Brigida Carla Malandrino

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Brígida Carla Malandrino

“Há sempre confiança de se estar ligado a alguém”:


dimensões utópicas das expressões da religiosidade bantú no
Brasil

DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

SÃO PAULO
2010
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

Brígida Carla Malandrino

“Há sempre confiança de se estar ligado a alguém”:


dimensões utópicas das expressões da religiosidade bantú no
Brasil

DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

Tese apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do título de DOUTORA em Ciências da
Religião, sob orientação do Professor
Doutor Ênio José da Costa Brito.

SÃO PAULO
2010
Banca Examinadora

______________________________________

____________________________________________

____________________________________________

____________________________________________

____________________________________________
Dedicatória

Ao meu pai, que me ensinou o valor do tempo.

À minha mãe, que me mostrou a importância da disciplina.


RESUMO

O objeto de estudo deste trabalho são as expressões da religiosidade bantú no


Brasil, dando destaque à forma utópica, portanto à dimensão desejada e transitória
dentro do enfoque das Ciências da Religião. Trabalhamos com a hipótese de que as
expressões religiosas ao longo da história dos grupos de tradição bantú no Brasil
podem ser entendidas como formas de continuidade, mas entendemos que não há a
manutenção de um todo igual, mas que alguns aspectos são recuperados, outros
descartados e outros, ainda, transformados como uma maneira de se buscar uma
reorganização simbólica. A formação de novas expressões religiosas, como a
umbanda, representou esta tentativa por parte das pessoas.

Inicialmente, abordamos, de maneira propedêutica, a questão da tradição bantú. Em


seguida, falamos a respeito do processo de diáspora e da transformação do africano
livre em escravizado no Brasil. Depois, abordamos o período da escravidão no
Brasil, focados na relação da Igreja Católica com a escravidão, falando a respeito de
práticas afro-brasileiras de tradição bantú presentes nesse período. Em seguida,
trabalhamos os períodos do pré e do pós-abolição, quando houve uma nova
mudança identitária, isto é, de escravizados para libertos. A partir daí, falamos a
respeito da umbanda; primeiro como uma utopia bantú, para depois, quase como
uma continuidade do quinto capítulo, abordarmos os aspectos bantú na umbanda,
mas, agora, na atualidade.

É possível afirmar que com o presente trabalho chegamos aos seguintes resultados:
identificamos a influência da tradição bantú na umbanda; proporcionamos o
entendimento de como as pessoas que pertencem à determinada tradição, no caso
a tradição bantú, ressignificaram as suas práticas religiosas ao longo do tempo; e
oferecemos subsídios para a compreensão das práticas de hibridismo religioso,
fazendo uma primeira aproximação no sentido de fornecer uma chave de leitura ou
um método para a compreensão de uma tradição diaspórica, no nosso caso, a partir
da tradição bantú. Falamos especificamente a respeito da criação de um método
para o entendimento de sobrevivências traduzidas de tradições diaspóricas.

Palavras-chaves: tradição bantú, religiosidade bantú, diáspora, escravidão,


umbanda
ABSTRACT

The subject under study in this work are the expressions of bantu religiousness in
Brazil, emphasizing the utopian form, that is, the desired and transitory form
according to the view of Religion Sciences. We worked with the hypothesis that the
religious expressions of the groups of bantu tradition in Brazil, throughout history, can
be understood as forms of continuity, but we also understand that there is no such
thing as a uniform whole, but that some aspects are recovered, others are discarded
and yet others are transformed, as a way of achieving a symbolic reorganization. The
formation of new religious expressions, such as umbanda, represented this attempt
by people.

To start, in a preliminary form, we touched the question of the bantu tradition. Then
we talked about the Diaspora process and the transformation of the free African into
a slave in Brazil. After that, we considered the period of slavery in Brazil, focusing on
the relationship of the Catholic Church to slavery, talking about Afro-Brazilian
practices of bantu tradition, during this period. Next we worked the periods pre and
after abolition, when a new identity change happened, that is, from slavery to
freedom. From this point on, we talked about umbanda; first as a bantu utopia, then
we go on as almost a follow up of the Fifth Chapter, talking about the bantu aspects
in umbanda nowadays.

It is possible to state that, according to this work, we have achieved the following
results: we have identified the influence of the bantu tradition in umbanda; we got the
understanding of how people belonging to a specific tradition, in this case, the bantu
tradition, have managed to give new meanings to their religious practices throughout
time; and we have offered contribution for the understanding of hybrid religious
practices, doing a first approximation in the sense of offering a reading key or a
method to understand a diasporic tradition, in our case, from a bantu tradition
standpoint. Specifically we have written about the creation of a method for the
understanding of survivals translated from diasporic traditions.

Key-words: bantu tradition, bantu religiousness, diaspora, slavery, umbanda.


AGRADECIMENTOS

A realização deste trabalho foi possível graças ao financiamento concedido


pela CAPES e pelas inúmeras contribuições que recebi de pessoas e de instituições.
Gostaria de agradecer indistintamente a todos que colaboraram, direta ou
indiretamente, para a realização desta tese. Em especial, às seguintes pessoas:

Ao Prof. Dr. Ênio José da Costa Brito, meu orientador, que me apoiou nas
decisões tomadas durante a elaboração da tese, estando sempre atento às minhas
intuições e às minhas idéias. Agradeço também pelo fato dele estar comigo durante
todo esse processo, fazendo com que ele se tornasse menos duro, não só contanto
com as suas contribuições acadêmicas, mas também com os seus conselhos no
âmbito pessoal. Este trabalho é fruto dos encontros que tivemos. Certamente ter
convivido com ele por estes anos e tê-lo tomado como modelo fez de mim uma
pessoa e uma profissional melhor.

Ao Prof. Dr. Henrich Alexandrer Otten pela crença depositada em mim, ao


Prof. Dr. Adailton Augusto Maciel por ter me instigado a pensar nos costumes e na
utopia, e à Profa. Dra. Maria Antonieta Antonacci, que me incentivou à minha viagem
a Moçambique, o que criou um laço entre nós, permitindo que eu tivesse a alma
tocada pela África. Aos três pelas sugestões e pelas contribuições trazidas durante o
meu Exame de Qualificação.

Ao Prof. Dr. Silas Guerrieiro, que, gentilmente, leu o material do meu Exame
de Qualificação, agradeço pelos questionamentos e pela desconstrução. A angústia
daquela conversa permitiu o meu encontro com a utopia.

Ao Prof. Dr. José J. Queiroz, que foi responsável por me “iniciar” nos
“mistérios metodológicos”, o que facilitou muito o meu percurso.

Aos queridos professores Dr. Frank Usarski e Dr. Fernando Torres- Londonõ
e à querida professora Dra. Maria José Rosado Fontelas-Nunes do Programa de
Estudos Pós-graduados em Ciências da Religião, que, constantemente, depositaram
uma confiança inabalável em mim, mesmo quando eu a havia perdido.
À Andréia Bisuli e Souza, que sempre me auxiliou nos meandros
administrativos da PUC/SP e por quem desenvolvi um afeto que, em muito,
extrapola o âmbito profissional.

Aos membros do Grupo de Estudos – Imaginário Religioso Brasileiro -, com


os quais passei instigantes tardes de quarta-feira, vivendo entre dois mundos.

Aos meus amigos, José Carlos dos Santos e Ana Carolina Chizzolini Alves,
com quem passei divertidas segundas-feiras no Programa de Estudos Pós-
graduados em Ciências da Religião e tenho a sorte de tê-los, atualmente, em minha
vida pessoal.

Aos meninos do ITESP, que se dispuseram a me dar as entrevistas e


participar do grupo focal, sendo os primeiros a me introduzirem na tradição bantú.
Aos guias e aos membros do Instituto Ubiratan, que me receberam de braços
abertos em um momento que várias portas se fecharam para mim. Agradeço pelos
ensinamentos. Em especial, pela disposição em me darem as entrevistas e me
permitirem fazer o trabalho etnográfico, que foram fundamentais para a elaboração
desta tese. Ao Jair Mogelli Júnior e Roberto Julio Gava do Arquivo da Cúria
Metropolitana de São Paulo, agradecimento feito em letra 20, negrito, sublinhado,
que me ajudaram no enfrentamento dos documentos e tornaram às minhas tardes
de sexta-feira alegres e fecundas.

Aos missionários do Verbo Divino de Maputo, especialmente da Paróquia


Santo Antônio de Malhangalene, nas pessoas dos padres Conrado, Rolando, Xavier
e João por terem se mobilizado no intuito de me auxiliar no meu trabalho e me
apresentar a tradição bantú. Um agradecimento especial ao Padre Rolando que
cuidou de mim e da minha pesquisa e com quem descobri o sentido da gratuidade e
da doação. Agradeço também às pessoas pertencentes à paróquia que, gentilmente,
se dispuseram a conversar comigo a respeito da tradição bantú, permitindo que eu a
percebesse de maneira concreta. Ao Sr. Getimane, pelo apoio, pelos contatos e pela
entrevista.

Agradeço aos meus pais, Mara e Martino, que desde sempre me mostraram o
quanto o conhecimento é fundamental. Especialmente à minha mãe por ter me
ajudado em momentos práticos da minha tese. Ao meu marido, Nelson, por estar ao
meu lado. À Dora e a Rita Lee, que sempre fazem o meu mundo parecer melhor. À
tia Ana e sua família por sempre estarem presentes nos meus momentos.

À Geisa, à tia Irani, ao tio Moraes e ao Márcio, pessoas com as quais eu vivo
o sentido da família extensa, sabendo que o amor familiar excede os laços
sanguíneos. À Lizandra, pessoa com quem sempre tive uma relação clara e
transparente, podendo mostrar o que há de pior em mim. À Henriette e à Silvia,
amigas de todas as horas, companheiras, para quem não tenho segredos. À
Cristiane e à Janaína, minhas companheiras em Maputo, pessoas que quero ter a
vida toda, que me deram a segurança que precisava para ir e estar em Maputo. À
Helvânia, minha companheira de trabalho.

Aos meus alunos e minhas alunas da UNIBAN, com quem compartilhei e


compartilho os conhecimentos que adquiri até agora e que me ensinaram a
repensar, nestes anos, a partir dos seus questionamentos, muitas coisas que sabia.
SUMÁRIO

Introdução ............................................................................................................... 17

Capítulo I: Encontrando os grupos de tradição bantú e sua religiosidade ...... 42

1.1 – Circunscrevendo a tradição bantú ............................................................... 44

1.1.1 – Deslocamentos bantú ........................................................................... 44

1.1.2 – Bantú: uma tradição ............................................................................. 47

1.2 – Eixos da tradição bantú ............................................................................... 56

1.2.1 – As três leis existentes dentro da tradição bantú ................................... 62

1.2.2 – A questão da morte .............................................................................. 67

1.3 – Os grandes eixos da religiosidade bantú .................................................... 74

1.3.1 – O Ser Supremo ..................................................................................... 79

1.3.2 - Os antepassados .................................................................................. 81

1.3.2.1 – O culto dos antepassados ............................................................. 88

1.4 – Os bantú e a magia cotidiana ...................................................................... 99

1.4.1 – Uma história de vida ........................................................................... 102

1.4.2 – Possessão .......................................................................................... 106

1.4.3 – Adivinhação ........................................................................................ 109

1.4.4 – Medicina tradicional ............................................................................ 112

1.4.5 – Curandeirismo e feitiçaria ................................................................... 116

1.4.5.1 - Magia prejudicial – feitiçaria ......................................................... 117

1.4.5.2 – Magia defensiva – curandeirismo ................................................ 119

Capítulo II: A tradição bantú na diáspora: hibridizações religiosas e diálogos


culturais ocorridos na liminaridade .................................................................... 122

2.1 – Escravidão doméstica ............................................................................... 125

2.2 – A presença de Portugal em Angola e o tráfico de escravos ..................... 127


2.3 – Vivendo na liminaridade ............................................................................ 134

2.3.1 – Captura ............................................................................................... 136

2.3.2 – A estada nos barracões e nos fortes .................................................. 142

2.3.3 – A pseudo-conversão .......................................................................... 146

2.3.4 – O navio negreiro e a travessia do Atlântico (do Kalunga grande) ...... 149

2.3.5 – A chegada ao Brasil ........................................................................... 156

2.4 – A identidade construída na liminaridade ................................................... 162

Capítulo III: A religiosidade bantú durante a escravidão no Brasil vista através


dos processos-crimes antigos ............................................................................ 166

3.1 – A posição da Igreja Católica frente à escravidão ...................................... 173

3.2 – A religiosidade no Brasil escravista e as Constituições Primeiras do


Arcebispado da Bahia de 1707 .............................................................................. 181

3.2.1 – As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707 e o


escravizado como ser passivo, alguém a ser convertido ....................................... 188

3.2.2 - As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707 e o


escravizado como ser ativo, alguém a ser controlado ........................................... 193

3.3 – Os processos-crimes antigos: uma expressão da religiosidade bantú? ... 198

3.3.1 – Processos-crimes séculos XVIII e XIX: uma breve apresentação ..... 200

3.3.2 – Uma possível interpretação dos processos-crimes: a presença de


elementos bantú ..................................................................................................... 203

3.4 – Expressões religiosas bantú: o surgimento de uma proto-umbanda? ....... 223

3.4.1 – O calundu ........................................................................................... 224

Capítulo IV: A tradição bantú na liminaridade histórica: território, família e


antepassados unidos pela religiosidade ........................................................... 231

4.1 – Pré-abolição e abolição: tempos de incerteza .......................................... 235

4.1.1 – Pré-abolição ....................................................................................... 241

4.1.2 – A questão da alforria .......................................................................... 249

4.1.3 – Durante a abolição ............................................................................. 251


4.2 – Projetos de liberdade ................................................................................ 254

4.2.1 – Território: a questão da localidade ..................................................... 258

4.2.2 – Família: a questão da identificação .................................................... 262

4.2.3 – Antepassados: a questão do encontro ............................................... 265

4.3 – Interligação: a questão da religiosidade .................................................... 269

Capítulo V: Uma utopia bantú chamado umbanda ........................................... 272

5.1 – Contextualização histórica ........................................................................ 275

5.1.1 – Cidadania, negros e a Abolição da Escravidão .................................. 275

5.1.2 – Cidadania, negros e a Proclamação da República ............................ 284

5.1.3 – A religião dentro da nova ordem social .............................................. 291

5.2 – Dimensão utópica dos acontecimentos: uma leitura bantú ....................... 294

5.3 – A formação de novas expressões religiosas ............................................. 300

5.3.1 – O surgimento da macumba ................................................................ 302

5.3.2 – A constituição da umbanda ................................................................ 310

5.3.3 – Estudos a respeito da relação entre umbanda e relação bantú ......... 314

5.4 - Ressignificação bantú, utopia umbandista ................................................. 324

5.4.1 – A incorporação dos guias na umbanda: uma forma de utopia ........... 331

Capítulo VI: Umbanda: Um ritual bantú .............................................................. 340

6.1 – Realizações de liberdade: estruturação da umbanda ............................... 342

6.1.1 – Terreiro, o espaço doméstico ............................................................. 343

6.1.2 – Família-de-santo ................................................................................. 346

6.1.3 – Linhagem ............................................................................................ 348

6.2 – A questão dos antepassados ou os guias da umbanda: a utopia de se estar


ligado a alguém ...................................................................................................... 352

6.2.1 – Os pretos-velhos ................................................................................ 357

6.2.2 – Os caboclos ........................................................................................ 361


6.3 – A história de uma casa: o Instituto Ubiratan .............................................. 367

6.3.1 – A seqüência ritual ............................................................................... 382

6.4 – Aspectos bantú no ritual de umbanda ....................................................... 388

6.4.1 – A questão ritual ................................................................................... 389

6.4.2 – O que há de bantú no ritual de umbanda ........................................... 392

6.5 – O cotidiano religioso .................................................................................. 397

Conclusão ............................................................................................................. 405

Bibliografia ............................................................................................................ 413


LISTA DE FIGURAS

Capítulo I: Encontrando os grupos de tradição bantú e sua religiosidade

Figura 1 - Deslocamentos e migrações dos grupos bantú ....................................... 45

Fonte: REPÚBLICA POPULAR DE MOÇAMBIQUE, História, p. 81.

Figura 2 – Grupos Lingüísticos da África ................................................................. 49

Fonte: Marina de MELLO E SOUZA, África e Brasil africano, p. 20.

Figura 3 – Mapa da África atual – político ................................................................ 55

Fonte: Marina de MELLO E SOUZA, África e Brasil africano, p. 17.

Figura 4 – Pirâmide Vital .......................................................................................... 63

Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 5 – Casa de atendimentos .......................................................................... 103

Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 6 –– C. com sua capulana ritual .................................................................. 104

Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 7 - Ossículos utilizados por C. durante a adivinhação ................................ 111

Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 8 – Raízes utilizadas por C. ........................................................................ 114

Fonte: Arquivo Pessoal

Capítulo VI: Umbanda: um ritual bantú

Figura 9 – Placa na frente da casa ........................................................................ 367

Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 10 – Oferenda para Exu no portão .............................................................. 369

Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 11 – Oferenda Exu orixá ............................................................................. 370


Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 12 – Oferenda Oxóssi ................................................................................. 371

Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 13 – Oferenda Ogum ................................................................................... 371

Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 14 – Mandala de Fogo ................................................................................ 372

Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 15 – Ritual de descarrego ........................................................................... 373

Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 16 – Banho de ervas ................................................................................... 375

Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 17 – Casinha dos Exus ............................................................................... 376

Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 18 – Apetrechos dos guias .......................................................................... 378

Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 19 – Congá em detalhes ............................................................................. 379

Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 20 – Local de trabalho dos guias ................................................................ 380

Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 21 – Atabaques ........................................................................................... 381

Fonte: Arquivo Pessoal

Conclusão

Figura 22 – Árvore sagrada .................................................................................... 432

Fonte: www.ritosdeangola.com.br/pagephp?79. Acesso em: 03 mar 2010


LISTA DE TABELAS

Capítulo III: A religiosidade bantú durante a escravidão no Brasil vista através


dos processos-crimes antigos

Tabela 1 – Processos-crimes século XVIII ............................................................. 200

Fonte: Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo

Tabela 2 – Processos-crimes século XIX ............................................................... 202

Fonte: Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo

Tabela 3 – Processos-crimes: uma leitura bantú ................................................... 206

Fonte: Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo


Agora sabe onde me há-de visitar: Já não necessito de
lhe escrever por caligrafada palavra. Falaremos aqui,
nesta sombra onde ganho dimensão, corpo renascendo
em outro corpo. Você, meu neto, cumpriu o ciclo das
visitas. E visitou casa, terra, homem, rio: o mesmo ser,
só diferindo em nome. Há um rio que nasce dentro de
nós, corre por dentro da casa e deságua não no mar;
mas na terra. Esse rio uns chamam de vida.

Esta é a última visitação. Desta vez já não haverá mais


cartas. Não careceremos de nos visitar por esses
caminhos. De assim para sim: nesta sombra que, afinal,
só há dentro de si, você alcança a outra margem, além
do rio, por detrás do tempo. 1

1
Mia COUTO, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, p. 258.
17

INTRODUÇÃO

O escravo ficou dentro de todos nós, qualquer que seja a


1
nossa origem.
Só agora tentamos uma reviravolta – encarar o negro como um
ser vivo, atuante, brasileiro, em todos os aspectos do seu
comportamento da sociedade. Ou seja, não apenas o legado
da África, mas a contribuição que o negro deu no passado e
está dando no presente à conformação da nacionalidade, do
ponto de vista dos variados processos que o levaram à
nacionalização, à aceitação dos valores sociais que identificam
2
o nosso povo.

Não tenho clareza absoluta do que me levou a estudar a tradição bantú3, mas
ouvi algo de uma curandeira em Maputo que me fez dar sentido à minha escolha.
Quando estava fazendo a entrevista4, ela me falou que o motivo para eu estar ali era
o fato dos meus antepassados desejarem que eu fizesse um trabalho sobre esta
tradição com o intuito de divulgá-la. Lembrei, no mesmo instante, que escutei algo
semelhante no meu mestrado, quando o chefe espiritual de um dos terreiros – Seu
Cacique -, que realizei o trabalho de campo5, falou que minha missão era divulgar a
umbanda. Bom, então, que assim seja...

Por outro lado, noto que há um tema que me persegue desde a minha
especialização: a questão da mudança e da permanência. Na especialização, esta
questão foi estudada através de um viés psicológico, mais precisamente dos
complexos inconscientes6; no mestrado, a permanência simbólica e religiosa7, vista
na intersecção entre o psicológico e o cultural. No doutorado, a mudança e a
permanência revelam-se através de uma determinada tradição, mediante o dado
religioso, o que nos permite falar em sobrevivência cultural. Dissertamos sobre

1
Carlos SERRANO; Maurício WALDMAN, Memória D’África, p. 15.
2
Edison de Sousa CARNEIRO, Ladinos e crioulos, p. 104-105. Gostaríamos de lembrar que
CARNEIRO escreveu este texto em 1953 e vemos o quanto ele ainda encontra-se atual.
3
Utilizaremos a grafia bantú, pois é aquela que mais se aproxima da grafia utilizada pelos africanos,
não havendo diferenciação entre masculino e feminino. É usual, em pesquisas acadêmicas,
encontrarmos a grafia banto, e, até, algumas vezes banta, para se referir a alguma coisa do gênero
feminino.
4
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
5
Cf. Brígida Carla MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanências.
6
Cf. IDEM, Relação mãe-filho: a perpetuação dos complexos familiares através de gerações, Jung &
Corpo.
7
Cf. IDEM, Umbanda: mudanças e permanências.
18

aspectos de algo que se transformou ao longo do tempo, mas que continua a existir
de maneira ressignificada, quando desejados consciente e provisoriamente por
aqueles que fazem parte da tradição. Ao compreender a religiosidade bantú,
buscamos revelar os mecanismos de permanências e de mudanças que formaram
novos saberes e fazeres, acompanhando a história desta tradição. Assim, o tema
deste trabalho são as dimensões utópicas da religiosidade bantú no Brasil, bem
como as suas expressões e suas ressignificações ao longo do tempo.

Quando rastreamos as obras a respeito da tradição bantú, podemos, de


maneira superficial, dividi-las em três grandes grupos. Um primeiro grupo de obras
seria formado por autores, normalmente missionários católicos, que desenvolveram
seus trabalhos na África e fizeram uma descrição minuciosa de determinado grupo,
tais como: P. Raul Ruiz de Asúa Altuna, Cultura tradicional bantu; Henrique Junod,
Usos e costumes bantos; Francisco Lerma Martinez, O povo macua e a sua cultura;
e Placide Tempels, Lê philosophie bantoue. Esta vasta descrição nos auxiliou no
sentido de conhecermos com detalhes aspectos da tradição bantú, ao mesmo tempo
em que permitiu que constituíssemos os eixos fundamentais dessa tradição, já que
eles se repetiam. A crítica feita a essas obras é o fato de, muitas vezes, existir um
entendimento daquilo que é bantú a partir de um olhar cristão e o fato de que elas
são utilizadas com o caráter de evangelização.

Um segundo grupo de obras é formado, em sua maioria, por autores


brasileiros - Liana Trindade, Conflito social e magia, Edimilson de Almeida Pereira,
Os tambores estão frios, Marina de Mello e Souza, Reis negros no Brasil escravista
e Maria Helena Villas Boas Concone, Umbanda: uma religião brasileira -, que ao
falarem a respeito de algum tipo de expressão cultural ou religiosa formada no
Brasil, remetem-se à tradição bantú, uma vez que tais expressões possuem traços
dela. Tal tradição não é o objeto de estudo desses autores. Tais obras nos
auxiliaram no sentido de entrarmos em contato com a tradição bantú de forma
preliminar, além de percebermos os processos de ressignificação pelos quais ela
passou no Brasil. A crítica feita a essas obras é que elas trabalham aspectos
específicos da tradição, muitas vezes, de maneira apenas teórica.

Um terceiro grupo de obras é constituído por autores brasileiros, tendo como


ícone Ney Lopes e suas obras - Dicionário literário afro-brasileiro, Bantos, malês e
identidade negra, Novo dicionário banto do Brasil - que buscam descrever a tradição
19

bantú em sua essência para, em seguida, transpô-la para a realidade brasileira. As


obras nos ajudaram a compreender a tradição com detalhes e ao mesmo tempo ver
a sua inserção nas diversas áreas da cultura brasileira como a música, as danças, a
língua e a religião. A crítica que fazemos é que primeiro há um aspecto essencialista
em tais obras, uma vez que o aspecto histórico é desconsiderado, por outro há um
tom militante em algumas delas.

Frente ao que foi colocado até agora, este trabalho torna-se relevantes, pois
as obras destacada por nós, a respeito da tradição bantú, pouco falam a respeito
dela, em seus aspectos históricos, dentro da realidade brasileira, tendo-a como seu
objeto de estudo. Estudar a tradição bantú faz-se importante, pois como bem coloca
Slenes:

... a grande maioria dos escravos importados para o atual Sudeste do Brasil,
desde o final do século XVIII até 1850, veio de sociedades falantes de línguas
bantu, principalmente da atual Angola e da região que a historiadora Mary
Karasch chama de “Congo-Norte” (a bacia do rio Congo/Zaire e a costa ao
norte da desembocadura desse rio, até e incluindo o atual Gabão).8

Portanto, quando falamos de tradição bantú, não é possível desconsiderar a


influência dela na formação da sociedade brasileira. Além disso, quando
trabalhamos a questão da influência dessa tradição, estamos falando de uma forma
de revalorização de sua importância na formação cultural brasileira9 e nas diversas
formas de expressões religiosas existente no Brasil, fruto do processo diásporico
sofrido por milhares de africanos de tradição bantú.

8
Robert W. SLENES, Na senzala, uma flor, p. 142.
9
Segundo Gilberto FREYRE, em Casa-grande & senzala, os brasileiros trazem a sombra do africano,
da sua influência direta, vaga ou remota. Para ele, no Brasil houve uma predisposição para a
miscigenação, principalmente por parte do português, que vivenciou o sincretismo durante a sua
história, chamado de antagonismo. Mas tal antagonismo não está presente em toda e qualquer
cultura? O sincretismo não é condição sine qua non da formação de qualquer cultura? Talvez a
diferença do português para outros grupos seja a sua facilidade em lidar com tal situação ou, quem
sabe, a consciência de se saber sincrético. Cada vez mais, parece que quanto mais um povo se
dispõe ao sincretismo, maior a chance de sua sobrevivência cultural e, aqui, destaco o caráter de
resistência do sincretismo. Transformar aspectos de determinada cultura, mais do que negá-la ou
torná-la impura, é uma forma de continuidade e manutenção de seus próprios aspectos, mas de
maneira ressignificada. Podemos afirmar que estes antagonismos estão presentes em qualquer
cultura. Cf. Ricardo Benzaquen de ARAÚJO, Guerra e paz; Ênio José da Costa BRITO, Anima
brasilis.
20

Freyre, em Casa-grande & senzala10, antecipa um fato que há muito vem


sendo discutido: a procedência dos escravos e, mais do que isso, a importância de
não se tomar a África como uma só. O autor destaca a diferença entre o escravo
negro e o negro escravizado. Mais do que um jogo de palavras, parece-nos que ver
os povos africanos como pessoas que passaram pela experiência da diáspora
forçada e da escravidão, faz com que possamos vê-los como fazedores da própria
história, como protagonistas; que apesar de todas as adversidades, foram capazes
de transformar as próprias práticas culturais, como forma de adaptação e de
resistência e, assim, poder dar continuidade à própria tradição. A mistura dos
africanos recém-chegados com os ladinos11 pode ser vista como forma de
abrasileiramento e, conseqüentemente, esfacelamento da cultura africana. Mas este
encontro não pode ser visto como uma forma de sobrevivência e, mais do que isso,
uma possibilidade utópica, no sentido de que ao entrar em contato com os ladinos,
os africanos recém-chegados tinham a possibilidade de gerar novos saberes e
fazeres, novas práticas culturais baseados na própria realidade?

Os grupos de tradição bantú chegaram muito precocemente ao Brasil, sendo


que vários aspectos de sua tradição foram assimilados, ressignificados e
naturalizados dentro da cultura brasileira. A tradição bantú possui uma lógica
popular, mas que traz em si algumas especificidades. Neste sentido, lembrar que
durante a escravidão, entre 1690-1850, os portos angolanos e os portos da Costa de
Mina foram os fornecedores de escravizados para o Brasil. Segundo Souza:
“...chegaram mais escravos de origem sudanesa ao Nordeste e mais escravos
12
bantos ao Sudeste, redistribuídos a partir desses dois portos” . Ainda para ela: “A
influência banto é a mais antiga e a mais disseminada por todo o Brasil, (...) as
manifestações culturais de influência banto são resultado de misturas mais antigas,

10
Cf. Gilberto FREYRE, Casa-grande & senzala.
11
João José REIS, em Domingos Sodré, p. 316-317, traz uma importante contribuição para o termo
ladino: “Prefiro chamá-lo ladino, e à sua trajetória, um processo de ladinização. (...) sugiro que a
expressão seja entendida quase em seu sentido nativo, válida para todas as gerações de africanos
natos que, mesmo na época da vigência plena do tráfico, tiveram com o tempo de adaptar, reinventar
e criar de novo seus valores e prática culturais, além de assimilar muitos dos costumes locais, sob as
novas circunstâncias e sob a pressão da escravidão deste lado do Atlântico. Os ladinos, no entanto,
se adaptaram sem descartar tudo que haviam aprendido do lado de lá do Atlântico. Por isso prefiro
chamar de ladinização à dinâmica cultural e, mais amplamente, a experiência de vida protagonizada
pelo adivinho Domingos Sodré na Bahia”.
12
Marina de MELLO E SOUZA, África e Brasil africano, p. 83.
21

13
incorporando elementos das culturas indígena, portuguesa e iorubá” . Nos dizeres
de Lopes, ainda há:

... a negação da importância cultural do segmento banto na formação


brasileira, apesar de sua relevância, pela anterioridade de sua presença e
pelo número vultoso de sua entrada nos portos brasileiros, por mais de 300
anos, além de sua dispersão forçada por quase todo o território nacional.14

Ainda reiterando a posição de Lopes, citamos Heywood:

Apesar da presença extraordinária dos centro-africanos no Brasil colonial e do


fato da cultura inicial afro-brasileira ter sido em grande parte proveniente da
África Central, poucos estudos têm detalhado esse processo em
profundidade. As pesquisas que lidam especificamente com a cultura
enfatizam a contribuição dos africanos ocidentais no intuito de dar conta de
sua habilidade em preservar elementos africanos na cultura crioula do Brasil.
Muitos dos estudos antropológicos focalizam quase que exclusivamente os
praticantes de religiões afro-brasileiras, sobretudo os que praticavam a
religião dos Orixás, da cultura yoruba na Bahia.15

A relevância de estudar a tradição bantú se dá frente à possibilidade de se


entender de que maneira as diversas tradições que aqui chegaram foram se
encontrando e formando novas práticas culturais e/ou religiosas, como forma de dar
sentido à realidade destes grupos. A partir da experiência da diáspora, grupos que
chegaram ao Brasil não tiveram disponíveis certos produtos culturais, tendo a
necessidade de ressignificá-los dentro de certo tempo e espaço, dentro de um novo
momento histórico:

Enfim, se os escravos não eram seres anônimos, triturados até na alma pelo
engenho do cativeiro, se tinham uma herança cultural própria e instituições,
mesmo que imperfeitas, para a transmissão e recriação dessa herança, então
o fato de que provinham de etnias africanas específicas torna-se importante.
Torna-se, aliás, decisivo para o curso da história se aceitarmos a idéia de que
pessoas interpretam sua experiência vivida, e tentam mudá-la a partir de sua
visão do mundo, por sua vez formada na experiência anterior...16

13
Marina de MELLO E SOUZA, África e Brasil africano,p. 87. Tal afirmação nos remete, vagamente, à
constituição da umbanda.
14
Nei LOPES, Bantos, malês e identidade negra, p. 9.
15
Linda HEYWOOD, Introdução, In: Linda HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 19.
16
Robert W. SLENES, Na senzala, uma flor, p. 133-134.
22

A diáspora africana e a experiência da escravidão foram caracterizadas pela


desordem e pela falta de significação, o que trouxe a necessidade de novos
arranjos, que procuraram uma reordenação e uma ressignificação. Para tanto, foi
necessário que essas vivências fossem articuladas a um todo, a um sistema de
significações, pois a pessoa encontrava-se frente a um conjunto de fatos que, muitas
vezes, não fazia sentido para ela. Foi preciso construir uma linguagem socialmente
aceita por meio da qual ela pudesse pensar, compreender e experimentar essas
vivências. O que observamos após, o processo de diáspora, é a ressignificação de
sistemas simbólicos; a escravidão, por sua vez, pode ser entendida como um
processo histórico de transformação cultural, que trouxe especificidades para cada
conjuntura vivida. Ao mesmo tempo essas especificidades históricas não podem ser
engolidas por categorias, que nos remetam a uma dimensão atemporal. Quando
pensamos, portanto, nos grupos de tradição bantú, cabe destacar processos de
ressignificação, ao mesmo tempo em que distinguimos as práticas originadas ao
longo da história. Portanto, este trabalho torna-se relevante ao buscar entender as
dimensões utópicas das expressões e das ressignificações, ou seja, os sistemas
simbólicos da tradição bantú formados no Brasil, através de símbolos e de rituais.

Frente ao que foi exposto até então, pode-se dizer que o objeto de estudo
deste trabalho são as expressões da religiosidade bantú no Brasil, dando destaque à
forma utópica, portanto à dimensão desejada e transitória dentro do enfoque das
ciências da religião.

A partir do nosso objeto de estudo, podemos afirmar que o nosso problema


de pesquisa é buscar entender como determinada tradição ressignificou sua prática
religiosa através do tempo. Dizendo isso de outra maneira, expandindo esse
processo de formação, de permanência e de mudança às expressões e às religiões
afro-brasileiras de influência bantú, compreendendo quais eram as vantagens
percebidas pelas pessoas que compunham estes grupos. Cabe também discutir de
que maneira os elementos culturais / religiosos da tradição bantú presentes na
constituição e na perpetuação de algumas práticas religiosas foram se
transformando através do tempo, buscando responder de que maneira foi se dando
a mescla ou o hibridismo entre as práticas bantú e as outras práticas religiosas
formadas através da história.
23

Trabalhamos com a hipótese de que expressões religiosas ao longo da


história dos grupos de tradição bantú no Brasil podem ser entendidas como formas
de continuidade. Portanto, caberia perguntar a respeito das condições históricas e
sociais que precipitaram os acontecimentos, bem como do caráter antecipatório
percebidos pelas pessoas, compreendendo o motivo pelo qual cada expressão
religiosa, como ação de pessoas, tomou a forma que tomou. Parece que o contato e
as interações foram determinantes para que cada expressão possuísse
determinadas características. As mudanças porque passam as religiões dependem
da necessidade da religião, isto é, há as mudanças internas da própria religião, ao
mesmo tempo em que ela muda a reboque da sociedade, sobretudo no que diz
respeito aos modelos de conduta que prega e aos valores que propaga, adaptando-
se às transformações sociais e culturais já em curso. “Mudanças internas da religião
não significam necessariamente perigo para a sobrevivência institucional, não
implicam apenas separação e ruptura. Ao contrário: quem não muda não
sobrevive”17.

Portanto, quando pensamos nas expressões religiosas bantú ao longo do


tempo, trabalhamos com a idéia de que não há a manutenção de um todo igual, mas
que alguns aspectos são recuperados, outros descartados e outros, ainda,
transformados como uma maneira de se buscar uma reorganização simbólica. A
formação de novas expressões religiosas, como a umbanda, representou esta
tentativa por parte das pessoas. Cabe lembrar que os grupos de tradição bantú
passaram por diversas rupturas como a estada no forte, os navios negreiros e a
chegada ao Brasil (experiência diaspórica), a experiência da escravidão e o advento
da modernidade e, conseqüentemente, da sociedade capitalista no Brasil. Para cada
um destes momentos, temos a formação de práticas culturais diversas, com um
novo sentido e um novo significado.

Tal fato ocorre, pois há um espaço cultural, onde a negociação das diferenças
cria uma tensão peculiar às existências fronteiriças. Há a criação de novas
identidades híbridas e transitórias, nas quais a maioria dos ingredientes culturais
mistura-se, mas alguns pedaços continuam a permanecer nesta mistura. O sujeito
da diferença cultural torna-se um problema, o elemento de resistência no processo
de transformação, aquele elemento de uma tradução que não se presta a ser

17
Reginaldo PRANDI, Segredos guardados, p. 244.
24

traduzido. Apesar dos processos sincréticos pelos quais passa determinada tradição
e, no nosso caso, a tradição bantú, há certos elementos que não são traduzidos,
permanecendo os mesmos ao longo do tempo, como uma forma de manutenção:

A cultura migrante do “entre-lugar”, a posição minoritária, dramatiza a


atividade da intraduzibilidade da cultura; ao fazê-lo, ela desloca a questão da
apropriação da cultura para além do sonho do assimilacionista, ou do
pesadelo do racista, de uma “transmissão total de conteúdo”, em direção a
um encontro com o processo ambivalente de cisão e hibridização que marca
a identificação com a diferença da cultura. 18

A tradução é uma forma de sobrevivência. A condição de hibridismo confere a


possibilidade de transformar o retorno em reinvenção. A sobrevivência dos aspectos
da religiosidade bantú depende de como o novo entra no mundo. No nosso caso, o
elemento bantú modifica as estruturas de referência e a comunicação de sentido
original, não simplesmente negando-o, mas negociando com aspectos culturais
preservados e cancelados no mecanismo da história. O destino da religiosidade
bantú não é apenas um local de subversão e transgressão, mas também possibilita
solidariedades entre os grupos. Isto possibilitou aos africanos e aos afro-
descendentes de tradição bantú o direito de significar, não por negar a cultura
dominante, mas por questionar a subjetividade produzida no processo colonizador.
Houve, assim, um papel ativo na construção daquilo que foi mantido dentro da
tradição, que foi vivenciado como utópico, uma vez que continha o germe da
esperança e foi entendido como provisório:

Todavia, o sonho diurno, em seus aspectos comuns, estende-se na sua


dimensão tão larga quanto profunda, não sublimada e sim concentrada, na
sua dimensão utópica. E ela coloca o mundo melhor igualmente como o mais
bonito, em imagens mais completas, como a terra não as comporta ainda.
Planejando ou dando forma, em meio a necessidade, dureza, crueza,
banalidade, são abertas luminosas janelas para o longe. O sonho diurno
como prelúdio da arte visa assim, de maneira especialmente significativa, à
melhoria do mundo; é esta aspiração saudável e realista que constitui seu
cerne.19

18
Homi K. BHABHA, O local da cultura, p. 308.
19
Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 95-96.
25

A consciência daquilo que se desejava como melhoria do mundo e da própria


condição de vida foi vista pelos africanos e pelos afro-descendentes como possível
através de um ato de tradução cultural, que permitiu a doação de sentido à realidade
vivida que se deu através da contínua transformação, para criar a noção de ainda
pertencer a sua tradição:

... a tradução, em lugar de se fazer semelhante ao sentido do original, deve,


de maneira amorosa e detalhada, passar para sua própria língua o modo de
significar do original; assim como os pedaços partidos são reconhecíveis
como fragmentos de uma mesma ânfora, o original e a tradução devem ser
identificados como fragmentos de uma linguagem maior.20

Este processo de tradução pode ser considerado um processo sincrético no


qual os sistemas religiosos se relacionam para se tornar um sistema religioso
original, mas que mantêm o que é fundamental à tradição bantú. Os vários modos
de se fazer sincrético representam um quadro de possibilidades para que a tradição
sincrética se estabeleça como uma religião capaz de responder às necessidades
das pessoas. O sincretismo enraíza seu sentido na história social ao se originar da
relação entre identidades situadas no presente e no passado. Rejeições e
interações, manifestações de violência e de solidariedade são características dos
contatos culturais. Têm um caráter de permanência, pois se torna uma experiência e
uma fonte de discurso que os menos favorecidos, no caso dos africanos e dos afro-
descendentes de tradição bantú, utilizaram para dialogar ou romper as relações com
as forças de dominação. No âmbito das expressões religiosas bantú sempre há
mudanças pela frente, verdades antigas a recuperar, verdades novas a legitimar,
sempre há a intenção de se buscar um passado perdido, mitificado e valorizado
como fonte possível de restauração do que é possível.

Este trabalho tem como objetivos: proporcionar o entendimento de como


determinada tradição, no caso a tradição bantú, ressignificou suas práticas religiosas
ao longo do tempo; oferecer subsídios para a compreensão das práticas de
hibridismo religioso, fornecendo uma chave de leitura para as tradições diaspóricas;
e identificar a influência da tradição bantú na formação da umbanda, entendida
como uma religião afro-brasileira.

20
Walter BENJAMIN apud Homi K. BHABHA, O local da cultura, p. 238.
26

Como forma de esclarecer os conceitos fundamentais, iluminar o objeto,


fundamentar e desenvolver as hipóteses, optamos por utilizar, inicialmente, o
conceito de cultura popular desenvolvido por Renato Ortiz21 e ampliado por Gomes e
Pereira22, que afirma que a cultura popular possui fronteiras tanto internas (éticas e
culturais) quanto externas (sociais) flexíveis, porque ela não é algo simples, mas,
pelo contrário, um fenômeno complexo, construído socialmente, que carrega em si
uma extrema variedade, vista não somente na formação das inúmeras culturas
populares, mas também nas suas diversas expressões. Porém, apesar de ter
manifestações versáteis, a cultura popular carrega em si alguns pontos em comum,
que servem de base para uma aproximação inicial e, mais do que isso,
proporcionam a sua força vital:

1) Tem na sua base culturas que se produziram sob o estigma da dominação,


tais como a cultura indígena, negra, cabocla e escrava, (i)migrante, dentre outras;

2) Possui uma forma própria de estar no mundo, um tipo de consciência


específica, que é chamada por Ortiz23 de consciência fragmentada, que lhe confere:
a) mobilidade dos elementos que a compõem, isto é, quando eles perdem sua
função num determinado setor, encontram espaço nos setores que sobreviveram; b)
fragmentariedade, caráter assistemático e heterogeneidade, que lhe dá certa
autonomia, uma bricolagem dos pedaços, para atender as mais diversas finalidades,
no sentido de filtrar e de se apropriar de informações, de fatos e de experiências.

A cultura afro-brasileira é componente ativo da cultura popular, representando


o processo histórico-social de transformação das tradições africanas no espaço
brasileiro e a adaptação a novos contextos, que desencadeou a formação da cultura
ou da tradição afro-brasileira. Os africanos e os afro-descendentes articulam-se
como portadores do modelo cultural alternativo. “O traço definidor dos homens
negros dentro da cultura popular reside no fato de serem também portadores de
tradições culturais africanas preservadas ou recriadas no Brasil”24. É necessário o
reconhecimento do africano e do afro-descendente como sujeito que elaborou uma
ordem sócio-cultural significativa. Há certas especificidades dos modelos culturais,

21
Cf. Renato ORTIZ, A consciência fragmentada. As Idéias de ORTIZ encontradas neste livro estão,
fortemente, baseadas no que foi proposto por GRAMSCI como cultura popular.
22
Cf. Núbia Pereira de Magalhães GOMES; Edimilson de Almeida PEREIRA, Mundo encaixado.
23
Cf. Renato ORTIZ, A consciência fragmentada, p. 67-89.
24
Núbia Pereira de Magalhães GOMES; Edimilson de Almeida PEREIRA, Mundo encaixado, p. 33.
27

que mostram o diálogo que estabelecem entre si, realçando suas diferenças. O
regime escravocrata gerou na cultura afro-brasileira uma situação ambivalente, que
revela integração e marginalização:

Os manipuladores do regime escravista integraram a cultura afro-brasileira ao


processo de nossa formação histórico-social, pois ainda que a
discriminassem, ela era o inevitável interlocutor que possibilitava ao grupo
dominante delinear sua identidade e sua ideologia. Essa integração revestiu-
se dos mais variados aparatos, expressos nas teorias da democracia racial,
do embranquecimento da cultura brasileira, da amenidade do regime
escravista, da sensualidade e da ingenuidade da cultura afro-brasileira. Desse
modo, integrar a cultura afro-brasileira aos padrões da cultura dominante
significou encaixá-la num outro modelo, mas destituindo-a de sua identidade
e significação. Encaixar o saber dos negros no mundo dos brancos obrigou os
primeiros a se desencaixarem de sua tradição cultural.25

Ainda segundo os autores, a cultura popular e a cultura afro-brasileira são


propostas de visão de mundo integradas e marginalizadas pelo modelo cultural
dominante. A cultura afro-brasileira relaciona-se com a cultura popular, mas possui
suas especificidades que atingem a etnia negra. Participa da ambigüidade que
marca a cultura popular, mas acrescenta-lhe a questão étnica: reproduz tanto as
regras de inferioridade racial oriunda da classe dominante (auto-discriminação),
como também realça os valores de sua etnia (auto-estima). A ambigüidade da
cultura afro-brasileira se revela entre as camadas desfavorecidas, tendo como
especificidade a tentativa de afirmação da identidade social fraturada; pois além de
lidar com o componente da dependência sócio-econômica, precisa lidar com a
reconstrução da personalidade de seus agentes. Através dela é possível revelar a
estrutura social, política e econômica, representando a possibilidade de decifrarmos
enigmas que fazem parte da identidade de cada cidadão e da sociedade mais
abrangente.

As expressões religiosas bantú são sincréticas e reflexos da religiosidade


popular, consideradas exemplos de religiosidades afro-brasileiras, pois possuem
matrizes africanas. Na formação das religiões afro-brasileiras, houve um processo
de encontros culturais não só entre as diversas etnias trazidas pelo tráfico negreiro,
como também entre os grupos africanos e outras culturas, como a européia e a

25
Núbia Pereira de Magalhães GOMES; Edimilson de Almeida PEREIRA, Mundo encaixado, p. 34.
28

indígena. Neste encontro o que se observa são processos de reorganização da


tradição cultural, feitos com o intuito de convivência, criando, assim, um
denominador comum cultural de cunho sincrético, que ocorre dentro da realidade
cotidiana, a partir de processos de apropriação que são tensos e aflitivos, uma vez
que pedem negociações de significados dos processos culturais. No Brasil, o
encontro de diversas culturas, africanas ou não, é marcado por um lento processo
de integração que se dá através de trocas materiais e simbólicas. Esse processo
pode ser chamado de ressignificação cultural, que é feito em contextos, muitas
vezes conflituosos, atravessados por relações de poder, geradas por encontros
culturais que possuem assimetrias.

Trabalhamos com o conceito de cultura desenvolvido por Geertz26,


entendendo-o como um sistema de significados que não é neutro, conferindo sentido
/ significado às ações e às vivências, formando cadeias valorativas, representadas
através de condições e de produtos. As pessoas estão presas a uma teia de
significados e, desta maneira, as suas ações são atos simbólicos que adquirem
sentido dentro desta cadeia de significados. Portanto, a dinâmica cultural é
entendida como um processo de permanente reorganização de representações
religiosas, sociais e políticas. Segundo ele, os símbolos que formam esta teia:

... são dados, na sua maioria. Ele os encontra já em uso corrente na


comunidade quando nasce e eles permanecem em circulação após a sua
morte, com alguns acréscimos, subtrações e alterações parciais dos quais
pode ou não participar. Enquanto vive, ele se utiliza deles, ou de alguns
deles, às vezes deliberadamente e com cuidado, na maioria das vezes
espontaneamente e com facilidade, mas sempre com o mesmo propósito:
para fazer uma construção dos acontecimentos através dos quais ele vive,
para auto-orientar-se no “curso corrente das coisas experimentadas”. 27

Podemos perceber que a cultura se atualiza na ação dos sujeitos,


modificando o sentido dos produtos culturais. A história é ordenada culturalmente de
diferentes modos nas diversas sociedades, de acordo com os sistemas de
significação, ao mesmo tempo em que os esquemas culturais são ordenados
historicamente. Há uma relação dialética entre as práticas produzidas na história e
as matrizes culturais, sendo que o indivíduo é o agente desta relação. Os elementos

26
Cf. Clifford GEERTZ, A interpretação das culturas.
27
Ibid., p. 33.
29

simbólicos de cada cultura estão em permanente dinamismo, havendo uma


atualização constante. A partir da tensão é que se dá a criação do novo.

O processo de doação de sentido se dá de uma maneira bastante peculiar,


quando o encontro entre culturas se dá através de relações desiguais de poder.
Cada grupo étnico está amarrado a uma teia de significados que pode ser negociada
no encontro cultural. Há momentos de socialização, de conflito, de tensão, de
negociação, de domesticação e de resistência. O que se pode observar é que no
processo de encontro cultural, há ou não a apropriação de símbolos constitutivos,
que podem ou não ser eficazes na nova produção cultural gerada dentro de uma
sociedade conflitiva. Portanto, a cultura é entendida como um padrão dinâmico de
significados transmitidos historicamente, um sistema de concepções herdadas, que
são expressas em formas simbólicas, por meio das quais os seres humanos
comunicam, perpetuam e desenvolvem seus conhecimentos e suas atividades em
relação à vida, através da memória coletiva ou da tradição.

Ainda baseados em Geertz, assumimos a idéia de que os símbolos religiosos


sintetizam o ethos de um povo – tom, caráter, qualidade de vida, estilo e disposições
morais e estéticas – e sua visão de mundo – representação que se faz do que são
as coisas na atualidade e as idéias abrangentes sobre ordem, por isso:

Na crença e na prática religiosa, o ethos de um grupo torna-se


intelectualmente razoável porque demonstra representar um tipo de vida
idealmente adaptado ao estado de coisas atual que a visão de mundo
descreve, enquanto essa visão de mundo torna-se emocionalmente
convincente por ser apresentada como uma imagem de um estado de coisas
verdadeiro, especialmente bem-arrumado para acomodar tal tipo de vida.
Essa confrontação e essa confirmação mútuas têm dois efeitos fundamentais.
De um lado, objetivam preferências morais e estéticas, retratando-as como
condições de vida impostas, implícitas num mundo com uma estrutura
particular, como simples senso comum dada a forma inalterável da realidade.
De outro lado, apóiam essas crenças recebidas sobre o corpo do mundo
invocando sentimentos morais e estéticos sentidos profundamente como
provas experimentais da sua verdade. Os símbolos religiosos formulam uma
congruência básica entre um estilo de vida particular e uma metafísica
específica (implícita, no mais das vezes) e, ao fazê-lo, sustentam cada uma
delas com a autoridade emprestada do outro. 28

28
Clifford GEERTZ, A interpretação das culturas, p. 66-67.
30

Assim, para ele, a religião é um sistema de símbolos que atua para


estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos
seres humanos, através da formulação de conceitos de uma ordem de existência
geral, vestindo essas concepções com tal certeza que as disposições e as
motivações parecem singularmente realistas. Já os símbolos religiosos oferecem
uma garantia não apenas para a capacidade de compreensão do mundo, mas
também para a clareza do sentimento e da definição das emoções, que permitam ao
ser humano suportar a realidade, já que “[o símbolo religioso]... focaliza o problema
do sofrimento humano e tenta enfrentá-lo colocando-o num contexto significativo,
fornecendo um modo de ação através do qual ele possa ser expresso, possa ser
entendido expressamente e, sendo entendido, possa ser suportado”29. A importância
da religião está na capacidade de fornecer um arcabouço de idéias gerais, em
termos das quais o ser humano pode dar uma forma significativa à parte da
experiência intelectual, emocional e moral. A religião, como um sistema de
significados incorporado aos símbolos, relaciona-se com os processos sócio-
estruturais e psicológicos.

Como observamos, as expressões religiosas bantú, enquanto um sistema


simbólico de doação de sentido, formaram-se mediante o encontro entre diversas
culturas, numa relação de poder desigual. Portanto, trabalhamos com a idéia de que
as expressões religiosas bantú são formas híbridas, que causam conseqüentemente
identidades híbridas. Estas expressões religiosas bantú constituíram-se além dos
discursos ou do sistema simbólico de subjetividades tradicionais e se focalizaram
nos momentos ou nos processos que são produzidos na articulação das diferenças
culturais, naquilo que Bhabha30 chamou de “entre-lugares”. No “entre-lugares” está o
terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação individual e coletiva que
dão início a novos sentidos de identidade ou a lugares inovadores de colaboração e
de contestação no ato de definir a própria sociedade. É na emergência das
aberturas, na sobreposição e no deslocamento de domínios da diferença, que as
experiências intersubjetivas e coletivas de um grupo, o interesse comunitário e o
valor cultural são negociados. O trabalho fronteiriço da religiosidade popular exige
um encontro com o novo, como ato de tradução cultural, renovando o passado, que
transforma e interrompe a atuação do presente.
29
Clifford GEERTZ, A interpretação das culturas, p. 77.
30
Cf. Homi BHABHA, O local da cultura.
31

Como os sistemas culturais são construídos no espaço contraditório e


ambivalente da expressão e do discurso, não podemos pensar em originalidade e
em pureza inerentes às tradições. Este espaço garante que os significados e os
símbolos da cultura não tenham unidade ou rigidez primordial e, por isso, podem ser
apropriados, traduzidos, reinventados e lidos de outro modo. Tal situação gera uma
identidade híbrida, formada nos encontros culturais desiguais:

O hibridismo é uma problemática de representação e de individuação colonial


que reverte os efeitos da recusa colonialista, de modo que outros saberes
“negados” se infiltrem no discurso dominante e tornem estranha a base de
sua autoridade – suas regras de reconhecimento. 31

Assim, para o autor, no hibridismo se observa uma dupla tradução: os


africanos bantú são lidos a partir de outras culturas, ao mesmo tempo em que outras
culturas lêem os elementos culturais como uma chave africana. Essa imagem não
pode ser nem original (em virtude do ato de repetição que a destrói), nem idêntica
(em virtude da diferença que a define). Portanto:

No espaço duplamente inscrito da representação colonial, onde a presença


da autoridade – o livro inglês – é também uma questão de sua repetição e
deslocamento, onde transparência é techne, há certa resistência à visibilidade
imediata de tal regime de reconhecimento. Essa resistência não é
necessariamente um ato oposicional de intenção política, nem é a simples
negação ou exclusão do “conteúdo” de outra cultura, como uma diferença já
percebida. Ela é o efeito de uma ambivalência produzida no interior das
regras de reconhecimento dos discursos dominantes, na medida em que
estes articulam os signos da diferença cultural, conferindo-lhes novas
implicações dentro das relações diferenciais de poder colonial – hierarquia,
normalização, marginalização e assim por diante. Pois a dominação colonial é
obtida através de um processo de recusa que nega o caos de sua intervenção
como Entstellung, sua presença deslocatória com o fim de preservar a
autoridade de sua identidade nas narrativas teleológicas do evolucionismo
histórico e político. 32

A partir destes encontros culturais, destas negociações e da criação de uma


cultura híbrida e traduzida, podemos afirmar que também a identidade torna-se
híbrida, já que ela mantém uma relação dialética com a cultura, uma vez que as

31
Homi BHABHA, O local da cultura, p. 165.
32
Ibid., p. 161.
32

identidades constituem a cultura, ao mesmo tempo em que são constituídas por ela.
Segundo Ciampa, a identidade é a articulação da diferença e da igualdade que
ocorre durante a atividade. Apesar de a identidade apresentar-se, aparentemente,
estática e imutável, sempre há possibilidade de transformação, tal como acontece
com o dinamismo cultural:

São múltiplas personagens que ora se conservam, ora se sucedem; ora


coexistem, ora se alternam. Estas diferentes maneiras de se estruturar as
personagens indicam como que modos de produção da identidade.
Certamente são maneiras possíveis de uma identidade se estruturar; quando
há predominância de uma talvez se pudesse falar num modo dominante de
produção. (...) Por ora, queremos apenas apontar o fato de que uma
identidade nos aparece como a articulação de várias personagens,
articulação de igualdades e diferenças, constituindo, e constituída por, uma
história pessoal. Identidade é história. Isto nos permite afirmar que não há
personagens fora de uma história, assim como não há história (ao menos
história humana) sem personagens. 33

Podemos afirmar, portanto, que determinada identidade é conseqüência das


relações culturais, ao mesmo tempo em que é condição dessas relações, sendo a
história recolocada a cada momento. O ser humano transforma-se inevitavelmente e
ao se transformar, sustenta a mesmice, ou seja, mediante a mudança é possível
alcançar a permanência da identidade. De qualquer forma, é a estrutura social mais
ampla que oferece os padrões de identidade. A posição de uma identidade resulta
de um processo na medida em que dois objetos são relacionados, considerando-se
um deles como o padrão que serve para identificar o outro. Uma identidade
(escravizado) se identifica e é identificada como tal por se encontrar na situação
equivalente de outras identidades. Se ele é escravizado, sua identidade de
escravizado está constituída (é imutável). Em cada momento da existência, embora
o indivíduo seja uma totalidade, manifesta-se uma parte do indivíduo (escravizado),
como desdobramento das múltiplas determinações a que ele está sujeito. Nunca se
comparece frente aos outros apenas como portador de um único papel, mas uma
totalidade parcial (homem /mulher, escravizado, bantú).

A identidade do sujeito desenvolve-se a partir de uma identidade que,


constantemente, está sendo constituída por papéis e mediada simbolicamente, pois:
1) a identidade coletiva é possível somente sob forma reflexiva, no sentido de ser
33
Antônio da Costa CIAMPA, A estória de Severino e a história de Severina, p. 156-157.
33

fundada na consciência, como um processo contínuo de aprendizagem, que ocorre


através de comunicações; 2) para ser estável, a identidade não tem mais
necessidade de conteúdos fixos, embora possa ter necessidade, de tempos em
tempos, de ter conteúdos; e 3) a nova identidade não pode ser orientada unicamente
pelos valores da tradição, mas também não pode se orientar prospectivamente, isto
é, apenas através da tradução.

A identidade, assim, é alcançada por um processo de socialização ou de


interiorização da realidade, sendo realizada ao longo da vida de cada pessoa, em
torno de suas relações sociais. Há uma relação dialética com a sociedade, sendo
mantida, modificada e remodelada pelas relações sociais e culturais. Podemos falar,
portanto, de um sujeito que está se tornando fragmentado, composto de múltiplas
identidades, algumas vezes, contraditórias. O próprio processo de identificação, no
qual projetamos nossa identidade cultural, transformou a identidade em algo
provisório, variável e problemático, não havendo uma identidade fixa, essencial ou
permanente: “A identidade (...) é formada e transformada continuamente em relação
às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais
que nos rodeiam”34. O sujeito assume identidades diversas em diferentes momentos,
que não são, muitas vezes, unificadas ao redor de um indivíduo coerente.

Ainda para o autor, os grupos culturais em que nascemos constituem-se em


uma das principais fontes de identidade cultural. Não nascemos com estas
identidades culturais, mas elas são formadas e transformadas no interior da
representação. Sabemos o que é ser africano de tradição bantú, por exemplo,
devido ao modo como esta tradição veio a ser representada, isto é, como um
conjunto de significados. As identidades estão sujeitas ao plano da história, da
política, da representação e da diferença, não sendo unitárias ou puras, girando em
torno da tradução. Essas identidades culturais não são fixas, mas estão em
transição entre diferentes posições, retirando seus recursos de diversas tradições
culturais, produto de complicados cruzamentos e misturas culturais. Segundo Hall,
as identidades diaspóricas:

... atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas


que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm

34
Stuart HALL, As identidades cultuais na pós-modernidade, p. 13.
34

fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a
ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as
novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas
e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os traços das
culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas
quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão
unificadas no velho sentido, porque elas são irrevogavelmente, o produto de
várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo
tempo, a várias “casas” (e não a uma “casa” particular). As pessoas
pertencentes a essas culturas híbridas têm sido obrigadas a renunciar ao
sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural “perdida”
ou de absolutismo étnico. Elas estão irrevogavelmente traduzidas. (...) Eles
devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas
linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas. 35

Portanto, a tradução é uma maneira de construir sentidos que influenciam e


organizam ações e concepções que temos a respeito de nós mesmos. Esses
sentidos estão presentes em histórias que são contadas, em mitos que são
relatados, em memórias que conectam o presente com o passado e em imagens
que são construídas coletivamente, através da tradição oral e da memória coletiva.
Quando falamos a respeito da memória e de aspectos da tradição, é possível afirmar
que o indivíduo participa de dois tipos de memória: a individual e a coletiva:

Por um lado, suas lembranças teriam lugar no contexto de sua personalidade


ou de sua vida pessoal – as mesmas que lhes são comuns com outras só
seriam vistas por ele apenas no aspecto que o interessa enquanto se
distingue dos outros. Por outro lado, em certos momentos, ele seria capaz de
se comportar simplesmente como membro de um grupo que contribui para
evocar e manter lembranças impessoais, na medida em que estas interessam
ao grupo. Se essas duas memórias se interpenetram com freqüência,
especialmente se a memória individual, para confirmar algumas de suas
lembranças, para torná-las mais exatas, e até mesmo para preencher
algumas de suas lacunas, pode se apoiar na memória coletiva, nela se
deslocar e se confundir com ela em alguns momentos, nem por isso deixará
de seguir seu próprio caminho e, toda essa contribuição de fora é assimilada
e progressivamente incorporada à sua substância. Por outro lado, a memória
coletiva contém as memórias individuais, mas não se confunde com elas –
evolui segundo suas leis e, se às vezes determinadas lembranças individuais
também a invadem, estas mudam de aparência a partir do momento em que
são substituídas em um conjunto que não é mais uma consciência pessoal. 36

35
Stuart HALL, As identidades cultuais na pós-modernidade, p. 88-89. (O grifo é nosso)
36
Maurice HALBWACHS, A memória coletiva, p. 71-72.
35

Assim, toda memória coletiva tem como suporte a tradição de um grupo


limitado no tempo e no espaço, retendo apenas aquilo que se mostra semelhante.
Cada um dos grupos tem uma história, distinguindo personagens e acontecimentos,
sendo que as semelhanças passam para primeiro plano. Examinando seu passado,
o grupo nota que a tradição continua, apesar das mudanças e os membros
pertencentes a ela tomam consciência de sua identidade através do tempo, visando
perpetuar os sentimentos e as imagens que formam a substância daquilo que os
distingue dos outros: “... há uma história viva, que se perpetua ou se renova através
do tempo, (...) É neste passado vivido, bem mais do que no passado apreendido
pela história escrita, em que se apoiará a memória”37. O essencial é que subsistam
os traços pelas quais ele se distingue dos outros e que estejam marcados em todo o
seu conteúdo:

Contudo, são as repercussões, não o acontecimento, que entram na memória


de um povo que passa pelo evento, e somente a partir do momento em que
elas o atingem. Pouco importa que os fatos tenham ocorrido no mesmo ano,
se esta simultaneidade não foi observada pelos contemporâneos. Cada grupo
localmente definido tem sua própria memória e uma representação só dele de
seu tempo. 38

Todas as ações do grupo podem ser traduzidas em termos espaciais. Quando


alguma configuração dentro do grupo se modifica, como, por exemplo, no processo
de diáspora, o grupo não é mais o mesmo, a memória coletiva não é mais a mesma,
como também o ambiente material, requerendo novas formas de saberes e de
fazeres:

Cada aspecto, cada detalhe desse lugar tem um sentido que só é inteligível
para os membros do grupo, porque todas as partes do espaço que ele
ocupou correspondem a outros tantos aspectos diferentes da estrutura e da
vida de sua sociedade, pelo menos o que nela havia de mais estável.39

Portanto, quando se modifica o espaço, há uma tendência, em um primeiro


momento, dos grupos se agarrarem aos antigos arranjos, pois: “Os costumes locais

37
Maurice HALBWACHS, A memória coletiva, p. 86.
38
Ibid., p. 130.
39
Ibid., p. 160.
36

resistem às forças que tendem a transformá-los e essa resistência permite entender


melhor a que ponto nesse tipo de grupo a memória coletiva se apóia nas imagens
espaciais”40. Essa resistência emana dos membros do grupo, no sentido de criar um
saber compartilhado, que representa aquilo que é selecionado pela memória
coletiva. Por outro lado, sabemos que apenas pedaços desses saberes e fazeres
podem ser transformados e expressados através das práticas culturais.

Ocorre que as pessoas portadoras de determinada memória e pertencentes a


uma tradição têm um papel ativo para selecionar o que deve ser mantido, o que nos
leva ao conceito de utopia. Segundo Bloch41, a ação e o entendimento dos
indivíduos não são meramente contemplativos no sentido de aceitar as coisas como
são ou estão, mesmo nos momentos de extrema violência, como aqueles
vivenciados por africanos e por afro-descendentes de tradição bantú. O que se tem
é um entendimento participativo, que permite ver as coisas em movimento,
projetando possibilidades de transformação e de melhora. Ao se tomar consciência
de algo, percebe-se a chance de mudança de uma situação difícil.

Apesar de ser difícil a satisfação completa daquilo que foi antecipado, em


função das múltiplas negociações e das dificuldades de concretização, a
transposição efetiva não vai em direção ao mero vazio de algo que se encontra
diante de nós, mas ela capta o novo como sendo mediado pelo existente em
movimento, conhecendo e ativando a tendência do curso dialético instalado pela
história. A esperança, assim, como motor da utopia, é um afeto prático e militante:
“Quando da esperança surge a confiança, então está efetiva ou praticamente
presente o afeto expectante que se tornou absolutamente positivo, o pólo oposto do
desespero”42. As intenções voltadas para o futuro adentram uma classe de
consciência que é antecipatória, caminhando para um campo utópico ou daquilo que
ainda não veio a ser concretizado. Mais fácil e até mais satisfatória é, como, muitas
vezes, ainda se mostra, a esperança, pelo menos o pressentimento de que o que se
espera vai ocorrer em breve:

O afeto expectante mais importante, o afeto do anseio, portanto o auto-afeto


por excelência, continua sendo constantemente a esperança, pois os afetos

40
Maurice HALBWACHS, A memória coletiva, p. 162.
41
Cf. Ernest BLOCH, O princípio esperança.
42
Ibid., p. 114.
37

expectantes negativos da angústia e do medo são totalmente passivos,


oprimidos, presos, não obstante toda a repulsão que exercem. Neles se
manifesta um tanto da autodestruição e do nada para o expectante contrário à
angústia e ao medo, é a mais humana de todas as emoções e acessível
apenas aos seres humanos. Ela tem como referência, ao mesmo tempo, o
horizonte mais amplo e mais claro. Ela representa aquele appetitus no ânimo
que não só o sujeito tem, mas no qual ele ainda consiste essencialmente,
como sujeito não plenificado.43

Assim, a utopia é uma inquietação para frente, inquietação ativa, já que é o


novo começo contra a rigidez, o qual vai tomando forma intuitivamente. Torna-se
criativa e se liga com a fantasia, principalmente com a fantasia do objetivamente
possível. “Portanto, não só as subjetivas mas também as objetivas condições de
enunciação de um novum têm de estar prontas, maduras, para que esse novum
possa passar da mera incubação para a irrupção e a súbita noção de si mesmo”44.
Sabendo-se que o tempo da utopia é sempre o tempo presente.

Como forma de responder às indagações colocadas anteriormente e trabalhar


a hipótese, fizemos o levantamento da bibliografia referente ao tema; a seleção da
bibliografia a ser utilizada, a leitura e a análise dos textos importantes; o fichamento
dos textos, a organização e a análise do material selecionado por capítulos; a
pesquisa de campo; a análise dos dados obtidos no trabalho de campo à luz da
bibliografia e a elaboração dos capítulos da tese. Este trabalho contou com pesquisa
de campo a partir de um referencial já consolidado, buscando-se compreender os
dados colhidos no campo de estudo e se tentando chegar a algum tipo de
sistematização. Quanto aos procedimentos metodológicos usados durante a
pesquisa de campo foram feitas entrevistas semi-dirigidas com indivíduos
pertencentes à religião umbandista e residentes em São Paulo; trabalho etnográfico
em um terreiro de umbanda na cidade de São Paulo, durante as giras e durantes os
momentos de preparo e de dispersão da gira, com foco na questão dos rituais; e
entrevistas e grupo focal com africanos pertencentes à tradição bantú residentes em
São Paulo. Além disso, utilizamos também fontes primárias com a análise de
documentos históricos: processos-crimes antigos eclesiásticos, pertencentes ao
Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo. Foi feita uma viagem a Moçambique,
que teve como objetivo colher depoimento de pessoas moçambicanas, através de

43
Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 77.
44
Ibid., p. 124.
38

entrevistas abertas, com certa idade, tendo em vista o resgate de memória da


tradição, já que:

O aprendizado das significações da cultura popular revela visões de mundo


específicas, em muitos casos divergentes daquelas às quais os grupos
dominantes estão habituados. Compete ao “historiador etnográfico”
decodificar essas visões, entendendo-as como parte integrante da sociedade
global. O saber popular não é manifestação exótica, mas sim, um referencial
importante para que a sociedade possa conhecer-se na totalidade.45

Cabe um pequeno comentário a respeito da utilização de instrumentos


metodológicos diversos, como entrevistas e depoimentos, grupo focal e trabalho
etnográfico, além da documentação, pois quando se estuda as classes populares,
há uma insuficiência documental. O trabalho com fontes orais deu-nos a
possibilidade para que as experiências vividas por pessoas, que foram deixadas de
lado pela historiografia tradicional, fossem restituídas a um lugar da história que eles
contribuíram para fazer:

O uso de fontes orais nos permite – como dissemos -, por um lado, um


aprofundamento na história de grupos sociais que, por razões diversas,
estiveram marginalizados ou quase ausentes das fontes documentais
escritas; de outro lado, nos permite penetrar na percepção do processo
histórico feita por indivíduos ou grupos concretos. 46

As fontes orais permitiram o acesso à forma como determinada situação foi


significada pelas pessoas, possuindo dois elementos essenciais: a democratização
da própria história e a vitalidade de uma história que devolve às pessoas seu próprio
passado com suas próprias palavras, reafirmando-lhe um protagonismo que haviam
perdido em benefício de uns poucos. A experiência social do informante levou-o a
desenvolver sua perspectiva de interpretação da vida em sociedade, considerando
sua elaboração ideológica, pois é a partir dela que o informante desenvolve as suas
relações. Portanto, as fontes orais foram vistas não como uma alternativa às fontes
escritas, mas como outro tipo de fonte, não apenas necessária, mas imprescindível

45
Núbia Pereira de Magalhães GOMES; Edimilson de Almeida PEREIRA, Mundo encaixado, p. 28.
46
Joan del Alcàzar i GUARRIDO, As fontes orais na pesquisa histórica, Revista Brasileira de História,
p. 43.
39

para se fazer essa pesquisa, pois notamos insuficiências ou inexistências de fontes


arquivísticas, no que se refere à religiosidade dos grupos de tradição bantú, em
especial, nos seus rituais.

Assim, o presente trabalho está organizado em seis capítulos, não havendo


divisão em partes, uma vez que entendemos que há uma continuidade entre eles.
Além disso, gostaríamos de falar a respeito do movimento da tese. A tese possui
quatro capítulos que podemos chamá-los de estáveis, isto é, referem-se a um
período histórico longo ou não se referem a um período específico: o primeiro versa
sobre a tradição bantú, o terceiro sobre o período da escravidão, o quinto sobre o
início do século XX e o sexto se refere ao momento atual. Há dois outros capítulos,
que dizem respeito a um período de tempo mais curto e que entendemos como
períodos de liminaridade, como ritos de passagem. Um deles, o segundo capítulo,
versa sobre o processo de diáspora, uma liminaridade para baixo, e o outro, o quarto
capítulo, sobre o período do pré e do pós-abolição, uma liminaridade para cima.

No primeiro capítulo abordamos, de maneira propedêutica, a questão da


tradição bantú, entendendo que ela não é algo fixo e que não se manteve estática
ao longo do tempo seja no Brasil, seja na África. O capítulo, de maneira geral, está
permeado pelo trabalho de campo realizado com africanos de tradição bantú. Para
caracterizarmos essa tradição, falamos a respeito das migrações internas ocorridas
na África e das trocas culturais, fruto deste encontro. Apresentamos a visão de
mundo bantú, bem como a sua religiosidade, com destaque para dois pontos: o Ser
Supremo e os antepassados. Quanto ao culto aos antepassados, fazemos uma
descrição deste ritual. Por fim, trabalhamos a religiosidade cotidiana, permeada pela
magia nos seus mais diversos aspectos: adivinhação, possessão, medicina
tradicional, curandeirismo / feitiçaria, tendo claro que esses aspectos encontram-se
ligados à visão de mundo e à religiosidade apresentada.

No segundo capítulo falamos a respeito da transformação do africano livre em


escravizado no Brasil. Temos o intuito de apontamos os processos de hibridismo
ocorridos antes da chegada dos africanos de tradição bantú ao Brasil. Abordamos a
escravidão doméstica que existia na África, fazendo um contraponto com a
escravidão mercantil, fruto do comércio de escravizados que ocorreu por lá.
Acompanhamos, então, os africanos de tradição bantú na sua longa trilha até a
chegada ao Brasil. Falamos a respeito da captura, da estada nos fortes e nos
40

barracões, da travessia no navio negreiro e da chegada ao Brasil. Vemos que houve


um processo de transformação identitária, um rito de passagem, que carregou
consigo morte e renascimento de pessoas e de tradições.

No terceiro capítulo abordamos o período da escravidão no Brasil, focados no


estado de São Paulo. Como cobrimos um período grande e um tema complexo,
destacamos um dos seus aspectos que é a relação da Igreja Católica com a
escravidão. Inicialmente, fazemos uma discussão a respeito da posição da Igreja
Católica frente à escravidão, bem como desta atitude a partir das Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia, desvelando o entendimento dos escravizados
frente às leis. Também utilizamos os processos-crimes eclesiásticos dos séculos
XVIII e XIX, buscando, através de depoimentos, detectar fragmentos ou traços da
religiosidade bantú. Baseados nos dados coletados, falamos a respeito de práticas
afro-brasileiras de tradição bantú presente no período escravocrata.

No quarto capítulo, outro capítulo que se propõe a ser um período de


liminaridade, um rito de passagem, abordamos os períodos do pré e do pós-
abolição, quando houve uma nova mudança identitária, isto é, de escravizados para
libertos. Assim, apresentamos o período do pré-abolição, o tempo do fim da
escravidão propriamente dita e o período do pós-abolição. A partir do levantamento
bibliográfico feito, discorremos a respeito dos projetos de liberdade, com foco no
território e a questão da localidade, na família e a questão da identificação e nos
antepassados e a questão do encontro, permeados pela questão da religiosidade.

No quinto capítulo falamos a respeito da umbanda, enquanto uma utopia


bantú. Após a conquista da liberdade houve, por parte dos africanos e dos afro-
descendentes de tradição bantú, a expectativa de serem inseridos na sociedade que
se constituída, tornando-se cidadãos. Fazemos a recuperação tanto da Abolição da
Escravidão quanto da Proclamação da República, no sentido de apontar o quanto
estes fatos históricos proporcionaram aos africanos e aos afro-descendentes de
tradição bantú possibilidades de inserção social. Tal fato ficou aquém das suas
expectativas, enquanto que a religião apresentou-se como uma alternativa.
Abordamos, então, duas formas de religiosidade – a macumba e a umbanda – que
possuíam uma base bantú. Além de discutirmos essas religiosidades, apresentamos
obras falam a respeito dos aspectos bantú na umbanda, para, em seguida, colocar o
nosso entendimento: a umbanda como utopia bantú.
41

No sexto capítulo, por fim, quase como uma continuidade do quinto capítulo,
falamos a respeito dos aspectos bantú na umbanda, mas, agora, na atualidade.
Inicialmente, abordamos a estruturação da umbanda, desvelada através da
presença da família, do território e dos antepassados, que na umbanda foram
transformados em família-de-santo, em espaço doméstico ou terreiro e em guias e a
questão da linhagem. Apresentamos, então, duas linhas existentes na umbanda:
pretos-velhos e caboclos, buscando relações com aquilo que é bantú, especialmente
a questão dos antepassados. Descrevemos, então, os símbolos e um ritual
umbandista – a gira - e suas conexões com aspectos da religiosidade bantú, para,
ao final nos debruçarmos sobre o cotidiano do umbandista, apontando que a visão
de mundo e a magia inserida no cotidiano muito se aproximam daquilo que vimos a
respeito do cotidiano bantú.
42

CAPÍTULO I: ENCONTRANDO OS GRUPOS DE TRADIÇÃO


BANTÚ E A SUA RELIGIOSIDADE

Respeitem meus cabelos, brancos


Respeitem meus cabelos, brancos / Chegou a hora de
falar / Vamos ser francos / Pois quando um preto fala / O
branco cala ou deixa a sala / Com veludo nos tamancos /
Cabelo veio da África / Junto com meus santos /
Benguelas, zulus, gêges / Rebolos, bundos, bantos /
Batuques, toques, mandingas / Danças, tranças, cantos /
Respeitem meus cabelos, brancos / Se eu quero pixaim,
deixa / Se eu quero enrolar, deixa / Se eu quero colorir,
deixa / Se eu quero assanhar, deixa / Deixa, deixa a
1
madeixa balançar

A música de Chico César é uma grande inspiração para o início deste


capítulo. Sinteticamente, ele passeia por alguns dos grandes temas que também
atravessaremos – as tradições africanas, as expressões culturais trazidas por elas,
os encontros culturais nem sempre amistosos. De toda a música, interessa-nos,
especialmente, os grupos de tradição bantú. Não temos a intenção de recontar a
história dessa tradição africana, mas nos centrarmos naquilo que nos diz respeito à
religiosidade presente nela, com um caráter propedêutico. Portanto, este capítulo
tem como objetivo compreender com detalhes essa religiosidade e algumas práticas
culturais a ela relacionadas, uma vez que muitas pessoas pertencentes a essa
tradição foram trazidas ao Brasil durante o tráfico de escravos.

Todo o capítulo é permeado pelo trabalho de campo. Contamos com


entrevistas e realização de grupo focal junto a africanos residentes no Brasil,
provenientes do Congo, do Quênia e de Gana, além de entrevistas realizadas em
Maputo, principalmente com pessoas que se encontram acima da faixa dos
cinqüenta anos. A idéia de fazer uma composição entre a pesquisa bibliográfica e o
trabalho de campo deu-se, principalmente, por dois motivos. O primeiro diz respeito
à proposta de se pensar os conceitos trabalhados a partir de uma visão
contemporânea, contrapondo-a com os estudos teóricos realizados; e o segundo
abre um espaço para que africanos de tradição bantú tenham voz em um trabalho

1
Chico CÉSAR. Respeitem meus cabelos, brancos. n. 2407001-2 MZA Music – Abril Music, Manaus,
2002.
43

sobre essa tradição. Temos em mente a hipótese de que percepção de que a


tradição não é algo fixo, fato que observamos em Maputo, pois a tradição
encontrada lá não é mais a mesma que lemos nos livros. Ela foi afetada por
inúmeros processos históricos. Além isso, temos a idéia de que a tradição, a
religiosidade e a cultura, em suma, não estão isentas da ação dos sujeitos, o que
implica um entendimento do mundo africano, que é diferente do ocidental.

Por sabermos que a África não pode ser entendida como um todo
homogêneo, sendo formada por diversas tradições, que são subdivididas em tantas
outras, iniciaremos o capítulo falando a respeito das migrações empreendidas pelos
grupos de tradição bantú, das trocas culturais e da circulação de informações que
ocorreu para que se formasse essa grande tradição. Depois disso, antes de
abordarmos a tradição bantú propriamente dita, brevemente, buscaremos apontar os
motivos pelos quais entendemos o bantú como uma tradição e não como uma etnia,
uma cultura ou um grupo lingüístico.

Em seguida, entraremos em um momento mais conceitual do capítulo para


entender, em linhas gerais, os princípios da tradição bantú não apenas no que diz
respeito à religiosidade, mas àquilo que entendemos como uma visão de mundo que
tem como um de suas grandes bases as relações de interdependência. O bantú não
está só, está ligado a alguém, morto ou vivo; ou a algo, animal, vegetal e mineral.
Tal ligação, além da sua concretude, ocorre por meio da idéia de força ou energia
que perpassa todos os seres. Dentro dessa concepção de mundo cabe destaque à
questão da morte. Primeiro porque a morte é entendida como uma mudança
quantitativa de energia, não uma mudança qualitativa. Além disso, dentro da
tradição bantú, podemos dizer que os mortos estão presentes, uma vez que
influenciam, sobremaneira, a existência dos vivos. É a partir dessa relação com os
mortos que nos remeteremos à questão da religiosidade e do cotidiano.

A questão da religiosidade será trabalhada a partir de dois grandes eixos: os


antepassados e o Ser Supremo. Quanto aos antepassados, buscaremos
compreender quem são e qual o papel deles na vida dos vivos. Em relação ao Ser
Supremo, interessa-nos entendê-lo, já que ele tem forte presença na existência do
ser humano, uma vez que é o criador de tudo, mesmo que de maneira distanciada.

Por fim, vamo-nos deter no cotidiano bantú, que podemos chamar de mágico.
É mágico no sentido de que a magia é parte constituinte do dia-a-dia das pessoas
44

na atualidade. Curas, adivinhações, medicina tradicional, curandeirismo / feitiçaria e


possessão não são coisas que estão à margem do cotidiano. No fundo, são essas
práticas que dão o tom daquilo que se vive e do contato com os espíritos e com os
antepassados. Portanto, a magia não é algo que ocorre em momentos específicos e
circunscritos, mas é que está inserido nas vivências cotidianas, inclusive na
religiosidade.

O que notamos é que usos e costumes não são fixos, sendo que as práticas
culturais são constantemente produzidas, atualizadas e arranjadas, experimentadas
como reais em determinados momentos, auxiliando na construção de mundos
sociais e políticos particulares. Apresentar esta tradição, logo, é um primeiro esforço
de compreensão da sua lógica. Identificar os seus eixos fundamentais faz-se
importante para que possamos, depois, entender os processos de ressignificação
sofridos frente à diáspora, à escravidão, à liberdade, à modernidade e à atualidade.

1.1 – Circunscrevendo a tradição bantú

A tradição bantú formou-se ao longo da história da África, fruto de uma série


de deslocamentos e de migrações ocorridas dentro do próprio continente, o que lhe
deu certa feição. Como trabalhamos com a idéia de que os povos bantú estão
espalhados por grande parte da África, apontaremos os motivos pelos quais
podemos entender o que é bantú como tradição, mais precisamente uma tradição
oral, congregando uma série de pessoas.

1.1.1 – Deslocamentos bantú

A história dos grupos bantú começa a ser contada com uma série de
migrações dentro da própria África, que durou aproximadamente dois mil e
quinhentos anos. Segundo dados historiográficos2, durante o processo migratório, os
bantú teriam partido do atual Camarões e se espalhado pela África Central, Oriental
e do Sul. Esses deslocamentos foram ocasionados por um aumento da população, o
que obrigou a migração para terras mais férteis. Os acidentes geográficos foram os
obstáculos para a continuidade das migrações. Como conseqüência, temos uma

2
Cf. Marina de MELLO E SOUZA, África e Brasil africano.
45

mistura de diversos povos, bem como a presença daquilo que é bantú em várias
partes da África, conforme o mapa abaixo:

Figura 1 - Deslocamentos e migrações dos grupos bantú


Fonte: REPÚBLICA POPULAR DE MOÇAMBIQUE, História, p. 81

O resultado dos deslocamentos foi que mais da metade do continente


africano é formado, atualmente, por grupos de tradição bantú. O que nos interessa,
particularmente, é o fato de que, nesse processo, houve uma série de trocas
culturais, fruto da mistura de diferentes povos, que caracteriza essa tradição:
diversidade, porosidade, eixos fundamentais, acolhimento das diferenças e
mudanças constantes.

Segundo Lopes3, estas migrações ocorreram até o século X, quando esses


grupos desenvolveram técnicas agrícolas e metalúrgicas, criando instituições sociais

3
Cf. Nei LOPES, Bantos, malês e identidade cultural.
46

e se fixando em determinados territórios, passando a viver em aldeias4. Ao se


tornarem agricultores, fabricaram instrumentos de ferro e dominaram a metalurgia, o
que lhes deu certa superioridade sobre os povos que eram caçadores, coletores e
nômades, e fez com que fossem ocupando as terras desabitadas. Formaram-se
algumas línguas diferentes, em função do tipo de encontro cultural com os grupos
nômades que habitavam as regiões que estavam sendo ocupadas. Pode-se dizer
que houve um processo de hibridismo dentro do continente por parte dos grupos de
tradição bantú:

Desde longa data, nota-se um persistente deslocamento de populações que,


partindo da África, mesclaram-se com outras já assentadas, o mesmo
ocorrendo no sentido contrário, todas indiferentes às categorias construídas
posteriormente para defini-las. De resto, em muitas situações as populações
regressavam às suas regiões de origem, sendo que nesse vai-e-vem
carregavam consigo dinâmicas sociais, técnicas e culturais inéditas,
contribuindo para a sua difusão. 5

Os deslocamentos ocorridos na África se deveram principalmente à natureza


e ao dinamismo inerente às sociedades, sendo que muitos deles foram estritamente
internos ao continente africano. O meio ambiente, entendido como uma herança
biológica e social, atuou como fator condicionante para esses deslocamentos na
África, sendo que a sua heterogeneidade é representativa de um tipo específico de
relação com o meio natural, constituindo-se como um instrumento para apreciar
vários tipos de relações sociais, inclusive a relação que os vivos estabelecem com
os seus antepassados. Tais migrações propiciaram intercâmbios culturais e étnicos,
indissociáveis da heterogeneidade que caracteriza a África, em contraposição a
certa homogeneidade.

Podemos perceber que essas redes de trocas estiveram fortemente presentes


no espaço africano, animando todo o espaço interno do continente: “Na realidade, a

4
Muito cedo, na história da tradição bantú, deu-se a relação entre território e antepassados. Para
terem mais força, os clãs se uniram. Dessa união nasceu a tribo, organização política útil em caso de
guerras. A tribo era dirigida por um conselho formado pelos chefes do clã e por um chefe tribal,
chamado régulo. Esses chefes representavam os antepassados com os quais se comunicavam e
dirigiam as cerimônias religiosas, além de decidirem sobre problemas internos e externos. Segundo
REPÚBLICA POPULAR DE MOÇAMBIQUE, História, p. 83: “... os bantu estavam organizados em
famílias alargadas. Os grupos de famílias alargadas, que tinham um antepassado comum, formavam
um clã. Os chefes destas famílias formavam o conselho do clã, ou conselho dos anciãos. O chefe
deste conselho era aquele que descendia directamente do fundador do clã”.
5
Carlos SERRANO; Maurício WALDMAN, Memória D’África, p. 86-87.
47

África foi pródiga em trilhas que, além de permitirem o trânsito de inovações


culturais, constituíram, é evidente, canais para que se processassem fusões
culturais do todo o tipo” 6. A África é um continente que floresceu por uma grande
diversidade, formando um diferenciado mosaico histórico, social e cultural. O que
vimos, portanto, é que a tradição bantú se constituiu a partir de uma série de trocas
culturais com povos diversos, carregando a ambigüidade entre fixação no território e
deslocamentos constantes; expressões lingüísticas diversas e estruturas de
linguagem comum; conservadorismo de técnicas e inovações permanentes. É dentro
dessa coexistência de práticas que buscaremos entender aquilo que é bantú como
uma tradição.

1.1.2 – Bantú: uma tradição

Vimos que a África é um continente composto em grande parte por grupos de


tradição bantú. Caberia, portanto, perguntarmo-nos como se expressava a tradição
bantú antes da chegada dos europeus. O que podemos entender por uma tradição
bantú? Portanto, antes de adentrarmos os aspectos religiosos, definiremos aquilo
que estamos denominando tradição bantú, pois como afirma Hall, o significado de
um símbolo cultural é atribuído em parte pelo campo social ao qual está incorporado,
pelas práticas às quais se articula e por aquilo que é chamado a ressoar: “O que
importa não são os objetos culturais intrínseca ou historicamente determinados, mas
o estado do jogo das relações culturais: cruamente falando e de uma forma bem
simplificada, o que conta é a luta de classes na cultura e em torno dela” 7. O
processo cultural depende da delimitação de cada época e de cada local diferente
entre aquilo que deve ser incorporado à grande tradição e o que não deve. Ainda,
segundo ele:

A tradição é um elemento vital da cultura, mas ela tem pouco a ver com a
mera persistência das velhas formas. Está muito mais relacionada às formas
de associação e articulação de elementos. Esses arranjos em uma cultura
nacional-popular não possuem uma posição fixa ou determinada, e
certamente nenhum significado que possa ser arrastado, por assim dizer, no
fluxo da tradição histórica, de forma inalterável. Os elementos da “tradição”
não só podem ser reorganizados para se articular a diferentes práticas e

6
Carlos SERRANO; Maurício WALDMAN, Memória D’África, p. 87.
7
Stuart HALL, Da diáspora, p. 242.
48

posições e adquirir um novo significado e relevância. Com freqüência,


também, a luta cultural surge mais intensamente naquele ponto onde
tradições distintas e antagônicas se encontram ou se cruzam. Elas procuram
destacar uma forma cultural de sua inserção em uma tradição conferindo-lhe
uma nova ressonância ou valência cultural. As tradições não se fixam para
sempre: certamente não em termos de uma posição universal em relação a
uma única classe.8

O autor nos coloca frente à idéia de que a tradição não é uma coisa fixa e,
mais do que isso, que ela se foi transformando ao longo do tempo, dependendo dos
arranjos possíveis em cada local e em cada momento histórico9. Assim, não
queremos valorizar a tradição pela tradição, tratando-a de maneira não histórica,
analisando as práticas culturais como se elas tivessem um significado ou valor fixo e
inalterável. Passemos a essa tradição, então.

Mello e Souza10 divide os grupos lingüísticos da África em quatro grandes


grupos: afro-asiático, níger-congo, nilo-saariano e cóisan. O grupo níger-congo,
aquele que nos interessa, encontra-se nas regiões ao sul do Sael, possuindo, além
de diferenças físicas, diferenças no que se refere à língua, às religiões e às
atividades econômicas, que foram adequadas às regiões onde viviam e se
desenvolveram – savanas, florestas e rios.

8
Stuart HALL, Da diáspora, p. 243.
9
Segundo Luiz Henrique PASSADOR, Dinheiro e feitiço numa vila moçambicana,
www.casadasafricas.org.br/site/img/upload/730288.pdf, num ambiente constante de articulação entre
modernidade e tradição, o que se assiste é um constante uso da tradição para a obtenção de
recursos modernos, o que desencadeia o uso da feitiçaria, do curandeirismo e das religiões tanto
para o acesso ao dinheiro quanto para se proteger da ambição alheia. Os habitantes da vila referem-
se constantemente a questões de curandeirismo, feitiçaria, poder tradicional, família, antepassados e
cerimônias como dados remetidos a um universo que denominam, dentre outras coisas, de tradição
africana. Discursivamente operam num registro dicotômico que remete à tradição a outro tempo, um
outro espaço e um outro universo social, construindo por oposição o campo da modernidade como
aquele que experimentam mais claramente na vila. Diante de eventos críticos como doença, morte e
escassez de recursos, o que se observa é a desconstrução deste discurso e a vila é invadida pela
tradição.
10
Cf. Marina de MELLO E SOUZA, África e Brasil africano. Falando a respeito dos outros grupos, o
grupo afro-asiático é formado pela mistura entre os povos locais e os migrantes provenientes do
Oriente Médio. Espalharam-se pela costa e pelo interior do continente, pelo vale do rio Nilo, pela
Etiópia, chegando ao atual Marrocos. Quanto aos falantes de línguas nilo-saarianas, eram nômades
do Saara e do Sael, criadores de gado. Alguns disputaram com os bantú a ocupação da região dos
lagos de Vitória e Tanganica. Entre eles também haviam artesãos, produtores de grãos, pessoas que
se mantinham vinculadas à religião tradicional africana. Já os que pertenciam às elites eram
comerciantes, grandes produtores de grãos e administradores, normalmente convertidos ao
islamismo ou a formas africanas de islamismo. Os falantes de línguas cóisan estão fixados no
sudoeste do continente. Eram caçadores e coletores e não se misturaram com os bantú, que se
encontram espalhados pela África Central.
49

Figura 2 – Grupos lingüísticos da África


Fonte: Marina de MELLO E SOUZA, África e Brasil africano, p. 20

O grupo níger-congo pode, ainda, ser subdivido em cinco outros grupos:


bantú e zande, que se ligam à expansão bantú; kwa, que se referem às línguas
como axante, iorubá, ibo, igala e nupe, que estão nas regiões de floresta e de
savana, desde a Costa Atlântica até o Sael; mande, na região do alto e do médio
Níger; as línguas jalofo e fula, faladas na região do rio Senegal, no Atlântico
Ocidental; e, por fim, voltaico, pertence a língua mossi, da região do alto rio Volta.
Queremos dizer que, apesar de existir uma divisão lingüística, que se subdivide em
outras, há, no caso dos grupos de tradição bantú, alguns elementos similares.
Conforme colocado no grupo focal:

Então, para mim, língua dele é o bantú (...) eu percebo algumas palavras o
sentido, então, você encontra algumas que já fala entre as línguas que você
não fala, mas você pega. Você escuta algumas palavras que define a sua
língua, então mostra que talvez foi um grupo que existia num lugar, mas por
50

causa de separação, talvez, um grupo foi pra outro lugar. A língua se


confunde um pouquinho, mas se encontra alguns termos em algumas
palavras.11

Os grupos de tradição bantú, ainda segundo Mello e Souza12, encontram-se


ao Sul do rio Congo e possuem uma origem comum, com línguas semelhantes e
religiões e maneiras de se organizar parecidas. Portanto, apesar das diferenças, há
uma identidade cultural, que possui uma estrutura sólida, que está subjacente aos
setores da vida, fundamentando e motivando as suas manifestações existenciais:

Sim, nós temos a nossa língua materna, a nossa língua materna.


Mas que é parecida, quer dizer o ronga é parecido com o changana.
Com o changana. Uma pessoa falando changana, eu ronga percebo, mas (...)
eu não quero dizer nenhuma palavra em ronga porque...
Ou fingir que não entende nada...
Sim, não entende nada, até fingir que não entende nada. O Senhor (...) vai
saber que aquele está a fingir, mas eu fingir, eu falo ronga, não importa e eu
que falo changana, por exemplo, eu saio daqui pra lá. As pessoas lá no
fundo, quando a gente fala ronga, eles percebem um pouco, mas você tem
que tentar falar como eles falam que é pra se entender melhor. Essas
pessoas são daqueles que não sabem falar português, mas eu quero trocar
umas palavras com eles, agora nem vou fazer, tenho que fazer esforço, mas
eu não posso fazer esforço de falar ronga porque ele é changana.13

Apesar de existir uma clareza por parte dos entrevistados quanto às


semelhanças entre aqueles que fazem parte daquilo que se convencionou chamar
bantú, há algumas controvérsias entre os acadêmicos no sentido de se pensar os
bantú como apenas grupos de pessoas pertencentes ao mesmo tronco lingüístico ou
de considerá-los como um grupo cultural. Apenas para citar um exemplo, temos
Arthur Ramos14, em Introdução à antropologia brasileira, que no seu capítulo sobre
as culturas bantú, afirma que a unidade bantú é puramente lingüística, não havendo
uma unidade cultural. É verdade também que outros autores contemporâneos
discordam dessa definição.

11
Grupo focal, São Paulo, 08/10/2008. O grupo focal foi realizado em São Paulo com quatro
estudantes de teologia no ITESP – Instituto Teológico de São Paulo, provenientes do Quênia e do
Congo. A partir dos temas propostos, houve a discussão entre os constituintes do grupo.
12
Cf. Marina de MELLO E SOUZA, África e Brasil africano.
13
S. C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
14
Cf. Arthur RAMOS, Introdução à antropologia brasileira.
51

Por exemplo, Lopes15 define etnia como uma coletividade de indivíduos


humanos, com características biológicas semelhantes, que compartilham a mesma
cultura e a mesma língua. Entende que os bantú constituem mais do que uma etnia
ou um grupo étnico, devendo ser vistos como um grande conjunto de povos falantes
de línguas que tem uma origem comum. Sabemos que o nome genérico bantú foi
dado por Bleck16 em 1860, a um grupo de cerca de duas mil línguas africanas que
estudou17. Nelas, os vocábulos se dividiam em classes, diferenciadas entre si por
prefixos. Bleck18 chegou à conclusão que a palavra muntu existia em muitos desses
grupos, significando a mesma coisa: gente, indivíduo, pessoa, porém não é igual a
ser humano, mas abarca os vivos e os mortos; e que bantú é o plural de muntu.
Bantú é uma designação lingüística, mas...

... sob a designação de Bantos estão compreendidos praticamente todos os


grupos étnicos negro-africanos do centro, do sul e do leste do continente que
apresentam características lingüísticas comuns e modos de vida
determinados por atividades afins.19

Para este trabalho, entendemos que os bantú, apesar dos deslocamentos,


cruzamentos e conflitos, além de várias influências recebidas, conservam as raízes
de um tronco originário comum, inicialmente percebido através da questão

15
Cf. Nei LOPES, Bantos, malês e identidade cultural.
16
Cf. BLECK apud Nei LOPES, Bantos, malês e identidade cultural.
17
Quanto às línguas bantú, cabe destacar que três delas: quimundo, quicongo e umbundo, faladas
pela maioria dos escravos transportados para o Brasil. O quimbundo foi denominado antigamente de
ambundu, bundu ou bunda, língua falada no antigo reino de Angola, um das primeiras línguas bantú
conhecida na Europa. É falada pelos ambundos, concentrados na região central de Angola entre
Luanda e Malanje, compreendendo ao norte Ambriz. O quicongo é a denominação principal de
inúmeros dialetos bantú, falados na República Popular do Congo, na República Democrática do
Congo, ex-Zaire e no norte de Angola. Já o umbundo é falado pelos ovimbundos, na região do Antigo
reino de Benguela, na Costa Sul do Litoral de Angola. É, originalmente, a língua dos habitantes da
costa entre as atuais cidades Novo Redondo no Norte de Angola e Benguela no Sul. Propagou-se no
século XIX, como língua veicular em todo o sudoeste de Angola e no interior, em função de trocas
comerciais. É falado por três milhões de pessoas. Segundo Rosa CUNHA-HENCKEL, em Tráfego de
palavras, p. 47-48: “São línguas aglutinantes e essencialmente prefixativas. As palavras são
formadas por um radical invariável que conserva o seu valor próprio, ao qual se acrescenta uma ou
mais partículas ou prefixos que se indica o número gramatical dos nomes e dos pronomes pessoais,
assim como o local das ações. Com as partículas e os prefixos se estabelecem as diversas relações
de dependência entre os elementos de uma proposição”. É interessante notar que, quando se pensa
em lingüística, há um radical invariável, com valor próprio, mas que permite inúmeros acréscimos,
que dão às palavras sentidos e significados diferentes. Não podemos pensar o mesmo no que se
refere aos eixos fundamentais da cultura bantú e da umbanda, que também se modificam buscando
um novo sentido e significado?
18
Cf. BLECK apud Nei LOPES, Bantos, malês e identidade cultural.
19
Nei LOPES, Bantos, malês e identidade cultural, p. 105.
52

lingüística, mas observamos que estas semelhanças encontram-se para além do


tronco lingüístico20, sendo possível destacar aspectos culturais e algumas bases
estruturantes:

A designação “banto” nunca se refere a uma unidade racial. A sua formação e


expansão migratória originaram uma enorme variedade de cruzamentos. Há
aproximadamente 500 povos banto. Assim, não se pode falar de “raça banto”,
mas de “povos banto”, isto é, comunidades culturais com civilização comum e
línguas emparentadas. Depois de tantos séculos em que se realizaram muitas
deslocações, cruzamentos e guerras e foram tão diversas as influências
recebidas, os grupos banto conservam ainda as raízes de um tronco
originário comum.21

Assim, além do parentesco lingüístico, os bantú conservam um fundo de


crenças, ritos, usos e costumes similares. É possível se falar em um povo bantú,
mesmo que subdividido em outros grupos de características culturais variadas,
histórias diversas e, até, antagônicas. A unidade cultural revela-se nas linhas
básicas de pensamento, na concepção espiritualista do mundo e da vida e na
vivência do humanismo que dá a base das instituições sócio-políticas:

Mas, na verdade, existe essa questão... Mas a questão do Ser Supremo e


dos antepassados é aquilo que determina a identidade da cultura bantú (...)
existe a questão da língua, porque quem é bantú tem também a diversidade
do povo, o ser bantú é de diferente cultura, mas todos os bantú têm as
línguas que são semelhantes. Na África a cultura bantú é forte. Que a cultura
existisse no bantú é na língua, além disso, temos o sesuiare que é comum e a
gente fala, por exemplo, no Quênia, no Congo, em outros países.22

Passamos por diversos autores, cada um deles entendendo os grupos bantú


de determinada maneira: tronco lingüístico, etnia, unidade cultural. Para este

20
Segundo Janheinz JAHN, Muntu, todas as línguas bantú são línguas de classes, isto é, os
substantivos não se dividem, como ocorre no espanhol, por exemplo, por um gênero gramatical em
substantivos masculinos, femininos e neutros, mas se agrupam em formas específicas, ou seja, em
classes. Há classes para homens ou para os seres animados magicamente, entre os quais se
encontram também as árvores, as ferramentas, os líquidos, os animais, as localidades, as coisas
abstratas etc. Se reconhece a classe de uma palavra por um som ou um grupo fonético que precede
a raiz da palavra e que os gramáticos designam com o nome de prefixo, chamados de
determinativos. Nos idiomas bantú, a raiz sem o elemento determinativo não forma palavra alguma, a
raiz não pode subsistir indeterminada, pois perde toda a objetividade e realmente não aparece no uso
da linguagem.
21
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 17. (O grifo é nosso)
22
Grupo focal, São Paulo, 08/10/09.
53

trabalho, optamos por falar de grupos de tradição bantú. Tal escolha deu-se
fundamentalmente pelo fato de que quando pensamos em África, ao longo de sua
história, vemos que a transmissão cultural deu-se através da tradição oral. Portanto,
quando, hoje, podemos falar de grupos bantú, seja em que nível for, estamos nos
referindo a pessoas que compartilham elementos culturais comuns que foram
passados pela oralidade.

A oralidade reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação


diária, mas como uma forma de preservação da sabedoria dos anciãos, dos
antepassados e dos ancestrais, ao mesmo tempo em que é uma forma de
transmissão do patrimônio cultural de uma geração para outra dentro de
determinado grupo. Pode-se entender, portanto, a oralidade como uma atitude
diante da realidade, abarcando todos os aspectos da vida. A isto Hall23 chama de
ideologia, ou seja, os referencias mentais – linguagem, conceitos, categorias,
conjunto de imagens do pensamento e sistemas de representação – que as
diferentes classes e grupos sociais empregam para dar sentido, definir, decifrar e
tornar inteligível a forma como a sociedade funciona. São formas pelas quais idéias
diferentes tomam conta das mentes das pessoas e se tornam uma força material.

Assim, quando falamos de tradição dentro da história africana e, mais


especificamente, dentro dos grupos bantú, estamos nos referindo à tradição oral.
Dentro dessa tradição, a função da memória24 é bem desenvolvida e a ligação do
ser humano com a palavra é muito forte. Há um comprometimento com a palavra,
uma vez que ela se apresenta como um testemunho daquilo que o ser humano é
existencialmente. Pode-se dizer que: “... a tradição oral, tomada no seu todo, não se
resume à transmissão de narrativas ou de determinados conhecimentos. Ela é
geradora e formadora de um tipo particular de homem” 25. A cultura africana “envolve
uma visão particular do mundo, ou, melhor dizendo, uma presença particular no

23
Cf. Stuart HALL, Da diáspora.
24
Segundo Maurice HALBWACHS, A memória coletiva, a memória é uma corrente de pensamento
contínuo, retendo do passado o que ainda está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo que
a mantém, não ultrapassando os limites deste grupo. A memória de uma sociedade se estende até
onde atinge a memória dos grupos de que ela se compõe. A memória de um grupo não pára de se
transformar e o próprio grupo está sempre mudando. Toda memória tem como suporte um grupo
limitado no tempo e no espaço. Examinando seu passado, o grupo nota que continua o mesmo e
toma consciência de sua identidade através do tempo, visando perpetuar os sentimentos e as
imagens que formam a substância de seu pensamento, possuindo uma característica própria, distinta
de todos os outros grupos e que praticamente não muda. O essencial é que subsistam os traços
pelos quais ele se distingue dos outros e que marcam o seu conteúdo.
25
A. HAMPATÉ BÂ, A tradição viva, In: J. KI-ZERBO, Metodologia e pré-história da África, p. 199.
54

mundo – um mundo concebido como um Todo onde todas as coisas se religam e


26
interagem” . Dentro desse contexto, a tradição oral deve ser entendida como fato
social, só sendo compreendida dentro de seu meio social, ou seja, dentro do meio
no qual ela é pronunciada:

Toda instituição social, e também todo grupo social, tem uma identidade
própria que traz consigo um passado inscrito nas representações coletivas de
uma tradição que o explica e o justifica. Por isso, toda tradição terá sua
“superfície social”, (...) utilizando a expressão empregada por H. Moniot. Sem
superfície social, a tradição não seria mais transmitida e, sem função,
perderia a razão de existência e seria abandonada pela instituição que a
sustenta.27

A tradição, nesse sentido, é carregada por um grupo de pessoas e deve ser


levado em conta o contexto social vivido. Ela pode ser mantida, transformada ou
descartada. Podemos falar de representações coletivas inconscientes28, que
influenciam a sua forma de expressão e embasam a sua concepção de mundo,
variando de um grupo para o outro. Dentro das tradições africanas, a palavra possui
valor moral e um sentido sagrado, pois é entendida como um dom do Ser Supremo
dado ao ser humano. Dentro da tradição bantú, ela possui um sentido fundamental.

Assim, falamos de uma tradição segura, cujos valores estão conscientes e se


renovam, com elementos que se alteram e se adaptam de tal modo que desse
conjunto surge uma cultura africana moderna e viável. “Se trata, pois, de um
autêntico renascimento, que não se contenta com uma renovação e cópia formal de

26
A. HAMPATÉ BÂ, A tradição viva, In: J. KI-ZERBO, Metodologia e pré-história da África, p. 183.
27
J. VANSINA, A tradição oral e sua metodologia, In: J. KI-ZERBO, Metodologia e pré-história da
África, p. 163.
28
Segundo Gerhard KUBRIK, Angolan traits in Black music, games and dances of Brazil, alguns
componentes da herança cultural podem também ser transmitidos inconscientemente entre pessoas
ou, talvez, de geração para geração. Pode ocorrer que alguns traços desapareçam na superfície de
uma tradição específica durante certo período histórico. Porém, em determinado momento, quando
as circunstâncias são favoráveis e a necessidade se faz presente, o traço perdido é reinventado. Em
alguns casos, alguma coisa ainda estava sendo transmitida o tempo todo, na qual também contém de
uma forma condensada a possibilidade de uma nova manifestação do traço perdido. No tempo da
escravidão e da opressão alguns traços culturais específicos foram forçados a desaparecer, mas, de
fato, eles não desapareceram, eles apenas foram retraídos para uma área segura da psique humana.
A transmissão é cultural, baseada na interação humana, sendo transformada em um conjunto de
dinâmicas comportamentais. Desta forma, continua a ser transmitido de mães e de avós para as
crianças através do trabalho, de formas não-verbais ou da consciência de um estilo de mudança.
Quando um momento histórico favorável surge, o traço aparece novamente, porém, muitas vezes,
com outra forma. Algumas pessoas podem inventar alguma coisa nova. A implicação disso é que no
Brasil formou-se um monte de material cultural africano debaixo da superfície aparente.
55

29
um passado, sem que surja algo novo” . Portanto, além do parentesco lingüístico,
da etnia ou da cultura, os grupos de tradição bantú conservaram crenças, ritos e
costumes similares, preservando-os mesmo que de maneira transformada.
Atualmente ocupam a África Central, Oriental, o Sul da Etiópia e uma parte da África
Oriental, correspondendo aos seguintes países: Uganda, Kênia, Tanzânia, Ruanda,
Burundi, Zâmbia, Moçambique, Zimbábue, África do Sul, Angola, República do
Congo, Brazzaville, Malawi, Botswana, Lesotho (África subsaariana), somando um
total de cento e setenta milhões de pessoas, conforme o mapa:

Figura 3 – Mapa da África atual – político


Fonte: Marina de MELLO E SOUZA, África e Brasil africano, p. 17

Baseados em autores, principalmente, etnógrafos e historiadores, a seguir


apresentaremos as idéias que foram concebidas a respeito dos grupos de tradição
bantú e da sua religiosidade, assegurados por entrevistas e por encontros de grupo
focal com africanos, que, por escolha própria, diferentemente daqueles
29
Janheinz JAHN, Muntu, p. 15. (Tradução nossa)
56

escravizados, deixaram a África. Também contaremos com as entrevistas realizadas


em Maputo.

Estamos trabalhando com a idéia de que a tradição bantú formou-se durante


um longo período de tempo, fruto dos encontros entre diversos grupos, que
passaram por processos de fusão. O fato de estas mesclas terem ocorrido em
diversas áreas do continente africano aponta para a diversidade entre os próprios
grupos de tradição bantú. Apesar dessa diversidade, podemos observar alguns
princípios comuns que perpassam essa tradição, independentemente dos territórios
nos quais esses grupos estão assentados.

1.2 – Eixos da tradição bantú

Agora, vamo-nos deter em alguns dos eixos fundamentais da tradição bantú,


eixos que nos auxiliam na compreensão do nosso objeto de estudo – a religiosidade
bantú. Há outros eixos que se revelam importantes, como a organização sócio-
político, a estrutura de parentesco, o território, dentre outros, mas, para este
trabalho, não os abordaremos diretamente, mas apenas nos momentos em que eles
se ligarem diretamente ao nosso objeto.

Segundo Tempels30, dentro da tradição bantú, há um dinamismo e uma


espécie de vitalismo que fornecem a chave da concepção do mundo entre os povos
pertencentes a ela. A noção de força toma o lugar da noção de ser e, assim, toda
tradição bantú é orientada no sentido do aumento da força e na luta contra sua
perda ou sua diminuição. A força vital é o valor supremo, na qual estão ancoradas
as instituições políticas, sociais, econômicas, artísticas e religiosas.

Como o mundo é concebido como energia e não como matéria, lhe é


conferido um caráter dinâmico, sendo que a energia presente em cada coisa difere
por sua essência e por sua natureza, ao mesmo tempo em que uma energia única
pode possuir várias manifestações. Nesse sentido, o mundo encontra-se interligado,
portanto, ao se alterar determinado aspecto, todos os outros são modificados; há
uma constate interpenetração. Essa energia é entendida como força vital que não se
limita aos vivos, estendendo-se aos mortos e à natureza - animais e seres
inanimados.
30
Cf. TEMPELS, Le philosophie bantu.
57

Essa interpenetração presente na tradição bantú estreita-se em solidariedade,


proveniente da vivência da união vital. Dentro da comunidade, essa participação vital
é entendida como uma relação de ser e de vida de cada pessoa com seus
descendentes, sua família, seus irmãos e suas irmãs da comunidade, sua
ascendência e com o Ser Supremo. Também é uma relação de cada um com seu
patrimônio, com tudo aquilo que contém ou produz, com tudo aquilo que cresce e
vive. Por isso, toda a sociedade pode ser considerada do ponto de vista da
participação vital. A vida une e faz com que haja solidariedade entre os vivos, a
comunidade e os antepassados. Como todos estão relacionados na sua própria
constituição, tudo e todos se influenciam mutuamente para aumentar a vida ou para
debilitá-la e, até, por vezes, aniquilá-la. A pessoa está relacionada e
interdependente, interagindo com todos os membros da sua comunidade.

Jan31 trabalha com a idéia de que existem quatro conceitos fundamentais


dentro da tradição bantú: 1) Muntu = homem (plural bantu); 2) Kintu = coisa (plural
bintu); 3) Hantu = lugar e tempo; e 4) Kuntu = modalidade. Tudo aquilo que existe e
a maneira como se apresenta pode estar incluso em uma dessas categorias. Fora
delas, não há nada imaginável. Os entes que pertencem a essas quatro categorias
são concebidos como substância, mas também como força. Como todos eles são
forças, estão relacionados entre si:

O parentesco destas forças se expressa nas próprias palavras, pois se


eliminamos os determinativos, a raiz ntu é idêntica em todas as categorias.
(...) Mas segundo nos mostra o idioma que tenha sido tomado, o Ntu são
todos estes objetos mesmos e não aparece independentemente deles. Ntu é
aquilo que é conjuntamente Muntu, Kintu, Hantu e Kuntu. Não é que a força e
a matéria venham e se unam: o que ocorre é que jamais foram separadas.32

O Ntu não expressa essas forças, mas o ser. As forças atuam


constantemente e ininterruptamente, sendo que o motor que promove todas as
forças da vida e da atividade é o Nommo, a palavra. Os conceitos de Muntu e
homem não são iguais. Muntu abarca os vivos e os mortos, o ser humano, os
antepassados e o Ser Supremo. Muntu é a força que tem inteligência, ou ainda,
Muntu é uma essência que é força, aquela que é própria do domínio do ser humano.

31
Cf. Janheinz JAHN, Muntu.
32
Ibid., p. 137-138. (Tradução nossa)
58

Kintu compreende toda a força que não pode atuar por iniciativa própria e que só
pode ser ativada pelo mando de um Muntu, seja um ser humano, um antepassado,
ou o Ser Supremo. A essa categoria pertencem os vegetais, os animais, os minerais,
os instrumentos, os objetos de uso comum, que são Bintu, plural de Kintu. O espaço
e o tempo ocupam a categoria Hantu. É a força que localiza temporal e
espacialmente todo acontecimento e todo movimento, pois, como tudo é força,
sempre se encontra em movimento. A pergunta por um momento temporal recebe
uma resposta formada por um dado espacial. Por fim, temos a força modal Kuntu,
que é independente das outras forças.

Ainda para Jan33, há três palavras que significam vida: bugingo, buzima e
magara. Bugingo significa a duração da vida. Buzima indica a união de uma sombra
com um corpo, estando inserida dentro da categoria de modalidade. É um princípio
que indica como chega a se produzir a vida como princípio. Este princípio diz que se
uma sombra se une com um corpo surge vida, que dura enquanto a sombra e o
corpo não se separam; quando se separam ocorre a morte. O surgimento de um ser
humano se apresenta como um duplo processo: primeiro como a união puramente
biológica da sombra e do corpo segundo o princípio buzima, mas se une ao corpo
algo espiritual, uma força do nommo, pois a procriação de um ser humano é um
processo físico-espiritual. O princípio que significa a união da força do nommo com
um corpo se chama magara: vida. Magara é uma força do kuntu, um princípio que
colabora em cada formação de um ser humano. A vida biológica (buzima) e a vida
espiritual (magara) se encontram no ser humano. Nenhuma das duas pode se
apresentar sozinha em uma vida humana concreta. Quando um ser humano morre
também termina sua vida biológica (buzima) e também acaba sua vida espiritual
(magara), mas permanece algo, aquela força vital chamada nommo, que formou sua
personalidade. O muzima, no ser humano vivo, se converte em muzimu um ser
humano sem vida. Os defuntos não vivem, mas existem.

Dentro dessa visão de mundo merece destaque alguns aspectos, que situam
o ser humano dentro dessa dinâmica: a pessoa se define pelo seu nome, ela é seu
nome; toda pessoa constitui um elo na cadeia de forças vitais, um elo vivo, ativo e
passivo, ligada, em cima, aos elos de sua linhagem ascendente e sustentando,
abaixo de si, a linhagem de sua descendência. Dar o nome a um ser humano é um

33
Cf. Janheinz JAHN, Muntu.
59

ato que realiza o grande momento do seu aparecimento no mundo e na história. Um


nome é importante, pois nele dois atos se juntam: a leitura da história que este ser
(criança) percorreu desde os seus antepassados, passando pelos seus primogênitos
diretos e chegando até ele próprio; e também o nome é uma profecia do futuro
dessa criança. Uma criança é um passado e um presente voltados para o futuro.
Esses aspectos encontram-se presentes nas falas a respeito da família:

Os nomes, quando a pessoa nasce, a pessoa tem o nome segundo os


acontecimentos que tá acontecendo naquele dia ou naquele momento. Como
eu, quando eu nasci o hospital não tinha luz, mas a luz apareceu. O meu
primeiro nome foi que significa luz, mas depois a minha avó mudou o nome,
me chamou Muena, porque quando ela me visitou, ela falou que eu dei um
sorriso para ela, então ela me chamou de Muena que significa a pessoa que
ama, então a maioria dos nome que nós temos cada um tem um significado,
mas se você vai ouvir atrás quando a pessoa nasce, o nome que é dado na
primeira semana tem algo que fez a pessoa ter aquele nome. (...)
Por isso nesse, aí dentro da nomeação você vai encontrar umas diferenças
poucas, como assim, ele falou de um lado de nomear de acontecimento. A
pessoa que nasce quando está chovendo vai chamar Bubua por causa do
bua, da chuva. O nome dele pode ser outra na cultura dele pode ser outra,
escuro como ele falou, mas também dentro disso tem o nome familiar, como
no meu caso. O meu nome é Mutinda que é da família e antepassado. Aí
nomeia a criança a partir dos antepassados, nomeia pra viver a família. Vocês
pega o nome do bisavô, pode ser da linhagem da mãe, materna, ou linhagem
paterna, do pai, então quem vai pegar o nome do pai só homem, então não
se mistura. Quem vai pegar o nome da mulher, só as meninas, então, você
vai achar só nome da mulher, feminino. Se a minha irmã vai ser nomeada
pela linhagem dos pais, vai ter só nome da mulher, o homem vai ter só nome
do homem.34

Vemos que a relação entre vivos e mortos está para além da questão da
linhagem ou da continuidade, havendo uma relação de interação entre eles. Por
isso, quando os vivos são negligentes, os mortos chamam a sua atenção, enviando
doenças, provocando aborrecimentos ou se comunicando de alguma maneira. Todo
ser, vivo ou morto, é entendido como força e não como uma entidade estática; em
qualquer circunstância procura-se acrescentar força, evitando o grande mal que
existe: diminuir força. A morte é um estado de diminuição do ser; e a realidade
última das coisas é a vida ou a força vital. Como exemplo do lugar ocupado pelo ser
humano, cabe citar a fala de M.:

34
Grupo focal, São Paulo, 08/10/08.
60

Esse é difícil de explicar porque eu já ouvia minha avó falando assim: oh,
Mutinda, meu nome é Mutinda, eu tenho nome do meu antepassado, porque
até nomear a nossa sociedade é assim, linhagem dos antepassados. Então
meu nome é Mutinda, Michael Mutinda e aí minha avó falava assim: oh, meu
marido, porque minha avó eu sou marido dela na cultura, aí ela falava o meu
marido. O teu filho que é Mutinda agora é meu filho, ontem se manifestou,
falou que amanhã você tem que fazer essa, essa.35

Nesse pequeno trecho, observamos alguns dos princípios colocados acima,


que nos auxiliam a compreender a concepção do ser humano dentro da tradição
bantú: a importância do nome, a participação do ser humano dentro de uma corrente
vital, na força vital, como elo de intermediação, e a influência dos mortos nas ações
dos vivos.

Há, portanto, segundo Lopes36, uma personalidade bantú perfeitamente


definida, sendo que o conceito de personalidade é composto por quatro elementos:
o corpo (invólucro corporal), o princípio biológico (órgãos internos, sistemas
automáticos e psicossomáticos), o princípio de vida e o espírito propriamente dito –
substância imortal. O ser humano situa-se num campo dinâmico definido por três
eixos principais de relacionamento, sendo que a personalidade está no ponto em
que os três eixos se cruzam. Há o eixo vertical que liga a pessoa aos seus
antepassados, ao Ser Supremo e às outras existências invisíveis; há o eixo
horizontal, o da ordem social, que mantém a pessoa em ligação com a comunidade
cultural; e há o eixo da existência própria da pessoa, da existência terrena, de ser
vivente no mundo.

Para a pessoa bantú, a vida é a existência na comunidade, participação


observada por meio da ligação com o território na vida sagrada dos antepassados e
da extensão da vida deles, ao mesmo tempo em que é uma preparação de sua
própria vida para que ela se perpetue nos descendentes. A concepção de vida pode
ser vista de duas formas: como uma comunidade de sangue (primeiro fator decisivo);
como uma comunidade de propriedade (fator concomitante que torna a vida
possível):

35
M., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, São Paulo, 28/05/08.
36
Cf. Nei LOPES, Bantos, malês e identidade cultural.
61

A ordem social é atravessada de juízos morais a ponto de poder ser


perturbada na falta do cumprimento de qualquer obrigação. Essa perturbação
se difunde e envolve as relações do grupo com o mundo natural do qual está
assim dependente. E ao contrário, quaisquer perturbações do mundo natural,
em forma de calamidade como seca, pouca colheita, doença ou incidentes,
podem ser atribuídos à perturbação da ordem moral e social que as crenças
representam sob a forma de cólera da divindade, dos antepassados ou de
maquinações perversas de bruxas ou feiticeiras.37

O mundo visível é habitado pelo ser humano, que nele aparece e dele
desaparece por meio do nascimento e da morte, experimentando tribulações
provocadas pela ação de forças ruins contra as quais buscam a proteção dos
poderes voltados para o bem. Todo acontecimento bom ou ruim é explicado com
referência ao mundo invisível e sua ação no mundo visível: “O objetivo de todos os
movimentos é prevenir a desventura e maximizar a ventura”38. A tradição bantú é
orientada pelo complexo ventura – desventura. A ordem natural das coisas é boa e
desejável, envolvendo valores positivos como saúde, fecundidade, segurança e
harmonia. O Ser Supremo deu vida a tudo e reina distante, mas benevolente sobre o
universo e o ser humano. O espaço entre os vivos e os mortos está ocupado por
antepassados e vários tipos de espíritos, portadores tanto de boas intenções quanto
más. Porém, forças maléficas desviam a vida do caminho da ventura. Todo mal é
provocado por essas forças, a partir de atos conscientes ou inadvertidos de
determinadas pessoas.

Podemos notar que todos os seres se relacionam, sendo possível ressaltar


que o ser é força e há seres pertencentes ao mundo invisível e, outros, ao mundo
visível: humanos, animais, vegetais e minerais. Distinguem-se várias categorias de
forças, estando entre elas a força dos espíritos dos mortos. Acima de toda força está
o Ser Supremo; seguido pelos primeiros pais dos homens, os fundadores dos
diferentes clãs; depois os mortos da tribo, os elos da cadeia que transmitem a força
vital dos primeiros antepassados para os vivos (estão hierarquizados, conforme a
maior ou a menor proximidade de parentesco dos antepassados e segundo a sua
potência vital); na seqüência das forças humanas, as outras forças – animais,
vegetais e minerais, hierarquizadas conforme a sua energia.

37
Max GLUKMAN, Il rituale nei rapporti sociali, p. 46-47. (Tradução nossa)
38
Marina de MELLO E SOUZA, Reis negros no Brasil escravista, p. 69.
62

Tal organização nos remete a uma das três grandes leis existentes dentro da
tradição bantú – Lei da Hierarquia dos Seres ou Pirâmide Vital. Além dela, temos
também a Lei do Crescimento e a Lei do Dinamismo Vital: interação e
interdependência, conforme colocado por Altuna39, e que veremos a seguir. A
divisão nesses três princípios nos auxilia a organizar e a entender aquilo que foi dito
até então, serve-nos como uma base na qual ancoraremos, ainda neste capítulo, a
questão da religiosidade bantú.

1.2.1 – As três leis existentes dentro da tradição bantú

Há um primeiro princípio a ser colocado que é a Lei da Hierarquia dos Seres,


a Pirâmide Vital. Segundo essa lei, os mundos visível e invisível estão unidos por
relações vitais com intercâmbios permanentes, sendo que a hierarquia da vida
envolve os dois mundos, conforme já visto neste capítulo. No mundo invisível, no
topo, está o Ser Supremo, que é fonte de vida e de todas as suas modalidades;
depois os antepassados, os mais categorizados são os fundadores do gênero
humano, fundadores dos grupos primitivos e de algumas famílias. Em seguida, os
antigos heróis, que não estão presentes em todos os grupos bantú, nem parecem
ser muito antigos. Em seguida, os espíritos ou os gênios, que estão localizados em
lugares ou em objetos materiais, tendo uma influência poderosa sobre os seres
humanos. Por fim, os demais espíritos, que podem ser benignos ou malignos,
interferindo no mundo visível.

