Brigida Carla Malandrino
Brigida Carla Malandrino
Brigida Carla Malandrino
PUC-SP
SÃO PAULO
2010
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
SÃO PAULO
2010
Banca Examinadora
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Dedicatória
É possível afirmar que com o presente trabalho chegamos aos seguintes resultados:
identificamos a influência da tradição bantú na umbanda; proporcionamos o
entendimento de como as pessoas que pertencem à determinada tradição, no caso
a tradição bantú, ressignificaram as suas práticas religiosas ao longo do tempo; e
oferecemos subsídios para a compreensão das práticas de hibridismo religioso,
fazendo uma primeira aproximação no sentido de fornecer uma chave de leitura ou
um método para a compreensão de uma tradição diaspórica, no nosso caso, a partir
da tradição bantú. Falamos especificamente a respeito da criação de um método
para o entendimento de sobrevivências traduzidas de tradições diaspóricas.
The subject under study in this work are the expressions of bantu religiousness in
Brazil, emphasizing the utopian form, that is, the desired and transitory form
according to the view of Religion Sciences. We worked with the hypothesis that the
religious expressions of the groups of bantu tradition in Brazil, throughout history, can
be understood as forms of continuity, but we also understand that there is no such
thing as a uniform whole, but that some aspects are recovered, others are discarded
and yet others are transformed, as a way of achieving a symbolic reorganization. The
formation of new religious expressions, such as umbanda, represented this attempt
by people.
To start, in a preliminary form, we touched the question of the bantu tradition. Then
we talked about the Diaspora process and the transformation of the free African into
a slave in Brazil. After that, we considered the period of slavery in Brazil, focusing on
the relationship of the Catholic Church to slavery, talking about Afro-Brazilian
practices of bantu tradition, during this period. Next we worked the periods pre and
after abolition, when a new identity change happened, that is, from slavery to
freedom. From this point on, we talked about umbanda; first as a bantu utopia, then
we go on as almost a follow up of the Fifth Chapter, talking about the bantu aspects
in umbanda nowadays.
It is possible to state that, according to this work, we have achieved the following
results: we have identified the influence of the bantu tradition in umbanda; we got the
understanding of how people belonging to a specific tradition, in this case, the bantu
tradition, have managed to give new meanings to their religious practices throughout
time; and we have offered contribution for the understanding of hybrid religious
practices, doing a first approximation in the sense of offering a reading key or a
method to understand a diasporic tradition, in our case, from a bantu tradition
standpoint. Specifically we have written about the creation of a method for the
understanding of survivals translated from diasporic traditions.
Ao Prof. Dr. Ênio José da Costa Brito, meu orientador, que me apoiou nas
decisões tomadas durante a elaboração da tese, estando sempre atento às minhas
intuições e às minhas idéias. Agradeço também pelo fato dele estar comigo durante
todo esse processo, fazendo com que ele se tornasse menos duro, não só contanto
com as suas contribuições acadêmicas, mas também com os seus conselhos no
âmbito pessoal. Este trabalho é fruto dos encontros que tivemos. Certamente ter
convivido com ele por estes anos e tê-lo tomado como modelo fez de mim uma
pessoa e uma profissional melhor.
Ao Prof. Dr. Silas Guerrieiro, que, gentilmente, leu o material do meu Exame
de Qualificação, agradeço pelos questionamentos e pela desconstrução. A angústia
daquela conversa permitiu o meu encontro com a utopia.
Ao Prof. Dr. José J. Queiroz, que foi responsável por me “iniciar” nos
“mistérios metodológicos”, o que facilitou muito o meu percurso.
Aos queridos professores Dr. Frank Usarski e Dr. Fernando Torres- Londonõ
e à querida professora Dra. Maria José Rosado Fontelas-Nunes do Programa de
Estudos Pós-graduados em Ciências da Religião, que, constantemente, depositaram
uma confiança inabalável em mim, mesmo quando eu a havia perdido.
À Andréia Bisuli e Souza, que sempre me auxiliou nos meandros
administrativos da PUC/SP e por quem desenvolvi um afeto que, em muito,
extrapola o âmbito profissional.
Aos meus amigos, José Carlos dos Santos e Ana Carolina Chizzolini Alves,
com quem passei divertidas segundas-feiras no Programa de Estudos Pós-
graduados em Ciências da Religião e tenho a sorte de tê-los, atualmente, em minha
vida pessoal.
Agradeço aos meus pais, Mara e Martino, que desde sempre me mostraram o
quanto o conhecimento é fundamental. Especialmente à minha mãe por ter me
ajudado em momentos práticos da minha tese. Ao meu marido, Nelson, por estar ao
meu lado. À Dora e a Rita Lee, que sempre fazem o meu mundo parecer melhor. À
tia Ana e sua família por sempre estarem presentes nos meus momentos.
À Geisa, à tia Irani, ao tio Moraes e ao Márcio, pessoas com as quais eu vivo
o sentido da família extensa, sabendo que o amor familiar excede os laços
sanguíneos. À Lizandra, pessoa com quem sempre tive uma relação clara e
transparente, podendo mostrar o que há de pior em mim. À Henriette e à Silvia,
amigas de todas as horas, companheiras, para quem não tenho segredos. À
Cristiane e à Janaína, minhas companheiras em Maputo, pessoas que quero ter a
vida toda, que me deram a segurança que precisava para ir e estar em Maputo. À
Helvânia, minha companheira de trabalho.
Introdução ............................................................................................................... 17
2.3.4 – O navio negreiro e a travessia do Atlântico (do Kalunga grande) ...... 149
3.3.1 – Processos-crimes séculos XVIII e XIX: uma breve apresentação ..... 200
5.2 – Dimensão utópica dos acontecimentos: uma leitura bantú ....................... 294
5.3.3 – Estudos a respeito da relação entre umbanda e relação bantú ......... 314
5.4.1 – A incorporação dos guias na umbanda: uma forma de utopia ........... 331
Conclusão
1
Mia COUTO, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, p. 258.
17
INTRODUÇÃO
Não tenho clareza absoluta do que me levou a estudar a tradição bantú3, mas
ouvi algo de uma curandeira em Maputo que me fez dar sentido à minha escolha.
Quando estava fazendo a entrevista4, ela me falou que o motivo para eu estar ali era
o fato dos meus antepassados desejarem que eu fizesse um trabalho sobre esta
tradição com o intuito de divulgá-la. Lembrei, no mesmo instante, que escutei algo
semelhante no meu mestrado, quando o chefe espiritual de um dos terreiros – Seu
Cacique -, que realizei o trabalho de campo5, falou que minha missão era divulgar a
umbanda. Bom, então, que assim seja...
Por outro lado, noto que há um tema que me persegue desde a minha
especialização: a questão da mudança e da permanência. Na especialização, esta
questão foi estudada através de um viés psicológico, mais precisamente dos
complexos inconscientes6; no mestrado, a permanência simbólica e religiosa7, vista
na intersecção entre o psicológico e o cultural. No doutorado, a mudança e a
permanência revelam-se através de uma determinada tradição, mediante o dado
religioso, o que nos permite falar em sobrevivência cultural. Dissertamos sobre
1
Carlos SERRANO; Maurício WALDMAN, Memória D’África, p. 15.
2
Edison de Sousa CARNEIRO, Ladinos e crioulos, p. 104-105. Gostaríamos de lembrar que
CARNEIRO escreveu este texto em 1953 e vemos o quanto ele ainda encontra-se atual.
3
Utilizaremos a grafia bantú, pois é aquela que mais se aproxima da grafia utilizada pelos africanos,
não havendo diferenciação entre masculino e feminino. É usual, em pesquisas acadêmicas,
encontrarmos a grafia banto, e, até, algumas vezes banta, para se referir a alguma coisa do gênero
feminino.
4
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
5
Cf. Brígida Carla MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanências.
6
Cf. IDEM, Relação mãe-filho: a perpetuação dos complexos familiares através de gerações, Jung &
Corpo.
7
Cf. IDEM, Umbanda: mudanças e permanências.
18
aspectos de algo que se transformou ao longo do tempo, mas que continua a existir
de maneira ressignificada, quando desejados consciente e provisoriamente por
aqueles que fazem parte da tradição. Ao compreender a religiosidade bantú,
buscamos revelar os mecanismos de permanências e de mudanças que formaram
novos saberes e fazeres, acompanhando a história desta tradição. Assim, o tema
deste trabalho são as dimensões utópicas da religiosidade bantú no Brasil, bem
como as suas expressões e suas ressignificações ao longo do tempo.
