Cabala - Roland Goetschel

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INTRODUÇÃO

A NATUREZA DA CABALA
1. O termo “cabala”, do hebraico Qabbalah, é geralmente utilizado
para definir a mística judaica e as tradições esotéricas do judaísmo.
Entretanto, é conveniente esclarecer-se que, na linguagem
talmúdica, Qabbalah significa simplesmente “tradição”, e designa os
textos proféticos e hagiográficos da Bíblia sem nenhuma conotação
mística ou esotérica (Cf. b. Ta’anit, 17b, e Hagigah, 12b).
O termo só começa a ter um sentido esotérico na Idade Média,
especialmente na escola de Isaac l’Aveugle no século XII na
Provença, onde ele define o campo da mística teosófica que resulta
da seguinte definição formulada por Meir Salomon Ibn Sahula
(1330):

Cabe a nós explorar todas as coisas na medida de nossa compreensão e seguir, no


que as concerne, o caminho em que se aplicaram aqueles que em nossa geração e
nas gerações anteriores, há duzentos anos, se chamam mequballim (cabalistas).
Estes dão o nome de Qabbalah à ciência das dez sefirot e da motivação de certos
preceitos.

Deduz-se claramente de tal citação que o termo “cabala” tem sido


utilizado, desde o século XII, para designar a mística teosófica
surgida e praticada a partir dessa época. A seguir, amplamente
difundido entre os cabalistas, o termo passou retroativamente a
nomear todos os movimentos esotéricos e todas as formas de
mística surgidas no campo do judaísmo, de suas origens até a
época mais recente.

2. Quando se fala de misticismo judaico e esoterismo, também é


conveniente esclarecer que a mística designa geralmente uma
consecução de etapas ou uma disciplina espiritual que conduz o
homem a um contato direto e, no seu extremo, a uma união íntima e
experimental com Deus. O misticismo surge de um desejo de
extrapolar os limites comuns do tempo e do espaço para realizar
essa comunicação com o divino. Entendida dessa maneira, a
mística pode parecer incompatível com o judaísmo, a tal ponto que
certos historiadores das religiões puderam contrapor as religiões
proféticas cujo protótipo é o judaísmo às religiões místicas como as
do Extremo Oriente. A idéia bíblica da criação parece estabelecer
uma distinção radical entre o Criador e a criação. A existência de
profetas escolhidos e enviados por Deus dá a impressão de afastar
os outros homens da possibilidade de um encontro com o divino.
Além disso, o judaísmo histórico, tal como é formulado na tradição
rabínica, aparece essencialmente como a religião do Deus único,
Criador do mundo, que se manifestou a uma nação eleita
outorgando-lhe a Torá. O conteúdo desta, além de um memorial das
origens da humanidade e de Israel, é basicamente um conjunto de
regras de conduta individuais e coletivas. No judaísmo tradicional, a
observância dos preceitos garante a salvação do indivíduo, a
prosperidade da nação e a realização final dos desígnios de Deus
para o conjunto da criação. No entanto, somos forçados a constatar
que, apesar desses motivos previsivelmente incompatíveis do ponto
de vista teórico, vários tipos de misticismo surgiram no interior do
judaísmo. Se é verdade que os místicos judeus não aspiram todos à
união mística, mesmo assim a cabala deve ser considerada uma
mística na medida em que visa a uma percepção do divino e da
criação além dos limites da experiência habitual, ultrapassando o
que o intelecto e a sensibilidade podem abarcar em seu exercício
comum.

3. É também conveniente esclarecer aquilo que tange à cabala


enquanto esoterismo. Antes de tudo, a cabala é esoterismo na
medida em que só é transmitida a um pequeno número de iniciados.
Esse aspecto jamais desapareceu totalmente, ainda que tenha
havido uma passagem progressiva à escrita e, posteriormente, à
publicação de obras cabalísticas. Mas tal critério não é suficiente
para caracterizar seu esoterismo. Tanto é que, na Idade Média,
existe um esoterismo puramente filosófico. No prefácio de seu Guia
dos desgarrados, Maimônides estabelece uma diferença entre o que
se deve divulgar para as massas e o ensino das verdades filosóficas
reservadas a uma elite. Reciprocamente, aliás, nem toda a mística
se apresenta como um esoterismo entendido nessa primeira
acepção.
A cabala é também um esoterismo por tratar dos temas mais
recônditos e essenciais em relação ao homem, ao mundo e a Deus.
Num determinado momento, ela se torna até teosofia, isto é, a
descrição dos mistérios da vida escondida de Deus em sua relação
com a do homem e da criação inteira, servindo-se para isso de
todos os recursos da metáfora e do símbolo. De fato, duas grandes
orientações aparecem no interior da espiritualidade judaica. A
primeira, de natureza devocionista, baseia-se nas experiências
espirituais e conduz a mística – por meio de técnicas anômicas
(como as lágrimas, a ascensão da alma, a combinação das letras, a
visão das cores) – ao êxtase e à união mística. Nela situam-se os
místicos da Merkabah, os pietistas renanos, Abraham Abulafia e sua
escola e, posteriormente, os Hasidim da Polônia. A segunda
orientação é a da cabala propriamente teosófica, que se origina
basicamente de uma interpretação místico-simbólica das Escrituras,
da tradição e de tudo que diz respeito à halakhah, o domínio da
normatividade religiosa. A interpretação teosófica se concretiza por
uma atividade teúrgica. Pode-se distinguir diversas modalidades
desse tipo de ação sobre a divindade: ação instauradora,
restauradora, conservadora, amplificadora e atrativa.1 É essa a
orientação que descobrimos em Isaac l’Aveugle e posteriormente
também no Zohar e na cabala luriânica. Na verdade, trata-se
apenas de duas linhas de força que podem se cruzar e se combinar
na pessoa de certos místicos ou no interior de certas escolas. Não
se deve também omitir o papel que a magia pode desempenhar em
certas orientações da cabala. É o caso da cabala italiana no
Renascimento ou do hassidismo da Europa oriental, já descrito
como movendo-se entre o pólo do êxtase e o da magia.
O próprio termo “cabala” tem algo de paradoxal, pois declara que
a experiência mais pessoal de um contato com o divino insere-se
numa tradição histórica. No mais profundo de si mesmo, o cabalista
experimenta uma verdade que tem sido transmitida desde épocas
remotas. Há uma justaposição entre o vivido de modo mais íntimo e
a mensagem revelada do alto do Sinai. Cada vez mais, é o conjunto
de todo o judaísmo tradicional – Halakhah e Aggadah, liturgia e
moral, escatologia e messianismo – que a cabala retoma, e cujo
sentido último pretende revelar.
1. Ver sobre esse tema o belo livro de Ch. Mopsik, Les grands textes de la Cabale. Les
rites qui font Dieu. Paris: Verdier, 1993. (N.A.)
CAPÍTULO I
A MÍSTICA JUDAICA DA ANTIGÜIDADE
I. Esoterismo e mística da Apocalíptica
Quando passamos em revista os textos bíblicos posteriores ao
Exílio da Babilônia (após 538), observamos que seus autores se
ligam a especulações sobre temas mencionados anteriormente: o
aparecimento do carro divino no primeiro capítulo de Ezequiel, a
tônica sobre os seres intermediários, a figura do Angelus
Interpretator, a maneira como Deus exerce sua providência com a
ajuda dos sete planetas em Zacarias. Esses temas serão retomados
e ampliados com o surgimento, no contexto do mundo helenístico,
dessa nova escritura cujo conjunto de obras formam o que se
convencionou chamar de literatura apocalíptica. Ela nasceu na
época da revolta dos Macabeus contra os gregos da Síria. Sua
primeira produção é o Livro de Daniel, redigido em 165 a.C., que é a
única obra desse tipo a ser integrada posteriormente no cânone da
Bíblia hebraica. Os outros escritos apocalípticos se desdobram
daquela data até o século II da era comum. Assim, são
contemporâneos de acontecimentos ao mesmo tempo trágicos e
decisivos para os destinos da nação judaica confrontada pelo
desafio espiritual e intelectual do helenismo e pelo combate político
com Roma, que culminará na destruição do Segundo Templo, em
70, e no esmagamento da revolta de Bar Kochba, em 135. A
apocalíptica constitui uma das respostas da fé judaica a esse
desafio da história. É uma literatura de protesto redigida por
oprimidos, mas é também uma mensagem de esperança. Anuncia
que o Deus de Israel não esquece seu povo e proclama a
inelutabilidade e a proximidade da redenção. Os impérios só têm um
tempo; está próximo o dia em que o reino divino será instaurado.
Se há uma característica que todos os especialistas reconhecem
na literatura apocalíptica é seu caráter esotérico, no duplo sentido
que damos a esse termo.
A apocalíptica busca prolongar a antiga profecia anunciando os
acontecimentos que virão, mas nasceu na verdade da confusão que
se seguiu ao término do profetismo. Ela coloca sua mensagem na
boca dos sábios da Antigüidade, como Adão, Enoc, Moisés ou Elias,
mas são apenas atribuições pseudo-epigráficas. Ela se dirige a um
personagem ou a um grupo particular de pessoas escolhidas ou
eleitas. Ainda quando comenta as Escrituras, considera
implicitamente o conteúdo dos textos antigos incompleto e mal
interpretado. A apocalíptica vem revelar o que era anteriormente
dissimulado ou mal compreendido. Assim, o Livro dos jubileus (150
a.C.) se apresenta como uma reinterpretação do Gênesis e de uma
parte do Êxodo sob a forma de uma revelação de Deus a Moisés no
Sinai, quando Ele lhe transmite uma tradição secreta sobre o
sentido oculto na Torá, revelado esotericamente naquele mesmo
lugar. O conteúdo desse ensino esotérico é basicamente uma nova
visão da história desde a criação até o fim dos tempos:

E escreve para ti mesmo todas as palavras que te fiz conhecer na montanha, o


começo e o fim, o que acontecerá no futuro em todas as divisões do tempo... até que
Eu desça e esteja presente com eles para sempre. (Jub. I, 26)

Em seguida, é um anjo, na presença de Deus, que anota todos os


acontecimentos que compõem a história universal. Observa-se
também na citação precedente a idéia de uma periodicidade da
história que servirá de justificativa para a adoção de um calendário
totalmente solar.
Em outros textos apocalípticos, há mais segredos revelados,
como o conhecimento do mundo, as leis que regem os fenômenos
naturais ou a descrição dos céus e do trono divino. O apocalipse
transgride portanto os limites da antiga literatura sapiencial na qual
se insistia, ao contrário, sobre os limites do conhecimento humano,
sobre o fato de que o universo é um enigma incapaz de ser
resolvido pelo homem.
O apocalipse se diferencia bastante da antiga profecia pelo modo
de revelação extraordinária que pressupõe. Enquanto um Amós ou
um Jeremias recebe sempre sua profecia ainda na terra, mesmo se
um Ezequiel se acha levado de um local para outro, os heróis do
apocalipse se vêem transportados ao céu para ali realizar uma
viagem no decorrer da qual lhes são revelados os segredos de cima
e de baixo. Tem-se o exemplo de uma situação semelhante no Livro
de Enoc (Enoc I), de cerca de 164 a.C.
No capítulo catorze do livro, Enoc vê-se transportado ao céu e
chega a um muro de cristal que rodeia o palácio divino, sendo este
cercado por línguas de fogo. Ao se aproximar do palácio, porém, o
medo e o terror o dominam. Em seguida ele acede à visão da glória
divina em seu trono:

A glória divina estava instalada, suas vestes mais fulgurantes que o sol e mais
brancas que a neve. (En. XIV, 21)

Enoc contempla o que nenhum anjo ou ser de carne e osso pode


perceber. A sua é sem dúvida a visão mais antiga do carro divino
(Merkabah) que conhecemos fora das Escrituras.
No capítulo septuagésimo primeiro do mesmo livro, temos a
narrativa de outra visão de Enoc no mundo celeste. Levado ao
primeiro céu, ele percebe os anjos transportando-se sobre línguas
de fogo. É lá que Miguel lhe revela os mistérios da graça e do rigor,
e os do conjunto do cosmos. Depois disso, o anjo o leva aos céus
dos céus, onde Enoc tem acesso a uma visão do palácio divino, o
que nos vale uma descrição detalhada das categorias de anjos
segundo sua ordem hierárquica. Enoc vê também Miguel, Rafael,
Gabriel e Fanuel, que constituem a escolta de Deus, denominado
nesse local “O Ancião dos Dias”, vindo acolher o iniciado. Devem-se
perceber dois elementos notáveis nesse contexto: a transfiguração
de Enoc durante sua visão e o hino que ele se põe a cantar em
honra a Deus:

Caí com o rosto no solo, e todo meu corpo e meu espírito foram transformados, e
gritei com voz forte, espírito potente, e louvava, bendizia e exaltava, e as bênçãos
que saíam de minha boca pareciam aprovadas pelo Ancião dos Dias. (En. LXXI, 11-
14)

Pode-se notar que é Enoc quem entoa esse hino e não os anjos,
como em geral acontece. No Apocalipse de Abraão, é o anjo Yaoel
que intima Abraão a cantar um hino sem parar, provavelmente
durante o tempo de sua ascensão.2
Nosso exame da apocalíptica forneceu-nos três elementos que
reaparecerão mais tarde na literatura da Merkabah:
– o motivo da viagem celeste do visionário e de sua
transfiguração;
– a visão do trono divino;
– o tema dos hinos proferidos ante o espetáculo do trono divino,
ora pela corte celeste, ora pelo próprio visionário.
II. O testemunho de Qumran
A descoberta dos manuscritos do Mar Morto permitiram um
progresso considerável em nosso conhecimento do judaísmo da
época helenística, especialmente no que tange à história da mística
judaica. Ainda que os pergaminhos de Qumran não sejam
documentos místicos e que não se descubra neles experiência
desse gênero, eles nos fornecem dados importantes para o
conhecimento do meio em que se elabora aos poucos esse
esoterismo.
É preciso notar em primeiro lugar a presença de numerosos
textos apocalípticos em Qumran, tais como o Livro dos jubileus em
hebraico, o Testamento de Levi, os fragmentos de Enoc em
aramaico e também os textos até então desconhecidos, como uma
Visão de Amram e um Livro dos mistérios. Portanto, não se pode
duvidar que os membros da seita alimentavam-se de literatura
apocalíptica.
Outro elemento importante que Qumran nos fornece diz respeito a
uma liturgia angélica descoberta na gruta IV, que J. Strugnell
publicou sob o título de “The Angelic Liturgy at Qumran-4 Q Serek
Sirot ‘Olat Hasabat”.3
O primeiro fragmento fala dos sete príncipes-em-chefe, isto é, os
arcontes celestes aqui denominados Nesi’ey Rosh. Constata-se que
o número sete tem nesse fragmento uma grande importância: há
sete príncipes-em-chefe, sete príncipes de segunda linha, Deus é
abençoado por sete expressões de louvor etc.
O segundo fragmento dessa liturgia angélica tem uma importância
maior ainda. De fato, trata-se da descrição de uma liturgia angélica
desenrolando-se no Templo celeste. Nela vemos os querubins
abençoarem “a imagem do trono do carro”, e o trecho interior é uma
descrição desse trono divino. Os espíritos angélicos se movem com
a multidão dos carros da Glória enquanto entoam louvores e
bênçãos. O conjunto do vocabulário e do estilo dessa passagem
tem muito em comum com o da literatura dos Heykhalot, o que levou
G. Scholem a escrever a respeito:
Esses fragmentos eliminam toda dúvida quanto às relações entre os mais antigos
textos da Merkabah conservados em Qumran e o desenvolvimento posterior do
misticismo da Merkabah tal como é preservado nos textos dos Heykhalot.4

Scholem considera então esses fragmentos um elo intermediário


entre a literatura apocalíptica e a da Merkabah. Contudo,
permanece o problema de saber como se operou a transmissão
desses textos saídos de um meio sectário como o de Qumran para
os círculos muito mais inseridos naquilo que se tornará o judaísmo
rabínico. Teria ocorrido algo no ensino dos fariseus para que os
rabinos, ou na verdade os fariseus, assim como as pessoas de
Qumran, tivessem em seu poder uma tradição exegética mais antiga
do livro de Ezequiel do que era comum a uns e outros? Os
documentos que temos não permitem responder a tal pergunta no
momento.
III. A mística da época rabínica
A literatura rabínica fornece parcimoniosamente algumas
indicações sobre as preocupações esotéricas e a mística cultivada
pelos antigos rabinos. A Mishnah, publicada no início do século II,
alerta contra a divulgação de ensinos reservados a um pequeno
número:

Não se explica o capítulo dos incestos diante de três pessoas, nem a obra do
começo (Gen. 1) diante de duas, nem o capítulo do carro (Ez. 1) diante de uma só, a
não ser que ela seja sábia e entenda por si mesma. Qualquer um que investigue
essas quatro coisas – o que está em cima, o que está em baixo, o que está na frente,
o que está atrás – seria melhor não ter vindo ao mundo. Seria melhor não ter vindo
ao mundo quem não tem consideração com a Glória de seu “Criador”. (Hagigah, II, 1)

Vê-se que se trata de uma questão de ensino e não de


experiência mística, já que a Mishnah utiliza o termo ‘Eyn dorshin,
que remete à raiz dôrash e a outros vocábulos com a conotação de
ensino nos textos paralelos sobre o mesmo tema. No que diz
respeito aos incestos, compreende-se facilmente que, por uma
questão de decência, os rabinos não desejassem debatê-los em
público. Os dois ensinamentos esotéricos mais importantes têm
respectivamente o título de Ma‘aseh Bereshit e Ma‘aseh Merkabah.
As especulações do Ma‘aseh Bereshit eram relativas à
cosmologia e à cosmogonia; sabe-se que na época dos rabinos da
Mishnah havia especulações semelhantes entre os gnósticos. É
exatamente para evitar qualquer contaminação com essas idéias
que a Mishnah alerta contra aqueles que aprofundam o mistério
quanto a “o que está em cima, o que está em baixo, o que está na
frente, o que está atrás”.
A Tosephta entendeu o que está em cima e o que está em baixo
como relativo aos mistérios das origens e da escatologia.
O perigo daquele que se entrega a esse tipo de especulação é
ilustrado pelo exemplo de Ben Zoma:

Simon Ben Zoma já estava errado. O rabino Josué passou e o saudou duas vezes
mas Simon não respondeu à sua saudação. O rabino perguntou: “O que há, Ben
Zoma, de onde te trouxeram teus pés?” E Simon respondeu: “Eu meditava.” O rabino
Josué exclamou: “Tomo os céus e a terra em testemunho que não me mexerei daqui
até que tenhas me dito de onde vens.” O outro respondeu: “Eu contemplava Ma‘aseh
Bereshit.” E não havia mais do que dois ou três dedos entre as águas superiores e
inferiores. Não está escrito O espírito de Deus soprava e sim “O espírito de Deus
planava” (Gen. I, 2) como um pássaro planando com suas asas que roçam o ninho.
O rabino Josué voltou-se para seus alunos e disse: “Ben Zoma se foi.” Pouco tempo
depois, “Ben Zoma morreu”. (Gênesis Rabbah, II, 4).

O outro grande tema esotérico da época rabínica e, acreditando-


se na progressão do interdito, o mais escondido de todos, é o da
ciência do carro divino, Ma‘aseh Merkabah. Ele designa o capítulo
primeiro de Ezequiel, mas o próprio termo Ma‘aseh Merkabah é
tirado de I. Cr. XXVIII, 18. O sentido místico do termo parece
confirmado pela primeira vez no livro de Ben Sira, onde se pode ler:

Ezequiel teve uma visão e descobriu as diferentes ordens do carro. (Ben Sira, XLIX,
8)

A expressão hebraica utilizada é Zeney Merkabah, os aspectos ou


as ordens do carro.
Uma ilustração do modo como se praticava esses Derashōt – os
enunciados a respeito do trono divino na época dos rabinos
contemporâneos do Segundo Templo de Jerusalém – é dada pela
narrativa seguinte:
Narrativa a propósito de r. [rabino] Yohanan ben Zakkaï que montava seu asno. O
rabino Eleazar ben Arakh, que vinha atrás dele, disse: “Rabino, ensine-me um
capítulo a propósito da Ma‘aseh Merkabah.” O rabino Yohanan disse: “Não venho
dizendo desde o início que só se ensina sobre o tema da Merkabah a uma pessoa
que é sábia e entende as coisas sozinha?” O rabino Eleazar respondeu: “Então vou
te satisfazer agora”. O rabino disse: “Fala.” O rabino Eleazar ben Arakh começou a
interpretar a narrativa sobre o carro. O rabino Yohanan ben Zakkaï desceu do asno,
aconchegou-se às roupas, e os dois homens sentaram sobre uma pedra debaixo de
uma oliveira. O rabino Eleazar completou sua interpretação diante do outro. O rabino
Yohanan levantou-se e beijou-o na testa, dizendo: “Abençoado seja o Senhor Deus
de Israel que concedeu um filho a Abraão nosso pai que sabe compreender e
interpretar a Glória de seu Pai que está nos céus. Há os que sabem interpretar bem e
não sabem realizar, outros que realizam e não sabem interpretar. Eleazar ben Arakh
sabe muito bem interpretar e realizar. Feliz és tu, Abraão nosso pai, por Eleazar ben
Arakh ter saído de teus flancos, ele que sabe compreender e interpretar em vista da
glória de seu Pai que está nos céus”. (Tosephta Hagigah, II, 1).

Essa narrativa nos ensina muitas coisas. Ela coloca na boca do


rabino Yohanan ben Zakkaï a Halakhah que proíbe ensinar a
alguém a história do carro a menos que esse alguém seja sábio e
entenda a história por si mesmo, o que confirma o que se meditava
no primeiro capítulo de Ezequiel desde os primeiros anos do
rabinismo. Em segundo lugar, as expressões utilizadas a propósito
do discurso de r. Yohanan – “compreender” e “interpretar” –
implicam que não se tenha envolvimento com a transmissão de um
saber esotérico e sim com as interpretações da Merkabah fundadas
nas exegeses. Além disso, a passagem subentende que existe um
risco de heresia nessas interpretações, razão pela qual r. Yohanan
ben Zakkaï louva r. Eleazar por saber interpretar considerando a
Glória de seu Pai que está nos céus!
Esse discurso sobre a Merkabah, como nos é transmitido pela
Tosephta, não implica necessariamente uma experiência mística da
parte daquele que o profere, ainda que ela não o exclua. É o que
nos confirma uma outra passagem da Tosephta:

R. Yehuda ensina: “Aquele que jamais viu as luminárias não recita o Sema”. Ao que
lhe objetaram: “Muitos comentam a Merkabah e jamais a viram em sua vida”.
(Tosephta Megillah, III, 17)

Esse texto deixa claro que se tinha uma nítida consciência da


diferença entre operar-se com as exegeses ou os comentários do
texto de Ezequiel e com as experiências místicas propriamente
ditas.
Mais tarde, a lenda popular envolverá r. Eleazar ben Arakh num
halo de maravilha: o fogo que rodeia r. Eleazar e r. Yohanan ben
Zakkaï, árvores que entoam cânticos e anjos vindos para confirmar
a veracidade das palavras proferidas por r. Eleazar.5
Talvez seja preciso reconhecer em uma outra passagem célebre
um rodeio nas preocupações místicas dos rabinos:

Quatro entraram no Pardes [pomar]: Ben Azzaï, Ben Zoma, Aher e r. Aqiba. Um
contemplou e morreu. O outro viu e padeceu com o que viu. Outro contemplou e
devastou as plantações. E houve um que se elevou em paz e desceu em paz. Ben
Azzaï contemplou e morreu, e é a respeito dele que se diz (Ps. CXVI, 15): Preciosa é
a morte de seus fiéis aos olhos do Senhor. Ben Zoma viu e padeceu com o que viu. A
respeito dele a Escritura diz (Prov. XXV, 16): Encontraste mel? Come dele o que te
baste; do contrário, saciado, tu o vomitarás. Elisha viu e devastou as plantações; a
seu respeito diz a Escritura (Ecl. V, 5): Que tua boca não se dedique a fazer tua
carne errar. O rabino Aqiba se elevou em paz e desceu em paz, e a seu respeito está
escrito (Ct. I, 4): Leve-me contigo, corramos, o rei me faz entrar em seus aposentos.
(Tosephta Hagigah, II, 3)

É evidente que esse texto é de início uma advertência,


destacando os perigos a que conduziam a experiência mística. O
termo aqui utilizado não é mais derashah (exposição) e sim hetsits:
ele olhou ou contemplou. O objeto da contemplação é o Pardes,
pomar.
Assim, pode acontecer que a experiência mística conduza a uma
hybris6 que se revela fatal aos que se abandonam a ela. A
experiência extática pode levar à morte, à loucura ou à heresia se
não for dominada. G. Scholem lê a aventura dos quatro à luz da
variante procurada pelo Talmude Babli7, no qual r. Aqiba dirige-se a
seus companheiros dizendo-lhes:

Assim que se aproximarem das pedras de mármore puro, cuidado para não dizerem:
água, água. Pois está dito (Ps. CI, 7): “Aquele que mente não se sustentará diante de
mim”. (b. Hagigah, 14b)

Tal passagem, que Scholem correlaciona com textos tratando


desse tema na literatura dos Heykhalot, provaria, segundo ele, que
a experiência mística à qual alude o relato dos quatro que entraram
no Pardes é uma ascensão celeste como a descrita na literatura da
Merkabah. Esse ponto de vista leva Scholem a estabelecer uma
continuidade direta entre o esoterismo tanaítico [de Tanaïm, sábios
referidos no Mishnah] e a literatura dos Heykhalot. Outros
pesquisadores como E. E. Urbach e D. J. Halperin são muito mais
reservados em relação a isso. Eles consideram que, em sua versão
mais antiga, a narrativa dos quatro que entraram no pomar não
sugere de modo nenhum uma ascensão celeste do tipo dos
Heykhalot e é somente na variante tardia do Talmude babilônio que
tal ascensão está sugerida.8
A problemática colocada por esse texto foi abordada sob novo
ângulo por Joseph Dan. Ele chama nossa atenção para o fato de
que o trecho ilustrando o modo como r. Aqiba saiu ileso de sua
experiência mística é um versículo do Cântico dos Cânticos, que
termina com as palavras:

Que o Rei me faça entrar em seus aposentos [em hebraico, hadarav].

