Direito Administrativo, Noções Preliminares

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Direito Administrativo I

Professor Rafael Kist (2022-1)

NOÇÕES PRELIMINARES
DE DIREITO ADMINISTRATIVO

1. FASES DO DIREITO ADMINISTRATIVO


1.1. Ausência do Direito Administrativo (sécs. XV a XVIII)
1.2. Estado Liberal de Direito (fim do séc. XVIII e séc. XIX)
1.3. Estado Social de Direito (início do séc. XX)
1.4. Estado Democrático de Direito

2. CONCEITO e SISTEMAS ADMINISTRATIVOS


2.1. Conceito
2.2. Sistemas Administrativos

3. INTERPRETAÇÃO e INTEGRAÇÃO
3.1. Interpretação do Direito Administrativo
3.2. Integração do Direito Administrativo

4. FONTES DO DIREITO ADMINISTRATIVO

5. PRINCÍPIOS DO DIREITO ADMINISTRATIVO


5.1. Força Normativa dos Princípios
5.2. Princípios em Espécie
5.3. Questões

1. FASES DO DIREITO ADMINISTRATIVO


A evolução do Direito Administrativo confunde-se com a própria evolução das nações,
partindo de um momento de total ausência de responsabilidade estatal e chegando ao
momento atual, em que a regra é a responsabilidade civil objetiva do Estado.

1.1. Ausência do Direito Administrativo (sécs. XV a XVIII)


Num primeiro momento, temos uma total ausência do Direito Administrativo no âmbito da
Administração pública: é a fase dos Estados absolutistas.

a) Estados Absolutistas: isso se deu na época dos Estados absolutos (ou absolutistas), no
período compreendido entre os sécs. XV a XVIII (anos 1.400 a 1.700).
Nesse período o Estado sequer era responsabilizado por seus atos, pois o Estado era
personificado na pessoa do rei (“O Estado sou Eu”), que se entendia ser rei em virtude da
vontade Divina (o rei era mensageiro de Deus na Terra).
É uma época em que a Igreja (clero) e o Estado (nobreza) estão muito ligados: a Igreja
efetivamente influenciava nas decisões dos Estados (países);

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b) O Rei não erra (“The king can do no wrong”): é dessa época que temos a famosa frase “O
Rei não erra”, pois a vontade do Rei era a vontade do próprio Estado (e de certa forma
também a vontade de Deus).
Sendo assim, como o rei pratica a vontade divina, ele não erra; e se o rei não erra, o Estado
também não erra; logo, o Estado nunca comete danos aos seus súditos (na época nem se
falava em cidadãos) e por isso não pode ser responsabilizado por seus atos, pois se entendia
que ele sempre age corretamente, em conformidade com o Direito.

c) Poderes concentrados: nesse período era o rei quem criava (legislativo) e impunha
(executivo) o Direito aos seus súditos (cidadãos), tendo também total controle sobre o
Judiciário, pois era o próprio rei quem nomeava os juízes.
Ou seja, os três Poderes (legislativo, executivo e judiciário) estavam concentrados na
mesma pessoa, o rei.
Somente no séc. XVIII que se conhece a separação dos Poderes, teoria que foi compilada
pelo político, filósofo e escritor francês Montesquieu (a partir de então a teoria da separação
dos Poderes começa a difundir-se mundo afora).

d) Inimigo do povo: na época dos Estados Absolutistas, o Estado é visto como um inimigo do
povo, pois concebia inúmeras arbitrariedades sem que fosse responsabilizado por isso (ao
povo cabia abaixar a cabeça e se conformar).
As pessoas eram súditos do rei, e não cidadãos de direito.

e) Inexistência do Direito Administrativo: por todo o acima visto, diz-se que nesse período
não havia Direito Administrativo.

1.2. Estado Liberal de Direito (fim do séc. XVIII e séc. XIX)


As diversas arbitrariedades cometidas pelos reis (Estado) começaram a gerar pressões e
revoltas populares, as quais buscavam limitar o enorme poder dos reis.
Chega-se então à segunda fase do Direito Administrativo, que é o seu próprio surgimento, o
seu nascimento (como visto, no período absolutista sequer havia Direito Administrativo;
agora ele existe).
Trata-se do Estado liberal de Direito, que se institucionalizou no fim do séc. XVIII, com a
Revolução Francesa (1.789), e que se preocupava em dar liberdade e igualdade (formal) às
pessoas, que agora começam a ser reconhecidas como cidadãos.
A Administração Pública deixa de ser totalmente arbitrária (absolutista) e passa a encontrar
limites em normas legais.

a) Revolução Francesa (1.789): a Revolução Francesa teve papel decisivo na limitação dos
poderes dos reis (dos Estados) e, como consequência, foi decisiva para o próprio surgimento
do Direito Administrativo e sua estrutura tal como conhecemos hoje.
Perceba-se que a Revolução Francesa foi importante para todo o Mundo não apenas do
ponto de vista do Direito: com a limitação dos poderes dos reis da época, as pessoas deixam
de ser simplesmente súditos do rei e passam a ter uma vida mais digna, na condição
cidadãos, de seres humanos.
O lema dos revolucionários franceses era “liberdade, igualdade e fraternidade” (“Liberté,
égalité, fraternité”): liberdade aos cidadãos para que pudessem trabalhar e ter lucro, sem
interferência estatal; igualdade e abolição das discriminações entre os cidadãos, fossem eles
aristocratas, burgueses ou camponeses; e fraternidade com os camponeses, classe menos
abastada da sociedade francesa.

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b) Igualdade formal: houve a conquista de um ordenamento jurídico único, no qual todos


eram iguais perante a lei (igualdade entre todos), afastando-se o risco de discriminações.
Mas era uma igualdade formal, o que significa dizer que todos os cidadãos de todas as
classes sociais eram tratados de maneira uniforme, sem observância das necessidades e
peculiaridades de cada um.
Claro que isso trouxe vantagens para os cidadãos de modo geral, mas também é inegável
que os mais abastados (ricos) acabaram sendo mais privilegiados em relação aos mais
necessitados.
A imagem abaixo bem representa a diferença entre igualdade formal e igualdade material:

c) Estado Liberal (Estado “mínimo”): aqui no Estado Liberal o que se pregava era a mínima
intervenção do Poder Público na sociedade e na economia (economia de livre mercado).
Ou seja, de um Estado absoluto, com total controle, passa-se a um Estado mínimo (liberal),
que não interfere na sociedade e deixa ela própria regular-se.

d) Estado de Direito: também é nessa fase que se concebe o Estado de Direito, que é aquele
submetido a uma Constituição, com separação dos Poderes e reconhecimento de que os
cidadãos são titulares de direitos que podem ser invocados, inclusive, em face do próprio
Estado.
Para o doutrinador Carlos Ari Sunfeld, o Estado de Direito é aquele
[...] criado e regulado por uma Constituição (isto é, por norma jurídica superior às
demais), onde o exercício do poder político seja dividido entre órgãos independentes e
harmônicos, que controlem uns aos outros, de modo que a lei produzida por um deles
tenha de ser necessariamente observada pelos demais e que os cidadãos, sendo titulares
de direitos, possam opô-los ao próprio Estado.

e) Separação dos Poderes (funções estatais): muito importante para que o Estado Liberal
florescesse foi a separação dos Poderes estatais, de modo que eles não ficaram mais
concentrados na pessoa do rei.
O rei continuou sendo detentor do Poder Executivo; o Legislativo passou a ser exercido por
parlamentares eleitos pelo povo (não vinculados ao rei); e o Poder Judiciário, apesar de
continuar sendo exercido por juízes indicados pelo rei, tornou-se independente porque tais
juízes, uma vez indicados pelo rei, não podiam mais ser destituídos por ele (os juízes
passaram a ter mandato).
Quem primeiro percebeu essa “separação” dos três poderes estatais e a sistematizou foi o
político, filósofo e escritor francês Montesquieu (ele não “criou” a teoria da separação dos
Poderes).