Já o mundo visível é integrado por forças pessoais e impessoais. A força


pessoal é o ser humano, centro da pirâmide e único existente ativo inteligente, capaz
de aumentar sua vida e de dominar as forças inferiores. Toda criação se centra na
pessoa humana, sendo que todos os seres estão destinados a realizar com
plenitude a pessoa humana, centro do sistema. Quanto mais próximo o homem se
encontrar dos antepassados ou dos seres superiores, mais goza a plenitude vital,
pois os antepassados prolongam-se nos seus descendentes. O régulo ocupa o
vértice, segue-se: o chefe de tribo, a comunidade, a família, os especialistas da
magia e os anciãos. As forças impessoais repartem-se por ordem hierárquica:
animais, vegetais e minerais. Estes reinos são constituídos de vida e de energia,

39
Cf. P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu.
63

uma vez que são o prolongamento do seu proprietário e sua finalidade é servir ao
homem, acrescentando-lhe a vitalidade com sua contribuição. Na base da pirâmide
são colocados os astros e os fenômenos da natureza, que também encerram um
princípio vital, que pode ser manejado pelo ser humano.

Figura 4 – Pirâmide Vital


Fonte: Arquivo Pessoal (elaboração própria)

Todas as forças estão relacionadas, exercendo interações que obedecem a


leis determinadas: 1) o ser humano (vivo ou morto) pode reforçar ou diminuir outro
ser humano no seu ser. A resistência contra esta ação só é conseguida por meio do
reforço da própria força, recorrendo à outra influência vital; 2) a força vital humana
pode influenciar diretamente seres de forças inferiores (animais, vegetais, minerais);
3) um ser racional (espírito ou ente vivo) pode influenciar um outro ser atuando
sobre uma força inferior (animal, vegetal ou mineral). A resistência a esta ação
também só se consegue pelo reforço da energia vital, recorrendo a outras forças; 4)
para se proteger contra a perda ou a diminuição da energia vital, precisa-se recorrer
às forças que possam reforçar a própria força ou aos antepassados. Para aumentar
a força é necessária a execução do culto ou ritual destinado ao Ser Supremo e aos
antepassados ou por intermédio da magia, que deve ser considerada como o saber
a respeito da interação das forças naturais, criados pelo Ser Supremo e postos à
64

disposição dos seres humanos, como nota-se na entrevista realizada com uma
curandeira em Maputo:

... nós somos formados na base tradicional, uma medicina tradicional que faz
estudo de medicamentos, de raízes e de plantas, saber afinal de contas esta
planta serve pra que e no meio deste estudo há um guia que nos guia, que
nos conduz que são os tais espíritos, há outros que saem de fato dos
espíritos, falam e têm potência de pegar o seu defunto falar consigo assim
diretamente, assim como outros que não fazem isso, só trabalham na base de
tradição. Assim, aqui, nesta minha palhota aqui, eu tenho espíritos que saem,
falam, dizem coisas quando necessária pega o espírito daquela pessoa e fala
e indica que tipo de medicamento é que deve se tratar essa pessoa.40

A Lei do Crescimento ou Diminuição do Dinamismo Vital afirma que a vida


dos seres criados é susceptível de crescimento e de diminuição. Pode ser
aumentada, diminuída ou perdida, o que depende do manejo e da apropriação de
outras forças. A transformação pode gerar um novo modo de ser, já que o ser
humano, com o seu dinamismo, vive aberto à interação:

Todos os homens são capazes de reforçar ou diminuir o ser de outro homem.


O mesmo podem conseguir os seres inferiores impessoais, e qualquer ser
racional habitante de um dos dois mundos, se actua sobre uma força inferior
que serve de meio, pode influir indirectamente em outro ser racional.41

Assim, cada membro da comunidade é consciente de que não vive uma vida
egocentrada ou individualista, mas a vida em comunidade que se individualiza em
cada novo ser. Cada grupo de parentesco é uma unidade de comunhão, uma
comunidade solidária, socialmente eficaz, indestrutível e amparadora. Os vivos e os
mortos e os vivos entre si são unidos verticalmente e horizontalmente pela vida,
realizando uma comunhão participante na mesma realidade que os solidariza. Com
os antepassados, o ser humano está ligado vitalmente através da solidariedade
vertical, originária, sagrada e constante; com os membros vivos do grupo, ele está
ligado pelo mesmo sangue, sendo esta ligação chamada de solidariedade horizontal:

40
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
41
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 63.
65

Para os bantu viver significa existir no seio duma comunidade (...) participar
da vida sagrada – e toda a vida sagrada, - dos antepassados (...) prolongar os
próprios antepassados e preparar a sua própria continuidade através dos
descendentes. Há uma verdadeira continuidade através dos descendentes.
Há uma verdadeira continuação da família e dos indivíduos depois da morte.
Os mortos formam o elemento invisível (...) que é o mais importante. Todas
as cerimônias de qualquer relevância – nascimento, casamento, morte, ritos
fúnebres, investidura – são presididas pelos antepassados e a sua vontade só
é postergada pela do Criador. 42

A solidariedade vertical é a relação com os antepassados e os seus


descendentes. O laço de união vital não se rompe com a morte, permanecendo
indissolúvel. Não existe separação entre os vivos e os mortos, havendo uma
continuidade qualitativa vital. Tal fato pode ser observado, por exemplo, na escolha
do nome, como colocado na entrevista que se segue: “Por exemplo, pra escolha do
nome, vamos começar, eu vou pegar aquilo primeiro, eu acho que eu posso
responder, a escolha do nome eles consultavam os espíritos, eles nunca davam o
nome antes de consultar”43. Os mundos visíveis e invisíveis se encontram em
influência mútua – na participação e na interação, pois o morto continua vivendo na
sua descendência. A pessoa fica aniquilada quando rompe o laço vital com os
antepassados ou com os outros membros da comunidade. Compreende-se que um
dos maiores atentados aos antepassados seja a renúncia à procriação:

Por isso quando o cristianismo chegou na África, complicou tudo. O homem


não pensava como pode, podia entrar na vida religiosa como eu, aliás. Até
agora nem minha mãe entende. Eu sou o caçula da família. Eu poderia, eu na
minha cultura significativa eu devo ficar com minha mãe, meu pai, para
continuar a linhagem da família, mas eu escolhi entrar na vida religiosa onde
o homem não tem descendência, minha mãe não entende, até hoje, porque
esse filho perdido, um filho que até morre não pode ser enterrado na casa,
porque os padres podem ter os padres o cemitério. Na África não tem assim.
Quem morre é enterrado na família. Então onde enterra o padre? Lá no
cemitério. Significa o que, que ele não mais pertence à família, então porque
ele não quer continuar descendência da família. Então uma coisa muito forte
da família. Então descendência determina quem vai ser antepassado.44

É interessante ressaltar que em todas as entrevistas realizadas em Maputo, o


fato de um casal não ter filhos sempre é entendido como um grande mal. Como

42
V. MULAGO apud Jean Bastide MUNGUELE KIYUNGU, Dinamismo cultural bantu e religião, p. 61.
43
S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
44
M., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, São Paulo, 28/05/08.
66

dentro dessa tradição a escolha de não ter filhos é algo impensável, a falta de filhos
para uma família é vista como uma mensagem, muitas vezes um aviso por parte dos
antepassados ou ainda uma dificuldade imposta por um espírito que quer prejudicar
aquela família. Apenas para relembrar, dentro da tradição bantú, o fim da existência
de alguém está vinculado à falta de descendência. A resolução do problema
normalmente se dá pela consulta aos adivinhos que executam algum procedimento
específico ou orientam a família para que seja cultuado algum antepassado:

Aí vamos ver alguém fez alguma coisa pra mim de mal, aí sei lá, eu começo a suar,
brigar com o meu marido, eu começo, não consigo engravidar, sei lá, perco o meu
trabalho...
Isto também pode te ajudar pode apanhar a gravidez através desse
medicamento, quando a pessoa conhece esse medicamento. (...)
Não ter filhos?
É, pode?
Pode, mas não, não é bom, não é bom.
Por que, que não é bom, por que, que é importante ter filhos?
Isso é, quem sabe, nós africanos a nossa riqueza é ter filhos, mas lá no Brasil
pode não ter filhos, não é problema, mas nós quando eu com quem vou
deixar quando eu envelhecer ou eu morrer, mas quando eu tenho filho pode
deixar com os meus filhos.45

Tal fato nos remete à Lei do Dinamismo Vital: interação e interdependência. O


Ser Supremo marcou para todos os seres a lei da interação e da interdependência,
do dinamismo vital como conseqüência da lei da participação. Entre os seres existe
uma interação de vida, que os sustenta. Nada se move sem influir com seu
movimento em outros seres: “Toda a força vital superior pode influir noutra inferior.
Porque todos os seres estão ligados, a criação inteira se move num sistema de
relações activas. Os seres influem uns nos outros segundo a modalidade marcada e
o seu grau de energia”46. Pode-se afirmar que o ser humano encontra-se em relação
íntima e permanente com outras forças, sendo que nenhum ser criado existe
independente dos demais, vivendo de maneira receptiva e exposto a um aumento ou
a uma diminuição da sua vida. Apenas o Ser Supremo não pode ser influenciado:

45
O., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
46
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 61.
67

A magia e a actividade religiosa não intentam outra coisa senão controlar ou


desviar a inter-acção. O banto admite uma relação invisível que o rodeia. Aqui
enraíza a sua religiosidade, porque se submete a esta realidade que o
supera. Ali se joga a sua felicidade ou desgraça, se forja seu destino, a
certeza de que a sua vida está envolta em forças misteriosas e eficazes,
provoca toda a actividade mágica, os mecanismos de ataque e defesa que
perturbam a harmonia sonhada e desejada pela pessoa e pela sociedade.47

A ordem social, a religião e a vida comunitária fundamentam-se em uma


mesma corrente vital, que une, sem possibilidade de separação, os dois mundos.
Cuidá-la, defendê-la e aumentá-la constitui a primeira obrigação ética individual e
social. Não há evento que não possa ser explicado, interpretado, remediado ou
reforçado, porque tudo sucede dentro de uma única corrente vital que não admite
riscos nem lugar para aspectos que rompam o equilíbrio.

Em função da necessidade de manutenção desse equilíbrio, a morte é vista


como um momento crítico, no qual uma série de cuidados devem ser tomados. A
morte implica uma mudança quantitativa do ser, no que diz respeito à força vital, o
que interfere nas três leis que regem a tradição bantú: o ser que morre passa a
ocupar um novo lugar na pirâmide vital, pois se torna um espírito ou, talvez, um
antepassado; como antepassado ou espírito ele tem um novo poder de interferência
na vida dos seres vivos; ele pode se tornar alguém a ser cultuado, pois deixou
descendentes. Logo, a morte nos interessa, pois aquele que morre pode tornar-se
um antepassado, a quem se rende culto; pode tornar-se um espírito influenciando e
solicitando coisas dos vivos que, muitas vezes, só podem ser resolvidas através de
procedimentos específicos.

1.2.2 – A questão da morte

Há uma crença em outra vida, que é vista como a continuação e a perfeição


da vida visível. Afirma-se a permanência do ser e não sua destruição. A morte é um
passo fundamental e obrigatório para se alcançar um estado definitivo que o
indivíduo sempre desejou: o lugar de antepassado. A morte não é considerada como
o fim da vida, nem como a ruptura do ciclo vital, mas a continuação da existência
sob outras formas e em outras circunstâncias. O ser humano deixa de existir como

47
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 62.
68

vivente, passando a existir como espírito. Quando se morre acaba a vida biológica e
a vida espiritual, porém permanece a força de vida que criou o ser. O antepassado
passa a ser um existente não vivente. Os defuntos vivem em um estado vital
degradado, com as forças vitais diminuídas, ao mesmo tempo em que conservam
sua força vital superior e paternal, que os fortalecem. Os mortos obtiveram um
conhecimento mais profundo das forças vitais e naturais e, por isso, a diminuição de
sua força deve ser menos considerada do que seu pode crer em princípio.

A morte é, assim, uma mudança de estado que supõe ruptura e continuidade


concomitantemente. O que permanece, fundamentalmente, é a identidade da
pessoa, ancorada nos laços familiares e sociais. Ao mesmo tempo em que há
continuidade surgem mudanças, já que a pessoa adquire novas características
como: estar em um estado invisível e definitivo e se transformar em antepassado da
sociedade adquirindo novos poderes, que permitem que atue na comunidade e se
torne mediador entre o Ser Supremo e os seres humanos. Os espíritos são
presentes, dotados de uma existência que dura para sempre, além de possuírem
poderes sobrenaturais, capazes de influenciar a vida da sociedade e dos seres
visíveis:

A vida do além considera-se, em parte, semelhante à vida visível, existindo


um série de relações entre os defuntos e os seres vivos: os defuntos
precisam de comida, pelo que os vivos do mundo visível devem oferecer-lhes
sacrifícios; os defuntos têm sentimentos e reagem perante os acontecimentos
da vida dos homens; os defuntos são respeitados e temidos, segundo a sua
importância social e o seu procedimento moral. Em geral, na sociedade
macua, a morte é vista, não tanto como uma negação essencial (destruição e
desaparecimento do indivíduo), mas como privação de alguns elementos
existenciais.48

Os bantú vivem dependentes do mundo invisível e têm de se comportar com


retidão para ganhar a companhia dos antepassados. O antepassado, mesmo
morrendo, conserva sua personalidade distinta e influente, isto é, são mantidas
quase todas as características humanas: “... a verdadeira morte acontece quando
alguém cai no esquecimento por não ter mais ninguém, em vida, para dele se

48
Francisco Lerma MARTINEZ, O povo macua e a sua cultura, p. 208.
69

lembrar. Isto explica a grande importância que se dá à fecundidade e geração de


filhos como forma de garantir a continuidade”49.

Além disso, eles conhecem e estimam os valores da comunidade, fazendo


parte dela, preocupando-se com ela e se relacionando com ela. Exigem a
observância dos deveres dos seus descendentes. Fazem parte da comunidade
humana, integrada por eles, pelos vivos e por aqueles que ainda vão nascer.
Segundo umas das entrevistadas:

Aí vai deixar pro defunto ou não?


As pessoas comem, se você vai chamar toda a família, os tios virem reunir ali
porque há essa cerimônia, então depois de fazer isso tudo vocês vão
preparar aquela comida e vão comer. Os espíritos não vão porque já não
existem certo.
E se eu, por exemplo, eu não recordar os meus defuntos, os meus espíritos, o que é
que vai acontecer na minha vida?
Não acontece nada, só é que lá em Gaza, o lugar mesmo em Maputo quando
você fica muito tempo não recordar os defuntos, quando você tem doença
aqui em casa e vai consultar aos curandeiros, vão te dizer que você tem que
realizar isto e mais aquilo para recordar os seus defuntos, então você tem que
fazer essa cerimônia.50

Apesar da morte, ficam na recordação dos vivos como pessoas ativas,


principalmente por reviverem na procriação, em função dos descendentes que
deixaram. Portanto, o ser existente não vivente continua na sua descendência. Uma
das formas do antepassado renascer é através do nome colocado em um
descendente. A repetição dos nomes ocorre para que a comunhão seja mais
estreita, pois a constante presença dos antepassados na vida comunitária e pessoal
confirma o prolongamento da vida:

E agora que já não está, está falecida, quando ela faleceu é a minha tia que
era irmã do meu sogro, ela é que dava o nome, então consultam a esses
curandeiros aí, e queremos dar o nome a essa criança aqui, não sabemos o
nome que podemos dar, então consultam, depois deles darem o nome de
bisavós dele que é Macache ou Cofache, então começam a dar esse nome,
então esse nome não querem, os defuntos não querem esse nome, então a
criança começa a chorar, então vão procurar saber ao curandeiro de que este

49
Frei Bernardo AMARAL, Celebração de mhamba entre os vatonga, p. 7.
50
O., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
70

nome sempre o bebê está sempre a chorar, mas o que, que pode ser, vão
consultar, então vão consultar e vão dizer que este nome que estão a dar os
defuntos não querem, queriam dar o nome do, então vão trocar, vão trocar
por outro nome.51

Os antepassados estão próximos aos vivos, mas a relação mais interativa e


próxima se dá com os antepassados recentes, que são personalizados. Com o
tempo, os antepassados vão desaparecendo da memória dos vivos, caso não se
tornem antepassados tribais ou ancestrais, ou seja, entram em uma esfera mais
coletiva:

Estão mais distantes, então os defuntos mais conhecidos são os mais


recentes, sim, os mais recentes agora os outros só se diz: “Bom, de fonte da
família Tchaúque, não sei mais, não se sabe quem sabe, porque estão muito
mais distantes”. Entretanto, enquanto existir família com o apelido de
Tchaúque, por exemplo, todos os defuntos dessa linhagem estão
considerando como vivendo naquela família, sim. Agora os outros espíritos
que são considerados que vivem na floresta, vivem, são aqueles que são
desconhecidos que até, bom isso já é a minha opinião, podem ser também da
família, mas como já não tem ninguém que os invoca, não sei quanto, andam
aí a pairar e vão vivendo nos lugares que, bom, tradicionalmente dizem que é
onde vivem os espíritos que não são recordados, exatamente.52

Podemos perceber que há uma mudança constante na corrente vital, uma vez
que alguns antepassados, quando não cultuados, acabam esquecidos. Porém,
vimos também que esses antepassados acabam renascidos em seus descendentes
através dos seus nomes. Com isto, queremos dizer que a corrente é constantemente
alimentada pela participação vital, pois a energia é invariavelmente renovada. Os
antepassados acabam por desempenhar um papel estabilizador, já que através
deles é possível restabelecer a harmonia perdida e a solidariedade.

A morada dos antepassados não é precisa. Há controvérsias a respeito do


local para onde vão os antepassados quando falecem. Trabalha-se com a idéia de
que eles vão para uma aldeia embaixo da terra, que vivem no seu túmulo e, uma
proposta intermediária, é a da permanência em um bosque sagrado, na terra ou até
em lugares místicos, normalmente considerados tabus. A crença mais comum é a de
que vivem nas profundezas da terra habitada pelos vivos. Vivem agrupados em

51
O., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
52
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
71

aldeias. Eles ainda podem ser sepultados junto à aldeia ou a beira do caminho para
que os vivos lhe rendam uma pequena homenagem. Há cemitérios em locais
solitários ou em florestas. São cemitérios familiares, mas podem pertencer a um
grupo. Normalmente, cada aldeia tem um cemitério comunitário:

Onde é a morada desses espíritos?


Dizem, dizem morar nas grandes florestas, nas montanhas, nos lagos e no
mar ou no oceano, ia, então são os locais, mais ou menos, onde se pensam
que residem os espíritos e há uma coisa que eu, também, ainda não entendi
bem e procuro entender porque é muita das vezes a linhagem pode existir por
cem, duzentos anos e as pessoas vão se sucedendo e, entretanto, os mais
antiqüíssimos já são praticamente esquecidos.53

Uma boa morte54 é aquela prevista pelos costumes, levando-se em conta


vários fatores: tempo (idade avançada do indivíduo), descendência (ter muitos
filhos), lugar (morrer na própria comunidade ou na própria casa), e modalidades
(morrer sem sofrimento, na presença dos familiares mais próximos, não deixar
questões pendentes e estar em paz com a família e com a comunidade). Uma morte
ruim é aquela que acontece subitamente (com pouca idade) ou de forma violenta
(assassinato, acidente), o indivíduo que morre sem descendentes, tem problemas
pendentes na sociedade ou dificuldades econômicas, ocorre à noite depois de um
sofrimento prolongado por doença, morre longe da comunidade ou dos familiares.
Por fim, a morte de uma criança ou de um recém-nascido também é considerada
uma desgraça, pois não é possível a realização de rituais fúnebres, já que eles não
são vistos como cidadãos de pleno direito.

É através dos rituais fúnebres, que marcam a posição final que o indivíduo
ocupa no mundo dos antepassados, que os povos bantú vivem a passagem

53
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
54
Vale à pena a leitura do interessante trabalho de Cláudia RODRIGUES, Nas fronteiras do além,
que discute, a partir de testamentos, as modificações pelas quais passou o significado da morte.
Discute a construção social da morte no Rio de Janeiro, bem como identifica as práticas e as
expressões do catolicismo diante da morte. O que se nota é que no século XVIII e início do XIX havia
uma preocupação constante com a boa morte no Rio de Janeiro, comportamento que atravessava
todas as classes sociais. Tal fato ocorreu pelo processo de controle das atitudes dos fiéis pela Igreja
Católica. Esse processo se deu mediante dois fatos: 1) a substituição da gerência doméstica e
familiar do culto aos mortos; e 2) a elaboração da liturgia dos mortos, tendo o clero como o
interlocutor entre vivos e mortos. Segundo Ibid., p. 53: “A morte demanda um aprendizado para que o
fiel morra bem. Nada melhor para isso do que morrer duas vezes, morrendo antes da morte. O que
significa que o fiel deveria morrer em vida, meditando sobre a morte, não deixando esse
compromisso para o momento final”.
72

definitiva do estado visível para um estado invisível. Só se morre verdadeiramente


quando se realizam os ritos segundo a tradição e a comunidade tem certeza de que
o morto foi recebido pela comunidade dos antepassados. A sociedade condiciona a
honra dos antepassados ao comportamento ético. As oferendas são feitas para que
o morto possa se apropriar da sua essência, com o seu princípio animador. São
formas de se entrar em contato com eles, de estabelecer uma corrente vital entre
eles e os vivos. As famílias é que organizam e realizam os ritos funerários e o culto
dos mortos.

Segundo Ribeiro55, falando a respeito dos ritos fúnebres entre o povo


changana, ele os descreve da seguinte maneira: quando uma pessoa está para
morrer, ela chama os parentes; filhos, irmãos, netos e outros que deseje. Despede-
se e diz tudo o que tem para dizer. Quando o indivíduo morre, sua morte é
anunciada a todos os parentes, que vão chegando. É despido e lavado. A seguir,
embrulham-no em um cobertor e atam-no. Fica assim como um fardo muito curto.
Fazem a cova, que é orientada no sentido nascente – poente. Aberta a cova, cavam
do lado direito de quem olha para o nascente, uma espécie de gaveta grande, onde
o morto é depositado, de cabeça voltada para o poente. Tapam essa gaveta com
esteiras, peles ou até com capim entrançado e só depois aterram a cova principal. A
terra não deve tocar o defunto. No caso de morte da mulher, o marido ou a sogra
fazem esta parte do ritual. As irmãs, os filhos e os netos do morto saem da
propriedade. A mulher deve pegar o defunto e enterrá-lo. Ela faz da capulana uma
espécie de calças e pega o cadáver sozinha. Se não puder, arrasta-o. Batem-lhe, se
ela não pode com o marido. Chegando à cova, a mulher desce lá no fundo e
deposita o morto. É ela que põe as peles ou as esteiras de maneira a fechar a
espécie de gavetão e recebe a terra para segurar tudo. Terminada a função sai do
buraco e se aterra a cova. Terminado esse trabalho põem-se sementes de abóbora,
milho e outros vegetais, que depois germinam e cobrem a sepultura. Entregam à
mulher os utensílios que o defunto utilizava e ela os quebra em cima da sepultura.
Só então começam as lamentações. Voltam todos à povoação. Chegam também os
que durante o enterro se retiraram para o mato. Lavam as mãos e narram tudo o que
se passou com esta morte. Revelam a última vontade do falecido, o que ele deseja
que se faça. Despedem-se e cada um vai para a sua casa. Ficam apenas os

55
Cf. P. Armando RIBEIRO, Antropologia.
73

parentes na povoação. Pegam água e todos os presentes bebem. É então que se


acende o lume e se cozinha, pois desde que aconteceu a morte até a sepultura do
defunto, apagou-se o lume, não se pegou água, não se comeu, nem se bebeu.

É bastante interessante que uma de nossas entrevistadas mostrou uma


preocupação constante com o momento de sua morte. Sua preocupação era poder
dizer à família, especialmente, aos filhos aquilo que desejava e, com isto, obter as
coisas que necessita à hora de sua morte, tendo, portanto uma boa morte. Vejamos
o relato:

Entendi, a senhora pensa quando for a vez da senhora.


Sim, sim, sim, terei mesmo tempo de avisar os meus filhos?
E o que a senhora acha?
Num sei, vou lutar pra isso, sempre quando recordo do meu pai, recordo
dessas palavras, não me saí nada, não me saí.
Mas a senhora acha que teve tempo de fazer essa porta para que ele pudesse entrar?
Sim, sim ele, ele, ele que estava a ver, ele que estava a ver as coisas no seu
íntimo que afinal de contas me faltam muitos dias para eu morrer, a ponto de
dizer isso, e nesse dia pediu, foi quando me chamou, para eu pedir um
professor, porque era pra eu chamar um padre aqui que ele queria se
confessar e foi no sábado o padre e confessou e não falou mais porque
estávamos a espera de um meu irmão que estava em Kilimaro e ele queria
ver o neto e despedir do irmão, do filho, mas quando o filho chegou nem
conseguiu já falar com o filho, só levantou a mão e no dia seguinte...
Faleceu.
Ele faleceu. Por isso pergunto-me sempre: - será que eu também terei assim
mesmo, terei tempo mesmo de ver os meus filhos que é assim, assim,
assim?56

O que sabemos, portanto, é que aquele que tem uma boa morte pode se
tornar um antepassado, mas também é importante que ele se comunique de alguma
maneira, já que uma de suas funções é intermediar a relação entre os seres
humanos e o Ser Supremo57. Vamos, a seguir, compreender os dois grandes eixos

56
S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
57
Vemos que a importância da morte se preservou no Brasil durante a escravidão. Nas irmandades
religiosas, o cuidado com os mortos assumia uma grande importância, havendo um esmero na
preparação, na realização dos rituais fúnebres. Quando alguém morria, os irmãos eram mobilizados e
deviam acompanhar o corpo até a sepultura e participar das missas e orações realizadas por sua
alma. Muitos africanos ingressavam nas irmandades religiosas para garantir uma boa morte, pois
alguns cativos quando morriam eram deixados, abandonados nas ruas, estradas ou praias, ou, ainda,
eram sepultados em valas comuns. O que podemos afirmar em se tratando do significado da morte
74

da religiosidade bantú: o Ser Supremo e os antepassados, bem como entender a


importância do culto aos antepassados dentro da tradição bantú.

1.3 – Os grandes eixos da religiosidade bantú

A religiosidade bantú pode ser entendida como algo que se encontra presente
nas instituições sociais58. Dentro dessa lógica, não há distinção entre profano e
sagrado59, secular e religioso. Pode-se falar de uma religiosidade que não necessita
de um espaço determinado para o culto, sendo o culto de caráter familiar, exercido
dentro da localidade, uma vez que ela está inserida no cotidiano, contando com uma
visão espiritualista da existência e da convivência entre o mundo visível e o mundo
invisível:

para os povos bantos, era que os ritos fúnebres feitos de qualquer maneira, significavam não dar o
passo mais importante da existência, ou seja, tornar-se um antepassado. Dessa forma, é possível
supor que a preocupação com a morte está para além do simples ritual fúnebre. Vemos também que
os meios podem ser modificados, mas aquilo que é central dentro de determinada cultura acaba por
permanecer de maneira ressignificada. É também interessante notar que os cortejos fúnebres feitos
pelos africanos eram pautados pela alegria e pela festa, uma vez que o sentido da morte para os
grupos bantos era diferente do sentido ocidental. Cf. Carlos Eduardo de Araújo MOREIRA; Carlos
Eugênio Líbânio SOARES; Flávio dos Santos GOMES; Juliana Barreto FARIAS, Cidades negras.
58
A organização da sociedade era feita a partir da fidelidade ao chefe e das relações de parentesco.
O chefe da família, cercado de seus dependentes e seus agregados, era o núcleo básico de
organização na África. Todos ficavam unidos pela autoridade de um dos membros do grupo,
geralmente um dos indivíduos mais velhos, e que tinha dado mostras de sua capacidade de
liderança, de fazer justiça e de manter a harmonia na vida do grupo. Um conselho ajudava o chefe a
governar, sendo que os responsáveis pelos assuntos sobrenaturais gozavam de grande importância.
As lideranças nas sociedades também eram sustentadas em grande parte pelo sobrenatural. Depois
de reconhecidos como líderes pelo grupo, eles precisavam ser confirmados pelos sacerdotes, que
consultavam as entidades sobrenaturais e através de ritos apropriados, os chefes eram confirmados
e se tornavam os mais importantes intermediários entre elas e os membros da comunidade. Pode-se
dizer que a religião era um elemento central em todas as sociedades africanas, presente no exercício
do poder, na aplicação das normas de convivência do grupo e na garantia da harmonia e do bem-
estar da comunidade.
59
Quando falamos a respeito da diferenciação entre sagrado e profano, estamos recorrendo a
DURKHEIM que apresenta como exemplo de coisas sagradas: crenças, mitos, lendas. O conteúdo do
sagrado comporta tudo aquilo que ele associou tradicionalmente com religião, considerando que o
conteúdo de profano consiste em tudo aquilo que não é sagrado, aquelas coisas que ele
tradicionalmente não associou com religião. A oposição entre sagrado e profano pode ser
considerada como uma mera coisa, como a luz pressupõe o escuro, então, o sagrado implica o
profano, elas não podem ser estudadas separadamente. Para ele, há uma oposição entre o sagrado
e profano: o mundo do sagrado mantém uma relação antagônica com o mundo do profano. O
sagrado e o profano são concebidos como coisas separadas, como dois mundos que não tem nada
em comum, mas que mantém, dentro de uma dimensão temporal, relações compensatórias. Segundo
DURKHEIM, As formas elementares da vida religiosa, p. 65: “Uma religião é um sistema unificado de
crenças e práticas sobre as coisas sagradas (isto é, sobre coisas que estão separadas e proibidas),
tais crenças e práticas unem todos aqueles que aderem a elas dentro de uma única comunidade
moral chamada Igreja”. Vários autores divergem das idéias propostas por DURKHEIM, mas não
podemos esquecer que ele marca uma geração de pesquisadores.
75

São, são esses também, estão também, estão inclusos porque o que
acontece é que quando há uma epidemia de fome, de, sei lá, pragas, de
bicharadas que dizimam as culturas e outras coisas faziam-se cerimônias e a
localidade que está em volta, por exemplo, daquele lago reuni todos os
líderes tradicionais, matando-se os animais que vai se sacrificar ali e bebidas
tradicionais, invocam-se aqui os espíritos todos e pedem que intercedam por
aquela população toda junto aos xi’kwembu para ver se essa praga
desaparece e se é falta de chuva,cai a chuva, se é fome desaparece etc. etc.
etc. e muito das vezes, tradicionalmente, em algumas regiões do interior
acontecia isso assim.60

Portanto, as orientações da vida são dadas pelo contato com o mundo


invisível e com os espíritos que lá existem. As coisas são explicadas e resolvidas a
partir desse contato, ou seja, girando em torno da relação entre mundo visível e
invisível:

A orientação de como agir diante de várias situações da vida era traçada


valendo-se do além, dos antepassados, dos ancestrais, dos heróis
fundadores, dos deuses, dos espíritos e da grande variedade de seres
sobrenaturais que habitavam dimensões com as quais era possível fazer
contato sob certas condições específicas61.

Uma vez que, para os bantú, a vida é vista de uma maneira sistêmica, na qual
todas as coisas estão interligadas, existindo uma interdependência entre os dois
mundos, a vivência da religiosidade possui uma posição central dentro desta
tradição, pois, através dela, é possível que se estabeleça o contato com o mundo
invisível e com os antepassados, ao mesmo tempo em que é através de cultos ou de
procedimentos específicos que se resolvem problemas práticos:

... um intermediário aos xi’kwembu a pedir, exatamente, que chovesse porque


a população estava a morrer de fome. Olha o que eu saiba é que de fato às
quinze horas eles saíram dali cada um em debandada porque já havia
trovoada, chuva em todo canto, é verdade, então, bom, eu vi por Deus os
xi’kwembu também atendem a forma daqueles que ignorantemente não
conhecem outra forma de adorar, mas aquela manifestação acho que foi, foi,
exatamente, aceita porque o que eles pediam aconteceu, sabe, então deduzi
foi uma das cerimônias que eu assisti, que vi diretamente, os xi’kwembu na
sua força podem, exatamente, persuadir o povo...62

60
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
61
Marina de MELLO E SOUZA, África e Brasil africano, p. 45.
62
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
76

Podemos afirmar, então, que o mundo invisível se entrelaça com o visível e o


penetra por completo. A experiência religiosa é uma vivência permanente. Os dois
mundos realizam-se comunitariamente, porque são solidários e hierarquizados. A
religiosidade bantú é, assim, um conjunto cultual de idéias, sentimentos e ritos
claramente definidos. Segundo Altuna:

A Religião Tradicional está enriquecida com as crenças e manifestações


necessárias para ser considerada como autêntica religião: noção clara de
Deus, do cosmos e da natureza, da finalidade e destino do homem; com um
sistema de representações e uma ética derivada das crenças, que cuida da
realização do homem e da estruturação da sociedade segundo um plano
previsto e com finalidade clara; com um conjunto de ritos-culto (liturgia) por
meio dos quais o homem e a comunidade exteriorizam e celebram suas
crenças; e com uma fé actuante ou sensibilidade-espiritualismo que
vivenciam esse corpo doutrinal e cúltico, dão sentido à existência da pessoa e
harmonizam e dão coesão à sociedade. 63

A religiosidade bantú é a expressão de uma ordem e de uma harmonia entre


os seres humanos e as coisas, dos seres humanos entre si e das coisas entre elas.
Os grupos de tradição bantú temem que a harmonia se perturbe e se desorganize,
porque a totalidade dos seres funciona interligada, mas permanentemente
ameaçada pela interação desviada. Nasce, assim, a magia, como forma de
resolução das constantes perturbações sociais e familiares, que são geradas pela
desarmonia. O bantú só pode realizar a sua existência em relação com o aquilo que
é religioso. A religião dá forma, condiciona e vivifica as instituições e as
manifestações familiares, sociais e políticas:

Há um movimento vertical de Nyambe (Deus) para o Muntu (Homem), em


seguida um movimento horizontal do Muntu para os outros homens: Bantu. O
equilíbrio de forças é, acima de tudo, espiritual, depois físico, seguidamente
social e, por fim, cósmico e universal. Eis porque a determinação religiosa
através do social resulta compensação de uma verdadeira função sócio-
genética da religião. Todos os seres, segundo os bantu, têm o Ser Supremo
por origem. Recebem d’Ele vida e movimento. (...) É no encalço da religião
que convém considerar a antropologia bantu. Ela é nambeista: isto é,
religiosa. 64

63
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 370-371.
64
FOUGEYROLLAS apud Jean Bastide MUNGUELE KIYUNGU, Dinamismo cultural bantu e religião,
p. 58-59.
77

Dentro da vivência religiosa existe uma finalidade exclusivamente pragmática,


já que os bantú procuram conseguir uma vida com bens materiais, fecundidade,
saúde, colheita abundante e tranqüilidade no modo de vida. Porém, essa aquisição
só é obtida mediante a participação comunitária. A vida participada, a solidariedade
vertical e horizontal e a desejada harmonia da interação fundamentam e polarizam a
religiosidade. O que está conforme tais princípios é reto e bom, o que está em
oposição é desonesto e mau. Todo ato, comportamento, atitude e hábito humano
que atentem contra a força vital, o crescimento e a preeminência do ser humano é
mau. É boa toda ação que reforça, restabelece ou respeita o dinamismo vital. As
coisas se resumem nas relações do mundo visível com o invisível e nas relações
interpessoais e comunitárias. Tudo acontece porque o dinamismo vital foi bem
canalizado, desviado ou desvirtuado, sendo que a estagnação dá-se pelo contrário.
O bantú espera viver em plenitude, livre de desgraças, em paz e em harmonia
comunitárias e conviver, depois da morte, com os antepassados. Segundo Peixe:

Uma intuição natural diz-lhe que a ordem social é regulada pelo bem e que a
sua existência só pode ser ameaçada por entes sobrenaturais. Há entes
sobrenaturais neste mundo e entes sobrenaturais no mundo do Além.
Aqueles são os agentes do mal e do ódio; estes são os do bem. Assim,
quando estes lhe fazem algum mal, não é por prazer, mas porque estão
aborrecidos ou têm alguma pretensão, donde se infere que a existência
humana só pelos agentes do mal pode ser ameaçada. Os entes sobrenaturais
do Além apenas temporàriamente ameaçam a integridade física, porque neles
não tem lugar o ódio, o mal ou a vingança. Não é a eles que se pede a chuva,
a saúde e as subsistências? Eles tudo fazem quando se lhes pede, se lhes
sacrifica e se lhes canta. O que querem os psi-kwêmbo dos antepassados? –
Satisfação, alegria e paz. O que pedem os psi-kwêmbu dos va-ngúni? –
Curar os que sofrem. É o reagir do instinto de preservação. 65

Portanto, quando falamos em religiosidade bantú, religiosidade inserida no


cotidiano, podemos observar dois eixos fundamentais que regem as vivências
religiosas das pessoas pertencentes a essa tradição, uma vez que são elas que
permitem o contato do ser humano, que se encontra no mundo visível, com as
entidades, no mundo invisível.

Um dos eixos é a crença em um Ser Supremo, que possui diferentes nomes:

65
Júlio dos Santos. PEIXE, Ligeiros apontamentos sobre a curandice espírita entre o povo ba-tswa,
Boletim da Sociedade de estudos de Moçambique, p. 23.
78

Religião africana é assim: nós cremos, que eu falo, nós africanos assim, nós
cremos que o ser sublime é dono e criador de tudo. O ser sublime é um,
único. Aí talvez alguns entram em crise, nós ouvimos que o africano é
politeísta, porque o branco escreveu, ou colocou assim, o africano é
politeísta. Não, é monoteísta, só que quando o africano coloca os nomes de
deuses são diferentes e aí o branco entendeu que vai no lugar dele no
Congo, Deus é assim, chama assim, vai no Quênia, Deus chama assim e aí
confundiu tudo para o branco e aí resolveu falar que o africano é politeísta,
monoteísta. Cremos que Deus é único, só que esse Deus se manifesta em
diferentes lugares, se manifesta em diferentes situações e esse Deus tem
nomes de acordo de diferentes manifestações que ele tem. Por exemplo,
quando a gente tem bênção, boa vida, bem aventurado tem nome de Deus.
Quando a gente tá indo mal na vida tem outro nome de Deus. Mas o único
Deus que falamos. Quando falamos sobre fertilidade tem nome de Deus,
quando falamos sobre fertilidade tem nome de Deus, mas um único Deus, só
que os nomes que mudam. 66

O outro eixo é a questão dos antepassados ou defuntos67:

Começou com os ancestrais que não podemos contar, nós sabemos histórias,
mas criamos está o que somos e as coisas estará nos antepassados, que são
os, na linguagem popular chamamos de vivos mortos, não sei como é que vai
ser porque parece contradição – vivo e morto - mas na igreja chamam
divindade, parece uma contradição, mas cremos que são mortos como,
porque não existe no corporal, mas são vivos porque sempre influenciam a
nossa vida, a família, ou na ajuda ou no outro lado da vida. Esses são os
antepassados. Quem é antepassado? Antepassado para nós africanos um
homem que viveu uma vida de conduta moral. Morreu uma morte normal em
velhice e viveu as condições ou as celebrações tradicionais na sociedade.
Esse antepassado. E aí exclui que jovem que morreu sem descendência,
exclui que mulher, a menina, exclui que homem que não viveu uma vida de
conduta moral, exclui que homem que morreu uma morte condenada como
suicídio, se afogou ou uma coisa séria suicídio já falei. Ou foi morto porque
era malandro ou tomou veneno, aí exclui todos esses. E quem vai ficar? Esse
homem de conduta moral, morreu uma morte normal, feliz e tinha
descendência.68

O que se nota é que os bantú têm uma grande capacidade de absorver, de


assimilar, de digerir e de sincretizar com outras religiões, fazendo isso com certa
facilidade. De qualquer forma, a religião tradicional sempre se mantém como base e
como fundamento das mudanças, fato observado durante o encontro de diferentes
povos durante os deslocamentos ocorridos, visto neste capítulo, como também nos

66
M., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, São Paulo, 28/05/08.
67
Cf. Henrique A. JUNOD, Usos e costumes dos bantos.
68
M., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, São Paulo, 28/05/08.
79

novos encontros que veremos nos capítulos posteriores. O que se nota é que o dado
religioso, transformado ou não, permanece como um eixo fundamental. Veremos, a
seguir, cada um destes eixos separadamente.

1.3.1 - O Ser Supremo

Dentro da tradição bantú, há uma crença em um Ser Supremo único, mas que
possui uma variedade de nomes e de matizes em seus atributos e em sua
soberania. Essa crença polariza concepções religiosas do bantú e dá origem à sua
visão de mundo. O Ser Supremo ocupa o vértice da pirâmide vital, como já vimos,
presidindo a ordem do mundo. O ser humano é dependente do Ser Supremo. O que
nos permite falar em uma crença em um único Deus:

Mas ele não foi criado por ninguém?


Não, não foi criado por ninguém, eles têm esse princípio que não foi criado
por ninguém, ele é que criou os outros assim, eles entendem isso, ele é que
criou os outros, os xi’kwembu foram criados por ele que são pessoas que
passaram deste mundo etc. e ele é que criou os outros que criou o mundo,
por isso em termos de classificação da religião tradicional é de fato, bom,
pode-se considerar monoteísta, sim, porque esses xi’kwembu que não são
considerados aqueles que são poderosos, são considerados intermediários,
sim, porque mesmo nas cerimônias, essas que, não sei quanto, não se
implora o poder deles, eles são venerados, são invocados como
intermediários a este Xi’kwembu.69

O Ser Supremo pode ser entendido como uma potência e uma força, que se
encontra acima dos antepassados e dos ancestrais que os seres humanos
conhecem e podem chamar pelo nome. “É uma potencia que actua e se manifesta
por várias maneiras. (...) é considerada como inteiramente impessoal”70. O Ser
Supremo não é uma pessoa, não é um ídolo material e não é como os espíritos.

Para os bantú, segundo Lopes71, o Ser Supremo é a causa primeira e última


de todas as coisas, não existindo a possibilidade de manipulá-Lo. Por outro lado, o
ser humano é o melhor reflexo do Ser Supremo, entre todos os seres, por sua
participação vital. Os seres criados podem definir-se pelo atuar e ser atuado. O ser

69
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
70
Henrique A. JUNOD, Usos e costumes dos bantos, p. 393.
71
Cf. Nei LOPES, Bantos, malês e identidade cultural.
80

humano, como os demais seres, representa um dinamismo vital, contingente,


causado, mantido e desenvolvido pela influência criadora do Ser Supremo. Pode ser
chamado de Nzambi, Kalunga, Suou, Huku, Sugu; o nome expressa a concepção
que se tem do Ser Supremo em função dos atributos que lhe são próprios. É a
totalidade da vida, a força e a inteligência, superando tudo em todos, por isso não é
representado de nenhuma forma em parte alguma.

Portanto, o Ser Supremo é o que mantém o mundo unido: é o centro do


universo e conserva a ordem e o dinamismo de todo cosmos. É tão importante que
vive longe dos seres humanos. Porém, o aparente distanciamento do Ser Supremo é
uma forma de realçar a sua transcendência. Por outro lado, ele se faz imanente,
manifestando-se através de fenômenos da natureza, uma vez que se encontra
próximo dos seres humanos e intervém diretamente ou por mediações na vida das
pessoas e da sociedade: “... está continuamente presente na sua vida como causa
da existência, garantia da sua força vital e força de união entre os membros da
sociedade”72. Em função disso, não há uma reverência ao Ser Supremo com um
culto oficial, público e institucionalizado, apenas em situações limites se faz um culto
familiar ou comunitário: “Não existem templos, altares, oferendas e sacrifícios
públicos, festas, sacerdócio; nem precisam de lugares, momentos fixos ou tempos
dedicados ao culto a adoração a Deus”73. Como é o dono e o senhor da vida e de
todas as coisas do universo, ele não precisa de nada que venha dos seres
humanos, como, por exemplo, oferendas materiais. Se lhe prestassem culto oficial,
ele seria igualado aos antepassados, o que seria rebaixá-lo. Adoram o Ser Supremo,
reconhecendo-o como fonte de benefícios que exigem agradecimento.

Se por um lado não há um culto oficial, por outro, as pessoas se voltam ao


Ser Supremo e o adoram sempre que surgem necessidades, assim qualquer espaço
e qualquer tempo pode ser um instante de oração. Ao mesmo tempo em que o Ser
Supremo vive separado e distanciado do ser humano, também é próximo e familiar,
no sentido de que a todo o momento e em qualquer lugar o ser humano pode se
comunicar com ele. O culto privado, individual, interior e espiritual é muito freqüente,
de caráter íntimo. É um culto íntimo. Porém, quando o ser humano se refere a ele
deve-se manter uma atitude submissa, paciente, respeitosa e distanciada. A oração

72
Francisco Lerma MARTINEZ, O povo macua e a sua cultura, p. 234.
73
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p.
81

individual não precisa de intermediários, pois brota espontaneamente, de maneira


pessoal e confiante:

Os Bantos, (...) crêem num Deus Supremo e o respeitam, mas não o cultuam
e só se dirigem a Ele em casos de extremo desespero. E isto porque
entendem que o melhor modo de lhe render culto é venerando seus grandes
mortos, ou seja, os espíritos dos ancestrais.74

Vemos que dentro da tradição bantú, o Ser Supremo, os espíritos e o ser


humano são entendidos como dialéticos, já que são percebidos tanto o bem, quanto
o mal, o certo e o errado, a proximidade e a distância. Não queremos dizer com isso
que o Ser Supremo é ruim, por exemplo, mas apenas ressaltar a idéia de que dentro
dessa tradição há a existência de polaridades e essas polaridades podem existir ao
mesmo tempo em um mesmo ser.

Os antepassados servem de intermediários entre o ser humano e a


comunidade com o dinamismo vital e o Ser Supremo. Nesse sentido, o intermediário
ocupa um lugar de destaque e sempre se faz necessário, já que a principal forma de
comunicação dos seres vivos com o Ser Supremo ocorre através de intermediários.
O espírito do morto pode falar, depois da morte, com o Ser Supremo, razão pela
qual se desenvolveu um culto aos antepassados, que veremos a seguir.

1.3.2 - Os antepassados

Vimos que os defuntos, os espíritos e os antepassados interferem


continuamente na vida dos seres vivos, mantendo uma relação de interdependência.
Observamos também que a morte possibilita a alguém tornar-se um antepassado.
Assim, quando falamos de antepassados, estamos nos referindo a alguém que viveu
no mundo visível, teve uma existência histórica, mas que se encontra na condição
de falecido ou de morto. A morte gera, nesse ser, uma profunda transformação,
principalmente na questão da força vital, que diminui, configurando-se em uma nova
maneira de existir. O antepassado vive no mundo invisível, mas continua membro da
comunidade e do grupo familiar a que pertencia durante a vida, presença que é
notada na sua participação na corrente vital, com a perseverança do seu existir

74
Nei LOPES, Bantos, malês e identidade cultural, p. 164.
82

mediante o nome ou mediante a sua interferência positiva ou negativa na vida dos


vivos. Conforme fala do grupo focal:

... para nós os antepassados são muito importantes, porque se acontece algo
na família que não é bom, as pessoas vão falar: os nossos antepassados não
são felizes, não estão felizes, então nós temos de fazer algo para fazermos
ficar os antepassados felizes, não estão felizes. Por isso o bisavô meu me
falou quando faleceu, o meu avô tinha que ir entregar a comida no túmulo
dele, todos os dias durante almoço, porque aconteceu um problema na
família e eles falaram que meu avô tinha conflito com pai, o pai dele, e ele
tinha que resolver, então ficou um ano inteiro, cada dia entregava comida lá
no túmulo. Então, para nós, os antepassados, eles estão lá para nos
guardar.(...)
Para nós, apesar da morte, eles continuam vivendo conosco, entre nós e por
isso quando nós enterramos, não enterramos longe, lá dentro da casa
mesmo. Como ele tava falando o avó dele entregava comida para ele, porque
ele já morreu sim, mas ela continua vivendo conosco.75

O fato dos antepassados desempenharem a função de intermediários entre o


Ser Supremo e os seres humanos faz com que tenham poderes extraordinários, mas
limitados, pois dependem da união com a força vital e com o Ser Supremo para
exercê-los. De qualquer forma, são superiores aos seres humanos, capazes de
intervir com eficácia em assuntos que eles não conseguem enfrentar:

Os antepassados são chamados de intermediários ou intercessores e como


disseram eles são do mundo invisível, então a gente não tem acesso logo aos
antepassados. E, por exemplo, Deus na minha cultura bantú é nome diferente
deles, chama Zambiupungu. Zambiupungu é o nome de Deus na cultura
bantú, do Congo. O nome de Deus quer dizer que ele é poderoso, ele tem a
força, então bantú não pode ter acesso logo nele, mas ele tem que se
relacionar com os antepassados. Por isso para entender bem como se
relacionar com os antepassados, você tem de passar por rito no culto. Você
tem um problema na família, você tem a morte prematura jovem, a gente não
acredita nisso, então você tem que passar no rito, tem que passar no culto
para pedir os antepassados para intercessão, como se diz, ver para você,
porque são eles que a gente tem como acesso, porque é todo poderoso e a
gente não chega logo para os antepassados, por isso na linguagem cristã,
como ele acabou de dizer, são os santos e aonde estão os santos, os nosso
santos são os antepassados, por isso para ter o acesso neles temos que
passar através dos ritos, através do culto.76

75
Grupo focal, São Paulo, 08/10/08.
76
IDEM, São Paulo, 08/10/08.
83

O culto aos antepassados é freqüente e constante, já que eles são


intermediários entre o Ser Supremo e os seres humanos, intercedendo em favor dos
vivos. Fazem uma ponte entre o mundo visível e invisível, sendo importante mantê-
los próximos77. A diferença dos bantú para outros grupos africanos estaria na
importância que eles atribuem aos antepassados: “De fato, parece que em todas as
religiões bantas os espíritos dos ancestrais são os intermediários entre a divindade
suprema e o homem. Assim, são eles que levam as oferendas dos fiéis e intercedem
em seu favor junto a Nzambi, Suku, Kalunga”78.

Como vimos, o Ser Supremo é colocado no vértice das forças, como espírito
criador, dotado de poder por si mesmo, sendo o ser humano um elemento
participante de sua força. Os antepassados estariam situados entre ambos. Há
divergência de nomenclatura por parte de alguns autores se o culto dentro da
tradição bantú é voltado aos antepassados ou aos ancestrais. Na experiência que
tivemos em Maputo, salvo poucas pessoas, aqueles que morrem são chamados de
defuntos, sendo que poucos falaram em antepassados, um termo utilizado mais
pelos acadêmicos. O fato é que o culto se dirige aos parentes próximos mortos, por
isto, defuntos. É também interessante tomarmos a diferenciação feita por um de
nossos entrevistados a respeito do que são ancestrais e antepassados:

O segundo mundo só para mencionar, depois eu vou falar, mais disso do


mundo dos ancestrais ou antepassados que quando vão falar sobre as
religiões africanas, tudo, tudo,tudo que a gente fala sobre as religiões
africanas, circula neste mundo de antepassados ou ancestrais. Na linguagem
inglês que eu falo, o mundo antepassado e ancestrais é diferente, na
linguagem português não sei se tem diferença, parece a mesma coisa. Na
minha linguagem é diferente. Quando se fala ancestrais quero colocar os que
já morreram e ainda, quase você, não tem memória deles então chamamos
os fundadores da clã, os fundadores da sociedade que você nem pode contar
sobre eles porque não tem nada de história deles. Isso é na língua inglesa ou
na minha língua oficial materna,quando se fala assim. Quando se fala sobre
antepassados, aí você já coloca os pais e os pais dos vovôs, os vovôs e aí
ainda tem conta. 79

77
Podemos pensar nos orixás e nos guias na umbanda que são ressignificados e fazem a mediação
com Deus. Na umbanda também não se cultua Deus. A construção de um templo amplo e definitivo,
público, expõe o dinamismo vital – religioso próprio do grupo ao conhecimento e à interferência
mágica de estranhos e de inimigos. Cabe lembrar que grande parte dos terreiros de umbanda é
montada dentro da casa das pessoas, muitas vezes, aproximando-se de um culto familiar ou
doméstico.
78
Nei LOPES, Bantos, malês e identidade cultural, p. 163.
79
M., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 28/05/08.
84

Como vimos, para os bantú, todo o ser humano que morreu torna-se um
espírito. Alguns deles podem ocupar a categoria de antepassados. Para que isso
ocorra é necessário levar-se em conta a conduta do indivíduo em vida, bem como a
forma como ele morreu. Segundo P.80, também é necessário que esse antepassado
se manifeste em alguém. Essa manifestação se dá por possessão, quando o
antepassado envia uma mensagem. A voz é da pessoa e o tipo de relação que
estabelece com os outros é a relação que estabelecia quando estava viva. Assim,
dentro da tradição bantú, falamos de antepassados que mantêm uma relação
visceral com a família:

E, por exemplo, senhora Celeste, como é que, a gente tá falando dos defuntos, dos
meus defuntos, os espíritos dos defuntos, eles sempre são meus?
São, são, são, são.
Existem defuntos que serão, por exemplo, vamos imaginar que eu e a senhora
nascemos no mesmo local, no mesmo sítio, a gente vai ter espíritos ou defuntos que
são comuns a mim e a senhora?
Não, não, não, nós não somos da mesma família.
Isso sempre?
Sim, eu, eu quando rezo, quando falo, recordo os meus defuntos, não é, e a
esses meus defuntos que eu qualquer coisa de mau que me façam é a eles
que posso pedir para me apoiar, então não vou pedir aos defuntos do vizinho
meu se nem conheço, como é que vou pedir.81

Entre os bantú a onipresença dos antepassados é total. Eles não só


continuam a fazer parte da comunidade dos vivos, como evidenciam a sua
importância. Os mortos, ao passarem pela agonia individual da morte, adquiriram um
conhecimento mais profundo do mistério e do processo de participação vital do
universo. O antepassado é importante porque deixa uma herança espiritual sobre o
mundo visível, tendo contribuído para a evolução da comunidade ao longo da sua
existência e, por isso, é venerado. Ele atesta o poder do indivíduo e é tomado como
exemplo não apenas para que suas ações sejam imitadas, mas para que cada um
de seus descendentes assuma com igual consciência suas responsabilidades. Por

80
P., entrevista concedida à autora, anotação em caderno de campo, Maputo, 13/07/09.
81
S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
85

força de sua herança espiritual, o antepassado assegura tanto a estabilidade e a


solidariedade do grupo no tempo quanto sua coesão no espaço82:

José Tchaúque também conhecido por Ninbembe.


Ninbembe.
Ninbembe, esse nome é, como eu posso dizer, é dum, dum avô ou um
ancião.
Esse nome do senhor é do avô do senhor?
Sim, sim e até por não ser o meu próprio avô, mas o avô do meu pai que eles
querem perpetuar exatamente esses nomes, sim, e então, e se estiver vivo
muito bem, se ele já é falecido é o, é o defunto é protetor da minha pessoa,
pode ser até o meu anjo da guarda, sim.
Então deixa eu entender. O senhor teria um defunto que é o avô do seu pai, no caso do
senhor, que protege o senhor o tempo todo?
O tempo todo.
Ele tá aqui com o senhor?
Tá aqui comigo, até a minha morte.83

Podemos supor que os antepassados têm uma natureza paradoxal; ao


mesmo tempo em que possuem atributos da divindade, já que entram no domínio do
infinito, fora de um tempo e de um espaço determinado; são onipresentes, pois
estão presentes em toda parte; são oniscientes, pois sabem o que fazem os seus
descendentes; são onipotentes, tendo domínio sobre as coisas da vida dos seus
descendentes. Por outro lado, não passam de seres viventes, pois não são
entendidos como seres transcendentes, não são temidos, apesar de respeitados, e
as preces que lhes são dirigidas são compostas por elementos de proximidade e de
intimidade, pois, muitas vezes, os seres humanos entendem que os antepassados

82
Segundo Robert SLENES, Na senzala, uma flor, havia pressupostos culturais sobre família e
linhagem comuns a sociedades da África Central. No que diz respeito ao parentesco, é possível
afirmar que o conceito básico de linhagem é mais importante, enquanto princípio cultural mais
profundo, do que a maneira específica de defini-lo. Era provável que se mudasse a maneira de definir
a linhagem, como matrilinear, patrilinear ou bilateral, mas que mantivesse a linhagem como um
princípio organizador da sociedade. Os africanos trazidos ao Sudeste do Brasil, mesmo separados de
suas sociedades de origem, tenderiam a organizar suas vidas, de acordo com o esquema da família –
linhagem. Buscando condições para manter grupos estáveis no tempo, há a hipótese de que eles se
empenharam na formação de novas famílias conjugais, famílias extensas e grupos de parentesco
ancorados no tempo. As raízes africanas não eram localizadas num lugar, mas em um grupo de
parentesco, nos ancestrais, numa posição genealógica. Os africanos levam seus antepassados
consigo quando mudam de lugar, não importando onde esses antepassados estejam enterrados.
83
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
86

se encontram no mesmo nível que eles e, apesar de terem poderes divinos, não
possuem autoridade moral, sendo espíritos ruins em certas situações:

Xi’kwembu chacales, eles na verdade são os feiticeiros, eles foram feiticeiros quando
em vida?
Não, os xi’kwembu, entre eles, há aqueles que, até porque há uma, os
xi’kwembu considerados bons são, como que nós chamamos em português
chama-se os defuntos, sim, os defuntos, os familiares que não têm nada a
provocar maldade, mas há swikwembus que de fato são ao serviço do
demônio que não tem nada a ver com a sua familiaridade podem provocar
perdas, enfim, acidentes, outros males, está a ver, então esses aí os
chacanas são chamados ianquales.
Como é que é?
São chamados ianquales, defuntos ianquales. Ianquales, esses são os
mortos que exatamente servem de nossos defensores.
Que seriam os defuntos, os antepassados?
Defuntos, antepassados, exatamente, ia, então este ianquale é exatamente o
nome tradicional que se dá a cada indivíduo. Cada indivíduo tem o seu
ianquale.84

Os antepassados não se mostram aos vivos sob a forma humana. Revelam-


se sob formas de animais; nos sonhos, isto é, quando um indivíduo sonha com um
antepassado, há uma consulta a um oráculo adivinhatório para saber exatamente o
que ele quer85; ou ainda, por meio da possessão ou do estado de transe, aspecto
que veremos logo a seguir. Por fim, eles também se mostram através de oráculos
adivinhatórios, já que, por meio destes, julga-se conhecer o pensamento e o desejo
dos antepassados. Segundo o grupo focal, as formas de comunicação dos
antepassados...

84
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
85
Segundo M., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 28/05/08: “Aí tem
outras manifestações de cotidiana dos antepassados que abre-se no sono. Esse é difícil de explicar
porque eu já ouvia minha avó falando assim: oh, Mutinda, meu nome é Mutinda, eu tenho nome do
meu antepassado, porque até nomear a nossa sociedade é assim, linhagem dos antepassados.
Então meu nome é Mutinda, Michael Mutinda e aí minha avó falava assim: oh, meu marido porque,
minha avó eu sou marido dela na cultura, aí ela falava o meu marido. O teu filho que é Mutinda agora
é meu filho, ontem se manifestou, falou que amanhã você tem que fazer essa, essa. Essa foi ontem
no sonho, como que explico, não sei. O que aconteceu no sonho eu não sei como explicar, mas eu
vou fazer sim. Porque ela me disse: o antepassado falou para fazer essa, essa e essa e aí se não
fazer, aí onde complica a coisas, porque ela fica chateada, talvez ela começa a fazer manifestações
que você não entendo, aí pode ser de ficar doente ou pelo menos se você tem gado, começa a ver o
gado morrendo ou magoado... Aí fala assim: nossa o que aconteceu e aí ela vai falar: te falei, te falei.
O teu filho me disse: temos que fazer esse, esse, esse porque acreditamos que todo gado que temos,
todas essas coisas são bênçãos dos antepassados então temos que partilhar com eles”.
87

São várias. Primeiro você conta com os sonhos. Aparece nos sonhos vamos
nos encontrar, então é uma de comunicação. Também os desastres que
começa a acontecer na família. Por exemplo: morte prematura, pessoa que
fica doente não tem cura, então são meios que eles se comunicam com os
antepassados. Vocês têm que ver como saber.
Tem um dado, aquele que tem muito apelo dos animais. Ah, teve um caso,
meu antepassado não cria boi, mas, como chama ovelha e cabras. O que
você vai perceber naquela semana, você vai tirar as cabras, saem do curral
para saída, você vai encontrar diferente da saída da outra semana e como
também o deles, você vai tirar desse, sempre tem um lado que sai, aí nessa
semana você vai encontrar diferente de saída deles. Sai, desperta não vai
comer não vão nem tomar água fica assim, tudo fica assim, porque ele tinha
esse apelo de cabra e criava muito. Aí já vai na comunicação dentro desse ou
através da cabra. O que você vai fazer vai fazer um culto e sacrifício e aí
acaba. (...)
E o que mais toca o corpo para nós, toca mais na comunicação. Como o
antepassado vai acordar assim, vai dizer assim: hoje meu olho, como chama
assim, piscar o olho é assim, esse já é um sinal de comunicação.
Alguma coisa que acontece no meu corpo que não funcione direito...
Já é uma comunicação. Ele pode acontecer assim não, geralmente os velhos
têm dor nesse ombro. Eu acordei com dor nesse ombro, já é uma
comunicação da família. Aí ele vai dizer assim, vai falando assim, como vou
escutar, a mulher da nossa família contam isso, entendeu é uma desgraça,
entendeu, quer dizer que alguém da nossa família ta doente, entendeu. A
comunicação do corpo é mesmo muito forte, muito, muito forte, aí o pai pode
aparecer assim agora, não tem hoje, acho que não. Tem vezes que eu tinha,
não tava bem.
A azia não é só a azia, tem outro sentido?
Tem outro sentido, a comunicação do corpo. Eles falam assim, às vezes, na
mesma família talvez o comunico, como aí, eu sou jovem, mas talvez me
comunico mesmo, mas porque se hoje minha mãe morre ou meu pai não
pode ser mesmo com vocês. O corpo comunica e como, aí onde a gente
entra com o mundo dos espíritos, comunica, não vai ser mesmo coisa. Aí vou
acordar pra ver se tou com dor muscular, me sentindo mal assim, até na
saída posso cair, quer dizer, posso vir a atropelar, quer dizer é comunicação
do mundo do espírito que uma coisa pode ser na minha família e aí quando
eles, aí vai acontecer entendeu, ai então a comunicação do corpo e
acontecimentos com os antepassados é muito, muito forte.86

Saber o que querem os antepassados é de extrema importância, pois dessa


vontade depende a existência da aldeia e da comunidade e o bem-estar de cada
um, já que é “a força espiritual mais poderosa que age sobre a vida do homem. Daí,
a necessidade de os tornarmos propícios por meio de preces e sacrifícios”87. A
saúde, a fecundidade, a prosperidade, a sorte, a felicidade, a benção e a maldição
dos vivos dependem da benevolência dos seus antepassados. Os mortos são os

86
Grupo focal, São Paulo, 08/10/08.
87
Henrique A. JUNOD, Usos e costumes dos bantos, p. 350.
88

guardiões e protetores dos familiares vivos. Não há nada de bom ou de mal que
aconteça na vida dos vivos que não esteja ligado, direta ou indiretamente, com a
vontade dos defuntos da família. Se o feiticeiro entra e perturba a vida e a saúde da
família, é porque as sentinelas familiares, os antepassados do clã não estão
contentes e deixaram de proteger a casa, permitindo a entrada do inimigo. Por sua
vez, os antepassados dependem dos seus familiares para se alimentarem e
continuarem vivos. Estabelece-se uma relação constante entre vivos e mortos. O
auge dessa relação se dá durante o culto aos antepassados, aspecto da tradição
que veremos em seguida. Buscaremos não só entender os significados de aspectos
do culto, como também faremos uma descrição do ritual baseada em fontes
bibliográficas.

1.3.2.1 - O culto aos antepassados88

Este culto ocorre nas principais fases do ciclo vital: nascimento, iniciação,
casamento, doença e morte; nos ciclos da natureza; e em determinados momentos
importantes da vida social, por exemplo, inauguração de uma nova aldeia ou a
eleição de um novo chefe. Além disso, há situações especiais na vida da pessoa,
quando ela é aconselhada a realizar do culto: doença, desgraça, ajuda na resolução
de uma grave necessidade ou antes de uma viagem importante. Também é feito
quando os antepassados pedem o sacrifício, através de sonhos, de fenômenos
místicos ou de algum acontecimento significativo.

Na clareza da interdependência entre vivos e mortos que se acha a fonte de


motivações para a celebração da mhamba – o culto aos antepassados. A iniciativa
de celebrar os parentes cabe sempre aos antepassados. São eles que pedem e
88
Henrique A. JUNOD, Usos e costumes dos bantos, caracteriza o culto os antepassados dos
tongas. Levando em consideração que o texto foi escrito no início do século XX, o autor nos dá pistas
interessantes para a compreensão da umbanda. Das características levantadas por ele, podemos
observar que algumas delas ainda se mantêm presentes na umbanda, enquanto outras são
modificadas na gênese desta religião, aspectos que trabalharemos mais adiante. De qualquer forma,
as características levantadas por ele foram: 1) religião espiritualista, uma vez que os espíritos são
objetos de culto; 2) religião animista, pois há numerosas categorias de espíritos e deuses, sendo eles,
muitas vezes, utilizados para a obtenção de algo (uso da magia); 3) religião particularista da família,
porque cada família tem os seus deuses particulares; 4) religião social, já que tende a salvaguardar e
reforçar a hierarquia; religião não-sacerdotal, já que não há uma classe sacerdotal fortemente
estabelecida; 5) religião amoral, pois a mesma possui pouca relação com a conduta moral do
indivíduo; 6) religião eudemonista, pois as cerimônias religiosas visam benefícios materiais relativos à
vida terrestre; 7) religião afilosófica, já que não busca responder aos grandes problemas que dizem
respeito à origem e ao fim do mundo, bem como ao problema da existência humana; 8) religião
ritualística.
89

exigem que se celebre a mhamba. Muitas vezes, os antepassados se servem da


linguagem do sofrimento: doenças persistentes nas famílias do clã e falta de sorte.
As pessoas afetadas por esses sinais consultam o adivinho para interpretar o
verdadeiro sentido e significado de tais sinais. É revelado que um antepassado está
insatisfeito, ou seja, tem fome, sente-se esquecido e abandonado, fora do convívio
familiar e pede comida. O resultado é comunicado ao chefe familiar que toma as
medidas necessárias para a celebração.

Não há um sacerdócio institucionalizado. Os chefes dos grupos familiares


assumem as funções sacerdotais. O clã é a base da organização social. Por clã
entende-se um conjunto de famílias descendentes de um antepassado comum.
Cada grupo de família tem o seu altar de culto familiar. Segundo P.89, a família tem
sempre um altar em casa, que, normalmente, fica embaixo de uma árvore. Essa
árvore sempre tem que estar dentro do terreno da família, no caso dos
antepassados, que, muitas vezes, podem escolher o local. Se for um altar que tem
que ser feito para um espírito que é maligno para aquela família e, muitas vezes,
cobra uma dívida, deve ficar fora da propriedade.

Vemos que o culto aos antepassados possui uma ligação com o território, no
sentido de que apenas os altares destinados aos antepassados da família ficam
dentro da propriedade. Outros espíritos que devem ser cultuados, mas não
pertençam à família, têm seu altar fora da propriedade. Portanto, quando falamos de
antepassados, falamos de um culto essencialmente familiar, que envolve todos os
membros do clã e é dirigido especificamente aos antepassados da família ampla.
Esse ato solene reúne toda a família, vivos e mortos, e constitui a forma mais
importante e característica do sacrifício e de culto religioso tradicional:

Os vários nomes por que é conhecida esta celebração revelam a grande


riqueza de sentidos e significados que estão na base deste culto: “Gulila Vafi”
(lembrar = ‘chorar’ os defuntos); “Gualakanya va nya gufa” (recordar os que
morreram); “Guninga guhodza vafi” (dar comida aos defuntos).90

Portanto, o culto aos antepassados pode ser considerado uma oferenda direta
aos antepassados e, indireta, ao Ser Supremo. “O sentido disto é, segundo me

89
P., entrevista concedida à autora, anotação em caderno de campo, Maputo, 13/07/09.
90
Frei Bernardo AMARAL, Celebração de mhamba entre os vatonga, p. 6.
90

parece, considerar-se Deus tão poderoso e misterioso e o homem tão miserável e


necessitado que, sendo tão grande a distância entre os dois, é necessária a
mediação dos antepassados”91. Através dele, o ser humano entra em contato direto
e de maneira privilegiada com aquilo que dá consistência, unidade e garantia ao
próprio ser, a força vital, por meio da mediação necessária dos antepassados.

As finalidades do culto aos antepassados são variadas. É um sacrifício pela


memória dos antepassados e uma celebração em honra dos espíritos. No fundo um
sacrifício de relação, que assegura a continuidade da corrente vital, mantendo a
união entre os seres do universo, tanto visíveis quanto invisíveis:

Por isso, à celebração do sacrifício propriamente dito, ao pé da árvore


sagrada (dimensão vertical da comunhão), segue-se sempre uma refeição
comunitária (dimensão horizontal da comunhão) em casa da família que
ofereceu o sacrifício ou em casa do chefe da povoação, se o sacrifício é de
toda a comunidade.92

É também um sacrifício de pedidos, uma vez que tem como objetivo


interceder pelas necessidades dos seres humanos, no sentido de pedir algo
bastante concreto. É um sacrifício de satisfação, já que mantém a harmonia e o
equilíbrio entre os seres invisíveis e visíveis, satisfazendo-se, através das oferendas,
os desejos ocultos ou manifestados dos seres invisíveis. É um sacrifício de
agradecimento, no sentido de agradecer os benefícios recebidos.

Eles podiam dentro de uma casa escolher o recinto, podia ser aqui mesmo
dentro da floresta.
Mas o recinto sempre é uma árvore?
E uma árvore sim senhora é ali, então é ali onde se dão bebidas, fizeram
muitas coisas, iam pôr ali e comunicar aos defuntos o que nós estamos a
fazer, estamos a recordar, enquanto que agora vamos à Igreja, então eles
iam ali naquela árvore, dizer aos defuntos o que nós estamos a fazer aí, a
missa pra vocês, venham todos e ajudem-nos e se não chove façam com que
chove, ali. Por exemplo, quando era tempo de canhiúma, uma bebida que nós
bebíamos aqui, canhiúma, essa bebida sempre quando aparece, porque não
aparece anualmente, não é, então primeiro iam pôr ali naquela árvore ali.

91
Francisco Lerma MARTINEZ, O povo macua e a sua cultura, p. 265.
92
Ibid., p. 266.
91

Desde já estamos na época do canhiúma, davam a eles, isso faziam ao


culto.93

As oferendas94 têm o intuito de influenciar os antepassados e os seres


humanos, como forma dos segundos obterem o favor e o auxílio dos primeiros.
Nessas oferendas podem ser ofertados alimentos, principalmente os animais e os
produtos agrícolas; bebidas alcoólicas, fumos e vestuários, que são objetos úteis à
existência humana e que são dados aos antepassados; além de objetos mágicos ou
mágicos-religiosos que não são dados, mas apenas empregados no ato ritual. No
caso de sacrifício, mesmo a vítima sendo oferecida aos antepassados, ela também é
compartilhada por todo grupo:

O que acontece: meu pai tem que falar com os chefes das sociedades,
porque nós, sempre que meu pai que tem de fazer culto não tem os chefes
das sociedades que vão fazer culto de antepassados, porque é um rito da
sociedade, não são da família, tem parte da família, mais da sociedade. Aí
chama tudo, aí organiza tudo e eles vão no lugar santo onde eu faço esse
culto. O que fazem as mulheres levam comida, comida na mão, aqui tem uma
comida que faz mingau, então eles levam, pode levar polenta, leite para
oferecer. Os homens, o que leva animal para sacrificar. Essa sacrifício no
culto não termina a vida de animal, não conceito de matar, partilhar o que
temos de Deus. Partilhamos com que, os nossos antepassados, porque
partilha e com Deus, partilhamos e comemos. Aí quando chega lá tem ritual
que começa, a das asas, as mulheres não entra dentro daquela lugar santa,
dentro, são dos homens selecionados, não todo mundo também, onde se faz
esse sacrifício. O outro mundo fica em redor, assim. 95

Os antepassados não pedem realmente objetos concretos. A oferenda serve


como uma prova de que eles não foram esquecidos e que os seres humanos
cumprem os seus deveres com eles. Pode-se entender que a oferenda é uma forma
dos seres humanos estabelecerem uma ligação com os antepassados, que estão
presentes em suas vidas:

93
S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
94
Segundo Henrique A. JUNOD, Usos e costumes dos bantos, as oferendas, entre os tongas, podem
ser classificadas em: 1) oferendas individuais, familiares e nacionais; 2) oferendas simples e
sacramentais; 3) oferendas com efusão de sangue, quando não há a morte da vitima; 4) oferendas
regulares, que ocorrem em datas que estão ligadas à vida da família ou do clã, entendidas como
eventos especiais.
95
M., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, São Paulo, 28/05/08.
92

Não vai apanhar tudo, tudo, tudo porque eu também como viver cá em
Maputo, mas quando a pessoa quer fazer alguma cerimônia tradicional, às
vezes, vai a um curandeiro tem aqueles ossos que utilizavam e vai fazer
consulta então os espíritos começam a falar aí, por exemplo, quero lembrar o
meu pai, aí vai sair o espírito do meu pai ali e começar a falar, a me explicar:
eu quero que essa missa que você quer fazer, tem que fazer assim, assim,
assim ou quer que eu compro cabrito ou compro galinha pra matar aquilo ali
para fazer a recordação da morte do meu pai.
Mas, por exemplo, essa recordação a senhora vai fazer quando isso é todo o ano?
Não, escolho eu mesmo, escolho eu mesmo.
Aí, por exemplo, eu pego e aí eu vou fazer isso?
Sim, pelo menos tem que conversar com a família toda, reunir, depois de
reunir dizer que: ah, acontece isso e eu queria recordar os meus defuntos,
então é isso, então se concordar vão começar a juntar as coisas para
começar, por exemplo, comprar animais aí, outras coisas que é preciso.96

Com o culto aos antepassados pretende-se satisfazer as necessidades mais


amplas da sociedade. Neste culto é oferecido aos antepassados da família e da
comunidade um sacrifício97, já que são considerados vivos e com poderes sobre-
humanos. O sacrifício tem como intuito estabelecer a comunhão entre os membros
da família e da sociedade com os antepassados e com o Ser Supremo, promover a
circulação de vida e fortalecer as energias, ou seja, a força vital. O sacrifício sempre
implica uma consagração, isto é, um objeto passa do domínio comum, profano ao

96
O., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
97
O sacrifício é um ato religioso que só pode se efetuar num meio religioso e por intermédio de
agentes essencialmente religiosos. Antes da cerimônia, nenhum dos agentes ou dos instrumentos
tem caráter religioso no grau que convém. A primeira fase do sacrifício tem como função atribuir-lhes
esse caráter: eles são profanos e é preciso que mudem de estado. São necessários ritos que os
introduzam no mundo sagrado. Isto é a entrada no sacrifício. O sacrificante não precisa ser
divinizado, mas ele precisa se tornar sagrado. Segundo Marcel MAUSS, p. 29: “Todas essas
purificações, lustrações e consagrações preparam o profano para o ato sagrado, eliminando de seu
corpo os vícios da laicidade, retirando-o da vida comum e introduzindo-o passo a passo no mundo
sagrado dos deuses”. É necessário que haja uma confiança inabalável no resultado automático do
sacrifício, trata-se de um ato religioso com um pensamento religioso – a atitude interna deve
corresponder à atitude externa. O sacrifício exige uma crença, que implica em fé. A aproximação do
sagrado e do profano se processa gradativamente na vítima. Com a aniquilação efetua-se o ato
essencial do sacrifício. A vítima separa-se definitivamente do mundo profano, fica consagrada e
sacrificada. Ela renasce sagrada. Uma forma de realizar a comunicação é entregar ao sacrificante
uma parte da vítima para consumi-la. Ele assimila as características do todo ao comer uma parte. Os
ritos fazem com que a continuidade entre sagrado e profano seja estabelecida. A vítima é o
intermediário pelo qual a corrente se estabelece. Graças a ela, todos os seres que participam do
sacrifício se unem. Para que a vítima possa ser utilizada pelos seres humanos, é preciso que as
entidades tenham recebido sua parte. Essa parte é portadora de uma santidade que o profano,
apesar das consagrações prévias que o elevaram além da sua natureza ordinária e normal, não pode
tocá-la sem perigo. Os efeitos úteis do sacrifício foram produzidos, mas o grupo de pessoas e de
coisas que se formou em torno da vítima é preciso se dissolver lentamente. Como foram os ritos que
criaram o grupo, somente os ritos podem recolocar em liberdade os elementos que o formaram.
93

domínio religioso – ele é consagrado. Porém, as consagrações não são todas da


mesma natureza:

Nessas condições, deve-se chamar “sacrifício” toda oblação, mesmo vegetal,


em que a oferenda, ou uma parte dela, é destruída, embora o costume pareça
reservar o termo apenas à designação dos sacrifícios sangrentos. (...)
Chegamos então à seguinte fórmula: o sacrifício é um ato religioso que
mediante a consagração de uma vítima modifica o estado da pessoa moral
que o efetua ou de certos objetos pelos quais ela se interessa. 98

Dentro do culto aos antepassados, o sacrifício, seja na sua forma animal, seja
como oferenda, assume um lugar central no ritual. Através dele manifesta-se o
caráter familiar e comunitário do rito, bem como do entendimento do mundo bantú. O
sacrifício é dividido entre antepassados e seres humanos, quando aceito, uma vez
que, dele, os antepassados retiram a força vital, enquanto que o invólucro, a parte
material propriamente dita, é deixado para os seres humanos, que o consomem e o
celebram em uma refeição ritual. Através do sacrifício entra-se em comunhão com o
outro mundo, havendo um intercâmbio entre mundo visível e invisível. Aquilo que é
sacrificado ou ofertado transmite força vital e restabelece a harmonia que, por
qualquer motivo se desvirtuou ou se quebrou entre os dois mundos, restaurando a
ordem. Quando o sacrifício é oferecido por uma família, todos os membros devem
participar; no caso de uma comunidade, a mesma coisa:

Então o mundo como que faz, tem culto dos antepassados e culto varia
região da região, mas sempre a ritual quase a mesma coisa, porque inclui
sacrifício dos animais, aqui no candomblé tem, acho, ele inclui comida que
dá, inclui bebida que dá, inclui palavras que se fala, inclui música e dança que
é muito forte na África tem que mexer o corpo bem e aí inclui orações que
não são programadas assim, não são de lei, mas de chamar o nome e os
antepassados. (...) O que acontece, meu pai tem que falar com os chefes das
sociedades, porque nós sempre, que meu pai que tem de fazer culto não tem
os chefes das sociedades que vão fazer culto de antepassados, porque é um
rito da sociedade, não são da família, tem parte da família, mais da
sociedade. Aí chama tudo, aí organiza tudo e eles vão na lugar santo onde eu
faço esse culto, o que fazem as mulheres levam comida, comida na mão, aqui
tem uma comida que faz mingau, então eles levam, pode levar polenta, leite
para oferecer. Os homens, o que leva animal para sacrificar. Essa sacrifício
no culto não termina a vida de animal, não conceito de matar, partilhar o que

98
Marcel MAUSS; Henri HUBERT, Sobre o sacrifício, p. 18-19.
94

temos de Deus. Partilhamos com que, os nossos antepassados, porque


partilha e com Deus, partilhamos e comemos. 99

As preces, por sua vez, têm um caráter eminentemente cerimonial, no sentido


de que são desprovidas do elemento pessoal, tendo como objetivo falar aos
antepassados. Não são executadas, necessariamente, em uma atitude de
compenetração, há uma série de acontecimentos, tais como: risos, danças, cantos e
conversas. Não existe um receio dos antepassados, pois há certa relação de
proximidade e de intimidade com eles.100

Apresentaremos, agora, a descrição de um culto aos antepassados101 entre o


povo vatonga, grupo que se encontra em Moçambique. Como já dissemos, não foi

99
M., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 28/05/08.
100
É interessante notar que esta intimidade e proximidade com os antepassados não são observadas
apenas na cultura africana, mas notamos também na cultura portuguesa, na qual os indivíduos
mantém este tipo de relação com os santos. Já no Brasil, dentro da umbanda, esta relação é
vivenciada junto aos guias.
101
Colocamos em nota outra descrição de culto aos antepassados, mais sucinta, mas que não conta
com sacrifício animal na sua celebração. Segundo Francisco Lerma MARTINEZ, O povo macua e sua
cultura, o lugar mais adequado para esta celebração é fora da povoação, no bosque, ao pé de uma
árvore de sacrifício; um lugar recolhido, silencioso e em contato com a natureza. Em volta da árvore
cria-se um pequeno ambiente, utilizando-se determinada erva., entre os macuas, para o culto, se
limpa esse espaço, tirando toda folhagem e sujeira. Em torno da árvore coloca-se um pano branco
para indicar que ela é sagrada, sendo este o altar sagrado. É oferecida farinha de mapira ou, na falta
desta, farinha de milho. Como matérias secundárias, são oferecidas bebidas de milho fermentado,
uma bebida doce de milho por fermentar e aguardente. Outros produtos também podem ser
ofertados: tabaco, arroz em casca, panos e adornos femininos (pulseiras, anéis, braceletes). São
proibidos qualquer espécie de animal e alguns alimentos: mandioca seca, frutas e qualquer outro tipo
de farinha. A cerimônia ritual é composta de algumas fases que descreveremos a seguir, ainda
baseado em MARTINEZ. A preparação ocorre na véspera da realização do sacrifício, quando um
grupo de anciãos da família ou da comunidade limpa o lugar, arrancado a erva em volta da árvore e
varrendo o chão. Atam um pano branco em volta do tronco da árvore, com aproximadamente um
metro, e fazem buracos no chão para a colocação do sacrifício. As anciãs preparam a farinha, a
bebida e outras possíveis ofertas. O chefe da família ou da comunidade avisa todos que estejam
interessados em participar. A noite anterior é passada em vigília de preparação. A reunião dos
participantes se dá, de madrugada, na casa do chefe da família ou da comunidade, dirigindo-se em
procissão para o lugar escolhido. À frente do grupo vão as anciãs, com a rainha, levando nos
recipientes adequados, a farinha, a bebida e outras oferendas. Atrás deste grupo vêem o chefe da
comunidade, o chefe da família, os anciões e os demais interessados. São excluídos os não-iniciados
e os estrangeiros. A oferta e a oração ocorrem no lugar escolhido previamente para o sacrifício,
quando todos se sentam no chão, em semicírculo, em volta da árvore sagrada, ficando as mulheres
de um lado e os homens do outro. Na frente de todos ficam as anciãs com as oferendas e o
encarregado de orientar a oração principal. As anciãs dirigem-se à árvore sagrada, depositam as
oferendas e voltam para os seus lugares. O presidente da celebração pega um pouco de farinha,
joga-a pouco a pouco no chão, enquanto recita a oração principal. A resposta da assembléia ocorre
quando todos respondem com um leve bater de palmas e, aqueles que desejam, podem fazer
invocações e pedidos aos antepassados, que também são respondidas por palmas pela assembléia.
Por fim, há o regresso à aldeia. Todos voltam para a refeição comunitária, sinal de comunhão entre
os membros da comunidade. Comem e bebem comidas e bebidas tradicionais, sendo que esta
refeição continua durante a tarde e não deve faltar comida para ninguém. Em seguida, organiza-se a
95

possível a realização de trabalho etnográfico no que se refere a esse ritual e,


portanto utilizaremos a descrição feita por Amaral102.

Antes de se iniciar a preparação da celebração, é formada uma comissão que


consulta pelo menos dois adivinhos para se certificar que se trata verdadeiramente
de um pedido dos antepassados. Sendo confirmado o pedido, o adivinho revela
também o tipo de sacrifício que os antepassados pedem. A preparação remota do
sacrifício consiste em recolher as contribuições dos familiares e realizar os ritos de
purificação dos mesmos, os ritos de purificação dos mortos e os ritos de integração
dos recém-falecidos no convívio dos antepassados.

A promessa de celebração feita aos antepassados só ocorre depois que


houve um consenso entre todo o conselho dos pais do clã. O sacerdote vai
apresentar-se na árvore dos antepassados com um pouco de água e farinha de
milho, comunicando aos defuntos que os seus pedidos foram atendidos pelos seus
filhos e toda a família está empenhada na preparação de tudo quanto é necessário
para a celebração da grande festa. Pede-se aos antepassados que ajudem e
abençoem os esforços de todos para que tudo corra da melhor forma possível.
Chegando à arvore, ele se ajoelha, bebe um pouco da água misturada com farinha e
borrifa no chão, dizendo uma oração. Feito isto são convocados os pais do clã para
a apresentação de todo o material comprado e, juntos, decidirem a semana e o dia
concreto da mhamba. Faz-se uma convocação assinalando o dia de concentração
de todos e o programa de celebrações.

No reencontro e na reconciliação da família, os familiares de longe chegam e


começam a limpar as ruínas dos seus antepassados, onde permanecem durante os
dias da celebração. É como se reconstruíssem miticamente as povoações primitivas.
As pessoas são chamadas pelos nomes que invocam os antepassados:

Os defuntos, agora nos seus descendentes, voltam a acender o mesmo fogo,


a habitar as mesmas casas e a percorrer os mesmos caminhos de outros
tempos. Entretanto, parentes e familiares que não se conheciam, visitam-se;
às novas gerações são feitas apresentações, e se explicam as linhagens
genealógicas e as ligações de parentesco e de familiaridades que unem os
diversos membros do clã. Assim se vai criando, naquelas pessoas vindas de

dança, acompanhada do som de tambores, num ambiente de festa e unidade social. A celebração
estende-se até a madrugada.
102
Cf. Frei Bernardo AMARAL, Celebração de mhamba entre os vatonga.
96

diferentes lugares, com diferentes preocupações e mal se conhecendo, uma


verdadeira consciência de unidade e de pertença a uma origem comum.103

A celebração dos parentes aparece como uma ocasião de reencontro do clã,


quando vivos e mortos celebram a unidade da família para comemorarem a origem e
o passado comum e para renovarem as suas esperanças. Durante esses dias, há
gestos de reconciliação e de perdão mútuo entre aqueles que estão brigados.
Podemos afirmar que é uma cerimônia de pacificação e de harmonia familiar. Isso
pode ser feito espontaneamente ou através de um rito:

As zangas e desavenças entre os vivos provocam divisões também entre os


defuntos, dado que os vivos têm os nomes dos mortos “Nyaline”. O nyaline
falecido serve como que de anjo protector do seu xará vivo. Se dois irmãos
brigam, põem em conflito também os seus “nyaline” (...) A mhamba não pode
ocorrer bem se houver uma pessoa zangada.104

Quanto às normas para a realização da mhamba, temos: fazer abstinência


sexual, a partir daquele dia até o fim da mhamba, evitar toda e qualquer forma de
tensão, conflito ou zanga especialmente durante os dias em que a família está
reunida, e não chamar os curandeiros durante o período das celebrações. A seguir é
preparada uma bebida – waputo – que é feita de milho pelo sacerdote e sua esposa.
O rito conjugal da família sacerdotal dá início às celebrações e marca o começo da
abstinência total da atividade conjugal das famílias do clã. O rito conjugal no fim das
celebrações restitui às famílias o vigor da fecundidade e marca o reinício da vida
conjugal normal.

A celebração propriamente dita começa no dia anterior ao da imolação das


vítimas, com o convite solene feito pelo sacerdote aos defuntos. De manhã cedo, ele
se dirige para o lugar onde ocorrerá a celebração, tomando consigo farinha de milho
e água. Ajoelha-se junto à árvore escolhida e faz a oração, convidando a todos, sem
exceção, para a grande festa da família. Nesse mesmo dia, ao cair da noite, todos
se reúnem na casa do pai do clã. Levam-se os animais a serem sacrificados e
outros utensílios para o lugar do sacrifício. Tudo é colocado debaixo da árvore dos
antepassados. De joelhos, o sacerdote faz a apresentação de todo material trazido e
103
Frei Bernardo AMARAL, Celebração de mhamba entre os vatonga, p. 11.
104
Ibid., p. 12.
97

dos filhos do clã reunidos. Todos, pessoas e animais, devem passar a noite junto
aos seus antepassados, para serem assumidos e abençoados por eles. Durante a
madrugada, começa a preparação da gamela sacrificial.

Todos os produtos trazidos devem ser depositados na gamela do sacrifício.


Todos têm que depositar a matéria do sacrifício, começando sempre pela menor
casa e terminando com a casa do sacerdote. Coloca-se milho, mapira, amendoim,
tabaco, waputo, aguardente etc. Essa gamela é sagrada e contém a comida que os
antepassados pediram em sacrifício. Mais tarde será completada com as partes dos
animais imolados.

Imediatamente inicia-se a imolação das vítimas. Apanha-se um carvão


apagado, que pode simbolizar o fogo dos antepassados, mastiga-o e com o produto
obtido unta-se a faca ou a azagaia que serão utilizados na imolação do cabrito e a
vara que matará as aves. O instrumento purificado é entregue aos irmãos
concelebrantes, como sempre começando pelo mais novo. Cada um faz um gesto
de picar o animal, tocando-se apenas com o instrumento e passa-o ao seguinte.
Depois de todos, o sacerdote pega o instrumento e sangra o animal, acompanhado
do ato da oração. O mesmo é feito com as aves:

Enquanto isto, a assembléia está em absoluto silêncio de temor e oração, a


observar atentamente se os animais “morrem bem”. Dependendo do modo
como as aves caem e morrem, assim se sabe se o sacrifício foi ou não aceito
pelos antepassados. Também se acredita que se o sacrifício não tiver sido
bem orientado, neste momento da imolação, juntamente com a vítima, pode
morrer alguém da família.105

No fim das imolações, se todos os animais caírem bem ou morrerem bem, a


tia grande, uma anciã, solta um grito de júbilo, anunciando que tudo está correndo
bem. Corta-se a barriga do cabrito e retira-se um pouco da erva fermentada para por
na gamela das oferendas sagradas. As patas e as asas, a cloaca e as vísceras das
aves mortas são depositadas na gamela do sacrifício. Corta-se um pedaço da carne,
que é assada ali mesmo, para ser oferecida aos defuntos. Com isto, fica completa a
preparação da gamela sacrificial.

105
Frei Bernardo AMARAL, Celebração de mhamba entre os vatonga, p. 16.
98

Chega-se então ao clímax, ao auge da celebração. É esse rito que dá o nome


e o significado a toda a cerimônia. O sacerdote, sua esposa e todos os pais de clã
seguram juntos a gamela sacrificial. Como nem todos podem chegar juntos na
gamela, pegam nas costas daqueles que estão à frente. Feitos um só, despejam a
gamela, acompanhando o ato com uma oração própria, iniciada e sustentada pelo
sacerdote, e retomada por todos, invocando cada um os nomes daqueles que
recorda. Nesse momento, toda a assembléia bate palmas. Pronunciam-se as
invocações e as jaculatórias mais solenes, rememorando e resumindo os
acontecimentos, as glórias e as peripécias que marcam a história e as tradições que
dignificam e honram o clã. Depois de completamente virada, o sacerdote tira algum
dinheiro e o coloca sobre a gamela virada. Os netos seguem o exemplo, colocando
seu dinheiro sobre a gamela. Compram o direito de destapar a gamela e se
apoderar da comida sagrada oferecida aos seus avôs:

Apanham todos os produtos, assam-nos, comem-nos ali mesmo. São eles os


representantes legítimos dos antepassados. (...) Fazem-se duas fogueiras ali
perto. Numa cozinha-se a carne do cabrito, na outra as aves. Cozinha-se
também farinha de milho, mapira, mexueira, conforme os hábitos de cada
clã.106

Terminado o serviço da cozinha, tudo é trazido para junto do lugar do


sacrifício, onde o sacerdote espera para servir o pasto sagrado. Fica-se um tempo
em silêncio absoluto para os defuntos comerem serenamente. Depois, os netos são
de novo convidados a comerem e beberem todos os alimentos e as bebidas
oferecidos em sacrifício. Depois disto, a comida é servida a toda a gente, em folhas.
Começa a festa do convívio. É a família em festa. Também os convidados estranhos
podem, agora, participar da alegria do clã e se beneficiar das abundantes bênçãos
que transbordam do sacrifício.

Depois de todos se divertirem, o sacerdote comunica aos convidados o fim da


festa e dá ordem para permanecerem no local apenas os pais do clã e suas
esposas, que dormem ali. No dia seguinte consultam o adivinho para saber se tudo
correu bem e se o sacrifício foi acolhido pelos antepassados. Se sim, convidam
todos para irem a sua casa, levando os utensílios de volta. Assim termina a mhamba

106
Frei Bernardo AMARAL, Celebração de mhamba entre os vatonga, p. 17.
99

com a esperança renovada de que a vitalidade, a harmonia, a paz, a sorte, a


prosperidade, a fecundidade e a saúde estão presentes nas famílias do clã.

Vimos, portanto, que a mhamba ou o culto aos antepassados carrega consigo


a idéia da celebração e do resgate da união familiar. Essa união familiar diz respeito
não só à relação dos vivos entre si, mas também dos vivos com os defuntos, o que
destaca a interdependência e a comunicação entre os dois mundos. Durante a
cerimônia é possível perceber a importância que é dada às relações familiares,
especialmente à relação conjugal; à relação de cada membro do clã com a sua
ascendência (antepassados) e com a sua descendência (filhos e netos), em suma à
sua linhagem; por fim ao território e à comunidade, uma vez que a cerimônia ocorre
na localidade onde vive a comunidade, mantendo-se a hierarquia, além de cada
família ser responsável pelo local onde os antepassados estão. Sabemos, portanto,
que a relação com os antepassados e com os espíritos não se dá apenas durante a
cerimônia. Os espíritos estão presentes na vida cotidiana, por vezes de maneira
benigna, outras, de forma maligna. De uma forma ou de outra, em certos momentos
há a necessidade de certos procedimentos específicos, procedimentos de magia,
que, já vimos, também estão presente na mhamba, no caso, o adivinho.

1.4 – Os bantú e a magia cotidiana

Como colocado no início do capítulo, a magia está inserida no cotidiano


daqueles que fazem parte da tradição bantú, o que denominamos de cotidiano
mágico. A magia é parte constituinte da lógica da estrutura social, como também é
parte estruturante de sua visão de mundo. Não há um momento específico no qual
se vive a magia, mas ela existe na vivência do dia-a-dia:

... Maquelele é o nome tradicional, Maria, mas este significa alguma coisa em
casa, sim, é um sofrimento, então pode este nome tem história se é, é porque
para ela vir ao mundo os pais sofreram por andar atrás de curandeiros ou pra
ela poder conceder ou porque ele tinha algumas doenças que talvez podemos
considerar venéreas que, às vezes, vedam a procriação, então neste caso
concreto andaram atrás dos curandeiros sofreram bastante de ter esta
menina, então quando nasceu deram o nome de ...
Que é sofrimento?
Que é sofrimento.
100

E daqui pra frente se eu me chamasse sofrimento eu seria uma pessoa que seria mais
fácil pra eu sofrer ou não?
Seria mais fácil porque o sofrimento gerou, exatamente, algo positivo que é a
sua presença neste mundo, então é daí que a partir desse momento você
também vai procurar ser ótima pessoa pra não poder sofrer, fazer sofrer
outras pessoas. 107

O que há são procedimentos específicos nos quais o aspecto mágico coloca-


se de uma maneira mais incisiva, pois o bantú teme as influências do mundo
invisível, porque a atividade permanente deste mundo condiciona-lhe a existência. A
ameaça está presente como resultado das leis vitais que dependem do mundo
visível e do invisível. A qualquer momento um antepassado pode fazer algo que
prejudique alguém vivo. Teme o castigo por infrações, fica aterrorizado pela ação
dos feiticeiros, além de estar suscetível a um ataque vindo da participação vital.

Por magia entendemos todos os ritos, as práticas e as concepções que têm


como objetivo atuar sobre influências hostis, neutras ou favoráveis, que podem ser
provenientes de forças impessoais da Natureza, de seres humanos, de espíritos
pessoais ou hostis (que tomam de possessão os indivíduos) ou de antepassados,
sendo tais ações inspiradas pelo emprego utilitário de forças ou de energias.

A magia bantú é colocada em ação quando alguém especializado consegue


captar e colocar a seu serviço forças vitais, quer do mundo visível, quer do invisível,
utilizando-as no ataque e na defesa. Eminentemente prática, a magia é a
concretização do poder de um especialista que se apropria e atua sobre e com o
dinamismo vital. A influência mágica do dinamismo vital, a partir da força inteligente,
pode ser dividida em três regras: influir diretamente nas forças dos seres inferiores
não inteligentes; fortificar ou “comer” magicamente outro ser humano, pois pode
influir e se apropriar de sua força vital; utilizar a força de um ser não inteligente para
influir em outro ser humano ou acontecimento. A força, uma vez dirigida, atua, a não
ser que outra força superior neutralize-a ou ultrapasse-a. Essa força, quando
maléfica, é chamada de feitiçaria.

Podemos perceber que dentro do entendimento bantú de mundo, a magia


ocorre quando existe a manipulação da interação, ou seja, das relações de
interdependência que fazem com que a força vital ligue todos os seres viventes ou

107
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
101

não viventes. A qualidade da magia é a mesma, o que faz com que ela seja utilizada
para o bem – restabelecendo ou fortificando a harmonia – e o que faz com que ela
seja usada para o mal – prejuízo do ser humano e da comunidade – é a intenção do
especialista.

A magia necessita de algumas condições para que seja efetiva. Um destes


aspectos é a fórmula mágica com palavras de encantamento. Sem as palavras, o
objeto não serve para nada, pois a força vital só é ativada pela conjuração de uma
fórmula, que ao possuir uma finalidade produz determinado efeito. O objeto é
investido de uma força. A palavra tem o poder de conjurar e de dominar a força vital.
No fundo, o que se passa é que um objeto vulgar e inanimado é preparado por um
especialista em magia. Por meio de palavras, de ritos e de gestos, ele introduz ou
proporciona morada a um espírito, a um antepassado ou a uma força vital, que fica a
serviço e sujeito à vontade da pessoa ou da comunidade que o possui. Investido
com a força vital, é um instrumento eficaz de magia, mas não passa de um
receptáculo, temporal ou permanente, de forças manipuláveis.

A magia ofensiva (feitiçaria) é utilizada para atacar e para comer a vida de


outro vivente. É típica dos feiticeiros. É perversa, anti-social, desintegra e profana a
vontade do Ser Supremo e a ordem harmoniosa. A defensiva, por sua vez, procura
desencadear forças compensadoras, que neutralizam ou protegem contra as ações
maléficas. É típica dos adivinhos e dos curandeiros. Ela é imprescindível para
restabelecer a harmonia individual e social:

O curandeiro e o adivinho têm poderes e técnicas semelhantes aos feiticeiros,


mas empregam-nos para o bem comunitário. O feiticeiro é um ser anti-social
porque se serve de poderes e técnicas mágicas para prejudicar e desintegrar
a harmonia individual ou social. Todos utilizam as misteriosas potencialidades
da participação vital – inter-acção, mas a magia dos adivinhos e curandeiros é
considerada boa, religiosa, lícita e procurada, enquanto que a dos feiticeiros é
malfazeja, impura, profanadora, ilícita e punida. (...)
São idênticos os processos de todas as acções mágicas e igualmente
idênticas as forças manejadas. Apenas difere a intenção do especialista. (...)
A única magia existente é a manipulação da inter-acção.108

108
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 538.
102

Portanto, resumidamente, podemos dizer que há um tipo de magia que visa


proteger o indivíduo contra certas influências ou tentar voltá-las a seu favor; há outra
através da qual o ser humano serve-se dessas forças contra o outro. A magia109,
entre os bantú, pode ser dividida em: possessão, adivinhação, medicina tradicional e
curandeirismo / feitiçaria, porém antes de falarmos de cada um desses aspectos
isoladamente, apresentaremos a história de vida de uma curandeira (assim ela se
denomina) entrevistada em Maputo. A apresentação dessa história nos ajuda a
entender que a divisão proposta é apenas didática, uma vez que tais aspectos estão
relacionados e inseridos no cotidiano, além de podermos perceber a fluência da
própria tradição.

1.4.1 – Uma história de vida

A entrevista realizada com C., curandeira, que trabalha com medicina


tradicional, ocorreu em Matola, região metropolitana de Maputo. A casa de C. fica
em uma tranqüila travessa de uma grande avenida, que possui várias casas térreas.
É uma casa como todas as outras, não havendo nenhum tipo de identificação de
que, ali, são feitos atendimentos. Fui recebida por uma moça jovem, que me levou
até o quintal por uma entrada lateral, não sendo necessário passar por dentro da
casa. Além de mim, outras pessoas também estavam esperando para serem

109
Segundo Silas GUERRIERO, A magia existe?, p. 38-43: “Portanto, longe de significar um
desconhecimento das relações causais, como diriam os evolucionistas, a crença na magia aponta
exatamente o contrário. Há, sim, uma mentalidade voltada às causas. Ela permite estabelecer
relações causais onde o pensamento lógico não percebe nenhuma. Mais ainda, ela permite um
controle sobre a ordem dos acontecimentos. (...) Sendo um conjunto de crenças que permeia todo o
grupo social, acaba por colocar os acontecimentos em relação aos demais indivíduos. Dessa
maneira, a magia tem por função controlar, orientar e explicar a ordem das relações sociais entre o
grupo. (...) Mesmo tendo surgido entre os indivíduos, a magia só existe quando é um fato social, ou
seja, quando podemos enxergar as condições em que produzem os rituais mágicos e que marcam o
lugar que ocupam no conjunto dos hábitos sociais. Não há magia sem um procedimento específico.
Também não há religião sem culto. (...) Todo ritual expressa um mito. Os rituais, sejam aqueles
pequenos e cotidianos até os que envolvem a coletividade, dizem a nós mesmos quem somos, a que
grupo pertencemos. Trata-se de uma série de atos dispostos em procedimentos rítmicos, mas que vai
além da mecanicidade de gestos repetitivos, pois sempre se refere a um significado simbólico, um
mito. (...) A magia não é menor do que a ciência. Ela não ignora as causas reais que afetam os
fenômenos. Lévi-Strauss afirma que as duas diferem pela ordem de determinações impostas por
cada um desses tipos de pensamento. Enquanto a ciência diferencia níveis e formas de
determinações, a magia formula uma crença mais global que abarca todo os tipos de acontecimento.
Assim, para o pensamento mágico as causalidades que regem os fenômenos já são dadas a priori e
estão no nível mágico e sobrenatural. Sendo o mago, ou feiticeiro, alguém que consegue controlar
essas forças causais, a magia tem, portanto, sua eficácia. (...) Melhor que opor magia e ciência seria
colocá-las em paralelo, como duas formas de conhecimento, desiguais quanto aos resultados
teóricos e práticos, mas não pelo gênero de operações mentais que ambas supõem”.
103

atendidas. O quintal lembrava um quintal qualquer a não ser por uma pequena casa,
onde C. realiza os atendimentos.

Figura 5 – Casa de atendimento


Fonte: Arquivo Pessoal

Esperei por quase quarenta minutos para ser chamada, pois outras pessoas
aguardavam para serem atendidas. Inicialmente, C. me deu uma cadeira para
sentar, mas como ela estava em uma esteira, falei que faria o mesmo e me sentei
em frente a ela. Além das esteiras que ocupavam grande parte do espaço, havia
vários objetos que ficavam atrás dela e pendurados, que faziam parte dos
atendimentos, como garrafas, ervas, panos, objetos rituais, dentre outras coisas.
Perto dela estavam os ossículos, que ficavam dentro de uma pequena bolsa,
utilizados para adivinhação. Começamos, então, nossa conversa. Conversamos
basicamente a respeito da medicina tradicional e de temas afins, tais como:
possessão, ervas, espíritos malignos e benignos, curas e adivinhação. Ao final, C.
fez uma crítica aos curandeiros de hoje em dia e à falta de crédito que sofre a
tradição, principalmente no que diz respeito ao dinheiro.
104

Figura 6 – C. com sua capulana ritual


Fonte: Arquivo Pessoal

Gostaria de apresentar em linhas gerais, a forma como C. tornou-se


curandeira. Ela contou que sua avó, falecida em 1968, era curandeira. Naquela
época, C. encontrava-se no colégio e ficou muito doente. Ela estava estudando para
se tornar freira. Ocorreu que toda noite vinha o espírito dessa avó lhe dizer que ela
devia voltar para casa, pois o lugar dela não era ali. C. voltou para a casa e pediu
dispensa por dois anos. Depois de um tempo, C. casou-se e o espírito da avó
começou a se manifestar novamente. Toda noite ela percebia alguém subir pela
janela. Resolveu, então, ir à igreja dos maziones. Os maziones110 rezaram em uma

110
Segundo S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09, falando a
respeito dos maziones: “É difícil ser curandeiro? Acabou desistindo e ela em vez de estar na Igreja
Católica passou pra essas igrejas de maziones, sabe aquelas Igrejas. E na verdade eu ouvi ontem a
primeira vez falar dessa Igreja que é maziones. Maziones. Então essas igrejas de maziones trabalham
tipicamente com os curandeiros, ia, então ela agora vai pra lá. Mas é uma igreja do bem? É do bem, é
que eles estão habituando a igreja para quem não sabe é do bem porque eles utilizam quase aquelas
coisas de curandeirismo, aqueles panos, aqueles etc. etc. e depois dizem que são profetas. Profetas
porque profetizam podem chegar: a senhora é boa, a senhora não sei que, não sei quanto, não sei
105

bananeira, plantaram a bananeira na casa dela e o espírito da avó se afastou. Cinco


anos mais tarde, C. mudou de residência e novamente caiu doente – não falava.
Retornou aos maziones, mas eles lhe falaram que um espírito queria falar através
dela e era necessário sacrificar uma galinha, o que foi feito. C. voltou a falar. O
espírito da avó começou a falar através dela dizendo que não queria que ela ficasse
nos maziones, mas que fosse fazer o curso para ser curandeira. Como não queria
ser curandeira, voltou aos maziones para que eles lhe tirassem o espírito, mas lhe
foi dito:

Minha senhora faz favor hoje vou te deixar, amanhã não volta mais aqui
comigo porque aquela tua avó é tão má, tão má, que senão vai me fechar
algum trabalho. (...) Minha senhora eu gosto muito de pessoas que têm
espírito assim porque tornam boas profetas pra mim. Mas quanto a si,
desculpa lá, não venha mais aqui porque a tua avó diz que ela te venceu e te
renegou, tem todo o direito de fazer tudo quanto pode e assim ninguém pode
lhe impedir, por isso eu não posso impedir aquilo que ela quer. Não quero que
você trabalhe pelos espíritos, assim, dos maziones. Quero que você pega
aquela coisa ali trabalhar tradicionalmente, por isso vai.111

Pouco tempo depois, C. ficou grávida de uma menininha. Com dois meses o
bebê começou a ficar doente, com muita febre. O espírito quis se manifestar de novo
e deu a idéia de C. buscar raízes no mato. Ela voltou com as raízes, raspou-as e as
ferveu para dar um banho em sua menina, que ficou curada. A partir daí, C. aceitou
ser curandeira e foi atrás de um curso, ou melhor, de uma pessoa, indicada pelo
espírito, para se tornar curandeira.

Como vimos na história relatada por C., ao falar sobre essa parte de sua vida,
ela atravessa alguns dos temas de magia que encontramos em Moçambique:
possessão por espíritos, adivinhação, medicina tradicional e curandeirismo /
feitiçaria (dialética entre o bom e o ruim). Agora, falaremos a respeito de cada um
destes tópicos, tendo a história de C. e sua visão de mundo como uma forma de
ilustração.

que, não sei que, então são os tais espíritos que talvez trabalhavam, podiam estar a trabalhar como
curandeiro, mas agora ele profetiza. O profetizar é o mesmo que adivinhar? Sim, sim senhora é isso
mesmo são como adivinhador”.
111
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
106

1.4.2 – Possessão

Como vimos no relato feito por C., o primeiro ponto que merece destaque é a
presença do antepassado, no caso a avó, em C.. O espírito da avó fala através dela.
Momentaneamente, toma o seu corpo para pode comunicar algo. Tal fato
chamamos de possessão. Já observamos, neste capítulo, que os antepassados se
comunicam de várias maneiras. Não nos deteremos no conceito de possessão, pois
o faremos no quinto capítulo. Agora, cabe ressaltar que a possessão pode ser vista
como desencadeadora de outros processos de magia.

Há muitas controvérsias a respeito da possessão de espíritos ou de


antepassados dentro da tradição bantú. Alguns autores, como Martinez112, afirmam
que a possessão normalmente é maléfica e acaba por ter um caráter iniciático, fato
que não faz parte dos rituais cotidianos. Outros autores, como Altuna113, trabalham
com a idéia de que a possessão está inserida dentro das manifestações religiosas
bantú. Apontaremos brevemente as duas vertentes.

Segundo Martinez114, as possessões têm caráter eminentemente religioso,


pois os espíritos figurados como causa da doença, são espíritos de pessoas
falecidas, não os antepassados, mas espíritos de membros de outras tribos, aos
quais se deve prestar culto. Eles podem abençoar ou amaldiçoar, não tendo uma
preocupação de caráter moral. Os ritos para o tratamento da possessão têm um
caráter mágico e as pessoas que sofreram as possessões podem se tornar
curandeiros, com um poder sobrenatural115. Normalmente, a possessão começa
com uma crise na qual o indivíduo fica inconsciente, além de uma crise nervosa e
certos sintomas suspeitos, como: dor no peito, soluço persistente, bocejos e
emagrecimento.

O tratamento ocorre para dispersar os espíritos. Isso pode ser feito através do
balanço de folhas na frente da pessoa possuída. Além disso, há um ritual mais
complexo, que inclui o toque dos tambores, chegando a provocar e acentuar a

112
Cf. Francisco Lerma MARTINEZ, O povo macua e a sua cultura.
113
Cf. P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu.
114
Cf. Francisco Lerma MARTINEZ, O povo macua e a sua cultura.
115
É bastante interessante notar que os indivíduos quando chegam à umbanda, normalmente
passam por momentos nos quais também são possuídos por espíritos, que eles não controlam. A
partir do momento que essa experiência é significada e as possessões passam a ser controladas, o
indivíduo passa a desenvolver a própria mediunidade, tornando-se, ele mesmo, um indivíduo com
dons especiais, que o diferenciam das outras pessoas. Para aprofundar ver: Brígida Carla
MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanências, em especial capítulo I.
107

manifestação da dupla personalidade – pessoa possuída e espírito possessor; o


batismo, que faz com que o ser humano atravesse o mar e chegue ao lugar dos
milagres e do poder mágico; a absorção do sangue, que faz da pessoa um ser
humano que não teme o que os outros temem, como um renascimento; e a
purificação final e o revestimento dos amuletos116, quando ele entra definitivamente
na sociedade dos iniciados, tendo uma vida especial, caracterizada por ritos
protetores e propiciatórios, que visam o desenvolvimento de suas qualidades
subliminares.

Com a nova identidade, aquele que passa a ter poderes mágicos torna-se o
alvo dos seus colegas instruídos nessas artes. Portanto, é importante que ele se
mantenha sempre em guarda, sobretudo à noite, momento em que deve defender-
se contra os feitiços noturnos. Além de drogas protetoras, o indivíduo também usa
um colar feito com determinados tipos de objetos. Tem na sua casa o próprio altar,
que fica em um lugar elevado, onde ele deposita as suas próprias oferendas. Ele
tem a possibilidade de desenvolver seus poderes subliminares tornando-se adivinho,
fazedor de milagres ou profeta. Caso o seu poder aumente e seus trabalhos sejam
bem sucedidos, ele pode até fundar uma nova escola, inventando novos ritos e
descobrindo drogas mais eficazes117.

Já para Altuna118, há a possessão maléfica, que tem o sentido de um castigo


com conseqüências funestas, principalmente enfermidades, e, dentro dessas
enfermidades, destacam-se as doenças psíquicas. Os protagonistas são os

116
Segundo P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, o feitiço contém mais
virtualidades que o amuleto e o talismã, porque eles não possuem animação vital. Não passam de
objetos naturais sem iniciativa própria e com ação automática. O amuleto é considerado protetor e o
talismã benfeitor. A sua escolha depende de sonhos, visões e formas semelhantes aos fins em vista.
O amuleto é um objeto pequeno dotado de um poder secreto, misterioso, imanente e inconsciente
que preserva o proprietário de desgraças, afugenta os malefícios e protege contra males existentes
ou suspeitos. Atua defensiva e preventivamente e em ações específicas, contra doenças, malefícios,
acidentes e toda espécie de infortúnios. Atrai coisas boas. Já o talismã não possui poder, mas certos
sinais cabalísticos nele gravados.
117
É impossível não fazer a relação com a umbanda, uma vez que muitos indivíduos que são
médiuns pensam em, um dia, tornarem-se pais ou mães-de-santo, o que permite que eles montem
seu próprio terreiro, dando a ele um caráter bastante individualizado. Segundo Brígida Carla
MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanências, p. 255: “O que podemos observar é que a
mutabilidade simbólica da umbanda está relacionada com as necessidades individuais dos membros
do grupo. Há um entendimento de que a evolução espiritual é um caminho individual, no qual não é
possível o direcionamento, já que ao fazê-lo, aspectos importantes para aquele indivíduo podem estar
sendo colocados de lado. A umbanda muda para satisfazer as necessidades de seus componentes.
Portanto, algumas vezes, o que se vê, é uma bricolagem de crenças, que, a princípio, parece sem
sentido, porém, o Centro acaba sendo a composição das crenças dos seus integrantes”.
118
Cf. P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu.
108

antepassados não pertencentes ao clã, que devem ser expulsos do corpo da


pessoa. Tal fato acaba por prejudicar e por transtornar a solidariedade e também por
perturbar a harmonia comunitária. É uma possessão que diminui a força vital.

Por outro lado, a possessão benéfica é aquela considerada legítima e


autêntica. No caso, quem possui a pessoa é um antepassado, que fala através dela.
Os sintomas são psíquicos e somáticos. Há um desejo de relacionamento por parte
dos antepassados, sendo a possessão vista como uma forma de comunicação. Pelo
transe, o possesso entra no mundo invisível, pois há um deslocamento da sua
personalidade.

Há uma tentativa de restaurar as ligações entre o existencial histórico e o


existencial mítico, o que constitui uma forma de diminuir as tensões, estabelecendo
uma ponte entre a mentalidade mítica e a mentalidade racional. O transe exprime
uma aproximação com modalidades ancestrais do ser e com os antepassados da
comunidade. Representa também uma renúncia da personalidade individual em
favor de uma realidade maior que é a entidade individuada, expressão do grupo.
Significa que a consciência individual cede tempo à consciência da espécie, o corpo
liberta-se do histórico e se permite viver o mítico. Daquilo que foi observado durante
a pesquisa de campo em Maputo, encontramos dados que vão ao encontro do que
foi colocado por Altuna:

... há uma guia que nos guia, que nos conduz que são os tais espíritos, há
outros que saem de fato dos espíritos, falam e têm potência de pegar o seu
defunto falar consigo assim diretamente, assim como outros que não fazem
isso, só trabalham na base de tradição. Assim, aqui, nesta minha palhota
aqui, eu tenho espíritos que saem, falam, dizem coisas quando necessária
pega o espírito daquela pessoa e fala e indica que tipo de medicamento é que
deve se tratar essa pessoa.119

A possessão, no caso, tanto pode ser benéfica quanto maléfica. O que vemos
é que ela está inserida no cotidiano dos grupos bantú, mas não é algo que ocorre
sistematicamente dentro de um culto organizado. A possessão ocorre quando há a
necessidade, por parte do espírito ou de um antepassado, de comunicar algo.

119
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
109

1.4.3 - Adivinhação

No caso de C., ela não foi a um adivinho saber o que se passava, mas foi aos
maziones, que em vez de adivinhar, profetizam:

Curandeiro, ele também adivinha, o curandeiro tradicional?


Adivinha, mas ele utiliza alguns materiais ali de ossos, não sei que, não sei
quanto, não sabe dizer, às vezes, adivinha quando certas vezes adivinha
quando a gente não entende porque pode dizer é isto, isto, isto é isto, isto,
isto a gente não entende, não entendemos e pronto deixamos. Agora aqueles
que profetizam também dizem, podem dizer: -ah, a senhora veio aqui porque
está doente, têm problemas em casa assim, assim, assim e você olha pra ele,
não tem esses problemas assim, então quando tens vais então há esses
problemas então vai ver que este aqui pelo menos consegue ver, adivinhar
imediatamente, mas há outros...
Mas, quer dizer, o profeta do adivinho a diferença é que o adivinho sempre usa um
instrumento pra adivinhar?
Sim, sim, sim.
E ele é um curandeiro.
Usa os instrumentos porque fala com aquelas coisinhas dele, enquanto que
aquele que profetiza só fala, olha pra ti, comenta e diz as coisas.120

De qualquer forma, antes de se saber o que fazer, deve-se utilizar o método


de adivinhação para que aqueles sinais sejam decifrados:

Estas daqui são conchas?


Cada um tem o seu nome aqui. Estão divididas em nome, por isso se eu fazer
consulta vou saber que é o fulano que está assim ou é um nome e
sobrenome, escrevo o nome da pessoa, mostra que é uma mulher ou um
homem, se é uma menina ou um rapaz, se é velho ou ainda nova, se é viúva
ou ainda com marido ou com a esposa. Então meio disto aqui é que eu vou
adivinhar o que é que tem afinal de contas, dona Brígida, o que é que trava a
vida de dona Brígida não ir avante e aparece essa coisa de que não, é porque
a dona Brígida tem espírito ou os tais espíritos são naturais que estão a pedir
incorporação com aquela pessoa para poder trabalhar ou, então, um espírito
maligno
Tá, então quer dizer, a primeira parte do trabalho da senhora é a senhora como é que
eu vou chamar isso aqui?
A consulta.121

120
S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
121
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
110

O adivinho possui o poder mágico de penetrar na interação vital, ligando-se a


variedade de ações que atuam na comunidade, podendo alterá-las ou fortalecê-las.
A adivinhação é uma necessidade para o bom funcionamento da interação vital. É
colaborador do Ser Supremo na harmonização da criação. Pode ser considerado um
sacerdote intermediário entre os dois mundos. Situa-se entre as tensões do ser
humano ou da comunidade e os agentes do mal. É detentor do código que permite
interpretar as diversas mensagens destinadas ao ser humano ou à sociedade. É
exigida sua intervenção nos acontecimentos importantes da vida: nascimento,
imposição do nome, iniciação, preparação do matrimônio, doenças e ritos fúnebres.
Em função dessa legitimidade, os adivinhos são consultados para tudo: doenças,
casos de morte misteriosa, desgraças, roubos; casamentos, sonhos, mudança de
povoação; falta de chuva, pragas, epidemias, antigamente guerras; viagens e
negócios; e descoberta de um espírito mal ou feiticeiro.

A adivinhação compreende o uso de técnicas que decifram e apontam


indicações. É um técnico e um especialista da magia. Há a categoria dos intérpretes,
que julgam e analisam qualquer tema adivinhatório e há a categoria dos
mensageiros ou dos médiuns. Só pode ser adivinho aquele que recebeu um dom
especial, manifestado por um antepassado através de um sonho, de uma visão, de
uma possessão ou de algum acontecimento fora do lugar. A iniciação é
imprescindível; o indivíduo passa por uma cerimônia de morte e de ressurreição. Há
uma transformação e uma mutação existencial do ser. O adivinho é a única pessoa
que pode detectar a ação dos feiticeiros. É possível afirmar, segundo Ribeiro122, que
os adivinhos são basicamente de duas formas: os adivinhos que só utilizam os
tinhololo (ossículos na língua changana), usando a sua habilidade natural; e os
adivinhos que além dos tinhlolo são possuídos por um espírito que lhes inspira a
interpretação do oráculo.

Existem duas categorias de presságios: alguns objetos são de mau agouro e


predizem uma infelicidade, enquanto outros são favoráveis e anunciam a felicidade e
a prosperidade. É inegável que a adivinhação seja essencialmente mágica: “... o
poder de interpretar os ossículos vem dos antepassados-deuses, que foram, eles

122
Cf. P. Armando RIBEIRO, cm, Antropologia: aspectos culturais do povo changana e a
problemática missionária
111

próprios, deitadores de ossículos, e são eles que se invocam para receber ou fazer
reviver esse poder”123.

O que o adivinho tem é a capacidade de ler os sinais, pois certos objetos,


acontecimentos, pessoas, animais, ditos ou frases são sinal de desgraça, de
infelicidade ou de morte, ao mesmo tempo em que podem ser sinais de bom agouro.
Além desses presságios, também se recorre a vários métodos de adivinhação,
desde os mais simples até os mais complicados: um chifre, uma cabacinha, uma
pequena esteira e caroços de mulu. Os tinhololo constitui o método de adivinhação
universal que comanda a vida familiar e social dentro dos grupos de tradição bantú.
Não é constituído exclusivamente de ossos. Há também carapaças de tartaruga ou
jacaré, conchas do mar, caroços, pequenos chifres e pedras.

Figura 7 – Ossículos utilizados por C. durante a adivinhação


Fonte: Arquivo Pessoal

123
Henrique A. JUNOD, Usos e costumes dos bantos, p. 523.
112

A adivinhação é um procedimento mágico de fundamental importância dentro


dos grupos de tradição bantú, pois ela é usada para o esclarecimento do motivo pelo
qual a ventura ou a harmonia foram rompidas. A adivinhação detecta aquilo que está
acontecendo ou está sendo pedido pelos antepassados, como também indica o
procedimento a ser tomado. Em alguns casos, a medicina tradicional, em outros, a
ação de curandeiro contra feiticeiro.

1.4.4 – Medicina tradicional

No relato de C., as doenças e o tratamento para elas não só marcaram o


início do seu processo de se tornar curandeira, mas também o momento em que ela
se percebe capaz de curar a filha. Vimos que ela trabalha tanto como médica
tradicional, como advinha e curandeira, o que é comum em Maputo. Porém, há
aqueles que só trabalham como médicos tradicionais:

Mas, por exemplo, me falaram que existe um tipo de curandeiro que só trabalha com
ervas.
É eu estava a dizer que há aqueles curandeiros que não têm espírito que
saem. Nós, na nossa língua nativa, chamamos nhandarumi essas pessoas
que não têm espírito que só trabalham na base de erva, são nhandarumi, só
conhecem assim como essa senhora que acaba de sair, aquela que eram
duas, a outra trabalha também, só que trabalha na base de ervas e não de
incorporação de espírito, mas ambos são curandeiros porque afinal de contas
estão na mesma luta de curar pessoas doentes ou que tenham problemas.124

Os especialistas na medicina tradicional são pessoas dotadas de poder


extraordinário, ocupando um lugar bem definido na sociedade, já que são
autoridades no seu campo específico e adquirem seus conhecimentos e seus
poderes através de processos rituais ou místicos ou, ainda, mediante o esforço
pessoal. Têm conhecimento a respeito da natureza, dos animais e das coisas,
estudaram a tradição e a vida da comunidade, bem como observaram o
comportamento das pessoas e as suas reações:

Quando o curandeiro faz isso não é diferente ou é a mesma coisa?

124
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
113

Não, não há diferença, não há diferença até porque é a mesma coisa. Ele vai
ver que eu, por exemplo, aquela meu neto que eu tenho, eu fui a um
curandeiro pedir os medicamentos, eu e a minha comadre pedi porque eu
conhecia o que ele tem, pedi, mas eu podia ir aos tamanides. O problema deu
não ir...
Desculpa tamanide...
Tamanide é mercado, desculpa é mercado. Eu podia ir ao mercado, mas
acontece que eu não conheço os medicamentos. Eles lá podiam me dar
medicamentos falsos.
Ou coisa que vai fazer mal para a criança.
Que vai fazer mal pra criança. Então preferi ir a uma pessoa que eu lhe
conheço e ele vai me dar os medicamentos que conhece porque um dia a
minha mãe até disse: Vocês podiam ir nos tamanides comprar, chegar e dizer
quero isso, quero aquilo, quero aquilo trazerem, para eu ver, eu é que vou
dizer isto é, isto não é, isto é, agora quando eu vou, quando isto não é e
também o dinheiro já está gasto, então eu prefiro ir pedir a uma senhora.
Então há uma senhora que eu conheço que é de família, eu peço então dá
um medicamento, quando acaba eu volto, quando acaba eu volto, mas a
criança tem que tomar até os cinco dias para evitar aquela, principalmente,
aquela doença de...125

Vemos que o médico tradicional possui um respeito dentro da comunidade,


sendo legitimado por ela. A pessoa, que se qualifica como um especialista, tem
como principal atributo herdar de um antepassado algumas receitas, que se aplicam
com maior ou menor êxito naqueles que são tratados. O conhecimento terapêutico é
transmitido de um especialista a outro. Há os que tratam só um gênero de doença
ou uma só categoria de pessoas, pois são os únicos a conhecer os remédios
indicados. Normalmente, os remédios são compostos por raízes, folhas, cascas,
sementes ou ervas medicinais. Adiantando aquilo que trabalharemos no terceiro
capítulo, segue um dos relatos encontrados em um dos processos-crimes:

Ao quinto dice que sabia por ver que a Re curava a alguns enfermos com
ervas que lhe aplicava em (ilegível) como huma erva a que lhe (ilegível) de
bicho e que não duvida que tambem curava com outras ervas e suas raizes
que senão conhecesse porq. nem todos teem experiencia para conhecer
ervas e a raiz de que ella Re usava era a raiz de outeca / vuteca (sic)126 como
elle testemunha via com seus olhos.127

125
S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
126
A utilização de sic se dá, quando a palavra se encontra legível, o documento não está estragado,
mas a palavra lida não foi encontrada nos dicionários consultados.
127
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Maria (escrava, presa), Itu, 1755, p. 22 - frente.
114

Além de elementos que podem efetivamente ter um efeito fitoterápico, a arte


médica conta também com um tanto de magia128, uma vez que o medicamento é
“todo o meio de produzir um efeito qualquer, natural ou sobrenatural, sobre seja que
influência for, hostil ou favorável, pessoal ou impessoal”129. Portanto, os
medicamentos têm, além do valor terapêutico, um significado simbólico, devendo ser
utilizados dentro de um contexto ritual, que assegura a sua eficácia: “Só quando
postos em actividade, no contexto do rito e sob a responsabilidade directa do
especialista, adquirem as suas virtualidades se tornam, por assim dizer, eficazes,
com vista a um acto de cura, que restaura a ordem quebrada pela doença”130.

