois
estágios da aprendizagem, Dom Juan só perguntava a respeito do
desenvolvimento de minha planta.
Quinta-feira, 27 de junho de 1963
─ É um bom hábito testar a erva-do-diabo antes de seguir plenamente o
caminho dela ─ disse Dom Juan.
─ Como se testa a planta, Dom Juan?
─ Deve tentar outro feitiço com os lagartos. Já tem todos os elementos
necessários para fazer mais uma pergunta aos lagartos, dessa vez sem a minha
ajuda.
─ E muito necessário que eu faça esse feitiço, Dom Juan?
─ É o melhor meio de testar os sentimentos da erva-do-diabo relação a você.
Esta planta está sempre testando você, de modo que é justo que você também a
ponha à prova, e se, em algum ponto no caminho dela, você achar que por algum
motivo não deve continuar, então deve simplesmente parar.
Sábado, 29 de junho de 1963
Abordei o assunto erva-do-diabo. Queria que Dom Juan me contasse mais a
respeito, e no entanto não queria comprometer-me a participar.
─ A segunda porção é só usada para adivinhar, não é, Dom Juan? -perguntei,
para iniciar a conversa.
─ Não só para adivinhar. A gente aprende o feitiço dos lagartos com a segunda
porção, e ao mesmo tempo a gente põe à prova a erva-do-diabo; mas, na
verdade, a segunda porção é utilizada para outros fins. O feitiço dos lagartos é só
o começo.
─ Então para que é usada, Dom Juan?
Não respondeu. Mudou de assunto bruscamente e perguntou-me de que
tamanho eram as plantas de Datura que cresciam em volta da minha planta. Fiz
um gesto para mostrar o tamanho.
─ Já lhe ensinei como distinguir o macho da fêmea disse Dom Juan. ─ Agora
vá até às suas plantas e me traga ambos. Vá primeiro para a sua planta antiga e
olhe atentamente para o caminho feito pela chuva. A essa altura, ela já deve ter
levado as sementes para longe. Olhe para as gretas (zanjitas) feitas pela
enxurrada e daí verifique a direção da água. Depois veja a planta que cresce
mais afastada da sua. Todas as plantas da erva-do-diabo que crescem no meio
são suas. Mais tarde, quando sementearem, poderá ampliar o tamanho de seu
território seguindo o curso da água de cada planta no caminho.
Deu-me instruções meticulosas sobre como conseguir um instrumento
cortante. O corte da raiz, disse ele, tinha de ser feito da maneira seguinte:
primeiro, eu tinha de escolher a planta que ia cortar e limpar toda a terra em
volta do lugar onde a raiz se unia ao caule. Depois, tinha de executar exatamente
a mesma dança que tinha dançado quando replantei a raiz. Em terceiro lugar,
tinha de cortar fora a haste e deixar a raiz na terra. O último passo era cavar 40
centímetros de raiz. Aconselhou-me que não falasse nem demonstrasse
sentimento algum durante esses atos.
-Você deve levar dois pedaços de pano -disse ele. -Estenda-os no chão e
coloque as plantas neles. Depois, corte-as em pedaços e empilhe-as. A ordem
depende de você; mas deve lembrar-se sempre da ordem que seguiu, pois é
assim que você deve sempre fazê-lo. Traga- me as plantas assim que as tiver.
6 de julho de 1963
Na segunda-feira, 1° de julho, cortei as plantas de Datura que Dom Juan tinha
pedido. Esperei até estar bem escuro para dançar em volta das plantas, pois não
queria que me vissem. Eu estava bem apreensivo. Estava certo de que alguém ia
presenciar meus atos estranhos. Já tinha escolhido as plantas que eu achava que
eram masculina e feminina. Tive de cortar 40 centímetros da raiz de cada uma,
e cavar tudo isso com um pedaço de pau não foi brincadeira. Levei horas. Tive
de acabar o trabalho numa escuridão total, e quando estava pronto para cortá-las
precisei usar uma lanterna. Meu medo original de que alguém pudesse ver-me
era irrisório comparado com o medo de que alguém pudesse reparar na luz nos
arbustos.
Levei as plantas para a casa de Dom Juan na terça-feira, 2 de julho. Abriu os
embrulhos e examinou os pedaços. Disse que ainda teria de me dar as sementes
de suas plantas. Empurrou um almofariz para minha frente. Pegou um pote de
vidro e esvaziou seu conteúdo ─ sementes secas aglomeradas ─ no almofariz.
Perguntei-lhe o que eram, e ele disse que eram sementes comidas pelos
gorgulhos. Havia muitos bichinhos entre as sementes ─ gorgulhos pretos. Falou
que eram bichos especiais, e que tínhamos de tirá-los e pô-los num pote
separado. Entregou-me outro pote, cheio até um terço do mesmo tipo de
gorgulhos. Um pedaço e papel estava metido no pote para não deixar os
gorgulhos escaparem.
─ Da próxima vez você terá de usar os bichinhos de suas plantas ─ disse Dom
Juan. ─ O que tem de fazer é cortar as sementes que tenham buraquinhos; elas
estão cheias de bichos. Abra as sementes e raspe tudo e ponha num pote. Junte
um punhado de bichos e ponha-os noutra vasilha. Trate-os com brutalidade. Não
seja delicado com eles. Meça um punhado das sementes aglomeradas que os
bichos comeram e um punhado do pó de bichos e enterre o resto em qualquer
lugar naquela direção (nesta altura, apontou para sudeste) de sua planta. Depois,
colha sementes boas e secas e guarde-as separadamente. Pode colher quantas
quiser. Sempre poderá usá-las. É uma boa idéia tirar as sementes das favas lá,
para poder enterrar tudo de uma vez.
Dom Juan me disse para moer primeiro as sementes aglomeradas, depois os
ovos de gorgulhos; em seguida os bichos e, por fim, as sementes boas e secas:
Depois de estar tudo triturado num pó fino, Dom Juan pegou os pedaços de
Datura que eu tinha cortado e empilhado. Separou a raiz masculina e embrulhou-
a com cuidado num pedaço de pano. Entregou-me o resto e disse que eu cortasse
tudo em pedacinhos, amassasse- os bem e depois pusesse todo o suco num pote.
Disse que eu tinha de amassá-los na mesma ordem em que os tinha arrumado.
Quando acabei, ele me disse que pegasse uma xícara de água fervendo e a
misturasse com tudo na panela, e depois juntasse mais duas xícaras. Entregou-
me um pedaço de osso bem liso. Misturei a papa com aquilo e levei a panela ao
fogo. Depois, ele disse que tínhamos de preparar a raiz, e que para isso tínhamos
de usar o pilão maior, pois a raiz masculina não podia ser cortada de todo. Fomos
para os fundos da casa. Ele estava com o pilão pronto, e eu amassei a raiz como
já tinha feito antes. Deixamos a raiz de molho na água, exposta ao sereno, e
fomos para dentro.
Disse-me que vigiasse a mistura na panela. Eu devia deixar que ela fervesse
até ficar encorpada -até ficar dura de se mexer. Depois, deitou-se em sua esteira
e foi dormir. A papa já estava fervendo havia pelo menos uma hora quando
reparei que estava ficando cada vez mais dura de mexer. Achei que devia estar
pronta e tirei-a do fogo. Coloquei-a na sacola de linha dependurada do teto e fui
dormir.
Acordei quando Dom Juan se levantou. O sol estava brilhando num céu azul.
Era um dia quente e seco. Dom Juan tornou a comentar que tinha certeza de que
a erva-do-diabo gostava de mim.
Fomos tratar da raiz, e no fim do dia tínhamos um bocado de substância
amarelada no fundo da tigela. Dom Juan despejou a água de cima. Achei que
teso devia ser o fim do processo, mas ele tornou a encher a tigela com água
fervendo.
Pegou a panela com a papa que estava dependurada no telhado. A papa
parecia estar quase seca. Levou a panela para dentro de casa, colocou-a no chão
com cuidado e sentou-se. Neste momento, começou a falar.
─ Meu benfeitor me disse que era permitido misturar a planta com banha. E é
isso que você vai fazer. Meu benfeitor misturou-a com banha para mim, mas,
como já disse, eu nunca fui muito amigo da planta e nunca tentei realmente me
tornar um só com ela. Meu benfeitor me disse que, para obter melhores
resultados, para aqueles que realmente desejam o poder, o certo é misturar a
planta com a banha de um porco-do-mato. A gordura dos intestinos é a melhor.
Mas você é quem escolhe. Talvez o destino resolva que você tome a erva-do-
diabo como aliada, e nesse caso eu lhe aconselho, como meu benfeitor me
aconselhou, a caçar um javali e tirar-lhe a gordura dos intestinos (sebo de tripa).
Em outras épocas, quando a erva-do-diabo era a tal, os brujos iam em caçadas
especiais para conseguir banha dos javalis. Procuravam os machos maiores e
mais fortes; deles tiravam um poder especial, tão especial que era difícil
acreditar, mesmo naquela época. Mas aquele poder está perdido. Não sei nada a
respeito. Nem conheço alguém que saiba. Talvez a própria erva lhe ensine tudo
isso.
Dom Juan mediu um punhado de banha, colocou-a na tigela com a papa seca
e raspou a banha que ficou em sua mão na beirada da tigela. Disse-me que
misturasse o conteúdo até estar tudo liso e bem misturado.
Bati a mistura durante quase três horas. Dom Juan de quando olhava e achava
que ainda não estava boa. Por fim pareceu estar satisfeito. O ar batido para
dentro da pasta lhe dera uma coloração cinza-clara e a consistência de gelatina.
Ele pendurou a tigela do teto, junto da outra tigela. Disse que ia deixa-la ali até o
dia seguinte, porque seriam necessários dois dias para preparar essa segunda
porção. Disse que, enquanto isso, eu não comesse nada. Podia beber água, mas
não sorver nenhum alimento.
No dia seguinte, quinta-feira, 4 de julho, Dom Juan mandou que eu lixiviasse a
raiz quatro vezes. Da última vez que d a água da tigela, ela já estava escura.
Ficamos sentados na varanda. Ele colocou as duas tigelas em frente dele. O
extrato da raiz deu uma colher de chá de uma goma esbranquiçada. Colocou-a
numa xícara e juntou água. Girou a xícara na mão para dissolver a substância e
depois a entregou-me. Disse que eu bebesse tudo o que estava na xícara. Bebi
depressa e depois pus a xícara no chão e me recostei. Meu começou a disparar;
parecia que eu não conseguia respirar. Dom Juan mandou, com naturalidade, que
eu despisse todas as minhas roupas. Perguntei-lhe por que e ele disse ia de me
esfregar com a pasta. Hesitei. Não sabia se me ou não. Dom Juan insistiu,
dizendo que eu me apressasse. Disse que havia muito pouco tempo para estar
desperdiçando-o. Tirei toda a roupa.
Pegou seu pedaço de osso e cortou duas linhas horizontais na superfície da
pasta, desse modo dividindo o conteúdo da tigela em três partes iguais. Depois,
começando do centro da linha superior, cortou uma linha vertical, perpendicular
às outras duas, dividindo a pasta em cinco partes. Apontou para a parte direita
inferior, e disse que aquela era para meu pé esquerdo. A parte acima dela era
para minha perna esquerda. A parte superior, a maior, era para meus órgãos
genitais. A seguinte, abaixo, à esquerda, .era para minha perna direita e a de
baixo à esquerda era para o pé direito. Disse-me que aplicasse a parte da pasta
designada para meu pé esquerdo à sola de meu pé e a esfregasse bem. Depois
ensinou-me a aplicar a pasta à parte interna de toda a minha perna esquerda, em
meus órgãos genitais, no lado de dentro de minha perna direita e por fim na sola
de meu pé direito.
Segui as instruções dele. A pasta estava fria e tinha um cheiro especialmente
forte. Quando acabei de aplicá-la, endireitei o corpo. O cheiro da mistura
penetrou em minhas narinas. Parecia-me sufocante. O odor ativo estava mesmo
me sufocando. Parecia um tipo de gás. Tentei respirar pela boca e falar com
Dom Juan, mas não consegui.
Dom Juan estava olhando para mim, fixamente. Dei um passo em direção a
ele. Minhas pernas pareciam elásticas e compridas, extraordinariamente
compridas. Dei outro passo. As juntas de meus joelhos pareciam flexíveis, como
uma vara de salto; tremiam e vibravam e se contraíam como elástico. Fiz um
movimento para a frente. O movimento de meu corpo era lento e trêmulo; era
mais como um tremor que se adiantava e subia. Olhei para baixo e vi Dom Juan
sentado abaixo de mim, muito abaixo de mim. O impulso me levou mais um
passo à frente, que foi ainda mais elástico e longo do que o anterior. E dali eu me
elevei no ar. Lembro-me de que desci uma vez; então, dei um impulso com os
dois pés, dei um salto para trás e planei de costas. Via o céu escuro acima de
mim e as nuvens passando. Sacudi o corpo, para poder olhar para baixo. Vi a
massa escura das montanhas. Minha velocidade era extraordinária. Meus braços
estavam fixos, dobrados ao lado do corpo. Minha cabeça era a unidade de
direção. Se eu a conservasse dobrada para trás, fazia círculos verticais. Mudava
de direção virando a cabeça para o lado. Eu gozava de uma liberdade e
velocidade como jamais conhecera. A maravilhosa escuridão me dava uma
sensação de tristeza, talvez de saudade. Era como se tivesse encontrado um lugar
ao qual noite. Tentei olhar em volta, noite era serena, e no entanto encerrava
muito poder.
De repente, sabia que estava na hora de descer; era como se me tivessem
dado uma ordem a que eu tinha de obedecer. E comecei a descer como uma
pluma, com movimentos laterais. Esse tipo de movimento me enjoava muito.
Era lento e irregular, como se eu estivesse sendo abaixado por roldanas. Fiquei
enjoado. Minha cabeça doía terrivelmente. Uma espécie de negrume envolveu-
me. Tinha plena consciência de estar penso nele.
A próxima coisa de que me lembro foi a sensação de despertar. Estava na
minha cama, em meu quarto. Sentei-me e a imagem de meu quarto dissolveu-
se. Levantei-me. Estava despido! O movimento de ficar de pé me fez enjoar de
novo.
Reconheci alguns pontos do lugar. Estava a mais ou menos um quilômetro da
casa de Dom Juan, perto do lugar das plantas de Datura dele. De repente, tudo se
focalizou, e percebi que teria de andar até à casa dele, nu. Ser privado de roupas
era uma profunda desvantagem psicológica, mas não havia nada que eu pudesse
fazer para resolver o problema. Pensei em fazer-me uma saia de galhos de
árvores, mas a idéia parecia absurda e, além disso, já estava amanhecendo.
Esqueci de meu desconforto e meu enjôo e comecei a caminhar para a casa.
Estava obcecado com o medo de ser descoberto. Fiquei atento para a presença
de gente e de cachorros. Tentei correr, mas machuquei os pés nas pedrinhas
afiadas. Caminhei devagar. Já estava bem claro. Então, vi alguém andando pela
estrada, e depressa escondi-me atrás das moitas. Minha situação me parecia
ridícula. Um momento antes eu experimentava o prazer inacreditável de voar; no
minuto seguinte estava-me escondendo, encabulado com minha própria nudez.
Pensei em tornar a saltar para a estrada e correr na passando pela pessoa que
pudesse estar-se aproximando. Pensei que ela ficaria tão espantada que, quando
percebesse que era um homem nu, eu já estaria longe. Pensei em tudo isso, mas
não ousei mexer-me.
A pessoa que vinha pela estrada estava pertinho de mim e parou de andar.
Ouvi que chamava meu nome. Era Dom Juan, e estava com as minhas roupas.
Enquanto eu as vestia, ele olhou para mim e riu; riu tanto que também eu acabei
rindo.
Naquele mesmo dia, sexta-feira 5 de julho, no fim da tarde, Dom Juan pediu-
me que narrasse os detalhes da experiência. Com o máximo de cuidado, narrei
todo o episódio.
─ A segunda porção da erva-do-diabo é usada para voar ─ disse ele, quando
terminei. O unguento sozinho não basta. Meu benfeitor diz que é a raiz que dá a
direção e a sabedoria, e é a causa do vôo. A medida que aprende mais, e toma
mais para poder voar, você começa a ver tudo com muita clareza. Pode elevar-
se pelo ar por centenas de quilômetros, para ver o que está acontecendo em
qualquer lugar que queira, ou para desfechar um golpe fatal em seus inimigos
bem longe. Quando se familiarizar com a erva-do-diabo, ela lhe ensinará como
fazer essas coisas. Por exemplo, já lhe ensinou como mudar de direção. Do
mesmo modo, ela lhe ensinará coisas inimagináveis.
─ Como o quê, Dom Juan?
─ Isso eu não posso dizer. Cada homem é diferente. Meu benfeitor nunca me
disse o que ele aprendeu. Disse-me como agir, mas nunca o que via. Isso é só
para a gente.
─ Mas conto-lhe tudo o que vejo, Dom Juan.
vAgora, sim. Mais tarde, não contará. Da próxima vez que você tomar a erva-
do-diabo, você o fará por si, junto de suas próprias plantas, pois é lá que vai voltar
à terra, junto de suas plantas. Lembre-se disso. Foi por isso que eu vim procurá-lo
aqui, junto de minhas plantas.
Ele não disse mais nada e eu adormeci. Quando acordei de noitinha, sentia-
me revigorado. Por algum motivo, eu exsudava uma espécie de satisfação física.
Estava feliz, satisfeito. Dom Juan perguntou-me:
─ Gostou da noite? Ou foi assustadora?
Disse-lhe que a noite tinha sido realmente magnífica.
─ E a sua dor de cabeça? Foi muito ruim? ─ perguntou ele.
─ A dor de cabeça foi tão forte quanto todas as outras sensações. Foi a pior dor
que já tive ─ disse eu.
─ Isso o impediria de querer provar novamente o poder da erva-do-diabo?
─ Não sei. Não o desejo agora, mas posso desejá-lo depois. Não sei mesmo,
Dom Juan.
Havia uma pergunta que eu queria fazer-lhe. Sabia que ele ia esquivar-se, de
modo que esperei que ele mencionasse o assunto; esperei o dia inteiro. Por fim,
antes de partir naquela noite, tive de perguntar-lhe:
─ Voei de verdade, Dom Juan?
─ Foi o que me disse. Não voou?
─ Sei, Dom Juan. Quero dizer, meu corpo voou? Levantei vôo como um
passarinho?
─ Sempre me faz perguntas que não posso responder. Voou. É para isso que
serve a segunda porção da erva-do-diabo. Quando tomar mais dela, vai aprender
a voar perfeitamente. Não é uma coisa simples. Um homem voa com o auxilio
da segunda porção da erva-do-diabo. E só isso que lhe posso dizer. O que quer
saber não faz sentido. Os pássaros voam como pássaros e um homem que tomou
a erva-do-diabo voa como tal (el enverbado vuela así).
─ Assim como os pássaros? (?Así como los pájaros?)
─ Não, voa como um homem que tomou a erva (No, así como los
enverbados).
vEntão, realmente não voei, Dom Juan. Voei em minha imaginação, só em
minha mente. Onde estava meu corpo?
─ Nas moitas ─ respondeu ele, mordaz, mas logo caiu na gargalhada outra
vez. ─ O problema é que você só entende as coisas de um jeito. Não acha que
um homem voa; e no entanto, um brujo pode mover-se mil quilômetros por
segundo para ver o que está acontecendo. Pode desfechar um golpe em seus
inimigos a distâncias imensas. Então, ele voa ou não?
─ Sabe, Dom Juan, você e eu estamos orientados de maneira diferente.
Suponhamos, para argumentar, que um de meus colegas tivesse estado aqui
comigo quando tomei a erva-do-diabo. Ele teria podido ver-me voando?
─ Lá vem você outra vez com suas perguntas de que aconteceria se... Não
adianta falar assim. Se seu amigo, ou qualquer outra pessoa, tomar a segunda
porção da erva, só vai poder voar. Agora, se só estivesse olhando para você,
poderia ter visto você voando, ou não. Depende da pessoa.
─ Mas o que quero dizer, Dom Juan, é que, se você e eu olharmos para um
pássaro e o virmos voando, concordamos que está voando. Mas se dois de meus
amigos me tivessem visto voando como voei ontem, concordariam em que eu
estava voando?
─ Bom, podiam ter concordado. Você concorda que os pássaros voam porque
já os viu voando. Voar é coisa comum, com os pássaros. Mas não vai concordar
com outras coisas que os pássaros fazem, pois nunca viu pássaros fazendo tais
coisas. Se seus amigos soubessem a respeito dos homens voarem com a erva-do-
diabo, então eles haviam de concordar.
─ Vamos dizer a coisa em outras palavras, Dom Juan. O que quero dizer é
que, se estivesse amarrado a uma pedra, com uma corrente pesada, ainda assim
eu teria voado, pois meu corpo nada tinha a ver com meu vôo.
Dom Juan olhou para mim, incrédulo.
-Se você se amarrar a uma pedra ─ disse ele ─ acho que terá de voar
segurando a pedra com sua corrente pesada.
7
Reunir os ingredientes e prepará-los para a mistura do fumo constituíam um
ciclo anual. No primeiro ano Dom Juan ensinou-me o processo. Em dezembro de
1962, o segundo ano, quando o ciclo se renovou, Dom Juan apenas me dirigiu; eu
mesmo reuni os ingredientes, preparei-os e os guardei até o ano seguinte.
Em dezembro de 1963 um novo ciclo teve início pela terceira vez. Dom Juan
então me mostrou domo combinar os secos que eu colhera e preparara no ano
anterior. Pôs a mistura do fumo numa bolsinha de couro e saímos mais uma vez
para colher os vários componentes para o ano seguinte.
Dom Juan raramente mencionou o "fuminho" durante o se passou entre as
duas colheitas. Cada vez que eu ia, porém, ele me dava seu cachimbo para eu
segurar, e o processo de "me familiarizar" com o cachimbo seguiu havia
descrito. Colocou o cachimbo em minhas mãos gradativamente. Exigia uma
concentração completa e t naquele ato e dava-me orientações explicitas.
Qualquer mal jeito com o cachimbo resultaria inevitavelmente em minha morte
ou na dele, dizia.
Assim que terminamos o terceiro ciclo da coleta e preparação, Dom Juan
começou a falar do fumo como aliado pela primeira vez, em mais de um ano.
Segunda-feira, 23 de dezembro de 1963
Estávamos voltando de carro para a casa dele depois de colher umas flores
amarelas para a mistura. Eram um dos ingredientes necessários. Observei que
naquele ano não tínhamos seguido a mesma ordem de colher os ingredientes que
no ano anterior. Ele riu e disse que o fumo não era temperamental nem
mesquinho, como a erva-do-diabo. Para o fumo, a ordem da coleta era sem
importância; o que era necessário era que o homem que usasse a mistura fosse
preciso e exato.
Perguntei a Dom Juan o que iríamos fazer com a mistura que ele tinha
preparado e me dado para guardar. Respondeu que era minha, e acrescentou que
eu tinha de utiliza-la o mais breve possível. Perguntei quanto era necessário de
cada vez. O saquinho que ele me dera continha mais ou menos três vezes a
quantidade que uma bolsinha de fumo normal conteria. Disse-me que eu teria de
usar todo o conteúdo de meu saco em um ano, e a quantidade que eu precisaria
cada vez que fumasse era assunto pessoal.
Queria saber o que aconteceria se eu nunca acabasse o saco. Dom Juan disse
que nada aconteceria; o fumo não exigia nada. Ele mesmo não precisava mais
fumar, e no entanto todos os anos preparava uma nova mistura. Depois,
emendou-se e disse que raramente tinha de fumar. Perguntei-lhe o que fazia com
a mistura que não fumava, mas ele não respondeu. Disse que a mistura não
prestava mais, se não fosse usada dentro de um ano.
Nesse ponto, tivemos uma longa discussão. Não formulei minhas perguntas
direito, e as respostas dele pareciam confusas. Eu queria saber se a mistura
perderia suas propriedades alucinógenas, ou seu poder, depois de um ano, assim
tornando necessário o ciclo anual, mas ele insistiu que a mistura não perderia seu
poder em época alguma. A única coisa que acontecia, falou, era que um homem
não precisaria mais dela, pois teria preparado um novo suprimento; tinha de
dispor do que sobrasse da mistura velha de determinada maneira, que Dom Juan
não me quis revelar nesse ponto.
Terça-feira, 24 de dezembro de 1963
─ Disse que não precisa mais fumar, Dom Juan?
─ Sim, porque o fumo é meu aliado e não preciso mais fumar. Posso chamá-
lo a qualquer momento, em qualquer lugar.
─ Quer dizer que ele vem mesmo que você não fume?
─ Quero dizer que vou até ele livremente.
─ Também poderei fazer isso?
─ Se conseguir fazer dele seu aliado, sim.
Terça-feira, 31 de dezembro de 1963
Na quinta-feira, 26 de dezembro, tive minha primeira experiência com o
aliado de Dom Juan, o fumo. O dia todo andei de carro com ele, e trabalhei para
ele. Voltamos para casa à tardinha. Mencionei que não tínhamos comido nada o
dia todo. Não se preocupou nem um pouco; em vez disso, começou a dizer-me
que era essencial que eu me familiarizasse com o fumo. Disse que eu tinha de
experimentá-lo eu mesmo para compreender sua importância como aliado.
Sem me dar oportunidade de dizer coisa alguma, Dom Juan me disse que ia
acender o cachimbo dele para mim, naquele momento. Procurei dissuadi-lo,
argumentando que não acreditava estar preparado. Disse-lhe que achava que não
tinha 0 o cachimbo por bastante tempo. Mas ele angu u que não me restava mais
muito tempo para aprender, eu tinha de usar o cachimbo muito breve. Pegou o
cachimbo da bolsinha e afagou-o. Sentei-me no chão ao lado dele e tentei
desesperadamente ficar enjoado e desmaiar – fazer qualquer coisa para adiar
esse passo inevitável.
O quarto estava quase escuro. Dom Juan tinha acendido s querosene e o
colocara no canto. Geralmente o mantinha o quarto numa semi-escuridão
repousante, a luz amarela sempre calmante. Mas, dessa vez, a luz fraca e
inusitadamente vermelha; era enervante. Desamarrou seu saquinho de mistura
sem tirá-lo do cordão preso pescoço. Pegou o cachimbo pertinho dele, colocou-o
de sua camisa e pôs um pouco da mistura dentro do Fez com que eu observasse
aquilo, dizendo que, se mistura se derramasse, cairia dentro da camisa.
Don Juan encheu três quartos do fornilho e depois amarrou o saquinho com
uma das mãos, enquanto segurava o cachimbo com a outra. Pegou um pratinho
de barro, deu-o a mim, e pediu que fosse buscar uns carvõezinhos do fogo lá
fora. Fui para os fundos da casa e peguei um punhado de carvão do fogão de
tijolo. Voltei depressa para o quarto. Eu estava muito preocupado. Era como um
pressentimento.
Sentei-me junto de Dom Juan e entreguei-lhe o pratinho. Olhou para o prato e
calmamente disse que os carvões eram grandes demais. Queria menores, que
coubessem dentro do fornilho do cachimbo. Voltei para o fogão e peguei outros.
Segurou o prato de carvões e colocou-o diante de si. Estava sentado de pernas
cruzadas e metidas embaixo dele. Olhou para mim pelo canto do olho e
debruçou-se para a frente, até o queixo quase encostar nos carvões. Segurou o
cachimbo na mão esquerda e, com um movimento muito rápido de sua mão
direita, pegou um pedacinho de carvão em brasa e colocou-o no fornilho do
cachimbo; depois, sentou reto e, segurando o cachimbo nas duas mãos, levou-o à
boca e tirou três baforadas. Estendeu os braços para mim e, num cochicho forte,
disse-me que pegasse o cachimbo com as duas mãos e o fumasse.
A idéia de recusar o cachimbo e fugir me passou pela cabeça por um
momento; mas Dom Juan tornou a dizer, ainda num sussurro, que eu pegasse o
cachimbo e fumasse. Olhei para ele. Seus olhos estavam fitos em mim. Mas seu
olhar era amigo, preocupado. Era claro que eu fizera a escolha havia muito
tempo; não tinha alternativa senão fazer o que ele dizia.
Peguei o cachimbo e quase o deixei cair. Estava quente! Levei-o a minha
boca com muito cuidado, pois imaginava que seu calor fosse intolerável a meus
lábios. Mas não senti calor algum.
Dom Juan me disse para inspirar. A fumaça entrou em minha boca e pareceu
circular por ela. Era pesada! Parecia que eu estava com a boca cheia de massa.
A imagem me ocorreu, embora nunca tivesse estado com a boca cheia de
massa. A fumaça também parecia mentol e o interior de minha boca, de repente,
ficou frio. Foi uma sensação refrescante. "Outra vez! Outra vez!", ouvi Dom Juan
sussurrando. Senti a fumaça penetrar livremente dentro de meu corpo, quase
sem meu controle. Não precisei que Dom Juan me incitasse mais.
Mecanicamente, continuei a tragar.
De repente, Dom Juan debruçou-se e pegou o cachimbo de minhas mãos.
Com delicadeza, bateu as cinzas no prato com os carvões, depois molhou o dedo
com saliva e passou-o dentro do fornilho para limpar os lados. Soprou várias
vezes pelo cabo. Vi que ele guardava o cachimbo em sua capa. Eu concentrava
meu interesse em seus atos.
Depois que ele acabou de limpar o cachimbo e guardá-lo, ficou olhando para
mim e percebi que todo meu corpo estava dormente, mentolado. Meu rosto
estava pesado e meu queixo dolorido. Não conseguia ficar com a boca fechada,
mas não estava salivando. A boca estava seca e ardendo, e no entanto eu não
estava com sede. Comecei a sentir um calor desusado pela minha cabeça. Um
calor frio! Meu hálito parecia cortar as narinas e o lábio superior cada vez que eu
expirava. Mas não queimava; doía como um pedaço de gelo.
Dom Juan sentou-se a meu lado, à minha direita, e sem se mexer segurou a
capa do cachimbo de encontro ao chão, como que mantendo-o lá à força.
Minhas mãos estavam pesadas. Meus braços estavam pendurados, puxando meus
ombros para baixo. Meu nariz estava pingando. Limpei-o com as costas da mão,
e o lábio superior desapareceu! Enxuguei o rosto, e toda a pele desapareceu!
Estava derretendo! Sentia-me como se minha pele estivesse mesmo se
derretendo. Levantei-me de um salto e procurei agarrar alguma coisa – qualquer
coisa -para me apoiar. Estava sentindo um terror como nunca havia
experimentado antes. Agarrei-me a uma vara que Dom Juan mantém espetada
no chão no centro do quarto. Fiquei ali de pé por um momento, e depois virei-me
para olhar para ele. Continuava ali sentado imóvel, segurando o cachimbo,
olhando para mim.
Minha respiração estava dolorosamente quente (ou fria?). Estava-me
sufocando. Inclinei a cabeça para a frente para repousa-la na vara, mas parece
que não a encontrei, e minha cabeça continuou a se mover para baixo, além do
ponto onde estava a vara. Parei quando já estava quase no chão. Endireitei-me. A
vara estava ali defronte de meus olhos! Novamente tentei apoiar a cabeça nela.
Tentei controlar-me e ficar consciente e conservei os olhos abertos ao me
debruçar para tocar a vara com a testa. Estava a alguns centímetros de meus
olhos, mas, quando encostei a cabeça nela, tive a sensação estranha de estar
atravessando-a.
Numa busca desesperada por uma explicação racional, concluí que meus
olhos estavam modificando a profundidade e que a vara devia estar a uns três
metros de distância, embora eu a visse diretamente diante de meu rosto. Então,
concebi um meio lógico, racional, de verificar a posição da vara. Comecei a me
mover de lado em volta dela, um passo de cada vez. Meu argumento era que,
andando em volta da vara assim, não poderia descrever um círculo de mais de
um metro e meio de diâmetro; se a vara realmente estivesse a três metros de
mim, ou fora de meu alcance, chegaria um momento em que estaria de costas
para ela. Eu esperava que, naquele momento, a vara desaparecesse, pois
realmente estaria atrás de mim.
Então, passei a fazer um círculo em volta da vara, mas ela permaneceu diante
de meus olhos enquanto eu dava a volta. Num acesso de frustração, agarrei-a
com ambas as mãos, mas minhas mãos passaram através dela. Estava agarrando
o ar. Calculei com cuidado a distância entre a vara e eu. Imaginei que devia ser
de um metro. Isto é, meus olhos a percebiam como um metro. Por um
momento, brinquei com a percepção de profundidade, mexendo a cabeça de um
lado para outro, focalizando um olho de cada vez na vara e depois no fundo do
quarto. Segundo minha avaliação da profundidade, a vara estava inegavelmente
diante de mim, talvez a um metro de distância. Estendendo os braços para
proteger minha cabeça, investi com toda a força. A sensação foi a mesma...
atravessei a vara. Dessa vez, caí ao comprido no chão. Tornei a levantar-me. E
levantar-me foi talvez o ato mais estranho de todos os que pratiquei naquela noite.
Levantei-me por pensamento! Para levantar-me, não utilizai meus músculos
nem meu esqueleto como estou acostumado a fazer, pois não tinha mais controle
sobre eles. Soube disso no momento em que caí ao chão. Mas minha curiosidade
a respeito da vara era tal que me "levantei por pensamento", numa espécie de
ação reflexa. E antes de entender plenamente que não podia mover-me, já
estava de pé.
Pedi ajuda a Dom Juan. Num momento, gritei freneticamente em altos
brados, mas Dom Juan não se mexeu. Continuou a olhar para mim, pelo canto do
olho, como se não quisesse virar a cabeça para me olhar de frente. Dei um passo
em direção a ele, mas, em vez de andar para a frente, cambaleei para trás e caí
de encontro à parede. Eu sabia que tinha batido de encontro à mesma com as
costas, no entanto não parecia dura; eu estava completamente suspenso numa
substância macia e esponjosa -era a parede. Meus braços estavam estendidos
para os lados, e lentamente meu corpo todo pareceu afundar-se na parede. Só
conseguia olhar para a frente, para o quarto. Dom Juan ainda me estava
espiando, mas não fez qualquer movimento para me ajudar. Fiz um esforço
supremo para tirar meu corpo da parede, mas ele só afundou cada vez mais. No
meio de um terror indescritível, senti que a parede esponjosa se fechava sobre
meu rosto. Tentei fechar os olhos, mas eles estavam abertos e fixos.
Não me lembro de mais nada do que aconteceu. De repente Dom Juan estava
na minha frente, pertinho. Estávamos no outro quarto. Vi a mesa dele e o fogão
com o fogo aceso o canto do olho, distingui a cerca do lado de fora da casa. Via
tudo muito claramente. Dom Juan tinha trazido a lanterna de querosene e a
dependurara da viga no meio do quarto. Tentei olhar em outra direção, mas meus
olhos só estavam preparados para olhar bem em frente. Não distinguia, nem
sentia, qualquer parte de meu corpo. Minha respiração ,não podia ser notada.
Mas meus pensamentos estavam extremamente lúcidos. Estava claramente
consciente de tudo o que se passava diante de mim. Dom Juan acercou-se de
mim e clareza do espírito acabou. Alguma coisa pareceu parar de mim. Não
havia mais pensamentos. Vi Dom Juan aproximando e odiei-o. Queria
estraçalhá-lo. Podia tê-lo naquele momento, mas não conseguia mexer-me. A
princípio senti vagamente uma pressão na cabeça, mas isso desapareceu. Só
reatava uma coisa... uma raiva avassaladora contra Dom Juan. Eu o via a alguns
centímetros de Queria despedaçá-lo com as unhas. Senti que estava gemendo.
Alguma coisa dentro de mim começou a convulsionar-se. Ouvi Dom Juan
falando comigo. Sua voz era suave e calmante e, pareceu-me, infinitamente
agradável. Chegou ainda mais perto e começou a recitar uma canção espanhola
de ninar.
“Senhora Santana, por que chora o bebê? Por uma maçã que perdeu. Eu lhe
darei uma. Darei duas. Uma para o menino e uma para você". ("Senora Santa
Ana, porque llora el nino? Por una manzana que se le ha perdido. Yo Ie dará una.
Yo le daré dos. Una para el niño y otra para vos!") Um calor invadiu-me. Era um
calor do coração e dos sentimentos. As Dom Juan eram um eco distante.
Lembravam as recordações esquecidas da infância.
A violência que eu sentira antes desapareceu. O ressentimento transformou-se
num anseio Terça-feira, um afeto alegre por Dom Juan. Falou que eu devia
esforçar-me por não adormecer; que eu não tinha mais corpo e que estava livre
para transformar-me naquilo que quisesse. Deu um passo atrás. Meus olhos
estavam num nível normal, como se eu estivesse de pé diante dele. Estendeu-me
os dois braços e disse que eu entrasse dentro deles.
Ou eu avancei, ou ele se aproximou de mim. As mãos dele estavam já no
meu rosto, nos meus olhos, embora eu não as sentisse.
— Entre dentro de meu peito — ouvi-o dizer. Senti como se o estivesse
engolindo. Era a mesma sensação de esponjosidade da parede.
Então, ouvi a voz dele me ordenando para olhar e ver. Não o distinguia mais.
Aparentemente meus olhos estavam abertos, pois via lampejos de luz num
campo vermelho; era como se eu estivesse olhando para uma luz de olhos
fechados. Então, meus pensamentos se ligaram de novo. Voltaram numa rápida
barragem de imagens -rostos, cenas. Cenas sem qualquer coerência apareciam e
sumiam. Era como um sonho rápido, em que as imagens se sobrepõem e
mudam. Os pensamentos começaram a diminuir em número e intensidade e
logo desapareceram de novo. Só havia uma consciência de afeição, de estar
feliz. Não conseguia distinguir formas nem luz. De repente, fui puxado para
cima. Senti distintamente que estava sendo levantado. E estava livre, movendo-
me com uma extraordinária leveza e velocidade na água ou no ar. Nadava como
uma enguia; contorcia-me e virava e me alçava e baixava à vontade. Sentia um
vento frio soprando em volta de mim, e comecei a flutuar como uma pluma,
para diante e para trás, para baixo, e para baixo e para baixo.
Sábado, 28 de dezembro de 1963
Acordei ontem no fim da tarde. Dom Juan me disse que eu tinha dormido
calmamente durante quase dois dias. Tinha uma dor de cabeça de rachar. Bebi
um pouco d’água e fiquei enjoado. Sentia-me cansado, extremamente cansado, e
depois de comer tornei a dormir.
Hoje, sentia-me novamente perfeitamente descansado. Dom Juan e eu
conversamos sobre minha experiência com o fuminho. Pensando que ele queria
que eu contasse a história toda como eu sempre fazia, comecei a descrever
minhas impressões, mas ele me fez parar, dizendo que não era preciso. Disse-me
que, na verdade, eu não tinha feito nada, e que tinha adormecido logo, de modo
que não havia nada para contar.
— E aquilo tudo que senti? Não é importante? — insisti.
— Não, não com o fumo. Mais tarde, quando você aprender a viajar,
conversaremos; quando aprender a entrar nas coisas.
— A gente "entra" mesmo nas coisas?
— Não se lembra? Você entrou e atravessou aquela parede.
— Acho que eu estava fora de meu juízo.
— Não estava, não.
— Agiu da mesma maneira quando fumou pela primeira vez, Dom Juan?
— Não, não foi igual. Temos personalidades diferentes.
— Como foi que você se comportou?
Dom Juan não respondeu. Reformulei a pergunta e tornei a indagar. Mas ele
disse que não se lembrava de suas experiências e que minha pergunta era o
mesmo que perguntar a um pescador o que ele sentira da primeira vez que
pescara.
Falou que o fumo como aliado era único; e lembrei-lhe de ele também dissera
que Mescalito era único. Argumentou que cada qual era único, mas que eram
diferentes em qualidade.
— Mescalito é um protetor porque fala com você e pode guiar seus atos —
disse ele. — Mescalito ensina a maneira certa de viver. E você pode vê-lo porque
ele está fora de você. O fumo por outro lado, é um aliado. Transforma você e lhe
dá poder sem jamais mostrar a sua presença. Não pode conversar com ele. Mas
sabe que ele existe porque leva embora seu corpo e o torna leve como o ar. No
entanto, você nunca o vê. Mas está ali, dando-lhe poder para realizar coisas
inimagináveis, como quando lhe tira seu corpo.
— Senti mesmo como se tivesse perdido meu corpo, Dom Juan.
— E perdeu.
— Quer dizer, eu não tinha mesmo corpo?
— O que é que você acha?
— Bem, não sei. Só posso dizer-lhe o que eu sentia.
— É só isso que existe, na realidade... o que você sentia.
— Mas como é que você me via, Dom Juan? Como é que eu lhe aparecia?
— Como eu o via não importa. É como na ocasião em agarrou a vara. Sentia
que não estava ali e deu a volta à vara para se certificar de que estava lá. Mas
quando saltou em cima dela, tornou a sentir que não estava ali, realmente.
— Mas você me via como estou agora, não?
— Não! Não estava como está agora! — É verdade! Isso admito. Mas tinha
meu corpo, não tinha, embora não pudesse senti-lo?
— Não! Que diabo! Não tinha um corpo como o que tem hoje! — Então o
que aconteceu com meu corpo?
— Eu pensava que você entendesse. O fuminho levou seu corpo.
— Mas para onde foi?
— Como, afinal, você espera que eu saiba disso?
Era inútil insistir em tentar obter uma explicação "racional". Disse-lhe que não
queria discutir, nem fazer perguntas bobas, mas se eu aceitasse a idéia de que era
possível perder meu corpo, perderia toda minha racionalidade.
Respondeu que eu estava exagerando, como sempre, e que não tinha perdido
nem ia perder nada por causa do fuminho.
Terça-feira, 28 de janeiro de 1964
Perguntei a Dom Juan o que ele achava da idéia de dar o fumo a qualquer
pessoa que desejasse ter a experiência.
Respondeu, indignado, que agir assim seria o mesmo que matá-la, pois ela não
teria ninguém para guiá-la. Pedi a Dom Juan para explicar o que queria dizer.
Falou que eu estava ali, vivo e conversando, porque ele me trouxera de volta.
Tinha restaurado meu corpo. Sem ele eu nunca teria acordado.
— Como foi que restaurou meu corpo, Dom Juan?
— Mais tarde aprenderá isso, mas terá de aprender a fazê-lo sozinho. É por
isso que eu quero que você aprenda o máximo que puder enquanto ainda estou
por aqui. Já desperdiçou muito tempo fazendo perguntas burras sobre bobagens.
Mas talvez não seja o seu destino aprender tudo a respeito do fuminho.
— Bem, então o que devo fazer?
— Deixe que o fumo lhe ensine tudo o que puder aprender.
— O fumo também ensina?
— Claro que ensina.
— Ensina como Mescalito?
— Não, não é um mestre como Mescalito. Não mostra as mesmas coisas.
— Mas então o que é que o fumo ensina?
— Ensina-lhe como usar seu poder, e a saber que deve tantas vezes quantas
puder.
— Seu aliado é muito assustador, Dom Juan. Foi diferente de tudo o que já
experimentei. Achei que tinha perdido o juízo.
Por algum motivo, foi essa a imagem mais impressionante que me veio à
cabeça. Considerava o acontecimento global do ponto de vista especial de ter tido
outras experiências alucinógenas com as quais compará-lo, e a única coisa que
me ocorria, repetidamente, era que, com o fumo, a gente perde o juízo.
Dom Juan não fez caso de minha imagem, dizendo que o que eu sentia era seu
poder inimaginável. E para lidar com aquele poder, disse ele, é preciso viver
uma vida forte. A idéia de vida forte não só pertence ao período de preparação,
como também acarreta a atitude do homem depois da experiência. Disse que o
fumo é tão forte que a gente só pode enfrentá-lo com força; senão, a vida da
pessoa seria despedaçada.
Perguntei-lhe se o fumo tinha o mesmo efeito sobre todo mundo. Respondeu
que produzia uma transformação, mas não em todo mundo.
— Então, qual o motivo especial por que o fumo produziu a transformação em
mim? perguntei.
— Acho que esta é uma pergunta muito tola. Seguiu obedientemente todos os
passos necessários. Não é mistério que o fumo o tenha transformado.
Pedi-lhe novamente para me contar a respeito de meu aspecto. Queria saber
como tinha ficado, pois a idéia de um corpo que ele incutira em minha mente
era, compreensivelmente, insuportável.
Ele disse que, para dizer a verdade, tivera medo de olhar para mim; sentiu-se
do mesmo modo que seu benfeitor devia ter-se sentido ao vê-lo fumando pela
primeira vez.
— Por que teve medo? Eu estava assim tão assustador? — indaguei.
— Nunca havia visto ninguém fumando antes.
— Nunca viu seu benfeitor fumando?
— Não.
— Nunca viu nem a si mesmo?
— Como poderia ver-me?
— Poderia fumar diante de um espelho.
Não respondeu, mas voltou-se para mim e sacudiu a cabeça. Tornei a
perguntar se era possível olhar num espelho. Respondeu que seria possível,
embora inútil, pois a pessoa provavelmente morreria de susto, se não de outra
coisa.
— Então a gente deve ficar assustador — falei.
— A vida toda pensei sobre isso mesmo — disse ele. _ No entanto, nunca fiz
perguntas, nem espiei no espelho. Nem me lembrei disso.
— Então, como posso descobrir?
— Terá de esperar, assim como eu fiz, até você dar o fumo a outra pessoa...
se algum dia o dominar, é claro. Então verá como fica o homem. É essa a regra.
— O que aconteceria se eu fumasse em frente a uma câmara e tirasse um
retrato de mim?
— Não sei. O fumo provavelmente se voltaria contra você. Mas suponho que
o considere tão inofensivo que pensa que pode brincar com ele.
Disse-lhe que não pretendia brincar, mas que ele já me havia dito que o fumo
não exigia estágios, e pensei que não havia mal em querer saber qual a aparência
da pessoa fumando. Corrigiu-me, explicando que tinha querido dizer que não
havia necessidade de seguir uma ordem determinada, como no caso da erva-do-
diabo; o que era necessário com o fumo era a atitude adequada, disse ele. Desse
ponto de vista, a gente tinha de ser exato ao seguir a regra. Deu-me um exemplo,
explicando que não fazia diferença qual o ingrediente da mistura a ser apanhado
primeiro, contanto que a quantidade fosse correta.
Perguntei se haveria algum mal em contar a terceiros a respeito de minha
experiência. Respondeu que os únicos segredos que nunca podiam ser revelados
eram como fazer a mistura, como se mover e como voltar; os outros assuntos
não tinham importância.