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Portanto, as três funções estatais – legislar, administrar e julgar – deixaram de ser exercidas
pela mesma pessoa (rei), sendo divididas entre três instituições diversas: Legislativo,
Executivo e Judiciário. Essa teoria difunde-se mundo afora.

f) Supremacia da Constituição: como visto acima, também é do Estado Liberal de Direito a


conquista da tese da supremacia da Constituição, que passa a ser a lei suprema (superior)
de todos os países.
Ou seja, a Constituição passa a ocupar o ápice da pirâmide normativa das nações e deve ser
respeitada por todos, inclusive pelo rei.

g) Direito subjetivo público: é no Estado Liberal de Direito que também se cria a figura do
direito subjetivo público, que é o poder do cidadão de exigir seus direitos em desfavor do
próprio Estado.
A pessoa deixa de ser um mero súdito e é elevada à condição de cidadão, detentor de
direitos tutelados pelo Estado, e inclusive em face do próprio Estado.

h) Direitos de primeira dimensão (geração): é nesta fase que se criam os direitos de


primeira dimensão, que decorrem da própria condição de indivíduo da pessoa (ser humano).
Os direitos de primeira geração (dimensão) exigem uma postura absenteísta do Estado
(negativa), um não agir. Vale dizer, as pessoas livram-se da plena interferência estatal,
passando a ter muito mais liberdade.

Características dos direitos de primeira dimensão:


- Plano do ser: os direitos de primeira geração dizem respeito à própria condição de
indivíduo, de ser humano (plano do ser);
- Postura negativa: esses direitos exigem uma postura absenteísta do Estado, que não deve
interferir na sociedade, deixando que todos exercem seus direitos livremente;
- Liberdades clássicas: os direitos de primeira geração são as liberdades clássicas, tais como
aquelas descritas no caput do art. 5º da Constituição brasileira, quais sejam, vida, liberdade,
igualdade, segurança e propriedade (“V.L.I.S.P”).

i) Problema: o Estado Liberal de Direito não se mostrou eficiente frente às questões sociais,
o que decorreu - justamente - da postura absenteísta (não fazer) exigida do Estado.
Na verdade, com a eclosão da Revolução Industrial (liberdade econômica), o Estado Liberal
agravou a situação da classe trabalhadora, que passou a viver em condições miseráveis
porque era explorada pelos patrões, sem que o Estado fizesse algo para proteger os
trabalhadores.
Isso também ocorreu porque, como visto, a igualdade garantida a todos era apenas formal
(e não material), sem observar as peculiaridades de cada um, oportunidade em que a classe
empresarial, mais poderosa, passou a explorar a classe trabalhadora (trabalho infantil,
jornadas extenuantes de trabalho, baixos salários…), sendo que esta não tinha “força” para
se opor àquela. Era a lei do mais forte!
Portanto, o liberalismo não conseguiu criar uma sociedade humana e justa, pois a extrema
liberdade dada à sociedade (sem qualquer interferência estatal) e a garantia da igualdade
apenas formal entre os cidadãos (sem proteção às classes mais necessitadas), mostrou-se
perversa para os menos favorecidos.

1.3. Estado Social de Direito (início do séc. XX)


Em virtude dos problemas do Estado Liberal de Direito, surge o Estado Social de Direito,
preocupado com os direitos sociais e em garantir a igualdade material entre os cidadãos
(não mais formal), que é aquela que observa a condição individual de cada um.

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Isso se dá no início do séc. XX, com a Revolução Russa (1.917), e se consolida depois do
término da Segunda Guerra Mundial (em 1.945), objetivando minimizar as mazelas da
guerra.

a) Revolução Russa (1.917): a Revolução Russa foi decorrente da insatisfação de


trabalhadores com a exploração a que eram submetidos pelos seus patrões.
Essa insatisfação espalhou-se por todo o oeste europeu (Europa Ocidental) e a burguesia,
para evitar uma revolta ainda maior, passou a defender a intervenção estatal nos campos
econômico e social para reduzir as mazelas dos trabalhadores.
É o surgimento do Estado Social.

b) Igualdade material (ou substancial): a igualdade material é aquela que não se preocupa
unicamente com a igualdade das pessoas perante a lei (igualdade formal), mas sim com a
igualdade de fato, que reclama um tratamento desigual conforme a necessidade de cada
grupo social.
Lembre-se da imagem existente acima da diferença entre igualdade formal e igualdade
material.
Vale citar a célebre frase de Rui Barbosa (1.849 a 1.923), o patrono da advocacia brasileira:
A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na
medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade
natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade... Tratar com desigualdade a iguais,
ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real.

c) Estado do bem-estar social (“Welfare State”): o Estado, então, passa a intervir nas
relações econômicas e sociais, preocupando-se com o bem-estar dos seus cidadãos.
É o Estado do bem-estar social, conhecido pela expressão inglesa Welfare State.
Ou seja, se no Estado Liberal o Estado era absenteísta (postura negativa, de não intervir na
sociedade), no Estado Social ele passa a ter uma postura ativa (positiva, de agir, intervir)
para garantir o bem-estar das classes desfavorecidas.

d) Direitos de segunda dimensão (geração): no Estado Social surgem os direitos de segunda


dimensão, que almejam melhorar a vida e o trabalho do povo, exigindo do Estado uma
atuação positiva em favor das classes exploradas.

Caracterísitcas dos direitos de segunda dimensão:


- Plano do ter: os direitos de segunda geração são direitos de conteúdo econômico e social.
No Estado Liberal reconhecem-se direitos aos súditos, transformando-os em cidadãos (plano
do ser); aqui, no Estado Social, o Estado age para que esses cidadãos tenham acesso a uma
vida digna (plano do ter);
- Postura positiva: os direitos sociais exigem uma postura proativa do Estado, que deve agir
para garanti-los;
- Direitos sociais: os direitos de segunda geração são os direitos sociais, como o direito ao
trabalho, saúde, lazer, educação, moradia.

e) Constituição do México (1917): apesar de a Constituição alemã de 1919 (conhecida como


Constituição de Weimar) ser a mais conhecida, a primeira Constituição do Mundo a
consagrar direitos sociais foi a do México, em 1917.

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f) Brasil, CF/1934: no Brasil, a primeira Constituição a reconhecer direitos sociais foi a de


1934, na época do governo de Getúlio Vargas (pai dos pobres), Presidente que,
posteriormente, consagrou os direitos trabalhistas criando a CLT.

g) Reflexão: perceba-se a diferença entre o Estado Liberal e o Estado Social:


- Estado Liberal: colocam-se barreiras ao Estado, que não deve agir (absenteísmo);
- Estado Social: criam-se tarefas ao Estado, que deve agir (prestações positivas).

h) Problema: o Estado Social de Direito hipertrofiou o Estado, pois ele é incapaz de atender a
todas as necessidades e anseios sociais - as necessidades sociais são infinitas; mas os
recursos são finitos.
Além do mais, foi no Estado Social que se consolidaram regimes autoritários e ditatoriais
como a Alemanha nazista de Hitler, a Itália fascista de Mussolini, a Espanha franquista de
Francisco Franco, a Inglaterra de Churchill e o Brasil de Vargas (pai dos pobres).
Os governantes desses regimes utilizaram o discurso do Estado Social para fazer promessas
de vida digna à população e, ao mesmo tempo, perpetuar-se no poder mediante o uso da
força, ferindo as garantias individuais e impedindo a efetiva participação popular nas
decisões políticas - no Brasil, Vargas, o ”pai dos pobres”, implantou uma ditadura.