Exatamente a propósito de Ben Azzaï, o Midras Vayiqra Rabba


coloca na boca de r. Aqiba a expressão Hadrey Merkabah,
literalmente os “aposentos da Merkabah”, em lugar do habitual
Ma‘aseh Merkabah.9
Se r. Aqiba empregava tal termo é porque este acabara de entrar
em uso naquele momento e porque, ao nos reportarmos ao
versículo do Cântico dos Cânticos anteriormente citado, podemos
colocar a identificação entre os Hadrey ha-Melekh (os aposentos do
rei) e os Hadrey Merkabah.
Para esclarecer essa problemática, pode-se também reportar a
uma passagem de Orígenes citada por Scholem, que inclui o
Cântico dos Cânticos entre os textos que os judeus só têm
autorização de estudar no final de seu ciclo de estudos, ao lado de
outros textos esotéricos e escatológicos.10
Isso só poderia ser explicado pelo fato de o Cântico não mais ser
tratado apenas como uma alegoria do amor entre o Santo Bendito
Seja e a Comunidade de Israel, o caso da interpretação agádica em
geral, mas pelo fato de conter uma descrição detalhada dos
membros do Bem-Amado identificado com Deus e se tornar assim o
texto básico sobre o qual vai se fundar a doutrina do Shi‘ūr Qōmah
(literalmente, a Medida do Corpo), isto é, o mistério da figura divina
aparecendo sobre o trono da Merkabah. Fragmentos do Midrash
sobre o Cântico reunidos por S. Liberman corroboram essa
análise.11
O mesmo r. Aqiba – que ensinou na Mishnah (Yadayim, III, 5) que
se todos os cânticos têm um caráter de santidade, o Cântico dos
Cânticos é sacrossanto – proclama no Midrash que o dia da
revelação do Cântico equivale ao da doação da Torá e, mais forte
ainda: “Se o Cântico não tivesse sido revelado, a Torá teria sido
digna de reger o mundo!”
Todos esses elementos, além de outros, levam J. Dan à
conclusão de que com r. Aqiba e sua escola produziu-se um vínculo
decisivo na mística dos Tanaïm. Por esse deslocamento, que parte
da Ma‘aseh Merkabah, isto é, das especulações sobre o primeiro
capítulo de Ezequiel, para chegar aos Hadrey Merkabah, quer dizer,
a uma exegese do Cântico dos Cânticos apreendida presentemente
como uma descrição do Shi’ūr Qōmah, uma nova etapa foi
ultrapassada. Tal etapa levará, mais tarde, por lugares e caminhos
que ainda ignoramos, à floração que será a literatura dos Heykhalot.
Em todo caso, os textos babilônios parecem indicar que, neste país,
reinterpretaram-se os textos tanaíticos como fazendo alusão a
visões extáticas.

Outro campo de pesquisas cuja decifração continua em estado de desideratum é o


da realidade eventual de uma mística judaica específica à diáspora da cultura grega.
No que diz respeito a Fílon de Alexandria (20-50), parece estar-se diante de um
pensamento filosófico que culmina numa visão mística da divindade.12
IV. A literatura dos Heykhalot
A denominação de “literatura dos Heykhalot” (palácios divinos)
aplica-se a um conjunto de textos, dos quais os mais antigos
remontam ao século III ou IV, que tratam da Merkabah, ou o relato
da Criação, e que nos chegaram através dos pietistas judeus da
Renânia, que viveram na Idade Média. Essa literatura testemunha
não apenas a existência de indivíduos ou grupos isolados de
místicos, mas também de escolas, transmitindo os ensinamentos e
instituindo uma tradição bem estabelecida.13
Um dos textos mais antigos dessa literatura tem o título de
Re’uyot Yehezqel (As visões de Ezequiel), do qual entretanto o tema
dos Heykhalot no sentido estrito está ausente.14
Trata-se de um Midrash místico sobre o primeiro capítulo de
Ezequiel. A obra contém uma descrição dos sete céus (uma variante
afirma haver oito), sendo o mais elevado designado como o Kisse
ha Kabōd, o trono divino. Outro elemento importante que aparece
nesse Midrash é a idéia formulada em nome de r. Meïr de que Deus
criou sete céus e que em cada céu existe uma Merkabah, um carro
que lhe é próprio. O profeta aprende também que a cada dia, no
segundo céu, anjos recitam o Trisagion, sendo substituídos por
outros no dia seguinte. No terceiro céu reside o Sar, o arconte
celeste, ora denominado Komes, isto é, ministro da corte celeste,
ora Metatron. No quarto céu figuram o dossel da Torá e a Merkabah
na qual Deus desceu ao Sinai. O quinto céu contém o Templo
celeste e seus vasos sagrados. O último céu encerra os calçados e
as asas dos Hayyot, assim como o carro no qual Deus descerá
quando vier julgar todas as nações.
Pode-se reportar aos Re’uyot Yehezqel uma obra um pouco mais
tardia, o Sefer ha-Razim, Livro dos Mistérios, cuja data de redação
está sujeita a controvérsias.15 Ele contém uma quantidade de
fórmulas mágicas para todos os momentos da vida: amor, medicina,
meios de vencer os inimigos, conjurações das potências naturais –
constituindo um equivalente judaico aos papiros mágicos gregos.
Uma obra assim fornece a prova do profundo impacto das
práticas mágicas e astrológicas sobre certos meios judaicos ao fim
da época helenística.
Como nos Re’uyot Yehezqel, aqui também não é questão os
Heykhalot. Assim que se chega ao sétimo céu, não se trata mais de
magia; o texto descreve Deus sentado em sua residência santa,
Me’on Qôdshô, livros de fogo são abertos diante dele e rios de fogo
jorram sob seu trono. O próprio trono é levado por quatro Hayyôt da
Glória. Deus está escondido de todos, e ninguém pode percebê-lo,
como expressa o livro: “Demûto mikôl ne‘elamah û-demût kôl
mimenō lō nistarah”, (sua imagem está escondida de todos, mas
nenhuma imagem lhe é escondida). Os anjos mergulham em rios de
pureza e se revestem de brancura antes de entoar o Trisagion. O
livro termina com um hino cujo vocabulário, tomado de empréstimo
da Bíblia, aparenta-se mais ao vocabulário da poesia sinagogal do
que ao dos hinos da Merkabah. Um terceiro tipo de textos refere-se
à cosmologia. O mais relevante deles é o Sefer Ma‘aseh Bereyshit,
uma importante antologia de materiais referentes à cosmologia, à
cosmogonia e à merkavah.
Esses três tipos de textos têm em comum o fato de dependerem
de uma especulação esotérica mas não comportarem ainda traço de
experiência mística. Os Re’uyot Yehesqel situam-se no
prolongamento das antigas homilias rabínicas sobre o primeiro
capítulo de Ezequiel, assim como o Sefer Ma‘aseh Bereyshit
continua os antigos midrashîm sobre o Gênesis. O Sefer ha-Razim é
o testemunho do interesse dos judeus nas práticas mágicas no fim
da época helenística.
Cinco textos incluídos na literatura dos Heykhalot possuem um
caráter inegavelmente místico: os Heykhalot Zūtrati (Pequenos
Palácios), nos quais r. Aqiba figura como o herói principal; os
Heykhalot Rabbati, onde r. Nehûniah ben ha-Qanah e r. Ismael
aparecem como os mentores de um cenáculo místico (a seção
central de Heykhalot Rabbati pode ser considerada como o primeiro
texto hebraico descrevendo a atividade de uma comunidade de
místicos cujo ritual fornece uma comunicação direta com o divino,
via de acesso proposta a qualquer um disposto a conformar-se com
os procedimentos enunciados); o Sefer Heykhalot (Enosh hebraico);
o Ma‘aseh Merkabah, tratado com predominância hinológica, e o
Shi‘ûr Qômah. Esses cinco livros, embora redigidos em épocas
diferentes, têm traços comuns inegáveis: distinguem-se pelo fato de
incluírem uma lista de potências divinas que têm nomes “angélicos”
aos quais se junta o tetragrama YHWH, o que leva a um pleroma no
qual às vezes é difícil distinguir entre o divino e as potências
angelicais. Esses livros se apresentam externamente como guias ou
manuais para uso dos místicos. Dão um lugar importante à
descrição dos meios utilizados pelo místico para realizar sua
ascensão celeste antes de nos descrever a própria ascensão, a
travessia dos palácios divinos, os perigos dessa viagem, o
aparecimento, enfim, da divindade no trono, rodeada por sua corte
angélica.
Essa aparição divina é descrita nos termos seguintes nos
Heykhalot Rabbati:

R. Ismael disse: “Assim que r. Nehûniah ben ha-Qanah viu o romano ímpio informar-
se sobre os grandes de Israel para exterminá-los, ele se ergueu e revelou o segredo
do mundo, sôdô shel ‘ôlam: a medida que corresponde àquele que merece
contemplar o Rei e o trono em Seu brilho e em Sua beleza, os animais santos, os
querubins indispensáveis, as rodas da divina presença (Shekhinah), o raio
aterrorizante, o temível hashmal, a lava que cerca o trono, as pontes e as chamas
que crescem e jorram entre as pontes, o pó e a fumaça, assim como o odor que todo
o pó solta dos carvões ardentes e que envolve e recobre todas as câmaras do
palácio do firmamento Arabôt, as nuvens densas das brasas, e Soriah, príncipe da
Face, servidor de Totrokiel YWY, o altivo”.16

Os místicos desse movimento se denominavam yordey Merkabah,


isto é, os que descem na Merkabah, e constituíam certamente
escolas místicas que buscavam permanecer no quadro do judaísmo
rabínico, o da Halakhah, o que é comprovado por muitos detalhes
de nossos documentos. Para evitar o perigo da heresia, realizava-se
uma seleção dos candidatos a tais círculos não só levando em conta
um nível de conhecimento esotérico e de qualidades morais muito
elevado como também os critérios surgidos da fisiognomonia
hakkarat Panim e da quiromancia sidrey shirtûtin.17
A viagem através dos sete palácios situados no mais alto dos
céus ocupa um grande lugar nesses textos, pois estes são
destinados a ensinar aos noviços e a armá-los contra os perigos que
os espreitam durante sua viagem. Porteiros angélicos são postados
à direita e à esquerda de cada Heykhal, guardiões aos quais a alma
deve apresentar selos mágicos, permitindo-a ultrapassar o limiar
sem ser repelida por anjos hostis. A cada nova etapa, é preciso usar
novos selos e invocar novas fórmulas mágicas cada vez mais
complicadas. O perigo chega ao paroxismo no nível do sexto
palácio, e os Heykhalot Zūtrati retomam com força o tema da
aventura dos quatro que entram no Pardes segundo a variante de b.
Hagigah, 14b, em que r. Aqiba advertira seus companheiros
dizendo: “Assim que chegarem ao local do mármore puro, não
exclamem: ‘Águas, águas’.”, o que é reforçado pelos textos dos
Heykhalot:
À porta dos sexto palácio, milhares e milhares de ondas se lançavam contra ele;
contudo não havia uma só gota d’água, mas apenas o brilho etéreo das placas de
mármore revestindo o palácio.18

Há então um engodo para aquele considerado indigno de


contemplar o rei em sua beleza; ele pagará sua temeridade com a
própria vida.
A visão de Deus que surge ao iniciado que ultrapassou são e
salvo todas essas barreiras é a do Rei santo descido do alto dos
céus para o trono da Glória:

O Deus grande, poderoso, temível, magnífico, forte, que é escondido de todas as


criaturas e ocultado para os anjos do serviço, revelou-se ao r. Aqiba na obra do Carro
para realizar sua vontade.19

O nível mais profundo atingido pela mística da Merkabah é o da


visão do Shi‘ūr Qōmah, literalmente “a Medida do Corpo” (divino). É
ao mesmo tempo, em suas variantes, o texto mais enigmático dessa
literatura que continuamente solicita a atenção ou indignação de
seus leitores, sejam eles místicos ou racionalistas. Trata-se em todo
caso de uma das obras mais antigas dos Heykhalot, escrita
provavelmente no século II ou III, embora os fragmentos que nos
tenham chegado sejam mais tardios. Tudo se articula em torno de
três temas fundamentais:
– O primeiro tema consiste na lista dos membros do Corpo do
Santo Bendito Seja, que existe escondido em todas as criaturas. O
corpo divino é descrito com termos tomados de empréstimo ao
Cântico dos Cânticos, utilizando-se números simplesmente
astronômicos. A descrição se eleva dos pés à cabeça; assim, é dito
a respeito da nuca:

A altura de Sua nuca é de treze mil vezes dez mil e oitocentas parasangas.

A parasanga é normalmente uma medida de distância utilizada na


Pérsia que corresponde a pouco mais de 5.250 metros. Mas o Shi‘ūr
Qōmah tem uma definição da parasanga que equivale a nove mil
vezes a largura da Terra, o que leva a uma medida da nuca que
corresponde aproximadamente a doze trilhões (1012) de vezes a
largura da Terra.
– Em segundo lugar, o Shi‘ūr Qōmah fornece uma lista de nomes
que acompanham cada um desses membros e que são ininteligíveis
para nós. Se alguns desses nomes resultam de permutações do
tetragrama, há outros que não apresentam nenhum sentido em
hebraico.20
– O terceiro tema é uma passagem em que r. Aqiba e r. Ismael,
que são tidos como autores do texto, garantem àquele que o estuda
um acesso garantido ao mundo que virá.
Como interpretar um texto tão enigmático? É possível que ele não
permita entender a descrição do “Corpo divino” com dimensões que
desafiam a imaginação não para ensinar um saber positivo e sim, ao
contrário, para que os místicos tomem consciência de que Deus
transcende qualquer expressão aritmética e qualquer discurso.
Talvez ocorra o mesmo no que diz respeito à lista dos nomes
divinos, ainda que os textos concedam a eles um mínimo de
inteligibilidade, já que, em certo momento, o texto declara:

O aspecto de seu rosto é como o de um fruto, e o aspecto do rosto e do fruto é como


o da imagem do espírito e da alma. Nenhuma criatura pode reconhecê-Lo. Seu corpo
é como o Tarshish (Dan. X, 6), e seu esplendor jorra com violência da obscuridade.
Nuvens e nevoeiro (Dt. IV, 11) o envolvem... Dele não possuímos medidas, apenas
seus nomes nos foram revelados. (Merkabah Shelemah, 37a )

Nesse trecho, os nomes aparecem então como substitutos para


uma mensuração impossível do divino.
Um último aspecto do Shi‘ūr Qōmah deve ser destacado a
propósito da promessa de beatitude futura como em r. Aqiba e r.
Ismael. O texto diz assim:

Qualquer um que conheça a medida de nosso formador Shi‘ur ze shel Yōtsreynū e o


louvor do Santo Bendito Seja, we-Shibha shel ha-Qadôsh Barûkh Hû, que é
escondido das criaturas, tem o direito de contar com o mundo que virá... (M. S., 38b)

Como destaca J. Dan, o emprego no Shi‘ūr Qōmah do termo


Yōtser relacionado ao conhecimento não é obra do acaso. O termo
de Yōtser Bereshit refere-se com efeito à figura do demiurgo,
embora o louvor esteja relacionado ao Santo Bendito Seja.21 Sabe-
se de fato que os gnósticos dos séculos II e III, em seu anti-
semitismo teológico, contrapunham o Deus incognoscível e bom ao
Deus de Israel identificado com o demiurgo fabricador do mundo
inferior. O autor do Shi‘ūr Qōmah, ao contrário, vem afirmar a
unidade entre o Santo Bendito Seja que permanece oculto e que só
se pode louvar e, em sua manifestação visível, o Yōtser Bereshit
sentado no trono divino.
Tal distinção já é encontrada na famosa prece de Rab, mestre
babilônico do século III, intitulada ‘Aleynû le-shabbeah:

Cabe a nós louvar o Mestre do todo ‘Aleynû le-shabbeah la-‘Adon ha-kol, conferir a
grandeza ao Formador do começo latet Gedûllah le-Yôtser Bereshit.

Percebe-se que esse enunciado é homólogo ao precedente. O


Mestre do todo corresponde ao Santo Bendito Seja do texto anterior,
e a Gedûllah de nosso trecho tem uma conotação de grandeza
teoricamente mensurável, remetendo então ao Shi‘ūr, à medida do
demiurgo de que se tratou anteriormente. Tal dualidade de aspectos
em Deus não parece aos místicos da Merkabah como fruto de um
dualismo qualquer. Só há dualismo quando se enuncia a existência
de dois criadores, shetey Yôtserôt, como o Babli afirma de Aher.22 O
que se destaca com evidência desse texto difícil é que o
conhecimento do Shi‘ūr Qōmah, acoplado ao louvor do Santo
Bendito Seja, ilustrado pelos inúmeros hinos da Merkabah, significa
para o místico o mais alto grau de realização da vida religiosa e,
conseqüentemente, o caminho da salvação.
Outro tema importante aparece ainda nessa literatura: o do Sar
Torah, do arconte da Torá. São fragmentos que tratam dos
procedimentos mágicos e teúrgicos com a ajuda dos quais se intima
o arconte da Torá a revelar os segredos de cima e de baixo e a
garantir ao que utiliza tais práticas que sua memória permanecerá
infalível. R. Ismael e r. Aqiba falam aqui em nome de r. Eliezer ha-
Gadol, que não aparece em outro lugar nessa literatura. Um dos
interesses principais desses trechos é que fazem surgir uma atitude
que se pode qualificar de meta-histórica com relação ao passado.

Assim, declara-se, ao fim dos Heykhalot Rabbati, que o esplendor e a glória da Torá,
entendida assim como a Lei oral, só foram revelados na época do Segundo Templo
no momento em que a Shekina residia nele, e cuja santidade prevalece sobre a do
Primeiro Templo. Essa concepção vai ao encontro de inúmeras afirmações rabínicas
segundo as quais a Shekina jamais residiu no Segundo Templo. Assim, certos
místicos da Merkabah tiveram uma atitude diferente da literatura mishínica em
relação ao Segundo Templo. Outro ponto interessante: aqui, é o conjunto da
comunidade de Israel que toma a palavra, não apenas um único indivíduo.
V. A mística da Merkabah e o gnosticismo
É preciso mencionar aqui resumidamente um problema dos mais
complexos: o das relações entre a literatura da Merkabah e o
gnosticismo. Lembremos que se chama de “gnose” o conhecimento
dos mistérios divinos reservado a uma elite. Por “gnosticismo” se
entende um determinado número de sistemas do século II fundados
na idéia de um conhecimento salvador por conaturalidade com o
divino que implica, de um lado, uma degradação do divino e, de
outro, um dualismo que se manifesta por uma polêmica anticósmica
e antidemiúrgica. Historicamente, os primeiros textos gnósticos aos
quais tivemos acesso são de heréticos cristãos, sendo
caracterizados por um anti-semitismo metafísico muito rigoroso na
medida em que o demiurgo criador desse mundo e principal
obstáculo à salvação é identificado com o deus de Israel. Para além
desse significado propriamente histórico do termo “gnosticismo”,
contudo, pode-se estender seu sentido – procedimento praticado em
especial por H. Jonas colocando-se em uma perspectiva
fenomenológica – a toda a estrutura do pensamento com
características semelhantes. Nessa perspectiva, podemos falar do
gnosticismo dos bogomilos ou dos cátaros, ou mesmo do
gnosticismo de certas correntes do existencialismo contemporâneo.
Essa é a explicação para que G. Scholem tenha sido levado a usar
o termo gnosticismo para qualificar diferentes correntes ou doutrinas
da mística judaica, em primeiro lugar no que diz respeito à mística
da Merkabah, que ele qualifica numerosas vezes de “gnosticismo
judaico”. O segundo capítulo de seu Grands courants de la mystique
juive [Grandes correntes da mística judaica] é intitulado “A mística
da Merkabah e a gnose judaica”. Afirma, entre outras coisas, que a
mística do trono representa para o místico judeu o que o pleroma
com seus éons, suas potências e seus arcontes representa para o
gnóstico. A ascensão do visionário da Merkabah aparece em
Scholem como uma variante judaica da principal preocupação dos
gnósticos e dos herméticos dos séculos II e III, isto é, a ascensão da
alma a partir da terra através da esfera dos anjos planetários, as
esferas do demiurgo e do cosmos, e o retorno à sua divina morada
na plenitude e na luz de Deus, retorno que, para o espírito do
gnóstico, significa a redenção. Scholem acentuou ainda essa
identificação em sua obra Jewish Gnosticism, Merkabah Mysticism
and Talmudic Tradition [Gnosticismo judaico, misticismo da
Merkabah e a tradição talmúdica], cujo próprio título já é
significativo. Ele reconhece que o uso que faz disso extrapola o dos
diversos grupos ou tendências às quais se aplica o termo. Mas
acrescenta:

No entanto, isso não deve colocar obstáculo ao uso desse termo adequado ao
movimento religioso que proclamava um esoterismo místico para eleitos fundado na
iluminação e na aquisição de um conhecimento mais elevado das coisas celestes e
divinas. É a esse conhecimento que faz alusão o termo grego gnosis, significando
“conhecimento”, isto é, conhecimento tendo um caráter ao mesmo tempo esotérico e
soteriológico (redentor). (p.1)

Assim, os textos da Merkabah apresentam para Scholem um perfil


em conformidade com o pensamento rabínico e o gnóstico,
simultaneamente:

Se o que esses textos apresentam é gnosticismo, e seu caráter gnóstico não pode,
na minha opinião, ser contestado, trata-se na verdade de uma gnose rabínica, e as
iluminações e revelações com que seus adeptos são gratificados são tais que se
conformam à visão judaica da hierarquia dos existentes. Realmente todos esses
textos vão muito longe para destacar sua estrita conformidade, mesmo no menor
detalhe, com o judaísmo halákico e suas prescrições. (p.10)
A terminologia utilizada por Scholem e as idéias que a subentendem, contudo, não
têm recebido a adesão de todos os pesquisadores. Alguns deles, como D. Flusser e
I. Gruenwald, realizaram um exame crítico das idéias de G. Scholem nessa questão.
O primeiro destaca a que ponto o gnosticismo, tal como existiu historicamente,
implicava um dualismo entre o mundo divino e o mundo inferior, entre o deus de
Israel identificado com uma divindade má e seu oposto, o Deus desconhecido, bom e
generoso. O gnosticismo supõe uma denegação radical desse mundo e uma
verdadeira revolta contra o deus de Israel. I. Gruenwald, por sua vez, sublinha, no
que tange ao tema da viagem celeste presente ao mesmo tempo nos gnósticos, na
apocalíptica judaica e na Merkabah, que se tratava de um tema já presente na
religião persa e no xamanismo, não se podendo, portanto, deduzir daí o caráter
gnóstico da literatura da Merkabah. No gnosticismo, a alma busca escapar dos
arcontes que a impedem de recobrar o pleroma, enquanto que na literatura da
Merkabah os anjos guardiões de cada palácio examinam os méritos do iniciado e, se
ele é digno disso, ajudam-no a realizar sua ascensão. Em suma, a viagem celeste da
alma é, no gnosticismo, um retorno dessa para sua fonte divina, ocorrido após a
morte, enquanto que a viagem da alma na literatura dos Heykhalot apresenta-se
como uma experiência mística que acontece durante a vida do indivíduo. Pode-se
notar, por outro lado, que na maior parte dos textos dos Heykhalot o caráter
soteriológico não está no primeiro plano, enquanto que a função soteriológica da
gnose está no próprio coração do gnosticismo. Não se encontra também na literatura
da Merkabah traço de erotismo e nenhuma parte dessa literatura trata da natureza
divina da alma e de sua reunificação com o Deus do qual ela procede.

Todas essas objeções mostram bem com que prudência é


conveniente falar de gnose a respeito da literatura da Merkabah.
Entretanto, as relações entre o gnosticismo e o judaísmo
provavelmente ainda persistem. É possível que o judaísmo
apocalíptico, por sua concepção do conhecimento, tenha contribuído
para a elaboração da gnosis entre os gnósticos, já que ela pregava
uma salvação ligada a um conhecimento esotérico. Talvez essa
mesma apocalíptica tenha transmitido à mística da Merkabah a idéia
de uma visão dos segredos do mundo divino e celeste e sobretudo
das técnicas indispensáveis para alcançar tal fim. É o conhecimento
desses meios que constitui a gnose da Merkabah.
Por outro lado, é provável que certos textos gnósticos tenham
sofrido a influência de certas idéias ou fontes literárias judaicas. É o
caso de um certo número de textos de Nag Hammadi como o
Apócrifo de João, a Hipóstase dos arcontes ou o Texto sem título
sobre a criação do mundo.
Tais textos fazem referência a materiais judaicos bíblicos e
rabínicos, mas os utilizam a fim de rejeitar a autoridade do deus dos
judeus e de sua revelação. Trata-se de combater o judaísmo com
suas próprias armas. Daí podemos pensar que esses escritos
dirigiam-se a judeus, antigos judeus ou cristãos, e que seus autores
eram judeus ou ex-judeus que transmitiram certos materiais ao meio
gnóstico.
Outro aspecto do problema diz respeito ao perigo que
representava o gnosticismo no ambiente judeu tradicional. Voltando
mais uma vez à aventura dos quatro que entram no Pardes,
parecem existir fortes chances de que a heresia à qual Elisha ben
Abuya sucumbiu foi mesmo o agnosticismo. Em seu artigo “Aher a
Gnostic” [Aher, um gnóstico], G. H. Stroumsa sugeriu de modo
convincente que a alcunha Aher atribuída a Elisha poderia ser
equivalente ao grego Allogenes, termo utilizado por uma das seitas
gnósticas, a dos sethianos, para se autodesignarem a partir de sua
exegese de Gen. IV, 25.23
Isso está de acordo ao menos com a variante babilônica do relato
sugerindo que Elisha tornou-se herético devido à sua visão de
Metatron.
Um último elemento desse dossiê tem relação com o tema de
Shi‘ūr Qōmah. É incontestável que os textos onde tal tema aparece
fazem uma distinção entre o Santo Bendito Seja e o demiurgo que
exprime um dualismo de algum modo vertical que não parece
herético aos adeptos da Merkabah, ao contrário do dualismo
horizontal dos shetey reshûyôt precisamente mencionados no
episódio de Aher. Observou-se igualmente o caráter soteriológico de
textos dessa natureza. Ao menos nesse caso específico, a
expressão “gnosticismo judaico”, utilizada por Scholem para definir o
conjunto da literatura da Merkabah, parece justificada.
VI. O Sefer Yetsirah
É na multidão de especulações cosmológicas mencionadas
anteriormente a propósito do Sefer Ma‘a-seh Bereyshit que será
preciso situar o livro intitulado comumente Sefer Yetsirah (Livro da
Criação ou da Formação); é sob tal título que ele aparece em
Sabattai Donnolo, que viveu na Itália meridional em 946. Em antigos
manuscritos, seu título é Sefer ‘Ôttiôt de Abraham ’Avinû (Livro das
cartas de Abraão, o patriarca), embora Saadia Gaon (933) refira-se
a ele como Hilkhōt Yetsirah.