Frente ao que foi colocado até agora, este trabalho torna-se relevantes, pois
as obras destacada por nós, a respeito da tradição bantú, pouco falam a respeito
dela, em seus aspectos históricos, dentro da realidade brasileira, tendo-a como seu
objeto de estudo. Estudar a tradição bantú faz-se importante, pois como bem coloca
Slenes:
... a grande maioria dos escravos importados para o atual Sudeste do Brasil,
desde o final do século XVIII até 1850, veio de sociedades falantes de línguas
bantu, principalmente da atual Angola e da região que a historiadora Mary
Karasch chama de “Congo-Norte” (a bacia do rio Congo/Zaire e a costa ao
norte da desembocadura desse rio, até e incluindo o atual Gabão).8
8
Robert W. SLENES, Na senzala, uma flor, p. 142.
9
Segundo Gilberto FREYRE, em Casa-grande & senzala, os brasileiros trazem a sombra do africano,
da sua influência direta, vaga ou remota. Para ele, no Brasil houve uma predisposição para a
miscigenação, principalmente por parte do português, que vivenciou o sincretismo durante a sua
história, chamado de antagonismo. Mas tal antagonismo não está presente em toda e qualquer
cultura? O sincretismo não é condição sine qua non da formação de qualquer cultura? Talvez a
diferença do português para outros grupos seja a sua facilidade em lidar com tal situação ou, quem
sabe, a consciência de se saber sincrético. Cada vez mais, parece que quanto mais um povo se
dispõe ao sincretismo, maior a chance de sua sobrevivência cultural e, aqui, destaco o caráter de
resistência do sincretismo. Transformar aspectos de determinada cultura, mais do que negá-la ou
torná-la impura, é uma forma de continuidade e manutenção de seus próprios aspectos, mas de
maneira ressignificada. Podemos afirmar que estes antagonismos estão presentes em qualquer
cultura. Cf. Ricardo Benzaquen de ARAÚJO, Guerra e paz; Ênio José da Costa BRITO, Anima
brasilis.
20
10
Cf. Gilberto FREYRE, Casa-grande & senzala.
11
João José REIS, em Domingos Sodré, p. 316-317, traz uma importante contribuição para o termo
ladino: “Prefiro chamá-lo ladino, e à sua trajetória, um processo de ladinização. (...) sugiro que a
expressão seja entendida quase em seu sentido nativo, válida para todas as gerações de africanos
natos que, mesmo na época da vigência plena do tráfico, tiveram com o tempo de adaptar, reinventar
e criar de novo seus valores e prática culturais, além de assimilar muitos dos costumes locais, sob as
novas circunstâncias e sob a pressão da escravidão deste lado do Atlântico. Os ladinos, no entanto,
se adaptaram sem descartar tudo que haviam aprendido do lado de lá do Atlântico. Por isso prefiro
chamar de ladinização à dinâmica cultural e, mais amplamente, a experiência de vida protagonizada
pelo adivinho Domingos Sodré na Bahia”.
12
Marina de MELLO E SOUZA, África e Brasil africano, p. 83.
21
13
incorporando elementos das culturas indígena, portuguesa e iorubá” . Nos dizeres
de Lopes, ainda há:
Enfim, se os escravos não eram seres anônimos, triturados até na alma pelo
engenho do cativeiro, se tinham uma herança cultural própria e instituições,
mesmo que imperfeitas, para a transmissão e recriação dessa herança, então
o fato de que provinham de etnias africanas específicas torna-se importante.
Torna-se, aliás, decisivo para o curso da história se aceitarmos a idéia de que
pessoas interpretam sua experiência vivida, e tentam mudá-la a partir de sua
visão do mundo, por sua vez formada na experiência anterior...16
13
Marina de MELLO E SOUZA, África e Brasil africano,p. 87. Tal afirmação nos remete, vagamente, à
constituição da umbanda.
14
Nei LOPES, Bantos, malês e identidade negra, p. 9.
15
Linda HEYWOOD, Introdução, In: Linda HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 19.
16
Robert W. SLENES, Na senzala, uma flor, p. 133-134.
22
Frente ao que foi exposto até então, pode-se dizer que o objeto de estudo
deste trabalho são as expressões da religiosidade bantú no Brasil, dando destaque à
forma utópica, portanto à dimensão desejada e transitória dentro do enfoque das
ciências da religião.
Tal fato ocorre, pois há um espaço cultural, onde a negociação das diferenças
cria uma tensão peculiar às existências fronteiriças. Há a criação de novas
identidades híbridas e transitórias, nas quais a maioria dos ingredientes culturais
mistura-se, mas alguns pedaços continuam a permanecer nesta mistura. O sujeito
da diferença cultural torna-se um problema, o elemento de resistência no processo
de transformação, aquele elemento de uma tradução que não se presta a ser
17
Reginaldo PRANDI, Segredos guardados, p. 244.
24
traduzido. Apesar dos processos sincréticos pelos quais passa determinada tradição
e, no nosso caso, a tradição bantú, há certos elementos que não são traduzidos,
permanecendo os mesmos ao longo do tempo, como uma forma de manutenção:
18
Homi K. BHABHA, O local da cultura, p. 308.
19
Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 95-96.
25
20
Walter BENJAMIN apud Homi K. BHABHA, O local da cultura, p. 238.
26
21
Cf. Renato ORTIZ, A consciência fragmentada. As Idéias de ORTIZ encontradas neste livro estão,
fortemente, baseadas no que foi proposto por GRAMSCI como cultura popular.
22
Cf. Núbia Pereira de Magalhães GOMES; Edimilson de Almeida PEREIRA, Mundo encaixado.
23
Cf. Renato ORTIZ, A consciência fragmentada, p. 67-89.
24
Núbia Pereira de Magalhães GOMES; Edimilson de Almeida PEREIRA, Mundo encaixado, p. 33.
27
que mostram o diálogo que estabelecem entre si, realçando suas diferenças. O
regime escravocrata gerou na cultura afro-brasileira uma situação ambivalente, que
revela integração e marginalização:
25
Núbia Pereira de Magalhães GOMES; Edimilson de Almeida PEREIRA, Mundo encaixado, p. 34.
28
26
Cf. Clifford GEERTZ, A interpretação das culturas.
27
Ibid., p. 33.
29
28
Clifford GEERTZ, A interpretação das culturas, p. 66-67.
30
31
Homi BHABHA, O local da cultura, p. 165.
32
Ibid., p. 161.
32
identidades constituem a cultura, ao mesmo tempo em que são constituídas por ela.
Segundo Ciampa, a identidade é a articulação da diferença e da igualdade que
ocorre durante a atividade. Apesar de a identidade apresentar-se, aparentemente,
estática e imutável, sempre há possibilidade de transformação, tal como acontece
com o dinamismo cultural:
34
Stuart HALL, As identidades cultuais na pós-modernidade, p. 13.
34
fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a
ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as
novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas
e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os traços das
culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas
quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão
unificadas no velho sentido, porque elas são irrevogavelmente, o produto de
várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo
tempo, a várias “casas” (e não a uma “casa” particular). As pessoas
pertencentes a essas culturas híbridas têm sido obrigadas a renunciar ao
sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural “perdida”
ou de absolutismo étnico. Elas estão irrevogavelmente traduzidas. (...) Eles
devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas
linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas. 35
35
Stuart HALL, As identidades cultuais na pós-modernidade, p. 88-89. (O grifo é nosso)
36
Maurice HALBWACHS, A memória coletiva, p. 71-72.
35
Cada aspecto, cada detalhe desse lugar tem um sentido que só é inteligível
para os membros do grupo, porque todas as partes do espaço que ele
ocupou correspondem a outros tantos aspectos diferentes da estrutura e da
vida de sua sociedade, pelo menos o que nela havia de mais estável.39
37
Maurice HALBWACHS, A memória coletiva, p. 86.
38
Ibid., p. 130.
39
Ibid., p. 160.
36
40
Maurice HALBWACHS, A memória coletiva, p. 162.
41
Cf. Ernest BLOCH, O princípio esperança.
42
Ibid., p. 114.
37
43
Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 77.
44
Ibid., p. 124.
38
45
Núbia Pereira de Magalhães GOMES; Edimilson de Almeida PEREIRA, Mundo encaixado, p. 28.
46
Joan del Alcàzar i GUARRIDO, As fontes orais na pesquisa histórica, Revista Brasileira de História,
p. 43.
39
No sexto capítulo, por fim, quase como uma continuidade do quinto capítulo,
falamos a respeito dos aspectos bantú na umbanda, mas, agora, na atualidade.
Inicialmente, abordamos a estruturação da umbanda, desvelada através da
presença da família, do território e dos antepassados, que na umbanda foram
transformados em família-de-santo, em espaço doméstico ou terreiro e em guias e a
questão da linhagem. Apresentamos, então, duas linhas existentes na umbanda:
pretos-velhos e caboclos, buscando relações com aquilo que é bantú, especialmente
a questão dos antepassados. Descrevemos, então, os símbolos e um ritual
umbandista – a gira - e suas conexões com aspectos da religiosidade bantú, para,
ao final nos debruçarmos sobre o cotidiano do umbandista, apontando que a visão
de mundo e a magia inserida no cotidiano muito se aproximam daquilo que vimos a
respeito do cotidiano bantú.