8
Meu último encontro com Mescalito foi um conjunto de quatro sessões
realizadas em quatro dias consecutivos. Dom Juan chamou essa longa sessão um
mitote. Era uma cerimônia de pey oteros e aprendizes. Havia dois homens mais
velhos, mais ou menos da idade de Dom Juan, um dos quais e cinco homens mais
moços, inclusive eu. A cerimônia teve lugar no Estado de Chihuahua, no México
próximo à fronteira do Texas. Consistia em cantar e ingerir o peiote durante a
noite. Na parte do dia, serventes mulheres, que ficavam fora dos limites do local
dá cerimônia, forneciam água aos homens, e somente uma amostra de alimentos
rituais eram consumidos cada dia.
Sábado, 12 de setembro de 1964
Na primeira noite da cerimônia, quinta-feira, 3 de setembro, tomei oito botões
de peiote. Não tiveram efeito sobre mim, ou, se tiveram, foi muito ligeiro. Fiquei
de olhos fechados a maior parte da noite. Sentia-me muito melhor assim. Não
dormi, nem fiquei cansado. No fim da sessão, o canto extraordinário. Por um
momento, senti-me exaltado e tive vontade de chorar, mas quando terminou o
canto a sensação sumiu.
Nós todos nos levantamos e fomos para fora. As mulheres nos deram água.
Alguns dos homens gargarejaram com ela; outros a beberam. Os homens não
falavam nada, mas as mulheres conversavam e riam o dia todo. Os alimentos
rituais eram servidos ao meio-dia. Consistiam em milho cozido.
Ao pôr-do-sol, na sexta-feira, 4 de setembro, começou a segunda sessão. O
líder cantou sua canção de peiote e recomeçou o ciclo de cânticos peiotes e o
consumo de botões de peiote. Terminou de manhã, cada homem cantando sua
própria canção, em uníssono com os outros.
Quando saí, não vi tantas mulheres quanto na véspera. Alguém me deu água,
mas eu não estava mais preocupado com o ambiente. Mais uma vez eu ingerira
oito botões, mas o efeito fora diferente.
Deve ter sido no fim da sessão que a cantoria se acelerou muito, todo mundo
cantando ao mesmo tempo. Percebi que alguma coisa ou alguém do lado de fora
da casa queria entrar. Não sabia se a cantoria era para evitar que a coisa entrasse
ou para atraí-la para o interior.
Era o único que não tinha uma canção. Todos pareciam olhar para mim com
curiosidade, especialmente os mais jovens. Fiquei encabulado e fechei os olhos.
Então, percebi que eu podia ver o que se passava muito melhor de olhos
fechados. Essa idéia ocupou toda minha atenção. Fechei os olhos e vi os homens
em minha frente. Abri os olhos, e a imagem continuava igual. O ambiente era
exatamente igual para mim, de olhos fechados ou abertos.
Da repente, tudo desapareceu, ou se desfez, e apareceu a figura viril de
Mescalito que eu vira dois anos antes. Ele estava sentado a certa distância, de
perfil para mim. Olhei-o fixamente, mas ele não olhou para mim; não se virou
nem uma vez.
Achei que estava fazendo alguma coisa errada, alguma coisa que o estava
afastando. Levantei-me e fui para junto dele, para perguntar-lhe. Mas meu
movimento dissolveu a imagem. Começou a desaparecer e os vultos dos homens
que estavam comigo se superpuseram sobre ela. Tornei a ouvir a cantoria alta e
frenética.
Fui para os arbustos próximos e andei um pouco. Tudo estava muito nítido.
Reparei que eu estava vendo no escuro, mas dessa vez importava muito pouco. O
importante era saber por que Mescalito me evitava.
Voltei para junto do grupo e quando ia entrar na casa, ouvi um ronco pesado e
senti um tremor. A terra estava tremendo. Era o mesmo ruído que eu ouvira no
vale de peiote dois arcos atrás.
Tornei a correr para dentro dos arbustos. Sabia que Mescalito estava lá, e que
eu ia encontrá-lo. Mas ele não estava. Esperei até de manhã e me juntei aos
outros pouco antes de terminar a sessão.
O mesmo ritual foi repetido no terceiro dia. Não estava cansado mas dormi
durante a tarde.
Na noite de sábado, 5 de setembro, o velho cantou sua canção peiote para
recomeçar o ciclo. Naquela sessão, só mastiguei um botão e não escutei
nenhuma das canções, nem prestei atenção a nada do que se passou. Desde o
primeiro momento, todo meu ser se concentrou unicamente em um ponto. Sabia
que uma coisa muito importante para o meu bem-estar estava faltando.
Enquanto os homens cantavam, pedi a Mescalito, em voz alta, que me
ensinasse uma canção. Meu pedido misturou-se com os cantos altos dos homens.
Imediatamente, ouvi uma canção em meus ouvidos. Virei-me e sentei-me de
costas para o grupo e escutei. Ouvi a letra e a melodia várias vezes e as repeti até
ter aprendido toda a canção. Era uma canção comprida, em espanhol. Então,
cantei-a para o grupo, várias vezes. E pouco depois uma nova canção insinuou-se
nos meus ouvidos. Quando chegou a manhã, tinha cantado ambas as canções
inúmeras vezes. Sentia-me renovado, revigorado.
Depois de nos darem água, Dom Juan deu-me um saco e nós todos fomos
para os morros. Foi uma caminhada longa e fatigante até uma meseta. Ali vi
várias plantas de peiote. Mas por algum motivo, não quis olhar para elas. Depois
de atravessarmos o pequeno planalto, o grupo se espalhou. Dom Juan e eu
voltamos, colhendo botões de peiote, tal como tínhamos feito da primeira vez que
o ajudei.
Voltamos no fim da tarde do domingo, 6 de setembro. De noite o líder reabriu
o ciclo. Ninguém disse nada, mas eu sabia perfeitamente que era a última
reunião. Dessa vez, o velho cantou uma canção nova. Foi passado em volta um
saco com botões frescos de peiote. Era a primeira vez que eu provava um botão
fresco. Era polpudo mas duro de mascar. Parecia uma fruta verde e dura e era
mais amargo do que os botões secos. Pessoalmente, achei o peiote fresco muito
mais vivo.
Mastiguei 14 botões. Contei-os com cuidado. Não terminei o último, pois ouvi
o ruído especial que marcava a presença de Mescalito. Todos cantavam
freneticamente, e eu sabia que Dom Juan e todos os outros tinham ouvido o
barulho. Recusei-me a pensar que sua reação fosse uma resposta a um sinal dado
por um deles, só para me enganar.
Naquele momento, senti uma grande onda de sabedoria me invadir. Uma
suposição que eu alimentava havia três anos transformou-se em certeza. Levara
três anos para compreender, ou melhor, para descobrir, que o que quer que
esteja encerrado no cacto Lophophora williamsii não tinha nada a ver comigo
para existir como entidade; existia por si lá fora, solta. Então eu o soube.
Cantei febrilmente, até não poder mais pronunciar as palavras. Sentia como se
as canções estivessem dentro de meu corpo, sacudindo-me incontrolavelmente.
Tinha de sair e encontrar Mescalito, senão explodiria. Encaminhei-me para o
campo de peiote. Continuei a cantar minhas canções. Sabia que eram minhas,
individualmente — prova indiscutível de minha singularidade. Sentia cada passo;
eles ressoavam na terra; seu eco produzia a euforia indescritível de ser homem.
Cada uma das plantas de peiote no campo brilhava com uma luz azulada e
cintilante. Uma das plantas tinha uma luz muito clara. Sentei-me diante dela e
cantei-lhe minhas canções. Enquanto eu cantava, Mescalito saiu de dentro da
planta -o mesmo vulto de homem que eu já vira antes. Olhou para mim. Com
grande audácia, para uma pessoa do meu temperamento, cantei para ele. Ouvi o
som de flautas, ou do vento, uma vibração musical conhecida. Pareceu dizer-me,
como dissera dois anos antes: "O que você quer?"
Falei bem alto. Disse que eu sabia que havia algo de errado em minha vida e
meus atos, mas que não conseguia descobrir o que fosse. Implorei-lhe que me
dissesse o que havia de errado comigo e também para me dizer seu nome, para
eu poder chamá-lo quando precisasse dele. Olhou para mim, alongou a boca
como uma trompa, até ela alcançar minha orelha, e depois me disse seu nome.
De repente, vi meu próprio pai de pé no meio do campo de peiote; mas o
campo desaparecera e a cena era minha velha casa, o lar de minha infância.
Meu pai e eu estávamos de pé ao lado de uma figueira. Abracei meu pai e
depressa comecei a contar-lhe coisas que nunca tinha podido dizer antes. Todos
meus pensamentos eram concisos e coerentes. Era como se não tivéssemos
tempo e eu tivesse de dizer tudo de uma vez. Falei coisas arrasadoras a respeito
de meus sentimento para com ele, coisas que eu nunca teria podido exprimir, em
circunstâncias normais.
Meu pai não disse nada. Só ficou ouvindo e depois foi puxado, ou sugado.
Fiquei sozinho outra vez. Chorei de remorso e tristeza.
Passei pelo campo de peiote chamando o nome que Mescalito me ensinara.
Alguma coisa surgiu de uma luz estranha, como de estrela, numa planta de
peiote. Era um objeto comprido e luminoso — um bastão de luz do tamanho de
um homem. Por um momento, iluminou todo o campo com uma luz intensa,
amarelada ou âmbar; depois iluminou todo o céu, criando um espetáculo
maravilhoso e portentoso. Achei que ia ficar cego, se continuasse a olhar; cobri
os olhos e enterrei a nos braços.
Tive uma idéia clara de que Mescalito me havia dito comer mais um botão de
peiote. Pensei: "Não posso fazer isso, pois não tenho faca para cortá-lo." — Coma
um do chão — disse-me ele, do mesmo modo estranho.
Deitei-me de bruços e mastiguei a ponta de uma planta. Aquilo me acendeu.
Encheu todos os cantos de meu corpo com calor e clareza. Tudo estava vivo.
Tudo tinha detalhes delicados e complicados, e no entanto tudo era tão simples.
Eu estava em toda parte; podia ver para cima e para baixo e em volta, tudo ao
mesmo tempo.
Aquela sensação especial durou o suficiente para eu tomar conhecimento
dela. Então, mudou para um terror opressivo, um terror que não me veio de
repente, mas rapidamente. A princípio, meu mundo maravilhoso de silêncio foi
abalado por ruídos agudos, mas não me preocupei. Depois, os ruídos foram se
tornando mais fortes e eram ininterruptos, como se me estivessem envolvendo. E
aos poucos perdi a sensação de estar flutuando num mundo tão diferenciado,
indiferente e belo. Os ruídos se tornaram passadas gigantescas. Alguma coisa
enorme respirava e se movia em volta de mim. Achei que me estava caçando.
Corri e escondi-me debaixo de um rochedo e procurei ver dali o que é que me
perseguia. Em dado momento, saí de meu esconderijo para olhar, e meu
perseguidor, fosse quem fosse, avançou. Era como uma alga marinha. Lançou-
se sobre mim. Pensei que seu peso fosse esmagar-me, mas encontrei-me dentro
de um cano, ou cavidade. Vi claramente que a alga não tinha coberto toda a
superfície do solo em volta de mim. Ainda restava um pouco de terra livre
debaixo do rochedo. Comecei a rastejar para baixo dele. Vi imensos pingos de
líquido caindo da alga. Eu "sabia" que ela estava segregando ácido digestivo a fim
de me dissolver. Um pingo caiu no meu braço; tentei esfregar o ácido com pó e
apliquei saliva, enquanto cavava mais. Em certo momento, fiquei quase
vaporoso. Estava sendo empurrado para cima, para uma luz. Achei que a alga
me dissolvera. Vagamente, vi uma luz que se tornava mais forte; estava saindo de
debaixo da terra e por fim irrompeu no que reconheci como sendo o sol
erguendo-se por detrás dos montes.
Aos poucos, comecei a recuperar meus processos sensoriais normais. Deitei-
me de bruços com o queixo sobre meus braços cruzados. A planta de peiote
diante de mim começou a iluminar-se de novo e, antes que eu pudesse mexer os
olhos, apareceu novamente a luz comprida. Pairou sobre mim. Sentei-me. A luz
tocou em meu corpo todo com uma força tranquila, e depois rolou e
desapareceu.
Corri até o lugar onde estavam os outros homens. Todos voltamos para a
cidade. Dom Juan e eu ficamos mais um dia com Roberto, o líder de peiote.
Dormi o tempo todo que passamos lá. Quando já íamos embora, os rapazes que
tinham tomado parte nas sessões de peiote foram procurar-me. Abraçaram-me,
um por um, e riram, encabulados. Cada qual se apresentou. Conversei horas com
eles, sobre tudo menos as sessões de peiote.
Dom Juan disse que estava na hora de partirmos. Os rapazes me abraçaram
de novo.
— Volte — disse um deles.
— Já estamos esperando por você — acrescentou outro.
Fui embora devagar, procurando ver os homens mais velhos, mas nenhum
estava lá.
Quinta-feira, 10 de setembro de 1964
Contar uma experiência a Dom Juan sempre me obrigava a relembrá-la
passo a passo, o melhor que eu pudesse. Parecia ser este o único meio de me
lembrar de tudo.
Hoje, contei-lhe os detalhes de meu último encontro com Mescalito. Ouviu
minha história atentamente até o ponto em que Mescalito me disse seu nome.
Então, Dom Juan me interrompeu.
— Agora está por si — disse ele. — O protetor o aceitou. De agora em diante,
lhe serei de pouca ajuda. Não me precisa contar mais nada a respeito de seu
relacionamento com ele. Já sabe o nome dele; e nem seu nome nem suas
relações com você devem ser mencionados para qualquer ser vivo.
Insisti que queria contar-lhe todos os detalhes da experiência, pois não fazia
sentido para mim. Disse-lhe que precisava da ajuda dele para interpretar o que
eu havia visto. Respondeu que eu podia fazer isso sozinho, que era melhor
começar a pensar por mim. Argumentei que estava interessado em ouvir as
opiniões dele, porque eu levaria muito tempo para chegar a opiniões próprias, e
não sabia como proceder.
— Veja as canções, por exemplo — disse eu. — O que significam?
— Só você pode decidir sobre isso — respondeu. – Como vou saber o que
significam? Só o protetor pode contar-lhe isso, assim como só ele pode ensinar-
lhe suas canções. Se eu fosse contar-lhe o que significam, seria o mesmo que
você aprender as canções de outra pessoa.
— O que quer dizer com isso, Dom Juan?
— Você pode saber quem são os impostores ouvindo as pessoas cantando as
canções do protetor. Só as canções com alma são dele e foram ensinadas por ele.
As outras são cópias das canções dos outros homens. As vezes, as pessoas são
assim, enganadoras. Cantam as canções dos outros sem nem saber o que as
mesmas dizem.
Falei que fazia tenção de perguntar para que se usavam as canções.
Respondeu que as canções que eu tinha aprendido era para chamar o protetor e
que sempre devia usá-las em conjunto com o nome dele, para chamá-lo. Depois,
Mescalito provavelmente me ensinaria outras canções para outras finalidades,
disse Dom Juan.
Perguntei-lhe, então, se achava que o protetor me havia aceito plenamente.
Ele riu, como se achasse minha pergunta boba. Disse que o protetor me aceitara
e fizera questão que eu soubesse que ele me aceitara, mostrando-se a mim como
uma luz, por duas vezes. Dom Juan parecia estar muito impressionado com o fato
de eu ter visto a luz duas vezes. Frisou esse aspecto de meu encontro com
Mescalito.
Disse-lhe que não sabia como seria possível ser aceito pelo protetor e no
entanto ficar aterrorizado por ele.
Dom Juan ficou muito tempo sem responder. Parecia estar confuso. Por fim,
disse:
— Mas é tão claro. O que ele queria é tão claro que não sei como é que você
pode deixar de entender.
— Tudo ainda é. incompreensível para mim, Dom Juan.
— Leva tempo para realmente ver e compreender o que Mescalito quer dizer;
deve pensar em suas lições até elas ficarem claras.
Sexta feira, 11 de setembro de 1964
Mais uma vez insisti para que Dom Juan interpretasse minhas experiências
visionárias. Despistou um pouco. Depois, falou como se já estivéssemos
conversando a respeito de Mescalito.
— Não vê como é tolo perguntar se ele é uma pessoa com quem se pode
conversar? disse Dom Juan. — Ele não se parece com nada que você já tenha
visto. É como um homem, mas, ao mesmo tempo, não é nada como um homem.
É difícil explicar isso a pessoas que não sabem nada sobre ele e que querem
saber tudo a seu respeito de repente. E depois, suas lições são tão misteriosas
quanto ele mesmo. Que eu saiba, ninguém pode prever seus atos. Se lhe fizer
uma pergunta, ele lhe mostra o caminho, mas não lhe conta a respeito da mesma
maneira que você e eu conversamos. Agora entende o que ele faz?
— Não creio que eu tenha dificuldade em entender isso. O que não consigo
decifrar é o significado dele.
— Pediu-lhe para lhe dizer o que há de errado com você, e ele lhe deu o
quadro completo. Não pode haver engano! Não pode dizer que não entendeu.
Não foi uma conversa e, no entanto, foi. Depois, fez-lhe outra pergunta, e ele lhe
respondeu exatamente da mesma maneira. Quanto ao que ele queria dizer, não
estou certo de entendê-lo, pois você resolveu não me dizer qual foi sua pergunta.
Repeti com cuidado as perguntas que me lembrava de ter feito; coloquei-as na
ordem em que as fizera: "Estou fazendo o que é certo? Estou no caminho certo?
O que devo fazer da minha vida?" Dom Juan disse que as perguntas que eu
formulara eram simples palavras; era melhor não pronunciar as perguntas, e sim
fazê-las de dentro. Disse-me que o protetor querido dar-me uma lição; e para
provar que queria dar uma lição, e não assustar-me para eu fugir, ele se
mostrara duas vezes como luz.
Falei que ainda assim não podia entender por que Mescalito me aterrorizava,
se me aceitava. Lembrei a Dom Juan que, segundo suas declarações, ser aceito
por Mescalito implicava que sua forma era constante e não mudava da felicidade
para o pesadelo. Dom Juan tornou a rir de mim e disse eu pensasse sobre a
pergunta que tinha no coração quando falei com Mescalito, então eu próprio
havia de compreender a lição.
Pensar na pergunta que eu tivera em meu "coração" era um problema difícil.
Disse a Dom Juan que tinha tido muitas coisas em mente. Quando perguntei se
estava no caminho certo eu queria dizer: Tenho um pé em cada um dos dois
mundos? Qual o mundo certo? Que rumo minha vida deve tomar?
Dom Juan ouviu minhas explicações e concluiu que eu não tinha uma visão
clara do mundo, e que o protetor me dera uma lição lindamente clara. Ele disse:
— Você acha que há dois mundos para você... dois caminhos. Mas só existe
um. O protetor mostrou-lhe isso com uma clareza inacreditável. O único mundo
possível para você é o mundo dos homens, e esse mundo você não pode resolver
largar. É um homem! O protetor lhe mostrou o mundo da felicidade, onde não há
diferença entre as coisas porque lá não ninguém que indague pela diferença. Mas
esse não é o mundo dos homens. O protetor o sacudiu dali para fora e lhe
mostrou como é que o homem pensa e luta. Este é o mundo do homem! E ser
um homem é estar condenado a esse mundo. Você tem a presunção de crer que
vive em dois mundos, mas isso é apenas vaidade. Só existe um único mundo para
nós. Somos homens, e temos de seguir o mundo dos homens satisfeitos.
— Creio que foi esta a lição.