Figura 8 – Raízes utilizadas por C.


Fonte: Arquivo Pessoal

128
Segundo Claude LEVI-STRAUSS, Antropologia Estrutural, p. 194-195: “Não há, pois, razão de
duvidar da eficácia de certas práticas mágicas. Mas, vê-se, ao mesmo tempo, que a eficácia da
magia implica na crença da magia, e que esta se apresenta sob três aspectos complementares:
existe, inicialmente, a crença do feiticeiro na eficácia de suas técnicas; em seguida, a crença do
doente que ele cura, ou da vítima que ele persegue, no poder do próprio feiticeiro; finalmente, a
confiança e as exigências da opinião coletiva, que formam à cada instante uma espécie de campo de
gravitação no seio do qual se definem e se situam as relações entre o feiticeiro e aqueles que ele
enfeitiça”.
129
Henrique A. JUNOD, Usos e costumes dos bantos, p. 418-419. (O grifo é nosso)
130
Francisco Lerma MARTINEZ, O povo macua e a sua cultura, p. 191.
115

Já que dentro da tradição bantú todas as coisas se encontram interligadas, a


doença é entendida como uma ruptura do ritmo normal de vida e uma diminuição da
força vital, sendo que dentro do tratamento busca-se compreender os motivos que
levaram a essa ruptura. A experiência da doença é vivida como liminaridade e
margem, utilizando-se todos os recursos possíveis para restabelecer a ordem e
regressar à normalidade. A doença não é vista somente como algo físico, mas está
relacionada com a pessoa no seu conjunto existencial, na sua individualidade e na
sua relação com os demais. Não é vista isolada dos outros componentes, possuindo
uma incidência social131. Nesse sentido, a doença é vista como uma ruptura no
equilíbrio das relações da pessoa com o restante da sociedade, ou seja, como
desordem existencial132.

Em vários momentos, as doenças são entendidas como algo material,


causado por um objeto introduzido no corpo por pessoas que desejam prejudicar os
outros. Os infortúnios são o resultado de uma ação humana imprópria, que
desestabiliza a harmonia, que pode ser rompida quando não se cumpre um preceito,
quando não se faz uma oferenda a um espírito ou a um antepassado, quando se
manipula de maneira mal-intencionada forças sobrenaturais em benefício próprio e
prejuízo de alguém.

Quando se pensa nas causas das doenças, a primeira coisa que fazem os
médicos é um diagnóstico, mas os sintomas físicos não são os únicos levados em
consideração. O grande meio de se diagnosticar as doenças é através de jogos

131
Segundo Francisco Lerma MARTINEZ, O povo macua e a sua cultura, p. 181: “Como doente,
dirigirá os seus passos numa tríplice direção, <família, sociedade e natureza>, de forma a superar
positivamente a prova e evitar o perigo de morte que toda a doença traz consigo. Recorrerá às
componentes essenciais da sociedade (Deus, antepassados, família e restante da sociedade), para
ultrapassar esta agressão existencial e passar de doente a pessoa saudável. Apoiar-se-á em
elementos profanos (alimentação e higiene), místicos (ritos, proibições, tradições e prescrições) e
comentários (família e sociedade em geral); com o seu apoio, não se sentirá só e abandonado no
sofrimento”.
132
Podemos entender a doença na umbanda como uma doença espiritual, que transforma os sinais
doentios em signos de desordem abrangente que até então permaneceram, para a pessoa, sem
sentido. No momento de entrada na umbanda eles passam a serem vistos como algo mais amplo do
que uma disfunção meramente orgânica. Segundo Paula MONTERO, em A doença como desordem,
a experiência vivida da doença tornar-se concreta e perceptível para o sujeito quando imobiliza o
corpo, provoca interrupções no fluxo cotidiano de atividades rotineiras, domésticas ou
economicamente produtivas, interrupções estas que trazem resultados nefastos para a própria
organização da família. A supressão dos sintomas só ocorre quando há uma ressignificação da
experiência vivida. A doença que em um primeiro momento é concebida como desordem torna-se,
num segundo momento, positiva, ao se constituir na possibilidade de abertura de um canal de
comunicação com os deuses. Sendo assim, conforme afirma Ibid., p. 255: “... a concepção religiosa
de doença, ao contrário, é capaz de articular essas várias dimensões da experiência mórbida – o
orgânico, o psicológico e o social -, cimentando-as de um sentido mítico mais universal”.
116

adivinhatórios. A doença sempre possui uma causa direta que precisa ser
descoberta. Quando se pensa no próprio doente, fala-se em alimentação
inadequada, falta de higiene, não cumprimento dos deveres para com a
comunidade, transgressão de leis ou violação de uma norma moral da sociedade.
Quando se pensa em outras pessoas, fala-se em intervenção punitiva e mística dos
antepassados, ação funesta de algum indivíduo dotado de poderes extraordinários,
inveja, vingança ou ciúmes. Nesse sentido, é ilustrativa a afirmação de C.:

É uma pessoa. A tradição é muito fechada, não pode formar uma escola onde
todos eles podem estar aí. Por exemplo, perante os medicamentos todos nós
conhecemos, mas cada qual a mesma raiz que a dona Brígida pode curar e,
por exemplo, cólicas eu posso curar calos, mas nunca eu vou dizer o calo eu
curo isso. A mesma raiz que cura, por exemplo, diarréia eu posso utilizar para
atenuar o fígado, mas cada qual esconde, não diz. Por que que se esconde?
A base da tradição é muito metido na feitiçaria.
O que significa ser metido na feitiçaria?
Quer dizer que os feiticeiros procuram muito os curandeiros do que os
próprios médicos da oficiais porque trabalhando no basta eu dizer: - “Brígida
eu curo cancro com esta”.

O que notamos, portanto, é que a medicina tradicional ainda é bastante


utilizada, mesmo que seja feita uma composição com a medicina científica. Outro
dado interessante é que, muitas vezes, no tratamento, além da ervas, atribui-se a
cura a interferência de procedimentos mágicos e de espíritos. Por fim, como grande
parte das coisas dentro da tradição bantú, as ervas também podem ser utilizadas de
maneira dialética, pois ao mesmo tempo em que promovem a cura também causam
o adoecimento. A coexistência de atributos nos leva ao nosso último tópico a
respeito da magia que é a questão do curandeirismo e da feitiçaria, que não podem
ser dissociados.

1.4.5 – Curandeirismo e Feitiçaria

Podemos dividir a feitiçaria em dois tipos. Algumas são feitas com o intuito
de enfeitiçar pessoas, que, dentro das sociedades de tradição bantú, configura-se
como um crime, e outras que dizem respeito às operações mágicas, que visam o
bem da sociedade. Na origem, é possível afirmar que ambas, e, portanto, as
117

pessoas que as executam, são da mesma natureza; porém o uso de uma delas é
feito objetivando o interesse da sociedade, enquanto a outra é feita em oposição.

1.4.5.1 - Magia prejudicial - feitiçaria

Existe nas sociedades bantú uma pessoa que é conhecida pela sua
capacidade de prejudicar os outros. Essa pessoa tem poderes sobrenaturais
extraordinários que podem causar, por si ou por meio de terceiros, dificuldades para
os indivíduos e também para a sociedade. É terrivelmente temida. Sua ação pode
ser considerada anti-individual e anti-social. Independentemente disso, pode-se
perceber que esse indivíduo possui uma função dentro dessa sociedade, que
segundo Martinez: “... tem também certa missão religiosa, em ordem a uma
correcção das transgressões do povo. Como uma espécie de função punitiva para
restabelecer a ordem social quebrada”133. O feiticeiro e o feitiço são uma
necessidade, já que, através deles, a sociedade encontra explicação para o mal. É
um modelo daquilo que o bantú não deve ser. Segundo um dos entrevistados:

E, por exemplo, vamos imaginar lá os clãs, as localidades, qual é a função que vai ter,
então, essa pessoa que é essencialmente ruim dentro desse grupo?
Bom, ele nasce numa família e está naquela família e muitas das vezes é
descoberta e aquela, como é que posso dizer: a maldade normalmente, a
pessoa começa a vivenciar-se feiticeira quando atinge, por exemplo, trinta e
cinco anos pra frente, até pode crescer sem saber que ela é exatamente,
então quando é descoberta, claro é acompanhada na sociedade, mas se ela
não consegue exatamente conter-se e distingue-se entre muitos que, muitas
das vezes é sempre acusada disto, e daquilo etc. acaba, passa a ser vaiada
do grupo, da família e da localidade, sim, então essa pessoa vai viver de fato
uma vida ruim, ia, pra onde for, pode viver algum tempo, mas como não
agüenta conter-se vai se meter a praticar aquelas malícias e se é descoberta,
também, vai ser qualquer coisa, então vai viver uma vida...134

Portanto, o feiticeiro é especialista em magia maligna, envolvendo o âmbito


da magia individual e privada, que se torna clandestina. Ele incute um medo
permanente na sociedade, sendo temido por ela. A participação vital é captada por
ele e utilizada para praticar o mal, uma vez que ele atenta contra a harmonia,
profanando a lei da participação vital. Ainda segundo nosso entrevistado:
133
Francisco Lerma MARTINEZ, O povo macua e a sua cultura, p. 200.
134
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 14/07/09.
118

Aí o senhor fala de feiticeiro, quem é o feiticeiro?


É feiticeiro é uma figura que é tida como maldosa sim, a prática de feiticeiro é
sempre criar maledicência, malícias nas pessoas, exato, pode sei lá, provocar
sofrimento relacionados com a, da pessoa não conseguir emprego, da pessoa
adoecer, a pessoa enlouquecer, a pessoa, quer dizer, essas maldades todas
e, por vezes, isto já é muito profundo porque ele, por vezes, tem aquela
capacidade de, como é que eu posso dizer: tirar a capacidade de pensamento
de um indivíduo.
Tipo fazer enlouquecer?
Enlouquecer, exatamente, mas porque há feiticeiro, há curandeiro e há
curandeiro contra feiticeiro.135

Os feiticeiros que executam esse tipo de magia obtêm os seus poderes


hereditariamente, sendo numerosos em cada grupo. Sua atividade é essencialmente
noturna, possuindo a faculdade de se desdobraram durante o sono. Porém, a sua
atividade noturna lhe é inconsciente quando na vida ordinária. Veja o exemplo que
se segue:

O senhor pode me contar uma que o senhor viveu que o senhor soube da localidade do
senhor era?
São tantas. Por exemplo, mesmo aqui em Maputo tem acontecido em
Benfica, é um bairro aqui Benfica, que o pai dum casal, aliás, não o pai, é a
mãe da esposa de um casal que depois de morrer o marido em casa etc. e os
filhos estão dispersos ele veio a viver junto à filha aqui no bairro do Benfica,
veio a viver junto à filha e como ela tava carregada exatamente com esta
prática de feiticeira começou, então, a enfeitiçar os filhos do genro.
Mas os filhos do genro não eram os netos dela?
São os netos dela, mas essa prática de feiticerismo como é feito muito das
vezes à noite a pessoa não reconhece.
A pessoa que faz não reconhece?
Aliás, pode reconhecer a coisa, aí uma coisa que eles fazem e isso é bem
contado, que é sempre, eles apreciam a carne humana e como eles comem
só eles é que sabem que nunca matam a pessoa e eles ali comem, comem,
mas comem a maneira, sei lá, que até os vampiros eles conseguem ver mais
ou menos como é que é, mas eles têm uma forma própria deles, então
normalmente são os curandeiros contra feiticeiros que dizem que eles fazem
isso, então cada feiticeiro pode ser obrigado no grupo dos seus, quer dizer,
dos seus comparsas a oferecer uma pessoa pra matar.136

135
T. entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 14/07/09.
136
IDEM, entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 14/07/09.
119

Os crimes que eles praticam são: roubo de produtos agrícolas; assassinato,


motivado por inveja ou ódio, através do envio de animais para matar, do
oferecimento de comida ou de bebida a alguém com certas drogas
(envenenamento); despejo de corpos estranhos ou sangue sobre a pessoa,
enfeitiçamento da vontade; e, por fim, enfeitiçamento de um indivíduo para torná-lo
seu escravo, empregando-o a seu serviço. O crime de feitiçaria incorre na pena de
morte e o culpado é enforcado. Também existem as penas de flagelação e de
banimento da sociedade. Porém, o feiticeiro para ser punido ou banido precisa ser
antes descoberto. Enquanto ele não é descoberto, suas ações são neutralizadas
pela ação do curandeiro.

1.4.5.2 - Magia defensiva - curandeirismo

Apesar de, em essência, os poderes dos curandeiros137 serem iguais aos dos
feiticeiros, sua atividade difere da dos feiticeiros. Eles trabalham durante o dia e tem
consciência de tudo aquilo que fazem; sofrem uma preparação ou passam por uma
iniciação, que difere segundo a espécie de magia que praticam; fazem uso de ervas
medicinais e outros objetos que possuem um poder especial; e, por fim, eles são os
sustentáculos da ordem social. Prevêem o futuro, curam os doentes, previnem as
desgraças e lutam contra aqueles que praticam a feitiçaria. Todo o poder dos
curandeiros se aplica a desfazer os procedimentos mágicos dos feiticeiros. Suas
drogas servem para dois fins: proteção e cura, consistindo a última na descoberta do
feiticeiro, que é a primeira coisa a ser feita para que a cura se processe. C. nos fala
de uma das formas de se descobrir o feiticeiro:

Aí curou a doença física. E se eu estiver com o espírito maligno?


É no momento que eu vou usar aquela incorporação para pegar aquele
espírito que era forte.

137
Segundo Henrique A. JUNOD, Usos e costumes dos bantos, p. 475-476, há diversas categorias de
curandeiros entre os tongas. São eles: “1º Aqueles cuja actividade reveste o mínimo de carácter
mágico. São os n’anga (iin-tin) ou bá-múri, que trata da arte médica. 2º Aqueles que, tendo passado
pela cerimônia do exorcismo, se tornaram eles próprios exorcistas; são designados pelo termo
gobela. 3º Aqueles que se chamam mungoma, os verdadeiros curandeiros, dotados de poder
divinatório e miraculoso, que lutam contra os bàlóii, fazem chover, influenciam o Céu, etc., sem que
tenham necessariamente de passar pelo episódio do exorcismo. 4º Aqueles cujo poder os qualifica
especialmente para descobrir os deitadores de sortes e que, por esta razão, são chamados chinussa,
os <farejadores>. 5º Os deitadores de ossículos (ba bula)”.
120

Esse espírito que está comigo passa para a senhora?


Não, não passa pra mim. Eu, vai sair o meu espírito no meu trabalho, então
aquele espírito, espírito que vai pegar e fica incorporado em mim e fala
consigo.138

Podemos afirmar, assim, que o curandeiro tem que ser iniciado para que sofra
uma mutação quantitativa, que lhe capacite para mergulhar na participação vital com
clareza e segurança, dotado de um conhecimento da etiologia das doenças e da
terapêutica mágica. Precisa receber a sabedoria médica, herdada dos
antepassados.

Como é que alguém se torna o bom curandeiro, como é que, eu posso chegar pra
senhora e falar assim: ah, dona Celeste eu quero ser curandeira, existe isso?
Não, não, não, não. O curandeiro parte dos seus espíritos é a minha
cunhada, ela é curandeiro também, a minha cunhada começou saia aqueles
espíritos, quando sai aqueles espíritos ele até fala línguas diferentes. Ele fala
zulu, fala a minha cunhada, às vezes, falava dois, nós não percebíamos o que
ela estava a dizer, aquilo andou, quando começa a sair os espíritos e então
tens que ir a um outro curandeiro mais velho que é pra te ensinar como é que
tu vais trabalhar, ta bem. Então, ele, o outro curandeiro é que deve te ensinar
como é que deves fazer como você sabe é bom. Por exemplo, eu tenho o
dom quer ser padre, quer ser padre, então tem que estudar e tenho que fazer
aquelas cerimônias, as cerimônias.139

Para neutralizar a ação do feiticeiro, segundo Altuna140, a primeira coisa que


ele tem que fazer é diagnosticar a doença, como forma de conduzir à terapêutica
médica-mágica e acalmar o doente e a comunidade. Durante o diagnóstico, o
curandeiro comporta-se como um adivinho. As ações do curandeiro são três: 1)
médico-mágica – utilização de aptidões médicas, que dependem do diagnóstico,
principalmente com o uso de vegetais e minerais. Às vezes, faz-se necessário o uso
de práticas rituais mágicas, como oferendas, confissões, adivinhação, possessão; 2)
psico-moral – destrói a falta de ética do doente ou repara a falta do agressor com um
rito compensatório. O doente deve reparar suas faltas perante a comunidade e os
antepassados através da purificação e reparação-sacrifício. É necessário aplicar
uma psicoterapia eficaz; 3) religiosa – continuação das anteriores. Depois da cura é

138
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
139
S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
140
Cf. P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu.
121

comum haver um ato puramente religioso: um sacrifício com refeição – comunhão


coletiva, simbolizando que a harmonia foi restabelecida e a dupla solidariedade
consolidada.

Como relatado por C., o curandeiro carrega consigo a possibilidade de


execução dos procedimentos mágicos, como a possessão, a adivinhação e a
medicina tradicional. O que podemos afirmar é que os procedimentos de magia são
utilizados para o restabelecimento da força vital e da harmonia na sociedade, uma
vez que normalmente há uma explicação para além do próprio fato para
determinado evento. O que queremos dizer com isso é que ao praticar a magia, o
bantú executa um ato de religiosidade, já que a magia está visceralmente
relacionada à ação dos antepassados e à vontade do Ser Supremo. A magia
atravessa o bantú no seu dia-a-dia, tal como a religiosidade. Pudemos observar
também que a tradição passou por modificações, aspectos que ficam claros nas
entrevistas realizadas. Porém, ao mesmo tempo em que a tradição passou por
transformações, já que não podemos entendê-la como fixa, há alguns aspectos que
precisam ser mantidos, alguns núcleos que, independentemente, dos encontros
ocorridos permaneceram, mesmo que de maneira ressignificada.

Observaremos que a tradição tão cara aos grupos de tradição bantú foi sendo
esfacelada com o início da escravidão mercantil dentro do continente africano,
causando uma mudança identitária. Assim, no próximo capítulo, buscaremos
apontar de que maneira o processo que vai da captura à chegada ao Brasil foi
vivenciado pelos bantú, com destaque para a perda de algumas das estruturas
tradicionais, e também para a forma como esse fato colaborou para as
transformações sofridas por ela dentro da própria África, fruto de diálogos culturais e
de hibridismos, antes do embarque para o Brasil, pois a vivência da diáspora: “...
não foi, (...) [uma simples] experiência destrutiva traumática que separou os negros
da África, rompendo seu sentimento de história e de tradição, mas uma via ou um
canal entre essa tradição e o que se vem desenvolvendo no novo solo”141. O que
veremos é que as pessoas de tradição bantú, quando transportadas ao Brasil,
procuraram estabelecer a sua tradição em um novo ambiente, usando os
instrumentos disponíveis e as lembranças de sua herança para conceber algo novo.

141
Edward Kamau BRATHWAITE apud Sidney W. MINTZ; Richard PRICE, O nascimento da cultura
afro-americana, p. 12.
122

CAPÍTULO II: A TRADIÇÃO BANTÚ NA DIÁSPORA:


HIBRIDIZAÇÕES RELIGIOSAS E DIÁLOGOS CULTURAIS
OCORRIDOS NA LIMINARIDADE

Agoniza mas não morre


Samba, / Agoniza mas não morre, / Alguém sempre
te socorre, / Antes do suspiro derradeiro. / Samba,
Negro, forte, destemido, / Foi duramente
perseguido, / Na esquina, no botequim, no terreiro.
Samba, / Inocente, pé-no-chão, / A fidalguia do
salão, / Te abraçou, te envolveu, / Mudaram toda a
sua estrutura, / Te impuseram outra cultura, / E
você nem percebeu, / Mudaram toda a sua
estrutura, / Te impuseram outra cultura, / E você
nem percebeu.1

No capítulo primeiro, fizemos uma descrição da tradição bantú, que não é


fixa, transformando-se ao longo do tempo. Focalizamo-nos especialmente no que diz
respeito à religiosidade, que se encontra presente no cotidiano, seja através da
presença dos espíritos na vida dos vivos, seja através da magia em suas múltiplas
facetas. Descrevemos também o culto aos antepassados e de que forma esta
prática religiosa congrega em si vários aspectos da tradição. Para tanto, recorremos
à revisão bibliográfica, bem como ao trabalho empírico, composto por entrevistas
com africanos realizadas em São Paulo e em Maputo e grupo focal.

Tal empreitada tornou-se necessária, uma vez que a religiosidade de tradição


bantú é o nosso objeto de estudo, além de ela ter sido trazida ao Brasil por
aproximadamente trezentos anos, através de homens, de mulheres e de crianças, já
que a África Central ou África Subsaarina foi a grande área fornecedora de
escravizados, não só nas incursões junto aos povos do litoral, mas também em
cidades localizadas a quilômetros da costa atlântica, como, por exemplo, no interior
de Angola ou em Moçambique. Segundo Heywood, houve uma presença cultural
precoce e contínua dos centro-africanos na diáspora americana:

1
Nelson SARGENTO; Teresa CRISTINA. Casa do samba. s. n. Zeca Pagodinho Discos, Manaus,
2007.
123

... eles representavam 45% ou aproximadamente 5 dos 11 milhões de


africanos importados como escravos para as Américas entre 1519 e 1867.
(...) O Brasil, por exemplo, foi o principal importador de escravizados oriundos
da África Central. Durante o período em que este comércio era legal entre
África e Brasil, foram importados entre 3,5 e 3,6 milhões de escravos
originários da África Ocidental e da parte ocidental da África Central.
Estudos (...) e as estimativas aproximadas (...) sugerem que mais da metade
dos escravizados – 15 mil por ano até 1790 – que alcançaram a região
sudeste do Brasil, entre 1595 e início de 1800, procedia da parte ocidental da
África Central. Esse banco de dados, porém, não representa uma fonte
definitiva para a questão do comércio escravocrata ou das populações
envolvidas.2

Wissenbach3, ao examinar as nuances daquilo que se convencionou chamar


de infame comércio, defende que a complexidade do tráfico negreiro remete os
africanos à condição de agentes históricos. Os barracões, os fortes e as
embarcações, nesse aspecto, podem ser considerados mundos sincréticos,
multiétnicos e transculturais, onde ocorriam hibridismos religiosos e diálogos
culturais. Tal fato nos leva a estabelecer a idéia de que as práticas religiosas
chegadas ao Brasil não eram puras, mas já haviam passado por processos de
ressignificação cultural. Mesmo assim, várias expressões religiosas, práticas
culturais e religiões formadas no Brasil sofreram a influência bantú, dando-lhes
algumas especificidades, com destaque para o seu caráter híbrido e continente, no
sentido de acolher e de transformar saberes e fazeres.

Neste capítulo temos como objetivo aprofundar a compreensão dos


processos de hibridismo religioso e de diálogos culturais ocorridos antes da chegada
dos escravizados de tradição bantú ao Brasil, bem como discutir, de modo
preliminar, a forma como essa experiência marcou e transformou essa tradição que
desembarcou no Brasil, tendo clareza de que no processo de ressignificação alguns
elementos podem ser operacionalizados, enquanto outros não, uma vez que
determinada tradição não pode dar sentido para todas as experiências vividas,
quando transportada através da diáspora:

Nenhum grupo, por mais bem equipado que esteja, ou por maior que seja sua
liberdade de escolha, é capaz de transferir de um local para outro, intactos, o

2
Linda M. HEYWOOD, Introdução, In: Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 18-
19.
3
Cf. Maria Cristina Cortez WISSENBACH, Prefácio, In: Jaime RODRIGUES, De costa a costa.
124

seu estilo de vida e as crenças e valores que lhe são concomitantes. As


condições dessa transposição, bem como as características do meio humano
e material que a acolhe, restringem, inevitavelmente, a variedade e a força
das transposições eficazes.4

Para tanto, trabalharemos, inicial e brevemente, a escravidão doméstica que


já existia na África, mas que de certa forma, preservava a humanidade da pessoa,
fazendo um contraponto com a escravidão mercantil, instalada com a presença de
Portugal em Angola, que foi deflagrada pelo tráfico e pela necessidade de sustento
do sistema colonial, cujo objetivo era a acumulação do capital por meio da
transferência de renda gerada nas colônias para a metrópole. Em seguida,
falaremos sobre a constituição do comércio de escravos na África, apontando a
importância do tráfico de escravos para a formação do Brasil, já que, segundo
Forentino5, desde o final do século XVI, surge um espaço aterritorial, composto dos
enclaves da América portuguesa e das feitorias de Angola. Estas duas partes unidas
se complementaram num só sistema de exploração colonial cuja singularidade
marca o Brasil contemporâneo, bem como as expressões religiosas bantú aqui
presentes.

Finalmente, percorreremos o caminho dos escravizados, desde a sua captura


até a chegada ao Brasil, passando pelos barracões, pelos fortes6 e pelos navios
negreiros, focalizando-nos nas possíveis ressignificações religiosas e culturais

4
Sidney W. MINTZ; Richard PRICE, O nascimento da cultura afro-americana, p. 19.
5
Cf. Manolo FORENTINO, Em costas negras.
6
A viagem ao interior demorava um tempo considerável e quando retornavam à costa, eram trazidos
até seiscentos escravos, além de cobre, marfim, sal e ferragens. Dadas as condições de viagem,
apenas dez por cento dos escravos sobrevivia e os que chegavam, estavam, muitas vezes, feridos e
machucados. A forma de colonização portuguesa, baseada no terror e na violência: “... além de
intimidar e controlar chefes e tribos, causava uma desorientação psicológica do grupo, pois, às vezes,
destruía a raiz da autoridade e da segurança na tribo e no estado, transformando, neutralizando e/ou
eliminando forças oponentes” (Roy Arthur GLASGOW, Nzinga, p. 76). Caso existissem navios
disponíveis eram imediatamente embarcados. Em Luanda, homens, mulheres e crianças eram
encarceradas em barracões, onde esperavam a chegada dos navios negreiros, que podia demorar
até cincos meses. Segundo Mugur VALAHU, Angola, p. 49: “Os Negros capturados eram levados,
após algumas centenas de quilômetros de marcha, para o porto de embarque de Luanda onde, em
estado bastante miserável, esperavam, dentro de barracões, os barcos que deviam conduzi-los à
América. Devemos dizer que, uma vez instalados nesses barracões, os negros eram bem tratados e
alimentados pelos compradores e traficantes os quais tinham todo o interesse em apresentar homens
e mulheres saudáveis, resplandecentes de saúde, se possível fosse, pois seu preço pagava-se à
vista e conforme o estado físico. Antes de embarcarem, padres brancos baptizavam os grupos de
escravos; cada um recebia então um papel com o seu futuro nome cristão. Nos barracões os cativos
eram engordados e untados com óleo de dendê, antigo costume Mbundo; por vezes, eles eram
utilizados no cultivo da mandioca, o que aumentava o seu valor. Alguns, por outro lado, eram
dizimados pela varíola.
125

ocorridas durante este trajeto, bem como nos processos de diálogos culturais. O que
percebemos é que esse trajeto pode ser entendido simbolicamente como a fase
limiar de um rito de passagem, logo, de transformação de identidade, uma vez que
muitas medidas foram tomadas para transformar a pessoa livre em escravizada,
alterando seu status social, o que também destruiu visceralmente as bases da
tradição bantú.

2.1 - Escravidão doméstica

No mundo antigo, inclusive na África, a escravidão era considerada um


fenômeno natural e espontâneo que diferiu, sobremaneira, da escravidão instalada,
a partir do século XV, com as grandes navegações ultramarinas, principalmente no
que se refere ao fato de os indivíduos escravizados serem considerados meros
instrumentos de trabalho. Mas cabe a ressalva feita por Costa e Silva7, de afirmar
que as formas de escravidão integrativas e domésticas, possivelmente as primeiras
que se conheceu na África, têm sido qualificadas de benévolas ou de brandas, mas
muitos autores admitem o seu rigor.

Segundo Serrano e Waldman8, já havia um tráfico de escravizados


diversificado em várias partes da África antes da chegada dos europeus. O processo
que convertia os indivíduos em escravizados possuía diversas origens, mas o
escravizado não se apresentava como uma propriedade no seu sentido ocidental,
sendo, antes de tudo, um ser social que estava envolto em relações, colocando
alguns grupos da sociedade em uma situação de servidão e, não, de mercadoria.
Pode ser entendida como uma escravidão doméstica, uma vez que contribuía para
complementar o trabalho associado ao cotidiano de um grupo ou de uma
comunidade. A escravidão doméstica encontrava-se ancorada no princípio da
participação vital, no qual estão baseadas as instituições políticas, sociais,
econômicas, artísticas e religiosas dos grupos de tradição bantú. Como, para eles,
existe apenas uma única corrente vital, forma-se uma unidade de todos os seres,
uma comunhão coletiva, constituindo um circuito de comunicações vitais. Ao
transformar uma pessoa em mercadoria, como na escravidão mercantil, sua força
vital é diminuída, o que interfere no bem-estar de toda comunidade.
7
Cf. Alberto da COSTA E SILVA, A manilha e o libambo.
8
Cf. Carlos SERRANO, Maurício WALDMAN, Memória d’África.
126

Ainda conforme os dois autores9, é possível enumerar seis situações nas


quais um indivíduo podia adquirir a condição de escravizado: 1) escravos cativos em
batalhas feitas contra povos vizinhos, em momentos de ruptura da estabilidade
política; 2) escravos nascidos de mulheres escravas, que não fossem resgatados; 3)
escravos provenientes de comércio de longa distância; 4) escravos que não eram
cativos, mas se encontravam em uma situação de dependência ou de servidão
originadas por castigo imposto, após julgamento por quebra de regras culturalmente
estabelecidas; 5) quando um indivíduo ou grupo tinha dívidas de tributo, colocava-se
em relação de dependência do devedor; 6) quando um homem julgava em perigo a
sua existência por vingança ou quando se considerava incapaz de subsistir no seu
grupo, colocando-se voluntariamente na condição de escravo.

De acordo com Costa e Silva10, o número de pessoas aprisionadas e


colocadas para trabalhar à força variava de região para região, de cultura para
cultura e de grupo para grupo. Em comunidades pequenas, regidas por formas
desconcentradas de mando, a escravização tinha como principal objetivo aumentar
o número de braços de uma família, de uma linhagem ou de uma tribo. Ao ampliar o
número de dependentes, o escravizado incrementava a riqueza e fortalecia o poder
do dono. Sua função era aumentar o trabalho da família do seu dono, o que permitia
que ele ocupasse e cultivasse mais terras, expandisse as construções e levasse
mais produtos ao mercado.

Ainda segundo o autor, em quase toda parte, o percurso de ascensão social


passava pela aquisição da escravaria. Era a posse de um crescente número de
escravizados o que abria a porta aos títulos de prestígio, às posições de influência
nas sociedades secretas, às chefias honoríficas e às insígnias de mando. Na África,
as portas da classe dominante eram abertas pela quantidade de escravizados. O ser
humano comum tinha na posse do escravizado o meio mais rápido de melhorar de
vida. Com o escravizado desobrigava-se de certas tarefas e trabalhos, ao mesmo
tempo em que juntava algumas economias. Metaforicamente, o escravizado era
moeda de poder.

Mesmo incorporados à linhagem do amo, os descendentes de escravizados


continuavam a ser estigmatizados e como tais podiam até compor um ramo especial

9
Cf. Carlos SERRANO, Maurício WALDMAN, Memória d’África.
10
Cf. Alberto da COSTA E SILVA, A manilha e o libambo.
127

de uma família: ramo escravo ou ex-escravo. De qualquer forma, na maioria dos


casos, o fato de alguém ter sido escravizado deixava uma marca indelével, uma
marca que se transmitia de geração em geração, como se fosse sua principal
herança. Mesmo no início do século XIX, o grosso da escravaria, ao ser, após uma
ou duas gerações, absorvido na sociedade, entrava nos patamares mais pobres e
menos considerados da população livre. Como vimos, para Altuna, a escravidão na
sociedade bantú era monitorada por regras totalmente diferentes das que vigoraram
com o tráfico mercantilista, pois mesmo como escravizados, as pessoas: “...
permanecem membros da comunidade com plenos direitos” 11. Os escravizados não
podiam ser vendidos, mas passavam por herança.

Neste aspecto, a escravidão européia trouxe conseqüências devastadoras,


pois se perdeu o respeito pela pessoa, criou-se o ódio, instalou-se o império do
terror, debilitou-se a autoridade e a vida comunitária desintegrou-se. Muitos grupos
foram dizimados, sendo que a maioria ficou reduzida à insignificância, isolados e
encerrados em regiões inacessíveis. Apesar da escravidão não ser um tipo de
relação nova para os africanos, a forma como foi concebida e gerenciada com o
tráfico atlântico era um fenômeno original, que em muitos aspectos era incompatível
com a forma de vida bantú. Tomaremos, a seguir, o caso da presença de Portugal
em Angola, que nos parece exemplar para entender o que dissemos acima. Além
disso, Angola nos interessa, pois foi de um de seus portos que grande parte dos
escravizados foi embarcada para o Brasil.

2.2 – A presença de Portugal em Angola e o tráfico de escravos

Mesmo a Costa Atlântica sendo a última região da África que teve contato
com povos vindos de fora do continente e começando a ser explorada por
navegadores portugueses a partir do início do século XV, o contato com outros
povos já existia, seja pelo oceano Índico, seja pelo mar Mediterrâneo e seja pelo mar
Vermelho. Porém, a presença dos portugueses provocou mudanças nas sociedades
africanas, conforme constata Souza: “O fato novo que interferiu radicalmente nas
sociedades locais depois da chegada dos portugueses foi a busca de escravos, que

11
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 181.
128

eram cada vez mais solicitados pelas colônias americanas”12. Portanto, entre os
séculos XVI ao XIX, foi em torno do tráfico de escravos que se deu a relação entre
os africanos, com destaque para os angolanos, e os europeus, com destaque para
os portugueses. Cabe notar que este contato foi regido por relações desiguais de
poder13.

O contato dos portugueses com Angola deu-se um pouco antes de 1504,


quando alguns mercadores chegaram em Ndongo, reino existente na área hoje
compreendida como Angola. O local oferecia alguns atrativos: região fértil e
populosa; área produtora de aguardente, de azeite de dendê e de frutas; fabricante
de materiais de construção e de estabelecimentos fortificados; e regada por
numerosos rios que facilitavam o acesso ao interior. A tudo isso, somou-se a idéia
errônea dos portugueses de que a sociedade existente não era complexa e
organizada, o que facilitaria a implantação de um modelo ibérico na região14.

O contato com líderes africanos fez com que muitos deles fossem recebidos
em Lisboa e servissem como auxiliares no processo de evangelização dos africanos,
além de permitir que os portugueses interviessem nas disputas dentro da própria
África. Durante o século XVI, Portugal iniciou, na costa africana ocidental, uma
política colonial baseada no proselitismo cristão, na imposição da própria língua e
nos bons resultados comerciais:

12
Marina de MELLO E SOUZA, África e Brasil africano, p. 28.
13
Importante ressaltar que os autores diferem quanto ao caráter da presença de Portugal em Angola.
Apenas para fazer um contraponto, gostaríamos de citar Américo BOAVIDA, Angola, p. 13-14,
quando afirma que: “Numa primeira fase, sob o panegírico de cristianização dos selvagens, os
governantes, em Portugal, atiraram para os exércitos e para as caravelas a gente rude dos campos,
os condenados e os aventureiros, para defender as conquistas de uma civilização que se dizia
ameaçada pelos bárbaros e infiéis. Depois, sob a bandeira da “dilatação da Fé e do Império”,
procurou-se justificar a política de expansionismo e de conquista que se seguiu à Independência. O
progresso das ciências e da técnica na Europa realizou as condições que facilitaram a tarefa de “dar
novos mundos ao mundo” – quando se partia em demanda de ouro e das especiarias. Sob o
imperativo da defesa de uma herança e de territórios nos quais a missão civilizadora não havia ainda
sido completada, ocuparam-se pela guerra e pela fôrça países e territórios que constituíam
unicamente o mercado de trabalhadores forçados e de escravos para as minas e as plantações do
Nôvo Mundo. E agora, é “a missão divina de um povo eleito”, bastião da civilização ocidental na luta
contra o comunismo que serve de justificação à oligarquia financeira em Portugal e aos seus
associados para tocar a mentalidade simples do povo português, para arrancar das suas terras e o
atirar às colônias e colaborar na opressão e exploração de povos que se levantaram contra a
dominação estrangeira”.
14
Tal idéia é fruto do etnocentrismo existente na época, que considerava que culturas diferentes
necessariamente eram inferiores. Segundo MARCONI, PRESOTTO, Antropologia, p. 18: essas
culturas “... são vistas dentro de um prisma de inferioridade cultural, sendo consideradas selvagens,
bárbaras e de mentalidade atrasada”.
129

Por volta de 1600, a influência e o poderio dos jesuítas proliferavam em tal


extensão, que, além de seu papel de clérigos, educadores e mercadores,
ocupavam posições quase seculares como embaixadores e conselheiros
junto aos Mbundos. Sua versatilidade é testemunho de sua importância na
vida comercial, espiritual e política da época.15

Como católicos, os portugueses tinham o desejo de propagar sua fé. Seu


ideal comercial e migratório ia ao encontro da posição da Igreja Católica, o que a
fortalecia: “Ao penetrar em África, Portugal criou rapidamente as bases de uma
autêntica política mercantil e missionária. Comércio e proselitismo cristão, tal parece
ser sua divisa nessa altura”16. Tal situação fez com que valores culturais
portugueses fossem incorporados pelos angolanos, inclusive os aspectos religiosos,
mas não por existir instabilidade no seu sistema religioso, já que possuíam um
sistema religioso e cerimonial bastante estável. A maior mudança procedeu da
introdução do cristianismo:

... a estrutura básica da religião original permaneceu em todos os lugares,


certamente modificada pelas idéias cristãs em algumas áreas, formando um
padrão bastante uniforme no qual as variações regionais eram,
provavelmente, tão grande quanto aquelas entre cristãos e não-cristãos. 17

De qualquer forma, cabe lembrar que os valores técnicos, materiais,


econômicos, culturais e religiosos foram utilizados contra a população angolana,
com o fim de estabelecer relações, cujo objetivo era a exploração comercial e
mercantil das riquezas do país e a exploração física do próprio africano. Um dos
principais efeitos da presença portuguesa em Angola foi a tentativa de liquidar as
estruturas da tradição bantú presentes nas tribos e nas comunidades. Porém, essa
presença não ocorreu sem movimentos de resistência, como, por exemplo, a rainha
Nzinga18.

15
Roy Arthur GLASGOW, Nzinga, p. 61.
16
Mugur VALAHU, Angola, p. 23.
17
John K. THORTON, Religião e vida cerimonial no Congo e áreas Umbundo, de 1500 a 1700, In:
Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 100.
18
Segundo GLASGOW, Nzinga, a rainha Nzinga representou um dos primeiros e efetivos oponentes
à dominação portuguesa em Angola, uma forma de resistência africana no século XVII, sendo uma
personalidade de destaque dentro de Angola. Por outro lado, a posição da rainha Nzinga perante a
escravidão era ambivalente, pois, às vezes, ela participava do tráfico, enquanto que em outros
momentos fechava tais mercados. Era também controversa no que se refere à questão religiosa,
muitas vezes, pautada em função de sua conveniência política. Em 1622, Nzinga foi batizada na
130

Luanda foi fundada em 1576, por Paulo Dias Novaes, sendo que os
portugueses já tinham edificado na África verdadeiros centros de vida européia.
Luanda e Benguela serviam de pontos de partida para a infiltração portuguesa no
interior de Angola e na África. Segundo Boavida19, os portugueses traziam produtos
alimentares nos porões vazios dos navios negreiros e trocavam pelos escravizados
que durante quatro séculos foram comercializados em Angola. Cerca de um milhão
trezentos e oitenta e nove mil escravos foram tirados de Angola entre 1486 e 1641,
cerca de nove mil por ano. De 1580 a 1836 mais de quatro milhões de homens,
mulheres e crianças foram levados de Angola e do Congo.

Angola, já no século XVI, era um dos mais importantes mercados de


escravizados. Eram obtidos, não só no litoral como também no interior, por meio de
troca, quer como prisioneiros, quer como tributo, retirados normalmente de maneira
violenta. Portugal e Angola tiveram um papel fundamental no tráfico de escravos,
sendo impossível compreender esse processo sem pensar no triângulo – Portugal –
Brasil – Angola. Pode-se falar de uma organicidade ímpar entre a formação social
brasileira e o continente africano.20 O consumo da mercadoria humana estava
intrinsecamente ligado à sua produção na África. Se a reprodução física
corresponde à reprodução da força de trabalho, o comércio negreiro internacional é
um elemento central para o cálculo econômico escravista, dependendo dele a
própria reprodução da empresa colonial. A África ofereceu escravos ao Brasil
durante um longo tempo a custos baixos, em fluxo contínuo e barato.

No século XVII o tráfico de escravos, que estava na mão dos portugueses,


passou também a ser feito pela Inglaterra e pela Holanda21. “Angola tornava-se

igreja em Luanda. Seu contato com os portugueses provocou mudanças no seu estilo de se vestir e
em suas atitudes. Em 1623, Nzinga torna-se rainha, mas para exigir lealdade e apoio do povo, ela
rejeita o catolicismo e retoma a sua herança cultural. Segundo Ibid., p. 92: “Portanto, seus primeiros
atos foram os de reformar aquelas leis que haviam perdido a integridade étnica devido à influência
européia, tais como a proibição às mulheres Mbundo de terem filhos no quilombo e a adoração de
Temba Ndumba, seu Deus”. Porém, com o passar do tempo e com a necessidade de negociação
com os portugueses, Nzinga, novamente, converte-se ao catolicismo. Em 1663, o catolicismo
ganhava muito prestígio, sendo que seus súditos desejavam ser batizados e houve um aumento na
extensão e na freqüência das cerimônias.
19
Cf. Américo BOAVIDA, Angola.
20
Cf. Manolo FORENTINO, Em costas negras.
21
Segundo Pedro PUNTONI, em A guerra dos holandeses, os holandeses comerciavam com
Portugal açúcar e outras mercadorias produzidas no Brasil desde o século XVI. As relações
amistosas e lucrativas entre portugueses e holandeses foi rompida, quando Portugal ficou sob o
domínio da Espanha, que através de Filipe II, em 1605, proibiu o comércio entre holandeses e as
colônias da Espanha. Este ato fez com que os holandeses reagissem. Primeiro através do
contrabando e do comércio ilegal. Segundo, com a criação da Companhia das Índias Ocidentais em
131

genuinamente o grande mercado fornecedor de braços negros pelos seus portos de


Zaire, Luanda, Cuanza e Benguela”22. Em 1700, o bispado de São Salvador é
transferido para Luanda, como forma de impulsionar os objetivos portugueses na
região:

É certo que os indígenas não assimilavam grande parte do dogma cristão,


mas, de qualquer modo, o que interessava era começar. Em São Salvador
existiam doze igrejas, numa época em que na própria Europa numerosos
territórios não possuíam sequer uma igreja ou uma escola.23

Durante o século XVIII, os portugueses consideravam Angola como uma de


suas províncias, ou seja, parte do seu território nacional. Ainda nesse século, quase
metade do clero angolano era composto por africanos e mestiços oficiando em mais
de vinte igrejas. Essa foi uma das estratégias utilizadas pelos portugueses para
converter os angolanos, já que entendiam que negros e mestiços eram aceitos com
mais facilidade24. Também se contava com sacerdotes que tinham a capacidade de
contatar outra visão de mundo. A ocupação de Angola só se tornou verdadeiramente
efetiva a partir do século XIX, pois, anteriormente, a implantação dava-se apenas na
costa. Inicialmente, o engajamento dos portugueses na atividade integrou-se à rede

1621 para reunir e para organizar os comerciantes, fortalecendo os negócios com as colônias
espanholas e portuguesas. A Companhia das Índias Ocidentais tinha também um caráter militar,
estando autorizada a promover a guerra para garantir seus interesses. A Companhia das Índias faz
tentativas de conquistar regiões brasileiras. Em 1637, os holandeses controlavam áreas das
capitanias de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte. Neste mesmo ano foi enviado
ao Brasil o governador João Maurício de Nassau, que consolidou o domínio da Companhia no então
chamado Brasil holandês. Apesar de Nassau ter a imagem de bom governador, segundo Ibid., p. 10:
“Na verdade, Nassau era um homem de seu tempo, com interesses concretos. Sabia que tinha de
reconstruir a economia açucareira, para que a Colônia desse o lucro esperado. Para tanto, não
descartou o uso do trabalho escravo, já criticado na época. Com a conquista de São Jorge da Mina,
na Guiné (1637), e de São Paulo de Luanda, em Angola (1641), importantes centros de fornecimento
de escravos, Nassau procurou garantir mão-de-obra farta e barata para os engenhos”.
22
Américo BOAVIDA, Angola, p. 52.
23
Mugur VALAHU, Angola, p. 60.
24
É interessante notar que Angola teve certo contraste com o Brasil, uma vez que o negro e o
mestiço tiveram mais dificuldade de entrar na Igreja Católica (ministério). Caberia indagar os motivos
pelos quais a Igreja Católica utilizou estratégias diferentes em cada uma das localidades. Podemos
pensar na possibilidade de que em Angola o negro era visto como um sujeito ativo, enquanto que no
Brasil a sua visão era de sujeito passivo. O negro em Angola constituía a população autóctone,
enquanto que no Brasil essa população era formada pelos índios. Abordaremos com mais detalhes
esta questão no capítulo III. Também é sugestiva a afirmação de John K. THORTON, Religião e vida
cerimonial no Congo e áreas Umbundo, de 1500 a 1700, In: Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora
negra no Brasil, p. 96, ao falar a respeito da inserção do cristianismo no Congo: “No final de contas, o
cristianismo, apesar de sua forma sincrética, segundo os modelos do Congo, penetrou
profundamente em todas as regiões, embora somente no Congo e áreas ob a administração
portuguesa ele estivesse fortemente enraizado como parte da identidade local”.
132

preexistente de comércio de escravizados ligada aos muçulmanos no Norte do


continente, construindo feitorias, fortes e presídios para servir como ponto de apoio
para a compra e venda de cativos africanos para as colônias americanas.

Com o tempo, os portugueses enviaram comerciantes e missionários para


fazer incursões ao interior. Tentou-se submeter os chefes angolanos, quer pela
força, quer pela persuasão, enquanto a Igreja Católica tentava convertê-los e os
comerciantes os atraíam com as suas mercadorias. Durante a ocupação do interior,
os comerciantes viajavam com artigos destinados aos mercados, onde eram
trocados por escravizados. Alguns deles também desenvolviam contatos mais
íntimos com os chefes e com os seus familiares, estabelecendo sistemas de tráficos
próprios no interior do continente. Segundo Miller:

Muitos mais escravizados do interior profundo da África Central alcançaram o


Rio durante a parte final do século XVIII. Em Luanda, negociantes
construíram redes comerciais para além do controle governamental da
colônia que se tornaram os eixos por meio dos quais os escravizados eram
trazidos para o porto colonial até data bem avançada no século XIX.25

Angola tornou-se o combustível da produção brasileira, estando sua vida


econômica e comercial mobilizada e baseada na escravidão. Tal situação gerou um
desequilíbrio econômico nesse país, uma vez que, dele, apenas tirou-se pessoas e
produtos, sem que houvesse um investimento efetivo no seu desenvolvimento.
Primeiro, porque houve uma concentração muito forte no tráfico de escravos, o que
exigia pouco gasto e muita violência e, segundo, ele foi utilizado como depósito de
sentenciados (degredados). O tráfico de escravos interferiu negativamente no
sistema social angolano, rompendo com o padrão de vida bantú e com seu sistema
tradicional de entendimento do mundo:

Criada e desenvolvida como um complemento econômico do Brasil, a


principal função do Ndongo, ou seja, o fornecimento de seres humanos à
colônia brasileira, violentou a forma interna de sujeição e servidão, que fora
caracterizada como escravidão pelos europeus.26

25
Joseph C. MILLER, África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850, In:
Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 65.
26
Roy Arthur GLASGOW, Nzinga, p. 48.
133

Realizando a reprodução dos produtos da época colonial, o tráfico negreiro se


apresentou como um instrumento de montagem e de desenvolvimento do Império
Português. Esta atividade transcendeu o quadro econômico para se incorporar ao
arsenal político metropolitano: “... o exercício do poder imperial no Atlântico – como
também as trocas entre o Reino e as colônias – equaciona-se no âmbito do trato
negreiro”27. Se no século XVIII, 85% da navegação para Angola, carregando
mercadorias brasileiras, saía do Rio de Janeiro, da Bahia e do Recife, temos que
uma porcentagem maior voltava para o litoral brasileiro, sem passar por Portugal,
trazendo os escravizados – mercadorias vivas –, pois tinham que chegar logo ao
litoral brasileiro:

... o trato negreiro não se reduz ao comércio de negros. De conseqüências


decisivas, na formação histórica brasileira, o tráfico extrapola o registro das
operações de compra, transporte e venda de africanos para moldar o
conjunto da economia, da demografia, da sociedade e da política da América
portuguesa.28

Portanto, frente ao que falamos até agora, podemos afirmar que a partir do
final do século XVI, o comércio negreiro deixou de ser apenas mais uma atividade
ultramarina para ser o principal esteio da economia do Império Português. Além
disso, o tráfico negreiro também foi visto como um instrumento da conquista
portuguesa de Angola, uma vez que...

No caso da região congo-angolana, as instalações físicas, além de


demarcarem precariamente a posse do território português, introduziram as
primeiras transformações na forma de capturar escravos: a violência cometida
diretamente por europeus sobre os povos do litoral passou a ocorrer
paralelamente aos acordos com os soberanos locais.29

Tal estratégia permitiu que fossem feitas aproximadamente, segundo o autor,


duas mil viagens dos portos africanos para o Brasil a fim de vender ao longo de três
séculos cerca de quatro milhões de escravizados. Portanto, pode-se dizer que a
presença de Portugal em Angola caracterizou-se pelo ciclo: guerra – comércio –

27
Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 28.
28
Ibid., p. 29.
29
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 46.
134

guerra – comércio, sendo que o trato foi extremamente predatório, gerados a partir
das guerras, das extorsões perpetradas contra os chefes africanos avassalados e as
feiras. “Todos esses fatores consolidam a presença portuguesa em Angola,
transformando-a na mais importante fornecedora de escravos do tráfico atlântico
europeu”30.

O que cabe ressaltar é a forma como o comércio de escravizados encadeou a


oferta de uma série de outros produtos africanos. O cativo tinha um valor agregado,
apresentando-se como uma mercadoria capaz de carregar outras. Se através do
prisma econômico o comércio de escravizados tornou-se agregador, o mesmo não
pode ser dito em relação à questão cultural, já que a forma como se estruturou a
escravidão mercantil, diferentemente da escravidão doméstica, mostrava-se
inconciliável com a vivência dos grupos de tradição bantú. O que observamos é a
ruptura das bases culturais bantú e a transformação do ser humano em escravizado.

2.3 – Vivendo na liminaridade

O processo de transformação do ser humano livre em cativo ou de africano


em escravizado podia demorar meses, desde sua captura no interior do continente
até o seu desembarque no Brasil. Podemos afirmar que durante este período, a
pessoa que era capturada encontrava-se na fase de liminaridade, pois ela possuía
um comportamento concreto e simbólico e foi afastada do seu grupo, a partir de um
ponto na estrutura social e de um conjunto de condições culturais. Pode-se dizer que
ela se encontrava em uma posição de suspensão.

Na fase limiar, segundo Van Geenep31, as características do sujeito são


ambíguas, uma vez que se passa através de um domínio cultural no qual se tem
pouco ou nenhum dos atributos do passado e ainda não se possui as características
do estado futuro. Quando pensamos nas pessoas que se encontram na liminaridade,
observamos que os seus atributos são ambíguos, uma vez que elas escapam da
rede de classificações que normalmente determinam a localização de estados e de
posições em um espaço cultural.

30
Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 109.
31
Cf. Arnold VAN GEENEP, Os ritos de passagem.
135

Durante o trajeto, da captura à chegada ao Brasil, as pessoas de tradição


bantú deixaram de ser africanas e seres humanos livres, mas ainda não eram
cativas e escravizadas, fato que ocorreu, principalmente, após a sua venda no
Brasil. Simbolicamente buscou-se reduzidas ou oprimidas até uma condição
uniforme para serem modeladas de novo e dotadas de outros atributos – cativas e
escravizadas - que as capacitassem a enfrentar sua nova situação de vida. O que se
tentou criar foi um ser humano diferente, um estrangeiro por natureza, concebido
como distinto e inferior, desenraizado, e só de modo lento, e quase sempre de
maneira incompleta, inserido em outro conjunto social:

A esse estrangeiro absoluto, busca a comunidade dominante aviltar,


despersonalizar, infantilizar e despir de todas as relações grupais. E é o fato
de ser um estranho, que perdeu a família, a vizinhança, os amigos, a pátria e
a língua, e a quem se nega um passado e um futuro, o que permite a sua
redução de pessoa a algo que pode ser possuído. Só em casos extremos,
contudo, aceita o escravo essa despersonificação e essa dissociação e as
internaliza psicologicamente. Ele se sabe homem e só se resigna à
escravidão porque é constrangido à força.
A relação entre senhor e escravo é baseada na violência. Desde a origem.
Desde o momento em que se desnuda quem vai ser escravo de sua
identidade social. Desde o instante em que ele se torna “socialmente morto”.
Como regra, é arrancado do meio em que nasceu e transferido para outro
lugar, longe, com outros costumes, outra fé e outro idioma. Onde também
como regra, é humilhado e sujeito à peia e ao chicote.32

Ainda, segundo o autor, no fundo, nada diferenciava o escravizado do senhor,


a não ser o fato da degradação de pertencer a outra pessoa, o não contar com o
arrimo de uma linhagem, o de não possuir deuses-lares, o de ser considerado sem
honra e dignidade, o de não dispor de qualquer influência sobre o seu destino, o de
se saber solitário como um morto que ninguém vela, e o de estar desamparado de
descendência e, portanto, sem vida futura. Em suma, estar separado das estruturas
da tradição bantú. Porém, além daquilo que desejavam os dominadores, as pessoas
de tradição bantú também tinham seus desejos e lutaram por aquilo que lhes era
caro. Logo, a seguir, falaremos a respeito do jogo de poder estabelecido em terras
africanas, no qual um lado buscava destruir os alicerces da tradição, enquanto o
outro recompunha aquilo que era possível com os produtos disponíveis.

32
Alberto da COSTA E SILVA, A manilha e o libambo, p. 86-87.
136

Assim, esta tentativa de recomposição dos aspectos da tradição bantú, pode


ser vista nos dizeres de Bloch33, quando o conseqüente e o objetivamente possível
tornaram-se visíveis, uma vez que se identificou na história e na natureza, pela
fantasia associada ao concreto e ao antecipatório, o sonho de uma causa, o sonho
que a causa tem sobre si mesma e faz parte de sua tendência, bem como do
resultado. O interesse revolucionário, com seu conhecimento de como está ruim o
mundo e seu reconhecimento do quanto ele poderia ser bom como outro mundo, é o
que fecunda o sonho desperto da melhoria do mundo. A esperança se projeta no
momento da morte, orientada para a luz e para a vida, como aquela que não cede a
última palavra de fracasso. Ela fala de um conteúdo intencional, que percebe que
ainda há salvação no seu horizonte: “Quando da esperança surge a confiança, então
está efetiva ou praticamente presente o afeto expectante que se tornou
absolutamente positivo, o pólo oposto do desespero”34. A estrada desejada, sendo
estrada da esperança, não é mais rica, mas é mais preferida do que a estrada
indesejada ou do medo. As intenções voltadas para o futuro adentram uma classe
de consciência que é antecipatória. Caminham para um campo utópico ou daquilo
que ainda não veio a ser pleno, mas que um dia pode vir a ser.

2.3.1 - Captura

Até o século XIX, como já vimos neste capítulo, a dominação de Portugal na


África limitava-se à costa e alguns territórios próximos. Porém, com a constante
captura de escravizados, as populações da costa estavam sendo dizimadas, o que
tornou necessária a ocupação de novos territórios pelos portugueses, muitas vezes,
no interior do continente, longe da costa. A dominação do território, além de ser uma
forma de conquistar novos cativos também se configurava como uma estratégia de
dominação portuguesa.

As colônias portuguesas na África serviram principalmente para produzir


cativos e alimentar o tráfico de escravos, o que fez com que outras atividades e
investimentos fossem preteridos nestas regiões. Resumidamente, os objetivos de
Portugal em Angola eram dois: tráfico de escravos e domínio do território. Tendo

33
Cf. Ernest BLOCH, O princípio esperança.
34
Ibid., p. 114.
137

esses dois objetivos como prioridade, Portugal fincou presença no território


angolano, estabelecendo relações complexas e duradouras com os povos nativos:

Único país europeu que empreende operações diretas, oficiais, de caça de


africanos, Portugal – econômica e militarmente auxiliado pelo colonato da
América portuguesa – obtém na África Central seu maior domínio africano,
sua maior reserva de escravos, da qual se serve para desenvolver seus
domínios no outro lado do Atlântico: a destruição constante de Angola se
apresenta como a contrapartida da construção contínua do Brasil.35

Apesar das ligações duradouras estabelecidas com os grupos de tradição


bantú, as mesmas eram pautadas em uma relação de poder desigual, o que fez com
que não houvesse uma preocupação com o diferente e, conseqüentemente, com
sua cultura e com sua religião. No limite, podemos, inclusive, afirmar que para os
portugueses, os angolanos eram apenas uma forma de mercadoria. Portugal foi,
então, obrigado a produzir socialmente o cativo, produção, essa, marcada por duas
dimensões:

A primeira, de conteúdo político-social, tinha por móvel a cristalização da


hierarquia social e das relações de poder nas regiões africanas mais ligadas à
exportação de homens. A segunda, econômica, stricto senso, está
relacionada à forma através da qual se dava esta produção (a violência), que
permitia ao fluxo de mão-de-obra realizar-se a baixos custos.36

Esta violência esteve presente como o principal instrumento através do qual o


ser humano era transformado em cativo, qual seja, as guerras, já que elas eram
constantes entre os pequenos reinos, que se relacionavam com as estruturas
econômicas e sociais vigentes em cada região, cujos elementos de conflito eram
suficientes para suprir a demanda por escravizados. Havia uma ligação estreita
entre a escravidão no interior da África e o tráfico atlântico: “O tráfico emergia como
o mais eficiente mecanismo de acumulação de homens e recursos, acentuando e/ou
cristalizando a diferenciação social”37. O que se vai notando com o desenvolvimento

35
Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 325.
36
Manolo Garcia FLORENTINO, Em costas negras, p. 36.
37
Ibid., p. 103.
138

do tráfico é que cada vez mais a produção de cativos era uma atividade que se
justificava por si mesma, dada a sua natureza econômica, ou seja, lucrativa:

Em Angola, o Estado colonial português não foi capaz de levar adiante o


projeto de colonização pragmática implementado com êxito do outro lado do
Atlântico. Afirma-se que isto ocorreu, pois o Estado lusitano atendendo ao
‘sentido’ da colonização mercantilista, se esforçou para criar ali uma
economia complementar à brasileira, desestimulando qualquer atividade que
pudesse concorrer com a agroindústria exportadora do Brasil. Tal
complementariedade só poderia traduzir-se em uma estrutura voltada em
primeiro lugar para a exportação de escravos. E mais: dominando através do
controle do tráfico, pólos que se interligavam organicamente – a esfera
exportadora de escravos e a esfera consumidora dos mesmos -, o Estado
português lograva transformar o comércio negreiro num utilíssimo instrumento
de controle colonial.38

Portanto, o tráfico de escravos pode ser entendido como um mecanismo que


se reproduz estruturalmente na África e no abastecimento da força de trabalho no
Brasil. O papel dos traficantes era fundamental nesse processo. Os portugueses,
diferentemente de outros europeus, se estabeleceram e viveram na África,
mantendo relações regulares com os africanos que os abasteciam de escravos. Era
um tráfico afro-americano, não simplesmente, porque houve uma migração forçada
de seres humanos da África para o Brasil, mas porque desempenhava funções
importantes nos dois continentes. Por isso, o contato entre africanos e europeus em
diferentes lugares do continente africano criou uma nova dinâmica social que
permitiu a consolidação do tráfico como negócio legítimo e socialmente aceito.

Nem sempre a captura do escravizado derivava da violência dos outros, do


adversário ou do estrangeiro, muitas vezes ela era fruto da coação da sua própria
gente. Segundo Costa e Silva, a captura ocorria quando eles estavam cumprindo
suas tarefas ou se divertindo perto da aldeia:

Os assaltantes tinham que ser rápidos: sair da área, com a presa, o mais
rápido possível, antes que os parentes e a aldeia dessem pela falta. Se
possível, sem serem identificados, para evitar represálias. A prática, embora
viesse a multiplicar-se durante o tráfico transatlântico, era bem antiga e
possivelmente fora estimulada pelas trocas transaarianas.39

38
Manolo Garcia FLORENTINO, Em costas negras, p. 98-99.
39
Alberto da COSTA E SILVA, A manilha e o libambo, p. 110.
139

O que se nota é que havia um envolvimento das sociedades locais neste


processo, sendo que o tráfico já havia interferido profundamente na organização
social e política desses povos, especialmente naqueles que viviam no litoral.
Declinavam-se antigas formas políticas baseadas na manutenção de dependentes e
ascendera um tipo de Estado que floresceu escravizando e exportando seus
dependentes através do Atlântico, conforme afirma Florentino40. Podemos inferir que
no processo de captura, algumas das principais estruturas político-sociais bantú
foram esfaceladas. Uma delas é a separação da família:

Sabemos que era prática comum a escolha dos negros nos barracões pelos
oficiais dos navios. (...) indica um aspecto importante da experiência dos
escravos no tráfico: a divisão das famílias, que podia ocorrer já no litoral
africano, durante a escolha das peças a serem embarcadas. As
conseqüências disso eram marcantes para o resto da vida dos cativos. 41

No que se refere à separação da família, sabemos que a primeira célula


social bantú é a família elementar ou nuclear, mas que não se configura como a
verdadeira família bantú. A família nuclear não forma um grupo autônomo, vivendo
imersa e dependente do sistema de parentesco, da família alargada e da
comunidade, apesar de ser um elemento básico das estruturas sociais. É o pilar da
sociedade, mas isolada, individualizada e fechada sobre si mesma, não existe. A
verdadeira família bantú é a família alargada. Os princípios religiosos, éticos, sociais
e políticos exigem a permanência e a vivência de uma comunidade ou de uma
família ampla, pois a personalidade do ser humano de tradição bantú forma-se na
unidade comunitária. O ser humano só se realiza pela comunidade e na
comunidade. A família extensa é uma comunidade composta pelos membros da
família nuclear, aparentados por relações sanguíneas, que engendra a solidariedade
vertical e horizontal. Forma um conjunto ativo, composto por vivos e mortos, que são
descendentes de um antepassado comum. Conforme coloca uma de nossas
entrevistadas: “É importante porque são eles que, como eu posso dizer, são eles
que nasceram então sem eles você não podia existir, então essa família é
importante pra mim, porque senão eles não nasceu, eu não podia estar”42.

40
Cf. Manolo Garcia FLORENTINO, Em costas negras.
41
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 81.
42
O., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
140

A família alargada tem a função de se prolongar, de comunicar a vida


recebida dos antepassados, de onde emana a sua religiosidade. Converte-se no
centro de relações e de intercâmbios vitais, encontro do mundo visível e invisível, no
receptáculo da participação vital e no centro de unidade que dirige e impulsiona as
pessoas e as instituições sociais nas suas relações com os antepassados, os
parentes e os estrangeiros. As diversas famílias alargadas formam uma rede que dá
base às comunidades e às solidariedades, estruturando a sociedade que é
essencialmente comunitária. Tal afirmação está clara quando uma de nossas
entrevistadas fala a respeito do régulo, como chefe comunitário:

Do régulo? Nunca ouviu falar do régulo? Régulo é aquele que mais ou menos
tomava uma determinada área.
Um tipo de dirigente, de líder?
De dirigente, de líder dessa área, então quando faz essa bebida, ao chegar
ao esquema da bebida, primeiro as pessoas não podiam preparar bebida em
casa, beber antes que se bebam em casa do régulo, do dirigente, o dirigente
é que tinha que dar ordem para toda a gente beber, mas ultimamente já não
acontece isso, cada qual está na sua vida, mas antigamente era isso. Então,
antes de se beber em casa do régulo as pessoas tinham que apanhar essa
fruta, juntavam na casa do régulo, preparavam e o régulo, também, ia deitar
os defuntos, dizia: - Cuidai deste meu povo que eu estou a dirigir.43

A captura e a separação da família alargada e nuclear desestruturam


visceralmente a pessoa de tradição bantú, que perde, neste momento, a
possibilidade de dar continuidade à participação vital, uma vez que foram rompidos
os laços de solidariedade vertical e horizontal. Rompendo esses laços, a pessoa tem
desfeita a ligação com a participação vital, havendo também a quebra da corrente
vital. O ser humano tem, portanto, a sua força vital diminuída. Esgotam-se os
motivos pelos quais se vive, uma vez que dentro da tradição bantú, só se existe pela
e na comunidade. Se a pessoa não existe fora do grupo e o individualismo é um
conceito estranho aos bantú, o que se pode fazer? Questiona-se de que maneira o
dado comunitário e a família extensa podem ser recriados em novas terras. Costa e
Silva44 nos auxilia neste sentido ao afirmar que formar família, ainda que desse lucro
ao senhor e gerasse o risco permanente de vê-la desfeita, equivalia a construir um

43
S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
44
Cf. Alberto da COSTA E SILVA, A manilha e o libambo.
141

entorno de afeto, mitigar o desamparo e, sobretudo, romper com a solidão e


desmanchar a estranheza da nova terra para a qual o levaram.

Outro aspecto é o território. Para os grupos de tradição bantú, o território


demarca o espaço da estrutura social. A terra é um aspecto do grupo. Cada família
alargada e cada clã possuem territórios bem delimitados. “O território, a terra
permanecem inalienáveis porque são propriedade colectiva de vivos e antepassados
e herdado para usufruto. (...) a terra adquire um carácter sagrado, aumenta a coesão
social, e garante a consciência comunitária”45. O vínculo com a terra serve de
elemento de união à comunidade de sangue ou de parentesco. Existe uma
participação análoga entre o grupo e a sua propriedade. Pode falar-se de
participação coletiva entre o grupo e o seu prolongamento. A inserção do grupo no
espaço fortifica a coesão, a solidariedade e a consciência comunitária. Ao sair da
terra rompe-se a participação coletiva e a relação que se possuía com o território.
Isto ocorre segundo Miller, pois as pessoas de tradição bantú pensavam ser as
identidades sociais construídas em termos de laços familiares e de comunidades
locais. Portanto, ainda segundo ele:

... eles teriam capitalizado suas experiências compartilhadas ao longo das


trilhas – experiências que se estenderam por meses de sofrimento passados
juntos a cobrir cada vez maiores distâncias que tinham de viajar de suas
terras natais no remoto interior – e nos portos em que haviam começado a
Passagem do Meio (Travessia do Atlântico). Dessa maneira, apropriaram-se
das designações genéricas e geográficas que os europeus lhe davam, como
base para as comunidades que criaram sob a escravidão.46

Vemos, portanto, que mesmo de forma incipiente houve a reestruturação da


relação com a família e com a terra, mesmo antes do embarque. Após a travessia,
quando se chegou às propriedades dos senhores, ainda sob a escravidão, esses
elementos foram retomados, aspectos que veremos no capítulo quatro, quando se
busca criar um sentido comum de identidade, baseado na comunidade, na família e
no território.

45
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 140.
46
Joseph C. MILLER, África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850, In:
Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 67.
142

2.3.2 - A estada nos barracões e nos fortes47

Podemos notar que a economia colonial africana baseava-se fortemente no


tráfico de escravos, cada vez mais pelo aumento da demanda e pela dizimação dos
povos do litoral, sendo que a captura passou a ser feita cada vez mais longe dos
portos de embarque48. Portanto, tornou-se necessário reunir condições favoráveis
anteriores à travessia de milhões de homens, de mulheres e de crianças. Porém, de
toda a operação “... o ponto mais delicado era a etapa dos portos africanos (...)
esperas para completar a lotação, falhas nos estoques de alimentos e água,
sobrecarga nos navios, aumentavam exponencialmente as taxas de mortalidade
durante a travessia”49. Por isso, as fortalezas, os fortes, os barracões e os presídios,
além de suas funções usuais, cumpriam o papel de depósito de escravizados em
trânsito, seja para o litoral, seja para o navio negreiro. Segundo Rodrigues:

Grandes ou pequenos, próximos ou distantes da costa, os barracões


destinados ao confinamento de escravos eram campos férteis para a
disseminação de doenças e epidemias. Se os barracões cumpriam o papel de
armazéns de escravos e muitos se perdiam devido às moléstias provocadas
pela superlotação e pelos maus-tratos, não se deve desconsiderar que a
existência deles reduzia o tempo de volta dos navios negreiros, na medida em
que os capitães já encontravam os escravos reunidos – o que teve um peso
incalculável em números relativos ou absolutos na diminuição da mortalidade
durante a viagem transatlântica.50

Além dos estabelecimentos oficiais, havia outros lugares onde os traficantes


se instalavam e negociavam seus carregamentos com os chefes locais na época do
tráfico legal ou serviam de esconderijo na época da ilegalidade. Estes
estabelecimentos também tinham como função diminuir o tempo em que os navios

47
Segundo Rosa CUNHA-HENCKEL, Tráfego de palavras, p. 45: “É necessário, porém, levar em
consideração que o processo de mistura e modificação das línguas maternas dos africanos não foi
um processo que começou a ocorrer no Brasil e sim já na África, antes de serem embarcados.
Também é preciso assinalar que estas línguas não eram, necessariamente, a língua materna dos
escravos transportados, mas sim a língua veicular usada na região onde o comércio de escravos era
efetuado e onde eles eram armazenados antes do embarque”.
48
A questão dos locais de procedência dos escravizados que chegaram ao Brasil ainda é um tema a
ser estudado. Nas palavras de Carlos Eugênio Marcondes de MOURA, A travessia do Calunga
grande, p. 17: “... os locais de procedência de várias etnias, em torno das quais se estabeleceu
grande confusão, posto que, muitas vezes, as designações dos povoados, aldeias e cidades de
proveniência dos escravizados ou os portos onde eles eram embarcados são interpretados como
nome dessas etnias, uma generalização sem cabimento e um dos temas sobre a história do afro-
negro e seus descendentes no Brasil que necessita de profunda revisão”.
49
Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 98-99.
50
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 70.
143

negreiros ficavam ancorados, o que, de certa forma, era conveniente ao tráfico: “Era
nesses lugares – os barracões ou feitorias privados – que muitos africanos
escravizados vindos do interior tinham seus primeiros contatos com os europeus ou
americanos que os levariam através do Atlântico”51.

Podemos entender que os barracões e os fortes eram espaços com


funcionamento próprio, constituindo um microcosmo, não só no momento em que se
encontravam lotados, mas também em outros momentos, como aqueles da
entressafra, quando eram preparados para receber um novo carregamento. Nos
barracões havia os escravizados domésticos que cuidavam da criação de animais e
da limpeza, consertavam e tomavam cuidado das armas. O trabalho era intenso
quando os barracões estavam cheios, mas nos intervalos entre a saída de um lote e
a chegada de outro, era preciso reparar os estragos provocados pelos cativos e pelo
tempo, classificar as mercadorias recebidas em troca dos escravizados, desinfetar o
solo dos hangares infestados de vermes, consertar as gamelas e os ferros, que
mantinham os escravizados presos, e reforçar as paliçadas.

Os grandes barracões da África Ocidental podiam abrigar de quatro a seis mil


escravizados, porém o número era variável, sendo mais comum a manutenção de
quinhentos ou seiscentos. O abastecimento das embarcações que zarpariam à
América era feito nos próprios barracões, o que indica que eles armazenavam
mantimentos e água, além do necessário para o sustento dos cativos à espera de
embarque. Apesar disso, a vivência dos escravizados pautava-se em outro modo de
ver esta experiência:

Meses havia, portanto, em que 1500 indivíduos deixavam para sempre sua
gente, sua aldeia, sua terra, empurrados para dentro dos tumbeiros. Outros
tantos indivíduos aguardavam encurralados nas cercanias da cidade, sendo
escolhidos, alimentados e, muitas vezes, sepultados ali mesmo. Cansaço
físico, mau tratamento no percurso terrestre, subnutrição e as doenças do
porto luandense ceifavam boa parte dos escravos forasteiros, arrancados do
platô Ovimbundo e de mais longe. Durante quase três séculos, multidões de
gente em pânico eram levadas acorrentadas do interior para ser enfiadas nos
navios que partiam de Luanda, maior porto negreiro de toda a história, sem
que os europeus ali presentes tenham deixado testemunhos desses fatos.52

51
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p.67.
52
Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 83-85.
144

Estas pessoas, que ficavam meses convivendo dentro do mesmo barracão,


tinham origens étnicas diferentes, podendo ser até mesmo rivais.
Independentemente disso, a convivência fazia-se necessária e era imprescindível
para a sobrevivência dentro de uma situação-limite. Na África Central atlântica, as
línguas bantú mantinham diferenças entre si, mas não impossibilitavam a
comunicação entre os povos. A comunicação entre os escravizados da África
Central teria começado ainda no trajeto entre o ponto de apresamento e o litoral,
pois mesmo a diversidade de línguas entre os cativos não teria impedido a troca de
idéias, uma vez que, como colocado no capítulo primeiro, os povos de tradição
bantú são provenientes de um mesmo tronco lingüístico. Um dos critérios que marca
a unidade cultural das zonas é o sistema de línguas com classes e a comunidade
evidente do vocabulário básico. A unidade cultural tradicional africana intensificou-se
com o tráfico de escravos e com o colonialismo, consolidando a chamada
comunidade de sofrimento. Havia um fundo cultural comum, que fecundou as
instituições africanas.

Como vimos, algumas das bases de sustentação das pessoas de tradição


bantú já haviam se esfacelado, porém a questão comunitária e criativa ainda se
encontrava presente. Não poderíamos supor que um primeiro diálogo cultural entre
as diversas tradições deu-se no momento anterior ao embarque? Conforme afirma
Vansina, a visão de mundo transcultural litorânea foi absorvida pelos escravizados
desde o momento de captura e da caminhada em direção ao litoral até o momento
de espera para o embarque dentro dos fortes e dos barracões:

Os dados existentes mostram que entre o tempo de sua captura e o momento


de seu embarque, ou melhor, até sua chegada, a maioria dos imigrantes
provenientes do interior aprendeu Congo, Quimbundo ou Umbundo, e com a
aquisição da língua veio também a familiaridade com a cultura litorânea: uma
única cultura, na medida em que ao longo desses anos Congo e Quimbundo
influenciaram fortemente um ao outro, assim como o Quimbundo e
Umbundo.53

Sabemos que os povos de tradição bantú empreenderam uma migração pela


África em um tempo bastante antigo, conforme visto no capítulo primeiro. Durante
essa migração, conservaram características originais e intercambiaram aspectos

53
Jan VANSINA, Prefácio, In: Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 8.
145

culturais. Neste sentido, conforme afirma Slenes54, há razões para pensar que as
pessoas de tradição bantú, quando misturadas e transportadas para o Brasil, não
demoraram em perceber a existência de elos culturais profundos, que estavam para
além da linguagem. Apesar das diferenças, eles guardavam uma identidade cultural,
que possuía uma estrutura sólida, que estava subjacente aos setores da vida,
fundamentando e motivando as manifestações existenciais. É uma forma de se
pensar em como elas começaram a se entender entre si. Neste sentido, para o
autor, é totalmente inadequado afirmar que entre os povos de tradição bantú a
comunicação só teria se iniciado depois da viagem ao Brasil, com o aprendizado de
um idioma europeu ou de uma língua pidgin (linguajar simplificado). Segundo Miller:
“As distinções subjacentes entre as línguas africanas, não as suas amplas
semelhanças, forneceram o ponto de partida para colaborações efetivas, se não
também para sentimentos de grupo”55.

Cabe, portanto, falarmos a respeito da palavra dentro da tradição bantú, pois


uma vez estabelecida a comunicação através da palavra, novas formas de
solidariedades, de saberes e de fazeres estavam se constituindo. A tradição bantú
expande-se e permanece pela palavra, fundamentando-se na oralidade. A palavra
tem primazia e nada se mantém nem vive sem ela. A palavra é como um símbolo
eficaz, capaz de produzir efeitos e influir em outros seres depois de contatá-los. Ela
realiza magicamente a participação vital. Sustenta a vida social e política e dinamiza
as expressões religiosas. Sem ela, nem os ritos vivificam, nem as ações mágicas
são eficazes. Uma vez dita, somente perde efeito pela eficácia de outra palavra.

Assim, mesmo os escravizados sendo considerados mercadorias, havia uma


atribuição de identidade e, portanto, uma humanização (mercadoria humana) por
aqueles que gerenciavam o tráfico de escravos. Podemos perceber isto, quando os
senhores exigiam escravizados jovens e bonitos, sendo eles os mais procurados
pelos compradores em qualquer porto. Além disso, requeriam escravizados
semelhantes, com as mesmas características físicas, pois um lote com muitas
diferenças dificultaria a venda em função de possíveis comparações:

54
Cf. Robert SLENES, Malungu, Ngoma Vem!: África coberta e descoberta no Brasil, Revista USP.
55
Joseph C. MILLER, África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850, In:
Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 49.
146

Essa exigência quanto à semelhança demonstra que os senhores talvez não


fizessem tábua rasa dos africanos recém-chegados; acredito ser esse um
indício de que eram reconhecidos como portadores de identidades definidas,
entre outras coisas, pelos traços físicos – e que os senhores, os traficantes e
os tripulantes sabiam disso.56

Portanto, diferentemente das outras mercadorias por eles transportadas, era


claro que os escravizados possuíam identidades próprias que ao mesmo tempo em
que os identificava, também os diferenciava, fato que também foi percebido pelos
gerenciadores do tráfico. Os oficiais sabiam que os africanos carregavam marcas
étnicas em seus corpos antes de deixarem seus lugares de origem. Esta identidade
também estava presente no nome de cada um, aspecto que foi modificado durante
aquilo que chamamos de pseudo-conversão ao catolicismo.

2.3.3 - A pseudo-conversão

Antes de ser feito o embarque, em grande parte das vezes, uma última ação
colaborava para que a pessoa de tradição bantú fosse transformada em
escravizada. Isso diz respeito à questão do batismo e, conseqüentemente, da troca
de nome:

Nas docas de Luanda e Benguela, milhares e possivelmente milhões de


escravos eram metamorfoseados em seres humanos. Eram batizados por um
padre que caminhava entre as vítimas infelizes, lançando primeiramente um
pouco de sal sobre a língua de cada um e depois espargindo água benta com
um hissope. Dando a cada africano uma tira de papel com um nome, o padre
dizia a cada um, “Seu nome é João, o seu é Francisco, o seu nome é Pedro”,
enquanto ia colocando um pouco de sal sobre a língua do cativo. Por fim, com
um aceno de mão, o sacerdote entoava “Agora vá, com boa vontade”.57

O fato de muitos serem batizados não atingia a grande maioria, uma vez que
era crescente o número de cativos que chegavam para serem embarcados, fruto dos
negócios oriundos das guerras e das invasões no interior distante. Apesar da
facilidade de pseudo-conversão ao catolicismo, notava-se que era mais difícil mantê-
los na fé, pois muitos eram conversos por conveniência e não por convicção:

56
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 117.
57
Roy Arthur GLASGOW, Nzinga, p. 59.
147

Muitos participavam regularmente da missa quando era celebrada –


freqüentemente milhares de pessoas corriam às capelas a céu aberto ou às
cruzes rurais para ouvir a missa ou recitar o rosário. Batizavam seus filhos,
dando-lhes nomes cristãos, usavam a cruz e se consideravam cristãos. No
entanto, também continuavam a visitar os túmulos de seus ancestrais e a
procurar por sorte, saúde e bênçãos.58

Tal fato apontava certa resistência às investidas lusitanas, sejam elas


militares ou religiosas. Porém, independentemente da resistência, seja ela passiva
ou ativa, esta pessoa passou a ser chamada, nomeada daquele momento em diante
pelo nome recebido no batismo, um nome ocidental. Porém, para as pessoas de
tradição bantú, o nome é parte constitutiva, que completa a pessoa, pois explica a
natureza própria do ser individual, mostra a sua realidade e descobre a sua
interioridade. Encerra alguma coisa da essência pessoal, até identificar nome e ser.
Faz parte da personalidade, revelando o ser da pessoa. O nome está carregado do
dinamismo vital presente na comunidade. A imposição de um nome obedece a
motivações que afetam vitalmente a pessoa e a comunidade. O recém nascido só se
torna um muntu quando o pai ou o adivinho lhe dá o nome ou o pronuncia. A união
vital do nome com a essência da pessoa entra no campo da magia, estando exposta
à interação vital:

Dar o nome a uma coisa ou pessoa, ou conhecer o seu nome secreto


equivale a descobrir a sua natureza. O conhecido fica, de alguma forma, em
poder ou pelo menos sujeito a possíveis acções mágicas do conhecedor.
Entre ele e o objecto ou pessoa assim conhecidos, brota uma relação vital
que propicia a inter-acção. O conhecido fica desamparado e vulnerável no
seu ser.
Como a palavra é poderosa e inseparável do pronunciado, quem sabe
pronunciar o verdadeiro nome de um ser, influencia-o e domina-o, actua
sobre a sua realidade profunda. Por isso se esconde o nome real.59

Caberia perguntar, portanto, como o escravizado, ao ser batizado e receber


um novo nome, lidava com a situação. Como fica a troca de nome? A adoção de
nomes de uma cultura por outra, cria uma contradição, uma violência, pois o nome
está ligado à cultura e é nela que o nome encontra a sua explicação e o seu sentido.

58
John K. THORTON, Religião e vida cerimonial no Congo e áreas Umbundo, de 1500 a 1700, In:
Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 95.
59
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 269.
148

Perder o sobrenome equivale a perder o verdadeiro nome, pois significa perder a a


linhagem e a família, portanto, é perder o clã:

É quase como se através do meu nome esse nome revelasse um pouco da minha
história.
Sua história é verdade.
Ou nem só a minha história, mas a história da minha família.
Exatamente, história da família é, é isso. Depois outra coisa que é
interessante, talvez possa saber é que os apelidos têm a ver com os
lauditórios.
Tem a ver com quê?
Lauditórios.
Que que é lauditórios?
Lauditórios é, como é que posso dizer: na chama-se tocozelas. Tocozelas é
quase que um poema que narra o que, narra o que, narra a honra e a
dignidade daquela família, ia, a partir daquilo talvez mostrou a sua elucidade
assim, nas primeiras conquistas fez dos primeiros e das pequenas, como eu
posso dizer, chefatura, chefaturas aí, porque foi havendo sempre conquista.
É quase como se fosse assim uma história, um conto...
Um conto, exatamente, e muitos nomes estão ligados a animais ou com que
esses primeiros grupos sociais das famílias se alimentavam ou admiravam a
força desses animais, a esperteza desses animais, então foram, foram
ligando, exatamente, seu apelido a esse tipo de animais. Por exemplo, os
tchaúques, estamos aqui os tchaúques. Os tchaúques, este no seu relatório
são considerados indivíduos ligados a caracóis e durante as guerras eles
alimentaram-se bastante de caracóis e isto é uma forma de os povos mais
fortes não lhes mandarem criar o gado.60

Poderíamos entender que, talvez, ao esconder o nome verdadeiro e se


relacionar a partir do nome recebido seria uma forma de preservação, uma vez que
ao escondê-lo a pessoa de tradição bantú deixa de estar vulnerável a ação de outro
ser? Não seria esta uma forma de resistência simbólica? O colonizador negou
categórica e abertamente os nomes locais. Face a esta recusa, o povo adotou a
prática de dar dois nomes ao mesmo indivíduo, fato que observamos em Maputo:
um nome (tradicional) usado em casa e na vida do dia-a-dia e um segundo nome
(ocidental) para o registro oficial e o batismo. Apesar da questão simbólica colocada
pelo batismo e da questão prática, no sentido de negar um nome local, não

60
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
149

podemos dissociá-lo do negócio do tráfico de escravos, da ocupação do território e


da expansão da doutrina cristã, uma vez que ele mascarava a existência social:

Se o catolicismo funcionava precariamente no atendimento dos fiéis que


habitavam a capital angolana, um de seus sacramentos transformou-se em
pomo de discórdia entre a administração colonial e os traficantes – o batismo.
Por lei, a obrigatoriedade de batizar os cativos africanos era bastante antiga,
vindo das ordenações manuelinas e filipinas e confirmada por determinações
posteriores. A legislação determinava que os negros deveriam ser
catequizados e batizados por sua própria vontade e que o senhor negligente
seria punido com multa ou perda do escravo.
O batismo dos cativos a serem exportados era pago por cabeça e realizado
nos barracões, e tornou-se a principal fonte de rendimentos para o clero de
Angola. Essa questão dividiu os traficantes brasileiros, os comerciantes luso-
africanos e o clero local, pois, até o embarque, muitos dos escravos batizados
morriam, revertendo o prejuízo para os traficantes. Nos barracões de Luanda,
os africanos recebiam o sacramento de forma coletiva. (...)
O batismo continuava a ocorrer coletivamente, sem instrução prévia, nos
lugares onde havia agentes coloniais portugueses na África – como em
Angola e Moçambique. Os demais escravos recebiam o sacramento quando
aportavam no Brasil ou, eventualmente, nos poucos navios negreiros que
levavam sacerdotes a bordo.61

Notamos, portanto, que a Igreja Católica era mais um agente que lucrava com
o tráfico de escravos, seja simbolicamente, abocanhando novas almas, seja
financeiramente, recebendo pagamento pelos batismos realizados. De qualquer
forma, a transformação da pessoa bantú em escravizado realizou sua última etapa
durante a travessia atlântica, travessia, essa, que carregada de simbolismo para
essas pessoas de tradição bantú, consolidou a constituição de uma nova identidade.

2.3.4 - O navio negreiro e a travessia do Atlântico (do Kalunga grande)

Com o incremento do comércio de escravizados, Luanda se transformou em


um grande porto negreiro. Durante três séculos produziu, importou e estocou
alimentos para sustentar os nativos que eram trazidos do interior e deportados para
o Brasil. O fluxo de cativos do interior dependia daqueles que podiam ser
alimentados até o embarque. Portanto, é possível afirmar que Luanda tornou-se um
lugar híbrido, onde existia uma multiplicidade de origens étnicas. Como exemplo

61
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 61.
150

deste hibridismo, temos a formação de línguas pidgins, fruto de uma comunicação


própria da transação do tráfico na costa africana, sendo também utilizada por
tripulantes e africanos a bordo dos navios negreiros.

O processo de escravização foi pautado por diversas revoltas, sendo que o


africano não aceitou passivamente a sua condição, como visto anteriormente. Esta
resistência se iniciava em território africano estendendo-se até a travessia,
envolvendo os chefes de estado, os comerciantes, os intermediários do tráfico e os
próprios escravizados. Porém, o momento de maior resistência dava-se no
embarque, já que a questão da morte estava efetivamente colocada.

Os grupos de tradição bantú são conscientes de que a morte deve se dar


desde que haja vida. Não há vida sem morte, que é um componente essencial do
ciclo vital: antepassados – comunidade – pessoa – antepassados. A morte é vista
como um fracasso na solidariedade, causando uma perturbação na participação
vital, conseqüência da fragilidade humana. Ela ocasiona uma desordem social, pois
a participação foi perturbada e a interação transtornada. Ela é dolorosa, o que
denuncia as ameaças à comunidade, pois, para eles, a morte sempre possuía uma
causa. É vista como uma viagem, que quando feita faz com que a pessoa se
encontre com os seus antepassados, já que os laços vitais não se rompem.
Morrendo, uma parte da pessoa deixa de existir, finalizando a realidade humana e a
sua plenitude. O ser humano deixa de existir como vivente, tornando-se um espírito.
Assim sendo, quando se morre acaba a vida biológica e a vida espiritual, porém
permanece a força vital que criou a pessoa. Há uma destruição do corpo, mas a
realidade fundamental, a personalidade permanece, não se deteriorando, como
vimos no primeiro capítulo.

O ser morto transforma-se em outro ser, existindo de um modo diferente, fruto


de uma mudança de estado. Algo se depreende, desaparece ou se liberta,
conduzindo a um novo estado do ser, a uma nova maneira de existir. A morte é
apenas outra modalidade da existência. Pela morte, a pessoa de tradição bantú
sabe que se nasce de novo, de outra forma:

Como mutação, trânsito e passagem, a morte não se opõe à vida, mas


“muda-se de vida” como conseqüência do optimismo existencial da
participação vital.
151

No pensamento banto, a morte, apesar de destruição e desordem, aparece


como um momento necessário da vida que brota no nascimento e culmina no
estado de antepassado. Entre “ser vivo” e “ser antepassado” dá-se uma
continuidade ontológica.62

A morte dos anciãos, rodeados de numerosa descendência e gozando de


bem-estar material, é a única que pode ser considerada natural. As mortes restantes
são anormais, pois a participação vital foi violentada. Além disso, só se tem uma boa
morte, quando se realizam os ritos segundo a tradição e a comunidade tem certeza
a de que o morto foi recebido pelos antepassados. O que podemos perceber é que
apesar da morte não ser vista como um mal para as pessoas de tradição bantú, a
forma como se morre pode ser considerada uma morte negativa, no sentido de que
não se morre no momento e na situação adequada, nem se faz os rituais
adequados. A pessoa corre o risco de não se tornar um antepassado, o que significa
morrer de fato, já que não será cultuada.

Durante o processo através do qual os africanos eram transformados em


escravizados, a travessia atlântica era considerada o momento mais difícil, seja pelo
seu significado concreto – o abandono da própria terra, da própria família, da própria
comunidade e a possibilidade real da morte – seja pelo significado simbólico – a
travessia do Kalunga grande, ou seja, a vivência simbólica da morte. Portanto, a
questão da morte esteve presente durante todo o processo de travessia do Atlântico,
concreta e simbolicamente. Concretamente, o que observamos é que:

... quando se iniciava uma viagem de volta aos portos americanos, muitas
vezes os tripulantes e parte dos escravos já haviam esperado durante muito
tempo no litoral africano pelo carregamento completo do navio. Essa espera,
que poderia durar meses, certamente debilitava todos os envolvidos nas
transações, e seus efeitos podem ter sido agravados pelo fato de que muitas
vezes era preciso percorrer mais de um porto africano para encher o porão de
um navio negreiro. A longa espera e o percurso feito com escalas ampliavam
o risco de exposição a doenças, que também era agravado pelos raros
cuidados médicos e higiênicos e pela má qualidade e pequena quantidade de
água e comida disponíveis. (...) Essas condições não se alteraram,
pressionando as taxas de mortalidade e morbidade e, por vezes,
neutralizando o papel da redução do tempo das viagens em função das
alterações técnicas.63

62
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 440-441.
63
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 157.
152

Segundo Alencastro64, muitas são as causas de morte em alto-mar. Ressalta-


se, no entanto, a desidratação, em função das altas temperaturas no navio, o que
gerava transpiração excessiva e falta de água potável para a viagem, problema
crônico em Luanda, que é uma área mal servida de poços e infiltrada de água
salobra. Havia também os surtos de escorbuto, que eram causados por uma
subnutrição dos africanos ao serem embarcados. Destacavam-se ainda:

Disenterias bacilares e amebianas, freqüentes entre os deportados, assim


como tipos mortais de anorexia e apatia – uma forma de banzo65 -, que os
negreiros ingleses denominavam mortal melabcholy, deriva da desidratação
continuada do corpo humano. 66

64
Cf. Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes.
65
Segundo Nei LOPES, Novo dicionário banto do Brasil, p. 39: “BANZO [1], s.m. (1) Nostalgia mortal
que acometia negros africanos escravizados no Brasil. / (2) adj. Triste, abatido, pensativo. (3)
Surpreendido, pasmado; sem jeito, sem graça (BH). Do quicongo mbanzu, pensamento, lembrança;
ou do quimbundo mbonzo, saudade, paixão, mágoa”. Ainda segundo Clóvis MOURA, Dicionário da
escravidão negra no Brasil, p. 63-64: “ BANZO. Estado de depressão psicológica que se apossava do
africano logo após o seu desembarque no Brasil. Geralmente os que caíam nessa situação de
nostalgia profunda terminavam morrendo. Atribui-se tal estado depressivo à saudade da aldeia
africana da qual provinham, de modo que o banzo atingia somente a primeira geração de escravos,
isto é, aqueles diretamente importados da África. Há, porém, quem explique o banzo sem recorrer a
causas psicológicas, alegando que os africanos assim ficavam porque já estavam contaminados,
antes de embarcar, pela “doença do sono”, enfermidade decorrente da picada da mosca tsé-tsé. No
entanto, não nos parece muito plausível essa hipótese, sendo preferível a explicação da depressão
psicológica, mesmo porque muitos dos escravos acometidos de banzo terminavam suicidando-se, o
que não ocorreria no caso da doença do sono. (...) Era, portanto, uma síndrome psicopatológica que
somente se manifestava no escravo em decorrência da sua situação de homem que era corrente de
relações escravistas”. Gostaríamos de destacar dois aspectos sobre as citações acima. O primeiro diz
respeito ao fato de se levantar a hipótese de que o escravizado era passível de ter depressão,
portanto era um ser humano. O segundo refere-se à própria depressão que pode ser entendida como
uma introversão de energia psíquica. Significa que a libido está sendo congestionada pelas
dificuldades da existência. Essa introjeção conduz à recuperação de possibilidades não aproveitadas
e às elaborações anteriores de problemas represados, mas também a uma autêntica renovação.
Portanto, ao se deprimir o ser humano tem a possibilidade, ao sair de determinada situação, de
encontrar soluções criativas para as situações conflituosas que vivem. Tal situação nos remete à
questão da utopia e da consciência antecipatória, pois em todo presente, mesmo no que é lembrado,
há um impulso e uma interrupção, uma incubação e uma antecipação do que ainda não veio a ser.
Portanto, segundo Bloch, a concepção e as idéias da intenção futura são utópicas, no sentido do
sonho para frente, da antecipação: “Assim, portanto, a categoria do utópico possui, além do sentido
habitual, justificadamente depreciativo, também um outro que de modo algum é necessariamente
abstrato ou alheio ao mundo, mas sim inteiramente voltado para o mundo: o sentido de ultrapassar o
curso natural dos acontecimentos” (Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 22). Não é isto que
vemos no desembarque de escravizados no Brasil, quando tendo sobrevivido à experiência
diaspórica criaram em solo brasileiro as formas novas e criativas de lidarem com a situação que se
apresentava? As religiosidades afro-brasileiras não seriam, também, o resultado da superação do
banzo?
66
Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 253.
153

A tendência de queda do número de mortes que ocorreu depois de algum


tempo foi conseqüência não só das melhorias desencadeadas pelo avanço da
tecnologia, o que fez com que as viagens se tornassem mais curtas, mas
principalmente pelo fato de serem embarcadas pessoas que tinham condições
físicas mais adequadas de passar pela experiência da travessia.

Já no que se refere à morte simbólica, havia uma crença entre os


escravizados de tradição bantú de que um destino horrível os esperava na travessia
do Atlântico, uma vez que existia um significado simbólico para a travessia do mar.
Kalunga é entendida como a linha divisória que separava o mundo dos vivos
daquele dos mortos. Portanto, atravessar o Kalunga significava morrer, se a pessoa
vinha da vida, ou renascer, se o movimento fosse no outro sentido. A resistência ao
embarque podia ser algo que eles imaginavam ser o início de uma viagem sem
volta, a um destino que nenhum deles planejara ou desejara, até, porque, morrer
naquelas condições era considerada uma morte ruim:

Essa análise nos aproxima da compreensão do sentido da travessia


transatlântica e dos laços que uniam os escravos da África Central que a
faziam na mesma embarcação. Considerando que um dos alimentos básicos
da dieta dos embarcados era a carne salgada, e tendo em mente as
implicações do consumo de sal na visão de muitos povos de Angola, a
possibilidade de manter a pureza do espírito tornava-se limitada e agravava o
pânico quando se pensava no destino ao qual aquela viagem levava. Os
malungos estariam associados em uma vivência-limite, e a palavra teria,
assim, um significado profundo – baseado na experiência do tráfico na
cosmologia banta (...)
Para os homens e as mulheres que compartilhavam a crença de que seu
destino após a travessia da kalunga era morrer, embarcar num navio negreiro
era motivo de pânico. Não é exagero imaginar que esses homens
desejassem evitar a morte a qualquer custo. E não se tratava de uma morte
qualquer: alguns brancos que estiveram na África informaram que os negros
julgavam que essa morte seria o fim de um processo doloroso.67

Kalunga também significava a linha divisória ou a superfície. Portanto,


atravessar a Kalunga (simbolicamente representada pela água do rio ou do mar, ou
qualquer tipo de água, por uma superfície refletiva como de um espelho) significava
morrer. A cor branca simbolizava a morte (os seres humanos eram pretos, os
espíritos brancos). Fruto desta crença, do tráfico de escravos e da associação do

67
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 242-243.
154

oceano com a barreira da Kalunga identificava-se a terra dos brancos, mputu, com a
dos mortos. O tráfico de escravos é lembrado como uma forma de feitiçaria, pela
qual um grande número de africanos foi transportado à outra costa (margem), a
outro lugar. Por outro lado, o Kalunga também tinha um significado de retorno, uma
vez que se considerava que o lugar dos espíritos era junto com os vivos, com seus
descendentes e que, um dia, eles voltariam para ficar perto de seu povo e de sua
aldeia de origem, aspecto que veremos no sexto capítulo. Portanto, havia uma
crença de que:

... a pessoa poderia voltar da América para a África, através da kalunga, não
apenas como “alma”, depois da morte física, mas ainda durante a vida, se ela
guardasse sua pureza de espírito. (...) Como resultado de crenças desse tipo,
(...) escravos que abandonaram a esperança de voltar à África ainda nesta
vida freqüentemente recorriam ao suicídio através do afogamento, ou seja, da
imersão na água, numa espécie de “batismo” que liberasse a alma para a
travessia para a África. 68

O navio negreiro também se configurou como um espaço de diálogos e de


trocas culturais e religiosas durante a travessia, uma vez que havia encontros entre
diversos povos africanos e de outros continentes. Criou especificidades na forma
como as pessoas participantes deste processo expressavam a sua religiosidade.
Inicialmente, temos inúmeras filiações religiosas como o catolicismo e o
protestantismo, passando pelas religiosidades africanas, asiáticas e indígenas.
Dentro deste espectro religioso, temos vivências mais ou menos ortodoxas da fé.
Soma-se a tudo isto, um imaginário permeado pelo sentido mágico, fruto da
sociedade européia do século XVI, em especial da sociedade portuguesa.

Os escravizados teciam novas solidariedades através da palavra. Durante a


travessia, os falantes de língua bantú perceberam que a comunicação entre eles era
possível. Na viagem também apreenderam que o entendimento não ficava apenas
na superfície das palavras, mas alcançava significados mais profundos, uma vez
que havia semelhanças culturais. Se pudermos pensar na formação de uma
religiosidade híbrida dentro dos navios negreiros com empréstimos e com
negociações, também podemos perceber a existência de um núcleo fundamental e
estruturante para as pessoas de tradição bantú, aspectos dessa tradição que eles

68
Robert SLENES, Malungu, Ngoma Vem!: África coberta e descoberta no Brasil, Revista USP, p. 54.
155

tinham a intenção de preservar. Observamos, por exemplo, a recusa em aceitar a


medida preventiva contra a varíola dos terapeutas brancos, que é coerente com a
visão de mundo desses povos: a purificação e a cura estavam na própria doença.
Para as pessoas de tradição bantú, a terapêutica e a religião caminhavam unidas:

... terapêutica e ritualismo não se dissociavam nos costumes dos povos


centro-africanos, assim como ocorria com os da África Ocidental. Quando os
negros de Angola recusavam os remédios europeus e confiavam apenas em
“feiticeiros” de sua comunidade – que tratavam também de homens brancos
que ali viviam -, os curandeiros locais comprovavam sua eficácia e
conquistavam reconhecimento. A ação deles não parece ter sido
transformada de acordo com o desejo de alguns colonizadores portugueses.
Assim, os africanos que embarcavam em navios negreiros nos portos
angolanos e se deparavam com sagradores e barbeiros negros (ainda que
minas), de alguma forma poderiam identificar esses homens, suas práticas e
seus medicamentos rituais existentes em sua cultura e sentir-se mais seguros
do que quando entregues aos cuidados de cirurgiões ou médicos brancos.69

A reticência aos cuidados dados pela terapêutica branca estava


fundamentada no fato de que os povos de tradição bantú temiam as influências do
mundo invisível, porque a atividade permanente daquele mundo condicionou-lhes a
existência. A ameaça esteve presente como resultado da interferência nas leis vitais,
das quais dependiam o mundo visível e o invisível. A qualquer momento um
antepassado podia fazer algo que prejudicasse o ser humano, assim eles temiam o
castigo por infrações, ao mesmo tempo em que ficava aterrorizado pela ação dos
feiticeiros. Magia e doença, como vimos, estavam visceralmente ligadas.

Apenas para relembrarmos a magia bantú é colocada em ação quando


alguém especializado consegue captar e colocar a seu serviço forças vitais, quer do
mundo visível, quer do invisível, utilizando-as no ataque e na defesa.
Eminentemente prática, a magia é a concretização do poder de um especialista que
se apropria e atua sobre e com o dinamismo vital. A influência mágica do dinamismo
vital pode ser dividida em três regras: a força inteligente pode influir diretamente nas
forças dos seres inferiores não inteligentes; pode fortificar ou comer magicamente
outro ser humano, pois pode influir e se apropriar de sua força vital; e pode utilizar a
força de um ser não inteligente para influir noutro ser humano ou acontecimento. A

69
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 282.
156

força, uma vez dirigida, atua, a não ser que outra força superior neutralize-a ou
ultrapasse-a. Essa força, quando maléfica, torna-se feitiço, como já vimos.

Apenas para recordar, a magia é religiosa, uma vez que faz parte deste
universo e uma vez que coloca fim à desordem e aos abusos das forças vitais
desencadeadas, gerando a tranqüilidade e a harmonia do ser humano e da
comunidade. É parte constituinte da lógica da estrutura sócio-religiosa. A doença,
dentro deste entendimento de mundo, é provocada por um agente mágico, por uma
força vital que prejudica. Muitas doenças têm sua origem em comportamento imoral,
transgressão de tabus, descuido dos deveres religioso-cultuais, atentado contra a
solidariedade e faltas éticas. Também se atribui a culpa aos feiticeiros e às pessoas
da comunidade que manejam a magia destrutiva. A explicação da doença sempre é
espiritualizada, tendo um valor simbólico negativo, pois é sinal de perturbação social,
sinal de perturbação na participação vital.

A ação de recusa da terapêutica branca pode ser vista dentro deste sistema
simbólico. Uma pessoa que não tinha conhecimento das causas da doença não era
capaz de curá-la, ou seja, sua ação não era eficaz. O navio negreiro, portanto,
apresentou-se como o ponto culminante do processo de transição vivido pelos povos
de tradição bantú, não só pela angústia que causava, mas também pela
possibilidade de renovação criativa que insinuava, intensificada pelos diálogos
culturais e pelos processos de hibridismo, que falaremos a seguir.

2.3.5 – A chegada ao Brasil

A religiosidade bantú não chegou pura da África, já que, desde o século XV,
houve o contato entre africanos e europeus. Além disso, na chegada ao Brasil,
também aconteceu o encontro deste grupo com a população indígena que aqui vivia.
O encontro entre diversas etnias africanas também ocorreu, conseqüência do tráfico
luso-brasileiro, que segundo Carneiro70, agrupou africanos das mais diversas
procedências, o que possibilitou a fusão de diversas expressões religiosas, a
formação de outras e a extinção de outras tantas. Na maior parte das vezes, não foi
possível aos africanos escravizados permanecerem com indivíduos que falavam sua
língua, eram de sua etnia ou de sua família, como já visto neste capítulo.

70
Cf. Edison de Sousa CARNEIRO, Religiões negras.
157

Altas taxas de mortalidade caracterizaram o tráfico atlântico, fruto das


inúmeras mortes que ocorriam nos navios negreiros. Aqueles que chegavam ao
Brasil com vida, normalmente estavam em péssimas condições de saúde: magros,
debilitados, com problemas de pele e, por vezes, com doenças mais graves. Antes
de ocorrer a venda desses escravizados, eles, mais uma vez, ficavam em galpões
próximos aos portos brasileiros, para recuperar peso e aparência. Tal procedimento
era fundamental para garantir bons negócios. Com o fluxo intenso de navios
negreiros, as cidades portuárias, em especial o Rio de Janeiro, nos séculos XVIII e
XIX, caracterizavam-se como cidades de grande insalubridade, lugares propícios ao
surgimento e à manutenção de diversas doenças, tais como: tuberculose, disenteria,
varíola, tétano e malária. Tal situação fazia com que, muitas vezes, os escravizados
morressem ou se debilitassem, ainda mais, após o desembarque, conforme afirma
Rodrigues71.

Ainda segundo este autor, a formação dos mercados de escravos tinha como
objetivo solucionar o costume dos escravizados recém-chegados da África ao
adentrar nas cidades, pois eles andavam pelas ruas com as moléstias citadas
anteriormente e além de tudo nus. Os mercados também se configuraram como um
local centralizado de compra e venda de escravos. Já vimos que a travessia
transatlântica era vista pelos escravizados como uma viagem para a morte. Quando
desembarcados, havia uma mudança nos seus sentimentos. Alegria, cantos e
danças eram indicadores de boa saúde, sendo uma forma de comemorar a própria
sobrevivência: “... para os africanos, rever seus conterrâneos vivos depois de terem
feito uma viagem na qual acreditavam que encontrariam a morte era motivo de
enorme alegria, o que explica a ausência de dor ou de desespero nessa ocasião”72.
O motivo de cantarem talvez fosse a certeza de que, vencida a atribulada travessia
do oceano, os que sobreviviam, e ainda tinham forças, podiam comemorar. No
desembarque, os escravizados tinham possibilidades de reencontro:

De qualquer forma, os africanos recém-chegados tinham em comum práticas


culturais dadas, no mínimo, pela língua e pela cosmologia. Cantar e dançar
nos mercados de escravos do Brasil eram demonstrações de que a

71
Cf. Jaime RODRIGUES, De costa a costa.
72
Ibid., p. 309.
158

identidade étnica ainda não fora perdida e que o reencontro era, no fundo, o
grande motivo da festa”73.

Porém, antes mesmo do desembarque, os processos de hibridismo já


estavam ocorrendo, sendo que novas solidariedades eram tecidas através da
palavra74, por exemplo, dentro dos navios negreiros. Precisamos lembrar, como faz
Slenes, que a escravidão que ocorreu para o Centro-Sul do país era bantú:

Enfim, se num primeiro momento, na travessia da África e do Atlântico, os


falantes de línguas bantu começaram a perceber que podiam trocar idéias
com outras pessoas “liminares” como eles – isto é, pessoas em trânsito de
uma sociedade para outra -, no Brasil eles se deram conta de que sua
liminaridade provavelmente iria durar para sempre.
Ao mesmo tempo em que as vias de acesso à nova sociedade provavelmente
não lhes pareciam muito abertas, os africanos no Brasil viam suas ligações
com seu continente de origem constantemente renovadas pelo tráfico.75

Durante a travessia, os falantes de língua bantú perceberam que a


comunicação entre si era possível, sendo que o entendimento e a possibilidade de
comunicação não ficavam apenas na superfície das palavras, mas alcançavam
significados mais profundos:

Sugeri que para muitos africanos esse processo iniciou-se, não na


experiência compartilhada da terrível travessia para a América, mas antes
disso, no suplício da viagem para a costa; e começou pela descoberta de que
a comunicação com os companheiros dessa viagem não era impossível. A
continuação ou rompimento desse processo, contudo, teria dependido da
experiência dos escravos no Novo Mundo, e das suas possibilidades de
encontrar outras afinidades entre si, para além da comunidade da palavra.76

No Brasil, perceberam que estavam sujeitos ao mesmo tipo de domínio e que


passariam a vida na nova sociedade como seres liminares. Com isso, teriam notado
a possibilidade de construir, a partir de uma herança cultural em comum, de uma
mesma tradição, uma nova sociabilidade: “... a palavra que os escravos detinham

73
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 312.
74
A título de consulta ver: Adélia Bezerra de MENESES, Do poder da palavra.
75
Robert SLENES, Malungu, Ngoma Vem!: África coberta e descoberta no Brasil, Revista USP, p. 56.
76
Ibid., p. 55.
159

em comum pode ter deixado de ser para eles apenas um significante, relevando
afinidades mais profundas, para tornar-se, ela mesma, um dos elementos
constitutivos de sua nova identidade”77.

Outra solidariedade que começou a ser desenhada ainda na travessia é a


reconstituição da idéia de família. Já vimos neste capítulo que o pior momento da
liminaridade era o momento da travessia pelos significados que ela carregou.
Malungo78 nos fala sobre o processo através do qual os escravizados descobriram-
se como irmãos e puderam, a partir disto, construir novas relações familiares:

Senhores de escravos e viajantes que vieram ao Brasil do século XIX


notaram a existência de um sentimento de solidariedade e companheirismo
entre os escravos que haviam compartilhado a experiência da viagem
transatlântica a bordo da mesma embarcação negreira. (...)
... “’malungo não teria significado apenas ‘meu barco’ e, por extensão,
‘camarada da mesma embarcação’, mas forçosamente também ‘companheiro
na travessia do kalunga’”. Para boa parte dos povos do Congo e de Angola,
“a cor branca simbolizava a morte; os homens eram pretos, os espíritos
brancos” e, por conseguinte, a terra dos brancos era a terra dos mortos. (...)79

Portanto, mais do que companheiro de viagem, malungo foi aquele que


compartilhou a vivência da transformação e da morte e que, juntos, puderam
renascer. Um dos primeiros laços sociais formados nos comboios, nas feitorias e na
travessia foi, principalmente, de natureza diádica, ou seja, entre duas pessoas. A
relação do parceiro a bordo tornou-se um princípio fundamental da organização
social, que durante um longo tempo moldou as relações sociais correntes. Segundo
Mello e Souza80, houve o estilhaçamento das relações familiares provocado pelo
tráfico, mas os africanos de tradição bantú reconstruíram em novas bases laços
fundamentais que uniam as pessoas, sendo a ligação entre malungo a primeira
77
Robert SLENES, Malungu, Ngoma Vem!: África coberta e descoberta no Brasil, Revista USP, p. 59.
78
Segundo Nei LOPES, Novo dicionário banto do Brasil, p. 135: “MALUNGO, s.m. (1) Companheiro,
camarada. (2) Nome com que os escravos africanos tratavam seus companheiros de infortúnio no
navio negreiro. (3) Irmão de criação (BH) – A etimologia tradicionalmente aceita prende-se a
vocábulos bantos correspondentes ao português “barco”: o quicongo lungu, o quimbundo ulumgu etc.
Nascentes faz derivar de um quimbundo “ma’luga”, camaradas, companheiros, que não confirmamos:
conhecemos, sim, no quioco, malunga, pl. de lunga, homem, marido, macho. Interessante analisar,
também, no quicongo: ma-lùngu, pl. de lùngu, sofrimento, pena, morte, dificuldade; na-lùngu, aquele
que sofre; e madungu, estrangeiro, pessoa desconhecida. A origem da palavra, então, na segunda
acepção poderia estar num cruzamento de todas essas idéias, expresso em algo como “aqueles
homens que não se conheciam e que sofreram no mesmo barco (o navio negreiro)””.
79
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 241-242.
80
Cf. Marina de MELLO E SOUZA, Reis negros no Brasil escravista.
160

alternativa encontrada ainda na travessia. A reunião de grupos de uma mesma


tradição ou de regiões próximas, pertencentes a um mesmo complexo social, foi
outra, gerando uma forma de recriar afinidades antes fundamentadas nas relações
de parentesco. Formaram-se vínculos essenciais no processo de redefinição de
solidariedades, fundados em relações de linhagens.

Tal fato deu a possibilidade de geração de novos tipos de princípios. A


maioria das religiões da África ocidental e central era permeável às influências
estrangeiras e tendia a ser agregadora em sua orientação para outras culturas, mas
manteve a organização baseada na família e na linhagem. O início de determinada
religião no novo mundo pode ser vista quando pensamos na idéia de uma pessoa
necessitada receber ajuda ritualística de outra, que pertencia a uma tradição
diferente. Agora, quando trabalhamos com os grupos de tradição bantú, sabemos
que havia diferenças, mas também uma série de semelhanças, que poderiam
implicar em laços mais profundos. Após esta troca cultural – a assistência ritualística
– já existia uma pequena comunidade com uma religião nascente. Os escravizados
acabaram por aceitar práticas culturais estrangeiras, o que implicou em uma
reformulação gradativa de seus próprios modos tradicionais de fazer coisas:

Com a destruição desses laços, a “bagagem cultural” de cada indivíduo sofre


uma transformação fenomenológica, até que a criação de novas estruturas
institucionais permita a refabricação do conteúdo, baseado no passado – e
muito distante dele.81

A heterogeneidade cultural inicial dos escravizados produziu entre eles uma


receptividade geral às idéias e aos costumes de outras tradições, ou seja, uma
tolerância especial às diferenças culturais. As religiosidades e as religiões afro-
brasileiras nasceram com um dinamismo fundamental e uma expectativa de
mudança cultural como aspecto integrante de seus sistemas. Dentro dos limites
impostos pela escravidão, aprenderam a valorizar a inovação e a criatividade
individual. O compromisso com uma nova tradição desde o início incluiu a
expectativa do dinamismo contínuo, da mudança, da elaboração e da criatividade. “A
vontade utópica autêntica não é de forma alguma um almejar infinito, ao contrário:
ela quer o meramente imediato e, dessa forma, o conteúdo não possuído do
81
Sidney W. MINTZ; Richard PRICE, O nascimento da cultura afro-americana, p. 71.
161

encontrar-se e do estar-aí [Dasein] finalmente mediado, aclarado e preenchido”82. O


mundo está repleto de disposição para algo, de tendência para algo e de latência
para algo. A nova tradição significou um mundo mais adequado aos escravizados de
tradição bantú, que tinham o novo diante de si e que se importaram com aquilo que
se situava na linha de frente.

Um exemplo desta criação foi a aproximação dos africanos e dos afro-


descendentes da comunidade brasileira, que favoreceu a mestiçagem biológica
entre os grupos existentes, mesmo que feita através de relações hierarquizadas e de
poder desigual. A miscigenação83 combinou-se com a aculturação para dar lugar ao
processo social de mestiçagem. Práticas de favorecimento aos mestiços tiveram
curso no Brasil desde as primeiras décadas da colonização, ou seja, o
favorecimento dos mestiços em detrimento dos africanos. Dentro deste contexto
histórico, as pessoas de tradições africanas perceberam que as suas chances de
melhorarem suas condições de trabalho e de ganharem sua liberdade eram
relativamente menores que as dos mestiços. Por isso, eles acabaram por pautar
muito de suas vidas em projetos de assimilação, no sentido de aprender, com o
outro, formas de sobrevivência e de inserção social:

No volver da morte social padecida na África, o escravo é inserido no Novo


Mundo valendo-se de uma relação existencial mediatizada pelo trabalho
organizado pelo seu senhor. Dessa forma, para que o processo produtivo
colonial não se interrompesse ao agarrar novos fatores de produção, o
africano devia ser ressocializado no seu novo status de escravo luso-
brasileiro. Senhores, feitores e velhos escravos tinham de travar
entendimento com os recém-chegados para integrá-los, no mais curto prazo
possível, aos trabalhos de cooperação ampliada da agricultura comercial. Por
esse motivo, a cultura escravista preexistente na comunidade condiciona a
procura de novos escravos.84

82
Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 26.
83
Interessante notar que em Angola, por sua vez, houve miscigenação, mas não havia mestiçagem,
pois quando os pais se afastavam ou morriam, as mães retornavam às suas aldeias com seus filhos
mulatos, levando de volta à comunidade tradicional e à africanização. A sociedade luso-angolana
conservava povoados nativos, núcleos etnogênicos que absorviam os mulatos transformando-os em
negros. Segundo Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 353: “Entretanto, houve no
Brasil um processo específico que transformou a miscigenação – simples resultado demográfico de
uma relação de dominação e de exploração – na mestiçagem, processo social complexo dando lugar
a uma sociedade plurirracial. O fato de esse processo ter se estratificado e, eventualmente, ter sido
ideologizado, e até sensualizado, não se resolve na ocultação de sua violência intrínseca, parte
consubstancial da sociedade brasileira: em última instância, há mulatos no Brasil e não há mulatos
em Angola porque aqui havia a opressão sistêmica do escravismo colonial, e lá não”.
84
Ibid., p. 150.
162

Os escravizados tinham uma estratégia de se tornar cada vez mais ladino85


aos olhos dos senhores, mas, ao mesmo tempo, o grande volume do tráfico
combinava com as exigências de sua ocupação para obrigá-los a renovar
constantemente sua identidade bantú. É uma identidade africana que não era aquela
de suas origens, nem das de qualquer outro escravizado, mas uma identidade
paradoxal, no sentido de que atributos aparentemente opostos coexistiam em uma
mesma pessoa. Era um momento conflitivo, já que não podiam olhar para frente,
para o dia em que seriam assimilados pela sociedade, nem para trás para a vida
deixada na África, o que implicou no desafio da sobrevivência diária e cotidiana.
Desta necessidade, formaram-se laços com pessoas de outras origens,
redesenhando as fronteiras entre as tradições, com vistas a reconstruir uma
identidade bantú, fruto de um processo complexo.

2.4 - A identidade construída na liminaridade

Vimos, portanto, que desde o processo de captura no interior da África até a


chegada aos portos brasileiros, o ser humano africano passava por:

... cinco transações, no mínimo, desde sua partida da aldeia africana até a
chegada às fazendas da América portuguesa. Trocas pontuadas por etapas
mais ou menos longas. Até o final do século XVII, a maior parte dos
angolanos provém de zonas situadas a dois meses de caminhada dos portos
de trato. Adicionando-se a espera antes do embarque, que por vezes
alcançava cinco meses, e os dois meses necessários à travessia atlântica, se
constata que esses escravos tinham, no mínimo, quase um ano de cativeiro
ao desembarcar no Brasil.86

Segundo Alencastro, aspecto marcante de todo este processo de liminaridade


foi a tentativa de dessocialização e de despersonalização da pessoa capturada na
África e transportada ao Brasil:

85
Segundo Clóvis MOURA, Dicionário da escravidão negra no Brasil, p. 234: “LADINO. Nome dado
ao africano já instruído na língua portuguesa, na religião e no serviço doméstico ou do campo, para
distinguir do negro novo, recém-chegado, a que se dava o nome de boçal (V.). Segundo Pereira da
Costa, também ao índio em iguais condições se dava o mesmo qualificativo. Ladino é corruptela de
latino, equivalente a letrado, culto, inteligente; segundo Gonçalves Viana, o termo ladino foi aplicado
originalmente em Portugal e Espanha ao mouro bilíngüe e portanto inteligente, pois além do árabe,
ou berbere, falava o romance da Península, que nos séculos VIII e IX se chamava latino”.
86
Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 147.
163

Dado fundamental do sistema escravista, a dessocialização, processo em que


o indivíduo é capturado e apartado de sua comunidade nativa, se completa
com a despersonalização, na qual o cativo é convertido em mercadoria na
seqüência da reificação, da coisificação, levada a efeito nas sociedades
escravistas.87

É possível afirmar que os africanos durante o processo de captura até a


chegada ao Brasil vivenciavam uma situação limite, na qual eles, muitas vezes,
achavam que morreriam. Esta experiência marcou os escravizados, mesmo que ela
tenha sido amenizada pelo fato deles permanecerem vivos após a travessia e, no
Brasil, encontrarem pessoas da mesma origem e em situação semelhante.

Com este processo, estamos falando da possibilidade do ser humano de se


superar, de se transformar, morrendo para uma posição segura e cômoda para se
colocar ou ser colocado em uma situação desconhecida, que traz a sensação de
morte, ao mesmo tempo em que aponta para a possibilidade de transformação e de
renovação, logo, utópica. A transformação significa que se vinha pensando de certo
modo e, a partir de determinado momento, tem-se que pensar de uma maneira
diferente. Da vida sacrificada nasce uma nova vida, um novo caminho de ser ou de
vir a ser. Deve-se abandonar o velho e partir em busca de uma idéia germinal, que
tenha a potencialidade de fazer aflorar algo novo. No fundo, o que se empreendeu
foi a tentativa dos escravizados de se salvarem a si mesmos e aos elementos que
eles consideravam fundamentais da sua tradição e, para isto, houve o empenho de
um esforço fundamental. Segundo Miller:

As experiências recentes de sua escravização, a urgência de escravos no


Brasil e as culturas afro-brasileiras que eles encontraram nas ruas e nas
plantações teriam fornecido bases mais razoáveis para a formação de
comunidades próprias, em meio à nostálgica consciência de raízes de vários
locais da África. Caracterizações crescentes de culturas escravas no Sudeste
brasileiro genericamente como “bantos”...“88

Ao longo do caminho, o africano de tradição bantú descobriu novas


identidades sociais, que foram gestadas no momento em que se encontravam
presos e acorrentados com pessoas de origens culturais e lingüísticas diferentes da
87
Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 144.
88
Joseph C. MILLER, África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850, In:
Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 66.
164

sua. Foram obtendo um senso de familiaridade uns com os outros, dada a situação-
limite e criando alianças. Houve a ampliação de características da tradição bantú
durante a colaboração mútua, com vistas à sobrevivência. A violência, característica
da escravidão, forçou consolidações políticas e depurou identidades, “...
convertendo complementaridades difusas em convincentes “etnias” coletivas
defensivas e mesmo hostis”89.

Os africanos tiveram que sobreviver e recriar suas identidades no mundo


escravista brasileiro no qual foram inseridos. Para eles, iniciava-se um novo
aprendizado: ser escravizado em terras brasileiras. Apesar de terminado o processo
da travessia, observamos que tal situação marcou esta população em seus
significados e em suas dimensões, dando origem não só a um novo modo de existir,
mas também a uma nova religiosidade que começava a se formar:

... embora a escravização se iniciasse na captura, era ao longo do processo


que ele se transformava de traficado em escravo no sentido atlântico da
palavra – e, ainda assim, contando com a possibilidade de fugir ou rebelar-se
em diversos momentos desse processo. Nesse ínterim, os africanos
certamente percebiam as mudanças ocorridas quando trocavam de senhor
provisório, e é provável que essa percepção tenha marcado suas vidas após
a venda para senhores “definitivos” – que os punham a trabalhar em lavouras,
minas, manufaturas ou serviços domésticos. Uma vez tornados escravos no
Brasil, ainda que seus destinos e seus senhores pudessem mudar, o estigma
da escravidão vivenciada em terras estrangeiras ganhava outros contornos e
exigia outras estratégias de sobrevivência e de luta.
De costa a costa, as experiências africanas no tráfico permitem entrever
como, depois de serem capturados, vendidos e transformados em escravos,
os sobreviventes de diferentes idades e culturas recriavam suas identidades
em outras terras. Se essas experiências eram repletas de sofrimento, sair
delas com vida tinha um significado marcante.90

Portanto, o processo de construção da identidade bantú passou por um


processo contínuo, mas não acabado. Materiais étnicos, culturais e religiosos foram
sendo sincretizados e combinados segundo as exigências do momento, variando
conforme a demanda de afirmação das especificidades e ao mesmo tempo da sua
manutenção. Consumou-se a passagem e o escravizado, ao término desse
processo, permaneceu em um estado relativamente estável, tendo direitos e

89
Joseph C. MILLER, África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850, In:
Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil,p. 55.
90
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 316.
165

principalmente obrigações claramente definidas perante os outros. Esperou-se, a


partir de então, que ele se comportasse de acordo com determinadas normas e
padrões éticos, que vinculavam o escravizado a certa posição social. Mas...