1.4. Estado Democrático de Direito


O Estado Democrático de Direito surge como uma tentativa de corrigir as falhas verificadas
no Estado Social, que não conseguiu implementar a justiça social na plenitude que se
almejava nem garantir a efetiva participação democrática do povo no processo político, pois
- como visto - justamente nessa época surgiram diversos governos autoritários mundo afora.

a) Estado Democrático: Estado Democrático é aquele que respeita a origem do poder, que é
o próprio povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos
(democracia).
Ele surge como uma forma de barrar a propagação de regimes totalitários, nos quais os
governantes, de forma autoritária e com o uso da força, vinham perpetuando-se no poder.
Democracia é significado de participação efetiva e operante do povo na coisa pública, o que
não ocorria durante o período do Estado Social.
Vale citar a célebre definição de democracia dada por Abrahan Lincoln (1.809 a 1.865), o
16º Presidente dos EUA, ainda muito antes da consolidação dos Estados Democráticos:
“Governo do Povo,  Pelo Povo, para o Povo.”

b) Direitos de terceira dimensão (geração): é no Estado Democrático Social que surgem os


direitos de terceira dimensão, que são os direitos coletivos (difusos).

Características dos direitos de terceira dimensão:


- Plano do respeito: os direitos de terceira dimensão são direitos de conteúdo fraternal (os
de segunda dimensão são o plano do ter e de primeira dimensão são do plano do ser);
- Postura positiva: assim como os direitos de segunda dimensão, os de terceira também
exigem uma postura proativa (um agir) do Estado;
- Direitos coletivos: são os direitos transindividuais ou metaindividuais, como a
autodeterminação dos povos, moralidade administrativa, respeito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, paz.

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c) Brasil, CF/1988: nossa atual Constituição proclama expressamente o Estado Democrático


e de Direito logo em seu art. 1º: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela
união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos”.

Inclusive, nossa Constituição vai além e organiza a República Federativa do Brasil com
fundamentos presentes nas três fases do Direito Administrativo estudadas:
- Estado Liberal (primeira dimensão de direitos: art. 5º): adota a supremacia da
Constituição, limita o Poder estatal e assegura o respeito aos direitos individuais, o que exige
uma postura absenteísta por parte do Estado brasileiro;
- Estado Social (segunda dimensão de direitos: art. 6º): garante direitos sociais que exigem
uma postura positiva e dirigente do Estado;
- Estado Democrático (terceira dimensão de direitos: art. 4º): assegura a participação
popular nas decisões políticas, repudiando governos autoritários.

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2. CONCEITO e SISTEMAS ADMINISTRATIVOS

2.1. Conceito
“O Direito Administrativo é o ramo do direito público que tem por objeto as regras e os
princípios aplicáveis à atividade administrativa preordenada à satisfação dos direitos
fundamentais.” (Rafael Carvalho Rezende Oliveira)

Direito Administrativo é o “Conjunto de regras e princípios aplicáveis à estruturação e ao


funcionamento das pessoas e órgãos integrantes da administração pública, às relações entre
esta e seus agentes, ao exercício da função administrativa, especialmente às relações com
os administrados, e à gestão dos bens públicos, tendo em conta a finalidade geral de bem
atender ao interesse público.” (Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo)

➔ Ausência de codificação: diferente do que ocorre com outros ramos do Direito, que
possuem codificações próprias (CC, CPC, CP, CPP, CDC, CLT, CF…), o Direito
Administrativo não possui um código próprio - o que temos são diversas leis esparsas,
que devem ser estudadas.
Para complicar mais um pouco, cada um dos Entes Federados (União, estados, DF e
municípios) possui autonomia legislativa para editar suas próprias leis sobre Direito
Administrativo.

2.2. Sistemas Administrativos


Há dois sistemas administrativos adotados a nível mundial: francês e inglês.

a) Sistema inglês (jurisdição una): no sistema inglês é o Poder Judiciário quem decide os
conflitos de interesse de maneira definitiva (exercício da jurisdição), inclusive aqueles
envolvendo a Administração Pública.
Ou seja, somente um Poder, que é o Judiciário, exerce a jurisdição (dizer o Direito no caso
concreto, com definitividade - coisa julgada).

- Jurisdição una: significa que a jurisdição é exercida por apenas um dos Poderes estatais,
qual seja, o Poder Judiciário. É somente ele quem decide todo e qualquer conflito com
caráter de definitividade (coisa julgada).

- Exemplo: quando o INSS (autarquia do Poder Executivo) indefere um benefício


previdenciário, o segurado pode apresentar um recurso administrativo e/ou levar a questão
para o Poder Judiciário, que decidirá a celeuma com caráter de definitividade.
Se o segurado optou em apresentar um recurso administrativo e a decisão do recurso
mantém o indeferimento do benefício, ainda assim ele poderá levar a questão ao Poder
Judiciário porque, como visto, no sistema da jurisdição una, quem decide todo e qualquer
conflito com natureza de definitividade é apenas o Judiciário.

- Brasil: em nosso país é adotado o sistema inglês e sua previsão está no inc. XXXV do art.
5º da CF/1988: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito”.
O que esse inciso quer dizer é que nenhuma lei poderá prever que alguma situação não
possa ser levada à análise do Poder Judiciário, ou seja, nenhuma norma jurídica pode excluir
do Poder Judiciário a análise de qualquer lesão ou ameaça a direito.

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Ex.: a Lei Nacional n.º 8.213/1991 (benefícios do INSS) jamais poderá prever que a decisão
do INSS sobre algum benefício (aposentadoria, auxílio-doença, pensão por morte…) seja
definitiva, vale dizer, que não possa ser levada à análise do Poder Judiciário.

b) Sistema francês (dualidade de jurisdição, contencioso/jurisdição administrativa): já no


sistema francês, temos tanto o Poder Judiciário quanto o Poder Executivo resolvendo
conflitos com caráter de definitividade, ou seja, ambos exercem a jurisdição.
O que acontece é que existe um “Conselho do Estado” (vinculado ao Poder Executivo), o qual
é competente para julgar com definitividade todos os conflitos que envolvem a
Administração Pública; todos os demais conflitos, ou seja, que não envolvem o Poder
Executivo (a Administração pública), são de competência do Poder Judiciário.

- Conselho do Estado + Poder Judiciário:


- Conselho do Estado (Poder Executivo): é o Conselho de Estado quem julga com caráter
de definitividade as controvérsias envolvendo o Poder Público. Suas decisões fazem
coisa julgada administrativa (a exemplo da coisa julgada judicial) e não podem ser
levadas ao Poder Judiciário;
- Poder Judiciário: ao Poder Judiciário cabe julgar todos os demais conflitos de interesse,
ou seja, aqueles que não envolvem o Poder Público.

- Dualidade de jurisdição, contencioso administrativo ou jurisdição administrativa: como o


nome sugere e conforme visto, aqui há dois Poderes (Judiciário e Executivo) que exercem a
jurisdição e decidem os conflitos com caráter de definitividade. Tanto o Poder Judiciário
quanto o Poder Executivo exercem a jurisdição.

- Separação dos Poderes: o sistema francês leva a separação dos Poderes ao extremo, pois
não permite que o Poder Judiciário analise ou decida sobre controvérsias que envolvam a
Administração Pública (o Poder Executivo).

- Exemplo: se o sistema francês fosse adotado no Brasil, a discussão sobre o indeferimento


do benefício previdenciário pelo INSS não poderia ser levada ao Poder Judiciário, mas sim ao
Conselho do Estado (no âmbito do Poder Executivo).

- Crítica: no sistema do contencioso administrativo (francês) acaba não havendo


imparcialidade, pois é o próprio Poder Executivo - através do seu Conselho do Estado - quem
julga os conflitos de interesse nos quais é parte interessada.