42
1
Chico CÉSAR. Respeitem meus cabelos, brancos. n. 2407001-2 MZA Music – Abril Music, Manaus,
2002.
43
Por sabermos que a África não pode ser entendida como um todo
homogêneo, sendo formada por diversas tradições, que são subdivididas em tantas
outras, iniciaremos o capítulo falando a respeito das migrações empreendidas pelos
grupos de tradição bantú, das trocas culturais e da circulação de informações que
ocorreu para que se formasse essa grande tradição. Depois disso, antes de
abordarmos a tradição bantú propriamente dita, brevemente, buscaremos apontar os
motivos pelos quais entendemos o bantú como uma tradição e não como uma etnia,
uma cultura ou um grupo lingüístico.
Por fim, vamo-nos deter no cotidiano bantú, que podemos chamar de mágico.
É mágico no sentido de que a magia é parte constituinte do dia-a-dia das pessoas
44
O que notamos é que usos e costumes não são fixos, sendo que as práticas
culturais são constantemente produzidas, atualizadas e arranjadas, experimentadas
como reais em determinados momentos, auxiliando na construção de mundos
sociais e políticos particulares. Apresentar esta tradição, logo, é um primeiro esforço
de compreensão da sua lógica. Identificar os seus eixos fundamentais faz-se
importante para que possamos, depois, entender os processos de ressignificação
sofridos frente à diáspora, à escravidão, à liberdade, à modernidade e à atualidade.
A história dos grupos bantú começa a ser contada com uma série de
migrações dentro da própria África, que durou aproximadamente dois mil e
quinhentos anos. Segundo dados historiográficos2, durante o processo migratório, os
bantú teriam partido do atual Camarões e se espalhado pela África Central, Oriental
e do Sul. Esses deslocamentos foram ocasionados por um aumento da população, o
que obrigou a migração para terras mais férteis. Os acidentes geográficos foram os
obstáculos para a continuidade das migrações. Como conseqüência, temos uma
2
Cf. Marina de MELLO E SOUZA, África e Brasil africano.
45
mistura de diversos povos, bem como a presença daquilo que é bantú em várias
partes da África, conforme o mapa abaixo:
3
Cf. Nei LOPES, Bantos, malês e identidade cultural.
46
4
Muito cedo, na história da tradição bantú, deu-se a relação entre território e antepassados. Para
terem mais força, os clãs se uniram. Dessa união nasceu a tribo, organização política útil em caso de
guerras. A tribo era dirigida por um conselho formado pelos chefes do clã e por um chefe tribal,
chamado régulo. Esses chefes representavam os antepassados com os quais se comunicavam e
dirigiam as cerimônias religiosas, além de decidirem sobre problemas internos e externos. Segundo
REPÚBLICA POPULAR DE MOÇAMBIQUE, História, p. 83: “... os bantu estavam organizados em
famílias alargadas. Os grupos de famílias alargadas, que tinham um antepassado comum, formavam
um clã. Os chefes destas famílias formavam o conselho do clã, ou conselho dos anciãos. O chefe
deste conselho era aquele que descendia directamente do fundador do clã”.
5
Carlos SERRANO; Maurício WALDMAN, Memória D’África, p. 86-87.
47
A tradição é um elemento vital da cultura, mas ela tem pouco a ver com a
mera persistência das velhas formas. Está muito mais relacionada às formas
de associação e articulação de elementos. Esses arranjos em uma cultura
nacional-popular não possuem uma posição fixa ou determinada, e
certamente nenhum significado que possa ser arrastado, por assim dizer, no
fluxo da tradição histórica, de forma inalterável. Os elementos da “tradição”
não só podem ser reorganizados para se articular a diferentes práticas e
6
Carlos SERRANO; Maurício WALDMAN, Memória D’África, p. 87.
7
Stuart HALL, Da diáspora, p. 242.
48
O autor nos coloca frente à idéia de que a tradição não é uma coisa fixa e,
mais do que isso, que ela se foi transformando ao longo do tempo, dependendo dos
arranjos possíveis em cada local e em cada momento histórico9. Assim, não
queremos valorizar a tradição pela tradição, tratando-a de maneira não histórica,
analisando as práticas culturais como se elas tivessem um significado ou valor fixo e
inalterável. Passemos a essa tradição, então.
8
Stuart HALL, Da diáspora, p. 243.
9
Segundo Luiz Henrique PASSADOR, Dinheiro e feitiço numa vila moçambicana,
www.casadasafricas.org.br/site/img/upload/730288.pdf, num ambiente constante de articulação entre
modernidade e tradição, o que se assiste é um constante uso da tradição para a obtenção de
recursos modernos, o que desencadeia o uso da feitiçaria, do curandeirismo e das religiões tanto
para o acesso ao dinheiro quanto para se proteger da ambição alheia. Os habitantes da vila referem-
se constantemente a questões de curandeirismo, feitiçaria, poder tradicional, família, antepassados e
cerimônias como dados remetidos a um universo que denominam, dentre outras coisas, de tradição
africana. Discursivamente operam num registro dicotômico que remete à tradição a outro tempo, um
outro espaço e um outro universo social, construindo por oposição o campo da modernidade como
aquele que experimentam mais claramente na vila. Diante de eventos críticos como doença, morte e
escassez de recursos, o que se observa é a desconstrução deste discurso e a vila é invadida pela
tradição.
10
Cf. Marina de MELLO E SOUZA, África e Brasil africano. Falando a respeito dos outros grupos, o
grupo afro-asiático é formado pela mistura entre os povos locais e os migrantes provenientes do
Oriente Médio. Espalharam-se pela costa e pelo interior do continente, pelo vale do rio Nilo, pela
Etiópia, chegando ao atual Marrocos. Quanto aos falantes de línguas nilo-saarianas, eram nômades
do Saara e do Sael, criadores de gado. Alguns disputaram com os bantú a ocupação da região dos
lagos de Vitória e Tanganica. Entre eles também haviam artesãos, produtores de grãos, pessoas que
se mantinham vinculadas à religião tradicional africana. Já os que pertenciam às elites eram
comerciantes, grandes produtores de grãos e administradores, normalmente convertidos ao
islamismo ou a formas africanas de islamismo. Os falantes de línguas cóisan estão fixados no
sudoeste do continente. Eram caçadores e coletores e não se misturaram com os bantú, que se
encontram espalhados pela África Central.
49
Então, para mim, língua dele é o bantú (...) eu percebo algumas palavras o
sentido, então, você encontra algumas que já fala entre as línguas que você
não fala, mas você pega. Você escuta algumas palavras que define a sua
língua, então mostra que talvez foi um grupo que existia num lugar, mas por
50
11
Grupo focal, São Paulo, 08/10/2008. O grupo focal foi realizado em São Paulo com quatro
estudantes de teologia no ITESP – Instituto Teológico de São Paulo, provenientes do Quênia e do
Congo. A partir dos temas propostos, houve a discussão entre os constituintes do grupo.
12
Cf. Marina de MELLO E SOUZA, África e Brasil africano.
13
S. C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
14
Cf. Arthur RAMOS, Introdução à antropologia brasileira.
51
15
Cf. Nei LOPES, Bantos, malês e identidade cultural.
16
Cf. BLECK apud Nei LOPES, Bantos, malês e identidade cultural.
17
Quanto às línguas bantú, cabe destacar que três delas: quimundo, quicongo e umbundo, faladas
pela maioria dos escravos transportados para o Brasil. O quimbundo foi denominado antigamente de
ambundu, bundu ou bunda, língua falada no antigo reino de Angola, um das primeiras línguas bantú
conhecida na Europa. É falada pelos ambundos, concentrados na região central de Angola entre
Luanda e Malanje, compreendendo ao norte Ambriz. O quicongo é a denominação principal de
inúmeros dialetos bantú, falados na República Popular do Congo, na República Democrática do
Congo, ex-Zaire e no norte de Angola. Já o umbundo é falado pelos ovimbundos, na região do Antigo
reino de Benguela, na Costa Sul do Litoral de Angola. É, originalmente, a língua dos habitantes da
costa entre as atuais cidades Novo Redondo no Norte de Angola e Benguela no Sul. Propagou-se no
século XIX, como língua veicular em todo o sudoeste de Angola e no interior, em função de trocas
comerciais. É falado por três milhões de pessoas. Segundo Rosa CUNHA-HENCKEL, em Tráfego de
palavras, p. 47-48: “São línguas aglutinantes e essencialmente prefixativas. As palavras são
formadas por um radical invariável que conserva o seu valor próprio, ao qual se acrescenta uma ou
mais partículas ou prefixos que se indica o número gramatical dos nomes e dos pronomes pessoais,
assim como o local das ações. Com as partículas e os prefixos se estabelecem as diversas relações
de dependência entre os elementos de uma proposição”. É interessante notar que, quando se pensa
em lingüística, há um radical invariável, com valor próprio, mas que permite inúmeros acréscimos,
que dão às palavras sentidos e significados diferentes. Não podemos pensar o mesmo no que se
refere aos eixos fundamentais da cultura bantú e da umbanda, que também se modificam buscando
um novo sentido e significado?