Arrancados de suas comunidades de afinidades e de parentesco, patronos e


clientes, amigos e família, vizinhanças e parceiros comerciais, colocavam
uma intensa energia para encontrar lugares de respeito e dignidade entre
outros africanos com os quais estavam aprisionados na escravidão
americana. O próprio fervor de sua necessidade de reconquistar um sentido
de humanidade básico advindo de reconhecimento social fez deles
pragmáticos culturais, ansiosos para se apoiarem em quaisquer recursos que
considerassem efetivos nas circunstâncias desnorteantes nas quais se
encontravam.91

Vimos, portanto, que o encontro dos grupos bantú com outras religiões deu-se
bem antes de sua chegada ao Brasil, o que nos faz supor que as misturas e as
ressignificações simbólicas ocorridas no Brasil tiveram sua origem na própria África.
Desde o século XV, havia o encontro entre a cultura portuguesa e a tradição bantú,
permeado por relações de poder. Mas, chama-nos a atenção, o fato de que além
deste encontro, outros estavam se dando nos fortes e nos navios negreiros, mas
agora entre as diversas tradições africanas. Isto, é claro, influenciou as expressões
religiosas afro-brasileiras de tradição bantú, que puderam ser observadas no Brasil
durante a escravidão. Assim, a seguir, veremos tais expressões religiosas
ancorados nos processos-crimes eclesiásticos dos séculos XVIII e XIX, buscando
destacar os aspectos da tradição bantú presentes nelas.

91
Joseph C. MILLER, África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850, In:
Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 71-72.
166

CAPÍTULO III: A RELIGIOSIDADE BANTÚ DURANTE A


ESCRAVIDÃO NO BRASIL VISTA ATRAVÉS DOS
PROCESSOS-CRIMES ANTIGOS

1
Vou botar o seu nome na macumba
Eu vou botar / Teu nome na macumba / Vou procurar
uma feiticeira / Fazer uma quizumba / Prá te derrubar /
Oi, Iaiá! / Você me jogou um feitiço / Quase que eu morri
/ Só eu sei o que eu sofri / Deus me perdoe / Mas vou
me vingar / Eu vou botar! / Eu vou botar / Teu nome na
macumba / Vou procurar uma feiticeira / Fazer uma
quizumba / Prá te derrubar / Oi, Iaiá! / Você me jogou um
feitiço / Quase que eu morri / Só eu sei o que sofri / Que
Deus me perdoe / Mas vou me vingar / Eu vou botar teu
retrato / Num prato com pimenta / Quero ver se você
"güenta" / A mandinga que eu vou te jogar / Raspa de
chifre de bode / Pedaço de rabo de jumenta / Tu vai
botar fogo pela venta / Comigo não vai mais brincar / Eu
vou botar! / Eu vou botar / Teu nome na macumba / Vou
procurar uma feiticeira / Fazer uma quizumba / Prá te
derrubar / Você me jogou um feitiço / Quase que eu
morri / Só eu sei o que sofri / Que Deus me perdoe / Mas
vou me vingar / Asa de morcego / Corcova de camelo /
Prá te derrubar / Uma cabeça de burro / Prá quebrar o
encanto / Do teu patuá / Olha, tu podes ser forte / Mas
tens que ter sorte / Prá te salvar / Toma cuidado
comadre / Com a mandinga / Que eu vou te jogar.

Na situação anômica e liminar, resultante de um sistema de escravidão


totalmente diferente do conhecido na África, que ao invés de integrar o ser humano,
o exclui da sociedade a ponto de negar a sua humanidade, coisificando-o, ao
escravizado de tradição bantú restou criar novas formas de solidariedade num
mundo que era governado pelo colonizador. No Brasil processou-se uma forte
interação entre os grupos. Códigos e leituras da realidade foram compartilhados e
símbolos se interpenetraram e se influenciaram mutuamente num processo
permanente de trocas culturais, pois o africano escravizado:

1
Vou botar o seu nome na macumba, Zeca PAGODINHO, Dudu NOBRE. Millennium – Zeca
Pagodinho. n. 538224-2. Mercury – Polygram. São Paulo, s.d. CD-ROM.
167

... mesmo despojado de todos os seus bens materiais, arrancado da sua rede
familiar e dos seus espaços ancestrais, mantém-se portador de um imaginário
próprio, de uma carga simbólica agora fundamental para sua reorganização,
visando a domesticar uma natureza nova, restabelecendo um novo cosmos
no seu universo temporariamente desestruturado. 2

Durante o processo de diáspora aumentou-se a chance de apego às


tradições, mesmo que não tenha sido possível levar todos os elementos culturais,
mas apenas aquilo que pôde servir à sobrevivência física, emocional e cultural. O
que vamos observar é que a tradição bantú foi constantemente reinventada e
investida de novos significados por africanos. A religiosidade bantú, mesmo que
fragmentada, pôde doar aos escravizados uma identidade africana de tradição
bantú, resgatando ritualmente certos aspectos que foram esfacelados durante a
etapa de liminaridade vivida desde o processo de captura até a chegada ao Brasil. A
pessoa de tradição bantú foi inserida na sociedade brasileira, como escravizada,
tendo sua vivência marcada por tensões e por contradições, baseadas na violência:

A construção de instituições deve ter envolvido a consciência contínua da


desigualdade de oportunidades, do poder opressivo dos senhores e da
necessidade de gerar formas sociais que fossem adaptativas, mesmo nessas
condições imensamente difíceis. (...) a maneira precisa como se podia
recorrer a esse passado para gerar novas instituições dependeria, em parte,
das circunstâncias específicas em que se encontrassem os escravos no Novo
Mundo – o grau em que o regime escravagista controlasse, proibisse ou
interferisse na recriação de soluções institucionais, da estabilidade
proporcionada a determinado grupo de escravos em seu novo contexto, e
assim por diante.3

Dentro deste quadro que se desenhou no Brasil durante o período da


escravidão, a religiosidade pôde ser vista como um símbolo, uma vez que permitiu à
pessoa de tradição bantú tomar consciência de sua identidade, fornecendo um
instrumento eficaz para ela absorver e se compreender dentro de uma situação de
conflitos internos e externos. Veremos que, tal como outras expressões culturais, a
religiosidade foi reconstituída de uma maneira diferente da forma como ela se

2
Carlos SERRANO; Maurício WALDMAN, Memória D’África, p. 142.
3
Sidney W. MINTZ; Richard PRICE, O nascimento da cultura afro-americana, p. 93.
168

expressava nas regiões de tradição bantú na África, fruto não só da realidade


encontrada no Brasil, como também do momento histórico que estamos tratando.

Nenhum grupo é capaz de transferir de um local para outro, intactos, o seu


estilo de vida, suas crenças e seus valores. As características do meio humano e
material que o acolhe restringem a variedade e a força das transposições eficazes.
Quando trabalhamos com as tradições africanas, Mintz e Price nos alertam sobre
alguns pontos importantes no que se referem às possibilidades de transposição
cultural, que aplicamos à tradição bantú no Brasil: 1) apesar de haver certo número
de entendimentos e de pressupostos culturais subjacentes, as heranças culturais
africanas eram variadas; 2) os cativos africanos e seus descendentes
permaneceram como escravizados, o que fez com que houvesse uma diferença de
status e de poder, que significaram problemas de continuidade ou de reordenação
cultural, assumindo sentidos diversificados; 3) houve um número reduzido de
mulheres, o que afetou o desenvolvimento da sociedade colonial.

Veremos, então, quais foram estas novas formas simbólicas e, porque não
dizer religiosas, criadas pelos africanos de tradição bantú chegados ao Brasil,
levando em consideração o fato de que as expressões religiosas daquele momento
contavam com grande influência da Igreja Católica. Ao mesmo tempo em que houve
a apropriação de novos produtos culturais, também ocorreu a manutenção daquilo
que se configurou como fundamental. O que estamos querendo dizer com isto é que
alguns componentes da herança cultural podem também ser transmitidos
inconscientemente entre indivíduos ou, talvez, de geração para geração. Pode
ocorrer que alguns traços tenham desaparecido na superfície de uma tradição
específica durante certo período histórico. Após algum tempo, quando as
circunstâncias são favoráveis e a necessidade aparece, como nas mudanças sociais
incisivas, o traço perdido é reinventado. Em alguns casos, alguma coisa estava
sendo transmitida durante todo o tempo, como uma estrutura de modelos de
comportamento, a qual também contém, de uma forma condensada, a possibilidade
de uma nova manifestação do traço perdido.

No tempo da escravidão e da opressão, alguns traços culturais específicos


eram forçados a desaparecer, mas, de fato, eles não desapareceram. Eles apenas
foram retraídos para uma área segura da psique humana, transformados em um
169

conjunto de dinâmicas comportamentais. Desta forma, eles continuaram a ser


transmitidos de mães e de avós para as crianças através do trabalho, da forma não
verbal ou da consciência de um estilo de vida. Quando um momento histórico
favorável surgiu, o traço apareceu novamente, porém de outra maneira. A
implicação disso é que no Brasil existia uma grande quantidade de material cultural
africano debaixo da superfície visível:

Testes de compreensão cultural estão baseados na experiência de


entendimento de objetos, traços culturais, que está, ele mesmo, determinado
pela herança cultural. Como uma pessoa entende e o que ele entende
constituem expressões de seu repertório cultural. Compreensão cultural
normalmente trabalha com um processo inconsciente; a pessoa testada deve
ser largamente inconsciente de sua verdadeira herança cultural.4

Portanto, houve continuidade e mudança, uma vez que uma parcela


relativamente complexa da tradição pode ser levada, substancialmente intacta, de
um local para outro, havendo substituições materiais. As instituições surgidas em
qualquer população escravizada podiam ser vistas como uma espécie de arcabouço
em que era possível empregar, padronizar e transformar materiais culturais em
novas tradições. Cabe-se perguntar de que maneira o material cultural que foi
preservado contribuiu para a criação de instituições que os escravizados se
dedicaram, a fim de introduzir coerência, sentido e certo grau de autonomia à sua
condição. Com isto, estamos querendo dizer que continuou a se processar um
hibridismo na tradição bantú, iniciado já na estada dos fortes, como vimos no
capítulo dois, envolvendo princípios inconscientes da tradição, no que se refere à
sua estrutura profunda, que gerou padrões culturais específicos. Esses princípios
sobreviveram ao tráfico negreiro e regeram a escolha seletiva de elementos e a
adaptação das pessoas de tradição bantú, através dos atores sociais no Brasil.
Aparentemente criou-se uma nova língua, uma nova religiosidade, ou seja, uma
nova cultura. Porém, olhando com cuidado para o novo é possível apontar
elementos de permanência. Afirmamos que as expressões são novas, mas os
princípios inconscientes continuam os mesmos.

4
Gerhard KUBRIK, Angolan traits in Black music, games and dances of Brazil, p. 51. (Tradução
nossa)
170

As escolhas criativas possibilitaram o surgimento, o crescimento e a


capacidade de retomar a religiosidade africana e criar as religiões afro-brasileiras.
Portanto, as expressões religiosas e as religiões afro-brasileiras de tradição bantú
devem sua existência não a remanescentes passivos, mas a uma história de lutas,
nas quais a capacidade de recuperação deveu-se tanto às transformações
inovadoras forjadas em novas terras quanto à manutenção ou à preservação de
aspectos da tradição bantú.

Lembramos que a religiosidade bantú caracteriza-se por dois grandes eixos


fundamentais: o Ser Supremo e os antepassados. Essa religiosidade encontra-se
inserida na vida cotidiana, perpassando aspectos tais como a possessão, a
advinhação, as possessões, a medicina tradicional, a feitiçaria e o curandeirismo,
aspectos que, entendemos, foram mantidos. Tal religiosidade passou por intensos
processos de hibridismo com a chegada dos portugueses na costa africana e com o
contato com outros grupos africanos; seja nos fortes nos quais eles esperavam o
embarque, seja no próprio navio negreiro durante a travessiva para o Brasil. A Igreja
Católica, já na África, envolvida no projeto evangelizador que se articulava em torno
da catequese, teve papel fundamental na conversão ou na pseudo-conversão dos
africanos de tradição bantú que vivenciaram o processo de diáspora e, portanto,
marcou as novas religiosidades forjadas no Brasil.

A dinâmica do comércio atlântico negreiro tornou a reprodução mercantil dos


escravizados mais rápida e efetiva do que a reprodução demográfica. Por mais de
dois séculos, a economia brasileira se apropria da maior reserva africana de mão-
de-obra. Ao introduzir regularmente novos instrumentos de trabalho, o tráfico
negreiro foi além da simples reprodução demográfica, o que nos leva a pensar em
uma reposição cultural constante. Assim, neste capítulo, abordaremos os processos
de hibridismo religioso, que acarretaram uma vivência sincrética e ocorrerram desde
a chegada dos grupos bantú ao Brasil no século XVI até meados do século XIX.

Como estamos cobrindo um período muito extenso e não nos é possível


recontar a história dos grupos de tradição bantú, nos focalizaremos na relação entre
a Igreja Católica e a religiosidade bantú e afro-brasileira, nascente em São Paulo,
porque ao nos determos neste encontro observaremos os processos de
ressignificação simbólica vivenciados por esses grupos. Trabalharemos com a
171

instituição religiosa para explicar as sobrevivências bantú que existiram no Brasil


durante o período da escravidão. Abordar apenas uma instituição traz consigo
limites e possibilidades; limite no sentido de observar somente um dado da tradição;
possibilidade, pois temos a chance de nos aprofundarmos nesta expressão.

Ao falarmos a respeito de instituição, estamos acatando o conceito


desenvolvido por Mintz e Price5. Os autores afirmam que os escravizados criaram
novas instituições para atender a seus objetivos cotidianos. Instituição, para eles,
pode ser definida como qualquer interação social regular ou ordeira que adquira um
caráter normativo e possa ser empregada para atender às necessidades reiteradas.
No início da escravidão, apenas algumas instituições puderam ser desenvolvidas
pelos escravizados, isto é, somente aquelas cujo âmbito se restringia ao grupo
escravizado ou aquelas que serviam para a formação de vários tipos de vínculos ou
de pontes entre escravizados e homens livres. Apesar de serem vistos como bens,
era exigido dos escravizados que agissem de maneiras articuladas e humanas,
aspectos que veremos nos processos-crimes antigos. A classe senhorial sabia que
estavam lidando com semelhantes humanos, apesar de não admitir. A resistência se
dava de várias maneiras – passiva ou ativa – uma vez que os escravizados sabiam
que os senhores possuíam uma dependência em relação a eles. Assim, os
escravizados, de certa forma, afetavam e controlavam partes importantes da vida
dos senhores. Os processos de formação cultural não foram unilaterais, nem
homogêneos, levando-se em conta que os pontos de contato entre pessoas
escravizadas e pessoas livres e os tipos de instituições que foram desenvolvidas por
cada grupo buscavam favorecer seus interesses.

Para tanto, trabalharemos com os processos-crimes antigos6, do estado de


São Paulo, que nos falam a respeito dos crimes eclesiásticos, bem como de
algumas expressões religiosas que foram constituídas durante o período da
escravidão, o que é entendido como uma instituição, uma vez que, apenas de
maneira limitada, era possível aos africanos e aos afro-brasileiros de tradição bantú
vivenciar as suas crenças e a sua tradição. Neste sentido, o diálogo com as

5
Cf. Sidney W. MINTZ; Richard PRICE, O nascimento da cultura afro-americana.
6
A escolha pelos processos-crimes antigos se deu basicamente por dois fatores. Primeiro pelo fato
de não contarmos com a possibilidade do trabalho com a história oral, o que pode ser compensado
em parte pela documentação; e segundo porque os processos-crimes se configuram como um
acesso à religiosidade bantú existente em São Paulo na época, mesmo que de maneira indireta.
172

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707, publicado em 1719, se


faz fundamental, uma vez que este documento regeu e orientou a prática da Igreja
Católica no Brasil até, aproximadamente, meados do século XIX.

Trabalhamos com a idéia de que a forma como cada tradição vivencia a


experiência religiosa pode se dar de várias maneiras, comportando ambigüidades,
fragilidades e contradições, que nos parecem essenciais. O que podemos notar é
que é inevitável o hibridismo religioso em situações de necessidades culturais
extremas. Porém, o hibridismo, ao mesmo tempo em que possui ambigüidades,
também é a forma encontrada por determinada tradição de manifestar a sua
religiosidade e a maneira de dar sentido à realidade vivida. Portanto, a forma como
cada tradição expressa a sua religiosidade, normalmente, é polivalente, remetendo-
nos à necessidade de inseri-la dentro de um contexto histórico. Cabe, assim, neste
capítulo, fazermos um esforço no sentido de compreender o significado das práticas
bantú, expressas durante os séculos XVIII e XIX, reconhecendo que cada uma delas
é única, tendo como intuito reconstruir o sentido da vida da população bantú
diaspórica e escravizada.

Com isso, inicialmente, abordaremos a posição da Igreja Católica frente à


escravidão, principalmente no que diz respeito às justificativas teológicas utilizadas,
para que ela também usufruísse do trabalho escravo. No que se refere à confluência
entre Igreja Católica, escravidão e Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia
de 1707 nos deteremos em duas formas de entender o sujeito escravizado: como
sujeito passivo e como sujeito ativo. Entendemos ser de grande importância
abordarmos a posição da Igreja Católica frente à escravidão e de que forma ela deu
ao escravizado a possibilidade de ser entendido como um sujeito dentro da
sociedade com direitos e deveres, aspecto que é revelado através das Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707 e também no processos-crimes antigos.
É importante relembrar que ainda durante o transporte nos navios negreiros, os
traficantes e os comerciantes já percebiam diferenças identitárias entre aqueles que
eram transportados, logo estamos falando de sujeitos.

Feito isto, apresentaremos os documentos coletados no Arquivo da Cúria


Metropolitana de São Paulo, procurando estabelecer pontos de contato entre aquilo
que se encontra descrito nos documentos e as práticas religiosas bantú encontradas
173

na África. O que pretendemos fazer é ler os processos-crimes mediante uma chave


de leitura bantú. Por fim, falaremos a respeito de uma possível expressão religiosa
afro-brasileira e, portanto, também bantú – o calundu – expressão, essa, que não se
encontrava sob o legado da Igreja Católica e do Estado, diferentemente, por
exemplo, das irmandades negras7, que apesar de terem um aspecto de resistência,
estavam tuteladas pela Igreja Católica. O calundu é entendido como uma
ressignificação das práticas bantú existentes na África, ao mesmo tempo em que
pode representar algo que intitulamos, provisoriamente, de proto-umbanda. Com
isso, queremos afirmar que, mesmo de maneira desorganizada, o germe daquilo que
no início do século XX chamou-se umbanda, já se encontrava presente em São
Paulo e em outros bispados no século XVIII.

3.1 – A posição da Igreja Católica frente à escravidão

Na questão da escravidão, os primeiros religiosos chegados ao Brasil viram-


se frente à sua legalidade jurídica, à capacidade da Companhia de Jesus de possuir

7
Segundo Antônia Aparecida QUINTÃO, Irmandades negras, as irmandades tiveram seu apogeu na
época colonial e ainda tiveram algum destaque no período imperial. Na segunda metade do século
XIX, sob a influência do catolicismo romanizado, este tipo de associação foi marginalizado e
substituído por outras formas de organização, mais coerentes com os princípios do catolicismo
ultramontano. Segundo Ibid., p. 33: “As irmandades significavam para os negros a possibilidade de
resgatarem a sua humanidade e viverem a esperança de dias melhores. Em vista disso, constituíam-
se funções essenciais destas associações – proteger, socorrer e prestar auxílio a seus membros nos
momentos de dificuldades ou de doença”. Se por um lado a classe senhorial e as elites quiseram
transformar as irmandades em meio de controle e integração do negro numa sociedade escravocrata,
eles souberam transformá-la num espaço de solidariedade, de reivindicação social e de protesto
racial, salvando sua identidade e sua dignidade. A realização das festas religiosas traduzia a
preocupação da igreja em atrair os africanos e seus descendentes. Aceitavam seus costumes desde
que pudessem adaptá-los ao catolicismo, recebendo uma nova interpretação e um novo significado.
É o caso da tradição africana da sucessão hereditária dos reis, substituída nas irmandades pelo
sistema eletivo. Os reis passaram a ser eleitos pelos seus membros, o que lhes possibilitava maior
obediência de seus súditos. No final do século XVIII, as congadas, os batuques e as sambas ainda se
realizavam pelas ruas da cidade. Ainda segundo Ibid., p. 43: “As irmandades com seus santos negros
ofereciam aos bantos uma concepção de intermediários, que podia se adaptar a sua própria. De um
lado, a visão dos santos como intercessores entre o homem e Deus, identificava-se com a própria
idéia de que os ancestrais eram encarregados de levar seus pedidos a Zumbi. Em segundo lugar, a
existência de virgens negras e de santos negros podia fazê-los pensar que esses tivessem sido
ancestrais de suas raças, não apenas ligados ao circuito familiar, mas também à esfera nacional. A
noção de família para os bantos não estava circunscrita apenas ao núcleo constituído por pais e
filhos, mas estendia-se também aos defuntos, considerados seres atuantes”. Para ela, os negros
conseguiram transformar as suas irmandades em espaços de luta e de resistência. Segundo Ibid., p.
104: “Ao participar dessas associações, os negros poderiam reconhecer um significado para as suas
vidas, na medida em que estas estimulavam a solidariedade, possibilitavam o culto aos mortos,
garantiam um enterro aos seus membros, auxiliavam materialmente os irmãos mais necessitados,
compravam de uma forma cooperativista cartas de alforria e realizavam grandiosas festas coletivas”.
174

escravizados e ao título justo ou injusto dos escravizados adquiridos. Em 1574, a


Companhia de Jesus abriu mão de possuir escravizados em seus colégios na
Europa, porém, no Brasil e nas Índias, como não havia outro tipo de mão-de-obra
adequada, os jesuítas serviram-se dos mesmos, mas os tratando de maneira
diferente daquela que era feita pela classe senhorial. De qualquer forma, a
Companhia de Jesus aceitou a escravidão8 no Brasil: “Os Padres ou tinham de
renunciar à sua missão ou aceitar as condições econômicas que a terra lhes
oferecia. E a terra, como trabalhadores seguros, só lhes oferecia escravos.
Trataram, pois, de angariá-los, tanto da Guiné como da terra”9. Segundo Torres-
Londonõ10, nos séculos XVI e XVII não houve uma preocupação da Igreja Católica
em defender os africanos11, em questionar a legitimidade da escravidão ou em
definir formas de atendimento religioso12.

8
A temática da Igreja Católica e da escravidão é algo a ser estudado. O que se observa são posições
divergentes e polêmicas, sendo ainda necessário que se abra a documentação e que se busque uma
maior fundamentação para aquilo que está sendo escrito. De qualquer forma, vale a pena a leitura de
Flavius Lucilius Buratto NUNES, A senzala e o claustro a escravidão e a Ordem Carmelitana na
cidade de São Paulo no século XIX - 1840-1888.
9
Serafim LEITE, Assistência religiosa aos escravos negros, In: Serafim LEITE, História da
Companhia de Jesus no Brasil, tomo II, p. 347.
10
Cf. Fernando TORRES-LONDONÕ, Igreja e escravidão nas Constituições do Arcebispado da Bahia
de 1707, Revista Eclesiástica Brasileira.
11
Segundo Rosa CUNHA-HENCKEL, em Tráfego de palavras, no Brasil, a chegada dos jesuítas e a
implantação do governo-geral fizeram com que fossem estabelecidas normas para defender os
interesses das populações ameríndias, principalmente aquelas que haviam se convertido ao
cristianismo, limitando o número de ameríndios a serem escravizados. Além da proteção religiosa que
tinham, os ameríndios também estavam susceptíveis a outros fatores que dificultava a sua utilização
no trabalho das lavouras, tais como: fugas às regiões interioranas do país, surto de epidemias que
provocavam a sua mortalidade e inadaptação a um certo tipo de trabalho. Isto fez com que a
importação de escravos da África fosse vista como desejável e imprescindível, colocada oficialmente
em prática a partir do século XVI. Era verdade que já havia experiências bem sucedidas de utilização
de escravos em outras colônias portuguesas, como as ilhas de Cabo Verde e Madeira, de São Tomé
e Príncipe, além da exportação para o Império Espanhol no Novo Mundo. O escravo negro foi o
suporte da economia brasileira por todo o período colonial e pós-colonial em que durou a escravidão.
12
Apesar dos textos teológicos sobre a questão da escravidão no Brasil-colônia serem escassos,
HOORNAERT recupera alguns deles, nos dando alguns indícios de como o catolicismo presente no
Brasil, neste período, entendia a escravidão. Ao citar o texto teológico de Antônio VIEIRA, Sermão
vinte-e-sete do Rosário à Irmandade dos pretos em um engenho, fica claro que o cativeiro na
América é um meio-cativeiro, pois atinge apenas o corpo, uma vez que a alma encontra-se livre do
poder do diabo que governa a África. Por isso, os cativos devem aceitar a sua condição de
escravizados, pois ela representa a sua salvação. A escravidão em si não é questionada pela Igreja
Católica, uma vez que até o século XVIII a escravidão era considerada natural pelos Estados
(nações) e pela Igreja Católica, o que se questiona é a forma brutal de como os senhores de
escravos tratam-nos. Por outro lado, o texto de Manuel Ribeiro da ROCHA, Etíope resgatado,
empenhado, sustentando, corrigido, instruído e libertado, traz um discurso novo, o que mostra uma
grande sensibilidade pelo sofrimento do negro no Brasil, propondo, entre outras coisas, que o tráfico
seja declarado pirataria, que os escravos possam resgatar a sua liberdade depois de cinco anos de
cativeiro, que a escravidão é injusta, que os comerciantes negreiros estão em estado de condenação,
que os negros possam ter um casamento cristão, que seja dada liberdade aos negros que trabalhem
175

A vulnerabilidade dos índios ao choque epidemiológico constituiu um fator


restritivo à extensão do cativeiro indígena e, inversamente, facilitou o incremento da
escravidão negra. Além disso, antes do preparo dos roçados e das primeiras
colheitas, a má alimentação acentuava a morbidade e a mortalidade dos índios que
viviam em aldeias. Os africanos, por sua vez, haviam adquirido resistência às
doenças, como febre amarela e malária, tendo mais tolerância a elas do que os
índios. Tudo isto fazia dos africanos uma peça mais rentável: “... os índios pareciam
inaptos ao cativeiro colonial porque, entre outras razões, não possuíam uma
resistência imunológica similar a dos africanos”13. Além disso, havia uma
complementaridade entre o tráfico negreiro e as leis régias e bulas papais editadas
em favor da liberdade dos índios nos séculos XVI e XVII.

A presença de escravos dentro da Companhia de Jesus justificava-se, pois,


caso não os tivesse, caberia aos religiosos fazer os serviços domésticos, tais como:
limpar, pegar lenha e água e cozinhar, o que, de certa forma, dentro desta leitura
pragmática, retirá-los-ia dos seus afazeres espirituais:

A questão da legalidade não chegou sequer a levantar-se para os escravos


africanos. Sendo legal essa escravatura, a oposição dos Jesuítas equivaleria
a uma revolta, e nunca os Jesuítas se colocariam contra as leis. Se se
pusessem em oposição ao Govêrno que a legalizou, logo no início da sua
catequese, inutilizá-la-iam; antes mesmo de a iniciar. O exame jurídico da
escravatura ninguém pensou em instituí-lo nesse momento. Seria facto
estranho. Ela, que nos causa hoje tanto horror, era, naquele tempo, uma
instituição universalmente admitida, em cujas aras sacrificavam todas as
nações civilizadas. Aos Jesuítas nada mais restava que aceitá-la e... suavizá-
la.14

Como observamos na citação acima, o autor justifica a posição dos jesuítas


frente à escravidão, no sentido de afirmar que um posicionamento contra ela
representaria um aborto na sua missão catequética, missão pela qual tinham vindo

bem e com fidelidade e que seja dada sepultura cristã aos escravos. Porém, o que afirma Eduardo
HOORNAERT, em A leitura da Bíblia em relação à escravidão negra no Brasil-colônia (in inventário),
In: Eduardo HOORNAERT; Sebastião A. G. SOARES; Agostinha Vieira de MELLO; José COMBLIN,
Os negros e a Bíblia, p. 15, é que “... sempre houve uma corrente alternativa, silenciada e esquecida,
condenada pela memória oficial”. Tal trecho nos mostra que existiu uma corrente de interpretação
bíblica da escravidão que questionava, assim, como o comportamento dos próprios religiosos.
13
Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 138.
14
Serafim LEITE, Assistência religiosa aos escravos negros, In: Serafim LEITE, História da
Companhia de Jesus no Brasil, tomo II, p. 350-351.
176

ao Brasil. Essa missão pode ser percebida desde as primeiras relações


estabelecidas entre a Igreja Católica e os africanos, sendo que o objetivo da primeira
era converter os segundos. A conciliação entre escravidão e catequese dos
africanos afligia a Igreja Católica desde o século XVI, já que em 1574 existia a
presença de escravizados no Brasil, o que implicava na necessidade de catequese.
Porém, esta conversão enfrentava algumas dificuldades, tais como: a dispersão dos
escravizados pelas fazendas e pelos engenhos; a proibição, por parte dos brancos,
da entrada dos africanos e dos afro-descendentes nas igrejas; e a necessidade dos
mesmos de complementarem a sua escassa alimentação através da busca de
peixes, de frutas e de legumes aos domingos, o que os impedia de estar na missa.

Por outro lado, os escravizados, pertencentes aos religiosos, encontravam-se


em uma situação privilegiada, no que se referia à conversão, uma vez que lhes era
dada certa assistência moral e religiosa. Segundo a própria Companhia de Jesus, ao
fazer isto, ela prestava um serviço a toda comunidade, pois aos instruí-los, ajudava-
os e consolava-os, tornando-os mais tranqüilos, promovendo a paz, e fazendo o
Brasil prosperar na agricultura e na indústria açucareira:

Se os Jesuítas, vivendo em terra em que ùnicamente existia como base da


vida econômica a escravatura, a aceitaram sob pena de não poderem manter-
se na terra, contudo, procuraram, como puderam, colocar-se acima do
ambiente e, promovendo a salvação de todos, olharam para os seus escravos
com humanidade, considerando-os não simples coisas (res), mas seres
racionais, criados à imagem de Deus. Nem recusavam, a homens de cor,
graças que dificilmente concedem, e em geral, só a bemfeitores insignes. Um
dos modos práticos de elevarem os escravos, foi reconhecer nêles
personalidade jurídica e capacidade para possuírem bens. Davam-lhes
prêmios, a eles e aos filhos; e, aos que se portavam com maior fidelidade,
consentiam que criassem 10 cabeças de gado nas suas fazendas.15

Apesar dos jesuítas referirem-se aos escravizados como indivíduos e não


como coisas, informação a ser questionada, podemos perguntar-nos se os mesmos
não eram entendidos como pessoas de segunda ordem. Existiam idéias defendidas
e colocadas em prática pelos jesuítas, que se embasavam em um pressuposto
teológico a respeito do negro e da escravidão, formando uma doutrina comum, que

15
Serafim LEITE, Assistência religiosa aos escravos negros, In: Serafim LEITE, História da
Companhia de Jesus no Brasil, tomo II, p. 359.
177

foi aceita por quase todos ou pelo menos pela opinião pública16. A doutrina, como já
dissemos, tinha como principal preocupação os abusos, os castigos e as torturas
infringidos aos escravizados pelos seus senhores, uma vez que a escravidão em si
não era questionada17. Ocorre que tal doutrina estava baseada em alguns temas
bíblicos, tais como: a dupla criação; a maldição de Noé; o etíope, a transmigração
babilônica; Cam, a escravidão como meio de salvação; a penitência e a disciplina
necessária.

No que se refere à dupla criação, embasadas nos textos científicos escritos


por Darwin18, a Igreja Católica justificou a soberania dos brancos sobre os negros,
uma vez que, na luta pela sobrevivência, os brancos foram considerados mais aptos
e melhores, já que no:

... século dezenove o negro era assimilado ao pré-humano, o que resultou na


comparação dele com o macaco, sendo que na evolução darwiniana das
espécies o negro devia estar mais próximo do macaco do que o branco. Daí
resulta que o homem branco nada tem a aprender do negro que lhe é inferior,
genética e biologicamente.19

Em concordância à idéia de que os africanos eram inferiores, a venda de um


irmão foi vista pelos portugueses como um ato de caridade, uma vez que, com isso,

16
Segundo Eduardo HOORNAERT, A leitura da Bíblia em relação à escravidão negra no Brasil-
colônia (in inventário), In: Eduardo HOORNAERT; Sebastião A. G. SOARES; Agostinha Vieira de
MELLO; José COMBLIN, Os negros e a Bíblia, p. 21: “Talvez seja oportuno lembrar aqui que foi só
em 1964, no documento Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II, que a Igreja Católica condenou
formalmente a instituição da escravidão”.
17
Antonio VIEIRA, em Carta do Pe. Antonio Vieira a certo fidalgo, discutindo acerca da possibilidade
de um padre italiano ir ao quilombo de Palmares, dá certas razões sobre a impossibilidade de tal
empreitada. Chama-nos a atenção, a seguinte justificativa: “Quinta: fortíssima e total, porque sendo
rebellados e cativos, estão e perseverão em pecado continuo e actual, de que não podem ser
absoltos, nem receber a graça de Deos, sem se restituírem ao serviço e obediência de seus
senhores, o que de nenhum modo hão de fazer. Só hum meyo havia efficaz e effectivo para
e
verdadeiramente se reduzirem, que era concedendolhe sua Mag. e todos seus senhores
espontânea, liberal e segura liberdade, vivendo naquelles sítios como os outros Indios e gentios
livres, e que então os padres fossem seus Parocos e os doutrinassem como aos demais. Porem esta
mesma liberdade assim considerada seria a total destruição do Brazil, porque conhecendo os demais
negros que por este meyo tinhão conseguido o ficar livres, cada cidade, cada villa, cada lugar, cada
engenho serião logo outros tantos Palmares, fugindo e passandose aos matos com todo o seu
cabedal, que não he outro mais que o próprio corpo”. (J. Lúcio D’AZEVEDO, História de Antonio
Vieira, p. 374)
18
Cf. Charles DARWIN, A origem das espécies e a seleção natural.
19
Eduardo HOORNAERT, A leitura da Bíblia em relação à escravidão negra no Brasil-colônia (in
inventário), In: Eduardo HOORNAERT; Sebastião A. G. SOARES; Agostinha Vieira de MELLO; José
COMBLIN, Os negros e a Bíblia, p. 18.
178

auxiliava o escravizado, introduzindo-o no mundo da salvação através do batismo


administrado. O batismo e a entrada na vida cristã eram vistas como um valor
transcendente em relação ao paganismo e, portanto, uma forma de redenção do
africano. Somando-se a isto, tinha-se o fato de se entender que alguns escravizados
eram obtidos de maneira justa, pois eram considerados vencidos em guerras tribais
na África.

Já o texto presente no livro do Gênesis20, que fala sobre a maldição de Cam,


pode ser considerado como o gerador da ideologia escravista cristã, servindo para
justificar a existência da escravidão como instituição dentro do próprio corpo social.
Deu margem a formulação da idéia de que o mundo encontrava-se dividido em três:
os filhos de Jafé (europeus), de Sem (semitas) e de Cam (africanos), sendo que os
filhos de Jafé tinham o direito sagrado de utilizar os filhos de Cam para certos fins,
pois colaboravam com a redenção daqueles que eram marcados por dois pecados
originais: serem filhos de Adão e de Cam. O modelo bíblico de transmigração
babilônica fez com que o Brasil fosse entendido como algo pertencente aos planos
de Deus, comparável à Babilônia. Assim, os escravizados que chegavam ao Brasil
eram, ao mesmo tempo, castigados, para se apagar a maldição de Cam, e
iluminados pela fé. O Brasil, neste sentido, era comparável ao purgatório21:

20
O texto afirma que: “Benção e maldição – Os filhos de Noé, que saíram da arca, foram estes:
Sem, Cam e Jafé; e Cam é o antepassado de Canaã. Esses três foram os filhos de Noé, e a partir
deles foi povoada a terra inteira. Noé, que era lavrador, plantou a primeira vinha. Bebeu o vinho,
embriagou-se e ficou nu dentro da tenda. Cam, o antepassado de Canaã, viu seu pai nu e saiu para
contar a seus dois irmãos. Sem e Jafé, porém, tomaram o manto, puseram-no sobre seus próprios
ombros e, andando de costas, cobriram a nudez do pai; como estavam de costas, não viram a nudez
do pai. Quando Noé acordou da embriaguez, ficou sabendo o que seu filho mais jovem tinha feito. E
disse: “Maldito seja Canaã. Que ele seja o último dos escravos para os seus irmãos”. E continuou:
“Seja bendito Jafé, o Deus de Sem, e que Canaã seja escravo de Sem. Que Deus faça Jafé
prosperar, que ele more nas tendas de Sem, e Canaã seja seu escravo”. (BÍBLIA SAGRADA, Edição
Pastoral, Gênesis, 9: 18-27, p. 22)
21
Segundo Laura de MELLO E SOUZA, Inferno atlântico, no século XVI, as colônias portuguesas
passaram a ser vistas como terras nas quais se cumpriam penas, mas das quais se podiam voltar
com as penas expurgadas. A própria travessia marítima assumia contornos de exílio ritual, iniciando-
se, aí, o longo trajeto da purificação. Nas práticas dos degredados observavam-se um substrato
comum europeu e traços que gradativamente se alteraram e assumiram uma coloração específica
mais moderna. Havia uma matriz portuguesa, que aos poucos foi tornando-se uma síntese. Ainda
segundo IDEM, O diabo e a terra de Santa Cruz, Enxerga-se a colônia como domínio de Deus –
Paraíso – ou do Diabo – Inferno. Para o Novo Mundo se deslocaram as projeções do imaginário
europeu. É basicamente na relação com o sobrenatural que o homem da colônia paga tributo ao
Diabo e confirma seu caráter de humanidade diabólica. Segundo Ibid., p. 70: “Constatada nos hábitos
e na vida cotidiana, confirmada nas práticas mágicas e na feitiçaria, a demonização do homem
colonial expandiu-se da figura do índio – seu primeiro objeto – para a do escravo, ganhando, por fim,
os demais colonos. Para se esquivarem dos castigos rigorosos, os escravos negros recorriam a
“artes diabólicas””. Nos fins do século XV, a expansão ultramarina levou a cabo uma fusão
179

Ora, uma das grandes obras de Deus no “novo mundo” foi a de trazer os
negros, perdidos que estavam nas trevas do paganismo africano, à luz da fé
através da “transmigração babilônica que tem decerto um aspecto negativo
(filhos do fogo de Deus), mas, sobretudo um aspecto sumamente positivo
(irmãos da preparação de Deus).22

Portanto, dentro desta leitura teológica, para o escravizado, a sua salvação


encontrava-se dentro da própria escravidão, restando a eles se habituar a sofrer
com paciência e com humildade, pois, assim, poderiam ser redimidos dos pecados
existentes já na sua concepção. Tal idéia faz supor que para a Igreja Católica a
escravidão, enquanto instituição, não era algo a ser questionado, porém,
dependendo do lugar e do senhor, a forma como este indivíduo era entendido pela
instituição poderia se alterar. A evangelização, tanto no aspecto doutrinário quanto
no institucional, como nas formas mais próximas da religiosidade popular, contribuiu
para a reprodução social escravista.

Com relação às ordens religiosas, ao longo do século XIX, o Estado Imperial


reafirmou um procedimento legislativo, que restringia a atuação das ordens, mas
que começou a ser elaborado já no século XVIII: “Tais leis visavam o controle do
poder eclesiástico e criaram uma prática que interferiu no cotidiano interno dessas
ordens e em suas atividades junto às comunidades onde se estabeleciam”23. O
debate dava-se em torno da delimitação dos espaços do poder público e do poder
privado, sendo que o foco de combate do Estado Imperial eram as ordens mais
tradicionais, que com seu poder e sua influência, insistiam em instituir um estado

importantíssima para a história da cultura européia: articulou, recombinando, as formulações


européias acerca do Purgatório, da função purificadora da travessia marítima e do degredo enquanto
purificação – desdobramentos de um rito de passagem. O Novo Mundo era inferno por sua
humanidade diferente, animalesca, demoníaca e era purgatório por sua condição colonial. A ele,
opunha-se a Europa: metrópole, lugar da cultura, terra de cristãos. Na justificação teológica do
sistema colonial, o Brasil é colônia / purgatório. Portugueses cristãos escravizaram seus
semelhantes, teve grande peso o papel da Igreja Católica como formuladora e veículo de uma
teologia justificativa. O Brasil seria uma espécie de transição entre a terra da escravidão e do pecado
– África – e o céu, lugar da libertação definitiva. A escravidão é interpretada como uma pedagogia.
Natureza edênica, humanidade demonizada e colônia vista como purgatório. Estas foram as
formulações mentais com que os homens do Velho Mundo vestiram o Brasil nos seus três primeiros
séculos de existência. Nela, fundiram-se mitos, tradições européias seculares e o universo de
ameríndios e africanos. O habitante do Brasil colonial assustava os europeus, incapazes de capturar
sua especificidade. Ser híbrido, multifacetado, moderno, não poderia se relacionar com o
sobrenatural senão de forma sincrética.
22
Eduardo HOORNAERT, A leitura da Bíblia em relação à escravidão negra no Brasil-colônia (in
inventário), In: Eduardo HOORNAERT; Sebastião A. G. SOARES; Agostinha Vieira de MELLO; José
COMBLIN, Os negros e a Bíblia, p. 25.
23
Sandra Rita MOLINA, Na dança dos altares, Revista de História, p. 114.
180

dentro do estado. Este não era o objetivo do estado em formação. Portanto, a partir
da Independência do Brasil, inaugurou-se um momento de reordenação da realidade
social, religiosa e política existente no Brasil, mas que já se processavam durante o
século XVIII24.

As restrições às ordens justificavam-se por uma ideologia em construção,


baseada no discurso da idéia de nação e de cidadania. Se antes da Independência,
o clero era responsável pela educação moral, após isso, o clero passou a ter uma
participação política no processo de formação das leis do Estado que se constituía,
o que nos leva a pensar em uma relação quase visceral entre o Estado e o clero,
criando vínculos de dependência:

As funções desses religiosos estão então delimitadas: enquanto funcionários


remunerados pelo Estado, o clero deveria assegurar a educação civil do
cidadão e que se atrelava à idéia de educação moral. Apenas por meio do
ensino de princípios de moralidade contidos na doutrina cristã e nos exemplos
dados cotidianamente pelos sacerdotes é que a ordem social seria
preservada. Tratava-se da necessidade do Estado moderno que se construía,
ou seja, a secularização da vida civil dos brasileiros utilizando-se de uma
parceria já tradicional na dominação da população, ou seja, a instituição
católica.25

Gostaríamos, portanto, de nos atentarmos às Constituições Primeiras do


Arcebispado da Bahia de 1707 e de suas colocações a respeito dos escravizados,
uma vez que este documento dirigiu aquilo que estava dentro e fora da legalidade
durante o século XVIII e parte do XIX. O que observamos é que até a Declaração da
Independência, Igreja Católica e Estado26 não se constituíam em instituições muito

24
Segundo Carlos Eduardo de Araújo MOREIRA; Carlos Eugênio Líbânio SOARES; Flávio dos
Santos GOMES; Juliana Barreto FARIAS, Cidades negras, p. 136: “Na Constituição de 1824, o
catolicismo aparece como a religião oficial do Estado, a única que podia celebrar cerimônias públicas
e construir abertamente seus templos. Além disso, estabelecia-se o direito à liberdade religiosa, mas
apenas quando exercida privadamente, e sobretudo por estrangeiros livres, em geral brancos
europeus que residiam no Brasil”.
25
Sandra Rita MOLINA, Na dança dos altares, Revista de História, p. 117.
26
Segundo Antônia Aparecida QUINTÃO, Irmandades negras, p. 96, o Decreto de 07 de janeiro de
1890 do Governo Provisório, constituído em 15 de novembro de 1889, separou a Igreja do Estado e
constituiu a ampla liberdade de culto aos brasileiros: “Art. 2º - A todas as confissões religiosas
pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem
contrariadas nos atos particulares ou públicos, que interessem o exercício deste decreto. Art. 5º - A
todas as Igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade jurídica, para adquirirem bens
e os administrarem, sob os limites postos pelas leis concernentes à propriedade de mão morta,
mantendo-se a cada uma o domínio de seus haveres atuais, bem como dos seus edifícios de culto”.
181

diferentes, estando ligadas visceralmente. Logo, o direito canônico tinha em vários


momentos o efeito civil.

3.2 – A religiosidade no Brasil escravista e as Constituições


Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707

As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707 foram


formuladas dentro de um contexto bastante específico dado o catolicismo
implantado no Brasil. Apenas para recordar, o catolicismo implantado com a
colonização brasileira era basicamente leigo, social e familiar. Além disso, o
catolicismo brasileiro era sincrético, caracterizando-se pela mistura de diversas
tradições, dentre elas a portuguesa, a africana e a indígena, o que acarretou
religiosidades diversas que coexistiam em um todo específico e multifacetado
concomitantemente. Traços católicos, africanos, indígenas e judaicos misturaram-se
na colônia tecendo uma religião sincrética e especificamente colonial, que não pode
ser compreendida como remanescente ou como sobrevivente, pois era vivida e se
inseria no cotidiano das populações, respondendo, muitas vezes, às demandas
concretas do dia-a-dia:

Para a maioria esmagadora dos habitantes da colônia, as doenças, as forças


e armadilhas da Natureza apresentavam-se como indomáveis, irredutíveis. A
fé mostrava, por isso mesmo, contornos tradicionais, arcaicos, onde a
demanda de bens materiais e de vantagens concretas assumia grande
importância.27

A Igreja Católica se opunha não apenas à separação, mas também à liberdade de culto e pelo
nivelamento dela com as outras confissões religiosas, uma vez que até então era a religião oficial.
Também, a partir do decreto, propunha-se a sujeição dos bens da Igreja à lei da mão morta,
reconhecia a obrigatoriedade do casamento civil, a laicização do ensino público, a secularização dos
cemitérios e proibia a subvenções governamentais a qualquer culto religioso. Proibia a abertura de
novas comunidades religiosas e estabelecia a inelegibilidade dos clérigos e religiosos de qualquer
confissão para o Congresso Nacional. Na Constituição de 1891, os bens da Igreja não foram
atingidos, as ordens e congregações religiosas obtiveram ampla liberdade para entrar no Brasil e as
questões relativas à subvenção foram gradativamente regulamentadas. Ainda segundo Ibid., p. 97: “A
Igreja aceitou a separação, mas nem por isso conformou-se com o fato de estar fora do poder.
Utilizou todas as suas forças para garantir presença em todos os níveis e manter seu esquema
doutrinário, o que frustrou os esforços para a construção de uma sociedade laica e anticlerical. O
estado era laico, mas a sociedade deveria continuar católica”.
27
Laura de MELLO E SOUZA, O diabo e a terra de Santa Cruz, p. 109.
182

Assim, é dentro deste contexto que até 1707, a Igreja no Brasil se regia pelas
Constituições do Arcebispado de Lisboa. Não faltaram adatações e
complementações oriundas dos Sínodos da Bahia no tempo de D. Pedro Leitão
(século XVI) e de D. Constantino Barradas (século XVII); em parte das Constituições
e dos Regimentos das circunscrições eclesiásticas existentes. “Mas a cada dia que
passava saltava à vista a insuficiência da legislação canônica, pois no Brasil
surgiram novas circunscrições que reclamavam novas determinações jurídicas”28. É
importante ressaltar que quando surgiram as Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia, podemos pensar que elas aparecem tardiamente, já que a
Igreja Católica no Brasil já se encontrava instituída, com as suas especificidades, ao
mesmo tempo em que as práticas religiosas de caráter híbrido de africanos e de
índios, também estavam sendo formadas.

No século XVIII, o Brasil possuía um Arcebispado, a Bahia e seis bispados:


Rio de Janeiro, Pernambuco, Maranhão, Pará, Mariana e São Paulo e duas
prelazias: Goiás e Mato Grosso. As atividades sacramentais e evangelizadoras
tinham como ponto de referências as Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia, elaboradas em 1707, por D. Sebastião Monteiro da Vide, por motivo das
Constituições de Lisboa não poderem deliberar sobre muitos assuntos pertinentes
ao Brasil. Foram elaboradas para a direção e o governo do arcebispado e
promulgadas em 21 de julho de 1707.

Segundo Torres-Londonõ29, as Constituições Primeiras do Arcebispado da


Bahia de 1707 foram a grande compilação eclesiástica do período colonial, seguida
pelos bispos até meados do século XIX30. Em 1853 foram feitos novos adendos, nos
quais alguns livros, títulos e números31 foram revistos, como forma de responder às
mudanças ocorridas dentro da sociedade brasileira. Para o autor, este documento

28
Arlindo RUBERT, A Igreja no Brasil, p. 231.
29
Cf. Fernando TORRES-LONDONÕ, Igreja e escravidão nas Constituições do Arcebispado da Bahia
de 1707, Revista Eclesiástica Brasileira.
30
Segundo Arlindo RUPERT, em A Igreja no Brasil, D. Sebastião da Vide marcou para o dia 12 de
junho de 1707, na Bahia, festa do Espírito Santo, a reunião do Sínodo Diocesano. Concluído o
Sínodo, em 20 de junho, iniciaram-se as reuniões com procuradores do clero até 8 de julho. Neste
período ordenaram-se as Constituições Primeiras esboçadas no Sínodo. As Constituições Primeiras
só foram publicadas em 1719, em Lisboa, com nova edição em Coimbra em 1720. Além dos assuntos
referentes à parte jurídica, as Constituições Primeiras também tratam de outros assuntos pastorais,
por exemplo, a liberdade dos índios e o bom trato e catequização dos escravos.
31
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707 estão compostas por livros, que são
divididos por títulos, sendo que cada título encontra-se subdividido em números.
183

representou uma reflexão teológica e pastoral do Brasil colonial, buscando adaptar o


Concílio de Trento32 à realidade da sociedade brasileira:

Embora obrigassem somente os súditos da arquidiocese da Bahia, aos


poucos foram aceitas pelos bispados sufragâneos e outros, regendo a Igreja
do Brasil até o fim do período colonial e mesmo depois. (...) Outros bispos,
principalmente o do Rio de Janeiro, procuraram sanar lacunas por meio de
Cartas Pastorais e determinações por ocasião da visita canônica.33

As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia podem ser vistas, em


relação aos escravizados, a partir de dois enfoques. Um deles trata os escravizados
como um ser passivo, tal qual um objeto e, enquanto tal, os livros e os artigos falam
sobre eles, se referem a eles, mas não são dedicados a eles. Por outro lado, outros
livros e outros artigos não são designados diretamente aos escravizados, mas,
neles, eles são tratados como sujeitos, sujeitos que possuem uma postura ativa,
com deveres e, portanto, podem ser criminalizados por alguns de seus atos. O
escravizado tomado como sujeito é um fato que adveio dos costumes e não da lei.

Segundo Thompson34, na interface da lei com a prática, encontramos o


costume. O próprio costume é a práxis, pois podemos considerá-lo como práxis e
como lei. Os costumes devem ser interpretados segundo a percepção cotidiana,
porque os costumes se desenvolvem, são produzidos e são criados entre pessoas
comuns. Ainda segundo o autor, os costumes repousam sobre dois pilares – o uso
em comum e o tempo imemorial. Em casos extremos, o costume era nitidamente

32
Segundo Jean-Yves LACOSTE, Dicionário crítico de teologia, O Concílio de Trento engendrou uma
reforma profunda na Igreja Católica que valeu, de modo geral, até o Vaticano II, dando uma base
doutrinal que foi a forma como o catolicismo pensou e agiu durante quatro séculos. O Concílio de
Trento desdobrou por quase vinte anos: primeiro período – 1545-1547; segundo período – 1551-
1552; terceiro período – 1562-1563. “Em 4 de dezembro de 1563, T. se encerra com a aprovação do
conjunto dos textos precedentemente votados, confiando ao papa numerosas tarefas, como o
estabelecimento de um catecismo e a revisão dos instrumentos da reforma católica, breviário, missal
ou índex dos livros proibidos” (Ibid., p. 1756). Foi entendido que a doutrina e a reforma estavam
entrelaçadas, mas os trabalhos se iniciaram pelo fundamento teológico, abordando aspectos como: a
revelação, o pecado original, a justificação e a doutrina sacramental. O Concílio de Trento reafirmou a
doutrina católica diante das negações dos protestantes. “A teologia de T. é assim marcada por duas
características: dar uma resposta clara aos reformadores protestantes, uma preocupação sempre
presente no plano de fundo das discussões, mas também manter certa reserva em relação a toda
questão da escola. Essa posição prudente foi, certamente, a causa dos debates sobre a graça que
agitaram a Igreja durante os dois séculos seguintes, mas também permitiu ao ensinamento de c.
servir de referência doutrinal à Igreja para uma verdadeira reforma católica” (Ibid., p. 1759-1760).
33
Arlindo RUBERT, A Igreja no Brasil, p. 234.
34
Cf. E. P. THOMPSON, Costumes em comum.
184

definido, tinha força de lei e era uma propriedade. Em condições comuns, o costume
era menos exato: dependia da renovação contínua das tradições orais. Neste
sentido, o costume pode ser entendido a partir do conceito de hábito, que diz
respeito ao ambiente vivido, que inclui práticas, expectativas herdadas e regras que
não só impunham limite aos usos, como revelavam possibilidades, normas e
sanções tanto da lei como das pressões dos grupos. Diante disto, os grupos tentam
maximizar suas vantagens, cada um aproveitando-se dos costumes do outro.

A idéia dos escravizados serem criminalizados pelos seus atos surge da idéia
dos costumes. Apesar de formalmente serem entendidos como bens ou mercadorias
é inegável que em suas práticas cotidianas mostravam-se como sujeitos, com
identidades, portadores de saberes e de fazeres. Como o costume não era algo fixo
e imutável, o seu significado variava de acordo com os grupos em questão, no caso,
escravizados e Igreja Católica, o que, muitas vezes, mais do que o consenso,
gerava o conflito. O costume de criminalizar os escravizados pode ser definido como
uma lei ou um direito não escrito, que foi estabelecido pelo longo uso e pelo
consentimento dos grupos, sendo praticado cotidianamente.

Esta contradição nos ajuda a entender os processos-crimes antigos e, mais


do que isso, pode nos auxiliar a explicitar algumas práticas de influência bantú
presentes no estado de São Paulo durante os séculos XVIII e XIX. Abordaremos,
portanto, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia a partir de duas
facetas: uma que vê o escravizado como um sujeito passivo a ser convertido; e outra
que vê o escravizado como um sujeito ativo a ser controlado. O controle da
população escravizada ocorreu, pois, cada vez mais, as expressões religiosas da
vida cotidiana existentes no Brasil vinham sendo demonizadas e, aos poucos, se
expandindo da figura do índio para a figura do escravizado. “O Demônio representa
a oposição fundamental, dialeticamente relacionada com o ethos dominante, ao qual
se opõe virtualmente, freqüentemente como força de rebeldia”35.

A associação dos escravizados com o demônio pode estar nos falando de


uma ameaça percebida pelas classes dominantes – senhores de engenho e Igreja
Católica -, já que o comportamento das classes populares revelava-se através de
regras invisíveis, expressando-se de maneiras simbólicas. Não houve a percepção

35
Carlos Roberto F. NOGUEIRA, O Diabo no imaginário cristão, p. 12.
185

de que as ações cotidianas, os ritos e as crenças explicitados pelo costume não


estavam sendo mantidos por uma tradição, associada e arraigada às realidades
materiais e sociais da vida e do trabalho, que não se mostrava de modo direto? Não
poderia estar a preservar a necessidade de ação coletiva, do ajuste coletivo de
interesses, da expressão coletiva de sentimentos e de emoções dentro do terreno e
do domínio da sociedade da qual os escravizados participavam, servindo como uma
fronteira para excluir os diferentes?

As práticas religiosas africanas e afro-brasileiras poderiam ter gerado um


campo para a mudança e para a disputa, um lugar onde interesses opostos
apresentavam reivindicações conflitantes, uma vez que houve a transmissão da
tradição através das experiências sociais e da sabedoria comum que passaram a
ser notadas, apesar de todo esforço feito, desde a África, para acabá-la. As práticas
e as normas se reproduziram ao longo das gerações na atmosfera lentamente
diversificada dos costumes, através da tradição oral. Criou-se uma prática cultural
costumeira que não esteve sujeita, muitas vezes, em seu funcionamento cotidiano,
ao domínio ideológico da classe dominante.

A religião, seus símbolos e seus dogmas ocupavam espaço considerável nas


preocupações do ser humano colonial, sendo que as coisas estavam permeadas
pela magia. Num universo não racionalizado, tudo podia ser explicado pela ação de
forças sobrenaturais: Deus e/ou Diabo. Nenhuma delas parecia anormal e a
mentalidade popular aproximava uma da outra. A atribuição de grande força nefasta
e desorganizada ao Diabo permeava os discursos eclesiásticos. Segundo Mello e
Souza, a escravidão causava transtornos tanto aos senhores quanto aos
escravizados: os primeiros compactuando com os métodos africanas; os segundos,
mantendo suas práticas religiosas, consideradas satânicas. Para ela, a vida na
colônia parecia demonizada:

No cotidiano da colônia, Céu e Inferno, sagrado e profano, práticas mágicas


primitivas e européias ora se aproximavam, ora se apartavam violentamente.
Na realidade fluida e fugidia da vida colonial, a indistinção era, entretanto,
mais característica do que a dicotomia. Esta, quando se mostrava, era quase
sempre devida ao estímulo da ideologia missionária e da ação dos nascentes
186

aparelhos de poder, empenhados em decantar as parte para melhor captar as


heresias. O que quase sempre sobrenadou foi o sincretismo religioso.36

Cabe lembrar que os portugueses que chegaram ao Brasil tinham a figura de


Satã como algo profundamente marcante37, sendo que neste ambiente formaram-se
práticas mágicas e feitiçarias complexas e originais, que simbólica e praticamente
foram associadas à figura do demônio. Reprimindo-se a magia africana, cerceavam-
se as possibilidades de manifestação de uma tradição específica, que era a do
africano e do afro-brasileiro escravizado, sendo ameaçadora à ordem vigente. A
feitiçaria colonial mostrava-se estritamente ligada às necessidades iminentes do dia-
a-dia, buscando a resolução de problemas concretos: faina diária, brigas, conflitos,
ódios, amores, anseios de comunicação com outro mundo e espera de revelações
vindas do além. Avançando pelos séculos XVII e XVIII, o desenvolvimento do
processo colonizador propiciava maior interpenetração entre religiosidade européia,
africana e ameríndia.

Com isso, queremos dizer que as Constituições Primeiras do Arcebispado da


Bahia de 1707 foram elaboradas apenas no século XVIII, o que indica que, talvez,
antes disso, houvesse certa tolerância e, até mesmo, o incentivo da Igreja Católica
para outras práticas religiosas. Porém, precisamos pontuar que os vários momentos
históricos pressupõem mudanças de orientação e é certo que, a partir do século
XVII, apareceu a incompatibilidade entre certas crenças e universos religiosos,
mesmo que ainda houvesse certas concessões e facilidades para a manutenção de

36
Laura de MELLO E SOUZA, O diabo e a terra de Santa Cruz, p. 149.
37
Cf. Ibid., a representação européia do demônio não é alheia a transformação operada com o
advento do cristianismo medieval, que o coloca no lugar central da reflexão teológica da existência do
mal e do problema do pecado. Sempre que o cristianismo deixou marcas de sua influência, está
presente a crença no diabo. Segundo Luís Adão da FONSECA, Prefácio, in: Carlos Roberto F.
NOGUEIRA, O Diabo no imaginário cristão, p. 8: “Este de acordo com tradição cristã plasmada na
Idade Média, é espírito insinuador, de mil modos mascarado; ruidoso ou silencioso está sempre
37
atuante, nunca descansa; o orgulho e ódio dominam a sua incansável atividade” . O demônio é uma
criatura maravilhosa na sua inteligência e na sua vontade, existindo pela necessidade de explicar a
existência do mal e dar sentido aos permanentes dilemas da vida, buscando encontrar coerência
entre a fé num Deus único e os demônios herdados de ancestrais. Ainda de acordo com Ibid., p. 9:
“Sendo agente tentador, força o homem a optar, cria condições que o obrigam a decidir, o que, em
última análise, tem um sentido potencialmente positivo. Assim, a existência do demônio reveste-se,
para a humanidade, de dupla face: ele, o rival de Deus, transformado em inimigo do mesmo homem,
constitui-se – suma contradição – em criador de oportunidades de elevação moral”. De acordo com a
tradição cristã, os efeitos diabólicos são de ordem moral e, portanto, de desgraça, de sofrimento e de
morte, que não são agradáveis ao demônio. Em cada circunstância, tudo depende da opção
escolhida por cada um.
187

alguns elementos. Sobre as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia,


podemos afirmar que:

Através da catequese, das medidas normatizadoras e da ação do Santo


Ofício, a Igreja Católica, regulando a vida das pessoas, era capaz de definir,
criar e orientar atitudes e ações, formando verdadeiras consciências. Isso,
todavia, não era feito de forma mecânica, mas através de um lento processo
criativo, onde muitos fatores interagiam e novos elementos eram definidos e
reelaborados conforme as urgentes causas daquele momento.38

Para a Igreja Católica a causa urgente era batizar índios e africanos, já que o
batismo estava ligado ao seu projeto colonial, ou seja, à conversão religiosa. Para o
escravizado, o batismo era um fator imprescindível mesmo antes dele se integrar e
se mover em uma sociedade onde este ritual era uma iniciação ao mundo dos vivos,
mas também, dadas suas crenças, uma iniciação no mundo dos mortos – os
antepassados. O batismo “... para o negro abria-lhe a sociedade dando-lhe
condições de movimentar-se no seu interior e interagir ao lado dos outros indivíduos
que a compunham”39. Ao ser batizado, o africano ou o afro-descendente tinha a
possibilidade de receber um enterro digno, o que dentro do seu sistema de
significados simbólicos implicava na possibilidade de se tornar um antepassado,
conforme vimos no capítulo primeiro. A partir das perguntas feitas aos africanos
antes de serem batizados, vemos que o escravizado é visto pela Igreja Católica
como um pecador, condenado a insistir no erro e a manter uma relação íntima com o
demônio. As medidas normatizadoras, presentes nos processos-crimes, redefiniram
as novas práticas religiosas a serem combatidas e tentaram delimitar o espaço que
o demônio40 ocupava. A partir desta breve introdução, abordaremos as Constituições

38
Vilson Caetano de SOUSA JUNIOR, Roda o balaio na porta da igreja, minha filha, que o santo é de
candomblé, p. 152.
39
Ibid., p. 154.
40
Segundo Núbia Pereira de Magalhães GOMES; Edimilson de Almeida PEREIRA, Mundo
encaixado, o demônio é o aliado com o qual se estabelecem pactos, numa busca de anulação
temporária da ordem do mundo. A ele se pede riqueza, juventude, beleza, poder, numa tentativa de
desfazer o papel destinado à pessoa. A vitória do Mal sempre é provisória, já que à desordem
antecede uma nova ordenação, motivo pelo qual o demônio sempre é perdedor. O demônio, como
grande desorganizador, representa uma incompletude ou uma ruptura, indicativo de desarmonia e da
tentativa de retirar um elemento significativo do todo. Com uma função tão importante dentro da
sociedade era importante que o demônio ocupasse um lugar de destaque dentro do que é definido
como crime pela Igreja Católica.
188

Primeiras do Arcebispado da Bahia, através do entendimento do escravizado, seja


como ser passivo ou ativo.

3.2.1 – As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707 e o


escravizado como ser passivo, alguém a ser convertido

Segundo Torres-Londonõ, nas Constituições Primeiras do Arcebispado da


Bahia encontram-se vinte e seis (26) números de mil trezentos e dezoito (1318), que
fazem referências aos escravizados e à sua condição em relação à Igreja Católica.
Para a Igreja Católica, a elaboração das Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia foi um passo importante para organizá-la no Brasil, apontando para os
deveres cristãos de toda a sociedade colonial:

Seu número e a especificidade dos assuntos, principalmente a administração


dos sacramentos e o ensino da doutrina, revelam que o esforço de adaptação
das Constituições Primeiras considerou a presença dos escravos nos
territórios portugueses com naturalidade, como um dado pressuposto.41

Portanto, ao falar dos escravizados, a classe senhorial era peça fundamental,


até porque ela não se empenhava e nem incentivava os escravizados a participarem
dos sacramentos. A idéia, mais do que questionar a escravidão, como já vimos, era
transformar o comportamento dos proprietários de escravizados, uma vez que o
cumprimento dos deveres cristãos dos mesmos era uma responsabilidade dos seus
senhores. Só assim se implantaria o catolicismo no Brasil de maneira clara e
inequívoca:

As obrigações religiosas fundamentais dos senhores para com os escravos


são duas: ensinar-lhes a doutrina cristã e cuidar da administração dos
sacramentos, em especial do batismo. Também se espera que, como
cristãos, os senhores respeitem o casamento dos escravos, corrijam as
mancebias que estes praticam e os façam assistir à missa aos domingos.
Além disso, os senhores ficam obrigados a dar aos escravos um enterro
decoroso em lugar sagrado.42

41
Fernando TORRES-LONDONÕ, Igreja e escravidão nas Constituições do Arcebispado da Bahia de
1707, Revista Eclesiástica Brasileira, p. 611.
42
Ibid., p. 613.
189

Trabalhava-se com a idéia de que não se podia, por exemplo, batizar, sem
que ao menos fosse feita uma breve catequese. Como os escravizados eram
considerados boçais e rústicos, assim que tivessem algum conhecimento da língua
ou um intérprete, os escravizados deveriam passar por um tipo de instrução. O que
se nota, já neste primeiro momento, é que as Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia, pelo menos no que se refere aos aspectos tratados até
então, não era um documento dirigido aos escravizados, mas um documento sobre
os escravizados, isto é, sobre a conversão dos mesmos ao catolicismo, pelo menos
no que diz respeito aos vinte e seis números. Os livros tinham como objetivo garantir
que esta conversão ocorresse, mediante a compreensão da fé e dos seus mistérios,
mesmo que de maneira relativa. O documento desconhece tradições africanas e,
portanto, segundo Torres-Londonõ:

Na Breve Instrução, acredito que esteja longe de qualquer diálogo com


tradições religiosas africanas. (...) A matriz teológica, como em todas as
Constituições Primeiras, continua sendo Trento. A simplicidade responde pela
cristianização dos negros por parte dos brancos. Também estão ausentes
esforços catequéticos de tradução.43

Em relação a isto, é possível pressupor que a conversão44, em si mesma, já


se dava de maneira sincrética. Mais do que uma conversão de fato, muitas vezes, o
que se processava era a utilização dos rituais católicos como uma maneira de

43
Fernando TORRES-LONDONÕ, Igreja e escravidão nas Constituições do Arcebispado da Bahia de
1707, Revista Eclesiástica Brasileira, p. 619.
44
Interessante notar o que nos fala Marina de MELLO E SOUZA, em Reis negros no Brasil
escravista, a respeito da apropriação dos símbolos católicos pelos africanos. A cruz era um símbolo
dentro da cultura bantú nas relações entre o mundo natural e o sobrenatural e a representação básica
da cosmologia bacongo, organizada a partir da divisão entre o mundo dos mortos e o dos vivos, um
sendo reflexo do outro e estando separados pela água. Ao adotarem a cruz católica, os congoleses
estavam expressando suas crenças tradicionais, ao mesmo tempo em que levavam os portugueses a
acreditar que eles estavam abraçando uma nova fé. Quanto à questão do encontro cultural, afirma
Ibid., p. 63: “Diálogos de surdos ou reinterpretação de mitologias e símbolos a partir dos códigos
culturais próprios, a conversão ao cristianismo foi dado como fato pelos missionários e pela Santa Sé,
assim como a população e os líderes religiosos locais aceitaram as designações e ritos cristãos como
novas maneiras de lidar com velhos conceitos”. Esta relação baseou-se em pressuposições falsas,
mas eficazes, tomando-se conceitos análogos como idênticos. As estruturas nativas foram em grande
parte conservadas, cada povo lendo a realidade segundo as suas concepções. O cristianismo
africano não foi fruto de uma combinação de cosmologias e, sim, dinamicamente construído,
resultando da forma de interação e validação das revelações ocorridas.
190

inserção social45. A pouca preocupação com o entendimento da doutrina por parte


dos escravizados deixou margem para espaços, profundos hiatos, os quais
permitiram que os africanos e seus descendentes reconstruíssem, de maneira
ressignificada, o seu sistema simbólico e religioso, fato ocorrido durante o processo
de diáspora, como vimos no segundo capítulo. No sentido de apreender
características básicas de tradições religiosas em circuitos afro-brasileiros,
compreendemos que apelar à tradição significa ver como ela se atualiza e se renova
em determinado momento histórico46, pois a mesma é reinventada, produzindo
sinais e signos não pensados anteriormente:

A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o


reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa
da tradição. A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é
uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade
aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação
histórica. O “direito” de se expressar a partir da periferia do poder e do
privilégio autorizados não depende da tradição de se reinscrever através das
condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as vidas
dos que estão “na minoria”. O reconhecimento que a tradição outorgada é

45
Segundo Antonia Aparecida QUNITÃO, Irmandades negras, as primeiras festas de coroação do
Rei e da Rainha na Irmandade do Rosário eram monopolizadas pelos angolanos, já que no
compromisso era determinada a tradição que os concorrentes deveriam pertencer. Em um primeiro
momento pode-se dizer que predominou na irmandade os bantú de Angola. Já na segunda metade
do século XIX predominou os bantú do Congo. Os bantú, segundo a autora, foram os grupos que
predominaram nas irmandades. Para ela, a penetração do catolicismo foi mais eficaz no caso bantú,
ligado ao culto dos antepassados e dos mortos, facilmente rompida com a perda da linhagem. Os
bantú foram mais permeáveis às irmandades, pois, para eles, nenhum ser é fecundado no ventre
materno sem a vontade de um antepassado das longas linhas de descendência, disposto a assumir o
compromisso de protegê-lo. A geração da vida não é fruto da decisão dos pais, nem produto do
acaso. Os bantú condenam o suicídio e todo ato de violência contra a vida humana, desde o primeiro
momento da concepção. Preservar a vida nas circunstâncias mais extremas significava preservar o
patrimônio da vida recebida dos antepassados. Cultuam-se os antepassados familiares, sendo que o
pai de família que exerce o sacerdócio, por exemplo, em Moçambique, pois servem de intermediários
entre os seres humanos e o Ser Supremo. O culto dos antepassados domina as religiões de Angola,
quando as mulheres são possuídas, durante as cerimônias, pelos mortos de sua família. Portanto,
mesmo dentro das irmandades católicas, os rituais eram assimilados como forma da pessoas de
tradição bantú, vivenciar aquilo que era importante para ela.
46
Segundo Laura de MELLO E SOUZA, O diabo e a terra de Santa Cruz, em termos de controle
social e ideológico, era fundamental que a Igreja Católica deixasse aflorar manifestações sincréticas.
Uma colônia escravista estava fadada ao sincretismo religioso. O sincretismo afro-católico dos
escravizados foi uma realidade que se fundiu com a preservação dos próprios ritos e mitos das
religiões africanas. Através da religião, os negros procuravam nichos em que pudessem desenvolver
integradamente suas manifestações religiosas: “Arrancados das aldeias natais, não puderam recriar
no Brasil o ambiente ecológico em que haviam se constituído suas divindades; entretanto, ancorados
no sistema mítico originário, recompuseram-no no novo meio” (Ibid., p. 94). A religião africana vivida
pelos africanos no Brasil tornou-se diferente da dos seus antepassados, que se originou à luz de
necessidades e de realidades novas, superpondo ao sincretismo afro-católico um sincretismo africano
e afro-ameríndio.
191

uma forma parcial de identificação. Ao reencenar o passado, este introduz


outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição.
Esse processo afasta qualquer acesso imediato a uma identidade original ou
a uma tradição “recebida”. 47

Em uma sociedade escravista, como o Brasil, a tensão era permanente,


constitutiva da própria formação social, como já vimos neste capítulo, que se refletia
em muitas práticas mágicas exercidas, também, pelos escravizados. Através delas
buscava-se ora preservar sua integridade física e sua tradição, ora provocar
malefícios aos outros.

As identidades religiosas, logo, não se posicionaram em polaridades


primordiais. A passagem aberta entre identificações fixas estabeleceu a
possibilidade de um hibridismo cultural que acolheu a diferença sem uma hierarquia
suposta ou imposta, produzidas a partir da perspectiva das minorias destituídas. A
base foi alterada para o estabelecimento de conexões, que se mostraram como
descontínuas ou em desacordo com aquilo que é dominante. Por outro lado, elas
colocavam em campo o hibridismo cultural e suas condições fronteiriças de traduzir
e, portanto, de reinscrever o imaginário social em determinado momento histórico.
Este trabalho fronteiriço da tradição cultural exigiu um encontro com o novo, como
ato insurgente, renovando o passado, que inovou e interrompeu a atuação do
presente. Assim, um ato individual, como o curandeirismo ou a possessão, pode ser
visto como um ato de doação ou um ato de conquista, podendo evidenciar tentativas
prolongadas de defender antigos usos de direitos comuns, por parte das pessoas ou
defender os ganhos sancionados pelo costume, pois:

... torna-se possível reconstruir uma cultura popular costumeira, alimentada


por experiências bem distintas daquelas da cultura de elite, transmitida por
tradições orais, reproduzidas pelo exemplo (talvez, com o transcorrer do
século, cada vez mais por meios letrados), expressa pelo simbolismo e pelos
rituais, e situada a uma distância muito grande da cultura dos governantes da
Inglaterra48.

47
Homi K. BHABHA, O local da cultura, p. 20-21.
48
E. P. THOMPSON, Costumes em comum, p. 69.
192

Frente a isso, o que se vê é que as Constituições Primeiras do Arcebispado


da Bahia apresentaram uma forma de doutrina simples, apesar de objetivar a
inserção dos escravizados nos dogmas católicos, para garantir, com isso, o ensino
da doutrina cristã para os mesmos. Entendiam que os escravizados eram aqueles
que mais precisavam dela, pois, no imaginário católico, estavam próximos da
bestialidade. O que se exigia dos escravizados, em termos doutrinais, era muito
pouco, o mesmo se diga da prática: confessar, comungar e se preparar para a boa
morte49:

Os vinte e seis números referentes aos escravos nas Constituições Primeiras


refletem a dinâmica cotidiana da escravidão, marcada por duas situações.
Primeira, a exploração do trabalho escravo que se dava nas mais diversas
atividades, todas as horas e todos os dias da semana, incluídos os domingos,
quando os escravos trabalhavam cuidando das culturas que os sustentavam.
Segunda, a imposição de regimes de senzala caracterizados pelo rigor
cotidiano, o controle sobre o tempo dos escravos, a violência nos castigos
físicos e o desconhecimento de qualquer obrigação moral ou de piedade,
como poderia ser, numa sociedade cristã, o enterro cristão. Tais situações
respondiam à dinâmica da existência da escravidão na América portuguesa e
às condições do tráfico atlântico, e, para o projeto reformador que as
Constituições Primeiras encarnavam, representavam abusos graves. A lei de
Deus, os mandamentos da Igreja, as disposições conciliares e as ordenações
eclesiásticas estavam sendo desobedecidas pelos senhores, que não se
ocupavam em salvar sua alma e a de seus escravos.50

49
Cf. Cláudia RODRIGUES, em Além das fronteiras, abre o livro examinando o testamento de três
escravos que seguem os manuais do “bom morrer”. Além disso, Amanda Aparecida PAGOTO, no
livro Do âmbito do sagrado ao cemitério público,nos auxilia a entender os passos do bem-morrer. São
eles: 1) elaboração do testamento – disposições e vontades registradas, o que prejudicaria a
Salvação da Alma. Os testamentos tinham a mesma estrutura, nos quais eram relatadas as últimas
vontades terrenas, mas servia como um mecanismo de confissão, como forma de alcançar a
Salvação da Alma; 2) sepultamento – a Alma do cristão só estaria protegida se estivesse em solo
sagrado. Desde a Idade Média havia o costume de enterrar os mortos dentro das igrejas ou próximo
a ela. Tal fato estava baseado na crença de que o morto só ressuscitaria no Juízo Final se estivesse
perto de um santo. Quanto mais próxima à imagem do santo, maior a possibilidade de salvação; 3)
mortalha – os cristãos cultivavam o hábito de enterrar seus mortos com mortalhas semelhantes às
roupas usadas pelos santos ao longo de suas vidas. Também podem ser colocadas as vestimentas
utilizadas nas irmandades e nas confrarias, que demarcava a posição social do morto e trazia
pompas ao cortejo fúnebre; 4) missas – temendo uma grande estadia no Purgatório tornaram-se
comum a realização de missas em intenção da Alma do defunto e quanto mais missas celebradas,
menores as penas sofridas antes de alcançar o Céu. A quantidade de missas entre os santos de
devoção era feita nos inventários e nos testamentos; 5) sinos – a passagem da morte era anunciada
através do som dos badalos. As pessoas de posses utilizam este recurso para demarcar sua posição
privilegiada dentro da sociedade; 6) outras pompas fúnebres – a realização dos cortejos se dava
durante a noite e se utilizava velas e tochas acesas. A importância do defunto era medida pela
quantidade de velas durante o funeral.
50
Fernando TORRES-LONDONÕ, Igreja e escravidão nas Constituições do Arcebispado da Bahia de
1707, Revista Eclesiástica Brasileira, p. 624.
193

O que observamos, mais uma vez, é a tentativa de se fazer valer os princípios


cristãos para os escravizados e para seus senhores, mas, em momento algum,
vemos o questionamento da instituição chamada escravidão, o que nos inclina a
pensar, no que se refere aos vinte e seis números, que os escravizados não eram
sujeitos das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, sendo tratados como
coisas. As citações, que vimos, dizem respeito aos senhores de escravizados e não
aos escravizados propriamente ditos, apesar dos mesmos serem citados. Porém,
existiam alguns livros que não eram dirigidos diretamente aos escravizados, mas
através dos processos-crimes antigos levantados, podemos supor que eles eram,
sim, sujeitos desses livros. Antes de entrarmos nos processos-crimes propriamente
ditos, gostaríamos de nos deter em alguns destes livros.

3.2.2 – As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707 e o


escravizado como ser ativo, alguém a ser controlado

Quando abordamos os artigos e os números que não se referem diretamente


aos escravizados, notamos que algumas práticas foram entendidas e enquadradas
pelo Santo Ofício como diabólicas, tais como: orações, benzimentos, curas,
adivinhações (prática bastante comum) e uso de mandingas51, que perduraram
durante séculos e dentro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia,
eram entendidas como feitiçaria, prática, essa, associada ao demônio:

TITULO IV.
QUE NEM-UMA PESSOA TENHA PACTO COM O DEMONIO, NEM USE DE
FEITIÇARIAS: E DAS PENAS EM QUE INCORREM OS QUE O FIZEREM.
* 896 Fazer (1) pacto com o Demonio contêm em si grave malicia, assim pela
insimisade, que Deos no principio do mundo poz entre elle, e os homens,
como tambem porque é fazer concerto com um inimigo de Deos. Por tanto
ordenamos, (2) e mandamos, que o que fizer pacto com o Demonio, ou o
invocar para qualquer effeito que seja, ou usar de feitiçarias para mal, ou para
bem, principalmente se o fizer com pedras de Aras, Corporaes, e cousas
sagradas, ou bentas, a fim de legar, ou deslegar, (3) conceber, mover ou
parir, ou para quaesquer outros effeitos bons, ou máos, incorreráem
excommunhão maior ipso facto.52

51
A respeito de mandingas, consultar a tese de doutoramento de Vanicléia Silva SANTOS, As bolsas
de mandingas no espaço Atlântico: século XVIII.
52
Sebastião Monteiro da VIDE, Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, p. 313-314.
194

Dentro dos documentos coletados, isto é, no texto apresentado pelos


processos-crimes fica claro que muitos denunciados mantinham relações íntimas
com o diabo, como no exemplo que se segue:

P. que conforme os de dirto. tem as ReR. incorrido nas penas de feiticeiras, e


de ter pacto com o Demonio, com as quaes penas devem ser rigurosam.te
castigadas, não só para sua emenda, mas tambem p. que os mais cathólicos
se abstenhão de commeterem tão horrendas culpas. (...)
E de septimo dice: que sabia que os parentes do marido da Re no tempo da
doenca por andarem com odio com a ditta chamava esse negro feiticeiro para
curar o ditto defunto, o qual vivia de enganos, e embustes, fingindo que na
aguardente com dinheiro via a sombra de quem fazia os maleficios e culpava
as RR. e a instancia dos Parentes esteve algum tempo apartado da Re, o que
sabia por ver e ir a caza muitas vezes, e mais dice deste. E do oitavo dice:
que sabia por ordem do Doutor Ouvidor fora açoitado o ditto negro no
pelourinho, e que todos ficavam certos na tal cidade que o ditto negro
levantara as RR. e mais não dice deste. 53

Notemos, pois, no trecho citado, que mais do que sujeitos ativos, estes
indivíduos escravizados serviram como modelo, um modelo a não ser seguido pelos
católicos. O escravizado é entendido, neste momento, como um sujeito de direitos e
de deveres, que possui consciência dos seus atos e, portanto, pode ser penalizado
por eles. A noção de escravizado, assim entendida, vai ao encontro daquilo que
vimos até então. Como lembra Sousa Junior:

Os livros das denúncias nos permitem visualizar como os diferentes atores


sociais e suas tensões se conjugavam. O Santo Ofício criava a possibilidade
de, se não uma reversão de papéis, uma intervenção de personagens
socialmente definidos como inferiores na ordenação social. 54

Ainda, segundo o autor, no século XVIII, alguns homens e mulheres vão ser
denunciados por curarem, usarem orações fortes ou portarem algum elemento que
os ajudavam a conseguir determinado fim:

53
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Teresa Leite; Escolástica Pinto da Silva, Jundiaí,
1754, p. 13 – frente; p. 11 - verso.
54
Vilson Caetano de SOUSA JUNIOR, Roda o balaio na porta da igreja, minha filha, que o santo é de
candomblé, p. 101.
195

* 902 E ainda que Deos em sua Igreja deixou graça para curar, (5) a qual se
póde achar não sómente nos justos, mas ainda nos peccadores; com tudo,
porque no modo com que se costuma usar desta graça se podem instruduzir
perniciosas superstições, e peccaminosos abusos, (6) estreitamente
prohibimos, sob pena de excommunhão maior, (7) ipso facto incurrenda, e de
vinte cruzados, que ninguem em nosso Arcebispado benza gente, gado ou
quaesquer animaes, nem use de ensalmos, e palavras, ou de outra cousa
para curar feridas, e doenças, ou levantar espinhela sem por Nós ser primeiro
examinado, e approvado, e haver licença nossa por escripto. E son a mesma
pena prohibimos, que nem-uma pessoa secular intente (8) deitar Demônios
fora dos corpos humanos. 55

Dentro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707 tais


práticas também eram entendidas como feitiçaria:

Que a Re nesta vila custuma curar enfermos, que se suspeitão emfeitisados


isto com ervas desconhecidas, e palavaroes de embuste fazendose
supersticiosam.te morta ao tempo que faz as d.as curas com as d.as ervas, e
raizes desconhecidas proferindo os seguintes palavarões imbusteiros mal p.ª
vos, bem p.ª mim tanto asim que P. que a dita Re se ofereceo a matar (..)ssoa
que dizia havia enfeitisado a hum dos enfermos que curava, e o não fez pelo
d.t enfermo (...)
Ao quarto dice que sabe por ouvir dizer vulgarmente que a Re usava com
ervas a pessoas que se presumião emfeitisadas mas não que elle
testemunha viu as tais curas. Ao quinto dice que sabe por ouvir dizer
vulgarm.te que a Re fazia estas curas, mas que sabe lealmente que de curar
feitiços não entendia a dita Re porque elle testemunha curou hum enfermo
que estava nas maos da Re presumindo que tinha feitiços, e ella por lhe dar
alguma cousa o andava curando com as ditas ervas e o enfermo o que
padecia era huma obstrução que elle testemunha em poucos tempos
(ilegível). (...)
Ao quinto dice que sabia por ver que a Re curava a alguns enfermos com
ervas que lhe aplicava em (ilegível) como huma erva a que lhe (ilegível) de
bicho e que não duvida que tambem curava com outras ervas e suas raizes
que senão conhecesse porq. nem todos teem experiencia para conhecer
ervas e a raiz de que ella Re usava era a raiz de outeca / vuteca (sic)56 como
elle testemunha via com seus olhos.57 (...)

O que vemos dentro deste processo-crime é que a feitiçaria praticada pelos


escravizados munia-lhes de certo poder dentro da sociedade, na qual estavam

55
Sebastião Monteiro da VIDE, Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, p. 315-316.
56
A utilização de sic se dá, quando a palavra se encontra legível, o documento não está estragado,
mas a palavra lida não foi encontrada nos dicionários consultados.
57
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Maria, Itu, 1755, p. 10 – frente; 22 – frente.
196

inseridos. Há dois opostos, curar e matar, considerados atos de feitiçaria58 que se


encontram nos processos-crimes. Além do entendimento do escravizado como
sujeito, o mesmo é investido de um poder, seja por africanos ou afro-descendentes,
seja por brancos, que procuravam seus serviços. Segundo Reis, “... a gente católica,
inclusive os brancos, também apostava na manipulação de certos recursos
simbólicos, materiais e rituais para controlar, atacar, defender e fazer adoecer ou
curar pessoas”59. Cabe nos perguntarmos das origens de tais práticas e, mais do
que isto, sendo algo pelo qual os escravizados eram reconhecidos, valorizados (por
um lado), por que eles haveriam de deixá-las? Se, por um lado, as práticas mágicas
eram consideradas diabólicas, normalmente vinculadas, no nosso caso, aos
escravizados ou aos libertos de origem africana, por outro, a crença na eficácia de
tais práticas perpassava todos os estratos da sociedade, estando ancorada no
imaginário brasileiro constituído. Outros crimes nos quais os escravizados eram
enquadrados diziam respeito às danças desonestas, folguedos e batuques, como no
exemplo abaixo:

... da Ritta da Silva do mesmo bairro do coal he fama publica que as


denunciadas a tinhão enfeitiçado asim como tao bem e publico e notório
sahirem muito pelo bairro com hua imagem de Santa Anna a pedirem
esmolas e como lhes formarem batuques e outras as pessoas (ilegível)
capaminosas, com ajuntamento de pessoas a quem se diz que costumão
insinarem as mesmas feiticarias e mais nao dice (...)
... com hua imagem de Santa Anna (...) formavão batuques e folguedos em
que se ajuntavam (ilegível) dos feitiços (ilegível) a denunciada Ignacia que
hua boca que tinha na (ilegível) a dera hum sapo que lhe avia introduzido e
que não sararia (...) o sapo não saísse e mais não dice... 60

Mais uma vez no processo-crime citado acima, vemos que o escravizado era
portador de consciência, de capacidade de planejamento e de organização de suas
58
Segundo João José REIS, Domingos Sodré, p. 128: “O uso do termo malefício denota uma
mentalidade policial ainda radicada nos princípios da Inquisição, que designava como tal as artes
diabólicas dos assim definidos como feiticeiros, ou sua capacidade de fazer mal através de meios
ocultos, de ervas, rezas, encantações, mau-olhado, imprecações. De fato, todas as formas de
paganismo e práticas mágicas, mesmo inofensivas e até benéficas – o curandeirismo inclusive -,
seriam reduzidas à categoria de maleficium pelos inquisidores. Aqui também incluía a prática de “dar
ventura”, como o subdelegado se referiu – e era comum fazê-lo na época – à arte de adivinhar. Tal
arte seria igualmente competência do feiticeiro”.
59
Ibid., p. 107.
60
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Inácia de Siqueira, Martinha de Siqueira, Isidoro de
Siqueira Itapetininga, 1770, p. 3 – verso; p. 4 – frente.
197

ações, no sentido de conseguir o seu objetivo. É verdade que tais ações eram vistas
como ilícitas e, porque não dizer, anti-religiosas, uma vez que, normalmente, tais
práticas eram executadas em função do pacto feito com o demônio, além de haver a
utilização de subterfúgios para atingir o seu intuito.

Neste período, a grande questão ainda estava vinculada às práticas


associadas ao demônio. Cada vez mais o conceito de demônio se ampliava e a ele
eram coligadas as tradições indígenas e africanas, tais como feitiçarias, calundus,
mandingas e batuques. Era uma tentativa da Igreja Católica de circunscrever alguns
elementos e impor limites a conceitos que já se encontravam arraigados no cotidiano
das populações, conseqüência de um lento processo de reelaboração dos diversos
universos simbólicos existentes. Ao lado dessa situação impositiva “... havia uma
igreja bastante permissiva, ou melhor, uma religião na qual era possível não só
integrar, mas também conjugar diversas práticas”61. As diversas tradições religiosas
que coexistiam no Brasil possuíam a capacidade de preencher determinados
espaços de maneira imprevisível.

Também é certo que muitas pessoas chamadas pelo Santo Ofício62 omitiram
informações, trocaram dados, ou deixaram práticas subentendidas, seja, podemos
supor, como uma forma de resistência, seja como uma maneira de preservar a si
mesmo e à pessoa denunciada. Vemos que a vizinhança tinha um papel importante
nas denúncias feitas, uma vez que tudo era observado, sendo que muitos hábitos ou
comportamentos tornavam-se motivos de dúvida. A vizinhança também servia como
testemunha, seja de acusação ou de defesa:

... alem diso sabe elle testemunha por ver e ser publico naquele bairro que os
denunciados costumão sahir pelas vezinhanças a pedirem esmolas com hua
imagem de Santa Anna, e com as esmolas fazem seos (ilegível) com
batuques e ajuntamento de pessoas da mesma coalidade e insinando nelles
algumas pessoas (...) dos mesmos feitiços, das quais fracoente da mesma
sem valia aprendendo os tais feitiços huma Maria molher de Martinho

61
Vilson Caetano de SOUSA JUNIOR, Roda o balaio na porta da igreja, minha filha, que o santo é de
candomblé, p. 138.
62
Primeira visitação do Santo Ofício (1591-1595) - visitador Heitor Furtado de Mendonça percorreu
Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba. Outras visitações foram enviadas ao Brasil, mas só é
conhecida a documentação relativa à visitação de 1618-1621 restrita à Bahia tendo como visitador
Marcos Teixeira e a tardia visitação de 1763-1769 confiada ao prelado Geraldo José de Abranches.
198

Rodriguez e fazendo outros insultos dos quais elle testemunha sabe por ser
publico e notorio naquele bairro e por presenciar o que tem deposto...63

Em relação ao processo acima, é interessante observar que libertos e


escravizados eram chamados como testemunhas. É possível supor que quando se
tinha interesse, os escravizados tornavam-se sujeitos? Ou melhor, por tudo o que foi
colocado até então, podemos entender que as Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia constituíram-se em um instrumento político elaborado pela
Igreja Católica, no sentido de obter aquilo que desejava? Conforme as
circunstâncias, nos parece que, a perspectiva em relação ao escravizado se
alterava. Esta ambigüidade gerada no seio da própria Igreja Católica e na sociedade
colonial, talvez tenha sido um dos motivos que colaborou para manutenção de
elementos bantú nas práticas religiosas vivenciadas por grupos de africanos e de
afro-descendentes, fato que observaremos a seguir.

3.3 – Os processos-crimes antigos: expressão da religiosidade


bantú?

O trabalho com os processos-crimes ocorreu em 2008 no Arquivo da Cúria


Metropolitana de São Paulo. Dentre a documentação existente no arquivo64,
compreendemos, logo de início, que talvez, os processos-crimes poderiam nos
auxiliar na nossa busca, uma vez que pretendíamos encontrar alguma descrição de
rituais, que naquele período eram condenados pela Igreja Católica. Como vimos
anteriormente, a Igreja Católica, baseada em preceitos bíblicos, tinha a intenção de
tirar o escravizado da sua condição de paganismo e de domínio pelo demônio.
Portanto, podemos supor que as práticas que tivessem associações com a
religiosidade bantú entrariam no rol de crimes eclesiásticos. No caso, trabalhamos
com os processos-crimes dos séculos XVIII e XIX. A ausência de processos-crimes

63
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Inácia de Siqueira, Martinha de Siqueira, Isidoro de
Siqueira Itapetininga, 1770, p. 3 – frente.
64
Dentro do Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo (A.C.M.S.P.) no que se refere à escravidão
e aos escravizados, conta-se com os seguintes documentos: livros de batismo; livros de casamento;
livros de óbitos; livros de assuntos diversos: a) irmandades, b) registro geral de provisões, c) livro de
rol de desobrigas; processos: a) auto-civeis, b) crimes; exponsais; processos de casamento;
inventários / testamentos; e processos para ordenação de padres.
199

do século XVI ocorreu, pois não existiam processos que se referissem aos tipos de
crimes procurados. O fato de muitos destes processos-crimes serem escritos por
brancos e, muitas vezes, portugueses, nos mostrou a necessidade de fazer a leitura
por dentro, uma vez que os fatos são descritos de maneira parcial. Segundo Dias:

... a documentação é especialmente difícil pela natureza dispersa das fontes e


também por estarem, em geral, como toda fonte escrita, comprometidas com
valores outros, de dominação e poder (...). É uma história do implícito
resgatada das entrelinhas dos documentos, beirando o impossível, de uma
história sem fontes...65

Quando fizemos a primeira triagem, procuramos por palavras como: feitiçaria,


batuques, lundus, calundus e quaisquer outras palavras correlatas. É interessante
ressaltar que tais crimes não se constituem na maioria. Apesar de não termos feito
um levantamento sistemático, é possível afirmar que o crime mais comum à época
era o cuncubinato66, o que nos remete às Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia e aos artigos relativos aos sacramentos. Feita esta primeira triagem,
começamos a ler os processos-crimes selecionados, objetivando encontrar algum
tipo de descrição, principalmente por parte das testemunhas, que nos apontasse
aspectos que poderíamos relacionar com a religiosidade bantú. Este trabalho nos
tomou um longo tempo, não tanto pelo volume da documentação, mas, muito mais,
pela dificuldade de leitura e pelo estado que se encontravam os documentos, apesar
de todo o cuidado com que são mantidos e manuseados e das restaurações feitas.

Antes de trabalharmos com as descrições presentes nos documentos,


apresentaremos alguns dados referentes à documentação pesquisada, uma vez que
é um material precioso, não só para o entendimento da religiosidade afro-brasileira,
que se encontrava em formação, mas também para compreender um tipo de
ilegalidade eclesiástica cometida no período.

65
Maria Odila Leite da Silva DIAS, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p. 17. (O grifo é
nosso)
66
A respeito do concubinato ver: Eliane Cristina LOPES, O revelar do pecado. Os filhos ilegítimos na
São Paulo do século XVIII, e Fernando TORRES-LONDONÕ, A outra família: concubinato e
escândalo na colônia.
200

3.3.1 – Processos-crimes séculos XVIII e XIX: uma breve apresentação

Inicialmente, gostaríamos de apresentar, em forma de tabela, o material


coletado e trabalhado, de maneira que possamos levantar alguns pontos referentes
aos processos-crimes pesquisados. Optamos por fazer uma divisão por séculos, tipo
de crimes, cidade, nome do acusado (gênero) e o fato do réu ser ou não escravizado
(situação social). A partir deste dados, podemos ter um panorama da posição da
Igreja Católica neste período no que diz respeito a certos tipos de crimes e de que
maneira dava-se a sua relação com os escravizados:

Tabela 1– Processos-crimes século XVIII


Século Crime Cidade Nome Escravizado
XVIII
1723 Sinomia (negro benzedor) Mogi das Luis Nação mina
Cruzes
1749 Feitiçaria (magia para matar São Paulo Páscoa De Maria de
gente) Serqueira
1749 Feitiçaria (curava mordida de Santana de Patrício Bicudo Do capitão-
cobra) Parnaíba da Silva (mulato mor José
escravo) Bicudo de
Brito
1754 Lenocínio, consentir no São Paulo José de Almeida Não
concubinato de sua mulher,
danças e folguedos67
1754 Feitiçaria (acusadas da morte Jundiaí Teresa Leite, Sim
do citado e de outras mortes)68 Escolástica
Pinto da Silva
1755 Feitiçaria (cura de enfermos, Itu Maria Sim
morte de pessoas)
1756 Concubinato incestuoso, falta Iguape Pe. Antonio Não
de sacramentos, ofender Ribeiro (vigário
fregueses na missa, dançar em colado)
folguedos, mandou agredir um
marinheiro
1757 Feitiçaria (o réu usava de Taubaté Manoel da Silva Não
"mandingas69" para solicitar
mulheres e ganhar no jogo)70

67
Hildebrando LIMA; Gustavo BARROSO, Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, p.
536: “Folguedo (guê), s.m. Ato de folgar; brincadeira; pândega”.
68
Observação: processo originário de Devassa da Visita.
69
Hildebrando LIMA; Gustavo BARROSO, Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, p.
735: “Mandinga, adj. e s.m. (Bras.) Diz-se de uma raça de negros cruzada com elementos bebere-
etiópicos e que sofreram a influência maometana (eram considerados grandes mágicos e feiticeiros);
s.f. feitiço; bruxaria”. Ainda segundo Edison de Sousa CARNEIRO, Religiões negras, p. 72: “Os
mandes (mandingas), por meio dos quais o culto malê veio para aqui, eram conhecidos como
grandes feiticeiros, e como tal temidos, - estando mesmo incorporada ao dialeto brasileiro a palavra
201

1758 Idolatria e falsa identidade71 Mogi-mirim Joana Dias, Sim


Lucrécia Dias
1759 Feitiçaria Santos Joana, Isabel Sim – crioula
de Ubatuba;
nação congo
1765 Feitiçaria Porto Feliz Pascoal José de Não
Moura
1766 Concubinato, cumplicidade no Bragança Eugenio Bicudo Sim
concubinato de sua mulher, Paulista
batuques pecaminosos em sua
casa
1767 Feitiçaria São Paulo Isabel Pedrosa Não
Alvarenga
1769 Folguedos ilícitos, pacto com o Santos Manoel Pedro, Sim, os três.
diabo, feitiçarias e sortilégios. Antonia, Antonio
Pinheiro
1770 Feitiçaria (malefícios), usavam Itapetininga Inácia de Sim
imagens de santos para pedir Siqueira,
esmolas, danças e batuques Martinha de
ilícitos Siqueira, Isidoro
de Siqueira
1771 Feitiçaria, lenocínio São Paulo Leonor de Não
Siqueira e
Moraes; Ana
Francisca de
Moraes
1771 Fazer feitiço para matar o Nazaré Domingos Góes Não
marido (falecido) da concubina, Paulista Maciel;
não dar sepultura cristão a seu concubina: Rosa
escravo Simão Maria de
Oliveira, viúva
(sogra do réu)
1784 Concubinatos, uso de magia e São Roque Antonio de Lima Sim – uma ex-
de simpatias para "vencer as (casado); escrava
mulheres", consentia em Lucinda (solteira
concubinatos em sua casa, e concubina);
fazia e assistia a danças e Escolástica
batuques desonestos, (forra e

mandinga (por que eram conhecidos entre os negros), no sentido de feitiço, despacho, coisa-feita,
etc”. Já Nei LOPES, Novo dicionário banto do Brasil, p. 137: “MANDINGA, s.f. (1) Bruxaria; feitiço,
talismã (BH). (2) Qualidade de jogo de capoeira (SC) – A etimologia tradicionalmente aceita é a que
vê a origem do etnônimo Mandinga ou Mandingo. Mas a nossa opinião é a de Raymundo (1936:57):
“O termo (...) é mais certo que se prenda à prática do fetichismo entre os congueses. Estes não só se
utilizavam, como amuleto, de uns pacotilhetes, que tinham pendentes do pescoço: masalu ma- (e)
dinga, embrulinhos ou breves do colo; mas, igualmente, enraivecidos, quando contrariados,
praguejavam aos brados; era a gritaria das injúrias, eram os convícios do clamor, mayanga ma-
ndinga. As duas expressões conjugaram-se certamente, restando apenas os determinantes que se
plasmaram: ma-(e)dinga + ma-dinga > mandinga””.
70
O processo contém a seguinte observação: Título original: "Autos de Culpa que resultou na
Devassa da Visita da freguesia e vila de Taubaté".
71
O processo possui a seguinte observação: a denunciada Joana achava-se com poderes
sobrenaturais (conversava com imagens de santos, previa o futuro, revestia-se de um caráter
santificado, era visionária de demônios e catástrofes, etc.). Além disso, existia um afluxo razoável de
pessoas interessadas em curas e milagres na freguesia.
202

alcoviteiro, abrigava meretrizes concubina)


em sua casa, era acostumado
a embebedava-se, maltratava
sua mulher
1788 Concubinato, batuques72 e São Paulo Antonio Não
forrunduns73 Damasco; Maria
Antonia
Fonte: Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo

Tabela 2 – Processos-crimes século XIX


Século Crime Cidade Nome Escravizado
XIX
1844 Desacatos e insultos a Igreja, Paraibúna Pe. Modesto Não
toma de facas e armas, falta de Antonio Coelho
sacramento, participa de festas Netto
1853 Charlatanismo Santos José Maria de Não
Souza
1860 Apoderou-se das caixas de Santa Pe. Manoel José de Não
esmolas, falta de sacramentos, Branca Oliveira Santos
recusa em desobrigar seus vigário
fiéis, mancebia com filhos, encomendado
participa de batuques,
embriaguez
1860 Embriaguez, concubinato, Nazaré Francisco de Assis Não
palavras desonestas e Paulista do Monte Carmello
ameaças, participar de (vigário
batuques e fandangos, atos aposentado)
imorais, outros
Fonte: Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo

72
Segundo Francisco da Silveira BUENO, Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, p. 175:
“BATUQUE s.m. Dança de negros, de ritmo cadente, com sapateado e palmas”. Ou ainda, segundo
Hildebrando LIMA; Gustavo BARROSO, Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, p. 155:
“Batuque, s.m. Ato de martelar, de fazer bulha; (Bras.) nome genérico das dansas negras
acompanhadas por instrumentos de percussão; - de jaré: batuque dansado no interior baiano. Ainda
segundo Nei LOPES, Novo dicionário banto do Brasil, p. 40-41: “BATUQUE, s.m. (1) Designação
comum a certas danças afro-brasileiras. (2) Batucada. (3) O ato de batucar (BH). (4) Culto religioso
afro-gaúcho – Etimologia controversa. Para Nascentes, é deverbal de bater. Para Ribas (1979: 214)
trata-se de “fusão deturpada da expressão quimbunda bu-atuka (onde se salta ou se pinoteia)”.
Raymundo (1933: 106) escreveu: “É bailado originário de Angola e do Congo, mas, em que pese a
opinião de Cardeal Saraiva, não lhe chamavam os negros batuque, mas os portugueses; a dança é
feita com cantos em que entra a expressão kubat’ uku, nesta casa aqui. Daí, proveio batucu,
alterando em batucum e batecu, já por influência do verbo português bater”. Cf., no quimbundo, o
verbo tuka, saltar. Teríamos, então uma etimologia para a dança, outra para o ato de percutir o
tambor?”.
73
Segundo Hildebrando LIMA; Gustavo BARROSO, Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua
Portuguesa, p. 554: “Furrundú, s. m. (Bras.) Espécie de doce feito de cidra ralada, gengibre e açúcar
mascavo; especie de dança roceira”. Ainda segundo Nei LOPES, Novo dicionário banto do Brasil, p.
105: “FURRUNDU, s.m. (1) Música de origem africana (MA). (2) Furrundum”. FURRUNDUM [1], s.m.
(1) Espécie de dança roceira (BH). (2) Confusão, barulho (AA). (3) Doce de cidra ralada (VS) – De
provável origem banta. Veja-se, no quicongo, mfulu, reunião e ndungu, panela”.
203

Frente aos dados apresentados, é possível fazermos os seguintes


apontamentos. Do total de vinte e três processos-crimes, dezenove são do século
XVIII e apenas quatro são do século XIX. Esta situação pode estar relacionada com
a Declaração da Independência e o surgimento de um Estado Liberal, que contava
com a existência de outras entidades, entidades de caráter civil, responsáveis pelo
julgamento de certos crimes, estando os processos eclesiásticos vinculados,
principalmente, aos padres. No século XIX, dos quatro processos, três têm como réu
um religioso, o que não acontece com os processos do século XVIII, nos quais
apenas um deles refere-se a um religioso. Palavras como câmara, direitos, polícia,
eleição só são encontradas nos processos do século XIX, o que aponta a presença
de outras instituições detentoras do poder ao lado da Igreja Católica.

Dentre os processos do século XVIII, encontramos os seguintes crimes: doze


de feitiçaria, que dizem respeito tanto à cura quanto à morte de pessoas; sete de
danças desonestas, incluindo folguedos, batuques e furrunduns, um de sinomia e
um de idolatria. É importante notar que, por vezes, um réu é acusado por mais de
um crime. Já no século XIX, temos três de festanças, danças e batuques e um de
charlatanismo. Quanto ao local em que se supunha que eram cometidos os crimes,
no século XVIII, cinco crimes são de São Paulo e quatorze do interior, na seguintes
cidades: Santos (dois), Mogi das Cruzes, Jundiaí, Taubaté, Mogi-mirim, Porto Feliz,
Bragança Paulista, Itapetininga, Nazaré Paulista, São Roque, Iguape e Itu. Já no
século XIX, todos os crimes foram cometidos no interior, nas seguintes cidades:
Paraibuna, Santos, Santa Branca e Nazaré Paulista. Quanto aos indivíduos que são
acusados pelos crimes, temos no século XVIII, dezessete homens e dezoito
mulheres. Já no século XIX, são quatro homens. Do total de trinta e cinco indivíduos
acusados, independente do século, dezessete são escravizados, quinze são civis e
quatro são padres.

3.3.2 – Uma possível interpretação dos processos-crimes: a presença de


elementos bantú

Nos detendo apenas nos processos, nos quais os escravizados se


configuravam como reús, todos ocorreram no século XVIII, o que mostra que a partir
do século XIX, provavelmente, tais crimes passaram a ser julgados por outras
204

instituições, que não a Igreja Católica, como lemos em um processo-crime do século


XIX: “... junta ainda a do exercicio de actos reprovados pela moral, e expressamente
prohibidos pela Policia, como por exemplo, os batuques ou fandangos, causa
principal do maior numero de delictos neste Districto”74. Como vemos, alguns crimes
julgados durante o século XVIII pela Igreja Católica passaram a ser julgados, por
exemplo, pela polícia, fato que se manteve até o início do século XX75.

Dentre os tipos de crimes, observamos sete de feitiçaria, quatro de danças,


batuques e folguedos, um de idolatria e um de sinomia. As mulheres escravizadas
(doze) representam praticamente o dobro de homens (cinco) que são acusados, o
que nos faz pensar em uma visibilidade maior da mulher, no sentido dela carregar,
dentro do cristianismo, relação com o pecado e com o demônio76, além de
entendermos que as mulheres são responsáveis, muitas vezes, pela manutenção e
pela transmissão do dado cultural:

As mulheres escravas exerceram um papel de importância vital nesse


processo, simultâneo, de aculturação e de resistência: a família de mulheres
sós facilitava a substituição e a renovação do culto dos ancestrais, que, por
sua vez, lançava as bases de um novo convívio social entre escravos. As
tradições culturais africanas delegavam às mulheres as tarefas de
alimentação e circulação de gêneros de primeira necessidade e, desta
vocação ou habilidade de suas escravas, usufruíram as pequenas
proprietárias emboprecidas.77

Ainda para Dias, quando fala a respeito dos papéis históricos de mulheres
das classes oprimidas não se refere: “... a papéis sociais normativos e prescritos,
mas a mediações sociais continuamente improvisadas no processo global de
74
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Manoel da Silva, 1860, Nazaré Paulista, p. 3 – frente.
75
Cf. Lísias Nogueira NEGRÂO, Entre a cruz e a encruzilhada.
76
Aos olhos cristãos, surgia a certeza da existência de uma conspiração sobrenatural contra o
Salvador. O poder de Satã sobre a humanidade havia sido quebrado, mas ele ainda se mantinha
como um oponente. Ele odiava a Deus e todos os seres humanos, sua imagem e semelhança e
busca capturar o maior número possível de almas, para despojá-las de sua divina semelhança,
vingando-se de sua queda: negando os homens a Deus e Deus aos homens. Todos os
acontecimentos para os quais não havia explicação eram atribuídos ao Diabo. O ser humano
participa de uma história que tem sua origem na dicotomia entre o representado e o vivido, não
podendo pensar no Bem sem antes pensar no Mal. Incorporando as crenças da Antiguidade,
amplificadas pelo discurso da Igreja Católica, o Diabo preside a vida da comunidade cristã, já que em
toda parte se vê o diabólico, sendo que todo mundo é invadido por ele. Segundo Carlos Roberto F.
NOGUEIRA, O diabo no imaginário cristão, p. 42: “E sua vítima é, por excelência, a mulher. Porque a
mulher está mais predestinada ao Mal que o homem, segundo os textos bíblicos”.
77
Maria Odila Leite da Silva DIAS, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p. 157.
205

tensões e conflitos, que compõem a organização das relações de produção, o


sistema de dominação e de estruturação do poder”78. O que se nota é uma
experiência de improvisação, na qual se buscava a sobrevivência dos grupos aos
quais elas estavam ligadas. A presença das mulheres se manifestava na vida
cotidiana, quando elas procuravam elaborar e manejar mecanismos diversos de
enfrentamento, visando modificar suas vidas e de seus familiares. Agiam visando à
integridade física e psíquica de seus filhos, de seus companheiros e da sua
comunidade:

Ajudam assim a manter a riqueza e a originalidade da cultura escrava. É


possível mesmo argumentar que as mulheres são os primeiros agentes da
emancipação das comunidades afro-descendentes na diáspora. (...) Elas
representavam a reconstrução e a recriação permanente de aspectos
culturais e, portanto, a edificação de sólidas comunidades escravas. Uma das
características fundamentais das culturas escravas em toda a América é a
manutenção da família, na qual a mulher tinha papel chave na transmissão
oral das crenças e valores79.

No que se refere aos locais, temos uma variabilidade muito grande, sendo
que cada crime ocorreu em uma cidade diferente, sendo elas: São Paulo, Mogi das
Cruzes, Santana do Parnaíba, Jundiaí, Itu, Mogi-mirim, Itapetininga, São Roque,
Bragança Paulista e dois em Santos. Santos pode ser uma cidade que aparece com
certa freqüência, só sendo, em número de crimes, inferior à capital, talvez, em
função do porto lá existente, o que nos remete ao tráfico de escravos e a troca de
produtos.

Quando buscamos elementos bantú dentro dos processos-crimes, podemos


dividir tais práticas em dois grandes grupos: um que diz respeito às danças e aos
batuques e outro que fala sobre o uso da magia. Ainda de forma hipotética,
pensamos nos dois eixos fundamentais da religiosidade bantú (Ser Supremo e culto
aos antepassados) e magia bantú.

78
Maria Odila Leite da Silva DIAS, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p. 13.
79
Carlos Eugênio Líbano SOARES; Flávio dos Santos GOMES, Negras Minas no Rio de Janeiro:
gênero, nação e trabalho urbano no século XIX In: Mariza de Carvalho SOARES (org.), Rotas
atlânticas da diáspora africana: da Baía do Benim ao Rio de Janeiro, p. 192.
206

Tabela 3 – Processos-crimes: uma leitura bantú

Ano Crime Nome Situação da Religiosidade Magia bantú


pessoa bantú
1723 Sinomia (negro Luis Escravizado --------------------- Medicina
benzedor (nação mina) tradicional
1749 Feitiçaria Páscoa Escravizada Magia
(magia para --------------------- prejudicial
matar gente) Medicina
tradicional
1749 Feitiçaria Patrício Escravizado Medicina
(curava Bicudo da (mulato) --------------------- tradicional
mordida de Silva
cobra
1754 Feitiçaria Teresa Leite, Escravizada Magia
(morte do Escolástica --------------------- prejudicial
citado e de Pinto da Silva Adivinhação
outras mortes)
1755 Feitiçaria (cura Maria Escravizada Medicina
de enfermos, --------------------- tradicional
morte de Magia
pessoas prejudicial
1758 Idolatria e falsa Joana Dias, Escravizada Arte médica
identidade Lucrécia Dias Magia
--------------------- defensiva
Possessão
Adivinhação
1759 Feitiçaria Joana, Isabel Crioula de Magia
Ubatuba, --------------------- prejudicial
nação congo
1766 Batuques Eugenio Escravizado Batuques com
pecaminosos Bicudo agrupamento --------------------
em sua casa de pessoas
1769 Folguedos Manoel Escravizados
ilícitos, pacto Pedro, Folguedos com Feitiçaria
com o diabo, Antonia, batuques
feitiçaria e Antonio
sortilégios Pinheiro
1770 Feitiçaria Inácia de Escravizados
(malefícios), Siqueira, Batuques com
uso de imagens Martinha de agrupamentos Magia
de santos para Siqueira, de pessoas prejudicial
pedir esmolas, Isidoro de Folguedos Medicina
danças e Siqueira Ensinamento tradicional
batuques de feitiços
ilícitos
1784 Uso de magia e Antonio de Ex-
de simpatias Lima escravizada Batuques Mágicas e
para “vencer as (casado), Danças com simpatias
mulheres”, fazia Lucinda batuques e diabólicas para
e assistia a (solteira e semelhantes, vencer
207

danças e concubina), com pessoas mulheres


batuques Escolástica de ambos os Ofensas a
desonestos (forra e sexos Deus
concubina)
Fonte: Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo

Fazendo, agora, uma leitura bantú dos processos-crimes que se referem aos
escravizados, podemos dividi-los da seguinte maneira: em sete deles observa-se
aspectos da magia, em um apenas aspectos da religiosidade e em três elementos
de religiosidade e de magia ao mesmo tempo. Naqueles que dizem respeito à
magia, destacamos: seis sobre medicina tradicional, oito sobre feitiçaria /
curandeirismo, sendo sete de magia prejudicial e um de magia defensiva, dois de
adivinhação e um de possessão.

A primeira coisa que nos chama a atenção é o fato de existir uma presença
maior de aspectos relacionados à magia em comparação com os aspectos
relacionados à religiosidade. Um das hipóteses levantadas é que a visibilidade de
tais práticas era menor, pois não correspondiam a uma prática utilitária, elemento
presente à época no Brasil. Outra hipótese para essa pouca presença de danças e
de batuques ocorre, uma vez que em todos os processos levantados, tais práticas
aconteciam dentro da casa das pessoas, nos remetendo a um espaço privado e, por
que não dizer, escondido. O fato das danças e dos batuques ocorrerem em lugares
privados, inicialmente, nos remete à ilegalidade das mesmas, já que eram
consideradas de natureza herética, tendo que ser executadas de maneira discreta:

TITULO I.
DO CRIME DA HERESIA. QUE SE DENUNCIEM AO TRIBUNAL DO SANTO
OFFICIO OS HEREGES, E SUSPEITOS DE HERESIA, OU JUDAISMO.
866 Para que o crime da heresia, e judaismo se extinga, e seja maior a gloria
de Deos nosso Senhor, e augmento de nossa Santa Fé Catholica, e para que
mais facilmente possa ser punido pelo Tribunal do Santo Officio o
delinqüente, conforme os Breves Apostolicos (1) concedidos á instancia dos
nossos Serenissimos Reis a este sagrado Tribunal, ordenamos, e mandamos
a todos os nossos súditos, que tendo noticia de alguma pessoa Herege,
Apostata de nossa Santa Fé, ou Judeo, ou seguir doutrina contraria áquella
que ensina, e professa a Santa Madre Igreja Romana, a denunciem (2) logo
ao Tribunal do Santo Officio no termo de seus Editaes, ainda sendo a culpa
secreta, como for interior.
208

887 E quando por justa razão, que tenhão, o não possão fazer, serão sem
embargo disso obrigados a nos dar conta, (3) para que ordenemos o que for
conveniente em ordem a ser delatado o tal delicto, e se proceder segundo a
justiça pedir. E o mesmo se guardará, tanto que qualquer pessoa for notada
de suspeita na Fé, (4) ou fautor dos Hereges (5) Em quanto taes, ou der
indícios prováveis de approvar elle os seus erros; porque o castigo de todas
estas penas pertence ao dito Tribunal da Inquisição.80

A situação de ficar longe dos olhares das elites e dos brancos e,


conseqüentemente, do Tribunal da Inquisição nos remete ao que Moreira, Soares,
Gomes e Farias chamam de casas de zungú, que podem ser consideradas moradias
escravas e negras, que redefiniam as cidades, produziam novos territórios e tinham
como uma das funções ocultarem a sociabilidade africana e afro-descendente.
Segundo os autores, podem ser definidas como:

... um tipo de moradia, para onde convergiam homens e mulheres negros. E


igualmente constituía um espaço de invenção de práticas culturais
prontamente reprimidas se praticadas à luz da lua. Um esconderijo, um reduto
bem protegido na imensidão de corredores e becos dos labirintos urbanos.
Para onde convergiam silenciosamente centenas de africanos, escravos,
pardos, mulatos, libertos, crioulos e pretos. Em busca de amigos, festas,
deuses e esperanças...81

Falando a respeito das casas de zungú, para Soares82, o angu foi o elemento
central que levou a criação das casas de angu ou de zungú. Por meio da
alimentação, os escravizados encontravam uma justificativa importante para se
encontrarem, se socializarem, trocarem experiências e reabastecerem velhas
lembranças de sua terra. Essas casas tinham a capacidade de reunir grupos e
pessoas que antes estavam dispersos e mesmo em conflito, agregando os
diferentes. O zungú era um espaço clandestino e proibido, perseguido durante o
período escravista. Era um espaço mais de hospedagem do que de estadia, onde se

80
Sebastião Monteiro da VIDE, Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, p. 34. (O grifo é
nosso)
81
Carlos Eduardo de Araújo MOREIRA; Carlos Eugênio Líbânio SOARES; Flávio dos Santos
GOMES; Juliana Barreto FARIAS, Cidades negras, p. 84. Interessante notar, fato que veremos no
capítulo IV, que nos terreiros, chamados por nós de familiares, o local onde acontece a gira,
normalmente, é na edícula da casa ou no final do corredor, não sendo o espaço do terreiro exposto
publicamente.
82
Cf. Carlos Eugênio Líbano SOARES, Zungú.
209

agenciavam negócios ou se fugia de perseguições. Reis83 vai ao encontro do que


coloca Soares quando afirma que se utilizava o termo quilombo para definir os
cortiços urbanos, talvez, por ter o mesmo papel de resistência cultural que tinham os
quilombos rurais. O morar junto resultava do desejo de viver no meio dos seus,
associados à discriminação que sofriam como negros estrangeiros:

... a casa de angu, ou zungú. Estas casas eram normalmente conhecidas


como pontos de encontro para cativos, africanos e crioulos, onde eles
encontravam músicas, comida, prostituição, além da companhia dos seus
iguais, buscando fugir da interferência senhorial ou policial. Mas além destas
finalidades aparentemente “inocentes”, o zungú era também temido pelas
autoridades como foco de rebeliões, levantes, ou mesmo para acobertamento
de fugas de escravos, as famosas seduções...84

Criavam-se, assim, microcomunidades, nas quais se mantinham rituais,


prescreviam-se feitiços, juntavam companheiros de cativeiro e se davam proteção a
malungos perseguidos. As casas de zungú surgiram, inicialmente, como um local de
refeição, mas expandiram o seu significado, tornando-se uma rede de ajuda mútua,
mais um elemento na formação da identidade urbana diaspórica, que
constantemente se renovou, caracterizando-se por uma instituição cultural: “O
somatório zungu e batuque pode indicar que essas casas eram muito usadas para
eventos e práticas religiosas”85. Quando olhamos para as casas de zungú como uma
rede de ajuda mútua entre africanos e afro-descendentes, podemos nos referir à
idéia de reconstrução da estrutura familiar e comunitária e da criação de um novo
território. O fato das danças e dos batuques realizarem-se dentro de espaços
domésticos nos faz lembrar do culto familiar, tal como ocorria na África.

Dias também aponta a formação de comunidades escravas, onde eram


reconstruídos laços primários para além do espaço doméstico, ocasionando uma
resistência que permitia sobrevivências e devolvia à vida a dimensão social. Mas,
para a autora, as mesmas eram formadas a partir do pequeno comércio clandestino:

83
Cf. João José REIS, Domingos Sodré.
84
Carlos Eugênio Líbano SOARES, Zungú, p. 16.
85
Carlos Eduardo de Araújo MOREIRA; Carlos Eugênio Líbânio SOARES; Flávio dos Santos
GOMES; Juliana Barreto FARIAS, Cidades negras, p. 87.
210

A urdidura dos contatos sociais dos escravos, seus pontos de encontro e de


circulação de informações eram organizados em torno do pequeno comércio
clandestino, e contra este se voltavam postura, decretos e leis nem sempre
muito fáceis de serem devidamente implementados. Muitas dessas medidas
repressivas focalizavam em especial os movimentos das mulheres escravas,
vendedoras, em virtude do papel importante que desempenhavam na vida
comunitária dos escravos.86

Quando pensamos nestas comunidades e nos espaços de culto, nos


remetemos a Ramos87 que afirma que a vida religiosa dos grupos de tradição bantú
tem como base o culto aos antepassados. Esse culto, inicialmente, é familiar, mas
se estende ao grupo, formando uma religiosidade dos antepassados. Os ritos
funerários, por sua vez, são compostos por uma grande festa, com batuques,
comidas e bebidas, que duram vários dias. Há uma variedade de cerimônias, onde
intervêm a dança e a música, como vimos no primeiro capítulo. Ainda para ele, o
nome das danças de caráter geral em Angola é batuque, quando, em círculos, as
pessoas executam sapateados em ritmo marcado com palmas e instrumentos de
percussão.