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3. INTERPRETAÇÃO e INTEGRAÇÃO

3.1. Interpretação do Direito Administrativo


A interpretação, como o próprio nome sugere, diz respeito ao alcance das normas jurídicas,
interpretando-se o que elas pretendem, o que elas objetivam.
No Direito Administrativo utilizam-se os métodos tradicionais de interpretação do Direito, ou
seja, os mesmos métodos que são utilizados em todos os demais ramos do Direito, que
seguem abaixo.

a) Interpretação lógico-gramatical: esse é o método de interpretação que busca


compreender os significados das palavras contidas no texto legal.
Havendo uma obscuridade no texto legal, a interpretação lógico-gramatical limita-se a
buscar o sentido do texto mediante o significado literal das palavras; procura-se descobrir
qual deve ou pode ser o sentido de uma frase, dispositivo ou norma.

b) Interpretação histórica-evolutiva: nessa modalidade, o intérprete busca descobrir a


vontade atual da lei e não a vontade pretérita do legislador.
Essa técnica de interpretação deixa transparecer que o direito é dinâmico e que a norma não
deve ficar estática no tempo: ela deve ser interpretada de maneira mutável, sofrendo as
influências das transformações ocorridas na sociedade.
Ex.: o crime de adultério, que era previsto no art. 240 do CP, foi revogado pela Lei Nacional
n.º 11.106, no ano de 2005; mas muito antes disso esse crime já não era punido porque se
entendia que punir criminalmente alguém (pena de prisão) por ter cometido adultério era
algo desproporcional com a evolução da sociedade.

c) Interpretação sistemática: para este critério, as normas jurídicas integram um sistema


dotado de unidade e harmonia e, por isso, não podem ser interpretadas isoladamente.
Segundo a doutrina de Carlos Maximiliano, “consiste o Processo Sistemático em comparar o
dispositivo sujeito a exegese [interpretação] com outros do mesmo repositório ou de leis
diversas, mas referentes ao mesmo objeto”.
Ex.: as leis do JEC são silentes sobre a contagem dos prazos em dias úteis, mas o CPC é
expresso de que somente os dias úteis devem ser considerados (art. 219, caput); como o
art. 92 da Lei do JEC (n.º 9.099/1999) menciona que as disposições do CPC se aplicam de
maneira subsidiária, a doutrina e a jurisprudência passaram a entender que os prazos do JEC
também devem ser contados em dias úteis.

Código de Processo Civil


Art. 219. Na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão
somente os dias úteis.
Parágrafo único. [...]

Lei Nacional n.º 9.099/1999


Art. 92. Aplicam-se subsidiariamente as disposições dos Códigos Penal e de Processo
Penal, no que não forem incompatíveis com esta Lei.

d) Interpretação teleológica: a interpretação teleológica é aquela que busca revelar a


finalidade da norma, o fim a que a norma se dirige.
Aqui o intérprete deve levar em consideração valores como o bem comum, o ideal de justiça,
a ética, a liberdade, a igualdade… Nesse sentido, o art. 5º da LINDB.

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Ex.: o art. 1.514 do CC diz que o casamento é entre homem e mulher; mas na atualidade se
reconhece o direito ao casamento dos casais homoafetivos, conforme definido pelo STF.

Lei de Introdução às NOrmas do Direito Brasileiro (LINDB)


Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às
exigências do bem comum.

Código Civil
Art. 1.514. O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam,
perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados.

➔ Primazia: quando a utilização dos métodos conduz a resultados diferentes no caso


concreto, sobretudo nos casos “difíceis”, a primazia é pelos métodos sistemático e
teleológico.

3.2. Integração do Direito Administrativo


A integração diz respeito ao suprimento de lacunas existentes nas normas jurídicas, para o
quê são utilizados a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, conforme
determina o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).

LINDB
Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os
costumes e os princípios gerais de direito.

Isso ocorre em todos os ramos do Direito e, claro, também no Direito Administrativo.

a) Espécies de analogia: a analogia pode ser buscada em outra norma jurídica ou nos
princípios jurídicos:

- Analogia legal ou “legis”: na analogia legal, aplica-se para a lacuna uma regra jurídica que
regula um caso semelhante. Ex.: o casamento homoafetivo não é regulado por lei; dessa
forma, decidiu-se que para o casamento homoafetivo devem aplicar-se as regras legais
relativas ao casamento heteroafetivo;

- Analogia jurídica ou “iuris”: aqui buscam-se nos princípios a norma para suprir a lacuna.
Ex.: caso do lançamento de anões X dignidade da pessoa humana (França, 1995).

b) Peculiaridades: todavia, no Direito Administrativo o uso da analogia possui as seguintes


peculiaridades que devem ser observadas:

- Normas de Direito público: para suprir lacunas no Direito Administrativo, somente pode ser
buscada analogia em normas de Direito público (nunca em normas de Direito privado).
Ex.: para regular a prescrição administrativa nos casos em que a lei é omissa, o STJ afastou
a analogia com o Direito Civil (arts. 205-206, CC), fixando a tese de que para as omissões o
prazo prescricional deve ser de 5 anos, em conformidade com o art. 1º do Decreto-lei n.º
20.910/1932.

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- Normas do próprio Ente: a analogia também deve ser buscada em normas editadas pelo
mesmo Ente Federado (U+E+DF+M), pois cada um dos Entes possui autonomia no âmbito
do Direito Administrativo.
Ex.: STJ não admitiu aplicar o instituto da recondução, previsto para os servidores federais
(art. 29, Lei Federal n.º 8.112/1990), em favor de servidor estadual quando a lei do referido
Estado for omissa.

- Vedado “in malan partem”: por fim, no Direito Administrativo a analogia não pode ser
utilizada de modo que prejudique o cidadão, ou seja, in malan partem.
Portanto, a analogia, seja legal ou jurídica, não pode ser utilizada para prejudicar o
administrado.

Decreto-lei n.º 20.910/1932.


Art. 1º As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e
qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a
sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se
originarem.

Lei Federal n.º 8.112/1990


Art. 29. Recondução é o retorno do servidor estável ao cargo anteriormente ocupado e
decorrerá de:
I - inabilitação em estágio probatório relativo a outro cargo;
II - reintegração do anterior ocupante.
Parágrafo único. Encontrando-se provido o cargo de origem, o servidor será aproveitado
em outro, observado o disposto no art. 30.

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4. FONTES DO DIREITO ADMINISTRATIVO


Fonte é o ponto de partida: os meios e as formas de revelação do Direito.
Fonte é o lugar de onde o Direito vem, de onde ele nasce.
Em qualquer ramo do Direito estudam-se as suas fontes (não apenas no Direito
Administrativo).

a) Lei (normas jurídicas): a lei como fonte do Direito Administrativo deve ser considerada em
seu sentido amplo para abarcar todas as espécies de normas jurídicas, o que engloba
tratados internacionais, a Constituição, leis infraconstitucionais (ordinária, complementar e
delegada) e até mesmo normas infralegais (decretos, regulamentos…).
Ou seja, toda e qualquer espécie de norma jurídica é considerada fonte do Direito
Administrativo.

b) Doutrina: doutrina são as opiniões dos estudiosos sobre as normas e os institutos do


Direito.
A doutrina não tem a mesma força vinculativa que as leis (normas jurídicas) porque, como
dito, são apenas opiniões emitidas sobre determinados temas.
Mesmo assim, a doutrina com certeza influencia o legislador, o administrador público e o
julgador (Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário), sendo, por isso, também considerada
como fonte do Direito Administrativo.

c) Jurisprudência: jurisprudência são decisões reiteradas dos Tribunais sobre determinado


tema, que acaba influenciando a atuação da Administração Pública.
Ou seja, a partir do momento em que os Tribunais começam a decidir um tema de uma
determinada forma, a tendência é que a Administração Pública passe a adotar aquele
entendimento, sendo a jurisprudência, por isso, considerada como fonte do Direito
Administrativo.