O Sefer Yetsirah nos chegou em duas versões, uma longa e outra breve. Mas
mesmo em sua versão mais longa ele não comporta mais de 1.600 palavras. Seu
estilo é verborrágico e solene, mas ao mesmo tempo lacônico no que diz respeito às
idéias fundamentais que exprime. O conjunto do livro apresenta-se em seis capítulos,
cujo material pode ser dividido em duas partes principais:
– A primeira parte, que coincide com o primeiro capítulo, consiste de uma introdução
seguida de um desenvolvimento sobre as dez sefirōt a partir das quais o mundo foi
produzido.
– A segunda parte vai do capítulo dois ao capítulo seis, e trata das 22 consoantes do
alfabeto em sua função demiúrgica.

O primeiro capítulo do Sefer Yetsirah abre com o seguinte


preâmbulo:
Pelas 32 vias maravilhosas da Sabedoria, Deus... gravou. Ele criou seu mundo
através de três livros...

O texto se inicia então por uma afirmativa provavelmente


antignóstica: foi o Deus de Israel quem criou o mundo, e isso pela
interpretação das 32 vias maravilhosas da sabedoria (cf. Prov. III,
17-19). Imediatamente depois, o autor do preâmbulo explica o que
entende pelas 32 vias da Sophia:

Dez sefirōt bĕlima e 22 letras, o fundamento.

As dez sefirōt são aqui concebidas como os dez números


primordiais. O termo é derivado da raiz hebraica que significa
“contar”. O autor utilizou sefirōt no lugar de misparim para indicar
que não são números comuns e sim números enquanto princípios
metafísicos da criação. O sentido da palavra belima continua
igualmente obscuro: é tirado de Jó 26, 7.
Em segundo lugar (em I, 5), as dez sefirōt são identificadas como
as dez dimensões infinitas do Cosmos, a saber, as seis dimensões
do espaço, as duas do tempo e as do bem e do mal.
Numa terceira acepção, as sefirōt (em I, 914) servem para
descrever um processo cosmogônico em relação ao Gn. 1, 2. A
primeira é o Rûah ’Elōhim Hayyīm, o pneuma do Deus vivo com
tudo o que implica a conotação de Rûah: sopro, ar, espírito. Desse
Rûah sai por condensação a segunda sefirah, o Rûah merūah, isto
é, o elemento primordial do ar identificado nos capítulos seguintes
com o éter ’awir, que se divide em éter material e éter imaterial. Do
ar primordial vêm a água e o fogo (terceira e quarta sefirōt). Afirma-
se ainda que a partir do sopro Deus criou as 22 letras fundamentais;
da água primordial vem o tohu-bohu, isto é, o caos cosmológico; do
fogo primordial saem o trono da Glória e toda a hierarquia angélica.
As seis últimas sefirōt representam as seis direções do espaço.
Elas são seladas por seis permutações do grande nome YHW. Essa
idéia ressalta ao mesmo tempo a mística da linguagem e o uso
teúrgico do nome divino. Há paralelos dessa concepção tanto na
literatura das Heykhalot quanto na gnose valentiniana.24
O quarto significado atribuído ao vocábulo sefirōt (em I, 6), porém,
é que foi determinante para a reinterpretação de um texto que se
apresenta inicialmente como uma cosmogonia quase científica da
natureza num texto de caráter místico. De fato, tal parágrafo afirma
que a visão das sefirōt tem a rapidez do raio, e que elas se lançam e
voltam (Ez. I, 13) assim que Deus lhes dá essa ordem, e que se
prosternam ante o trono divino. Naquele momento, as sefirōt estão
metamorfoseadas em criaturas contemplando o trono divino, como é
o caso dos anjos e dos heróis da literatura dos Palácios.
A segunda parte do Sefer Yetsirah nos ensina como todo o real é
constituído em três níveis do cosmos pela combinação das 22 letras
do alfabeto hebraico: o mundo (‘Ôlam), o tempo (Shanah), o homem
(Nefesh). O autor descreve “231 portas”, ou 231 combinações
binárias das 22 consoantes com a ajuda das quais se efetua a
gênese do mundo. A respeito delas, ele indica:

Disso resulta que toda criatura e toda palavra procede de um único nome.

Assim, pode-se entender que o alfabeto, tal como se desdobra


nesse grande número de combinações, é apenas a manifestação de
um nome único, o da divindade.
O primeiro grupo é composto por três letras, aleph, mem, shin,
que são denominadas mães (’immôt ou, segundo certos
manuscritos, ’ûmmôt, isto é, fundamentos); colocam-se essas três
letras em relação à imagem da balança, os três elementos, as três
estações, assim como com as três partes do corpo humano, como
se pode perceber no quadro a seguir:

Letras Shin Aleph Mem


BALANÇA Platô da Flagelo Platô do
Culpabilidade Mérito
ELEMENTOS Fogo Sopro Água
MUNDO Céus Éter Terra
TEMPO Verão Primavera Inverno
HOMEM Cabeça Peito Abdômen

O segundo grupo é composto por sete consoantes que, no


sistema de fonologia hebraica da época, têm uma dupla pronúncia.
Elas representam os arquétipos das sete oposições fundamentais
da vida humana, os sete planetas do cosmos, os sete dias de
semana, assim como os sete orifícios da cabeça do homem. Faz-se
corresponder a tais consoantes também as seis direções do espaço
e o Templo no centro do mundo, que constitui o fundamento delas.
O último grupo é o das doze consoantes simples. São colocadas
em relação às doze manifestações psicossomáticas que se
desenrolam no homem, assim como a seus doze órgãos principais.
Elas correspondem tanto às doze constelações do Zodíaco como
aos doze meses do ano. Traça-se igualmente um paralelo entre elas
e as doze arestas do cubo.
Assim, está claro que a linguagem não é simplesmente um
instrumento de comunicação no Sefer Yetsirah; tem também um
valor ontológico e cosmogônico. Situa-se inteiramente na origem do
real, tal como este se acha estruturado em três níveis fundamentais.
Essa concepção e o fato de que o Talmude já menciona as halakhot
sobre a criação, com a ajuda das quais certos rabinos exerciam
práticas taumatúrgicas, permitem pensar, como admitiam as
pessoas da Idade Média, que o Sefer Yetsirah serviu bem cedo para
práticas dessa natureza, como ocorreu em certos círculos
esotéricos, especialmente entre os pietistas alemães.25
O último capítulo do livro nos chegou muito mutilado. Pode-se
reter um trecho que suscitou em seguida muitos comentários:

O Teli (dragão) no mundo como o rei sobre seu trono.


A esfera no tempo como o rei em sua província.
O coração no homem como o rei no combate.
A idade do Sefer Yetsirah deixa-se fixar com muita relutância. Ele é citado pela
primeira vez pelo poeta sinagogal Eleazar ha-Kallir, que viveu no século VII na terra
de Israel. A pesquisa mais recente a respeito do Sefer Yetsirah, a de Y. Liebes, situa
sua redação na época do segundo Templo, talvez na Síria do Norte.

Pode-se dizer que essa obra teve uma sorte singular, pois serviu,
praticamente, com a Bíblia e a literatura talmúdica, de terceiro texto
fundador para a quase totalidade dos escritos especulativos
judaicos da Idade Média em sua confrontação com a fonte grega. E
isso é válido tanto para os filósofos quanto para os adeptos da
cabala. Tal constatação se faz com Saadia Gaon em Bagdá tão bem
quanto em Dunash ben Tamin, o discípulo de Isaac Israeli em
Kairuan. Depois foi a vez de Juda Hallevi comentar o Sefer Yetsirah
na quarta parte de seu Kūzari, assim como Juda Ben Barzillai, em
Barcelona. No Sul da Itália, Sabbatai Donnolo redigiu também um
comentário em que surge uma primeira leitura teosófica da obra,
antecipando a leitura que farão dela Isaac l’Aveugle e seus
sucessores. Tendo conhecimento de uma parte dos textos que
mencionamos, os pietistas alemães também redigiram vários
comentários sobre o Sefer Yetsirah. Para eles, esse não era apenas
um dos livros de referência de sua teologia esotérica, mas também
um manual tendo em vista a fabricação do Golem (homunculus).
Muitos cabalistas, enfim, de Isaac l’Aveugle a Elias de Vilna, no
século XVIII, passando pelos geroneses e Abraham Abulafia,
comentaram sucessivamente o Sefer Yetsirah. Que espíritos tão
diferentes tenham podido decifrar seu próprio sistema nesse livro
indica o prestígio e a autoridade dos quais a obra se beneficiou ao
longo dos séculos.

2. Cf. o Apocalipse de Abraão (ed. B. Philonenko-Sayar e M. Philonenko). Semitica, XXXI,


1981. (N.A.)
3. Em Vetus Testamentum, Suplemento VII, 1966, p.318-345. (N.A.)
4. Scholem, G. Jewish Gnosticism. 2a ed. Nova York: 1964, p.128. (N.A.)
5. Cf. y. Hagigah, II, 1, 77a e b; Hagigah, 14b. Em y. Hagigah acha-se um relato
semelhante sobre r. Joseph Ha-Kohen e r. Simon ben Netanel. (N.A.)
6. Arrogância, orgulho excessivo. (N.T.)
7. O outro é o Talmude Yerushalmi (N.T.)
8. D.J. Halperin, Merkabah and Ma‘seh Merkabah according to Rabbinic Sources. Berkeley,
1977, p.153-159. (N.A.)
9. Ed. Margalioth, Jerusalém, 1964, p.354-355. (N.A.)
10. G. Scholem, Jewish Gnosticism, p.36-42 (N.A.)
11. Cf. G. Scholem, op. cit., p.118-126. (N.A.)
12. Para uma compreensão maior desse problema, ver D. Winston, Was Philo a Mystic?,
em Studies in Jewish Mysticism (ed. J. Dan e F. Talmage), Cambridge (Mass.), 1982, p.15-
19. (N.A.)
13. A maior parte dessa literatura foi notavelmente editada por Peter Schäffer no volume
Synopse zur Hekhalot Literatur, Tübingen, 1981. (N.A.)
14. Os Re’uyot Yehezqel foram objetos de uma edição crítica por I. Gruenwald, em Temirin
I (1972), p.101-113. (N.A.)
15. Certos indícios sugerem o século III ou IV, mas outras passagens remetem ao século VI
ou VII. O livro foi editado por M. Margaliot em 1967. Em sua edição e tradução do Sefer ha-
Rasim, M. Morgan coloca a redação da obra no início do século IV no contexto dos papiros
mágicos gregos. (N.A.)
16. Synopse Schaefer, § 198. Ver J. Dan, The Revelation of the Secret of the World: The
Beginning of the Jewish Mysticism in Late Antiquity, Brown University, 1922. (N.A.)
17. Ver G. Scholem em Sefer Assaf, Jerusalém, 1953, p.459-495, assim como no Liber
Amicorum: Studies in Honour of Professor Dr. C. J. Bleeker, Leiden, 1969, p.175-193.
(N.A.)
18. Synopse Schaefer, § 408. (N.A.)
19. Synopse Schaefer, § 421. (N.A.)
20. Encontra-se também essa mística de letras, nomes e números no Alfabeto de r. Aqiba
que menciona setenta nomes de Deus e tantos outros de Metatron. Não se pode duvidar
do aspecto operatório desse nomes. Outros caracteres hebraicos misteriosos aparecem no
Alfabeto dos Anjos e alhures. (N.A.)
21. J. Dan, The Concept of Knowledge in the Shi‘ẅr Qămah, AJS Review, 1979, p.67-73.
(N.A.)
22. Considerado herético pelo judaísmo rabínico ortodoxo, Elisha passou a ser chamado
de Aher, “O Outro”. (N.T.)
23. O artigo de G. H. Stroumsa foi publicado no volume The Rediscovery of Gnosticism,
vol. II: Sethian Gnosticism, Leiden, 1981, p.808-810. (N.A.)
24. Ver I. Gruenwald, supracitado p.509-511, e G. Scholem, Les origines de la Kabbale,
Paris, 1966, p.40-42. (N.A.)
25. Ver b. Sanhédrin, 65b e 67b, sobre o tema das práticas taumatúrgicas de certos rabinos
do Talmude. (N.A.)
CAPÍTULO II
DOS GEONIM AO PIETISMO RENANO
A historiografia judaica designa o tempo que se seguiu à redação
final do Talmude da Babilônia (500-650) como a época dos Geonim.
O título de Gaon, “Excelência” (plural Geonim), era aplicado aos
reitores das duas maiores academias da Babilônia (Sura e
Pumbedita), cuja autoridade se estendeu sucessivamente, a partir
da conquista islâmica, à África do Norte, à Espanha, à Península
Ibérica e finalmente à diáspora inteira. Yehudai, o Gaon de Sura
(760-763), conseguiu estabelecer a preeminência do Talmude
babilônico sobre o Talmude palestino, inclusive nas próprias escolas
palestinas. Isso não impediu o judaísmo rabínico de ser objeto de
uma contestação violenta no século IX, depois que o surgimento do
movimento caraíta promoveu uma volta à Escritura, rejeitando as
interpretações e a autoridade dos Doutores do Talmude. O
movimento caraíta, que apelava para um retorno dos judeus à
Palestina a fim de apressar a vinda do messias, logo produziu por
sua vez um corpo de doutrinas e uma legislação apoiados em sua
releitura da Bíblia.
I. A mística judaica da época dos Geonim (640-1048)
Durante esse período, a especulação mística também não se
esgota, ainda que não produza algo de absolutamente inédito.
Assim, os poemas de Eleazar Kallir, na Palestina, ecoam a literatura
dos Heykhalot e do Shi‘ūr Qōmah. É também nessa época que são
redigidos vários Midrashim apocalípticos, como o Apocalipse de
Zerubabel e os Nistaröt de r. Simon bar Yohay.26 Esse período é
também marcado pela redação e difusão de obras teúrgicas e
mágicas, especialmente na Babilônia, na tradição dos antigos
papiros mágicos. Eles são redigidos pelos Ba‘aley Shem, Mestres
do Nome. Nesses textos, a demonologia vai par a par com a
angelologia. Um texto como a Habdala de r. Aqiba é um exemplo
desse tipo de literatura.27
Também provavelmente foi redigida na Babilônia a obra intitulada
Raza Rabba [O grande mistério], contendo – ao lado de trechos de
ordem mágica e angelológica que fizeram dela um alvo privilegiado
para os caraítas – outros fragmentos aparentados à literatura da
Merkabah. Alguns desses textos retomam a teoria dos éons e outras
especulações de caráter gnóstico.28
Podem-se ressaltar na mística dessa época três orientações
novas:
– O conceito de Shekhinah tomou um novo significado; enquanto
na antiga literatura rabínica ele denota a presença de Deus no
mundo e apenas designa essa presença, percebe-se que o Midrash
tardio distingue Deus e a Shekhinah. Assim, no Midrash sobre os
Provérbios, 47a :

A Shekhinah se apresenta ante o Santo Bendito Seja e lhe diz...

Ela tende assim a tornar-se uma hipóstase, como é o caso das


middot mencionadas nas Âbōt do rabino Nathan:

Sete middōt servem ante o trono da Glória: são elas a Sabedoria, a Justiça, o Direito,
a Graça, a Misericórdia, a Verdade e a Paz.

Nesse contexto, esboça-se uma aproximação entre a Shekhinah e


Knesset Israel, a Ecclesia de Israel, embora esse termo, na antiga
literatura, designasse apenas a comunidade de Israel enquanto
parceira do Santo Bendito Seja.
– Outra doutrina começa a difundir-se nessa época em círculos
judaicos do Oriente: a da migração das almas. Durante um certo
tempo, ela foi adotada ao menos pelos caraítas. Saadia Gaon,
adversário dos últimos, desenvolve em 930 uma polêmica contra os
judeus que concediam sua crença a essa novidade. Veremos que,
apesar dessa oposição, a idéia abrirá caminho na Provença.
– Um último elemento importante que desempenhará um papel
não negligenciável na mística medieval consiste no esforço de
descobrir uma relação por meio da gematria, da isopsefia, isto é, do
valor numérico das letras, e por outros procedimentos da mesma
ordem, entre as preces e especialmente os nomes divinos e os
versículos da Escritura. Esses mistérios – sōdōt – numerológicos
estão ligados a uma nova concepção da prece. Enquanto para os
místicos da Merkabah a prece servia sobretudo como meio teúrgico,
objetivando uma experiência extática, procura-se agora descobrir no
texto do ritual, que por isso mesmo torna-se cada vez mais
intangível, significados místicos, intenções, kawwanōt, que
estimulem um novo modo de prece do tipo meditativo.
Parece que todas essas inovações passaram do Oriente para o
Ocidente basicamente pelo canal da Itália. Nesse sentido, fornece
testemunhos a famosa Megillat Ahima‘az, redigida por Ahima‘az de
Oria, assim como os escritos dos pietistas da Alemanha. Outros
testemunhos sobre a mística gaônica nos são fornecidos pelos
responsa de Sherira ben Hanifia e Hai Gaon, redigidos para
responder às perguntas que lhes foram feitas pelos anciãos de
Kairuan.
II. A influência árabo-islâmica e o pietismo na terra do Islã
A cultura árabo-islâmica teve um papel considerável na formação
e nas transformações do pensamento judaico medieval, inclusive na
mística judaica. Para todas as comunidades judias estabelecidas
entre Bagdá e Toledo, a cultura árabo-islâmica passa a ser a
dominante. Os judeus se tornam a parte receptora nesse novo
contexto ao adotarem o árabe como língua de comunicação. Por
esse viés, eles têm acesso aos diferentes saberes veiculados por
aquela cultura: ciência, literatura, teologia etc. No que tange à
mística, ela receberá o impacto sobretudo da filosofia árabe e do
sufismo.
É pelo viés da filosofia árabe que toda a herança da filosofia
grega penetra de novo no judaísmo, obrigando-o a reformular suas
próprias concepções. Será elaborada uma problemática que se
tornará o terreno comum das três religiões do Livro durante toda a
Idade Média. A partir de Saadia, os pensadores judeus buscarão
formas de conciliar a unidade de Deus com a multiplicidade de seus
atributos. Eles se esforçarão também para explicar como os
antropomorfismos da Escritura ou da Aggadah podem conciliar-se
com a natureza incorpórea de Deus, assim como outros problemas
semelhantes.
Conhecida no Ocidente sob o nome de “sufismo” (em árabe, suf
significa “o místico”), a mística muçulmana exerceu também sua
influência na mística judaica medieval, especialmente por seu
ascetismo e por seu tema fundamental do amor de Deus
inteiramente desinteressado. Por seu ascetismo, isto é, por uma
disciplina espiritual destinada a livrar a alma de seus defeitos e a
armá-la de virtudes morais, o homem é levado a afastar-se do
mundo e de tudo o que o distancia do Criador para
progressivamente unir-se a Deus.

Pode-se constatar o impacto do sufismo no pensador judeu espanhol Bahya ibn


Paquda (segunda parte do século XI). Seu livro Introdução aos deveres dos
corações, redigido em árabe, retoma, ao lado dos empréstimos ao neoplatonismo e
ao hermetismo, o essencial do ascético muçulmano ao mesmo tempo em que
reivindica a ética judaica mais tradicional.

Em compensação, parece que no Egito dessa mesma época a


influência da mística muçulmana levou certas personalidades
judaicas a uma hasidut, a uma devoção verdadeiramente mística; é
o caso de Abraham (Abraão) ben Moïse (Moisés) Maimônides, o
filho de Maimônides (falecido em 1217), que criou um tipo de judeu
sufista e cujo livro Kafayat al-’Abidin (Enciclopédia dos Servos) é
inteiramente baseado nos textos sufistas. Abraão Maimônides, que
desde 1204 era Nagid, isto é, a autoridade suprema dos judeus do
Egito, quis até, sob a influência do sufismo, ressuscitar certos
costumes desaparecidos entre os judeus após a destruição do
Segundo Templo, como a prosternação, os braços estendidos
durante a prece, ou ainda formas de culto tomadas de empréstimo
do Islã, como a ablução dos pés antes da prece, a postura sentada,
as pernas cruzadas ou a posição em pé em fileiras bem ordenadas.
Essas inovações, bem acolhidas por alguns, chocaram-se
entretanto com a resoluta oposição de outros grupos da comunidade
judaica egípcia. Apesar disso, Abraão Maimônides conseguiu
agrupar em torno dele um cenáculo esotérico, sendo sua obra
continuada pelo filho Obadias. Contudo, devido a seu relativo
isolamento, esse grupo não parece ter exercido uma grande
influência na mística posterior fora do Egito e do Oriente Médio.29
III. O pietismo judaico no mundo asquenaze
As comunidades judias espalhadas em torno da bacia
mediterrânea e inseridas no contexto da cultura árabo-islâmica não
foram as únicas nas quais emergiu uma espiritualidade do tipo
pietista. Os centros judaicos da Europa ocidental imersos no mundo
cristão viram também surgir em seu seio uma orientação pietista
cuja influência ultrapassará em muito as manifestações de pietismo
em terras do Islã.

O pano de fundo histórico e ideológico – O hassidismo renano


nasce no seio de comunidades judias da Alemanha do Sul, como
Ratisbona e o vale do Reno (Spira, Worms, Mayence), entre 1150 e
1250. Em seguida se espalha por todas as comunidades judias
disseminadas através da Alemanha e do norte da França,
denominado então Tsarfat. Todas essas comunidades viviam na
época sob o impacto da degradação de sua situação social,
econômica e política que se seguiu ao choque provocado pelos
massacres dos Cruzados. Sabe-se de fato como, logo na primeira
cruzada entre abril e junho de 1096, as comunidades judias da
Renânia foram enlutadas por massacres coletivos cuja memória se
perpetua sob o nome de Gezerōt Tatnav (4856/1096). Nessa
ocasião, os judeus alemães revelaram sua coragem e sua fé
profunda escolhendo o martírio para a santificação do nome divino
(Qiddūsh ha-Shem). O hassidismo renano pode, ao menos
parcialmente, ser interpretado como a resposta dada pelo judaísmo
asquenaze ao desafio que lhe teria lançado a cristandade em torno.
Não apenas os judeus recusaram a conversão em troca de sua vida
como criaram ainda um novo modo de vida e de pensamento,
conscientes da superioridade espiritual sobre aqueles que tinham
tentado aniquilar sua vida e sua fé.
No centro do movimento,vêem-se os membros de uma grande
família de letrados judeus: os Kalonymides, que moravam em
Lucques, no norte da Itália, haviam atravessado os Alpes e se
instalado em Mayence nos tempos carolíngios. Tem-se
conhecimento de r. Kalonymos, o antigo, e depois de r. Samuel he-
Hasid, seu filho, que viveu na segunda parte do século XII em Spira.
O filho desse último, r. Juda he-Hasid, foi a figura central do
movimento; nasceu por volta de 1146 e morreu em 1217 em
Ratisbona. O aluno mais importante de r. Juda he-Hasid foi r.
Eleazar ben Juda ben Kalonymos, de Worms (morto em 1230).
Se colocamos o pietismo renano – cujo apogeu se situa entre o
fim do século XII e meados do século XIII – no contexto do conjunto
do pensamento judaico medieval, percebemos que seu impulso
insere-se numa renovação religiosa e cultural do conjunto do
judaísmo europeu. É nessa mesma época que florescem na França
as escolas dos tosafistas, os sucessores dos ensinamentos de
Rachi (sigla de rabino Salomon Ishaqi) tanto no plano exegético
quanto no talmúdico. No mesmo momento, a filosofia judaica
espanhola vai atingir seu apogeu com a obra de Maimônides. É
também entre 1185 e 1200 que o primeiro grande texto da cabala
teosófica, o Sefer ha-Bahir, é redigido na Provença. Isaac l’Aveugle
e seus discípulos, assim como os cabalistas de Gerona no início do
século XIII, são também os contemporâneos dos pietistas da
Alemanha. O hassidismo renano é então uma das faces da
renovação judaica na obra do conjunto do judaísmo europeu no
decorrer dos séculos XII e XIII.
Essas manifestações, é claro, não são estranhas umas às outras.
Alguns acreditam que o pietismo renano é uma reação contra as
inovações aplicadas ao estudo da Halakhah pelos tosafistas que
cultivavam uma abordagem dialética do Talmude. Tal abordagem
poderia perturbar o tipo de autoridade existente nas elites rabínicas
dispondo do poder nas comunidades renanas, o que explicaria em
parte as críticas exercidas pelos pietistas contra o puro
intelectualismo.30 Inversamente, constata-se que os tosafistas
sofreram a influência dos pietistas renanos. Assim, Corbeil aparece
como local de estudos esotéricos. Trata-se também das visões de
Isaac de Dampierre e de Ezra de Moncontour, denominado profeta;
Elhanan ben Yaqar, aluno de Isaac, é o autor de vários tratados
esotéricos. A leitura dos pietistas renanos ressalta a influência que
sofreram da filosofia judaica, especial e inicialmente a de Saadia
Gaon (não na tradução de Juda ibn Tibbon, mas numa paráfrase
poética mais antiga que esbatia o caráter especulativo do Livro das
Crenças e Opiniões), mas também, para certos autores, a de
Abraham ibn Ezra e de Abraham bar Hiyya, sem contar a do
comentário de Sabbatai Donnolo sobre o Sefer Yetsirah. Os devotos
da Alemanha também influenciaram a cabala da Provença através
do Raza Rabba e suas especulações sobre as preces.

A teologia dos Hasidey Askenaz – O Deus que aparece aos


olhos dos Yordey Merkabah era um Deus instalado em seu trono no
mais alto dos céus, à escuta de hinos extáticos dos santos e dos
justos; um Deus muito afastado de suas criaturas por sua
onipotência e majestade. O Deus dos pietistas renanos é
onipresente, imanente a toda realidade. No Shir ha-Yihud, um dos
primeiros textos dos pietistas alemães, podemos ler os seguintes
versos cuja linguagem é tomada de empréstimo da teologia de
Saadia Gaon:

Nada é oculto ou dissimulado diante de Ti


O passado e o futuro para Ti são um só
Abarcas todas as coisas e preenches tudo
sendo tudo, Tu estás em tudo...
Não há nada acima nem abaixo de Ti
Nada do lado de fora, nada entre Ti e Ti.
Nem direito ou avesso para tua unidade
Nem nenhum corpo para a potência de tua unicidade.
Nenhuma cisão em teu meio,
E não estás ausente de nenhum lugar.