Falando a respeito do culto aos antepassados, podemos notar que eles são
constituídos por alguns rituais preparatórios, pelo culto propriamente dito e por
rituais que ocorrem depois do culto, compostos por danças e por músicas. Os rituais
preparatórios dizem respeito à preparação do local, bem como da entrega das
oferendas. Recorrendo aos processos-crimes, notamos a preparação de alguns
elementos e a presença de animais, que também poderiam ser ofertados:

... com hua imagem de Santa Anna (...) formavão batuques e folguedos em
que se ajuntavam (ilegível) dos feitiços (ilegível) a denunciada Ignacia que
hua boca que tinha na (ilegível) a dera hum sapo que lhe avia introduzido e
que não sararia (...) o sapo não saísse e mais não dice...88

Ou ainda:

86
Maria Odila Leite da Silva DIAS, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p. 155.
87
Cf. Artur RAMOS, Introdução à antropologia brasileira.
88
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Inácia de Siqueira, Martinha de Siqueira, Isidoro de
Siqueira, 1770, Itapetininga, p. 4 – frente.
211

... Manoel de Freitas Mattos, Familiar do Santo Officio, e morador nesta (...)
dita villa foi ditto, que por ser informado que no sitio chamado dos Barris o
escravo chamado Antonio do capitão Francisco (...) de Menes(...) e Souza
com mais tres de Ma(...)el Jozeph da Silva chamados Manoel, Pedro e
Antonia sua mulher todos de presente presos no Forte desta Praça a ordem
do comandante della tinha convocado outros varios escravos e haviam feito
uns folguedos ilicitos com demonstrações de que neles tinha parte o diabo
por meio de feitiçarias ou sortilégios de que tratavam (...) forão presos, e que
devendo como (...)
E sendo perguntado pelo contiudo do auto de denuncia atras declarado que
tudo lhe foi lido, disse que sendo mandado pelo seo Capitão Mandante em
companhia do capitão Francisco Cardozo ao Sitio chamado dos Barris distrito
desta villa, e ahi acharão em hua casa varios negros, todos mensionados no
autto atrás (...) estavam com hum folguedo de batuque... 89

Ao final do culto aos antepassados, vimos que existe uma confraternização,


uma espécie de comunhão, que é regada à música e à dança, prática que nos
processos-crimes está associada às danças e aos batuques. Chama-nos a atenção
o fato de tais batuques e danças em ter uma importância grande para as pessoas,
sendo que elas se colocavam em risco para poder realizar tais práticas, como no
exemplo que se segue. As esmolas eram pedidas como uma forma de garantir
recursos para a execução do ritual:

... alem diso sabe elle testemunha por ver e ser publico naquele bairro que os
denunciados costumão sahir pelas vezinhanças a pedirem esmolas com hua
imagem de Santa Anna, e com as esmolas fazem seos (ilegível) com
batuques e ajuntamento de pessoas da mesma coalidade e insinando nelles
algumas pessoas (...) dos mesmos feitiços, das quais fracoente da mesma
sem valia aprendendo os tais feitiços huma Maria molher de Martinho
Rodriguez e fazendo outros insultos dos quais elle testemunha sabe por ser
publico e notorio naquele bairro e por presenciar o que tem deposto..." (p. 3 -
frente)
... da Ritta da Silva do mesmo bairro do coal he fama publica que as
denunciadas a tinhão enfeitiçado asim como tao bem e publico e notório
sahirem muito pelo bairro com hua imagem de Santa Anna a pedirem
esmolas e como lhes formarem batuques e outras as pessoas (ilegível)
capaminosas, com ajuntamento de pessoas a quem se diz que costumão
insinarem as mesmas feiticarias e mais nao dice)... 90

89
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Manoel Pedro, Antonia, Antonio Pinheiro, 1769,
Santos, p. 2 – frente / p. 4 – frente.
90
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Inácia de Siqueira, Martinha de Siqueira, Isidoro de
Siqueira, 1770, Itapetininga, p. 3 – frente / verso.
212

Outro aspecto que cabe destacar é que a maioria dos processos-crimes que
falam a respeito da religiosidade também traz aspectos da magia. Dentro da tradição
bantú não há separação entre sagrado e profano, bom e ruim, religiosidade e magia;
ambas estão inseridas na vida cotidiana:

Aseverou também, ter ouvido de varias pessoas, e hua vez delle proprio
denunciado mesmo, estar praticando com outros que usava, de magicas, ou
simpatias diabólicas afim de vencer as mulheres para ofensas de Deos, e que
elle testemunha, supunha asim praticava o dito denunciado porque sabia; de
algumas mulheres, com quem o dito tem tido copula, as quais só se
sujeitaram a isto por similhantes meios por que são de outras qualidades, que
não hé o tal denunciado.
Dice mais que agora proximamente andava mal encaminhado com hua forra
xamada Escolatica, que aqui apareseu vindo de fora desta Freguesia, e
julgava que viera da cidade de San Paolo. Dice mais que o denunciado era
costumado a fazer e andar em danças desonestas, como batuques e outras
similhantes, com pessoas de mesmo e diverso sexo.91

A magia pôde ser encontrada nos processos-crimes nas suas quatro


expressões: medicina tradicional, possessão, adivinhação e curandeirismo / feitiçaria
– prejudicial e defensiva. Ocorre que, no caso, os rituais relacionados com a magia
possuem uma visibilidade maior do que outros rituais, mesmo havendo a sua
proibição. A magia, mesmo na África, tem uma visibilidade maior social ou
comunitariamente, uma vez que é algo utilizado para resolver um problema imediato,
dizendo respeito a todo o grupo, já que garante a harmonia e a coesão comunitária.
Já o culto aos antepassados é um ritual fechado, dirigido a um grupo específico de
pessoas, normalmente à família extensa.

Segundo Mello e Souza, no início do século XVIII, as práticas mágicas


sincréticas se achavam arraigadas na vida cotidiana das populações coloniais.
Recorria-se a feiticeiros e a curandeiros para resolver questões amorosas e
incômodos; soluções mágicas encontradas variavam da magia invocativa de cunho
europeu ao curandeirismo corrente entre populações africanas, passando por
tradições populares extremamente antigas: “Mas, constituindo energia vital (cabelos
e unhas, em particular, pois continuam crescendo após a morte do indivíduo),

91
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Antonio de Lima, Lucinda, Escolástica, 1784, São
Roque, p. 18 – frente / p. 19 – frente.
213

poderiam ser usados tanto positiva como negativamente”92. As curas, para ela,
envolviam procedimentos mágicos complexos de caráter semi-ritual. Adivinhações,
curas mágicas, benzeduras procuravam responder às necessidades e atender aos
acontecimentos diários, tornando menos dura a vida naqueles tempos difíceis.

De qualquer forma, o que percebemos é que de uma forma ou de outra, tais


práticas eram condenadas pela Igreja Católica durante o século XVIII e segundo as
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, as penas para aqueles que
praticavam heresia e àqueles que faziam uso da medicina tradicional era a não
administração dos sacramentos, o que significava estar à margem da sociedade e
não ter nenhuma garantia de um enterro digno. Sabemos que não ser enterrado
dignamente para as pessoas de tradição bantú era algo que implicava em várias
perdas, pois, após da morte, a pessoa tornar-se-ia um antepassado. Segundo Dias:

A preocupação de escravas e forras mais velhas em garantir um ritual fúnebre


para si e seus familiares infiltrou-se na documentação escrita das classes
senhoriais. O medo de “sobrar” como assombrações, presente nos
testamentos, perpetuou-se no costume da “missa das almas”. As próprias
escravas ou forras lideravam as cerimônias fúnebres, intermediárias entre o
mundo dos vivos e dos mortos; como tais lavavam os corpos de escravas
defuntas, rezavam e intermediavam a sua passagem para o reino dos mortos,
assegurando que não ficassem vagando, como “almas penadas”, por falta
dos rituais adequados. 93

Vejamos o texto que fala sobre a proibição de administração dos sacramentos


e, conseqüentemente, da possibilidade de não se ter um enterro digno:

TITULO XXIV.
DAS PESSOAS, QUE SÃO OBRIGADAS A RECEBER O SANTISSIMO
SACRAMENTO DA EUCHARISTIA, E EM QUE TEMPO, E A QUE PESSOAS
SE NÃO PÓDE, NÉM DEVE DAR.

88 Assim como é louvável, e santo, que os Christãos, verdadeiros penitentes,


recebão muitas vezes este Divino Sacramento; assim é justo, e decente, que
não administre aos peccadores públicos. Pelo que mandamos, que não sejão
admittidos á communhão os públicos (18) excommungados, interdictos, (19)

92
Laura de MELLO E SOUZA, O diabo e a terra de Santa Cruz, p. 172.
93
Maria Odila Leite da Silva DIAS, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p. 161.
214

feiticeiros, (20) mágicos, (21) blasfemos, (22) usurários, (23) e publicas (24)
meretrices, e os que estão publicamente (25) em ódio, e outros quaesquer
(26) públicos peccadores, se não constar (27) publicamente de sua emenda,
e arrependimento, e que tem primeiro satisfeito ao publico escândalo, que
com seu máo viver tiverem dado. E quando secretamente (28) constar de sua
emenda, secretamente se lhes administrará o Santissimo Sacramento,
porque tambem então secretamente não há escândalo. Porêm no artigo (29)
da morte se administrará á aquelles, que estavão antes em peccado publico,
posto que publicamente não conste de sua emenda, tendo-se primeiro
confessado (30) com a devida disposição. Declaramos, que para este effeito
serão havidos sómente por peccadores (31) públicos aquelles, cujos
peccados constão por sentença, que passou em cousa julgada; ou confissão
feita em juízo, ou cuja infâmia foi tão notória, que se não póde encubrir, nem
desculpar. Tambem mandamos, se denegue aos peccadores (32) occultos,
quando consta não estarem emendados, se o pedirem occultamente: mas
pedindo-o (33) publicamente se lhes administrará, (ainda que secretamente
conste, que nelles não ha emenda) para se evitar o escândalo de lhes ser
negado. 94

Apesar do risco que corriam, Mello e Souza95 afirma que os grandes


curandeiros do Brasil colonial eram os africanos, os índios e os mestiços, que tinham
conhecimento de ervas e de procedimentos rituais específicos, os quais se
associaram às práticas européias de medicina popular:

Ao quarto dice que sabe por ouvir dizer vulgarmente que a Re usava com
ervas a pessoas que se presumião emfeitisadas mas não que elle
testemunha viu as tais curas. Ao quinto dice que sabe por ouvir dizer
vulgarm.te que a Re fazia estas curas, mas que sabe lealmente que de curar
feitiços não entendia a dita Re porque elle testemunha curou hum enfermo
que estava nas maos da Re presumindo que tinha feitiços, e ella por lhe dar
alguma cousa o andava curando com as ditas ervas e o enfermo o que
padecia era huma obstrução que elle testemunha em poucos tempos
(ilegível). (...)
Ao quinto dice que sabia por ver que a Re curava a alguns enfermos com
ervas que lhe aplicava em (ilegível) como huma erva a que lhe (ilegível) de
bicho e que não duvida que tambem curava com outras ervas e suas raizes
que senão conhecesse porq. nem todos teem experiencia para conhecer
ervas e a raiz de que ella Re usava era a raiz de outeca / vuteca (sic)96 como
elle testemunha via com seus olhos. 97

94
Sebastião Monteiro da VIDE, Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, p. 56. (O grifo é
nosso)
95
Cf. Laura de MELLO E SOUZA, O diabo e a terra de Santa Cruz.
96
A utilização de sic se dá, quando a palavra se encontra legível, o documento não está estragado,
mas a palavra lida não foi encontrada nos dicionários consultados.
97
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Maria, 1755, Itu, p. 18 – verso; p. 22- frente.
215

As curas, para ocorrerem, contavam com a ajuda sobrenatural:

... por se dizer que curava mordidas de cobra do q. acusa que o Supp.do
fazsão com ervas e que (...) implicito ou explicito, e por esta razão (...) nos
ttrmos. da Const. L. 5 nos. 896.897.898 (...) foi cometido algum crime de
feitiçaria (...) e seu Livram.to por elle referidas (...) e não doutro Tribunal
algum (...) ditas feitiçarias, sortilégios e superstições...98

Curavam-se doenças, mas também se faziam feitiços, o que implicava em


uma ação ambígua. “No Brasil colônia, curandeiros podiam tanto restaurar a
harmonia rompida, restituindo a saúde aos que tinham perdido, como desencadear
malefícios”99. Na tradição bantú havia aquela pessoa que fazia a magia visando o
bem comunitário, como também existiam outras pessoas que buscavam a
desintegração social. Sabemos, de qualquer forma, que a qualidade da magia era a
mesma, o que mudava era a intenção. O que observarmos no Brasil, diferentemente
da África, é que, muitas vezes, as polaridades da magia ficaram centradas em uma
mesma pessoa:

... cavar em três partes do chão dos (ilegível) apousento, e em todas tirou a
denunciada ossos de galinha, de vaca, e leitão e um osso que parecia ser de
gente; e de hum buraco da parede do mesmo apousento, tirou mais a
denunciada huas unhas ou aparas dellas, embrulhadas em um papel escrito
pella filha della testemunha que se achava emferma e assim, mais tirou hum
pouco de escarmento seco, que a mesma denunciada confessou ser da
mesma enferma, dizendo que tudo ella tinha (...)100 porque lhe tinhão
emsinado mas nao disse quem que quando de todo secassem aquelles
ossos, e o mais, havia de acabar a dita emferma, porem que prometia que
agora logo havia de sarar; e outro sim, disse ella testemunha que com
(ilegível)101 estando a emferma com dores intratáveis nas unhas dos pés e
mãos, de tal sorte que não podia consentir lhe tocassem nellas, nem o
mesmo o lensol da cama, e sem evacuação algua do curso natural, nem
ainda da ajuda de remédios...102

98
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Patrício Bicudo da Silva, 1749, Santana de Paraíba,
p. 6 – frente.
99
Laura de MELLO E SOUZA, O diabo e a terra de Santa Cruz, p. 168.
100
(...) corresponde às partes do processo que se encontram “comidas”.
101
Corresponde aquilo que não foi possível ler no processo, mas que se acha escrito.
102
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Páscoa, 1749, São Paulo, p. 9 – frente.
216

A ambigüidade e as acusações feitas aos escravizados eram, na maioria das


vezes, reflexo de uma situação tensa, constitutiva da própria formação social, que se
refletia em práticas mágicas e de feitiçarias. Feitiços para provocar danos ou até
mesmo a morte de pessoas eram comuns:

E sendo perguntado pelo conteudo no autto de denuncia a folhas dice ser


certo, quanto neste se declarava, e que havendo discórdias entre os escravos
de Bento de Castro Carneiro Sogro delle testemunha, viera hum deles contar
a hua das filhas do dito Bento de Castro Carneiro que a denunciada Joana
Crioula era feiticeira, e que com seus feiticos e maleficios tinha morto a seos
senhores; e que com esta notícia segurando-se a dita denunciada para
confessar, com efeito o fizera, declarando que no cítio do dito seu senhor
pusera cinco panelas para efeito de amanssar e matar aos ditos seus
senhores, (...)
... que vinha do porto para casa em hua encruzilhada, que ai havia se achava
hua panella, e que mandando elle testemunha desenterar lhe por hum
escravo seo, a vira cheia de raizes, ossos, folhas, arros com casca, e outras
cousas, que senão percebião e que aquela panella dita confessara tão bem a
mesma dita denunciada, era para matar seu senhor, o dito Bento. 103

Os casos de envenenamento praticados por africanos e por afro-


descendentes, principalmente na época da escravidão, deixaram de constituir um
simples estudo de criminologia para se emparelhar com outras práticas mágicas
oriundas das religiões da África. Havia um tipo de feitiço – amansar os senhores104 –
que encobria o horror de uma tragédia doméstica em que o escravizado era o algoz
e o senhor a vítima:

Palavras de encantar, benzer, curar, mandingas contra furtos, crendices e


patuás, recolhidas da tradição oral ou mesmo dos processos contra feitiçaria,
às vezes incorporados às atas da Inquisição ou das devassas de bispos.
Maus-olhados, impropérios e ameaças, como a dos aguadeiros nas fontes
contra as mucamas dos sobrados, transcendem os limites dos ajuntamentos

103
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Joana, Isabel, 1759, Santos, p. 5 – verso; p. 7 –
verso.
104
Segundo João José REIS, Domingos Sodré, p. 147-150: “A idéia de lançar mão de recursos rituais
para controlar o poder senhorial, para “amansar senhor”, por exemplo, tinha uma certa idade, como
mostram alguns estudos sobre o período colonial. (...) O amansamento de senhores por seus
escravos no período imperial chegou a fazer parte do (...) “imaginário do medo”. (...) Os casos de
envenenamento de senhores por escravos – assim como de escravos que envenenavam outros
escravos e até animais – se repetem na documentação policial, embora raramente se informe sobre
qual o ingrediente ministrado. Muitas vezes eram ervas e raízes da medicina africana, outra venenos
comprados ou roubados a boticários e taberneiros, sendo o rosalgar o mais comumente usado”.
217

e batuques de escravos para revestir-se das tensões da sociedade como um


todo. (...) cometer pequenos furtos, alguns rituais de feitiçaria, difamar a casa
dos senhores eram característicos e muitos freqüentes nos anais da
escravidão urbana no Brasil colonial. 105

Para Ramos, ainda havia um feitiço que consistia em mudar a cabeça, isto é,
transmitir os males de uma pessoa a outra. O feiticeiro preparava o despacho,
fixando nele as atribulações da pessoa que desejava enfeitiçar e o despacho era
colocado em um lugar público: o malefício era transmitido à pessoa que pisasse no
despacho, que o tocasse ou que o examinasse. Neste caso se dava a troca de
cabeça. A série de feitiços era enorme, crescendo cada vez mais com a assimilação
das práticas supersticiosas do ameríndio e do europeu, pois a “... magia torna-se
sobrevivência”106. As denúncias de feitiçaria também refletiam a tensão entre a
vizinhança, amigos e inimigos, os quais compunham o rol de testemunhas. Segundo
Dias, falando a respeito das mulheres: “A sua subsistência baseava-se em relações
tensas, de vizinhança e convívio, entre escravas, livres e forras; convívio marcado,
de um lado, por necessidade de auxílio mútuo e, de outro, por um inserção
forçada”107.

Havia uma precaução dos senhores em relação ao potencial mágico dos


escravizados, e também em relação a uma forma de resistência ao sistema e a tudo
aquilo que ele, senhor, representava: “... a feitiçaria, tornou-se uma necessidade na
formação social escravista. Ela não apenas dava armas aos escravos para moverem
uma luta surda (...) contra os senhores como também legitimava a repressão e a
violência exercidas sobre a pessoa do cativo”108. Tomemos como exemplo o
seguinte processo-crime:

P. que conforme os de dirto. tem as ReR. incorrido nas penas de feiticeiras, e


de ter pacto com o Demonio, com as quaes penas devem ser rigurosam.te
castigadas, não só para sua emenda, mas tambem p. que os mais cathólicos
se abstenhão de commeterem tão horrendas culpas...
E de septimo dice: que sabia que os parentes do marido da Re no tempo da
doenca por andarem com odio com a ditta chamava esse negro feiticeiro para

105
Maria Odila Leite da Silva DIAS, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p. 59.
106
Arthur RAMOS, O negro brasileiro, p. 170.
107
Maria Odila Leite da Silva DIAS, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p. 74.
108
Laura de MELLO E SOUZA, O diabo e a terra de Santa Cruz, p. 204.
218

curar o ditto defunto, o qual vivia de enganos, e embustes, fingindo que na


aguardente com dinheiro via a sombra de quem fazia os maleficios e culpava
as RR. e a instancia dos Parentes esteve algum tempo apartado da Re, o que
sabia por ver e ir a caza muitas vezes, e mais dice deste. E do oitavo dice:
que sabia por ordem do Doutor Ouvidor fora açoitado o ditto negro no
pelourinho, e que todos ficavam certos na tal cidade que o ditto negro
levantara as RR. e mais não dice deste.109

Vários processos-crimes citados falam a respeito da presença de vários


elementos que são constituintes dos procedimentos mágicos. Altuna110 nos lembra
que as comunidades bantú estreitam-se em uma solidariedade característica a partir
da vivência da união vital. Dentro da comunidade, esta participação vital é entendida
como uma relação de ser e de vida de cada um com os seus descendentes, sua
família, seus irmãos e suas irmãs do clã, sua ascendência e o Ser Supremo. Toda a
sociedade pode ser considerada do ponto de vista da participação vital. Também é
uma relação de cada um com o seu patrimônio, o seu haver, com tudo aquilo que
contém ou produz, com tudo aquilo que cresce e vive. A vida une e faz com que haja
solidariedade entre os vivos e destes com seus antepassados. Como estão
relacionados no constitutivo, podem influir um nos outros para aumentar a vida ou
para debilitá-la e, até, aniquilá-la. A pessoa está relacionada, interdependente,
interativa com todos os membros da sua comunidade.

A magia bantú atua sobre unhas, cabelos, roupas, sombra, objetos usados,
terra pisada e, até, fotografias, pois estes elementos prolongam a personalidade. Há
um sistema invisível de forças e de energias, que aparecem no mundo exterior
encadeadas com ordem e com regra. Os especialistas de magia podem interferir
neste circuito vital: “Assim se explica o terror banto às forças ocultas, o exercício
contínuo da magia e os variadíssimos ritos que intentam fortificar, detectar e manejar
a vida em constante inter-acção”111. Vejamos o processo-crime abaixo:

Malefícios para lhes tirar a vida: e que despois de feita a dita confissão da dita
denunciada Joana Criola, a que tão bem assitira a denunciada Izabel de
nação congo levara elle testemunha, as ditas denunciadas, ao dito citio e as
testemunhas acima declaradas, e que em presença destas declararão as
109
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Teresa Leite, Escolástica Pinto da Silva, Manoel
Garcia, 1754, Jundiaí, p. 13 – frente; p. 11 – verso.
110
Cf. P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu.
111
Ibid., p. 57.
219

ditas denunciadas os lugares em que estavão as sinco panellas acima


mencionadas, e que nellas se achavão vários imundices, como ossos,
cabellos, raizes, folhas e outras cousas mais, de que se não podia ter
conhecimento por razão de estarem sorr(...)ls; e que além de tudo isto
confessarão tão bem a denunciada Izabel, que tirara a vida ... 112

O ritual, que engloba todos os seus atos, elabora-se no mundo visível para
ser cumprido no invisível:

... sempre que um vegetal ou um ser inorgânico ocasionam um mal ou


beneficiam uma pessoa, tal efeito deve ser atribuído a um ser inteligente que
arrancou tal propriedade e a soube utilizar. E sempre magicamente, já que
pressupõe uma incursão, por meio da inter-acção, na realidade “misteriosa”
da participação vital.113

Por isso, a maioria dos feitiços é repleta de ossinhos, cabelos, pêlos, sangue
de defuntos e de animais, pedaços de plantas e restos de minerais, que exteriorizam
a sua força segundo a sua aparência e a sua natureza. Os seus donos recebem o
seu poder e a sua energia para atacar ou para se defender:

E não vio elle testemunha mais do que hua cabra attada ainda viva, hua
garrafa cheia de agua e varias raizes dentro, como tão bem hua cestinha com
huns cascos de câgado; e logo de fora da porta ja seria hu cheiro tão mao
que sahia da casa que por insuportável nao pode elle testemunha distinguir
se era inxofre, ou de, bode: o que tudo sabe, elle testemunha pela razão dita
física, e (ilegível) não disse, e se asignou com o Muito Reverendo... 114

Não podemos falar em uma religião ou religiosidade bantú, uma vez que
havia uma proibição de tais expressões, por isso, optamos por chamá-las de
práticas rituais e religiosas. A constituição de expressões afro-brasileiras e seus
diferentes sentidos deve ser buscada nas relações que os africanos e afro-
descendentes conseguiram estabelecer numa outra sociedade, a partir das
condições que lhes eram oferecidas. Como africano ou afro-descendente

112
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Joana, Isabel, 1759, Santos, p. 6 – frente.
113
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 60.
114
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Manoel Pedro, Antonia, Antonio Pinheiro, 1769,
Santos, p. 4 – frente / verso.
220

escravizado, ele não pôde expressar as suas práticas sociais, sexuais, familiares e
religiosas, como era feito na África, mas dentro dos limites que lhe foram impostos,
exercia opções, utilizando os resultados em proveito próprio. Africanos e afro-
descendentes conviveram de perto com o branco, o que facilitou o intercâmbio entre
as práticas religiosas dos grupos existentes, sendo que a população branca e
indígena fazia uso e se beneficiava das práticas de origem bantú.

As formas religiosas e culturais condenadas como idolátricas e/ou


demoníacas foram sendo canalizadas para uma religiosidade que foi transformada
em instrumento de resistência e de manutenção da identidade ante às violências do
opressor, compondo um acervo singular. Por um lado, os grupos oprimidos
aceitavam as práticas sacramentais e, por outro, mantinham no cotidiano, de
maneira discreta, condutas consideradas transgressoras no que tange às
determinações eclesiásticas.

Portanto, trabalhamos com a idéia de que a identidade cultural não é algo


fixo. A experiência da colonização, da diáspora e da escravidão exerceu forte
influência na formação da identidade das pessoas de tradição bantú no Brasil: “...
temos consciência de que a percepção da diversidade cultural carrega a descoberta
das relações assimétricas entre as culturas. É inegável a tensão entre as culturas
ameaçadas de morte e as culturas dominantes”115. Apesar dos encontros apontarem
na direção da homogeneidade cultural, o que prevaleceu foi a heterogeneidade, que
tem a ver com a forma do encontro das tradições, marcada pela ameaça, que toda a
irrupção súbita do desconhecido traz consigo.

O sistema cultural como teia de significados permitiu aos africanos e aos afro-
descendentes de tradição bantú, mesmo escravizados, reestruturar seu universo
fragmentado, reconstituindo uma religiosidade modificada pela experiência da
diáspora e da escravidão. As relações com o catolicismo e com as tradições
indígenas inserem-se no esforço de construir algo vinculado às suas tradições. Os
sistemas simbólicos são construídos e reconstruídos o tempo todo, como um
sistema de símbolos capaz de estabelecer disposições e motivações nas pessoas
através da formulação de uma identidade social.

115
Ênio José da Costa BRITO, Anima brasilis, p. 79.
221

Nas pessoas de tradição bantú que chegaram ao Brasil, havia valores que os
motivavam, bem como certas orientações de como lidar com os outros em situações
sociais, além de pressupostos e de expectativas básicas sobre o modo como
atuavam existencialmente no mundo. Tais aspectos serviram como norteadores das
reconstruções elaboradas por eles durante a época da escravidão:

... certas orientações comuns para a realidade talvez tendessem a concentrar


a atenção de indivíduos de culturas africanas ocidentais e centrais em tipos
semelhantes de eventos, muito embora as maneiras de lidar com esses
eventos pudessem afigurar-se muito diversificadas em termos formais.116

Logo, há alguns princípios filosóficos e psicológicos, porque não dizer,


essenciais à tradição, que se mostraram mais persistentes e tenazes. A comunidade
afro-brasileira, contudo, só passou a existir e a compartilhar uma mesma prática
cultural, na medida em que ela mesma a foi criando. Só com o tempo um grupo
transforma-se em comunidade, mediante os processos de ressignificação cultural.
Há uma inovação verdadeiramente afro-brasileira, construída de maneiras
particulares e em circunstâncias específicas por determinados escravizados e
perpetuada por gerações sucessivas. No começo o que se compartilhava era a
escravização, todo resto foi criado por eles. Mesmo que o conhecimento, as
informações e as crenças tenham sido transportadas em suas mentes, eles não
puderam transpor os complementos humanos de suas instituições tradicionais. A
tarefa foi criar instituições que se mostrassem receptivas às necessidades da vida
cotidiana, dentro das condições limitantes que a escravidão lhes impunha. Por isso,
é possível afirmar que em relação aos aspectos culturais existam princípios
abstratos disseminados dentro de cada tradição:

... parece sensato presumir que, sendo reais as semelhanças percebidas,


deveriam existir princípios subjacentes (que, muitas vezes, seriam
inconscientes) passíveis de identificação, descrição e confirmação. Ao
considerar as continuidades culturais afro-americanas, talvez seja bom que os
elementos mais formais frisados por Herskovits tenham exercido menos
influência nas instituições nascentes dos africanos recém-escravizados e

116
Sidney W. MINTZ; Richard PRICE, O nascimento da cultura afro-americana, p. 28.
222

transplantados do que fizeram seus pressupostos fundamentais comuns


sobre as relações sociais ou o funcionamento do universo.117

As continuidades entre África e Brasil devem ser determinadas com base na


compreensão das condições básicas em que ocorreram as migrações de africanos
escravizados. A proliferação de novas instituições sociais no regime escravagista foi
a precondição e a base das continuidades da tradição. Os empréstimos feitos de
outras tradições nunca foram obtidos sem a mudança na coisa emprestada e sem
incorporar elementos originados nos novos hábitos, que deram à nova forma seu
caráter distintivo. Houve uma criação ou uma remodelação para que os grupos de
tradição bantú criassem seu estilo de vida como uma forma de enfrentar suas
necessidades cotidianas. Ao mesmo tempo em que Brasil foi refeito pelos povos que
aqui chegaram, eles também se refizeram a si mesmo, num processo claro de
reconstrução identitária.

Afirmamos que houve uma série de permanências da tradição bantú, ao


mesmo tempo em que essas permanências expressaram-se de maneira diferente no
Brasil durante a época da escravidão. Vimos também que as práticas religiosas
constituídas durante este período serviram como uma forma não só de simbolizar
aquilo que era conflitivo para os africanos e os afro-descendentes no Brasil, mas
também como uma forma de superação e de manutenção da tradição. A Igreja
Católica, com seu projeto evangelizador e com o poder institucional que detinha,
marcou profundamente não só a identidade do escravizado, como também a sua
condição social e as possibilidades de recriação em solo brasileiro.

Entendemos que as práticas religiosas, por nós encontradas, nos processos-


crimes, podem ser compreendidas como o que foi chamado de calundu. Dizendo de
outra forma, trabalhamos com a idéia de que estas expressões religiosas de tradição
bantú podem ser denominadas calundu118. A seguir buscaremos compreender de

117
Sidney W. MINTZ; Richard PRICE, O nascimento da cultura afro-americana, p. 28-29.
118
Laura de MELLO E SOUSA, no seu texto, Revisitando o calundu, ao falar a respeito dos
processos pesquisados por ela, traz algumas contribuições sobre o calundu, entendendo-o como um
aspecto ritual, que obedecia a um cerimonial complexo e internamente articulado. Era composto por
adivinhações, cura de feitiços, repetição de danças e cantorias, que levavam à perda de sentidos e a
ida a terras africanas. A autora fala de modelos possíveis. A autora trabalha com um universo de 32
casos de práticas religiosas e os divide da seguinte maneira: calundus evidentes (15 casos), calundus
sugeridos (4 casos) e elementos dispersos de calundus (13 casos). Sempre, nos calundus
evidentes, há referências a danças, embaladas por instrumentos musicais, associadas a práticas
223

maneira mais clara o que foi entendido por esta prática ritual, a partir de um
processo-crime

3.4 – Expressões religiosas bantú: o surgimento de uma proto-


umbanda?

Mais do que uma expressão religiosa bantú, o calundu mostra-se como um


elo de ligação, o elo perdido, entre as práticas religiosas bantú modificadas pela
experiência da diáspora e da escravidão e aquilo que durante o século XX
convencionou-se chamar umbanda. Ao fazermos esta afirmação temos clareza de
que estando indo de encontro a alguns autores que entendem o calundu como a
semente do candomblé. Mais uma vez vemos uma soberania da tradição iorubá em
relação à tradição bantú, não em função da sua importância no contexto da
escravidão, mas, muito mais, em função da idéia de pesquisadores119 que marcaram
uma geração posterior, que buscavam nas culturas a noção de pureza, trabalhando
com a idéia de que aquilo que não se manteve intacto, na verdade, desapareceu.
Assim, como forma de não polemizar, utilizamos uma frase de Gonçalves: “O nome
mais frenquente para as religiões de origem africana no Brasil até o século XVIII
parace ter sido calundu, termo de origem banto...”120. Estamos querendo dizer com
isto que, talvez, o calundu pudesse abranger as expressões religiosas de matriz
africana. Precisamos lembrar também que independentemente da tradição que
contemplasse, a mistura entre elas já havia ocorrido há muito tempo, aspecto que já
ressaltamos neste trabalho.

mágico-religiosas, que parecem independentes do rito, referindo-se à manipulação de objetos –


panelas, tigelas, espelhos, esteiras, cruzes – e ao conhecimento tradicional de frutos da natureza –
caramujos (animais), ervas, paus, pós mágicos. Nos calundus sugeridos, a autora fala em
adivinhação ritual, dança de batuques, ventos de adivinhar, adorar danças, domar as vontades dos
senhores, esfregar os doentes com raízes e ervas no intuito de curá-los, feitiçaria e curandeirismo. A
identificação com os calundus é feita através da alusão às danças, batuques, sujeição de vontades,
recursos a espíritos mortos. Já nos que apresentam elementos dispersos de calundu, temos: cura
ritual com manipulação de objetos, animais, invocação de espírito, investigação da causa de
patologias (feitiços causadores de doenças), um complexo mágico distinto dotado de traços que,
mesmo se aparentando aos do calundu, talvez apresentem especificidade própria. Há casos de
migração do âmbito das curas mágico-religiosas para os dos malefícios, que se remetem
exclusivamente ao lado negativo. Para a autora, talvez, o último grupo se relacione, muito mais, com
as feitiçarias de origem africana do que com o ritual do calundu.
119
Cf. Roger BASTIDE, Os africanos no Brasil; Arthur RAMOS, O negro brasileiro; Edison
CARNEIRO, Os africanos no Brasil.
120
Vagner Gonçalves da SILVA, Candomblé e umbanda, p. 43.
224

3.4.1– O calundu121

Para Silveira122, desde o século XVII, os calundus funcionavam normalmente


no Brasil. Os adeptos dos calundus organizavam festas públicas na residência de
uma pessoa da comunidade ou em casas destinadas a outras ocupações, como no
exemplo que se segue:

P. que não só consente o R. na vida pecaminosa de sua mulher Arcangela,


ou tinha, Como tº. Henrique Pereira, mas tambem admitte, e da occasiões de
pecado, a homens vadios e, a mulheres mal procedidas, preparando lhe e
dispondo batuques e danças deshonestas, da cujas occasiões resultão
muitas offensas de Deos.
... pela inimizade q. fazem certo todas, as que o R. produzio, e se colhe do
seu próprio Juramento, ser a 2ª de mera ouvida na vizinhança, e depor sem a
precisa declaração de nomear a quem a ouvio, sendo só a q. affirma pela
mesma mattendível (sic) razão as danças e batuques em casa do R. q. prova
superabundantemente não ser capaz de consentir a sua m.he desonestidade
nem de admitir em sua casa homens e mulheres de qu resultem offensas de
Deos. 123

Ainda para Silveira, os calundus bantú detinham um saber ritual acumulado e


bem adaptado ao meio. Não havia templos propriamente ditos, mas não se tratavam
de cultos domésticos, havia calendários de festas, vários tipos de adeptos, além de
serem freqüentados por um bom número de pessoas. O sacerdote podia se tornar
independente financeiramente, executando tarefas que o Estado não realizava:

Desse lado do Atlântico, os calundus de diversas origens africanas, como a


banta (das regiões ao Sul da África, como Angola, Congo, Moçambique) e
jeje (da África Ocidental, atual República do Benin), por exemplo, acabaram
aderindo ao Catolicismo. Já o sincretismo com os cultos ameríndios deu-se
apenas com os bantos. Alguns, como o de Luzia Pinta124, misturaram
121
Segundo Nei LOPES, Novo dicionário banto do Brasil, p. 57: “CALUNDU, s.m. (1) Amuo (BH). (2)
Denominação de antigos cultos afro-baianos. (3) Local onde se realizavam esses cultos – Abon.:
“Que de quilombos que tenho / com mestres superlativos / nos quais se ensinam de noite / os
calundus e feitiços. (Gregório de Matos, Obra poética, 1990 I, pág. 42) – Do quimbundo kilundu,
ancestral, alma de alguém que viveu em época remota, e que no caso da primeira acepção, entrando
no corpo de uma pessoa, a torna irritadiça, mal-humorada, tristonha”.
122
Cf. Renato da SILVEIRA, Do Calundu ao Candomblé, Revista de História da Biblioteca Nacional,
http:/www.revistadehistoria.com.br/v2/home. Acesso em: 22 maio 2008.
123
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Eugenio Bicudo, 1766, Bragança Paulista, p. 6 –
frente, p. 25 - verso
124
Segundo Laura de MELLO E SOUZA, em O diabo e a terra de Santa Cruz, p. 352-355: “... era uma
preta forra e solteira que, sendo natural de Angola, morava na Vila de Sabará, Minas Gerais. Viera da
225

tradições africanas, católicas e indígenas no mesmo ritual, dando origem ao


que se convencionou chamar umbanda.125

Segundo Mello e Sousa, tanto candomblé como lundu vem do kalundu,


palavra bantú que significa obedecer a um mandamento, realizar um culto,
invocando os espíritos com música e dança. Lundu vai ser entendido como dança de
par solto, de origem africana, acompanhada de canto, que teve seu esplendor no
final do século XVIII e começos do XIX, mesma época dos processos-crimes por nós
estudados. Ainda para ela, calundu é palavra de muitos significados, extrapolando o
campo das crenças e dos comportamentos. É possível afirmar que uma das
primeiras expressões religiosas africanas no Brasil recebeu o nome bantú de
calundu. Lundu pode ser visto como sinônimo de calundu. A autora ainda nos auxilia
no entendimento do que seriam os calundus e, mais do que isto, nos alerta para o
fato de não se configurar com uma prática religiosa institucional, mas por fragmentos
de pequenos ritos:

... a denominação calundu encobria práticas mágico-religiosas variadas,


sempre envolvendo negros, freqüentemente referidas a danças, batuques,
ajuntamentos, mas, às vezes, denominando hábitos e usos que não pareciam
ter qualquer articulação mais coerente a ponto de configurarem um rito:
fervedouros com ervas, oferendas de comida a ídolos, confecção de
pequenos embrulhos com ossos, cabelos e unhas.126

Podemos entender o calundu como ritos de filiação bantú, enraizado no ritual


xinguila da nação Angola. O calundu-angola poderia ser a matriz primordial dos
rituais denominados umbanda, que ao lado dos orixás, apresentaram um sincretismo
de origem africana, lusitana, ameríndia e brasileira. O calundu deve ser entendido
como uma constelação de práticas variadas e não como rito acabado e bem

África por volta do início da década de 20 do século XVIII. (...) Luzia era publicamente tida como
calundureira. Os habitantes de seu arraial procuravam-na para que fizesse adivinhações,
esclarecesse sobre o paradeiro de oitavas de ouro furtadas, promovesse curas. (...) Original de região
de língua bantu – a Angola portuguesa -, Luzia calundureira, foi antepassada cultural das mães-de-
santo do Brasil contemporâneo. Como elas, acreditava na inevitabilidade dos dons que o destino lhe
dera: predestinação existe, o que cabe a cada um é trabalhar”.
125
Renato da SILVEIRA, Do Calundu ao Candomblé, Revista de História da Biblioteca Nacional,
http:/www.revistadehistoria.com.br/v2/home. Acesso em: 22 maio 2008 (O grifo é nosso)
126
Laura de MELLO E SOUZA, Revisitando o calundu,
http:/www.fflch.usp.br/dh/posgraduacao/social/pag.profs/LauraSouza, p. 2. Acesso em: 22 maio 2008.
226

definido. Dentro do calundu, podemos perceber vários elementos de um ritual bantú,


já que se desenrolava em um espaço privado, que podia ou não ser aberto ao
público, mas não ocorria em um espaço aberto; o que é diferente, em um primeiro
momento, do culto aos antepassados:

... a existência de um complexo cultural africano, possivelmente banto, onde a


possessão, o êxtase, a transmissão de saberes mágico segundo linhagens,
os dons divinatórios e curativos tinham papel de destaque.
Neste ponto, há elementos para detectar uma aparente contradição. Trata-se,
por um lado, de um caso onde o ritual e as práticas mágicas se combinam
num todo articulado, que é denominado calundu. Por outro, do seio deste
complexo emerge uma definição específica de calundu, referida antes a um
dom, virtude ou qualidade individual do que a um rito. 127

O calundu ainda pode ser entendido como uma faceta significativa da


religiosidade de africanos e de afro-descendentes de tradição bantú, que ajudava a
resolver anseios e necessidades dos praticantes e das pessoas que o procuravam,
contando também com práticas adivinhatórias:

... percebemos que há uma repetição de três elementos rituais em especial:


os “batuques” e danças; a indução ao transe e a possibilidade de efetuar
adivinhações, mais tipicamente vinculadas à cura de doenças. O que acusa a
centralidade desses vetores para o conjunto de práticas que apareciam sob o
nome de calundus. (...) Neste contexto, a despeito de alguns elementos se
refazerem em vários casos, talvez seja impossível forjar uma definição padrão
dos calundus, uma vez que aparentemente esse termo genérico seria usado
para designar um sem número de diferentes procedências e formas de
condução128.

Porém, é possível afirmar que algumas influências religiosas vindas da África


Centro-Ocidental (bantú) estão inseridas no conceito de ventura e desventura, no
qual a ênfase é dada na necessidade de garantir o bem-estar e a saúde, a partir de
rituais marcados pela dança, pela música e pelo uso de magia. Vimos no primeiro
capítulo que esta tradição é orientada pelo complexo ventura – desventura. A ordem

127
Laura de MELLO E SOUZA, Revisitando o calundu,
http:/www.fflch.usp.br/dh/posgraduacao/social/pag.profs/LauraSouza, p. 1. Acesso em: 22 maio 2008
128
André NOGUEIRA, O que digo nessas danças / Satã tem parte ligada: os calundus das Gerais,
Revista Museu, SILVEIRA, http:/www.revistamuseu.com.br/em foco. Acesso em: 22 maio 2008.
227

natural das coisas é boa e desejável, envolvendo valores positivos: saúde,


fecundidade, segurança e harmonia. O Ser Supremo deu vida a tudo e reina
distante, mas benevolente sobre o universo e o ser humano. O espaço entre os
vivos e os mortos está ocupado por antepassados e vários tipos de espíritos,
portadores de boas intenções. Porém, forças maléficas desviam a vida do caminho
da ventura. Todo mal é provocado por estas forças, a partir de atos conscientes ou
inadvertidos de determinadas pessoas.

Os batuques eram executados para garantir aos clientes boa fortuna, cura
para as doenças e, através de adivinhações, conhecimento de algo obscuro. Alguns
indivíduos tinham a capacidade de manter o contato com o sobrenatural, como o
exemplo da curandeira C.129, sendo, muitas vezes, vistos como líderes, ou ainda
segundo o seguinte processo-crime:

... huma publica vós e fama de que a dita denunciada desfrutava favores e
merces do céo, quais erão sahirem as imagens de Cristo e da Virgem Maria,
que estavão no seo oratorio por virtude propia e irem ter de noite com a dita
denunciada em sua cama, estando ella dormindo, e fazerem se vistas ditas
imagens em sima do peito, e man da mesma denunciada, e que ella
despeitando (sic) declarava haverem vindo as ditas imagens sobre ella em
sua cama por virtude sobrenatural; o que tudo sabia e lhe testemunha por ser
notorio e ppr lho haver manifestado este facto ...130

Havia o culto a divindades ou a espíritos familiares (antepassados),


geralmente representados através da confecção de estátuas ou de máscaras.
Trabalhando com aquilo que observamos na África, a cultura bantú passou por uma
série de releituras e de recriações para atender as novas demandas, colocadas pela
experiência da diáspora, da escravidão e da sociedade brasileira.

Conforme colocado, quando falamos do calundu, observamos que


diferentemente dos bantú que na África executavam suas práticas em um espaço
aberto ao pé de uma árvore sagrada, como vimos no primeiro capítulo, o calundu
ocorria em um espaço fechado, até porque, era considerada uma prática ilícita. As
casas de zungú nos auxiliam a compreender o espaço onde ocorria o calundu, pois

129
Cf. C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/2009.
130
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Joana Dias, Lucrecia Dias, 1758, Mogi-mirim, p. 6 –
frente.
228

para além da arquitetura e da disposição urbana, havia significados culturais


reinventados nos espaços físicos e simbólicos das moradias131. Assim, as casas de
zungú eram freqüentadas por negros cativos, libertos e livres e ainda eram locais de
festas, confraternizações, batuques ou qualquer pretexto para os africanos e os afro-
descendentes da Corte se encontrarem. Essas casas, além de exercerem papel
importante na construção de uma comunidade escrava no meio urbano, também era
um elo fundamental que ligava os africanos e os afro-descendentes da cidade aos
do campo:

... os zungú eram um ponto de encontro entre libertos, livres e escravos, onde
estes encontravam solidariedade. Mas também eram locais importantes de
sobrevivência cultural e principalmente religiosa, pois ali se reproduziam com
maior segurança as práticas coletivas religiosas vindas da África,
transformadas pela escravidão, mas ainda repositórios vivos de memórias
étnicas. 132

A partir do entendimento do calundu e das casas de zungú, começamos a


entender a forma como o candomblé, isto é, o culto aos orixás, foi inserido dentro da
proto-umbanda e da macumba. É verdade que, ainda no século XIX, não podemos
falar de umbanda, mas já podemos pensar em uma primeira, ou melhor, uma
segunda forma sincrética, uma vez que o primeiro processo de sincretismo, dentro
da umbanda, nos faz supor, tenha acontecido, primeiramente no Brasil, com as
populações indígenas. Vejamos a citação abaixo:

Trata-se de uma chave política e de uma das chaves para entender mais um
processo histórico de construção de evidências para Porto Alegre – só fez
crescer a partir da década de 1830. Ao contrário da cidade baiana, a
composição étnica da população africana na Corte era majoritariamente
banto, principalmente antes de 1830. Esses afro-baianos tinham assim um
quê de estrangeiros na capital do Império, mesmo compartilhando condições
sociais e barreiras muito semelhantes para o conjunto da população negra.
Entretanto, além do espírito comunitário, de apoio mútuo, que esses
“estrangeiros” tinham de cultivar entre si naquela terra nova (formando como

131
Segundo Carlos ENGEMANN, De laços e de nós, p. 143: “A produção de sentidos, que auxilia na
compreensão e na partilha das experiências vividas, é talvez o bem mais precioso da vida comunal. A
capacidade de tornar o lugar da escravidão, estranho e hostil pela sua própria natureza, sem um
lugar com alguma familiaridade é uma das maiores vantagens na construção de uma coletividade. E
é possível que seja um dos seus maiores motores também”.
132
Carlos Eugênio Líbano SOARES, Zungú, p. 48. (O grifo é nosso)
229

se fosse uma colônia de afro-baianos na cidade), eles também precisavam se


aproximar das maiorias. Precisavam compartilhar suas culturas e seus
significados, seus símbolos e seus recursos. Até para poderem, irmanados
com africanos de várias procedências, resistir melhor aos desmandos do
poder público e dos senhores. (...) Dessa forma, participar dos zungus, ou
mais do que isso, patrociná-los, promovê-los, era um ato político da maior
importância na integração dos afro-baianos com a população negra da
Corte.133

Podemos afirmar que os zungú, apesar de serem forjados por africanos


urbanos de tradição bantú, não eram mundos fechados, estando abertos para
receber novos indivíduos com outras culturas e outras linguagens, já revelando certa
porosidade da tradição bantú, fato que se confirma na formação da macumba e da
umbanda. Apesar de termos, no século XIX, uma maioria de afro-descendentes
freqüentando os zungú, também observamos a presença de africanos, que mesmo
em menor número, possuíam uma importância cultural. É possível afirmar que havia
uma ponte cultural permanente entre África e Brasil. Freqüentar os zungú,
caracterizava-se como uma atividade de risco, mas que, mesmo assim, valia a pena
lutar por ela, tal como afirmam os autores:

Talvez um chamado. Um chamado distante da cultura, do rito, da cerimônia,


da aldeia, da tribo, da gregaridade natural de povos e sociedades, em que o
papel do grupo é tão importante. (...) as tradições africanas não foram
mantidas no ambiente da escravidão na América em sua plenitude original,
mas recriadas. A essência do ato cultural podia se manter, mas a morfologia,
o recorte externo e mesmo a amplitude sofrem variações profundas. Eles
cunharam a expressão reinvenção cultural e étnica como conceito explicativo
central dessa nova visão, não buscando mais permanência, sobrevivências
puras, como ilhas de africanidade num mar de ocidentalização, mas sim a
versatilidade, a plasticidade cultural dos africanos para adaptar-se ao quase
sempre hostil ambiente da escravidão.134

O que observamos, mediante os processos-crimes, é que os africanos e os


afro-descendentes de tradição bantú encontraram espaços e possibilidades rituais e
concretas para continuar a vivenciar sua religiosidade, mesmo que de forma
ressignificada dentro dos próprios vácuos deixados pela Igreja Católica durante a

133
Carlos Eduardo de Araújo MOREIRA; Carlos Eugênio Líbânio SOARES; Flávio dos Santos
GOMES; Juliana Barreto FARIAS, Cidades negras, p. 91.
134
Ibid., p. 97-98.
230

escravidão. Essa religiosidade, muitas vezes, ainda não ingressada no espaço e no


tempo da maneira desejada, mesmo assim serviu como um reflexo, como um retrato
de uma vida melhor deseja e antecipada, podendo torná-la compreensível. Porém,
no momento histórico estudado, vivia-se dentro da instituição da escravidão e dos
regimes colonial e imperial. O final da escravidão e a Proclamação da República
recolocaram, pelo menos teoricamente, os africanos e afro-descendentes dentro de
um novo status, de um novo lugar. Novamente os escravizados se viram em uma
situação de liminaridade, mas agora com um conhecimento aprendido e acumulado.

Portanto, no próximo capítulo, deixaremos um pouco de lado a questão


religiosa propriamente dita, para nos aprofundarmos na forma como os escravizados
vivenciarem o período do pré-abolição e de que forma se prepararam e orientaram
os seus descendentes para período do pós-abolição, falando a respeito dos seus
projetos de liberdade. Buscaremos compreender como a tradição bantú foi pensada
e contemplada durante estes períodos, uma vez que tal mudança implicou em uma
releitura dessa tradição no Brasil, que já era afro-brasileira, dando frutos a projetos,
que mais tarde, se tornaram realidades.
231

CAPÍTULO IV: A TRADIÇÃO BANTÚ NA LIMINARIDADE


HISTÓRICA: TERRITÓRIO, FAMÍLIA E ANTEPASSADOS
UNIDOS PELA RELIGIOSIDADE

Flor da Bahia
Dor da Bahia / Chega a machucar meu peito / Na
garganta dá nó / Conviver com preconceito / Dá revolta e
dá dó / Quem no coração / Não faz distinção /
Compreende a minha dor / Cor da Bahia / É a paixão da
minha vida / Quando olho em redor / A cidade construída
/ Misturando suor / Quanta história então / De sangue e
paixão / Sobre o chão de Salvador / Na Bahia / Grão de
amor é forte medra / E eu sou flor da Bahia / Semeada
em chão de pedra / Flor da Bahia / Que oferece a
primavera / Desse grão / Dessa flor / Desse chão /
Desse amor / Flor da Bahia / É flor que ninguém arranca
/ Quando o amor é maior / Pele escura, pele branca /
Flor da pele é uma só / Corpos que se dão / Mais
1
sementes são / Sobre o chão de Salvador.

Depois de termos apresentado a tradição bantú na África, notado seu


esfacelamento durante o processo de diáspora e observado sua manutenção
mesmo em face da violência do regime escravocrata, pudemos constatar que os
grupos de tradição bantú encontraram brechas nos interstícios desse regime e
conseguiram preservar, mesmo que de maneira ressignificada, alguns aspectos
dessa tradição, destacando fundamentalmente a questão da magia, em suas
múltiplas expressões, como notado nos processos-crimes antigos.

Agora, diferentemente daquilo que foi colocado no segundo capítulo, a


respeito do processo da diáspora, durante o decurso da abolição da escravidão, já
existia um aprendizado acumulado, que fez com que os escravizados se
organizassem para a nova mudança identitária, bem como preparassem as
próximas gerações para as vivências que ocorreram após este momento histórico. É
interessante notar que ao se aprontar para a liberdade, observamos o resgate de
aspectos fundamentais da tradição bantú, tais como: território, família e
antepassados, que se encontravam interligados, com vistas à religiosidade.

1
Flor da Bahia, Nana CAYMMI. Temas de novelas. s.n. Som Livre, Rio de Janeiro, s.d. CD-ROM.
232

Com o fim do regime escravocrata – Abolição da Escravidão – e da


inauguração do sistema republicano – Proclamação da República – os africanos de
tradição bantú, bem como os afro-descendentes pertencentes a essa tradição viram-
se novamente diante de uma nova mudança identitária. Passaram da condição de
escravizados à condição de libertos, tornado-se membros da sociedade. A liberdade
implicou em mudanças estruturais, uma vez que o liberto foi recolocado dentro da
sociedade, tornando-se cidadão. Por outro lado, o fato da liberdade ter sido
desejada arduamente e conquistada duramente não significou que os libertos
tivessem os seus direitos reconhecidos e garantidos.

Este processo que compreende o final do regime escravocrata e as primeiras


décadas de liberdade é entendido por nós como um rito de passagem, no qual a
pessoa adquire um novo status social. Portanto, uma situação de liminaridade, de
transição entre identidades. Neste momento, o indivíduo é considerado como se
estivesse em um intervalo de atemporalidade social, numa posição vulnerável,
anormal e perigosa para a sociedade, pois é quando se atravessa as fronteiras
sociais de um status para o outro. Veremos que a mudança identitária dependeu de
quem a visse: os senhores reconhecendo os africanos e os afro-descendentes como
ex-escravos, enquanto que os africanos e os afro-descendentes entendiam-se como
libertos.

De qualquer forma, o que estamos assumindo em relação a este processo,


nos dizeres de Slenes2, é uma abolição da radical dissociação entre escravidão e
liberdade, reconhecendo estratégias, costumes e identidades elaborados antes de
1888, que insinuavam os embates que ocorreram no final do século XIX e início do
século XX. As experiências vividas e refletidas dos antigos escravizados revelaram
aspectos de resistência simbólica, contribuindo para a formação de novas
sociabilidades. Mesmo a abolição sendo vista como um divisor de águas, um marco
entre dois tempos: o tempo do cativeiro e o tempo da liberdade, segundo Lugão e
Mattos3, não podemos esquecer que cativeiro e liberdade encontravam-se
visceralmente ligados, sendo suas fronteiras bastante tênues, principalmente no final
do regime escravocrata. Portanto, tais tempos devem ser pensados dentro de um

2
Cf. Robert SLENES, Prefácio, In: Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade.
3
Cf. Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro.
233

processo, sendo que o que foi construído durante a liberdade, já vinha sendo
gestado desde o cativeiro. Nos dizeres de Engemann:

As necessidades e ambições de cada uma das partes da relação impelem os


seus agentes em um determinado sentido, até que, reconhecidos os limites,
se estabilize o termo do vínculo que os une, seja este de superioridade ou de
solidariedade. O que se supõe é que não há sujeitos passivos, e que as
ações de cada parte geram e são, simultaneamente, geradas pelo contexto
social vivido. Ademais, estas estratégias não são estáticas; são mutantes,
alteradas pela sua própria historicidade.4

Trabalhamos ainda com a idéia de que o escravizado é alguém capaz de


ação histórica. Conforme coloca Rios e Mattos5, as atitudes dos libertos passaram a
ser vistas como iniciativas que responderam a projetos próprios e que interferiram
nos processos de reconfiguração das relações sociais e de poder, que se seguiram
à abolição do cativeiro. Ainda segundo as autoras, os processos de desestruturação
da ordem escravocrata e seus desdobramentos trouxeram conseqüências às
relações de trabalho e ao acesso aos novos direitos políticos e civis para as
populações libertas, bem como às formas de dar um tom racial às novas relações
econômicas, políticas ou sociais. Guimarães nos auxilia na elucidação do momento:

A perda da legitimidade da escravidão, o crescimento dos conflitos entre


senhores e escravos e o movimento social dos cativos em busca de liberdade
– manifestado em fugas, crimes e suicídios – cresceram até tornarem
insustentável a manutenção do escravismo e culminar na Lei Áurea em 1888.
Em Juiz de Fora, a exemplo de tantas outras localidades, a lei que extingui a
escravidão não pôs fim aos mandos e desmandos dos ex-senhores de
homens nem aboliu as múltiplas formas de exploração sobre os negros. Muito
menos extinguiu a necessidade de resistência e de reelaboração de
estratégias de sobrevivência de afrodescendentes em meio às adversidades.
Centenas de ex-proprietários recorreram à justiça para garantir a tutela das
crianças afrodescendentes e prolongar por alguns anos a exploração sobre o
trabalho delas. O abuso sexual da mulher negra, os castigos físicos sobre os
que se recusaram a se submeter, se estenderam no tempo, reproduzindo
tensões oriundas das senzalas.6

4
Carlos ENGEMANN, De laços e de nós, p. 30.
5
Cf. Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro.
6
Elione Silva GUIMARÃES, Múltiplos viveres de afrodescendentes na escravidão e no pós-
emancipação, p. 25.
234

Frente ao que foi colocado até então, este capítulo tem como objetivo discutir
os períodos do pré e do pós-abolição através de estudos historiográficos, buscando
perceber de que maneira os projetos cultivados durante a escravidão, que visavam a
preparação para a liberdade, resgataram estruturas da tradição bantú, dentro de um
momento histórico no qual esta alternativa mostrou-se viável. Como forma de
estabelecer tal relação, recorreremos aos estudos a respeito da tradição bantú,
como também a algumas entrevistas realizadas em Maputo, Moçambique. Não
estamos trabalhando com a idéia de que os projetos de liberdade – território, família
e antepassados – tinham apenas o sentido de resgatar aspectos da tradição bantú,
mas fazer aproximações entre os aspectos dessa tradição e os projetos existentes.

Para tanto, inicialmente, apresentaremos o momento da pré-abolição e da


abolição propriamente dita, mediante o prisma dos escravizados e a visão dos
senhores, os quais, na maioria das vezes, se contrapunham. Tais conflitos e as
tensões sociais advindas dos mesmos, não só influenciaram os projetos de
liberdade e sua concretização, mas também foram os germes da constituição da
sociedade de fins do século XIX e início do século XX.

Depois disto, abordaremos de maneira sucinta a idéia de comunidade, que


insinua a questão da solidariedade, que já se encontrava presente durante a
escravidão. Trabalhamos com a idéia de que a noção de coletividade, ou seja, de
uma pessoa que se encontra em relação constante com os vivos e com os espíritos /
os antepassados, unida através da religiosidade, faz com que não se entenda como
alguém que possa estar sozinha no mundo. Tal fato foi fundamental para o
delineamento dos projetos de liberdade.

Em seguida, mostraremos os projetos de liberdade dos escravizados,


dividindo-os em três grandes eixos: o território e a questão da localidade, a família e
a questão da identificação e os antepassados e a questão do encontro. Esses eixos
não foram determinados a priori, mas se repetiram nas obras pesquisadas de
maneira incisiva e coincidem com características relevantes da tradição bantú.
Assim, tentaremos estabelecer relações e encontrar pontos de contato entre os
eixos e as estruturas dessa tradição. Por fim, falaremos, resumidamente, a respeito
de uma das concretizações destes projetos e que, de certa forma, conjuga-os, que é
235

a questão da religiosidade. Com isso, nos reaproximaremos do nosso objeto de


estudo: as dimensões utópicas das expressões da religiosidade bantú no Brasil.

4.1 – Pré-abolição e abolição: tempos de incertezas

Antes de entramos nas visões específicas dos escravizados e da classe


senhorial durante o período da pré-abolição, referente a esse contexto histórico,
cabe fazermos algumas considerações a respeito de alguns fatos que se
apresentavam naquele momento e que foram determinantes na construção dos
projetos de liberdade.

O primeiro aspecto diz respeito à população africana e afro-descendente


existente no Brasil. Diferentemente da primeira metade do século XIX, quando a
mesma era composta basicamente por africanos, no final do século XIX7 havia uma
população predominantemente afro-descendente nascida no Brasil. Segundo Rios e
Mattos8, a substituição de africanos por afro-descendentes nascidos no Brasil
operou-se a partir de 18509 com a proibição do tráfico. Além disso, no momento da
abolição da escravidão, grande parte dos africanos e dos afro-descendentes já se

7
Segundo Sidney CHALOUB, Visões de liberdade, o tráfico interprovincial da segunda metade do
século XIX despejou no sudeste, a partir de 1850, cerca de 200 mil escravos. O auge da transferência
interna ocorreu entre 1873 e 1881, quando 90 mil negros entraram na região através do porto de
Santos e do Rio de Janeiro. Tal fato aumentou a tensão social nas províncias do sudeste. Os negros
transferidos eram jovens e nascidos no Brasil, filhos ou netos de africanos que haviam sofrido o
tráfico transatlântico. Muitos estavam passando pela primeira experiência traumática. Já para Regina
Célia Lima XAVIER, Religiosidade e escravidão, século XIX, em São Carlos, em 1832, a
desproporção entre livres e escravizados continuava preocupante para os senhores, deixando-os
sempre inseguros. A maior parte da população escrava e africana concentrava-se no campo. Os
escravizados tinham plenas condições de perceber que a balança demográfica pesava em seu favor
e sentiam seu poder de pressão. Para os senhores, não havia diferenças entre as lideranças étnicas
construídas, sendo que todos os escravizados constituíam apenas um inimigo, que devia ser
combatido. Isto não quer dizer que fossem totalmente cegos às diferenças. Os escravizados
percebiam os conflitos e as conseqüências da lei que extinguira, em 1850, o tráfico de escravos
africanos. O que teve como resultado a formação de vários movimentos de revolta em todo país.
8
Cf. Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro.
9
Segundo Ibid., atualmente se privilegia três eixos de investigação sobre os efeitos políticos do fim do
tráfico de africanos: 1) perda de legitimidade da própria instituição escravista; 2) conseqüências do
tráfico interno das áreas menos prósperas para as mais ricas, do Nordeste para o Sudeste. Os
escravos transferidos já estavam no domínio de determinados códigos de funcionamento da
escravidão no país e buscavam universalizar os princípios do mesmo código; 3) mudanças internas
aos grandes plantéis decorrentes do fim do tráfico transatlântico, que tiveram fundamental
importância às comunidades escravas. Com o fim do contínuo afluxo de estrangeiros, normalmente
homens jovens, as comunidades escravas tenderam a se cristalizarem e ampliarem o acesso à
família aos já estabelecidos nas fazendas, já que a relação entre homens e mulheres se normalizava
às gerações nascidas no cativeiro.
236

encontrava livre, sendo que, em algumas famílias, isto já estava ocorrendo há


algumas gerações. Quando pensamos, portanto, nos projetos de liberdade, temos
que nos lembrar que estamos falando de uma população brasileira, afro-
descendente e, muitas vezes, liberta.

Assim, ao abordarmos os projetos de liberdade e a relação com a tradição


bantú, nos referimos àquilo que sobreviveu, mesmo que de maneira ressignificada.
Mais especificamente, estamos falando sobre os processos de hibridização, gerados
a partir de múltiplas alianças durante o processo de escravidão no Brasil. Para
Caclini, a hibridação pode ser entendida como:

... processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que


existem de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas,
objetos e práticas. Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas
foram resultado de hibridações, razão pela qual não podem ser consideradas
fontes puras.10

O autor ainda afirma, e assumimos esta idéia, que a hibridização, que funde
as estruturas e as práticas sociais discretas para gerar novas estruturas e novas
práticas, na maior parte das vezes, ocorre em função da criatividade individual ou
coletiva, buscando reconverter um patrimônio cultural para reinseri-lo em novas
condições históricas e sociais. Passa-se a fazer um novo uso daquela prática
cultural, a partir de um novo sentido dado àquilo que já existia. No nosso caso,
assistimos a reinvenção de aspectos constituintes da tradição bantú dentro de um
novo contexto histórico, social e geográfico.

O segundo aspecto diz respeito às possibilidades de criação dos


escravizados dentro de um sistema que entendia os mesmos como mercadoria, e
não como sujeitos, conforme colocado no terceiro capítulo. Chaloub11 nos auxilia
neste sentido, quando afirma que se reconhece que a presença da classe senhorial
influenciava a forma como os escravizados pensavam e organizavam seu mundo, ao
mesmo tempo em que também se entende que os escravizados instituíam seu
próprio mundo mesmo sob a violência e as condições difíceis do cativeiro. Tal fato

10
Nestor García CANCLINI, Culturas híbridas, p. XIX.
11
Cf. Sidney CHALOUB, Visões de liberdade.
237

nos leva à conclusão de que a compreensão que os escravizados tinham de sua


situação não pode ser reduzida às leituras senhoriais, o que pode ser percebido
através dos costumes:

Desde 1850, a legislação imperial tendeu a transformar o costume em lei,


tornando antigos privilégios da comunidade cativa mais enraizada em direitos
comuns ao conjunto dos escravizados. Foi o Estado imperial que assegurou o
fim do tráfico; reconheceu para os cativos o direito à família, proibindo separar
casais e seus filhos; transformou em direito a prática do pecúlio e da compra
da alforria; proibiu o açoite em 1886. (...) O que esteve em discussão, desde
1850, e se consolidou em 1888, ao abolir-se legalmente a escravidão, foi uma
extensão de direitos civis a todos os brasileiros – com os significados e as
limitações com que eles eram vividos e percebidos na ordem imperial. 12

Dentro deste contexto, os escravizados produziam valores próprios e não


pensavam e agiam apenas guiados por significados que lhes eram inteiramente
impostos. A violência da escravidão não transformou os africanos e os afro-
descendentes em seres incapazes de ações autônomas ou em passivos receptores
de valores senhoriais ou em rebeldes valorosos e destemidos:

... esses negros agiram de acordo com lógicas ou racionalidades próprias, e


seus movimentos estão firmemente vinculados a experiências e tradições
particulares e originais – no sentido de que não são simples reflexo ou
espelho de representações de “outros” sociais.13

O que queremos dizer é que os escravizados são seres humanos e não


mitos, sujeitos de sua própria história, portadores de especificidades construídas
historicamente. O autor ainda sugere que muito daquilo que foi vivido no período
escravocrata, que representou a semente de projetos de liberdade, esteve
alicerçado em leituras de mundo e em lógicas particulares, que foram
conseqüências de uma tradição passada através do tempo pelas gerações. Estamos
afirmando que, além de um ser humano, o escravizado possuía particularidades que
reverberaram em suas construções posteriores, não podendo tomá-lo como um ser

12
Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro, p. 49-50.
13
Sidney CHALHOUB, Visões de liberdade, p. 42.
238

homogêneo. Canclini novamente nos auxilia afirmando que não há uma noção
homogênea de identidade, havendo, a partir dos processos de hibridização, a
necessidade de relativizá-la: “A ênfase na hibridação não enclausura apenas a
pretensão de estabelecer identidades “puras” ou “autênticas”14.

Portanto, sabemos que libertos e ex-senhores tinham percepções e


expectativas diferentes acerca das relações a serem tecidas depois da abolição da
escravidão. Mesmo que a “... história dos movimentos identitários revela[e] uma
série de operações de seleção de elementos de diferentes épocas articulados pelos
grupos hegemônicos em um relato que lhes dá coerência, dramaticidade e
eloqüência”15. Estas diferenças marcaram tensões e conflitos em torno dos
parâmetros das relações cotidianas16.

O terceiro aspecto diz respeito ao término do cativeiro, que desencadeou


transformações decisivas e irreversíveis nas relações cotidianas. A abolição e a
liberdade dos africanos e dos afro-descendentes recolocaram o problema da mão-
de-obra no centro da discussão sobre o processo de transição para o trabalho livre,
sob a ótica da produção e do mercado, mas também nos avisaram a respeito de
transformações no âmbito social e político:

Com efeito, talvez nenhum assunto tenha sido tão decisivo naquelas décadas
finais do Segundo Reinado quanto o significado da liberdade dos negros. Este
era um assunto econômico, pois afinal dele dependia a autonomia ou não dos
negros em suas atividades produtivas, assim como a disponibilidade ou não
da força de trabalho dos ex-escravos para os senhores que se tornavam
patrões. Este era um assunto político, pois afinal o governo podia agora
interferir mais decisivamente na organização das relações de trabalho.
Insinuava-se aqui também a questão social: afinal, eram agora necessárias
políticas públicas no sentido de viabilizar ao negro liberto a obtenção de
condições de moradia, alimentação e instrução, todos assuntos percebidos
anteriormente como parte das atribuições dos senhores. Este era um assunto
que envolvia tudo isso, se bem que isso ainda não era tudo, e se bem que
vários itens dessa agenda não tenham jamais entrado realmente em pauta.17

14
Nestor García CANCLINI, Culturas híbridas, p. XXIII.
15
Ibid., p. XXIII.
16
Os escravos como grupo eram temidos pelos senhores, mas ainda mais os africanos eram vistos
como suspeitos. Segundo Regina Célia Lima XAVIER, Religiosidade e escravidão, século XIX, p. 85:
“Neste sentido, os escravos africanos passaram a representar um perigo mais imanente: havia uma
tendência de não mais se temer este ou aquele escravo insubordinado, mas um “sujeito coletivo”,
encarnado pelos “africanos”, tomados, por isso, muito mais terríveis”.
17
Sidney CHALHOUB, Visões de liberdade, p. 26.
239

Logo, o fim da escravidão não foi um fato isolado do processo histórico, já que
ele ocasionou a necessidade de revisão da estrutura social, o que repercutiu nas
vivências cotidianas de parte significativa ou quase da totalidade da população que
habitava o Brasil. Mais do que um sistema econômico, a escravidão moldou
condutas, definiu hierarquias sociais e raciais, forjou sentimentos, além de valores e
de etiquetas de mando e de obediência. Seu fim foi marcado por tensões sociais
agudas, que por um lado reavivaram antigas demandas e por outro construíram
novos significados e novas expectativas de liberdade. O que estamos querendo
dizer é que o fim da escravidão, apesar de estar associado à questão econômica,
esteve para além dela, já que as pessoas que nela se encontravam foram
constituintes da sociedade formada no Brasil. Seu fim exigiu mudanças em vários
âmbitos.

Cabe destacar, assim, a amplitude do fato histórico, no caso, a abolição da


escravidão, uma vez que ela recolocou os africanos e os afro-descendentes dentro
da sociedade brasileira não só no seu aspecto econômico, mas também político,
social e religioso. Esta população representava grande parte da população
brasileira, o que fez com que sua liberdade influenciasse a tudo e a todos,
colaborando para a constituição de um novo modelo societário e, porque não dizer,
de uma nova prática cultural brasileira. O que podemos concluir, baseados nos três
pontos levantados, é que houve construções que se iniciaram antes da abolição da
escravidão, que foram preservadas e ampliadas no período do pós-abolição, bem
como lógicas sociais e simbólicas que nortearam as escolhas individuais e grupais
dos africanos e dos afro-descendentes para o momento de liberdade:

... os recursos materiais e simbólicos das comunidades, formados durante a


escravidão, foram fundamentais para a concepção de estratégias de
sobrevivência após o fim do cativeiro, sobretudo quando os ex-escravos
buscaram alargar alternativas de vida dentro e fora dos antigos engenhos.18

Além disso, segundo Fraga Filho, as vivências da escravidão se projetaram


sobre o período do pós-abolição, definindo e orientando escolhas, atitudes,
expectativas e projetos de liberdade. Tais vivências cotidianas retornaram em forma

18
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 25-26.
240

de lembranças, de memórias e de aspirações, pois “... as populações que emergiam


da escravidão (...) buscaram modificar o rumo de suas vidas em meio à
imprevisibilidade e aos limites impostos por uma sociedade que continuou assentada
sobre profundas desigualdades sócio-raciais”19.

A formação de hibridizações, que geraram novas estruturas, objetos e


práticas, que foram articulados como forma de dar coerência àquilo que se vivia,
esteve na base dos projetos de liberdade, projetos, esses, que tinham uma intenção
que visava o futuro, aquilo que está à frente. Tais projetos podem ser vistos também
como projetos de esperança, já que se projetavam em um momento de maior risco,
orientados para a luz e para a vida, não cedendo à qualquer tentativa de fracasso.
Os projetos de liberdade possuíam um conteúdo intencional, vislumbrando uma
estrada desejada, um caminho de esperança, que pode não ser a mais perfeita, mas
é melhor do que a estrada indesejada ou a estrada do medo.

Assim, os projetos de liberdade adentram uma classe de consciência que é


antecipatória, caminhando para um campo utópico ou para aquilo que ainda não se
concretizou. Segundo Bloch: “Chega-se assim ao ponto em que a esperança, esse
autêntico afeto expectante no sonho para a frente, não surge mais como uma mera
emoção autônoma (...), mas de modo consciente-ciente como função utópica”20.

O que começou a existir tanto no campo quanto na cidade foi a formação de


significados e de práticas sociais que politizaram o cotidiano dos sujeitos históricos
num sentido específico, ou seja, o sentido da utopia, visando a transformação de
eventos aparentemente corriqueiros em acontecimentos políticos que auxiliaram no
desmoronamento da escravidão. Ações comuns presentes na escravidão se
configuravam como atos que foram percebidos pelos atores sociais como
potencialmente transformadores de suas vidas e da sociedade na qual participavam.
Podemos afirmar que foi o processo de luta dos africanos e dos afro-descendentes –
escravizados ou livres –, que colaborou para o esfacelamento do sistema
escravocrata, no sentido de instituir a política, ou seja, a busca da liberdade, onde
antes havia fundamentalmente a rotina21. Segundo Guimarães:

19
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 26.
20
Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 144.
21
No primeiro recenseamento geral da população do Brasil, em 1872, no Rio de Janeiro, a população
de afro-descendente somava cerca de 60 a 70% do total dos habitantes, divididos quase ao meio
241

As pesquisas que tiveram como foco o Rio de Janeiro e São Paulo,


apresentam os últimos anos do escravismo, principalmente a última década,
como um período de acirramento das tensões entre senhores e cativos,
promovendo uma verdadeira explosão: fugas em massa de escravos,
destruição de propriedades agrícolas, ações civis movidas por mancípios
reivindicando a liberdade e um crescimento exacerbado da criminalidade do
escravo, principalmente contra seus senhores e feitores. Motivados e
instigados pelos emancipacionistas e abolicionistas, o comportamento da
escravaria teria contribuído para criar um clima de terror, redundando,
finalmente, na proclamação da abolição da escravatura.22

Assim sendo, a seguir, apresentaremos alguns aspectos das vivências


africanas e afro-brasileiras, fazendo o contraponto com as idéias da classe senhorial
no período do pré-abolição, tentando construir um tecido no qual seja possível
perceber o fluxo dos acontecimentos e a lógica da esperança, para, mais tarde, ligá-
los com aquilo que foi vivido no período do pós-abolição.

4.1.1 - Pré-abolição

No período compreendido como pré-abolição, fins do século XIX, como


pudemos perceber, já havia certa instabilidade na instituição da escravidão, bem
como na estrutura social vigente, que se alicerçava sobre ela. Novas formas de viver
e de existir estavam sendo consolidadas, questões que veremos já neste tópico –
trabalho, família e fugas - enquanto outras já se insinuavam, como os projetos de
liberdade que citaremos adiante.

Como já observado, uma boa parte dos africanos e dos afro-descendentes já


se encontrava livre antes da abolição da escravidão, residindo nos engenhos e nas
cidades. Por outro lado, os escravizados realizavam trabalhos extras nos domingos
e nos dias santos e eram remunerados por eles. Também existia o trabalho alugado,

entre escravos e livres. A homogeneidade negra era apenas aparente, pois a maioria dos
escravizados era de africanos que chegavam naquele momento ou seus descendentes diretos. Além
disso, segundo Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro, p. 295: “... as fronteiras
entre escravos e cidadãos livres tornavam-se, com freqüência, muito tênues. Enquanto permaneceu
vigente a escravidão no país, para qualquer brasileiro afro-descendente, o reconhecimento da
condição livre ou escrava dependia basicamente das relações costumeiras socialmente
reconhecidas. Um brasileiro negro poderia ser escravo, liberto ou livre, dependendo para isso de se
reconhecer e de ser reconhecido como tal, o que estava estreitamente ligado ao uso de uma
linguagem racial, na qual o silêncio progressivamente se tornou signo de igualdade”.
22
Elione Silva GUIMARÃES, Múltiplos viveres de afrodescendentes na escravidão e no pós-
emancipação, p. 67-68.
242

que consistia na venda da força de trabalho, o que deu a alguns escravizados a


liberdade de circulação, que implicou, muitas vezes, no estabelecimento de uma
rede de sociabilidades:

Torna-se claro, então que escravos vivendo “sobre si”23 contribuíram para a
desconstrução de significados essenciais à continuidade da instituição da
escravidão. (...) é uma tentativa de perceber como os negros articulavam, em
suas ações cotidianas, os dois componentes centrais do viver “sobre si”: a
possibilidade de morar fora da casa dos senhores, e o desejo de certa
autonomia nas atividades produtivas às quais se dedicavam. Desvendar esta
articulação equivale a aprender um pouco do sentido que os próprios negros
conferiam à liberdade.24

Além de todos os trabalhos independentes citados acima, cabe destacar o


fato dos escravizados também poderem produzir a própria subsistência em
pequenas parcelas de terra. Num primeiro momento, as atividades agrícolas
independentes eram vantajosas para a classe senhorial, pois reduziam os gastos
com a alimentação e mantinham os escravizados ligados às propriedades. Mas, por
outro lado, o cultivo de roças conferiu aos escravizados espaços de independência
pessoal na produção da própria subsistência e, portanto, daquilo que servia como
alimento25 e da comercialização do que era cultivado. O acesso às roças, com o
tempo, transformou-se numa fonte de conflitos, na medida em que os escravizados
criaram um senso de direitos sobre as parcelas de terras que cultivavam:

Desde a segunda metade do século XIX, mobilidade espacial e trabalho


familiar autônomo combinaram-se de forma a permitir, mesmo que
eventualmente, acesso à propriedade, seja de uns poucos escravos, seja de
um pedaço de terra, a amplas camadas da população. Constituíam-se, assim,
como pilares básicos a definir as possibilidades de sobrevivência para a maior
parte da população rural livre no contexto escravista, possibilidades

23
Sidney CHALOUB nos ajuda a entender a idéia a respeito de ser uma pessoa livre, à qual estava
atrelada um conteúdo ideológico. Ideologicamente, “o viver sobre si” significa se aproximar da
liberdade, buscando destruir a imagem de uma sociedade de duas classes – livres e escravos –
desmanchando conteúdos cruciais a continuidade da escravidão.
24
Sidney CHALHOUB, Visões de liberdade, p. 235-236.
25
Robert SLENES, Na senzala, uma flor, trabalha de maneira detalhada a questão do sal dentro da
alimentação dos escravizados de tradição bantú. Comer muito sal era prejudicial para o contato com
os antepassados, portanto ter controle sobre a própria alimentação representava muito mais do que
apenas poder fazer a própria comida. Representava a possibilidade de resgate de aspecto da
tradição, que ainda não possuía canais de manifestação.
243

amplamente acessíveis aos descendentes de libertos, que se constituíram,


desde finais do século XVIII, em parte expressiva da população.26

Toda gama de trabalho deu aos escravizados, principalmente, aqueles que


possuíam roças, a possibilidade de ter acesso ao dinheiro e aos bens, que não
existiam nos engenhos, bem como de estabelecer relações com escravizados e
libertos de outros engenhos e criar redes de sociabilidade e de comércio com
pessoas da cidade, fruto da circulação maior que passou a existir, não só de
produtos comerciais, como de produtos simbólicos. Tais relações foram acionadas
nos momentos de fuga e de questionamento da legitimidade da escravidão. Assim,
as novas formas de trabalho no final do século XIX: “... serviram para moldar
expectativas de liberdade de determinados setores da população escrava. (...) os ex-
escravos que tinham acesso àqueles recursos buscaram assegurar o que haviam
acumulado ao longo da vida cativa”27.

O acúmulo de bens nos remete a outro tópico, que é a formação de famílias.


Fraga Filho observou, nos inventários, duas ou três gerações de famílias residindo e
trabalhando juntas. Nas propriedades, os escravizados constituíram famílias e
mantiveram relações estáveis de uma geração para outra. Para o autor: “... a maioria
crioula e a existência de laços familiares extensos tiveram implicações importantes
na definição de estratégias escolhidas no pós-abolição”28.

A formação de famílias não ocorreu sem uma série de regras, que não só
levava em conta a tradição africana, as vivências do presente, bem como as
expectativas do futuro. Segundo Rios e Mattos29, as rivalidades entre os grupos de
tradições africanas diferentes eram, muitas vezes, reproduzidas no cotidiano das
grandes fazendas brasileiras, o que tinha como conseqüência o impedimento de
casamentos e de ligações por laços de compadrio. Essas rivalidades estiveram
presentes até o século XIX, pois ainda chegavam africanos em função do tráfico,
mesmo que ilegal a partir de 1850. Como os momentos de tensão eram freqüentes,
os escravizados buscaram criar regras que minimizassem o conflito.

26
Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro, p. 38.
27
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 44.
28
Ibid., p. 35.
29
Cf. Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro.
244

A formação de redes de parentesco e a tentativa de regulamentar o mercado


matrimonial foram mecanismos utilizados para fomentar a pacificação das
senzalas30. Como os escravizados possuíam certa possibilidade de negociação, a
boa gestão de uma fazenda tinha que conjugar considerações comunitárias e
políticas, o que pressupunha o atendimento de determinadas demandas dos
mesmos, como, por exemplo, não se separar aqueles que estavam habituados a
viver juntos. Nas relações de compadrio, como já visto em nota no terceiro capítulo,
buscavam-se primordialmente escravizados, em sua maioria do mesmo senhor,
vivendo no mesmo local, dando preferência a escravizados antigos da fazenda onde
viviam ou que pertencessem a famílias antigas. Conforme nos esclarece Engemann:

Neste contexto, nascer não diria respeito à mãe e ao filho ou ao pai, se


conhecido fosse. Mas a cada nascimento a coletividade enquanto tal se
reproduzia e afastava-se da aniquilação; cada novo membro era alguém que
deveria ser absorvido, educado e socializado também pelo organismo coletivo
no qual o destino o lançou. Isso significa que deveria aprender os códigos de
conduta, postura e comunicação. Deveria partilhar, no máximo possível as
crenças e costumes, as tradições e memórias. De tal forma isso devia
acontecer, que ao final ele contribuiria para dar sentido ao todo e a cada um,
assim como cada um dos que o cercavam, e dele recebiam sentido para si,
também dariam sentido a ele e aos seus atos. (...)
Do mesmo modo se dava com o batismo e o parentesco forjado com o
compadrio. Apadrinhar em um plantel pequeno era sem dúvida a consecução
de um laço de solidariedade de grande valia na senzala. Mas tratando-se de
um número maior de envolvidos pelas redes de solidariedade, a consecução
de padrinhos podia adquirir proporções bem maiores. Derivavam daí a
nomeação dos escravos e os significados ou memórias advindos deste ou
daquele padrão de fazê-lo.31

A formação de grandes famílias e o trânsito para a alforria por algumas


pessoas criaram situações nas quais se encontravam pessoas de diferentes
condições jurídicas, livres e escravizadas, dentro das mesmas famílias. Tal fato
implicou na criação de espaços comuns de sociabilidade entre livres, forros e
escravizados. Esses espaços e as relações estabelecidas dentro deles nos leva ao
nosso terceiro ponto: as fugas.

30
Cf. Manolo FLORENTINO; José Roberto GÓES, A paz nas senzalas.
31
Carlos ENGEMANN, De laços e de nós, p. 140-141.
245

Por volta de 1880, as fugas representavam amplas possibilidades de


rompimento definitivo com os laços escravistas32. Ao fugirem para as cidades, os
escravizados acionaram os laços de parentesco e de amizade que possuíam com
livres e libertos residentes nos centros urbanos. Ao buscarem refúgio em outras
propriedades tentavam obter a proteção de outros senhores de engenho. As fugas
constantes tiveram como conseqüência a escassez de trabalhadores, o que acirrou
a disputa por mão-de-obra entre os donos de engenhos, fazendo com que os
escravizados utilizassem esta situação a seu favor. As fugas passaram, então, a
representar formas de pressão e de negociação, nas quais os escravizados pediam
a reconsideração das formas de tratamento ou, muitas vezes, iam à polícia queixar-
se de fraudes:

Sabe-se que as iniciativas escravas estavam centradas em aspectos


concretos da relação escravista, na questão dos castigos, na formação e na
preservação de laços familiares e afetivos, na preservação dos dias de
domingo para o descanso ou trabalho nas roças de subsistência, na defesa
de valores e atitudes, na preservação de espaço e tempo para cultuar santos
e deuses e, principalmente, na alforria. É certa que essas questões
atravessaram a escravidão em toda a América; contudo, num momento em
que o escravismo vinha perdendo legitimidade, elas adquirem significados
políticos próprios. Em torno daquelas questões ocorreram mudanças
significativas nas atitudes e comportamentos dos escravos frente aos
senhores, redefinindo formas de negociar e pressionar.33

Os africanos e os afro-descendentes cada vez mais vinham assumindo


atitudes mais firmes no sentido de obter a liberdade nesse período, o que exacerbou
as tensões e os conflitos sociais. O que vemos é que, por parte deles, antes da
abolição da escravidão, algumas ações concretas executadas por sujeitos históricos
já estavam sendo construídas, o que afetava as ações da classe senhorial34. Uma

32
O processo de correlação de forças entre senhores e escravizados em curso desde a década de
1850 é intensificado a partir de 1865, somado ao quadro da crise institucional aberto com a Guerra do
Paraguai, produziu um ambiente necessário para a aprovação da Lei de 1871.
33
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 87-88.
34
Elione Silva GUIMARÃES, em Múltiplos viveres de afrodescendentes na escravidão e no pós-
emancipação, p. 107, faz uma comparação bastante interessante entre o discurso produzido pelas
elites em São Paulo e em Minas Gerais, fruto de uma reação às ações executadas por africanos e
por afro-descendentes: “Quanto aos discursos produzidos pela elite, temos de um lado São Paulo,
com o discurso do “descontrole e pânico” e Minas Gerais, com o discurso da “perfeita tranqüilidade” e
da “boa índole do povo mineiro”. Diante desta divergência, resta-nos a questão: por que vivendo
situações similares, as elites paulista e mineira produziram discursos diferenciados e mesmo
246

destas repercussões, nas décadas finais da escravidão, foi o conflito entre o direito
de propriedade, reivindicado pela classe senhorial, e o princípio de liberdade,
almejado pelos escravizados, o que já insinuava, mesmo para a classe senhorial, a
dificuldade de continuidade da escravidão. Estratégias e apostas políticas foram
elaboradas para momentos e para situações específicas. Segundo Guimarães
falando a respeito de Minas Gerais:

... nos anos finais do escravismo, a situação era tensa. Escravos fugiam,
matavam e morriam em busca de suas liberdades; os abolicionistas
perturbavam a paz e a tranqüilidade dos fazendeiros e estes, arraigados ao
escravismo, aceitavam como incontestável a eminência do seu fim, mas
relutaram até o último momento, esperançosos por uma solução jurídica e
gradual, para então, ao final, optarem prioritariamente pelo trabalhador
nacional, que lhes pareceu mais dócil e de fácil trato.35

Assim, para Chaloub36, a partir de um determinado momento, as classes


proprietárias ficaram, de certa maneira, a reboque dos acontecimentos, no que se
refere ao fim da escravidão, apesar de insistirem na sua auto-imagem de sujeitos
históricos onipotentes e arrogantes. Elas buscavam convencer os escravizados que
o caminho para a alforria passava pela obediência e pela fidelidade em relação aos
senhores. A concentração do poder de alforriar, exclusivamente nas mãos dos
senhores, fazia parte de uma ampla estratégia de produção de dependentes e de
transformação de ex-escravos em negros libertos, ainda fiéis e submissos a seus
antigos proprietários. Apesar destas tentativas, a alforria, enquanto uma política de
domínio e uma estratégia de produção de dependentes já vinha falindo havia pelo
menos duas décadas37.

antagônicos? Tanto nas regiões cafeeiras paulistas como na mineira (a Zona da Mata), havia
carência de mão-de-obra para suprir as necessidades de produção. Ambas se viram na eminência da
utilização de mão de obra exógena – São Paulo optou pelo imigrante europeu, Minas (Zona da Mata),
preferencialmente pelo migrante do sertão. É possível que Minas, possuindo reserva de mão-de-obra
(conforme analisado anteriormente), arraigada ao escravismo, e, na eminência do seu fim, apostando
no aproveitamento da mão-de-obra nacional, tenha produzido um discurso na contramão do paulista:
o da boa índole e da passividade.
35
Elione Silva GUIMARÃES, Múltiplos viveres de afrodescendentes na escravidão e no pós-
emancipação, p. 107.
36
Cf. Sidney CHALHOUB, Visões de liberdade.
37
Um destes negócios era a compra e a venda de escravos, objeto de estudo de Ibid. Sabe-se que a
participação dos escravizados nos negócios de compra e de venda, mesmo que incertas e
delimitadas pelas relações de classe numa sociedade profundamente desigual, tinha regras e lógicas
consagradas pelo costume. Havia a noção costumeira de que um ato de compra e venda era passível
247

Ainda, segundo o autor, o domínio dos senhores ruía a olhos vistos, pois,
muitas vezes, os escravizados precisavam ser convencidos da legitimidade do seu
cativeiro e questionavam castigos excessivos ou aplicados por motivos injustos.
Cada vez mais eles tomavam consciência do respeito aos seus direitos e
fundamentavam ações firmes no sentido de impor certos limites aos negócios da
escravidão:

... agiam segundo premissas próprias, elaboradas na experiência de muitos


anos de cativeiro, nos embates e negociações cotidianas com os senhores e
seus agentes. Eles aprenderam a fazer valer certos direitos que, mesmo se
compreendidos de maneira flexível, eram conquistas suas que precisavam
ser respeitadas para que seu cativeiro tivesse continuidade: suas relações
afetivas tinham de ser consideradas de alguma forma; os castigos precisavam
ser moderados e aplicados por motivo justo; havia formas mais ou menos
estabelecidas de os negros manifestarem sãs preferências no momento
decisivo da venda. 38

No final do século XIX, segundo Fraga Filho39, os escravizados perceberam


que estavam ocorrendo mudanças institucionais importantes e, através delas, era
possível melhorarem suas condições de existência dentro da escravidão, como, por
exemplo, alcançar a alforria. Foi um momento de grandes expectativas de liberdade.
Além da denúncia de maus tratos, os escravizados também recorriam à polícia para
afirmar o desejo de não mais servirem aos seus senhores, pois notaram as

de reversão, sendo que várias negociações incluíam um período de testes, no qual o comprador
examinava os serviços do cativo, ao mesmo tempo em que se abria a possibilidade do escravizado
interferir de alguma forma no rumo das transações.
38
Sidney CHALHOUB, Visões de liberdade, p. 59.
39
A lei de 28 de setembro de 1871, conhecida como a Lei do Ventre Livre, foi a de maior impacto nas
relações escravistas. Além de libertar os filhos dos escravizados, instituiu o fundo de emancipação
que libertava escravizados com recursos provenientes de impostos sobre propriedade escrava,
loterias, multas para quem desrespeitasse a lei e dotações dos orçamentos públicos. Criava a
matrícula obrigatória dos cativos, medida que visava ao maior controle fiscal sobre os proprietários. O
escravizado que não fosse matriculado poderia ser considerado livre pelas autoridades. Essa lei abriu
perspectivas importantes para os escravos alcançarem a alforria no âmbito da legalidade. Ampliaram-
se as possibilidades de alianças de escravos com setores diversos da sociedade que poderiam ser
mobilizados em favor das ações de liberdade. Segundo Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da
liberdade, p. 51: “No final da década de 1870, os escravos perceberam que muitas autoridades
judiciais se estavam posicionando claramente em favor de suas demandas, impedindo a venda para
outras províncias dos que tinham pecúlio, concedendo alforrias aos que não eram resgatados nas
cadeias públicas, decidindo o valor das alforrias por valores mais baixos que o pretendido pelos
senhores. A partir da década de 1870, intensificaram-se as fugas de escravos dos engenhos para
Salvador, com o objetivo de acionar as autoridades judiciais nas contendas com os senhores. Assim
o faziam na certeza de que as autoridades judiciárias de seus distritos não eram suficientemente
independentes para acolher seus pleitos”.
248

mudanças institucionais e de postura de algumas autoridades. Além disso, o


movimento abolicionista tornava-se cada vez mais forte, o que fez com que os
abolicionistas prestassem assistência jurídica, negociassem com os senhores as
condições da liberdade, oferecessem proteção aos cativos, examinassem livros de
matrículas, redigissem petições ou se apresentassem como advogados em ações
movidas contra senhores e promovessem eventos e conferências para divulgar o
abolicionismo, como forma de arrecadar dinheiro para a alforria dos escravizados.

Com isto, segundo Chaloub, podemos afirmar que as últimas décadas de


escravidão foram anos de esperanças e de conquistas para os africanos e os afro-
descendentes. Eles tiraram proveito das possibilidades de ganhos econômicos no
meio urbano e tiveram a experiência de conseguir comprar sua liberdade através do
trabalho e da ajuda de familiares e de amigos. Além disso, houve o surgimento do
movimento abolicionista e o paternalismo do imperador, que se somaram às
mudanças institucionais importantes nas últimas duas décadas de escravidão:

O tradicional método de luta contra o cativeiro, consagrado pelo costume, de


conseguir a alforria através da indenização do senhor se transformara em lei
escrita – isto é, num direito dos escravos que não mais dependia da
aquiescência dos senhores. (...) Ao contrário, havia indícios claros de que
algumas de suas principais aspirações – a liberdade por indenização, o
repúdio a castigos injustos ou desmedidos, a resistência a vendas para locais
aonde não desejassem ir – podiam eventualmente ser levadas em
consideração pelas autoridades policiais e judiciárias.40

Portanto, é possível afirmar que no momento chamado de pré-abolição a


escravidão já sofria adaptações importantes nas cidades, como a maior autonomia
dos cativos no trabalho, a possibilidade deles morarem fora da casa dos senhores e
a dificuldade da classe senhorial em seguir os passos dos africanos e dos afro-
descendentes num ambiente diversificado e com uma população numerosa. Tais
mudanças acabavam inviabilizando a política de domínio tradicional da escravidão.
É neste ambiente tenso e conflituoso, incerto e esfacelado que em treze de maio de
1888 é decretada a Abolição da Escravidão. Apesar de muitos deles já se

40
Sidney CHALHOUB, Visões de liberdade, p. 180-181.
249

encontrarem livres antes desta data, ela não deixou de se fazer importante, o que,
para nós, implica em fazer algumas reflexões a respeito deste momento.

4.1.2 – A questão da alforria

Antes de falarmos a respeito do dia treze de maio de 1888, achamos


conveniente discutirmos a alforria, uma vez que ela fundamentalmente implicou na
mudança identitária de muitos africanos e afro-descendentes, uma vez que a partir
dela, eles deixavam de ser escravizados para se tornarem libertos, o que ocasionou
um novo status social. Sabemos que a abolição difere da alforria, uma vez que a
abolição delimita um período da história, consagrando-se como um marco, enquanto
que a alforria foi um ato que aconteceu ainda no período da escravidão. Outra
diferença marcante é o fato da abolição ter sido um ato coletivo em contraposição à
alforria, que, na maior parte das vezes, era um ato individual, salvo quando havia
empenho do grupo familiar, no sentido de compra da alforria, mas possuindo um
sentido comunitário. Contudo, há sentidos que perpassam tanto a abolição quanto à
alforria, que gostaríamos de nos deter:

... a gestação de relações comunitárias entre os escravos, no Brasil, significou


mais uma aproximação com uma determinada visão de liberdade que lhes era
próxima e que podia, pelo menos em teoria, ser atingida através da alforria,
do que a formação de uma identidade étnica a partir da experiência do
cativeiro. A família e a comunidade escrava não se afirmaram como matrizes
de uma identidade negra alternativa ao cativeiro, mas em paralelo com a
liberdade.41

Chaloub aponta um primeiro fato: com a alforria ou com a abolição o senhor


perde o domínio e o poder que tinha sobre o escravizado, ou seja, há a falência da
política de domínio. Ao escravizado é restituído o seu estado natural de ser livre,
estado no qual os seres humanos nascem. O autor quer dizer com isto que assim
como o escravizado não adquiriu a escravidão, ele também não obteve a liberdade,
pois ele sempre a conservou de forma latente. O cativeiro significou apenas que ele
foi vítima de um fato histórico: “Ao invés de ser uma organização normal da ordem

41
Hebe Maria MATTOS, Das cores do silêncio, p. 127.
250

social, a escravidão é uma invenção histórica contrária ao “direito natural”, uma


violação do “estado natural de homem” inerente ao escravo”42.

Ainda no entender dele, a escravidão foi uma forma de organização das


relações de trabalho assentada nas bases de subordinação e de dependência dos
escravizados para com os senhores. Como contrapartida dessa dependência, os
senhores deviam proteção e orientação a seus escravizados, mesmo que esta
relação estivesse pautada na violência. A alforria não significava um rompimento
brusco da política de domínio imaginário, pois o africano e o afro-descendente,
muitas vezes, despreparados para as obrigações de uma pessoa livre, passavam de
escravizados a sujeitos livres dependentes. A representação senhorial dominante
sobre a alforria era a de que o escravizado, sendo dependente moral e
materialmente do senhor, não podia ver esta relação bruscamente rompida, quando
alcançava a liberdade. Assim, havia em torno da alforria uma forte expectativa, por
parte dessa classe, da continuidade das relações pessoais anteriores, da renovação
do papel do africano e do afro-descendente como dependentes e do senhor como
patrono e protetor, uma vez que:

... a ideologia da alforria “seduzia” de certa forma os escravos, tornando-se


uma das sutilezas da dominação escravista. É preciso admitir que existiam
essas e outras sutilezas na política de domínio de trabalhadores escravos,
pois sem a introjeção pelo menos parcial de certos símbolos de poder seria
impossível imaginar que uma determinada forma de organização das relações
de trabalho pudesse se reproduzir por tantos séculos. A “pessoalização” e
privatização do controle social eram marcas da escravidão que tinham na
concentração do poder de alforriar exclusivamente nas mãos dos senhores
um de seus símbolos máximos. Tanto senhores quanto escravos conheciam
perfeitamente esse aspecto crucial do imaginário social na escravidão. 43

Assim, sabemos que com a abolição, a instituição da escravidão havia se


encerrado, porém as relações que permeavam os agentes históricos ainda se
perpetuaram por um bom período, já que falamos de processos e não,
simplesmente, de fatos. O que queremos dizer é que a lei, simplesmente, não
acabou abruptamente com relações de dependência, de subordinação e de
proteção, havendo, muitas vezes, a continuidade de uma forma de compromisso no
42
Sidney CHALHOUB, Visões de liberdade, p. 130.
43
Ibid., p. 150.
251

âmbito pessoal, uma vez que há significados culturais a respeito dos significados da
liberdade naquela sociedade:

Uma sociedade construída sobre a escravidão necessariamente conferia


significados específicos à noção de liberdade que orientava as ações
daqueles indivíduos desenraizados e despossuídos, que constantemente
produzia, inclusive por concessão ou compra de alforria.44

Em contrapartida a tudo isto, temos que ter claro que a liberdade era uma
causa dos africanos e dos afro-descendentes, uma luta que tinha significados
especialmente populares, no sentido de que eram elaborações culturais próprias,
forjadas na experiência do cativeiro. Essa luta não permanece embotada, marginal e
enfumaçada, mas se apresentava vigorosa e saudável. Aquilo que ainda não esteve
ciente foi tornado consciente quanto ao seu ato, de que é uma emergência, e ciente
quanto ao conteúdo, daquilo que está emergindo. Tinham a seu favor algo que ainda
seria do tipo que podia ser esperado, isto é, que não girava nem se perdia em torno
de uma possibilidade vazia, mas antecipava psiquicamente uma realidade possível.
Obter a alforria tornou-se utópico, pois ela era uma forma dos escravizados forçarem
o esfacelamento do sistema, ao mesmo tempo em que obtê-la implicou em uma
mudança de posição social, além de restituir ao africano e afro-descendente o seu
direito de ser livre, portanto cheio de esperança. Apesar de muitos serem livres
antes da abolição da escravidão, tal fato não passou desapercebido.

4.1.3 - Durante a abolição

A notícia da abolição definitiva do cativeiro no Brasil foi bastante festejada nas


senzalas dos engenhos e nas cidades. Os libertos sabiam que estavam vivendo um
momento especial e as festas da abolição foram as primeiras manifestações
públicas que apontavam para o desejo que tinham de participarem politicamente dos
acontecimentos na condição de cidadãos livres. Os festejos transformaram-se em
grandes manifestações populares, o que mostrava a amplitude social do movimento

44
Hebe Maria MATTOS, Das cores do silêncio, p. 33.
252

antiescravista. O dia treze de maio45 representou o começo de um novo momento


histórico, pois estava em disputa possibilidades e limites da condição de liberdade:

As aspirações e projetos de liberdade engendrados durante e depois da


escravidão foram parte do processo de mudanças de padrões de
comportamento e conduta oriundos do escravismo. (...) Ao afirmarem sua
nova condição, os libertos defrontaram-se com os limites materiais e
simbólicos oriundos da velha ordem escravista. Mesmo sem modificar a
ordem hierárquica vigente, a abolição havia abalado as bases das relações
cotidianas nos engenhos e alhures. 46

Os meses que precederam o dia treze de maio e lhe seguiram foram de


desorganização do trabalho nas fazendas das antigas regiões cafeeiras, com
intensa movimentação dos antigos trabalhadores escravizados e com acirrada
concorrência entre os fazendeiros pela mão-de-obra liberta. Vários ex-senhores
tentaram explorar os laços comunitários dos grupos de escravizados mais antigos,
para convencê-los a permanecer nas fazendas. Os ex-senhores utilizavam
estratégias para contar com uma colônia de trabalhadores livres em suas terras,
numa conjuntura de completa desorganização das formas tradicionais de controle da
força de trabalho, na qual as expectativas e as concepções de liberdade dos libertos
desempenharam papel fundamental.

Era difícil para a classe senhorial pensar na possibilidade dos escravizados


terem vontade própria e agirem conforme o próprio desejo. A abolição representou
mais do que a perda dos escravizados, ela havia destruído um estilo de vida
fundado em padrões e etiquetas de mando e de obediência, o que recolocou os
grupos sociais no que diz respeito às identidades. Para a classe senhorial, a
abolição passou a ser lida como uma ruptura, o que foi utilizado como argumento
para mostrar que a classe senhorial havia sido abandonada e injustiçada pela

45
Segundo Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, em Memórias do cativeiro, após a chegada maciça de
escravos de origem bantú nas décadas de 1830 e 1840, a região conheceu uma relativa estagnação,
predominando, ao final do período escravista, comunidades escravas antigas e estabilizadas. Ambas
as regiões no Vale do Paraíba fluminense conheceram um grande afluxo de africanos de língua
bantú, na fase ilegal do tráfico de escravos no Brasil (1831-1850), que coincide com a primeira fase
da expansão cafeeira no Estado. Práticas culturais de origem bantú, especialmente o jongo e o
caxambu são revalorizadas. Num contexto de legitimação dos direitos de posse da terra, reforçam-se
os elementos que delimitavam as fronteiras dos grupos em relação à sociedade envolvente.
46
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 128.
253

decisão do governo imperial, esquecendo, muitas vezes, do papel desempenhado


pelos africanos e pelos afro-descendentes no processo de abolição:

Os projetos de liberdade e os esforços que fizeram para se distanciar do


passado estavam fundamentados em experiências de lutas travadas contra a
própria escravidão. Esse era um aspecto importante dos embates que se
seguiram à abolição que o discurso senhorial tentou silenciar.47

Já para os africanos e para os afro-descendentes se afirmarem como livres,


eles procuraram distanciar-se do passado da escravidão, rechaçando papéis
inerentes à antiga condição. A idéia de liberdade fundia-se com a idéia de igualdade,
o que era complicado em se tratando de uma sociedade fundamentada em
desigualdades sociais e étnicas. A condição básica da autoridade senhorial, que
consistia em mandar e ser acatado, perdeu força. Ao se dizerem forros, os libertos
pretendiam dizer que já não se sentiam obrigados às rotinas cotidianas de trabalho.

Se por um lado, continuar no canavial e recusar o trabalho nos termos das


velhas relações escravistas, era repelir a continuação do cativeiro, por outro lado, as
dificuldades de subsistência dos libertos diminuíram o seu poder de barganha no
processo de negociação com os donos de engenho. O trabalho assalariado, muitas
vezes, não era suficiente para fixar ou atrair o trabalhador oriundo da escravidão.
Aos libertos interessava ter acesso à terra, o que era visto como uma possibilidade
de situação estável. Muitos libertos retomaram a antiga atividade sob pressão das
dificuldades de sobrevivência, mas retornando ao engenho, buscavam colocar as
relações de trabalho em outros termos.

As iniciativas dos libertos se chocavam com as pretensões senhoriais de


torná-los trabalhadores dependentes. Eles procuravam agir como cidadãos livres e
portadores do direito de serem protegidos pelas autoridades. Porém, não
necessariamente, as autoridades pensavam desta maneira, já que alguns protestos
eram abafados, ainda, segundo os referenciais hierárquicos vigentes. O conflito
surgia, pois, para os senhores de engenho, era preciso dar continuidade à grande
lavoura açucareira e fomentar as fazendas de café, enquanto que para os libertos
era vital fortalecer e ampliar a pequena plantação, que lhes abriria possibilidades de
47
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 140.
254

sobreviver com mais independência. Era imperativo redefinir o lugar dos libertos na
divisão social de trabalho, porém os senhores queriam mantê-los como força de
trabalho disponível à grande lavoura, muitas vezes, empenhando-se em dificultar o
acesso dos libertos às atividades que garantissem alguma independência em
relação à lavoura de cana.

Para muitos libertos, a migração significou distanciar-se do passado de


escravidão. A mobilidade era um componente do que os libertos definiam como
liberdade, relacionando-a ao desejo de reunir familiares, que haviam sido separados
pela escravidão. A decisão de abandonar os engenhos tinha motivações diversas
que incluíam a expectativa de melhoria das condições de sobrevivência e a
reparação de laços afetivos quebrados pela vida escrava:

Além disso, é preciso pensar as migrações no contexto da diversidade de


experiências dos libertos no pós-abolição. A decisão de migrar para outras
localidades poderia estar relacionada à esperança de alargar possibilidades
de sobrevivência fora dos antigos engenhos, ou de distanciar-se da
autoridade dos antigos senhores.48

É dentro desta situação de interesses diversos e contraditórios, cheia de


conflitos, e de uma vivência que repercutiu em cada um daqueles que passaram
pela escravidão e agora se encontravam na condição de livres, que os diversos
projetos de liberdade foram forjados. Apresentaremos agora estes projetos de
liberdade, tendo em vista os aspectos da tradição bantú presentes em cada um
deles, no sentido do seu reavivamento.

4.2 – Projetos de liberdade

Vimos que nos tempos seguintes à abolição da escravidão, conflitos entre


libertos e senhores se acirravam, uma vez que tinham interesses, praticamente,
antagônicos: os primeiros queiram reconstruir a própria vida em novas bases sociais
e políticas, enquanto que os segundos esforçavam-se para manter as coisas da
mesma maneira. É dentro deste contexto que os libertos construíram os projetos de

48
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 319.
255

liberdade, que traziam como marca fundante a possibilidade de escolha e de tomar


decisões sobre a própria vida, o que e onde fazer, onde e com quem morar:

Assim, no curso dos anos que se seguiram à abolição, os libertos buscaram


ampliar as atividades independentes da grande lavoura de cana, cultivar
gêneros de subsistência nas roças e vender o excedente nas feiras locais,
diminuir o ritmo de trabalho, negociar melhor remuneração, enfim, forjar
condições de vida que os distanciassem do passado de escravidão. 49

Nas ações que empenhavam para se distanciar do cativeiro, existia a idéia de


comunidade ou de formação de grupo. Como observado no terceiro capítulo, nas
áreas urbanas já havia a formação de comunidades de escravizados que estavam
para além da família, mesmo a família extensa. A comunidade, no nosso entender,
foi fundamental para a constituição daquilo que chamamos de projetos de liberdade,
uma vez que ela, supomos, ancorava e dava sustentação a esses projetos. A
comunidade, neste sentido, é entendida como um conjunto de indivíduos que
partilha símbolos, ritos, mitos e parentescos dentro de um mesmo espaço
socialmente ordenado. A comunidade, assim, tornava-se importante, pois propiciava
a circulação de bens simbólicos e financeiros, que aliviavam a tensão existente no
cativeiro, tornando esta vida suportável:

Tal circulação provavelmente gerava alguma acumulação, em especial do


bem mais precioso em uma situação de penúria: a esperança. Para o senhor,
a esperança era de que não haveria fugas ou rebeliões, para os escravos a
esperança era de poder viver da melhor maneira possível e, quiçá um dia,
acumular meios suficientes para chegar a sair de sua condição jurídica,
ascendendo socialmente para além da escravidão.50

O que vemos na fala do autor é que a comunidade era portadora da


esperança e, portanto, da possibilidade antecipatória e do sonho de um mundo
diferente daquele que se estava vivendo até então. Criavam-se usos coletivos, que
se colocavam nas brechas do sistema como forma de melhorar a existência dos
escravizados. Fazia-se um uso diferenciado daquilo que era proposto pelo sistema
49
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 238-239.
50
Carlos ENGEMANN, De laços e de nós, p. 27.
256

dominante, a partir dos elementos econômicos, sociais, políticos e culturais


disponíveis. Houve uma bricolagem dos fragmentos para atender as mais diversas
finalidades, além da característica da junção das necessidades orgânicas e
materiais, com um jeito próprio de filtrar e se apropriar de informações, fatos e
experiências. O que é importante se notar é que mesmo as estratégias que eram
aparentemente individuais continham um sentido coletivo:

Tanto a sobrevivência quanto a busca de outros patamares sociais não se


reduziam a um projeto individual, ainda que fossem executadas a partir de
uma ação individual. São mães que obtêm a alforria para filhos, ou obtendo a
sua passam a trabalhar pela dos filhos. Maridos e esposas, famílias inteiras,
várias combinações de esforço pertinaz do qual nem sempre se usufrui como
indivíduo, mas por certo se desfruta como grupo. 51

O que estamos querendo dizer com isto é que por maior que fosse a violência
sofrida durante a escravidão e por mais que houvesse a divisão de parentes
consangüíneos, os grupos de escravizados não eram aglomerados de indivíduos,
mas pessoas que produziam e reproduziam coletivamente comportamentos que os
ajudavam a lidar com os fatos sociais dentro de determinado contextos histórico, o
que colaborava para a construção comunitária. Formavam-se alianças interpessoais
e pequenos grupos dentro de um espaço social de convívio. Tal fato implicava em
uma interação entre identidades de pertença diferenciadas, seja em relação às
tradições, seja em relação ao local de nascimento. Acontece que tal interação
implicou também em um compartilhamento de tradições, produzindo um conjunto de
crenças e de práticas rituais, bem como a reativação de aspectos das mesmas que,
até então, encontravam-se inconscientes.

Engemann ainda afirma que: “A vida comunal se construía, isto é, produzia-se


e reproduzia-se, à medida que certos saberes e fazeres eram compartilhados,
aceitos e respeitados pelo conjunto de seus habitantes”52. Assim, quando pensamos
nos projetos de liberdade, temos que entendê-los dentro de um conjunto de idéias
que já eram comuns às comunidades escravizadas. Aquilo que foi proposto como
projeto, não era algo individual, mas algo que foi gestado durante a escravidão e

51
Carlos ENGEMANN, De laços e de nós, p. 55.
52
Ibid., p. 105.
257

compartilhado por várias pessoas, sendo o parentesco o primeiro organizador da


vida social cativa:

Uma das diversas abordagens possíveis para a vida comunitária e sua função
no cativeiro é de que, por meio da construção de um ethos comunal,
constroem-se igualmente os significados fundamentais da articulação e da
apreensão do mundo, intra e extra-plantation. Vale dizer que, como
instrumentos que transcendem as dimensões pessoais, os signos e a sua
imediata associação a significados são, por si só, uma atividade coletiva,
comunal. No caso específico da vida cativa, a comunhão de símbolos (verbais
ou não) e de sentidos seriam uma parte fundamental no suporte à vida,
permitindo apreender as experiências vividas, quer no âmbito imediato da
escravidão, quer além dela. A apreensão do vivido seria o primeiro passo
para expandir o alcance da sua capacidade de administração do mesmo.
Com isso, postulamos que não só os escravos eram capazes de
compreender o mundo colonial que os cercava e articular-se com ele, tirando
o máximo de proveito de suas esquálidas possibilidades, mas o faziam
melhor quando vivendo em um grupo articulado como uma comunidade.
Desse modo, a possibilidade de estabelecer uma comunicação singular e
criar significados próprios era uma das vantagens da vida comunal cativa.
Não apenas a geração de significados de usos cotidianos, mas, e
principalmente, o poder de gerar sentidos para a sua própria existência.53

Portanto, as vivências do cativeiro serviram para os libertos definirem o que


era justo e aceitável na nova condição que se encontravam. O desejo de se reunir à
família e à comunidade era pulsante, até por que: “As feridas dos açoites
provavelmente cicatrizavam com o tempo; as separações afetivas, ou a constante
ameaça de separação, eram as chagas eternamente abertas no cativeiro”54.
Também, como vimos, havia o desejo de adquirir o próprio território, onde pudessem
cultivar a própria roça. Eles queriam mais tempo livre, pois o mesmo representava
um espaço social a ser preservado e expandido, que dava margem à recuperação
de algumas tradições, como, por exemplo, a religiosidade. Eram ações que visavam
distanciá-los do passado da escravidão. A seguir falaremos sobre alguns dos
projetos de liberdade forjados no período do pós-abolição, alicerçados nas vivências
do cativeiro, buscando relacioná-los com aspectos da tradição bantú.

53
Carlos ENGEMANN, De laços e de nós, p. 139-140.
54
Sidney CHALHOUB, Visões de liberdade, p. 244.
258

4.2.1 – Território: a questão da localidade

Dentro do projeto de liberdade de muitos africanos e afro-descendentes, a


manutenção do direito costumeiro às roças de subsistência era um ponto
fundamental. A defesa de tal direito era parte da luta para se ampliar as
possibilidades de sobrevivência alternativas às grandes lavouras, fora dos limites
dos antigos engenhos. A delimitação do próprio território, mesmo que dentro ou
próximo dos grandes engenhos ou o distanciamento dos mesmos, era uma forma de
limitar a ingerência da classe senhorial em suas vidas. Tal ingerência, precisamos
lembrar, esteve presente na relação de ambos durantes os três séculos de
escravidão no Brasil, portanto era necessário aos africanos e aos afro-descendentes
marcarem fortemente sua posição. Faziam isto:

Ao recusarem a velha disciplina de trabalho, ao afirmarem a liberdade de


circular à procura de melhor remuneração e de melhores condições de
moradia e, principalmente, rechaçar os castigos físicos, os ex-escravos
buscaram alargar as alternativas de sobrevivência.55

Os libertos tiveram que se esforçar bastante para se afirmarem como pessoas


livres e principalmente lutar contra a presunção de que ainda poderiam ser tratados
segundo os padrões escravistas. Ter a própria roça era vislumbrar a possibilidade de
se distanciar do passado escravista; viabilizar um espaço próprio, que garantisse
mobilidade social e financeira, com vistas à inserção social; bem como
operacionalizar uma estratégia de recuperação de dados da tradição que
permaneceram contidos durante a época de escravidão.

Podemos levantar a hipótese de que ao lutaram pelo direito à terra, o


movimento dos libertos ia, fundamentalmente, em dois sentidos: um deles de se
inserir cada vez mais na sociedade ampla, que começava a se formar e, o outro, de
formar uma comunidade fechada sobre si mesma, na qual se buscava alavancar
outra organização social, com valores diferentes daqueles pregados pela sociedade.
Tais grupos podem ser entendidos como subgrupos dentro de uma sociedade, nos
quais seus membros vêem o mundo através de lentes simbólicas, de alguma forma,
diferentes da grande maioria e também se comportam de maneira diferente.
55
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 256.
259

No primeiro caso, o cultivo das roças emergiu como uma das dimensões
perenes dos significados da liberdade. Depois de abolida a escravidão, o acesso
contínuo às roças foi requisito fundamental da condição de liberdade. O cultivo das
roças representava a viabilização de espaços de autonomia em relação aos antigos
senhores: “... os libertos tentavam também legitimar posições conquistadas nos dias
que antecederam a abolição, quando abandonaram a lavoura de cana, expandiram
as áreas de cultivo e buscaram acesso livre aos mercados locais”56. Além da
ampliação de direitos costumeiros às roças, os libertos buscaram viabilizar a
sobrevivência em liberdade por meio do livre acesso aos mercados locais,
colocando o preço que quisessem no que era cultivado nas roças, garantindo,
assim, certa autonomia.

No segundo caso, os últimos anos da escravidão mostraram o esforço de


libertos para a formação de comunidades em terras de pouco valor comercial, nas
quais a produção escravista já não era viável. As comunidades nascidas no período
do pós-abolição surgiram de projetos específicos, que contrapunham uma
determinada visão de liberdade à experiência do cativeiro. O ritmo, o tempo e a
divisão de trabalho eram ditados pelos próprios membros, bem como a formação da
hierarquia interna. Possuíam um grau de autonomia em relação à produção e à
distribuição de recursos. O pertencimento à comunidade e às regras de
comportamento era definido internamente:

Porém o traço mais característico desse tipo de experiência camponesa de


afro-brasileiros é o papel que o parentesco assume hoje na organização e no
cotidiano das comunidades. Na maioria dos casos, é a concepção de
parentesco, bastante particular de cada comunidade, que define o
pertencimento e os direitos.57

Nestas terras conquistadas, preservaram a convivência com os parentes, mas


o parentesco, neste caso, foi mais do que um vínculo afetivo, pois através dele eram
ditados o cotidiano e a organização das comunidades. Houve a construção de
relações entre pessoas ligadas por múltiplos e complexos laços, que foram mantidos
através das gerações:
56
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 171.
57
Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro, p. 221.
260

Informando as atitudes dos libertos, nesse novo contexto, um projeto


camponês de autonomia, vida e trabalho em família e de controle do seu
tempo e lazer já vinha sendo gestado, no interior das senzalas, bem como o
parentesco como elemento central e estratégico na vida dos escravos. Projeto
que segue acalentado pela valorização da reputação como trabalhadores,
pelo orgulho de sua habilidade e auto-suficiência, pela memória de suas
histórias e pelas lembranças dos antepassados.58

Percebemos, portanto, que a ligação com a terra tinha outros significados que
estavam para além do simples espaço físico. O território passou a ser visto dentro
deste contexto como uma localidade, como acontece dentro da tradição bantú: “O
vínculo com a terra serve de elemento concomitante à comunidade de sangue ou
parentesco. Existe uma participação análoga entre o grupo e a sua propriedade”59.
Segundo entrevista60 realizada em Maputo, as pessoas só vivem a tradição, pois
estão unidas conforme a localidade. Há um chefe da localidade, chamado régulo,
que é um chefe administrativo de todas as famílias deste lugar. Dentro dessa
localidade, existe algo que é comum a todos e ao mesmo tempo notamos que cada
família tem alguma coisa que a identifica através dos seus usos e dos seus
costumes, dando-lhes características próprias, inclusive no que diz respeito ao seu
aspecto religioso. A terra pertence à família: aqueles que morreram, aqueles que
vivem e aqueles que nascerão, nunca se reduzindo simplesmente aos vivos. Cada
lugar é singular e uma situação não é semelhante a qualquer outra, representando a
dimensão da fé, da comunidade e da identidade religiosa. Segundo Usarski:

Desse ponto de vista, um determinado lugar, uma montanha, uma caverna,


uma rocha, uma árvore, um rio ou um lago, ou qualquer outro fenômeno
venerado como “sagrado”, desfruta seu status uma vez que tal qualidade lhe
é atribuída. Essa atribuição constitui uma realidade empírica social na medida
em que existe, entre os membros de uma comunidade religiosa, um
consentimento no caráter “extraordinário” de um objeto ou lugar considerado
sagrado.61

58
Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro, p. 253.
59
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 147.
60
Cf. P., entrevista realizada pela autora, anotação em diário de campo, Maputo, 13/07/09.
61
Frank USARSKI, A geografia da religião, In: Frank USARSKI, O espectro disciplinar da ciência da
religião, p. 186.
261

O território, enquanto localidade, demarca o espaço da estrutura social, uma


vez que ele adquire um caráter sagrado, ao aumentar a coesão social e ao garantir a
consciência comunitária. O território é propriedade coletiva dos vivos e dos
antepassados, herdado para usufruto62. Segundo um dos nossos entrevistados:

Importante porque é a parte forte na riqueza da tradição e aqui


tradicionalmente ninguém ocupava espaço que não fosse indicado pelos mais
antigos residentes, sim, e por isso os antigos residentes são os proprietários
da terra e qualquer filho que casasse tinha que ser dado seu espaço e se vem
de uma outra região tinha que se apresentar ao líder da zona e indicar,
exatamente, um espaço onde pudesse viver e a riqueza provinha,
exatamente, da terra, das plantações como o cajueiro, a maçã.63

Aquilo que constitui o território da comunidade pertence ao bem comum. A


comunidade considera cada membro como um associado na tarefa da sobrevivência
e da subsistência. Ninguém pode viver com necessidades, mas todos os indivíduos
válidos devem produzir. O trabalho é uma exigência social e a colaboração na
prosperidade do grupo é um dever sagrado: “É que as relações entre a comunidade
e a sua terra não se podem separar das relações internas dos seus membros com
essa terra”64. Portanto, a comunidade realiza-se na povoação que é o centro do
território coletivo e resume o modo mais estável de uma sociedade se inserir no
espaço. Mais do que um aglomerado de indivíduos, é uma comunidade que é
composta por famílias alargadas: “Como está enraizado nos túmulos e herança dos
antepassados, além de ficar sacralizada, forma uma comunidade de habitantes,
sempre ligados pelo parentesco e idêntica corrente vital”65.

Como podemos perceber, dentro da perspectiva bantú, a recuperação do


território é muito mais do que ter um espaço e poder sobreviver daquilo que é
produzido pelo grupo. Naquele momento, a terra representou uma relação que
esteve para além dos vivos, recuperando a ligação da pessoa com os antepassados
e com a comunidade. Ter um pedaço de terra cultivado no período do pós-abolição,
podemos supor, representou também a possibilidade de se ligar aos antepassados,

62
Em Maputo, por exemplo, não há compra de terrenos. No caso, hoje em dia, as terras são doadas
pelo governo e mantidas por aqueles que nela habitam.
63
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
64
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 156-157.
65
Ibid., p. 160.
262

mediante o território e de firmar a constituição da família dentro de um espaço físico,


portanto reconquistando a idéia de comunidade.

4.2.2 – Família: a questão da identificação

A comunidade, que pode ser entendida como a família extensa, possui uma
estreita relação com o território dentro daquilo que chamamos de projetos de
liberdade. De qualquer forma, já observamos que houve a constituição da família
entre os africanos e os afro-descendentes que ocorria durante a escravidão.
Podemos, inclusive, afirmar que as famílias tiveram suas vivências e suas trajetórias
marcadas pela escravidão, mas, por outro lado a persistência daqueles que se
encontravam escravizados em se manterem unidos e se livrarem do cativeiro pode
ter sido uma das mais importantes ações deles no sentido de detonar o sistema
escravocrata e de adquirir a liberdade. Uma das razões foi que a família recuperou
aspectos importantes da tradição bantú, munindo-os de senso de coletividade, de
pertença e de identidade cultural. A família, enquanto comunidade, pode ser vista
mediante um eixo vertical e um eixo horizontal, como nessa tradição.

Quando olhamos para o eixo vertical, vemos a constituição não só de famílias


nucleares, como também de famílias extensas compostas por avós, avôs, tias, tios e
primos. Fraga Filho observou, em seu estudo, duas ou três gerações de famílias
residindo e morando juntas, o que, para ele, indicou a manutenção de relações
estáveis de uma geração para outra. Para o autor: “... a maioria crioula e a
existência de laços familiares extensos tiveram implicações importantes na definição
de estratégias escolhidas no pós-abolição”66.

Além da formação da família pela verticalidade, também encontramos o


estabelecimento de relações de forma horizontal através de casais que mantinham
redes familiares por meio do casamento e do compadrio. Os libertos formaram uma
comunidade com extensas redes de relações sociais, articulando diversos indivíduos
e grupos familiares. O batismo e as relações de compadrio tiveram papel
fundamental na formação e no fortalecimento dos laços familiares e comunitários,
mesmo após a abolição. Nos últimos anos do século XIX, indivíduos de uma mesma

66
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 35.
263

família tiveram experiências diversas com a escravidão, isto é, testemunharam e


participaram do esforço familiar para resgatar do cativeiro algum parente.

O que assistimos foi a formação de redes de parentesco, também rituais, que


se preservaram no pós-abolição. A família, assim constituída, garantiu a
sobrevivência da comunidade e a manutenção de valores culturais próprios,
ancorados na tradição, que foram realizados dentro da parcela de terra adquirida, no
caso, o território. A família, assim, assumiu um papel fundamental durante a
escravidão, pois a foi ela que permitiu a capacidade de diferenciação do grupo, o
rompimento real com a violência genérica da escravidão e a possibilidade de
escapar de uma vida passada em barracões coletivos. Foi a memória familiar que
esteve na base da identidade social construída durante a escravidão. Segundo Rios
e Mattos67, foi a força e a importância das relações primárias (pai, mãe e filhos) que
se evidenciaram nas narrativas e que marcaram a originalidade e a humanização
dos antepassados face à animalização genérica que estruturou a memória coletiva
sobre os significados da escravidão. Houve, portanto, a diferenciação e a
identificação positiva da trajetória familiar, já que estas uniões eram pólos
importantes de integração, de formação de identidades e de ajuda mútua. A
capacidade de suplantar as diferenças formando uma união – casamento, criação de
um sentido de comunidade e construção de identidade étnica a partir da experiência
do cativeiro – deve ser pensada em função da expectativa de liberdade nutrida pelos
escravizados.