Inclusive, no Brasil a jurisprudência ganhou força como fonte de todo o Direito em virtude
dos dois institutos que seguem:
- ADIn e ADCon (art. 102, § 2º, CF): as decisões proferidas pelo STF nas ações diretas de
inconstitucionalidade (ADIn) e nas ações declaratórias de constitucionalidade (ADCon)
possuem eficácia erga omnes e efeito vinculante por expressa disposição Constitucional. Ou
seja, é uma jurisprudência (decisão de Tribunal) que deve ser obrigatoriamente observada.
Ver, também, a Lei Nacional n.º 9.868/1999;
- Súmulas vinculantes (art. 103-A, CF): as súmulas vinculantes editadas pelo STF (Poder
Judiciário) também são de observância obrigatória pela Administração Pública.

Constituição Federal
Art. 102. [...]
§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas
ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade
produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do
Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e
municipal.

Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante
decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria
constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá
efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração

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pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à
sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§ 1º [...]

Lei Nacional n.º 9.868/1999


Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação
declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.

d) Costume: costumes são comportamentos reiterados (repetidos) num mesmo sentido.


Nem todos os estudiosos concordam que os costumes sejam fontes do Direito
Administrativo, mas há quem defenda que eles são capazes sim de gerar regras a serem
observadas.

e) Precedentes administrativos: são decisões administrativas válidas (de acordo com as


normas jurídicas) que passam a ser observadas em casos futuros semelhantes pela mesma
entidade da Administração Pública que proferiu a decisão (para entender: é uma espécie de
“jurisprudência administrativa”).

Mas para que os precedentes administrativos possam ser considerados fontes do Direito
Administrativo, devem estar presentes dois requisitos:
- Legalidade do precedente: a decisão administrativa que passa a ser utilizada como um
precedente administrativo deve estar de acordo com a lei (as normas jurídicas), pois a
Administração Pública não pode ser obrigada a seguir precedentes ilegais, mesmo que
emanados dela própria (a autotutela administrativa permite que a Administração, a todo
momento, revise seus atos e altere seus posicionamentos, sobretudo quando ilegais);
- Inexistência de justificativa relevante e motivada para alterar o precedente: também em
decorrência da autotutela administrativa, se houver motivos relevantes e justificáveis a
Administração Pública pode, a qualquer momento, alterar seus precedentes.

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5. PRINCÍPIOS DO DIREITO ADMINISTRATIVO

5.1. Força Normativa dos Princípios

a) Positivismo: o Positivismo é uma corrente filosófica que surgiu na França no começo do


século XIX, idealizada pelo pensador Auguste Comte (também foi expoente John Stuart Mill).
Esta corrente filosófica ganhou força na Europa e perdurou até o início do séc. XX.
O Positivismo jurídico reconhecia o caráter apenas secundário dos princípios, ou seja, os
princípios somente eram utilizados nos casos em que houvesse lacuna na lei (omissão).
Isso porque o positivismo está diretamente ligado à lei escrita, ao Direito positivado (daí o
nome dessa escola filosófica: Positivismo).
Ocorre que esse modo de pensar permitiu as práticas arbitrárias praticadas durante a 2ª
Guerra Mundial, sobretudo pelo regime Nazista, pois tais atos estavam legitimadaos pelas
leis de então. Ou seja, foram aprovadas leis permitindo a realização das arbitrariedades
praticadas durante a guerra.

b) Pós-positivismo: para que se pudesse combater as leis e práticas arbitrárias da 2ª Guerra


Mundial, passa-se a reconhecer a normatividade primária dos princípios.
Dessa forma, os princípios passam a ser considerados normas jurídicas ao lado das leis
(numa mesma hierarquia), sendo desde logo invocados para controlar a atuação do Estado,
e não mais apenas de modo secundário (quando houvesse lacuna na lei).
Esse movimento é conhecido como Pós-positivismo.

c) Ronald Dworkin (filósofo estadunidense): mas o que são regras e princípios? Quais as
diferenças entre eles?
É o filósofo norte-americano Ronald Dworkin quem formula a teoria que passou a ser
utilizada para diferenciar regras e princípios:

- Diferenças: enquanto as regras são normas concretas (ex.: homem, mulher, prazos…), os
princípios são normas abstratas (dignidade da pessoa humana, solidariedade…).

- Regras: segundo Dworkin, as regras devem ser analisadas no plano da validade, do tudo
ou nada.
Isso significa que, se houver um conflito entre duas ou mais regras, uma será utilizada em
detrimento da outra, vale dizer, utiliza-se uma e afasta-se completamente a outra.
Além do mais, a regra que não foi utilizada num caso específico (no caso concreto em
análise), também não servirá mais para qualquer outro caso futuro.

- Princípios: de modo diverso, Dworkin fixou que os princípios devem ser analisados numa
dimensão de peso ou importância (não de validade).
Isso significa que, havendo um conflito entre princípios num caso concreto, deve-se fazer
uma ponderação entre eles para observar qual deles é o mais importante para aquela
situação.
E, de maneira diversa ao que acontece com as regras, o princípio que não prevaleceu em
determinado caso concreto continua válido e existente e pode ser utilizado em outros casos
futuros.
Ex.: princípios da legalidade e da igualdade nos casos “taxi X Uber” e “licença maternidade X
paternidade”.

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5.2. Princípios em Espécie


Os dois princípios mais importantes – as pedras de toque do Direito Administrativo – são a
supremacia do interesse público e a indisponibilidade do interesse público.
Diz-se, inclusive, que todos os demais princípios de Direito Administrativo emanam desses
dois.

Também são muito conhecidos no Direito Administrativo os princípios constantes do caput do


art. 37 da CF/1988, os quais formam o mnemônico “L.I.M.P.E”.

Constituição Federal
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
I - [...]

Mas também há diversos princípios de Direito Administrativo expressamente previstos em


outras normas jurídicas, merecendo destaque aqueles constantes do caput do art. 2º da Lei
Federal n.º 9.784/1999.

Lei Federal n.º 9.784/1999


Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade,
finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa,
contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. [...]

a) Princípio da supremacia do interesse público: é um dos pilares do Direito Administrativo


tradicional e significa que o interesse público possui supremacia sobre o interesse privado.
Ou seja, o interesse da coletividade (público) deve sobrepor-se ao interesse egoístico de
apenas um indivíduo (privado): o interesse privado jamais deve ser colocado acima do
interesse público.

Mas o interesse público possui duas categorias:


- Interesse público primário: é a satisfação das necessidades públicas coletivas, como saúde,
educação, segurança, transporte, bem-estar, justiça… O interesse público primário é o
interesse da coletividade, da sociedade, dos cidadãos (que são a razão de ser do Estado),
sendo esse o interesse que possui supremacia sobre o interesse privado;
- Interesse público secundário: já o interesse público secundário é o interesse do próprio
Estado, da própria Administração Pública, que é implementado para que ele possa atender
ao interesse público primário. Ex.: compra de mesas e cadeiras para os servidores do INSS
trabalharem, pagamento de aluguel do prédio onde funciona um CRAS, pagamento da
remuneração dos servidores públicos…
- Supremacia: o interesse público que possui supremacia sobre o interesse privado é apenas
o interesse público primário, não o secundário. Dessa forma, quando se trata de interesse
público secundário, não existe supremacia, mas sim igualdade entre os interesses públicos e
os interesses privados envolvidos. Ex.: a Administração pública não pode deixar de pagar a
remuneração dos seus servidores ou o aluguel do prédio onde funciona o CRAS (interesses
públicos secundários) alegando que necessita do dinheiro para investir na saúde em virtude
da Covid-19 (interesse público primário).