18
Cf. BLECK apud Nei LOPES, Bantos, malês e identidade cultural.
19
Nei LOPES, Bantos, malês e identidade cultural, p. 105.
52
20
Segundo Janheinz JAHN, Muntu, todas as línguas bantú são línguas de classes, isto é, os
substantivos não se dividem, como ocorre no espanhol, por exemplo, por um gênero gramatical em
substantivos masculinos, femininos e neutros, mas se agrupam em formas específicas, ou seja, em
classes. Há classes para homens ou para os seres animados magicamente, entre os quais se
encontram também as árvores, as ferramentas, os líquidos, os animais, as localidades, as coisas
abstratas etc. Se reconhece a classe de uma palavra por um som ou um grupo fonético que precede
a raiz da palavra e que os gramáticos designam com o nome de prefixo, chamados de
determinativos. Nos idiomas bantú, a raiz sem o elemento determinativo não forma palavra alguma, a
raiz não pode subsistir indeterminada, pois perde toda a objetividade e realmente não aparece no uso
da linguagem.
21
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 17. (O grifo é nosso)
22
Grupo focal, São Paulo, 08/10/09.
53
trabalho, optamos por falar de grupos de tradição bantú. Tal escolha deu-se
fundamentalmente pelo fato de que quando pensamos em África, ao longo de sua
história, vemos que a transmissão cultural deu-se através da tradição oral. Portanto,
quando, hoje, podemos falar de grupos bantú, seja em que nível for, estamos nos
referindo a pessoas que compartilham elementos culturais comuns que foram
passados pela oralidade.
23
Cf. Stuart HALL, Da diáspora.
24
Segundo Maurice HALBWACHS, A memória coletiva, a memória é uma corrente de pensamento
contínuo, retendo do passado o que ainda está vivo ou é capaz de viver na consciência do grupo que
a mantém, não ultrapassando os limites deste grupo. A memória de uma sociedade se estende até
onde atinge a memória dos grupos de que ela se compõe. A memória de um grupo não pára de se
transformar e o próprio grupo está sempre mudando. Toda memória tem como suporte um grupo
limitado no tempo e no espaço. Examinando seu passado, o grupo nota que continua o mesmo e
toma consciência de sua identidade através do tempo, visando perpetuar os sentimentos e as
imagens que formam a substância de seu pensamento, possuindo uma característica própria, distinta
de todos os outros grupos e que praticamente não muda. O essencial é que subsistam os traços
pelos quais ele se distingue dos outros e que marcam o seu conteúdo.
25
A. HAMPATÉ BÂ, A tradição viva, In: J. KI-ZERBO, Metodologia e pré-história da África, p. 199.
54
Toda instituição social, e também todo grupo social, tem uma identidade
própria que traz consigo um passado inscrito nas representações coletivas de
uma tradição que o explica e o justifica. Por isso, toda tradição terá sua
“superfície social”, (...) utilizando a expressão empregada por H. Moniot. Sem
superfície social, a tradição não seria mais transmitida e, sem função,
perderia a razão de existência e seria abandonada pela instituição que a
sustenta.27
26
A. HAMPATÉ BÂ, A tradição viva, In: J. KI-ZERBO, Metodologia e pré-história da África, p. 183.
27
J. VANSINA, A tradição oral e sua metodologia, In: J. KI-ZERBO, Metodologia e pré-história da
África, p. 163.
28
Segundo Gerhard KUBRIK, Angolan traits in Black music, games and dances of Brazil, alguns
componentes da herança cultural podem também ser transmitidos inconscientemente entre pessoas
ou, talvez, de geração para geração. Pode ocorrer que alguns traços desapareçam na superfície de
uma tradição específica durante certo período histórico. Porém, em determinado momento, quando
as circunstâncias são favoráveis e a necessidade se faz presente, o traço perdido é reinventado. Em
alguns casos, alguma coisa ainda estava sendo transmitida o tempo todo, na qual também contém de
uma forma condensada a possibilidade de uma nova manifestação do traço perdido. No tempo da
escravidão e da opressão alguns traços culturais específicos foram forçados a desaparecer, mas, de
fato, eles não desapareceram, eles apenas foram retraídos para uma área segura da psique humana.
A transmissão é cultural, baseada na interação humana, sendo transformada em um conjunto de
dinâmicas comportamentais. Desta forma, continua a ser transmitido de mães e de avós para as
crianças através do trabalho, de formas não-verbais ou da consciência de um estilo de mudança.
Quando um momento histórico favorável surge, o traço aparece novamente, porém, muitas vezes,
com outra forma. Algumas pessoas podem inventar alguma coisa nova. A implicação disso é que no
Brasil formou-se um monte de material cultural africano debaixo da superfície aparente.
55
29
um passado, sem que surja algo novo” . Portanto, além do parentesco lingüístico,
da etnia ou da cultura, os grupos de tradição bantú conservaram crenças, ritos e
costumes similares, preservando-os mesmo que de maneira transformada.
Atualmente ocupam a África Central, Oriental, o Sul da Etiópia e uma parte da África
Oriental, correspondendo aos seguintes países: Uganda, Kênia, Tanzânia, Ruanda,
Burundi, Zâmbia, Moçambique, Zimbábue, África do Sul, Angola, República do
Congo, Brazzaville, Malawi, Botswana, Lesotho (África subsaariana), somando um
total de cento e setenta milhões de pessoas, conforme o mapa:
31
Cf. Janheinz JAHN, Muntu.
32
Ibid., p. 137-138. (Tradução nossa)
58
Kintu compreende toda a força que não pode atuar por iniciativa própria e que só
pode ser ativada pelo mando de um Muntu, seja um ser humano, um antepassado,
ou o Ser Supremo. A essa categoria pertencem os vegetais, os animais, os minerais,
os instrumentos, os objetos de uso comum, que são Bintu, plural de Kintu. O espaço
e o tempo ocupam a categoria Hantu. É a força que localiza temporal e
espacialmente todo acontecimento e todo movimento, pois, como tudo é força,
sempre se encontra em movimento. A pergunta por um momento temporal recebe
uma resposta formada por um dado espacial. Por fim, temos a força modal Kuntu,
que é independente das outras forças.
Ainda para Jan33, há três palavras que significam vida: bugingo, buzima e
magara. Bugingo significa a duração da vida. Buzima indica a união de uma sombra
com um corpo, estando inserida dentro da categoria de modalidade. É um princípio
que indica como chega a se produzir a vida como princípio. Este princípio diz que se
uma sombra se une com um corpo surge vida, que dura enquanto a sombra e o
corpo não se separam; quando se separam ocorre a morte. O surgimento de um ser
humano se apresenta como um duplo processo: primeiro como a união puramente
biológica da sombra e do corpo segundo o princípio buzima, mas se une ao corpo
algo espiritual, uma força do nommo, pois a procriação de um ser humano é um
processo físico-espiritual. O princípio que significa a união da força do nommo com
um corpo se chama magara: vida. Magara é uma força do kuntu, um princípio que
colabora em cada formação de um ser humano. A vida biológica (buzima) e a vida
espiritual (magara) se encontram no ser humano. Nenhuma das duas pode se
apresentar sozinha em uma vida humana concreta. Quando um ser humano morre
também termina sua vida biológica (buzima) e também acaba sua vida espiritual
(magara), mas permanece algo, aquela força vital chamada nommo, que formou sua
personalidade. O muzima, no ser humano vivo, se converte em muzimu um ser
humano sem vida. Os defuntos não vivem, mas existem.
Dentro dessa visão de mundo merece destaque alguns aspectos, que situam
o ser humano dentro dessa dinâmica: a pessoa se define pelo seu nome, ela é seu
nome; toda pessoa constitui um elo na cadeia de forças vitais, um elo vivo, ativo e
passivo, ligada, em cima, aos elos de sua linhagem ascendente e sustentando,
abaixo de si, a linhagem de sua descendência. Dar o nome a um ser humano é um
33
Cf. Janheinz JAHN, Muntu.