9
Dom Juan aparentemente queria que eu trabalhasse o mais possível com a
erva-do-diabo. Essa atitude estava em desacordo com sua propalada aversão
pelo poder. Ele próprio explicou o fato dizendo que estava próximo o momento
em que eu teria de fumar de novo, e que então já deveria ter adquirido um
melhor conhecimento do poder da erva-do-diabo.
Sugeriu várias vezes que eu devia pelo menos testar a erva-do-diabo por meio
de mais uma feitiçaria com os lagartos. Cogitei da idéia por muito tempo. A
insistência de Dom Juan aumentou dramaticamente, até sentir-me obrigado a
atender ao pedido dele. E um dia resolvi fazer uma adivinhação a respeito de uns
objetos roubados.
Segunda-feira, 28 de dezembro de 1964
No sábado, 19 de dezembro, cortei a raiz de Datura. Esperei até estar bem
escuro para executar minha dança em volta da planta. Preparei o extrato da raiz
durante a noite e, no domingo, por volta das seis da manhã, fui ao local de minha
Datura. Sentei-me diante da planta. Tinha tomado nota cuidadosamente dos
ensinamentos de Dom Juan sobre o processo. Tornei a ler minhas anotações e vi
que não era obrigado a moer as sementes ali. Por algum motivo, o simples fato
de estar diante da planta me dava uma rara estabilidade emocional, uma clareza
de pensamentos ou um poder de me concentrar em meus atos que eu
normalmente não possuía.
Segui todas as instruções meticulosamente, calculando o tempo de modo que a
pasta e a raiz ficassem prontas no fim da tarde. Por volta das cinco horas, estava
empenhado em pegar um par de lagartos. Durante uma hora e meia tentei todos
os métodos que me ocorreram, mas fracassei em todas as tentativas.
Estava sentado defronte da planta de Datura, tentando imaginar uma maneira
prática de atingir meu propósito, quando de repente lembrei-me de que Dom
Juan dissera que é preciso conversar com os lagartos. A princípio, senti-me
ridículo falando com os bichos. Era como estar encabulado ao falar diante de
uma platéia. Mas a sensação logo desapareceu e continuei a falar. Estava quase
escuro. Levantei uma pedra. Debaixo dela havia um lagarto. Tinha o aspecto de
estar dormente. Apanhei-o. E então vi que havia outro lagarto duro debaixo de
outra pedra. Eles nem se contorceram.
Costurar a boca e os olhos foi a tarefa mais difícil. Reparei que Dom Juan
tinha dado um sentido de irrevogabilidade meus atos. A atitude dele era que,
quando um homem começa um ato, não há meio de parar. No entanto, se eu
tivesse querido parar, não havia nada que me impedisse. Talvez eu não quisesse
parar.
Soltei um dos lagartos e ele foi numa direção nordeste — presságio de uma
experiência boa, porém difícil. Prendi o outro lagarto a meu ombro e besuntei as
têmporas conforme o ordenado. O lagarto estava duro; por um momento, pensei
que tivesse morrido, e Dom Juan não me dissera o que devia fazer se isso
acontecesse. Mas o lagarto estava só dormente.
Bebi a poção e esperei. Não senti nada de extraordinário. Comecei a esfregar
a pasta em minhas têmporas. Apliquei-a 25 vezes. Depois, mecanicamente,
como se eu estivesse distraído, espalhei-a repetidamente por toda a testa. Percebi
meu engano e depressa limpei a pasta. Minha testa estava molhada de suor;
fiquei febril. Uma ansiedade intensa me dominou, pois Dom Juan me avisara
sempre de que não passasse a pasta na testa. O medo transformou- se numa
sensação de completa solidão, uma sensação de estar condenado. Estava ali
sozinho. Se alguma coisa de ruim ia acontecer-me, não havia ninguém para me
ajudar. Queria fugir. Tinha uma sensação alarmante de indecisão, de não saber o
que fazer. Um mundo de pensamentos me passou pela cabeça, numa velocidade
extraordinária. Reparei que eram pensamentos meio estranhos; isto é, eram
estranhos no sentido de que pareciam surgir de maneira diferente de
pensamentos comuns. Sei a maneira como penso. Meus pensamentos têm uma
ordem definida que é minha, e qualquer desvio é perceptível.
Um dos pensamentos estranhos foi sobre uma declaração feita por um autor.
Lembro- me vagamente de que era mais como uma voz, ou alguma coisa dita
em algum lugar nos fundos. Aconteceu tão depressa que me assustou. Parei para
pensar nele, mas transformou-se num pensamento comum. Estava certo de ter
lido a declaração, mas não conseguia lembrar- me do nome do autor. De
repente, lembrei-me de que era Alfred Kroeber. Então, outro pensamento
estranho apareceu e "disse" que não era Kroeber, e sim Georg Simmel quem
fizera tal declaração. Insisti que era Kroeber, e quando vi estava discutindo
comigo mesmo. E tinha esquecido da sensação de estar condenado.
Minhas pálpebras estavam pesadas, como se eu tivesse tomado comprimidos
para dormir. Embora eu nunca tivesse tomado essas coisas, foi a imagem que me
ocorreu. Estava adormecendo. Queria ir para meu carro e entrar nele, mas não
consegui mover-me.
Depois, de repente, acordei, ou melhor, senti claramente que tinha acordado.
Meu primeiro pensamento foi a respeito da hora. Olhei em volta. Não estava em
frente da planta de Datura. Displicentemente, aceitei o fato de estar tendo mais
uma experiência de adivinhação. Eram 12:35 por um relógio acima de minha
cabeça. Sabia que era de tarde.
Vi um rapaz carregando uma pilha de papéis. Eu estava quase tocando-o. Vi as
veias do pescoço dele pulsando e ouvi batidas rápidas de seu coração. Eu estava
absorto no que via e, até então, não tinha consciência da qualidade de meus
pensamentos. Então, ouvi uma "voz" no meu ouvido descrevendo a cena, e
percebi que a "voz" era o pensamento estranho em minha cabeça.
Fiquei tão absorto em escutar que a cena perdeu seu interesse visual para
mim. Ouvi a voz em meu ouvido direito, acima de meu ombro. Ela realmente
criava a cena, descrevendo-a. Mas obedecia à minha vontade, pois eu podia
pará-la a qualquer momento e examinar os detalhes do que dizia à minha
vontade. "Ouvi-vi" toda a sequência dos atos do rapaz. A voz continuou a explicá-
los detalhadamente, mas, por algum motivo, a ação não era importante. A
vozinha é que era a questão extraordinária. Três vezes, no curso da experiência,
tentei virar- me para ver quem estava falando. Tentei virar a cabeça
completamente para a direita, ou virar de repente para ver se havia alguém ali.
Mas cada vez que o fazia, minha visão se turvava. Pensei: "O motivo por que não
me posso virar é que a cena não está no reino da realidade normal". E esse
pensamento era meu.
Daí em diante, concentrei minha atenção apenas na voz. Parecia vir de meu
ombro. Era perfeitamente clara, embora fosse uma vozinha fraca. Mas não era
voz de criança nem de falsete, e sim a voz de um homem em miniatura.
Tampouco era minha voz. Supus que fosse inglês, o que eu estava ouvindo.
Sempre que tentava propositadamente pilhar a voz, ela parava totalmente, ou
abaixava, e a cena desaparecia. Pensei imagem. A voz era como a imagem
criada por partículas de poeira nas pestanas, ou os vasos sanguíneos na córnea do
olho, uma forma de verme que pode ser vista enquanto a gente não olha
diretamente para ela; mas no momento em que a gente procura olhá-la, sai de
foco com o movimento do globo ocular.
Desinteressei-me completamente da ação. Enquanto escutava, a voz tornou-se
mais complexa. O que eu pensava ser uma voz, era mais como alguma coisa
cochichando idéias em meu ouvido. Mas isso não era certo. Alguma coisa estava
pensando por mim. Os pensamentos eram fora de mim. Eu sabia que era assim,
porque podia conter as minhas idéias e as idéias do “outro” ao mesmo tempo.
Em certo ponto, a voz criou cenas representadas pelo rapaz, que nada tinham
a ver com minha pergunta originária sobre os objetos perdidos. O rapaz fazia
coisas muito complexas. A ação se tornara importante de novo e não dei mais
atenção a voz. Comecei a perder a paciência; eu queria parar. “Como posso fazer
isso parar?", pensei. A voz em meu ouvido disse que eu devia voltar à garganta.
Perguntei como, e a voz respondeu que eu devia pensar em minha planta.
Pensei em minha planta. Geralmente, sentava-me em frente dela. Já fizera
isso tantas vezes que foi bem fácil visualiza-la. Acreditei que vê-la, como a vi
naquele momento, era mais outra alucinação, mas a voz dizia que eu estava "de
volta”! Esforcei-me para escutar. Só havia silêncio. A planta de Datura ira diante
de mim parecia tão real quanto tudo o mais que eu havia visto, mas podia tocá-la,
podia mover-me.
Levantei-me e fui para meu carro. O esforço me deixou exausto; sentei-me e
fechei os olhos. Estava tonto e com vontade de vomitar. Sentia um zumbido nos
ouvidos.
Alguma coisa deslizou para meu peito. Era o lagarto, Lembrei-me da
advertência de Dom Juan, para soltá-lo. Voltei para a planta e desprendi o
lagarto. Nem queria ver se estava vivo ou morto. Quebrei o pote de barro com a
pasta e chutei um pouco de terra por cima. Entrei em meu carro e adormeci.
Quinta-feira, 24 de dezembro de 1964
Hoje, narrei toda a experiência a Dom Juan. Como sempre, escutou sem me
interromper. No final, tivemos o seguinte diálogo:
— Fez uma coisa muito errada.
— Eu sei. Foi um erro muito estúpido, um acidente.
— Não há acidentes quando se trata da erva-do-diabo. Disse-lhe que ela o
poria à prova o tempo todo. Na minha opinião, ou você é muito forte, ou a erva
realmente gosta de você. O centro da testa é só para os grandes brujos, que
sabem como tratar o poder dela.
— O que costuma acontecer quando o homem esfrega a testa com a pasta,
Dom Juan?
— Se o homem não for um grande brujo, nunca voltará da viagem.
— Já esfregou a pasta na testa, Dom Juan?
— Nunca! Meu benfeitor disse que muito poucas pessoas voltam dessa
viagem. O homem poderia partir por meses, e teria de ser tratado por outros.
Meu benfeitor falou que os lagartos podiam levar o homem até o fim do mundo e
mostrar-lhe os segredos mais maravilhosos, se solicitados.
— Conhece alguém que já tenha feito essa viagem?
— Sim, meu benfeitor. Mas nunca me ensinou como se volta.
— E assim tão difícil voltar, Dom Juan?
— É, sim. É por isso que seu ato é realmente surpreendente para mim. Tinha
passos a seguir, e temos de seguir certos passos, pois é nos passos que o homem
encontra força. Sem eles, não somos nada.
Ficamos calados durante horas. Ele parecia estar absorto numa meditação
profunda.
Sábado, 26 de dezembro de 1964
Dom Juan perguntou-me se eu tinha procurado os lagartos. Disse-lhe que sim,
mas que não os conseguira encontrar. Perguntei-lhe o que teria acontecido se um
dos lagartos morresse enquanto o segurava. Respondeu que a morte de um
lagarto seria um acontecimento infeliz. Se o lagarto de boca costurada tivesse
morrido a qualquer momento, não haveria mais razão para continuar com o
feitiço, disse ele. Também teria significado que os lagartos tinham retirado sua
amizade e eu teria de desistir de aprender a respeito da erva-do-diabo muito
tempo.
— Por quanto tempo, Dom Juan?
— Dois anos ou mais.
— O que aconteceria se o outro lagarto tivesse morrido?
— Se o segundo lagarto morresse, você estaria em perigo real. Estaria
sozinho, sem um guia. Se morresse antes de começar o feitiço, você poderia
parar; mas se parasse, também teria de abandonar de vez a erva-do-diabo. Se o
lagarto morresse enquanto estivesse em seu ombro, depois de começar o feitiço,
teria de continuar com ele, e isso seria mesmo loucura.
— Por que seria uma loucura?
— Porque nessas condições, nada faz sentido. Está sozinho, sem um guia,
vendo coisas assustadoras e sem nexo.
— O que quer dizer "coisas sem nexo"?
— Coisas que vemos sozinhos. Coisas que vemos quando não temos direção.
Quer dizer que a erva-do-diabo está procurando livrar-se de você e finalmente
expulsando-o.
— Conhece alguém que já tenha experimentado isso?
— Conheço, sim. Eu. Sem a sabedoria dos lagartos, fiquei maluco.
— O que viu, Dom Juan?
— Uma porção de tolices. Que mais haveria de ver, sem direção?
Segunda-feira, 28 de dezembro de 1964
— Você me disse, Dom Juan, que a erva-do-diabo põe os homens a prova. O
que queria dizer com isso?
— A erva-do-diabo é como uma mulher, e como mulher, lisonjeia os homens.
Prepara armadilhas para eles a cada passo. Fez isso com você, quando o forçou a
passar a pasta na testa. Há de tentar de novo, e você provavelmente cairá. Estou-
lhe advertindo. Não a tome com paixão, a erva-do-diabo é apenas um dos
caminhos para os segredos de um homem de conhecimento. Há outros
caminhos. Mas a armadilha dela é fazê-lo crer que o caminho dela é o único.
Digo que é inútil desperdiçar a vida num caminho, especialmente se esse
caminho não tiver coração.
— Mas como é que sabe quando o caminho não tem coração, Dom Juan?
— Antes de segui-lo, você faz a pergunta: esse caminho tem coração? Se a
resposta for não, você o saberá, e então deve escolher outro caminho.
— Mas como saberei ao certo se um caminho tem ou não coração?
— Qualquer pessoa sabe isso. O problema é que ninguém faz a pergunta; e
quando o homem afinal descobre que tomou um caminho sem coração, o
caminho está pronto para matá-lo. Nesse ponto muito poucos homens conseguem
parar para pensar e deixar o caminho.
— Como devo fazer para perguntar direito, Dom Juan?
— Pergunte, apenas.
— Quero dizer, existe um método apropriado, para não mentir a mim mesmo,
acreditando que a resposta é sim quando na verdade é não?
— Por que havia de mentir?
— Talvez porque no momento o caminho seja agradável.
— Isso é tolice. Um caminho sem coração nunca é agradável. Tem de
trabalhar muito até para segui-lo. Por outro lado, um caminho com coração é
fácil; não o faz trabalhar para gostar dele.
De repente, Dom Juan mudou de assunto e rudemente apresentou-me a idéia
de que eu gostava da erva-do-diabo. Tive de confessar que tinha pelo menos uma
preferência por ela.
Perguntou o que eu achava do aliado dele, o fumo, e tive de lhe dizer que a
simples idéia dele me assustava barbaramente.
— Já lhe disse que, para escolher um caminho, você deve estar livre do medo
e da ambição. Mas o fumo o cega de medo, e a erva-do-diabo o cega de
ambição.
Argumentei que a gente precisa de ambição até para tomar algum caminho, e
que a afirmação dele, de que a gente tinha de ser livre de ambição, não tinha
sentido. Uma pessoa tem de ter ambição para poder aprender.
— O desejo de aprender não é ambição — disse ele. – É nosso destino como
homens querer saber, mas procurar a erva-do-diabo é querer o poder, e isso é
ambição, pois você não está querendo saber. Não deixe que a erva-do-diabo o
segue. Já o fisgou. Engoda os homens e lhes dá uma sensação de poder; ela os faz
sentir que podem fazer coisas que nenhum homem comum pode fazer. Mas isso
é a armadilha dela. E em seguida o caminho sem coração se volta contra os
homens e os destrói. Não custa muito morrer, e procurar a morte é não procurar
nada.
10

No mês de dezembro de 1964 Dom Juan e eu fomos colher as várias plantas


necessárias para fazer a mistura do fumo. Era o quarto ciclo. Dom Juan apenas
supervisionava meus atos. Aconselhava-me a andar devagar, a olhar e pensar
antes de colher qualquer planta.
Assim que os ingredientes estavam todos colhidos e guardados, aconselhou-
me a me encontrar de novo com seu aliado.
Quinta-feira, 31 de dezembro de 1964
— Agora que sabe um pouco mais a respeito da erva-do-diabo e do fumo,
pode dizer mais claramente qual dos dois prefere — disse Dom Juan.
— O fumo realmente me assusta, Dom Juan. Não sei bem por quê, mas não
tenho um bom sentimento a respeito.
— Gosta da lisonja, e a erva-do-diabo o lisonjeia. Como uma mulher, ela o
faz sentir-se bem. O fumo, por outro lado, é o poder mais nobre; tem o coração
mais puro. Não engoda os homens nem os aprisiona, nem ama nem odeia. Só o
que quer é a força. A erva-do-diabo também necessita de força, mas de um tipo
diferente. Fica-se mais perto da virilidade em relação às mulheres. Ao contrário,
a força exigida pelo fumo é a do coração. Você não tem isto! Mas muito poucos
homens o têm. É por isso que lhe recomendo que aprenda mais a respeito do
fumo. Ele revigora o coração. Não é como a erva-do-diabo, cheio de paixões,
ciúmes e violência. O fumo é constante. Não precisa preocupar-se em esquecer
alguma coisa no processo.
Quarta-feira, 27 de janeiro de 1965
Na terça-feira, 19 de janeiro, tornei a fumar a mistura alucinógena. Tinha dito
a Dom Juan que estava muito apreensivo quanto ao fumo, e que ele me
apavorava. Respondeu que eu devia experimentá-lo novamente para poder
julgá-lo com justiça.
Fomos para o quarto dele. Eram quase duas horas da tarde. Apanhou o
cachimbo. Fui pegar os carvões, e ficamos sentados, um defronte do outro. Falou
que ia aquecer o cachimbo e despertá-lo e que, se eu olhasse bem, podia ver
como ardia. Levou o cachimbo aos lábios umas três ou quatro vezes o sugou.
Esfregou-o com carinho. De repente, meneou a cabeça, quase
imperceptivelmente, fazendo-me um sinal para ver o despertar do cachimbo.
Olhei, mas não consegui ver.
Deu-me o cachimbo. Enchi o fornilho com minha mistura, e depois peguei
um carvão em brasa com uma pinça que eu fizera de um pregador de roupa de
madeira e que tinha guardado para aquela ocasião. Dom Juan olhou para minha
pinça e começou a rir. Vacilei um momento e o carvão ficou grudado na pinça.
Tive medo de bater com eles no cachimbo, e tive de cuspir no carvão para
apagá-lo.
Dom Juan virou a cabeça e cobriu corpo estava-se sacudindo. Por um
momento pensei que estivesse chorando, porém estava rindo, quieto.
A ação foi suspensa por muito tempo; então, rapidamente pegou um carvão,
colocou-o no fornilho e mandou que eu fumasse. Era preciso fazer um esforço
enorme para sugar a mistura; ela parecia estar muito compacta. Depois de
experimentar uma vez, senti que tinha sugado o pó fino para dentro de minha
boca, que ficou logo dormente. Vi o brilho do fornilho mas não sentia a fumaça
como a de um cigarro. No entanto tinha a sensação de estar inalando alguma
coisa, que primeiro me enchia os pulmões e depois descia para encher o resto de
meu corpo.
Contei 20 inalações, e depois a contagem não interessava mais. Comecei a
transpirar; Dom Juan olhou-me fixamente e ele dizia. Tentei dizer “Está bem”,
mas, em vez disso, fiz um ruído estranho, uivante, que continuou a ressoar depois
de fechar a boca. O som espantou Dom Juan, que teve outro acesso de riso. Eu
quis fazer que "sim" com a cabeça, mas não podia mover-me.
Dom Juan abriu minhas mãos delicadamente e tirou-me o cachimbo. Mandou
que me deitasse no chão, mas que não adormecesse. Pensei que me ia ajudar a
deitar, mas não ajudou. Só ficou olhando para mim sem cessar. De repente, vi
que o quarto estava-se desmoronando, e estava olhando para Dom Juan de uma
posição de lado. Daí em diante as imagens ficaram estranhamente embaraçadas,
como num sonho. Lembro-me vagamente de ter ouvido Dom Juan falar muito
comigo durante o tempo em que fiquei imóvel.
Não senti medo, nem sensações desagradáveis durante o estado em si, nem
fiquei enjoado quando acordei no dia seguinte. A única coisa fora do comum foi
que não conseguia pensar claramente por algum tempo depois de ter acordado.
Aos poucos, porém, num período de quatro ou cinco horas, voltei a meu normal.
Quarta-feira, 20 de janeiro de 1965
Dom Juan não falou sobre minha experiência, nem pediu que a descrevesse.
Seu único comentário foi que eu tinha adormecido depressa demais.
— O único jeito de ficar acordado é tornar-se um passarinho, um grilo ou
coisa parecida — disse ele.
— Como é que se faz isso, Dom Juan?
— É isso que lhe estou ensinando. Lembra-se do que lhe disse ontem quando
você estava sem seu corpo?
— Não me lembro bem.
— Sou um corvo. Estou-lhe ensinando a virar corvo. Quando aprender isso,
vai ficar acordado, e mover-se-á livremente; se não, você ficará sempre
pregado no chão, onde quer que caia.
Domingo, 7 de fevereiro de 1965
Minha segunda tentativa com o fumo realizou-se por volta do meio-dia, no
sábado, dia 30 de janeiro. Acordei no dia seguinte no princípio da, noite. Tinha a
sensação de possuir um poder excepcional de me lembrar de tudo o que Dom
Juan. me dissera durante a experiência. Suas palavras estavam impressas em
minha mente. Ouvia-as com uma clareza e persistência extraordinárias. Durante
essa tentativa, outro fato se tornou evidente para mim: todo meu corpo tinha-se
tornado dormente logo depois que comecei a engolir o pó fino, que me entrava
na boca cada vez que sugava o cachimbo. Assim, não só inalava o fumo, como
também ingeria a mistura.
Tentei narrar minha experiência a Dom Juan; respondeu que eu não tinha feito
nada de importante. Mencionei que me lembrava de tudo o que tinha acontecido,
mas ele não quis saber. Cada recordação era precisa e inconfundível. O processo
de fumar tinha sido o mesmo que na tentativa anterior. Era quase como se as
duas experiências fossem perfeitamente passíveis de justaposição, e podia
começar a recordar-me do momento em que terminou a primeira experiência.
Lembrei-me claramente de que, desde o momento em que caí no chão, de lado,
fiquei inteiramente desprovido de sentimentos e pensamentos. No entanto, minha
clareza não se alterou de maneira alguma. Lembro-me de meu último
pensamento, quando o quarto se tornou um plano vertical: "Devo ter batido com a
cabeça no chão, e no entanto não sinto dor alguma".
Desse ponto em diante, só conseguia ver e ouvir. Repetia todas as palavras que
Dom Juan dizia. Seguia todas suas direções. Pareciam claras, lógicas e fáceis.
Falou que meu corpo estava desaparecendo e que só sobraria minha cabeça, e
que, em tais condições, o único meio de ficar desperto e me mover era tornar-
me um corvo. Ordenou-me que fizesse um esforço para piscar, acrescentando
que, sempre que eu conseguisse piscar, estaria pronto para prosseguir. Depois,
disse-me que meu corpo tinha desaparecido completamente e que só tinha a
cabeça; disse que esta nunca desaparece porque é a cabeça que se transforma
em corvo.
Mandou que eu piscasse. Deve ter repetido essa ordem e todas as outras
inúmeras vezes, pois eu me lembrava de todas com uma clareza extraordinária.
Devo ter piscado, pois ele disse que eu estava pronto e mandou que endireitasse a
cabeça e a pusesse no queixo. Disse que no queixo estavam as pernas do corvo.
Mandou que sentisse as pernas e observasse que elas estavam saindo devagar.
Depois, disse que eu ainda não estava sólido, que tinha de deixar crescer uma
cauda e que esta sairia de meu pescoço. Mandou que estendesse a cauda como
um leque, e que sentisse como ela varria o chão.
Em seguida, falou sobre as asas do corvo e disse que sairiam de meus
maxilares, explicando que isso era difícil e doloroso. Mandou que as estendesse.
Disse que tinham de ser extremamente longas, tão longas quanto eu pudesse
estende-las, senão não conseguiria voar. Disse-me que as asas estavam saindo e
que eram longas e lindas, e que eu teria de batê-las até serem asas de verdade.
Falou da parte de cima de minha cabeça e disse que ainda estava muito
grande e pesada, e que seu volume impediria que eu voasse. Disse-me que o
meio de reduzir seu tamanho seria piscando; cada vez que eu piscasse, minha
cabeça diminuiria. Mandou que piscasse até sumir o peso de cima e eu poder
saltar livremente. Então, falou que eu tinha reduzido minha cabeça ao tamanho
de um corvo e que tinha de andar e pular até perder minha rigidez.
Havia uma última coisa que eu tinha de mudar, disse ele, antes de poder voar.
Era a transformação mais difícil, e para realizá-la eu tinha de ser dócil e fazer
exatamente o que ele me mandasse. Tinha de aprender a ver como um corvo.
Disse que minha boca e meu nariz iam crescer entre meus olhos até eu ter um
bico forte. Disse que os corvos sabem ver para os lados, e mandou que eu virasse
a cabeça e olhasse para ele com um dos olhos. Explicou que, se eu quisesse
trocar e olhar com o outro olho, teria de passar o bico para baixo, e que esse
movimento me faria ver pelo outro olho. Mandou que trocasse de um olho para o
outro. E então falou que eu estava pronto para voar e que o único meio de voar
era deixar que ele me lançasse no ar.
Não tive nenhuma dificuldade em ter as sensações correspondentes a todas as
ordens dele. Tive a percepção de estar deixando crescer pernas de pássaros, que,
a princípio, eram fracas e vacilantes. Senti uma cauda saindo de minha nuca e
asas de meus maxilares. As asas estavam bem dobradas. Senti que vinham
saindo aos poucos. O processo foi difícil, mas não doloroso. Depois, pisquei até
reduzir minha cabeça ao tamanho de um corvo. Mas o efeito mais surpreendente
foi o dos olhos. Minha visão de pássaro!
Quando Dom Juan me mandou deixar crescer um bico, tive uma sensação
aborrecida de falta de ar. Então, alguma coisa intumesceu-se e criou uma
obstrução em minha frente. Mas foi só quando Dom Juan me mandou olhar
lateralmente que meus olhos conseguiram uma visão completa para os lados.
Conseguia piscar um olho de cada vez e passar o foco de um olho para o outro.
Mas a visão do quarto e tudo nele não era como a visão comum. No entanto, era
impossível dizer de que modo era diferente. Talvez fosse torta, talvez as coisas
estivessem fora de foco. Dom Juan tornou-se muito grande 'e brilhante. Alguma
coisa nele era confortadora e segura. De repente, as imagens se turvaram;
perderam seus contornos e tornaram-se padrões abstratos que oscilavam por
algum tempo.
Domingo, 28 de março de 1965
Na quinta-feira, 18 de março, tornei a fumara mistura alucinógena. O
processo inicial foi diferente em ligeiros detalhes. Tive de tornar a encher o
fornilho do cachimbo uma vez. Depois que terminei a primeira mistura, Dom
Juan mandou que eu limpasse o fornilho, mas ele mesmo pôs a mistura, pois
faltava-me coordenação muscular. Era um esforço muito grande para mim
mover os braços. Em meu saquinho, havia mistura suficiente para encher o
cachimbo uma vez. Dom Juan olhou no saquinho e disse que aquela seria minha
última tentativa com o fumo até o ano seguinte, pois já tinha usado toda minha
provisão.
Virou o saquinho do avesso e sacudiu a poeira no pratinho com os carvões. Ela
ardeu com um brilho laranja, como se Dom Juan tivesse colocado uma folha de
material transparente sobre os carvões. A folha pegou fogo e depois formou um
desenho complicado de linhas. Alguma coisa ziguezagueava pelas linhas em
grande velocidade. Vi uma coisa que parecia uma bolinha de gude rolando para
lá e para cá dentro do lugar aceso. Debruçou-se, pôs a mão ali, pegou a bolinha e
colocou-a no fornilho do cachimbo. Mandou que eu desse uma tragada. Tive a
impressão exata de que tinha posto a bolinha no cachimbo para eu suga-la. Num
instante a quarto perdeu sua posição horizontal. Senti uma dormência profunda,
uma sensação de peso.
Quando acordei, estava deitado de costas no fundo de uma vala de irrigação
rasa, mergulhado na água até o queixo. Alguém estava segurando minha cabeça
para cima. Era Dom Juan. A primeira idéia que tive foi que a água no canal tinha
uma propriedade rara; era fria e pesada. Batia de leve contra mim, e minhas
idéias se aclaravam com cada movimento que fazia. A princípio, a água tinha um
halo verde brilhante, ou uma fluorescência, que logo se dissolveu, deixando
apenas um riacho de água comum.
Perguntei a Dom Juan que horas eram. Respondeu que era de manhã cedo.
Pouco depois, estava completamente desperto e saí da água.
— Tem de me contar tudo o que viu — disse Dom Juan, quando chegamos à
casa dele.
Falou ainda que estava tentando "trazer-me de volta" havia três dias, e tinha
tido muita dificuldade nisso. Fiz muitas tentativas para descrever o que tinha visto,
mas não conseguia concentrar-me. Mais tarde, no princípio da noite, achei que
estava pronto para conversar com Dom Juan e comecei a contar-lhe tudo o que
me lembrava desde que tinha caído de lado, mas ele não queria ouvir. Disse que
a única coisa interessante era o que vi e fiz depois que ele me "lançou no ar e eu
voei embora".
Só me lembrava de uma série de cenas ou imagens como de sonho. Não
tinham uma ordem de sequência. Tive a impressão de que cada uma era como
uma bolha isolada, flutuando para o foco e depois se afastando. Mas não eram
simples cenas de se olhar. Eu estava dentro delas. Participava delas. Quando a
princípio tentei lembrar-me das mesmas, tive a sensação de serem lampejos
vagos e difusos, mas, depois, percebi que cada qual era extremamente clara,
embora totalmente sem relação com a visão normal, e daí a sensação de serem
vagas. As imagens eram poucas e simples.
Assim que Dom Juan mencionou que me "lançara ao ar", tive uma vaga
lembrança de uma cena completamente clara, em que estava olhando
diretamente para ele de alguma distância. Só olhava para seu rosto. Era de um
tamanho monumental. Era chato e tinha um brilho intenso. Os cabelos dele eram
amarelados e se moviam. Cada parte do rosto dele se movia sozinha, projetando
uma espécie de luz âmbar.
A imagem seguinte foi aquela em que Dom Juan tinha realmente me lançado
numa direção para a frente. Lembrei-me de ter "estendido as asas e voado".
Senti-me sozinho, cortando o ar, movendo-me para a frente com dificuldade.
Parecia mais estar andando do que voando. Cansava meu corpo. Não havia
nenhuma sensação de voar livre, nenhuma exuberância.
Em seguida, lembrei-me de um momento em que fiquei imóvel, olhando para
uma massa de bordas nítidas e escuras, num lugar que tinha uma luz baça e
dolorosa; depois, vi um campo com uma variedade infinita de luzes. Estas se
moviam e oscilavam e mudavam sua luminosidade. Eram quase como cores.
Sua intensidade me ofuscou.
Em outro momento, um objeto estava quase encostando em meu olho. Era
um objeto grosso e pontudo; tinha um brilho rosado definido. Senti um tremor
súbito em algum ponto do meu corpo e vi uma multidão de formas rosadas
semelhantes avançando para mim. Todas avançaram sobre mim. Dei um salto e
fugi.
A última cena de que me lembrei foi de três pássaros prateados. Irradiavam
uma luz brilhante e metálica, quase como o aço inoxidável, mas intensa, móvel e
viva. Gostei deles. Voamos juntos.
Dom Juan não fez comentários sobre minha narrativa.
Terça-feira, 23 de março de 1965
A seguinte conversa teve lugar no dia posterior, depois da narrativa de minha
experiência:
— Não precisa muita coisa para virar corvo — disse Dom Juan. — Você o
conseguiu e agora será sempre corvo.
— O que aconteceu depois que eu virei corvo, Dom Juan? Voei durante três
dias?
— Não, voltou de noite, como eu lhe disse.
— Mas como foi que voltei?
— Estava muito cansado e foi dormir. Só isso.
— Quero dizer, voei de volta?
— Já lhe disse. Obedeceu-me e voltou para casa. Mas não se preocupe com
isso. Não tem importância.
— Então, o que é importante?
— Em toda sua viagem, só houve uma coisa de grande valor... os pássaros
prateados! — O que havia de tão especial neles? Eram apenas pássaros.
— Não apenas pássaros... corvos.
— Eram corvos brancos, Dom Juan?
— As penas pretas do corvo na verdade são prateadas. Os corvos brilham tão
intensamente que não são aborrecidos pelos outros pássaros.
— Por que as penas pareciam prateadas?
— Porque você estava vendo como um corvo vê. Um pássaro que nos parece
escuro, ao corvo parece branco. Os pombos brancos, por exemplo, são rosa ou
azulados para o corvo; as gaivotas são amarelas. Agora, procure lembrar-se de
como se juntou a eles.
Pensei naquilo, mas os pássaros eram uma imagem vaga e dissociada, sem
continuidade. Disse-lhe que só me podia lembrar de que sentia que tinha voado
com eles.
Perguntou-me se eu me associara a eles no ar ou no chão, mas eu não podia
responder a isso. Quase se zangou comigo. Pediu para eu pensar a respeito.
Disse:
— Tudo isso não vai significar nada, que diabo; será apenas um sonho louco se
você não se lembrar direito.
Esforcei-me para lembrar, mas não consegui.
Sábado, 3 de abril de 1965
Hoje, pensei em outra imagem em meu "sonho" com os pássaros prateados.
Lembro-me de ter visto uma massa escura com milhares de furinhos. Na
verdade, a massa era um aglomerado escuro de furinhos. Não sei por que pensei
que fosse macia. Quando estava olhando para ela, três pássaros voaram
diretamente para mim. Um deles fez um barulho; depois os três estavam juntos
de mim, no chão.
Descrevi a imagem para Dom Juan. Perguntou-me de que direção os
pássaros tinham vindo. Respondi que não podia saber isso. Ficou muito irritado e
acusou-me de ser inflexível em meus pensamentos. Disse que eu podia lembrar-
me perfeitamente se quisesse e que eu tinha medo de me deixar ser menos
rígido. Falou que eu estava raciocinando em termos de corvos e homens, e que
não era nem um corvo nem um homem no momento em que queria recordar.
Pediu para lembrar-me do que o corvo me dissera. Tentei pensar a respeito,
mas minha mente pensou em dezenas de outras coisas. Não conseguia
concentrar-me.
Domingo, 4 de abril de 1965
Hoje fui dar um longo passeio a pé. Estava bem escuro quando cheguei à casa
de Dom Juan. Estava pensando nos corvos, quando, de repente, um "pensamento"
muito estranho me passou pela cabeça. Era mais uma impressão ou sensação, do
que um pensamento. O pássaro que tinha feito o barulho, disse que eles vinham
do norte e iam para o sul, e quando nos, encontrássemos de novo eles viriam do
mesmo sentido.
Contei a Dom Juan o que tinha pensado, ou talvez me lembrado.
— Não fique pensando se você se lembrou ou inventou isso — disse ele. —
Esses pensamentos são só de homens. Não são de corvos, especialmente
daqueles que você viu, pois eles são os emissários de seu destino. Você já é um
corvo. Nunca há de modificar isso. De hoje em diante, os corvos lhe contarão,
com seu vôo, todas as voltas de seu destino. Em que direção voou com eles?
— Não posso saber isso, Dom Juan! — Se pensar bem, vai lembrar-se. Sente-
se no chão e diga-me a posição em que estava quando os corvos voaram até
você. Feche os olhos e trace uma linha no chão.
Segui a sugestão dele e determinei o ponto.
— Não abra os olhos ainda! — continuou. — Em que direção vocês todos
voaram com relação a esse ponto?
Fiz outra marca no chão.
Tomando aqueles pontos como orientação e referência, Dom Juan interpretou
os vários desenhos de vôo que os corvos fariam para prever meu futuro ou
destino pessoal.
Traçou os quatro pontos cardeais como o eixo do vôo do corvo.
Perguntei-lhe se os corvos sempre seguiam os pontos cardeais para dizer o
destino do homem. Respondeu que a orientação era só minha; tudo o que os
corvos fizessem em meu primeiro encontro com eles era da maior importância.
Insistiu para eu recordar todos os detalhes, pois a mensagem e o padrão dos
"emissários" eram um assunto individual e pessoal.
Havia mais uma coisa que ele insistia em que eu devia lembrar: a hora do dia
em que os emissários me deixaram. Pediu que pensasse nas diferenças de luz em
volta de mim entre o momento em que "comecei a voar" e o momento em que
os pássaros prateados "voaram comigo". Da primeira vez que tive a sensação de
um vôo doloroso, estava escuro. Mas quando vi os pássaros, tudo estava
avermelhado – vermelho-claro, ou talvez laranja.
— Isso significa que era na parte da tarde — disse ele. — O Sol ainda não se
tinha posto. O corvo fica cego com a claridade e não com a escuridão. Essa
indicação da hora situa seus últimos emissários no fim do dia. Eles lhe chamarão
e, ao voarem por cima de sua cabeça, tornar-se-ão brancos prateados; você os
verá brilhando no céu e isso significará que sua hora chegou. Significará que vai
morrer e virar um corvo.
— E se eu os vir de manhã?
— Não os verá de manhã! — Mas os corvos voam o dia todo.
— Não os seus emissários, seu bobo! — E os seus emissários, Dom Juan?
— Os meus virão de manhã. Também haverá três deles. Meu benfeitor me
disse que a gente pode gritar para eles voltarem a ser pretos, se não quiser
morrer. Mas agora sei que isso não se pode fazer. Meu benfeitor era dado a gritar,
e a todo o barulho e violência da erva-do-diabo.
Sei que o fumo é diferente porque não tem paixão. B justo. Quando seus
emissários prateados vierem buscá-lo, não precisa gritar. Basta voar com eles,
como já fez. Depois de terem apanhado você, eles vão mudar de direção e serão
quatro voando embora.
Sábado, 10 de abril de 1965
Eu estava experimentando breves lampejos de dissociação, ou estados
superficiais de realidade não comum.
Um dos elementos da experiência alucinógena com os cogumelos ficava
voltando a meus pensamentos: a massa macia e escura de furinhos. Continuava a
pensar nela como uma bolha de gordura ou de óleo que começava a me atrair
para seu centro. Era quase como se o centro fosse abrir-se e me engolir, e por
momentos muito breves senti uma coisa parecendo um estado de realidade não
comum. Como resultado, tive momentos de uma profunda agitação, ansiedade e
desconforto, e propositadamente procurava terminar as experiências assim que
começavam.
Hoje, conversei a respeito desse estado com Dom Juan. Pedi conselhos.
Pareceu não se preocupar e disse que eu não levasse em consideração as
experiências porque não tinham sentido, ou melhor, não tinham valor. Disse-me
que as únicas experiências que valiam esforço e cuidado eram aquelas em que
visse um corvo; qualquer outro tipo de "visão" seria apenas produto de meus
receios. Tornou a lembrar-me de que, para participar do fumo, era preciso levar
uma vida forte e tranquila. Pessoalmente eu parecia ter chegado a um limiar
perigoso. Disse-lhe que não podia continuar; havia algo realmente apavorante nos
cogumelos.
Repassando as imagens que eu recordava de minha experiência alucinógena,
chegara à conclusão inevitável de ter visto o mundo de um modo que era
estruturalmente diferente da visão comum. Nos outros estados de realidade não
comum que experimentara, as formas e desenhos que visualizara estavam
sempre dentro dos limites de minha concepção visual do mundo. Mas a sensação
de ver sob a influência alucinógena da mistura do fumo não era a mesma. Tudo
o que via estava em minha frente numa linha direta de visão; não havia nada
acima nem abaixo daquela linha de visão.
Todas as imagens tinham uma planeza irritante e, contudo, o que era
desconcertante, tinham muita profundidade. Talvez fosse mais preciso dizer que
as imagens eram um aglomerado de detalhes incrivelmente vivos dentro de
campos de luz diferentes; a luz nos campos se movia, criando um efeito de
rotação.
Depois de pesquisar e me esforçar para recordar, fui levedo a fazer uma série
de analogias ou imagens semelhantes a fim de "compreender" o que tinha "visto".
O rosto de Dom, por exemplo, dava a impressão de ter sido submerso na água.
Esta parecia mover-se num fluxo contínuo pelo rosto dele e por seus cabelos.
Aumentava-os de tal modo que eu via todos os poros da pele dele ou todos os
cabelos da sua cabeça, sempre que focalizava minha visão. Por outro lado, via
massas de matéria que eram chatas e cheias de arestas, mas que não se moviam
porque não havia flutuação na luz que vinha delas.
Perguntei a Dom Juan o que eram as coisas que eu tinha teso. Respondeu que,
como essa era a primeira vez que havia visto como corvo, as imagens não eram
claras, nem importantes, e que mais tarde, com a prática, eu seria capaz de
reconhecer tudo. Abordei o assunto da diferença que tinha percebido no
movimento da luz.
— As coisas vivas — disse ele — movem-se por dentro, e um corvo vê
facilmente quando uma coisa está morta, ou vai morrer, pois o movimento parou
ou está diminuindo para cessar. O corvo também sabe dizer quando alguma coisa
se move depressa demais, e assim também ele sabe quando as coisas se movem
no ritmo certo.
— O que significa quando alguma coisa se move depressa demais, ou no
ritmo certo?
— Significa que o corvo sabe o que evitar e o que procurar. Quando alguma
coisa se move depressa demais por dentro, significa que vai explodir
violentamente, ou vai saltar para a frente, e o corvo a evitará. Quando se move
por dentro no ritmo certo, é uma visão agradável e o corvo a procurará.
— As pedras se movem por dentro?
— Não, as pedras não; nem animais ou árvores mortos. Mas são belos de se
ver. É por isso que os corvos rondam os cadáveres. Gostam de olhar para eles.
Nenhuma luz se move dentro deles.
— Mas quando a carne apodrece, não se modifica ou move?
— Sim, mas é um movimento diferente. O que o corvo vê então são milhões
de coisas movendo-se dentro da carne, com uma luz própria, e é isso que o corvo
gosta de ver. E realmente um espetáculo inesquecível.
— Você já o viu, Dom Juan?
— Qualquer pessoa que aprende a se tornar corvo o verá. Você mesmo o
verá.
Nesse ponto, fiz a pergunta inevitável a Dom Juan.
— Virei mesmo corvo? Quero dizer, qualquer pessoa que me visse pensaria
que eu era um corvo comum?
— Não. Você não pode pensar assim, quando se trata do poder dos aliados.
Essas perguntas não têm sentido e, no entanto, virar corvo é a coisa mais simples
do mundo. E quase como brincar; tem suas utilidades. Como já lhe disse, o fumo
não é para aqueles que buscam o poder. Só para aqueles que procuram ver.
Aprendi a ser corvo porque esses pássaros são os mais eficientes de todos.
Nenhum outro pássaro os aborrece, a não ser talvez águias maiores e famintas,
mas os corvos voam em grupos e sabem defender-se. Os homens também não
apoquentam os corvos, e isso é importante. Qualquer homem sabe distinguir uma
águia grande, especialmente uma águia rara, ou qualquer outro pássaro grande e
fora do comum, mas quem vai ligar para um corvo? Este é seguro. E o ideal, em
tamanho e natureza. Pode ir firmemente a qualquer lugar, sem chamar atenção.
Por outro lado, é possível virar um leão ou um urso, mas isso é meio perigoso.
Uma criatura dessas é muito grande; necessita-se de muita energia para
transformar-se num deles. A gente também pode virar um grilo, ou lagarto, ou
até uma formiga, mas isso é ainda mais perigoso, pois os animais grandes caçam
os pequenos.
Argumentei que o que ele estava dizendo significava que s pessoa realmente
se transformava num corvo, grilo ou outra Mas insistiu que eu não estava
entendendo.
.— Leva muito tempo para se aprender a ser um corvo direito — disse ele. —
Mas você não mudou, nem deixou de ser homem. Há mais alguma coisa.
— Pode dizer-me o que é essa coisa a mais, Dom Juan?
— Talvez que você já o saiba. Talvez que, se você não tivesse tanto medo de
ficar maluco, ou de perder seu corpo, entendesse esse segredo maravilhoso. Mas
talvez deva esperar até perder o medo para entender o que eu quero dizer.
11