Para os Hasidey Askenaz, a imanência de Deus provém de sua


incorporeidade. De fato, se Deus é incorpóreo, nada pode limitá-lo:
conseqüentemente, ele deve estar presente em todas as coisas.
Portanto é a sua absoluta transcendência que paradoxalmente leva
sua imanência a todas as coisas.
Por sua vez, Eleazar de Worms escreve:

Pois o Criador está presente para todos e mais próximo a todos do que a alma está
do corpo, ainda que ele não tenha imagem.

Essa imanência de Deus em relação ao mundo leva os pietistas a


se colocarem problemas no nível de sua sensibilidade religiosa:
como o divino poderia residir em lugares impuros ou entre os
ímpios? Uma resposta é fornecida pelo rabino Juda he-Hasid no
texto seguinte:

Se tu dizes: Como o Santo Bendito Seja apareceria nesse local de imundícies e


como estaria Ele num lugar onde permanecem os pecadores e aqueles que O
irritam? Não o sabes a partir da alma, que está presente em todo o corpo e que não
é tocada por nenhum atentado desferido ao corpo?
Outra resposta é fornecida pelo autor do Sefer ha-Hayyim, que
compara a imanência de Deus à luz do sol, que não é atingida em
sua substância pelo que acontece a seus raios. O Deus
transcendente não sofre nenhuma alteração da parte de suas
criaturas. Ao contrário disso, a Glória divina adere aos seres
criados, mas somente segundo a vontade de Deus: há então aqui
um modo de imanência seletiva.
A distinção entre o Deus escondido e o Deus que se manifesta é
absolutamente fundamental na teologia dos pietistas alemães. Eles
designam o Deus escondido pelo termo de “Criador”, Bore,
enquanto a potência divina que se manifesta aos profetas é
designada pelo termo Kabōd, “Glória”. Como no trecho seguinte
tirado de Eleazar de Worms:

Mas a unidade do Criador não muda, não se modifica nem é modificada. Entretanto,
a visão de Sua Glória corresponde a seu conteúdo, e do fulgor do fogo de sua
magnificência tudo é manifestado; quando ele se irrita, a visão reflete a cólera, e tudo
está na nuvem da glória diante dele.

O Deus escondido dos pietistas renanos não tem, contudo, o


mesmo estatuto que o Deus escondido das outras correntes de
pensamento judaico medieval, filosofia ou mística teosófica. Essas
orientações vêem na criação uma das expressões essenciais no
que tange à manifestação do divino. Para elas, entretanto, o Deus
escondido não age nas profundezas da própria criação, e sim opera
em seu interior por meio de forças divinas gradualmente
diferenciadas. Os Hasidey Askenaz viam no ato da criação a
característica essencial do Deus escondido. Por isso a expressão
“Deus escondido” nesse contexto só pode ser aplicada
imperfeitamente. Embora escondido aos olhos dos homens, ele é
atuante e presente no mundo; em primeiro lugar pelo ato da criação
e a seguir por todas as suas outras ações, especialmente por sua
providência.

Os traços da divindade – A ocultação do Deus escondido leva à


pergunta: como pode o homem conhecer algo sobre Ele? O
problema se coloca mais ainda pelo fato dos pietistas renanos
atribuírem todas as metáforas e todas as teofanias – assim como
todos os antropomorfismos da Escritura, do Midrash e da literatura
da Merkabah – à Glória divina. Eles não dispunham também em
suas fontes de elementos com que considerar uma relação
intelectual com o Deus escondido. Assim, o pietismo alemão foi
obrigado a elaborar por seus próprios meios uma via de abordagem
desse ser oculto. Se o Deus escondido é o Criador, é preciso admitir
que ele usa sua atividade própria para ensinar sua realidade. Os
pietismos renanos estabeleceram então uma relação entre o Deus
escondido e um certo número de fenômenos, através dos quais
percebem sua realidade. Explicitam essa via de acesso invocando o
versículo (Ps. CXI, 5): “Ele deixou um memorial de seus milagres”.
Assim, consideram que Deus em sua bondade suscitou maravilhas
e realidades extranaturais que não podem se explicar no plano da
natureza, para que seus devotos possam compreender e ensinar
algo sobre o poder milagroso e sobrenatural do próprio Criador. Os
fenômenos sobrenaturais foram colocados intencionalmente no seio
da natureza a fim de serem identificados como tais pelo devoto.
Sabendo discernir os fenômenos naturais, o hasid reconhecerá
através deles o mistério de seu Criador.
Uma expressão clara dessa concepção é fornecida por um trecho
de r. Juda he-Hasid encontrado em seu Sod ha-Yihud. O problema
colocado é o da ciência puramente intuitiva de Deus. A resposta é a
seguinte:

E se tu dizes: Como o coração acreditará que Deus conhece e escruta todas as


coisas num só instante? O coração do homem não compreende simultaneamente
dois pensamentos, não percebe uma multidão de cores ao mesmo tempo? Seu
pensamento não é exclusivamente discursivo, é também intuitivo; assim, com mais
motivo ainda, o Criador vê e evoca o todo! Esses milagres não são um memorial de
sua unidade?

A possibilidade de um saber intuitivo para o homem foi desejada


pela solicitude divina para fazer conhecer aos homens o poder da
divindade. O fato de existirem no mundo maravilhas que exibam de
algum modo o divino, ainda que de maneira limitada, é o caminho
através do qual o homem pode atingir o conhecimento do Criador e
de suas vias. Juda he-Hasid cita ainda o caso do instinto: se o cão é
capaz por seu instinto de encontrar um ladrão, tanto mais terá Deus
a capacidade de perseguir os ímpios e puni-los! Num outro registro,
os milagres produzidos em favor de Moisés são um memorial para
todos os que se apresentam diante de Deus, sabendo que Deus
agirá da mesma forma em relação a eles. O Criador escolheu no
interior da criação um determinado número de fenômenos para
revelar sua essência a seus devotos.

A doutrina da Glória – Os Hasidey Askenaz tomaram de


empréstimo de seus antecessores os elementos que lhes permitiram
fornecer sua própria resposta aos problemas colocados pela noção
de Kabōd. Saadia Gaon elaborara uma teologia do Kabōd em
primeiro lugar para explicar as metáforas e os antropomorfismos da
Escritura e da Aggadah rabínica. Os termos utilizados para designar
Deus devem ser tomados literalmente. Contudo, não se aplicam ao
próprio Deus e sim a uma realidade criada, sendo o Kabōd
identificado com a Shekinah. É o Kabōd que aparece sob formas
diversas aos profetas. Posteriormente, para responder às objeções
de adversários caraítas a propósito do Shi‘ūr Qōmah e do herético
Hiwi al Balkhi, Saadia é levado a distinguir entre uma glória superior
revelada aos anjos e uma glória inferior manifestada aos homens.
Esse mesmo tipo de especulação está em Abraham Ibn Ezra, mas
nele se encontra inserida no quadro de um emanatismo
neoplatônico, no qual termos como o de Dabaq marcam a
continuidade entre o divino e os seres de baixo. Todas essas
especulações vão estimular a reflexão dos pietistas alemães sobre o
problema do Kabōd.
No pietismo alemão, a teologia da Glória é o pivô em torno do
qual ordena-se toda a especulação e do qual decorre todo tipo de
conseqüências teóricas e práticas.
Ainda que exista um consenso entre todos os hasidim no que diz
respeito à distinção entre o Criador e o Kabōd, pontos de vista
diferentes abrem um caminho quanto a seu significado.
Num texto anônimo cujo autor seria Juda he-Hasid, segundo J.
Dan, ocorre um debate fictício de três letrados judeus diante do rei
da Espanha (reconhece-se o modelo literário do Kuzari, de J.
Halevi) sobre o tema da natureza da Glória.
Temos ali três respostas quanto à questão da revelação do divino
que concordam no pressuposto de que Deus, não sendo um corpo,
não poderia se revelar como tal. A primeira explica o profetismo
como um puro fenômeno subjetivo – a visão surge então do
imaginário da pessoa. A segunda, fundada em Ibn Ezra, reconhece
na Glória uma realidade emanada da divindade na qual o profeta
apreende as visões que lhe são concedidas. Há uma relação de
analogia entre o que é percebido e o que é dado. A terceira posição,
que se inspira em Saadia, vê na Glória uma vez criada uma certa
aparência, um anjo de um grau muito elevado.
Outras concepções se produzem ainda no pietismo sobre o tema
do Kabōd. No Sefer ha-Hayyim aprende-se que, ao mesmo tempo
que existem estrelas de primeira, segunda, terceira grandeza etc.,
existem também glórias de primeiro, segundo e terceiro grau etc., às
quais correspondem os seis dias da semanas e todas formas e
representações de cima e de baixo. Em outros lugares, trata-se de
uma glória particular a cada firmamento. Em outros textos, porém, a
tônica está colocada na unidade da glória que corresponde à
unidade do Deus que ela manifesta. Os dois pontos de vista
concordam sob a condição de distinguir entre a própria glória como
emanação da essência divina acima de todos os existentes e as
modalidades várias dessa glória que correspondem aos diferentes
níveis da criação.
Nos adeptos do cenáculo do querubim particular, a doutrina do
Kabōd toma um aspecto original. Ainda que existam nuances entre
os textos que chegaram até nós desse meio, pode-se dizer que eles
admitem, grosso modo, um processo de emanação que parte do
Deus escondido denominado Rūah ’Elōhim Hayyim, que faz emanar
a Shekinah de sua Glória acima do querubim particular. O próprio
querubim é criado a partir do fogo divino e acha-se instalado no
trono da Glória. A Glória, que representa um grau elevado na
emanação, permanece escondida aos olhos das criaturas e só é
tornada visível pela mediação do querubim particular.

A doutrina hassídica da prece – A teologia esotérica dos


pietistas não era para eles uma pura construção intelectual. No
plano do vivido, significava uma nova concepção da prece que eles
exigiam fosse transformada em atos por seus discípulos. A
concepção da prece elaborada pelos pietistas da Alemanha parte da
convicção que a ordem, o conteúdo e as palavras da prece que
chegaram a eles nada têm de contingentes e sim remetem, de
geração em geração, à revelação original. Assim declara Eleazar de
Worms, num texto onde ataca certos judeus da França e da
Inglaterra por terem modificado o texto do ritual:

Eu, Eleazar o pequeno, recebi o arranjo das preces qibbalti tiqqūn tefillōt de meu pai
e mestre, r. Yejuda bar Kalonymos...

Depois, aos poucos, ele reconstrói a cadeia da tradição até Abu


Aharon, vindo de Bagdá para a Lombardia, que teria transmitido os
mistérios da prece aos primeiros Kalonymides então lá instalados.
E acrescenta:

Vou colocar por escrito o mistério das preces a fim de que todo homem conheça o
mistério das bençãos e oriente seu coração para servir a Deus por medo e a tremer...
pois aquele que contesta nesse domínio é como o que questiona as palavras da Torá
reveladas no Sinai; pois o mistério das preces que recebemos remonta de mestre em
mestre até aos profetas, anciãos, devotos, homens da Grande Assembléia que as
estabeleceram. Aquele que acrescenta ou retira uma única letra ou palavra que seja
desgraçado agora e no futuro!

Essa solicitação por um texto intangível da prece apóia-se numa


certa doutrina da natureza da liturgia que se encontra várias vezes
designada nos textos pietistas pela expressão ha-qerasim balūla’ōt
(cf. Ex. XXVI, 11) e que literalmente remete aos grampos de metal e
cordões com que se amarravam as tapeçarias do tabernáculo na
época do deserto – tabernáculo este que, já para os antigos rabinos,
simbolizava o essencial da criação (cf. b. Sabbat, 99a). O significado
da expressão torna-se inteligível pelo tipo de exegese à qual se
aplicavam os primeiros pietistas renanos. Por exemplo, o fragmento
de liturgia intitulado Tsūr Yisraël:

Tsūr Yisraël [Rochedo de Israel], descobres catorze palavras nessa bênção


correspondentes ao 14 Nissan, data na qual Israel foi libertado do Egito. Ali também
os franceses cometeram uma grande falta... Pois há no Tsūr Yisraël catorze palavras
e sessenta letras correspondentes às sessenta miríades libertadas do Egito e que
entoaram o cântico onde figura catorze vezes o tetragrama, que receberam a Torá
sob a forma do Decálogo em que o nome volta catorze vezes...
O que está subjacente nessa passagem é a existência de um
texto autêntico da prece em consonância com as outras expressões
do judaísmo: Bíblia, literatura rabínica etc. A leitura aprofundada do
ritual encontra essas doutrinas e fornece assim a prova de sua
própria autenticidade. O hasid utilizará especialmente
procedimentos como a gematria, o nōtarikon (interpretação das
letras como abreviação de frases inteiras) e o Temūrah
(deslocamento das letras segundo regras sistemáticas) para
comprovar essa coerência. Sob tal ótica, é compreensível que a
menor adição ou subtração de uma letra torne-se uma falta contra o
espírito. Atrás da estrutura de superfície da prece, desenvolve-se
uma estrutura profunda que conduz a todos os planos da existência
individual e coletiva, à história do mundo e especialmente à do povo
eleito, ao conteúdo do Midrash, às leis da natureza, à ordem das
estações ou à dos céus. A palavra e o número servem ao hasid de
fio condutor para reencontrar a correspondência e o sentido
profundo de todas as coisas, a presença divina subjacente à ordem
do mundo. A expressão ha-qarsim ū-balūla’ōt designa assim essas
articulações do cosmos que se deixam decifrar entre as linhas do
texto da prece. Os algarismos, as letras e as palavras evocam as
harmonias escondidas da estrutura do mundo, tal como foi
estabelecida por Deus assim como ensinou o Sefer Yetsirah. Como
declarou Jacó Ben Asher no próprio vocabulário do Livro da
Formação:

Os devotos da Alemanha são exegetas, Dōrshey reshūmōt, que pesaram e


calcularam o número das palavras, preces e bênçãos (para estabelecer) conforme
foram estabelecidas.

O problema da intenção na prece – A distinção fundamental


entre o Criador e a Glória impõe a concepção que os pietistas
alemães fizeram da Kawwanah, da orientação da prece. Tudo se
move manifestadamente sobre a concepção da Glória. Se, como é o
caso para alguns, a profecia é apenas uma manifestação psíquica
interna dos profetas, não haveria questão de dirigir a prece senão
ao Criador. Da mesma forma, se admitimos que a Glória é uma
realidade muito elevada, mas mesmo assim, como pensava Saadia,
uma realidade criada, dirigir a prece à Glória equivaleria a cometer
um ato de idolatria. Mas se admitimos que a Glória não é criada e
sim emanada a partir do divino, pode haver um debate quanto a
saber se a prece dos crentes deve ser endereçada ao Criador ou à
sua manifestação visível: a Glória tal como foi apreendida pelos
profetas.
Tais divergências se exprimem por exemplo nos escritos
esotéricos de Juda he-Hasid e de Eleazar de Worms.
Assim, no comentário redigido por Juda he-Hasid sobre a prece
‘Aleynū le-Shabbeah encontra-se uma polêmica contra Saadia
Gaon:

Se ocorresse, como quer Saadia Gaon, que a Glória fosse criada, poderíamos dizer
a respeito da Glória criada: Ele é nosso Deus.
Isso dá a entender que, para Juda, a intenção da prece deve se
dirigir à Glória. Ele também polemiza contra a opinião que pretende
que a Glória seja apenas uma representação interior nos profetas.
Ao contrário, ele acha que

Essa representação não é separada do Criador.

Essa natureza divina do Kabōd resulta, em Juda, de um esquema


emanatista inspirado pelo neoplatonismo.
Em seu Sōd ha-Yihūd, ele declara:

O Santo Bendito Seja cria uma luz mais brilhante do que tudo que brilha... que é a
Glória do Deus de Israel... E é a partir dela que ele acende as lâmpadas, isto é, os
esquadrões infinitos de anjos e espíritos...

Mais adiante, Juda declara que a alma humana também é criada


a partir dessa fonte de luz divina superior. As imagens da fonte e as
do acender das luzes são totalmente típicas da inspiração
neoplatônica do texto.
Ao contrário disso, em Eleazar de Worms encontra-se a seguinte
declaração:

Pois a Glória é criada como os anjos são criados.

Também não surpreende vê-lo afirmar:


Assim que pronuncias: “Bendito sejas, Senhor”, não pensa no Kabōd, mas apenas no
Criador.

Encontra-se um enunciado mais paradoxal em Samuel ben


Kalonymos:

As criaturas louvam a Shekinah porque ela é criada, mas no final dos tempos se
louvará o Santo Bendito Seja em pessoa!

No círculo do kerūb ha-meyuhad, a resposta do problema para


quem endereçar a prece é fornecida no fragmento seguinte:

O Deus antigo é um refúgio (Dt. XXXIII, 27) nos céus. É o local da santidade para as
criaturas no céu como nosso santuário que nos ordenou o Criador. O querubim que
está acima da cabeça dos Hayyot é o querubim do santuário...

Dito de outro modo, da mesma forma que em baixo o culto é


focalizado na direção dos querubins situados acima da arca da
aliança, no alto a prece dos anjos dirige-se para o querubim
particular. Como é impossível que um culto possa se praticar sem
nenhuma representação, o querubim particular adorado por aqueles
de cima vai se situar sobre a arca da aliança para os seres de baixo!
Vêem-se assim quantas nuances existem entre os pietistas
renanos no que diz respeito à doutrina da Kawwanah, inclusive no
interior de cada tendência particular.
Três temas fundamentais atravessam seus escritos:
– O primeiro tema é o da vontade do Criador, Ratsōn ha-Bōre. A
preocupação em descobrir a vontade do Criador leva o hasid a se
impor, além das obrigações da Halakhah, um círculo de obrigações
extras potencialmente infinito como a própria vontade do Criador.
Em conseqüência disso, sua concepção da eqüidade (diney
Shamayim) vai além da estrita justiça. Na Torá revelada no Sinai,
estavam incluídas em potencial, além das prescrições da Lei escrita
e do judaísmo rabínico, um certo número de alusões, permitindo aos
pietistas descobrirem a vontade do Criador (Sefer Hasidim, § 796).
– O segundo tema é o da inteligência do temor a Deus.31 Esse
tema decorre do princípio da compreensão da vontade do Criador.
Ter a inteligência do temor é mobilizar toda a sua capacidade para
conseguir colocar todos os aspectos de sua existência privada ou
pública, religiosa ou profana, numa total submissão a Deus, e isso
graças a uma exegese da Escritura que levou o hasid a observar
todo tipo de prescrição a título de barreira seyag, para se defender
de suas más inclinações. De onde também toda uma fenomenologia
dos graus do temor que, em seu extremo, confunde-se com o amor
do divino, cuja flama chega a devorar o homem como o holocausto
se acha consumido inteiro sobre o altar.
– Um terceiro traço característico desse pietismo é o princípio
segundo o qual “a recompensa é proporcional ao sofrimento”.32 Isso
significa que para o hasid a existência é uma série de testes através
dos quais ele deve provar que é de fato esse ser que realiza a
vontade do Criador no tremor e no medo. Triunfando nesses testes
suscitados pela dualidade inscrita no coração do homem, ele espera
obter a beatitude eterna no além. É sob tal luz que convém situar o
famoso rigorismo penitencial dos pietistas renanos. Sabe-se que
eles distinguiam quatro aspectos da penitência:

A penitência quanto ao imediato, Teshūbat haba‘a, que significa que, quando alguém
pecou pela primeira vez, pode, quando a ocasião de pecar se renova, proibir-se de
cometer a falta novamente.
A penitência segundo a Escritura, Teshūbat hakatub, em que o penitente é tão
rigoroso consigo mesmo a ponto de se infligir a punição prevista pelo texto bíblico.
A penitência enquanto limitação, Teshūbat ha-gader, que se define como um sistema
de interdições que o penitente estabelece para não ter oportunidade de pecar de
novo.
A penitência segundo a medida, Teshūbat ha-mishqal, consiste a impor a si mesmo
um sofrimento que venha compensar exatamente a soma de prazer trazida pelo
pecado.33

Todas essas práticas inspiradas por um ascetismo extremo


inscrevem-se no horizonte de três princípios já mencionados,
especialmente do último. Assim que cometeu a falta, o devoto se
inflige os mais vivos sofrimentos a fim de não perder seu direito à
salvação eterna.
Além da ética individual, a atitude do hasid em relação à
comunidade judaica e ao mundo cristão se acha governada pelos
mesmos princípios.
Se tem poder para isso, o devoto busca até impor tal conduta ao
conjunto da comunidade. É assim que os pietistas interpretam Ex.
XXIV, 3: “Todas as palavras que o Senhor disse nós as poremos em
prática”; não só as poremos em prática (na’aseh) como as
forçaremos (ne’aseh), obrigaremos os judeus que se recusam a
obedecer! Eles desenvolveram também uma teoria segundo a qual
a riqueza pertence a Deus; disso decorre que os ricos só detêm o
uso de sua fortuna em vista do bem comum. Da mesma forma, os
Hasidey Askenaz esboçam uma teologia da história na qual os
justos estão, em cada geração, lutando contra os ímpios.
Assim, parece que o hassidismo alemão constitui uma visão
global do mundo, simultaneamente no plano da teologia e no da
existência. O que não significa que forme um grupo monolítico,
como se pôde perceber a propósito de sua teologia da Glória. Isso é
verdade também sobre sua relação com o conjunto da comunidade.
Dessa forma, pôde-se mostrar que, se r. Juda he-Hasid, figura
fortemente carismática, tinha o desejo de criar uma comunidade
especificamente pietista separada das instituições existentes, seu
discípulo r. Eleazar de Worms ignorou tal ambição. R. Eleazar
tomou parte ativa em sínodos rabínicos e definiu o ideal de devoção
hassídica como uma espiritualidade privada suscetível a moldar-se
ao quadro das instituições do judaísmo normativo da época. No
entanto, além de seus limites geográficos, o pietismo renano marcou
bem grupos místicos por sua teoria das kawwanot e dos nomes
divinos. As pesquisas recentes valorizam o papel que ele
desempenhou tanto no que tange à emergência da cabala provençal
quanto no que diz respeito aos cabalistas de Castela, especialmente
Jacob ha-Kohen. Quanto às suas concepções éticas, pode-se
afirmar sem medo que, na seqüência, poucos moralistas judeus não
foram marcados por suas orientações.

26. O conjunto dessa literatura foi editado por Y. Eben-Shemuel em seus Midrashey ha-
Ge’ūūllah, Jerusalém, 1954. (N.A.)
27. A edição póstuma da Habdala de r. Aqiba, por G. Scholem, foi publicada em Tarbiz, vol.
L, 1981, p.243-281. (N.A.)
28. Ver G. Scholem, Les origines de la Kabbale, p.118-136, e Reshit ha-Quabbalah,
Jerusalém, 1944, p.195-238. (N.A.)
29. Sobre a história do sufismo judeu, ver a introdução de P. Fenton para a edição e
tradução do Al-Maqala al-Hawdiyya, de Obadias Maimônides, Londres, 1981. (N.A.)
30. Ver H. Soloveitchik, “Three themes in the Sefer Hasidim”, AJS Review, I (1976), p.311-
357. (N.A.)
31. Segundo b. Berakot, 17a : “Que o homem seja sempre advertido no temor”. (N.A.)
32. Segundo ‘Abot V, 26. (N.A.)
33. Sefer Hasidim, § 37. (N.A.)
CAPÍTULO III
O MOVIMENTO CABALISTA DE 1150 A 1492
É possível abarcar a história da cabala a partir de meados do
século XII até o final do século XV discernindo-se quatro momentos
sucessivos:

– a cabala da Provença e do Languedoc;


– os cabalistas da Catalunha e de Castela;
– o Zohar e seu ambiente;
– a cabala entre os séculos XIV e XV.
I. A cabala da Provença e do Languedoc
No mesmo momento em que o pietismo florescia na Alemanha,
surgem no sul da França, na Provença e no Languedoc os primeiros
testemunhos atestando o desenvolvimento de especulações
teosóficas.