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b) Princípio da indisponibilidade do interesse público: como o interesse público é o interesse


da coletividade, ele não se encontra à livre disposição de quem quer que seja, sendo
inapropriável.
Os órgãos públicos, os gestores, os governantes, os políticos, os agentes públicos… não são
titulares do interesse público; eles devem zelar para que o mesmo seja sempre observado,
não podendo afastar as normas públicas conforme seu livre arbítrio (isso pode ser feito no
âmbito privado; jamais no âmbito público).

c) Princípio da “legalidade” (juridicidade): significa que a atuação administrativa está


pautada pela lei, vale dizer, a Administração pública sempre deve observar a lei.
Aqui temos a famosa frase do doutrinador Hely Lopes Meirelles, que bem explica como o
princípio da legalidade funciona no âmbito da Administração pública:

Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na


administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública
só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa “poder fazer
assim”; para o administrador público significa “deve fazer assim”.

- Princípio da juridicidade (reinterpretação): com o pós-positivismo, o princípio da legalidade


passou a ser lido como princípio da juridicidade, também chamado de “bloco de legalidade”.
Isso significa que a atuação administrativa deve ser pautada não apenas pelo cumprimento
da “lei” (em sentido estrito), mas de todas as normas jurídicas (Constituição, tratados
internacionais, leis, normas infralegais…), inclusive pelo respeito aos princípios que regem
toda a atuação administrativa (que são os princípios que estamos estudando).

d) Princípio da impessoalidade: o princípio da impessoalidade possui duas acepções,


abrangendo a igualdade e a proibição de promoção pessoal. Vejamos:

- Igualdade ou isonomia: significa que a Administração Pública deve dispensar tratamento


isonômico aos particulares, não podendo discriminar nem privilegiar alguém, salvo quando
houver expressa previsão legal para esse tratamento diferenciado.
Ex.: processos judiciais de idosos têm preferência sobre os demais (art. 71 da Lei Nacional
n.º 10.741/2003), até 20% das vagas de concursos públicos devem ser reservadas para
portadores de deficiência (art. 5º, § 2º, Lei Federal n.º 8.112/1990).

- Proibição de promoção pessoal (art. 37, § 1º, CF): as realizações públicas são feitos da
entidade administrativa e não dos agentes públicos que ali trabalham.
Ou seja, não é o prefeito, o governador, o presidente da Câmara… quem faz determinada
realização, mas sim o Município, o Estado, o Poder Legislativo Municipal…

Lei Nacional n.º 10.741/2003


Art. 71. É assegurada prioridade na tramitação dos processos e procedimentos e na
execução dos atos e diligências judiciais em que figure como parte ou interveniente
pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, em qualquer instância.
§ 1º [...]

Lei Federal n.º 8.112/1990


Art. 5º [...]
§ 2º Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em
concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a
deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por
cento) das vagas oferecidas no concurso.

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Constituição Federal
Art. 37. [...]
§ 1º A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos
deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo
constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades
ou servidores públicos.

e) Princípio da moralidade (art. 2º, púnico, IV, Lei Federal n.º 9.784/1999): a atuação
administrativa, além de respeitar a lei (princípio da juridicidade: bloco de legalidade), deve
ser ética, leal, séria, proba, de boa-fé…
Ex.: vedação do nepotismo (SV 13/STF), ação popular (Lei Nacional n.º 4.717/1965), ação
civil pública (Lei Nacional n.º 7.347/1985), Lei de Improbidade Administrativa (Lei Nacional
n.º 8.429/1992), Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar Nacional n.º 135/2010), Lei
Anticorrupção (n.º 12.846/2013)…

Lei Federal n.º 8.112/1990


Art. 2º [...]
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os
critérios de:
IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé;

Súmula Vinculante 13
A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por
afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma
pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício
de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração
pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a
Constituição Federal.

Lei Nacional n.º 4.717/1965


Regula a ação popular.

Lei Nacional n.º 7.347/1985


Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente,
ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico (VETADO) e dá outras providências.

Lei Nacional n.º 8.429/1992


Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento
ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta,
indireta ou fundacional e dá outras providências.

Lei Complementar Nacional n.º 135/2010


Altera a Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com
o § 9º do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e
determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a
proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.

Lei Nacional n.º 12.846/2013


Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de
atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências.

f) Princípio da publicidade: a publicidade nada mais é do que a transparência que deve haver
em praticamente todos os atos administrativos.
É a exteriorização e divulgação dos atos do Poder Público para conhecimento da população.

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A publicidade é a regra, pois vige o direito fundamental à informação: art. 5º, inc. XXXIII, da
CF e Lei de Acesso à Informação (LAI, n.º 12.527/2011).
Há vários dispositivos e instrumentos legais que nos garantem o acesso às informações
públicas: direito de petição ao Poder Público (alínea ‘a’ do inc. XXXIV do art. 5º da CF),
direito de obter certidões do Poder Público (alínea ‘b’ do inc. XXXIV do art. 5º da CF),
mandado de segurança individual e coletivo (inc. LXIX do art. 5º da CF), habeas data (inc.
LXXII do art. 5º da CF)…

Mas nem todos os atos do Estado são públicos, havendo exceções ao princípio da
publicidade, nas quais vigorará o sigilo, que estará presente em três situações:
- Informações imprescindíveis à segurança do Estado (art. 23 da LAI). Ex.: ação de
treinamento de tropas e testes de materiais bélicos;
- Informações imprescindíveis à segurança da sociedade (art. 23 da LAI). Ex.: transporte de
preso de alta periculosidade não precisa, nem deve, ser divulgado;
- Informações pessoais relacionadas à intimidade, vida privada, honra e imagem da pessoa
(art. 31 da LAI). Ex.: processos judiciais que tratam sobre “[...] casamento, separação de
corpos, divórcio, separação, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e
adolescentes” (art. 189, II, CPC).

Constituição Federal
Art. 5º [...]
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas,
assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação;
XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse
particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena
de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da
sociedade e do Estado;
XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou
abuso de poder;
b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e
esclarecimento de situações de interesse pessoal;
LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não
amparado por "habeas-corpus" ou "habeas-data", quando o responsável pela ilegalidade
ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de
atribuições do Poder Público;
LXXII - conceder-se-á "habeas-data":
a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante,
constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter
público;
b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial
ou administrativo;

Art. 37. [...]


§ 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta
e indireta, regulando especialmente:
II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de
governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII;

Art. 216. [...]


§ 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação
governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.

Lei Nacional n.º 12.527/2011


Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º , no inciso II do § 3º do
art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de

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dezembro de 1990; revoga a Lei nº 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei nº


8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências.

Art. 23. São consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e,


portanto, passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito
possam:
I - pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional;
II - prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do
País, ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e
organismos internacionais;
III - pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população;
IV - oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País;
V - prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas;
VI - prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou
tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico
nacional;
VII - pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou
estrangeiras e seus familiares; ou
VIII - comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização
em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.

Art. 31. O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e
com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às
liberdades e garantias individuais.
§ 1º As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida
privada, honra e imagem:
I - terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo
máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos
legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; e
II - poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal
ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem.
§ 2º [...]

g) Princípio da eficiência: o princípio da eficiência foi inserido no caput do art. 37 da CF pela


EC n.º 19/1998, conhecida como reforma administrativa, e marca a substituição da
Administração Pública burocrática (preocupada com os processos) pela gerencial
(preocupada com os resultados).
Segundo o princípio da eficiência, a medida administrativa será eficiente quando
implementar, com a maior intensidade e o menor curto possíveis, os resultados
legitimamente esperados.

h) Princípio da presunção de legitimidade: os atos administrativos praticados pelo Poder


Público presumem-se legítimos, ou seja, presume-se que estão fundados e amparados em
lei, que são legais (praticados observando as normas jurídicas).
Isso significa que os atos administrativos não precisam passar pelo crivo do Poder Judiciário
para que possam produzir efeitos. Ex.: multa de trânsito.
Mas se trata apenas de uma presunção; logo, se o destinatário do ato quiser levar a
discussão ao Poder Judiciário, poderá fazê-lo, até porque, conforme já visto, no Brasil
adotou-se o sistema inglês de jurisdição (jurisdição una), no qual é o Poder Judiciário quem
decide todo e qualquer conflito de interesses com caráter de definitividade (art. 5º, XXXV, da
CF).