O último acontecimento em minhas anotações de campo ocorreu em


setembro de 1965. Foi o último dos ensinamentos de Dom Juan. Chamei-o de
"um gosto especial de realidade não comum", porque não foi produto de
nenhuma das plantas que usei antes. Parece que Dom Juan o provocou por meio
de uma cuidadosa manipulação de indícios a respeito dele; isto é, comportou-se
diante de mim de maneira tão hábil que criou a impressão clara e firme de que
não era propriamente ele, e sim uma pessoa se fazendo passar por ele. Em
consequência, senti um conflito profundo; queria acreditar que era Dom Juan e,
no entanto, não podia ter certeza. O concomitante do conflito foi um terror
consciente, tão agudo que afetou minha saúde por várias semanas. Depois, pensei
que teria sido ajuizado terminar meu aprendizado naquele momento. Desde
então não fui mais participante, e no entanto Dom Juan não deixou de me
considerar aprendiz. Considerou minha retirada como apenas um período
necessário de recapitulação, mais um passo na aprendizagem, que pode durar
indefinidamente. Mas desde aquela ocasião, não explanou mais seus
conhecimentos.
Escrevi o relato detalhado de minha última experiência quase um mês depois
de sua ocorrência; embora já tivesse escrito muitas notas sobre os pontos mais
notáveis no dia seguinte, durante as horas de grande agitação emocional que
precederam o auge de meu terror.
Sexta-feira, 29 de outubro de 1965
Na quinta-feira, 30 de setembro de 1965, eu devia ir ver Dom Juan. Os
estados breves e superficiais de realidade não comum tinham persistido, a
despeito de minhas tentativas propositadas de terminá-los, ou diminuí-los como
Dom Juan sugerira. Senti que minha situação se agravava, pois a duração desses
estados estava aumentando. Eu ficava muito consciente do barulho de aviões. O
ruído de seus motores passando por cima inevitavelmente chamava minha
atenção e a fixava, ao ponto em que eu sentia que estava acompanhando o avião
como se estivesse dentro dele, ou voando com ele. Essa sensação era muito
aborrecida. Minha incapacidade de me livrar dela me provocava uma ansiedade
profunda.
Dom Juan, depois de escutar atentamente todos os detalhes, concluiu que eu
estava sofrendo de uma perda da alma. Disse-lhe que tinha essas alucinações
desde o momento em que fumei os cogumelos, mas ele insistia que eram coisa
nova. Disse que, a princípio, eu tinha tido medo, e tinha apenas “sonhado coisas
tolas", mas que agora eu estava mesmo enfeitiçado. A prova era que o barulho
dos aviões era capaz de me transportar. Normalmente, disse ele, o ruído de um
riacho ou um rio pode prender um homem enfeitiçado que perdeu a alma e
transportá-lo para sua morte. Depois, pediu-me para descrever todas as minhas
atividades durante o período antes de experimentar as alucinações. Fiz uma
relação de todas as atividades de que me lembrava. E dessa relação, deduziu o
ponto em que eu rinha perdido minha alma.
Dom Juan parecia estar muito preocupado, estado muito raro nele. Isso
naturalmente aumentou minha apreensão. Falou que não tinha idéia clara de
quem tinha capturado minha alma, mas que, fosse quem fosse, sem dúvida
pretendia matar — ou me tornar muito doente. Então deu-me instruções muito
precisas sobre a "forma de luta", uma posição do corpo específica a ser mantida
enquanto ficasse no meu ponto bom. Eu tinha de manter essa posição que ele
chamava de forma (una para pelear).
Perguntei-lhe para que era tudo isso, e com quem eu ia lutar. Respondeu que
ia partir para ver quem tinha capturado minha a alma, e ver se seria possível
pegá-la de volta. Enquanto isso, eu devia ficar no meu ponto até ele voltar. A
forma de luta era na verdade uma precaução, falou, para o caso de acontecer
alguma coisa na ausência dele, e tinha de ser utilizada se eu fosse atacado.
Consistia em bater com a mão na barriga da perna e coxa direitas, e bater o pé
esquerdo, numa espécie de dança que eu tinha de executar enquanto olhava para
o atacante.
Avisou-me de que a forma só devia ser adotada nos momentos de crise
extrema, mas que, enquanto não houvesse perigo à vista, eu devia simplesmente
ficar sentado de pernas cruzadas em meu ponto. Mas em circunstâncias de
grande perigo, podia recorrer a um último meio de defesa — atirar um objeto
sobre o inimigo. Disse-me que, em geral, a pessoa atira um objeto de poder, mas
como eu não possuía nenhum, era obrigado a usar alguma pedrinha que coubesse
na palma de minha mão direita, uma pedra que pudesse segurar na palma com o
polegar. Disse que essa técnica só devia ser usada se a pessoa estivesse
indubitavelmente em perigo de perder a vida. O lançamento do objeto tinha de
ser acompanhado por um brado de guerra, um grito que tinha a propriedade de
dirigir o objeto a seu alvo. Recomendou enfaticamente que eu tivesse cuidado e
propósito no grito e não o usasse à toa, mas somente sob "graves condições de
seriedade".
Perguntei o que ele queria dizer por "graves condições de seriedade".
Respondeu que o grito ou brado de guerra era uma coisa que ficava com a
pessoa por toda a vida; e assim tinha de ser bom desde o princípio. E o único
meio de o iniciar corretamente era conter o medo inicial e a pressa, até a pessoa
estar cheia do poder, e então o grito estouraria com direção e poder. Disse que
eram essas as condições de seriedade para dar o grito.
Pedi-lhe que explicasse sobre o poder que devia encher a gente antes do grito.
Falou que era uma coisa que percorria o corpo, vindo da terra onde a pessoa
estivesse; era uma espécie de poder que emanava do ponto benéfico, para ser
preciso. Era uma força que impulsionava o grito. Se essa força fosse bem
tratada, o brado de guerra seria perfeito.
Tornei a perguntar-lhe se ele achava que me ia acontecer alguma coisa.
Respondeu que não sabia de nada a respeito e me advertiu dramaticamente a
ficar colado no meu ponto enquanto fosse necessário, pois essa era a única
proteção que tinha contra qualquer coisa que pudesse acontecer.
Comecei a ficar assustado; implorei-lhe para ser mais preciso. Respondeu que
só sabia que eu não devia mover-me, em circunstância alguma; não devia entrar
na casa nem no mato. Acima de tudo, falou, eu não devia pronunciar uma única
palavra, nem mesmo a ele. Disse que podia cantar meus cânticos de Mescalito se
ficasse com muito medo, e depois acrescentou que eu já sabia muita coisa desses
assuntos para ter de ser prevenido como uma criança sobre a importância de
fazer tudo corretamente. Suas advertências produziram em mim um estado de
angústia profunda. Estava certo de que ele esperava que acontecesse alguma
coisa. Perguntei-lhe por que me recomendava para cantar os cânticos de
Mescalito, e o que é que ele achava que me ia assustar. Riu e disse que eu podia
ficar com medo de estar sozinho. Entrou na casa e fechou a porta. Olhei para o
relógio. Eram sete da noite. Fiquei sentado quieto por muito tempo. São ouvia
barulho algum do quarto de Dom imo. Tudo estava quieto. Ventava. Pensei em
dar uma corrida até meu carro para pegar meu casaco de couro, mas não
ousava contrariar os conselhos de Dom Juan. Não estava com sono, só cansado; o
vento frio não me deixava descansar.
Quatro horas depois, ouvi Dom Juan andando em volta da casa. Pensei que ele
podia ter saído pelos fundos, para ir urinar no mato. Depois, chamou-me em voz
alta.
— Ei, rapaz! Ei, rapaz! Estou precisando de você aqui — disse ele.
Quase me levantei para ir ter com ele. Era sua voz, mas não a mesma
entonação, nem as palavras usuais. Dom Juan nunca me chamara "Ei, rapaz!".
Por isso, fiquei onde estava. Senti um arrepio pela espinha. Recomeçou a gritar,
usando a mesma frase, ou semelhante.
Eu o ouvia andando pelo quintal. Tropeçou numa pilha de lenha, como se não
soubesse que ficava ali. Depois, foi à varanda e sentou-se junto da porta, com as
costas encostadas as parede. Parecia estar mais pesado do que de costume. Os
movimentos dele não eram lentos, nem desajeitados, apenas mais pesados.
Jogou-se no chão, em vez de deslizar agilmente, como sempre fazia. Além disso,
aquele não era o ponto dele, e Dom Juan nunca, em circunstância alguma,
sentava-se outro lugar.
Depois, tornou a falar comigo. Perguntou-me por que me recusava a ir
quando ele precisava de mim. Estava falando alto. Não queria olhar para ele, e
no entanto tive uma necessidade impulsiva de espiar. Começou a balançar um
pouco de um para outro. Mudei de posição, adotei a forma de luta que Dom Juan
me ensinara e virei-me para olhar para ele. Meus músculos estavam duros e
estranhamente tensos. Não sei o que me levou a tomar a forma de luta, talvez
acreditasse que Dom Juan tivesse propositadamente querendo assustar-me,
criando a impressão de que a pessoa que eu estava vendo não era ele. Achei que
ele estava tendo muito cuidado de fazer o que não era habitual, para incutir uma
dúvida no meu espírito. Estava com medo, mas ainda sentia que estava acima de
tudo aquilo, pois estava tomando consciência e analisando a cena toda.
Nesse ponto, Dom Juan levantou-se. Seus movimentos eram completamente
estranhos para mim. Pôs os braços na frente do corpo e deu um impulso para
levantar-se, erguendo primeiro a traseira; depois, pegou a porta e endireitou a
parte superior do corpo. Fiquei espantado ao ver como conhecia bem os
movimentos dele, e que sentimento de assombro ele criava deixando-me ver um
Dom Juan que não se mexia como Dom Juan.
Deu alguns passos em minha direção. Estava segurando a parte inferior das
costas com as duas mãos como se estivesse tentando endireitar-se, ou estivesse
com dor. Ele gemia e bufava. O nariz parecia estar inchado. Disse que ia levar-
me com ele e mandou que me levantasse e o seguisse. Foi para o lado oeste da
casa. Mudei de posição para olhá-lo. Virou-se para mim. Não me mexi do meu
ponto; estava colado nele. Ele berrou.
— Ei, rapaz! Disse-lhe para vir comigo. Se não vier, eu o arrasto!
Dirigiu-se para mim. Comecei a bater em minha canela e coxa, dançando
depressa. Foi até à beira da varanda em frente a mim e quase me tocou.
Freneticamente, preparei meu corpo para tomar a posição de lançar, mas ele
mudou de direção e se afastou de mim, indo para o mato à minha esquerda. Em
certo momento, quando se afastava, virou-se de repente, mas eu estava voltado
para ele.
Desapareceu de vista. Mantive a posição de luta ainda um pouco, mas, como
não o vi mais, tornei a sentar-me de pernas cruzadas, de costas para a pedra. A
essa altura estava realmente apavorado. Queria fugir, mais, isso me atemorizava
ainda mais. Senti que teria estado inteiramente mercê dele, se me tivesse pegado
no caminho para o carro. Comecei a cantar os cânticos de peiote que conhecia.
Mas senti que eram impotentes, ali. Só serviam como calmante e me aliviaram.
Cantei-os várias vezes.
Lá pelas duas e meia da madruga, ouvi um barulho dentro de casa. Troquei
logo de posição. A porta foi escancarada e Dom Juan saiu, tropeçando. Estava
sufocando e segurava a garganta. Ajoelhou-se diante de mim e gemeu. Pediu-
me numa voz alta e ganida, que fosse ajuda-lo. Depois tornou a berrar e ordenou
que eu fosse. Fez barulhos de quem gargareja. Pediu-me para ir ajudá-lo porque
alguma coisa o sufocava. Engatinhou de quatro até estar a talvez um metro e
vinte de mim. Estendeu-me as mãos. Disse: "Venha cá!" Em seguida, levantou-
se, de braços estendidos para mim. Parecia estar disposto a me agarrar. Bati o pé
no chão e bati na minha canela e coxa. Estava fora de mim de medo.
Parou e foi para o lado da casa, para o mato. Mudei de posição para olhar
para ele. Tornei a sentar-me. Não queria mais cantar. Minha energia parecia
estar sumindo. Todo meu corpo estava dolorido; todos meus músculos estavam
rígidos e dolorosamente contraídos. Não sabia o que pensar. Não podia resolver-
me se devia ficar zangado com Dom Juan ou não. Pensei em saltar sobre ele,
mas sabia que ele me teria abatido com a um inseto. Estava mesmo com vontade
de chorar. Sentia um desespero profundo; a idéia de Dom Juan estava fazendo
tudo aquilo para assustar-me me dava vontade de chorar. Não conseguia
encontrar motivos para aquela tremenda exibição teatral; os movimentos dele
eram tão estudados que fiquei confuso. Não era que ele estava tentando mover-
se como uma mulher; era mais como se uma mulher estivesse tentando mover-
se como Dom Juan. Tive a impressão de que ela estava realmente tentando
andar e mover-se com a calma de Dom Juan, mas que era muito pesada e não
tinha a agilidade dele. Quem quer que fosse a pessoa ali na minha frente, dava a
impressão de ser mulher, pesada e mais jovem, tentando imitar os movimentos
lentos de um velho ágil.
Essas idéias me levaram a um estado de pânico. Um grilo começou a chirriar
muito alto, bem perto de mim. Notei a riqueza do tom dele; imaginei que tivesse
uma voz de barítono. O grito começou a sumir. De repente, todo meu corpo
estremeceu. Tomei novamente a posição de luta e olhei na direção o do grilo. O
som estava-me transportando; tinha começado a me apanhar antes de perceber
que era só de grilo. O som tornou a se aproximar. Ficou terrivelmente alto.
Comecei a cantar meus cânticos de peiote cada vez mais alto. De repente, o grilo
parou. Sentei-me imediatamente, mas continuei a cantar. Um momento depois,
vi o vulto de um homem correndo para mim da direção oposta ao ruído do grilo.
Bati as mãos na coxa e canela e bati o pé vigorosamente, freneticamente. O vulto
passou por mim muito depressa, quase me tocando. Parecia um cachorro. Tive
um medo tal que fiquei dormente.
Não me lembro de mais nada do que pensei ou senti.
O orvalho da manhã foi refrescante. Sentia-me melhor. Fosse qual fosse o
fenômeno, parecia ter partido. Eram 5:48 da madrugada quando Dom Juan abriu
a porta, sossegado, e saiu. Esticou os braços, bocejando, e olhou para mim. Deu
dois passos em minha direção, prolongando seus bocejos. Vi os olhos dele,
espiando por pálpebras meio fechadas. Levantei- me de um salto; vi então que
quem quer que, ou o que quer que estivesse diante de mim naquele momento não
era Dom Juan.
Peguei uma pedrinha de arestas vivas do chão. Estava junto de minha mão
direita. Nem olhei para ela; apenas segurei-a, apertando-a com o polegar contra
meus dedos abertos. Adotei a forma que Dom Juan me ensinara. Senti um
estranho vigor me enchendo, numa questão de segundos. Então, gritei e atirei a
pedra sobre ele. Pareceu-me um brado magnífico. Naquele momento, não me
importava viver ou morrer. Senti que o grito era tremendo, em sua potência. Era
penetrante e prolongado, e chegava a dirigir minha pontaria. O vulto diante de
mim vacilou, gritou e cambaleou para o lado da casa, tornando a entrar no mato.
Levei horas para sossegar. Não conseguia mais ficar sentado; fiquei trotando
no mesmo lugar. Tinha de respirar pela boca, para conseguir ar suficiente.
Às onze horas da manhã, Dom Juan tornou a sair da casa. Eu já ia levantar de
um salto, mas os movimentos, nessa ocasião, eram dele. Foi diretamente para o
lugar dele e sentou-se em sua maneira habitual. Olhou para mim e sorriu. Era
Dom Juan! Aproximei-me dele e, em vez de estar zangado, beijei a mão dele.
Acreditei realmente que ele não tinha agido para criar um efeito teatral, mas que
alguém se havia feito passar por ele para me fazer mal ou matar-me.
A conversa começou com especulações a respeito da identidade de uma
pessoa feminina que supostamente se havia apossado de minha alma. Depois,
Dom Juan pediu-me que lhe contasse todos os detalhes da experiência.
Narrei toda a sequência de acontecimentos de maneira muito deliberada. Riu
o tempo todo, como se fosse uma piada. Depois que terminei, Dom Juan disse:
— Você foi muito bem. Venceu a batalha por sua alma. Mas esse caso é mais
grave do que eu pensava. Sua vida não valia dois vinténs, ontem à noite. Foi bom
ter aprendido alguma coisa no passado. Se não tivesse um pouco de treino, estaria
morto a essas horas, pois quem quer que fosse que você viu ontem, queria
liquidá-lo.
— Como é possível, Dom Juan, que ela tenha tomado sua forma?
— Muito simples. É uma diablera e tem um bom auxiliar do outro lado. Mas
não foi tão esperta ao assumir minha forma, e você descobriu os ardis dela.
— Um auxiliar do outro lado é a mesma coisa que um aliado?
— Não, um auxiliar é a ajuda de um diablero. Um auxiliar é um espírito que
vive do outro lado do mundo e ajuda um diablero a provocar doença e dor.
Ajuda-o a matar.
— Um diablero também pode ter um aliado, Dom Juan?
— São os diableros que têm os aliados; mas antes que um diablero possa
domesticar um aliado, geralmente tem os auxiliares para ajudá-lo em seus
trabalhos.
— E a mulher que tomou sua forma, Dom Juan? Só tem um auxiliar, não um
aliado?
— Não sei se ela possui ou não um aliado. Há quem não goste do poder de um
aliado e prefere um auxiliar. Domesticar um aliado é trabalho duro. É mais fácil
arranjar um auxiliar do outro lado.
— Acha que eu conseguiria arranjar um auxiliar?
— Para saber isso, tem de aprender muito mais. Estamos novamente no
princípio, quase como no primeiro dia em que veio aqui pedir-me para lhe falar
sobre Mescalito, e eu não podia porque você não teria compreendido. Aquele
outro lado é o mundo dos diableros. Acho que seria melhor contar-lhe meus
próprios sentimentos, da mesma maneira que meu benfeitor me contou os dele.
Ele era um diablero e um guerreiro; sua vida inclinava-se para a força e a
violência do mundo. Mas eu não sou nada disso. Essa é a minha natureza. Você
viu meu mundo desde o princípio. Quanto a lhe mostrar o mundo de meu
benfeitor, só posso levá-lo até à porta, e você terá de decidir por si; terá de
aprender a respeito por seus próprios esforços. Agora, devo confessar que cometi
um erro. É muito melhor, vejo agora, começar como eu mesmo comecei.
Então, é mais fácil ver como é simples e no entanto profunda a diferença. Um
diablero é um diablero, e um guerreiro é um guerreiro. Ou então, o homem pode
ser ambos. Há muita gente que é ambos. Mas o homem que apenas atravessa os
caminhos da vida é tudo. Hoje não sou nem guerreiro nem diablero. Para mim
só existe o percorrer os caminhos que têm coração, em qualquer caminho que
possa ter coração. Ali eu viajo e para mim o único desafio que vale a pena é
percorrer toda sua extensão. E ali viajo... olhando, olhando, arquejante.
Parou. Sua fisionomia revelara um estado de espírito especial; parecia estar
estranhamente sério. Eu não sabia o que perguntar, nem o que dizer. Continuou:
— A coisa especial a se aprender é como chegar à fresta entre os mundos e
como entrar no outro mundo. Existe uma fresta entre os dois mundos, o mundo
dos diableros e o mundo dos homens vivos. Existe um lugar onde os dois mundos
se sobrepõem. A fresta está ali. Abre e fecha como uma porta ao vento. Para
chegar lá o homem tem de exercer sua vontade. Posso dizer que ele deve ter um
desejo invencível de fazer isso, uma dedicação total. Mas ele tem de fazê-lo sem
o auxílio de qualquer poder, ou de qualquer homem. O indivíduo sozinho deve
ponderar e desejar, até o momento em que seu corpo esteja pronto para
empreender a jornada. Esse momento é anunciado por um tremor prolongado
nos membros e vômitos violentos. Geralmente, o homem não consegue dormir
nem comer e vai minguando. Quando as convulsões não param, o homem está
pronto para ir e a fresta entre os mundos aparece bem diante dos olhos dele,
como uma porta monumental, uma fresta que sobe e desce. Quando a fresta se
abre, o homem tem de deslizar por ela. É difícil enxergar do outro lado dos
limites. É ventoso, como uma tempestade de areia. O vento rodopia. Então, o
homem tem de andar, em qualquer direção. Será uma viagem curta ou longa,
dependendo de sua força de vontade. Um homem de muita força faz uma
viagem breve. Um homem indeciso e fraco faz uma viagem longa e perigosa.
Depois dessa viagem o homem chega a um tipo de planalto. É possível distinguir
algumas de suas características claramente. É uma planície acima do solo. É
possível reconhecê-lo pelo vento, que se torna ainda mais violento, batendo e
uivando em volta. Em cima daquele planalto está a entrada para aquele outro
mundo. E ali está uma película que separa os dois mundos; os homens mortos
passam por ela sem barulho, mas nós temos de rompê-la com um grito. O vento
torna-se mais forte, o mesmo vento rebelde que sopra no planalto. Quando o
vento já está bastante forte, o homem tem de gritar e o vento o empurrará para
atravessar. Aqui também a sua vontade tem de ser inflexível, para poder lutar
contra o vento. Só precisa de um empurrãozinho; não precisa ser soprado para os
confins do outro mundo. Uma vez do outro lado, o homem terá de vagar por ali.
Se tiver sorte, encontrará um auxiliar por perto, não muito longe da entrada. O
homem tem de lhe pedir ajuda. Em suas próprias palavras, tem de pedir ao
auxiliar que lhe ajude e o torne um diablero. Quando o auxiliar concorda, ele
mata o homem no mesmo lugar e, enquanto está morto, ensina-lhe. Quando você
fizer a viagem, dependendo de sua sorte, poderá encontrar um grande diablero
no auxiliar que o matará e lhe ensinará. Mas em geral a pessoa encontra brujos
sem importância, que têm pouca coisa a ensinar. Mas nem você nem eles têm o
poder de recusar. O melhor é encontrar um auxiliar masculino, para não se
tornar presa de uma diablera, que fará a pessoa sofrer de uma maneira incrível.
As mulheres são sempre assim. Mas isso só depende da sorte, a não ser que o
benfeitor da pessoa seja ele mesmo um grande diablero, e nesse caso terá muitos
auxiliares no outro mundo, e pode dirigir a pessoa para ver um determinado
auxiliar. Meu benfeitor era um homem desses. Dirigiu-me para encontrar seu
auxiliar espírito. Depois que voltar, você não será mais o mesmo. Está
comprometido a voltar para ver seu auxiliar frequentemente. E comprometeu-se
a viajai cada vez mais longe da entrada, até que um dia irá longe demais e não
poderá voltar. As vezes, um diablero pode pegar uma alma e empurrá-la pela
entrada e deixá-la em custódia de seu auxiliar, até roubar q pessoa de toda sua
força de vontade. Em outros casos, como o seu, por exemplo, a alma pertence a
uma pessoa de vontade forte, e o diablero pode guardá-la dentro de sua sacola,
pois ela é muito pesada para carregar de outro modo. Em tais casos, como no
seu, uma luta pode resolver o problema... uma luta em que o diablero ou ganha
tudo ou perde tudo. Dessa vez, ela perdeu a batalha e teve de soltar sua alma. Se
vencesse, teria levado a alma para o seu auxiliar, para sempre.
— Mas como foi que venci?
— Não saiu do seu ponto. Se se tivesse movido um centímetro, teria sido
liquidado. Ela escolheu o momento em que eu não estava presente como sendo o
melhor para dar o golpe, e o fez bem feito. Fracassou porque não levou em conta
sua própria natureza, que é violenta, e também porque você não se arredou do
ponto em que é invencível.
— Como é que ela me teria matado se eu tivesse me movido?
— Teria dado um golpe como um raio. Mas, acima de tudo, teria guardado
sua alma e você teria minguado.
— O que vai acontecer agora, Dom Juan?
— Nada. Você conquistou sua alma de volta. Foi uma boa luta. Aprendeu
muitas coisas ontem à noite.
Em seguida, começamos a procurar a pedra que eu tinha atirado. Falou que,
se conseguíssemos encontrá-la, podíamos ter a certeza absoluta de que o assunto
estava encerrado. Procurando durante quase três horas. Eu tinha a impressão de
que a reconheceria.
Mas não consegui.
Naquele mesmo dia, no princípio da noite, Dom Juan levou-me para os
morros perto da casa dele. Ali, deu-me instruções longas e detalhadas sobre
métodos específicos de luta.
Em dado momento, ao repetir certos passes recomendados, encontrei-me
sozinho. Tinha subido uma ladeira correndo e estava ofegante. Suava muito e, no
entanto, estava com frio.
Chamei Dom Juan várias vezes, mas não respondeu, e eu comecei a ter uma
estranha apreensão. Ouvi um farfalhar no mato, como se alguém se estivesse
aproximando de mim.
Escutei atentamente, mas o barulho cessou. Depois, tornei a ouvi-lo, mais alto
e mais perto.
Naquele momento, ocorreu-me que os fatos da véspera iam-se repetir. Dentro
de alguns segundos, meu medo aumentou desproporcionadamente. O farfalhar
no mato aproximou-se mais e minhas forças minguavam. Queria gritar ou
chorar, fugir ou desmaiar. Meus joelhos se dobravam; caí no chão, gemendo.
Não conseguia nem fechar os olhos. Depois disso, só me lembro de que Dom
Juan fez uma fogueira e esfregou os músculos contraídos de meus braços e
pernas.
Fiquei num estado de desespero profundo, por várias horas. Depois, Dom Juan
explicou minha reação desproporcionada como sendo uma ocorrência comum.
Disse-lhe que não sabia analisar logicamente o que provocara meu pânico, e ele
respondeu que não era o medo da morte, e sim o medo de perder minha alma,
um medo comum entre os homens que não tem um propósito inabalável.
Essa experiência foi o último dos ensinamentos de Dom Juan. Desde então,
tenho evitado procurar suas lições. E embora Dom Juan não tenha mudado sua
atitude de benfeitor com relação a mim, acredito que eu tenha sucumbido ao
primeiro inimigo de um homem de conhecimento.
PARTE DOIS – UMA ANÁLISE ESTRUTURAL
O seguinte sistema estrutural, tirado dos dados sobre os estados da realidade
não comuns apresentados na primeira parte dessa obra, foi concebido como uma
tentativa de expor a coesão interna e a irrefutabilidade dos ensinamentos de Dom
Juan. A estrutura, conforme a avalio, compõe-se de quatro conceitos, que
constituem as principais unidades: (1) homem de conhecimento; (2) um homem
de conhecimento tinha um aliado; (3) um aliado tinha uma regra; e (4) a regra
foi corroborada por um consenso especial. Essas quatro unidades por sua vez são
compostas de uma série de idéias subsidiárias; assim, a estrutura total
compreende todos os conceitos significativos que foram apresentados até o
momento em que parei a aprendizagem. De certo modo, essas unidades
representam sucessivos níveis de análise, cada nível modificando o anterior.
(Para o esboço das unidades de minha análise estrutural, ver Apêndice (1).
Como essa estrutura conceitual depende totalmente do significado de todas as
suas unidades, o seguinte esclarecimento parece ser indicado neste ponto: em
toda essa obra, o significado foi exposto como o entendi. Os conceitos
componentes da sabedoria de Dom Juan, conforme os apresentei aqui, não
podiam ser a réplica exata do que ele mesmo disse. A despeito de todo o esforço
que eu fiz para apresentar esses conceitos o mais fielmente possível, seu
significado foi afetado por minhas próprias tentativas de classificá-los. A
disposição das quatro principais unidades desse sistema estrutural, porém, é uma
sequência lógica que parece estar isenta da influência de artifícios de
classificação estranhos, de minha concepção. Mas, no que diz respeito às idéias
componentes de cada unidade principal, foi impossível evitar minha influência
pessoal. Em certos pontos, são necessários recursos de classificação externos, a
fim de tornar os fenômenos compreensíveis. E, para desempenhar essa tarefa
aqui, foi necessário fazer um ziguezague dos pretensos significados e sistema de
classificação do mestre para os significados e recursos de classificação do
aprendiz.