1. O Sefer ha-Bahir – O Sefer ha-Bahir (Livro da Claridade,


conforme Jó XXXVII, 21) é o primeiro documento que temos da
cabala teosófica. Na versão que nos chegou, foi compilado na
Provença entre 1150 e 1200 a partir de fontes orientais como o
Sefer Raza Rabba mencionado nos gaonim e do qual fragmentos
importantes foram conservados entre certos pietistas alemães.34

Esse texto se apresenta externamente como um midrash sob forma de sentenças ou


de enunciados sobre versículos da Escritura atribuídos aos antigos rabinos da
Mishnah e do Talmude. Na literatura medieval, a obra é freqüentemente designada
como Midrash de r. Nehunia ben ha-Qana, que já figurava como uma autoridade na
literatura da Merkabah.
O que há de novo no Bahir é o ressurgimento, em plena literatura
judaica medieval, de termos e imagens tomadas de empréstimo do
gnosticismo, mas de um gnosticismo tornado compatível com o
monoteísmo judaico. O Deus de que nos fala o Bahir não é mais o
Rei santo da Merkabah nem o Deus ao mesmo tempo longínquo e
próximo dos pietistas renanos. Trata-se de um Deus representado
por forças cósmicas (kōhōt) articuladas umas às outras na árvore
cósmica dos mundos de onde procedem as almas, e à qual todos os
seres retornam.35 As sefirōt do Sefer Yetsirah metamorfoseiam-se
em éons, luzes, potestades, hipóstases ou formas santas que
preenchem cada qual uma função particular na criação. O conjunto
das potências divinas constitui a imagem da árvore sagrada, assim
como a totalidade das formas santas se une na imagem do homem
superior.
Assim, no seguinte trecho:

Que árvore é essa de que falaste? Ele lhe diz:


As potências de Deus estão dispostas umas sobre as outras paralelamente à árvore.
Como a árvore produz frutos graças à água, assim Deus acrescenta ao meio da água
as forças da árvore.
E o que é a água de Deus? É a Hōkhma, a Sabedoria, e esses aqui (os frutos) são
as almas dos justos que se evolam da fonte para o grande canal, e elas se elevam e
se ligam à árvore. E por que esta floresce? Pela interpretação dos israelitas. Quando
eles são bons e justos, a Sekhinah reside entre eles e habita suas obras no seio de
Deus, tornando-os fecundos e numerosos.36

A árvore representa a totalidade das sete forças agindo na


criação, cuja raiz é a terceira entidade, Binah. Ela é também a
árvore das almas, e o Bahir igualmente afirma que assim que os
israelitas são merecedores, Deus faz a árvore produzir novas almas
de justos: percebe-se como essa nova mística liga-se
imediatamente à história e aos destinos do povo eleito ao mesmo
tempo que à escatologia.
O termo sefirōt, que se tornará em seguida o mais comum para
designar as dez manifestações fundamentais do divino, só é
utilizado no Bahir numa única circunstância: a propósito da benção
sacerdotal, na qual os dez dedos dos sacerdotes são interpretados
como uma alusão às dez sefirōt por meio das quais foram selados
os céus e a terra, e que se afirma corresponder igualmente às dez
palavras do Decálogo. O termo não é relacionado com sofer,
“contar”, e sim com sappir, a “safira”. As sefirōt37 aparecem como
refletindo o brilho da divindade, como vem ilustrar o versículo (Ps.
XIX, 2): “Os céus contam, mesaprim, a Glória de Deus”.
Entendendo-se por isso que a clareza dos céus vem manifestar a
Glória do divino (§ 124-125).
Os éons são designados no Bahir com mais freqüência por
ma’amarōt, “palavras”, no sentido de logoi ou middot, entendidas
não como atributos, mas como modalidades particulares do divino.
Em linguagem metafórica, fala de seis belos vasos, kelim na’ im (§
56) ou de seis dias primordiais (§ 135), vozes ouvidas no Sinai, de
dez reis (§ 27) ou até das “coroas usadas pelo rei”. É preciso
acrescentar que o Bahir não faz distinção nítida entre essas sefirōt e
o Deus que as manifesta.
A distinção entre as três sefirōt superiores e as sete inferiores já
está presente, apesar de uma certa fluidez quanto a cada uma das
sefirōt particulares. A primeira entidade é designada pelo nome de
Keter ‘Elyon, “coroa suprema”
(§ 141), e igualmente como mahshabah, o pensamento de Deus,
cujo princípio é ser ilimitado (§ 79), o que condiz, de algum modo,
com o pensamento do homem, “que não tem fim nem conclusão”(§
70). A segunda é designada como Hokmah e se acha emparelhada
com a última das entidades, Hokmat ‘Elohim, “a sabedoria de Deus”.
Evidentemente, encontra-se aqui de novo um eco da doutrina da
dupla Sophia ensinada na escola gnóstica de Valentin. Os gnósticos
falavam de uma Sophia superior, situada na parte mais elevada do
pleroma, e de uma outra situada em seu limite inferior em relação à
“virgem da luz”; é precisamente essa mesma topografia que é
encontrada no Bahir (§ 62-63). A segunda sefirah é igualmente o
“começo”, assim como a “Torá primordial”.
O terceiro logos, Binah, é identificado com “a Mãe dos Mundos”,
da qual saíram as sete sefirōt inferiores. Ela é também identificada
com o temor a Deus, assim como com a luz primordial e com o
mundo a vir (§ 160). Todas essas identificações e outras resultam de
uma exegese mística de versículos da Escritura ou de passagens
agádicas.
Os sete logoi inferiores são identificados com as sete vozes pelas
quais se operou a revelação (§ 45) ou com os sete dias da semana
primordial (§ 81). É também a propósito dessas sete formas que se
acha introduzida a correspondência entre os membros do homem
de baixo e os do homem primordial (§ 82, 168, 172).
Devido à diversidade de fontes, o quadro dos outros logoi é mais
confuso. Importa sobretudo saber que a sétima sefirah preenche no
Bahir todas as funções que exercerá em seguida na história da
cabala a nona entidade. Quatro motivos aí se conjugam: o do Justo,
o do fundamento dos mundos e das almas, o do Sabbat e o do falo.
Esta entidade desempenha frente à décima o papel do princípio
masculino com relação ao princípio feminino. A união, a syzygie
desses dois princípios constitui para o Bahir o que precede a
existência de todos os mundos (§ 173), assim como a condição da
redenção (§ 39), o que põe em evidência como um tema
eminentemente gnóstico foi virado pela cabala contra o dualismo
gnóstico.
A última sefirah é o símbolo do feminino por excelência. Ela
resulta da identificação de noções existentes anteriormente de um
modo diverso na antiga aggadah: a esposa, a filha do rei, a
Shekinah e a Ecclesia de Israel, Knesset Israel. A Shekinah aqui é
hipostasiada, concebida como um éon feminino, a rainha ou a filha
da luz. O Bahir fala de uma princesa vinda de longe e dominada
pelo lado da luz (§ 132), o que corresponde à filha da luz dos velhos
hinos gnósticos. No mesmo registro, a décima entidade é
igualmente designada como a pedra preciosa onde se acham
reunidas todas as jóias de todos os reis de todos os países (§ 6).
Ela é também a fonte do tempo, “gema que produz os anos” (§ 72).
Outros dois temas importantes devem ser mencionados. Em
primeiro lugar, a doutrina da migração das almas, conhecida entre
os judeus desde o século X, mas criticada pelos filósofos judeus, a
começar por Saadia. Tal doutrina reaparece aqui como respondendo
aos problemas colocados pela teodicéia (§ 195). Ao motivo da
teodicéia, junta-se também a idéia de que o messias só nascerá
depois que todas as almas destinadas a nascer a partir do corpo do
homem tiverem surgido (§ 182).
Encontram-se igualmente no Bahir alguns traços de uma mística
da linguagem bastante próxima da dos pietistas alemães.
A antiga expressão rabínica kawwanat ha-leb, que significava
entre os antigos rabinos uma concentração do espírito, é utilizada
atualmente como significando uma meditação mística sobre as
sefirōt. Assim, no § 138, diz-se que Moisés obteve a vitória sobre
Amaleq (Ex. XVII, 11) por esse tipo de meditação:

E logo que Moisés elevou as mãos e dirigiu a concentração de seu coração para
essa middah denominada Israel e que guarda a Torá verdadeira, ele indicou com os
dez dedos das mãos que tal middah fortalece os dez (logoi) de modo que, se ela não
ajudasse Israel, os dez logoi não se manteriam dia após dia – então Israel obteve a
vitória.

A prece do profeta Habacuc (III, I seg.) é descrita também como


uma meditação que vai de um local místico a outro para captar a
unidade do divino na diversidade de suas ações (§ 68-72).
O sacrifício é reinterpretado como a unificação de todas as forças
do nome divino, assim como nos § 108 e 109:

Quando os israelitas oferecem um sacrifício ante seu Pai que está nos céus, eles se
juntam num grupo, e é isso a unificação de nosso Deus.38 Por que é denominado
sacrifício gorban? Apenas porque chega mais perto de she-meqareb, as formas
santas!

Com o Bahir, assiste-se então à erupção, no interior do


pensamento judaico medieval, de uma onda de idéias utilizando a
linguagem, a terminologia e a simbologia de uma gnose que veio a
se integrar ao judaísmo39 sem que pudéssemos determinar
exatamente até hoje – à exceção das passagens do Raza Rabba
descobertas nos Hasidey Askenaz – por que via exatamente e a
partir de que tradição isso se efetuou. Talvez o futuro permita aos
pesquisadores responderem a essa interrogação.

2. Os primeiros cabalistas no Languedoc – O primeiro


personagem que podemos vincular à história da cabala teosófica é o
de r. Abraham ben Isaac, presidente do tribunal de Narbonne (morto
em 1180). Abraham ben Isaac é o autor de uma grande obra
halákica, o Sefer ha-’Eshkōl. Foi também discípulo de Juda ben
Barzilai de Barcelona, autor de um comentário do Sefer Yetsirah
ainda redigido no espírito das especulações de Saadia em que
ainda não há questão de teosofia. Ora, o neto de Abraham, Isaac
l’Aveugle, nos atesta que este, assim como seu próprio pai,
Abraham ben David, foram objeto de uma revelação do profeta
Elias, Gillūy Eliahū, isto é, teriam se beneficiado da revelação dos
mistérios celestes dos quais a tradição nada sabia até então.
A segunda personalidade desse grupo é o genro do precedente:
Abraham ben David (o Rabed), comentador do Talmude mas
conhecido sobretudo por suas glosas, hassagōt, sobre o Misneh
Torah de Maimônides, em que não hesita em tomar partido do
último.
Outra figura importante desse círculo é representada por Jacob
Ben Saul de Lunel, denominado Jacob ha-nazir, o Nazirita. Este
termo aparece ao mesmo tempo em que surge ha-parush, “o
asceta”, para nomear os membros da confraria cujos adeptos se
devotavam ao estudo da Torá, afastando-se das coisas deste
mundo, e que se esforçavam para atingir a pureza. São grupos
ascéticos enraizados na fé popular e cujo modo de vida lembra um
pouco o dos perfecti [perfeitos] cátaros.40 Um meio reunindo homens
de tendências místicas era evidentemente favorável à eclosão de
uma vida contemplativa.
Se os textos relativos à mística da prece já aparecem no Bahir,
eles não contêm ainda intenções relativas às meditações que
deviam acompanhar a recitação da liturgia no instante da prece. É
precisamente essa doutrina da Kawwanah que constitui uma
inovação maior nos textos dos mestres provençais. Quem faz sua
prece deve concentrar o espírito em uma ou em várias middōt
divinas. Como escreve G. Scholem:

A prece reitera simbolicamente processos que se desenvolvem no pleroma da


divindade.41

O eco de um debate entre o Rabed e Jacob ha-nazir a respeito da


mediação mística chegou até nós. O Rabed declara que na prece
das dezoitos bênçãos, a Kawwanah, a intenção mística deve
desdobrar-se:

As três primeiras e as três últimas dirigem-se à Causa das Causas e as do meio ao


Yotser Bereshit.

Por sua vez, Jacob ha-nazir ensinava:

As três primeiras e as três últimas dirigem-se ao Binah, as do meio do dia ao Tif’eret


e à noite todas ao Binah.
Abraham ben David faz uma diferença então entre a causa
causarum totalmente oculta e o Yōtser Bereshit, que é aqui a
manifestação do Deus escondido. Isso significa que, no nível das
bênçãos medianas que correspondem às demandas do homem, é
preciso dirigir-se à potência divina ou ao grupo de sefirōt
efetivamente atuante na ordem da criação. Entretanto, no nível das
três primeiras e três últimas bênçãos, as de louvor e as de
reconhecimento, a intenção deve ser orientada para a deidade
escondida.
Já para Jacob ha-nazir e para outros cabalistas, não parece
possível dirigir as preces diretamente ao Deus escondido: se nossa
Kawwanah pudesse dirigir-se a ele, este não seria totalmente o
Deus transcendente. As bênçãos de louvor e reconhecimento
devem então, segundo ele, ser dirigidas ao poder superior entre as
sefirōt, que não responde a nenhuma denominação particular mas
que é a fonte da existência e do qual derivam todas as forças
particulares: a sefirah Binah. Além disso, na noite em que a prece
for totalmente de louvor e reconhecimento, o conjunto das dezoito
bênçãos se acha orientado para a Binah. Durante o dia, em que o
homem exprime nas bênçãos do meio todas as suas demandas
quanto à sua subsistência cotidiana, é conveniente que se oriente
para a entidade Tiferet, que rege as seis dimensões do mundo e
constitui o plano mediano da árvore sefirótica, englobando tudo o
que é necessário à vida do homem.
Também remete-se ao nome do Rabed um propósito que diz
respeito à primeira entidade, chamada no Bahir de Keter Elyon. Ele
a denomina ha-’Or ha-mit ‘allem, a luz que se oculta “pelo fato de
ela se esconder de tudo”. A primeira entidade é assim subtraída a
toda determinação positiva e se acha designada por uma
denominação que comporta um matiz neoplatônico. Já há ali o
indício de um encontro entre as tradições gnóstica e neoplatônica,
que jorrará em plena luz na geração seguinte.
O contexto histórico confirma amplamente essa indicação, pois é
no próprio momento em que o Bahir estava prestes a ser publicado
na Provença que em Lunel, local de residência de Jacob ha-nazir,
Juda ibn Tibbon de Granada traduziu do árabe para o hebraico,
entre 1160 e 1170, O livro dos deveres dos corações, de Bahya
d’Ibn Paquda, assim como o Kuzari42, de Juda Halevy. Assim, a
tradição do neoplatonismo árabo-judaico cultivada na Espanha foi
transmitida, precisamente naquele momento, aos centros de cultura
judaica do Languedoc.
Uma mística contemplativa substitui-se então à elevação extática
da Merkabah. Em lugar do deslumbramento extático que conduz à
visão do trono divino e à transmissão dos mistérios celestes,
estamos diante de uma etapa contemplativa em que a alma, através
de uma meditação contínua que a eleva de entidade em entidade,
esforça-se por aderir ao divino.43

3. Isaac l’Aveugle (1165-1235) – O filho do Rabed, Isaac


l’Aveugle, alcunhado por antífrase em hebraico sagi nahōr, isto é,
“rico em luz”, deve ser considerado a figura central da primeira
cabala do Languedoc. É um puro cabalista que não deixou textos
homiléticos ou trabalhos halákicos. Ele é designado também como
parūsh ou hasid. O texto mais importante de Isaac l’Aveugle em
nossa posse é seu comentário sobre o Sefer Yetsirah, escrito muito
denso e breve (não mais de cinco mil palavras), do qual três quartos
tratam dos três primeiros capítulos do Livro da formação.44
A mística de Isaac l‘Aveugle apresenta-se como contemplativa, na
qual os temas gnósticos legados pelo Bahir se acham retomados no
contexto de uma terminologia e de um pensamento neoplatônicos.
A contemplação reflexiva de Isaac l’Aveugle descobrirá três
domínios no seio da divindade:

– ’En Sōf;
– o pensamento;
– a palavra.

De fato, é com Isaac l’Aveugle que aparece pela primeira vez na


história da mística judaica esse novo termo,’En Sōf, que designa a
zona do divino situada além de toda contemplação pensante, isto é,
além do próprio Pensamento divino, e que se tornará depois de
Isaac, para todos os cabalistas, o termo por excelência para
designar a deidade escondida e desconhecida. Inicialmente o
vocábulo foi utilizado em seu sentido adverbial, e sua transformação
em substantivo é o símbolo da impossibilidade de apreender a
essência absoluta de Deus em si.
Se, por definição, o ’En Sōf – o Sem-fim – é da ordem do inefável,
não causa surpresa que a mística de Isaac seja sobretudo uma
mística da Mahshabah tehōrah, do pensamento puro, identificada
com a primeira entidade. Ao lado desse pensamento, trata-se
também “daquilo que é inapreensível pelo pensamento”, ma she ’en
ha-mahshabah maseget, termo neoplatônico que poderá designar
seja o próprio ’En Sōf, seja a primeira entidade.
A primeira sefirah é também designada nele como o nada
segundo sua interpretação de Jó XXVIII, 12, significando: “A
sabedoria provém do nada”. Este nada é o local onde se situa o
próprio pensamento divino, que é um nada de pensamento para o
pensamento humano. Entre essa Hōkmah vinda do nada e a
Mahshabah, Isaac coloca ainda uma espécie de vetor dinâmico que
denomina Haskel, substantivo de ação que designa a atividade do
Sekhel, do noûs: é um grau de ser do intelligere. Entretanto, é a
Mahshabah que constitui o objeto por excelência da especulação
mística, porque nela se manifesta ’En Sōf, que a transcende.
O terceiro grau da manifestação é o da palavra. O princípio do
dizer, dibbūr, divide-se em uma pluralidade de linguagem
correspondente às sete sefirōt inferiores designadas como dibburim
e debarim, em que Isaac joga com o fato de que dabar é ao mesmo
tempo a palavra e a coisa: as sefirōt são as palavras que estão na
origem de todas as coisas, substituindo aqui os ma‘amarōt do Bahir.
A Hōkmah é ao mesmo tempo o começo do ser e o começo do
dibbūr; é a partir dela que Isaac desdobra toda uma mística da
linguagem que identifica as letras do alfabeto com as sefirōt.
Um conceito-chave utilizado por Isaac l‘Aveugle é o das
hawwayōt, essências de todas as coisas que têm sua existência
original em Deus e especialmente na mahshabah, ensino que a
geração seguinte formulou no célebre aforismo:

As essências existiam, mas a emanação passou a ser.

A propósito das “veredas maravilhosas da Hōkmah”, Isaac nos


informa que são

essências íntimas e sutis que escapam à meditação de toda criatura, exceto daquele
que aspira seu suco, o que está na via da meditação pelo caminho da sucção,
yeniqah, e não pelo caminho do conhecimento. (Comentário do Sefer Yetsirah, I, 1)

Isaac faz a distinção entre um objeto atingido por meio do


conhecimento discursivo e o da captação das essências por meio da
contemplação denominada yeniqah. Descreve os graus da
meditação nesses termos:

A partir das essências formadas, chega-se a uma meditação sobre as essências não
formadas, e da interioridade da percepção do pensamento que as concerne chega-se
à sua causa em ’En Sof. (ibid., 1, 3)

Ele declara ainda:

A partir das essências espirituais íntimas que não são apreensíveis, Ele cinzelou e
fez emanar delas essências materiais apreensíveis.

O conjunto dos seres forma, a partir da Hōkmah, um


encadeamento contínuo, no qual todas as realidades se acham
ligadas umas às outras. O que estava unido no alto torna-se múltiplo
embaixo. E como não há separação real entre as coisas, a mística
poderá sempre remontar do múltiplo para o Um, do qual diz Isaac:

Ele está unido a tudo, e tudo está unido a Ele.

Sua doutrina da kawwanah e da debeqūt apóia-se nessa doutrina


da contemplação:

Pois em todas as coisas e em todas as middōt que parecem separadas, não há


separação, pois tudo é um, como o começo que uniu todas as coisas na expressão
do único... A partir do apreensível, chega-se a captar o inapreensível, e é para este
fim que as middōt existem... E todas as modalidades visíveis foram repostas para
serem meditadas. De fato, cada middah procede da que está acima de si, e elas são
transmitidas aos israelitas para que eles meditem, do fundo da middah, quem se
torna visível no coração, a fim de meditar até ’En Sōf. Porque não existe caminho
para orar, se o homem não for introduzido a ele com a ajuda de palavras limitadas; e
pelo pensamento elevando-se ao ’En Sōf. (Ibid., I, 8)

Assim, a oração meditativa leva o devoto sempre para mais alto,


até fazê-lo juntar-se ao ’En Sōf. No final dessa ascensão, o místico
alcança a adesão, a comunhão com Deus, designada pelo termo
debeqūt. Como nos ensina esta passagem relatada pelos discípulos
de Isaac:

Disse nosso mestre, o hasid: “O essencial do serviço divino entre os místicos e


aqueles que meditam sobre seu Nome reside no seguinte (Dt. XII, 5): ‘A Ele deveis
aderir’. É um grande princípio para o estudo e a prece o que deseja que se equilibre
o pensamento, mahshabah, e a fé, ’Emunah, como se ele (o pensamento) aderisse
àquele no alto com o objetivo de ligar o nome (divino) em suas letras e abraçar nele
as dez sefirōt, da mesma forma que uma chama está em ligação com o carvão. Com
a boca ele deve exprimi-lo segundo sua paráfrase, mas em seu coração deve ligá-lo
segundo sua verdadeira estrutura.” (Azriel, Perush ’Aggadot (ed. Tishby), p.16)

No coração do ensinamento esotérico de Isaac l’Aveugle surge


uma crise no interior do mundo divino que só encontrará sua
solução definitiva nos tempos escatológicos. Essa tensão se
exprime através de um certo número de configurações simbólicas: a
última letra do tetragrama não é articulada, a Shekhinah ou
Jerusalém celeste não está em seu lugar, o Templo do alto é privado
de culto, o braço da divindade está abaixado. Nessas configurações
simbólicas, a relação entre os principais poderes na divindade está
baseada numa tensão interna, originando-se da dualidade entre um
elemento receptivo e um elemento ativo: corpo e alma, receptáculo
e espírito, consoante e vogal, feminino e masculino. A exacerbação
dessa tensão no divino provoca uma fissura suscitada pela dinâmica
de um movimento recíproco: um elemento se afastando para o alto,
o outro se abaixando. A tensão imanente no divino só rebenta sob a
ameaça do Sar Amaleq, o arconte de Amaleq que se revoltou contra
a divindade. Aqui surge a dualidade entre o mundo da divindade e o
do mal. A reparação, o tiqqûn dessa imperfeição na divindade e a
restauração da harmonia entre as potências internas da divindade
só ocorrerão no fim dos dias, quando o Sar Amaleq for destruído e o
poder do mal for dominado e depois aniquilado. Entretanto, essa
restauração da unidade divina não ocorrerá somente no futuro: ela
ocorre cada vez que o cabalista reza de acordo com a doutrina das
kawwanôt, cujo âmago é o pronunciamento do tetragrama. Sua
atividade teúrgica é em essência restauradora: insufla a vogal que
falta na consoante, como a alma no corpo; ela reconstrói o Templo
do alto, instalando ali a bênção; recoloca a Jerusalém celeste e a
Shekhinah no lugar que lhes convêm no interior do divino e ergue o
braço da divindade. Esse tiqqûn do mundo divino pelos cabalistas é
a condição prévia da reparação do mundo de baixo e da ocorrência
do fim dos tempos.45
II. Os cabalistas da Catalunha e de Castela
Nascida na Provença e no Languedoc, a cabala se transportará
muito rapidamente para a Espanha. Isso se explica com facilidade
quando lembramos que a região situada nas duas encostas dos
Pirineus até o outro lado de Perpignan era politicamente uma parte
integrante de Aragão. Os mesmos dialetos românicos eram falados
dos dois lados dos Pirineus. A Catalunha e o Languedoc tinham
estreitas relações sociopolíticas, e as comunidades judias de
Aragão relacionavam-se seguidamente com as da Provença e do
Languedoc. Os judeus catalães freqüentavam as prestigiosas
escolas de Narbonne e Lunel. Assim, não é de espantar que a partir
de 1200 os sábios catalães, formados com freqüência no sul da
França, entrassem em contato com a tradição esotérica cultivada
com tanto ardor nessa região, e que por sua vez tenham se
confirmado como adeptos da ciência do arcano.

1. A cabala em Gerona (1210-1260) – Se há um lugar que


simboliza a propagação da cabala na Península Ibérica no início do
século XIII é a cidade de Gerona. Situada entre Barcelona e os
Pirineus, Gerona era naquela época a segunda entre as
comunidades judias da região. Isso explica o fato de ter se tornado
um verdadeiro centro de estudos místicos, ainda que outros
conventículos existissem em Toledo e Burgos.
Uma confirmação importante das relações existentes entre os
cabalistas do Languedoc e o centro de Gerona nos é fornecida pela
personalidade de Asher ben David, sobrinho de Isaac l’Aveugle, que
passou uma longa temporada perto do tio (seu pai era também
conhecido como esotérico) e gozava de sua confiança. Sabe-se
dele que foi a Gerona e parece ter residido por um tempo em
Béziers. Os textos de Asher ben David, especialmente o Perūsh
Shem ha-Meforash, comentário do tetragrama, assim como seu
comentário sobre as treze middōt, situam-se, em termos de
conteúdo, a meio caminho entre as idéias de Isaac e as que serão
formuladas em Gerona.
Os cabalistas de Gerona formavam uma santa confraria, habūrah
qaddishah, encabeçada por Moisés ben Nahman (Nahmanide), a
maior autoridade da época, que viveu a maior parte de sua vida em
Barcelona. Entre os membros mais prestigiosos da confraria estão
Ezra ben Salomon, Azriel de Gerona e Jacob ben Sheshet.
Suas obras comportam uma grande parte de comentários:
comentário de Nahmanide sobre a Torá, sobre o Livro de Jó e
também sobre o Sefer Yetsirah. Havia também o comentário de
Ezra sobre o Cântico dos Cânticos. Os mesmos Ezra e Azriel
redigiram, um depois do outro, um comentário esotérico sobre as
Aggadōt do Talmude. Os geroneses escreveram também textos
puramente cabalísticos. Assim, Azriel escreveu um comentário
sobre a liturgia cotidiana, assim como um pequeno catecismo sobre
as dez sefirōt. Por sua vez, Jacob ben Sheshet lança seus
ensinamentos no Sefer ha-’Emūna we Bittahōn (Livro da fé e da
confiança).
Ao examinarmos essas obras, impõem-se várias constatações:
– Apesar de um acordo global dos esotéricos em Gerona no que
diz respeito às doutrinas fundamentais, há muitos matizes entre as
diferentes personalidades: algumas se mostram mais conservadoras
(Nahmanide e Ezra), enquanto outras abrem mais espaço à
criatividade e às inovações (Azriel e Jacob ben Sheshet).
– Se são todos, com a exceção notável de Nahmanide, discípulo
de r. Yehuda ben Yaquar, alunos de Isaac l’Aveugle, se todos eles
conhecem o Bahir e se o ensino do neoplatonismo não lhes é
estranho, nota-se entretanto que nuances sensíveis marcam seus
escritos. Nahmanide, numa ponta do espectro, está sem dúvida
mais perto da cabala do Bahir, enquanto Azriel aparece no outro
extremo como o mais marcado pelo neoplatonismo, talvez
influenciado por João Scoto Erígena e indubitavelmente pelo círculo
’Iyyun.
– Os geroneses foram também obrigados a travar uma dupla
batalha. Ante os ataques de Meir ben Simon de Narbonne, eles
precisam se justificar contra a acusação de terem introduzido
doutrinas subversivas no interior do judaísmo. Diante do partido
maimonideano, eles se apresentam com Jacob ben Sheshet em seu
Meshib Debarim Nekhonim (O livro que dá a justa resposta) como
os campeões da ortodoxia sadia, contra Samuel Ibn Tibbon.
A grandeza histórica de Gerona é a de ter efetuado
definitivamente a junção entre a cabala gnóstica e contemplativa do
Languedoc e o pensamento judaico resultante da tradição greco-
árabe. É na Catalunha que se realiza a síntese entre o Deus de
Plotino e o da Bíblia, entre a doutrina da criação ex nihilo e a da
emanação. É lá que se faz com que os diferentes graus da
hierarquia do ser correspondam às sefirōt. Esse esforço de
harmonização tem por efeito conferir um excedente de sentido a
toda rede de conceitos e valores do judaísmo tradicional. Deus, a
Torá e Israel – e o que os une uns aos outros no decorrer de uma
história que vai da criação à redenção – tornam-se a expressão de
processos que se originam nas sefirōt. As explicações dos motivos
dos preceitos ensinam que o homem pode exercer uma ação,
positiva ou negativa, no interior do mundo divino.