Assim, os laços comunitários tecidos a partir do parentesco entre africanos e


afro-descendentes do mesmo engenho ou de engenhos vizinhos foram
fundamentais para que os egressos da escravidão recompusessem a vida em
liberdade. No pós-abolição, essas comunidades foram a base sobre a qual eles e
seus descendentes buscaram novas alternativas de sobrevivência. Nas
comunidades, eles continuaram a contar com a ajuda e a solidariedade dos antigos
parceiros. As situações de conflito permitiram verificar a persistência de práticas de
ajuda mútua e solidariedade entre trabalhadores residentes nas proximidades dos
grandes engenhos. Apenas à guisa de exemplo, mulheres e crianças foram retiradas
do trabalho coletivo, ficando no pós-abolição em trabalhos na esfera doméstica e de

67
Cf. Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro.
264

subsistência, o que sugere um projeto de família e de trabalho gestado nas


senzalas: “É possível que, com a liberdade das crianças, algumas famílias tenham
preferido direcionar sua pequena capacidade de poupança para adquirir bens que
assegurassem aos pequenos um futuro independente”68. A proteção das crianças e
da família foi um valor transmitido à geração que nascia livre, junto com estratégias
para obter respeito, aceitação, dignidade e admiração onde vivam:

Para a última geração de escravos, ou pelo menos para parte dela, a


liberdade traria um desafio especial: o de preservar o delicado tecido dos
últimos anos da escravidão; a rede familiar e de relações que suas crianças
herdariam. Esse seria um poderoso fator de fixação nas proximidades de seu
antigo local de cativeiro e parte importante das novas negociações a serem
estabelecidas.69

A ética do cuidado com o outro marcou as famílias de africanos e de afro-


descendentes de tradição bantú, pois a aldeia e a tribo estão ligadas a eles, uma vez
que ela é a base da sociedade, através dos quais se perpetuam os usos e os
costumes, bem como as tradições. Serviu como um meio de controle e de equilíbrio
social e uma forma de integração do indivíduo, pois foi “... através dela que se
regulamenta a propriedade e se assegura a protecção de todos os membros da
comunidade”70. O tipo e a organização familiar dependem do sistema de
organização tradicional existente no território, o que faz com que estabeleçamos
uma relação direta entre família e território. Martinez, ao discorrer sobre o povo
macua, afirma que:

A sociedade macua é constituída por uma justaposição de unidades


familiares, formadas por grupos de parentes unilineares, uxorilocais e
exogâmicos. As linhagens ou segmentos clânicos são a base da estrutura
social e da organização política e econômica.71

68
Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro, p. 169-170.
69
Ibid., p. 188.
70
Felizardo CIPIRE, A educação tradicional em Moçambique, p. 49.
71
Francisco Lema MARTINEZ, O povo macua e a sua cultura, p. 55.
265

O que vemos, portanto, é que a constituição da família foi um aspecto


marcante de sobrevivência por parte dos africanos e dos afro-descendentes, pois ela
representou, dentro de toda uma indiferenciação, uma possibilidade de reforçamento
da vivência de cada um deles como sujeitos, sujeitos dentro de uma linhagem, bem
como a recuperação de aspectos estruturantes da tradição bantú. A possibilidade de
poder abdicar de uma residência coletiva, de uma cozinha coletiva e de uma
refeição coletiva permaneceu como aspectos centrais, para diferenciá-los de outros
escravizados, como valores importantes em si. Slenes72, ao falar sobre o
parentesco, relaciona-o diretamente com a questão da linhagem, incluindo, aí,
também os mortos, enquanto um princípio cultural profundo, que tal como o território
e família foi um princípio organizador destas sociedades.

Ainda, segundo o autor, os africanos de tradição bantú trazidos ao Sudeste do


Brasil, mesmo separados de suas sociedades de origem, tenderiam a organizar
suas vidas, de acordo com o esquema da família – linhagem, buscando condições
para manter grupos estáveis no tempo. As raízes bantú eram localizadas em um
grupo de parentesco e nos antepassados, ou seja, em uma posição genealógica. Os
africanos de tradição bantú levavam seus antepassados consigo quando mudavam
de lugar, mesmo eles estando enterrados em outros lugares. Se, como vimos,
mesmo com a inviabilidade de expressão da tradição em vários momentos da
história bantú no Brasil, ainda assim não lhe foi tirada a possibilidade de se estar
vinculados aos seus antepassados, aspectos que veremos a seguir.

4.2.3 – Antepassados: a questão do encontro

Quando pensamos na relação entre território e família rapidamente nos


remetemos aos antepassados e a vida comunitária dos bantú. Já vimos, no primeiro
capítulo, que a ação das pessoas provenientes dessa tradição é comunitária. Todos
estão interligados, a partir de dois eixos: verticalmente aos antepassados e à sua
descendência, horizontalmente à comunidade com a qual vive. Observamos também
que a comunidade, que inclui os vivos e sua família, no caso, extensa, também o faz
com os antepassados. A comunidade é aquilo que dá sentido à sua existência,
através da relação com o território. É nele que as relações sociais e com os
72
Cf. Robert SLENES, Na senzala, uma flor.
266

antepassados acontecem, já que os vivos habitam e vivem na localidade e naquilo


que é produzido por ela, enquanto que os antepassados estão enterrados no
território e possuem direitos sobre ele.

A forma como os libertos entenderam a África nos liga à questão dos


antepassados. Segundo Rios e Mattos73, quando trabalharam as narrativas de ex-
escravos e de suas famílias, a maioria dos indivíduos associou a noção de um avô
ou uma avó à escravidão e ao estrangeiro, contrapondo-se à idéia dos pais, que
foram lembrados como ventre-livres. A idéia de um vovô ou uma vovó africanos, que
devem ser relembrados, se fez presente no período do pós-abolição e também nas
expressões religiosas formadas durante o século XX, aspecto que abordaremos,
com mais detalhes no sexto capítulo. O que é possível afirmar é que se construiu
uma identidade social entre africanos e afro-descendentes baseada: “... na
percepção das afinidades e das diferenças étnicas entre os escravos, ou, ainda, a
partir de uma cosmologia africana reconstruída e partilhada, ressaltando-se o papel
fundamental desempenhado pela religião”74.

Uma das escolhas de sobrevivência no período do pós-abolição e de manter


a relação com os antepassados foi a permanência nas antigas propriedades.
Segundo Fraga Filho75, a permanência nas antigas propriedades contou com
condições climáticas e com uma conjuntura econômica e social que não favoreciam
a quem pretendia migrar para outras localidades. Além disso, depois do fim do
cativeiro, intensificaram-se a repressão policial e o preconceito em relação aos
africanos e aos afro-descendentes. A decisão de permanecer podia estar vinculada
à expectativa de sustentar e, até, ampliar espaços alternativos de sobrevivência
dentro das propriedades e nos lugarejos em que os escravizados nasceram.

Além de uma forma de sobrevivência concreta, a permanência nos antigos


engenhos significava permanecer no lugar onde as comunidades estavam
assentadas e onde construíram raízes profundas. Os vínculos comunitários e
familiares forjados durante a escravidão foram fundamentais para a sobrevivência da
população africana e afro-descendente e importante fator de fixação nas localidades
em que residiam: “A proteção da família, dos companheiros de trabalho e da

73
Cf. Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro.
74
Regina Célia Lima XAVIER, Religiosidade e escravidão, século XIX, p. 29.
75
Cf. Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade.
267

vizinhança oferecia alguma garantia na luta pela sobrevivência”76. O que


representava certa proteção da comunidade familiar que havia sido formada.

A permanência não era motivada apenas pelas questões materiais de


sobrevivência, mas também havia motivações religiosas na fixação dos indivíduos
nos locais onde passaram boa parte da vida sob cativeiro. O mundo dos engenhos
guardava a memória dos dias difíceis da escravidão, mas também foi testemunho do
esforço para conquistar espaços e para realizar seus cultos religiosos77. Portanto,
um lugar de ressignificação. Para os grupos de tradição bantú permanecer no
território fazia todo o sentido, uma vez que o culto aos antepassados e o território
estavam relacionados:

E é nessa terra que ficam enterrados os defuntos?


Os defuntos, sim, porque eles não tinham, exatamente, um cemitério comum,
sim. O cemitério comum é da família, por exemplo, pai, filhos e netos se
vivem na mesma região que, tipo aldeia, embora as casas dispersas, mas um
raio talvez sei lá, de dois ou três quilômetros pode ser dessa família, desse
grupo, da linhagem então aí podiam ter um acordo comum, um lugar onde
depositam, exatamente, seus mortos e é aí quando de fato querem fazer
cerimônias de recordar e qualquer coisa, então dirigem-se e vão fazer aí a
cerimônia de pacto, sacrificam-se galinhas, cabritos ou que, exato, ia, então
esta é a parte econômica deles. O gado, o caprino foi, exatamente, os
animais considerados de riqueza para os povos tradicionais das famílias e
quem tivesse gado esse era considerado mais rico da zona, sim.78

76
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 250.
77
Segundo P., entrevista realizada pela autora, anotação em caderno de campo, Maputo, 13/07/09, o
culto aos antepassados pode ser entendido da seguinte maneira: a cerimônia é chamada de
mhamba. A mhamba possui duas vertentes: 1) lembrar os defuntos; 2) realizar os sacrifícios.
A cerimônia de recordação dos defuntos tem como objetivo lembrar as pessoas da família que já
morreram. Inicialmente, a cerimônia mostra-se triste, depois se oferece comidas e bebidas, fazem-se
as limpezas das campas, há danças e cantos. É pedido a todos para rezarem, para prepararem
melhor os valores da contribuição, que pode ser dinheiro ou produtos. A preparação da cerimônia
dura aproximadamente dois ou três dias e essa preparação tem que ocorrer em paz, sem briga, por
causa dos nomes que cada indivíduo carrega. Se as pessoas vivas, com os mesmos nomes, não se
entendem significa que os defuntos do mesmo nome também estão em briga.
A cerimônia de sacrifício ocorre quando dentro da família não há paz. Alguns sinais são infertilidade,
desunião (desagregada, ninguém se interessa pelo outro), produção ou colheita ruim, doenças na
família. A família se junta para saber o que está acontecendo. Os defuntos falam que querem
mhamba. Há a necessidade de se fazer um sacrifico. Mata-se um animal. Os defuntos determinam
qual o tipo de animal, de que forma deve ser morto, onde deve ser feita a cerimônia. É uma
cerimônia, que diferente da outra, é cheia de prescrições, sendo que há a necessidade de que todas
elas sejam seguidas rigidamente. São muitos os mandamentos e só mediante a cerimônia, a família
terá paz novamente. Quem causa a falta de paz na família são os espíritos maus. Eles também têm
suas exigências. Por vezes, inclusive, exigem altares.
78
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
268

Outro ponto importante é falar da lógica seguida pela comunidade de


africanos e de afro-descendentes na escolha dos nomes dos filhos e a eleição dos
próprios sobrenomes, o que também auxiliava na manutenção ou na construção de
uma linhagem e na recordação dos antepassados. Alguns incorporaram o
sobrenome pertencente à família dos ex-senhores, outros optaram por ter o
sobrenome referente à devoção cristã ou simplesmente nomes compostos. No final
do período escravista e no pós-abolição, os libertos já se sentiam livres para dar os
sobrenomes que quisessem:

Outros sobrenomes foram transmitidos aos filhos e netos, certamente como


forma de definir e fortalecer o vínculo entre as gerações. Isso pode evidenciar
a preocupação com a manutenção da memória geracional, ligando os mais
jovens aos antepassados.79

A adoção dos sobrenomes após a liberdade conferia aos africanos e aos afro-
descendentes uma identidade, que permitia o estabelecimento de relação entre
indivíduos e grupos dentro de um território, ao mesmo tempo em que possibilitava a
construção de relações livres. A questão da escolha do sobrenome tornou-se, então,
importante, pois os grupos de tradição bantú têm como base de sua religião o culto
aos antepassados, pessoas que tiveram uma existência histórica. Esse culto se
expressa através de uma adoração coletiva, submetida a ritos. No fundo, a religião,
para eles, é um assunto particular da família ou do grupo, que compõe a
comunidade. A homenagem aos antepassados faz-se necessária, pois existe a
crença de que os defuntos têm influência direta nas ações e na conduta do
indivíduo:

Com efeito, para todo o africano tradicional os mortos continuam fazendo


parte da família viva, a morte não significa a destruição dos laços entre os
vivos e os mortos. Estes apenas mudaram a sua forma de existir, mas
continuam existindo de tal maneira que eles têm direitos e deveres em
relação aos familiares: serem lembrados, serem tratados e protegerem os
vivos. 80

79
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 296. (O grifo é nosso)
80
Adriano Langa, ofm, Questões cristãs à religião tradicional africana, p. 15.
269

Uma das formas dos antepassados estarem presentes na vida dos vivos é
através do nome. Segundo Jahn81, como visto no primeiro capítulo, o nommo é a
força vital que produz toda a vida e que influencia as coisas por meio da palavra,
sendo que um ser vivo só se torna uma pessoa quando lhe é dado um nome. O
antepassado que tem o seu nome dado a alguém está vivo na família. É um protetor,
um defensor, especialmente com aquele que tem o seu nome, pois a ligação é mais
forte. É um sinal de respeito e de consideração com aquela pessoa que está morta.
Através do nome, a pessoa fica mais ligada à família. Quando se ofende o vivo, no
fundo, também se ofende o antepassado que carrega o mesmo nome. A paz dos
vivos também é a paz dos mortos. O nome tem uma marca, que marca a existência
da pessoa na terra. Portanto, ao se constituírem um nome, os escravizados
reformularam a constituição de suas identidades, recriando sua identidade cultural. A
adoção de um sobrenome também era algo importante, num processo no qual a
recomposição do nome próprio marcava o acesso à liberdade e à personalidade
jurídica, ao mesmo tempo em que identificava a sua linhagem e recuperava a sua
tradição. A constituição do nome trazia em si diversos significados sociais, políticos
e sociais. O nome e a identidade só podiam ser pensados em relação a uma
estrutura de rede, revelando-se a partir das suas próprias experiências sociais e em
relação ao contexto histórico no qual se inscreviam suas ações.

Apresentamos os três projetos de liberdade, que foram por nós identificados –


território, família e antepassados. Falaremos, agora, brevemente sobre a questão da
religiosidade, pois no nosso entender ela perpassou e unificou esses três projetos,
de maneira semelhante ao que ocorre na tradição bantú. O brevemente vem em
função de nos aprofundarmos nesta questão nos capítulos cinco e seis.

4.3 – Interligação: a questão da religiosidade

Como observamos no primeiro capítulo, a religiosidade perpassa todas as


ações dos grupos de tradição bantú. Durante a escravidão e no período do pós-
abolição, os indivíduos de tradição bantú expressaram sua religiosidade,
principalmente rendendo culto aos antepassados e fazendo uso da magia, já que:

81
Cf. Janheinz JAHN, Muntu.
270

... os escravos foram capazes de reinventar suas tradições e misturar valores


e instituições, a tal ponto que o autor define etnia por uma identidade recriada
no Brasil. A disponibilidade para mesclar culturas parecia ser, em sua opinião,
um imperativo de sobrevivência, assim como a composição de alianças
sociais, que exigiam transformações e interpenetrações culturais.82

Podemos afirmar que havia uma concepção de mundo comum a grande parte
dos escravizados de tradição bantú, que representou uma força catalisadora, que
fazia parte da forma como eles enxergavam o mundo onde viviam. A religiosidade
permitia que eles se sentissem mais fortes e protegidos, bem como significasse a
experiência vivida; ao mesmo tempo em que foi capaz de conciliá-los, pois fazia
sentido dentro do grupo, independentemente das diferenças étnicas.

Segundo Xavier: “Apesar das diferenças de procedências e/ou etnias e das


dificuldades postas pela vigilância senhorial em relação a qualquer tipo de
“ajuntamento” ou cumplicidade escrava, destacavam-se esses traços religiosos que
pareciam a tudo perpassar”83. A tradição reinventada, portanto, forjada em solo
brasileiro, no caso a tradição afro-brasileira, não foi importada, sendo um sistema
visceralmente ligado às experiências das pessoas, que partilharam as diferenças
trazidas da África, como também com o catolicismo vindo da Europa e daquele
existente no Brasil. Na formação das religiões afro-brasileiras houve a interação
cultural em uma sociedade marcada pela dominação e pelo conflito.

Xavier nos alerta para a necessidade de não pensarmos os africanos e os


afro-descendentes apenas como vítimas e recuperá-los como sujeitos da história.
Para ela, os grupos de tradição bantú puderam, no processo de diáspora, reconstruir
sua tradição e encontrar laços em comum, sem se deixar acomodar a uma
sociedade tão injusta. A forma pela qual a população vivenciou a religiosidade
aponta para as mediações existentes e necessárias entre a doutrina, a instituição e
as experiências sociais e religiosas:

Os africanos no Brasil não foram, portanto, receptores vazios dessa religião


européia e tiveram suas próprias formas de entender e viver esse catolicismo,
permeando a sua cosmologia e tradição. Se considerarmos, como aqui se
82
Regina Célia Lima XAVIER, Religiosidade e escravidão, século XIX, p. 67.
83
Ibid., p. 66.
271

pretende, que os bantos não perderam sua cultura originária em função da


assimilação a dogmas estrangeiros, mas ao contrário, que recriaram suas
próprias tradições a partir de afinidades culturais reveladas no contexto da
escravidão, poderemos, finalmente, deixar de vincular o cristianismo a formas
de assimilação.84

O que vemos foi que com o avançar da história, foi possível a recomposição
da religiosidade. Os aspectos não foram perdidos, foram ressignificados, se
concretizando e se explicitando, conforme as condições históricas e os produtos
culturais. Vemos que os projetos de liberdade e as mudanças identitárias trazidas
com eles possibilitaram a redefinição da religiosidade bantú tornando-a mais visível.
Essa religiosidade que se ocupou dos espaços deixados pelo sistema foi se
insinuando como uma religião. Apesar das dificuldades vividas e daquelas que
seriam enfrentadas pelos africanos e pelos afro-descendentes, podemos supor que
eles saíram deste grande processo de mudança fortalecidos, com condições de
antecipação e de esperança, já que cada vez mais foi possível se sentirem
vinculados a alguém e às suas próprias raízes.

Assim sendo, o que observamos no período do pós-abolição foi que as


identidades e os projetos de liberdade foram construídos a partir de elementos
definidores da condição de liberdade, bem como do reavivamento, dentro daquilo
que era possível, de aspectos da tradição bantú. Com isso, nesse período vemos
algumas concretizações elaboradas e ressignificadas por grupos de tradição -
território, família e antepassados – envolvidas pelo aspecto religioso.

No próximo capítulo falaremos a respeito de uma das efetivações religiosas


elaboradas pelos grupos de tradição bantú: a umbanda. Buscaremos discutir a
constituição desta religião, a partir da situação do africano e do afro-descendente de
tradição bantú dentro da sociedade capitalista em formação, uma vez que
referências à condição de ex-escravo ou menções à cor de uma pessoa
continuavam a causar suspeição ou a desqualificar um indivíduo, dificultando a sua
vivência de cidadão. Em resposta a esta situação, abordaremos os projetos utópicos
gestados por estas pessoas, o que significou a formação de uma nova religião.

84
Regina Célia Lima XAVIER, Religiosidade e escravidão, século XIX, p. 354.
272

CAPÍTULO V: UMA UTOPIA BANTÚ CHAMADA UMBANDA

Negro Rei1
Ayê / Ayê mãe África / Seus filhos vieram de longe /
Só pra sofrer / Ayê / Ayê mãe África / Todo
guerreiro / No seu terreiro / Sabe sua lei / E vai
coroar negro rei [x3] / Ayê, ayê, ayê / Ika adobale ô
/ Ika adobale a / Ika adobale a, ea / Mãe África /
Prende a tristeza meu erê / Sei que essa dor te faz
sofrer / Mas guarda esse choro / Isso é um tesouro /
Ó filhos de rei / O sol que queima a face / Aquece o
desejo mais que otin / O sal escorre no corpo / E a
dor da chibata é só cicatriz / Quem é que sabe
como será o seu amanhã / Qualquer remanso é o
descanso pro amor de Nanã / Esquece a dor
axogun / Faz uma prece a Olorun / Na força de
Ogun / Prende a tristeza meu erê / Sei que essa dor
te faz sofrer / Mas guarda esse choro / Isso é um
tesouro / Aos filhos de rei / Ayê yê yê, ayê yê yê /
Ayê yê yê, ayê yê yê / Ayê mamãe África, o meu ilê

Conforme pudemos perceber a tradição bantú, no seu aspecto religioso,


caracteriza-se por dois grandes eixos: a crença em um Ser Supremo e o culto aos
antepassados. Como o Ser Supremo encontra-se distanciado do ser humano, os
antepassados servem como intermediários entre eles e, por isso, seu culto adquire
grande importância. Os antepassados não se encontram separados da vivência dos
seres humanos, mas interagem e interferem em suas vidas constantemente. Vimos
que antes e durante os processos da diáspora e da escravidão, muitos dos aspectos
da religiosidade bantú foram se modificando, não só pela presença portuguesa em
terras africanas e pelos processos de conversão, mas também por uma relação
entre os diversos grupos africanos de tradições diferentes nos barracões existentes
nos portos de embarque e no navio negreiro. Existiram outros processos de
ressignificação, no qual tradições variadas se misturaram e se solidarizavam frente a
uma situação anômica.

O africano de tradição bantú passou, então, por um primeiro processo de


transformação identitária, quando deixou de ser uma pessoa livre e passou a ser
uma pessoa escravizada. Apontamos que, durante o processo diaspórico, ocorreu o

1
Negro Rei, CIDADE NEGRA. Sinhá Moça. s.n. Som Livre, Rio de Janeiro, 2006, CD-ROM.
273

esfacelamento de aspectos dessa tradição, ao mesmo tempo em que percebemos o


acionamento de dimensões culturais por uma questão de sobrevivência.

Já no Brasil, durante o período da escravidão, discutimos a posição da Igreja


Católica frente a ele e analisamos os processos-crimes antigos nos quais
escravizados foram enquadrados como réus. Ao estudarmos esses processos,
encontramos indícios de traços da tradição bantú, principalmente daquilo que
chamamos magia. Trabalhamos com a hipótese de que houve o surgimento de uma
expressão religiosa, o calundu, que apesar de ser vista como crime eclesiástico e,
portanto, foco de repressão, sobreviveu, pois respondia às necessidades religiosas
dos indivíduos de tradição bantú, mas ainda não se constituía como uma religião
institucional2. É verdade, que outras expressões religiosas, como as congadas e a
formação das irmandades também se mostraram como formas dos escravizados
tentarem vivenciar certos aspectos da sua tradição. O calundu causou maior
interesse, pois podemos supor que, talvez, ali, estivesse o primeiro embrião daquilo
que mais tarde seria denominado macumba e, posteriormente, umbanda.

Porém, antes da formação da umbanda, os escravizados passaram por mais


um processo de mudança identitária, por uma fase de liminaridade. Com o término
da escravidão, eles deixaram de ser escravizados para se tornarem libertos,
recebendo, pelo menos formalmente, o status de cidadão. Seja por ser uma
mudança desejada pela qual se lutou, seja por já se ter um aprendizado adquirido,
houve uma preparação para o período que se iniciava, existindo a construção de
projetos de liberdade. Estabelecemos, assim, a relação entre esses projetos e
aspectos da tradição bantú: família, território e antepassados.

Neste capítulo temos como objetivo abordar o surgimento da umbanda,


enquanto uma religião institucionalizada, derivada da macumba e com fortes
elementos bantú na sua origem, que se mantêm até os dias de hoje. Nós nos
arriscaríamos a dizer que a umbanda, mesmo sincrética, possui uma base bantú,
sobre a qual os elementos de diversas religiões foram organizados. Ao falarmos
desta influência bantú, trabalhamos com a idéia de que a assimilação da

2
Até, porque, como sabemos, antes da Proclamação da República e da Constituição de 1891, não
havia liberdade religiosa no Brasil, sendo que a Igreja Católica era a única religião aceita
institucionalmente. Além disso, em relação às práticas religiosas africanas ou afro-brasileiras, vimos,
no capítulo terceiro, que dependendo do momento histórico, não era incentivado o seu
desenvolvimento, mas, sim, muitas vezes, desejada a sua extinção.
274

incorporação de guias de maneira coletiva dentro do culto aos antepassados é uma


forma de resgate da força vital, além da idéia de que o calundu, enquanto expressão
religiosa, que agregava práticas curativas com o batuque e com danças e cantos,
também foi incorporado à umbanda.

Como afirmamos, durante a passagem de um sistema escravocrata para a


sociedade de classes, uma nova ruptura instalou-se, gerando uma situação de
liminaridade. Frente a esta situação, podemos supor que os grupos religiosos
buscam: o reforço das tradições diante da dificuldade de inclusão na sociedade
transformada; o abandono da tradição, abandono, esse, que não se dá sem uma
série de conflitos; ou ainda a transformação de alguns aspectos da própria tradição,
que pode ocorrer de maneira individual ou coletiva, quando certos aspectos ainda
fazem sentido para aquele indivíduo ou aquele grupo cultural. No caso da umbanda,
insistimos na última possibilidade enquanto uma tradição reinventada.

Para tanto, inicialmente faremos uma contextualização histórica do período de


formação da macumba e da umbanda, isto é, abordaremos o período da pós-
abolição e suas conseqüências para os libertos. Falaremos da relação entre os
libertos, a Abolição da Escravidão e a Proclamação da República, no sentido de
apontar de que maneira estes fatos históricos influenciaram a vivência religiosa de
tais grupos, com destaque para os seguintes temas: papel do movimento
abolicionista, racismo e a aplicação do darwinismo social, imigração européia,
colonização e a ideologia do embranquecimento da população. Esta situação
mostrou que a inserção social e a ocupação do espaço de cidadania não ocorreram
para a maior parte dos libertos, que se mantiveram excluídos da sociedade. Certa
impossibilidade de realização dos projetos gestados durante a escravidão apontou
para uma possibilidade utópica. A partir deste “pano de fundo”, compreenderemos a
situação social mediante um viés bantú, tentando perceber de que maneira estes
grupos traduziam a sociedade formada no momento histórico do pós-abolição.

Por fim, entendemos que a religião é uma das expressões culturais através
das quais um grupo de determinada tradição dá sentido às experiências vividas.
Discutiremos, então, o surgimento da macumba e a formação da umbanda, como
ressignificações dos comportamentos rituais dos africanos e dos afro-descendentes
de tradição bantú, que existiram durante o período escravocrata, visando à
recuperação da doação de significado para aquilo que se vivia. Feito isto,
275

apresentaremos obras que abordam a relação entre a tradição bantú e a umbanda,


para, em seguida, trabalharmos com a hipótese, defendida por nós, de que a
umbanda pode ser vista como uma utopia bantú.

5.1 – Contextualização histórica

É possível afirmar que a umbanda é uma religião que se formou no início do


século XX nos centros urbanos, em especial no Rio de Janeiro e São Paulo.3
Sabemos que é um momento histórico importante para a sociedade brasileira, uma
vez que, em 1888, houve a Abolição da Escravidão e no ano seguinte, 1889, foi
decretada a República. Esses dois fatos históricos foram fundamentais para a
formação da religião citada, uma vez que causaram transformações no âmago da
sociedade brasileira, instituindo uma nova ordem social, bem como frustraram, em
certo sentido, as expectativas dos africanos e dos afro-descendentes livres em
relação à sua desejada condição.

5.1.1 – Cidadania, negros e a Abolição da Escravidão4

Em 1822 foi a primeira vez que se definiu o que se convencionou chamar de


cidadania brasileira, após a emancipação política do país, quando ele comportava
uma das maiores populações escravizadas das Américas e a maior população afro-
descendente livre do continente. Algumas restrições, tais como: o acesso a cargos
públicos, eclesiásticos e títulos honoríficos, só seriam rompidas no que diz respeito
aos descendentes de africanos pela constituição de 18245. O Brasil passou a viver

3
Cf. Lísias Nogueira NEGRÃO, Entre a cruz e a encruzilhada.
4
Os espaços urbanos negros não pertenciam tão-somente aos escravizados, já que as cidades
concentravam consideráveis populações de negros libertos e livres desde os séculos XVII e XVIII.
Segundo Hebe Maria MATTOS, Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, p. 59: “Em 1888, os
últimos cativos que tiveram sua liberdade reconhecida pela Lei Áurea – liberdade já conquistada de
fato nas fugas em massa e na incapacidade política e social de repressão do Estado Imperial – não
somavam mais que 700 mil almas entre milhões de afro-descendentes livres”. Tal afirmação, porém,
não descarta o fato de que se inaugurava neste momento histórico, uma nova forma de se viver e
uma nova sociedade, que requereu dos afro-descendentes vários modos de adaptação.
5
A Constituição Imperial de 1824 reconheceu os direitos civis de todos os cidadãos brasileiros,
diferenciando-os do ponto de vista dos direitos políticos em função de suas posses. O voto censitário
foi dividido em três gradações: cidadão passivo (sem renda suficiente para ter direito a voto), cidadão
ativo votante (com renda suficiente para escolher, através do voto, o colégio de eleitores) e o cidadão
ativo eleitor e elegível. Na terceira gradação, além do indivíduo ter renda suficiente, a ele era exigido
que não tivesse nascido escravo. Assim, os descendentes de escravos libertos, com renda, podiam
exercer plenamente seus direitos como cidadãos e súditos do Império, já aqueles escravos que
276

sob o regime de uma monarquia constitucional, que carregava os ideais de base


liberal, considerando, portanto, todos os cidadãos livres e iguais6.

Apesar da nova situação que se colocava, segundo Mattos, a instituição da


escravidão permaneceu inalterada, garantida pelo direito de propriedade
reconhecido na nova Constituição, o que trouxe consigo um grande dilema. Esse
dilema pode ser revelado através de três grandes contradições: 1) a manutenção da
escravidão com base no direito de propriedade; 2) a proibição do tráfico africano; e
3) a emancipação progressiva dos escravizados, seja através de leis que libertavam
os nascituros, seja por experiências de transição regulada, o que implicava em
indenização aos proprietários. Enquanto movimento, o que havia era a reivindicação
da liberdade de escravizados crioulos, pelo fato de serem cidadãos brasileiros natos,
sem se questionar conjuntamente a abolição definitiva da escravidão. O que vemos,
portanto, é que no século XIX ainda as lutas pela liberdade davam-se de maneira
isolada, sem que a instituição da escravidão fosse questionada em sua inteireza. A
igualdade de direitos entre a população livre estava formada em cima da
diferenciação entre cidadãos livres e indivíduos escravizados:

O combate político do liberalismo brasileiro das primeiras décadas da


monarquia à instituição da escravidão se concentraria na luta contra o
comércio negreiro e na denúncia do tráfico africano, tendo nas pressões dos
escravos crioulos pelo acesso à alforria – e, a partir dela, à cidadania
brasileira – sua contrapartida mais radical.7

Os escravizados, durante a época colonial e mesmo depois da


independência, não viram questionado, teológica e politicamente, o fim da instituição

haviam sido alforriados não gozavam plenamente dos seus direitos. Tal fato gerou uma série de
conflitos e de lutas pela independência e por processos antidiscriminatórios. Porém, segundo Hebe
Maria MATTOS, Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, p. 23-24: “... a igualdade que se
reivindicava para os “cidadãos livres” não implicava – seja do ponto de vista das reivindicações
populares, seja como corolário lógico de sua formação com base no pensamento liberal – qualquer
proposição efetiva a favor da abolição imediata da escravidão”.
6
Segundo Andreas HOFBAUER, Uma história do branqueamento ou o negro em questão, p. 150: “A
carta de alforria, portanto, não provocava um rompimento com as estruturas de domínio; não era
garantia de uma “vida em liberdade”. O Brasil escravista não permitia a existência de um “cidadão
livre”. A sociedade era marcada por laços de dependência, de lealdades, de poder patrimonial. O
liberto não constituía a antítese do escravo, mas apenas um – possível – passo em direção à
diminuição da exploração direta, uma precondição para ocupar uma posição menos desprivilegiada
no jogo de manipulação dos laços de pertencimento. Tampouco a afirmação de uma autonomia
individual era possível ou desejável para os senhores. Como todas as sociedades escravistas, o
poder era, também no Brasil, construído a partir de laços de lealdade e de pertencimento”.
7
Hebe Maria MATTOS, Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, p. 30-31.
277

da escravidão, seja pela Igreja Católica, seja pela elite brasileira, como visto no
terceiro capítulo. O que se observou foi que, depois da formação da primeira
constituição brasileira, algumas classes de cidadãos podiam reivindicar a sua
liberdade, no nosso caso, os escravizados crioulos. Porém, esta reivindicação surtia
pouco efeito, já que os grupos mais conservadores ainda se pautavam nas
hierarquias sociais tradicionais.

Apesar da dificuldade vivida pelos afro-descendentes em solo brasileiro,


internacionalmente o Brasil tinha a reputação de ser um lugar melhor para eles do
que outros países. A partir de 1860, os abolicionistas brasileiros passaram a sofrer a
influência de abolicionistas estrangeiros, o que talvez tenha reforçada a idéia acima,
já que nos Estados Unidos existia uma segregação formal e um racismo aberto:

Os abolicionistas americanos acreditavam que a escravidão não terminaria


com a emancipação, uma vez que o preconceito de cor era um modo de
perpetuar-se subrepticiamente a escravidão das pessoas livres de cor. Seu
destino estaria para sempre acorrentado ao dos segmentos inferiores da
sociedade. Por isso, a bandeira da abolição imediata expressava dois apelos:
a abolição da escravidão como do racismo. (...)
Em contraste, a questão do preconceito de cor nunca se tornou uma bandeira
central dos abolicionistas brasileiros. (...)
Fosse porque os abolicionistas brasileiros genuinamente acreditassem na
ausência do preconceito de cor no Brasil, ou então porque preferissem fazer
silêncio sobre a questão (...) o fato é que o seu foco principal era a
necessidade de abolir a escravidão com vistas a ultrapassar o atraso e
colocar o país no rumo do progresso. Quanto ao destino dos escravos
emancipados e seus filhos, os abolicionistas esperavam que eles pudessem
se integrar facilmente à sociedade brasileira. O pressuposto que os unia
nesta assertiva era que os emancipados não enfrentariam no Brasil a barreira
do racismo, tal como acontecida nos Estados Unidos.8

A situação dos africanos e dos afro-descendentes também foi dificultada, pois


os primeiros abolicionistas brasileiros estavam acostumados a associar o trabalho
compulsório com os africanos e os afro-descendentes, ao mesmo tempo em que
associavam trabalho livre aos brancos. O destino dos quase três milhões de
africanos e de afro-descendentes que viviam no Brasil não era uma preocupação do
governo, havendo certa ignorância do assunto. Tal fato ocorria, pois se tinha a idéia

8
Célia Maria Marinho de AZEVEDO, Abolicionismo, Estados Unidos e Brasil, uma história comparada
(século XIX), p. 165-166. (O grifo é nosso)
278

de que, dentro de trinta anos, a abolição gradual, combinada com a colonização


européia, acabaria com os escravizados, ou melhor, com as pessoas pertencentes
aquilo que se convencionou chamar de raça negra9.

Ainda em 1860, o abolicionismo brasileiro internalizou a crença de que a


imigração européia ajudaria o Brasil a ultrapassar o atraso e a alcançar o progresso,
apesar do movimento não defender a imigração, pois a abolição total da escravidão
era a sua bandeira central. No mesmo período, os reformadores favoráveis à
imigração concentravam-se nos planos de trazer europeus para o Brasil:

Há diversas razões para compreender esta sua incapacidade [dos


abolicionistas brasileiros] de reconhecer a existência do preconceito contra as
pessoas de ascendência africana no Brasil. Os abolicionistas faziam parte de
uma pequena elite orgulhosa de senhores de escravos que se via como
descendente da mais pura linhagem européia (...). Deste modo, os
abolicionistas não escapavam de um sentimento de desprezo em relação ao
mundo afro-brasileiro circundante. Além disso, (...), a ideologia do Brasil como
paraíso racial excepcional dava então os seus primeiros passos.
Por fim, uma outra razão de suma importância estava no contexto histórico
internacional de crescente secularização da opinião das elites, bem como de
prestígio crescente das ciências. Em meados do século XIX, quando o
abolicionismo brasileiro começava a se organizar, já estava em pleno
andamento um debate internacional sobre o futuro das então chamadas raças
híbridas.10

9
Na fase inicial da expansão européia, o conceito negro trazia consigo conotações ético-religiosas,
que se expressavam também em interpretações geográfico-climáticas acerca das origens das
diferenças. A fusão da idéia de negro com a de escravo assumiria um papel ideológico importante no
contexto da colonização do Novo Mundo. As relações entre senhores e escravizados faziam parte de
um modelo de pensamento mais amplo, que tinha como base a idéia de uma ordem hierárquica do
universo entendido como expressão da vontade divina. No Brasil acreditava-se que a transformação
das cores em direção ao branco era uma questão de tempo. Assim, a idéia de branqueamento
incentivava a crença de que as futuras gerações pudessem superar a condição de inferioridade. Além
disso, também havia uma identificação entre posição social elevada e cor branca, que também
associava o branco à pureza divina. Segundo Andreas HOFBAUER, Uma história do branqueamento
ou o negro em questão, p. 177: “... a disseminação, inclusive entre os “não-brancos”, de um ideal que
hoje chamamos de “branqueamento”: um ideário historicamente construído (uma “ideologia”, um
“mito”) que funde status social elevado com “cor branca e/ou raça branca” e projeta ainda a
possibilidade de transformação da cor de pele, de “metamorfose” da cor (raça). Ao atuar como
interpretação do mundo (das relações sociais), esta construção ideológica foi fundamental para a
manutenção da ordem social. Chamar a atenção para a cor de pele escura (ou “traços raciais
negróides”) de alguém era uma grave ofensa, sobretudo para aqueles que buscavam ascender
socialmente. Enquanto as palavras “negro” e “preto” estavam intrinsecamente associadas à vida
escrava, a cor branca estava ligada ao status de “livre””.
10
Célia Maria Marinho de AZEVEDO, Abolicionismo, Estados Unidos e Brasil, uma história
comparada (século XIX), p. 177.
279

Ainda, segundo a autora, a partir da década de 1870, os abolicionistas


começaram a defender a abolição imediata da escravidão, o que não significava a
liberdade instantânea para os escravizados. Diversas propostas foram formuladas
até às vésperas da lei de treze de maio de 1888. São elas: estabelecimento de um
controle severo sobre as vidas dos libertos; planos de abolição geral da escravidão
com a condição de que os libertos servissem aos seus senhores por certo número
de anos; restrição da liberdade de ir e vir dos emancipados, obrigando-os a se fixar
no próprio lugar de sua recente escravização. A abolição imediata, combinada com
um período de trabalho compulsório dos libertos, seria a solução em relação ao
problema da transição para o trabalho livre e integração social a ser trilhado pelos
emancipados. Para os abolicionistas, esta era a única maneira de alcançar uma
abolição pacífica.

Os abolicionistas brasileiros começaram a atentar para o problema do


preconceito contra as pessoas de ascendência africana apenas nos anos de 1880,
período em que o abolicionismo marcou presença como um movimento popular
urbano. Contudo, a questão do racismo nunca se tornou uma bandeira central do
movimento, uma vez que eles nutriam um ideário secular, incorporando o argumento
de uma humanidade dividida em raças tal como pregado internacionalmente pelos
cientistas. Isto fez com que eles não lutassem pela defesa dos direitos dos africanos
e afro-descendentes:

Havia, sem dúvida, uma grande distância entre, de um lado, reconhecer o


direito dos escravos e seus descendentes de construir os seus destinos na
terra em que vivam desde que foram trazidos da África e, de outro, enfrentar
a questão sobre como integrar os escravos emancipados à sociedade.11

Somente às vésperas da abolição, os abolicionistas brasileiros desistiram de


suas esperanças de concretizar uma emancipação geral combinada com o
aprendizado dos libertos, principalmente em função das fugas de escravizados das
fazendas que esvaziaram essa proposição de qualquer sentido. “Mas o

11
Célia Maria Marinho de AZEVEDO, Abolicionismo, Estados Unidos e Brasil, uma história
comparada (século XIX), p. 187.
280

abolicionismo terminou no Brasil de modo abrupto com a Lei da Abolição de 13 de


maio de 1888”12.

Após este breve relato sobre a situação dos africanos e dos afro-
descendentes antes de 1888 e da postura do movimento abolicionista, vamos a
seguir observar o posicionamento favorável ou contrário à escravidão, a partir de
quatro grandes grupos: a Igreja Católica, as elites agrárias, os abolicionistas e os
escravizados, que constituíam forças sociais divergentes e desiguais no pré-
abolição. Didaticamente, tanto a Igreja Católica quanto as elites brasileiras
posicionavam-se a favor da manutenção da escravidão, enquanto que os
abolicionistas e os negros escravizados insistiam no seu término.

Com a abolição da escravidão e a conseqüente emancipação dos


escravizados, é possível afirmar que os africanos e os afro-descendentes deixaram
de ser bens ou propriedades de seus senhores para obterem o status de cidadãos13.
Porém, entre aquilo que pensamos teoricamente e aquilo que, de fato, ocorreu,
houve um permanente hiato. É possível afirmar que com a abolição da escravidão
os africanos e os afro-descendentes, automaticamente, tornaram-se cidadãos? Foi
dada a eles a possibilidade de usufruir os diversos direitos disponíveis ou houve
constrangimentos e impedimentos para o alcance do pleno exercício da cidadania
por estas pessoas?

A abolição da escravidão foi um movimento político, basicamente secular e


anticlerical, uma vez que os valores religiosos do catolicismo não constituíam
nenhuma inspiração para o movimento abolicionista, pois estavam descolados das
questões sociais, levando a uma religiosidade formal e incentivando práticas
conservadoras, com ênfase na obediência e no respeito à hierarquia. É possível,
até, afirmar que o clero teve um papel importante na manutenção do sistema
escravocrata. Como vimos no terceiro capítulo, a Igreja Católica possuía uma
justificativa teológica para a manutenção da escravidão, baseada implicitamente na
idéia de uma superioridade da etnia branca, que pode ser encontrada no Gênesis14.

12
Célia Maria Marinho de AZEVEDO, Abolicionismo, Estados Unidos e Brasil, uma história
comparada (século XIX), p. 198.
13
De forma pioneira, foi a Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, que falou
sobre o fato de todos os homens nascerem livres e iguais, com direito à vida, à liberdade e à busca
de felicidade. Esta é a primeira vez que a noção de cidadania é definida em termos práticos, no bojo
das revoluções liberais.
14
Cf. BÍBLIA SAGRADA, Edição Pastoral, Gênesis.
281

Portanto, para a Igreja Católica, há uma desigualdade natural de origem15, uma


divisão dos seres humanos em diferentes grupos, conforme obra da divina
providência. Também se acreditava que a escravidão traria benefícios aos
escravizados, pois o contato com o cristianismo libertá-los-ia da barbárie.

As idéias da Igreja Católica iam ao encontro do argumento liberal, que


afirmava que a concepção do direito de propriedade da classe senhorial prevalecia
sobre a concepção de direitos naturais do escravizado como ser humano. Houve
uma apropriação da esfera religiosa pela elite agrária. Usavam a ideologia liberal
para explicar porque tinham o direito de derrubar o domínio colonial português,
cuidar de seus próprios negócios, concentrar riqueza e poder e suspender as
garantias legais da população livre e escravizada.

Já a campanha abolicionista, em oposição à Igreja Católica e à elite brasileira,


buscou outras formas de atuação para a sua prática. A argumentação teve um
caráter eminentemente político, calcada na questão da razão nacional, uma vez que
a existência de escravizados representava um perigo para a unidade nacional,
havendo um movimento de apelação às leis superiores, face à injustiça das leis
vigentes e ao projeto de modernidade, que era incoerente com a concentração
fundiária existente no sistema escravista.

Por fim, o posicionamento dos africanos e dos afro-descendentes, como


observamos no quarto capítulo, ocasionava uma poderosa tensão que foi gerada
pela oposição e pela resistência inflexível daqueles que eram submetidos ao
trabalho escravo: “... a maior parte dos escravos não gostava da servidão forçada, e

15
Também ao final do século XIX, a formulação da idéia de nação baseou-se na idéia de raça. Tal
idéia deu margem ao racismo, enquanto um termo que afirma que existe uma desigualdade entre as
raças humanas, partindo do pressuposto que a cultura é determinada biologicamente. A idéia de raça
construída sobre hierarquias denotando desigualdade dominou o pensamento social em muitos
lugares. O respaldo científico dado às doutrinas raciais vigentes na passagem para o século XX
remete à sua ideologia para fins políticos. O darwinismo social radicalizou o primado das leis
biológicas na determinação da civilização, afirmando que o progresso humano é um resultado da luta
e da competição entre as raças, vencendo os mais capazes ou aptos, no caso, os brancos, porque as
demais raças, especialmente os negros, sucumbiriam à seleção natural e social. Segundo Giralda
SEYFERTH, Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e
colonização, in: Márcio Choz MAIO; Ricardo Ventura SANTOS (org.), Raça, ciência e sociedade, p.
43: “Guardadas as diferenças de interpretação, todas elas tinham em comum o dogma de que a
diversidade humana, anatômica e cultural, era produzida pela desigualdade das raças; e a partir
deste dogma, produziram-se hierarquias raciais que invariavelmente localizavam os europeus
civilizados no topo, os negros “bárbaros” e os índios “selvagens” se revezando na base, e todos os
demais ocupando posições intermediárias”.
282

fazia esforços consideráveis – às vezes extremos – para alterar as condições de sua


escravidão ou para escapar completamente dela”16.

Independente da posição da Igreja Católica e da elite agrária de um lado e


dos abolicionistas e dos escravizados de outro, o que podemos observar é que a
abolição da escravidão não significou nenhuma grande ruptura estrutural, pois:

... houve mudança para que tudo permanecesse como dantes: os libertos no
Brasil não puderam contar com nenhuma política de restituição de cidadania
para que se dessem condições de sua inclusão na sociedade mais ampla,
mesmo porque a estrutura agrária havia ficado preservada. Os abolicionistas
também pouco puderam promover qualquer tipo de ajuda aos libertos: eram
tempos de convulsão política no país e não havia mesmo a consciência moral
no movimento como um todo.17

Os libertos foram abandonados à própria sorte e faltou a participação da


Igreja Católica e dos abolicionistas na promoção da cidadania de africanos e de afro-
descendentes, não sendo possível a inserção mais igualitária deste grupo na esfera
social18. Um grupo por estar preocupado com as profundas transformações pelas
quais passava a política brasileira, com o final da monarquia, enquanto o outro
passava por mudanças estruturais e concentrava seus esforços na sua
sobrevivência institucional, no momento em que houve a separação entre Igreja e
Estado19. A grande maioria dos africanos e dos afro-descendentes tornou-se
exército de reserva do mercado de trabalho dos centros urbanos, no momento em
16
George Reid ANDREWS, Negros e brancos em São Paulo (1888-1988), p. 58.
17
Ângela Randolpho PAIVA, Católico, protestante, cidadão, p. 102-103.
18
Segundo Hebe Maria MATTOS, Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, p. 12-13: “... o
conceito de raça é uma construção do século XIX, mas também a “racialização” da justificativa da
escravidão americana. Ela se tornou a contrapartida possível à generalização de uma concepção
universalizante de direitos do cidadão em sociedades que não reuniam condições políticas efetivas
para realizá-las permitindo, em diversos contextos, o estabelecimento de restrições aos direitos civis
de determinados grupos considerados racialmente inferiores, (...) A noção de raça é assim uma
construção social do século XIX, estreitamente ligada, no continente americano, às contradições
entre os direitos civis e políticos inerentes à cidadania estabelecida pelos novos estados liberais e o
longo processo de abolição do cativeiro”.
19
Sandra Rita MOLINA, em Na dança dos altares, Revista de História, p. 119, lembra-nos que a
preocupação da Igreja Católica com a própria sobrevivência já estava instalada antes da
Proclamação da República: “Ao invés instituições uniformes e coerentes – Igreja e estado, por
exemplo – surgiram grupos nuançados, complexos e atuantes, empenhados na defesa de seus
interesses particulares. Por exemplo, a Igreja mostrou-se cindida em pelo menos duas instâncias
profundamente delimitadas: o clero secular e o regular. Enquanto o primeiro se apresentou
profundamente subordinado ao Governo, o segundo emergiu, ao lado de outros cidadãos brasileiros
(proprietários de terras, imóveis e escravos), defendendo acirradamente direitos tradicionais frente ao
poder Imperial. Assim, os regulares compunham congregações autônomas, que seguiam orientações
diversas e tiveram desempenhos específicos”.
283

que os esforços, na esfera política, estavam concentrados no incentivo à


imigração20. Não houve uma reconstrução social para os libertos, sendo que eles
passaram a vivenciar um abandono institucionalizado, como também não houve
qualquer programa que possibilitasse a inserção da população africana e afro-
descendente na sociedade:

... os negros foram deliberadamente marginalizados por força de uma política


imigratória planejada, impulsionada por fortes motivações racistas e pela
manutenção da repressão da força de trabalho. Era o ideal de
branqueamento que predominava na virada do século na política de incentivo
à miscigenação com os novos imigrantes.21

Houve, portanto, a reafirmação da condição de escravizado, sendo utilizado o


argumento, pela ideologia dominante, que o africano ou o afro-descendente era
incapaz naturalmente de se adequar à modernização pretendida pelo modelo
nacional de República, enquanto que a Igreja Católica continuava a reforçar as
relações desiguais da sociedade brasileira, sendo que o que prevalecia era a ética

20
A imigração italiana ocorreu a partir da década de 1880 e continuou até a eclosão da Primeira
Guerra Mundial e, depois, foi retomada no início da década de 1920. O Brasil emerge,
temporariamente, como a principal zona de imigração no final da década de 1880, com a abolição da
escravidão e a utilização de trabalhadores italianos nos campos de café de São Paulo. A escolha do
local de imigração foi o mercado de trabalho existente, pois cada economia local apresentava
incentivos diferentes. Como incentivos podemos destacar: 1) disponibilidade de terras; e 2) planta
industrial incipiente e nova expansão urbana concomitante. Os imigrantes que chegaram ao Brasil
rapidamente ingressaram na classe de proprietários de terras, poupando dinheiro, mesmo havendo
situações de exploração dos trabalhadores subsidiados e de experiências negativas por parte das
famílias. Um contrato de cinco anos rendia dinheiro suficiente para comprar terras no país. De acordo
com o censo de 1920, eles possuíam 5,5% das fazendas do país, mesmo representando 1,8% da
população total e constituía a maioria dos proprietários estrangeiros, quase metade do total.
Concentravam-se nos estados mais ricos: São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Em 1923,
18,3% dos pés de cafés em estágio de produção na zona cafeeira de São Paulo eram possuídos por
italianos e 31,5% pelo total de estrangeiros. Em 1932, tinham elevado sua taxa de propriedade para
22% do total de pés de café naquela zona. No censo agrícola de 1924, os italianos possuíam 24%
das fazendas de São Paulo e produziam 21% do café do estado, época em que sua participação na
população total não passava de 5%. Uma das primeiras pesquisas industriais feitas em São Paulo,
em 1911, concluiu que havia mais de 50.000 trabalhadores industriais no estado, quase todos
italianos. Em 1911, 59% dos 10.204 trabalhadores têxteis de São Paulo eram italianos natos. Fica
evidente que os italianos tiveram um papel predominante na nova e poderosa estrutura industrial e
comercial que estava se estabelecendo. Uma pesquisa na década de 60 mostrou que imigrantes
estrangeiros da primeira, segunda e terceira gerações e seus herdeiros dirigiam 80% destas firmas.
Quando se consideraram os proprietários de empresas industriais com 100 trabalhadores ou mais,
mais uma vez a origem italiana predominou sobre qualquer outro grupo, com uma participação em
35% do total de firmas. Cf. Hebert S. KLEIN, A integração dos imigrantes italianos no Brasil,
Argentina e Estados Unidos, Novos Estudos do Ceprap. Como podemos observar o incentivo à
imigração foi um dos fatores que colaborou para a dificuldade de inserção do negro no mercado de
trabalho, cabendo aos negros subempregos, empregos domésticos, ou, mesmo, a inatividade.
21
Ângela Randolpho PAIVA, Católico, protestante, cidadão, p. 108-109.
284

do dever para a manutenção harmoniosa do todo. Os africanos e os afro-


descendentes contaram com pouca ajuda para a conquista da cidadania via esfera
religiosa ou política.

Mesmo tendo um poder de negociação diferente dos outros grupos sociais


existentes naquela época, os africanos e os afro-descendentes vêem frustradas as
suas aspirações de modificação do seu lugar na estrutura social e de conquista da
cidadania, logo após a abolição. Mais uma vez, suas expectativas de inserção social
como cidadãos são abortadas. Quais foram, então, as estratégias utilizadas por eles
para modificar a sua condição social, uma vez que sua inserção como trabalhadores
livres não representou, em grande medida, o abandono da sua condição de
escravizado? E mais, qual o papel ocupado pela tradição bantú em todo este
processo? Antes de responder a essas perguntas, abordaremos outro fato histórico
de grande relevância aos africanos e aos afro-descendentes, qual seja: a
Proclamação da República.

5.1.2 – Cidadania, negros e a Proclamação da República

Após a Abolição da Escravidão, houve uma reestruturação da sociedade que


teve como componente político a derrubada da monarquia, com sua substituição por
uma república descentralizada, controlada e dominada pelas elites agrárias. Os
republicanos paulistas lideraram o movimento, iniciado em 1870, e conspiraram nos
anos de 1888 e de 1889 com os oficiais militares, que também estavam insatisfeitos
com o governo monárquico. Eles, ainda, passaram a ocupar uma posição de
liderança na estruturação da nova república, criada pela Constituição de 189122.

A república era caracterizada por uma estrutura federal descentralizada e


níveis baixos de participação eleitoral (apenas os homens alfabetizados podiam
votar), o que ia ao encontro dos interesses dos fazendeiros, haja vista que, assim,
mantinham o controle sobre o Estado e a política nacional. “A participação política,
avaliada pelo voto, era mais restrita que na monarquia, e nenhum “poder moderador”
se colocava entre as massas brasileiras e os proprietários de terras”23. Tal fato

22
Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm. Acesso em: 19
mar 2010
23
George Reid ANDREWS, Negros e brancos em São Paulo (1888-1988), p. 78.
285

apontava para uma pequena participação política dos africanos e dos afro-
descendentes.

Enquanto os africanos e os afro-descendentes encaravam a liberdade com


esperança e com otimismo, os proprietários de terras avaliavam a chegada da
liberdade dos escravizados com certa inquietação e uma forte sensação de
desconforto em relação às mudanças que ela traria. Na visão das elites, o perigo
colocado pela abolição foi o poder dado aos africanos e aos afro-descendentes no
sentido de negociar com os fazendeiros as condições de trabalho e de convivência
mútua. Os salários foram uma consideração secundária, quando se falava das
condições de trabalho, uma vez que a principal preocupação dos africanos e dos
afro-descendentes era colocar o máximo de distância possível entre eles e a antiga
posição de escravizados, garantindo que as novas condições de emprego não
teriam semelhança com a escravidão, conforme visto no quarto capítulo. Os
africanos e os afro-descendentes haviam sido treinados no trabalho agrícola, pois as
outras alternativas eram poucas em uma sociedade fundamentalmente agrária.
Alguns migraram para as cidades, mas muitos continuaram no trabalho das
fazendas, contando que as condições de trabalho fossem diferentes das condições
da escravidão. Vemos que existia, por parte dos africanos e dos afro-descendentes,
uma tentativa de formação de uma nova identidade.

Cabe lembrar que a estrutura social mais ampla oferece os padrões de


identidade. A posição de uma identidade resulta de um processo, na medida em que
dois objetos são relacionados, considerando-se um deles como o padrão que serve
para identificar o outro. Uma identidade (escravizado) se identifica e é identificada
como tal por se encontrar na situação equivalente de outros escravizados, por um
lado, e se diferenciar de outras identidades concomitantemente. Se ele é
escravizado, sua identidade de escravizado está constituída. Em cada momento da
existência, embora o indivíduo seja uma totalidade, manifesta-se uma parte do
indivíduo, como desdobramento das múltiplas determinações a que ele está sujeito.
Nunca se comparece frente aos outros apenas como portador de um único papel,
mas como uma totalidade parcial.

Porém, o escravizado, durante o período escravista, foi visto unicamente a


partir desta identidade, que se encontrava rígida, não dando a possibilidade de que
outras faces fossem reveladas. Ao que tudo indica esta multiplicidade identitária só
286

surgia nas margens e nos interstícios deixados pela cultura dominante, em uma
situação de cunho privado ou de resistência. Imbuído do desejo de se tornar um
cidadão pleno, agora, os indivíduos de tradição bantú buscavam meios de mostrar
suas diversas facetas distanciando de sua conduta e de sua condição a identidade
de escravizado. Mesmo quando é chamado de liberto, o que serve de modelo para
sua identidade ainda é a identidade de escravizado, mas, agora, na sua outra
polaridade. Tal como escravizado e senhor, escravizado e liberto, outra categoria de
definição de identidade começou a se insinuar:

Uma vez que reconhecemos que “raça” e também “negro” e “branco” não são
“dados naturais”, mas “construções sociais” que estão ligadas e se articulam
como “idéias culturais” que têm sido usadas como critérios de inclusão e
exclusão, reivindico que deveríamos tratar tais conceitos também como parte
integrante importante da história da discriminação, isto é, como elementos
ideológicos fundamentais da história do racismo.24

O que observamos, portanto, é a associação entre escravizado, raça negra e


exclusão, fato que marcou a vivência de africanos e de afro-descendentes no que
diz respeito às possibilidades de inclusão social, já que o início do período
republicano representou o esforço dos fazendeiros de conter e de rever as
conseqüências políticas, sociais e econômicas da abolição da escravidão,
solidificando o domínio do proprietário de terras e disparando uma campanha que
buscava embranquecer a população nacional, objetivando uma substituição da
herança étnica africana pela européia25. Neste sentido, a ideologia do

24
Andreas HOFBAUER, Uma história do branqueamento ou o negro em questão, p. 25-26.
25
Interessante notar, segundo afirma Hebe Maria MATTOS, Escravidão e cidadania no Brasil
monárquico, p. 16-18: “A própria construção da categoria “pardo” é típica do final do período colonial
e tem uma significação muito mais abrangente que a noção de “mulato” (este, sim, um termo de
época diretamente ligado à mestiçagem) ou mestiço que muitas vezes lhe é associada. Na verdade,
durante todo o período colonial, e mesmo até bem avançado do século XIX, os termos “negro” e
“preto” foram usados exclusivamente para designar escravos e forros. Em muitas áreas e períodos,
“preto” foi sinônimo de africano, e os índios escravizados eram chamados de “negros da terra”.
“Pardo” foi inicialmente utilizado para designar a cor mais clara de alguns escravos, especialmente
sinalizando para a ascendência européia de alguns deles, mas ampliou sua significação quando se
teve que dar conta de uma crescente população para a qual não era mais cabível a classificação de
“preto” ou de “crioulo”, na medida em que estas tendiam a congelar socialmente a condição de
escravo ou ex-escravo. A emergência de uma população livre de ascendência africana – não
necessariamente mestiça, mas necessariamente dissociada, já por algumas gerações, da experiência
mais direta do cativeiro – consolidou a categoria “pardo livre” como condição lingüística necessária
para expressar a nova realidade, sem que recaísse sobre ela o estigma da escravidão, mas também
sem que se perdesse a memória dela e das restrições civis que implicava. (...) Era, assim, condição
287

branqueamento foi um elemento fundamental para justificar e levar a cabo a política


de imigração, que segundo Houfbauer:

... postula a supremacia do branco e, ao mesmo tempo, induz os indivíduos a


se aproximarem desse ideal. Traz em si um potencial de resistência contra
qualquer tentativa de “essencializar” os limites de cor e/ou raça, uma vez que
faz com que os indivíduos tendam a apostar em negociações pessoais e
contextuais das fronteiras identitárias e tendam a rejeitar processos e
mecanismos formais de delimitá-las. Essa prática social tem contribuído para
encobrir o teor discriminatório embutido nesse esquema ideológico e também
para abafar eventuais contra-reações coletivas. É dessa forma também –
argumentarei – que o ideário de branqueamento tem “atuado” no sentido de
dar sustentação ao poder patrimonial que se baseia em redes pessoais de
proteção e de dependência e cuja força se faz perceptível, no Brasil, até os
dias de hoje.26

O branqueamento era visualizado como um processo seletivo de


miscigenação que dentro de algumas gerações produziria uma população de
fenótipo branco27. No Brasil, no início do século XIX, a idéia de raça apareceu como

de diferenciação em relação à população escrava e liberta, e também de discriminação em relação à


população branca; era a própria expressão da mancha de sangue”.
26
Andreas HOFBAUER, Uma história do branqueamento ou o negro em questão, p. 27-28.
27
Resumidamente, podemos falar a respeito do histórico da idéia de raça. No século XIII, nobres
portugueses e espanhóis recorriam ao termo raça para destacar sua origem, sua descendência. Os
primórdios da história da noção de raça nada têm a ver com uma diferenciação de grupos humanos
segundo cores de peles diferentes ou outros critérios fenotípicos. A partir de uma reinterpretação de
um trecho do Velho Testamento, foi lentamente construída, ao longo da Idade Média, uma ligação
entre moralidade, culpa, escravidão e cor negra. Com a consolidação de uma burguesia mercantil a
partir do século XVII, começaram a se desenvolver e a se impor critérios de inclusão e exclusão que
não se baseavam mais em fundamentos exclusivamente religiosos e morais. Esta tendência estava
ligada à emergência de um Estado moderno, que surgiu como expressão de uma vontade coletiva.
Junto com a idéia de secularização da fé e da concepção de Deus, se estabeleceu a idéia do homem
como parte integrante do mundo e da natureza. Era o início da busca de critérios físico-naturais para
determinar as características de um indivíduo, de um povo e de uma nação. Durante o século XVIII,
havia um prognóstico de que o branqueamento, via casamentos, ocorreria num período de quatro
gerações. Na época da expansão européia, o ideário do branqueamento passava a assumir uma
função ideológica importante, transformando-se num discurso que conseguia ajustar os ideais
missionários cristãos às exigências políticas que visavam à construção das sociedades coloniais.
Para Buffon e outros pensadores do século XVIII: ““Branquear-se” era fundamentalmente uma
questão de tempo; dependia de condições climáticas favoráveis e talvez ainda de formas de
sociabilidade adequadas. Tudo indicava que os “cruzamentos” com raças mais claras” acelerariam
ainda mais esse processo” (Ibid., p. 112). No final do século XVIII, na Europa e nos Estados Unidos,
começaram a existir lentas transformações na interpretação do mundo e do outro, marcadas por três
tendências: a crença na razão, a crença na força da natureza (reino da biologia) e a crença no
progresso, que se fortaleciam como referências para se pensar o mundo e serviam como critérios
para avaliar as diferenças humanas. A origem e as causas dos fatos passaram a ser buscadas na
própria natureza, distanciada cada vez mais de um princípio divino. As distinções entre raças
superiores e inferiores elaboradas referiam-se cada vez mais a um ideário biológico e/ou escalas de
evolução. No início do século XIX, já havia grande variedade de métodos e critérios para delimitar
raças. O termo raça começava a fazer parte do vocabulário dos europeus, transformando-se na
288

critério definidor das diferenças humanas, adentrando e se estabelecendo no debate


político, usado tanto por aqueles que eram a favor da manutenção da ordem social e
econômica quanto por aqueles que combatiam o sistema escravocrata:

De qualquer forma, o fim da escravidão e a Proclamação da República


constituíram também um desafio para uma nova geração de cientistas
formados em instituições universitárias brasileiras que se propunham a
pensar as grandes questões e o futuro do país. A postura dos cientistas
oscilava entre dois pólos: o compromisso acadêmico com as modernas
ciências naturais e a fidelidade à nova nação. Nesse quadro, destacam-se as
tendências opostas entre os juristas e os médicos da época (...): os primeiros,
mais engajados no fortalecimento da instituição de um Estado moderno de
tipo legal, mostravam maior afinidade com o discurso liberal e acreditavam na
força transformadora da lei para a superação das desigualdades existentes;
os segundos, baseados nas premissas de uma ciência natural e suas leis
rígidas e propensas a determinismos, tendiam a descartar a possibilidade da
igualdade.28

Havia, portanto, a idéia de que o Brasil teria uma raça, um tipo ou um povo
nacional. Os imigrantes tinham um papel adicional para a formação desse povo:
contribuir para o branqueamento da nação e submergir na cultura brasileira através
de um processo de assimilação. Já em 1850, esta idéia se encontrava presente no
discurso nacionalista brasileiro, que privilegiou a questão da miscigenação. A
miscigenação foi vista como um mecanismo da nação e a base de uma futura raça
histórica brasileira, de um tipo nacional, resultante de um processo seletivo
direcionado para o branqueamento da população. Tal assunto foi obrigatório na
discussão da política imigratória, pois estava relacionada com a colonização, no
caso, a ocupação do território.

noção paradigmática usada para conceituar grupos humanos, mesmo que não tivesse sido definida
com precisão. A partir da segunda metade do século XIX, a categoria raça ganhou um conteúdo que
independia de contextos geográficos e climáticos. Estava baseada em um ideário biológico ou tinha
como referência estágios de evolução. A degeneração é de natureza biológica, uma impureza racial,
que teria surgido como resultado do cruzamento entre duas raças essencialmente diferentes. Com
este relato, é possível afirmar que Andreas HOUFBAUER discorda da idéia de que o branqueamento
é fruto de uma reação ao fim da escravidão. Para ele, a escravidão e o branqueamento podem ser
entendidos como fenômenos que se complementavam. O branqueamento não é uma idéia brasileira
formada na virada do século XIX para o XX, mas o ideário de se transformar negro em branco
perpassou longos períodos históricos. Na cor branca seriam projetados, ao longo do tempo, além de
valores religiosos e morais, outros ideais, tais como liberdade e progresso civilizatório. Ao mesmo
tempo em que esse ideário refletiu os anseios e os interesses das elites, ele também tem sido
respaldo no imaginário popular.
28
Andreas HOFBAUER, Uma história do branqueamento ou o negro em questão, p. 198.
289

O debate sobre a colonização tornou-se acirrado na década de 1840, diante


das dificuldades de atrair imigrantes da Europa. Uma política mais consistente
vigorou a partir de 1850 com a lei que regulamentou a concessão de terras públicas
e tornou mais fácil a expedição de títulos de propriedade para estrangeiros (fato que
coincidiu com o fim do tráfico de escravos). Durante o Império, a abolição da
escravidão foi vista como a única medida capaz de tornar o Brasil um país civilizado,
inaugurando o trabalho livre, associado ao imigrante europeu, o que excluía os
nacionais (trabalhadores livres e escravizados) do sistema de colonização com
pequenas propriedades. A imigração européia foi apresentada como instrumento da
civilização, enquanto que a escravidão e a grande propriedade como impedimento à
imigração espontânea, estorvo ao desenvolvimento econômico e ao trabalho livre:

Apesar da condenação explícita do escravismo, não há qualquer


preocupação com o destino da população escrava, nem mesmo com os
demais trabalhadores nacionais, e o significado mais imediato de “trabalho
livre” é a desqualificação dos negros e mestiços para o trabalho
independente. Eram, pois, considerados incapazes de agir por iniciativa
própria – pressupondo, portanto, que fracassariam como pequenos
proprietários.29

Tal despreocupação é corroborada pela Constituição Federal de 189130 que


proibiu a imigração africana e asiática para o país, além dos governos nacionais e
estaduais transformarem a imigração européia para o Brasil em uma prioridade do
desenvolvimento nacional, sabendo também que nela estava incluída a ideologia do
branqueamento:

Em parte alguma do Brasil este esforço para europeizar o país foi maior que
em São Paulo, e em parte alguma do Brasil seus efeitos foram mais
fortemente sentidos. Um maciço programa estatal para subsidiar a imigração
européia para o Estado resultou em que mais da metade dos europeus que
vieram para o Brasil durante a República, veio para São Paulo. Entretanto,
além do objetivo de europeizar o Estado, o principal propósito do programa
era reverter as conseqüências econômicas da “revolução” da abolição e
restaurar o controle do proprietário de terras sobre a força de trabalho. No

29
Giralda SEYFERTH, Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de
imigração e colonização, in: Márcio Choz MAIO; Ricardo Ventura SANTOS (org.), Raça, ciência e
sociedade, p. 46.
30
Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm. Acesso em: 19
mar 2010
290

início da década de 1890, seus impactos já eram evidentes, particularmente


entre os beneficiários recentes da abolição: os afro-brasileiros. 31

O que houve, portanto, foi a elaboração de hierarquias raciais, descartando


como atraso qualquer corrente imigratória africana ou asiática. A desqualificação dos
não brancos se fez por critérios de natureza moral e pela incapacidade de produção
em um sistema de livre iniciativa. É como se os descendentes de africanos
estivessem fadados ao desaparecimento no contexto da civilização não escravista,
através do branqueamento. As chamadas “raças inferiores” foram deixadas à
margem de todos os projetos oficiais ou particulares envolvendo imigrantes:

Nas primeiras décadas da República, a formalização do branqueamento a


partir de dogmas associados à “ciência das raças” levou a um novo formato
de classificação dos imigrantes europeus, desta vez pela maior ou menor
inclinação de cada etnia à assimilação e à miscigenação. (...) O tipo nacional
imaginado era incompatível com uma imigração não branca, razão
apresentada para condenar a vinda de chineses, hindus e japoneses –
apresentados como representantes de civilizações decadentes que podiam
atrasar o processo histórico de formação racial do brasileiro. Quanto aos
africanos, sequer foram cogitados como imigrantes.32

A cor da pele ou o fenótipo foram elementos preponderantes à definição das


categorias raciais empregadas, porém a hierarquização de tais categorias é
subjetivamente ancorada no sentido da ordem moral, portanto uma construção
cultural. Houve uma ausência de referências mais demoradas aos trabalhadores
nacionais, aos africanos e os afro-descendentes enquanto possíveis colonos no
regime de pequena propriedade. Sua participação em projetos de colonização
sequer foi considerada, o que reitera apenas a presença dos brancos como capazes
de ocupação do território nacional em pequenas propriedades. O que observamos,
mais uma vez, é que africanos e afro-descendentes estavam excluídos dos projetos
de construção da nova nação, principalmente em função das idéias da época, que
estavam baseadas na noção de raça.

31
George Reid ANDREWS, Negros e brancos em São Paulo (1888-1988), p. 91.
32
Giralda SEYFERTH, Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de
imigração e colonização, in: Márcio Choz MAIO; Ricardo Ventura SANTOS (org.), Raça, ciência e
sociedade, p. 56-57.
291

Vimos que os dois fatos históricos trabalhados tiveram conseqüências na vida


dos africanos e dos afro-descendentes. A Abolição da Escravidão, arduamente
desejada e batalhada trazia em si a expectativa de uma vida melhor e diferente
daquela vivida até então, estando cheia de significados, que possibilitaram a
construção dos projetos de liberdade, como vimos no capítulo quarto. Aconteceu
que, mesmo com o apoio dos abolicionistas, que possuíam uma leitura diferente dos
fatos, o fim da escravidão não deu aos africanos e aos afro-descendentes aquilo que
desejavam, mas os colocou novamente em uma situação de angústia: libertos, mas
não cidadãos. Já a Proclamação da República, com a sua política de
embranquecimento, dificultou ainda mais as possibilidades de ação dos africanos e
dos afro-descendentes, instalando momentaneamente a paralisia. Apesar de um
universo que se mostrava fechado, uma nova esperança insinuou-se, delineando-se
em cima de algo que começou a se formar na concretude social. Mais uma vez, o
sistema deixa seus vácuos, que foram apropriados e transformados pelo popular.
Segundo Bhabha: “A cultura, como espaço colonial de intervenção e agonismo,
como traço do deslocamento de símbolo a signo, pode ser transformada pelo desejo
33
imprevisível e parcial do hibridismo” . Quando falamos desta nova construção
híbrida, falamos da religiosidade, que se tornou outra com a separação entre Igreja
Católica e Estado, mostrando como uma antecipação de aspectos da tradição bantú,
fez com que facetas pudessem ser recuperadas.

5.1.3 – A religião dentro da nova ordem social

Segundo Montero34, além da constituição de uma sociedade ancorada em


uma estrutura de classes e em uma ideologia do embranquecimento, a Proclamação
da República, como um movimento histórico que se pretendia moderno, fez
tentativas de colocar a religião como esfera diferenciada da vida social. Houve uma
diferenciação das esferas política, econômica e científica em relação à religiosa, o
que tirou a religião do espaço público, enquanto única instituição doadora de
sentido, o que levou, ainda, à emergência de um mercado impessoal, de um Estado
mais distante da regulação moral, de uma vida intelectual que dispensava a idéia de

33
Homi K. BHABHA, O local da cultura, p. 167.
34
Cf. Paula MONTERO, Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil, Novos Estudos.
292

Deus e de uma experiência de individualidade urbana mais escolarizada e


autônoma35.

Segundo Molina36, portanto, as leis, que já começaram a vigorar no século


XIX, mostravam a dificuldade no estabelecimento da jurisdição do poder público e
privado no Brasil, gerando uma relação tensa entre a Igreja Católica e o Estado.
Houve uma desobediência de ambas as partes. O Estado para garantir seus
objetivos, a Igreja Católica para preservar a sua autonomia. O processo que levou à
separação do Estado e da Igreja Católica colocou a religião na sociedade civil,
trazendo conseqüências para a forma como cada grupo expressava-se
religiosamente, uma vez que...

... houve um retraimento do catolicismo para o espaço social, produziu-se um


intenso conflito em torno da autonomia de certas manifestações culturais de
matriz não-cristã, ou da sua legitimidade para expressar-se publicamente.
Assim, no processo mesmo de constituição do Estado brasileiro, como esfera
separada da Igreja Católica, manifestações variadas de “feitiçaria”,
“curandeirismos” e “batuques” só puderam ser descriminalizadas quando, em
nome do direito à liberdade de culto, passaram a se constituir
institucionalmente como religiões.37

Tal processo fez com que a magia, existente na época do regime


escravocrata, não fosse erradicada, mas que estivesse colocada em outras bases
de significação, que agora a entendia como religião, produzindo novas formas de
expressão e de instituições religiosas. Desde os primeiros momentos da
Proclamação da República, o combate à feitiçaria e ao curandeirismo38, associados

35
Segundo Sandra Rita MOLINA, Na dança dos altares, Revista de História, p. 117: “Entretanto,
sobretudo a partir do século XVIII, cada vez mais se delineou um conflito intenso entre o Estado e a
Igreja, que se deparava com as idéias de construção de um mundo no qual sobrava pouco espaço
para as verdades reveladas e negavam-se a fé e a religião como único caminho para a construção do
saber. Passava-se à edificação racional do Estado e de sua plena soberania em relação à Igreja. O
Estado moderno traz embutido em si as idéias de nascimento de uma nova moral, a moral do homem
que construiu o Estado e, portanto, a necessidade de criação de uma ética nacional que fosse
racionalizada, separada da teologia. A teoria moderna do Estado apoiou-se na tese dos três poderes
– legislativo, executivo e judiciário – e das relações entre eles. Uma vez reduzido o conceito de
Estado ao de política, e o conceito de política ao de poder, a questão mais importante a ser resolvida
dizia respeito à possibilidade de se diferenciar o poder político de todas as outras formas que a
relação de poder assumia”.
36
Cf. Ibid.
37
Paula MONTERO, Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil, Novos Estudos, p. 50.
38
O que podemos perceber pelos dados trazidos pelos processos-crimes antigos é que o combate à
feitiçaria e ao curandeiro ocorria já nos séculos XVIII e XIX dentro da Igreja Católica no estado de
São Paulo. Podemos fazer uma inferência no sentido de pensar que, anteriormente, tais práticas
293

à população africana e afro-descendente, fez parte do processo de estabelecimento


de uma ordem pública moderna. Havia a necessidade de se separar o que era
religião, tendo proteção legal, do que era magia, prática anti-social e anômica a ser
combatida, normalmente vinculada aos afro-brasileiros. Por parte desta população
foi necessário demonstrar ao Estado que estas práticas não representavam ameaça
à saúde ou à ordem pública, ainda que se praticassem danças, curas e batuques,
entendidas como práticas religiosas.

O que mais uma vez podemos perceber é que aquilo que se encontrava
associado aos africanos e aos afro-descendentes, portanto, pessoas que pertenciam
à raça negra, como se convencionou chamar no início do século XX, estava excluído
da construção do Estado Moderno, marcado por idéias iluministas, sendo assim, um
estado secular. A religião, ou melhor, a Igreja Católica, estando separada do Estado
e recolocada dentro da ordem pública, deu possibilidade de que novas religiões
institucionalizadas pudessem se formar, se manter e se expressar. Porém, o que
assistimos foi que essa possibilidade também foi negada à população africana e
afro-descendente, caso desejassem recuperar a sua tradição. Aquilo que
religiosamente estava associado à matriz africana – curas, adivinhações, feitiçarias,
danças, cantos, batuques, possessões – deixou de ser crime condenado pela Igreja
Católica para se tornar um crime diante da sociedade civil39.

A exclusão mostrou-se também no início do século XX como uma certeza


para africanos e para afro-descendentes. Se durante a escravidão a exclusão
ocorria pelo fato deles serem considerados mercadorias, neste momento a exclusão
se dava por uma ideologia que os considerava como seres inferiores. Como

estavam associadas ao demônio e à magia negra e que, com a República, tais práticas
representavam um tipo de retrocesso para a Modernidade pretendida.
39
Segundo João José REIS, Domingos Sodré, p. 87-88: “Trazidos para o Brasil à força como
escravos, uma vez alforriados, africanos como Domingos Sodré viravam estrangeiros, sem direitos
que tinha o cidadão brasileiro ou mesmo aqueles estendidos aos alforriados nascidos no país. A
Constituição Imperial de 1824 não lhes permitia participar da vida política do país. Não podiam votar
ou ser eleitos para qualquer cargo, nem exercer ocupações no aparelho governamental em qualquer
nível”. Ainda segundo Ibid., p. 142: “No Brasil imperial, as práticas religiosas de matriz africana
existiam em uma espécie de limbo jurídico. Não eram consideradas religião pelas autoridades e
portanto passíveis de serem toleradas, conforme rezava a Constituição. O linguajar hegemônico –
das autoridades civis e eclesiásticas, e da imprensa, por exemplo – as tinha na conta de superstição
ou feitiçaria. Mas essas formas de ver e atuar no mundo tampouco constituíam crime segundo o
Código Criminal do Império, ao contrário do que ocorria na antiga colônia sob a legislação inquisitorial
e outras leis eclesiásticas e civis. Tinha o código imperial um capítulo que punia “ofensas à religião e
aos bons costumes” (mas só “sendo em lugar público”) e outro que proibia “ajuntamentos ilícitos”,
porém não explicitava que cerimônias religiosas de qualquer natureza fossem ofensivas ao
catolicismo ou ilícitas, menos ainda as consultas individuais de adivinhação e outros rituais privados”.
294

pudemos perceber a cidadania esperada com a Abolição da Escravidão e com a


Proclamação da República não foi conquistada. As pessoas de tradição bantú
perceberam-se, em determinado momento, com possibilidades múltiplas, mas, no
momento seguinte, elas lhes foram negadas. Frente à situação que se apresentava,
esta população precisava encontrar caminhos de doação de sentido para a nova
realidade que se constituía, a partir de projetos construídos durante o período
escravocrata, como vimos no quarto capítulo.

A formação de expressões religiosas pode ter significado uma forma de


resposta para a falta de cidadania e para a exclusão social vivenciada por eles? A
religião, sendo um aspecto central da tradição bantú, pode ter sido acionada como
forma de satisfazer uma série de necessidades culturais e políticas, já que ela
mesma passou a ocupar um novo lugar dentro da sociedade? Queremos dizer com
isso que a religiosidade dentro deste quadro pode ser entendida como uma das
possibilidades utópicas entre as várias tentativas de inserção na sociedade urbana,
uma vez que as transformações sociais podem ter significado a necessidade de
revisão das bases estruturais nas quais os africanos e os afro-descendentes
estavam ancorados, sem perder de vista aspectos da tradição bantú e os projetos de
liberdade gestados.

5.2 – Dimensão utópica dos acontecimentos: uma leitura bantú

Como vimos anteriormente, a palavra liberdade encerrava vários significados


para os africanos e os afro-descendentes, tais como: acesso à terra; direito de
escolha do seu lugar de trabalho; circulação livre pelas cidades; constituição da
própria família, sem receios de separação; vivência da própria religiosidade, com
expressão do que melhor lhe conviesse; tratamento como pessoas livres; e direito à
cidadania. Porém, o que observamos foi que os africanos e os afro-descendentes
não viram melhorias no lugar que ocupavam na estrutura social, não conquistaram a
cidadania, o sistema de colonização através da pequena propriedade os excluía e
suas expressões religiosas passaram a ser tratadas como crimes e atentados à
saúde pública. Um dos aspectos que influenciou a inacessibilidade a estes desejos
foi o papel que o termo raça e o preconceito tomaram no início do século XX:
295

As camadas populares da cidade, especialmente os ex-escravos, tinham


fortes motivos para desconfiar dos republicanos. Efetivamente, quando eles
chegaram ao poder, enérgicas medidas de controle policial foram
implementadas para disciplinar ganhadores, carroceiros, empregadas
domésticas, setores tradicionalmente ocupados por negros e mestiços. Nas
cidades, muitos pontos de encontro da população negra foram extintos, e
houve dura repressão policial contra os candomblés, batuques, sambas,
capoeiras, ou qualquer outra forma de manifestação identificada
genericamente como “africanismo”. No final do século, esse anti-africanismo,
fortemente inspirado no racismo científico, teve implicações dramáticas para
as populações negras, pois reforçou as barreiras raciais que dificultavam o
acesso a melhores condições de vida e ampliação dos direitos de cidadania.40

Com ares de cientificismo, a raça passou a ser um critério classificatório dos


cidadãos e um definidor da condição de liberto. As pessoas se diferenciavam,
conforme sua condição racial, o que auxiliou aqueles que queriam manter as velhas
hierarquias, justificando novas formas e novo controle social sobre os africanos e
afro-descendentes. Haufbauer nos auxilia neste entendimento, uma vez que para ele
os critérios para incluir ou excluir “um outro” são construções históricas e culturais,
exigindo mediações complexas. As palavras e os conceitos são produtos históricos e
culturais que expressam intencionalidades individuais e coletivas e,
conseqüentemente, podem e devem ser vistos como intimamente ligados à
construção da realidade social. O branqueamento pode ser tomado como a idéia de
mudança biológica (cor de pele), mas também como algo que se refere a um dado
cultural, que adquire ênfase em determinados contextos:

... o ideário de branqueamento, constantemente reatualizado com novos


argumentos, desde as pregações jesuíticas até os discursos modernizadores
dos políticos do fim do século XIX, nunca se resumiu à idéia de “transformar
uma cor/raça em outra”. Vimos que, ao longo dos séculos, o desejo de “ser
mais branco” solidificou-se como “prática social” no Brasil. Podia ser notado
tanto no comportamento social como na percepção e manipulação de
aspectos físicos.
A crença na possibilidade de uma metamorfose da cor de pele (da raça)
ofereceu um suporte ideológico para a continuidade do exercício do poder
patrimonial-escravista. Ao mesmo tempo em que as relações patrimoniais
hierárquicas constituíam um obstáculo para a implantação de direitos civis
(liberdade individual, igualdade diante da lei), a ideologia do branqueamento
trazia em si um enorme potencial de resistência contra qualquer tentativa de
“essencializar” os limites de cor e/ou raça.

40
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 355.
296

Isso porque o ideário do branqueamento induz a negociações pessoais e


contextuais das fronteiras e das identidades dos envolvidos. Essa prática
social contribui não apenas para encobrir o teor discriminatório embutido
nessa construção ideológica, mas também para abafar uma reação coletiva.
Assim, a ideologia do branqueamento “atua no sentido de dividir aqueles que
poderiam se organizar em torno de uma reivindicação comum, e faz com que
as pessoas procurem se apresentar no cotidiano como o mais “branco”
possível.41

O racismo, portanto, dentro do contexto histórico do final do século XIX e


início do século XX, pode ser observado como um modo invisível de escravizar os
africanos e afro-descendentes às esferas mais baixas da sociedade, negando-lhes
direitos iguais aos cidadãos brancos. Essa classe de cidadãos era sistematicamente
excluída das oportunidades de melhoria social em toda a nação, devido à sua
fisionomia. No entanto, longe de ser, por essência, negativo, o caos é um horizonte
dramaticamente ampliado de possibilidades e, como tal, compreende, como nenhum
outro, possibilidades progressivas e possibilidades regressivas.

Porém, mesmo que muitas alternativas tenham sido negadas, os africanos e


afro-descendentes buscavam formas de melhorar a sua condição como cidadãos
livres, protagonizando os mais importantes movimentos de rua ocorridos durante as
primeiras décadas de regime republicano. No que se refere à Abolição da
Escravidão, a mesma foi vivenciada como um movimento popular, ou, mais do que
isso, como uma conquista dos africanos e dos afro-descendentes, que trazia no seu
bojo uma expectativa de melhora. Além disso, a Proclamação da República também
se insinuava como algo diferente daquilo que se vivera até então. Quando esta
expectativa é frustrada, como observada na situação trabalhista, no incentivo à
imigração e na ideologia do embranquecimento, é possível supor que, novamente,
há uma perda de sentido da situação vivida e uma necessidade do grupo de
indivíduos de tradição bantú de se reorganizar simbolicamente, tal como aconteceu
durante a travessia e a chegada ao Brasil, conforme visto no segundo capítulo. A
umbanda dentro deste quadro pode ser vista não apenas como possibilidade de
ascensão social, como colocado por Ortiz42, mas como uma forma de resgate da
tradição bantú, definitivamente como utopia:

41
Andreas HOFBAUER, Uma história do branqueamento ou o negro em questão, p. 212-213.
42
Cf. Renato ORTIZ, A morte branca do feiticeiro negro.
297

O problema real, no entanto, é que havia modos radicalmente distintos de


conceber a vida em liberdade. Para os negros, viver em liberdade podia
significar a necessidade de existir só para produzir dentro de determinadas
condições, e também não há razão para pensarmos aprioristicamente que
passou algum dia pelas mentes de escravos (...) a idéia de que o significado
da vida era a ascensão social através das “virtudes” de um certo tipo de
homem trabalhador. 43

A formação de uma nova religião podia apontar para esta tentativa, no sentido
de que, naquele momento, os indivíduos de tradição bantú se percebiam, às voltas,
com a possibilidade de viverem a liberdade dentro da lógica que melhor lhe
conviesse, fato que deveria ter ocorrido com a Abolição da Escravidão. Como tal fato
não aconteceu, buscou-se uma nova forma de resgate da própria tradição, através
de uma tentativa religiosa: a formação de uma nova religião. Novamente, podemos
pensar que há, implicitamente, uma tentativa de modificação de identidade. Se a
identidade se constrói na atividade, a tentativa dos indivíduos de tradição bantú era
adquirir uma nova identidade não mais pautada na escravidão, mas em outras
bases. Neste sentido, a religião pode ser apontada como uma possibilidade utópica.

Buscamos entender a utopia baseados em Bloch, quando ele afirma que em


todo presente, mesmo no que é lembrado, há um impulso e uma interrupção, uma
incubação e uma antecipação do que ainda não veio a ser. Tal fato permite tornar
compreensível a vida desejada e antecipada, baseada naquilo que ainda não é. A
concepção e as idéias da intenção futura são utópicas, no sentido de um sonho para
frente, de uma antecipação:

Assim, portanto, a categoria do utópico possui, além do sentido habitual,


justificadamente depreciativo, também um outro que de modo algum é
necessariamente abstrato ou alheio ao mundo, mas sim inteiramente voltado
para o mundo: o sentido de ultrapassar o curso natural dos acontecimentos.44

O curso natural dos acontecimentos recolocaria os africanos e os afro-


descendentes em uma posição de exclusão e de reprodução. Ao contrário disso, o
que se buscava era a contribuição para a criação de um novo senso comum, que

43
Sidney CHALHOUB, Visões de liberdade, p. 80. (O grifo é nosso)
44
Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 22.
298

lhes permitiria transformar a ordem ou a desordem existente, chamada


significativamente de ordem subversiva. Por isso:

A vontade utópica autêntica não é de forma alguma um almejar infinito, ao


contrário: ela quer o meramente imediato e, dessa forma, o conteúdo não
possuído do encontrar-se e do estar-aí [Dasein] finalmente mediado, aclarado
e preenchido, preenchido do modo adequado à felicidade.45

O que se buscava era um mundo mais adequado a eles. Porém, este mundo
só estava em curso para aquele que tinha o novo diante de si: o que importava não
era aquilo que foi, mas aquilo que se situava na linha de frente. Assim sendo, a
esperança é entendida, pelo autor, como um afeto expectante, ou seja, algo que
possui uma intenção desejante de amplo alcance, ao mesmo tempo em que aquilo
que se deseja não está disponível e não é acessível, o que acarreta ainda a dúvida
de sua finalização ou de sua ocorrência:

O afeto expectante mais importante, o afeto do anseio, portanto o auto-afeto


por excelência, continua sendo constantemente a esperança, pois os afetos
expectantes negativos da angústia e do medo são totalmente passivos,
oprimidos, presos, não obstante toda a repulsão que exercem. Neles se
manifesta um tanto da autodestruição e do nada para o expectante contrário à
angústia e ao medo, é a mais humana de todas as emoções e acessível
apenas aos seres humanos. Ela tem como referência, ao mesmo tempo, o
horizonte mais amplo e mais claro. Ela representa aquele appetitus no ânimo
que não só o sujeito tem, mas no qual ele ainda consiste essencialmente,
como sujeito não plenificado.46

No momento vivido pelos africanos e pelos afro-descendentes, dentro da


utopia, foi acolhida a negação ao ruim existente e a afirmação ao melhor que ainda
está suspenso, que ainda estava por vir. Bloch fala, então, dos sonhos diurnos que
nascem desta percepção, ou seja, são formados e procedem de uma carência,
daquilo que me falta, e querem se desfazer dela. Logo, são sonhos de uma vida
melhor, ainda não consciente, algo que no passado nunca esteve consciente nem
tinha existência, ou seja, algo que se insinua para frente, rumo ao novo:

45
Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 26.
46
Ibid., p. 77.
299

Todavia, o sonho diurno, em seus aspectos comuns, estende-se na sua


dimensão tão larga quanto profunda, não sublimada e sim concentrada, na
sua dimensão utópica. E ela coloca o mundo melhor igualmente como o mais
bonito, em imagens mais completas, como a terra não as comporta ainda.
Planejando ou dando forma, em meio a necessidade, dureza, crueza,
banalidade, são abertas luminosas janelas para o longe. O sonho diurno
como prelúdio da arte visa assim, de maneira especialmente significativa, à
melhoria do mundo; é esta aspiração saudável e realista que constitui seu
cerne.47

A construção de um mundo melhor para africanos e para afro-descendentes


pode estar vinculada a retomada da vivência religiosa, no caso, a macumba e a
umbanda, enquanto religiões originárias no meio urbano logo após o fim da
escravidão, podendo ser entendidas como uma invenção da modernidade, no
sentido de que a nova estrutura social, advinda com a República e com a separação
do Estado da Igreja, permitiu a constituição destas novas formas religiosas. Elas
podem ser consideradas como um novo sistema de símbolos dentro de uma
sociedade, uma utopia, que funcionou como um código, que permitiu perceber e
significar os acontecimentos, ou seja, uma linguagem imaginária e simbólica que
possuía a sua lógica interna: “... um sistema de mitos, símbolos e representações
imaginárias que é, na verdade, a linguagem de uma formação social”48. No nosso
entendimento, esses sistemas de símbolos – a macumba e a umbanda - buscaram
dar sentido à realidade de determinado grupo vinculado a uma tradição, qual seja,
os indivíduos que possuíam uma tradição bantú.

A idéia, aqui trabalhada, não é a de uma manutenção de um todo igual, mas a


proposta de que há a recuperação, por parte dos africanos e dos afro-descendentes,
de elementos da tradição bantú. Pensamos nos indivíduos diaspóricos que ainda
mantêm as suas tradições, mesmo que ressignificadas, uma vez que são afro-
brasileiros, descendentes de certas tradições. Podemos falar de religiosidades
híbridas ou como coloca Soares em fé sincrética:

A fé sincrética é absoluta quanto aos valores fundamentais que estão em jogo


na escolha aparentemente contraditória dos significantes religiosos (dimensão
da fé); mas é relativa quanto aos resultados efetivamente atingidos (dimensão
ideológico-sincrética). Pode-se falar, portanto, de fé sincrética para identificar

47
Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 95-96.
48
George LAPASSADE; Marco Aurélio LUZ, O segredo da macumba, p. 75.
300

o modo mesmo de uma fé “concretizar-se”. De fato, não existe fé em estado


puro; ela mostra-se na práxis.49

A fé sincrética pode ser entendida desde que se perceba a diferença de


trajeto, isto é, o lugar do qual fala aquele que promove a invenção religiosa popular.
As estruturas vigentes são acolhidas de acordo com as reais estruturas que são
significativas para os grupos de tradição bantú. Há um acolhimento, nas suas
tradições, daquilo que se mostra relevante, ao mesmo tempo em que se expurga o
que lhes parece sem sentido ou desumano, mistura-se e se mantém aquilo que
julgam como positivo, o que serve para enriquecer a sua cosmovisão. Esta é a forma
com que podemos olhar o surgimento destes novos movimentos religiosos no início
do século XX. Tal análise se torna importante, uma vez que a religião relaciona-se
com um contexto mais amplo e influencia a construção das relações sociais. Ela
pode gerar processos que levam a mudanças de orientação e que influenciam a
possibilidade de atuação de cada grupo cultural na própria sociedade. A religião,
com isso, é um dos fatores que pode promover uma maior possibilidade de
construção de cidadania. O que se vê é que determinada ética religiosa gera uma
maior capacidade de inserção social, fato que veremos na diferenciação entre a
macumba e a umbanda.

5.3 – A formação de novas expressões religiosas

A umbanda e a macumba são consideradas religiões afro-brasileiras, pois


possuem matrizes africanas, mais precisamente uma matriz bantú. Na formação
destas religiões houve um processo de encontros culturais não só entre as diversas
tradições trazidas pelo tráfico negreiro, como também entre os grupos africanos e
outras tradições, como a européia e a indígena, presentes no Brasil. Nesse encontro
o que se observa são processos de reorganização da tradição cultural, feitos com o
intuito de convivência, criando, assim, um denominador comum cultural de cunho
sincrético. O processo de criação de um denominador comum ocorre dentro da
realidade cotidiana, a partir de processos de apropriação, que são tensos e aflitivos,
uma vez que pedem negociações de significados dos processos culturais. No Brasil,

49
Afonso Maria Ligório SOARES, Diálogo na escola de François de L’Espinay: catolicismo e tradições
africanas, Revista Eclesiástica Brasileira, p. 604.
301

no encontro de diversas tradições, observa-se um lento processo de integração, que


se dá através de trocas materiais e simbólicas. Esse processo de ressignificação
cultural é feito em contextos, muitas vezes conflituosos, atravessados por relações
de poder, o que gera assimetrias:

Uma vez que o negro seja camponês, artesão, proletário, ou constitua uma
espécie de sub-proletariado, sua religião se apresentará diversamente ou
exprimirá posições diversas, condições de vida e quadros sociais não
identificáveis. O que complica a questão é que essa religião sofreu não só a
influência dessas variações da estrutura social, mas, também, da pressão
cultural do europeu branco, católico e da dupla política seguida pelo Estado
português, representado por seus governadores, e da Igreja Católica
Romana, representada por seus monges mais que por seus capelães de
engenho ou curas das paróquias. Isto faz com que as superestruturas, as
representações religiosas como os símbolos da mística, os valores culturais
dos africanos ou de seus descendentes se achem subordinados a uma dupla
influência: uma no mesmo nível, a das representações coletivas dos cristãos,
dos símbolos culturais europeus, dos valores portugueses e, a outra, em nível
diferente, a das modificações morfológicas das estruturas, organizadas ou
não. (...) Da mesma forma, a religião africana tendeu a reconstituir no novo
habitat a comunidade aldeã à qual estava ligada e, como não o conseguiu,
lançou mão de outros meios; secretou, de algum modo, como um animal vivo,
sua própria concha; suscitou grupos originais, ao mesmo tempo semelhantes
e, todavia diversos dos agrupamentos africanos.50

O que observamos, portanto, é que na constituição destas religiões, além do


dado cultural, também, um dado social influenciou a sua formação, de qualquer
forma, dentro deste contexto. A cultura é entendida como um sistema de significados
que não é neutro, conferindo sentido / significado às ações e às vivências, ao
mesmo tempo em que constrói cadeias valorativas, representadas através de
condições e de produtos. As pessoas estão presas a uma teia de significados e,
neste sentido, as suas ações são atos simbólicos, que adquirem sentido dentro
desta cadeia de significados. Portanto, a dinâmica cultural é entendida como um
processo de permanente reorganização de representações religiosas, sociais e
políticas.

Podemos perceber que a cultura se atualiza na ação dos sujeitos, podendo


ser modificado o sentido dos produtos culturais. A história é ordenada culturalmente
de diferentes modos nas diversas sociedades, de acordo com os sistemas de

50
Roger BASTIDE, As religiões africanas no Brasil, p. 31-32. (O grifo é nosso)
302

significação, ao mesmo tempo em que os esquemas culturais são ordenados


historicamente. Há uma relação dialética entre as práticas produzidas na história e
as matrizes culturais, sendo que o indivíduo é o agente desta relação. Os elementos
simbólicos de cada cultura estão em permanente dinamismo, havendo uma
atualização constante, já que a partir da tensão é que se dá a criação do novo.

Como ocorre o processo de doação de sentido, quando o encontro entre


culturas se dá através de relações desiguais de poder? Cada grupo étnico está
amarrado a uma teia de significados que pode ser negociada no encontro cultural,
ocasionando momentos de socialização, de conflito, de tensão, de negociação, de
domesticação e de resistência. Tal situação gera uma circulação cultural entre
grupos distintos, não podendo entendê-los como puros. O que se pode observar é
que no processo de encontro cultural, há ou não a apropriação de símbolos
constitutivos, que podem ou não ser eficazes na nova produção cultural gerada
dentro de uma sociedade conflitiva, que responde às necessidades de determinado
momento histórico.

A macumba e a umbanda podem ser vistas como uma utopia do grupo de


indivíduos, no caso de influência bantú, que chegaram às cidades com a Abolição da
Escravidão e com o processo migratório interno. Trabalhamos com a idéia de que a
macumba, apesar de preservar com mais ênfase as estruturas de tradição bantú e
as práticas religiosas existentes durante a escravidão, não representou novas
formas de inserção no mundo, portanto não se tornando eficaz utópica e
culturalmente. Por outro lado, a umbanda significou esta utopia, uma vez que ela
representou uma tentativa deste grupo de explorar novas possibilidades e novos
desejos humanos, frente à nova realidade que se apresentou, sendo algo pelo qual
valia a pena arriscar-se, no caso, a tentativa de manutenção de aspectos de sua
religiosidade através de processos de ressignificações. De qualquer forma, a
macumba e a umbanda estão interligadas, já que a macumba encontrava-se na
origem da umbanda, além das duas serem originárias da tradição bantú.

5.3.1 – O surgimento da macumba

Para falarmos sobre a macumba trabalharemos, basicamente, com dois


autores: Bastide e Trindade. Apesar das possíveis críticas que tenhamos em relação
303

a estes autores, eles, de certa maneira, fizeram uma tentativa de compreender a


macumba de uma maneira sistemática e, mais do que isso, em si mesma. Outros
autores também trabalham a macumba como Lapassade e Luz51, mas, no caso,
entendem a macumba e a umbanda como aspectos de uma mesma religião,
estando a macumba em oposição à umbanda. Discordamos de Lapassade e Luz,
uma vez que não entendemos a macumba e umbanda em oposição, mas
compreendemos a macumba como um sistema simbólico que deu origem à
umbanda, tal como entendem os primeiros autores acima citados.

Bastide faz uma distinção entre o que ele denomina macumba rural52 e o que
chama de macumba urbana. Interessa-nos a macumba urbana, já que ela é uma
expressão religiosa que se forma nos centros urbanos, como São Paulo, que
iniciaram seu processo de expansão após a Abolição da Escravidão, dando origem,
mais tarde, através dele à umbanda. O surgimento da macumba urbana, para o
autor, está ligado ao processo de industrialização do país, que se operava em um
ritmo cada vez mais rápido. Como já colocado em nota neste capítulo, esta indústria
permaneceu limitada até 1913, mas as guerras obrigaram os brasileiros a criar
indústrias para aquilo que antes era importado, fazendo com que cada vez mais a
mão-de-obra saísse do campo. A industrialização poderia ter oferecido ao indivíduo
de tradição bantú um meio de vida e um canal de ascensão social, mas foram
batidos pela concorrência econômica do branco pobre e do imigrante:

Formaram uma espécie de subproletariado e o desenvolvimento da


urbanização, que destruiu os antigos valores tradicionais sem lhes
proporcionar um novo sistema de valores em substituição, para eles se
traduziu apenas numa intensificação do processo de desagregação social.
Pode-se dizer que a cidade teve dois efeitos sucessivos sobre os negros, à
medida do seu desenvolvimento, que correspondem a um momento de
desintegração, no princípio; depois, de reintegração, quando eles puderam

51
Cf. George LAPASSADE; Marco Aurélio LUZ, O segredo da macumba.
52
Os negros pertencentes à macumba rural normalmente são de classe baixa, uma classe
socialmente desorganizada, porém não se pode dizer que a desorganização social se traduza em
uma desorganização das crenças. São as crenças que constituem o único laço de integração no meio
rural onde eles viviam, que lhes fornecem um status e um papel e que lhes asseguram certa
segurança e certo reconhecimento por parte das pessoas que os rodeiam. A macumba rural é
individualista, constituindo-se em uma série de consultas, não representando um culto organizado,
tornando-se o ponto de partida de grupos de crentes. Essas reuniões tendem a assumir a forma do
que se chama baixo espiritismo, caracterizado pela manipulação da corrente – cabocla, africana e
branca. Cf. Roger BASTIDE, As religiões africanas no Brasil.
304

afinal introduzir-se no sistema de classes, particularmente por intermédio das


empresas de construção e das indústrias mecânicas. 53

Se a estrutura social do Brasil rural se alterou após a supressão da


escravidão, o dualismo colonial continuou a existir. Mudando os proprietários, a
pirâmide de camadas e de estatutos sociais não apresentou grande mudança em
relação ao passado, no conjunto do país. Nas cidades em formação, o isolamento e
a mobilidade dos trabalhadores assalariados dificultavam os indivíduos de tradição
bantú a conservarem suas crenças e seus cultos. A estrutura social continuava a
ação desagregadora do regime escravocrata. Para a pessoa de tradição bantú
sobrava apenas a magia: magia ofensiva contra o branco, magia curativa para os
enfermos. Além dos fatores citados acima, para Bastide, também a mistura de
negros, caboclos e brancos nos mesmos bairros permitiram a manutenção da magia
como arma individual ou como substituto da medicina, mas não permitiram a
organização de cultos africanos institucionalizados. Para o autor, a memória coletiva
não podia funcionar por falta de grupos estruturados. Houve uma desagregação das
crenças e dos ritos:

A macumba é a expressão daquilo em que se tornam as religiões africanas


no período de perda dos valores tradicionais; o espiritismo de Umbanda, ao
contrário, reflete o momento da reorganização em novas bases, de acordo
com os novos sentimentos dos negros proletarizados, daquilo que a
macumba ainda deixou de subsistir da África nativa. 54

O que Bastide deixa claro é que a macumba preservava tradições bantú, mas
não possuía uma eficácia no que se refere à inserção social do grupo de indivíduos
de tradição bantú. A umbanda, por sua vez, é uma reorganização social, uma
religião institucional, que possibilita a inserção social, mantendo algumas tradições
bantú, mesmo que sincretizadas e recriadas. Ressaltamos a questão da inserção
social, pois dentro de uma leitura bantú, a religião encontra-se inserida na vida
cotidiana, não havendo diferenciação entre as esferas pública e privada, religiosa e
social. Como exemplo, temos a seguinte fala:

53
Roger BASTIDE, As religiões africanas no Brasil, p. 406-407.
54
Ibid., p. 407. (O grifo é nosso)
305

Mas, por exemplo, vamos dizer assim, eu quero ficar rica aí eu vou lá no curandeiro.
Se é um bom curandeiro ele vai falar, vai dar uma bronca, vai brigar comigo.
Sim, sim, sim.
Se é um feiticeiro ruim ele vai me ajudar?
Vai te ajudar para aquilo que quer. Agora aquele bom curandeiro ele quando
fala: - Olha que eu estou a trabalhar, mas não sou rico com tanto, ele logo se
for bom curandeiro vai me dizer: cada um tem o seu dom. O senhor, você
nasceu da família Chichi, a sua família foi sempre família pobre, mas
agradece aquilo que tu tens, sim. Agora aquele ali: - Ah, eu quero ficar rico,
eu quero ficar assim, então vai trazer coisas ruins, então pra fazer isto, faça
isto, faça isto e aquilo ali, é por isso que muitos fazem e acabam perdendo
porque até pode ter algum tempo e chegaram algum tempo desaparecer tudo
que você tinha, porque aquilo ali não foi te dado de boa maneira, mas sim foi
roubar a alguém, então eles é que chamamos de feiticeiros mesmo.55

Portanto, para o autor, a macumba é, a principio, a introdução de certos


orixás e de ritos iorubás na cabula56. É uma solidariedade, que não é de classe, mas
da miséria, das dificuldades de adaptação ao mundo novo e do desamparo. Além
deste primeiro sincretismo, juntou-se também o catolicismo popular e, depois, o
kardecismo. A macumba nasceu desta fusão, refletindo o mínimo de unidade cultural
necessária à solidariedade dos homens, em face de um mundo que não lhes trouxe
nada além de insegurança, de desordem e de mobilidade. Ela é o reflexo da cidade
em transição, no qual os antigos valores desapareceram com dificuldade para se
construírem valores substitutos, por isso a macumba acabou perdendo todo caráter
religioso para terminar em espetáculos ou se prolongar em pura magia57. Para
Bastide, em São Paulo, apesar de desagregada, a macumba pode ter existido como
um culto organizado, lembrando, em certos detalhes, a cabula dos bantú. A
macumba não desapareceu completamente, passou da forma coletiva para a forma
55
S.C., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
56
Uma interessante descrição a respeito da cabula é feita por DR. NERY. O surgimento da macumba
e da umbanda como surgidas da cabula é defendida não só por BASTIDE, mas também por outros
autores, como TRINDADE, por exemplo. Segundo Nei LOPES, Novo dicionário banto do Brasil, p. 50,
verbete cabula [1]; “CABULA [1], s.f. (1) Antiga seita religiosa afro-brasileira (OC). (2) Ritmo tocado
em candomblés de origem banta (YC) – De origem banta, talvez do quicongo kabula, animar,
encorajar. Ou do suaíle kabula, distribuir, partilhar”. O que sabemos é que a cabula existiu no Espírito
Santo, o que nos inclina a pensar que ela chegou ao Rio de Janeiro através de um processo de
migração interna. O ponto que gostaríamos de questionar é: será a cabula a única expressão
religiosa que dá origem à macumba e a umbanda como alguns autores querem fazer parecer?
57
Para LEVI-STRAUSS, o sistema de magia se baseia na crença de que o homem pode intervir no
determinismo natural, completando-o ou modificando o seu curso. Para Claude LEVI-STRAUSS, O
pensamento selvagem, p. 254-255, a relação entre religião e magia se esclarece: “Porque, se, num
sentido, pode dizer-se que a religião consiste em uma humanização das leis naturais e a magia, em
uma naturalização das ações humanas – tratamento de algumas ações humanas como se elas
fossem um parte integrante do determinismo físico de uma evolução. (...) Não há mais religião sem
magia, do que magia que não contenha, ao menos, um grão de religião”.
306

individual, ao mesmo tempo se degradando de religião em magia, quando havia o


transe de um único indivíduo, numa cerimônia privada, de consulta. Dispersou-se
por toda a cidade. A macumba paulista foi a grande fornecedora de esperança para
as pessoas sem trabalho, sem amores, sem dinheiro – magia popular.

Para Bastide, a macumba chegou a ser um culto organizado, mas que passou
de algo coletivo para individual, neste caso, de religião à magia pelos seguintes
fatores: introdução de novas crenças mágico-religiosas trazidas pelo branco;
repressão física e moral da polícia; fluidez e pobreza dos sistemas míticos bantú58; e
condições sociais e culturais anômicas das sociedades industriais na primeira
década do século XX. Foi uma ressignificação da cabula, de caráter sincrético,
fusionando tradições iorubás, católicas e kardecistas em uma tradição bantú. Sua
diferença da umbanda se deu pelo seu caráter mágico e individual, enquanto que a
umbanda foi vista como uma religião que possuía um caráter coletivo. Além disso, a
macumba não respondeu às necessidades dos indivíduos de tradição bantú, sendo
necessária a formação de uma nova religião, no caso, a umbanda, que nasceu no
bojo de uma série de acontecimentos, uma vez que:

... esse marginalismo social não pode ser senão um momento de transição,
devido à exagerada rapidez das transformações do país. Com a
proletarização do negro, a assimilação do imigrante, o geral reerguimento do
nível de vida das massas, outros fenômenos vão aparecer, de reintegração
cultural e social; e nessa reestruturação, o que restou das religiões africanas
será por sua vez retomado e reestruturado para dar nascimento ao
espiritismo de Umbanda. 59

Antes de falarmos sobre a umbanda, vejamos o que Trindade60 entende como


macumba. Para ela, os indivíduos de tradição bantú, principalmente após a abolição
da escravidão, viviam em condições de marginalidade social, procurando recursos
de adaptação de sua tradição na sociedade urbana. Houve uma tentativa de dar
significado a um universo social sem significado, interpretando-se e se construindo

58
É importante notar que BASTIDE, como qualquer autor, é devedor do seu tempo. A afirmação de
que o sistema mítico bantú é fluído e pobre está baseada em uma idéia de pureza cultural, almejada
pelo autor, e também pelo fato dele tomar o candomblé como um modelo, a partir do qual as religiões
afro-brasileiras devem ser consideradas. Tudo isso para dizermos que discordamos da afirmação,
mas que, ao mesmo tempo, entendemos o contexto no qual ela foi proferida.
59
Roger BASTIDE, As religiões africanas no Brasil, p. 417. (O grifo é nosso)
60
Cf. Liana TRINDADE, Construções místicas e história; IDEM, Conflito social e magia.
307

um referencial mítico que apontasse para a resolução dos dramas sociais e


humanos vividos pelos afro-descendentes. Alguns fenômenos sociais no período da
pós-abolição, tais como já observamos, determinaram a desarticulação dos sistemas
de crenças tradicionais: proletarização das camadas africanas e afro-descendentes;
introdução de imigrantes, principalmente de italianos em São Paulo, que portavam
crenças trazidas de suas regiões; concorrência com esses imigrantes no mercado
de trabalho; precariedade da ocupação profissional ameaçada pelas crises
econômicas e pela ideologia do branqueamento.

Dentro deste contexto, a macumba foi vista como uma resposta a esta
situação. Para ela, a macumba foi composta por crenças e por ritos que se
relacionavam por meio de um processo sincrético, significando a predominância de
interpretação de uma forma de conhecimento em relação a outras formas. Existem
elementos bantú, tais como: a incorporação dos antigos calundus, o fechamento do
corpo, a cerimônia de evocação dos espíritos, o culto dos exus, a magia dos nós, o
jogo adivinhatório de búzios, o uso de ervas, o sacrifício de animais e as cerimônias
sob as árvores. Estes elementos somaram-se ao kardecismo que forneceu o ninho
cultural que possibilitou a introdução das entidades bantú através da incorporação61.
Para ela, os cultos de tradição bantú existiram desde o início do século XX, como
forma de reconstrução de heranças africanas no universo social urbano, muitas
vezes, operando fora da hegemonia branca:

Como culto organizado, a macumba significou a reconstrução das


concepções do mundo banto em uma situação urbana, onde tanto os
elementos míticos sudaneses, como os componentes da magia européia irão
ser reinterpretados consoante as estruturas de significados do pensamento
banto.62

61
Há algumas divergências a respeito da incorporação ou da possessão na tradição bantú, pois
alguns autores trabalham com a idéia de que ela não existia em África e passou a ocorrer apenas no
Brasil. Trabalharemos com mais cuidado este fato ainda neste capítulo, pois segundo relato de
nossos entrevistados em Maputo, a possessão individual já existia e ainda existe na África. Segundo
C., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09: “Curandeiro é medico
tradicional. Mas, por exemplo, me falaram que existe um tipo de curandeiro que só trabalha com ervas. É eu
estava a dizer que há aqueles curandeiros que não têm espírito que saem. Nós, na nossa língua
nativa, chamamos nhandarumi essas pessoas que não têm espírito que só trabalham na base de
erva, são nhandarumi, só conhecem assim como essa senhora que acaba de sair, aquela que eram
duas, a outra trabalha também, só que trabalha na base de ervas e não de incorporação de espírito,
mas ambos são curandeiros porque afinal de contas estão na mesma luta de curar pessoas doentes
ou que tenham problemas”.
62
Liana TRINDADE, Conflito social e magia, p. 177.
308

A autora nos aponta que tanto elementos iorubás quanto europeus foram
reinterpretados dentro da macumba, mediante uma leitura de mundo bantú. Em
função disso, a incorporação de exus na macumba se deu pela concepção bantú de
espíritos familiares ou associados à natureza e pela influência do kardecismo. Há
uma diversidade de espíritos de origens diferenciadas: espíritos de negros (pretos-
velhos) e espíritos de caboclos, caracterizando tipos sociais definidos. As entidades
foram interpretadas segundo o núcleo de significações da filosofia ou da
religiosidade bantú, organizadas em falanges, que compuseram as várias linhas,
que hoje se encontram presentes na umbanda. Destacaram-se na formação da
macumba três grandes linhas, como a autora relata: exus e pombas-gira, caboclos e
pretos-velhos. Para a autora:

A macumba é, portanto, uma religião sincrética, onde a estrutura de seus


significados é construída pelos agentes sociais em uma situação urbana,
preservando os símbolos dominantes da tradição africana (o culto aos
ancestrais e a noção de força vital) na interpretação das outras formas de
religiosidade popular que foram incorporadas em seu sistema de crenças e
ritos. Nessa perspectiva, o seu sincretismo adquire o sentido intencional de
acumulação e conciliação de forças vitais. 63

É possível afirmar ainda que, para Trindade:

... os significados da umbanda como religião que se constrói, apropriando-se


do panteão e ritos da macumba, fornecendo-lhes novos significados extraídos
das tradições européias do espiritismo científico e esoterismo, que eram
adequadas aos interesses, valores e aspirações da classe média urbana.
Entretanto, a umbanda não se caracteriza ou se esgota apenas como uma
religião identificada aos valores socialmente legitimados pela modernidade,
pois, ao se constituir no interior da macumba como antítese à africanidade
desta religião, se preservam os significados negados no interior do cotidiano
de seus ‘terreiros’, que proliferam nos centros urbanos.64

Os afro-brasileiros de tradição bantú sabendo de tal necessidade de


preservação de alguns elementos da sua religiosidade começaram a transformar a
macumba, tornando-a umbanda. Podemos observar dois movimentos: um de
ressignificação, que permitiria a legitimação das suas práticas religiosas, e outro de

63
Liana TRINDADE, Conflito social e magia, p. 192.
64
IDEM, Construções míticas e história, p. 192-193.
309

resistência, no sentido de que há uma manutenção de diversos elementos da antiga


macumba, mas que aparentemente são explicitados e concebidos de outra maneira,
a partir da lógica vigente: “... os terreiros foram pouco a pouco assumindo estatuto
de religiões, mas para tanto se abrigaram sob a rubrica do espiritismo, cujas práticas
eram mais facilmente aceitas como religiosas do que aquelas de origem africana,
marcadas pela idéia de magia”65.

A religiosidade popular, como expressão significativa, recria os elementos


adotados de outros modelos, inserindo-os no seu esquema cultural com outro
significado ou sentido. Há uma estrutura de empréstimo e de acolhimento. O
modelo popular alternativo escapa ao controle do modelo dominante pela
manifestação de elementos insurgentes, que propõe novos sistemas de significação,
mostrando que a recriação se inscreve como transformação dos elementos
impostos. A religiosidade popular é uma manifestação diferenciada que se realiza no
interior de uma sociedade, dotada de sentidos e finalidades diferentes para cada
uma das classes sociais. A relação entre religiosidade popular e religiosidade erudita
é de conformismo / resistência, não havendo uma aceitação total do modelo
imposto, o que gera o surgimento de um novo elemento; é um dado alternativo que
se contrapõe ao modelo dominante, algo como uma insurgência. O surgimento do
novo (insurgência) cria para a cultura popular o espaço próprio da re-interpretação:

Quando falamos em insurgência, estamos considerando o modelo popular


recriando formas a partir do paradigma dominante.
A significação, pois, da cultura popular pressupõe a heterogeneidade e a
recriação. A cultura popular é significativa, isto é, seus elementos constituem
uma rede de identidades e oposições que tem sentido para o grupo social
que, vivendo essa realidade, construiu seu sistema de comunicação
simbólica. A vida social gerou símbolos que funcionam em situações
contextuais e que fazem parte do saber compartilhado do grupo. Esse saber
compartilhado assenta-se sobre uma sistematicidade que lhe confere sentido
e lhe garante relativa estabilidade. O modelo cultural é construído em
situação de vivência e não há significado isolado de um elemento: o sentido
será gerado pelo contexto da ocorrência. Os símbolos culturais são produtos
de homens reais, vivendo em sociedade: o sentido só se define em função da
totalidade. Essa totalidade significativa do universo simbólico da cultura está
presente, pois, na cultura popular.66

65
Paula MONTERO, Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil, Novos Estudos, p. 50.
66
Núbia Pereira de Magalhães GOMES; Edimilson de Almeida PEREIRA, Mundo encaixado, p. 191.
310

Antes de entrarmos na umbanda propriamente dita, gostaríamos de fazer um


questionamento a respeito da macumba e da presença do kardecismo dentro dessa
expressão religiosa. Se, como colocado por Trindade e Bastide, o kardecismo já
estava presente na macumba, enquanto prática ritual, como entender que a
diferenciação entre macumba e umbanda se dê apenas pela adoção de valores do
kardecismo? É importante relembrar que os indivíduos de tradição bantú foram os
primeiros a serem trazidos para o Brasil67 e precocemente entraram em contato com
grupos indígenas aqui presentes, que já possuíam como prática ritual a incorporação
ou o transe de possessão68. Podemos trabalhar com a idéia de que na macumba a
assimilação do ritual de incorporação se deu muito mais pela assimilação de práticas
indígenas do que propriamente pelo kardecismo, mas isto é apenas uma hipótese
que não cabe ser abordada no presente trabalho. Vejamos, agora, o que ocorreu na
formação da umbanda.

5.3.2 – A constituição da umbanda

No caso da umbanda, falaremos da sua constituição de uma maneira mais


genérica neste item, uma vez que trabalharemos a umbanda não só neste capítulo,
como também no próximo. Porém, podemos dizer que desde os primeiros momentos
da Proclamação da República, o combate à feitiçaria e ao curandeirismo fez parte do
processo de estabelecimento de uma ordem pública moderna. Era necessário
demonstrar ao Estado, por parte daqueles que eram adeptos destas práticas, que
elas não representavam uma ameaça à saúde e à ordem pública, ainda que se
executassem danças, curas e batuques, argumentando que eram práticas religiosas.
As associações que se registravam em cartórios eram consideradas religiosas e
ficavam protegidas da repressão, já as práticas de macumba só podiam ser
registradas nas delegacias de polícia:

... o modo como hoje se apresentam as “alternativas” religiosas resulta em


grande parte de um processo de codificação de práticas no qual médiuns e
pais e mães-de-santo levaram em conta os constrangimentos de um quadro
jurídico-legal em transformação, os consensos historicamente construídos
67
Cf. Marina de Melo e SOUZA, África e Brasil africano; Roger BASTIDE, As religiões africanas no
Brasil; Robert SLENES, Na senzala, uma flor.
68
A respeito do transe de possessão e o uso ritual das plantas de poder ver: Beatriz Caiuby LABATE,
Sandra Lúcia GOULART, Henrique CARNEIRO (org.), O uso ritual das plantas de poder.
311

sobre o que oferece perigo e o que pode ser aceito como prática religiosa, os
repertórios de práticas pessoais construídos ao longo de suas trajetórias de
vida e as expectativas do público e dos concorrentes. Configuraram-se assim
“estilos” de culto derivados de determinadas combinações dos códigos
culturais disponíveis.69

Como no espiritismo não havia a intenção de dolo e as práticas de tradição


bantú não eram percebidas como religião, mas, sim, como magia, que estavam
voltadas para o mal e eram francamente ameaçadoras, essas práticas foram
duramente combatidas. Os afro-descendentes de tradição bantú observando essa
situação começaram a transformar a macumba, tornando-a umbanda. Podemos
observar dois movimentos: um de ressignificação, que permitiria a legitimação das
suas práticas religiosas, e outro de resistência, no sentido de que havia uma
manutenção de diversos elementos da antiga macumba, mas que aparentemente
são explicitados e concebidos de outra maneira, a partir da lógica vigente:

... os terreiros foram pouco a pouco assumindo estatuto de religiões, mas


para tanto se abrigaram sob a rubrica do espiritismo, cujas práticas eram mais
facilmente aceitas como religiosas do que aquelas de origem africana,
marcadas pela idéia de magia.70

O nascimento da umbanda possui, assim, uma afinidade eletiva com a


consolidação da sociedade urbano-industrial, com o fim da escravidão e com a
separação do Estado da Igreja, que teve como uma de suas conseqüências a ida
dos africanos e dos afro-descendentes para as cidades em formação. Grande parte
destas pessoas pertencia aos grupos bantú, que chegaram ao Brasil e foram
trazidos principalmente para o Sudeste. A umbanda, apesar de sua formação
sincrética, sofreu grande influência bantú, o que pode ser percebido pela sua
tendência à flexibilização e ampliação; pelo culto aos antepassados, mesmo que na
forma de estereótipos; pela continuidade existente entre vivos e mortos; pelo culto
baseado em estruturas familiares, na forma de linhagens; pelo fato do culto ser
predominantemente doméstico; e pela união vital existente entre aqueles que
pertencem a um determinado grupo, que se expressa através de uma corrente ou de
uma família-de-santo.
69
Paula MONTERO, Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil, Novos Estudos, p. 56.
70
Ibid., p. 50.
312

Outra característica bantú dentro da umbanda é a sua mutabilidade tanto


simbólica quanto ritual, uma vez que tal como a tradição bantú, o culto religioso diz
respeito a um grupo de pessoas que pertence a determinada localidade, o que faz
com que ele tenha as suas especificidades. Essa mutabilidade pode ser descrita
tanto no que diz respeito às diferenças encontradas em terreiros de umbanda, como
também nas mudanças que se processam ao longo do tempo dentro de um
determinado terreiro71, estando, esses, em constante transformação. A umbanda
surgiu e se desenvolveu em centros urbanos e industrializados, onde cada terreiro
dispôs e combinou elementos de uma rica e variada tradição religiosa em torno de
alguns eixos que não variavam. A versatilidade ímpar encontrada na umbanda é
fruto da mescla de tradições que ocorreram na sua formação72. Dentre estas
tradições, podemos citar as tradições africanas, o catolicismo popular, o kardecismo,
as tradições indígenas e as linhas orientais, que contribuíram para uma de suas
características mais marcantes, o sincretismo religioso.

A umbanda também foi influenciada em sua formação por uma sociedade


global que apareceu como modelo de valores e da própria estrutura religiosa
umbandista. As transformações do mundo simbólico afro-brasileiro se realizavam em
conformidade com os valores legítimos daquela sociedade. A religião umbandista se
legitimou na medida em que ela integrou os valores propostos pela sociedade
global, uma vez que houve uma relação, quase visceral, entre as representações
religiosas e as classes sociais. “A umbanda pode ser compreendida como uma
configuração resultante deste processo, mas o seu reconhecimento como religião
independente teve de esperar até os anos 1950-60”73. A partir da macumba,
assistiu-se à emergência e ao reconhecimento social de uma nova religião que se
desenvolveu em toda a nação brasileira. Conforme afirma Concone74, a umbanda
apareceu como uma religião nacional que se opôs às religiões de importação,

71
Cf. Brígida Carla MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanências.
72
Do ponto de vista sociolingüístico, o Brasil colonial apresentava uma situação lingüística de
multilinguismo, segundo CUNHA-HENCKEL, em Tráfego de Palavras, p. 49: “... coexistiam três tipos
de línguas, oriundos de grupos bem diversos: as línguas autóctones dos índios que já habitavam o
Brasil à época da chegada dos portugueses; o português europeu, transplantado para o território
brasileiro pelos colonizadores; e as línguas africanas faladas pelos negros que começaram a ser
transportados como escravos já no século XVI, nos primórdios da colonização”. Vemos, aqui,
novamente, que mais uma vez no contexto lingüístico, podemos estabelecer uma analogia com a
formação da umbanda, que também trouxe em sua gênese estas três influências.
73
Paula MONTERO, Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil, Novos Estudos, p. 55.
74
Cf. Maria Helena Villas Boas CONCONE, Umbanda: uma religião brasileira.
313

podendo-se, até, afirmar que ela representou mais do que um sincretismo afro-
brasileiro, mas uma síntese brasileira, uma religião endógena.