A ORDEM OPERACIONAL

A PRIMEIRA UNIDADE

HOMEM DE CONHECIMENTO

Num estágio muito primário de minha aprendizagem, Dom Juan declarou que
o objetivo de seus ensinamentos era "mostrar como me tornar um homem de
conhecimento". Uso essa declaração como ponto de partida. 8 óbvio que tornar-
se um homem de conhecimento era um objetivo operacional. L igualmente
óbvio que todas as partes dos ensinamentos ordenados de Dom Juan estavam
ligados à execução desse objetivo, de uma maneira ou de outra. Meu raciocínio
aqui é que, nas circunstâncias, sendo "homem de conhecimento" um objetivo
operacional, isso deve ter sido indispensável para explicar alguma "ordem
operacional". Então, justifica-se concluir, que, a fim de compreender essa ordem
operacional, é preciso compreender seu objetivo: homem de conhecimento.
Depois de estabelecer "homem de conhecimento" como primeira unidade
estrutural, foi possível organizar com segurança os seguintes sete conceitos como
seus componentes próprios: (1) tornar-se um homem de conhecimento era
questão de aprendizagem; (2) um homem de conhecimento tem um propósito
inflexível; (3) um homem de conhecimento tem clareza de espírito; (4) para ser
um homem de conhecimento é preciso um trabalho exaustivo; (5) um homem de
conhecimento é um guerreiro; (6) ser um homem de conhecimento é um
processo incessante; e (7) um homem de conhecimento tem um aliado.
Esses sete conceitos são temas. Percorrem os ensinamentos, determinando
todo o caráter do conhecimento de Dom Juan. Como objetivo operacional de seu
ensinamento era produzir um homem de conhecimento, tudo o que ensinava era
imbuído das características específicas de cada um dos sete temas. Juntos
formava o conceito "homem de conhecimento" como uma maneira de a pessoa
se conduzir, um comportamento que era o resultado final de um treinamento
longo e arriscado. "Homem de conhecimento", porém, não era um guia de
comportamento, e sim uma série de princípios que abrangiam todas as
circunstâncias fora do comum pertinentes ao conhecimento que era ensinado.
Cada um dos sete temas é composto, por sua vez, de vários outros conceitos,
que abrangem suas facetas diferentes.
Pelas declarações de Dom Juan era possível supor-se que um homem de
conhecimento podia ser um diablero, isto é, um feiticeiro de magia negra.
Declarou que seu mestre era um diablero e ele também, no passado, embora
tivesse deixado de se ocupar de certos aspectos da prática da feitiçaria. Como o
objetivo de seus ensinamentos era mostrar como ser um homem de
conhecimento, e como seu conhecimento consistia em ser um diablero, podia
haver uma conexão inerente entre homem de conhecimento e diablero. Embora
Dom. Juan nunca usasse os dois termos indiferentemente, a probabilidade de
serem relacionados suscitava a possibilidade de que "homem de conhecimento",
com seus sete temas e seus conceitos componentes, abrangia, teoricamente,
todas as circunstâncias que poderiam surgir no curso de se tornar a pessoa um
diablero.
Tornar-se um Homem de Conhecimento – É uma Q uestão de
Aprendizagem
O primeiro tema tornava implícito o fato de que a aprendizagem era o único
meio possível para um homem tornar-se um homem de conhecimento, e isso,
por sua vez, implicava no ato de se fazer um esforço resoluto para conseguir um
objetivo. Ser um homem de conhecimento era o resultado final de um processo,
em oposição a uma aquisição imediata por um ato de graça ou pela doação por
poderes sobrenaturais. A plausibilidade de aprender a ser um homem de
conhecimento justificava a existência de um sistema para ensinar a consegui-lo.
O primeiro tema tinha três componentes: (1) não havia requisitos claros para
ser um homem de conhecimento; (2) havia alguns requisitos disfarçados; (3) a
decisão quanto a quem poderia aprender a ser um homem de conhecimento era
tomada por um poder impessoal.
Aparentemente, não havia pré-requisitos claros que poderiam determinar
quem seria, ou quem não seria qualificado para aprender como ser um homem
de conhecimento. Teoricamente, a tarefa estava às ordens de qualquer pessoa
que quisesse executá-la. No entanto, na prática, tal teoria não se coadunava com
o fato de que Dom Juan, como mestre, escolhia seus aprendizes.
De fato, qualquer mestre, nas circunstâncias, teria escolhido seus aprendizes,
pelo expediente de expô-los a alguns pré-requisitos disfarçados. A natureza
específica desses pré-requisitos nunca era formalizada; Dom Juan só insinuava
que havia certos indícios que a pessoa tinha de ter em mente quando considerava
um aprendiz em perspectiva. Os indícios a que se referia deviam revelar se o
candidato tinha ou não certa disposição de caráter, que Dom Juan denominava
"propósito inflexível".
Não obstante, a decisão final no que dizia respeito a quem podia aprender a
tornar-se um homem de conhecimento era deixada a um poder impessoal que
Dom Juan conhecia, mas que estava fora de sua esfera de vontade. O poder
impessoal parece que apontava a pessoa certa, permitindo que ela praticasse um
feito de natureza extraordinária, ou então criando uma série de circunstâncias
especiais em torno daquela pessoa. Daí, nunca havia qualquer conflito entre a
ausência de pré-requisitos claros e a existência de pré-requisitos disfarçados, não
revelados.
O homem que fosse destacado assim tornava-se o aprendiz. Dom Juan o
chamava o escogido, "aquele que foi escolhido". Mas ser um escogido significava
mais do que ser um simples aprendiz. Um escogido, pelo simples ato de ser
escolhido, por um poder, já era considerado diferente dos homens comuns. Já
era considerado um recipiente de uma quantidade mínima de poder, que devia
aumentar com a aprendizagem.
Mas aprender era um processo de uma busca inacabável, e o poder que
tomava a primeira decisão, ou um poder semelhante, deveria tomar decisões
semelhantes sobre se um escogido devia continuar a aprender ou se tinha sido
vencido. Essas decisões se manifestavam por meio de augúrios que ocorriam em
qualquer ponto dos ensinamentos. Quanto a isso, quaisquer circunstâncias
especiais a respeito de um aprendiz eram consideradas augúrios.
Um Homem de Conhecimento Tem um Propósito Inflexível
A idéia de que um homem de conhecimento precisa de um propósito
inflexível refere- se ao exercício da vontade. Ter um propósito inflexível quer
dizer ter a vontade de realizar um processo necessário, mantendo-se em todos os
momentos rigidamente dentro dos limites do conhecimento que está sendo
ensinado. Um homem de conhecimento precisa de uma vontade rígida a fim de
suportar a qualidade de obrigação que possuíam todos os atos quando executados
dentro do contexto de seu conhecimento.
A qualidade de obrigação de todos os atos executados dentro desse contexto e
o fato de serem inflexíveis e predeterminados sem dúvida eram desagradáveis
para todos os homens, e por isso uma certa percentagem de propósito inflexível
era procurada como o único requisito disfarçado necessário a um pretenso
aprendiz.
Um propósito inflexível compunha-se de: (1) frugalidade, (2) firmeza de
julgamento, e (3) falta de liberdade para inovar.
Um homem de conhecimento precisa da frugalidade porque a maior parte de
seus atos obrigatórios trata de situações ou dê elementos ou fora dos limites da
vida quotidiana, ou não habituais nas atividades comuns; e o homem que tivesse
de agir de acordo com eles precisa' de um esforço extraordinário cada vez que
agisse. Estava i., elícito que a pessoa só seria capaz de um esforço tão
extraordinário se fosse frugal em qualquer outra atividade que não tratasse
diretamente desses atos predeterminados.
Como todos os atos eram predeterminados e obrigatórios, um homem de
conhecimento precisa de firmeza de julgamento. Esse conceito não implica no
bom senso, mas sim a capacidade de avaliar as circunstâncias envolvendo
qualquer necessidade de agir. Uma orientação para uma tal avaliação era dada
juntando, como fundamento lógico, todas as partes dos ensinamentos que
estivessem ao comando da pessoa no momento dado em que qualquer ação
tivesse de ser executada. Assim, a orientação estava sempre mudando, à medida
que se aprendia mais partes; e no entanto, implicava sempre na convicção de que
todo ato obrigatório que se pudesse ter de desempenhar seria, de fato, o mais
apropriado nas circunstâncias.
Como todos os atos são preestabelecidos e compulsórios, ter de desempenhá-
los significa uma falta de liberdade para inovar. O sistema de Dom Juan para
transmitir o conhecimento estava tão bem estabelecido que não havia
possibilidade de alterá-lo de maneira alguma.
Um Homem de Conhecimento Tem Clareza de Espírito
Clareza de espírito é o tema que dá o sentido de direção. O fato de todos os
atos serem predeterminados significa que a orientação da pessoa dentro do
ensinamento sendo prestado é igualmente predeterminada; consequentemente, a
clareza de espírito dá apenas um sentido de direção. Reafirma continuamente a
validez do rumo tomado por meio das idéias componentes de: (1) liberdade de
buscar um caminho, (2) noção do propósito específico e (3) ser fluido.
Acreditava-se que a pessoa tivesse liberdade de procurar um caminho. Ter a
liberdade de escolher não era incompatível com a falta de liberdade de inovar;
essas duas idéias não eram opostas, nem interferiam uma com a outra. A
liberdade de buscar um caminho referia-se à liberdade de escolher entre
diferentes possibilidades de ação, que eram igualmente eficientes e utilizáveis. O
critério de escolher era a vantagem de uma possibilidade sobre as outras,
baseada na preferência da pessoa. Na verdade, a liberdade de escolher um
caminho implicava num sentido de direção pela expressão das tendências
pessoais.
Outro meio de criar um sentido de direção era pela idéia de que há um
propósito específico para cada ato executado no contexto do conhecimento sendo
transmitido. Por isso, o homem de conhecimento precisa de clareza de espírito a
fim de corresponder a suas próprias razões para agir com o propósito específico
de cada ação. O conhecimento do propósito especifico de cada ação era o guia
que usava para julgar as circunstâncias que envolvessem qualquer necessidade
de agir.
Outra faceta da clareza de espírito era a idéia de que um homem de
conhecimento, a fim de reforçar o desempenho de seus atos obrigatórios, precisa
reunir todos os recursos que os ensinamentos colocaram a seu dispor. Era esta a
idéia de ser fluido. Criava um sentido de direção dando à pessoa a sensação de
ser maleável e ter expediente. A qualidade compulsiva de todos os atos teria
imbuído a pessoa com uma sensação de rigidez ou esterilidade, se não fosse a
idéia de que um homem de conhecimento tem de ser fluido.
Para Ser um Homem de Conhecimento E Preciso um Trabalho
Exaustivo
Um homem de conhecimento tem de possuir, ou de adquirir no decurso de
seu treinamento, uma capacidade total de trabalho. Dom Juan declarou que, para
ser um homem de conhecimento, é preciso um trabalho exaustivo. Um trabalho
exaustivo demonstrava uma capacidade: (1) de fazer esforços dramáticos; (2) de
conseguir a eficiência; e (3) enfrentar um desafio.
No caminho do homem de conhecimento, um conhecimento do drama era,
sem dúvida, o fato isolado mais importante, e um tipo especial de esforços era
necessário para corresponder às circunstâncias que exigiam a exploração
dramática; isto é, um homem de conhecimento precisava do esforço dramático.
Tomando como exemplo o comportamento de Dom Juan, à primeira vista podia
parecer que sua atuação dramática era apenas sua própria mania de teatralidade.
No entanto, seus esforços dramáticos eram sempre muito mais do que uma
simples representação; eram, antes, um profundo estado de crença. Pelos
esforços dramáticos, transmitia a qualidade especial de finalidade a todos os atos
que praticava. Consequentemente, seus atos passavam-se num palco em que a
morte era um dos principais protagonistas. Era implícito que a morte era uma,
possibilidade real durante a aprendizagem, devido à nata= inerentemente
perigosa dos fatos com que lidava o homem de conhecimento; portanto, era
lógico que o esforço teatral criado pela convicção de que a morte era um ator
onipresente fosse mais do que simplesmente dramático.
Os esforços não acarretam apenas o drama, mas também a necessidade da
eficiência. Os esforços tinham de ser eficazes; tinham de possuir a qualidade de
serem devidamente canalizados, de serem adequados. A idéia da morte iminente
criava não só o drama necessário para a ênfase geral, mas também a convicção
de que todo ato envolvia uma luta pela sobrevivência, a convicção de que
sobreviria a aniquilação, se os esforços da pessoa não satisfizessem os requisitos
de ser eficazes.
Os esforços também encerram a idéia de desafio, isto é, o ato de verificar -e
provar se a pessoa é capaz de desempenhar um ato devido dentro dos limites
rigorosos do conhecimento objeto de ensinamento.
Um Homem de Conhecimento É um Guerreiro
A existência de um homem de conhecimento é uma luta incessante, e a idéia
de que ele é um guerreiro, levando vida de guerreiro, dava à pessoa os meios de
conseguir a estabilidade emocional. A idéia de um homem em guerra abrange
quatro conceitos: (1) um homem de conhecimento tem de ter respeito; (1.) ele
tem de ter medo; (3) ele tem de estar bem desperto; (4) ele tem de ter confiança
em si. Daí, ser um guerreiro é uma forma de autodisciplina que frisa a realização
individual; no entanto, é uma posição em que os interesses pessoais são reduzidos
a um mínimo, pois, na maioria dos casos, o interesse pessoal é incompatível com
o rigor necessário para executar qualquer ato predeterminado obrigatório.
Um homem de conhecimento em seu papel de guerreiro era obrigado a ter
uma atitude de consideração diferente pelas coisas com que lidava; tinha de
imbuir tudo que se relacionava com seu conhecimento com um respeito
profundo, a fim de colocar tudo numa perspectiva significativa. Ter respeito era o
equivalente a avaliar seus próprios recursos insignificantes diante do
Desconhecido.
Se a pessoa permanecesse nesse estado de espírito, a idéia de respeito
estendia-se logicamente para incluir a própria pessoa, pois o eu era tão
desconhecido quanto o próprio Desconhecido. Um sentimento de respeito tão
moderador transformava a aprendizagem desse conhecimento específico, que,
de outra forma, poderia parecer absurda, numa alternativa muito racional.
Outra necessidade da vida de um guerreiro era a necessidade de
experimentar e avaliar com cuidado a sensação do medo. O ideal era que, a
despeito do medo, a pessoa teria de prosseguir com seus atos. Supunha-se que o
medo fosse vencido e havia um momento dado na vida de um homem de
conhecimento em que era vencido, mas primeiro a pessoa tinha de ter
consciência de estar com medo e avaliar essa sensação. Dom Juan afirmava que
a pessoa só seria capaz de vencer o medo enfrentando-o.
Como guerreiro, um homem de conhecimento também precisava estar bem
desperto. Um homem em luta tinha de estar alerta para ter conhecimento da
maior parte dos fatores pertinentes aos dois aspectos obrigatórios da consciência:
(1) consciência de propósito e (2) consciência do fluxo esperado.
Consciência de propósito era o ato de ter conhecimento dos fatores envolvidos
no relacionamento entre o propósito específico de qualquer ato obrigatório e o
propósito específico da pessoa para agir. Como todos os atos obrigatórios têm um
propósito definido, um homem de conhecimento tem de estar bem desperto; isto
é, precisa ser capaz em todas as ocasiões de relacionar o propósito definido de
cada ato obrigatório com o motivo definido que ele tenha em mente para desejar
agir.
Um homem de conhecimento, estando consciente desse relacionamento,
também é capaz de tomar ciência do que se acredita poder esperar do fluxo. O
que chamei aqui de "consciência do fluxo esperado" refere-se à certeza de que
se é capaz em todos os momentos de verificar os importantes elementos
variáveis envolvidos no relacionamento entre o propósito específico de cada ato e
a razão específica da pessoa para agir. Estando consciente do fluxo esperado, a
pessoa devia poder verificar as modificações mais sutis. Essa consciência
propositada das modificações explica o reconhecimento e a interpretação de
augúrios e outros acontecimentos fora do comum.
O último aspecto da idéia do comportamento de um guerreiro era a
necessidade da confiança em si, isto é, a garantia de que o propósito específico
de um ato que a pessoa possa ter querido desempenhar era a única alternativa
plausível para seus próprios motivos específicos de agir. Sem a confiança em si, a
pessoa teria sido incapaz de preencher um dos aspectos mais importantes dos
ensinamentos: a capacidade de reivindicar o conhecimento como poder.
Ser um Homem de Conhecimento É um Processo Incessante
Ser um homem de conhecimento não é um estado que implique em
permanência. Nunca há a certeza de que, desempenhando-se passos
predeterminados do conhecimento ensinado, a pessoa se torne um homem de
conhecimento. Está implícito que a função dos passos é apenas mostrar como se
tornar um homem de conhecimento. Assim, tornar-se um homem de
conhecimento é uma tarefa que não se pode realizar plenamente; ou melhor, é
um processo incessante, que envolve: (1) a idéia de que é preciso renovar a
busca para ser um homem de conhecimento; (2) a idéia da transitoriedade da
pessoa; e (3) a idéia de que é preciso seguir um caminho com um coração.
A renovação constante da busca de se tornar um homem de conhecimento é
expressa no tema dos quatro inimigos simbólicos encontrados no caminho do
conhecimento: medo, clareza, poder e velhice. Renovar a busca implica em
conquistar e manter o controle sobre si mesmo. Um verdadeiro homem de
conhecimento deve combater cada um dos quatro inimigos, sucessivamente, até
o último momento de sua vida, a fim de se manter ativamente empenhado em
tornar-se um homem de conhecimento. No entanto, a despeito da verdadeira
renovação da busca, as circunstâncias eram inevitavelmente contra o homem;
ele sucumbiria a seu último inimigo simbólico. Era essa a idéia de
transitoriedade.
Contrabalançando o valor negativo da transitoriedade da pessoa, há a noção de
que é preciso seguir "o caminho com um coração". O caminho com coração é
uma maneira metafórica de asseverar que, a despeito de ser transitória, a pessoa
ainda assim tem de prosseguir e tem de ser capaz de encontrar satisfação e
realização pessoal no ato de escolher a alternativa mais acessível e identificar-se
completamente com ela.
Dom Juan sintetizou o fundamento lógico de todo seu conhecimento na
metáfora de que o importante para ele era encontrar o caminho com coração e
depois percorrer a sua extensão, significando que a identificação com a
alternativa acessível era o suficiente para ele. A viagem em si era suficiente;
qualquer esperança de chegar a uma posição permanente estava fora dos limites
de seu conhecimento.
A SEGUNDA UNIDADE

UM HOMEM DE CONHECIMENTO TEM UM ALIADO

A idéia de que um homem de conhecimento tem um aliado era o mais


importante dos sete temas componentes, pois é o único indispensável para
explicar o que é um homem de conhecimento. Na classificação de Dom Juan,
um homem de conhecimento tem um aliado, enquanto o homem comum não
tem, e ter um aliado é o que o distingue dos homens comuns.
Dom Juan descreve um aliado como sendo "um poder capaz de transportar o
homem além dos limites dele próprio"; isto é, um aliado é um poder que permite
à pessoa transcender o reino da realidade comum. Consequentemente, ter um
aliado implica em ter poder; e o fato de que um homem de conhecimento tem
um aliado é em si prova de que o objetivo operacional dos ensinamentos foi
atingido. Como esse objetivo era mostrar como se tornar um homem de
conhecimento, e como o homem de conhecimento é aquele que tem um aliado,
outra maneira de descrever o objetivo operacional dos ensinamentos de Dom
Juan seria dizer que eles também mostram como obter um aliado. O conceito
"homem de conhecimento", como o quadro filosófico do feiticeiro, tem um
significado para todos os que querem viver dentro daquele quadro somente se
tiverem um aliado.
Classifiquei este último tema componente do homem de conhecimento como
segunda principal unidade estrutural devido a ser indispensável para explicar o
que é um homem de conhecimento.
Nos ensinamentos de Dom Juan, havia dois aliados. O primeiro era contido
nas plantas de Datura, comumente conhecidas como estramônio. Dom Juan
chamava esse aliado por um dos nomes espanhóis da planta, y erba del dublo
(erva-do-diabo). Segando ele, qualquer espécie de Datura continha o aliado. No
entanto, todo feiticeiro tinha de cultivar um canteiro de uma espécie que ele
considerava sua, não apenas no sentido de que as plantas fossem sua propriedade
particular, mas no sentido de que estavam pessoalmente identificadas com ele.
As plantas de Dom Juan pertenciam à espécie inóxia; porém não parecia
haver nenhuma relação entre esse fato e as diferenças que possam ter existido
entre as duas espécies de Datura de que ele dispunha.
O segundo aliado era contido num cogumelo que identifiquei como
pertencente ao gênero Psilocy be; talvez fosse Psilocy be mexicana, mas a
classificação é apenas sugerida, pois não consegui obter um espécime para
análise em laboratório.
Dom Juan chamava esse aliado humito (fuminho), sugerindo que o aliado era
análogo ao fumo ou à mistura de fumo que ele fazia com o cogumelo. O fumo
era mencionado como se fosse o verdadeiro recipiente, e no entanto ele deixou
bem claro que o poder se ligava a apenas uma espécie de Psilocy be; assim, era
preciso um cuidado especial no momento da coleta a fim de não confundi-lo
com nenhum de uma dúzia de outras espécies do mesmo gênero que cresciam
na mesma zona.
Um aliado como conceito significativo incluía as seguintes idéias e
ramificações: (1) um aliado não tinha forma; (2) um aliado era percebido como
uma qualidade; (3) um aliado era domesticável; e (4) um aliado tinha um
regulamento.
Um Aliado Não Tinha Forma
Um aliado era suposto ser uma entidade que existia fora e independente da
pessoa, e no entanto, a despeito de ser uma entidade separada, supunha-se que o
aliado não tivesse forma. Estabeleci "sem forma" como condição oposta a "com
forma definida", distinção feita diante do fato de haver outros poderes
semelhantes a um aliado e que têm uma forma definidamente perceptível. A
condição sem forma do aliado significava que não possuía uma forma distinta, ou
vagamente definida, ou mesmo reconhecível; e essa condição implicava que um
aliado não era visível em momento algum.
Um Aliado Era Percebido como uma Q ualidade
Uma sequência à ausência de forma de um aliado era outra condição
expressa na idéia de que um aliado era percebido apenas como uma qualidade
dos sentidos; isto é, como um aliado não tinha forma, sua presença era observada
somente por seus efeitos sobre o feiticeiro. Dom Juan classificou alguns desses
efeitos como tendo qualidades antropomórficas. Descreveu um aliado como
tendo o caráter de um ser humano, insinuando assim que um feiticeiro individual
estava em posição de escolher o aliado mais adequado, comparando seu próprio
caráter com as supostas características antropomórficas de um aliado.
Os dois aliados referidos nos ensinamentos foram apresentados por Dom Juan
como tendo uma série de qualidades opostas. Dom Juan classificava o aliado
contido na Datura inóxia como possuindo duas qualidades: era feminino e dava
um poder supérfluo. Achava que essas duas qualidades eram totalmente
indesejáveis. Suas declarações sobre o assunto eram positivas, mas ele indicava
ao mesmo tempo que seu julgamento do caso era uma escolha puramente
personalista.
A característica mais importante era sem dúvida o que Dom Juan chamava de
sua natureza feminina. O fato de ele ser descrito como feminino, no entanto, não
significava que o aliado fosse um poder feminino. Parecia que a analogia com
uma mulher fosse apenas um meio metafórico de Dom Juan descrever o que ele
achava serem os efeitos desagradáveis do aliado. Além disso, o gênero do nome
da planta em espanhol, y erba, feminino, também pode ter ajudado a criar a
analogia feminina. De qualquer forma, a personificação dessa aliada como
poder feminino lhe atribuía as seguintes qualidades antropomórficas: (1) era
possessivo; (2) era violento; (3) era imprevisível; e (4) tinha efeitos nocivos.
Dom Juan acreditava que o aliado tinha o poder de escravizar os homens que
se tornavam seus seguidores; explicava essa qualidade como sendo possessiva,
que ele relacionava com o caráter de uma mulher. O aliado possuía seus
seguidores dando-lhes poder, criando um sentimento de dependência e dando-
lhes força física e bem-estar.
Esse aliado também era supostamente violento. Sua violência de mulher
manifestava- se quando forçava seus adeptos s cometerem atos destruidores, de
força bruta. E essa característica específica o tornava mais adequado a homens
de natureza violenta, que queriam encontrar na violência a chave poder pessoal.
Outra característica feminina era a imprevisibilidade. Para Dom Juan isso
significava que os efeitos do aliado nunca eram constantes; ao contrário,
supunha-se que mudavam irregularmente e não havia meio de prevê-los. A
inconstância do aliado devia ser contrabalançada pelo cuidado meticuloso e
dramático do feiticeiro em todos os detalhes do seu manuseio. Qualquer coisa
desfavorável que fosse inexplicável, como resultado de algum erro ou manuseio
errado, era explicado pela imprevisibilidade feminina do aliado.
Devido a sua possessividade, violência e imprevisibilidade, considerava-se que
esse aliado tivesse um efeito geral nocivo sobre o caráter de seus adeptos. Dom
Juan acreditava que o aliado queria transmitir suas características femininas, e
que seus esforços nesse sentido em geral eram bem sucedidos.
Mas, além de sua natureza feminina, esse aliado tinha outra faceta que
também era considerada uma qualidade: dava um poder supérfluo. Dom Juan foi
muito enfático nesse ponto, e frisou que, como doador de poder generoso, o
aliado era inigualável. Era suposto que desse a seus adeptos força física, uma
sensação de audácia e a capacidade de desempenhar feitos extraordinários. Na
opinião de Dom Juan, porém, um poder tão exorbitante era supérfluo; declarou
que, pelo menos para ele, não havia mais necessidade dele. Não obstante,
apresentava isso como um forte incentivo para um pretenso homem de
conhecimento, no caso de este ter uma inclinação natural para buscar o poder.
O ponto de vista partidário de Dom Juan era que o aliado contido na Psilocy be
mexicana, ao contrário, tinha as características mais apropriadas e mais valiosas:
(1) era masculina; e (2) era propiciadora do êxtase.
Descreveu aquele aliado como sendo a antítese do contido nas plantas de
Datura. Considerava-o masculino, viril. Sua condição de masculinidade parecia
ser análoga à feminilidade do outro aliado; isto é, não era um poder masculino,
mas Dom Juan o classificava em termos do que considerava ser procedimento
masculino. Nesse caso, também, o gênero masculino da palavra espanhola
humito pode ter sugerido a analogia com um poder masculino.
As qualidades antropomórficas deste aliado, que Dom Juan julgava serem
próprias de um homem, eram as seguintes: (1) era sem paixão; (2) era delicado;
(3) era previsível; e (4) tinha efeitos benéficos.
A idéia de Dom Juan acerca da natureza sem paixão do aliado era expressa na
crença de que era justo, de que nunca chegava a exigir atos extravagantes de
seus adeptos. Nunca tornava os homens seus escravos, pois não lhes conferia um
poder fácil; pelo contrário, humito era duro, mas justo com seus seguidores.
O fato de o aliado não exigir um comportamento abertamente violento
tornava-o delicado. Supunha-se que induzisse a uma sensação de falta de corpo, e
assim Dom Juan o apresentava como sendo calmo, delicado e propiciando a paz.
Também era previsível. Dom Juan descreveu seus efeitos sobre todos os seus
seguidores individuais e nas experiências sucessivas de qualquer homem isolado
como sendo constantes; em outras palavras, seus efeitos não variavam, ou, se o
faziam, eram tão semelhantes que eram considerados os mesmos.
Em consequência de ser desapaixonado, delicado e previsível, esse aliado,
pensava-se, tinha outra característica viril: um efeito benéfico sobre o caráter de
seus adeptos. A virilidade de humito devia criar um estado muito raro de
estabilidade emocional neles. Dom Juan acreditava que sob a orientação do
aliado, a pessoa podia temperar o coração e adquirir o equilíbrio.
Um corolário de todas as características viris do aliado, acreditava, era a
capacidade de provocar êxtase. Essa outra faceta de sua natureza também era
vista como uma qualidade. Acreditava-se que humito removia o corpo de seus
seguidores, permitindo-lhes assim realizarem formas especializadas de atividade,
pertinentes a um estado de ausência de corpo. E Dom Juan afirmava que essas
formas especializadas de atividade levavam inevitavelmente ao estado de êxtase.
O aliado contido na Psilocy be era considerado ideal para os homens cujas
naturezas os predispunham a procurar a contemplação.
Um Aliado Era Domesticável
A idéia de que um aliado fosse domesticável implicava que, como poder, tinha
o potencial de ser usado. Dom Juan explicou que era a capacidade inata do aliado
de ser utilizável; depois que um feiticeiro domesticava um aliado, pensava-se que
ele estivesse com o domínio de seu poder especializado, o que significava que ele
poderia manipulá-lo para sua vantagem particular. A capacidade que tinha um
aliado de ser domesticado contrapunha-se à incapacidade dos outros poderes, que
eram semelhantes ao aliado, com exceção do fato de não cederem para serem
manipulados.
A manipulação de um aliado tinha dois aspectos: (1) um aliado é um veículo; e
(2) um aliado é um auxiliar.
Um aliado é um veículo no sentido de que serve para transportar o feiticeiro
para o reino da realidade não comum. No que se refere a meus conhecimentos
pessoais, ambos os aliados serviam como veículos, embora a função tivesse
significados diferentes para cada um.
As qualidades gerais e indesejáveis do aliado contido na Datura inoxia,
especialmente sua qualidade de imprevisibilidade, o transformavam num veículo
perigoso, em que não se podia confiar. O ritual era a única proteção possível
contra sua inconstância, mas isso nunca bastava para garantir a estabilidade do
aliado; um feiticeiro que usasse esse aliado como veículo tinha de esperar
augúrios favoráveis antes de prosseguir.
O aliado contido na Psilocy be mexicana, ao contrário, era considerado um
veículo firme e previsível, em consequência de todas suas qualidades valiosas.
Como resultado de sua previsibilidade, um feiticeiro que usasse esse aliado não
precisava empenhar-se em nenhum ritual preparatório.
O outro aspecto da manipulação de um aliado era expresso na idéia de que
um aliado era um auxiliar. Ser um auxiliar significava que um aliado, depois de
servir a um feiticeiro como veículo, era novamente utilizável como auxiliar ou
guia para ajuda-lo a conquistar o objetivo que ele tivesse em mente, ao ingressar
no reino de realidade não comum.
Em sua capacidade de auxiliares, os dois aliados tinham propriedades
diferentes e sui generis. A complexidade e aplicabilidade dessas propriedades
aumentavam à medida que a pessoa avançava no caminho da aprendizagem.
Mas, em termos gerais, o aliado contido na Datura inoxia era considerado um
auxiliar extraordinário e essa capacidade parecia ser um corolário de sua
facilidade para dar poder supérfluo. O aliado contido na Psilocy be mexicana,
porém, era considerado um auxiliar ainda mais extraordinário. Dom Juan achava
que era sem igual na função de ser auxiliar, o que considerava uma extensão de
suas qualidades gerais valiosas.
A TERCEIRA UNIDADE