Constituição Federal
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

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XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

i) Princípio da continuidade: esse princípio está ligado à prestação dos serviços públicos, que
não pode ser interrompida em virtude da necessidade constante de satisfação das
necessidades dos cidadãos decorrente dos seus direitos fundamentais.
Há duas acepções envolvendo o princípio da continuidade.

- Necessidade absoluta (maneira contínua): quando se tratar de necessidade absoluta, o


serviço público deve ser prestado sem qualquer interrupção.
Quem vai dizer quais serviços são de necessidade absoluta são a lei, a jurisprudência e a
doutrina, pois não se trata de um conceito estanque: o que não é prioridade hoje, pode ser
daqui a 10 anos; o que era prioridade em 2000, talvez hoje não seja mais.
Ex.: atualmente não há dúvidas de que a internet é uma necessidade absoluta, sobretudo
em decorrência da pandemia da Covid-19. Também são de absoluta necessidade e, portanto,
não passíveis de interrupção: polícias, hospitais, água potável, energia elétrica…

- Necessidade relativa (maneira periódica): doutra banda, são de necessidade relativa os


serviços públicos que podem ser prestados de maneira periódica, em dias e horários pré-
determinados pelo Poder Público.
Ex.: museus, bibliotecas públicas…
Portanto, o que não pode ser interrompido são os serviços públicos qualificados como de
necessidade absoluta.

Também há três outras importantes questões envolvendo a continuidade dos serviços


públicos.

➔ Interrupção em caso de inadimplemento do usuário (art. 6º, § 3º, II, Lei Nacional n.º
8.987/1995): o serviço público, mesmo o de necessidade absoluta, pode ser interrompido
quando houver inadimplemento do usuário, pois a continuidade da sua prestação
pressupõe a contraprestação pecuniária.
- Exceção (direitos fundamentais essenciais): mas a interrupção não pode ocorrer,
mesmo havendo inadimplemento do usuário, quando afetar direitos fundamentais
essenciais. Vejamos dois exemplos para melhor compreender:
Ex1: a concessionária de energia elétrica não pode cortar o fornecimento da energia
quando há na casa pessoa doente (home care) que sobrevive com a ajuda de
aparelhos elétricos.
Ex2: também não pode ocorrer o corte de energia ou água potável de um hospital
público (mas pode cortar de um ginásio de esportes ou de uma piscina pública).

➔ Greve dos servidores públicos: o STF reconheceu o direito de greve dos servidores
públicos estatutários, determinando a aplicação analógica da Lei Nacional n.º 7.783/1989
(art. 37, VII, CF), mas desde que não haja paralisação total da atividade pública, em
atenção ao princípio da continuidade do serviço público.
Dessa forma, a greve não pode ser de todos os servidores públicos (100%) ao mesmo
tempo, pois isso causaria interrupção dos serviços públicos prestados aos cidadãos.

➔ “Exceptio non adimpleti contractus”: a exceção do contrato não cumprido, prevista no art.
476 do CC, não pode ser invocada pelas concessionárias de serviço público contra a
Administração Pública.
Portanto, mesmo que o Poder Público esteja em débito com a concessionária (empresa
privada), esta deve ingressar com ação judicial para que possa parar de prestar o serviço
público (art. 39, Lei Nacional n.º 8.987/1995).

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Ex.: a empresa que está construindo um prédio para a Administração Pública não pode
parar a obra em virtude do atraso do Poder Público no pagamento das parcelas do preço;
para tanto, a empresa deve propor uma ação judicial no Poder Judiciário.

Código Civil
Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua
obrigação, pode exigir o implemento da do outro.

Lei Nacional n.º 8.987/1995


Art. 6º [...]
§ 3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de
emergência ou após prévio aviso, quando:
I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,
II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.

Art. 39. O contrato de concessão poderá ser rescindido por iniciativa da concessionária, no
caso de descumprimento das normas contratuais pelo poder concedente, mediante ação
judicial especialmente intentada para esse fim.
Parágrafo único. Na hipótese prevista no caput deste artigo, os serviços prestados pela
concessionária não poderão ser interrompidos ou paralisados, até a decisão judicial
transitada em julgado.

j) Princípio da autotutela: o princípio da autotutela é sinônimo de fiscalização e significa que


o Poder Público tem o poder-dever de rever seus próprios atos a todo instante (Súmulas 346
e 473/STF e arts. 53-54 da Lei Federal n.º 9.784/1999).

Com base na autotutela, a Administração Pública tem as seguintes prerrogativas:


- Anular no prazo de 5 anos: a Administração deve anular seus atos administrativos quando
eles forem ilegais (contrários às normas jurídicas). A anulação deve ser realizada no prazo
decadencial de até cinco anos e terá efeito ex tunc (retroativo);
- Revogar: a Administração pode revogar seus atos administrativos quando inoportunos ou
inconvenientes, por questões de mérito. A revogação pode ser realizada a qualquer tempo
(mesmo que tenham se passado mais de cinco anos) e terá efeito ex nunc (apenas
prospectivos).

Súmulas
S. 346/STF. A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.
S. 473/STF. A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que
os tornam ilegais, porque dêles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de
conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos
os casos, a apreciação judicial.

Lei Federal n.º 9.784/1999


Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de
legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os
direitos adquiridos.

Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram


efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que
foram praticados, salvo comprovada má-fé.
§ 1º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da
percepção do primeiro pagamento.
§ 2º Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade
administrativa que importe impugnação à validade do ato.

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k) Princípio da proporcionalidade ou razoabilidade (art. 2º, púnico, VI, Lei Federal n.º
9.784/1999): a proporcionalidade e a razoabilidade são distintas, mas possuem um ponto
em comum, qual seja, limitar os excessos da Administração Pública.
A proporcionalidade teve origem nas teorias jusnaturalistas dos sécs. XVII e XVIII, as quais
reconheceram direitos imanentes ao homem (ser humano), oponíveis ao Estado.
Já a razoabilidade nasce e se desenvolve no sistema da common low (costumes), sobretudo
nos EUA, como forma de proteção dos indivíduos contra os abusos do Estado.

O ponto comum e a importância da proporcionalidade e da razoabilidade é que ambas buscam limitar os excessos que
possam ser cometidos pelo Poder Público, sobretudo quando estivermos diante de atos discricionários, que são
aqueles sujeitos à oportunidade e conveniência da Administração Pública, onde ela possui margem de escolha (≠ ato
vinculado, no qual não há margem de escolha).
Há divergências, mas prevalece a tese da fungibilidade entre ambas, ou seja, que o princípio
da proporcionalidade pode substituir o da razoabilidade, e vice-versa (que são iguais).

Lei Federal n.º 9.784/1999


Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade,
finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa,
contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os
critérios de:
VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções
em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse
público;

l) Princípio da motivação (art. 2º, púnico, VII, Lei Federal n.º 9.784/1999): o princípio da
motivação significa que o Poder Público, ao praticar os atos administrativos, deve indicar as
razões (motivar) pelas quais o faz.
Entretanto, é majoritário o entendimento de que a motivação não é obrigatória, nem nos
atos vinculados, nem nos atos discricionários: o que é obrigatório em todo e qualquer ato
administrativo é o elemento motivo (situação de fato + fundamento legal), que estudaremos
no tópico “Atos Administrativos” e que não se confunde com o princípio da motivação.