59
Vemos que a relação entre vivos e mortos está para além da questão da
linhagem ou da continuidade, havendo uma relação de interação entre eles. Por
isso, quando os vivos são negligentes, os mortos chamam a sua atenção, enviando
doenças, provocando aborrecimentos ou se comunicando de alguma maneira. Todo
ser, vivo ou morto, é entendido como força e não como uma entidade estática; em
qualquer circunstância procura-se acrescentar força, evitando o grande mal que
existe: diminuir força. A morte é um estado de diminuição do ser; e a realidade
última das coisas é a vida ou a força vital. Como exemplo do lugar ocupado pelo ser
humano, cabe citar a fala de M.:
34
Grupo focal, São Paulo, 08/10/08.
60
Esse é difícil de explicar porque eu já ouvia minha avó falando assim: oh,
Mutinda, meu nome é Mutinda, eu tenho nome do meu antepassado, porque
até nomear a nossa sociedade é assim, linhagem dos antepassados. Então
meu nome é Mutinda, Michael Mutinda e aí minha avó falava assim: oh, meu
marido, porque minha avó eu sou marido dela na cultura, aí ela falava o meu
marido. O teu filho que é Mutinda agora é meu filho, ontem se manifestou,
falou que amanhã você tem que fazer essa, essa.35
35
M., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, São Paulo, 28/05/08.
36
Cf. Nei LOPES, Bantos, malês e identidade cultural.
61
O mundo visível é habitado pelo ser humano, que nele aparece e dele
desaparece por meio do nascimento e da morte, experimentando tribulações
provocadas pela ação de forças ruins contra as quais buscam a proteção dos
poderes voltados para o bem. Todo acontecimento bom ou ruim é explicado com
referência ao mundo invisível e sua ação no mundo visível: “O objetivo de todos os
movimentos é prevenir a desventura e maximizar a ventura”38. A tradição bantú é
orientada pelo complexo ventura – desventura. A ordem natural das coisas é boa e
desejável, envolvendo valores positivos como saúde, fecundidade, segurança e
harmonia. O Ser Supremo deu vida a tudo e reina distante, mas benevolente sobre o
universo e o ser humano. O espaço entre os vivos e os mortos está ocupado por
antepassados e vários tipos de espíritos, portadores tanto de boas intenções quanto
más. Porém, forças maléficas desviam a vida do caminho da ventura. Todo mal é
provocado por essas forças, a partir de atos conscientes ou inadvertidos de
determinadas pessoas.
37
Max GLUKMAN, Il rituale nei rapporti sociali, p. 46-47. (Tradução nossa)
38
Marina de MELLO E SOUZA, Reis negros no Brasil escravista, p. 69.
62
Tal organização nos remete a uma das três grandes leis existentes dentro da
tradição bantú – Lei da Hierarquia dos Seres ou Pirâmide Vital. Além dela, temos
também a Lei do Crescimento e a Lei do Dinamismo Vital: interação e
interdependência, conforme colocado por Altuna39, e que veremos a seguir. A
divisão nesses três princípios nos auxilia a organizar e a entender aquilo que foi dito
até então, serve-nos como uma base na qual ancoraremos, ainda neste capítulo, a
questão da religiosidade bantú.
39
Cf. P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu.
63
uma vez que são o prolongamento do seu proprietário e sua finalidade é servir ao
homem, acrescentando-lhe a vitalidade com sua contribuição. Na base da pirâmide
são colocados os astros e os fenômenos da natureza, que também encerram um
princípio vital, que pode ser manejado pelo ser humano.
disposição dos seres humanos, como nota-se na entrevista realizada com uma
curandeira em Maputo:
... nós somos formados na base tradicional, uma medicina tradicional que faz
estudo de medicamentos, de raízes e de plantas, saber afinal de contas esta
planta serve pra que e no meio deste estudo há um guia que nos guia, que
nos conduz que são os tais espíritos, há outros que saem de fato dos
espíritos, falam e têm potência de pegar o seu defunto falar consigo assim
diretamente, assim como outros que não fazem isso, só trabalham na base de
tradição. Assim, aqui, nesta minha palhota aqui, eu tenho espíritos que saem,
falam, dizem coisas quando necessária pega o espírito daquela pessoa e fala
e indica que tipo de medicamento é que deve se tratar essa pessoa.40
Assim, cada membro da comunidade é consciente de que não vive uma vida
egocentrada ou individualista, mas a vida em comunidade que se individualiza em
cada novo ser. Cada grupo de parentesco é uma unidade de comunhão, uma
comunidade solidária, socialmente eficaz, indestrutível e amparadora. Os vivos e os
mortos e os vivos entre si são unidos verticalmente e horizontalmente pela vida,
realizando uma comunhão participante na mesma realidade que os solidariza. Com
os antepassados, o ser humano está ligado vitalmente através da solidariedade
vertical, originária, sagrada e constante; com os membros vivos do grupo, ele está
ligado pelo mesmo sangue, sendo esta ligação chamada de solidariedade horizontal:
40
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
41
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 63.
65
Para os bantu viver significa existir no seio duma comunidade (...) participar
da vida sagrada – e toda a vida sagrada, - dos antepassados (...) prolongar os
próprios antepassados e preparar a sua própria continuidade através dos
descendentes. Há uma verdadeira continuidade através dos descendentes.
Há uma verdadeira continuação da família e dos indivíduos depois da morte.
Os mortos formam o elemento invisível (...) que é o mais importante. Todas
as cerimônias de qualquer relevância – nascimento, casamento, morte, ritos
fúnebres, investidura – são presididas pelos antepassados e a sua vontade só
é postergada pela do Criador. 42
42
V. MULAGO apud Jean Bastide MUNGUELE KIYUNGU, Dinamismo cultural bantu e religião, p. 61.
43
S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
44
M., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, São Paulo, 28/05/08.
66
dentro dessa tradição a escolha de não ter filhos é algo impensável, a falta de filhos
para uma família é vista como uma mensagem, muitas vezes um aviso por parte dos
antepassados ou ainda uma dificuldade imposta por um espírito que quer prejudicar
aquela família. Apenas para relembrar, dentro da tradição bantú, o fim da existência
de alguém está vinculado à falta de descendência. A resolução do problema
normalmente se dá pela consulta aos adivinhos que executam algum procedimento
específico ou orientam a família para que seja cultuado algum antepassado:
Aí vamos ver alguém fez alguma coisa pra mim de mal, aí sei lá, eu começo a suar,
brigar com o meu marido, eu começo, não consigo engravidar, sei lá, perco o meu
trabalho...
Isto também pode te ajudar pode apanhar a gravidez através desse
medicamento, quando a pessoa conhece esse medicamento. (...)
Não ter filhos?
É, pode?
Pode, mas não, não é bom, não é bom.
Por que, que não é bom, por que, que é importante ter filhos?
Isso é, quem sabe, nós africanos a nossa riqueza é ter filhos, mas lá no Brasil
pode não ter filhos, não é problema, mas nós quando eu com quem vou
deixar quando eu envelhecer ou eu morrer, mas quando eu tenho filho pode
deixar com os meus filhos.45
45
O., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
46
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 61.
67
47
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 62.
68
vivente, passando a existir como espírito. Quando se morre acaba a vida biológica e
a vida espiritual, porém permanece a força de vida que criou o ser. O antepassado
passa a ser um existente não vivente. Os defuntos vivem em um estado vital
degradado, com as forças vitais diminuídas, ao mesmo tempo em que conservam
sua força vital superior e paternal, que os fortalecem. Os mortos obtiveram um
conhecimento mais profundo das forças vitais e naturais e, por isso, a diminuição de
sua força deve ser menos considerada do que seu pode crer em princípio.
48
Francisco Lerma MARTINEZ, O povo macua e a sua cultura, p. 208.
69
E agora que já não está, está falecida, quando ela faleceu é a minha tia que
era irmã do meu sogro, ela é que dava o nome, então consultam a esses
curandeiros aí, e queremos dar o nome a essa criança aqui, não sabemos o
nome que podemos dar, então consultam, depois deles darem o nome de
bisavós dele que é Macache ou Cofache, então começam a dar esse nome,
então esse nome não querem, os defuntos não querem esse nome, então a
criança começa a chorar, então vão procurar saber ao curandeiro de que este
49
Frei Bernardo AMARAL, Celebração de mhamba entre os vatonga, p. 7.
50
O., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
70
nome sempre o bebê está sempre a chorar, mas o que, que pode ser, vão
consultar, então vão consultar e vão dizer que este nome que estão a dar os
defuntos não querem, queriam dar o nome do, então vão trocar, vão trocar
por outro nome.51
Podemos perceber que há uma mudança constante na corrente vital, uma vez
que alguns antepassados, quando não cultuados, acabam esquecidos. Porém,
vimos também que esses antepassados acabam renascidos em seus descendentes
através dos seus nomes. Com isto, queremos dizer que a corrente é constantemente
alimentada pela participação vital, pois a energia é invariavelmente renovada. Os
antepassados acabam por desempenhar um papel estabilizador, já que através
deles é possível restabelecer a harmonia perdida e a solidariedade.