UM ALIADO TEM UM REGULAMENTO

A única idéia indispensável entre os componentes do conceito de "aliado" é a


de que ele tem um regulamento, para se explicar o que é um aliado. Devido a
essa indispensabilidade, coloquei-a como terceira: unidade principal nessa
classificação estrutural.
O regulamento, que Dom Juan também chamava a lei, era o rígido conceito
de organização que regulava todos os atos que tinham de ser executados e o
comportamento que devia ser observado em todo o processo de se lidar com o
aliado. O regulamento era transmitido verbalmente do mestre ao aprendiz,
idealmente sem alteração, por meio da interação mantida entre eles. O
regulamento era, pois, mais do que um conjunto de regras; era, antes, uma série
de esboços de atividade que dirigia o rumo a ser seguido no processo de
manipular um aliado.
Sem dúvida, muitos elementos teriam correspondido à definição de Dom Juan
de um aliado como sendo um "poder capaz de transportar um homem além dos
limites dele próprio". Quem aceitasse essa definição poderia conceber,
razoavelmente, que tudo o que possuísse essa faculdade poderia ser um aliado. E,
logicamente, até mesmo condições orgânicas produzidas pela fome, fadiga e
doença podiam servir como aliados, pois poderiam possuir a faculdade de
transportar o homem além do reino da realidade comum. Mas a idéia de que um
aliado tinha um regulamento eliminava todas essas possibilidades. Um aliado era
um poder que tinha um regulamento. Todas as outras possibilidades não podiam
ser consideradas aliadas porque não tinha regulamento.
Como conceito, o regulamento compreendia as seguintes idéias e seus vários
componentes: (1) o regulamento era inflexível; (2) o regulamento não era
cumulativo; (3) o regulamento era corroborado pela realidade comum; (4) o
regulamento era corroborado pela realidade não comum; e (S) o regulamento
era corroborado por um consenso especial.
O Regulamento Era Inflexível
Os esboços de atividade que constituíam o todo do regulamento eram passos
inevitáveis que a pessoa tinha de seguir a fim de alcançar o objetivo operacional
dos ensinamentos. Essa qualidade compulsória do regulamento era transmitida na
idéia de que era inflexível. A inflexibilidade do regulamento estava intimamente
ligada à idéia de eficiência. Os esforços dramáticos criavam uma incessante luta
pela sobrevivência e, nessas condições, somente o ato mais eficaz que a pessoa
pudesse praticar asseguraria a sobrevivência. Como não eram permitidos pontos
de referência individualistas, o regulamento Prescrevia os atos que constituíam a
única alternativa para a sobrevivência. Assim, o regulamento tinha de ser
inflexível; tinha de exigir uma obediência definida a seus comandos.
A obediência ao regulamento, porém, não era absoluta. Durante os
ensinamentos, registrei um caso em que sua inflexibilidade foi cancelada. Dom
Juan explicou aquele exemplo de variação como um favor especial, oriundo da
intervenção direta de um aliado. Naquele caso, devido a meu engano sem querer
ao manusear o aliado contido na Datura inoxia, o regulamento fora violado.
Dessa ocorrência, Dom Juan deduzia que um aliado tinha a faculdade de intervir
diretamente e impedir o efeito nocivo, e geralmente fatal, que resultava da não
obediência a seu regulamento. Essa prova de flexibilidade era sempre
considerada como o produto de um forte laço de afinidade entre o aliado e seu
seguidor.
O Regulamento Não Era Cumulativo
A suposição aqui era de que todos os métodos concebíveis de manipular um
aliado já tivessem sido usados. Teoricamente, o regulamento não era cumulativo;
não havia possibilidade de aumentá-lo. A idéia da natureza não cumulativa do
regulamento também se relacionava ao conceito da eficácia. Como o
regulamento ditava a única alternativa eficaz para a sobrevivência pessoal do
indivíduo, qualquer tentativa de modificá-lo ou alterar seu curso por inovações
era considerado não só um ato supérfluo, como mortal. Só havia a possibilidade
de se aumentar o conhecimento pessoal do regulamento, quer sob a orientação
do mestre, quer sob a orientação especial do próprio aliado. Este último era
considerado um exemplo de aquisição direta de conhecimento, e não um
acréscimo ao do regulamento.
O Regulamento Era Corroborado Pela Realidade Comum
A corroboração do regulamento significava o ato de verifica-lo, o ato de
atestar a sua validez, confirmando-o pragmaticamente de maneira experimental.
Como o regulamento tratava de situações de realidade comum e não comum,
sua corroboração se dava em ambas as áreas.
As situações de realidade comum com que lidava o regulamento muitas vezes
eram situações extraordinariamente fora do comum, porém, por mais anormais
que fossem, o regulamento era corroborado pela realidade comum. Por esse
motivo deve ser considerada fora do âmbito deste trabalho, devendo ser mais
propriamente o campo de outro estudo. Essa parte do regulamento trata dos
detalhes dos processos empregados no reconhecimento, coleta, mistura, preparo
e cultivo das plantas de poder em que são contidos os aliados, dos detalhes de
outros processos dos usos dessas plantas de poder e outras minúcias semelhantes.
O Regulamento Era Corroborado Pela Realidade Não Comum
O regulamento também era corroborado pela realidade não comum, e essa
corroboração era feita da mesma maneira pragmática e experimental de
revalidação que teria sido empregada em situações de realidade comum. A idéia
de corroboração pragmática envolvia dois conceitos: (1) encontros com o aliado,
que denominei estados de realidade não comum; e (2) os propósitos específicos
do regulamento.
Os estados de realidade não comum. — As duas plantas em que se continham
os aliados, quando utilizadas de acordo com os regulamentos respectivos dos
aliados, produziam estados de uma percepção especial, que Dom Juan
classificava de encontros com o aliado. Dava grande ênfase em provoca-los,
ênfase que se resumia na idéia de que a pessoa tinha de encontrar-se com o
aliado tantas vezes quantas fosse possível a fim de verificar seu regulamento de
maneira pragmática e experimental. A suposição era que a proporção do
regulamento que poderia ser verificada estava em relação direta com o número
de vezes que a pessoa encontrasse o aliado.
O método exclusivo de provocar um encontro com o aliado era, naturalmente,
por meio do uso adequado da planta em que o aliado era contido. Não obstante,
Dom' Juan sugeriu que, em certo estado avançado do conhecimento, os
encontros podiam realizar-se sem ouso da planta; isto é, podiam realizar-se por
um simples ato de vontade.
Denominei os encontros com o aliado estados de realidade não comum.
Escolhia expressão "realidade não comum", porque se coadunava com a
afirmação de Dom Juan, de que esses encontros se realizavam numa
continuidade da realidade, uma realidade que era apenas ligeiramente diferente
da realidade comum da vida quotidiana. Consequentemente, a realidade não
comum tem características específicas que podiam ser avaliadas supostamente
em termos iguais por todo mundo. Dom Juan nunca formulou essas
características de maneira definida, mas sua reserva parecia originar-se da idéia
de que cada homem tinha de reivindicar o conhecimento como assunto de
natureza pessoal.
As seguintes categorias, que considero as características específicas da
realidade não comum, foram tiradas de minha experiência pessoal. No entanto, a
despeito de sua origem aparentemente excêntrica, foram reforçadas e
desenvolvidas por Dom Juan nas premissas de seu conhecimento; conduziu seus
ensinamentos como se essas características fossem inerentes à realidade não
comum: (1) a realidade não comum era utilizável; (2) a realidade não comum
tinha elementos constituintes.
A primeira característica — de que a realidade não comum era utilizável —
implicava que ela servia para um serviço real. Dom Juan explicou várias vezes
que o objetivo primordial de seu conhecimento era a consecução de resultados
práticos, e que esse objetivo era pertinente na realidade comum e não comum.
Asseverava que em seu conhecimento havia os meios de se fazer trabalhar a
realidade não comum, do mesmo modo que a realidade comum. Segundo essa
afirmativa, os estados provocados pelos aliados eram produzidos com o intuito
propositado de serem utilizados. Nesse caso especial a explicação lógica de Dom
Juan era que os encontros com os aliados eram feitos para se aprender os
segredos deles, e esse fundamento lógico servia como um guia rígido para
eliminar outros motivos pessoais que se pudesse ter para procurar os estados de
realidade não comum.
A segunda característica da realidade não comum era que tinha elementos
constituintes. Esses elementos eram os itens, os atos e os acontecimentos que a
pessoa percebia, aparentemente com os sentidos, como fazendo parte de um
estado de realidade não comum. O quadro total da realidade não comum era
composto de elementos que pareciam possuir qualidades tanto dos elementos da
realidade comum como dos componentes de um sonho comum, embora não
fossem idênticos a nenhum dos dois.
Segundo minha opinião pessoal, os elementos componentes da realidade não
comum tinham três características suas: (1) estabilidade, (2) singularidade, e (3)
falta de consenso comum. Essas qualidades os faziam destacar-se como unidades
discretas, possuindo uma individualidade inconfundível.
Os elementos constituintes da realidade não comum tinham estabilidade no
sentido de serene constantes. Nesse ponto eram semelhantes aos elementos
constituintes da realidade comum, pois nem mudavam nem desapareciam, como
fariam os elementos componentes de sonhos comuns. Parecia que cada detalhe
que formava um elemento componente da realidade não comum tinha um
caráter concreto seu, caráter que eu percebia como sendo extraordinariamente
estável. A estabilidade era tão marcada que me permitia estabelecer o critério de
que, na realidade não comum, a gente possuía sempre a capacidade de fazer
uma parada at fim de examinar qualquer dos elementos componentes durante o
que parecia ser um espaço de tempo indefinido. A aplicação desse critério me
permitia distinguir os estados de realidade não comum usados por Dom Juan de
outros estados de percepção especial que podiam parecer ser realidade não
comum, mas que não correspondiam a esse critério.
A segunda característica exclusiva dos elementos constituintes da realidade
não comum — sua singularidade — significava que todo detalhe do elemento
constituinte era um item único e individual; parecia que cada detalhe fosse
isolado dos outros, ou que os detalhes apareciam um de cada vez. A singularidade
dos elementos parecia ainda criar uma necessidade única, que pode ter sido
comum a todos: a necessidade imperiosa, a compulsão de amalgamar todos os
detalhes isolados numa cena total, um composto total. Dom Juan obviamente
estava ciente dessa necessidade e utilizava-a em todas as ocasiões possíveis.
O terceiro característico único dos elementos constituintes, e o mais dramático
de todos, era a sua falta de consenso comum. A pessoa percebia os elementos
constituintes quando num estado de solidão completa, que era mais como a
solidão de um homem que presencia sozinho uma cena estranha na realidade
comum, do que a solidão do sonho. Como a estabilidade dos elementos
constituintes da realidade não comum permitia que a pessoa parasse para
examinar qualquer deles por um tempo aparentemente indefinido, quase
chegava a parecer que fossem elementos da vida quotidiana; no entanto, a
diferença entre os elementos constituintes dos dois estados de realidade era a sua
capacidade de consenso comum. Por consenso comum quero exprimir o acordo
tácito sobre os componentes da vida quotidiana que os homens se dão uns aos
outros de várias maneiras. Para os elementos constituintes da realidade não
comum, o consenso comum era inatingível. Nesse ponto, a realidade não comum
aproximava-se mais do estado de sonho do que da realidade comum. E no
entanto, devido a suas características únicas de estabilidade e singularidade, os
elementos constituintes da realidade não comum tinham um senso de realidade
forte que parecia fomentar a necessidade de revalidar a sua existência em
termos de consenso.
O objetivo específico do regulamento. — O outro componente do conceito de
que o regulamento era verificado na realidade não comum era a idéia de que o
regulamento tinha um objetivo específico. Esse objetivo era a conquista,
geralmente com o uso de um aliado, de uma meta utilitária. No contexto dos
ensinamentos de Dom Juan, supunha-se que o regulamento fosse aprendido
corroborando-se o mesmo na realidade comum e na não comum.
A faceta decisiva dos ensinamentos, contudo, era a corroboração do
regulamento nos estados de realidade não comum; e o que era corroborado nos
atos e elementos percebidos na realidade não comum era o objetivo específico
do regulamento. Esse objetivo específico tratava do poder do aliado, isto é, da
manipulação do aliado primeiro como veículo e depois como auxiliar, mas Dom
Juan sempre tratava cada caso do objetivo específico do regulamento como uma
unidade única, implicitamente abrangendo essas duas áreas.
Como o objetivo específico referia-se à manipulação do poder do aliado, tinha
uma sequência inseparável — as técnicas de manipulação.
As técnicas de manipulação eram os processos, as operações em si,
envolvidas em cada caso da manipulação do poder de um aliado. A idéia de que
um aliado podia ser manipulado comprovava sua utilidade na consecução de
objetivos pragmáticos, e as técnicas de manipulação eram os processos que se
supunha tornarem o aliado usável.
O propósito específico e as técnicas de manipulação constituíam uma unidade
única que o feiticeiro tinha de conhecer precisamente a fim de poder comandar
seu aliado com eficiência.
Os ensinamentos de Dom Juan incluíam os seguintes objetivos específicos dos
regulamentos dos dois aliados. Organizei-os aqui na mesma ordem em que ele os
apresentou a mim. O primeiro objetivo específico que era observado na
realidade não comum era a prova com o aliado contido na Datura inoxia. A
técnica de manipulação era de ingerir uma poção feita com uma seção da
ingestão dessa poção produzia produzia um estado superficial de realidade não
comum, que Dom Juan utilizou para me testar, verificando se eu tinha ou não
como aprendiz em perspectiva, afinidade com o aliado contido na planta. A
poção devia produzir ou uma sensação de bem-estar físico não especificada, ou
uma sensação de grande desconforto, efeitos que Dom Juan considerava,
respectivamente, como um sinal de afinidade ou a falta dela.
O segundo objetivo específico era a adivinhação. Também fazia parte do
regulamento do aliado contido na Datura inoxia. Dom Juan considerava a
adivinhação uma forma de movimento especializado, na suposição de que um
feiticeiro era transportado pelo aliado para um compartimento especial da
realidade não comum, em que ele era capaz de adivinhar fatos que lhe eram
desconhecidos.
A técnica de manipulação do segundo objetivo era um processo de ingestão-
absorção. Uma poção feita com a raiz de Datura era ingerida e um unguento
feito com as sementes de Datura era esfregado nas partes temporal e frontal da
cabeça. Usei a expressão "ingestão-absorção" porque a ingestão podia ter sido
ajudada pela absorção da pele para produzir um estado de realidade não comum,
ou a absorção pela pele podia ser ajudada pela ingestão.
Essa técnica de manipulação exigia a utilização de outros elementos além da
planta de Datura, no caso, os dois lagartos. Deviam servir ao feiticeiro como
instrumentos de movimento, significando aqui a percepção de estar num reino
especial, em que se pode ouvir o lagarto falar e depois visualizar o que ele disse.
Dom Juan explicava esses fenômenos como sendo os lagartos respondendo às
perguntas que foram feitas para serem adivinhadas.
O terceiro objetivo específico do regulamento do aliado contido nas plantas de
Datura tratava de outra forma especializada de movimento, o vôo corporal.
Conforme explicou Dom Juan, um feiticeiro que usasse esse aliado era capaz de
voar corporalmente por distâncias enormes; o vôo corporal era a capacidade do
feiticeiro de se mover pela realidade não comum e depois voltar à sua vontade
para a realidade comum.
A técnica de manipulação do terceiro objetivo específico também era um
processo de ingestão-absorção. Uma poção feita com a raiz de Datura era
ingerida e um unguento feito com as sementes de Datura era esfregado nas solas
dos pés, na parte interna das duas pernas e nos órgãos genitais.
O terceiro objetivo específico não era corroborado profundamente; Dom Juan
sugeriu que não tinha revelado outros aspectos da técnica de manipulação que
permitissem ao feiticeiro adquirir um sentido de direção enquanto se movia.
O quarto objetivo específico do regulamento era a prova do aliado contido na
Psilocy be mexicana. A prova não visava apenas determinar a afinidade ou falta
de afinidade com o aliado, mas, antes, ser uma inevitável primeira experiência,
ou o primeiro encontro com o aliado.
A técnica de manipulação do quarto objetivo específico utilizava uma mistura
de fumo feita de cogumelos secos misturados com várias partes de cinco outras
plantas, nenhuma das quais, que se soubesse, com propriedades alucinógenas. O
regulamento frisava o ato de inspirar o fumo da mistura; assim, o mestre usava a
palavra humito (fuminho) para referir-se ao aliado contido nela. Mas denominei
esse processo "ingestão-inspiração por ser uma combinação de primeiro ingerir e
depois inspirar. Os cogumelos, por serem macios, secavam produzindo um pó
muito fino que era meio difícil queimar. Os outros ingredientes se reduziam a
tiras, quando secos. Essas tiras eram incineradas no fornilho do cachimbo
enquanto o pó dos cogumelos, que não ardia tão facilmente, era sugado para a
boca e ingerido. Logicamente, a quantidade de cogumelos secos ingerida era
maior do que a quantidade de tiras queimadas e inspiradas.
Os efeitos do primeiro estado de realidade não comum provocado pela
Psilocy be mexicana deram ensejo à breve preleção de Dom Juan sobre o quinto
objetivo específico do regulamento. Tratava do movimento -movimento com o
auxilio do aliado contido na Psilocy be mexicana, para dentro e através de objetos
inanimados ou para dentro e através de seres animados. A técnica completa de
manipulação podia incluir a sugestão hipnótica, além do processo da ingestão-
inspiração. Como Dom Juan apresentou esse objetivo específico através de uma
breve preleção, que não foi verificada posteriormente, foi-me impossível avaliar
corretamente qualquer de seus aspectos.
O sexto objetivo específico do regulamento verificado na realidade não
comum, que também envolvia o aliado contido na Psilocy be mexicana, tratava
de outro aspecto do movimento -o movimento adotando uma forma diferente.
Este aspecto do movimento estava sujeito à mais intensa verificação. Dom Juan
asseverava que era necessária uma prática assídua a fim de dominá-lo.
Afirmava que o aliado contido na Psilocy be mexicana tinha a capacidade
inerente de fazer com que o corpo do feiticeiro desaparecesse; assim, a idéia de
adotar uma outra forma era uma possibilidade lógica para conseguir o
movimento em condições de ausência de corpo. Outra possibilidade lógica para
conseguir movimentos era, naturalmente, a movimentação através dos objetos e
seres, sobre a qual Dom Juan falara brevemente.
A técnica de manipulação do sexto objetivo específico do regulamento incluía
não apenas a ingestão-inspiração, mas também, segundo todas as indicações, a
sugestão hipnótica. Dom Juan lançara essa sugestão nos estágios transitórios para
a realidade não comum, e também durante a primeira parte dos estados de
realidade não comum. Classificava o processo aparentemente hipnótico como
sendo apenas sua supervisão pessoal, significando que não me revelara a técnica
de manipulação completa naquela determinada ocasião.
A adoção de uma forma diferente não significava que o feiticeiro estivesse
livre para adotar, a qualquer momento, qualquer forma que ele quisesse assumir;
ao contrário, implicava um treinamento de toda a vida para assumir uma forma
preconcebida. A forma preconcebida que Dom Juan preferira adotar era a de
um corvo, e consequentemente ele frisava essa forma determinada em seus
ensinamentos. Mas deixou bem claro que o corvo era sua escolha pessoal, e que
havia inúmeras outras formas preconcebidas possíveis.
A Q UARTA UNIDADE