2. A literatura do círculo “Iyynū” – Ao lado dos cabalistas de


Gerona, outro grupo de místicos – este anônimo – parece ter atuado
na Espanha entre 1230 e 1260, talvez em Toledo, influenciado pelos
escritos de Azriel. Dado o anonimato do qual o círculo se revestiu,
foi conferida a seus textos, caracterizados por certas afinidades
comuns, a denominação de escritos do círculo ‘Iiyyūn, devido ao
nome de um dos textos principais do grupo, intitulado Sefer
ha-‘Iyyūn (Livro da contemplação). De início, salta aos olhos o
caráter pseudo-epigráfico desses escritos, que se atribui aos antigos
gaonim: o Sefer ha-‘Iyyun é atribuído a Gaon Hammay, enquanto o
Mayan ha-Hōkma, a fonte da sabedoria, passa por ter sido
comunicado por um anjo a Moisés; outro texto se intitula o Midrash
de Simon, o Justo. A atribuição dessas obras a autores da
Antigüidade é acompanhada também de uma reescritura de antigos
textos da Merkabah, aí incluídos o texto do Shi‘ūr Qōmah ou fontes
mágicas orientais sobre os nomes divinos. Dito de outra forma,
estamos aqui diante de uma criatividade que se alimenta de fontes
antigas e que se coloca igualmente como herdeira legítima de tais
fontes. Conhecem-se mais de trinta textos desse gênero, dos quais
só restam fragmentos, na maior parte.
Assiste-se assim à expansão de uma espiritualidade na qual se
mesclam estreitamente uma mística da linguagem inspirada no
Sefer Yetsirah e uma mística das luzes de inspiração neoplatônica
(proveniente da escola espanhola de Ibn Masarra e talvez de João
Escoto Erígena), sendo o todo acompanhado de temas e
reminiscências gnósticas. Há diferenças consideráveis entre as
doutrinas e as cosmologias de cada texto, mesmo que em todos
seja encontrada uma língua geralmente abstrata e uma recorrência
dos temas mais importantes.
O título do Sefer ha-‘Iyyūn ilustra bem esse clima espiritual:

Livro da Especulação do Grande Mestre Rab Hammay, chefe dos que falam das
sefirōt interiores, tendo desvendado nele o essencial de toda realidade da glória
escondida, cuja existência nenhuma criatura pode compreender verdadeiramente, e
a qüididade tal como ela (Kabōd) existe na unidade indiferenciada, ba-’ahadūt ha-
shawah, na perfeição da qual se unem o superior e o inferior; ela (a Glória) é o
fundamento de tudo que está escondido e manifesto, dali sai tudo o que emanou da
maravilha da unidade.

Uma análise desse título permite discernir entre os diferentes


componentes que o constituem. Com o Gaon Hammay, chefe
daqueles que falam, fica esclarecida a preocupação de vincular-se
de novo a uma fonte antiga da mística e da esotérica. A expressão
sefirōt interiores é mais complexa: a menção sefirōt remete não às
entidades do Bahir e sim às sefirōt do Sefer Yetsirah, enquanto que
o adjetivo penimi, totalmente característico dos escritos desse meio,
tem a nuance de “místico” ou “escondido”. O tema da Glória
escondida e sua passagem à manifestação, muito freqüente nos
escritos do grupo, remete às especulações que levam a Saadia.
Com a unidade sem distinção nos reencontramos no neoplatonismo.
Para explicar o aparecimento das coisas, o autor do Sefer ha-’Iyyūn
utiliza a metáfora da luz:

O Nome bendito que é honrado na potência, o Um que se une a todos aos seus
poderes como a chama está unida a todas as suas cores. Da mesma forma que suas
forças emanam de sua unidade como a luz do olho sai do negro do olho, elas são
todas emanadas uma da outra como o perfume do perfume e a luz da luz, pois uma
emana da outra e assim sucessivamente; a força do emanante está no emanado
sem que o emanante seja diminuído dela.
Um tema importante dessa mística é o das treze middōt, cujo
motivo é tomado de empréstimo de Ex. XXXIV, 6, e que substitui
amplamente nos textos do grupo a temática das dez sefirōt
entendidas como entidades no sentido do Bahir e de Isaac
L’Aveugle. As middōt não são entidades ou éons e sim forças ou
modos de ação que se originam da Glória escondida.
Outro tema importante nos escritos do grupo, também saído de
Saadia, é o do éter primordial, ’awir qadmōn, que ocupa um lugar
importante sem que sua categoria seja a mesma em todos os textos
do círculo. Assim é que, no Mayan ha-Hōkmah, o éter primordial é a
fonte de um movimento que cresce no seio de treze pares de
oposições que são ao mesmo tempo as treze middōt do governo
divino. O nome de Deus é a unidade do movimento da linguagem
que sai dessa raiz primordial e que se ramifica. O éter primordial é o
substrato do mundo e é considerado um fogo espiritual de onde tudo
provém e para o qual tudo retorna.
O lugar ocupado nesse cenáculo pelas treze middōt reveste-se de
uma importância maior para o historiador da mística judaica; ele
demonstra de algum modo in vivo a existência de uma alternativa à
cabala das dez sefirōt entendidas em seu sentido teosófico. Mesmo
que a cabala das dez sefirōt tenha prevalecido em seguida, a
evolução da mística judaica pôde-se fazer de modo diferente,
centrando-se em torno das treze middōt. Os esotéricos estavam
muito conscientes desse problema, e os escritos do grupo
testemunham várias tentativas para harmonizar a doutrina das treze
middōt com a doutrina das dez sefirōt. A tentativa mais importante é
a veiculada pela famosa missiva pseudo-epigráfica de Gaon Hay,
provavelmente redigida na Provença em 1230. Ao contrário da
hipótese dos que querem colocar abaixo da décima entidade três
poderes suplementares, o pseudo-Hay coloca acima da primeira
sefirah, na Raiz das Raízes, três luzes escondidas denominadas
respectivamente ’Or penimi qadmōn, luz primordial íntima, ’Or
metsūhtsah, luz transparente, ’Or tsah, luz clara. No âmago da
divindade existe então uma tríade de luzes escondidas de onde
emanaram as três sefirōt superiores.
Outro traço neoplatônico é encontrado na identificação das sefirōt
com as sendas da sabedoria ou com os mundos espirituais.
É preciso também destacar o lugar ocupado pela vontade em
relação ao pensamento puro. Assim, no Livro da unidade, do
pseudo-Hammay, trata-se da vontade do primeiro agente que ocupa
igualmente um lugar primordial no Midrash de Simon, o Justo. No
entanto, no encontro com o neoplatonismo da Antigüidade, um
estatuto positivo é concedido à hyle. Ela tem seu lugar como
hipóstase entre as potências cósmicas e não é considerada a raiz
do mal – isso apesar das flutuações encontradas em cada texto no
que diz respeito ao lugar exato dessa hyle.
Em todo caso, não se pode duvidar que esses escritos sejam a
expressão de experiências místicas autênticas que seus autores
esforçam-se por traduzir de modo mais ou menos feliz em conceitos
filosóficos. O que é testemunhado por esse breve extrato do Mayan
ha-Hōkhmah, em que a meditação sobre as letras do tetragrama é
apresentada como a via mystica por excelência:

Ele encontrará tudo nesse nome. E logo que quiseres, tu o alcançarás e te


aprofundarás em suas quatro letras de onde saem as 231 portas. A partir delas, tu te
elevarás até a ação, da ação à experiência, da experiência à visão, da visão à
investigação, da investigação à gnose, da gnose à altura, da altura ao espírito
sossegado yishub da‘at... E dali tu te aprofundarás nos graus do nível superior... até
que alcances a vontade acabada e que teu espírito esteja tranqüilo a fim de habitar
no pensamento supremo que reside no éter acima do qual não há grau mais elevado.

Os textos provenientes do círculo ’Iyyun serão lidos e meditados


não só pelas gerações seguintes como também, em seguida, por
personalidades de épocas mais afastadas como o autor do Zohar e
mesmo pelo Maggid Dov Baer de Mezeritsh nos primeiros tempos
do hassidismo polonês.

3. Mística filosófica e mística gnóstica no século XIII – Em


certos autores, nos vemos em presença de uma mística em que a
inspiração filosófica prevalece amplamente em relação a
considerações teosóficas. É o caso dos textos de Isaac ibn Latif,
redigidos entre 1230 e 1270. Ele se inspira na Fons Vitae de Ibn
Gabirol e Abraham ibn Ezra. Em seu Sha‘ar ha-Shamayim, Porta
dos Céus (1238), no qual busca rivalizar com o Guia dos
desgarrados, de Maimônides, ele concede o lugar mais alto à
vontade, fonte de todas as coisas. Esta é mais ou menos
identificada com o logos divino no qual Latif distingue ainda a mais
alta inteligência denominada “primeira criada”, nibrah rishōn. Para
descrever o processo da criação, Ibn Latif utiliza tanto a metáfora da
expressão da língua quanto a da derivação dos números a partir do
Um absoluto. Dez formas superiores, ainda denominadas “graus”,
são emanadas a partir da vontade. Sendo a vontade eterna, as
formas acontecem no tempo. A formulação de Ibn Latif permanece
voluntariamente ambígua, o que faz com que não se chegue a
discernir se se trata dos intelectos separados dos filósofos ou das
sefirōt dos cabalistas. No nível mais elevado de seu conhecimento,
o homem percebe apenas “a parte posterior de Deus”; “sua face”,
contudo, só pode ser apreendida num êxtase supra-intelectual
superior à profecia denominada “beatitude da suprema comunhão”.
Na prece autêntica, o intelecto humano, após ter aderido “como num
beijo” ao intelecto agente, pode em seguida unir-se ao “primeiro
criado” e, a partir daí, desvinculado de tudo, alcançar a primeira
causa, a Vontade primordial, surgindo finalmente diante da própria
divindade.
A outra grande linha de desenvolvimento da mística nessa época
é a de uma cabala puramente gnóstica, a dos ma-‘amiqim, ilustrada
pelos irmãos Isaac e Jacob Cohen de Soria, por Moisés de Burgos,
discípulo dos precedentes, assim como por Todros Abulafia, um dos
dirigentes do judaísmo castelhano no século XIII. Esse grupo, muito
preocupado com a problemática do mal radical, desenvolveu a
teoria de uma emanação da esquerda composta de dez sefirōt
estabelecidas como a contrapartida das sefirōt da santidade. Os
adeptos dessa cabala gnóstica são muito apaixonados pela
angelologia e pela demonologia. Isaac ha-Cohen elaborará até um
mito dualista em que Samael e Lilith tornam-se os princípios de um
reino do mal em conflito permanente com os desígnios de Deus. Em
todos, as questões giram sobre emanações de segunda classe
denominadas ora pargōdim, “cortinas”, ora corpos e vestimentas,
em consideração às “almas inferiores”, que constituem, aos olhos
deles, as sefirōt.
A orientação gnóstica não exclui outras influências, especialmente
as dos Hasidey Askenaz, assim como a experiência mística
individual. É precisamente o caso no Sefer ha-’Orah, de Jacob ha-
Cohen, que repousa sobre as visões que o céu lhe concede.
Metatron é aqui a figura dominante que lhe revela através das
gematriōt o sentido místico da Torá e dos preceitos.
III. O Zohar e seu ambiente
A maior figura da cabala extática no século XIII foi sem dúvida
Abraham Abulafia (1240-1292), que se encontra na origem de uma
linhagem de místicos visionários e proféticos. Nascido em Saragoça,
passou sua juventude em Tudela, na Navarra. Foi ao Oriente e
passou uma dezena de anos na Grécia e na Itália, onde talvez tenha
sofrido a influência dos sufistas. No decorrer desses anos,
aprofundou a filosofia de Maimônides e escreveu vários comentários
sobre o Guia, considerando sua própria mística como a explicitação
da doutrina maimonideana. De volta à Espanha em 1270, estuda o
Sefer Yetsirah e muitos de seus comentários; entra também em
contato com um grupo de esotéricos ligados à mística das letras,
especialmente com aquele que considera seu mestre: Barukh
Togarmi, autor de um comentário do Sefer Yetsirah intitulado
Maftehót ha-Qabbala, (Chaves para a Cabala). Abulafia envolve-se
resolutamente nessa via e declara estar preenchido de espírito
profético desde 1271 em Barcelona. Ele deixa novamente a
Espanha em 1272 e continua sua vida errante na Itália. Um episódio
messiânico de sua existência desenrola-se em 1280 quando,
desejando falar com o papa Nicolau III, é ameaçado com a fogueira,
sendo salvo pela morte súbita do soberano pontífice. Sua
reivindicação da inspiração profética e sobretudo sua pretensão
messiânica suscitam igualmente muita hostilidade entre os judeus,
especialmente da parte do grande legista e cabalista Salomon ben
Adret. Apesar de tudo, Abulafia não se deixa desencorajar,
convencido de ter alcançado verdades mais altas através de sua
experiência do divino.
Para Abulafia, a cabala das sefirōt é apenas uma etapa
preparatória para a cabala profética. Esta última é antes de tudo
uma mística da linguagem que se alimenta de duas fontes
aparentemente bem distantes uma da outra, e que entretanto se
unem nele: a filosofia de Maimônides e a teoria da linguagem do
Sefer Yetsirah. Tanto para Abulafia como para Maimônides, a
experiência profética é a de uma adesão do intelecto do homem à
última das inteligências da filosofia judaico-árabe, o intelecto agente.
Abulafia se separa de Maimônides ao pensar que a profecia pode se
atualizar hic et nunc. Referindo-se ao Livro da formação, ele avalia,
com efeito, que a criação é um ato divino de escrever, no decorrer
do qual Deus incorpora sua linguagem às coisas e ali a derrama sob
forma de assinaturas. A escrita forma a matéria da criação,
enquanto a revelação e a profecia são atos pelos quais o verbo
divino derrama-se de uma maneira renovada na linguagem humana,
o que confere à linguagem, ao menos potencialmente, uma
inteligência incomensurável e infinita das coisas.
O homem comum está cortado desse fluxo divino personificado
pelo intellectus agens; toda a mística de Abulafia, porém, visa a pôr
um fim a esse corte. Trata-se de “desprender a alma, de retirar os
nós que a amarram”. Esse desatamento é um retorno da
multiplicidade à unidade original. Para aceder a ela, o homem deve
fazer o aprendizado da meditação, de uma meditação que tem por
objeto o nome divino, que reflete o significado escondido e a
totalidade da existência. Uma disciplina particular, a hōkmah ha-
tserūf, a ciência da combinação das letras e suas diferentes vogais,
é o meio utilizado para atingir o êxtase. A meditação é como uma
música da alma. Ela conduz tanto a um encontro com o guia
espiritual do místico, representado pelo anjo Metatron, quanto a uma
transformação do próprio Eu da pessoa. Durante a experiência
extática, o iluminado é como que ungido, mashiah ou, em outras
palavras, seu próprio Messias! Da mesma forma, o místico, a partir
da língua sagrada, sabe engendrar mais uma vez as línguas
derivadas. Essas combinações, porém, não devem degenerar em
práticas mágicas; para Abulafia, o êxtase culmina com o puro amor
de Deus.
A palavra profética de Abulafia exercerá uma profunda influência,
e vários tratados de meditação no espírito de seus ensinamentos
chegaram até nós. Entre os que se achavam em sua órbita estava
também Joseph Gikatilia (1248-1325), o aluno mais dotado de
Abraham Abulafia e que escreveu em 1274, no espírito da cabala
profética, seu Ginnat ’Egōz, o Pomar das Nogueiras, tratado místico-
filosófico sobre o alfabeto, os pontos-vogais e os nomes divinos.
Nele, as sefirōt são identificadas com os intelectos da filosofia
judaica. O livro é também marcado pela influência de Jacob ha-
Cohen de Segóvia. Em 1280, Gikatilia entra em contato com Moisés
de Leon. Esse vínculo o faz passar da cabala profética à cabala
teosófica. A partir daí, os dois homens parecem ter influenciado
mutuamente seus escritos. Gikatilia redigiu mais de uma dúzia de
manuscritos dos quais os mais importantes são o Sha ‘arey Tsedeq
(Portas da Justiça), que expõe as dez sefirōt indo de Malkhut a
Keter, e sobretudo o Sha‘arey ’Orah, (Portas da Luz), redigido em
1293, que é também uma exposição detalhada do simbolismo da
cabala subindo da última entidade à primeira. Esse tratado pode ser
considerado ainda hoje a melhor introdução ao simbolismo das
sefirōt em relação à primeira cabala, e já manifesta a influência do
Zohar, ainda que este livro não seja mencionado explicitamente em
parte nenhuma. Reciprocamente, o Ginnat ’Egoz é a última fonte
conhecida que marcou o autor do Zohar.
Moisés ben Shem Tov, de Leon, (1240-1305), que viveu a maior
parte de sua vida na cidade castelhana de Guadalajara, interessou-
se também pela filosofia de Maimônides, como sabemos por uma
cópia do Guia executada por ele em 1264. No espírito de Abulafia,
ele redigiu uma obra intitulada Or Zarū‘a sobre a criação. Contudo,
mergulhou em seguida na cabala de Gerona e dos gnósticos de
Castela como Moisés de Burgos e Todros Abulafia. De 1286 a 1295,
produziu inúmeros enunciados da cabala em hebraico, entre os
quais o Shōshan ‘Edūt (1286), o Nefesh ha-Hakhamah (1290), sobre
a alma e sua escatologia, assim como o Sheqel ha-Qodesh (1292),
enunciado detalhado da doutrina das sefirōt.
No mesmo momento em que surgiam essas obras assinadas por
Moisés de Leon, aparecerem entre os cabalistas da época citações
tiradas de um novo midrash: o Midrash ha-Ne‘elam, o midrash
místico. A partir de 1293, e principalmente de 1293 a 1305, são
postas em circulação cópias da parte principal do Zohar, o qual é
apresentado como uma obra autêntica recolhida pelos discípulos de
Simon bar Yohai. Isaac Samuel de Acre foi à Espanha em 1305 e
encontrou Moisés de Leon em Valadolid. Este último prometeu-lhe
mostrar o original do Zohar que teria conservado em sua casa de
Ávila. Nesse meio tempo, morre Moisés de Leon, e sua viúva, assim
como a filha, negaram a existência de tal original. Elas declararam
que Moisés de Leon colocara o Zohar sob a autoridade de Simon
bar Yohai para permitir uma difusão da obra, que não teria podido
atingir sob seu próprio patronímico.
Que se pode adiantar hoje a respeito desse importante texto da
mística judaica? Para responder a tal pergunta, é necessário
precisar inicialmente o que representa o corpus zohárico. Esse
corpus abrange cinco volumes dos quais três constituem o Sefer ha-
Zohar – o Livro do Esplendor stricto sensu. Juntam-se a eles dois
suplementos: um intitulado Tiqqūney Zohar (Complementos do
Zohar), que comporta setenta exegeses diferentes da primeira
palavra do Gênese, Bereshit. O outro, intitulado Zohar Hadash
(Novo Zohar), é uma compilação de fragmentos publicada em Safed
no século XVI. A paternidade do conjunto era atribuída a um doutor
do século II: Simon ben Yohai. Quanto ao conteúdo, todos esses
textos se apresentam como comentários da Escritura no estilo do
midrash rabínico. Quando se analisa o corpus em detalhe,
percebem-se cerca de vinte textos de caracteres aparentemente
diferentes, o que evidentemente coloca problemas complexos: um
ou vários autores? Onde, como e em que circunstâncias a obra foi
redigida?

Sem entrar em detalhes, digamos que a análise lingüística, filológica e doutrinária


forneceu os seguintes resultados: apesar da diversidade dos escritos, constata-se
que remetem uns para os outros e que são muito homogêneos quanto ao conteúdo.
Distinguem-se três camadas no interior do corpus:
– Inicialmente o Midrash Ne‘elam, que trata principalmente da Gênese. A figura de
Eliezer ben Hyrkanos ainda aqui prevalece sobre a de Simon Bar Yohai. A língua
utilizada é tanto o hebraico como o aramaico. Ele é constituído sobretudo de
numerosas alegorias sobre temas cósmicos e escatológicos.
– O corpo do Zohar propriamente dito, em que a figura dominante é a de Simon bar
Yohai e de seu círculo. A língua utilizada é quase exclusivamente o aramaico, e
desvendam-se ali os mistérios da cabala teosófica.
– Há, enfim, um terceiro grupo de textos que compreende o Rayah Mehemnah
(Pastor Fiel), que é uma explicação dos motivos dos preceitos colocados na boca de
Moisés, assim como os Tiqqūney Zohar já mencionados. Trata também do fato de r.
Simon bar Yohai e seus alunos não estarem mais prestes a deambular pela terra de
Israel e sim como se trocassem idéias na academia celeste do Jardim do Éden.

Com efeito, considera-se que os dois primeiros estratos, o


Midrash ha-Ne‘elam e o corpo do Zohar, sejam a expressão de um
mesmo meio, enquanto que os Tiqqūnin e o Rayah Mehemnah
sejam de outro autor, leitor informado do Midrash Ne‘elam e do
Zohar. Os conhecimentos a respeito dos cabalistas espanhóis do
século XIII levaram a declarar que o autor do Midrash Ne‘elam e do
Zohar propriamente dito seria simplesmente o cabalista espanhol
Moisés ben Shem Tov, de Leon. Inspirando-se no Bahir, Moisés de
Leon teria recorrido à pseudo-epigrafia para opor-se à difusão do
racionalismo que se espalhara entre os intelectuais judeus da
época, tendo alguns desses rompido com a tradição e com a
observância das prescrições religiosas. Moisés de Leon teria
pensado que um Midrash místico, no quadro do qual os
ensinamentos da cabala teosófica se exprimiriam, forneceria a ele,
de algum modo, a arma absoluta para divulgar suas idéias. Porém,
certas variantes significativas com relação às Idrōt do Zohar nos
levam hoje a questionar se não seria conveniente situar os escritos
de Moisés de Leon, sem diminuir em nada seu gênio, no quadro de
um cenáculo místico que funcionaria então em Castela e do qual ele
teria sido a figura de proa. Ao fazerem isso, Moisés de Leon e seus
companheiros lançaram-se numa dessas aventuras do espírito que
balizam a história dos homens, já que sua obra ultrapassou
amplamente o público visado, figura no judaísmo ao lado da Bíblia e
do Talmude e é também uma das grandes obras-primas da literatura
mística universal. O místico anônimo que redigiu os Tiqqūney Zohar
e o Rayah Mehemenah baseia-se nos ensinamentos do Zohar, mas
marca sua originalidade por vários traços. Ele usa uma
hermenêutica particular, sob a concepção do kinnûy, eufemismo
simbólico, baseada no métodos das associações. O kinnûy é o
processo pelo qual os temas tradicionais acham-se transformados
em símbolos metafísicos. A tônica é posta na centralidade do
maskil, do objeto místico da iluminação divina, que é o autêntico
intérprete da verdade religiosa.
A iluminação mística é provocada pelo estudo contemplativo da
Torá, que utiliza a hermenêutica simbólica da cabala teosófica. O
místico torna-se então um receptáculo onde o influxo divino pode se
derramar. Por sua ação, ele une Binah a Malkhût. Ao unificar os
graus mais elevados das manifestações do divino a seus graus mais
inferiores, ele desempenha o papel de intercessor; o cabalista
emprega a imagem do “casamenteiro” entre o mundo divino e o
mundo aqui embaixo. Mas o maskil não é isolado; com todos
aqueles que estão em busca do sentido último da Torá, ele constitui
a ordem dos maskilim, que reconhece o Zohar como seu mapa
místico. Os maskilim são considerados cavaleiros em relação aos
quais os talmudistas são apenas escudeiros; são também vistos
como os construtores do palácio real em relação aos letrados que
só fazem extrair as pedras. Sua superioridade hierárquica provém
de seu conhecimento do sentido esotérico da Torá, que ressalta a
árvore da vida, enquanto que o saber dos halakhistas, legistas,
decorre da árvore do conhecimento do bem e do mal. Esses textos
rendem também uma homenagem ao devoto que vive na pobreza e
denuncia com palavras veladas as cobranças exageradas de
dívidas e impostos cometidas pela classe dirigente das
comunidades judias da época. Eles apresentam também uma leitura
catastrófica da história humana desde a falta de Adão, que deu livre
curso às forças demoníacas, inclusive no nível mais elevado do
mundo sefirótico, o de Keter e Hokhmah, falta que chegou até a
conspurcar o aspecto mais elevado do divino, o do ‘Ilat ha-‘Ilot, a
Causa das Causas. Uma imagem domina esses textos: a do dilúvio,
metáfora da corrupção universal, assim como do desamparo interior
do qual o devoto só escapa refugiando-se na arca identificada com
o Zohar, que busca, para uma comunidade de eleitos, um
conhecimento salvador no meio do caos. A atividade teúrgica dos
iniciados vem reparar o impacto do demoníaco e culminará na vinda
dos tempos messiânicos.
Nessa época, aparecem em hebraico obras diretamente
inspiradas pelo Zohar. É o caso dos Mar’ōt ha-Zove’ot, de David ben
Yehuda he-Hasid, e do Libnat ha-Sappir, de Joseph Angelino (1225-
1327). Da mesma forma, um cabalista anônimo da Espanha,
conhecido pelo nome de “Joseph vindo de Susa”, compõe um Sefer
Ta‘amey hamitswot, bem como um Sefer Tashaq, no qual
desenvolve de maneira original os temas dos Idrōt do Zohar.
IV. A cabala dos séculos XIV e XV
O século XIV representa um período fecundo na história da
cabala espanhola. Os ensinamentos da escola de Gerona são
transmitidos por Salomon Ben Adret e Isaac ben Todros. É a época
dos subcomentários, como os redigidos por Josué ibn Shuyab e por
Shem Tōb ibn Gaon sobre os Sōdōt de Nahmanide. Bahya ben
Asher de Saragoça redigiu nessa época seu grande comentário
sobre a Torá que será o primeiro livro cabalístico a conhecer as
honras da impressão (1492). O Ma’areket ha-’Elōhūt é uma
apresentação sistemática da doutrina esotérica vinda da mesma
escola. Isaac ben Samuel de Acre também recolhe tradições antigas
em seu Me’irat ‘Enayim e comunica suas visões em seu ’Otsar ha-
Hayyim. Na esteira de seus antecessores espanhóis e alemães,
Joseph ben Shalom Askenazi redige um comentário sobre o Sefer
Yetsirah e sobre o início do Bereshit Rabba, em que desenvolve a
teoria das sefirōt e a da transmigração até seu extremo limite. É a
época em que a cabala começa a se difundir na Itália, onde
Menahem de Recanate redige um comentário esotérico sobre a Torá
e um livro sobre os temas dos preceitos. Percebe-se então a
influência da cabala, especialmente a zohárica, difundir-se também
na Alemanha, assim como no Oriente.
Admite-se, ainda, que outra obra cabalística importante, o Sefer
Temūnah (Livro da figura), tenha sido redigida por volta de 1300,
mesmo que veicule teses mais antigas. Trata-se de uma obra que
se pretende um comentário das letras do alfabeto hebraico, mas
que, na verdade, desenvolve uma teoria dos ciclos cósmicos que o
mundo atravessa no decorrer de sua existência. Cada ciclo cósmico,
correspondendo a uma das sete sefirōt inferiores, dura sete mil anos
e é denominado shemittah (ano sabático). Após 49 mil anos, toda a
criação retorna ao estado de tohu-bohu no seio da entidade Binah, a
qual se acha simbolizada pelo jubileu bíblico. Essa doutrina dos
ciclos se mostra acoplada a uma concepção mística da Torá. A Torá
primordial manifesta-se em cada ciclo sob um aspecto particular.
Assim, a manifestação da Torá no éon que nos precedeu era a da
plenitude e da graça, enquanto que a Torá de nosso ciclo atual
corresponde ao éon do Julgamento rigoroso. Disso decorre que a
Torá se apresenta como um sistema de obrigações e interdições. A
shemittah a vir se define como a da utopia. A Torá, redigida num
alfabeto que encontrou sua integralidade, não comportará mais
interditos. Tudo será então gratidão e amor. Temas paralelos contêm
evidentemente germes de um antinomismo com relação ao
judaísmo halákhico, que rebentará em plena luz alguns séculos
mais tarde, no movimento sabataísta.
Ao lado de um Joseph Ibn Shalom muito influenciado pelo
aristotelismo, são feitas outras tentativas para unir a cabala e o
neoplatonismo na linha de Ibn Latif: é o caso de David ben Abraham
ha-Laban em seu Masōret ha-Berit (1300). Tais tentativas
manifestam-se igualmente em meios de língua árabe: é o caso de
Hoter ben Salomon no Iêmem, de Juda ben Nissin ibn Malka de
Fez, assim como mais tarde de Joseph ben Abraham Ibn Waqar de
Toledo. Este último relacionava-se com Moisés de Narbonne,
filósofo que mostrou um interesse polido pela cabala. Outras obras
como a anônima Berith ha-Menūhah ou o Sefer ha-Malkūt, de David
Levi, situam-se na linha do círculo ‘Iyyūn e de Abraham Abulafia.
Moisés de Narbonne (1300-1362) mostra-se informado de certos
dados cabalísticos, especialmente através de Ibn Waqar, mas seu
averroísmo o torna cada vez mais crítico em relação à mística.46
No início do século XV, duas obras, o Sefer ha-Peli’ah, sobre o
começo da Gênese, e o Sefer Kanah, sobre os temas dos preceitos,
atribuídos de maneira pseudo-epigráfica a r. Nehunya ben ha-Kana,
são redigidas em algum ponto nos limites do império bizantino. As
duas obras afirmam que o sentido literal não é diferente do sentido
esotérico e que a halakhah só poderia ser justificada no nível do
sentido místico. Na mesma época, por volta de 1460, Shem Tov ben
Shem Tov escreve o seu Sefer ha-’Emūnōt, no qual ataca
violentamente os adeptos da filosofia. Em seguida, a recusa de todo
compromisso com a filosofia será crescente nas obras cabalísticas,
fenômeno que se explica facilmente pela deterioração da condição
dos judeus na Espanha a partir de 1391. Outra obra notável é a de
Moisés Botarel, cujo longo comentário sobre o Sefer Yetsirah, ainda
aberto à filosofia, está recheado de citações às vezes imaginárias.
Nessa época, a influência da cabala difunde-se também na literatura
étnica: é o caso do Sefer Menorat ha-Ma’or, de Israel al-Nakawa de
Toledo (morto em 1391).