51
O., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
52
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
71
aldeias. Eles ainda podem ser sepultados junto à aldeia ou a beira do caminho para
que os vivos lhe rendam uma pequena homenagem. Há cemitérios em locais
solitários ou em florestas. São cemitérios familiares, mas podem pertencer a um
grupo. Normalmente, cada aldeia tem um cemitério comunitário:
É através dos rituais fúnebres, que marcam a posição final que o indivíduo
ocupa no mundo dos antepassados, que os povos bantú vivem a passagem
53
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
54
Vale à pena a leitura do interessante trabalho de Cláudia RODRIGUES, Nas fronteiras do além,
que discute, a partir de testamentos, as modificações pelas quais passou o significado da morte.
Discute a construção social da morte no Rio de Janeiro, bem como identifica as práticas e as
expressões do catolicismo diante da morte. O que se nota é que no século XVIII e início do XIX havia
uma preocupação constante com a boa morte no Rio de Janeiro, comportamento que atravessava
todas as classes sociais. Tal fato ocorreu pelo processo de controle das atitudes dos fiéis pela Igreja
Católica. Esse processo se deu mediante dois fatos: 1) a substituição da gerência doméstica e
familiar do culto aos mortos; e 2) a elaboração da liturgia dos mortos, tendo o clero como o
interlocutor entre vivos e mortos. Segundo Ibid., p. 53: “A morte demanda um aprendizado para que o
fiel morra bem. Nada melhor para isso do que morrer duas vezes, morrendo antes da morte. O que
significa que o fiel deveria morrer em vida, meditando sobre a morte, não deixando esse
compromisso para o momento final”.
72
55
Cf. P. Armando RIBEIRO, Antropologia.
73
O que sabemos, portanto, é que aquele que tem uma boa morte pode se
tornar um antepassado, mas também é importante que ele se comunique de alguma
maneira, já que uma de suas funções é intermediar a relação entre os seres
humanos e o Ser Supremo57. Vamos, a seguir, compreender os dois grandes eixos
56
S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
57
Vemos que a importância da morte se preservou no Brasil durante a escravidão. Nas irmandades
religiosas, o cuidado com os mortos assumia uma grande importância, havendo um esmero na
preparação, na realização dos rituais fúnebres. Quando alguém morria, os irmãos eram mobilizados e
deviam acompanhar o corpo até a sepultura e participar das missas e orações realizadas por sua
alma. Muitos africanos ingressavam nas irmandades religiosas para garantir uma boa morte, pois
alguns cativos quando morriam eram deixados, abandonados nas ruas, estradas ou praias, ou, ainda,
eram sepultados em valas comuns. O que podemos afirmar em se tratando do significado da morte
74
A religiosidade bantú pode ser entendida como algo que se encontra presente
nas instituições sociais58. Dentro dessa lógica, não há distinção entre profano e
sagrado59, secular e religioso. Pode-se falar de uma religiosidade que não necessita
de um espaço determinado para o culto, sendo o culto de caráter familiar, exercido
dentro da localidade, uma vez que ela está inserida no cotidiano, contando com uma
visão espiritualista da existência e da convivência entre o mundo visível e o mundo
invisível:
para os povos bantos, era que os ritos fúnebres feitos de qualquer maneira, significavam não dar o
passo mais importante da existência, ou seja, tornar-se um antepassado. Dessa forma, é possível
supor que a preocupação com a morte está para além do simples ritual fúnebre. Vemos também que
os meios podem ser modificados, mas aquilo que é central dentro de determinada cultura acaba por
permanecer de maneira ressignificada. É também interessante notar que os cortejos fúnebres feitos
pelos africanos eram pautados pela alegria e pela festa, uma vez que o sentido da morte para os
grupos bantos era diferente do sentido ocidental. Cf. Carlos Eduardo de Araújo MOREIRA; Carlos
Eugênio Líbânio SOARES; Flávio dos Santos GOMES; Juliana Barreto FARIAS, Cidades negras.
58
A organização da sociedade era feita a partir da fidelidade ao chefe e das relações de parentesco.
O chefe da família, cercado de seus dependentes e seus agregados, era o núcleo básico de
organização na África. Todos ficavam unidos pela autoridade de um dos membros do grupo,
geralmente um dos indivíduos mais velhos, e que tinha dado mostras de sua capacidade de
liderança, de fazer justiça e de manter a harmonia na vida do grupo. Um conselho ajudava o chefe a
governar, sendo que os responsáveis pelos assuntos sobrenaturais gozavam de grande importância.
As lideranças nas sociedades também eram sustentadas em grande parte pelo sobrenatural. Depois
de reconhecidos como líderes pelo grupo, eles precisavam ser confirmados pelos sacerdotes, que
consultavam as entidades sobrenaturais e através de ritos apropriados, os chefes eram confirmados
e se tornavam os mais importantes intermediários entre elas e os membros da comunidade. Pode-se
dizer que a religião era um elemento central em todas as sociedades africanas, presente no exercício
do poder, na aplicação das normas de convivência do grupo e na garantia da harmonia e do bem-
estar da comunidade.
59
Quando falamos a respeito da diferenciação entre sagrado e profano, estamos recorrendo a
DURKHEIM que apresenta como exemplo de coisas sagradas: crenças, mitos, lendas. O conteúdo do
sagrado comporta tudo aquilo que ele associou tradicionalmente com religião, considerando que o
conteúdo de profano consiste em tudo aquilo que não é sagrado, aquelas coisas que ele
tradicionalmente não associou com religião. A oposição entre sagrado e profano pode ser
considerada como uma mera coisa, como a luz pressupõe o escuro, então, o sagrado implica o
profano, elas não podem ser estudadas separadamente. Para ele, há uma oposição entre o sagrado
e profano: o mundo do sagrado mantém uma relação antagônica com o mundo do profano. O
sagrado e o profano são concebidos como coisas separadas, como dois mundos que não tem nada
em comum, mas que mantém, dentro de uma dimensão temporal, relações compensatórias. Segundo
DURKHEIM, As formas elementares da vida religiosa, p. 65: “Uma religião é um sistema unificado de
crenças e práticas sobre as coisas sagradas (isto é, sobre coisas que estão separadas e proibidas),
tais crenças e práticas unem todos aqueles que aderem a elas dentro de uma única comunidade
moral chamada Igreja”. Vários autores divergem das idéias propostas por DURKHEIM, mas não
podemos esquecer que ele marca uma geração de pesquisadores.
75
São, são esses também, estão também, estão inclusos porque o que
acontece é que quando há uma epidemia de fome, de, sei lá, pragas, de
bicharadas que dizimam as culturas e outras coisas faziam-se cerimônias e a
localidade que está em volta, por exemplo, daquele lago reuni todos os
líderes tradicionais, matando-se os animais que vai se sacrificar ali e bebidas
tradicionais, invocam-se aqui os espíritos todos e pedem que intercedam por
aquela população toda junto aos xi’kwembu para ver se essa praga
desaparece e se é falta de chuva,cai a chuva, se é fome desaparece etc. etc.
etc. e muito das vezes, tradicionalmente, em algumas regiões do interior
acontecia isso assim.60
Uma vez que, para os bantú, a vida é vista de uma maneira sistêmica, na qual
todas as coisas estão interligadas, existindo uma interdependência entre os dois
mundos, a vivência da religiosidade possui uma posição central dentro desta
tradição, pois, através dela, é possível que se estabeleça o contato com o mundo
invisível e com os antepassados, ao mesmo tempo em que é através de cultos ou de
procedimentos específicos que se resolvem problemas práticos:
60
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
61
Marina de MELLO E SOUZA, África e Brasil africano, p. 45.
62
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
76
63
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 370-371.
64
FOUGEYROLLAS apud Jean Bastide MUNGUELE KIYUNGU, Dinamismo cultural bantu e religião,
p. 58-59.
77
Uma intuição natural diz-lhe que a ordem social é regulada pelo bem e que a
sua existência só pode ser ameaçada por entes sobrenaturais. Há entes
sobrenaturais neste mundo e entes sobrenaturais no mundo do Além.
Aqueles são os agentes do mal e do ódio; estes são os do bem. Assim,
quando estes lhe fazem algum mal, não é por prazer, mas porque estão
aborrecidos ou têm alguma pretensão, donde se infere que a existência
humana só pelos agentes do mal pode ser ameaçada. Os entes sobrenaturais
do Além apenas temporàriamente ameaçam a integridade física, porque neles
não tem lugar o ódio, o mal ou a vingança. Não é a eles que se pede a chuva,
a saúde e as subsistências? Eles tudo fazem quando se lhes pede, se lhes
sacrifica e se lhes canta. O que querem os psi-kwêmbo dos antepassados? –
Satisfação, alegria e paz. O que pedem os psi-kwêmbu dos va-ngúni? –
Curar os que sofrem. É o reagir do instinto de preservação. 65
65
Júlio dos Santos. PEIXE, Ligeiros apontamentos sobre a curandice espírita entre o povo ba-tswa,
Boletim da Sociedade de estudos de Moçambique, p. 23.