O REGULAMENTO ERA CORROBORADO POR


CONSENSO ESPECIAL

Entre os conceitos constituintes que formavam o regulamento, o que era


indispensável para explicá-lo era que o regulamento era corroborado por
consenso especial; todos os outros conceitos constituintes em si eram insuficientes
para explicar o significado do regulamento.
Dom Juan deixou bem claro que um aliado não é doado a um feiticeiro, mas
que um feiticeiro aprendia a manipular o aliado pelo processo de corroborar seu
regulamento. O pro cesso de aprendizagem total envolvia a verificação do
regulamento na realidade não comum, bem como na comum. No entanto, a
faceta crucial dos ensinamentos de Dom Juan era a corroboração do
regulamento de maneira pragmática e experimental no contexto do que a pessoa
percebia como sendo os elementos constituintes da realidade não comum. Mas
esses elementos constituintes não estavam sujeitos a um consenso comum, e se a
pessoa fosse incapaz de conseguir um acordo sobre sua existência, sua realidade
percebida só teria sido uma ilusão. Como o homem teria de ficar sozinho na
realidade não comum, por causa de sua solidão, tudo o que ele percebesse teria
de ser excêntrico. A solidão e a excentricidade eram consequências do fato
suposto de que nenhum outro ser humano lhe poderia dar um consenso comum
sobre suas percepções.
Nesse ponto, Dom Juan apresentou a parte constituinte mais importante de
seus ensinamentos: forneceu-me um consenso especial sobre os atos e elementos
que eu percebera na realidade não comum, atos elementos que supostamente
deviam corroborar o regulamento. Nos ensinamentos de Dom Juan, o consenso
especial significava uma concordância tácita ou implícita sobre os elementos
constituintes da realidade não comum, que ele, em sua capacidade de mestre,
dava a mim, como aprendiz de seu conhecimento. Esse consenso especial não
era de modo algum fraudulento ou espúrio, tal como uma ou duas pessoas
poderiam dar-se ao descrever os elementos constituintes de seus sonhos
individuais. O consenso especial que Dom Juan fornecia era sistemático, e para
fornecê-lo ele pode ter precisado da totalidade de seu conhecimento. Com a
aquisição de um consenso sistemático, os atos e os elementos percebidos na
realidade não comum tornavam-se consensualmente reais, o que significava, no
esquema de classificação de Dom Juan, que o regulamento do aliado tinha sido
corroborado. O regulamento tinha significado como conceito, então, somente
enquanto era sujeito a um consenso especial, pois, sem ama concordância
especial quanto a sua corroboração, o regulamento teria sido uma construção
puramente excêntrica.
Devido ao fato de ser indispensável para explicar o regulamento, tornei a idéia
de que o regulamento fosse corroborado por consenso especial a quarta unidade
principal desse esquema estrutural. Essa unidade, por ser basicamente a
interação entre dois indivíduos, compunha-se de: (1) o benfeitor, ou o guia para o
conhecimento a ser ensinado, o agente que fornecia o consenso especial; (2) o
aprendiz ou sujeito para quem era fornecido o consenso especial.
O fracasso ou o êxito em conseguir o objetivo operacional dos ensinamentos
residia nessa unidade. Assim, o consenso especial era a culminação precária do
seguinte processo: um feiticeiro tinha uma característica distinta, a posse de um
aliado, que o diferençava dos homens comuns. Um aliado era um poder que
tinha a propriedade especial de ter um regulamento. E a característica sui generis
do regulamento era a sua corroboração na realidade não comum por meio do
consenso especial.
O Benfeitor
O benfeitor era o agente sem o qual a corroboração do regulamento teria sido
impossível. A fim de fornecer o consenso especial, ele desempenhava as duas
tarefas de: (1) preparar o ambiente para o consenso especial para a
corroboração do regulamento e (2) orientar o consenso especial.
Preparação do Consenso Especial
A primeira tarefa do benfeitor era preparar o ambiente necessário para
provocar o consenso especial para a corroboração do regulamento. Como meu
mestre, Dom Juan me fez: (1) experimentar outros estados de realidade não
comum que ele explicou como sendo bem distintos daqueles produzidos para
corroborar o regulamento dos aliados; (2) participar com ele de certos estados de
realidade comum que pareciam ter sido produzidos por ele mesmo; e (3)
recapitular cada experiência detalhadamente. A tarefa de Dom Juan, de preparar
um consenso especial, consistia em reforçar e confirmar a corroboração do
regulamento, dando um consenso especial sobre os elementos constituintes desses
novos estados de realidade não comum, e sobre os elementos constituintes dos
estados especiais de realidade comum.
Os outros estados de realidade não comum que Dom Juan me fez
experimentar foram provocados pela ingestão do cacto Lophophora williamsii,
comumente conhecido por peiote. Geralmente a parte superior do cacto era
cortada e guardada até secar e, depois, mastigada e ingerida; mas, em
circunstâncias especiais, a parte superior era ingerida quando ainda fresca. A
ingestão, porém, não era o único meio de experimentar um estado de realidade
não comum com a Lophophora williamsii. Dom Juan sugeriu que estados
espontâneos de realidade não comum ocorriam em condições sui generis, e ele
as classificou como dádivas do poder contido na planta.
A realidade não comum provocada pela Lophophora williamsii tinha três
características distintas: (1) acreditava-se que fosse produzida por uma entidade
denominada "Mescalito"; (2) era utilizável; e (3) tinha elementos constituintes.
Mescalito era suposto ser um poder único, semelhante a um aliado no sentido
de permitir que a pessoa transcendesse os limites da realidade comum, mas
também bem diferente de um aliado. Como um aliado, Mescalito era contido
numa planta definida, o cacto Lophophora williamsii. Mas, ao contrário de um
aliado, que era apenas contido numa planta, Mescalito e a planta que o continha
eram o mesmo; a planta era o centro de manifestações francas de respeito,
merecendo uma veneração profunda. Dom Juan acreditava firmemente que, sob
certas condições, como num estado de profunda aquiescência para com
Mescalito, o simples ato de estar próximo ao cacto produziria um estado de
realidade não comum.
Mas Mescalito não tinha regulamento e, por esse motivo, não era um aliado,
embora fosse capaz de transportar o homem além dos limites da realidade
comum. O fato de não ter regulamento não só barrava Mescalito de ser usado
como aliado, pois que, sem um regulamento, ele não podia ser manipulado,
como ainda o tornava um poder muito diferente de um aliado.
Como consequência direta de não ter regulamento, Mescalito à disposição de
qualquer homem, sem a necessidade de uma longa aprendizagem ou o
compromisso de técnicas de manipulação, como exigia um aliado. E como ele
estava disponível sem qualquer treinamento, Mescalito era considerado um
protetor. Ser um protetor significava que podia ser alcançado por qualquer
pessoa. E no entanto, Mescalito como protetor era acessível a todos; e, com
certos a indivíduos, não era compatível. Segundo Dom Juan, essa
incompatibilidade era causada pela discrepância entre a "moralidade inflexível”
de Mescalito e o caráter duvidoso do próprio indivíduo.
Mescalito também era um mestre. Supunha-se que tivesse funções didáticas.
Era um diretor, um guia para o procedimento correto. Mescalito ensinava o
caminho do bem. A idéia que Dom Juan fazia do caminho do bem parecia ser
um sentido de correção que consistia não de retidão em termos de moral, mas de
uma tendência para simplificar os padrões de comportamento nos termos da
eficiência promovida por seus ensinamentos. Dom Juan acreditava que Mescalito
a simplificação ensinava ação do comportamento.
Acreditava-se que Mescalito fosse uma entidade. E como tal era suposto ter
uma forma definida, que geralmente não era constante nem previsível. Essa
qualidade indicava que Mescalito era percebido de maneiras diferentes não só
por homens diferentes, como também pelo mesmo homem em ocasiões
diferentes. Dom Juan exprimiu essa idéia em termos da faculdade de Mescalito
de adotar qualquer formes a concebível. Para os indivíduos com quem ele era
compatível, porém adotava uma forma imutável, depois que eles tivessem
participado dele por alguns anos.
A realidade não comum produzida por Mescalito era utilizável, e nesse ponto
era idêntica à produzida por um aliado. A única diferença era o fundamento
lógico que Don Juan usava em seus ensinamentos para provocá-la: a pessoa
devia procurar "as lições de Mescalito sobre o caminho certo".
A realidade não comum provocada por Mescalito também tinha elementos
constituintes, e aqui mais uma vez os estados de realidade não comum produzidos
por Mescalito e por um aliado eram idênticos. Em ambos, os característicos dos
elementos constituintes eram a estabilidade, singularidade e falta de consenso.
O outro processo que Dom Juan usava parara preparar, o ambiente para o
consenso especial era fazer-me coparticipar de estados especiais de realidade
comum. Um estado especial de realidade comum era uma situação que podia
ser descrita em termos das propriedades da vida de todo dia, só que poderia ser
impossível conseguir um consenso comum sobre seus elementos constituintes.
Dom Juan preparou o ambiente para o consenso especial da corroboração do
regulamento, dando um consenso especial sobre os elementos constituintes dos
estados especiais da realidade comum. Esses elementos constituintes eram
elementos da vida de todo dia, cuja existência podia ser confirmada somente por
Dom Juan, por concordância especial. Isso era uma suposição de minha parte,
pois, como coparticipante dos estados especiais da realidade comum, eu
acreditava que somente Dom Juan, como outro coparticipante, poderia saber
quais os elementos constituintes que formavam o estado especial de realidade
comum.
Em minha opinião pessoal, os estados especiais de realidade comum eram
produzidos por Dom Juan, embora ele nunca tenha confessado fazê-lo. Parece
que o conseguia por meio de uma manipulação hábil de indiretas e sugestões
para dirigir meu comportamento. Denominei esse processo de "manipulação de
sugestões". Tinha dois aspectos: (1) dar sugestões sobre o ambiente e (2) dar
sugestões sobre o comportamento.
No correr de seus ensinamentos, Dom Juan fez-me experimentar dois desses
estados. Pode ter produzido o primeiro dando sugestões sobre o ambiente. O
fundamento lógico de Dom Juan para produzi-lo era que eu precisava de um
teste para provar minhas boas intenções, e só depois que ele me deu um consenso
especial a respeito de seus elementos constituintes é que consentiu em começar
seus ensinamentos. Por "sugestões sobre o ambiente", quero significar que Dom
Juan me levara a um estado especial de realidade comum, isolando, por
sugestões sutis, elementos constituintes da realidade comum que faziam parte do
meio ambiente físico imediato. Os elementos isolados dessa maneira criavam
nesse caso uma percepção visual específica de cor, que Dom Juan verificou
tacitamente.
O segundo estado de realidade comum pode ter sido produzido por sugestões
sobre o comportamento. Dom Juan, por uma associação íntima comigo, e por
um comportamento constante, tinha conseguido criar uma imagem dele,
imagem que me servia de padrão essencial pelo qual eu o reconhecia. Então
executando certas reações específicas escolhidas, que, eram irreconciliáveis
com a imagem que ele criara, Dom Juan foi capaz de modificar esse padrão
essencial de reconhecimento.
A distorção, por sua vez, pode ter modificado a configuração normal dos
elementos associados com o padrão num padrão novo e incongruente, que não
poderia estar sujeito ao consenso comum; Dom Juan, como coparticipante
daquele estado especial de realidade comum, era a única pessoa que sabia quais
eram os elementos constituintes, e assim era a única pessoa que me poderia dar
concordância sobre sua existência.
Dom Juan produziu o segundo estado especial de realidade comum também
cerro prova, como uma espécie de recapitulação de seus ensinamentos. Parecia
que ambos os estados especiais de realidade comum marcavam uma transição
nos ensinamentos. Demonstravam ser um ponto de articulação. E o segundo
estado pode ter marcado meu ingresso num novo estágio de aprendizagem,
caracterizado por uma coparticipação mais direta entre a mestre e o aprendiz,
para as finalidades de se chegar a um consenso especial.
O terceiro processo usado por Dom Juan para preparar um consenso especial
foi fazer com que eu desse um relato detalhado do que experimentara depois de
cada estado de realidade não comum e cada estado especial de realidade
comum, e depois frisar certas unidades escolhidas, que ele isolava do meu relato.
O fator essencial era dirigir os resultados dos estados de realidade não comum e
minha suposição implícita aqui era que as características dos elementos
constituintes da realidade não comum — estabilidade, singularidade e falta de
consenso comum — eram inerentes a eles e não o resultado da orientação de
Dom Juan. Essa suposição baseava-se sobre a observação de que os elementos
constituintes do primeiro estado de realidade não comum que experimentei
possuíam as mesmas três características, e no entanto Dom Juan mal começara
sua orientação. Supondo, pois, que essas características fossem inerentes aos
elementos constituintes de realidade não comum em geral, a tarefa de Dom Juan
consistia em utilizá-las como base para dirigir o resultado de cada estado de
realidade não comum produzido pela Datura inoxia, Psilocy be mexicana e
Lophophora williamsii.
O relato detalhado que Dom Juan me obrigava a prestar depois de cada estado
de realidade não comum era uma recapitulação da experiência. Encerrava uma
meticulosa narrativa verbal do que eu tinha percebido durante cada estado. Uma
recapitulação tinha duas facetas: (1) á recordação dos fatos e (2) a descrição de
elementos constituintes percebidos. A recordação dos fatos dizia respeito aos
incidentes que eu parecia ter percebido durante a experiência que estava
narrando: isto é, os fatos que pareciam ter acontecido e os atos que pareciam ter
sido praticados. A descrição dos elementos constituintes percebidos era meu
relato da forma específica e dos detalhes específicos dos elementos constituintes
que eu parecia ter percebido.
De cada recapitulação da experiência, Dom Juan escolhia certas unidades por
meio dos processos de: (1) dar importância a certos setores apropriados de minha
narrativa e (2) negar qualquer importância a outros setores de minha narrativa. O
intervalo entre os estados de realidade não comum era o período em que Dom
Juan dissertava sobre a recapitulação da experiência.
Denominei o primeiro processo de "ênfase" porque acarretava uma
especulação portentosa sobre a distinção entre o que Dom Juan concebera como
os objetivos que eu deveria atingir no estado de realidade não comum e o que eu
mesmo tinha percebido. Ênfase significava, portanto, que Dom Juan isolava certo
setor de minha narrativa, centralizando ali o grosso de suas especulações. Ênfase
podia ser positiva ou negativa. A ênfase positiva insinuava que Dom Juan estava
satisfeito com um determinado item que eu percebera porque se conformava
com os objetivos que ele esperava que eu conseguisse no estado de realidade não
comum. A ênfase negativa significava que Dom Juan não estava satisfeito com o
que eu percebera porque podia não se coadunar com as expectativas dele ou
porque o julgasse insuficiente. Não obstante, ainda colocava o grosso de suas
especulações naquele setor de minha recapitulação, a fim de frisar o valor
negativo de minha percepção.
O segundo processo seletivo que Dom Juan empregava era negar toda
importância a alguns setores de minha narrativa. Denominei isso de "falta de
ênfase" porque era o oposto de ênfase. Parecia que, negando importância às
partes de meu relato referentes aos elementos constituintes que ele considerava
inteiramente supérfluos ao objetivo de seus ensinamentos, Dom Juan literalmente
obliterava minha percepção dos mesmos elementos nos sucessivos estados de
realidade não comum.
Orientando o Consenso Especial
O segundo aspecto da tarefa de Dom Juan como mestre era orientar o
consenso especial, dirigindo o resultado de cada estado de realidade não comum
e cada estado especial de realidade comum. Dom Juan dirigia esse resultado por
meio de uma manipulação ordenada dos níveis extrínsecos e intrínsecos da
realidade não comum e do nível intrínseco dos estados especiais de realidade
comum.
O nível extrínseco da realidade não comum pertencia a sua disposição
operativa. Envolvia a mecânica, os passos que conduziam à realidade não
comum propriamente dita. O nível extrínseco tinha três aspectos discerníveis: (1)
o período preparatório, (2) os estágios transitórios e (3) a supervisão do mestre.
O período preparatório era o tempo decorrido entre um e outro estado de
realidade não comum. Dom Juan costumava dar-me instruções diretas e
desenvolver o rumo geral de seus ensinamentos. O período preparatório era de
importância vital em estabelecer os estados de realidade não comum e, como
girava sobre eles, tinha duas facetas distintas: (1) o período anterior à realidade
não comum e (2) o período seguinte à realidade não comum.
O período anterior à realidade não comum era um intervalo de tempo
relativamente curto, 24 horas no máximo. Nos estados de realidade não comum
produzidos pela Datura inoxia e Psilocy be mexicana, o período era caracterizado
pelas instruções dramáticas e aceleradas, diretas, sobre o objetivo específico do
regulamento e as técnicas de manipulação que eu devia corroborar no próximo
estado de realidade não comum. Com a Lophophora williamsii o período era
essencialmente de comportamento ritual, pois que Mescalito não tinha
regulamento.
O período que se seguia à realidade não comum, por outro lado, era bastante
longo; geralmente durava meses e permitia que Dom Juan discutisse e
esclarecesse os acontecimentos ocorridos durante o estado anterior de realidade
não comum.
Esse período era especialmente importante depois do uso da Lophophora
williamsii. Como Mescalito não tinha regulamento, o objetivo procurado na
realidade não comum era a verificação das características de Mescalito; Dom
Juan esboçava essas características durante os longos intervalos que se seguiam a
cada estado de realidade não comum.
O segundo aspecto do nível extrínseco eram os estados de transição, que
significam a passagem de um estado de realidade comum para um estado de
realidade não comum, e vice-versa. Os dois estados de realidade se
sobrepunham nesses estágios de transição, e o critério que eu usava para
diferençar esses estágios de qualquer dos estados de realidade era o fato de
serem os seus constituintes nebulosos. Nunca conseguia percebê-los ou lembrar-
me deles com exatidão.
Nos termos do tempo percebido, os estágios de transição eram ou abruptos ou
lentos. No caso da Datura inoxia, os estados de realidade comum e não comum
quase se sobrepunham, e a transição de um para o outro se fazia abruptamente.
As mais marcantes eram as passagens para a realidade não comum. A.
Psilocy be mexicana, por sua vez, provocava estágios de transição que eu
percebia serem lentos. A passagem da realidade comum para a não comum era
especialmente prolongada e perceptível. Sempre tinha mais noção dela, talvez
por causa de minha apreensão a respeito dos acontecimentos futuros.
Os estágios de transição provocados pela Lophophora williamsii pareciam
combinar características dos outros dois. Para começar, tanto as passagens para
a realidade não comum e a saída dela eram muito óbvias. A entrada na realidade
não comum era lenta e eu a experimentava quase sem alteração de minhas
faculdades; mas a volta à realidade comum era um estágio de transição abrupto,
que eu percebia com clareza, mas com menos facilidade de avaliar cada
detalhe.
O terceiro aspecto do nível extrínseco era a supervisão do mestre, ou o auxílio
real que eu, como aprendiz, recebia enquanto experimentava um estado de
realidade não comum. Estabeleci a supervisão como uma categoria à parte
porque implicava que o mestre teria de ingressar na realidade não comum com o
aprendiz, em certo ponto dos ensinamentos.
Durante os estados de realidade não comum provocados pela Datura inoxia
recebi um mínimo de supervisão. Dom Juan dava muita importância a cumprir
os passos do período preparatório, mas depois que eu tivesse satisfeito esse
requisito, deixava-me prosseguir sozinho.
Na realidade não comum provocada pela Psilocy be mexicana, o grau de
supervisão era o oposto completo, pois aí, segundo Dom Juan, o aprendiz
precisava de muita orientação e auxilio. A corroboração do regulamento
obrigava a adoção de uma outra forma, o que parecia sugerir que eu teria de
passar por uma série de ajustamentos muito especializados na percepção do
ambiente. Dom Juan produzia esses ajustamentos necessários por meio de ordens
verbais e sugestões durante os estágios de transição para a realidade não comum.
Outro aspecto de sua supervisão era dirigir-me durante a primeira parte dos
estágios de realidade não comum, ordenando que focalizasse minha atenção em
certos elementos constituintes do estado de realidade comum anterior. Os itens
que ele focalizava aparentemente eram escolhidos ao acaso, pois o importante
era o ato de aperfeiçoar a forma adotada. O aspecto final da supervisão era
devolver-me à realidade comum. Era implícito que essa operação também
exigia um máximo de supervisão da parte de Dom Juan, embora não me lembre
do processo exato.
A supervisão necessária para os estados provocados pela Lophophora
williamsii era um misto das duas outras. Dom Juan permanecia a meu lado pelo
tempo que podia, e no entanto não tentava de modo algum dirigir-me para dentro
ou para fora da realidade não comum.
O segundo nível de ordem diferenciativa na realidade não comum eram os
padrões aparentemente internos ou a organização aparentemente interna de seus
elementos constituintes. Denominei isso de "nível intrínseco", e supus aqui que os
elementos componentes eram sujeitos a três processos gerais, que pareciam ser
o produto da orientação de Dom Juan: (1) um progresso para o específico; (2)
um progresso para um âmbito mais extenso de apreciação; e (3) um progresso
para uma utilização mais pragmática da realidade não comum.
O progresso para o específico era o avanço aparente dos elementos
constituintes de cada estado sucessivo de realidade não comum no sentido de
tornar-se mais preciso, mais específico. Acarretava dois aspectos distintos: (1)
um progresso para formas individuais específicas; e (2) um progresso para
resultados totais específicos.
O progresso para formas individuais específicas implicava que os elementos
constituintes eram amorfamente conhecidos nos primeiros estados de realidade
não comum e se tornavam específicos e desconhecidos nos últimos estados. O
progresso parecia abranger dois níveis de modificação nos elementos
constituintes da realidade não comum: (1) uma complexidade progressiva de
detalhes percebidos; e (2) um progresso das formas conhecidas para as
desconhecidas.
Uma crescente complexidade de detalhes significava que em cada estado
sucessivo de realidade não comum, os mínimos detalhes que eu percebia como
integrando os elementos constituintes tornavam-se mais complexos. Eu avaliava
a complexidade em termos de estar ciente de que a estrutura dos elementos
constituintes tornava-se mais complicada, e no entanto os detalhes não se
tornavam excessivamente ou desconcertantemente emaranhados. A maior
complexidade referia-se antes ao aumento harmonioso dos detalhes percebidos,
que variavam desde as minhas impressões de formas vagas, nos primeiros
estados, até minha percepção de conjuntos maciços e complexos de detalhes
mínimos nos últimos estados.
O progresso de formas conhecidas para desconhecidas implicava que a
princípio, as formas dos elementos constituintes ou eram formas conhecidas
encontradas na realidade comum, ou pelo menos evocavam a familiaridade da
vida de todo dia. Mas nos estados sucessivos de realidade não comum, as formas
específicas, os detalhes de constituir a forma e os padrões em que eram
combinados os elementos constituintes tornavam-se progressivamente
desconhecidos, até que eu não conseguisse mais compará-los com, e, em alguns
casos, nem mesmo evocar, qualquer coisa que eu jamais tivesse percebido na
realidade comum.
O progresso dos elementos constituintes para os resultados totais específicos
era a aproximação gradativamente mais íntima do resultado total que eu
conseguia com cada estado de realidade não comum ao resultado total que Dom
Juan procurava, em matéria de corroborar o regulamento; isto é, a realidade não
comum era provocada para corroborar o regulamento, e a corroboração
tornava-se mais específica com cada tentativa sucessiva.
O segundo processo geral do nível intrínseco da realidade não comum era o
progresso para um âmbito mais extenso de apreciação. Em outras palavras, era a
melhoria que eu percebia em cada estado sucessivo de realidade não comum
para a expansão da área sobre a qual eu podia ter exercido minha faculdade de
focalizar a atenção. O ponto em pauta aqui era ou que existia uma área definida
que se expandia, ou que minha capacidade de perceber parecia aumentar em
cada estado sucessivo. Os ensinamentos de Dom Juan fomentavam e
reforçavam a idéia de que havia uma área que se expandia, e denominei essa
chamada área de "campo de apreciação". Sua expansão progressiva consistia de
uma apreciação aparentemente sensorial que eu fazia dos elementos constituintes
da realidade não comum que pertencesse a certo âmbito. Avaliava e analisava
esses elementos constituintes, ao que parecia, com meus sentidos, e para todos os
efeitos percebia o âmbito em que eles ocorriam como sendo mais extenso e
abrangendo mais coisas em cada estado sucessivo.
O âmbito de apreciação era de dois tipos: (1) o âmbito dependente e (2) o
âmbito independente. O âmbito dependente era uma área em que os elementos
constituintes eram os itens do ambiente físico que tinha estado dentro de minha
consciência no estado de realidade comum anterior. O âmbito independente, ao
contrário, era a área em que os elementos constituintes da realidade não comum
pareciam passar a existir por si, livres da influência do ambiente físico da
realidade comum anterior.
A referência clara de Dom Juan, em matéria de âmbito e apreciação, era que
cada um dos dois aliados e Mescalito possuíam a propriedade de provocar as
duas formas de percepção. No entanto, parecia-me que a Datura inoxia tinha
maior capacidade de provocar um âmbito independente, embora na faceta do
vôo corporal, que não percebi por tempo suficiente para poder avaliá-lo, o
âmbito de apreciação fosse implicitamente dependente. A Psilocy be mexicana
tinha a capacidade de produzir um âmbito dependente; e a Lophophora williamsii
tinha a capacidade de produzir ambos.
Minha suposição era que Dom Juan utilizava essas propriedades diferentes a
fim de preparar um consenso especial. Em outras palavras, nos estados
produzidos pela Datura inoxia os elementos constituintes que não tinham consenso
comum existiam independentemente da realidade comum anterior. Com a
Psilocy be mexicana, a falta de consenso comum envolvia elementos
constituintes que dependiam do ambiente da realidade comum anterior. E no caso
da Lophophora williamsii, alguns dos elementos constituintes eram determinados
pelo ambiente, enquanto outros eram independentes do ambiente. Assim, o uso
das três plantas juntas parecia ter sido destinado a criar uma vasta percepção da
falta de consenso comum quanto aos elementos constituintes da realidade não
comum.
O último processo do nível intrínseco da realidade não comum era a
progressão que eu percebia em cada estado sucessivo para um uso mais
pragmático da realidade não comum. Essa progressão parecia estar relacionada
com a idéia de que cada novo estado era um estágio de aprendizagem mais
complexo, e que a complexidade crescente de cada novo estágio exigia um uso
mais inclusivo e pragmático da realidade não comum. A progressão era mais
notada quando se usava a Lophophora williamsii; a existência simultânea de um
âmbito de apreciação dependente e independente em cada estado tornava o uso
pragmático da realidade não comum mais extenso, pois abrangia ambos os
âmbitos de uma vez.
Dirigindo-se o resultado dos estados especiais da realidade comum, parecia
que se produzia uma ordem no nível intrínseco, uma ordem caracterizada pela
progressão dos elementos constituintes para o específico; isto é, os elementos
constituintes eram mais numerosos e eram isolados mais facilmente em cada
estado sucessivo de realidade comum. Durante seus ensinamentos, Dom Juan só
provocou dois deles, mas ainda assim era possível eu verificar que, no segundo,
foi mais fácil a Dom Juan isolar um grande número de elementos constituintes, e
que a facilidade de resultados específicos afetava a rapidez com que era
produzido o segundo estado especial de realidade comum. (Para o processo de
comprovar o consenso especial, ver Apêndice A).
A ORDEM CONCEITUAL

O APRENDIZ

O aprendiz era a última unidade da ordem operacional. O aprendiz era, em si,


a unidade que focalizava os ensinamentos de Dom Juan, pois tinha de aceitar a
totalidade do consenso especial dado aos elementos constituintes de todos os
estados de realidade não comum e todos os estados especiais de realidade
comum, antes que o consenso especial se tornasse um conceito significativo. Mas
o consenso especial, devido a ocupar-se dos atos e elementos percebidos na
realidade não comum, acarretava uma ordem especial de conceituação, uma
ordem que colocava esses atos e elementos percebidos de acordo com a
corroboração do regulamento. Portanto, a aceitação do consenso especial
significava para mim, como aprendiz, a adoção de um certo ponto de vista
comprovado pela totalidade dos ensinamentos de Dom Juan; isto é, significava a
minha entrada num nível conceitual, um nível compreendendo uma ordem de
conceituação que tornaria os ensinamentos compreensíveis em seus próprios
termos. Chamei-a de "ordem conceituai" porque era a ordem que dava
significado aos fenômenos fora do comum que constituíam o conhecimento de
Dom Juan; era a matriz do significado em que todos os conceitos desenvolvidos
em seus ensinamentos estavam embutidos.
Considerando, pois, que o objetivo do aprendiz consistia em adotar essa ordem
conceitual, ele tinha duas alternativas: podia fracassar em seus esforços, ou podia
ter êxito.
A primeira alternativa, o fracasso na adoção da ordem conceitual, também
significava que o aprendiz não conseguira alcançar o objetivo operacional dos
ensinamentos. A idéia do fracasso era explicada no tema dos quatro inimigos
simbólicos do homem de conhecimento; estava implícito que o fracasso não era
apenas o ato de não continuar na busca do objetivo, mas o ato de abandonar
totalmente a busca, sob a pressão criada por qualquer dos quatro inimigos
simbólicos. O mesmo tema tornava claro também que os dois primeiros inimigos
o medo e a clareza -eram a causa da derrota do homem no nível de aprendiz,
que a derrota naquele nível significava o fracasso no aprendizado de dominar um
aliado e que, como consequência desse fracasso, o aprendiz adotara a ordem
conceitua) de maneira superficial e capciosa. Isto é, sua adoção da ordem
conceitual era capciosa no sentido de ser uma afiliação fraudulenta ao
significado proposto pelos ensinamentos, ou um compromisso fraudulento com o
mesmo. A idéia era que, ao ser derrotado, o aprendiz, além de ser incapaz de
dominar o aliado, ficaria apenas com o conhecimento de certas técnicas de
manipulação, mais a recordação dos elementos constituintes da realidade não
comum percebidos, mas ele não identificaria o fundamento lógico que poderia
dar-lhes sentido em si. Nessas circunstâncias, qualquer homem poderia ser
forçado a desenvolver suas próprias explicações para setores escolhidos
arbitrariamente dos fenômenos que ele experimentara, e esse processo
acarretaria a adoção falha do ponto de vista proposto pelos ensinamentos de Dom
Juan. Uma adoção capciosa da ordem conceitual, porém; aparentemente não se
restringia somente aos aprendizes. No tema dos inimigos de um homem de
conhecimento, também era implícito que o homem, depois de conseguir o
objetivo de aprender a comandar um aliado, ainda poderia sucumbir aos assaltos
de seus dois outros inimigos — o poder e a velhice. No esquema de categorias de
Dom Juan, uma derrota dessas implicava que o homem tinha caído numa adoção
superficial ou capciosa da ordem conceitual, como o tinha o aprendiz derrotado.
A adoção bem sucedida da ordem conceitual, por outro lado, significava que o
aprendiz tinha alcançado o objetivo operacional — uma adoção de boa-fé, sob o
ponto de vista proposto nos ensinamentos. Isto é, sua adoção da ordem conceitual
era de boa-fé por ser uma afiliação completa e um compromisso completo com
o significado expresso naquela ordem de conceituação.
Dom Juan nunca esclareceu o ponto exato em que, nem a maneira exata pela
qual, um aprendiz deixava de ser aprendiz, embora estivesse clara a insinuação
de que, uma vez alcançado o objetivo operacional do sistema — isto é, desde que
ele soubesse dominar um aliado — ele não mais necessitaria do mestre para
orientação. A idéia de que viria um momento em que as diretivas do mestre
seriam supérfluas implicava que o aprendiz conseguiria adotar a ordem
conceitual e, ao fazê-lo, adquiriria a capacidade de tirar conclusões significativas
sem o auxílio do mestre.
No que dizia respeito aos ensinamentos de Dom Juan, e até o momento em
que parei meu aprendizado, a aceitação do consenso especial parecia acarretar a
adoção de duas unidades da ordem conceitual: (1) a idéia de uma realidade de
consenso especial; (2) a idéia de que a realidade do consenso comum, de todo
dia, e a realidade do consenso especial tinham um valor igualmente pragmático.
Realidade do Consenso Especial
O âmago dos ensinamentos de Dom Juan, como ele mesmo dizia, referia-se à
utilização das três plantas alucinógenas com as quais ele provocava os estados de
realidade não comum. A utilização dessas três plantas parece ter sido assunto de
propósito deliberado de sua parte. Parece tê-las empregado porque cada uma
possuía diferentes propriedades alucinógenas, que interpretava como as
diferentes naturezas inerentes dos poderes contidos nelas. Dirigindo os níveis
extrínsecos e intrínsecos da realidade não comum, Dom Juan explorava as
diferentes propriedades alucinógenas até que elas criaram em mim, como
aprendiz, a percepção de que a realidade não comum era uma área
perfeitamente definida, um reino separado da vida normal, de todo dia, cujas
propriedades inerentes eram reveladas à medida que eu progredia.
Não obstante, também era possível que as supostas propriedades diferentes
pudessem ser apenas o produto do próprio processo de Dom Juan de dirigir a
ordem intrínseca da realidade não comum, embora em seus ensinamentos ele
explorasse a idéia de que o poder contido em cada planta provocava estados de
realidade não comum que eram diferentes uns dos outros. Se isso fosse verdade,
suas diferenças nos termos das unidades desta análise parecem ter sido no âmbito
de apreciação que a pessoa poderia perceber nos estados provocados por cada
um dos três. Devido às peculiaridades de seu âmbito de apreciação, todas três
contribuíam para produzir a percepção de uma área ou campo perfeitamente
definidos, consistindo de dois compartimentos: o âmbito independente, chamado
o campo dos lagartos, ou as lições de Mescalito; e o âmbito dependente,
referindo-se à área em que a pessoa podia mover-se por seus próprios meios.
Uso a expressão "realidade não comum", como já foi observado, no sentido
de uma realidade extraordinária, fora do comum. Para um aprendiz principiante
essa realidade era, de toda forma, fora do comum, mas o aprendizado do
conhecimento de Dom Juan exigia minha participação compulsória e meu
compromisso com a prática pragmática e experimental de tudo o que eu tinha
aprendido. Isso significava que eu, como o aprendiz, tinha de experimentar uma
série de estados de realidade não comum e que o conhecimento de primeira
mão, mais cedo ou mais tarde, tornaria as classificações "comum" e "não
comum" sem significado para mim. A adoção em boa-fé da primeira unidade da
ordem conceitual teria, pois, acarretado a idéia de que havia outro reino de
realidade, separado mas não mais fora do comum, a "realidade do consenso
especial". Aceitando como premissa principal que a realidade do consenso
especial era um campo separado, teria explicado a idéia de que os encontros
com os aliados ou com Mescalito tinham lugar num campo que não era ilusório.
A Realidade do Consenso Especial Tinha Valor Pragmático
O mesmo processo de dirigir os níveis extrínsecos e intrínsecos de realidade
não comum, que pareciam ter criado o reconhecimento da realidade do
consenso especial como campo separado, também parecia ser responsável por
minha percepção de que a realidade do consenso especial era prática e utilizável.
A aceitação, do consenso especial em todos os estados de realidade não comum e
em todos os estados especiais de realidade comum destinava-se a consolidar a
consciência de que ele era igual à realidade do consenso comum, de todo dia.
Essa igualdade baseava-se na impressão de que a realidade do consenso especial
não era um campo que pudesse ser equacionado com os sonhos. Ao contrário,
tinha elementos constituintes estáveis que estavam sujeitos a uma concordância
especial. Era, na verdade, um campo onde a pessoa podia perceber o ambiente
de maneira propositada. Seus elementos constituintes não eram excêntricos nem
caprichosos, mas, sim, itens precisos ou fatos cuja existência era comprovada
por todo o conjunto dos ensinamentos.
A implicação da igualdade era clara no tratamento que Dom Juan dava à
realidade do consenso especial, um tratamento que era utilitário e natural; em
momento algum ele se referiu a ela, nem eu tinha de me comportar com ela de
qualquer maneira a não ser de forma utilitária e natural. O fato de as duas áreas
serem consideradas iguais, porém, não significava que a qualquer momento a
pessoa poderia comportar-se do mesmo modo em qualquer das áreas. Pelo
contrário, o comportamento do feiticeiro tinha de ser diferente, pois cada área de
realidade tinha qualidades que a tornavam utilizável a seu próprio modo. O fator
de definição em termos de significado parecia ser a idéia de que essa igualdade
podia ser medida em termos de utilidade prática. Assim, um feiticeiro tinha de
acreditar que era possível passar de uma área para a outra, que ambas eram
inerentemente utilizáveis, e que a única dessemelhança entre as duas era sua
diferente capacidade de serem usadas, isto é, os diferentes propósitos a que
serviam.
No entanto, seu isolamento parecia ser apenas um arranjo adequado que era
pertinente a meu nível especial de aprendizado, que Dom Juan usava para me
tornar ciente de que podia existir outro campo de realidade. Mas pelos seus atos,
mais cio que por suas declarações, eu era levado a crer que, para um feiticeiro,
só havia uma única continuidade de realidade que tinha duas partes, ou talvez
mais do que duas, das quais ele tirava deduções de valor pragmático. A adoção
de boa-fé da idéia de que a realidade do consenso especial tinha valor
pragmático teria dado uma perspectiva significativa ao movimento.
Se eu tivesse aceito a idéia de que a realidade do consenso especial era
utilizável porque possuía propriedades inerentemente utilizáveis que eram tão
pragmáticas quanto as da realidade do consenso de todo dia, então teria sido
lógico para mim compreender por que Dom Juan explorava a noção de
movimento na realidade do consenso especial. Depois de aceitar a existência
pragmática de outra realidade, a única coisa que o feiticeiro tinha a fazer seria
aprender a mecânica do movimento. Naturalmente, o movimento naquele caso
tinha de ser especializado, porque dizia respeito às propriedades inerentes,
pragmáticas, do consenso especial.
RESUMO
Os pontos de minha análise foram os seguintes:
1. O fragmento dos ensinamentos de Dom Juan que apresentei aqui consistiu
em dois aspectos: a ordem operacional ou sequência significativa em que todos
os conceitos individuais de seus ensinamentos eram ligados uns aos outros, e a
ordem conceituai ou matriz de significado em que todos os conceitos individuais
de seu ensino estavam embutidos.
2. A ordem operacional seguida tinha quatro unidades principais com suas
respectivas idéias componentes: (1) o conceito "homem de conhecimento"; (2) a
idéia de que um homem de conhecimento tinha o auxílio de um poder
especializado chamado um aliado; (3) a idéia de que um aliado era governado
por um conjunto de regras denominado regulamento; e (4) a idéia de que a
corroboração do regulamento estava sujeita a um consenso especial.
3. Essas quatro unidades relacionavam-se da seguinte maneira: o objetivo da
ordem operacional era ensinar à pessoa como se tornar um homem de
conhecimento; um homem de conhecimento era diferente dos homens comuns
porque tinha um aliado; um aliado era um poder especializado, que tinha um
regulamento; a pessoa podia adquirir ou domesticar um aliado pelo processo de
verificar seu regulamento no campo da realidade não comum e obtendo um
consenso especial nessa corroboração.
4. No contexto dos ensinamentos de Dom Juan, tornar-se um homem de
conhecimento não era uma realização permanente, e sim um processo. Isto é, o
fator que determinava um homem de conhecimento não era apenas a posse de
um aliado, mas a luta da vida toda do homem para se manter dentro dos limites
de um sistema de crenças. Os ensinamentos de Dom Juan, contudo, visavam
resultados práticos, e seu objetivo prático, com relação a ensinar a tornar-se um
homem de conhecimento, era ensinar a adquirir um aliado aprendendo seu
regulamento. Assim, o objetivo da ordem operacional era fornecer à pessoa um
consenso especial sobre os elementos constituintes percebidos na realidade não
comum, que eram considerados a corroboração do regulamento do aliado.
5. A fim de fornecer um consenso especial sobre a corroboração do
regulamento do aliado, Dom Juan tinha de fornecer um consenso especial para
os elementos constituintes de todos os estados de realidade não comum e os
estados especiais de realidade comum provocados no decorrer de seus
ensinamentos. O consenso especial, portanto, tratava dos fenômenos fora do
comum, fato que me permitia supor que qualquer aprendiz, aceitando o consenso
especial, era levado a adotar a ordem conceitual do conhecimento sendo
ensinado.
6. Do ponto de vista de meu estágio pessoal de aprendizagem, podia deduzir
que até o momento em que me retirei do aprendizado, os ensinamentos de Dom
Juan haviam fomentado a adoção de duas unidades da ordem conceitual: (1) a
idéia de que havia um campo separado de realidade, outro mundo, que chamei
de "realidade do consenso especial"; (2) a idéia de que a realidade do consenso
especial, ou esse outro mundo, era tão utilizável quanto o mundo da vida de todo
dia.
Quase seis anos depois que comecei o aprendizado, os conhecimentos de Dom
Juan tornaram-se um todo coerente, pela primeira vez. Compreendi que ele tinha
visado fornecer um consenso de boa-fé para as minhas descobertas pessoais, e
embora não continuasse porque não estava, nem nunca estarei, preparado para
suportar os rigores de um tal treinamento, meu próprio jeito de satisfazer os
padrões dele de esforço pessoal foi minha tentativa de compreender seus
ensinamentos. Senti que era imperioso provar, nem que fosse só para mim, que
eles não eram uma excentricidade.
Depois de ter organizado meu esquema estrutural, e de ser capaz de desprezar
muitos dados supérfluos a meu esforço inicial de descobrir a força lógica dos
ensinamentos dele, tornou-se claro para mim que eles tinham uma coesão
interna, uma sequência lógica que me permitia visualizar todo o fenômeno numa
luz que eliminava o sentido de extravagância que era a marca de tudo o que
experimentara. Era óbvio para mim que meu aprendizado era apenas o começo
de um caminho muito longo. E as experiências fatigantes que tivera tão
avassaladoras para mim, não passavam de um fragmento muito pequeno de um
sistema de pensamento lógico do qual Dom Juan tirava conclusões significativas
para a sua vida de todo dia, um sistema de crenças vastamente complexo, em
que as indagações eram uma experiência que conduzia à exultação.
APÊNDICES