A umbanda constitui-se, portanto, como uma resposta simbólica das


populações afro-brasileiras de tradição bantú, que migraram para os centros
urbanos no início do século XX, como forma de lidarem com a nova realidade que se
apresentava. Constituiu-se em um instrumento religioso e simbólico de leitura de
mundo, que manteve as tradições bantú (mesmo que transformadas), ao mesmo
tempo em que permitiu, através da absorção de outras religiões, a sua legitimação e
a sua aceitação social. Portanto, a umbanda:

... não se trata de degradação mágica mas de construção mítica (Pretos


Velhos, Caboclos, Exus nela foram elaborados), nem da atuação de feiticeiros
individuais sobre uma clientela fragmentada, mas grupos religiosos
constituídos como reação ao contexto social anômico, possivelmente
ancorados em princípios e concepções de origem banto. 75

A umbanda constitui, portanto, uma espécie de bricolagem, na qual cada


parte integrante, ainda que reinterpretada de acordo com uma nova construção,
conservou algo das estruturas de sua origem que possuiam uma matriz bantú.
Sendo assim, o conjunto sofreu a influência maior de determinado pedaço, segundo
o lugar e a importância que ocupava na nova estrutura. É possível perceber no ritual
e no ambiente umbandista a presença de elementos diversos de várias religiões.
Segundo Magnani76, ela não se configura como uma degeneração dos cultos
africanos ou do kardecismo, mas é o produto histórico de uma reelaboração de ritos,
mitos e símbolos, que dentro de uma nova estrutura são ressignificados:

Portanto, ao falarmos de umbanda, não estamos falando de uma somatória


de aspectos de várias religiões, sem que haja uma lógica e uma ligação entre
eles. A umbanda surgiu para responder às necessidades de um grupo de
indivíduos que chegaram as metrópoles em formação. Além disso, podemos
pensar que dentro desta nova estrutura religiosa foram criados símbolos e
rituais, provenientes do inconsciente, que buscaram responder às
necessidades psíquicas daqueles indivíduos. Portanto, símbolos e rituais de
outras tradições acabam por serem ressignificados.77

75
Lísias Nogueira NEGRÃO, Entre a cruz e a encruzilhada, p. 37.
76
Cf. José Guilherme Castor MAGNANI, Umbanda.
77
Brígida Carla MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanência, p. 96.
314

A heterogeneidade presente na umbanda desde os seus primórdios não é


abolida com o passar do tempo, pois, segundo Cavalcanti78, a umbanda não é uma
religião em busca de forma, mas uma religião que tem uma forma particular, que
conta, como uma de suas características marcantes, a diversidade e a fluidez, que
são compatíveis com um sistema simbólico e ritual estruturado. Portanto, a umbanda
deve ser entendida como uma síntese, isto é, a superação das contradições
advindas de várias tradições religiosas, através de um processo contínuo, que se faz
de maneira lenta e gradual. Essa síntese religiosa, feita pela umbanda, traz em si:
práticas religiosas dos bantú, introduzidos no Brasil como escravos, combinadas
com práticas religiosas de outros grupos africanos, em especial os iorubas; práticas
religiosas do católico, em especial o popular, introduzidas pelos portugueses;
práticas de espiritismo kardecista trazidas por imigrantes europeus; práticas
religiosas indígenas fornecidas pelos índios, nativos do país; e ainda, influências
orientais, tais como budismo, hinduísmo e xintoísmo. Por isso, a umbanda pode
carregar as divergências regionais e culturais que existem na sociedade brasileira e
também em uma sociedade de classes, sendo considerada por alguns autores uma
religião tipicamente brasileira.79

Quando se fala em umbanda, é importante destacar que ela reivindica para si


o título de religião brasileira, de religião endógena, uma vez que congrega as várias
tradições culturais constituintes da formação do povo brasileiro e que com o tempo
vai incorporando, no seu repertório ritual e dogmático, as novas tradições que
chegam ao Brasil. Porém, ser considerada brasileira não exclui o fato de possuir
uma matriz bantú que tem características peculiares. Cabe perguntar: em que
medida a umbanda pode ser considerada como tendo uma matriz de tradição bantú?

5.3.3 – Estudos a respeito da relação entre umbanda e tradição bantú

Como forma de respondermos a questão colocada acima, apresentaremos, a


seguir, algumas obras que falam a respeito da umbanda, buscando mostrar a
relação com a tradição bantú. É de fundamental importância a tese de livre-docência
de Liana Trindade, Construções míticas e história, sendo que parte do trabalho foi
transformada em livro, com o nome Conflito social e magia. O texto tem como

78
Cf. Viveiros de Castro CAVALCANTI, Origens, para que as quero?, Religião e Sociedade.
79
Cf. Maria Helena Vilas Boas CONCONE, Umbanda: uma religião brasileira.
315

objetivo examinar as construções míticas e interpretativas da vida social paulista,


que revelam as diversidades sociais e culturais existentes no contexto de relações
raciais e de classe, por meio do processo de transformações históricas e sociais,
uma vez que, para a autora, os africanos e os afro-descendentes desde o período
colonial, “... embora sejam parte integrante dos sistemas sociais, constantemente
organizam-se como núcleos de resistência cultural, constituindo unidades próprias e
peculiares de conhecimento, como sociedades dentro da sociedade”80.

A autora sustenta a idéia de que os rituais existentes na formação da


umbanda – incorporação de exus, de caboclos e de pretos-velhos – são formas de
interpretação da realidade, mediante um núcleo de significações da religiosidade
bantú. A autora divide a reinterpretação bantú em macumba e em umbanda,
entendendo a macumba como a preservação do sentido de leitura bantú de mundo,
enquanto que a umbanda encerra a tensão entre a tradição bantú e a ética e a
dogmatização branca. Ao fazer tais colocações fica-se com a impressão de que a
autora não explica o processo de ressignificações pelo qual passa a tradição bantú.
A passagem da macumba para a umbanda também parece ser explicada de uma
maneira superficial, sobretudo a questão das incorporações, ao entender os exus
como uma forma de recuperação da força vital na macumba e dos espíritos de
mortos na umbanda. Mas, como pode ser, se o exu, na umbanda, diferentemente do
candomblé, é um tipo de guia? E, sendo guia, qual espírito de morto ele sinaliza?
Somado a isso, esta passagem é explicada fortemente pelo papel das federações,
que, conforme se sabe, têm pouca atuação na grande maioria dos terreiros de
umbanda, não tendo todo poder de penetração que lhes é conferido pela autora.

Além disso, a autora aborda apenas o aspecto de reprodução da cultura e


ideologia dominante, mesmo afirmando, diversas vezes, que os terreiros tiveram
uma atitude de contestação e também uma atitude conciliatória. Apesar de apontar à
dialética, a autora fixa-se apenas em um dos lados. Por outro lado, ainda trabalha
com a idéia do candomblé enquanto um sistema organizador, ao mesmo tempo em
que entende a umbanda como perda, na memória coletiva, da lembrança das casas
de culto. De qualquer forma, é salutar o trabalho da autora, uma vez que é uma das
poucas pesquisadoras que sistematiza a influência bantú na umbanda.

80
Liana TRINDADE, Conflito social e magia, p. 14.
316

Salvo Liana Trindade, o que observamos é que grande parte dos autores que
trabalha com a umbanda aborda, mesmo que de maneira sucinta, a influência
africana, principalmente quando se leva em conta o surgimento da umbanda logo
após a abolição da escravidão. Normalmente, esta influência é divida em dois
grupos africanos: bantú e iorubá, (representado pelo candomblé81). Nosso trabalho
se foca na influência bantú, sendo possível observar duas posições, de certa
maneira, antagônicas, quando se fala da origem da umbanda. Uma delas entende
que a umbanda nasceu de influências africanas, em especial a bantú82, como
colocado acima, tópico este que discorreremos a seguir.

Luz e Lapassade, em O segredo da macumba83, trabalham com a idéia de


que a quimbanda exprime o desejo de libertação e o sonho de uma República
Negra. Já a umbanda, para eles, conta a história da repressão deste desejo e a
submissão ao aparato colonial. A macumba está dividida em quimbanda como
libertação, e umbanda como repressão. No que se refere às influências africanas,
entendem candomblé e macumba com cultos diferentes, mas não desiguais:

A macumba do Rio é de origem bantu. O culto encontra assim suas


inspirações originais no Sul do Equador. Em Angola, não se celebram os
orixás que são “deuses da natureza”, celebram-se os antepassados, os
ancestrais mortos. No Brasil os ancestrais são os pretos velhos, os caboclos,
os orixás (santos católicos brancos) e os exus e pomba-giras (os negros
revoltados). 84

81
Segundo Reginaldo PRANDI, Segredos guardados, p. 20-21: “O candomblé é o nome dado à
religião dos orixás formada na Bahia, no século XIX, a partir de tradições de povos iorubás, ou nagôs,
com influências dos costumes trazidos por grupos fons, aqui denominados jejes, e residualmente por
grupos africanos minoritários”.
82
Salvo este momento da origem, a influência africana, em especial a bantú, praticamente não é
abordada pelos autores, que trabalham a umbanda, e, se é feita, é feita de maneira superficial,
inconstante, espalhada por todo o texto, mas não sistematizada, como no livro Malugno de Bentto de
LIMA. No texto de LIMA, podemos observar que o autor faz afirmações como: os bantú trouxeram
para a umbanda a pemba, a arte mágica do Ku-funda, que significa riscar traços com argila branca,
vermelha ou carvão vegetal. “A pemba representa laços amistosos entre os vivos e os defuntos,
razão pela qual ela é usada na demarcação do centro sagrado, o ponto; para confirmar um
intercâmbio amigo” (Bentto de LIMA, Malungo, p. 82). Ou ainda: “A cultura banto, embora tenha feito
enormes concessões à nagô, forneceu, contudo, repito, o nome de ‘mb’nda’ – cujo significado
provável é, efetivamente, arte de curar e liderança, chefia – para designar o conjunto organizado de
crenças pan-africanos no Brasil” (Ibid., p. 226). O que vemos são intuições, que acabam não sendo
desenvolvidas. Cabe perguntarmos: a falta de aprofundamento da influência bantú na umbanda
ocorre por falta de conhecimento da história da africana e deste grupo em especial?
83
Cf. Marco Aurélio LUZ; George LAPASSADE, O segredo da macumba.
84
Ibid., p. xiii.
317

A quimbanda, para os autores, é o aspecto mais importante da macumba. O


sentido da quimbanda está escondido, é um segredo. A linguagem da macumba é
uma linguagem indireta. Estão presentes no seu interior todas as aspirações
libertárias de uma determinada formação social, por isso ela enfrenta a umbanda.
Os autores possuem uma visão maniqueísta, perdendo a possibilidade da leitura da
mutabilidade da própria religião. Por que não se falar de tendências ou de linhas
conflituosas dentro de uma mesma religião? Para eles, há uma destruição cultural
da quimbanda em nome da umbanda, já que a umbanda procura reproduzir as
relações sociais de uma formação social autoritária. A umbanda, como religião, é um
retrato da formação social brasileira num plano imaginário, com suas leis próprias de
ocultação e de inversão das classes sociais, que se estabeleceram no Brasil numa
formação conflituosa.

No que se refere à tradição bantú, os autores afirmam que a origem da


umbanda / macumba está no culto aos antepassados e aos deuses lares praticado
pelos grupos bantú. A característica da macumba é a comunidade, a família negra e
mestiça. “São os espíritos dos africanos, dos antigos escravos, dos índios e dos
escravos revoltados, Exus. Eles devem, ser agradados e respeitados, sob pena de
“derrubarem” o terreiro”85. Há uma idéia de que pela doutrinação, as entidades se
elevam da terra para faixas mais elevadas do espaço. Diferentemente de Trindade,
ainda que de maneira sucinta, os autores trabalham com a idéia de exu como
antepassado – negro revoltado ou não submisso ao sistema -, nos dando pistas dos
motivos pelos quais as entidades - exu e pomba-gira - tornaram-se uma linha de
guias na umbanda.

A idéia de uma influência bantú na umbanda também é defendida, por


exemplo, por Conconne86, em seu livro Umbanda – uma religião brasileira, que
aborda de maneira precisa a filosofia bantú e o papel da religião dentro desta leitura
de mundo, baseada no trabalho de Tempels87. Trabalha a formação da macumba e
da umbanda, apontando não apenas os aspectos históricos desta origem, mas
também as influências culturais que estiveram presentes, destacando o caráter

85
Marco Aurélio LUZ; George LAPASSADE, O segredo da macumba, p. 88.
86
Cf. Maria Helena Villas Boas CONCONE, Umbanda: uma religião brasileira.
87
Cf. Placide TEMPELS, La philosophie bantoué.
318

híbrido e a porosidade da religião africana88. Porém, se a umbanda nasceu como


possibilidade de ascensão social de certos grupos culturais que, para isso,
depuraram a macumba, buscando rejeitar quaisquer aspectos de culturas
estigmatizadas, por que não se separar e criar um novo culto? O que se deixa
entender é que o kardecismo aparece como uma proposta explicativa conveniente,
que encobriria os elementos africanos. Quando a autora volta-se para a umbanda na
atualidade, mais precisamente quando busca entender o transe de possessão
atravessado pela ideologia, ela retoma a influência africana, mas de maneira
superficial, quando afirma que o umbandista entende o mundo constituído de um
conjunto de espíritos, que estão em contínua interação e possuem uma dinâmica
particular. Tal abordagem do aspecto africano, na questão ideológica, deixa a
desejar, pois não relaciona esta questão com aquilo que é trabalhado de maneira
pormenorizada no início do texto, isto é, o entendimento da filosofia bantú.

Diferentemente dos autores citados, há outro grupo de autores, que defende


outra idéia, como Brumana e Martinez89, em Marginália Sagrada. Eles afirmam que
há poucas informações a respeito do início da umbanda. Segundo eles, a umbanda
é derivada, em boa medida, do candomblé, com influência do espiritismo e do
catolicismo popular. Ela se organiza a partir dos anos vinte do século XX, por obra
de um grupo de médiuns dissidentes do kardecismo, que começaram a trabalhar
com espíritos chamados de inferiores, mais eficazes para resolver as aflições
humanas. Tal afirmação vai ao encontro da tese defendida pelos autores no sentido
de enquadrar a umbanda como uma religião subalterna.

A umbanda, para eles, convergiu e deu expressão a uma série de práticas


místicas populares estigmatizadas: macumba carioca e paulista e candomblé de
caboclo90. É um culto de possessão, tendo no seu panteão entidades do candomblé
– orixás, com novos estereótipos, os caboclos, os índios, os preto-velhos, os
baianos e os boiadeiros. As entidades espirituais operantes na umbanda são

88
É importante ressaltar que durante o trabalho, quando falamos de cultura bantú, não estamos
falando de uma cultura pura. Entendemos que durante todo o processo de encontro com outras
culturas, este grupo fez negociações, que suscitaram em ressignificações culturais. Portanto, quando
falamos de grupos bantú, estamos falando de uma cultura que, desde o navio negreiro, passou por
transformações culturais. Uma discussão bastante interessante a respeito de pureza e de legitimação
pode ser vista em Maria Helena Villas Boas CONCONE, De símbolos e sua eficácia, de pureza,
identidade e legitimação, In: QUEIROZ, José J., A religiosidade do povo, p. 55-72.
89
Cf. Fernando BRUMANA; Elda MARTINÉZ, Marginália Sagrada.
90
A respeito do candomblé de caboclo, ver o texto de Jocélio Teles dos SANTOS, O dono da terra.
319

espíritos de mortos, que algum dia viveram como pessoas; ao mesmo tempo em que
a natureza deles é completamente diferente das pessoas comuns: são mortos que,
quando vivos, não foram de nosso mundo. Cabem as seguintes perguntas, a partir
da colocação dos autores: por que os dissidentes formariam um culto que
empregassem práticas estigmatizadas? A macumba e o candomblé de caboclo
vêem de onde? Para eles, ainda, como forma de lidar com o estigma, as raízes
negras foram dissimuladas, tornando a umbanda herdeira de tradições hindus (uma
tentativa de se desvincular das raízes africanas). Como se nota, tais autores não
fazem uma citação a respeito da influência bantú, entendendo que toda influência
africana na umbanda deve-se ao candomblé e é, conseqüentemente, resultado de
uma influência iorubá.

Ortiz91, no seu livro A morte branca do feiticeiro negro, parece conseguir


responder a essa dicotomia existente na origem da umbanda, afirmando que o seu
surgimento congregou um movimento dialético e, porque não dizer, ambíguo,
conseguindo juntar as posições divergentes dos autores citados. A umbanda é
entendida como fruto das mudanças sociais que se efetuaram na direção da
consolidação de uma sociedade urbano-industrial, mostrada através do seu universo
religioso. A síntese umbandista conserva as tradições afro-brasileiras, mas as
reinterpreta, normatiza e codifica. Há uma reconstrução das antigas tradições com
os instrumentos e os valores fornecidos pela sociedade. Para ele, o nascimento da
religião umbandista carregou em si um duplo movimento dinâmico: o
embranquecimento (para subir individualmente na estrutura social, os africanos e os
afro-descendentes precisavam aceitar os valores impostos pelo mundo branco,
correspondendo a um complexo de inferioridade diante do branco) das tradições
afro-brasileiras e o empretecimento (movimento da camada social branca em
direção às crenças tradicionais afro-brasileiras, uma aceitação do fato social negro e
não uma valorização das tradições africanas e afro-descendentes) de certas práticas
espíritas e kardecistas.

Os valores genuinamente africanos ou afro-brasileiros foram rejeitados por


uma camada de intelectuais que criaram a religião umbandista. Tais valores foram
reinterpretados de acordo com as estruturas de uma sociedade onde a ideologia
dominante é branca. O que podemos observar em Ortiz é uma dificuldade em ser

91
Cf. Renato ORTIZ, A morte branca do feiticeiro negro.
320

dialético, apesar de ter esta leitura da umbanda. No nosso entender, o autor explica
a umbanda “de fora” e não a partir dela mesma. Assim, ele não observa o
movimento interno da própria religião, necessitando abrir um instrumento de escuta,
que levasse em conta não apenas a mudança social, mas também a experiência dos
sujeitos religiosos, do adepto que se diz umbandista.

Mas ao resolver este problema o autor nos coloca outro, que diz respeito à
memória coletiva negra. Para ele, na passagem para o capitalismo, o africano e o
afro-descendente se viu subitamente como cidadão, não estando preparado para
assumir as novas tarefas propostas pela sociedade. O que se nota é que tal
afirmação não se sustenta mais, pois o que percebemos é que não foram dadas,
aos africanos e aos afro-descendentes, condições deles se fazerem cidadãos92,
como já vimos neste capítulo. Ainda para o autor, a abolição representou um
momento de desagregação do universo mítico afro-brasileiro e se deu, sobretudo, na
dominação simbólica do branco, que acarretou o desaparecimento ou a
metamorfose dos valores tradicionais africanos, que se tornaram inadequados a
uma sociedade moderna. A expansão da cidade destruiu a herança cultural africana,
que se conservara durante os séculos de escravidão:

A desagregação se realiza, pois em dois níveis: desagregação social do


regime escravocrata que atinge todos os indivíduos da sociedade, e
desagregação da memória coletiva negra. A um processo de transformação
da sociedade corresponde um processo de transformação dos símbolos. 93

A macumba correspondeu à marginalização do africano e do afro-


descendente numa sociedade de classes em formação. O sincretismo negro-
católico-kardecista foi o sinal e a resposta à desagregação social. Ainda, para este
autor, a desagregação da memória coletiva africana se deu no interior dos próprios
cultos afro-brasileiros, particularmente nos grupos bantú, já que foi uma etnia que
tendeu a sincretizar com maior facilidade suas crenças com o kardecismo, dando
nascimento ao que se chamou de baixo espiritismo. Tais grupos centraram suas
práticas no culto aos ancestrais e no kardecismo “... fornece quadros de

92
Cf. Ângela Randolpho PAIVA, Católico, protestante, cidadão; Paula MONTERO, Religião,
pluralismo e esfera pública no Brasil, Novos Estudos.
93
Renato ORTIZ, A morte branca do feiticeiro negro, p. 29.
321

interpretação bastante coerente às crenças de origem banto. Elas puderam assim


encontrar, (...), uma outra solução religiosa original, diferente das correspondências
estabelecidas entre deuses e santos, pela tradição sudanesa”94. O que caracterizou
a macumba foi o espírito familiar que se encarnou na umbanda. A formação da
umbanda foi vista pelo autor como uma desagregação da memória coletiva africana.
Cabe uma pergunta: a umbanda, mais do que degradação da memória coletiva
africana, não pode ser uma tentativa de ressignificação cultural, de tradução feita
pelos grupos bantú, como forma de se adaptar a uma nova organização social? Tais
questões são relevantes pois, para o próprio autor, os grupos africanos conseguiram
perpetuar, mesmo que transformados, a sua tradição durante a escravidão. Por que
não conseguiriam fazer isto no início de uma sociedade urbano-industrial?

Vemos autores com uma visão preconceituosa em relação à umbanda, já que


há uma valorização de determinada forma religiosa, considerada pura ou legítima,
representada pelo candomblé, que soube preservar as tradições95. Esta afirmação

94
Renato ORTIZ, A morte branca do feiticeiro negro, p. 37.
95
É importante citar Viveiros de Castro CAVALCANTI, em Origens para que eu quero?, artigo no qual
o autor examina obras de outros pensadores dentre eles: Nina RODRIGUES (1935, 1945), Artur
RAMOS (1934, 1967), Édison CARNEIRO (1937, 1964, 1978) e Roger BASTIDE (1971, 1973) sobre
a questão das origens da macumba / umbanda, que normalmente são vistas como religiões de
segunda ordem, pois degradaram as raízes africanas, uma vez que ocorre o hibridismo. O que está
colocado é a questão da pureza e da degradação dos valores negros, discussões que são devedoras
de sua época. Para CAVALCANTI, RAMOS afirma que, quando se trata de umbanda, chega a ser
quase impossível falar sobre os elementos puros de origem por dois motivos: o veloz processo
sincrético ocorrido no Brasil e a influência bantú, que tem como uma de suas características centrais
a tendência à ampliação e à flexibilidade com relação a outras práticas religiosas, o que faz com que
o processo de sincretismo se desenvolva em condições favoráveis e, porque não dizer, desejáveis.
Apesar disso, é possível observar em sua obra o tema da sobrevivência de elementos culturais. A
umbanda formada em São Paulo foi constituída principalmente por grupos bantú, grupos que foram
trazidos para o Sudeste, que pela sua característica, citada acima, de flexibilização e de ampliação,
encontram-se em permanente expansão. Para CARNEIRO, o sincretismo entre os grupos bantú
ocorreu, pois eles possuem uma pequena consistência tanto à nível mitológico quanto ritual,
entendida como atrasada, inconsistente e frouxa. Já para BASTIDE, as religiões afro-brasileiras
formam-se e se transformam no Brasil, a partir de três fatos históricos: o tráfico, que busca destruir os
sistemas simbólicos das religiões africanas; a suspensão do trabalho servil; e o desenvolvimento da
industrialização e a conseqüente incorporação do negro à sociedade de classes. O candomblé é visto
como uma busca de preservação de um mundo comunitário, em contraposição à macumba que, por
sua vez, é vista como degradação e perda de valores tradicionais, que traz como conseqüência a
fluidez, a perpétua transformação e a primazia do individual sobre o coletivo. A umbanda mantém
características básicas da macumba, como a mutabilidade constante e a falta de filosofia, mas
valoriza o negro neste momento de urbanização. Segundo Ibid., p. 100: “[Bastide vê que]... a
umbanda é o resultado de um processo de eliminação, na tradição ancestral, do que está em
contradição com a sociedade moderna”. Por outro lado, BASTIDE percebe a umbanda como um
esforço para a homogeneização e para a criação de dogmas e de ritos, definindo-a como uma
ideologia religiosa. Há de se perguntar se essa heterogeneidade presente na umbanda, desde os
seus primórdios, não teria que ter sido abolida com o passar do tempo. Segundo Ibid., p. 100:
“Passaram-se décadas desde então, e o caráter heterogêneo da umbanda permanece – o
individualismo e a competição entre os terreiros reproduz-se a nível das federações. A umbanda, ao
322

aponta para a busca de uma religião pura, o que pressupõe não só uma hierarquia
de valores, que implica em inferioridade e em superioridade, mas também em uma
visão essencialista e evolucionista. Independente disso, a formação da macumba e,
posteriormente, o nascimento da umbanda representaram apenas uma degradação
da memória coletiva africana, uma vez que os autores tomam como paradigma da
memória africana apenas a cultura representada pelos grupos iorubá, pegando o
candomblé como exemplo de preservação da cultura africana. Os próprios autores
desconstroem suas afirmações, já que Carneiro96 aponta para uma continuidade,
que é pouco observada, e Bastide97, ao falar dos fatos históricos, deixa clara a
impossibilidade de se manter uma tradição pura, sem que ela sofra influências de
outras culturas. O que se observa é uma lógica imprimindo as características do
sincretismo e atuando de maneira seletiva com relação à incorporação de elementos
vindos do exterior. Toda religião, portanto, influencia e é influenciada pelo campo
religioso no qual se encontra inserida.

O livro de Lísias Nogueira Negrão, Entre a cruz e a encruzilhada98, torna-se


fundamental, uma vez que o autor aborda a umbanda em São Paulo. O autor não
tem preocupação em trabalhar a cultura bantú, mas entende como plausível a
hipótese de se pensar a umbanda com uma matriz bantú, referindo-se ao texto de
Trindade99.

O autor faz importante e interessante recuperação histórica da umbanda em


São Paulo, mas nos chama a atenção o fato do autor tomar algumas práticas de
feitiçaria e curandeirismo e entendê-las como o embrião da umbanda. Ele não deixa
clara a ligação entre feitiçaria, curandeirismo e umbanda, isto é, como essas práticas
transformaram-se em umbanda; havendo uma passagem nebulosa, mesmo porque
tais práticas já estavam presentes em São Paulo desde o século XVIII, como
tivemos a oportunidade de ver quando falarmos dos processos-crimes antigos no
terceiro capítulo. Além disso, entende que o baixo espiritismo relacionava-se às
práticas africanas e afro-descendentes. Mas, quais práticas? De quais grupos?

que tudo indica, não é uma ‘religião em busca de forma’, como a definiu Camargo (1961), mas uma
religião com uma forma particular, na qual heterogeneidade e fluidez constituem características
marcantes e compatíveis com a existência de um sistema simbólico estruturado”.
96
Cf. Edison CARNEIRO, Negros Bantus.
97
Cf. Roger BASTIDE, As religiões africanas no Brasil.
98
Cf. Lísias Nogueira NEGRÃO, Entre a cruz e a encruzilhada.
99
Cf. Liana TRINDADE, Construções míticas e história.
323

Ao trabalhar a consolidação da auto-imagem umbandista e a legitimação da


umbanda, aponta para o papel exercido pelas federações. Segundo ele, a busca
pela legitimidade fez com que os terreiros adaptassem seu culto à expectativa do
outro, representado internamente pela umbanda branca e pelas federações:

Promoveram elas, portanto, além da moralização das práticas rituais, a


racionalização das fragmentadas unidades religiosas. Ao mesmo tempo
branqueava-se a Umbanda, que se adaptava às exigências burocráticas do
mundo moderno. De toda esta depuração, adaptação e reinterpretação de
mitos e ritos, pouco de negro sobrou: apenas o panteão de orixás, ociosos e
distantes e de Pretos Velhos, este sim, trabalhadores e próximos. Os Exus da
macumba, agentes mágicos fundamentais da cosmovisão africana, foram
(quase) banidos. Mesmo estes foram submetidos à moralização: os orixás
cada vez mais identificados aos santos católicos correspondentes, os Pretos
Velhos deixando de incluir os negros rebeldes, quilombolas, e os Exus,
quando remanescem, sendo “batizados”, guardando de sua eficácia mágica
apenas a capacidade de desfazer os males feitos por seus homônimos
“pagãos”. 100

Cabem algumas colocações a respeito das afirmações do autor. É inegável


que a umbanda sincretizou elementos de outras religiões como o catolicismo e o
kardecismo, mas outras tradições também foram acrescentadas a este caldo. Tudo
indica que o autor trabalhou com uma amostra “viciada”, no sentido de ter recorrido
às federações como principal fonte de dados dos terreiros, o que é notado pelo alto
índice de terreiros federados. Além disso, novamente, assistimos ao paradigma
iorubá presente, sendo que o autor, simplesmente, ignora os elementos bantú
presentes na umbanda, entendendo que aquilo que se refere à cultura africana
dentro da umbanda é constituído apenas pelos orixás e pelos pretos-velhos.

Em seguida a essa recuperação histórica, o autor volta-se para a atualidade


umbandista, entrando na realidade dos terreiros, apesar de termos a idéia de certo
distanciamento, apontando as relações endógenas e exógenas ao campo
umbandista. Fica-se com a impressão de que se trabalha o terreiro de maneira um
tanto rígida, principalmente no que diz respeito à questão moral, fazendo uma
divisão entre entidades de esquerda e de direita, esquecendo-se de possíveis
interpenetrações. A introjeção dos conceitos cristãos funciona de maneira diferente

100
Lísias Nogueira NEGRÃO, Entre a cruz e a encruzilhada, p. 159-160. (O grifo é nosso).
324

dependendo do momento e do lugar, sendo que os conceitos de bem e de mal


assumem uma característica dialética.

Apesar de ser uma obra que não se propõe a ser um trabalho que encerre
aquilo que pode ser pesquisado sobre a umbanda em São Paulo, tudo leva a crer
que a forma como o autor apresenta seus dados, mostra que há mesmo,
implicitamente, a intenção de se fazer algo que esgote o estudo sobre a umbanda. A
obra tornou-se um clássico, fruto do seu próprio mérito e abrangência. O que
observamos é que falar de umbanda no cenário atual parece-nos ser uma tarefa
árdua, uma vez que, por vezes, temos a sensação de que, talvez, quase tudo já
tenha sido dito sobre ela pelo lugar que ocupou e ocupa durante cem anos101 de
existência no campo religioso brasileiro.

Após termos visto criticamente aquilo que alguns autores importantes falam a
respeito da relação entre tradição bantú e umbanda, apresentaremos, a seguir, a
forma como entendemos essa relação, tendo por guia a seguinte pergunta: a
umbanda pode ser considerada como uma utopia para os grupos de africanos e de
afro-descendentes de tradição bantú?

5.4 - Ressignificação bantú, utopia umbandista

Agora, especificamente, para falarmos a respeito da relação entre


ressignificação bantú e utopia umbandista, retomaremos, de maneira sucinta, o
marxismo humanista, teoria elaborada por autores, que ao relerem Marx e Engels,
compreenderam a sua idéia a respeito da religião de uma maneira dialética.

Löwy102 afirma que mesmo rejeitando a religião, Marx a via como uma
realidade social e histórica, percebendo o seu duplo caráter, isto é, ao mesmo tempo
em que é expressão da aflição do povo, ela também é um protesto contra esta
aflição. “Mas ela não era menos dialética, pois apreendia o caráter contraditório da
“aflição” religiosa: às vezes legitimação da sociedade existente, às vezes protesto
contra ela”103. Este movimento dialético da religião nos remete ao conceito de

101
Alguns autores, dentre eles, José Henrique Motta de OLIVEIRA, Das macumbas à umbanda,
trabalham com a idéia de que a incorporação do Caboclo das Sete Encruzilhadas pelo médium Zélio
de Moraes, em 1908, constitui o mito fundante da umbanda.
102
Cf. Michaël LÖWY, Marx e Engels como sociólogos da religião.
103
Ibid., p. 6.
325

religiosidade popular, nos dizendo que dentro dela encontramos a afirmação de que
suas fronteiras não são facilmente definíveis, sendo um fenômeno complexo,
construído socialmente, que carrega em si uma extrema variedade, vista na
formação das inúmeras culturas populares e nas suas expressões. A umbanda é um
fenômeno de religiosidade popular.

Conforme colocado no tópico anterior, a umbanda se formou e ainda se


constitui como uma religião sincrética, que mescla elementos das mais diversas
tradições, mantendo um corpo estruturado de relações que se mantêm e que se
reproduzem simbolicamente. Pode ser entendida como uma forma de certos grupos
sintetizarem, traduzirem e lerem o mundo e as suas necessidades. A religiosidade
popular aparece ora como fenômeno de reprodução social, ora como elemento de
transformação. Isso se dá na medida em que a cultura popular é entendida como
elemento social que se organiza em uma relação de poder, o qual se vincula à
própria estruturação da sociedade. A umbanda, por sua vez, permanece como
produto cultural de criatividade popular espontânea, resistindo e superando a
intervenção externa que tenta modificá-la, já que através do processo de produção e
de reprodução do saber, ela mantém vivas e sólidas formas e questões importantes,
resistindo à cooptação feita pela classe dominante. Podemos dizer que ela é
ambígua, pois é um:

... produto de elaboração popular, refletindo as preocupações e aspirações


próprias de sua origem, vê-se penetrada, orientada e comprometida por
expressões ideológicas emanadas dos setores dominantes. Mas a umbanda
hesita entre as duas orientações, ora resiste, ora se acomoda. 104

Segundo Ortiz105, os fenômenos de religiosidade106 popular não se definem


somente pela dimensão da reprodução social. Muitos deles possuem um elemento
de contestação que se manifesta enquanto desordem simbólica. A religiosidade
popular está inserida dentro de uma totalidade que a inclui e a transcende, isto é, a
sociedade global que excede e determina os fenômenos da religiosidade popular. A

104
Lísias NEGRÃO, entre a cruz e a encruzilhada, p. 180.
105
Cf. Renato ORTIZ, Consciência fragmentada.
106
Renato ORTIZ utiliza o termo cultura popular. Porém, para este trabalho, estaremos usando o
termo religiosidade popular, entendendo que esse termo é uma das possíveis expressões da cultura
popular, que mesmo tendo diversos aspectos em comuns com a arte, o cordel, as danças, etc,
também possui as suas particularidades.
326

relação entre as manifestações da cultura popular e a sociedade global se define


como uma relação de poder, na qual a hegemonia dos grupos e das classes
dominantes tende a delimitar e a penetrar o espaço das classes populares, tentando
cooptá-las. Porém, ela não é apenas submissa, havendo focos de resistência.

Sendo assim, a fragmentação presente na religiosidade popular se


caracteriza pelo seu caráter de reprodução social, como também pela sua dimensão
contrária – a resistência. O processo de fragmentação cultural é um entrave para a
hegemonia dominante, já que estas pequenas rachaduras da religiosidade popular
permitem a sua resistência. Além disso, como resistência ao processo de
hegemonia do mundo, ela se configura como um obstáculo ao movimento que
procura transformá-la e transcendê-la e, com isso, ela continua a sobreviver e a se
transformar. É possível dizer, então, que a religiosidade popular, além de sua função
contestatória e revolucionária também possui uma função utópica?

A utopia é a exploração de novas possibilidades e vontades humanas, por via


da oposição da imaginação à necessidade do que existe, só porque existe,
em nome de algo radicalmente melhor que a humanidade tem direito de
desejar e por que merece a pena lutar. A utopia é, assim, duplamente relativa.
Por um lado, é uma chamada de atenção para o que não existe como (contra)
parte integrante, mas silenciada, do que existe. Pertence à época pelo modo
como se aparta dela. Por outro lado, a utopia é sempre desigualmente
utópica, na medida em que a imaginação do novo é composta em parte por
novas combinações e novas escalas do que existe. Uma compreensão
profunda da realidade é assim essencial ao exercício da utopia, condição
para que a radicalidade da imaginação não colida com o seu realismo.107

A utopia pode, então, ser entendida como uma tentativa de reinvenção do


futuro, uma abertura de novos horizontes de possibilidades. Ao mesmo tempo em
que não fecha o horizonte de expectativas e de possibilidades, criando a vontade de
lutar por alternativas, recusa a subjetividade do conformismo. Berman recupera, em
Marx, a possibilidade dos seres humanos inventarem novos mundos e recriarem
relações entre si.108

A sociedade moderna capitalista ao mesmo tempo em que aliena as pessoas


de si mesmas, também traz a possibilidade de desenvolvimento e de

107
Boaventura de Sousa SANTOS, Pela mão de Alice, p. 323.
108
Cf. Marshall BERMAN apud Luis Carlos FRIDMAN, Por uma vida menos ordinária.
327

aprofundamento do ser humano, dando-lhes a capacidade de criar perspectivas


totalmente novas e, porque não dizer, uma sociedade nova, repleta de esperança,
pois a auto-realização existe como uma necessidade interna. O ser humano é visto,
assim, em um contexto abrangente, numa transformação criativa, experimentando a
falta de mudança como algo opressivo, pois a mesma visa à conquista de mais
autonomia. Enquanto sofre, o povo pode ser transbordado por idéias, sendo
estimulado em sua subjetividade e, portanto, criando o novo.

O desenvolvimento desta subjetividade pode ser caracterizado, por um lado,


como um processo interno, subjetivo, de integração, ou seja, o indivíduo conhece
outros aspectos identitários de si mesmo e entra em contato com eles, ligando-os à
imagem de si próprio. Por outro lado, o desenvolvimento da subjetividade é um
processo interpessoal, intersubjetivo e relacional, pois é uma relação com os outros,
sejam indivíduos com os quais me assemelho, seja com pessoas das quais me
diferencio. Não há apenas o desenvolvimento de autonomia, este sempre ocorre
concomitante ao desenvolvimento da capacidade de se relacionar. “Cada indivíduo
teria, aberta diante de si, a possibilidade de novamente afirmar-se como indivíduo,
contra a comunidade ilusória que o reduz e o aprisiona”109, como, por exemplo, os
africanos e os afro-descendentes.

Ser livre implica a consciência de que se é livre, expressando-se como uma


disposição para avaliar possibilidades, investigar alternativas, pesar considerações,
escolher o que se vai fazer, ou seja, ter uma atitude que podemos chamar de
utópica. Dentro do quadro que se apresentava, não seria a umbanda, dentro da
perspectiva bantú, uma maneira de formular projetos e planos para a vida,
modificando-os à luz da experiência e insistindo para que eles se realizassem
plenamente? Não seria a umbanda uma expressão da ambigüidade da tradição
bantú, entendida como popular e afro-brasileira? Não seria a umbanda uma
possibilidade de desenvolvimento de autonomia? Buscando responder a essas
perguntas e compreendendo a relação entre umbanda e tradição bantú, temos a
possibilidade de entender de que maneira as diversas tradições que aqui chegaram
foram se encontrando e formando novas práticas culturais e/ou religiosas, como
forma de darem sentido à realidade desses grupos e de permitir que essas tradições
sobrevivessem, através da bricolagem e da fragmentação.

109
Marshall BERMAN, Aventuras no marxismo, p. 70.
328

As conseqüências da Abolição da Escravidão e da Proclamação da República


podem ser entendidas, a partir da perspectiva das pessoas de tradição bantú, como
fatores que geraram desordem e falta de significação, haja vista a dificuldade que
tiveram de realização dos projetos de liberdade, o que trouxe a necessidade de
novos arranjos, que procuraram uma reordenação e uma ressignificação. Para tanto,
foi necessário que essas vivências fossem articuladas a um todo, a um sistema de
significações, pois a pessoa encontrava-se frente a um conjunto de fatos que não
fazia sentido. Foi preciso construir uma linguagem socialmente aceita, por meio da
qual ele pudesse pensar, compreender e experimentar essas vivências. O que
observamos foi a ressignificação de sistemas simbólicos, entendendo-se aí, os
processos de hibridismo e a formação de novas práticas religiosas, como elementos
a serem ressignificados e como forma de adaptação a essa nova realidade. A
formação da religião é, neste sentido, entendida como uma forma cultural, que se
transforma ao longo da história em um espaço simbólico, constituído por forças
antagônicas que são atravessadas pelos conflitos sociais. Neste sentido, a Abolição
da Escravidão e a Proclamação da República são entendidas dentro de um
processo histórico, que possibilitou aos africanos e aos afro-descendentes
operacionalizar a transformação cultural, que trouxe especificidades dentro desta
conjuntura, que nos remetem a uma dimensão temporal e espacial.

Quando pensamos, portanto, nos grupos africanos e afro-descendentes de


tradição bantú, é possível afirmar que cada mudança das condições sociais
acarretou modificações das concepções e das representações desta população e,
conseqüentemente, de suas práticas e de suas expressões religiosas. Portanto, o
que observarmos, no caso dos bantú, foi um refazer constante de suas
representações religiosas, que se tornaram diferentes dadas às condições vividas
por eles. Com isso, é possível afirmar que a umbanda, como um destes momentos e
dentro de uma perspectiva bem específica, pode ser considerada uma utopia para
esses grupos:

... a função utópica como compreendida atividade do afeto expectante, a


intuição da esperança, mantém a aliança com tudo o que ainda é auroral no
mundo. (...) Da mesma forma, o conteúdo ativo da esperança, na qualidade
de conscientemente esclarecido, cientemente explicado, é a função utópica
positiva, enquanto o conteúdo histórico da esperança, evocado primeiramente
329

em representações, investigado enciclopedicamente em juízos concretos, é a


cultura humana na relação com o seu horizonte utópico-concreto. 110

Como naquele momento histórico não existia para estes indivíduos uma via
de emancipação, a umbanda, com todos os seus elementos, podia oferecer aos
bantú uma perspectiva comum, um sonho comum; uma tentativa de libertação da
condição de opressão e das dificuldades, uma vez que ela trazia consigo a
possibilidade de inserção social e direito à cidadania, através de uma mudança
identitária. Enquanto dimensão utópica, mais do que apenas reproduzir os valores
dominantes, a umbanda, para os grupos bantú, representou a possibilidade de
continuidade de determinada tradição, mesmo que de maneira ressignificada. Mais
do que ruptura, a umbanda foi uma tentativa utópica de continuidade de uma
tradição cultural, que há muito tempo tentava sobreviver, conforme visto em
capítulos anteriores.

Portanto, é utópica porque almeja a manutenção da tradição. Segundo Sousa


Santos, é importante que os diversos grupos: “... voltem a revalorizar e a recriar
identidades ancestrais que afinal asseguraram a sobrevivência e a dignidade
colectivas durantes séculos, as comunidades humanas, naturais e imediatas”111. Ser
utópico, dentro de uma sociedade de classes, na qual as coisas se encontram
vinculadas ao dinheiro e à produção em série, de uma maneira individualista, é
tentar manter-se ligado à própria tradição, mesmo que com vários rearranjos, pois
dentro da tradição bantú:

Não [se] sabe viver à margem da sua comunidade. Nas grandes cidades,
agrupa-se com os indivíduos da sua família, clã ou tribo, e nunca se atreve a
romper os laços sagrados que o ligam à comunidade, que permanece no
interior. Fora da vida comunitária, a sua personalidade desorienta-se,
marginaliza-se com facilidade, traumatizando-se e dissolve-se no caos
religioso e moral. Tem que viver amparando e amparado. Sabe que a sua
vida não é exclusiva. Se ele se separa da comunidade, pode ser
amaldiçoado, caem sobre ele as mais graves acusações. O ódio dos
antepassados despeitados será implacável e a vingança dos vivos possível. A
comunidade toma represálias contra transgressores, profanadores e
anárquicos.112

110
Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 146.
111
Boaventura de SOUSA SANTOS, Pela mão de Alice, p. 316.
112
Jean Bastide MUNGUELE KIYUNGU, Dinamismo cultural bantu e religião, p. 69-70.
330

Esta utopia bantú, representada pela umbanda, foi uma tentativa de resgate
das estruturas de comunidade e de contato com os antepassados e apontou para a
continuidade e a historicidade da identidade, que são questionadas pelo imediatismo
e pela intensidade das confrontações culturais, já que na reconstrução: “... das
tradições africanas, preserva-se a temática central da cultura negra: o culto aos
ancestrais e a concepção de forças vitais como ordenadora dos símbolos e das
formas comportamentais, fornecendo sentido ao mundo social”113. Os confortos da
tradição são desafiados pela necessidade de se forjar uma nova auto-interpretação,
baseada nas responsabilidades da tradução cultural, ocorrendo a produção de
novas identidades:

Os cultos africanos não são apenas formas de resistências cultural e social


dos negros na sociedade dos brancos, mas processos cognitivos
fornecedores de sentido para as suas experiências sociais. O conhecimento
religioso mítico constrói a individualidade do negro e a sua compreensão de
ser no mundo ante o risco de ‘não ser’, ou seja, de sua reificação ou
massificação. (...) Contra este sistema social em transição, que, após ter
reificado o negro como instrumento de produção escravocrata, marginaliza-o
no novo sistema emergente, surgem as comunidades negras dos quilombos e
dos cultos africanos como construtores da individualidade e da identificação
social dos negros. 114

Neste processo utópico ocorreu a troca de conhecimentos, revelados através


de reinterpretações dos significados culturais dentro de determinado contexto
histórico, fornecidos pelos agentes sociais, tais como valores, interesses,
motivações, dentre outros. O processo de reinterpretação resultou em sínteses, que
preservou sentidos diferenciados em recriações, que foram construídas por meio de
intenções de sentido religioso, que formando esquemas significativos para a
compreensão e a explicação das necessidades, dos interesses e das expectativas
dos afro-descendentes de tradição bantú.

Trindade115 ainda afirma que as entidades míticas da umbanda são resultado


de um processo de construção simbólica. Os símbolos legitimados pelos cultos
esotéricos e pelo kardecismo constituíram-se como núcleos organizadores dos mitos
e dos ritos afro-brasileiros na umbanda. O kardecismo passou a ser um modelo

113
Liana TRINDADE, Conflito social e magia, p. 150.
114
IDEM, Construções míticas e história, p. 79. (O grifo é nosso)
115
Cf. Ibid.
331

referencial de significado e de valor, que definiu e codificou os sistemas de crenças


e de rituais vividos e concebidos na umbanda116. O que vemos no caso de afro-
descendentes de tradição bantú é a formação de um ritual que se iniciou com a
macumba, se consolidou com a umbanda e se legitimou com o movimento
federativo. O ritual que falamos é a incorporação dos guias, que veremos a seguir.

5.4.1 – A incorporação dos guias na umbanda: uma forma de utopia

Na umbanda, os guias são considerados entidades e, portanto, espíritos.


Foram pessoas que tiveram uma existência terrena, possuem uma biografia e
atualmente, situam-se em outro plano. Logo, são espíritos de pessoas que
morreram. Isto nos remete à idéia dos antepassados ou dos defuntos dentro da
tradição bantú, que vivem, depois da morte, no mundo invisível.

Segundo Jahn, os mortos não vivem, mas existem como forças espirituais.
Enquanto força espiritual, o defunto ou o antepassado mantém uma relação com sua
descendência: sua força vital pode estar presente nos seus descendentes. Somente
quando não tem mais descendência viva é considerado realmente morto. Os
defuntos são forças espirituais capazes de influenciar os seus descendentes vivos e
a meta consiste em afirmar as forças vitais desses. A força que existe previamente
em um antepassado adquire eficácia em um ser humano que está vivo: “A isto se

116
Segundo Lísias NEGRÃO, Entre a cruz e a encruzilhada, ainda no final da década de 50, a
umbanda encontrava-se entre a ortodoxia do catolicismo e o intelectualismo positivista, encontrando-
se ainda ameaçada e sob forte contestação. As federações tinham a difícil tarefa de legitimá-la,
provendo-a à alternativa religiosa socialmente aceita e zelando pelo seu bom nome. Fazia isto,
tentando extirpar de seus rituais tudo aquilo que podia ser considerado primitivo, bárbaro ou
evidentemente negro. Os códigos que presidiram à lógica repressiva e excludente foram
internalizados (afirmação da pureza moral e promoção do bem), como forma de se fugir da
marginalização (macumba e baixo espiritismo). De 1960-1963, houve uma intensa atividade do
movimento federativo, uma vez que era necessário legitimar a umbanda, no sentido de torná-la
respeitável como alternativa religiosa. Havia uma proposta de promover a codificação da doutrina
umbandista em seus aspectos filosóficos, científicos e religiosos, a uniformização dos rituais e atos
litúrgicos, levando em consideração as diversas particularidades do culto e as peculiaridades de cada
estado ou região do país. Preparou-se para se defender de acusações e perseguições, mas as
mesmas não impediram o seu crescimento, mas dificultaram sua aceitação enquanto uma religião
que mereceria a proteção do Estado e o respeito dos concorrentes. Falava-se em unificação
institucional e padronização ritual, mas havia setores da umbanda que não só não aderiram, mas
também combateram a tentativa de unificação institucional representada pelo congresso. “Buscava-
se dar à Umbanda uma estrutura nacional unificada e centralizada, um código ético-doutrinário
calcado na moralidade cristã e na ordem vigentes e um ritual padronizado. Dessa maneira, o órgão
diretor nacional a ser consolidado a partir das organizações já existentes (...) se constituiria na “Igreja”
da Umbanda, que se tornaria uma religião legítima e aceita tanto pelo Estado como pela Sociedade
Civil. Deixaria assim de ser uma “seita”, sem hierarquia centralizada, sem padronização ritual,
estigmatizada por desvios morais, conforme vinha sendo percebida até então” (Ibid., p. 92-93).
332

deve que a criança receba o nome daquele antepassado cuja força magara se
acredita foi encarnada na criança”117.

Na África um defunto pode renascer em várias pessoas diferentes, por


exemplo, em seus netos. Há a possibilidade de renascimento de um morto em
diversos descendentes, o que implica no princípio magara, como vimos no primeiro
capítulo. Nele se encontra o sistema de fortalecimento e de debilidade da vida,
através do qual uma força pode fortalecer ou debilitar interiormente outra, sendo o
crescimento individual possível somente dentro e com o crescimento da natureza
humana.118 Tal fato também ocorre dentro da umbanda, uma vez que um guia pode
ser incorporado por várias pessoas ao mesmo tempo. Por exemplo, em um mesmo
terreiro várias pessoas podem receber a mesma entidade, da mesma forma que
uma mesma entidade pode estar presente em diversos terreiros. O que foi relatado
por uma de nossas entrevistadas é que há uma afinidade maior com determinada
entidade, o que faz com que pensemos no princípio magara, como também na idéia
de defunto:

E tem algum que você tem mais afinidade?


Ah, tem a Cabocla tenho bem mais e também assim, um pouco ela que traça
e que traçou agora, né, na volta os caminhos que vão te que ser seguidos, o
que que tem que acontece, o que faze com cada entidade, ela traça meio
que vai determinando o que vai ser feito em cada etapa, assim lógico ela fala
como é etc e tal...
Ela fala quando ela ta em você...
Isso, geralmente ela traça, daí é assim ela eu tenho, tenho afinidade, às
vezes, de ir em casa, sei que alguma coisa, tenho a certeza que alguma coisa
que alguém me fala e eu sei que é ela. Então ela é que eu tenho mais
afinidade, é que eu sinto mais próxima de mim, assim também.
E essa fala que você tem certeza que é ela que fala como é que você sabe, é uma coisa
que vem, é uma coisa que você ouve?
Isso, mas assim é bem raro porque eu não consigo muito ouvir nada e, às
vezes, se eu escuto, eu acho que é bobagem, mas assim tem situações bem
pontuais que, às vezes, eu ouço essa fala que eu sei que é ela.119

Ao mesmo tempo em que o antepassado influencia a vida dos vivos, o ser


humano é capaz de fortalecer os antepassados, fazendo com que recebam magara
117
Janheinz JAHN, Muntu, p. 152.
118
Cf. Ibid.
119
M., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 02/08/08.
333

através da adoração, da oração e do sacrifício. As oferendas, como vimos, são


oferecidas por um chefe familiar, destinado a ser sacerdote, graças a sua qualidade
como descendente mais velho do antepassado comum. O sacrifício é antes de tudo
o estabelecimento de uma ligação com o antepassado. Com os antepassados se
compartilha os alimentos, cuja força existencial lhe dá o sentimento de vida. Com
esta comunhão, a força do antepassado penetra no sacrificador e na comunidade
que ele representa, sendo um dos melhores exemplos da reciprocidade das forças
vitais no universo:

Mas, você faz uma diferenciação entre orixás no sentido de que eu ofereço para que
isto se reverta a mim e do guia é diferente. Não é que, acho que até vai se aproximar,
mas me parece que você faz pra um outro.
Sempre é para um outro mesmo quando é para o orixá, só que o
aproveitamento, vamos dizer assim, eu acho que a gente pode diferenciar
assim: o guia ele pode precisar utilitariamente daquilo, até numa outra
situação que acontece, pode acontecer do guia estar enfraquecido, o guia.
Por enes razões, porque os guias têm a sua vida própria extra terreiro, então
por situações nós tamos aqui com um guia, não é o que vem essa semana na
virada é um outro, mas têm um dos guias aqui que tem uma situação dele no
plano espiritual que ele tá precisando de muita ajuda, de muita força e a gente
cuida disso aqui também, entendeu, isso se reflete, por exemplo, quando
você acende uma vela, então, o guia que está bem ela se comporta de um
jeito, quando tem algum problema ela se comporta de outro, a vela. Ela
apaga, ela deforma, ela te dá indícios de que alguma coisa tá errada ali.
Então, é um cuidado também quando o guia por razões dele também tá
precisando de um axé, tá precisando de uma força e essa força pode ser
dada através de procedimentos magísticos. Então a gente dá uma reforçada
né, dá uma oferenda mais forte.120

Diferentemente da umbanda, sabemos que outras expressões bantú


formadas em solo brasileiro, com o candombe121, não têm a incorporação dos

120
C., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, São Paulo, 02/06/08.
121
Segundo Edimilson Pereira de ALMEIDA, Os tambores estão frios, candombe é um ritual que
celebra os antepassados e alguns santos católicos. A estrutura é simples. Um dos aspectos que o
caracteriza é a projeção de traços pessoais dos devotos na organização do ritual. Ao mesmo tempo
em que é possível identificar uma linha geral (heranças bantú e católica), também é possível ver a
trajetória de determinados indivíduos que demarca as especificidades do ritual. “... a força do
Candombe é proporcional à sua ligação com as origens. Considerando a imagem de um espiral,
pode-se dizer que o ritual permanece sacralizado, mas vai sofrendo alterações à medida em que se
afasta dos primórdios” (Ibid., p. 66). Aspectos que caracterizam o ritual: origem étnica dominante:
banto; temas: sérios e entretenimento (bizarria); estrutura ritual: três tambores, uma puíta, um guaiá,
canto solo e resposta em cora, dança livre (improvisos); conteúdo: tradição religiosa passada
oralmente de geração em geração, evidenciando situações de confronto (desafios) entre os
candombeiros; veículos de transmissão da sabedoria ancestral: dança (linguagem gestual), cantos e
narrativas (linguagem verbal); orientação espiritual; celebração da memória dos ancestrais (sem
334

antepassados como um ritual central. Segundo Pereira122, os antigos são chamados


para participar do candombe. A sua presença se revela quando os devotos sentem
que os antepassados estão com eles e não incorporados neles. Por exemplo, para o
autor, os pretos-velhos são vistos no candombe guardando certa semelhança com
esses antepassados. Ambos viveram no passado, sofreram as dificuldades geradas
por situações adversas e deixaram para os seus descendentes um conjunto de
valores morais e um modelo de comportamento social. Há uma interpretação do
mundo a partir da tradição transmitida pelos antepassados. É importante reverenciá-
los e aplicar no cotidiano os procedimentos que eles demonstraram ser eficazes123.
O antigo, no candombe, e o preto-velho, na umbanda, constituem diferentes
possibilidades para se viver com os antepassados, recordando que os devotos
reconhecem as particularidades destas forças religiosas:

Ou seja, o paralelismo verificado na relação dos antigos com os pretos-velhos


é substituído por uma operação sincrética baseada no empréstimo ou
absorção que a Umbanda faz das divindades de origem banto.
Para o universo umbandista a importância de Zambi e de Calugna decorre de
sua ligação com as origens e os antepassados; em outras palavras, essas
entidades possibilitam o reingresso dos devotos na corrente do sagrado
reconhecido etnicamente como sendo de procedência africana. (...)
Isso porque as divindades do mundo banto interferem nas representações do
universo umbandistas, ao mesmo tempo em que sofrem as influências desse
universo. 124

Para o autor, no candombe, cultuam-se os antepassados estando junto com


eles, dançando com eles, mas sem incorporá-los. Se antes entre as pessoas de
tradição bantú era clara a presença dos antepassados no seu cotidiano, entendendo
como mortos-vivos, conforme vimos no primeiro capítulo, na constituição da

incorporação) e louvação aos santos católicos; formas: fixo (capelas e terreiros) ou cortejo (percurso
em vias públicas). Isso representa os repertórios básicos, que indica o eixo de preservação do
candombe, ao qual pode ser associados aspectos da sociedade contemporânea, indicando o eixo de
mudança do ritual. Permite que interpretem as orientações do passado, a fim de adequá-las às
exigências do seu contexto histórico-social. “Tal situação mostra que a liberdade para interpretar as
regras dos antigos está condicionada ao conhecimento destas regras e à compreensão das
exigências do contexto em que o devoto vive” (Edimilson de Almeida PEREIRA, Os tambores estão
frios, p. 72).
122
Cf. Ibid.
123
Pai Joaquim, por exemplo, torna-se uma referência fundamental, pois é o antepassado que tem
algo a dizer aos seus descendentes. Se pode atualizá-lo como um antigo (memória afetiva) quanto
como um preto-velho (através da incorporação).
124
Ibid., p. 497-498.
335

umbanda tudo indica que houve a necessidade desta presença, que se fez de uma
maneira mais incisiva. Qual é o sentido da inserção do ritual de incorporação dos
guias de maneira coletiva e sistemática no momento histórico trabalhado?

Lewis125 entende que a produção do êxtase religioso se relaciona com as


circunstâncias sociais que o produzem, ou seja, há um entendimento do êxtase
como um fato social. O transe126 pode se dar pela ausência temporária da alma do
sujeito ou uma possessão por uma força sobrenatural. A primeira idéia reforça o
entendimento de que houve uma perda da força vital, uma despossessão, enquanto
a segunda enfatiza uma intrusão de força estranha. “Em algumas culturas ambas
essas posições são mantidas simultaneamente, de tal forma que uma pessoa
“despossuída” é “possuída” por um espírito ou poder”127. Quando a umbanda foi
formada, ela passou a ter como ritual central a incorporação dos guias de maneira
coletiva e sistemática, que fornecem os passes e as consultas à assistência. A
possessão pode ser entendida como uma forma de resgate da força vital através
não mais do culto aos antepassados, mas da incorporação dos mesmos. A respeito
da incorporação afirma um de nossos antepassados:

Você começa o que? A visualizar o guia?

125
Cf. Ioan LEWIS, Êxtase religioso.
126
Cabe fazer uma diferenciação entre transe e possessão. Transe pode ser definido como um
estado de dissociação, caracterizado pela falta de movimento voluntário, por automatismo de atos e
de pensamentos, representados por estados hipnóticos e mediúnicos. Pode compreender
dissociação mental completa ou parcial e vem acompanhado de visões excitantes ou alucinações,
cujo conteúdo nem sempre é lembrado de maneira tão clara. Estados de transe podem ser induzidos
por uma série de estímulos, tais como: ingestão de bebidas alcoólicas e drogas psicotrópicas,
sugestão hipnótica, aumento do ritmo respiratório, inalação de fumaças e vapores, música e dança,
ou ainda, através de mortificações ou privações, como jejum e contemplação ascética. Todos estes
meios atuam no sistema nervoso central. O transe tanto pode ter uma explicação mística como não
mística e uma sociedade que tem uma interpretação mística não precisa ficar presa a ela. Portanto, o
estado de dissociação mental – transe – pode estar sujeito a diferentes controles culturais e a
diversas interpretações culturais.
A possessão por um espírito ou por uma entidade externa pode ser uma explicação do transe, mas
nem todas as possessões por espírito envolvem necessariamente o transe. Estes dois estados nem
sempre são equivalentes. A possessão pode ser diagnosticada muito antes de um verdadeiro estado
de transe. Segundo Ibid., p. 52: “A possessão por espírito abraça, portanto, uma gama de fenômenos
mais ampla que o transe e é regularmente atribuída a pessoas que nem de longe estão mentalmente
dissociadas, apesar de poderem chegar a isso no tratamento a que subseqüentemente se submetem.
É uma avaliação cultural da condição da pessoa e significa precisamente o que diz: uma invasão do
indivíduo por um espírito”. (O grifo é nosso) A possessão por espírito é uma das principais
interpretações do transe e de outros estados associados. Pode-se dizer em uma ausência temporária
da alma da vítima, conhecida na antropologia como perda da alma. Para o autor, uma pessoa só está
possuída, estando ou não verdadeiramente em transe, se ela considera que está e outros membros
da sociedade endossam esta reivindicação.
127
Ibid., p. 30.
336

É, é como se ele aparecesse algumas vezes, ou imagens mentais que ele


traz em si, começa mesmo a fusão. Na minha dissertação falo muito isso é
desaparecer as barreiras entre o eu e o outro, sendo outro o guia e eu o
médium, então quando essa barreira vai se tornando mais tênue você
começa a se sentir mais guia e aí onde vêm essas imagens, imagens que ele
traz, sensações que ele traz, emoções que ele traz, por exemplo, às vezes,
eu estou num estado de humor e o guia tá em outro, às vezes, eu tou irritado
e o guia tá contente, então muda conforme o guia encosta isso muda. (...)
Mas quer dizer você tava falando da incorporação. Você tem essa imagem...
Isso, aí você começa, como a gente tem bastante preparo aí você atua
ativamente no processo de você esquecer de si mesma e de se transformar
no outro de se transformar, não sei se é essa a palavra, de se fundir, eu acho
que é uma fusão. O guia sozinho fora do corpo físico ele não é exatamente
como ele é incorporado porque ficam sempre resquícios, memórias, traços de
personalidade e corporeidades que são minhas, então há uma fusão eu acho
que há uma fusão, também não tenho como provar isso, mas eu acho que há
uma fusão conscencial.128

A incorporação dos guias, neste momento, pode ser entendida como uma
forma de resistência. Estes espíritos de antepassados, de certa forma,
proporcionaram o exercício de poder. A possessão, por vezes, foi uma forma de
protesto contra a condição desfavorecida e de exclusão, uma vez que ela delegou a
determinado grupo religioso um instrumento de poder. Ao mesmo tempo em que os
umbandistas eram estigmatizados também eram temidos. Foi dado um poder
religioso especial aqueles que se encontravam fragilizados socialmente:

Vemos assim que a possessão periférica expressa insubordinação, mas


usualmente não até o ponto de desejar uma ruptura imediata da relação em
questão ou subvertê-la completamente. Ao contrário, ela ventila em grande
parte a agressão e a frustração dentro da incômoda aceitação da ordem
estabelecida de coisas. Por outro lado, as acusações de bruxaria e feitiçaria,
representando efetivamente linhas de ataque mais drástico e direto, procuram
quase sempre destruir relações insuportavelmente tensas.129

A incorporação dos guias na umbanda de maneira coletiva e sistemática foi,


conseqüentemente, uma forma de recuperação do culto aos antepassados, podendo
representar uma tentativa de domínio sobre o caos, principalmente frente aos novos
problemas que estavam sendo colocados. Assim, os pais e as mães-de-santo, além
dos médiuns, tornaram-se, nos dizeres de Lewis, xamãs, isto é, aqueles que

128
C., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, São Paulo, 16/04/08.
129
Ioan LEWIS, Êxtase religioso, p. 151.
337

passaram a controlar a incorporação por espíritos, possuindo certo controle sobre


elas, diferentemente da possessão que ocorreu e ocorre na África entre os bantú,
quando a possessão é entendida como um fenômeno que toma o indivíduo sem que
ele tenha controle sobre este evento. O xamã é entendido como:

... o símbolo não da submissão e dependência, mas da independência e


esperança. Através dele os poderes do mundo antes agrilhoados são soltos
apropriadamente e aplicados na administração das necessidades da
comunidade. Se encarnando espíritos ele dá corpo à mais profunda intrusão
dos deuses no campo da sociedade humana, seu controle dessas forças
afirma dramaticamente as reivindicações do homem de controlar seu
ambiente espiritual e tratar com os deuses em termos de igualdade. Na
pessoa do xamã, o homem proclama triunfalmente sua supremacia sobre o
poder elemental que ele dominou e transformou em força socialmente
benéfica. E esse controle duramente conquistado na base da aflição é
revivido em cada sessão xamanística. Essa, mas do que a repetição de
qualquer crise pessoal, é a mensagem da sessão. Pois na sessão os deuses
entram no xamã a seu pedido e são assim levados ao confronto direto com a
sociedade e seus problemas. É puxando os deuses até seu próprio nível,
tanto quanto flutuando nas alturas para encontrá-los, que o xamã permite ao
homem negociar com as divindades em pé de igualdade. 130

Através da incorporação dos guias, a umbanda promoveu a reconstrução


interpretativa das tradições afro-brasileiras, indígenas e européias, ancorada em
uma base bantú, realizada em um contexto situacional definido: situação urbana e
industrialização do Sudeste na primeira metade do século XX. A umbanda se
apropriou da mitologia construída na macumba, fornecendo novos sentidos de
dogmatização doutrinária e ideológica. No interior da umbanda atuaram forças
sociais antagônicas: por um lado, a tradição bantú, que reinterpretou os mitos dos
pretos-velhos, dos caboclos e dos exus, a partir dos antepassados e da força vital;
por outro houve uma intenção de reproduzir os valores e os conceitos derivados do
conhecimento e da ética cristã / kardecista, segundo Trindade131. A umbanda não foi
vista como uma religião nova, mas como uma junção de componentes simbólicos,
mitológicos e rituais da macumba com o pensamento espírita e esotérico. As
identidades formadas, a partir da construção da umbanda, mostraram-se sujeitas ao
plano da história, da política, da representação e da diferença, não sendo unitárias
ou puras, mas girando em torno da tradução, que também se faz dinâmica. Ao

130
Ioan M. LEWIS, Êxtase religioso, p. 235-236.
131
Cf. Liana TRINDADE, Construções míticas e história.
338

formar a umbanda, emergiam identidades culturais que não eram fixas, mas que
estavam em transição entre diferentes posições, retirando seus recursos de
diferentes tradições culturais, produto de complexos cruzamentos e misturas
culturais.

Retomando o momento de formação da umbanda, podemos dizer, então, que


o capitalismo que aliena o ser humano de si mesmo, incutindo-lhe a sensação de
que não possui liberdade, também aponta que aquilo “... que merece ser sublinhado
é sua abertura à possibilidade de um ressurgimento da religião como ideologia e
cultura de um movimento anticapitalista revolucionário”132. Enquanto expressão da
religiosidade popular, a umbanda apresentou, então, duplo significado: resguardar e
proteger uma cultura e suas tradições, mesmo que de maneira ressignificada;
acolher e fortalecer o indivíduo cotidianamente submetido às imposições da cultura
dominante, reforçando sua autonomia e seu comprometimento com os outros.

No processo de formação do espaço público brasileiro apresentar-se como


religião foi uma forma de institucionalização possível para a expressão de práticas
que associavam formas híbridas de cura e de rituais centrados no transe. Neste
sentido, é interessante observar o movimento que sofreu a umbanda na sua busca
por legitimação. Cada vez mais foi associada a ela a prática da caridade em
oposição ao feitiço, sendo esta uma tentativa de se tornar uma prática pública e
abrangente. Houve uma combinação das matrizes simbólicas disponíveis de
maneira estratégica e contextual, muitas vezes, não existindo uma mudança visceral
ou subjetiva daquele grupo que a fez, uma vez que houve um núcleo fundamental da
tradição que se manteve, apesar das diversas ressignificações culturais.

A religião que pode ser vista como alienação da condição histórica do homem
também pode, como a umbanda, carregar, para os afro-descendentes de tradição
bantú, um caráter ambíguo, pois ao mesmo tempo em que reproduz os valores da
classe dominante, também contribui potencialmente para a resistência cultural e
religiosa, produzindo uma metamorfose religiosa. Através da umbanda é possível o
resgate de estruturas simbólicas dos grupos de tradição bantú, que foram
esquecidas com a entrada na sociedade urbano-industrial: a vida comunitária e a
religião com a função de organizar e manter coesa a comunidade.

132
Michaël LÖWY, Marx e Engels como sociólogos da religião, p. 22.
339

A formação da umbanda coloca os africanos e os afro-descendentes de


tradição bantú como protagonistas, como fazedores de história, já que apontou para
uma dimensão utópica desta tradição, enquanto uma tentativa de continuidade dela,
mesmo que de maneira ressignificada. Foi uma tentativa de doação de sentido para
a nova realidade que se apresentava. Fez-se utópica, uma vez que criou
perspectivas novas para os africanos e os afro-descendentes de tradição bantú,
dando-lhes a oportunidade de conquista de autonomia e de desenvolvimento da
subjetividade. Ao resistir culturalmente, ressignificando aspectos, ela permitiu que à
pessoa deste grupo cultural se desenvolvesse não só individualmente, mas também
na relação com o outro, proporcionando a sobrevivência da tradição através da
tradução.

Após trabalharmos a situação dos africanos e dos afro-descendentes no início


do século XX, observamos a formação da macumba e a constituição da umbanda,
como conseqüência destes processos históricos. Insistimos na ressignificação bantú
como utopia umbandista, vista não só através das entidades, mas também da
recuperação da sua incorporação coletiva e sistemática. Porém, como forma de
corroborar com esta nossa idéia, no próximo capítulo apresentaremos as possíveis
ressignificações dos projetos de liberdade dentro da umbanda, gestados durante o
período escravocrata, a partir de três grandes eixos já trabalhados: família,
localidade e antepassados, que podem ter se transformados em linhagem e família-
de-santo, espaço doméstico ou terreiro e guias e entidades, bem como rituais e
símbolos umbandistas, para perceber de que forma aspectos da tradição bantú
ainda se encontram presentes na umbanda.
340

CAPÍTULO VI: UMBANDA: UM RITUAL BANTÚ

Toda sexta-feira1
Toda sexta-feira / toda a roupa é branca / toda pele
é preta / todo mundo canta / todo o céu magenta /
Toda sexta-feira / todo canto é santo / e toda conta /
toda gota / toda onda / toda moça / toda renda /
Toda sexta-feira / todo o mundo é baiano junto

Depois do caminho por nós percorrido, acompanhando a trajetória de


africanos e de afro-descendentes de tradição bantú, no capítulo anterior abordamos
a constituição da umbanda através de sua dimensão utópica. Para tanto,
contextualizamos o momento histórico de sua formação e apresentamos algumas
obras sobre a umbanda, apontando suas considerações a respeito da tradição
bantú, para, ao final, desenvolvermos a nossa idéia e ofereceremos a nossa visão.
Este capítulo encontra-se visceralmente associado ao capítulo anterior, uma vez que
ele nos parece ser uma continuação daquilo que estávamos elaborando. Dentro da
idéia de umbanda como utopia bantú, ainda falta falar a respeito dela na atualidade,
buscando, mediante os dados empíricos, mostrar aspectos bantú na umbanda.

Portanto, este capítulo tem como objetivo destacar os aspectos bantú


presentes na umbanda, aspectos, esses, que aparecem ressignificados. A proposta
é recuperar as facetas que foram trabalhadas nos capítulos anteriores, mesmo que
de maneira dividida, para uni-las, ao falarmos de umbanda. Inicialmente,
abordaremos a estrutura presente na umbanda, que será desvelada através da
presença da família, do território e dos antepassados, que na umbanda foram
transformados em família-de-santo, espaço doméstico ou terreiro e guias e a
questão da linhagem. O que estamos recuperando, neste momento, são os projetos
de liberdade, que foram discutidos no quarto capítulo, e que, agora, estamos
nomeando de realizações de liberdade. Utilizaremos as entrevistas realizadas em
Maputo e em São Paulo, no caso, com adeptos da umbanda, para tentar estabelecer
conexões entre eles.

1
Toda sexta-feira, Belô VELLOSO. Belô Velloso. s.n. Velas, Manaus, 1996, CD-ROM.
341

A seguir, falaremos sobre duas entidades da umbanda que estiveram


presentes em sua constituição: preto-velho e caboclo. Para tanto nos basearemos
nos textos acadêmicos, nos textos de teologia umbandista e, por fim, em entrevistas
realizadas com adeptos de um terreiro de umbanda.Idealmente, teríamos que
abordar os exus e as pombas-gira, mas não o faremos, porém sabemos da
complexidade destas entidades e o esforço de autores2 no sentido de desvelá-las.

Depois faremos uma recuperação e uma análise de um ritual de umbanda.


Sabemos que a gira3, ritual que ocorre freqüentemente, e que tem como rito central
a incorporação dos guias, acontece depois de uma série de outros rituais, que
podemos chamar de preparatórios. Para isso, apresentaremos um terreiro de
umbanda, de maneira que o leitor possa nos acompanhar neste trajeto, bem como a
seqüência ritual presente em um dia de gira pública, para, em seguida, apontarmos
os elementos bantú existentes em uma gira de umbanda. Para tanto, após a
apresentação da gira, faremos uma análise do ritual de umbanda, abordando
símbolos presentes neste ritual, símbolos que se apresentavam como significativos

2
Liana TRINDADE, Exu: símbolo e função; Mara Martins PASSOS, Exu pede passagem; Alexandre
SALLES, Èsù ou Exu?. Temos uma hipótese de trabalho. Quando olhamos para os exus e para as
pombas-gira como guias, nós os entendemos como antepassados, logo alguém que teve uma
existência terrena em determinado momento histórico. A quais pessoas correspondem os exus e as
pombas-gira? Somos inclinados a pensar naqueles africanos ou afro-descendentes que burlaram o
sistema, muitas vezes tendo ações que podem ter sido consideradas pouco éticas. Mas como diz o
mito: “No começo dos tempos estava tudo em formação. / Lentamente os modos de vida na Terra
foram sendo organizados, mas havia muito a ser feito. / Toda vez que Orunmilá vinha do Orun para
ver as coisas do Aiê, era interrogado pelos orixás, humanos e animais. / Ainda não fora determinado
qual o lugar para cada criatura e Orunmilá ocupou-se dessa tarefa. / Exu propôs que todos os
problemas fossem resolvidos ordenadamente. / Ele sugeriu a Orunmilá que todo o orixá, humano e
criatura da floresta fosse apresentada uma questão simples, para a qual eles deveriam dar resposta
direta. / A natureza da resposta individual de cada um determinaria seu destino e seu modo de viver. /
Orunmilá aceitou a sugestão de Exu. / E assim, de acordo com as respostas que as criaturas davem,
elas recebiam um modo de vida de Orunmilá, uma missão. / Enquanto isso acontecia, Exu, travesso
que era, pensava em como poderia confundir Orunmilá. / Orunmilá perguntou a um homem:
“Escolhes viver dentro ou fora?”. “Dentro”, o homem respondeu. E Orunmilá decretou que dovorante
todos os homens viveriam em casas. / De repente, Orunmilá se dirigiu a Exu: / “E tu, Exu? Dentro ou
fora?”. Exu levou um susto ao ser chamado repentinamente, ocupado que estava em pensar sobre
como passar a perna em Orunmilá. / E rápido respondeu: “Ora! Fora, é claro”. / Mas logo se corrigiu:
“Não, pelo contrário, dentro”. / Orunmilá entendeu que Exu estava querendo criar confusão. / Falou
pois que agiria conforme a primeira resposta de Exu.” (Exu atrapalha-se com as palavras. Reginaldo
PRANDI, Mitologia dos orixás, p. 66-67.
3
A palavra gira é de origem portuguesa, do verbo girar, rodar. Adaptada pelos negros teria tornado
engira. Durante a gira, os médiuns se põem a rodar, antes de estarem incorporados pelas entidades.
O movimento rotativo estabelece condições de comunicação com o transcendente. Segundo Nei
LOPES, Novo dicionário bantu do Brasil, p. 110, verbete gira: “GIRA, s.f. Sessão umbandista; roda
ritual para cultuar as entidades (OC) – Do umbundo chila ou tjila, dançar, bailar, da mesma raiz de
ichila, lugar da dança. Cp. engira. Já em Ibid., p. 97, verbete engira: “ENGIRA, s.f. Conjunto, reunião
de adeptos da cabula – Abon.: “A reunião dos camanás forma a engira”. (Nina Rodrigues, 1977: 257).
– De origem banta: ou do quimbundo njila, giro; ou do umbundo ochila, lugar da dança, deriv. De tjíla
(var. Chila), dançar, bailar”.
342

na religião tradicional bantú, com destaque para as oferendas, a utilização de


comida, de bebida e de fumo, a presença de plantas e de ervas, bem como as
danças e o som dos atabaques. Nosso intuito é promover algumas aproximações,
apontar alguns pontos de contato entre a umbanda e a religiosidade bantú.

Partimos da idéia de que uma parte importante do culto aos antepassados


encontra-se presente dentro da umbanda nos ritos preparatórios, principalmente a
preparação da véspera, nos seguintes atos: a limpeza do local de culto, as
oferendas e a disposição das plantas. A outra parte do culto aos antepassados,
aquela que denominamos comunhão, ocorre no momento da gira propriamente dita,
quando existe a presença dos guias e uma partilha quase plena com os adeptos,
além da ingestão de comida e de bebida pelos mesmos, ao som dos atabaques e
das danças específicas. Ao final, trabalharemos a relação que os adeptos da
umbanda possuem com os guias e os orixás fora do ritual religioso. O que
percebemos é que tal como observamos em Maputo, os guias ou os antepassados
fazem parte da vida cotidiana das pessoas que, atualmente, encontram-se na
umbanda, tendo uma influência que está muito além do rito religioso. A religiosidade
é assim, como tantas outras, uma vivência cotidiana.

Cabe destacar que a organização deste capítulo baseou-se no trabalho


etnográfico desenvolvido dentro de um terreiro de umbanda da cidade de São Paulo,
o Instituto Ubiratan, durante o ano de 2008. Foram observadas nove giras, sendo
que uma delas era uma Festa de Exu e outra uma Festa de Ogum, com a descida
do orixá. Além disso, também acompanhamos, durante duas semanas, a preparação
para gira, isto é, a preparação do local e a feitura de todos os rituais que a
antecederam, bem como, em uma semana, presenciamos o trabalho após o término
da gira e a arrumação do espaço, isto é, a transformação do espaço, entendido
como algo móvel. Também utilizamos parte das entrevistas feitas com os
componentes do terreiro, de maneira a complementar o material que temos no
caderno de campo.

6.1 – Realizações de liberdade: estruturação da umbanda

Diferentemente da época da escravidão, quando era negado aos africanos e


aos afro-descendentes de tradição bantú expressar e vivenciar a sua religiosidade
343

de maneira explícita, durante o século XX, abriu-se a possibilidade de formação de


religiões institucionalizadas. A umbanda, derivando-se da macumba, começou a
tomar corpo, tendo como rito central a incorporação dos guias, que pode ser
entendido como uma ressignificação do culto aos antepassados. Ramos, citando
como exemplo o Pai Joaquim4, afirma:

... o que caracteriza a macumba de influência banto, não é o santo protetor,


mas um espírito familiar que, desde tempos imemoriais, surge
invariavelmente, encarnando-se na umbanda. (...) é o que acontece entre os
povos bantos, com o seu culto dos antepassados e deuses lares. 5

Já discutimos em outro trabalho6 a questão da mutabilidade umbandista,


mutabilidade, essa, que atravessa os terreiros e a sua dinâmica. Ao mesmo tempo,
apontamos que apesar das mudanças constantes na umbanda, o que fala sobre a
sua singularidade, também observamos que há alguns eixos comuns que a
caracteriza. São variados esses eixos, mas gostaríamos, para o presente trabalho,
de nos debruçarmos sobre quatro: o terreiro (espaço doméstico), a família-de-santo,
a organização em linhagens e a presença dos guias, que, como já dissemos, são
vistos como realizações de liberdade.

6.1.1 – Terreiro, o espaço doméstico

No capítulo terceiro, falamos a respeito das casas de zungú, espaços que


pertenciam as moradias de africanos e de afro-descendentes, que nos labirintos das
pequenas residências e, portanto, em lugares protegidos, reproduziam aspectos da
religiosidade bantú, tecendo novas significações e novos sentidos às sua práticas,
tornando-os espaços de sociabilidades. Tínhamos, ali, uma suspeita de que as
casas de zungú poderiam ter originado os terreiros de umbanda. Lembramos que O
zungú foi fruto da experiência cultural dos povos de raiz lingüística bantú, mas os
4
À guisa de esclarecimento, Pai Joaquim é um preto-velho bastante cultuado na umbanda. Os
pretos-velhos são espíritos de negros escravizados. Normalmente, como são idosos, sentam-se em
banquinhos para dar os passes e as consultas, além de terem um linguajar bastante peculiar. Pai
Joaquim quando “descem” no terreiro não incorpora em apenas um médium, mas normalmente em
vários, o que aponta para outro ponto de discussão, que é a questão da coletividade dos guias e a
possibilidade de um antepassado se fazer presente em vários descendentes através do nome, como
vimos no quinto capítulo.
5
Arthur RAMOS, O negro brasileiro, p. 104-105.
6
Cf. Brígida Carla MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanências.
344

escravizados de tradição mina ocuparam um papel de liderança, certamente porque


dominavam o código lingüístico bantú. A proto-nação bantú tinha no zungú uma face
importante. A função básica do zungú7 era recriar os laços comunais e ancestrais
rompidos com a violência da captura e o envio para o Brasil:

O zungú foi uma instituição cultural – entre muitas – que ajudaram os


africanos, escravos e livres, e depois os cativos brasileiros a suportarem as
mazelas de sua condição. Foi berço de uma resposta específica ao ambiente
urbano do amálgama chamado cultura escrava, tão conhecido no meio rural,
mas ainda tão lacunar no incipiente mundo citadino do século XIX brasileiro.8

Retornado aos terreiros de umbanda, Negrão9 já apontou que a grande


maioria dos terreiros de umbanda existentes em São Paulo está no mesmo espaço
da casa do dirigente, informação confirmada pelo pai-de-santo por nós entrevistado:

... como é morar no mesmo lugar que é o seu templo, onde você vive sua religião?
Olha, eu vou estabelecer duas coisas, né. Morar no mesmo lugar é, como eu
morava aqui antes era complicado. (...)
Por razão que não é fácil, né. As pessoas invadem, mexem nas suas coisas,
não tem muito respeito. Do lado como é agora eu acho maravilhoso. Tudo
muito prático, né, tudo muito fácil. Porque, não tem jeito, você é um
sacerdote, você é um sacerdote vinte e quatro horas. As pessoas, outro dia
quatro hora da manhã tinha gente ligando ai ...10

Algumas vezes, quando as condições espaciais e financeiras permitem, o


terreiro é separado da residência da casa, com entrada independente, em uma
edícula. Porém, grande parte das vezes, essa edícula possui um desconhecido
acesso àquela pessoa que chega pela primeira vez. Quando as condições não são

7
Tal como a umbanda, a presença de brancos e de imigrantes europeus retrata as transformações
étnicas e culturais que tinham lugar dentro das casas de zungú, elas ampliavam seu arco de clientes,
se tornando mais perigosas. “Com a metamorfose racial e étnica porque passava a Corte nestes
anos, o zungú perde um pouco sua natureza de espaço de exclusividade para a população negra,
aceitando tipos sociais das mais diversas origens e cores, refletindo o cadinho racial da virada do
seculo que era o Brasil” (Carlos Eugênio Líbano SOARES, Zungú,p. 95).
8
Ibid., p. 107.
9
Cf. Lísias Nogueira NEGRÃO, Entre a cruz e a encruzilhada.
10
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 07/06/08.
345

favoráveis, as giras, os passes e as consultas ocorrem na sala ou na cozinha, que


são transformados momentaneamente em um espaço de culto11. Ainda segundo ele:

... foi o próprio caboclo Ubiratan, né, quando ele percebeu que ia começar a
pender só pro candomblé, falou: então tá na hora e a gente começou. O
terreiro era ali, onde fica a assistência era a nossa sala, porque a gente
morava aqui.
Ah! Vocês moravam aqui?
A gente morava aqui, né, isso aqui não existia ainda, isso aqui foi feito depois,
a casa era ali, a cozinha e o banheiro. Aqui era o quintal.
Mas vocês moravam, mas aí tinha alguém que morava na frente?
É tinha outras pessoas e ali aquela porta não existia.
Ah! Entendi.
Então, o terreiro era nossa sala e tinha atrás da porta de entrada tinha um
congazinho, aquela prateleirinha de arame com a imagem de Ogum, o
caboclo Ubiratan e Oxalá. Isso era o terreiro.12

Outro ponto que merece destaque na formação dos terreiros é a ligação que o
grupo possui com o território, ou melhor, com a terra. De forma muito semelhante
aos grupos de tradição bantú, que, ainda hoje, cultuam os seus antepassados em
suas casas ou em seus territórios. Como os bantú, muitos umbandistas rendem
homenagem aos guias no espaço doméstico. Mesmo em terreiros que têm apenas a
função do terreiro, não sendo moradia, a apropriação do espaço é bastante peculiar,
porque não dizer pessoal. A relação com a terra também está ligada aos
fundamentos. Salvo espaços em que a propriedade é alugada, onde, às vezes, isto
não acontece, o fundamento ou o assentamento daquela casa deve ser enterrado de
maneira ritual, sendo que ali, além de estar a força espiritual do terreiro, também
está a ascendência do pai ou da mãe-de-santo. Não podemos pensar que, como os
bantú, os antepassados devem estar enterrados na propriedade onde vive a família?

11
Segundo Lísias Nogueira NEGRÃO, Entre a cruz e a encruzilhada, a mobilidade espacial do
terreiro não é apenas interna ao espaço doméstico, mas acompanha o pai-de-santo ou a mãe-de-
santo em suas mudanças domiciliares. Mesmo sendo um espaço religioso específico, na maioria das
vezes, ele é domiciliado no próprio endereço residencial. Alguns, apesar de estarem no mesmo
endereço, são bem instalados, não interferem na rotina doméstica, com entradas independentes e
todas as instalações necessárias ao seu funcionamento. O domicílio da maior parte do terreiro possui
um caráter efêmero e mutável. O espaço do terreiro tende a refletir a instabilidade e a precariedade
da vida das camadas sociais, onde os adeptos são recrutados. Os terreiros dependem das condições
existenciais dos seus chefes: os mais estáveis são aqueles que conseguiram formar um grupo mais
amplo de sustentação, normalmente parentes e grupos de amigos.
12
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 02/06/08.
346

Portanto, quando observamos um terreiro de umbanda, é possível constatar


que cada ponto do espaço é importante, efetiva ou potencialmente, principalmente,
porque na umbanda as entidades do mundo invisível se fazem presentes
concretamente na forma de guias e de orixás. Sua importância decorre de suas
próprias características, naturais ou sociais, preexistentes ou adquiridas, segundo
intervenções do grupo religioso. A religiosidade umbandista revelada pelo
dinamismo presente no terreiro está, exatamente, na transformação qualitativa e
quantitativa do espaço, aspecto que veremos adiante, deixando sua marca no
ambiente. O espaço, porém, não existe sem a ação de pessoas, o que nos leva a
abordar, agora, a idéia de família dentro da umbanda, seja ela biológica ou
adquirida, mas sempre chamada de família-de-santo.

6.1.2 – Família-de-santo

É comum dentro da umbanda, como já observamos, que o núcleo original do


terreiro seja formado por alguns membros da família do pai ou da mãe-de-santo. O
que notamos é que os terreiros se construíram e ainda se mantêm em função da
ligação entre os parentes. Não é incomum, por outro lado, encontrar várias famílias
nucleares compondo uma família-de-santo. O que se vê é que em vários terreiros o
núcleo extrapola o grupo familiar, mantendo-se como uma comunidade, constituindo
a família-de-santo. Tal fato nos remete à experiência familiar na África bantú, onde
há predominantemente a idéia de família extensa, muito mais do que família nuclear.
Além disso, a associação a uma família por pessoas que não têm relação
consangüínea não é um dado novo para as pessoas de tradição bantú.

Também podemos trabalhar com a idéia de que o modelo de agregação


familiar e de estabelecimento de relações familiares para além da família biológica
esteve presente no período da escravidão. Seja sobre a forma de irmandades13, que

13
Vale a citação de um trecho de uma das entrevistas realizadas com uma senhora afro-
descendente, cujos parentes freqüentavam as irmandades. É interessante notar a composição que
ela faz entre irmandades, umbanda e candomblé: “E, por exemplo, quando ela ia, quando a senhora era
criança bem pequena ela já era da Umbanda, como é que a mãe da senhora entra na Umbanda. Ela falou alguma
coisa sobre isso, como que foi? Porque a minha mãe veio de Minas, né, ela é mineira e eu acho que é
devido sei lá a influência dos meus avós, alguma coisa assim ela já conhecia, porque a minha tia, tia
avó que chamava até Benedita ela também ia então acho que ia, freqüentava a Igreja do Rosário
então já tinha aquela coisa de ir, como falo isso aí, tinha as Congadas, essas coisa de Minas elas já
eram dumas da irmandade Nossa Senhora do Rosário de Minas. Ah, lá em Minas... Lá em Minas,
então ela veio pra cá que tinha ela... O que a senhora acha, por exemplo, que a senhora está relacionando a
347

abarcavam devotos de um mesmo santo (antepassado ou ancestral comum), seja


através das relações de compadrio estabelecidas entre os escravizados14, aspectos
trabalhados no terceiro e no quarto capítulo.

Estruturada em cima da família do dirigente e da associação de outros grupos


familiares ou apenas de pessoas, há, muitas vezes, a manutenção de cultos
domésticos, ou seja, as entidades de cada terreiro de umbanda são entidades
daqueles que pertencem a casa. É verdade que a assistência, como membros da
umbanda, também tem sua relevância no culto, mas os serviços prestados a ela são
feitos pelas entidades que estão ligadas por linhagem aos integrantes da casa.

Tal fato nos lembra os cultos familiares dentro da tradição bantú. Além do Ser
Supremo, que pouco é cultuado, dentro dessa tradição o culto é prestado aos
espíritos familiares. Não causa espanto que os terreiros normalmente são formados
por pessoas de uma mesma família ou um grupo de amigos, que fica na casa do pai
ou da mãe-de-santo. Como culto aos antepassados, no caso, da família-de-santo,
que foi constituída no Brasil, é esperado que não se torne pública, pois os
antepassados de cada família e a forma como são cultuados varia de terreiro para
terreiro, dificultando, muitas vezes, uma generalização. Não seria este um dos
motivos pelos quais a umbanda tenha uma ação pouco proselitista?

A umbanda teve, então, a sua origem na organização daquilo que se


convencionou chamar família-de-santo. A família-de-santo foi a forma de
organização que estruturou os terreiros. Os africanos e os afro-descendentes
reuniam-se, estabelecendo vínculos baseados em laços de parentesco religioso.
Insistimos ainda que a umbanda cultua a linhagem dos integrantes do terreiro, o que
nos remete à discussão da linhagem na umbanda.

Igreja, a irmandade com a Umbanda, o que que tem de parecido na irmandade com a Umbanda? É assim,
porque geralmente tem uma irmandade, tem a de Nossa Senhora do Rosário, tem a Santa Ifigênia, aí
devido a isso eles já vão com aquelas influências de, dos antigo, aí ali você freqüenta o Candomblé,
você freqüenta a Umbanda dependo do seu ritmo o que você que segui. E a mãe da senhora falava pra
senhora quem eram os guias, os Preto-Velhos elas falavam sobre isso ou não? Geralmente comentava
porque, por exemplo, se você caia, você machucava, você não tinha aquele recurso que tem agora
de você corre pro hospital então você pedia pruma entidade, pedia prum santo. Não tem aquela
história de Santa Luzia você machucou qualquer coisa no olho vai busca Santa Luzia no seu
cavalinho, aí então você já vem com aquela influência, já de pequeno você entendeu. Caia um cisco
no olho você não vai corre faze, fazia o Sinal da Cruz você pedia pra Santa Luzia, você batia o pé e
assim vai”. R., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 26/07/08.
14
Cf. Regina Célia Lima XAVIER, Religiosidade e escravidão, século XIX.
348

6.1.3 - Linhagem

Ao estudarmos a tradição bantú, vimos que as pessoas estão inseridas dentro


de solidariedades. Temos a solidariedade horizontal, que se dá com a pessoa e a
comunidade da qual ela participa, no caso da umbanda a família-de-santo; e temos
a solidariedade vertical, que se dá entre a pessoa, a sua ascendência e a sua
descendência. No caso da descendência, quem se torna pai ou mãe-de-santo na
umbanda, com o tempo, passam a ter seus filhos e as suas filhas-de-santo,
construindo, portanto, a sua descendência. Quanto à ascendência, no caso da
umbanda, temos a estruturação em linhagens.

O culto umbandista foi organizado em cima da prática da caridade, com um


panteão brasileiro, subordinado aos orixás, disposto a partir de linhagens: “...
formado de espíritos que ajudam os humanos a resolver seus problemas, que são
os caboclos, pretos-velhos e outras categorias de mortais desencarnados”15. Todos
os mortos merecem respeito, mas são os mortos ilustres que estão colocados no
centro do culto: fundadores das antigas linhagens familiares16 e, mais precisamente,
os antepassados, que foram ressignificados e se tornaram os guias da umbanda.

15
Reginaldo PRANDI, Segredos guardados, p. 79.
16
Segundo Antônia Aparecida QUINTÃO, em Irmandades negras, a realização das festas religiosas
por parte das irmandades religiosas traduzia a preocupação da Igreja Católica em atrair os africanos
e os seus descendentes. Havia a aceitação dos seus costumes desde que pudesse adaptá-los ao
catolicismo, recebendo uma nova interpretação e um novo significado. É o caso da tradição africana
da sucessão hereditária dos reis, substituída nas irmandades pelo sistema eletivo. Os reis passaram
a ser eleitos pelos seus membros, o que lhes possibilitava maior obediência de seus súditos. No final
do século XVIII, as congadas, os batuques e as sambas ainda se realizavam pelas ruas da cidade. As
primeiras festas de coroação do Rei e da Rainha na Irmandade do Rosário eram monopolizadas
pelos angolanos, já que no compromisso da irmandade era determinada a que tradição os
concorrentes deveriam pertencer. Em um primeiro momento, pode-se dizer que predominou na
irmandade os bantú de Angola, já na segunda metade do século XIX predominou os bantú do Congo.
Os bantú, segundo a autora, foram os grupos que predominaram nas irmandades. Para ela, a
penetração do catolicismo foi mais eficaz no caso bantú, ligado ao culto aos antepassados e aos
mortos, facilmente rompida com a perda da linhagem. Já Marina de MELLO E SOUZA, em Reis
negros no Brasil escravista, versando sobre o mesmo tema, discorda de QUINTÃO, ao afirmar que
houve o estilhaçamento das relações familiares provocado pelo tráfico. Porém, os africanos e afro-
descendentes reconstruíram em novas bases laços fundamentais que uniam as pessoas, sendo a
ligação entre malungo, conforme visto no segundo capítulo, a primeira alternativa encontrada ainda
na travessia. A reunião de grupos de uma mesma etnia ou de regiões próximas, pertencentes a um
mesmo complexo social, foi outra alternativa encontrada, gerando uma forma de recriar afinidades
antes fundamentadas nas relações de parentesco. Formaram-se vínculos essenciais no processo de
redefinição de solidariedades, antes fundadas em relações de linhagens. Os grupos de procedência
podem ser considerados um substituto das linhagens entre as comunidades africanas no Novo
Mundo e a eleição dos reis como forma de recriar as estruturas sociais existentes nos lugares de
origem. O que mais uma vez gostaríamos de lembrar é a prática cultural que se mostrou significativa
para determinado grupo continuar a existir, mas a forma de expressá-la é que se modificou, como
estamos vendo ao longo do trabalho.
349

O que vemos, portanto, segundo Prandi, foi que a umbanda reconstitui


simbolicamente as estruturas societárias e familiares africanas: “... a identidade
sagrada não pôde mais ser baseada na idéia de que cada ser humano descende de
uma divindade através de uma linhagem biológica. Essa herança, (...) foi substituída
por uma concepção de linhagens mítico-espirituais”17. Há diversas origens
doutrinárias para os espíritos existentes na umbanda, conforme as diferentes
tradições que passaram a fazer parte dela ou que foram criadas dentro dela.

Segundo Orphanake18, é possível afirmar, então, que cada linha se subdivide


em falanges ou legiões. Um orixá é um espírito de luz própria, enquanto os outros
são apenas iluminados. A umbanda estabelece sete19 linhas na sua lei. Cada linha
se divide em sete falanges, sendo que cada falange se subdivide em sete
subfalanges e cada subfalange é ramificada em sete bandas. As bandas são
compostas por sete legiões, que se dividem em sete sub-legiões, que é formada,
cada uma, por sete povos. Uma linha é chefiada por um orixá maior de primeira
grandeza; a falange é liderada por um orixá intermediário de segunda vibração; uma
sub-falange por um orixá menor de terceira geração; uma banda é dirigida por um
guia; uma legião chefiada por um protetor pertencente à categoria de mentores de
quinta vibração; uma sub-legião por um protetor do sexto plano; e um povo por um
protetor mais próximo aos encarnados, pertencente à ordem da sétima vibração.

17
Reginaldo PRANDI, Segredos guardados, p. 166.
18
Cf. Edson ORPHANAKE, A umbanda às suas ordens.
19
Jean CHEVALIER; Alain GREENBRANT, em Dicionário dos símbolos, trabalham de maneira
extensa o simbolismo do sete em diversas culturas. Traremos o simbolismo do sete de maneira mais
genérica, bem como o simbolismo do sete na África. “Associado ao número quatro, que simboliza a
terra (com os seus quatro pontos cardeais) e o número três, que simboliza o céu, o sete representa a
totalidade do universo em movimento. (...) Na África, também, o sete é um símbolo de perfeição e
de unidade. Para os dogons, como o sete é a soma de 4, símbolo da feminilidade, com 3, símbolo da
masculinidade, ele representa a perfeição humana (GRIE). Os dogons consideram o número 7 o
símbolo da união dos contrários, da resolução do dualismo, portanto, símbolo de unicidade e, por
isso, de perfeição. Mas esta união dos contrários – que inclui a dos sexos – é também símbolo de
fecundação. Por essa razão, sendo o verbo análogo ao esperma como a orelha à vagina, para o
dogon, o número 7 é a insígnia do Senhor da Palavra, deus das novas chuvas, portanto, da
tempestade e dos ferreiros* (GRIE, GRIL). O sete, soma do 4 fêmea e do 3 macho, é também o
número da perfeição para os bambaras. O deus soberano, Faro, deus da água e do verbo, mora no
sétimo céu, com a água fecundadora que ele distribui sob a forma de chuva. É igualmente no sétimo
céu que o Sol cai, todas as noites, ao final do seu trajeto. A terra, como os céus, compreende sete
andares e as águas terrestres também são sete, assim como os metais. O sete é, ao mesmo tempo,
o número do homem e do princípio do universo. Como soma de 4 e 3, ele é o signo do homem
completo (com seus dois princípios espirituais de sexo diferente), do mundo completo, da criação
concluída, do crescimento da natureza. É também a expressão da Palavra Perfeita e, através dela, da
unidade original” (Ibid., p. 826-831).
350

Quando um guia encontra-se presente no terreiro e diz que pertence a


determinada linha, pode-se entender que ele representa um pequeno pedaço do
orixá ao qual está relacionado. Não é o mesmo espírito em todos os locais, são
várias pessoas ao mesmo tempo, adotando o título do seu orixá chefe de falange ou
banda a qual pertence. O espírito conserva o psiquismo, a aparência, a forma e a
imagem de sua última encarnação: “Acontece que cada entidade se situa numa faixa
diferente no plano vibratório espiritual e desse modo, cada um preside a parte astral
que lhe cabe no local, dentro da freqüência oscilatória que lhe é peculiar”20. A
umbanda, organizada a partir da idéia de linhagens, fala de um antepassado
comum, que podemos associar com o régulo, que depois vai se dividindo em outros
antepassados com caráter mais específico.

A linhagem a qual cada pai ou mãe-de-santo pertence nos remete à questão


do nome, não só o nome que é adotado pelo dirigente, mas também o nome dado
ao terreiro. Muitas vezes, o que encontramos são pais e mães-de-santo que adotam
como sobrenome o nome do orixá, além dos terreiros terem o nome do chefe
espiritual da casa, ou melhor, o nome do guia de frente daquele que é dirigente do
terreiro. No caso do trabalho de campo que realizamos, o terreiro é chamado de
Instituto Ubiratan, já citado anteriormente. O caboclo Ubiratan é o guia de frente do
pai-de-santo. Buscando uma associação com a importância do nome dentro da
tradição bantú, vale citar Langa:

Na verdade, o apelido identifica melhor um indivíduo do que o seu nome


próprio e o do pai. Pelo apelido fica-se a saber a tribo ou raça de um indivíduo
e localiza o mesmo indivíduo no espaço. Com efeito, recuando no tempo, as
raça humanas são localizáveis. (...)
No sistema africano tradicional, o apelido segue os mesmos princípios da
legalidade que o nome do pai e até, com maior rigor ainda, como se viu: o
nome do pai é omitível (há muitos que não ostentam o nome do pai) mas não
o apelido.21

A localidade, portanto, é definida pelo nome. Através dele é possível se


perceber a linhagem de alguém. No caso, o nome do terreiro define a linhagem do
local e também a linhagem da qual é proveniente o pai-de-santo. Tal como na África

20
Edson ORPHANAKE, A umbanda às suas ordens, p. 100.
21
Adriano LANGA, OFM, O nome na tradição africana, p. 29-30.
351

onde o sobrenome (apelido) fala sobre a história da linhagem, o nome da casa fala a
respeito da história dos guias que a integram aquela casa, muitas vezes, delimitando
a sua missão:

Ele mostrou o charuto dizendo que ele ia terminar esse charuto em casa e foi
o que ele fez. Aí ele falou: “Vocês podem se preparar porque vocês vão abrir
um terreiro”, falou assim. Quando ela me falou eu também não acreditei, mas
o homem mandou, nós fizemos. Até tava começando...
Mas antes de abrir o terreiro você já era pai-de-santo?
Não, eu não fui consagrado pai-de-santo, eu fui sendo feito pai-de-santo. Que
aí, como eu te falei, o que a gente abriu não era um terreiro, era um, a gente
começou a trabalhar em casa, vamos dizer assim, porque era uma
prateleirinha atrás da porta e ele começou a vir, amigos, conhecidos.
Então, a missão do Instituto Ubiratan é produzir, ensinar e utilizar o máximo e
o melhor possível de conhecimentos nas áreas de religião e de magia. Então,
você vê, o meu mestrado e o mestrado da Liliane estão inseridos nesse
conceito é um aprimoramento para o Instituto Ubiratan. Os cursos de magia
tão inseridos nesses conceitos, as vivências. O sítio, por exemplo, é a nossa
sede de campo.22

Também, tal fato se manteve presente durante a escravidão, pois ao


formularem o nome dos escravizados e ao participarem da constituição de suas
identidades, tais nomes podiam se relacionar com a lógica do traficante (atribuição
dos agentes colonizadores), como podiam ser assumidos pelos próprios
escravizados no Brasil, que recriavam sua identidade cultural. A adoção de um
sobrenome também foi algo importante, num processo no qual a recomposição do
nome próprio marcava o acesso à liberdade e à personalidade jurídica. A
constituição do nome trazia em si diversos significados sociais, políticos e culturais.
O nome e a identidade só podiam ser pensados em relação a uma estrutura de rede,
revelando-se a partir das experiências sociais dos escravizados e em relação ao
contexto histórico no qual se inscreviam suas ações. Para Xavier, era importante se
pensar como se construía uma identidade social entre os africanos e/ou seus
descendentes, baseada: “... na percepção das afinidades e das diferenças étnicas
entre os escravos, ou, ainda, a partir de uma cosmologia africana reconstruída e
partilhada, ressaltando-se o papel fundamental desempenhado pela religião”23.

22
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 02/06/08.
23
Regina Célia Lima XAVIER, Religiosidade e escravidão, século XIX, p. 29.
352

Portanto, a umbanda pode ser definida como um conjunto de crenças, de


mitos e de ritos, que regulam os vínculos de uma comunidade, a família-de-santo,
com os antepassados que atuam sobre ela e com os quais ela está ligada por um
parentesco simbólico, segundo as linhagens, que atuam em determinado território, o
terreiro. Na umbanda, esses antepassados são, no nosso entender, os guias.
Dedicaremos um tópico a parte para falarmos sobre eles, pois além de defini-los
também abordaremos duas linhas – pretos-velhos e caboclos. De qualquer forma, os
guias também são entendidos como realizações da liberdade.

6.2 – A questão dos antepassados ou os guias da umbanda: a


utopia de se estar ligado a alguém

A idéia de guia dentro da umbanda é fruto do entendimento do umbandista,


de que o mundo é constituído por um conjunto de espíritos, que estão em contínua
interação com os vivos e possuem uma dinâmica particular. Os vivos, espíritos
encarnados, e os mortos, espíritos desencarnados, dependem uns dos outros, assim
como ocorre na tradição bantú:

Que seriam os defuntos, os antepassados?


Defuntos, antepassados, exatamente, ia, então este ianquale é exatamente o
nome tradicional que se dá a cada indivíduo. Cada indivíduo tem o seu
ianquale.
Que aí seria a gente volta pro nome, mas aí não é o nome, o apelido é um outro nome.
O nome próprio da pessoa que me deu. Por exemplo, o meu caso diz que é
Nibembe.
E é o nome de antepassado do senhor?
Exatamente, que é ianquale, mas defunto do clã Tchauques, sim e são
defuntos durante este ianquale, esta criança e, agora se eu estiver aflito ou
sei lá, não sei se isto é, ou numa aflição tal eu posso, como é que eu posso
dizer: reverenciar este Nibembe que é o meu ianquale e pedindo que faça
chegar exatamente aqui aos defuntos que estes são os desconhecidos, mas
são, sabe-se que foram anteriores e esses estão próximos, então, de Deus.24

Dentro da umbanda, há espíritos atrasados e evoluídos. As aflições são


explicadas pela perseguição intencional ou não dos espíritos atrasados ou pela

24
T., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
353

necessidade de resgate de débitos passados. Há uma explicação, segundo a


tradição africana e a tradição kardecista, tendo como objetivo a interação com as
entidades, conforme as necessidades dos seres humanos. “A umbanda é uma
religião de espíritos humanos que um dia vieram na Terra, os guias. Embora se
reverenciem os orixás, são os guias que fazem o trabalho mágico, são eles os
responsáveis pela dinâmica das celebrações rituais”25.

O grupo das entidades é composto por classes de espíritos (linhas, correntes,


povos) que contém um indeterminado número de membros equivalentes para suas
determinações gerais. Encontram-se todos os estereótipos especificamente
umbandistas, embora haja vários provenientes do candomblé, cujas características
sofreram modificações (exus, pombas-giras e erês). Os traços constitutivos destas
classes de espíritos definem tipos dentro dos quais as diferenças são de grau de
atributos comuns (força, sabedoria, bondade, malignidade, dentre outros), atributos
secundários (territórios diferentes) ou nomes próprios. Qualquer espírito se constitui
de forma a assumir uma identidade. No caso das entidades, a diferenciação é dupla:
separa um espírito daqueles que são de um tipo diferente e o distingue dos seus
congêneres. O que opera numa gira pública são expressões de uma classe de
espíritos, ou seja, normalmente os espíritos que estão presentes em determinada
gira são da mesma linha: caboclos, pretos-velhos, baiano, boiadeiro, etc. Esta
situação só se modifica quando ocorre uma gira de afinidades, ou seja, cada
médium recebe o guia com o qual tem mais proximidade. Cada entidade não é,
assim, um significante livre, mas arrasta significações que são os lugares que ocupa
dentro cultura brasileira. A cultura popular e suas expressões formam o substrato
sobre o qual os guias se constituíram. As diferentes atribuições dos guias denotam
um corte com relação ao mundo da experiência cotidiana:

Um guia de umbanda ele é um ser humano desencarnado, porém


diferenciado no sentido, no sentido do valor, é um ser humano de muito valor,
uma pessoa que vale muito, entende? Eu expliquei, falei sobre isso, né. A
gente vê a todo o momento pessoas que sabe, brigam pelo que querem ser,
pelos seus ideais certos ou errados não importa, (...). Então começa daí o
guia ele é, não é um ser humano qualquer, ele é um ser humano que teve em
vida encarnado e continua tendo desencarnado porque não há grande
diferença, muito valor. Segundo é a especialização. Os guias são grandes

25
Reginaldo PRANDI, Segredos guardados, p. 81.
354

especialistas naquilo que fazem, detêm muito conhecimento, quando eu digo


muito é muito mesmo.26

Há diferenças marcantes entre orixás, guias e espíritos obsessores. Os orixás


são mitos que falam da criação do mundo natural, estando enraizados nas áreas
mais arcaicas do psiquismo e da história do mundo físico, o que torna possível
imaginá-los como arquétipos do inconsciente27. Os guias falam da criação de
determinado mundo cultural, pertencente às lembranças históricas relativas às
experiências vividas na sociedade brasileira. Os espíritos obsessores28 podem ser
considerados guias em potenciais, porém estão em um nível baixo de evolução,
ainda ligados à matéria e, por isso, buscam apropriar-se de outros corpos para
realizar seus desejos. Ambos (guias ou espíritos obsessores) podem ser
considerados antepassados ou defuntos dentro da tradição bantú:

Xi’kwembu é quando se trata de deuses, quer dizer, os mais velhos que são
considerados e também já falecidos, considera-se que estão próximos de
Xi’kwembu que é Deus. Portanto acredita-se nos xi’kwembu, que no
Xi’kwembu que é ente superior que governa o Xi’kwembu, por isso quando se
faz a cerimônia com o aquilo que bom, erradamente nós traduzimos missa
porque missa só pode ser na Igreja, mas porque muita das vezes, os
primeiros padres nossos aqui, traduziram erradamente que xi’kwembu, aliás,
missa era mhamba, mas que mhamba é dirigida, exatamente, a xi’kwembu,
para esse xi’kwembu fazerem chegar à preocupação dos seus, portanto
sucessores a Deus, sim. Então principalmente por causa disso sabe-se que
ver o Deus é sempre bom e tudo que é mal é de alguns swikwembu que
quando estão enfurecidos, quando estão, que não estão de acordo com
aquilo que é a vida dos seus familiares até podem provocar as maldades,
então estão ao serviço de demônio e é por isso que...29

26
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 16/04/08.
27
Arque - significa início, origem, causa e princípio, mas representa também a posição de um líder,
de uma soberania e de um governo; uma espécie de ‘dominante’. Tipo - significa batida e o que é
produzida por ela, o cunhar das moedas, figura, imagem, retrato, prefiguração, modelo, ordem,
norma. Transferido ao seu sentido mais moderno é amostra, forma básica, estrutura primária, algo
que jaz no ‘fundo’ de uma série de indivíduos ‘parecidos’, quer sejam seres humanos, animais ou
vegetais. Nessas noções está contida a idéia de ‘gravação’, pela repetição constante de experiências
típicas, assim como a referência às ‘energias’ e as ‘tendências’, que levam empiricamente à repetição
permanente das mesmas experiências e das mesmas formulações.
28
Segundo Nívio Ramos SALES, Rituais negros e caboclos, quando é dito que a pessoa está com
um encosto significa que algum espírito ou egun lhe está acompanhando ou fruindo as suas energias.
A regra é que o espírito deve ser afastado através de rituais, por exemplo, o ritual do sacodimento. A
umbanda procura doutrinar o espírito no sentido dele largar a matéria e encaminhá-lo para a prática
do bem. Quando não aceita a doutrinação, ele é preso ou amarrado através de algum ritual e
mandado de volta para o espaço ou lugar de origem, porque sendo um espírito rebelde é considerado
quiumba, ou espírito inferior, tendo como função prejudicar os indivíduos aqui na Terra.
29
T., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
355

O que observamos na formação da umbanda é que o culto aos espíritos, aos


guias ou aos defuntos ganhou feições locais dependentes de tradições míticas
enraizadas, como vimos no quinto capítulo, conforme a tradição local. Esta
tendência foi reforçada pela chegada do kardecismo, religião européia de transe, de
imediata e larga aceitação no Brasil30. Os guias se dividem em diferentes tipos
característicos, mas cada um deles, em particular, preserva sua individualidade,
variando qualitativa e quantitativamente de terreiro para terreiro.

Segundo Negrão31, cada um dos guias apresenta uma variedade muito


grande, tendo cada um deles as suas especificidades. O que se vê é que novas
classes de guias são produzidas em função de novas experiências vivenciais, que
geram novas necessidades culturais, que são determinadas pelas pessoas que
compõem aquele terreiro de umbanda em determinado momento:

O que podemos observar é que a mutabilidade simbólica da umbanda está


relacionada com as necessidades individuais dos membros do grupo. Há um
entendimento de que a evolução espiritual é um caminho individual, no qual
não é possível o direcionamento, já que, ao fazê-lo, aspectos importantes
para aquele indivíduo podem estar sendo colocados de lado. A umbanda
muda para satisfazer as necessidades de seus componentes.32

Trabalhamos com a idéia, portanto, de que os guias presentes na umbanda


surgem da necessidade cultural e psicológica das pessoas que nela se encontram,
no sentido de existir um reconhecimento de que aquele guia é um antepassado, o
que implica no acolhimento da mudança como um sentido da própria religião.

Rosa33 afirma que a umbanda nasceu da fusão entre indígenas, africanos e


afro-descendentes de tradição bantú. Ele denominou esta fusão de culto bantu-
ameríndio. Já Negrão34 fala sobre os primeiros cultos bantú, que formaram uma
amálgama de tradições mágicas, que cultuavam pretos-velhos, a figura do
escravizado, um antepassado étnico; e o caboclo, como um antepassado da terra.

30
Para saber mais a respeito da difusão do espiritismo no Brasil, ver a dissertação de mestrado de
Jeferson BETARELLO, Unir para difundir.
31
Lísias Nogueira NEGRÃO, A religiosidade do povo. Visão complexiva do problema, In: José J.
QUEIROZ, A religiosidade do povo.
32
Brígida Carla MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanências, p. 255.
33
Cf. Celso Alves ROSA (Decelso), Umbanda para todos.
34
Lísias Nogueira NEGRÃO, A religiosidade do povo. Visão complexiva do problema, In: José J.
QUEIROZ, A religiosidade do povo.
356

Já Prandi35 entende que até os anos trinta, as religiões afro-brasileiras poderiam ser
incluídas na categoria de religiões étnicas ou de preservação de patrimônios
culturais dos antigos escravizados e de seus descendentes, enfim, religiões que
mantinham vivas tradições de origens africanas. Com a umbanda iniciou-se um
processo de valorização dos elementos nacionais, como o caboclo e o preto-velho,
que são espíritos de índios e de escravizados. A umbanda retrabalhou elementos
religiosos incorporados à cultura brasileira. Concone afirma que os tipos existentes
na umbanda são retirados da realidade nacional, transformando em símbolos figuras
do cotidiano popular e buscando, a seu modo, o seu significado mais profundo. As
figuras-chave são os caboclos e os pretos-velhos, de um lado, e os exus e as
pomba-giras, de outro. A umbanda coloca em ação tipos que correspondem a
símbolos populares, interpretados segundo cada segmento social que dela participa.
“As duas primeiras figuras míticas (tipos) mencionadas (caboclos e pretos-velhos),
correspondem a uma dimensão propriamente mítica da sociedade, na medida em
que são mitos e símbolos fundantes da brasilidade (...)”36. As figuras míticas da
umbanda são buscadas nas camadas populares, subalternas e dominadas. Para
ela, ainda, os tipos passam por um duplo processo de mitificação e de
representação de símbolos vivos de atividades e, sobretudo, de qualidades
consideradas definidoras da brasilidade. A riqueza dos tipos corresponde à
sensibilidade da umbanda aos movimentos da sociedade brasileira, sendo as suas
figuras símbolos de movimentos desta mesma sociedade. Portanto, para ela, há a
possibilidade de se fazer o resgate da memória popular da escravidão através das
histórias dos guias e também dos pontos cantados. As histórias de preto-velho
parecem ter, pelo menos na umbanda paulista, um pano de fundo histórico mais
presente que as de caboclo. Os caboclos foram tomados no Brasil pelos africanos e
pelos afro-descendentes de tradição bantú como sendo os verdadeiros ancestrais da
terra. Os caboclos substituíram, no culto, os antigos ancestrais africanos, perdidos
na diáspora. Fazemos a ressalva de que o que se perdeu na diáspora não foi o
culto, mas a família africana e os antepassados ligados à ela e à terra, da maneira
como existia na África.

35
Reginaldo PRANDI, Referências sociais das religiões afro-brasileiras: sincretismo, branqueamento,
africanização, In: Carlos CAROSO; Jeferson BACELAR (org.), Faces da tradição afro-brasileira.
36
Maria Helena Villas Boas CONCONE, Caboclos e pretos-velhos da umbanda, In: Reginaldo
PRANDI (org.), Encantaria brasileira, p. 284. A autora faz um quadro bastante interessante a respeito
das oposições entre a figura do preto-velho e do caboclo nas páginas 286-289, mesmo que de modo
generalizantes.
357

No fundo, o que se acolhe é a questão dos antepassados, ou seja, a cada


novo grupo que se apresentou dentro da umbanda, fez-se necessário o surgimento
de um tipo que permitisse o seu culto, enquanto um culto aos antepassados. A
seguir apresentaremos duas classes de guias que estão presente, como já
dissemos, desde a origem da umbanda. Queremos, com isto, justificar estas
linhagens e outras que vão se colocando ao longo do tempo na umbanda, como os
antepassados das pessoas que são adeptas desta religião.

6.2.1 – Os pretos-velhos

Começaremos falando sobre os pretos-velhos, pois nos parece que a


constituição desta figura possui certa concordância entre os autores que falam sobre
ela, além de estar clara a sua existência histórica, se assim podemos dizer.
Apresentaremos os pretos-velhos segundo a visão da academia, dos autores
umbandistas e, por fim, das pessoas que foram entrevistadas.

Para Trindade, a construção da entidade mítica preto-velho deu-se no período


do pós-abolição, tendo como objetivo evocar a memória da escravidão:

Os negros mortos durante o período escravocrata integram a categoria de


espíritos ao comporem a expressão significativa de um tempo histórico que se
tornou mítico. (...) as estórias de vida dos pretos-velhos são transmitidas aos
seus adeptos, reavivando na memória coletiva a história dos negros e da
escravidão.37

Parece que para Trindade, os pretos-velhos são criados com o objetivo de


não ficar no esquecimento as vivências da escravidão. Esta figura teria a função de
não deixar morrer a lembrança da violência e do esfacelamento experimentado
durante a escravidão, o que nos relembra a esperança que é construída em uma
realidade concreta. Esquecer, talvez, não dimensionasse o projeto utópico.

Negrão já entende que eles são aqueles que foram submetidos ao sistema e,
logo, cristianizados (falam de Jesus, rezam e benzem), além de moralizados e de
dignificados. Ainda para ele, os pretos-velhos se apresentam como velhos e
cansados, chegam curvados pelo peso dos anos, sentando-se em seus banquinhos.

37
Liana TRINDADE, Construções míticas e história, p. 188.
358

São espíritos de negros escravizados e reconhecidos como fundadores da


umbanda. São calmos, pacíficos, meigos, tranqüilizam os clientes, apaziguando
seus ânimos contra desafetos, benzendo-os e os abençoando. Promovem curas.
Têm duas afinidades antagônicas: com as almas e com as crianças. Os clientes têm
respeito por eles, mas com afeto, sem resquício de temor. Tal fato nos remete,
muitas vezes, a presença das irmandades negras durante o período colonial e a
necessidade de vê-las em seu aspecto dialético, aspecto que, muitas vezes, passa
desapercebido quando se fala a respeito dos pretos-velhos. Conforme coloca um de
nossos entrevistados:

Preto-velho. Você tava falando a respeito da submissão...


Então, imagem, não a resposta direta, mas até um certo ponto, tá. Eu nunca
vi preto-velho como submisso. O vô Pedro, por exemplo, de bonzinho não
tem nada. Ele é, ele é tranqüilo até um certo ponto, enquanto não influencie
no andamento do trabalho, da missão dele. Uma vez, por exemplo, no terreiro
de mãe Cleide tinha um dirigente, o pai dela, era um organizador do evento
assim. Ele deve ser, deve tá vivo ainda, espírita kardecão daqueles, então
tem toda aquela, aquela burocracia espírita, então tem toda aquela burocracia
espírita, a coisa tem que andar meio em ritmo de linha de produção e o preto-
velho, foi um caso que ficou na memória, o preto-velho, vô Pedro que trabalha
comigo ele tava atendendo um caso de câncer, uma coisa super difícil assim,
né, de trabalhar e passou um pouco do tempo dele que eles estipularam pro
geralzão e o cara ficava lá: não, não tem que encerrar, tem que encerrar.
Falou uma vez ele tudo bem, falou duas, tudo bem na terceira ele chegou pro
dirigente e falou: “Você vai curar o câncer dela? Não. Então me deixa
trabalhar”. Sabe pro preto-velho chegar num ponto desse não é muito
comum, mas eles fazem.38

Já os autores umbandistas afirmam, como Felix39, que na sua grande maioria


são espíritos africanos que sofreram em sua encarnação terrestre e possuem muita
luz e adiantamento. Foram escravizados e tiveram uma vida humilde e simplória,
mas, isto, na última encarnação, já que são espíritos que viveram milhares de anos.
Embora humildes, sabem desculpar as fraquezas humanas, estando prontos a fazer
a caridade aqueles que necessitem do seu trabalho. Eles dão conselhos e também
promovem curas. Dão proteção e caridade a todos que sofrem. Os pretos-velhos
atingiram um alto grau de merecimento, porque sofreram nas suas diversas vindas à
Terra. Foram recompensados pelo Pai, que lhes permitiu não mais reencarnarem,

38
C., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, São Paulo, 16/04/08.
39
Cf. Cândido Emanuel FELIX, A cartilha da umbanda.
359

dando-lhes a graça de fazerem parte das linhas da umbanda e poderem aliviar os


sofrimentos de todos aqueles que recorrem a elas:

Tendo em vista o grande número de escravos que foram barbaramente


arrancados de sua terra de origem, isto é, a África, e dominados pelos
chamados colonizadores, muitos desses escravos eram mestres, tanto na
magia negra como na branca. Como conhecedores profundos das duas
magias em questão, e caminhando sempre ao nosso lado até os dias
presentes no Planeta Terra, eles trouxeram todos os conhecimentos
espirituais que lhes haviam de servir mais tarde, nos seus dias atormentados
de cativeiro, como meio de defesa contra os senhores que os dominavam
como mestres de escravos, pois que estes senhores ignoravam por completo
os grandes poderes extra-terrenos que possuíam esses escravos. 40

Moram no reino de Aruanda, do outro lado do oceano, para onde retornaram


em espírito para viver junto de seus orixás, voduns41 e inquices42. Quando escutam
os cânticos nos terreiros vêm visitar os seus netos. Têm como lição que o valor de
um indivíduo deve ser apresentado por seus atos e não por sua aparência. “Assim é
que esses grandes guias não são reis nem mestres, mas pais, tios, tias, vovôs e
vovós”43. São integradas pelos vovôs e pais africanos ou negros brasileiros
desencarnados do tempo da escravidão. Vestem-se com simplicidade, usam branco
e preto, fumam cachimbo e gostam de café. Um rosário e uma bengala costumam
ser seus acessórios preferidos. Como fazem parte das almas bem-aventuradas, sua
saudação é: Adorei as almas!. A linha dos pretos-velhos é chamada Linha das
Almas, Iorimá ou Linha Africana. É constituída por espíritos de grande grau de
desenvolvimento, conhecedores dos segredos da magia e que empregam seu saber
na prática da caridade. São conselheiros, protetores e curadores. Manifestam-se em
estilo próprio e se portam de maneira característica, atendendo a uma situação
lógica e racional. Seus ensinamentos possuem um fundo moral e grande
inteligência, baseados no evangelho de Oxalá. Têm sabedoria imensa. As giras são
de grande sentido, destinadas às consultas, às curas, aos passes magnéticos, às

40
Cândido Emanuel FELIX, A cartilha da umbanda, p. 77-78.
41
Segundo Olga G. CACCIATORE, Dicionário de cultos afro-brasileiros, p. 247: “Vodun Também dito
vodu. Nome genérico das divindades jejes, correspondendo a orixá do nagô. F. p. – ewe ou dialeto:
“vodu”.
42
Segundo Nei LOPES, Novo dicionário banto do Brasil, p. 118: “INQUICE, s.m. Divindade dos cultos
de origem banta correspondente ao orixá nagô (BH) – Do quicongo nkisi, nkixi, entidade sobrenatural;
ídolo, fetiche.
43
PALLAS, Cantigas de umbanda e de candomblé, p. 189.
360

descargas e à defumação. Para tanto, usam cachimbo, fumo, vela, água, flores,
marafa. “São as engiras mais praticadas, constituindo ao lado das de caboclo e das
de exus, a base de toda a Umbanda”44.