78
Religião africana é assim: nós cremos, que eu falo, nós africanos assim, nós
cremos que o ser sublime é dono e criador de tudo. O ser sublime é um,
único. Aí talvez alguns entram em crise, nós ouvimos que o africano é
politeísta, porque o branco escreveu, ou colocou assim, o africano é
politeísta. Não, é monoteísta, só que quando o africano coloca os nomes de
deuses são diferentes e aí o branco entendeu que vai no lugar dele no
Congo, Deus é assim, chama assim, vai no Quênia, Deus chama assim e aí
confundiu tudo para o branco e aí resolveu falar que o africano é politeísta,
monoteísta. Cremos que Deus é único, só que esse Deus se manifesta em
diferentes lugares, se manifesta em diferentes situações e esse Deus tem
nomes de acordo de diferentes manifestações que ele tem. Por exemplo,
quando a gente tem bênção, boa vida, bem aventurado tem nome de Deus.
Quando a gente tá indo mal na vida tem outro nome de Deus. Mas o único
Deus que falamos. Quando falamos sobre fertilidade tem nome de Deus,
quando falamos sobre fertilidade tem nome de Deus, mas um único Deus, só
que os nomes que mudam. 66
Começou com os ancestrais que não podemos contar, nós sabemos histórias,
mas criamos está o que somos e as coisas estará nos antepassados, que são
os, na linguagem popular chamamos de vivos mortos, não sei como é que vai
ser porque parece contradição – vivo e morto - mas na igreja chamam
divindade, parece uma contradição, mas cremos que são mortos como,
porque não existe no corporal, mas são vivos porque sempre influenciam a
nossa vida, a família, ou na ajuda ou no outro lado da vida. Esses são os
antepassados. Quem é antepassado? Antepassado para nós africanos um
homem que viveu uma vida de conduta moral. Morreu uma morte normal em
velhice e viveu as condições ou as celebrações tradicionais na sociedade.
Esse antepassado. E aí exclui que jovem que morreu sem descendência,
exclui que mulher, a menina, exclui que homem que não viveu uma vida de
conduta moral, exclui que homem que morreu uma morte condenada como
suicídio, se afogou ou uma coisa séria suicídio já falei. Ou foi morto porque
era malandro ou tomou veneno, aí exclui todos esses. E quem vai ficar? Esse
homem de conduta moral, morreu uma morte normal, feliz e tinha
descendência.68
66
M., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, São Paulo, 28/05/08.
67
Cf. Henrique A. JUNOD, Usos e costumes dos bantos.
68
M., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, São Paulo, 28/05/08.
79
novos encontros que veremos nos capítulos posteriores. O que se nota é que o dado
religioso, transformado ou não, permanece como um eixo fundamental. Veremos, a
seguir, cada um destes eixos separadamente.
Dentro da tradição bantú, há uma crença em um Ser Supremo único, mas que
possui uma variedade de nomes e de matizes em seus atributos e em sua
soberania. Essa crença polariza concepções religiosas do bantú e dá origem à sua
visão de mundo. O Ser Supremo ocupa o vértice da pirâmide vital, como já vimos,
presidindo a ordem do mundo. O ser humano é dependente do Ser Supremo. O que
nos permite falar em uma crença em um único Deus:
O Ser Supremo pode ser entendido como uma potência e uma força, que se
encontra acima dos antepassados e dos ancestrais que os seres humanos
conhecem e podem chamar pelo nome. “É uma potencia que actua e se manifesta
por várias maneiras. (...) é considerada como inteiramente impessoal”70. O Ser
Supremo não é uma pessoa, não é um ídolo material e não é como os espíritos.
69
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
70
Henrique A. JUNOD, Usos e costumes dos bantos, p. 393.
71
Cf. Nei LOPES, Bantos, malês e identidade cultural.
80
72
Francisco Lerma MARTINEZ, O povo macua e a sua cultura, p. 234.
73
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p.
81
Os Bantos, (...) crêem num Deus Supremo e o respeitam, mas não o cultuam
e só se dirigem a Ele em casos de extremo desespero. E isto porque
entendem que o melhor modo de lhe render culto é venerando seus grandes
mortos, ou seja, os espíritos dos ancestrais.74
1.3.2 - Os antepassados
74
Nei LOPES, Bantos, malês e identidade cultural, p. 164.
82
... para nós os antepassados são muito importantes, porque se acontece algo
na família que não é bom, as pessoas vão falar: os nossos antepassados não
são felizes, não estão felizes, então nós temos de fazer algo para fazermos
ficar os antepassados felizes, não estão felizes. Por isso o bisavô meu me
falou quando faleceu, o meu avô tinha que ir entregar a comida no túmulo
dele, todos os dias durante almoço, porque aconteceu um problema na
família e eles falaram que meu avô tinha conflito com pai, o pai dele, e ele
tinha que resolver, então ficou um ano inteiro, cada dia entregava comida lá
no túmulo. Então, para nós, os antepassados, eles estão lá para nos
guardar.(...)
Para nós, apesar da morte, eles continuam vivendo conosco, entre nós e por
isso quando nós enterramos, não enterramos longe, lá dentro da casa
mesmo. Como ele tava falando o avó dele entregava comida para ele, porque
ele já morreu sim, mas ela continua vivendo conosco.75
75
Grupo focal, São Paulo, 08/10/08.
76
IDEM, São Paulo, 08/10/08.
83
Como vimos, o Ser Supremo é colocado no vértice das forças, como espírito
criador, dotado de poder por si mesmo, sendo o ser humano um elemento
participante de sua força. Os antepassados estariam situados entre ambos. Há
divergência de nomenclatura por parte de alguns autores se o culto dentro da
tradição bantú é voltado aos antepassados ou aos ancestrais. Na experiência que
tivemos em Maputo, salvo poucas pessoas, aqueles que morrem são chamados de
defuntos, sendo que poucos falaram em antepassados, um termo utilizado mais
pelos acadêmicos. O fato é que o culto se dirige aos parentes próximos mortos, por
isto, defuntos. É também interessante tomarmos a diferenciação feita por um de
nossos entrevistados a respeito do que são ancestrais e antepassados:
77
Podemos pensar nos orixás e nos guias na umbanda que são ressignificados e fazem a mediação
com Deus. Na umbanda também não se cultua Deus. A construção de um templo amplo e definitivo,
público, expõe o dinamismo vital – religioso próprio do grupo ao conhecimento e à interferência
mágica de estranhos e de inimigos. Cabe lembrar que grande parte dos terreiros de umbanda é
montada dentro da casa das pessoas, muitas vezes, aproximando-se de um culto familiar ou
doméstico.
78
Nei LOPES, Bantos, malês e identidade cultural, p. 163.
79
M., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 28/05/08.
84
Como vimos, para os bantú, todo o ser humano que morreu torna-se um
espírito. Alguns deles podem ocupar a categoria de antepassados. Para que isso
ocorra é necessário levar-se em conta a conduta do indivíduo em vida, bem como a
forma como ele morreu. Segundo P.80, também é necessário que esse antepassado
se manifeste em alguém. Essa manifestação se dá por possessão, quando o
antepassado envia uma mensagem. A voz é da pessoa e o tipo de relação que
estabelece com os outros é a relação que estabelecia quando estava viva. Assim,
dentro da tradição bantú, falamos de antepassados que mantêm uma relação
visceral com a família:
E, por exemplo, senhora Celeste, como é que, a gente tá falando dos defuntos, dos
meus defuntos, os espíritos dos defuntos, eles sempre são meus?
São, são, são, são.
Existem defuntos que serão, por exemplo, vamos imaginar que eu e a senhora
nascemos no mesmo local, no mesmo sítio, a gente vai ter espíritos ou defuntos que
são comuns a mim e a senhora?
Não, não, não, nós não somos da mesma família.
Isso sempre?
Sim, eu, eu quando rezo, quando falo, recordo os meus defuntos, não é, e a
esses meus defuntos que eu qualquer coisa de mau que me façam é a eles
que posso pedir para me apoiar, então não vou pedir aos defuntos do vizinho
meu se nem conheço, como é que vou pedir.81
80
P., entrevista concedida à autora, anotação em caderno de campo, Maputo, 13/07/09.