Como resultado das perseguições, não haverá mais obras importantes escritas na
Espanha no século XV, apesar da atividade de numerosos cabalistas. Pode-se
assinalar os dezoito responsa sobre temas esotéricos, redigidos por Joseph Alcastiel
de Jativa, assim como as duas cartas sobre a emanação, redigidas por Isaac Mar
Hayyim em 1491 no decorrer de sua viagem à Palestina. Joseph ibn Shraga e Juda
Hayyat, autor do Minhat Yehūda, comentário sobre o Ma‘areket ha-’Elōhūt, são os
dois esotéricos que desempenharão o papel mais importante na transmissão da
cabala da Espanha para a Itália.
No decorrer do século XVI, a cabala se expandirá neste último país através de
personalidades como Reuben Zarfati. Joseph Alemano, cuja obra mescla cabala e
filosofia, desempenhará também um papel importante nessa difusão. A união do
platonismo e da cabala é encontrada ainda em Juda ben Jessiel Messer-Leon de
Mântua.
Nessa região, a cabala é apresentada como um antigo saber judaico-esotérico em
sua expressão histórica, mas podendo ser compreendida e explicada de maneira
filosófica. Alguns concebem a cabala como um saber mágico, isto é, como uma
técnica destinada a atrair para baixo o fluxo sobrenatural originário das sefirōt a fim
de recolhê-lo e usá-lo, ao contrário da orientação teúrgica da cabala teosófica.
Considera-se igualmente legítimo difundir esse saber a um grande público. Essa
cabala fortemente tingida de platonismo será conhecida pelos cabalistas e
humanistas italianos, especialmente por Marsílio Ficino e Picco della Mirandola. A
cabala cristã constituirá uma das grandes orientações do humanismo e do
Renascimento. Ainda na Itália, o poeta Moisés Rieti consagra à cabala uma parte de
seu poema Miqdash Me‘at, enquanto seu filho mais moço, Élie Hayyini de
Gennazano, escreve uma introdução à cabala intitulada ‘Iggeret Hammudot.47

34. Ver G. Scholem. Les Origines de la Kabbale, Paris, 1966, p.108-136. (N.A.)
35. O Bahir, § 5 (Jerusalém, Ed. Margalioth, 1951), utiliza até a expressão ha-Male, a
plenitude que se acha identificada, em relação à simbologia da Torá, com a fonte
primordial. (N.A.)
36. Bahir, § 119. (N.A.)
37. Plural de sefirah. (N.T.)
38. O sacrifício acha-se também relacionado ao Shemah no § 114. (N.A.)
39. Esse caráter gnóstico do Bahir não escapou aos adversários da nova cabala, cf. a carta
de Meir ben Simon de Narbonne em G. Scholem, Les origines de la Kabbale, p.421-423.
(N.A.)
40. Os cabalistas conheciam as doutrinas cátaras, mas permaneciam muito afastados
delas devido ao dualismo fundamental do catarismo, mesmo que a teoria da transmigração
fosse encontrada nas duas correntes de pensamento. (N.A.)
41. Les origines da la Kabbale, p.258. (N.A.)
42. Cf. Kuzari, II, 7 e IV, 3. (N.A.)
43. Parece que na mesma época um grupo de místicos próximo dos pietistas renanos
desdobrava suas atividades em Corbeil, no norte da França, em torno de Elhanan de
Dampierre (morto em 1195) e de Jacob de Corbeil. (N.A.)
44. O comentário de Isaac l’Aveugle foi editado por G. Scholem num apêndice a seu curso
policopiado sobre a Cabala na Provença, Jerusalém, 1970. (N.A.)
45. Ver H. Pedaya, “Ruptura e reparação do divino na cabala de r. Isaac l’Aveugle” (em
hebraico), no volume The Beginnings of Jewish Mysticism in Europe (ed. J. Dan),
Jerusalém, 1987, p.157-285. (N.A.)
46. Cf. o artigo de M. R. Hayoun, “Moisés de Narbonne sobre as Sefirōt”, no The Jewish
Quarterly Review, LXXVI, no 2 (outubro 1985), p.97-148. (N.A.)
47. Sobre esse autor, ver nosso artigo “Élie Hayyim de Gennazano et a Kabbale”, na Revue
des Études juives. t. CXLII (I-2), 1983, p.91-108; A. Altmann, “Au-delà du domaine de la
philosophie: la figure do kabbaliste Élie Hayyim de Gennazano (em hebraico), em
Mehqarey Yerushalayim be-Mahashabat Yisrael (vol.7), Mélanges Pines, I, p.61-101.
(N.A.)
CAPÍTULO IV
A VISÃO DE MUNDO DA PRIMEIRA CABALA
O percurso das principais etapas da cabala desde a época do
Bahir até o fim do século XV nos permite captar o significado e o
alcance das principais concepções com que concordam globalmente
os adeptos dessa primeira cabala, mesmo que haja divergências
sobre algum ponto particular.
A mística judaica medieval surge ao lado da filosofia como uma
das grandes tentativas do judaísmo (no exílio) de redefinir-se com a
ajuda de categorias adaptadas a uma experiência que obrigava a
uma leitura nova dos textos fundadores bíblicos e rabínicos. O
problema básico em torno do qual parece girar o pensamento da
época, depois do encontro entre o monoteísmo bíblico e o
pensamento grego, é o dos atributos de Deus. Que relação
estabelecer entre a idéia de Deus concebida pelos filósofos (quer se
trate da causa primeira de Aristóteles ou do Um de Plotino), cujas
realidades são provenientes da necessidade, e o Deus pessoal da
religião, Criador do mundo e da providência? A doutrina dos
atributos divinos responde a essa dificuldade: o que é possível
afirmar sobre Deus?
A resposta a essa pergunta em geral tem sido: muito pouco. A tal
ponto que Maimônides, em seu Guia dos desgarrados, afirma que
nenhum atributo positivo poderia ser predicado de Deus, pois todo
atributo positivo introduziria a multiplicidade e a mudança em Deus,
extraindo-se daí a conseqüência de que só podemos nos exprimir
sobre Deus por meio de negações (I, LVIII)! Maimônides admite,
contudo, atributos de ação que não nos ensinam nada sobre a
essência de Deus, mas que nos descrevem as diferentes relações
que Ele mantém com suas criaturas (I, LIII).
Apesar da diferença existente entre os filósofos e os cabalistas,
os últimos têm a preocupação de elevar Deus acima de tudo que
possa rebaixá-Lo ao excessivamente humano, mas também a
preocupação de não fazer com que se perca Deus tal como se
manifesta e age entre os homens. É a essa dupla reivindicação do
pensamento especulativo e do pensamento religioso que responde
a distinção fundamental entre ’En Sōf, enquanto transcendência
absoluta, escondida e infinita, e as dez sefirōt que denotam a
divindade na medida em que ela entra em relação com as criaturas.
É a esse segundo aspecto do divino que se referem, para os
cabalistas, os nomes, alcunhas e qualidades divinas em que a Bíblia
e o Midrash são abundantes. Em relação ao Deus escondido, a
emanação é como a “chama em relação à brasa”, pois a chama não
tem existência separada do carvão.
A ocultação de ’En Sōf tem um duplo significado. Ela mostra de
início que sua essência não transgride os limites de sua ocultação e
que ela não está em relação com o que quer que seja. Pressupõe
em seguida que sua natureza não é apreendida e não poderia sê-lo
por nenhum pensamento, inclusive o das sefirōt nas quais ’En Sōf
está presente. A partir daí, compreende-se que a intenção das
preces e a dos preceitos não tenha mais sido dirigida ao ’En Sōf e
sim à sua manifestação através das sefirōt.
As dez sefirōt constituem as dez potências da emanação ou da
manifestação do divino. Um debate divide os cabalistas quanto à
natureza das sefirōt. Para a maioria deles, elas formam a essência
do divino (orientação gnóstica), enquanto para alguns elas são
apenas os instrumentos da atividade divina – em Menahem de
Raqanate, por exemplo. Outros insistem quanto a seu caráter
intermediário entre o infinito e o finito, como no caso de Azriel de
Gerona. No Tiqqûnim e no Rayah Mehemnah, as sefirōt são
consideradas receptáculos para a essência de Deus; tais
receptáculos são distintos mas não inteiramente separados da
unidade indiferenciada de Atsilut. As sefirōt são denominadas
Temûnat ha-Shem, “imagem do divino”, a mediação através da qual
o divino imanente domina todas as dimensões do que existe.
A representação habitual delas é a seguinte:
KETER
BINAH HŌKHMAH
GEBŪRAH GEDŪLLAH
TIF’ERET
HŌD NETSAH
YESŌD
MALKHŪT
A cada uma das sefirōt corresponde igualmente um determinado
nome divino; de fato, a emanação é concebida como a manifestação
progressiva dos nomes divinos. A primeira sefirah, Keter, é, depois
do século XIII, geralmente identificada com a vontade divina
primordial. Sua identidade ou sua não-identidade com ’En Sof é
objeto de discussão entre os cabalistas. O início da existência real
assinala-se em Hōkhmah, que corresponde ao pensamento divino.
Em seu seio, repousam as idéias de tudo que virá a ser. A criação
ex nihilo é reinterpretada pelos esotéricos como a extração a partir
das profundezas do ‘Ayin, o nada divino, outro nome para Keter, do
ser, ou Yesh, correspondente a Hōkhmah. A ordem ainda
dissimulada em Hōkhmah tornou-se manifesta em Binah, a
inteligência. Nela, as essências se tornam distintas. É a partir das
formas impressas em Binah que são emanadas as sete sefirōt
inferiores que constituem o mundo do edifício.
Em Gedūllah, a Grandeza, também denominada Hesed, “graça”,
revela-se a bondade absoluta de Deus, enquanto que Gebūrah, o
rigor, é o instrumento da justiça divina e representa
conseqüentemente a contrapartida de Hesed. A sexta sefirah,
Tif’eret, “beleza”, igualmente chamada Rahamim, realiza a síntese
entre as duas modalidades que a precedem e rege com elas a
ordem ética, assim como as três primeiras entidades articulam a
esfera da intelectualidade. Netsah, Hōd e Yesōd, isto é, a
capacidade de agüentar, a majestade e o fundamento, são como os
rebentos das três precedentes; todas juntas deságuam em Malkhūt,
o Reino, que recebe a influência das outras nove e rege por sua vez
o mundo extradivino. O conjunto das dez sefirōt forma assim uma
totalidade em que a unidade divina se exprime sob uma forma
dinâmica.
Se a emanação primordial é a da vinda à existência das
entidades, é preciso sublinhar que existe também uma espécie de
emanação continuada, pois o divino deve continuamente derramar-
se no mundo para manter os seres na existência.
Para descrever as relações entre ’En Sōf e as sefirōt, assim como
as relações entre as entidades, os cabalistas recorrem a um
superabundante simbolismo. Eles recorrem tanto às metáforas da
água como às da luz: todos os recantos da natureza e todos os
recursos da cultura se acham mobilizados para fornecer uma
inteligibilidade aos mistérios do alto. A mão de Deus deixa de ser
uma alegoria do poder divino para tornar-se o símbolo de um
indizível para o qual aponta um certo uso desse membro
denominado “mão”. Entre os símbolos mais pregnantes, o
simbolismo sexual ocupa um lugar especial, pois exprime na
linguagem do mito a unidade dinâmica do divino, simbolizada pela
união masculino-feminino. É o caso da união do pai e da mãe,
Hōkhmah e Binah, como também a do filho, Tif‘eret, e da filha,
Malkhūt, igualmente denominados Rei e Rainha. No que tange
precisamente ao problema complexo do mito na cabala, encontra-se
uma espécie de oscilação entre textos em que o mito aflora quase a
cada página e outros nos quais espíritos mais especulativos
desmitificam os textos dos primeiros!

Abaixo do mundo da emanação, Atsilūt, os cabalistas colocaram o mundo do Trono,


que corresponde ao da antiga Merkabah e que receberá tardiamente o nome de
‘Ōlam ha-Beriah, o mundo da Criação. A partir do século XV, será colocado abaixo do
mundo da Criação o mundo da Formação, ‘Olam ha-Yetsirah, o mundo os Anjos, que
inclui Metatron. No último escalão dessa cosmologia, aparece o mundo da
Fabricação, ‘Olam ha-‘Asiyyah, que ora inclui as esferas celestes e o mundo inferior
ora se limita a este. Deus não está ausente de nenhum desses mundos, porque seu
influxo alcança até o extremo limite do universo, mesmo que sua presença pareça
cada vez mais oculta. O processo da emanação engloba eminentemente o da
criação. Tudo que apareceu durante os seis dias do começo é apenas a expressão,
no mundo inferior, do que estava implicado nas seis sefirōt do edifício.

Assim, cada ser constitui um degrau na grande escada que liga a


terra e os céus. Entretanto, existe uma criatura que, mais do que as
outras, tem a capacidade de unir tudo o que existe à sua causa
primeira: o homem. Entre todos os seres, o homem é aquele feito à
imagem da totalidade do mundo sefirótico, da mesma forma que
inversamente o conjunto das entidades constitui a figura do homem
do alto. Ele ocupa igualmente esse lugar privilegiado porque sua
alma é de origem divina e constitui a substância da qual seu corpo é
apenas o envelope. Os cabalistas distinguem três partes da alma.
De baixo para cima: nefesh, no nível mais inferior, que é o princípio
da vitalidade (hiyyut) e se acha diretamente apoiado no corpo; em
posição mediana, o rūah ou anima pressupõe um esforço da parte
do homem, enquanto que o nível mais elevado, a neshamah ou
alma superior, só é adquirido com a condição de que o homem se
ocupe da Torá e ponha em prática os preceitos. Esses três degraus
correspondem grosso modo à tripartição filosófica da alma em alma
vegetativa e/ou animal, racional; o racional se ultrapassando no
intuitivo.
Pelo fato de o homem integrar em sua pessoa o conjunto dos
poderes do alto, sua ação pode atuar sobre o conjunto dos mundos,
inclusive no interior do próprio mundo divino. Sua vida e suas obras
são capazes de ampliar as forças divinas para levá-las a seu nível
mais alto de manifestação e reenviá-las à sua fonte única. Para
utilizar a linguagem do Zohar: “O despertar de baixo provoca o
despertar do alto”. Assim que o homem consegue subir todos os
degraus em direção à sua fonte original, ele provoca em troca um
excedente de expansão. Esse ciclo se renova tanto quanto o
homem se esforçar nisso, e ele pode assim conduzir o mundo a seu
Tiqqūn, a seu remate.
O instrumento através do qual o homem efetua essa função
cósmica é a Torá. A atitude dos esotéricos em relação à Torá
baseia-se na correspondência que estabelecem entre criação e
revelação. Essa Torá é inicialmente para eles o nome místico do
próprio Deus. Por trás de todos os seus preceitos e relatos, Deus
revelou nas letras da Torá seu próprio nome, que compreende
também a totalidade das leis escondidas da criação.48 A Torá é
também definida como uma totalidade, como um organismo vivo.
Portanto, ela corresponde de um lado a essa totalidade que é o
mundo da emanação, e de outro ao todo do homem. A cada
preceito liga-se a um membro no corpo humano e a um princípio
espiritual no alto. É pela observância dos preceitos que o homem
pode então movimentar o mundo superior. O estudo da Torá e a
realização das práticas conduzem o homem ao objetivo final
possível de sua existência: a debekhūt, adesão a Deus. A prece
ocupa nessa elevação espiritual um papel especial; ela é concebida
como uma ascensão do homem aos mundos espirituais pela
interpretação da kawwanah, da intenção mística. Por meio da leitura
simbólica do texto litúrgico, a prece reitera no sentido inverso o
itinerário pelo qual o mundo veio a existir. Através das palavras do
ritual, são os nomes divinos que se revelam ao místico e que o
orientam para o encontro com o divino. A vontade humana se apaga
ante a vontade divina ou, melhor dizendo, busca conformar-se
inteiramente a essa última. Os cabalistas reconheceram nessa
busca a consecução de etapas que inspirava os antigos profetas e
quase identificam, portanto, os místicos com os profetas.
Outro ponto que os esotéricos sublinham é o da significação
infinita do discurso divino. Se a Torá é Deus transformado em
expressão, sua infinitude mira-se necessariamente nela, que possui
assim um significado infinito. Vemo-nos então ante uma polissemia
do Absoluto. Decorre daí a legitimidade de uma multidão de leituras
e se falará, no limite extremo, das seiscentas mil interpretações da
Torá, correspondendo ao número de israelitas presentes à teofania
do Sinai. Não é de espantar, portanto, que os cabalistas aceitem do
meio cristão a célebre distinção dos quatro sentidos da Escritura –
peshat, sentido literal; remez, sentido alegórico; derash, sentido
homilético; sōd, sentido místico – sem que seja preciso conceder à
distinção uma importância maior do que tenha de fato. Com certeza,
o conhecimento da doutrina esotérica se acha colocado numa
categoria mais elevada do que o simples estudo talmúdico, o que
podia consistir, como no caso do autor do Rayah Mehemnah, até
numa crítica da última, censura encobrindo nela germes de anti-
rabinismo que aparecerão em plena luz quando a ocasião se
apresentar.
O problema do mal ocupa um lugar considerável nas
preocupações dos cabalistas. Os filósofos judeus, inspirados pelo
neoplatonismo, viam no mal um não-ser identificado com a matéria-
prima informe. Em sua grande maioria, os cabalistas afirmam, ao
contrário, que o mal tem uma existência real, e situam sua origem
em níveis elevados do mundo sefirótico. Assim, para Isaac
l’Aveugle, o bem e o mal deitam sua raiz nas entidades Hesed e
Gebūrah. Já os círculos gnósticos de Castela elaboram o conceito
de uma hierarquia de emanações malfazejas, num contraponto com
a emanação da santidade, que tomará a denominação de sitra ahra,
o outro lado, com o autor do Zohar. Outros esotéricos insistem mais
na responsabilidade do homem na existência do mal; para eles, o
mal só existe como possibilidade na criação, e é o primeiro homem
que por sua falta faz esse mal passar ao ato (J. Gikatilia). A falta do
primeiro homem é considerada como uma ruptura da ordem
sefirótica, especialmente entre a última entidade considerada como
a árvore do conhecimento e o conjunto das nove primeiras sefirōt
identificadas com a árvore da vida.
Toda história humana foi dominada em seguida pela necessidade
de reunificar a árvore sefirótica. Cada grande falta repete através
das gerações a falta primordial. A Torá, porém, fornece ao povo
eleito o instrumento para conduzir a história em direção a seu fim
último: restaurar o mundo em sua perfeição primeira. Infelizmente,
Israel se mostra incessantemente abaixo do requerido, daí provindo
a condenação ao exílio durante o qual a harmonia do universo se
acha muito mais desregulada. A tarefa do místico é, em especial,
reunificar as letras do nome divino para restaurar a unidade do alto
de modo a que a Shekhinah reencontre seu Esposo.
Os textos de Isaac l’Aveugle já evocam o conflito entre a
divindade e o Sar Amaleq destinado a ser vencido no final dos
tempos. A impulsão messiânica se esclarece também nos Ta‘amey
ha-Te‘amîm de Isaac Cohen: a problemática do mal articula-se aí a
uma apocalíptica em que as forças de Deus se defrontam com as de
Samael. A leitura atenta das Idrōt revela que o rabino Simon bar
Yokhai exerceu para o autor do Zohar uma função eminentemente
messiânica na economia da história de Israel.49 Por isso, assim que
a existência física do povo judeu foi posta em questão, a cabala
tornou-se o catalisador de um poder inigualável. O acontecimento se
produz muito precisamente em seguida à expulsão maciça dos
judeus da Espanha, ordenada pelos reis católicos em 1492.