Lei Federal n.º 9.784/1999


Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade,
finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa,
contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os
critérios de:
VII - indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão;

m) Outros: por fim, há uma série de outros princípios jurídicos aplicáveis no Direito
Administrativo, dentre os quais se pode citar:
- Princípio da consensualidade e participação;
- Princípio da segurança jurídica;
- Princípio da proteção da confiança;
- Principio da boa-fé.

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5.3. Questões
Q1003643
Ano: 2019 Banca: FGV Órgão: OAB Prova: FGV - 2019 - OAB - Exame de Ordem Unificado
XXIX - Primeira Fase
Luciana, imbuída de má-fé, falsificou documentos com a finalidade de se passar por filha de
Astolfo (recentemente falecido, com quem ela não tinha qualquer parentesco), movida pela
intenção de obter pensão por morte do pretenso pai, que era servidor público federal. Para
tanto, apresentou os aludidos documentos forjados e logrou a concessão do benefício junto
ao órgão de origem, em março de 2011, com registro no Tribunal de Contas da União, em
julho de 2014. Contudo, em setembro de 2018, a administração verificou a fraude, por meio
de processo administrativo em que ficou comprovada a má-fé de Luciana, após o devido
processo legal.
Sobre essa situação hipotética, no que concerne ao exercício da autotutela, assinale a
afirmativa correta.
*( ) A) A administração tem o poder-dever de anular a concessão do benefício diante da
má-fé de Luciana, pois não ocorreu a decadência.
( ) B) O transcurso do prazo de mais de cinco anos da concessão da pensão junto ao órgão
de origem importa na decadência do poder-dever da administração de anular a concessão do
benefício.
( ) C) O controle realizado pelo Tribunal de Contas por meio do registro sana o vício do ato
administrativo, de modo que a administração não mais pode exercer a autotutela.
( ) D) Ocorreu a prescrição do poder-dever da administração de anular a concessão do
benefício, na medida em que transcorrido o prazo de três anos do registro perante o Tribunal
de Contas.

Q665239
Ano: 2016 Banca: FGV Órgão: OAB Prova: FGV - 2016 - OAB - Exame de Ordem Unificado -
XX - Primeira Fase
Determinada empresa apresenta impugnação ao edital de concessão do serviço público
metroviário em determinado Estado, sob a alegação de que a estipulação do retorno ao
poder concedente de todos os bens reversíveis já amortizados, quando do advento do termo
final do contrato, ensejaria enriquecimento sem causa do Estado.
Assinale a opção que indica o princípio que justifica tal previsão editalícia.
( ) A) Desconcentração.
( ) B) Imperatividade.
*( ) C) Continuidade dos Serviços Públicos.
( ) D) Subsidiariedade.

Q318805
Ano: 2008 Banca: CESPE / CEBRASPE Órgão: OAB Prova: CESPE - 2008 - OAB - Exame de
Ordem - 3 - Primeira Fase
O diretor-geral de determinado órgão público federal exarou despacho concessivo de
aposentadoria a um servidor em cuja contagem do tempo de serviço fora utilizada certidão
de tempo de contribuição do INSS, falsificada pelo próprio beneficiário. Descoberta a fraude
alguns meses mais tarde, a referida autoridade tornou sem efeito o ato de aposentadoria.
Na situação hipotética considerada, o princípio administrativo aplicável ao ato que tornou
sem efeito o ato de aposentadoria praticado é o da
*( ) A) autotutela.
( ) B) indisponibilidade dos bens públicos.
( ) C) segurança jurídica.
( ) D) razoabilidade das decisões administrativas.

Q205060

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Ano: 2008 Banca: CESPE / CEBRASPE Órgão: OAB-SP Prova: CESPE - 2008 - OAB-SP -
Exame de Ordem - 3 - Primeira Fase
Acerca dos princípios de direito administrativo, assinale a opção incorreta.
( ) A) Tanto a administração direta quanto a indireta se submetem aos princípios
constitucionais da administração pública.
( ) B) O rol dos princípios administrativos, estabelecido originariamente na CF, foi ampliado
para contemplar a inserção do princípio da eficiência.
*( ) C) O princípio da legalidade, por seu conteúdo generalizante, atinge, da mesma forma e
na mesma extensão, os particulares e a administração pública.
( ) D) Embora vigente o princípio da publicidade para os atos administrativos, o sigilo é
aplicável em casos em que este seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

Q207861
Ano: 2007 Banca: VUNESP Órgão: OAB-SP Prova: VUNESP - 2007 - OAB-SP - Exame de
Ordem - 2 - Primeira Fase
Sobre os princípios da Administração Pública, é correto afirmar que:
( ) A) segundo o princípio da legalidade, a Administração Pública pode, por meio de simples
ato administrativo, criar obrigações ou impor vedações, desde que a lei não as proíba.
*( ) B) é conseqüência do princípio da impessoalidade a regra do parágrafo 1.º, do artigo 37
da CF, que proíbe a publicidade de atos de governo que se caracterizem como promoção
pessoal do administrador.
( ) C) os princípios da moralidade, da razoabilidade e da eficiência necessitam de
regulamentação legal para que sejam aplicáveis a casos concretos.
( ) D) o princípio da publicidade veda em qualquer hipótese seja atribuído sigilo aos atos
praticados pela Administração Pública.

Q207086
Ano: 2007 Banca: VUNESP Órgão: OAB-SP Prova: VUNESP - 2007 - OAB-SP - Exame de
Ordem - 3 - Primeira Fase
A Lei Complementar n.o 1.025, de 7 de dezembro de 2007, do estado de São Paulo, ao criar
a Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (ARSESP), dispôs
que essa agência, no desempenho de suas atividades, deveria obedecer, entre outras, às
diretrizes de “adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e
sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse
público” (art. 2.º, III) e de “indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinem
as suas decisões” (art. 2.º, V). Tais diretrizes dizem respeito aos seguintes princípios:
( ) A) eficiência e devido processo legal.
( ) B) razoabilidade e objetividade.
*( ) C) proporcionalidade e motivação.
( ) D) legalidade e formalidade.

Q208754
Ano: 2006 Banca: ND Órgão: OAB-DF Prova: ND - 2006 - OAB-DF - Exame de Ordem - 3 -
Primeira Fase
Assinale a alternativa CORRETA:
( ) A) o princípio da razoabilidade somente é aplicado pelo administrador público na forma e
nos casos taxativamente previstos em lei;
( ) B) a motivação é obrigatória nos atos administrativos discricionários;
( ) C) a motivação é obrigatória nos atos administrativos vinculados;
*( ) D) a desapropriação indireta, consagrada na incorporação de bem imóvel ao conjunto
de bens públicos de uso especial, resolve-se em perdas e danos.

Q208747
Ano: 2006 Banca: ND Órgão: OAB-DF Prova: ND - 2006 - OAB-DF - Exame de Ordem - 3 -
Primeira Fase

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Professor Rafael Kist (2022-1)

Entre as tendências atuais do Direito Administrativo Brasileiro encontramos um forte


movimento no sentido da ampliação da discricionariedade administrativa constatado nas
idéias de substituição da Administração burocrática pela Administração gerencial e de defesa
de uma maior liberdade decisória das autoridades públicas. Qual dos seguintes elementos
funciona atualmente como poderoso limite à discricionariedade administrativa:
( ) A) o princípio da inafastabilidade da jurisdição;
( ) B) o princípio da unidade de jurisdição;
*( ) C) o princípio da razoabilidade (ou proporcionalidade);
( ) D) o princípio do duplo grau de jurisdição.

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