APÊNDICE A – O PROCESSO DE COMPROVAR O


CONSENSO ESPECIAL
Comprovar o consenso especial exigia, a cada momento, a cumulação dos
ensinamentos de Dom Juan. Para o fim de explicar o processo cumulativo,
organizei a comprovação do consenso especial de acordo com a sequência em
que ocorreram os estados de realidade não comum e de realidade comum
especial. Dom Juan não parecia ter fixado o processo de dirigir a ordem
intrínseca da realidade não comum e da realidade comum especial de maneira
exata; parece ter isolado as unidades para a direção de maneira um tanto fluida.
Dom Juan começou a preparar o ambiente para o consenso especial
produzindo o primeiro estado especial de realidade comum pelo processo de
manipular sugestões a respeito do ambiente. Por esse método, isolou certos
elementos constituintes do campo da realidade comum e, isolando-os, dirigiu-me
para perceber unia progressão para o específico, neste caso a percepção de
cores que pareciam emanar de dois pequenos pontos no chão. Ao serem isolados,
esses pontos de coloração ficavam privados do consenso comum; parecia que só
eu era capaz de vê-los, e assim criam um estado especial de realidade comum.
Isolar aqueles dois pontos no chão, privando-os do consenso comum, servia
para estabelecer o primeiro elo entre a realidade comum e a não comum. Dom
Juan me orientou para perceber uma porção da realidade comum de maneira
desacostumada; isto é, transformou certos elementos comuns em itens que
precisavam de um consenso especial.
A sequência do primeiro estado especial de realidade comum foi minha
recapitulação da experiência; daí Dom Juan selecionou a percepção de
diferentes áreas de coloração como as unidades para a ênfase positiva. Para
ênfase negativa, isolou o relato de meu medo e fadiga e a possibilidade de minha
falta de persistência.
Durante o período preparatório subsequente, colocou o grosso das
especulações nas unidades que tinha isolado, e transmitiu a idéia de que era
possível distinguir no ambiente mais do que o comum. Das unidades suscitadas
pela minha recapitulação, Dom Juan também introduziu alguns dos conceitos
componentes do homem de conhecimento.
Como segundo passo no preparo do consenso especial para a corroboração do
regulamento, Dom Juan provocou um estado de realidade não comum com a
Lophophora williamsii. O conteúdo total daquele primeiro estado de realidade
não comum era meio vago e dissociado, e no entanto os elementos constituintes
eram muito bem definidos; percebi suas características de estabilidade,
singularidade e falta de consenso comum quase tão claramente quanto nos
estados posteriores. Essas características não eram tão óbvias, talvez por minha
falta de prática; era a primeira vez que experimentava a realidade não comum.
Era impossível verificar o efeito da orientação prévia de Dom Juan sobre o
rumo real da experiência; no entanto, sua mestria em dirigir o resultado de
subsequentes estados de realidade não comum ficou bem clara, desse ponto em
diante.
De minha recapitulação da experiência, escolheu as unidades para orientar a
progressão para formas individuais específicas e resultadas totais. Tomou
conhecimento de meus atos com um cão e ligou isso à idéia de que Mescalito era
uma entidade visível. Era capaz de adotar qualquer forma; sobretudo, era uma
entidade fora da pessoa.
O relato de meus atos também serviu para Dom Juan estabelecer a
progressão para um âmbito de apreciação mais vasto; nesse caso o progresso foi
para um campo dependente. Dom Juan deu ênfase positiva à noção de que eu
me tinha movido e agido na realidade não comum quase como o teria feito na
vida de todo dia.
O progresso para uma utilização mais pragmática da realidade não comum
era feito dando ênfase negativa ao relato de minha incapacidade de prestar uma
atenção lógica aos elementos constituintes percebidos. Dom Juan sugeriu que
seria possível para mim examinar os elementos com independência e precisão;
essa idéia suscitava duas características da realidade não comum, que era
pragmática e que tinha elementos constituintes que podiam ser avaliados
sensorialmente.
A falta de consenso comum para os elementos constituintes era demonstrada
dramaticamente por uma interação de ênfase positiva e negativa colocadas nos
pontos de vista de observadores que examinavam meu comportamento durante o
decurso daquele primeiro estado de realidade não comum.
O período preparatório que se seguiu ao primeiro estado de realidade não
comum durou mais de um ano. Dom Juan usou esse tempo para apresentar mais
conceitos componentes do homem de conhecimento, e para revelar algumas
partes dos regulamentos dos dois aliados. Ainda provocou um estado superficial
de realidade não comum a fim de verificar minha afinidade com o aliado
contido na Datura inoxia. Dom Juan utilizava todas as sensações vagas que tive no
curso daquele estado superficial para esboçar as características gerais do aliado,
contrastando-o com o que ele tinha isolado como as características perceptíveis
de Mescalito.
O terceiro passo para preparar o consenso especial na corroboração do
regulamento foi provocar outro estado de realidade não comum com a
Lophophora williamsii. A orientação prévia de Dom Juan pareceu guiar-me para
perceber esse segundo estado de realidade não comum da seguinte maneira:
O progresso para o específico criava a possibilidade de se visualizar um ente
cuja forma tinha mudado extraordinariamente, da forma conhecida de um cão
no primeiro estado para a forma completamente desconhecida de um composto
antropomórfico que existia, aparentemente, fora de mim.
O progresso para um âmbito de apreciação mais vasto era evidente em minha
percepção de uma viagem. Durante essa viagem o campo de apreciação era
tanto dependente como independente, embora uma maioria dos elementos
constituintes dependesse do ambiente do estado de realidade comum anterior.
O progresso para um uso mais pragmático da realidade comum talvez fosse a
característica mais marcante em meu segundo estado. Tornou-se evidente para
mim, de maneira complexa e detalhada, que a pessoa podia mover-se na
realidade não comum.
Examinei ainda os elementos constituintes com independência e exatidão.
Percebi sua estabilidade, singularidade e de consenso muito claramente.
De minha recapitulação da experiência, Dom Juan frisou seguinte:
objetivando o progresso para o específico, ele dava ênfase positiva a meu relato
de ter eu visto Mescalito como um composto antropomórfico. O grosso da
especulação nesse setor centralizava-se sobre a idéia de que Mescalito era capaz
de ser um mestre e também um protetor.
A fim de dirigir o progresso para um âmbito mais vasto de apreciação, Dom
Juan dava ênfase positiva ao relato de minha viagem, que obviamente tivera
lugar no âmbito dependente; também dava ênfase positiva à minha versão das
cenas visionárias que eu presenciei pela mão de Mescalito, cenas que pareciam
ser independentes dos elementos constituintes da realidade comum anterior.
O relato de minha viagem e as cenas vistas pela mão de Mescalito também
permitiram a Dom Juan dirigir o progresso para uma utilização mais pragmática
da realidade não comum. Primeiro, aventou a idéia de que era possível ter-se
uma direção; depois, interpretou as cenas como lições sobre a maneira correta
de viver.
Alguns setores de minha recapitulação que tratavam da percepção de
componentes supérfluos não recebiam ênfase alguma, por não serem úteis para
estabelecer a direção da ordem intrínseca.
O estado seguinte de realidade não comum, o terceiro, foi provocado para a
corroboração do regulamento com o aliado contido na Datura inoxia. O período
preparatório era importante e observado pela primeira vez. Dom Juan apresentou
as técnicas de manipulação e revelou que o objetivo específico que eu tinha de
corroborar era a adivinhação.
Sua direção prévia dos três aspectos da ordem intrínseca parecia ter tido os
seguintes resultados: a progressão para o específico era manifestada em minha
capacidade de perceber um aliado como uma qualidade; isto é, verifiquei a
afirmação de que um aliado não era visível de todo. O progresso para o
específico também produzia a percepção especial de uma série de imagens
muito semelhantes àquelas que eu tinha visto pela mão de Mescalito. Dom Juan
interpretava essas cenas como adivinhação, ou a corroboração do objetivo
específico do regulamento.
A percepção daquela série de cenas acarretava também uma progressão para
um âmbito mais extenso de apreciação. Dessa vez o âmbito era independente do
ambiente da realidade comum precedente. As cenas não pareciam ser imagens
superpostas nos elementos componentes, como as imagens que eu vira pela mão
de Mescalito; na verdade, não havia outros componentes além dos que faziam
parte das cenas. Em outras palavras, o âmbito total de apreciação era
independente.
A percepção de um âmbito completamente independente também
demonstrava progresso para uma utilização mais pragmática da realidade não
comum. A adivinhação indicava que a pessoa poderia dar um valor utilitário ao
que fosse visto.
Com o objetivo de dirigir a progressão para o específico, Dom Juan dava
ênfase positiva à idéia de ser possível a pessoa mover-se por seus próprios meios
no âmbito independente da apreciação. Explicou o movimento lá como sendo
indireto, e como sendo realizado, nesse caso particular, pelos lagartos como
instrumentos. A fim de estabelecer a direção do segundo aspecto do nível
intrínseco, a progressão para um âmbito mais extenso de apreciação, centralizou
o grosso da especulação sobre a idéia de que as cenas que eu tinha percebido,
que eram as respostas à adivinhação, poderiam ter sido examinadas e
prolongadas pelo tempo que eu quisesse. Para dirigir a progressão para uma
utilização mais pragmática da realidade não comum, Dom Juan dava ênfase
positiva à idéia de que o tópico a ser adivinhado tinha de ser simples e direto, para
obter um resultado utilizável.
O quarto estado de realidade não comum foi provocado também para a
corroboração do regulamento do aliado contido na Datura inoxia. O objetivo
específico do regulamento a ser corroborado tinha relação com o vôo corporal
como outro aspecto do movimento.
Um resultado da direção da progressão para o específico pode ter sido a
percepção da ascensão corporal pelo ar. Essa sensação era aguda, embora lhe
faltasse a profundidade de todas as percepções anteriores de atos que eu teria
supostamente executado na realidade não comum. O vôo corporal parecia ter-se
realizado num campo de apreciação dependente, e parecia ter acarretado o
movimento por meus próprios meios, o que pode ter sido o resultado de uma
progressão para um âmbito de apreciação mais vasto.
Dois outros aspectos da sensação de flutuar pelo ar podem sido produtos
diretos da progressão para uma utilização mais pragmática da realidade não
comum. Eram eles, primeiro, a percepção da distância, uma percepção criada
pela sensação de um vôo real, e, segundo, a possibilidade de adquirir direção no
curso do pretenso movimento.
Durante o período preparatório seguinte, Dom Juan dissertou sobre a natureza
supostamente nociva do aliado contido na Datura inoxia. E isolou os seguintes
setores de meu relato: tetra dirigir a progressão para o específico, deu ênfase
positiva s minha recordação de ter flutuado pelo ar. Embora eu não percebesse os
elementos constituintes daquele estado de realidade não comum com a clareza
que a essa altura já era habitual, minha sensação do movimento era muito
definida, e Dom Juan usou-a para reforçar o resultado específico do movimento.
A progressão para uma utilização mais pragmática da realidade não comum foi
estabelecida centralizando-se o grosso da especulação sobre a idéia de que os
feiticeiros podiam voar por distâncias enormes, especulação que dava margem à
possibilidade de que a pessoa poderia mover-se no âmbito de apreciação
dependente e depois passar esse movimento para a realidade comum.
O quinto estado de realidade não comum foi produzido pelo aliado contido na
Psilocy be mexicana. Era a primeira vez que se usava a planta, e o estado que se
seguiu estava mais de acordo com a prova do que com uma tentativa de
corroborar o regulamento. No período preparatório, Dom Juan apresentou uma
técnica de manipulação; como não revelou o objetivo específico a ser verificado,
não acreditei que o estado fosse provocado para corroborar o regulamento. No
entanto, a direção do nível intrínseco de realidade não comum estabelecido antes
parece haver terminado nos seguintes resultados.
A direção da progressão para resultados específicos e totais provocaram em
mim a percepção de que os dois aliados eram diferentes um do outro, e que cada
qual era diferente de Mescalito. Percebi o aliado contido na Psilocy be mexicana
como uma qualidade — sem forma e invisível, e dando a sensação de
incorporeidade. A progressão para um âmbito de apreciação mais vasto
provocou a sensação de que o ambiente total da realidade comum anterior, que
permanecia dentro de minha consciência, era utilizável na realidade não comum;
isto é, a expansão do âmbito dependente parecia ter abrangido tudo. A progressão
para uma utilização mais pragmática da realidade não comum provocou a
percepção especial de que eu podia atravessar os elementos constituintes dentro
do âmbito de apreciação dependente, a despeito do fato de eles parecerem ser
elementos comuns da vida de todo dia.
Dom Juan não exigiu a recapitulação costumeira da experiência; era como se
a ausência de um objetivo específico tivesse tornado aquele estado de realidade
não comum apenas um prolongado estágio de transição. Durante o subsequente
período de preparação, contudo, especulou sobre certas observações que fizera a
respeito de meu comportamento durante a experiência.
Deu ênfase negativa ao impasse lógico que impediu que eu acreditasse que se
pudesse atravessar as coisas ou pessoas. Com essa especulação, dirigiu a
progressão para um resultado total específico do movimento através dos
elementos constituintes da realidade não comum percebidos dentro do âmbito
dependente da apreciação.
Dom Juan utilizou essas mesmas observações para dirigir o segundo aspecto
do nível intrínseco, um âmbito de apreciação mais extenso. Se era possível o
movimento através das coisas e dos seres, então o âmbito dependente tinha de se
expandir de acordo; tinha de abranger o ambiente total da realidade comum
anterior, que estava dentro da consciência da pessoa a qualquer dado momento,
pois o movimento significava uma mudança constante de ambiente. Na mesma
especulação, também estava implícito que a realidade não comum poderia ter
sido usada de maneira mais pragmática. O movimento através de objetos e seres
implicava um ponto de vantagem definida, que era inatingível para um feiticeiro
na realidade comum.
Dom Juan depois usou uma série de três estados de realidade não comum,
provocados pela Lophophora williamsii, para preparar melhor o consenso
especial para a corroboração do regulamento. Esses três estados foram tratados
aqui como uma unidade única porque tiveram lugar durante quatro dias
consecutivos, e, durante as poucas horas entre eles, não tive qualquer
comunicação com Dom Juan. A ordem intrínseca dos três estados também foi
considerada uma única unidade, com as seguintes características. A progressão
para o específico produziu a percepção de Mescalito como um ente
antropomórfico visível, capaz de ensinar. A capacidade de ensinar implicava que
Mescalito era capaz de agir para as pessoas.
A progressão para um âmbito de apreciação mais vasto alcançou um ponto
em que eu percebia os dois âmbitos ao mesmo tempo, sendo incapaz de distinguir
as diferenças entre eles a não ser em termos de movimento. No âmbito
dependente, era possível para mim mover- me por meus próprios meios e
vontade, mas no âmbito independente conseguia mover-me só com o auxílio de
Mescalito como instrumento. Por exemplo, as lições de Mescalito compreendiam
uma série de cenas a que eu só podia assistir. O progresso para uma utilização
mais pragmática da realidade não comum estava implícito na idéia de que
Mescalito podia realmente dar lições sobre a maneira correta de viver.
No período preparatório que se seguiu ao último estado de realidade não
comum nessa série, Dom Juan escolheu as seguintes unidades. Para a progressão
no sentido do específico, deu ênfase positiva às idéias de que Mescalito era um
instrumento no movimento pelo âmbito de apreciação independente, e que
Mescalito era um ente didático, capaz de dar lições permitindo que a pessoa
entrasse num mundo visionário. Especulou ainda sobre a insinuação de que
Mescalito tinha pronunciado seu nome e supostamente me ensinara algumas
canções; esses dois casos foram interpretados como exemplos da capacidade de
Mescalito de ser protetor. E o fato de eu ter percebido Mescalito como uma luz
foi enfatizado como a possibilidade de ele ter, afinal, adotado uma forma abstrata
e permanente para mim.
Frisar essas mesmas unidades também serviu a Dom Juan para dirigir a
progressão para um âmbito de apreciação mais vasto. Durante os três estados de
realidade não comum, percebi claramente que o âmbito dependente e o
independente eram dois aspectos distintos da realidade não comum, igualmente
importantes. O âmbito independente era o setor onde Mescalito dava suas lições,
e como esses estados de realidade não comum supostamente só eram
provocados para se buscar essas lições, o âmbito independente era, logicamente,
um setor de importância especial. Mescalito era um protetor e mestre, o que
significava que ele era visível; no entanto, sua forma não tinha nada a ver com o
estado de realidade comum anterior. Por outro lado, era suposto que a pessoa
viajasse, se movesse, na realidade não comum, a fim de buscar as lições de
Mescalito, idéia que implicava na importância do âmbito dependente.
A progressão para uma utilização mais pragmática da realidade não comum
era estabelecida dedicando-se o grosso das especulações às lições de Mescalito.
Dom Juan interpretava essas lições como sendo indispensáveis para a vida da
pessoa; era uma dedução clara que a realidade não comum poderia ter sido
usada de maneira mais pragmática para deduzir pontos de referência que
tivessem valor na realidade comum. Era a primeira vez que Dom Juan
verbalizava tal insinuação.
O estado seguinte de realidade não comum, o nono nos ensinamentos, foi
provocado a fim de corroborar o regulamento do aliado contido na Datura inoxia.
O objetivo específico a ser corroborado naquele estado estava ligado à
adivinhação, e a direção anterior do nível intrínseco terminava nos seguintes
pontos. A progressão para um resultado total específico criava a percepção de
uma série de cenas coerentes, que eram supostas serem a narrativa pela voz do
lagarto dos acontecimentos a serem adivinhados, e a sensação de uma voz que
realmente descrevia essas cenas. A progressão para um âmbito de apreciação
independente resultava na percepção de um âmbito independente extenso e
claro, isento da influência estranha da realidade comum. A progressão para uma
utilização mais pragmática da realidade não comum terminava nas possibilidades
utilitárias de exploração do âmbito independente. Essa tendência especial era
estabelecida pela especulação de Dom Juan sobre a possibilidade de estabelecer
pontos de referência no âmbito independente e utilizá-los na realidade comum.
Assim, as cenas de adivinhação tinham um valor pragmático óbvio, pois
supostamente representavam uma visão de atos praticados por outros, atos aos
quais a pessoa não teria acesso por meios comuns.
No período preparatório seguinte, Dom Juan enfatizou mais dois temas
componentes de um homem de conhecimento. Parecia estar-se aprontando para
passar à busca de apenas um dos dois aliados, o aliado humito. No entanto, dava
ênfase positiva à idéia de que eu tinha uma grande afinidade com o aliado
contido na Datura inoxia, pois ele me permitira presenciar uma incidência de
flexibilidade do regulamento, quando cometi um erro ao desempenhar uma
técnica de manipulação. Minha suposição de que Dom Juan estava pronto para
abandonar o ensino do regulamento do aliado contido na Datura inoxia foi
reforçada pelo fato de ele não isolar quaisquer setores de minha recapitulação da
experiência para explicar a direção do nível intrínseco dos subsequentes estados
de realidade não comum.
Seguiram-se três estados de realidade não comum, provocados para
corroborar o regulamento do aliado contido na Psilocy be mexicana. Foram
tratados como uma unidade única. E embora se tivesse passado bastante tempo
entre eles, naqueles intervalos Dom Juan não procurou especular sobre qualquer
aspecto de sua ordem intrínseca.
O primeiro estado da série foi vago; terminou rapidamente e seus elementos
constituintes não eram precisos. Tinha a aparência de ser mais um estágio de
transição do que propriamente um estado de realidade não comum.
O segundo estado tinha maior profundidade. Percebi o estado de transição
para a realidade não comum separadamente pela primeira vez. Durante aquele
primeiro estado de transição, Dom Juan revelou que o objetivo específico do
regulamento que eu teria de corroborar tratava de outro aspecto do movimento,
um aspecto que necessitava de sua supervisão exaustiva; denominei-o
"movimentação adotando-se uma outra forma". Em consequência, dois aspectos
do nível extrínseco da realidade não comum tornaram-se evidentes pela primeira
vez: os estágios de transição e a supervisão do mestre.
Dom Juan usou sua supervisão naquele primeiro estágio de transição para
focalizar a subsequente direção dos três aspectos do nível intrínseco. Seus
esforços dirigiram-se, primeiro, a provocar um resultado total específico,
guiando-me para experimentar uma sensação precisa de ter adotado a forma de
um corvo.
A possibilidade de adotar uma outra forma a fim de conseguir a
movimentação na realidade não comum acarretava por sua vez uma expansão
do âmbito de apreciação dependente, único setor em que tal movimento podia ter
lugar.
A utilização pragmática da realidade não comum era determinada mandando
que eu focalizasse minha atenção em certos elementos constituintes do âmbito
dependente, a fim de usá-los 'como pontos de referência para o movimento.
Durante o período preparatório que se seguiu ao segundo estado dessa série,
Dom Juan recusou-se a especular sobre qualquer parte de minha experiência.
Tratou o segundo estado como se tivesse sido apenas mais outro estágio de
transição prolongado.
O terceiro estado da série, porém, foi predominante nos ensinamentos. Foi um
estado em que o processo de dirigir o nível intrínseco culminou nos seguintes
resultados: a progressão para o específico criou a percepção fácil de que eu tinha
adotado uma outra forma de maneira tão completa que até provocava
ajustamentos precisos na maneira de focalizar meus olhos e minha maneira de
ver. Como resultado desses ajustamentos havia a minha percepção de uma nova
faceta do âmbito de apreciação dependente -as minúcias que formavam os
elementos constituintes -e essa percepção positivamente ampliava o âmbito de
apreciação. A progressão para uma utilização mais pragmática da realidade não
comum culminou na minha consciência de que era possível mover-me no
âmbito dependente tão pragmaticamente como a pessoa anda na realidade
comum.
No período preparatório que se seguiu ao último estado de realidade não
comum, Dom Juan introduziu um tipo de recapitulação diferente. Escolheu os
setores para a recapitulação antes de ouvir minha narrativa; isto é, pediu para
ouvir apenas os relatos que se relacionavam com a utilização pragmática da
realidade não comum e ao movimento.
Desses relatos, estabeleceu a progressão para o específico dando ênfase
positiva à versão de como eu tinha explorado a forma do corvo. No entanto, só
deu importância à idéia do movimento depois que adotei aquela forma. O
movimento foi o setor de minha recapitulação ao qual deu uma interação de
ênfase positiva e negativa. Deu à narrativa ênfase positiva quando ela frisava a
idéia da natureza pragmática da realidade não comum, ou quando tratava da
percepção de elementos constituintes que me tinham permitido obter um sentido
geral de orientação, enquanto parecia mover-me no âmbito de apreciação
dependente. Deu ênfase negativa à minha incapacidade de me lembrar com
exatidão da natureza ou direção desse movimento.
Dirigindo a progressão para um âmbito de apreciação mais vasto, Dom Juan
centralizou suas especulações sobre meu relato da maneira especial pela qual eu
percebia os detalhes que tornavam os elementos constituintes que estavam dentro
do âmbito dependente. Sua especulação me levava a supor que, se fosse possível
ver o mundo como um corvo o vê, o âmbito de apreciação dependente teria de
se expandir em profundidade e estender-se para cobrir todo o espectro da
realidade comum.
A fim de dirigir a progressão para uma utilização mais pragmática da
realidade não comum, Dom Juan explicou meu jeito especial de perceber os
elementos constituintes como sendo a maneira de o corvo ver o mundo. E,
logicamente, essa maneira de ver pressupunha a entrada numa escala de
fenômenos além das possibilidades normais na realidade comum.
A última experiência registrada em minhas anotações de campo foi um estado
especial de realidade comum; Dom Juan o provocou isolando elementos
constituintes da realidade comum pelo processo de sugestões a respeito de seu
próprio comportamento.
Os processos gerais utilizados para dirigir o nível intrínseco da realidade não
comum produziram os seguintes resultados durante o segundo estado especial de
realidade comum. A progressão para o específico resultou no fácil isolamento de
muitos elementos da realidade comum. No primeiro estado especial de realidade
comum, os pouquíssimos elementos constituintes que foram isolados pelo
processo de sugestões a respeito do ambiente também foram transformados em
formas desconhecidas, privadas do consenso comum; contudo, no segundo estado
especial de realidade comum, seus elementos constituintes eram muitos e,
embora não perdessem suas qualidades de serem elementos conhecidos, podem
ter perdido sua capacidade de consenso comum. Esses elementos constituintes
abrangiam, talvez, o ambiente total que estava dentro de minha percepção.
Dom Juan pode ter produzido esse segundo estado especial a fim de fortalecer
o laço entre a realidade comum e a não comum, desenvolvendo a possibilidade
de que a maioria, se não todos, dos elementos constituintes da realidade comum
podia perder sua capacidade de ter consenso comum.
Do meu próprio ponto de vista, porém, esse último estado especial foi o
resumo final de meu aprendizado. O formidável impacto do terror no nível da
consciência sóbria teve a qualidade especial de minar a certeza de que a
realidade da vida de todo dia fosse implicitamente real, a certeza de que eu, em
matéria de realidade comum, poderia fornecer- me um consenso
indefinidamente. Até aquele ponto, o rumo de meu aprendizado parece ter sido
um trabalho contínuo para o colapso daquela certeza. Dom Juan utilizou todas as
facetas de seus esforços dramáticos para conseguir o colapso durante aquele
último estado especial, fato que me levou a crer que um colapso total daquela
certeza teria removido a última barreira que me impedia de aceitar a existência
de uma realidade separada: a realidade do consenso especial.
APÊNDICE B — ESBOÇO DE ANALISE ESTRUTURAL

A ORDEM OPERACIONAL
A PRIMEIRA UNIDADE
HOMEM DE CONHECIMENTO
SER UM HOMEM DE CONHECIMENTO É QUESTÃO DE APRENDER
Não havia exigências declaradas
Havia algumas exigências disfarçadas
Um aprendiz era escolhido por um poder impessoal
Aquele que era escolhido (escogido)
As decisões do poder eram indicadas por augúrios
UM HOMEM DE CONHECIMENTO TINHA PROPÓSITO INFLEXÍVEL
Frugalidade
Solidez de julgamento
Falta de liberdade para inovar
UM HOMEM DE CONHECIMENTO TINHA CLAREZA DE ESPÍRITO
Liberdade de procurar um caminho
Conhecimento do propósito específico
Ser fluido
SER UM HOMEM DE CONHECIMENTO ERA QUESTÃO DE TRABALHO
ÁRDUO
Esforços dramáticos
Eficiência Desafio
UM HOMEM DE CONHECIMENTO ERA UM GUERREIRO
Tinha de ter respeito
Tinha de ter medo
Tinha de ser alerta
Consciência de propósito
Consciência do fluxo esperado
Tinha de ter autoconfiança
SER UM HOMEM DE CONHECIMENTO ERA UM PROCESSO
INCESSANTE
Ele tinha de renovar a busca de ser um homem de conhecimento
Era impermanente
Tinha de seguir o caminho com coração
A SEGUNDA UNIDADE
UM HOMEM DE CONHECIMENTO TINHA UM ALIADO
UM ALIADO NÃO TINHA FORMA
UM ALIADO ERA PERCEBIDO COMO UMA QUALIDADE
O aliado contido na Datura inoxia:
Era feminino
Era possessivo
Era violento
Era imprevisível
Tinha efeito nocivo sobre o caráter de seus seguidores
Dava poder superfluido
O aliado contido na Psilocy be mexicana:
Era masculino
Era desapaixonado
Era gentil
Era previsível
Tinha efeito benéfico sobre o caráter de seus seguidores
Dava êxtase
UM ALIADO ERA DOMESTICÁVEL
Um aliado era um veículo
O aliado contido na Datura inoxia era imprevisível
O aliado contido na Psilocy be mexicana era previsível
Um aliado era um auxiliar
A TERCEIRA UNIDADE
UM ALIADO TINHA UM REGULAMENTO
O REGULAMENTO ERA INFLEXÍVEL
Exceção devida à intervenção direta do aliado
O REGULAMENTO NÃO ERA CUMULATIVO
O REGULAMENTO ERA CORROBORADO PELA REALIDADE COMUM
O REGULAMENTO ERA CORROBORADO PELA REALIDADE NÃO
COMUM
Os estados de realidade não comum
A realidade não comum era utilizável
A realidade não comum tinha elementos constituintes
Os elementos constituintes tinham estabilidade
Tinham singularidade
Faltava-lhes consenso comum
Os propósitos específicos do regulamento:
Primeiro propósito específico, prova (Datara inoxia)
Técnica de manipulação, ingestão
Segundo propósito específico, adivinhação (Datura
inoxia)
Técnica de manipulação, ingestão-absorção
Terceiro propósito específico, vôo corporal (Datura
inoxia)
Técnica de manipulação, ingestão-absorção
Quarto propósito específico, prova (Psilocy be
mexicana)
Técnica de manipulação, ingestão-inspiração
Quinto propósito específico, movimento (Psilocy be
mexicana)
Técnica de manipulação, ingestão-inspiração
Sexto propósito específico, movimento adotando forma
diferente (Psilocy be mexicana)
Técnica de manipulação, ingestão-inspiração
A QUARTA UNIDADE
O REGULAMENTO ERA CORROBORADO POR CONSENSO ESPECIAL
O BENFEITOR
Preparando o consenso especial
Os outros estados de realidade não comum
Eram provocados por Mescalito:
Era contido
O recipiente era o próprio poder
Não tinha regulamento
Não precisava de aprendizado
Era um protetor
Era um mestre
Tinha forma definida
A realidade não comum era utilizável
A realidade não comum tinha elementos constituintes
Os estados especiais de realidade comum:
Eram produzidos pelo mestre
Sugestões sobre o ambiente
Sugestões sobre o comportamento
A recapitulação da experiência:
Recordação dos fatos
Descrição dos elementos constituintes
Ênfase
Ênfase positiva
Ênfase negativa
Falta de ênfase
Dirigindo o consenso especial
O nível extrínseco da realidade não comum
O período preparatório
O período anterior à realidade não comum
O período seguinte à realidade não comum
Os estágios de transição
A supervisão do mestre
O nível intrínseco de realidade não comum
Progresso para o específico
Formas individuais específicas
Complexidades progressiva dos detalhes percebidos
Progressão do conhecido para formas desconhecidas
Resultados totais específicos
Progressão para um âmbito de apreciação mais extenso
Âmbito dependente
Âmbito independente
Progressão para uma utilização mais pragmática da realidade não comum
Progressão para o específico em estados especiais da realidade comum
A ORDEM CONCEITUAL
O APRENDIZ
A adoção capciosa da ordem conceitual
A adoção de boa-fé da ordem conceitual
Realidade do consenso especial
A realidade do consenso especial tinha valor pragmático

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