48. Nos pormenores, os cabalistas fazem corresponder a Torá primordial a Hōkhmah, a


Torá escrita a Tif’eret e a Torá oral a Malkhūt. (N.A.)
49. Sobre o messias no Zohar, ver o artigo fundamental de Y. Liebes, “O messias do Zohar”
(em hebraico), no volume coletivo A idéia messiânica no pensamento judaico, Jerusalém,
Academia de Israel, 1982, p.87-237. (N.A.)
CAPÍTULO V
A CABALA DE SAFED E SUA HERANÇA
A expulsão de 1492 provoca uma transformação da natureza e do
lugar da cabala no interior do mundo judaico. Enquanto a mística
estava até então limitada a grupos relativamente restritos, a partir
daí os ensinamentos cabalísticos passam a ser difundidos entre um
público cada vez mais amplo. O conteúdo dessa cabala vai ser
modificado em conseqüência da nova situação histórica resultante
da expulsão dos judeus da Península Ibérica. As esperanças
messiânicas perseguem ainda com mais força as especulações
místicas, e entre muitos esotéricos a preocupação de apressar o fim
prevalece sobre a pesquisa unicamente da salvação individual. A
impressão do Zohar em Mântua, assim como em Ferrara em 1558,
após uma viva polêmica, inscreve-se nessa fermentação dos
espíritos.
I. A literatura cabalística resultante da expulsão
Os exilados da Espanha divulgam a cabala por toda a bacia
mediterrânea, aplicando-se a apresentações sintéticas do tema. A
mais bem-sucedida dessas tentativas é a de Meir Ibn Gabbay – que
foi juiz em Tiro e em Manissa, na Turquia – em seu ‘Abōdat ha-
Qōdesh (1521), o produto mais acabado da especulação cabalística
antes da renovação de Safed. Ao lado de uma crítica veemente do
racionalismo judaico, Ibn Gabbay concentra sua obra no tema do
‘Abōda tsorekh Gabō’a, isto é, a concepção segundo a qual a ação
do homem é indispensável à própria divindade. Na mesma época,
David ibn Zimra escreve no Egito Migdal David, inspirado no Sefer
Temūnah, e Metsūdat David, sobre os temas dos preceitos. Surgem
também outros escritos, especialmente na África do Norte, como o
comentário sobre o Zohar, Ketem Paz, de Simon ibn Labi de Fez.
Uma antologia cabalística aparece na Europa oriental na mesma
época: o Shōshan ha-Sōdōt, de Moisés ben Jacob de Kiev,
inspirado especialmente nos ensinamentos de Gerona. Neftali Hirtz
Trèves escreve seu comentário sobre a liturgia em 1560. Na mesma
época, Juda ben Betsalel Loew (o Maharal de Praga50) difunde sub-
repticiamente as idéias cabalísticas em seus textos, nos quais
reinterpreta o mundo da Aggadah para seus contemporâneos.
A corrente apocalíptica, todavia, se manifesta com força tanto no
Kaf ha-Ketōret – uma interpretação dos Salmos enquanto coletânea
de hinos para o último combate messiânico – quanto no Meshare
Qitrin (1508), de Abraham Eliezer ha-Levi, que anunciou o ano de
1524 como o início dos tempos messiânicos. Vários projetos
messiânicos são postos em execução. Em exemplo é volta de Asher
Lemlein à Itália do Norte (1500-1502). Outro esforço foi o de David
Reubeni e Salomon Molcho; este último redigiu o Sefer ha-Mefoar
(impresso em Salônica em 1529) e morreu como mártir em 1532. A
tentativa de Joseph Della Reyna de utilizar a cabala prática para
provocar o fim dos tempos deu lugar a todo um ciclo de lendas.
II. O centro de Safed
Por volta de 1530, a cidade de Safed, na Galiléia, tornou-se a
capital espiritual do judaísmo e especialmente da cabala. Lá
instalaram-se os maiores adeptos da Halakhah, como Jacob Berab,
que, em 1538, tentou restaurar a ordenação rabínica, e Joseph
Karo, o autor do último código estabelecendo autoridade no
judaísmo, o Shūlhan ‘Arūkh. Uma atmosfera pietista e ascética
reinava na cidade, que desempenhou na época a função que
Gerona assumira para a cabala de Provença. Não apenas
comentavam-se ali os antigos livros, mas redigiam-se novas obras e
produziam-se novas interpretações. Certos mestres reivindicavam
um novo tipo de revelação, a de um Maggid, mentor espiritual que
podia ser ora um anjo, ora uma alma que se exprimia pelos lábios
dos cabalistas ou provocava neles fenômenos de escrita
automática. Joseph Taitazak de Salônica teve como Maggid o
próprio Deus, enquanto que foi a Mishnah personificada que ditou a
Joseph Karo as revelações contidas em seu Maggid Mesharim.
Obteve também muito sucesso em Safed o Galley Razayyah, escrito
provavelmente na Grécia por volta de 1552, cujo tema básico é a
transmigração das almas dos heróis bíblicos que mostraram uma
conduta aparentemente escandalosa, como a de Sansão.
Uma primeira reformulação da cabala foi obra de Salomon ben
Moisés Alkabetz, que emigrou de Salônica para Safed em 1535 e
reagrupou em torno de si um cenáculo de místicos. Pregador e
poeta, compôs o famoso hino sabático Lekha dōdi, consumido pelo
sopro messiânico e adotado de imediato por todas as comunidades
judaicas desde então. Autor de inúmeros textos, especialmente
comentários sobre a Bíblia, Alkabetz produziu em sua obra mais
importante, Liqqūtey Haqdamōt le-Hokmat ha-Qabbalah, uma
teologia da cabala análoga à de Cordovero; declara, no entanto, que
a essência das sefirōt não é divina, ainda que a substância divina
permaneça imanente a elas.
Salomon Alkabetz teve como discípulo (e também como cunhado)
aquele que se tornou o maior teólogo da cabala na época: Moisés
Cordovero (1522-1570). Sua primeira obra sistemática é Pardes
Rimmōnim, que escreve aos 27 anos. Compôs em seguida’Ōr
Yaqar, seu grande comentário sobre o Zohar, encerrando sua
teologia cabalística com ‘Elimah Rabbati, publicado dez anos depois
de seu primeiro grande tratado. Ao longo da obra que escreveu, ele
se esforça para harmonizar as idéias do Zohar com as dos Tiqqūnim
e do Rayah Mehemnah. Cordovero vê em Deus um ser necessário,
a causa primeira que transcende aos outros seres e à qual não é
permitido atribuir nenhum predicado. À pergunta, para ele capital, de
saber se as sefirōt constituem a substância ‘atsmūt de Deus ou
apenas seus Kelim, instrumentos ou receptáculos do divino,
Cordovero fornece como resposta: as sefirōt são ao mesmo tempo
substância e Kelim. Elas são emanadas fora de Deus, mas a
divindade lhes é imanente. A expansão delas é uma manifestação
da vontade de Deus. Assim, coloca-se para ele o problema da
relação entre Deus e sua vontade. Ainda aqui a resposta é dialética:
a vontade é uma emanação, mas toma sua origem em Deus por
uma sucessão de volições que se aproximam, à maneira de uma
assímptota, da essência da deidade. Tornamos a encontrar esse
pensamento dialético na descrição da emanação, que, para ele,
constitui igualmente uma ocultação. Paradoxalmente, Cordovero
interpreta as diferentes passagens do Zohar que tratam da morte
dos reis de Edom como uma alusão à necessidade do rigor a fim de
que o mundo possa subsistir. Assim, da mesma forma, o universo
inteiro é ritmado pelo duplo movimento da luz direta, ’Ōr Yashar, e
da luz refletida, ’Ōr Hozer, esta última originando-se da modalidade
do rigor.
III. Isaac Luria e sua posteridade
Isaac Luria Ashkenaze (Ari) nasceu em Jerusalém em 1534.
Educado no Egito, morreu em Safed em 1572, onde na verdade
passou apenas os três últimos anos de sua vida. Estudou no Egito
com David ben Zimra e em Safed com Moisés Cordovero. Em torno
dele, fundou-se um círculo místico de cerca de trinta discípulos.
Luria era o protótipo da personalidade carismática, cujo magnetismo
impressionava a todos ao redor, e cujos ensinamentos
permaneceram na maior parte orais e reservados a seus alunos.
São estes que, em diferentes versões, nos transmitiram a cabala
teosófica de Luria, que constitui verdadeiramente uma nova cabala
em relação ao que antes existia.
A cabala luriânica, de uma extrema complexidade em seus
detalhes, comporta globalmente três momentos essenciais: o
Tsimtsūm, a quebra dos vasos e o Tiqqūn.
Luria colocou-se a pergunta: como pode o mundo existir se a
essência de ’En Sōf preenche todas as coisas? A resposta é que o
mundo existe em conseqüência de uma contração, do Tsimtsūm de
Deus em si mesmo. Essa retração do divino de um único ponto ao
centro de si mesmo permite que todos os mundos existam: o espaço
primordial assim isolado é denominado Tehirū. O efeito do Tsimtsūm
é manifestar o rigor divino que era até então afogado no oceano
infinito de sua misericórdia. Esse ato de autolimitação do divino é
seguido pelo retorno do divino ao espaço dos mundos sob a forma
de um raio de luz que penetra no espaço instaurado pela primeira
contração. Esse raio, que pertence à modalidade da misericórdia,
vai exercer uma função catártica, penetrando e focalizando as
forças do rigor que se mantiveram no Tehirū ao mesmo tempo que o
resíduo da luz infinita, Reshimū.
A ação recíproca entre a forma organizadora constituída pelo qaw
ha-middah, a medida cósmica, e a receptividade representada pelo
Reshimū terá por efeito produzir os Kelim, os receptáculos
suscetíveis de conter a luz divina. As estruturas que surgirão
tomarão de empréstimo duas formas de desenvolvimento no
espaço, a do círculo, ‘Iggūl, e a da linha reta, Yōsher, cuja dualidade
atravessa o conjunto do processo. O círculo evoca a perfeição do
’En Sōf e se molda em uma espécie de forma esférica do espaço
resultante do Tsimtsūm. A linha reta, que procede do Qaw, é como o
a priori e a antecipação da estatura do homem, causa final de toda a
criação. O processo é escandido por uma seqüência incessante de
retrações e expansões (Histalqūt e Hitpashtūt).
A primeira forma que resulta da emancipação e que preenche
todo o espaço dos mundos é precisamente designada como o Adam
Qadmōn, o homem primordial. O Adam Qadmōn é constituído a
partir de dez sefirōt concêntricas, que correspondem a seu Nefesh,
e de dez sefirōt dispostas verticalmente – seu Ruah –, e serve de
mediação entre ’En Sōf, cuja luz penetra nele, e a hierarquia dos
mundos que segue. As luzes das sefirōt resplandecem por seus
olhos, orelhas, nariz e boca. Cada constelação de luz tem também
sua expressão lingüística particular sob a forma de um
desenvolvimento milluy do tetragrama. Essas luzes “reúnem-se
todas num só receptáculo, de onde o nome de ‘Ōlam ha-‘Aqūdim
(literalmente: o mundo daqueles que são ligados), que qualifica esse
grau. Após um segundo Tsimtsūm no nível do diafragma do homem
primordial, desta vez jorrarão luzes dos olhos de Adam Qadmōn.
Essas luzes constituem o ‘Ōlam ha-Niqqūdim, o mundo dos pontos,
onde um vaso determinado está destinado agora a acolher as luzes
da cada sefirah.
Efetivamente, no que diz respeito às três primeiras sefirōt, os
vasos que correspondiam a elas puderam acolher a luz. Mas a luz
das seis outras, de Hesed a Yesōd, jorrou de um só golpe e os seis
vasos destinados a recolhê-la se quebraram; ocorreu o mesmo, mas
em medida menor, no receptáculo de Malkhūt. A quebra dos vasos,
Shebirat Kēlim, é o segundo momento fundamental do processo
teogônico descrito por Luria. Sob efeito dessa quebra, a maior parte
da luz remonta à sua fonte, enquanto o restante das centelhas de
luz, Nitsūsōt, agarradas aos pedaços dos vasos, mergulham com
eles no abismo. As forças do mal tiram sua substâncias desses
pedaços (cascas), Kelippōt, que estão também na origem da
matéria bruta. Assim, a quebra dos vasos é uma catástrofe cósmica
que provoca o deslocamento de todas as realidades, quer se tratem
de luzes ou vasos, e que corresponde, no nível luriânico, à morte
dos Reis primitivos nos Idrōt do Zohar, assim como à destruição dos
mundos primitivos da antiga ’Aggadah. Os alunos de Luria oscilam
entre uma leitura de tipo estruturalista dessa catástrofe (como a
natureza parcelar do mundo dos pontos) e a leitura catártica do
mesmo processo: a quebra se mostra indispensável para purificar
as sefirōt dos Kelippōt; esta já era a finalidade da primeira
contração. Essa intenção catártica harmoniza-se igualmente com a
interpretação teleológica, insistindo no fato de que os vasos deviam
ser quebrados a fim de passar a existir um mundo que dê lugar à
liberdade.
Imediatamente após a quebra dos vasos, intervém a última fase
do processo teogônico, o Tiqqūn, a reparação ou restauração do
mundo quebrado. O Emanador suscita um impulso de baixo, Mayim
Nōqbin (literalmente: as águas fêmeas), que é como um pedido de
ajuda que se eleva do mundo quebrado ao qual vem responder uma
nova emissão de luz a partir da fronte do homem primordial. Essa
nova luz integrará as sefirōt até então isoladas dos Partsūfim, rostos
ou configurações, dos quais cada um manifesta um aspecto da
divindade assim como um momento na obra da restauração. Os
principais Partsūfim são em número de cinco e designados por uma
nomenclatura tomada de empréstimo das Idrōt. O primeiro rosto é o
de ’Arikh ’Anpīn, o Longanime51: ele exprime a misericórdia divina e
corresponde a Keter. As entidades Hōkhmah e Binah tornam-se no
presente as configurações ‘Abba e ‘Imma, pai e mãe. Elas são o
modelo de todas as uniões intelectuais e eróticas por seu face a
face ininterrupto (Histaqqelūt Panim be-fanim). De sua união,
origina-se um novo rosto, Zeis ’Anpin, o Impaciente, que engloba as
seis sefirōt, de Gedūllah a Yesōd. Seu próprio nome indica que inclui
nele as potências do rigor, e sua função é efetivamente ser o agente
da transformação e da atenuação desse rigor. O Ari descreve
longamente a concepção e a seguir o desenvolvimento embrionário
de Zeir ’Anpin no seio da “mãe celeste”, seguido por seu
nascimento, infância e maturidade. A companheira de Zeir ’Anpin é
denominada Nūqbah de-Zeir’ e corresponde à entidade Malkhūt. A
descrição do conjunto das cinco configurações representa a
tentativa mais extraordinária de passar de ’En Sōf ao Deus pessoal
da religião tradicional, das qualidades e descrições em que se
assinala, uma vez mais, o domínio do mito e do pensamento gótico.
O Tiqqūn dos mundos entretanto não é conduzido a seu termo
pelos cuidados do Emanador. Um dos efeitos da quebra dos vasos
foi o de fazer cada um dos mundos descer mais em relação ao local
que lhes fora designado originalmente. Em virtude disso, o mundo
do ‘Asiyyah, que devia ser puramente espiritual, foi degradado,
misturando-se à parte inferior do mundo dos Kelippot e à matéria
física que o domina. A tarefa devolvida ao homem é precisamente
de restaurar o mundo do ‘Asiyyah a seu lugar puramente espiritual,
de separá-lo inteiramente do mundo das cascas, reunindo as
parcelas de santidade e estabelecendo enfim uma comunicação de
cada criatura com o divino que mais nada possa interromper. O
processo do Tiqqūn corresponde na terra ao processo da história
terrestre. No mundo, Israel tem a função de reunir todas as parcelas
de santidade que foram dispersas. A vinda do messias pontuará a
realização final desse processo, iniciado desde as origens. A
redenção de Israel coincide com a do mundo inteiro, da mesma
forma que seu exílio é apenas a manifestação visível do exílio de
todos os seres, a começar pelo do divino no momento da quebra
dos vasos e desde seu Tsimtsūm original.
A cabala luriânica desenvolveu também, ao lado da doutrina da
Kawwanah, destinada à elite mística, a doutrina do Gilgūl universal,
da transmigração universal das almas a partir da alma de Adão, que
englobava todas. A verdadeira história do mundo torna-se a das
migrações e das inter-relações entre as almas humanas. A
transmigração oferece ao homem a possibilidade de se liberar, ao
efetuar os preceitos que não efetuara anteriormente; ela é então um
aspecto personalizado do Tiqqūn. Como a Galūt, o exílio, a
transmigração não é simplesmente uma sanção, mas sobretudo
uma missão atribuída ao cabalista, em qualquer lugar que se
encontre, de reunir as últimas parcelas de santidade dispersas entre
os gentios.
IV. Da cabala luriânica à modernidade
A cabala luriânica respondeu tão bem às aspirações do povo
judeu que praticamente se tornou, a partir de 1630, a teologia de
todo o judaísmo, podendo-se dizer que foi a última doutrina nesse
caso. Mas o encargo messiânico da cabala provocaria em breve
outras conseqüências.
Ela contribui, com uma parcela significativa, para o nascimento e
desenvolvimento do maior movimento messiânico da história judaica
desde a queda do Templo: o de Sabbatai Zewi (1626-1676), que
sacudiu todo o mundo judaico e que, após sua conversão ao Islã em
1666, levou à formação de uma heresia sabbataísta, minando do
interior e do exterior a sociedade judaica tradicional às vésperas da
emancipação. Doutrinariamente, o movimento elaborou uma cabala
herética, reinterpretação da cabala luriânica à luz da aventura de
Sabbatai Zewi. Seu primeiro grande teórico foi Nathan de Gaza, o
profeta do movimento, especialmente em seu Sefer ha-Beriah.
Outra formulação sabbataísta de caráter dualista foi elaborada por
Abraham Miguel Cardozo, que voltou as costas à cabala luriânica.
Uma terceira orientação cabalística no mesmo meio é a de
Nehemias Hayon, que forneceu, em seu ‘Oz ’Elōhim, uma nova
leitura sabbataísta da cabala luriânica. Desnecessário dizer que a
ortodoxia judaica reagiu violentamente a esse movimento, inclusive
no plano doutrinal, como testemunham os textos de Joseph Ergaz e
de Emannuel Hay Ricchi, os dois publicados em Amsterdã. Entre os
dois campos (mas objeto das piores suspeitas em vida) assinala-se
a obra de Moisés Hayyim Luzzatto, especialmente seu Qelah Pithey
Hōkhmah (138 Portas da sabedoria), no qual o esse autor
desenvolve uma interpretação da cabala luriânica fundada na idéia
de que Deus, por seu Tsimtsūm, superou sua infinita bondade para
criar um mundo imperfeito, mas respeitando a eminente dignidade
do homem.
Após o refluxo do sabbataísmo e a decepção provocada por ele,
um segundo movimento popular inspirou-se em parte na cabala
luriânica, transpondo para o plano da afetividade o que as
categorias luriânicas tinham de intelectual demais e,
conseqüentemente, de elitista em excesso. Apontamos como tal o
hassidismo polonês e ucraniano dos séculos XVIII e XIX, que se
espalhou lentamente em torno de grandes personalidades
carismáticas, das quais a primeira, cronologicamente, foi Israel Ba‘al
Shem Tov (morto em 1760). Becht52 e seus discípulos difundiram as
idéias do Tsimtsūm e da elevação das parcelas de santidade, e
consideraram o Debeqūt como o valor religioso mais alto. O
conjunto das idéias cabalísticas foi transmutado pelos hasidim em
virtudes éticas individuais. As sefirōt e os partsūfim são encarados
hoje como modalidades ou processos inerentes à psique humana.
Em substituição aos kavvanōt luriânicos surge uma via
contemplativa que apóia-se numa técnica de meditação das letras
do alfabeto hebraico por dissociação e depois por recomposição das
palavras do texto litúrgico e da Escritura.53 Por esse uso da
linguagem, já presente em Cordovero, a alma do tsaddiq, do líder
carismático, eleva-se a Deus enquanto faz descer sobre o mundo
uma expansão de benção. O movimento esbarrou, porém, na
oposição violenta do sistema rabínico, especialmente na Lituânia.
Entretanto, as duas correntes opostas contaram em suas fileiras
com eminentes continuadores da cabala luriânica. Entre os
mitnagdim da Lituânia domina a figura de Elias, o Gaon de Vilna,
que esteve na origem de uma tradição interpretativa da qual o último
grande representante foi Salomon Eliashov (1841-1924). Entre os
hasidim, a criatividade no domínio da cabala foi especialmente
marcada na corrente Habad em torno de Shneur Zalman de Lyadi,
autor do Tanya, e de seu aluno Aaron Levi de Staroselye em seu
‘Abōdat ha-Levi. A transmissão das tradições da oração
contemplativa no espírito da cabala luriânica foi assegurada até
nossos dias em Jerusalém pela Yeshivah Bet-El, dirigida
originariamente por Shalom Mizrahi Sharabi (morto em 1777). Um
centro análogo funcionou na Polônia a partir de 1740 e durante todo
o século XIX: o famoso Klaus, de Brody.
Com a emancipação e a aculturação dos judeus no mundo
ocidental, as comunidades judaicas se afastaram progressivamente
da cabala, especialmente sob a influência do movimento da
Haskalah (Luzes), que havia apontado o hassidismo como um dos
alvos principais. Ao longo do século XIX, os adeptos da “Ciência do
Judaísmo”, sob a influência do racionalismo ambiente, vão se
interessar sobretudo pela filosofia judaica medieval, salvo honrosas
exceções. Um historiador da envergadura de H. Graetz usará
palavras bastante duras para denunciar os fantasmas veiculados,
segundo ele, pela mística no interior do judaísmo. Na Itália, Samuel-
David Luzzatto travará, em 1822, uma violenta polêmica
anticabalística em seu Vikkû’ah (Gorizia, 1857), ao qual Elias
Benamozegh se esforçará por responder em seu Ta’am le-Shad
(Livorno, 1863). Entre os adeptos da Wissenschaft, é ainda Adolphe
Franck que, em seu livro La Kabbale ou la philosophie religieuse des
Hébreux (Paris, 1843), se mostrará o mais aberto ao que a mística
judaica pode revelar de positivo.
A obra de Gershom Scholem (1897-1982) rompe com esse
desprezo. Motivado por sua ideologia sionista, Scholem vai
reconhecer na cabala uma expressão vital da existência judaica.
Escapando à tentação romântica, porém, ele empreende, sobretudo
a partir de 1925, quando é nomeado professor de Mística Judaica
na nova Universidade Hebraica de Jerusalém, o estudo da gênese,
do desenvolvimento e do conteúdo da mística judaica num espírito
estritamente científico. Assim, funda o estudo histórico-crítico da
cabala, ilustrado igualmente por I. Tishby, em Jerusalém, A.
Altmann, em Boston, e G. Vadja, na França, logo seguidos por seus
alunos e por alunos de seus alunos. Certamente, como é o caso em
todos os campos do saber científico, algumas perspectivas de
Scholem foram novamente questionadas pelo progresso da
pesquisa, mas seus trabalhos continuam o ponto de partida
obrigatório de toda investigação séria no domínio da mística judaica.
É preciso acrescentar que, no plano da experiência vivida,
sobretudo após o genocídio hitlerista, manifestou-se uma renovação
de interesse em amplas camadas do povo judeu em relação à
mística. Isso explica a reedição, nos últimos trinta anos, da maioria
dos textos fundadores e a tradução de alguns deles para as línguas
européias. Essa renovação de interesse, mesmo que nem sempre
seja da melhor qualidade, permite augurar o desenvolvimento de
nossos conhecimentos sobre a mística judaica que ainda agora se
encontram no limbo. É possível esperar que as pesquisas realizadas
atualmente nesse campo do saber, ligadas ao aprofundamento dos
conhecimentos nos outros grandes domínios da cultura judaica,
permitam alcançar uma percepção mais rica e matizada do que foi o
pensamento, a história e a vida do povo judeu.

50. Rabino (1525-1609) que foi um dos mais importantes pensadores judeus do período
pós-medieval. (N.T.)
51. O Paciente. (N.T.)
52. Becht é a sigla de Ba‘al Shem Tov. (N.A.)
53. Para uma compreensão maior do hassidismo na Europa Oriental, consultar o artigo de
Z. Gries, Hasidism: “The present state of research and some desirable priorities”, em
Numen, vol. XXXIV, 1987, p.97-108 e 179-213. (N.A.)
BIBLIOGRAFIA
1) Reportar-se antes de tudo aos textos e às obras mencionadas neste livro.
2) Consultar regularmente as revistas bibliográficas publicadas pela Biblioteca Nacional e
Universitária de Jerusalém: Qyriat Sefer para os livros e Index of Jewish Studies [RAMBI]
para os artigos.
3) Juntar a isso especialmente:

A) GENERALIDADES
Estudos:
SCHOLEM, G. Kabbalah. Jerusalém: Keter, 1974.
______. As grandes correntes da mística judaica. São Paulo: Perspectiva, 1995.
______. A cabala e seu simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 1997.
______. Le nom et les symboles de Dieu dans la mystique juive. Paris, 1983.
______. La mystique juive. Les thèmes fondamentaux. Paris, 1985.
DAN, J.; TALMAGE, F. (ed.). Studies in Jewish Mysticism. Cambridge (Mass.): AJS, 1982.
GOETSCHEL, R. (ed.). Prière, mystique et judaïsme. Paris, 1987.
IDEL, M. Cabala, novas perspectivas. São Paulo: Perspectiva, 2000.
______. Le Golem. Paris, 1992.
______. Messianism and Mysticism (em hebraico). Tel-Aviv, 1992.
______. Messianisme et mystique. Paris, 1994.
MOPSIK, C. La Cabale. Paris, 1988.
______. Cabale et cabalistes. Paris, 1996.
LIEBES, Y. Studies in Jewish Myth and Messianism. Nova York, 1993.

Antologias:
BLUMENTHAL, R. Understand Jewish Mysticism. A source Reader. 2 v. Nova York, 1978.
JACOBS, L. Jewish Mystical Testimonies. Jerusalém, 1973.
DAN, J.(ed.). The Early Kabbalah. Trad. R.C. Kiener. Nova York, 1986.
SAFRAN, A. A sabedoria da cabala. Edição do autor, 1995.
GREEN, E. (ed.). Jewish Spirituality. 2 v. Nova York, 1988.
MOPSIK, C. Les grands textes de la Cabale. Les Rites qui font Dieu. Paris, 1993.

B) APOCALÍPTICA, LITERATURA RABÍNICA, LITERATURA DA MERKABAH


Textos:
DUPONT-SOMMER, A.; PHILONENKO, M. (ed.) La Bible. Écrits intertestamentaires. Gallimard:
Paris, 1987.
NAVEH, J.; SHAKED, J. (ed.) Amulets and Magic Bowls. Aramaïc Incantations of Late
Antiquity. Jerusalém, 1985.
Sefer Yetsirah (reprod. da edição de Varsóvia, 1884). Jerusalém, 1962.
SCHAEFER, P. (ed.) Synopse zur Hekhalot Literatur. Tubingen, 1981.
______. Geniza-Fragmente zur Hekhalot Literatur. Tubingen, 1985.

Estudos:
SCHOLEM, G. Jewish Gnosticism, Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition. Nova York,
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E) A CABALA RESULTANTE DA EXPULSÃO DA ESPANHA (1492)


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Site na Internet: Journal des Études cabalistiques (C. Mopsik): http://jec.cm.fre.fr/. Inúmeros
links com outros sites.
Roland Goetschel é professor emérito da Universidade de Paris-Sorbonne.

Título original: La Kabbale

Tradução: Myriam Campello

Capa: Ivan Pinheiro Machado. Ilustração: Akg-Images/Latinstock

Preparação de original: Lia Cremonese

Revisão: Patrícia Yurgel

CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

G546c
Goetschel, Roland, 1930-
Cabala / Roland Goetschel; tradução de Myriam Campello. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2013.

(Coleção L&PM POCKET; v. 780)

Tradução de: La Kabbale


Inclui bibliografia
ISBN 978.85.254.2922-3
1. Cabala. I. Título. II. Série.

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Table of Contents
Introdução
A natureza da cabala
Capítulo I
A mística judaica da antigüidade
I. Esoterismo e mística da Apocalíptica
II. O testemunho de Qumran
III. A mística da época rabínica
IV. A literatura dos Heykhalot
V. A mística da Merkabah e o gnosticismo
VI. O Sefer Yetsirah
Capítulo II
Dos geonim ao pietismo renano
I. A mística judaica da época dos Geonim
(640-1048)
II. A influência árabo-islâmica e o pietismo na
terra do Islã
III. O pietismo judaico no mundo asquenaze
Capítulo III
O movimento cabalista de 1150 a 1492
I. A cabala da Provença e do Languedoc
II. Os cabalistas da Catalunha e de Castela
III. O Zohar e seu ambiente
IV. A cabala dos séculos XIV e XV
Capítulo IV
A visão de mundo da primeira cabala
Capítulo V
A cabala de Safed e sua herança
I. A literatura cabalística resultante da
expulsão
II. O centro de Safed
III. Isaac Luria e sua posteridade
IV. Da cabala luriânica à modernidade
Bibliografia

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