Quando olhamos para aquilo que falam os autores de dentro da umbanda,


notamos que os pretos-velhos não são construções míticas, como sugere a
academia, mas pessoas que tiveram uma existência terrena, sendo que na sua
última encarnação viveram como escravizados no Brasil. Chama a atenção também
o fato deles corresponderem à Linha das Almas, portanto as almas que ressoam nas
pessoas de tradição bantú e moram em Aruanda45, no outro lado do oceano.
Estamos vendo, mais uma vez, a travessia do Kalunga grande. Mais uma vez, a
travessia do mar serve como a passagem do mundo visível para o mundo invisível.
Como os pretos-velhos viveram no Brasil, o mundo invisível situa-se além do
oceano, como forma de marcar esta passagem, conforme visto no segundo capítulo.
Vemos também colocada a idéia dos pretos-velhos como antepassados, ou seja, a
linha dos pretos-velhos é integrada por vovôs e vovós, papais e mamães, titios e
titias dos africanos e dos afro-descendentes que morreram na escravidão. Chega-se
até a se fazer uma diferenciação entre ancestrais (orixás) e antepassados.

Quando perguntamos aos adeptos da umbanda a respeito dos pretos-velhos,


obtivemos a seguinte resposta de uma senhora afro-descendente:

Mas assim no sentido como é que a senhora sente, quem são os guias enfim, quem são
eles pra senhora?
Olha, o preto-velho eu acho que eu me identifico sabe com aquele lá do como
que ele fosse o meu avô você entendeu, que meu avô era, ele morreu bem
velhinho e minha mãe cuidava dele. Quando ele tocava bandeon, então meu
avô ele gostava de canta músicas de São Benedito, essas coisas então eu
me identifico, eu acho que sabe como se fosse um preto-velho, fosse meu
avô você entendeu, eu vejo nele a mesma coisa entendeu, quando eu vou e é

44
Edson ORPHANAKE, A umbanda às suas ordens, p. 88.
45
Segundo Olga Gudolle CACCIATORE, Dicionário de cultos afro-brasileiros, p. 53: “Aruanda Céu,
lugar onde moram os orixás e as entidades superiores, para os adeptos dos cultos afro-brasileiros.
F.p. – corr. de Luanda, capital de Angola, ou de Ruanda, região da África bântu”. Nei LOPES, em
Novo dicionário banto do Brasil, p. 32: “ARUANDA, s.f. Morada mítica dos orixás e entidades
superiores da Umbanda (OC) – De Luanda, topônimo [‘ARUANDA, forma toponímica feminina através
da qual a memória coletiva do negro brasileiro teria conservado a reminiscência de São Paulo de
Luanda, capital de Angola, porto africano do tráfico de escravos (...). Com o tempo, deixou de
designar o porto de Angola, para se transformar em lugar utópico, passando, como utopia, a abranger
toda a África: pátria distante, paraíso da liberdade perdida, terra da promissão” – Encicl. Delta-
Larousse, 1970].
361

uma preta-velha e eu me identifico como que eles são da minha família


entendeu..46

Já uma moça, que não é afro-descendente, respondeu o seguinte:

É, quem teriam sido eles?


Muitos foram escravos efetivamente no Brasil, no Brasil principalmente, tá.
Muitos, o vô Pedro, cê você perguntar ele conta histórias de escravidão, ele
conta histórias de senzala, ele conta, alguns contam, nem todos foram.
Outros podem ter sido escravos em algumas vidas. Quantos escravos não
tiveram de diferente inclusive, diferentes. Os judeus foram escravos dos
egípcios, né. As tribos, quantas tribos foram escravos de outra. Então, de
alguma forma eu acho, de alguma forma que existe alguma vivência daquele
ser a alguma vida ligada a escravidão, tá. Pra que? Pra que ele possa passar
pras pessoas também o quanto é ruim você querer subjulgar o outro, né, de
diferentes formas.47

Se olharmos com os olhos da umbanda, podemos entender que os pretos-


velhos não são construções racionais feitas por pessoas, mas há uma crença de que
eles foram pessoas que viveram no Brasil durante a escravidão, pelo menos na sua
última encarnação. A ampliação que é feita pela moça faz com que levantemos a
hipótese de que a ampliação para outros povos permite a sua identificação e, além
disso, chega a alguns atributos que estão presentes em um substrato cultural
comum. Render-lhes culto é recordá-los e os reverenciar. Tal fato nos permite
entender o motivo pelo qual algumas figuras tornam-se menos cultuadas, chegando
até a se fundirem com outras linhas, enquanto outras passam a compor as figuras
recordadas, como os caboclos.

6.2.2 – Os caboclos

Os caboclos são entidades, que para o propósito desta pesquisa, mostram-se


bastante complexas. Seguiremos o mesmo caminho – obras acadêmicas, teologia
umbandista e adeptos - que trilhamos com os pretos-velhos, para, ao final,
apresentarmos as nossas idéias.

46
A., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 26/07/08.
47
L., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 20/06/08.
362

Santos48 afirma que trabalhos apontam para a inserção do caboclo no


universo afro-baiano correspondente ao período do Romantismo, quando o indígena
foi eleito como símbolo nacional. Podemos ampliar esta afirmação para os cultos
afro-brasileiros. Para o autor, a representação indígena nos cultos afro-brasileiros já
seria manifestada antes deste período. O caboclo é visto como alguém que depois
de sua morte se encantou, ou seja, tornou-se um espírito. Há os que definem o
caboclo como espírito de índios brasileiros presentes tanto na umbanda quanto no
candomblé. No caso da umbanda, com a ênfase do kardecismo, os caboclos são
vistos como entidades de luz. Baseado em Landes49, o autor trabalha com a idéia de
que uma das origens da presença do caboclo se encontra na prática dos povos de
origem bantú de cultuar os ancestrais e os antigos donos da terra. A entidade
caboclo pode, então, ser definida como um espírito, como a alma de um morto. Para
ele, é possível entender a definição do caboclo como o dono da terra, espelhando
esse complexo de entidades emolduradas na categoria caboclo. A idéia dos
caboclos nos candomblés de caboclo, que originaram a umbanda, para ele, deu-se
por um aprofundamento dos africanos e dos afro-descendentes de tradição bantú
nos cultos dos índios. Entre os bantú, sabemos que o culto aos antepassados atinge
um grau de sacralização e os ancestrais são identificados como donos da terra.

Concordando com esta idéia, Trindade define o culto aos caboclos como uma
prática bantú de reverência aos antepassados, no caso, da terra, onde os bantú se
estabeleceram. Os caboclos são concebidos como legítimos antepassados da terra
brasileira: “Adquirindo a qualidade de espírito, na proporção que constitui uma
categoria social consagrada na memória coletiva das camadas populares, os
caboclos possuem, como os demais espíritos da tradição banto, qualidades sociais e
da natureza”50.

Segundo Prandi, Vallado e Souza, os caboclos caracterizam-se pela


comunicação verbal e pela proximidade de contato com o público que freqüenta os
terreiros. Brincam, entoam cantigas e tiram as pessoas para dançar. Têm um grande
poder de cura, sabedoria e disposição para ajudar os necessitados. Conhecem
profundamente o segredo das matas, podendo receitar com eficácia folhas para
remédios e banhos medicinais. No imaginário popular, o caboclo é valente,

48
Cf. Jocélio Teles dos SANTOS, O dono da terra.
49
Cf. Ruth LANDES, A cidade das mulheres.
50
Liana TRINDADE, Construções míticas e história, p. 187. (O grifo é nosso)
363

destemido, brincalhão, altruísta e capaz de ajudar para aliviar as aflições cotidianas.


Os caboclos são considerados filhos dos orixás:

Os caboclos são espíritos dos antigos índios que povoavam o território


brasileiro, os antigos caboclos, eleitos pelos escravos bantos como os
verdadeiros ancestrais em terras nativas. São espíritos, não deuses. São
eguns, na linguagem do candomblé nagô.51

Já para Negrão52, são espíritos de índios, não de descendentes mestiços,


mas dos próprios, portanto, anteriores à colonização. Apresentam-se altaneiros,
dando gritos de guerra e gesticulando, como se lançassem suas flechas. Sua
imagem tende a ser do bom selvagem romantizado, belo, puro, nobre e arrojado.
Auxiliam os clientes na solução de seus problemas, não recusam ninguém, em
nenhum caso. Possuem distanciamento de valores materiais, atendendo sem cobrar
os presentes. Apesar de bons, não são necessariamente pacíficos, podendo ser
guerreiros. Também promovem procedimentos mágicos. São espíritos de chefes de
aldeias ou de tribos. São sérios e francos no trato com a clientela. São tratados com
respeito e temor. São bastante elevados espiritual e moralmente. O caboclo é
valorizado dentro do imaginário umbandista, portanto, para o autor, a história dos
encontros étnicos e culturais está na base das construções míticas umbandistas.

Segundo os autores trabalhados, os caboclos são espíritos de índios, mas


podem ser mais abrangentes, incluindo uma classe de espíritos, com as quais
possuem afinidades. A presença dos caboclos na umbanda deu-se,
fundamentalmente, pelo fato dos africanos e dos africanos de tradição bantú
cultuarem aqueles que são os verdadeiros ancestrais da terra. Porém, como afirma
o mesmo Negrão53, que é um dos únicos autores que não faz esta afirmação, o
imaginário umbandista e as construções míticas têm como base os encontros
étnicos e culturais. Assim sendo, temos que trabalhar com a idéia de que além da
tradição bantú na formação da umbanda, havia pessoas pertencentes a outras
tradições: a tradição indígena ou, talvez, pessoas já hibridizadas. Sabemos também
que no período de formação da umbanda a grande maioria da população
51
Reginaldo PRANDI; Armando VALLADO; André Ricardo de SOUZA, Candomblé de caboclo em
São Paulo, In: Reginaldo PRANDI (org.), Encantaria brasileira, p. 125.
52
Cf. Lísias Nogueira NEGRÃO, Entre a cruz e a encruzilhada.
53
Cf. Ibid.
364

pertencente à tradição bantú era formada por afro-descendentes e não por


africanos, como vimos no quarto capítulo. Assim, essa tradição também estava
modificada. Vejamos, pois, o que nos falam as obras umbandistas.

Segundo Felix54, os caboclos são espíritos de muita luz, muito prestativos e


que sabem quando e como agir com eficiência, estando sempre prontos a socorrer
os que a eles recorrem, praticando a caridade e aliviando aqueles que sofreram
influências espirituais negativas. Normalmente, encontram-se nas linhas de Oxóssi e
de Xangô, sendo espíritos com muita força e muito iluminados. Na última
encarnação, muitos caboclos foram caciques ou morubixabas, enquanto outros
foram pajés e muitos deles foram guerreiros. Muitos desencarnaram na África, antes
do descobrimento do Brasil, enquanto outros na época do Brasil Colônia.

No livro Cantigas de umbanda e de candomblé55, os caboclos são vistos


como espíritos dos nossos índios, os mais antigos donos dessa terra, terra, essa,
que é hoje o Brasil. Os caboclos se dividem em várias nações: aimorés, tupis,
tamoios, guaranis, dentre outras. Cada uma é caracterizada por uma combinação de
cores. Conforme o seu local de moradia, as legiões de caboclos e de caboclas
pertencem a uma linha de umbanda diferente. Os caboclos conhecem os segredos
das forças da natureza. Sabem como descarregar um ambiente cheio de energias
nocivas e como curar uma pessoa atingida por males físicos ou espirituais, usando
as energias benéficas que nos cercam e o seu próprio poder espiritual. A ferramenta
dos caboclos é o arco e a flecha e sua saudação é Oquê!.

Já Orphanake56 diz que os caboclos referem-se aos índios que viveram no


Brasil antes e depois de sua descoberta. Geralmente, o caboclo foi pajé ou cacique
de sua tribo. São guerreiros valentes, constituindo o braço forte da umbanda. As
giras são procedidas com índios e caboclos (mestiços) de nossas matas,
destinando-se a trabalhos de desenvolvimento de mediunidade, de demandas, de
descargas, de transportes e de defumação em geral. São usados charutos, pemba,
arco, flecha, tacape, velas, penachos e cocares. São entidades enérgicas, fortes,
valentes e, até, autoritárias.

54
Cf. Cândido Emanuel FELIX, A cartilha da umbanda..
55
Cf. PALLAS, Cantigas de umbanda e de candomblé.
56
Cf. Edson ORPHANAKE, A umbanda às suas ordens.
365

Os caboclos são vistos pelos umbandistas como espíritos de índios, sendo


que se chega a encontrar espíritos de diversas tribos, muitas vezes de guerreiros, de
caciques ou de pajés. De preferência, alguém que foi um modelo para a sua tribo.
Notamos que, como acontece dentro da tradição bantú, aquele que se torna um
antepassado tem que ter tido uma vida modelar, ter sido um modelo a ser seguido,
conforme visto no primeiro capítulo.

No caso dos adeptos, temos a seguinte fala:

E no caso dos caboclos, quem foram eles quando eles estavam em Terra?
Olha, eu acho, na minha concepção, o caboclo foi as primeira pessoas que
tiveram na Terra. Os índios, vamo supor, não que todo caboclo tenha que se
um índio, mas os caboclos seria os primeiros habitante da Terra. Que cê vê
que na parte indígena eles sofreram muito também, eles não se escravizaram
como os negros, mas o índio foi tudo e do índio foi tomada, quer dizê se você
vê um índio andando aí pela Praça da Sé, à vontade como ele fica na aldeia
num fica, que que foi isso, num seria também uma parte eles não se deixaram
escraviza, mas foram extinto. Então, eu vejo isso, eu vejo o Caboclo seria não
só o índio matuto aquela pessoa que cê tem a sua terrinha lá no fim do
mundo, tá lá numa boa, o outro chega - não aqui vai se construída uma
hidrelétrica, vai se construída num sei o quê, então ranca a pessoa dali sso.
Por que que a senhora acha que na umbanda se cultua, (...) preto-velho e caboclo?
Porque é uma, uma origem de pessoas que em outro, em outra religião eles
não tiveram espaço e não deixa de se um espírito também cê entendeu, que
eles não foram reconhecido. (...) A umbanda é aquela que abraçou deu o
caminho pra você, se tem uma religião você confia nela, você tem os
segmentos, eu acho que o que mais manda na umbanda é a fé.57

Outro entrevistado falou o seguinte:

E no caso dos Caboclos, quem são os Caboclos?


Os caboclos acho que, no meu caso, pode ser mesmo assim o guia assim de
frente né, porque os caboclos, se você puder assim na história de Brasil, era
aqueles, os verdadeiros donos da terra né, aqueles que eram os donos, que
sabiam todo o conhecimento da terra, das plantas, tudo o que a terra tinha
pra oferecer, o que quê você podia fazer o que não podia, mas, até o, o
segundo, o meu Caboclo que eu já escutei assim o nome dele, mas não
tenho certeza (...) é o nome que ele quer dar, é o estereótipo dele. 58

57
R., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 26/07/09.
58
D., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 19/07/2008.
366

Agora se trabalhamos com a idéia de que os caboclos são antepassados,


eles seriam antepassados de que grupo existente no Brasil? Por um lado, no
trabalho de campo realizado em Maputo não encontramos nenhum tipo de culto
dedicado a uma entidade ligada à terra. Vimos, sim, um culto aos antepassados, aos
familiares mortos, que possui uma relação visceral com o território. Estamos
querendo dizer que há culto ligado à terra em Maputo, se antes há um antepassado
(familiar) a ser cultuado. A terra, apenas, não seria suficiente. Em contrapartida,
Boucher estudando os povos achewa, em Angola, observou dois tipos de espíritos
claramente definidos: os espíritos familiares, que correspondem aqueles que
encontramos em Maputo, e os espíritos territoriais, já que: “... a influência deles é
sentida sobre um vasto território, mas bem delimitado. Estes mostram-se afastando
a fome ou, ao contrário, trazendo desastres”59.

Agora se trabalhamos com a idéia de que a tradição bantú foi afetada já na


África desde o século XV, não podemos imaginar que uma tradição tenha se
mantido a mesma desde então. Além disso, sabemos que a constituição da
umbanda foi feita por africanos e por afro-descendentes de tradição bantú, mas que
já haviam se misturado com outros grupos, como, por exemplo, os indígenas. Ainda
segundo Brumana e Martinez60, as entidades da umbanda vão se formando para
responder às necessidades daqueles que vão entrando nesta religião. Estamos
trabalhando com a idéia de que a presença dos caboclos na umbanda mais do que
responder ao culto aos antepassados da terra, ou seja, pessoas que eram
responsáveis por um vasto território, provavelmente os indígenas no Brasil, antes da
chegada os colonizadores, corresponde também aos antepassados da população
indígena, que fizeram parte da constituição da umbanda.

O retorno às origens ou aos primeiros habitantes do Brasil também pode se


dar pelo fato da tradição bantú ser eminentemente acolhedora, sendo a
hospitalidade uma de suas principais características. A umbanda, como a tradição
bantú, abriu espaço para o culto daqueles que foram negados e reprimidos pelos

59
M.Afr. C. BOUCHER, The ancestors in the bantu view, In: CENTRO DE FORMAÇÃO DE NAZARÉ,
Os antepassados e sua veneração, p. 56. (Tradução nossa)
60
É bastante interessante notar que a presença indígena dentro da umbanda se faz cada vez mais
presente em São Paulo. Em outros estados do Brasil, onde o processo de urbanização e de
industrialização não foi tão intenso e acelerado, como na Paraíba, a umbanda se constituiu mesclada
com a jurema. Já em São Paulo, é cada vez maior a presença, nos rituais de umbanda, do chá do
Santo Daime e até a formação de cultos como o umbandaime, no qual se hibridiza a umbanda com
elementos de caráter eminentemente indígena.
367

colonizadores. É nítida a necessidade de trabalharmos um pouco mais a influência e


a presença da população indígena dentro da umbanda, aspecto que não nos
deteremos neste trabalho. A umbanda, portanto, não é mais uma celebração
africana, mas uma celebração das tradições presentes na sociedade brasileira e dos
grupos que a constitui. Os caboclos podem ser considerados antepassados da
população indígena que são cultuados dentro de significantes da tradição bantú, no
caso através dos antepassados familiares – pretos-velhos, caboclos, dentre outros -
e daqueles ligados a amplos territórios - caboclos. Assim, como forma de
entendermos concretamente a umbanda, apresentaremos um terreiro com seus
símbolos e seus rituais, buscando fazer a aproximação com os elementos bantú.

6.3 – A história de uma casa: o Instituto Ubiratan

O Instituto Ubiratan encontra-se no bairro do Tatuapé, zona leste de São


Paulo. O nome do instituto foi dado em função do chefe espiritual do terreiro, o
caboclo Ubiratan, que é o guia chefe do pai-de-santo. Fica na edícula da casa do pai
e da mãe-de-santo do terreiro, que são casados. O terreno da casa é de 6X40
metros quadrados, formado por vários espaços não necessariamente ligados, sendo
que a entrada do terreiro é independente da entrada da casa da família. O único
sinal indicativo de que ali existe um terreiro de umbanda é uma placa que se
encontra na frente da casa. Além de um espaço onde acontecem os trabalhos de
umbanda, o Instituto Ubiratan também é um local onde são ministrados cursos, que
podem ter ou não relação com a umbanda.

Figura 9 – Placa na frente da casa


Fonte: Arquivo Pessoal
368

Ainda, logo no portão de entrada, quando é dia de gira, existe uma oferenda
para Exu, no caso para um Exu guia, um antepassado, que guarda o portão da
residência61, como uma forma de proteção. Podemos observar que a oferenda é
composta por uma vela62 das cores do guia – vermelho e preto – e pelos alimentos

61
Antes de falarmos sobre cada um dos aspectos deste terreiro de umbanda, gostaríamos de deixar
claro que, muitos elementos, que serão apresentados, são considerados símbolos. A palavra
símbolo, em si mesma, implica, primeiramente, em uma dualidade e uma unificação, já que o símbolo
junta duas coisas, formando uma só. O símbolo sempre é constituído por duas partes: o simbolizante
e o simbolizado. O símbolo sempre designa conjuntamente o simbolizante e o simbolizado,
exprimindo uma totalidade que passou por experiências de ruptura e, agora, é uma realidade
reconstituída. O simbolizado é o pedaço a reconstituir, é a parte ausente, impossível de se perceber.
Esse pedaço vai ser do domínio do invisível, do imperceptível, do inobservável, do inexprimível; em
suma, o não-sensível em todas as suas formas (o inconsciente, o metafísico, o sobrenatural e o
surreal). O simbolizante é a parte visível, o pedaço presente acessível à nossa experiência imediata,
a partir do qual se tende a reconstituir a realidade total. Apesar desta divisão, o símbolo é uma
criação total, que não se situa nem no simbolizante nem no simbolizado. Um símbolo, por menos
universal que seja, brota das camadas mais profundas do ser humano, nas quais se acumulam e se
enraízam as recordações e os gestos mais marcantes que foram acumulados durante a história da
humanidade e, por isso, têm sempre a função de transcender os opostos. O símbolo sempre oculta
um sentido invisível e mais profundo do que o seu sentido objetivo e visível, portanto não é
imediatamente solucionável, compreensível ou determinado anteriormente. Um símbolo carregado de
sentido nunca pode ser criado a partir de relações conhecidas, já que pertence a dois níveis
diferentes de realidade: a imagem e um conteúdo que transcende à consciência, com a qual é
necessária a comunicação. Como unificador de antagonismos, o símbolo sempre solicita a totalidade
do humano, afetando o homem por inteiro. Um símbolo é a melhor expressão de algo e se encontra
carregado de sentido. Segundo Jolande JACOBI, Arquétipo, complexo e símbolos, p. 90: “O símbolo
é, então, uma espécie de instância mediadora entre a incompatibilidade do consciente com o
inconsciente, um autêntico mediador entre o oculto e o revelado. Pertence à esfera intermediária da
realidade sutil, que só se pode expressar, de modo suficiente, através do símbolo”. Um símbolo
religioso pode proporcionar uma série de experiências psíquicas, mas isso só ocorre se o indivíduo se
encontra envolvido emocionalmente com ele, pois, apenas dessa forma, a energia contida no símbolo
pode ser liberada. Os símbolos são mutáveis através dos tempos; seu sentido e seu desvelamento
são alterados na medida em que há modificações nos reconhecimentos e nas experiências de cada
um; o conteúdo do sentido e a forma do próprio símbolo são postos em novas relações e
transformados de maneira correspondente. Portanto, cada homem e cada época traduzem o símbolo
para a linguagem atual, munindo-o com uma nova roupagem, para que a essência e o significado
dele possam permanecer e, com isso, resgatar o sentido da vida. As idéias religiosas têm um
conteúdo simbólico, não só porque ele possui um significado, mas porque aponta para várias
direções e deve significar algo que é inconsciente ou que, ao menos, não é consciente em todos os
seus aspectos, pois os símbolos religiosos são realidades vivas, existenciais, que dão sentido à vida
dos homens.
62
Jean CHEVALIER; Alain GHEERBRANT, Dicionário de símbolos, p. 933-934: “O simbolismo da
vela está ligado ao da chama. Na chama de uma candeia todas as forças da natureza estão ativas,
dizia Novalis. A cera, a mecha (pavio ou torcida da vela), o fogo, o ar, que se unem na chama
ardente, móvel e colorida, são eles próprios uma síntese de todos os elementos da natureza. Mas
esses elementos estão individualizados nessa chama isolada”. Ou ainda, em ibid., p. 232, a respeito
da chama: “Em todas as tradições, a chama (flama) é um símbolo de purificação, de iluminação e
de amor espirituais. É a imagem do espírito e da transcendência, a alma do fogo”. Ainda segundo
Brígida Carla Malandrino, Umbanda: mudanças e permanências, p. 244-245: “A vela funciona como o
primeiro elo de ligação com o divino. Através dela é feita a primeira tentativa de reconstituir uma
totalidade para além das rupturas. É o primeiro ato de contato com o divino. Importante notar, que
neste Centro, a primeira coisa a ser feita, assim que se entra, antes de qualquer ritual, é o
acendimento das velas. Conforme colocado anteriormente, as entidades da umbanda podem estar
associadas com um inconsciente brasileiro, o inconsciente cultural dos tipos subalternos. Foi
colocado também, que o contato com os arquétipos não se dá de maneira direta, necessitando de
369

associados ao guia, no caso, farofa e pimenta.63 É importante ressaltar que, dentro


da umbanda, há um Exu que é considerado guia, portanto um antepassado, e um
Exu que é considerado um orixá, isto é, um ancestral, como vimos no primeiro
capítulo. Exu, tanto guia como orixá, é cultuado do lado de fora do terreiro. Muitos
são os mitos que relatam os motivos pelos quais Exu teve como seu lugar de culto o
lado externo da casa.64

Figura 10 – Oferenda para Exu no portão


Fonte: Arquivo Pessoal

A casa é bastante arborizada, sendo que muitas destas plantas são utilizadas
na gira para a composição do espaço, enquanto outras são usadas na fabricação de
compostos de ervas, como também para se fazer o banho de ervas. Para se chegar
ao terreiro atravessa-se um corredor cumprido, que dependendo da gira da noite,

uma mediação feita pelos símbolos. No caso deste Centro, o primeiro símbolo que possibilita a
entrada em contato com as entidades é a vela, que propicia aos indivíduos o primeiro contato com o
inconsciente e seus tipos”.
63
Cf. Brígida Carla MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanências, em especial capítulo III.
64
Segundo Reginaldo PRANDI, Mitologia dos orixás, p. 41: “Assim, quem viesse à casa de Oxalá
teria que pagar também alguma coisa a Exu. Quem tivesse voltando da casa de Oxalá também
pagaria alguma coisa a Exu. Exu mantinha-se sempre a postos guardando a casa de Oxalá. Armado
de um ogó, poderoso porrete, afastava os indesejáveis e punia quem tentasse burlar sua vigilância.
Exu trabalhava demais e fez ali a sua casa, ali na encruzilhada. Ganhou uma rendosa profissão,
ganhou seu lugar, sua casa. Exu ficou rico e poderoso. Ninguém pode mais passar pela encruzilhada
sem pagar alguma coisa a Exu”.
370

apresenta velas acesas em toda a sua extensão, correspondendo a entidade que é


cultuada.

Na porta do terreiro, antes de entrarmos em uma ante-sala, há alguns objetos


representativos de entidades e algumas oferendas feitas para três orixás. Há uma
carranca formada por ossos de animais, que homenageia o Exu guia da mãe-de-
santo. No caso dos orixás65, vemos oferendas, formadas por velas e por alimentos,
além de objetos representativos. Exu, o orixá que precisa ser cultuado para que a
gira seja colocada em movimento, com um tridente, pimenta, farofa e vela vermelha
e preta; Ogum, o orixá de cabeça do pai e da mãe-de-santo, com feijoada, objetos
de ferro e vela azul marinho; e Oxóssi, o orixá que comanda a linha do chefe
espiritual do terreiro, o caboclo Ubiratan, com plantas e frutas, arco e flecha e vela
verde. Estas oferendas ficam do lado de fora da porta desta ante-sala.

Figura 11 - Oferenda – Exu orixá


Fonte: Arquivo Pessoal

65
Tanto na umbanda quanto no candomblé, duas religiões afro-brasileiras, os orixás são cultuados,
porém guardam diferenças de uma religião para a outra. Segundo Brígida Carla MALANDRINO,
Umbanda: mudanças e permanências, p. 113: “Os orixás se enraízam numa área mais arcaica do
psiquismo e da história do mundo físico, já que são definidos como forças da natureza, o que torna
possível imaginá-los como arquétipos do inconsciente coletivo, em decorrência da experiência
humana com o mundo material. Os guias pertencem às lembranças históricas relativas às
experiências vividas nas origens da sociedade brasileira. De qualquer forma, os guias se identificam
com os orixás e possuem uma ligação com eles”.
371

Figura 12 - Oferenda – Oxóssi


Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 13 – Oferenda – Ogum


Fonte: Arquivo Pessoal

Todo o indivíduo que vai ao terreiro para participar da gira, sendo ou não
pertencente à casa, antes de entrar na sala, onde acontecem as giras propriamente
ditas, tem que passar pela Mandala de Fogo. A Mandala de Fogo é formada por
372

pontos-riscados feitos com pemba66, velas acesas e objetos da Natureza. Tanto as


figuras desenhadas, quanto às velas e os objetos são representativos das entidades,
no caso orixás, que estão formando a mandala e que têm algum tipo de similaridade,
de atração, com os guias que estão presentes na gira daquela noite. A mandala67 é
composta por eixos e em cada um dos eixos é, inicialmente, feita uma imagem
representativa de cada um dos orixás. Depois as velas são acesas iniciando-se o
acendimento pela parte superior e, em seguida, são colocados os objetos
representativos. Por fim, são acesos os defumadores e o pai-de-santo faz a ativação
da mandala, ou seja, ele se senta em frente à mandala, de pernas cruzadas, e
profere algumas palavras, ativando a mandala, no sentido de lhe dar uma intenção,
um objetivo. No momento da ativação, qualquer pessoa que esteja presente na sala
precisa ficar atrás do pai-de-santo.

Figura 14 – Mandala de Fogo


Fonte: Arquivo Pessoal

66
Segundo Nei LOPES, Novo dicionário bantu do Brasil, p. 174, verbete pemba: “PEMBA [1], s.f. (1)
Na umbanda, pedaço de giz usado para riscar no chão os pontos emblemáticos ou sinais cabalísticos
de cada entidade (AN). (2) O pó extraído da raspa desse giz, que se asperge ou passa no corpo,
como proteção. Do quicongo mpemba, giz, correspondente ao quimbundo pemba, cal”.
67
Vale a consulta ao trabalho de Monalisa DIBO, Prabha-Mandala: os efeitos da aplicação do
desenho da mandala no comportamento da atenção concentrada em adolescentes.
373

A Mandala de Fogo tem como função fazer o descarrego, isto é, a retirada de


energias negativas68. Antes de entrar nela, deixam-se todos os pertences ao lado,
no chão, e se tira os sapatos. Entra-se de frente na mandala e se pára em cima de
uma vela de sete dias, que está no centro da mandala. Cada um, neste momento,
faz uma mentalização ou uma oração, ficando o tempo que julgar necessário e,
quando se sente à vontade, sai andado de costas. Esta sala encontra-se com as
luzes apagadas, sendo que a única iluminação é feita pelas velas. Além disso, há
um cheiro muito forte do defumador.

Figura 15 – Ritual de Descarrego


Fonte: Arquivo Pessoal

68
Segundo M., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, São Paulo, 31/05/08: “Esta
mandala? Quando ela fica acesa, assim, no começo, ela serve para as pessoas que chegam, prá
descarregar, só de passar pela mandala e mentalizá, já pode ser descarregado; o descarrego, o que
traz da rua, o dia a dia da semana. E, aí, durante a semana também, ela faz equilibrar e descarregar
as pessoas que vem para o instituto. Ela pode servir para várias coisas, pra coisas específicas, pro
trabalho que está acontecendo à noite, mas a gente passa pela mandala pra fazê um descarrego
prévio, que é mais ou menos para equilibrar as energias, quando a gente for pra gira, pra não tá
totalmente fora”. Podemos perceber que a eficácia da magia assenta-se na crença coletiva do poder
da força vital contida na palavra, na ação ritual que a desencadeia e nos seus suportes biológicos
(homem) ou nos seus suportes materializados (objetos rituais).
374

Como percebemos na figura acima, as pessoas que são pertencentes ao


terreiro vestem roupa branca69, utilizam guias no pescoço e podem ou não usar
lenços na cabeça. Independente da pessoa ser ou não adepta, é pedido para que a
assistência utilize roupas claras, de preferência branco. Os adeptos, antes de
vestirem a roupa branca também tomam um banho de ervas70. Este banho é
composto por ervas que facilitam a incorporação, pois estão relacionadas com as
entidades presentes na gira71. Cada um é responsável pelo seu banho. Além disso,
normalmente, eles passam por restrição sexual e abstinência alimentar. Tudo isso
com o intuito de se preparar para a incorporação.

Sabe-se que durante a incorporação há uma alteração neurológica e são


utilizados alguns estímulos somato-sensoriais que facilitam o estado de transe: “O
ritual de umbanda apresenta uma riqueza multi-sensorial digna de nota e (...) os
umbandistas percebem a importância que estes estímulos sensoriais possuem,
enquanto facilitadores do transe mediúnico”72. Além do banho de ervas e da

69
Segundo Vera Braga de Souza GOMES, O ritual da umbanda, p. 122, a roupa branca: “Constitui
medida higiênica, tanto física como psíquica e homenagem especial aos seres espirituais com quem
entram em comunicação. Consideradas no sentido de uniforme, favorecem um visual mais agradável
e fazem parte da disciplina, imprescindível também em qualquer religião. Foi adotado o branco por
ser o símbolo da pureza e absorver melhor os fluídos positivos”. Ainda segundo Brígida Carla
MALANDRINO, em Umbanda: mudanças e permanências, p. 237: “Vestir o branco representa um
despojamento por parte daquele que irá trabalhar. Após se vestir de branco, o indivíduo deixa de ser
apenas ele, para fazer parte de uma comunidade mais ampla. Naquele momento, ele perde a sua
identidade individual, passando a ser um elemento de um grupo. Elemento necessário para o
funcionamento do grupo. Além disso, o branco representa um preparo e uma proteção para aquele
que se veste, já que minimiza o contato direto com o divino. Mesmo a umbanda apresentando uma
grande mutabilidade simbólica inter e intracentro, quando o ritual for uma vez estabelecido, precisa
ser cumprido de maneira rígida, sob pena de perder a sua eficácia, já que lida com forças
inconscientes poderosas”.
70
Segundo Vera Braga de Souza GOMES, O ritual da umbanda, p. 117-118: “Entre a multiplicidade
de usos na Umbanda, as ervas são também empregadas para banhos. Estes têm diferentes
finalidades, sendo escolhida a planta que possua as qualidades adequadas ao objetivo visado. Banho
de Limpeza Espiritual – Recomendado com o propósito de destruir escórias nocivas absorvidas na
vida diária ou originadas por trabalhos de magia negra. Repele fluídos oriundos da influência de
espíritos atrasados e obsessores, eliminando toda energia negativa da faixa vibratória das pessoas.
(...) Banho Ritualístico ou de Fixação – Destinado exclusivamente aos médiuns. Serve para vitalizar,
fixar e precipitar determinadas forças, em consonância com a faculdade mediúnica que estejam
desenvolvendo, com seus pais espirituais e com as entidades que neles incorporam. As plantas para
este tipo de banho variam conforme a vibração do Guia ou do Orixá com o qual se intenta sintonia”.
71
Vale a pena o trabalho de Vladimir José de Azevedo FALCÃO, Ewé, Ewé, Ossain - um estudo
sobre os erveiros e erveiras do Mercadão de Madureira, ou ainda, Pierre Fatumbi VERGER, Ewé: o
uso das plantas na sociedade iorubá.
72
Carlos Augusto TRINCA, Ritual de umbanda, p. 113. Ainda, segundo Cf. Ibid., tais estímulos
somato-sensoriais colaboram para a incorporação, que pode ser entendida como um estado alterado
de consciência. O estado alterado de consciência pode ser entendido como um estado no qual o ser
humano tem acesso às realidades profundas, arquetípicas, capazes de dar outro sentido do indivíduo
que a vivencia. Pode ser entendido como uma possibilidade inerente a todo ser humano, uma vez
que ele possui estruturas cerebrais, que possibilitam tal fenômeno. É uma alteração qualitativa no
375

restrição sexual e alimentar também se tem a música, a dança, a iluminação e, em


alguns casos, a utilização de plantas de poder73.

74
Figura 16 - Banho de ervas
Fonte: Arquivo Pessoal

Ainda, antes do início da gira é feito o osse de Exu na Casinha dos Exus. A
Casinha dos Exus é o local dos exus, das bombo-giras (pomba-giras) e dos exus-

padrão global de funcionamento mental, na qual o indivíduo tem a impressão de ser radicalmente
diferente do seu modo usual de funcionamento. As percepções que construímos do mundo e de nós
mesmos não são neutras; apesar de terem como base a realidade física, dependem dos recursos
biológicos, culturais e psicológicos de cada um. Durante os estados alterados de consciência, o ser
humano possui uma filtragem seletiva parcial da realidade, revelando aspectos que não são
percebidos no cotidiano. São percebidos aspectos incomuns da realidade, despertados mediante
determinadas situações. Os estados alterados de consciência designa uma série de fenômenos que
vão desde um relaxamento profundo até experiências místicas.
73
Segundo Beatriz Caiuby LABATE; Sandra Lúcia GOULART; Henrique CARNEIRO, Introdução, in:
Beatriz Caiuby LABATE; Sandra Lúcia GOULART (orgs.), O uso ritual das plantas de poder, p. 30: “...
o consumo de uma substância psicoativa é fundamental para a organização de conjuntos simbólicos
e rituais bastante complexos. Observa-se que a utilização desse tipo de substância em contextos
religiosos é também bastante comum e extensa, manifestando-se em diferentes culturas e épocas
históricas”.
74
Segundo Jean CHEVALIER; Alain GHEERBRANT, Dicionário de símbolos, p. 377, a erva é:
“Símbolo de tudo o que é curativo e vivificante, as ervas restauram a saúde, a virilidade e a
fecundidade. Foram os deuses que descobriram suas virtudes medicinais. (...) De modo geral, as
ervas são, muitas vezes, oportunidades para teofanias de divindades fecundantes”.
376

mirins, todos, no caso, guias. O osse75 consiste em, inicialmente, uma limpeza da
casinha e, em seguida, no acendimento de velas, na entrega de oferendas feitas
com bebidas, sempre alcoólicas76, e comidas. Também o pai-de-santo comunica-se
com os exus e, se necessário, é feita uma limpeza espiritual. Existem dois espaços
reservados para as Casinhas dos Exus, um deles onde ficam o exu – Tranca Ruas -,
a bombo-gira – Sandra Rosa, - e o exu-mirim – Brasinha - do pai-de-santo, e um
outro espaço onde ficam os outros exus, bombo-giras e exus-mirins da casa.

Figura 17 – Casinha dos Exus


Fonte: Arquivo Pessoal

75
O ritual do osse é um ritual através do qual é feita, inicialmente, uma limpeza na Casinha dos Exus.
Posteriormente, o pai-de-santo ou a mãe-de-santo fazem alguns procedimentos de magia. São
oferecidas bebidas, comidas e fumos aos exus, aos exus-mirins e as bombos-gira (pombas-gira).
Também se fazem algumas orações. Segundo Carlos SERRANO; Maurício WALDMAN, Memória
D’África, p. 153, os elementos só são eficazes para a função que foram criados depois de investidos
pela curandeiro – sacerdote: “... sacralizá-lo pela enunciação de fórmulas e orações bem como pela
criação de novos acessórios, adornos e símbolos que irão fornecer ao objeto de culto símbolo de um
ancestral mítico a força necessária para a sua função. Em suma, para conquistar uma eficácia
“operatória”, são necessários ritos de nomeação da imagem, pelos quais a palavra torna efetivos os
poderes reservados às imagens”.
76
Interessante notar que Henrique A. JUNOD, no seu livro Uso e costumes dos bantos, p. 457, faz a
seguinte observação a respeitos dos indivíduos que foram possuídos: “Não é somente no altar que se
realizam estes actos de adoração. Onde quer que esteja, o exorcismado, antes de beber cerveja,
deitará uma pequena quantidade à parte, para os seus espíritos. Antes de comer, deitar-lhes-á um
pouco de comida. Trata-se, portanto, duma adoração quotidiana, muito mais contínua e muito mais
individual que os ritos da ancestrolatria, duma comunhão real com os espíritos que, depois de terem
atormentado o exorcista, se tornaram os seus benfeitores e lhe deram o poder de ganhar mais
dinheiro curando outras pessoas. Há, no exorcita, muito mais religiosidade que no indígena em geral”.
377

Como falávamos, depois de passar pela mandala, a pessoa que participa da


gira dirige-se para outra sala, composta por uma mesa e um sofá, onde a
assistência deixa os pertences: bolsas, casacos, dentre outras coisas. Não é
necessário, ainda, tirar os sapatos77.

Na sala onde ocorre a gira, como na sala de entrada, as luzes já se


encontram apagadas, sendo a iluminação feita pelas velas. Também se toca uma
música, música que fala sobre a entidade daquela noite. As pessoas sentam-se nas
cadeiras colocadas na assistência, por volta de onze cadeiras, as quais ficam
separadas do espaço chamado de sagrado78, onde os médiuns incorporam as
entidades. Esta divisão é feita por vasos de plantas, que são colocados antes da gira
e retirados ao seu final. As plantas colocadas em cada gira também possuem
relação com a entidade da noite; não só no que diz respeito ao tipo de planta, mas
também a sua quantidade. Por exemplo, nas giras de caboclo existe uma
quantidade grande de plantas, uma vez que é uma entidade que está relacionada
com as matas. Atrás da assistência, há algumas fotos de orixás.

77
Segundo BRUMANA; MARTINEZ, Marginália Sagrada, p. 137, nota 6, o trânsito entre estes
espaços exige signos explícitos desta passagem – tirar sapatos e objetos metálicos. Para eles: “As
razões alegadas por agentes e clientes são múltiplas e às vezes contraditórias. Os sapatos impedem
o contato com a terra e sua energia; os objetos metálicos dificultam a ação de limpeza dos ‘maus
fluídos’. Mas outras também podem ser ouvidas: sapatos e objetos como relógios, jóias, óculos, etc.
entram em contradição com a humildade e antiguidade dos espíritos”. Já Renato ORTIZ, em A morte
branca do feiticeiro negro, afirma que, nos terreiros de umbanda, dança-se descalço, pois o ser
humano é fonte de correntes elétricas maléficas. Se ele tira o sapato e fica em contato direto com a
terra, a corrente pode escoar pelo solo; sendo a terra o lugar para o qual se dirigem as correntes
elétricas. A sola do sapato tende a isolar o indivíduo do solo, impedindo que as correntes maléficas
sejam expulsas do seu corpo.
78
Podemos pensar no espaço sagrado e profano do terreiro de umbanda como complementares e
compensatórios, ao mesmo tempo em que eles se opõem, eles também possuem um ao outro. Em
lugares predominantemente sagrados, como o local da gira, há conversas profanas (sexo, trabalho,
dinheiro); em um lugar especificamente profano, como o lado de fora da casa, há a Casinha dos
Exus, que contém elementos sagrados. A religião pode ser vista como uma expressão simbólica
deste grupo religioso e, conseqüentemente, o espaço religioso como expressão simbólica da relação
entre o profano e sagrado, entre os seres humanos e os guias. Observa-se também que este espaço
sagrado não é reinventado constantemente, sendo investido deste sentido. Conforme afirma
BRUMANA; MARTINEZ, Marginalia Sagrada, p. 117, a respeito do culto umbandista: “O culto
umbandista é aquele que permite a transposição do profano ao sagrado sem perdas nem renúncias.
É o profano diretamente sacralizado, (...) o que permite a construção do sagrado com os mesmos
elementos que constituem o profano. Esta ‘bricolagem’ religiosa do imediato é uma das chaves da
umbanda”. Os espaços profano e sagrado normalmente não estão totalmente delimitados. O sagrado
deve pactuar com o profano. O espaço é sagrado e profano ao mesmo tempo, dependendo da
intenção e do sentido da ação de quem transita por ele. Esta passagem fluída entre os dois domínios
tem sua correspondência na passagem entre as atitudes, no meio do ritual ou nos intervalos entre um
momento e outro do mesmo. “A extrema proximidade entre o profano e o sagrado que o culto
umbandista apresenta, exige por outro lado a operacionalização de mecanismos altamente
ritualizados para a instauração, a segregação e delimitação deste último” (Ibid., p. 125). Em função de
tudo isto, utilizamos as palavras sagrado e profano.
378

O espaço total, onde ocorre a gira tem aproximadamente 7X3 metros


quadrados. Há uma estante de livros e decorações por todo este espaço. Nas
paredes existem flechas, cabaças, chapéus, chicote, arco e flecha, berrante, dentre
outros elementos, que podemos nomear de apetrechos dos guias, que são retirados
da parede antes da gira para serem utilizados pelos guias. Normalmente, quando os
guias incorporam nos médiuns, eles fazem uso de alguns apetrechos como forma de
se caracterizar. Podemos considerá-los como:

Símbolos que estão presentes na sua maneira de falar, de se posicionar, mas


principalmente nos objetos e nos elementos utilizados por eles, tais como um
cocar, um lenço, um cigarro, uma bebida, uma faixa, uma guia de proteção,
que torna apreensível para aquele que assiste a gira, a existência e a
presença daquele guia e mais do que isso, a sua personalidade.
Mais interessante notar, é que neste momento há uma unidade entre médium
e guia espiritual. Do duplo, se faz um. A unidade entre o sagrado e o profano
que um dia existiu e foi rompida, é recuperada mediante o símbolo. Porém,
essa reconstituição só é possível dentro do ritual, não se mantendo nas ações
cotidianas. No momento da unidade restabelecida pelo símbolo, não há
diferenças de gênero, de classe social ou de região. A unidade refere-se à
uma esfera mais coletiva e primordial. 79

Figura 18 - Apetrechos do guia


Fonte: Arquivo Pessoal

79
Brígida Carla MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanências, p. 247-248.
379

Sentando-se na assistência, o indivíduo fica de frente para o congá, que se


encontra no espaço sagrado. O congá possui um fundo azul e uma nova divisão
com o resto do espaço sagrado. É composto por quatro prateleiras, nas quais se
encontram imagens, representativas dos guias da casa; velas acesas, nas cores das
entidades daquela noite, além de estarem enfeitadas por flores.

Figura 19 – Congá em detalhes


Fonte: Arquivo Pessoal
380

Além da parte visível do congá80, há, embaixo dele, normalmente enterrados,


os assentamentos ou os fundamentos do terreiro. O fundamento é feito com
elementos dos orixás, do chefe espiritual da casa e do chefe carnal da casa:

No fundo, de frente para o público, situa-se o altar, composto por duas partes
distintas: a de cima onde ficam as imagens, chamado de Pegí e a de baixo,
onde são colocados os imãs dos assentamentos, que é o Congá
propriamente. Generalizando, chama-se ao conjunto dos dois de Congá. Sua
disposição é diversificada, obedecendo a predominância da nação seguida.
Possui, no entanto, pontos em comum, como a ausência de imagens de Exu
e Pomba Gira e, sempre, encimada pela figura de Oxalá, o qual nunca é
representado crucificado. 48

O espaço chamado de sagrado é composto por plantas, que demarcam os


espaços de trabalho de cada um dos guias, tendo, também, uma função de
proteção, uma vez que absorvem energias negativas. Elas são colocadas em
lugares estratégicos dentro do espaço sagrado, que se caracteriza como um espaço
móvel.

Figura 20 – Local de trabalho dos guias


Fonte: Arquivo Pessoal

80
Segundo Brígida Carla MALANDRINO, em Umbanda: mudanças e permanência, p. 226: “... o
congá possui uma importância enorme dentro de um centro de umbanda. Muitas vezes ele é
chamado de altar, em referência ao altar cristão. Porém, o congá é representativo da individualidade
daquele centro, do seu espírito. (...) Por isso, cada congá tem a sua própria forma, sofrendo a
influência do chefe carnal e espiritual da casa; o congá dá identidade ao terreiro de umbanda”.
48
Vera Braga de Souza GOMES, O ritual da umbanda, p.127.
381

Também nesse espaço, existem os atabaques, que são responsáveis por


conduzir os cânticos da noite, bem como fazer a marcação dos pontos. Possuem um
caráter sagrado e, portanto, são cumprimentados tanto pelas pessoas quanto pelas
entidades, quando as mesmas estão em terra.

Figura 21 – Atabaques
Fonte: Arquivo Pessoal

Também existem os animais de penas, de pelos e aquáticos, que possuem


energias da Natureza a serem utilizadas durante a gira. É importante ressaltar que
os animais não são usados em sacrifício. Convém lembrar que na religiosidade
tradicional bantú o sacrifício é uma prática comum, já que o animal sacrificado é
entendido como algo a ser compartilhado com os antepassados. A umbanda, na sua
formação, sofreu a influência dos aspectos cristãos do kardecismo81, tendo, de
maneira geral, abdicado desta prática ritual. Mas, por outro lado, o sistema de
pensamento africano entende que tudo no universo se encontra ligado, aspecto que
se faz presente na umbanda, onde não há dissociação entre o ser humano e o
mundo natural, incluindo a totalidade da criação – animais, vegetais e minerais.

81
Segundo Vagner Gonçalves da SILVA, Candomblé e Umbanda, p. 110: “... o kardecismo, sendo
praticado por um estrato social mais elevado da população, autodenominando-se uma religião cristã,
legitimando a possessão dos espíritos e apresentando um discurso racional frente aos fenômenos
mágicos, serviu como mediador para a constituição da umbanda, que, sob sua influência, se
desenvolveu como religião organizada”.
382

Nela, busca-se manter no espaço relações de reciprocidade e de harmonia, já que o


equilíbrio com o meio ambiente não pode ser violado, sob pena de provocar, nas
forças que sustentam a natureza, uma perturbação que voltaria contra os seres
humanos.

6.3.1 – A seqüência ritual82

Feitos os rituais preparatórios, apresentaremos, a seguir, a seqüência ritual


da gira de umbanda. Todos os momentos apresentados a partir de agora, já contam
com a presença da assistência dentro do espaço sagrado, que não,
necessariamente, seja composta de pessoas que fazem parte da casa (adepto).

Prelação ou Palestra Doutrinária

A preleção se inicia às 19:30 horas, ainda sem a presença do pai e da mãe-


de-santo. Alguns adeptos ainda estão arrumando os últimos detalhes para a gira.
Durante a preleção, a música é desligada. Um dos médiuns, que se encontra em
desenvolvimento, lê o Credo Umbandista, que foi ditado, em psicografia, pelo
caboclo Ubiratan para o pai-de-santo, e os preceitos da casa, que são normas e

82
Cabe um esclarecimento ou a divulgação de um fato interessante ocorrido durante a execução do
trabalho etnográfico. A seqüência apresentada sofreu uma reformulação no ano de 2008, tendo como
objetivo a maior inclusão da assistência no ritual. Além disso, em função de questões que não se
tornam relevantes para este trabalho, o terreiro em questão passou a se denominar publicamente
como exercendo a hierosofia, apesar de manter grande parte da estrutura ritual e das linhas da
umbanda. Esta modificação, no nosso entender, deu maior possibilidade ao grupo de inserir novos
elementos rituais, símbolos e dogmas na sua prática religiosa. Segundo Brígida Carla MALANDRINO,
Umbanda: mudanças e permanências, p. 252-260: “Os símbolos importantes dentro dos centros
visitados se configuram como um elemento de ligação com o mundo divino, ou melhor, com os
espíritos e entidades. Através destes símbolos, é possível, àquelas pessoas que se encontram dentro
da umbanda, a criação de uma ponte, de um contato com o mundo divino e transcendente, que não
está presente no decorrer das atividades cotidianas. (...) O que podemos observar é que a
mutabilidade simbólica da umbanda está relacionada com as necessidades individuais dos membros
do grupo. Há um entendimento de que a evolução espiritual é um caminho individual, no qual não é
possível o direcionamento, já que ao fazê-lo, aspectos importantes para aquele indivíduo podem estar
sendo colocados de lado. A umbanda muda para satisfazer as necessidades de seus componentes.
Portanto, algumas vezes, o que se vê, é uma bricolagem de crenças, que a princípio parecem sem
sentido. (...) Podemos dizer que há uma relação dialética entre a umbanda e seus integrantes. O fato
da umbanda apresentar uma mutabilidade constante permite a permanência nesta religião, ao
mesmo tempo em que a manutenção de alguns símbolos de outras religiões propicia a mudança para
a umbanda. Por outro lado, como a umbanda é uma religião que possui uma visão individual da
religiosidade, ou melhor, da vivência da religiosidade, entendida como uma necessidade individual,
ela se permite ser composta por uma diversidade de crenças que interagem. Além disso, apesar da
proposta institucional de cada centro, não é impedido aos seus integrantes que levem as suas
crenças individuais, nem tão pouco que as vivam”.
383

princípios seguidos por todos os presentes, fazendo, em seguida, comentários a


respeito de cada item. Os temas giram em torno da questão da magia e das
“amarrações”, do livre-arbítrio, da questão da proibição das incorporações
espontâneas e das orientações a respeito da hora de ir ao banheiro. Explica-se
também a seqüência ritual, principalmente para as pessoas que estão no terreiro
pela primeira vez. Além das orientações de cunho mais geral, neste momento, é
feita uma leitura de caráter científico, com textos de autores que estudam as
religiões afro-brasileiras, a respeito das entidades que estarão presentes na noite.

Antes do médium terminar de falar, o pai-de-santo entra no recinto e faz a sua


preleção. Além de resgatar aquilo que já foi dito, ele abre um espaço para perguntas
da assistência sobre qualquer assunto relacionado com a umbanda. Também é feita
a divulgação de alguns cursos ministrados no Instituto Ubiratan, que servem como
forma de manter o terreiro financeiramente, já que os trabalhos não são cobrados.
Existe um viés didático durante este momento do ritual.

Ritual do beija-mão

Aproximadamente, às 20:30 horas, começa o ritual do beija-mão, quando já


estão presentes todos os adeptos da casa, o pai e a mãe-de-santo. Primeiro beija-se
a mãe-de-santo para, em seguida, beijar-se o pai-de-santo. No ritual do beija-mão, o
adepto beija a mão do pai e da mãe-de-santo e eles, em retribuição, beijam a mão
do adepto. Depois eles colocam as mãos um no braço do outro e batem no peito por
três vezes.

Saudação para Exu

Ao som dos atabaques são cantadas músicas para Exu, como, por exemplo:
“Embarabo / Ê majubá, bera lecoché (bis) / Ele exu bara, bara lecoché / Embarabô é
mojubá / para obedé, Exu Lonan, Exu Lonan, para obedé, Exu Lonan, Exu Lonan.
(bis)”83. Todas as pessoas presentes ficam viradas para a rua. Todos cantam e
dançam.

83
Anotações, caderno de campo, Instituto Ubiratan, São Paulo 10/05/08.
384

Ritual de Defumação

Ao som dos atabaques são cantados pontos de defumação:

Defuma, defumador, esta casa de Nosso Senhor, defuma, defumador, esta


casa de Nosso Senhor, leva para águas do mar o mal que aqui possa estar,
leva para águas do mar, o mal que aqui possa estar; Defuma com as folhas
da Jurema... Defuma com arruda e guiné... Benjoim, alecrim e alfazema:
vamos defumar filhos de fé! Corre gira, pai Ogum! Filhos quer se defumar!
Umbanda tem fundamento, é preciso preparar! Com incenso e benjoim,
alecrim e alfazema! Defumar filhos de fé com as ervas da Jurema!; Nossa
Senhora incensou seu bento filho / Jesus Cristo defumou os filhos seus / Eu
incenso, eu incenso está casa / Na fé de Oxóssi, de Xangô e Oxalá / Estou
incensando, estou defumando / A casa do bom Jesus da Lapa / Olha a Lapa,
olha a Lapa / A casa do bom Jesus da Lapa.84

Todos cantam e dançam. A mãe-de-santo pega um turíbulo, coloca algumas


ervas dentro e começa a defumar todo o espaço. Sai uma fumaça espessa e um
cheiro forte85. Um cheiro característico da umbanda. Ela incensa os cantos do
espaço sagrado, os atabaques e os filhos-de-santo. Feito isso, ela entra na
assistência, defuma os cantos e as pessoas presentes. O tempo todo o turíbulo é
balançado e, quando necessário, mais ervas são colocadas dentro dele. Sai do
espaço e volta sem o turíbulo, pois o mesmo é despachado.

Oração

Todos se ajoelham, menos a mãe-de-santo que fica em pé de frente para o


congá. Toca-se o Hino da Umbanda. A mãe-de-santo faz uma oração com todas as
pessoas ajoelhadas e também outra oração para fechamento de corpo. O pai-de-
santo faz uma nova oração e se abrem os trabalhos da noite.

84
Anotações, caderno de campo, Instituto Ubiratan, São Paulo, 10/05/08.
85
Segunda Vera Braga de Souza Gomes, O ritual da umbanda, p. 115-116: “A queima das plantas,
provocando o desprendimento das energias positivas que encerram, tem por finalidade afastar as
negativas, despertar o psiquismo do médium e condicionar sua mente aos Guias espirituais, pela
vibração correspondente de cada um. (...) Certas ervas provocam reação de tal maneira agressiva e
incômoda sobre espíritos mais atrasados, que eles são compelidos a retirar-se. Como cada planta
possui uma propriedade, liberando um elemento específico, a escolha é feita segundo o objetivo
pretendido. Há as apropriadas para descarregar pessoas e locais e as que atraem determinadas
falanges ou seres espirituais”.
385

Ritual do Bate-cabeça

Aproximadamente às 21:15 horas começa o Ritual do Bate-cabeça. Pega-se


uma esteira feita de palha da costa e ela é colocada de frente para o congá. Todos
os filhos-de-santo ficam ajoelhados em volta da esteira e, um por um, ao som dos
atabaques e cantando músicas referentes ao bate-cabeça86, deitam-se de bruços,
com as mãos voltadas para cima. Depois disso, a esteira é retirada.

Saudação aos orixás

Primeiramente, são saudados os orixás que têm familiaridade com as


entidades presentes naquela noite. A saudação é feita através de pontos cantados
para determinado orixá. Os outros orixás são apenas citados. Por exemplo, na gira
de ciganos e de bombo-gira (pomba-gira), cantou-se para Ogum, Iemanjá, Xangô.
Apenas foram citados: Oxumaré, Oxalá, Oxum, Obaluaê, Oxóssi, Nanã, Cosme e
Damião, Egunitá, Oba, Iewá, Ogulunedê, Ossain e Yansã. O indivíduo, que tem
como orixá de cabeça o orixá saudado, automaticamente se ajoelha.

Abertura da gira

Canta-se a música de Abertura da Gira: Eu abro a nossa gira com Deus e


Nossa Senhora, eu abro a nossa gira sambolê, pemba de Angola”87. Todos ficam em
silêncio.

Ritual de Incorporação: pai-de-santo

Colocam-se músicas para a entidade que vem em terra, agora em um


aparelho de som, pois o pai-de-santo e os outros médiuns que incorporam são as
pessoas que tocam os atabaques e eles não podem exercer duas funções ao

86
“Em alta noite / estava sentada / em alta noite / estava sentada / adorando meu Jesus crucificado /
adorando meu Jesus crucificado / Toalha branca / estava vermelha / toalha branca / estava vermelha
/ pelo sangue que escorria de suas veias / pelo sangue que escorria de suas veias/ saudei Oxalá,
saudei / saudei Oxalá, senhor / eu vim foi saudar meu táta / minha babá / na umbanda, meu babalaô”.
Anotações, caderno de campo, Instituto Ubiratan, São Paulo, 19/04/08.
87
Anotações, Caderno de Campo, Instituto Ubiratan, São Paulo, 29/03/08.
386

mesmo tempo. O ritual de incorporação88 dos guias se inicia quando o pai-de-santo


coloca os apetrechos do seu guia. Fica em pé, de frente para o congá. Com poucos
movimentos corporais, ele incorpora o guia. Assim que chega, o guia cumprimenta a
mãe-de-santo, alguns pontos da casa e os atabaques, com movimentos e com
instrumentos característicos de sua linha e prepara o seu lugar de trabalho. Todos
aguardam com muita expectativa. Quando ele se levanta já está fazendo uso de
determinada bebida e de determinado fumo. Depois disso, a entidade cumprimenta
todos os médiuns e, por fim, volta-se para a assistência e também a cumprimenta. A
postura, a fala e a memória da entidade são diferentes do pai-de-santo.

Consulta coletiva

A entidade do pai-de-santo junto com a mãe-de-santo desincorporada faz


uma consulta coletiva. A mãe-de-santo escolhe determinado tema e fala para todos
os presentes; o guia, por sua vez, faz as suas intervenções quando julga necessário.
Como é um terreiro pequeno, onde, atualmente, apenas uma entidade dá consulta,
nem todas as pessoas fazem consultas individuais. Algumas apenas tomam passes.

Ritual de incorporação: médiuns

Os médiuns que incorporam passam, então, a receber os seus guias, com o


auxílio da mãe-de-santo. Cada um fica em pé em frente ao congá. A mãe-de-santo
começa a rodá-los, isto é, faz um movimento circular com os seus corpos, com uma

88
Segundo Brígida Carla MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanência, p. 85-86: “O transe
de possessão é o elemento central do ritual umbandista, ou melhor, da gira. É também um marco
significativo não só da umbanda, como também das religiões afro-brasileiras. Nas giras, o momento
essencial é o da descida dos espíritos que vêm para trabalhar e praticar a caridade. Pode-se supor,
que uma gira de umbanda não acontece sem que haja um transe de possessão ou em linguagem
comum, uma incorporação. O transe de possessão se caracteriza por um estado alterado de
consciência (parcial ou total), que normalmente se manifesta através de alterações comportamentais,
sensoriais, perceptivas e mnemônicas evidentes. Além do aspecto psicológico, o aspecto psico-
cultural reforça, explica e justifica o transe de possessão frente a quem está possuído e a
comunidade. É um papel aprendido no caso de incorporação de guia, não ocorrendo o mesmo nas
incorporações de orixá. Quanto mais aprendizado o indivíduo possui, maior será a sua possibilidade
de controle. Durante o transe de possessão, o que se expressa no comportamento do médium é a
personalidade do deus: expressões, gestos, tom de voz, caráter e temperamento, o que faz com que
ele seja reconhecido pela comunidade. Dentro deste universo religioso, a comunicação com os
espíritos é normal e necessária, pois só assim médium e guia podem praticar a caridade. (...) Por
isso, dentro da umbanda a possessão é um fenômeno coletivo, pois é um processo socialmente
aceito, no qual as entidades que incorporam no médium fazem parte da mitologia e do sistema de
representações do grupo. É ao mesmo tempo a individualização do coletivo, pois cada médium
personifica uma ou várias dessas entidades, dando-lhes uma interpretação pessoal”.
387

das mãos na testa ou no peito e a outra nas costas, entre as omoplatas. Cada
entidade quando chega, cumprimenta os atabaques, a entrada do espaço sagrado e
prepara o local onde vai trabalhar, fazendo os pontos-riscados89 e acendendo as
velas. Segundo Gomes:

Os pontos riscados com a pemba são verdadeiros códigos registrados na


confraria da umbanda, sediada no mundo espiritual. Eles identificam poderes,
responsabilidades, tipos de atividades e vínculos iniciáticos das falanges. (...)
Quando feitos de acordo com a magia, funcionam como magnetizadores para
atrair determinada falange ou entidade. São ordens escritas e cada sinal
possui um sentido diferente, dirigido a uma agrupamento espiritual particular,
que prontamente o atende. 90

Passes e consultas

Depois que cada um dos guias está pronto para o trabalho, as pessoas da
assistência e os filhos-de-santo que não estão incorporados são chamados para
tomar os passes e fazer as consultas. Em alguns casos, a mãe-de-santo, que não
incorpora as entidades da umbanda, faz consultas através de instrumentos de
adivinhação, como baralhos, por exemplo. O passe é feito por três entidades, que
falam, mas como os médiuns estão em desenvolvimento dão apenas passes. Além
da utilização de toques corporais, são também utilizados objetos das entidades,
plantas e certo tipo de fumo para a execução do passe. A consulta, por sua vez, é
feita pela entidade do pai-de-santo, que fica sentada em um banquinho e conversa
com as pessoas que a procuram, dando conselhos a respeito dos problemas que
são trazidos. Em alguns casos, é pedido para a pessoa fazer determinado banho ou
acender uma vela, ou mesmo fazer uma oferenda ou um trabalho para alguma
entidade.

89
Segundo M., entrevista concedida à autora, São Paulo, 02/08/08: “... pra que que se risca o ponto ou o
que é o ponto riscado? Ele é como, sabe a nossa mandala, ele é como a mandala, só é como se fosse,
assim é como a mandala traçadamente, é um riscado, é um arranjo geométrico que a gente faz nas
pedras e ele serve é como se fosse, eu sempre aprendi aqui, que é como se fosse uma entidade de
cada guia, então ali pra quem sabe lê que é diferente da leitura das mandalas, né, que a gente
aprendeu e tal é como se falasse que linha é, quem é a entidade, que linha é, no que trabalha, da
onde veio e tal é como se fosse a identidade deles, então faz o riscado por isso. Por isso que não é
toda entidade que risca ponto assim, né, de cara, vem bem antes aí coloca, nem sempre ta revelado
tudo das entidades no ponto, eles não revelam também, do Vudu, mas ali ta orixá, né, que trabalha
na freqüência de qual orixá, quem é o nome ta mais ou menos na linha”.
90
Vera Braga de Souza GOMES, O ritual da umbanda, p. 112-123.
388

Subida dos guias

Depois que todas as pessoas presentes são atendidas, cada guia, um por um
na seqüência inversa de sua chegada, pede autorização para a mãe-de-santo,
cumprimenta o congá e os atabaques, as outras entidades e se dirige para frente do
congá. Primeiro dança ao som da música, se contorce, agacha-se e, por fim, já
desincorporado, o médium deita-se no chão de frente para o congá, como no Ritual
do Bate-Cabeça e se levanta. Neste terreiro, após a subida destes guias, uma nova
linha vem em terra. Novamente, dá-se o processo de incorporação, porém, neste
momento, não há mais passes ou consultas, mas uma grande confraternização com
cantos, danças, bebidas e comidas. A impressão que se tem é de se estar
participando de uma grande festa. A ordem impera no primeiro momento, enquanto
que no segundo encontra-se a desordem.

Fechamento da gira

Canta-se a música de Fechamento da Gira91. Essa música é oposta a música


de abertura da gira.

Após descrevermos a gira nos seus aspectos simbólicos e rituais, a seguir


faremos aproximações, buscando pontos de contato entre o culto aos antepassados
dentro da tradição bantú e a gira de umbanda.

6.4 – Aspectos bantú no ritual de umbanda

A proposta deste tópico é, através da descrição feita anteriormente, destacar


os aspectos bantú presentes na umbanda, seja por meio da questão ritual, seja
através da questão simbólica, coletadas através do trabalho etnográfico e das
entrevistas realizadas. Cabe relembrar que não se acham elementos puros, mas
elementos que passaram por processos de ressignificação cultural e dentro deste
novo sistema simbólico, adquiriram um novo sentido e uma nova função.

91
“Eu fecho a nossa gira com Deus e Nossa Senhora, eu fecho a nossa gira sambolê, pemba de
Angola”. Anotações, Caderno de Campo, Instituto Ubiratan, São Paulo, 19/04/08.
389

6.4.1 – A questão ritual

Quando observamos a descrição de uma gira de umbanda, podemos afirmar


que a umbanda é uma religião eminentemente ritualística. Durante o
acompanhamento que fizemos dos rituais preparatórios, pudemos perceber que
vários dos rituais executados eram feitos mais por tradição, no sentido de
preservação de dados importantes para aquele grupo, que frente aos produtos
culturais disponíveis pode se revelar em determinado momento.

Podemos afirmar que os rituais religiosos são formas de atividade simbólica,


cujas produções são diferentes das do simbolismo lógico. Os rituais podem ser
considerados uma forma de expressão humana, pois esta atividade cria os
símbolos, formados por relações que não são completamente conhecidas,
carregando em si não só um caráter de mistério, como também a possibilidade de
doação de sentido para a realidade vivida. Com meios simbólicos não lingüísticos, o
ritual diz e faz o que a linguagem não pode fazer e dizer da mesma maneira. Qual é,
então, o sentido do ritual? Segundo Hatzfeld: “... os rituais, como tais, permitam
realizar uma experiência fundamental que a tradição conservará, comentará e
enriquecerá, desde as mais antigas religiões até os nossos dias”92.

92
Henri HATZFELD, As raízes da religião, p. 114. O autor ainda traz três idéias a respeito dos rituais:
1) O ritual é uma atividade social, sendo um assunto do grupo. Essa simbólica prática e coletiva não
pode agradar exatamente a todos. O ritual é um modo de expressão, que pretende que todos estejam
em acordo. “O ritual pode implicar todas as nossas relações com o mundo, com a natureza, com a
sociedade, com os outros homens”. Ibid., p. 125. Mesmo um ritual que tenha um caráter privado, está
baseado em uma convenção social. Os rituais são atividades simbólicas coletivas. A manipulação dos
objetos simbólicos é assegurada pelo grupo. Os rituais constituem a resposta coletiva do grupo a
situações conhecidas e dominadas através do ritual.
2) O ritual situa-se num ponto onde fazer e dizer não se distinguem. O simbolismo lógico nasce a
partir de uma evolução da prática gestual que no ritual pode acumular duas finalidades: 1) Ao projeto
de efetuação, mistura-se um projeto simbólico, de expressão; 2) Além de fazer, sua finalidade
também é de comunicar, informar, exprimir. O rito é, simultaneamente, uma ação necessária e um
conjunto de sinais expressivos, porque sendo uma situação comum ao grupo, todo grupo é incitado
para ação e para essa troca de informação. Pode ser a conseqüência de certa instância afetiva e a
reposta dada ao fim da tensão. O ritual dá uma forma obrigatória a pulsões afetivas incertas. Ele nos
diz o que devemos pensar e sentir. À medida que participamos do ritual, eles nos orientam e nos
fazem entrar no nosso papel.
3) O ritual abre a porta da transcendência. A ação ou o drama que os homens interpretam supõem
que eles não estejam sós, que sejam ouvidos e que se eles dão, há alguém para receber. Há uma
porta aberta para outra realidade. A transcendência é uma criação da atividade simbólica, portanto
ela varia conforme varia a primeira. “Estão em vias, através da acção simbólica colectiva, de revelar a
si mesmos aspectos do mundo que só essa acção simbólica era capaz de revelar. Os deuses, os
demônios, os antepassados, as forças invisíveis são produtos da actividade ritual. De modo nenhum
são a sua causa, a sua origem ou a sua razão”. Ibid., p. 136. O ritual é um gesto expressivo, uma
comunicação e uma espera de resposta de outro. Surgem, daí, duas idéias importantes: 1) O divino e
a divindade não surgem como um sentimento, por mais forte que ele seja; mas no curso de uma
reação simbólica a uma situação difícil; 2) A transcendência é o que a atividade simbólica acrescenta
390

Além dos rituais preparatórios, como as oferendas, o banho de ervas, o osse


de Exu, a passagem pela Mandala de Fogo, há também os rituais que acontecem
depois da abertura dos trabalhos, mas antes do início da gira, como o Beija-Mão, o
Bate-cabeça, a defumação, a saudação aos orixás e as orações. Por fim, temos os
rituais que ocorrem depois da abertura da gira como a incorporação dos guais, os
passes, as consultas, os jogos adivinhatórios e a subida dos guias. O que faz com
que na umbanda haja a necessidade de tantos rituais antes do rito mais expressivo
da noite, qual seja, a incorporação dos guias?

Entendemos que o ritual possui um sentido e uma função. É um ato que a


eficácia (real ou pretendida) não se esgota na ligação entre as causas e os efeitos,
pois ele não possui um efeito técnico direto, ou seja, sua eficácia é, ao menos em
parte, de ordem extra-empírica. O rito liga-se com a necessidade do ser humano de
assumir a sua condição humana, muitas vezes, em oposição à presença do divino,
que se faz constantemente presente. No caso da umbanda, assumir a condição
humana, num primeiro momento, é fundamental, já que posteriormente, haverá a
presença, bem como a fusão entre o ser humano e os guias (antepassados).

O ritual tem uma função que pode ser de preservar o ser humano do perigo e
ter uma vida sem imprevistos e sem angústia, isto é, uma condição humana bem
estabilizada e bem definida. Pode se constituir também como ações simbólicas
através das quais se capta e se maneja a força sobrenatural, o que implica na
renúncia da condição humana definitiva, deixando o ser humano inacessível a si
próprio. Criam-se ritos, pois o ser humano sente-se angustiado por se perceber
como um mistério para si próprio, ficando dividido entre o desejo de definir por
regras uma condição humana imutável e a tentação de se tornar poderoso, de
ultrapassar os seus limites:

ao mundo tal como ele é conhecido pelos nossos sentidos e instintos, nascendo de um rito, um pouco
como os contornos de uma lógica das coisas que se devem à linguagem.
Portanto, concluímos que os rituais têm como funções: comunicação, canalização de emoções e
manutenção da coesão do grupo. Os ritos conciliam a sociedade com os deuses, pois abrem a porta
da transcendência. Os ritos são uma criação coletiva; o simbolismo gestual parece obra de uma
prática coletiva; o grupo procura a sua expressão através do ritual, sendo um esforço comum através
do qual se elaboram as crenças e as representações. Os afetos presentes no ritual adquirem uma
espécie de legitimidade e de autoridade, fruto do esforço de dois sentimentos: a motivação afetiva e o
investimento afetivo que cada indivíduo faz no grupo. Como só existe tradição na repetição de uma
simbólica já constituída, supõe-se que o simbolismo lógico repetiu, comentou, organizou conjuntos
simbólicos já constituídos pela prática ritual.
391

O ritual podia fornecer três soluções. As duas primeiras eram contraditórias e


levavam a renúncias: abandonar o poder para se fechar numa condição
humana, não repousando senão sobre ela própria; ou, então, retomar o
poder, renunciando a fixar-se numa situação estável e sem angústia. A
terceira solução supunha um excesso, uma transposição, ou antes uma
sublimação, e consistia em fundar a condição humana, definida e estável,
sobre uma realidade transcendente. Na primeira solução, o numinoso devia
ser afastado como uma impureza; na segunda, devia ser manejado como um
princípio de poder mágico e, finalmente na terceira, apresentava-se com o
caráter supra-humano do que é sagrado, do que existe no seio das religiões.93

A umbanda e os seus rituais preparatórios estão ligados ao sistema de


crenças, ou seja, ao sistema de símbolos daquele grupo. O ritual religioso revela
como esse grupo reúne, em um sistema mais ou menos coerente, as atitudes
comandadas por duas tendências contraditórias:

... certos ritos têm precisamente por função de utilizar o sagrado enquanto tal,
manifestar (por atitudes negativas) que ele está separado da condição
humana pela sua transcendência, bem como realizar (por acções positiva)
uma participação do homem nos seus arquétipos superiores, isto é, uma
sacralização, uma consagração da condição humana.94

O sobrenatural aparece como o elemento que elabora a síntese entre o


condicionado (diacrônico, cotidiano) e o incondicionado (mundo mítico, fora do
tempo, sincrônico), fazendo isto através dos símbolos. Admite-se a transcendência
do sagrado para sacralizar a condição humana. Portanto, definimos rituais como:

O rito ou ritual é um conjunto de atos formalizados, expressivos, portadores


de uma dimensão simbólica. O rito é caracterizado por uma configuração
espaço-temporal específica, pelo recurso a uma série de objetos, por
sistemas de linguagens e comportamentos específicos e por signos
emblemáticos cujo sentido codificado constitui um dos bens comuns de um
grupo. (...) O ritual faz sentido, visto que ordena a desordem, atribui sentido
ao acidental e ao incompreensível, confere aos atores sociais os meios para
dominar o mal, o tempo e as relações sociais. (...) Enquanto conjuntos
fortemente institucionalizados efervescentes – quer regulem situações de
adesão comum a valores, quer funcionem como reguladores de conflitos
interpessoais -, os ritos devem ser considerados sempre como um conjunto
de condutas individuais ou coletivas relativamente codificadas, com suporte
corporal (verbal, gestual e de postura), caráter repetitivo e forte carga
simbólica para atores e testemunhas. Tais condutas são fundadas numa
93
Jean CAZENEUVE, Sociologia do rito, p. 32.
94
Ibid., p. 198.
392

adesão mental – de que o ator eventualmente não tem consciência – a


valores relativos a escolhas sociais consideradas importantes e cuja eficácia
esperada não advém de uma lógica puramente empírica que se esgotaria na
instrumentalidade técnica da ligação causa-efeito. Finalmente, o ritual se
reconhece como fruto de uma aprendizagem, implicando por conseguinte a
continuidade das gerações, dos grupos etários ou dos grupos sociais dentro
dos quais ele se produz.95

Quando pensamos nos rituais de umbanda, podemos supor que uma de suas
características é a plasticidade, uma vez que dentro dessa religião a mutabilidade
tanto simbólica quanto ritual é constante, pois possui a capacidade de ser
polissêmica e de se acomodar à mudança social pela qual passa o grupo. O ritual é
uma linguagem eficaz, principalmente no que se refere à sua capacidade de
satisfazer a necessidade de simbolização deste grupo, na medida em que atua
sobre a realidade social do mesmo, agindo sobre as relações que o grupo
estabelece com o meio cultural. Além disso, o ritual como preservação da tradição,
segura de maneira ressignificada traços da mesma.

6.4.2 – O que há de bantú no ritual da umbanda

Podemos dividir os ritos preparatórios umbandistas em basicamente dois


tipos: rituais de purificação e rituais de limpeza, que ocorrem antes da abertura dos
trabalhos, e rituais de legitimação da hierarquia existente dentro do terreiro, tanto em
relação aos indivíduos, quanto em relação aos espíritos, que já fazem parte da gira
propriamente dita.

Falando especificamente a respeito da noção de pureza, Douglas nos auxilia


ao afirmar que a sujeira é composta por duas coisas: cuidado com a higiene e
respeito por convenções. O universo, assim, é dividido entre as coisas e as ações
sujeitas a restrições e outras que estão liberadas. Das restrições, algumas tendem a
proteger a divindade contra a profanação e outras a proteger o profano contra a
intrusão perigosa da divindade: “Regras sagradas são assim meramente regras
cercando a divindade, e a impureza é a dupla maneira perigosa de contacto com a
divindade”96. Para ela, ainda, santidade e não-santidade não necessitam ser opostos
absolutos, podendo ser categorias relativas, ou seja, o que é limpo em relação a

95
Martine SEGALEN, Ritos e rituais contemporâneos, p. 31.
96
Mary DOUGLAS, Pureza e perigo, p. 20.
393

uma coisa pode ser sujo em relação à outra. Quando pensamos nos rituais
umbandistas, observamos que após o adepto tomar o banho de ervas e vestir a
roupa branca não é permitido tocar em pessoas da assistência que chegam da rua.
O toque ou o contato físico é visto como uma forma de impureza. Tal fato tem um
sentido diferente do toque que ocorre na hora do passe, quando tocar significa
exatamente o contrário, ou seja, é através do toque que as energias negativas são
retiradas da pessoa tornando-a puro e limpo.

Os ritos religiosos e mágicos podem ser vistos como uma forma de higiene, já
que existem coisas que precisam ser separadas, pois não podem ser reunidas e
confundidas sem perigo, configurando-se como formas de interdições médicas e
higiênicas: “O sagrado é objeto de adoração da comunidade. Pode ser reconhecido
por regras que expressam seu caráter essencialmente contagioso”97. O sagrado
precisa ser tratado como contagioso, porque relações são expressas por rituais de
separação e de demarcação e por crenças no perigo de se cruzar fronteiras
proibidas. Por exemplo, durante o ritual do ossé, antes da entrega das oferendas, é
necessária uma limpeza na Casinha dos Exus do pai e da mãe-de-santo, que só
pode ser executada por um filho, designado pelo pai-de-santo, e por uma filha, eleita
pela mãe-de-santo, sob o risco de alguma coisa perigosa acontecer, caso a limpeza
seja executada por outra pessoa ou de maneira incorreta.

As regras rituais são sustentadas por crenças que contêm perigos específicos
em suas violações. Quanto mais nos aprofundamos nestas regras, mais
percebemos que estamos estudando sistemas simbólicos: “... passarei a sustentar
que nossas idéias de sujeira também expressam sistemas simbólicos e que a
diferença entre o comportamento da poluição em uma parte do mundo e em outra é
somente uma questão de detalhe”98. Assim, a sujeira pode ser pensada como um
conjunto de relações ordenadas e uma contravenção desta ordem. Onde há sujeira,
há sistema. Ainda, segundo a autora, a sujeira é um subproduto de uma ordenação
e de uma classificação sistemática das coisas, na medida em que a ordem implica
em rejeitar elementos inapropriados. A impureza ou a sujeira é aquilo que não pode
ser incluído, caso se queira manter uma ordem.

97
Mary DOUGLAS, Pureza e perigo, p. 34.
98
Ibid., p. 49.
394

Chegamos a dois momentos que marcam tanto o culto aos antepassados


quanto às giras de umbanda, no que diz respeito a questão da pureza ou da
limpeza. Nos dois casos, antes que qualquer ritual se inicie, é necessária a limpeza
do local em questão. No caso bantú, a limpeza aos pés da árvore sagrada; no caso
da umbanda, a limpeza do local, onde ocorre a gira, bem como de todos os
assentamentos e os lugares de oferendas. Outro destaque importante, de ambos os
rituais, é a presença de árvores99, como forma de delimitar o espaço que se torna
sagrado, deixando claro o que e quem pode ou não ser incluído. Tanto em um caso
quanto no outro, este espaço é um espaço móvel, não estando delimitado a priori100.
No caso bantú, a árvore escolhida; no caso da umbanda, não só as árvores e as
plantas101 escolhidas para determinada gira, mas também seu posicionamento
dentro do terreiro, que tem também uma função de limpeza e de demarcação.

Outro aspecto de relação entre os dois rituais é a formação dos círculos e dos
semicírculos, o que podemos entender como a delimitação de um espaço que
podemos chamar de magicamente protegido102. No caso bantú, temos a formação

99
Segundo Jean CHEVALIER; Alain GHEERBRANT, Dicionário de símbolos, p. 933, o vegetal é um
“... símbolo da unidade fundamental da vida. Inúmeros textos e imagens, em todas as civilizações,
mostram a passagem do vegetal ao animal, ao humano e ao divino, e o contrário. (...) Um circuito
incessante passa através dos níveis inferiores e superiores da vida. (...) É também um símbolo de
caráter cíclico de toda existência: nascimento, maturação, morte e transformação. (...) A vegetação é
naturalmente o símbolo do desenvolvimento, das possibilidades que se atualizarão a partir do grão,
do germe; e também a partir da matéria indiferenciada que a terra representa.
100
Segundo Milton SANTOS, em Metamorfoses do espaço habitado, o espaço é um sistema de
realidades, ou seja, um sistema formado pelas coisas e a vida que as anima, supõe uma legalidade:
uma estruturação e uma lei de funcionamento. O espaço é uma realidade relacional, isto é, coisas e
relações juntas. É percebido como conteúdo e representado no interior de si mesmo outros tipos de
relação que existem entre objetos. Ainda, segundo Ibid., p. 26-27, pode-se definir o espaço como: “O
espaço deve ser considerado como um conjunto indissociável de que participam, de um lado, certo
arranjo de objetos geográficos, objetos naturais e objetos sociais, e, de outro, a vida que os preenche
e os anima, ou seja, a sociedade em movimento. O conteúdo (da sociedade) não é independente da
forma (os objetos geográficos) e cada forma encerra uma fração de conteúdo. O espaço, por
conseguinte, é isto: um conjunto de formas contendo cada qual frações da sociedade em movimento.
As formas, pois, têm um papel na realização social. Pode existir uma reorganização das funções
entre as diferentes frações de território. Cada ponto do espaço é importante, efetivamente ou
potencialmente. Sua importância decorre de suas próprias virtualidades, naturais ou sociais,
preexistentes ou adquiridas segundo intervenções seletivas.
101
Segundo Jean CHEVALIER; Alain GHEERBRANT, Dicionário de símbolos, p. 723: “A planta
simboliza a energia solar condensada e manifesta. As plantas captam as forças ígneas da terra e
recebem a energia solar. Elas acumulam essas forças; daí as suas propriedades curativas ou
venenosas e seu emprego na magia. (...) As plantas trazem as suas sementes. Algumas delas, tais
como o hissopo, exercem um papel purificador”.
102
Segundo Ibid., p. 585: “A mandala é literalmente um círculo, ainda que o seu desenho seja
complexo e muitas vezes se encerre em uma moldura quadrada. Como o iantra (de uso
emblemático), mas de modo menos esquemático, a mandala é ao mesmo tempo um resumo da
manifestação espacial, uma imagem do mundo, além de ser a representação e a atualização de
potências divinas; é assim uma imagem psicagógicas, própria para conduzir à iluminação de quem
a contempla”.
395

do semicírculo em volta da árvore; no caso da umbanda, a Mandala de Fogo, a


disposição das plantas e a colocação dos adeptos em frente ao congá, lugar em que
nos dias de festa são depositadas as oferendas103. Esta configuração espacial
também nos remete à questão da interdependência das pessoas, seja da família
extensa, seja da família-de-santo. Em ambos os rituais, há a formação de uma
corrente, quando as pessoas se tocam, o que demonstra a presença da força vital,
que perpassa todos os membros do grupo – vivos e mortos. As ações, de qualquer
pessoa, positivas ou negativas, causam conseqüências nos outros, pois eles estão
ligados através desta energia.

A possibilidade de uma intervenção mágica sempre está presente na mente


dos bantú e dos umbandistas, no sentido de esperar benefícios materiais da
representação de símbolos, pois não se tem relação social sem atos simbólicos: “O
ritual não somente nos ajuda a selecionar experiências para concentrar a atenção.
Também é criativo quanto ao nível de desempenho. Pois um símbolo exterior pode
misteriosamente ajudar a coordenação do cérebro e do corpo”104. Neste sentido, os
ritos possuem uma ação mnemônica, já que focaliza a atenção por enquadramento,
anima a memória e liga o presente com o passado relevante, mudando a percepção.
Portanto, é possível afirmar que os rituais formulam a experiência, permitem o
conhecimento de algo que de outra maneira não seria conhecido, modificam a
vivência e se tornam expressão de algo fundamental.

Outros rituais que gostaríamos de destacar são aqueles que dizem respeito à
questão da legitimação da hierarquia. Bourdieu, em “Lês rites comme actes
d’institution”105, afirma que na formulação da teoria do rito de passagem, foram
deixadas de lado as questões que dizem respeito à função social do ritual e à
significação social do limite. Há uma diferença de significado para aqueles em que
determinado rito diz respeito e para aqueles aos quais ele não está relacionado. O
autor utiliza o termo ritos de consagração, ritos de legitimação ou ritos de instituição,
ao invés de ritos de passagem, pois tem como objetivo destacar as propriedades
variantes dos ritos sociais, entendidas como ritos de instituição.

103
É importante destacar que, na umbanda, há diferenças entre as giras semanais e as festas.
Normalmente, nas giras semanais não existe comida e bebida distribuída à assistência. No caso das
festas, por exemplo, festa de exu, festa de pretos-velhos, ou descida de orixás, normalmente é
servida comida e bebida à assistência, como uma forma de compartilhamento.
104
Mary DOUGLAS, Pureza e perigo, p. 81.
105
Cf. Pierre BOURDIEU, Lês rites comme actes d’institution. Actes de la recherce em S. Sociale.
396

Para ele, falar de rito de instituição é indicar que os ritos tendem a se


consagrar ou a se legitimar, desconhecendo o que é arbitrário e reconhecendo como
legítimo ou natural um limite arbitrário. Marca-se solenemente a passagem de uma
linha, que instaura uma divisão fundamental de ordem social. Sob pena de não se
compreender os fenômenos sociais, deve-se levar em conta o fato da eficiência
simbólica dos ritos da instituição, isto é, o poder de agir sobre o real em relação à
representação do real. Portanto, eles transformam a representação com a qual se
formaram os outros agentes e, sobretudo, o comportamento que eles adotam, para
que eles transformem a representação que a pessoa investida faz dela mesmo e os
comportamentos que ela crê que tem que adotar para se adequar a esta
representação.

No caso da umbanda, vemos que os rituais de instituição instauram a idéia de


um grupo familiar. A partir de alguns ritos, forma-se um sistema familiar, no qual
cada indivíduo sabe sobre o seu lugar e as suas obrigações – pai, mãe e filhos. Tal
situação permite que cada um, dentro da sua representação naturalizada, conheça
seus diretos e seus deveres, seja no tipo de relação que mantém com os outros
membros do grupo, seja no sentido das obrigações que tem a cumprir. Vemos que
as oferendas, junto como o ritual do Beija-mão e do Bate-cabeça, são rituais que
marcam a instituição e, mais do que isto, a hierarquia presente no terreiro.

Podemos levantar a hipótese de que a entrega de oferendas é um dos


momentos, dentro da umbanda, que mais se aproxima do culto aos antepassados
dos bantú, uma vez que como acontece neste culto, são entregues diversas coisas
aos guias e aos orixás, que têm o intuito não só de lembrá-los e cultuá-los, como
também de marcar a hierarquia, seja entre os seres humanos, seja entre os seres
humanos e as entidades. Feita a limpeza do local, onde são colocadas as oferendas,
são ofertadas as comidas, as bebidas, um tipo de fumo, as velas e alguns objetos
para aquela entidade (guia – antepassado / orixá – ancestral). Durante esta
oferenda, aquele que é responsável pela tarefa entoa algumas orações, além de
entrar em contato com as entidades e com o seu mundo, o que é perceptível, na
umbanda, através dos estados alterados de consciência. Já no caso dos bantú, além
das oferendas descritas acima, também há o sacrifício animal e há a confirmação,
por parte do dirigente da cerimônia, de que as oferendas foram aceitas.
397

Na parte final do culto aos antepassados, é feita a refeição comunitária,


seguida de danças ao som de tambores. Aqui, notamos a principal diferença entre a
umbanda e o culto aos antepassados dos bantú, no que se refere à forma, mas não
ao intuito, que continua a ser de comunhão, reforçando a pertença ao grupo. No
caso da umbanda, esta comunhão dá-se através da incorporação, como visto no
quinto capítulo, mas, por outro lado, tal como os bantú, esta celebração é feita com
dança e música. Após termos trabalhado o ritual propriamente dito, agora nos
debruçaremos em outro aspecto da relação entre a tradição bantú e a umbanda.
Sabemos que também na umbanda, a questão da religiosidade e a relação entre os
guias e seres humanos extrapolam o espaço ritual e se insere no cotidiano, como no
caso dos bantú, tópico que veremos a seguir.

6.5 – O cotidiano religioso

Quando falamos de umbanda, é possível perceber que várias ações religiosas


– oferendas, banho de ervas, formação de círculos (espaços protegidos), roupa
branca, beija-mão, defumação, oração, saudação dos guias e dos orixás, ritual de
incorporação, consulta, cantos e danças, alimentação - ocorrem durante a
cerimônia, a gira, aspecto que já abordamos, enquanto que uma gama de atos
religiosos são vivenciados na vida cotidiana - oferendas, oração, saudação dos
guias e dos orixás, consultas, alimentação, jogos adivinhatórios, preparação de
remédios, execução de trabalhos. Tal como acontece dentro da tradição bantú, não
há uma separação entre o momento religioso e a vida cotidiana. Na verdade, a
religiosidade é vivida a qualquer momento e em qualquer lugar; da mesma forma,
que os espíritos também interferem na vida das pessoas. Uma aproximação com os
atos religiosos cotidianos dentro da umbanda citados acima, nos permite uma
aproximação com a magia que encontramos dentro da tradição bantú.

Comecemos, pois, pelo ritual de incorporação. O ritual de incorporação


ocorreu fundamentalmente dentro das giras de umbanda, como visto neste capítulo,
porém, em algumas situações específicas, por exemplo, em uma consulta, é
possível que o médium receba determinado espírito para que ele possa auxiliá-lo. A
lógica instaurada aqui é a mesma que está presente dentro da tradição bantú, que
nos remete à questão da possessão. Ocorre que um espírito deseja transmitir
398

determinada mensagem e se apropria momentaneamente do corpo de outra pessoa


para fazê-lo. É importante lembrar que, dentro da hierarquia tanto bantú quanto
umbandista, espíritos são seres que estão acima dos seres humanos viventes, pois
tiveram uma vida exemplar e adquiriram esta condição especial após a morte.

A consulta é outro aspecto cotidiano que nos permite uma aproximação entre
aquilo que é bantú e umbandista. A consulta é algo usual dentro da umbanda. Como
vimos, em toda gira, há a consulta aos guias que estão presente dentro do terreiro.
Há também momentos em que estas conversas ocorrem fora do momento da gira e
o pai ou a mãe-de-santo as fazem desincorporados. Em alguns momentos, o guia
pode estar próximo e irradiar coisas a eles, mas também a consulta pode ser feita
através de alguns instrumentos que possuem um caráter adivinhatório. A umbanda,
porque sofreu uma séria de influências, possui uma variedade de instrumentos
adivinhatórios – jogo de búzios, cristais, taro, jogo de cartas, dentre outros -
diferentemente do grupo que pesquisamos, que se utilizam basicamente dos
ossículos. Na umbanda, muitas vezes, também é importante decifrar as mensagens
que querem ser dadas pelos guias. Quando isto não é feito através de suas próprias
vozes, pode ser feito através dos instrumentos adivinhatórios, como no exemplo a
seguir:

Quer dizer, a única vez que eu vi você atender foi quando cê tava com um baralho?
Ah, leitura de carta cigana! Não, mas eu atendo, eu atendo pessoas.
Você atende como Liliane?
Como Liliane.
Mas cê tá influenciada?
Não, às vezes é intuição. É isso, é aquilo, mas eu sei.
Então a entidade me dá um diagnóstico e quem vai atender sou eu.
Mas por exemplo, além do baralho cigano, cê faz, cê trabalho com, porquê, com outro
tipo de, outro tipo, búzios, alguma outra coisa?
Não, não, só baralho cigano. Eu fiz o curso de baralho cigano pra iniciada.106

Os motivos das consultas são os mais variados possíveis – questões


familiares, amorosas, pessoais, de saúde, de trabalho, dentre outras. Normalmente,
a partir daquilo que passa a ser conhecido e que pode estar causando os
106
L., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 13/06/08.
399

problemas, são feitas indicações de procedimentos, que podem solucionar ou, pelo
menos, ajudar para que as coisas se resolvam. Esses procedimentos incluem:
oferendas, banhos de ervas, orações, tratamento com remédios caseiros, como
garrafadas, acendimento de velas, leitura de textos sagrados, execução de
trabalhos, o que nos coloca em relação, novamente, com a tradição bantú, já que a
preparação tanto do banho de ervas quanto de remédios caseiros nos remete ao
médico tradicional, que encontramos em Maputo:

Mas, por exemplo, essas raízes que a criança toma, ela toma para não ter, então eu
nasci eu já vou tomar ou eu tomo pra curar depois que eu tenho?
Não, não. Não. Logo que nasce a criança tem que ter algumas raízes
tradicionais.
Ela vai beber isso?
Vai beber durante os cinco anos. Depois de cinco anos, pronto, pra não ter
problema. Mesmo aquilo ali, como que se diz, episitria aquilo que, às vezes, a
criança...107

Por fim, os motivos pelos quais as pessoas fazer as consultas nos leva à
questão da feitiçaria e do curandeirismo. É verdade que dentro da umbanda,
diferentemente da tradição bantú, não existe uma visão dialética de bem e de mal. A
umbanda, ao sofrer a influência de valores cristãos, seja através do catolicismo
popular, seja através do kardecismo, tem como mote não fazer o mal. Porém, o fato
de não fazer o mal deliberadamente, não significa que as pessoas não possam ser
atingidas por este mal. Assim, a umbanda não pratica feitiçaria, mas se defende
dela, através do que chamamos de curandeirismo dentro da tradição bantú:

Você sentia alguma coisa?


Eu senti uma vez, teve uma coisa lá interessante que aconteceu que foi um
trabalho muito feio que fizeram pra um amigo, amigo do irmão da mãe-de-
santo. E, e, fecharam a cortina, isso era raríssimo acontecer lá. E a entidade,
o Exu do Carlos inclusive, o Tranca Ruas materializou o veneno que tinham
mandado pro cara. O cara morreu depois, fizeram o trabalho, mas não
adiantou. A coisa, o veneno já tava instalado mesmo. E a assistência tinha
umas trinta quarenta pessoas naquela assistência. A assistência desesperada
porque não tá vendo, tá ouvindo aqueles barulhos. Naquele dia eu senti que
eu tava segurando as quarenta pessoas que tavam lá fora da assistência.
Porque eles olhavam pra mim desesperados, entendeu? E eu lembro que eu

107
S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
400

tava tão tranqüila. Uma mulher começou a passar mal, levei a mulher no
banheiro, voltei. Então eu senti que energeticamente aquelas pessoas tavam
meio que dependendo de mim, da minha reação. Porque só tinha eu lá fora
de dentro, né.108

Falando a respeito das questões cotidianas – saúde, família, trabalho, vida


pessoal -, podemos entender que as dificuldades pontuais trazidas nas consultas
pelos adeptos da umbanda transformam-se em signos de desordem abrangente que
até então permaneceram, para a pessoa, sem sentido. Eles passam a ser vistos
como algo mais amplo do que apenas uma dificuldade cotidiana. Geertz, neste
sentido, traz uma contribuição interessante, uma vez que entende a cultura humana
como um tipo de interpretação, que os membros de uma sociedade aplicam à sua
experiência e às construções que se formam sobre os acontecimentos pelos quais
eles passam. A interpretação é uma forma do ser humano tornar a sua vida
inteligível, ordenando os eventos separados nos quais estão envolvidos padrões de
experiência conectados:

Há uma dialética entre a religião e o senso comum – que impõe o exame de


uma em termos do outro, e vice-versa. A religião deve ser vista contra o
panorama da insuficiência – ou, de qualquer modo, da insuficiência sentida –
do senso comum como orientação total da vida; e também deve ser vista em
termos de seu impacto formador do senso comum, da maneira como, ao
questionar o inquestionável, ela forma nossa apreensão do mundo cotidiano
“do que existe” e no qual, quaisquer que sejam os tambores que ouvimos ou
deixamos de ouvir, temos de viver. 109

Montero110 nos auxilia no entendimento da lógica presente na umbanda e de


uma possível interpretação, quando fala da doença, ao afirmar que, a experiência
vivida da doença tornar-se concreta e perceptível para o sujeito quando imobiliza o
corpo, provoca interrupções no fluxo cotidiano de atividades rotineiras, domésticas
ou economicamente produtivas, interrupções estas que trazem resultados nefastos
para a própria organização da família. A doença que em um primeiro momento é
concebida como desordem e se torna, num segundo momento, positiva, ao se
constituir na possibilidade de abertura de um canal de comunicação com os guias. A

108
L., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 13/06/08.
109
Clifford GEERTZ, Observando o Islã, p. 103.
110
Cf. Paula MONTERO, Da doença à desordem.
401

formação desse canal de comunicação ocorre, para nós, não apenas através da
doença, mas de todo um arcabouço de dificuldades, que são enfrentadas no dia-a-
dia. Vemos, assim, que é constituída uma relação entre dois eventos que não é
causal, mas que permite uma ressignificação do fato para estas pessoas. Segundo
Jacobi, tais eventos podem ser chamados de sincrônicos e são explicados da
seguinte maneira:

Os eventos que, de acordo com as suas circunstâncias, são chamados “milagre”


ou “acaso” e que aparecem com uma simultaneidade vívida de percepções
internas (intuições, visões, sonhos) e vivências externas – não importa que
estejam no presente, no passado ou no futuro -, como, por exemplo, tudo que se
chama telepatia, não pertencem unicamente à “posição média” do consciente,
mas são fenômenos daquela esfera limítrofe, na qual o consciente e o
inconsciente se tocam ou se entrecruzam, como costuma acontecer, quando os
conteúdos inconscientes, com a baixa do nível consciente, espontaneamente
penetram na esfera destes. 111

Nota-se que algo paralisador pode ser substituído por um símbolo significativo
e enriquecedor da vida. Os eventos que dificultam a vida são entendidos como uma
mensagem dos guias ou dos antepassados, que, como sabemos, são intermediários
entre os seres humanos e o Ser Supremo. Portanto, a dificuldade pode ser
transformada em símbolo e adquirir um sentido para além do próprio fato concreto,
já que os símbolos religiosos formulam uma imagem da construção do mundo e um
modelo para a conduta humana, que são mutuamente reflexos. Tais símbolos
tornam crível a visão de mundo e tornam justificável o ethos, enquanto molduras da
percepção ou telas simbólicas pelas quais a experiência é interpretada e constituem
orientações para a ação, como guia de condutas. O lado visão de mundo da
perspectiva religiosa centra-se no problema da crença e o lado do ethos no
problema da ação:

Quando os homens se voltam para a vida cotidiana, eles vêem as coisas em


termos cotidianos. Se são religiosos, esses termos serão de alguma maneira
influenciados por suas convicções religiosas, pois é da natureza da fé
reivindicar a soberania efetiva sobre o comportamento humano. A fusão
interna da visão de mundo e do ethos é (...) o coração da perspectiva
religiosa, e a tarefa dos símbolos sagrados é provocar essa fusão. E o
encontro revelador com esses símbolos não tem lugar no mundo cotidiano do

111
Jolande JACOBI, Arquétipo, complexo e símbolo na Psicologia de C. G. Jung, p. 61-62.
402

senso comum, mas em contextos sociais que são necessariamente um tanto


distantes. Aquilo com que os religiosos têm que trabalhar na vida cotidiana
não e a percepção imediata do verdadeiramente real, ou o que tomam como
tal, mas sim a memória da percepção. 112

Para o adepto da umbanda, a religiosidade também é vivida no dia-a-dia.


Apesar de existir um momento no qual o adepto da umbanda prepara-se para a
vivência do ritual, tal como acontece no culto aos antepassados dentro da tradição
bantú, a influência religiosa encontra-se nas coisas diárias. A importância da religião,
neste sentido, está na capacidade de servir para um indivíduo como fonte de
concepções gerais do mundo, de si próprio, da relação entre elas (um modelo da
atitude) e das disposições mentais enraizadas (um modelo para a atitude). Fornece
um arcabouço de idéias gerais, em termos das quais pode ser dada uma forma
significativa a uma parte da experiência – intelectual, emocional, moral. A religião,
como um sistema de significados, incorporado nos símbolos, relaciona-se com os
processos sócio-estruturais e psicológicos das pessoas.

O que se vê é a lógica do senso comum instalada, é importante o


conhecimento partilhado na ação e na interação das pessoas, sendo que a todo o
momento, vemos que a significação da ação é compartilhada. Peguemos o exemplo
da morte. O morrer, por exemplo, que gera sofrimento e falta de sentido sugere a
busca de soluções. No caso, lembra-se da pessoa querida, ao cultuar os
antepassados. O ato de cultuá-los é interpretado e reinterpretado segundo a tradição
religiosa, precisando ter os significados possíveis. Não há a necessidade de que
haja significações pré-estabelecidas para que a interação se dê. Martins afirma que:

Portanto, mais do que uma coleção de significados compartilhados, o senso


comum decorre da partilha, entre atores, de um mesmo método de produção
de significados. Os significados são reinventados continuamente em vez de
serem continuamente copiados. As situações de anomia e desordem são
resolvidas pelo próprio homem comum justamente porque ele dispõe de um
meio para interpretar situações (e ações) sem sentido, podendo, em questão
de segundos, remendar as fraturas da situação social.113

112
Clifford GEERTZ, Observando o Islã, p. 117-118.
113
José de Souza MARTINS, A sociabilidade do homem simples, p. 55.
403

Mais uma vez o que vemos é uma leitura simbólica dos acontecimentos, por
que não dizer uma leitura utópica? A angústia e o desespero são transformados em
aprendizado e esperança. A tradição bantú ensina que reinventar é possível. Para
Certeau114, a prática cotidiana não se faz notar com produtos próprios, mas nas
maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante.
Opera no campo de um sistema, coloca em jogo uma apropriação, ou uma
reapropriação, da cultura dos locutores, instaura um presente relativo a um momento
e a um lugar e estabelece um contrato com o outro numa rede de lugares e de
relações. Há procedimentos populares que jogam com os mecanismos da disciplina
e não se conformam com ela a não ser para alterá-los, enfim, há maneiras de fazer
que formam a contrapartida dos processos mudos organizadores da ordenação
sócio-política. As maneiras de fazer constituem as mil práticas pelas quais os
usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas de produção sócio-
cultural. Essas práticas colocam em jogo uma razão popular, uma maneira de
pensar investida numa maneira de agir, uma arte de combinar indissociável de uma
arte de utilizar:

Como o direito (que é um modelo de cultura), a cultura articula conflitos e


volta e meia legitima, desloca ou controla a razão do mais forte. Ela se
desenvolve no elemento de tensões, e muitas vezes de violências, a quem
fornece equilíbrios simbólicos, contratos de compatibilidade e compromissos
mais ou menos temporários. As táticas de consumo, engenhosidades do fraco
para tirar partido do forte, vão desembocar então em uma politização das
práticas cotidianas. 115

É na vida cotidiana que se instalam as condições de transformação do


impossível em possível. Só quem tem necessidades radicais pode querer e fazer a
transformação da vida. Essas necessidades ganham sentido na falta de sentido da
vida cotidiana, muitas vezes pelas pessoas de tradição bantú e pelos umbandistas.
Só pode desejar o impossível aquele para quem a vida cotidiana se tornou
insuportável, justamente porque essa vida não pode ser manipulada. No instante
das rupturas do cotidiano, da inviabilidade da reprodução, é que se instaura o

114
Cf. Michel de CERTAU, A invenção do cotidiano.
115
Ibid., p. 44-45.
404

momento da invenção, da ousadia, do atrevimento e da transgressão. Já não se


trata de remendar as fissuras do mundo para recriá-lo, mas dar voz ao silêncio.

Vimos que há uma série de vetores convergentes que nos permitem


aproximar a tradição bantú da umbanda em vários momentos desta religião: na
forma como ela se estrutura, no seu ritual e na vivência cotidiana de seus adeptos.
Mas a questão da utopia e da possibilidade de renovação do mundo nos parece a
mais incisiva. Sabemos também que a umbanda não possui mais um caráter étnico,
mas é, sim, uma religião brasileira de tradição bantú, que sofreu influências múltiplas
e que, podemos supor, muito do que é bantú, já se encontra para além da umbanda
e de outras expressões afro-brasileiras, estando presente em várias facetas da
cultura brasileira. O que observamos é que estas formas de religiosidade já
possuíam flexibilidade e capacidade de adaptação na sua origem. De qualquer
forma o que notamos, atualmente, é que elas não são necessariamente de africanos
ou de afro-descendentes de tradição bantú, mas, muitas vezes, de brasileiros de
diversas origens éticas que formam o universo religioso brasileiro. Portanto, a
tradição bantú encontra-se diluída na formação da cultura brasileira, em vários
aspectos, conservada a partir de suas matrizes.

Não podemos falar sobre o futuro da tradição bantú, nem da umbanda, mas
vemos que um dos seus traços marcantes – a manutenção da tradição através da
tradução mediante a dimensão utópica – continua presente, buscando, atualmente,
a inserção das pessoas na sociedade, seguindo um lema que desde sua gênese
esteve presente: mudar para poder permanecer.
405

CONCLUSÃO

Em decorrência do sincretismo, podemos dizer que as


religiões afro-brasileiras têm algo de africanas e de
brasileiras, sendo porém diferentes das matrizes que as
1
geraram.
Resta, todavia, a pergunta se e em que medida a palavra
e a provocação utopia podem ou devem ser transpostas,
sem mal-entendidos desnecessários, também para
intenções e interesses que de forma alguma pertencem
ao passado, situando-se, completamente novos e atuais,
dentro da elevação da utopia à ciência ocorrida no
2
socialismo.

Depois de termos acompanhado os africanos e os afro-descendentes de


tradição bantú em sua longa trajetória pelo Brasil chegamos ao final, pelo menos
desta história. Gostaríamos de retomar, em linhas gerais, este caminho traçado por
nós, sempre levando em consideração que a trilha que percorremos pode ser
comparada ao afluente de um grande rio. Pegamos apenas um dos afluentes dessa
grande tradição, tendo claro que existem muitos outros que não foram abordados
neste trabalho, mas que também são expressões dessa tradição no Brasil.

Inicialmente, gostaríamos de relembrar a forma que este caminho tomou,


para, posteriormente, cuidarmos do conteúdo. De toda a trajetória dos africanos e
dos afro-descendentes de tradição bantú, percebemos quatro momentos de certa
estabilidade, em oposição aos momentos de liminaridade, e dois momentos de
liminaridade, quando se deu a mudança identitária de forma mais significativa. Os
momentos entendidos como estáveis dizem respeito à presença da tradição bantú
na África, seja no passado, seja atualmente; às expressões religiosas existentes na
época da escravidão no Brasil; à formação da umbanda no início do século XX e à
umbanda no momento atual. Quanto aos momentos de liminaridade, temos o
processo de diáspora e o período que compreende o pré e o pós-abolição, períodos
nos quais percebemos uma mudança da identidade, bem como uma modificação no
status social dos africanos e dos afro-descendentes de tradição bantú. Vale lembrar
também que quanto ao primeiro momento de liminaridade, ele foi vivenciado de

1
Sérgio Figueiredo FERRETI, Sincretismo afro-brasileiro e resistência cultural, In: Carlos CAROSO;
Jeferson BACELAR (org.), Faces da tradição afro-brasileira, p. 127.
2
Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 156.
406

maneira mais dramática, no sentido de não haver uma preparação para as


mudanças advindas dele, enquanto que o segundo trouxe consigo ganhos, uma vez
que houve o preparo para a vivência da liberdade, que foi algo desejado.

Assim, podemos afirmar que, inicialmente, recuperamos a tradição bantú


existente na África, com destaque ao seu aspecto religioso. Tal recuperação contou
não só com revisão bibliográfica, mas também com entrevistas realizadas na cidade
de Maputo. Entendemos não só a constituição dessa tradição, que cobre uma vasta
área do continente africano, mas também afirmamos que mais do que uma cultura
ou um tronco lingüístico, podemos dizer que aquilo que é bantú é uma tradição,
dado o fato dos grupos que a compõem seguirem eminentemente a tradição oral,
além de assumirmos que uma tradição congrega uma série de culturas locais. A
tradição foi vista tanto no passado quanto no presente, o que deixou claro que uma
tradição não é algo fixo, mas que ela se modifica com o decorrer do tempo.
Abordamos, também, a questão da religiosidade bantú, que foi divida em dois
grandes grupos. O primeiro versou a respeito dos grandes eixos religiosos dessa
tradição: o Ser Supremo e os antepassados. No outro grupo, trabalhamos a questão
do cotidiano religioso, estando inserida dentro desse cotidiano a questão da magia
em seus múltiplos aspectos: possessão, adivinhação, medicina tradicional e
curandeirismo / feitiçaria. O dado religioso encontra-se presente em todas as facetas
da vida destas pessoas, o que fez com que, em alguns momentos, abordássemos
outros aspectos da tradição bantú, como a organização e a visão do mundo, o
território, a família, a estruturação em linhagens e o sentido de comunidade. Estas
considerações nos auxiliaram no entendimento daquilo que estava por vir, servindo
como um grande guia.

Passamos, então, ao processo de vinda de africanos de tradição bantú ao


Brasil. Fomos, assim, para o nosso primeiro momento de liminaridade: o processo
de diáspora. Esse processo, tal como um rito de passagem, iniciou-se na própria
África, no momento da captura; passando pela chegada e pela estadia nos fortes e
nos barracões, que podia durar alguns meses; pela pseudo-conversão, isto é, a
atribuição de um nome cristão para aqueles que estavam embarcando; pelo navio
negreiro; e, por fim, na chegada aos portos brasileiros. Além da mudança de
identidade – de africano livre para escravizado no Brasil – que parece estar clara,
ressaltamos outros pontos importantes que dizem respeito à própria tradição bantú.
407

O primeiro deles fala a respeito da impossibilidade de pensarmos que determinada


tradição diaspórica, seja ela qual for, possa chegar pura a um novo lugar. No nosso
caso, seja pelo encontro com a religião cristã e com a cultura portuguesa, seja pelos
encontros e pelas trocas culturais ocorridos com outras tradições africanas. O
segundo deles se refere ao esfacelamento das estruturas da tradição bantú, tais
como a família, a comunidade, o território e o nome. Porém, ao mesmo em que
houve a impossibilidade de expressar estes dados dentro da situação diaspórica,
observarmos que mediante o contato com outro grupos, houve a ressignificação
destas práticas. Assim, desta maneira, eles chegaram ao Brasil e tiveram que se
deparar com sua nova identidade: a identidade de escravizado.

A escravidão no Brasil compreendeu um longo período de tempo e carregou


em si uma multiplicidade imensa de fatores. Em função disso e do nosso trabalho
com os processos-crimes antigos, abordamos a questão da escravidão de africanos
e de afro-descendentes de tradição bantú, a partir da relação estabelecida com a
Igreja Católica. Para falarmos sobre essa relação, inicialmente, observamos que
para a Igreja Católica, a escravidão poderia ser um meio dos escravizados se
converterem e se tornarem seres humanos melhores. Tal idéia contou com
justificativas bíblicas. Ao nos debruçarmos sobre os processos-crimes antigos,
pudemos perceber que o escravizado, apesar de não ser entendido como uma
pessoa, foi percebido, nesses processos, como alguém que gozava de consciência
e, portanto, um sujeito histórico, o qual era responsabilizado por seus crimes
eclesiásticos. O diálogo com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia foi
fundamental para esta compreensão. Ao olharmos atentamente os processos-
crimes, pudemos perceber uma série de elementos bantú nas práticas condenadas
pela Igreja Católica, normalmente práticas entendidas como mágicas. É preciso
lembrar que aos africanos e aos afro-descendentes de tradição bantú não era
permitido a expressão de sua religiosidade de maneira institucionalizada, mas tal
fato não impediu que pudéssemos coletar sobrevivências bantú nos processos-
crimes. Chegamos ao calundu, prática afro-brasileira associada ao candomblé, mas
que sugerimos poder estar relacionada também com a umbanda, sendo um dos
germes desta religião. O longo tempo de escravidão não impediu que ela
inaugurasse uma nova forma de estruturação societária no Brasil. A passagem da
escravidão para o capitalismo representou um novo momento de liminaridade.
408

Um novo momento de liminaridade foi entendido como o período que


compreendeu os últimos anos de escravidão e os primeiros anos de liberdade,
tempos que foram vistos como tempos de incertezas. Mais do que um fim abrupto da
escravidão, apontamos que houve um processo histórico que permitiu a extinção de
uma forma de organização e o nascimento de outra. Vimos também que os
escravizados de tradição bantú, estavam atentos a todo o processo e, mais do que
isto, como sujeitos históricos que foram, lutaram utopicamente por aquilo que
julgavam ser mais adequado para eles, ou seja, a liberdade. A mudança identitária
implicou em deixar de ser escravizado para se tornar um ser humano livre. Além de
essa mudança ter sido algo desejado, houve um aprendizado anterior, o que
implicou na preparação, por parte dos escravizados, das gerações futuras para a
vivência da liberdade. Foram gestados projetos de liberdade. Percebemos que
esses projetos de liberdade em muito se assemelhavam com aspectos estruturantes
da tradição bantú, tais como: território, família, antepassados e religiosidade,
estando todos eles ancorados em uma estrutura comunitária. Tornando-se seres
humanos livres, os africanos e os afro-descendentes de tradição bantú, viram-se
com uma nova questão: ser cidadão dentro de uma sociedade capitalista.

Ao falarmos da sociedade brasileira em formação no final do século XIX e


início do século XX, retomamos o significado da abolição da escravidão e a
Proclamação da República para a inserção social de africanos e de afro-
descendentes de tradição bantú, percebendo que tais fatos pouco significaram no
sentido de auxiliá-los na conquista da cidadania. Também retomamos o papel dos
grandes grupos constituintes da sociedade escravocrata – Igreja Católica, classe
senhorial, abolicionistas (um pouco mais detalhadamente) e escravizados – e
pudemos perceber que enquanto uns eram contra o término da escravidão, outros,
mesmo sendo a favor, após a sua conquista, deixaram os libertos jogados à própria
sorte. A conquista da cidadania por parte de africanos e de afro-descendentes foi
dificultada também pelo grande processo imigratório que se iniciou, bem como pelo
racismo que se apresentava como científico. Frente a esta situação, restou a eles a
tentativa de inserção social e de recuperação de aspectos da tradição, que foi feita
através da formação de uma nova religião – a umbanda. Após apresentarmos
algumas obras sobre umbanda, buscando a conexão com aquilo que é bantú,
afirmamos que a umbanda foi uma utopia para os africanos e os afro-descendentes
409

de tradição bantú, uma vez que ela nasceu a partir de uma experiência concreta,
contendo em si um caráter antecipatório, portador de esperança. Apontar a
umbanda enquanto uma utopia bantú, ainda se encontrava em um nível teórico, o
que nos levou a entender o que é bantú na umbanda na atualidade.

Ao falarmos a respeito da umbanda na atualidade, tínhamos em mente nos


perguntarmos sobre aquilo que é bantú na umbanda. Para tanto, inicialmente,
trabalhamos a estruturação da umbanda e percebemos que houve a recuperação
dos projetos de liberdade – território, família, antepassados, religiosidade – que
observamos durante o período do pré e do pós-abolição. Dentro da umbanda, tais
projetos passaram a ser realizações de liberdade, realizações através das quais a
umbanda se estruturou, reconstruindo aspectos da tradição bantú, de maneira
ressignificada, apontando para sua sobrevivência. Também resolvemos observar
mais detalhadamente um terreiro de umbanda e o seu ritual público – a gira -,
buscando, novamente, aspectos da tradição bantú. Percebemos traços bantú não
apenas na gira propriamente dita, mas também nos seus rituais preparatórios e
finais. Mais do que algo que se encontra circunscrito ao ritual propriamente dito,
terminamos nossa história bantú, afirmando que o cotidiano dos umbandistas
também partilha de um entendimento de mundo e de significação das vivências
muito semelhante ao que ocorre dentro da tradição bantú, estando este cotidiano
permeado por uma vivência mágica de mundo.

Frente ao que foi colocado até então, é possível afirmar que nossa hipótese
foi corroborada, uma vez que as expressões e as ressignificações religiosas dos
bantú no Brasil podem ser entendidas como formas de continuidades e de
sobrevivências, que se precipitaram a partir das condições históricas e dos
acontecimentos sociais. Por isto, essas expressões não se mantiveram de maneira
igual, sendo que dentro desta tradição alguns aspectos foram recuperados, outros
descartados e outros transformados, no intuito de uma reorganização simbólica. O
que vimos foi que para cada momento histórico trabalhado, houve a formação de
práticas culturais diversas que adquiriam um novo sentido e um novo significado.
Por outro lado, o fato de existir uma ressignificação cultural, que apontou para
processos de hibridismo, não impediu que aquilo que é estrutural não pudesse ser
traduzido, permanecendo ao longo do tempo como um componente cultural
inconsciente, que pode ser visto como uma forma de resistência. Ao significar, os
410

africanos e os afro-descendentes de tradição bantú não fizeram uma escolha, mas


apenas recuperaram algo que esteve com eles desde que existem e, muitas vezes,
por aquilo que existem. Houve a formação de um sistema religioso original – a
umbanda -, com capacidade de responder às necessidades religiosas das pessoas
pertencentes a esta tradição, que manteve aquilo que é fundamental dentro dela,
pois sua formação esteve apoiada na esperança consciente, na qual o traço do
desejo e da vontade irrompeu energeticamente.

É possível afirmar que com o presente trabalho chegamos aos seguintes


resultados: identificamos a influência da tradição bantú na umbanda;
proporcionamos o entendimento de como as pessoas que pertencem à determinada
tradição, no caso a tradição bantú, ressignificaram as suas práticas religiosas ao
longo do tempo; e oferecemos subsídios para a compreensão das práticas de
hibridismo religioso, fazendo uma primeira tentativa no sentido de fornecer uma
chave de leitura ou um método para a compreensão de uma tradição diaspórica, no
nosso caso, a partir da tradição bantú. Falando especificamente a respeito da
criação de um método para o entendimento de sobrevivências traduzidas de
tradições diaspóricas, propomos os seguintes passos: 1) identificação dos aspectos
estruturantes desta tradição, seja antes do processo diaspórico, seja na atualidade,
uma vez que aquilo que é efetivamente relevante permanece, mesmo que
ressignificado, no seu lugar de origem; 2) apontamento das possíveis rupturas da
tradição estudada e dos encontros culturais ocorridos na diáspora propriamente dita;
3) levantamento de possíveis práticas culturais e religiosas no lugar de chegada por
parte daqueles que ainda são estrangeiros; 4) estabelecimento de conexão dessas
práticas com os aspectos estruturantes da tradição; 5) resgate das condições
históricas e sociais quando ocorre a formação desta religiosidade híbrida de maneira
institucionalizada; 6) descrição da prática híbrida através de símbolos e de rituais; 7)
estabelecimento de conexão da religiosidade híbrida com os aspectos estruturantes
da tradição estudada.

Este trabalho possui alguns desafios que não chegaram a ser superados,
sejam elas de ordem empírica, sejam elas de ordem teórico-metodológica. Quanto
às questões de ordem empírica, vemos como falta a não realização de trabalho de
campo em Angola. Apesar de vários escravizados terem vindo de Moçambique,
sabemos que a maior parte dos escravizados trazidos ao Sudeste eram
411

provenientes de Angola, sendo que aqueles que não eram originariamente desta
localidade, passaram por ela, já que a mesma possui o porto que embarcou mais
pessoas ao Brasil. Talvez, peculiaridades da tradição bantú em Angola possam ter
passado desapercebidas. Além disso, entendemos que outra limitação fala a
respeito da impossibilidade de realizarmos o trabalho etnográfico em Maputo, no
caso a descrição do culto aos antepassados. Utilizamos descrições feitas por outros
autores, que não deixam nada a desejar, mas a descrição feita por nós poderia
apontar este ritual na atualidade, bem como dar um toque de concretude ao próprio
ritual. Por fim, não houve a utilização de documentos de fins do século XIX e início
do século XX. O seu uso poderia ter nos auxiliado não só no entendimento da
religiosidade existente no pré e no pós-abolição, como também na melhor
compreensão dos projetos de liberdade. Quanto às questões de ordem teórico-
metodológica, nossas limitações se iniciam pelo tempo. Percorremos um período
longo, o que pode ter implicado em uma perda de profundidade dos momentos
abordados. Além disso, trabalhamos com apenas uma das expressões bantú no
Brasil. Como dissemos no início desta conclusão, as trilhas tomadas pela tradição
foram múltiplas, o que, talvez, inviabilize possíveis generalizações. Por fim, muitos
textos a respeito da tradição bantú não foram escritos por pessoas pertencentes a
essa tradição, o que implicou em termos que fazer traduções em vários momentos,
não esquecendo que toda obra tem a sua parcela de ideologia.

Conseguimos destacar três grandes horizontes que foram abertos por este
trabalho. O primeiro deles diz respeito ao papel que os indígenas tiveram na
formação da umbanda. A umbanda como uma religião brasileira e eminentemente
híbrida pode ter contado com uma influência indígena muito maior do que se soube
até então. A presença dos caboclos como entidades, que estão no princípio de sua
formação, pode ser um indício disto. Um segundo ponto é a questão da influência
bantú no jeito de ser do brasileiro. A tradição bantú chegou ao Brasil logo na sua
constituição. Vemos múltiplas expressões bantú em várias áreas da cultura brasileira
– música, linguagem, religião -, porém pode existir uma presença bantú para além
do dado cultural e essa presença ser constituinte do jeito de ser brasileiro ou da
alma brasileira. Por fim, um último horizonte aberto por este trabalho fala sobre as
transformações das tradições ao longo do tempo, no sentido de apontar diferenças
entre a forma como a tradição se comporta dentro de contextos diaspóricos dentro
412

dos seus locais de origem. Pudemos perceber que a tradição bantú comportou-se de
maneira diferente no Brasil e em Moçambique, no primeiro caso, visando o
hibridismo, no segundo caso, optando pela separação. Talvez, coubesse perguntar
sobre a forma como a tradição se comporta no sentido de obter a sua sobrevivência,
em diferentes localidades, atravessada por contextos históricos diversos.

Figura 22 - Árvore sagrada


Fonte: www.ritosdeangola.com.br/pagephp?79. Acesso em: 03 mar 2010

Pois, senhor inspector, eu sou essa árvore. Venho de


uma tábua de outro mundo mas o meu chão é este,
minhas raízes nasceram aqui. São estes pretos que
todos os dias me semeiam. (...)
Hoje eu sei: África rouba-nos o ser. E nos vaza de
maneira inversa: enchendo-nos de alma. Por isso, ainda
hoje me apetece lançar fogo nesses campos. Para que
eles percam a eternidade. Para que saiam de mim. É
que estou tão desterrado, tão exilado que já nem me
sinto longe de nada, nem afastado de ninguém. Me
entreguei a este país como quem se converte a uma
religião. Agora já não me apetece mais nada senão ser
uma pedra deste chão. Mas não uma qualquer, dessas
que nunca ninguém há-de pisar. Eu quero ser uma pedra
3
à beira dos caminhos.

3
Mia COUTO, A varanda do frangipani, p. 46-47.
413

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