81
S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
85
82
Segundo Robert SLENES, Na senzala, uma flor, havia pressupostos culturais sobre família e
linhagem comuns a sociedades da África Central. No que diz respeito ao parentesco, é possível
afirmar que o conceito básico de linhagem é mais importante, enquanto princípio cultural mais
profundo, do que a maneira específica de defini-lo. Era provável que se mudasse a maneira de definir
a linhagem, como matrilinear, patrilinear ou bilateral, mas que mantivesse a linhagem como um
princípio organizador da sociedade. Os africanos trazidos ao Sudeste do Brasil, mesmo separados de
suas sociedades de origem, tenderiam a organizar suas vidas, de acordo com o esquema da família –
linhagem. Buscando condições para manter grupos estáveis no tempo, há a hipótese de que eles se
empenharam na formação de novas famílias conjugais, famílias extensas e grupos de parentesco
ancorados no tempo. As raízes africanas não eram localizadas num lugar, mas em um grupo de
parentesco, nos ancestrais, numa posição genealógica. Os africanos levam seus antepassados
consigo quando mudam de lugar, não importando onde esses antepassados estejam enterrados.
83
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
86
se encontram no mesmo nível que eles e, apesar de terem poderes divinos, não
possuem autoridade moral, sendo espíritos ruins em certas situações:
Xi’kwembu chacales, eles na verdade são os feiticeiros, eles foram feiticeiros quando
em vida?
Não, os xi’kwembu, entre eles, há aqueles que, até porque há uma, os
xi’kwembu considerados bons são, como que nós chamamos em português
chama-se os defuntos, sim, os defuntos, os familiares que não têm nada a
provocar maldade, mas há swikwembus que de fato são ao serviço do
demônio que não tem nada a ver com a sua familiaridade podem provocar
perdas, enfim, acidentes, outros males, está a ver, então esses aí os
chacanas são chamados ianquales.
Como é que é?
São chamados ianquales, defuntos ianquales. Ianquales, esses são os
mortos que exatamente servem de nossos defensores.
Que seriam os defuntos, os antepassados?
Defuntos, antepassados, exatamente, ia, então este ianquale é exatamente o
nome tradicional que se dá a cada indivíduo. Cada indivíduo tem o seu
ianquale.84
84
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
85
Segundo M., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 28/05/08: “Aí tem
outras manifestações de cotidiana dos antepassados que abre-se no sono. Esse é difícil de explicar
porque eu já ouvia minha avó falando assim: oh, Mutinda, meu nome é Mutinda, eu tenho nome do
meu antepassado, porque até nomear a nossa sociedade é assim, linhagem dos antepassados.
Então meu nome é Mutinda, Michael Mutinda e aí minha avó falava assim: oh, meu marido porque,
minha avó eu sou marido dela na cultura, aí ela falava o meu marido. O teu filho que é Mutinda agora
é meu filho, ontem se manifestou, falou que amanhã você tem que fazer essa, essa. Essa foi ontem
no sonho, como que explico, não sei. O que aconteceu no sonho eu não sei como explicar, mas eu
vou fazer sim. Porque ela me disse: o antepassado falou para fazer essa, essa e essa e aí se não
fazer, aí onde complica a coisas, porque ela fica chateada, talvez ela começa a fazer manifestações
que você não entendo, aí pode ser de ficar doente ou pelo menos se você tem gado, começa a ver o
gado morrendo ou magoado... Aí fala assim: nossa o que aconteceu e aí ela vai falar: te falei, te falei.
O teu filho me disse: temos que fazer esse, esse, esse porque acreditamos que todo gado que temos,
todas essas coisas são bênçãos dos antepassados então temos que partilhar com eles”.
87
São várias. Primeiro você conta com os sonhos. Aparece nos sonhos vamos
nos encontrar, então é uma de comunicação. Também os desastres que
começa a acontecer na família. Por exemplo: morte prematura, pessoa que
fica doente não tem cura, então são meios que eles se comunicam com os
antepassados. Vocês têm que ver como saber.
Tem um dado, aquele que tem muito apelo dos animais. Ah, teve um caso,
meu antepassado não cria boi, mas, como chama ovelha e cabras. O que
você vai perceber naquela semana, você vai tirar as cabras, saem do curral
para saída, você vai encontrar diferente da saída da outra semana e como
também o deles, você vai tirar desse, sempre tem um lado que sai, aí nessa
semana você vai encontrar diferente de saída deles. Sai, desperta não vai
comer não vão nem tomar água fica assim, tudo fica assim, porque ele tinha
esse apelo de cabra e criava muito. Aí já vai na comunicação dentro desse ou
através da cabra. O que você vai fazer vai fazer um culto e sacrifício e aí
acaba. (...)
E o que mais toca o corpo para nós, toca mais na comunicação. Como o
antepassado vai acordar assim, vai dizer assim: hoje meu olho, como chama
assim, piscar o olho é assim, esse já é um sinal de comunicação.
Alguma coisa que acontece no meu corpo que não funcione direito...
Já é uma comunicação. Ele pode acontecer assim não, geralmente os velhos
têm dor nesse ombro. Eu acordei com dor nesse ombro, já é uma
comunicação da família. Aí ele vai dizer assim, vai falando assim, como vou
escutar, a mulher da nossa família contam isso, entendeu é uma desgraça,
entendeu, quer dizer que alguém da nossa família ta doente, entendeu. A
comunicação do corpo é mesmo muito forte, muito, muito forte, aí o pai pode
aparecer assim agora, não tem hoje, acho que não. Tem vezes que eu tinha,
não tava bem.
A azia não é só a azia, tem outro sentido?
Tem outro sentido, a comunicação do corpo. Eles falam assim, às vezes, na
mesma família talvez o comunico, como aí, eu sou jovem, mas talvez me
comunico mesmo, mas porque se hoje minha mãe morre ou meu pai não
pode ser mesmo com vocês. O corpo comunica e como, aí onde a gente
entra com o mundo dos espíritos, comunica, não vai ser mesmo coisa. Aí vou
acordar pra ver se tou com dor muscular, me sentindo mal assim, até na
saída posso cair, quer dizer, posso vir a atropelar, quer dizer é comunicação
do mundo do espírito que uma coisa pode ser na minha família e aí quando
eles, aí vai acontecer entendeu, ai então a comunicação do corpo e
acontecimentos com os antepassados é muito, muito forte.86
86
Grupo focal, São Paulo, 08/10/08.
87
Henrique A. JUNOD, Usos e costumes dos bantos, p. 350.
88
guardiões e protetores dos familiares vivos. Não há nada de bom ou de mal que
aconteça na vida dos vivos que não esteja ligado, direta ou indiretamente, com a
vontade dos defuntos da família. Se o feiticeiro entra e perturba a vida e a saúde da
família, é porque as sentinelas familiares, os antepassados do clã não estão
contentes e deixaram de proteger a casa, permitindo a entrada do inimigo. Por sua
vez, os antepassados dependem dos seus familiares para se alimentarem e
continuarem vivos. Estabelece-se uma relação constante entre vivos e mortos. O
auge dessa relação se dá durante o culto aos antepassados, aspecto da tradição
que veremos em seguida. Buscaremos não só entender os significados de aspectos
do culto, como também faremos uma descrição do ritual baseada em fontes
bibliográficas.
Este culto ocorre nas principais fases do ciclo vital: nascimento, iniciação,
casamento, doença e morte; nos ciclos da natureza; e em determinados momentos
importantes da vida social, por exemplo, inauguração de uma nova aldeia ou a
eleição de um novo chefe. Além disso, há situações especiais na vida da pessoa,
quando ela é aconselhada a realizar do culto: doença, desgraça, ajuda na resolução
de uma grave necessidade ou antes de uma viagem importante. Também é feito
quando os antepassados pedem o sacrifício, através de sonhos, de fenômenos
místicos ou de algum acontecimento significativo.
Vemos que o culto aos antepassados possui uma ligação com o território, no
sentido de que apenas os altares destinados aos antepassados da família ficam
dentro da propriedade. Outros espíritos que devem ser cultuados, mas não
pertençam à família, têm seu altar fora da propriedade. Portanto, quando falamos de
antepassados, falamos de um culto essencialmente familiar, que envolve todos os
membros do clã e é dirigido especificamente aos antepassados da família ampla.
Esse ato solene reúne toda a família, vivos e mortos, e constitui a forma mais
importante e característica do sacrifício e de culto religioso tradicional:
Portanto, o culto aos antepassados pode ser considerado uma oferenda direta
aos antepassados e, indireta, ao Ser Supremo. “O sentido disto é, segundo me
89
P., entrevista concedida à autora, anotação em caderno de campo, Maputo, 13/07/09.
90
Frei Bernardo AMARAL, Celebração de mhamba entre os vatonga, p. 6.
90
Eles podiam dentro de uma casa escolher o recinto, podia ser aqui mesmo
dentro da floresta.
Mas o recinto sempre é uma árvore?
E uma árvore sim senhora é ali, então é ali onde se dão bebidas, fizeram
muitas coisas, iam pôr ali e comunicar aos defuntos o que nós estamos a
fazer, estamos a recordar, enquanto que agora vamos à Igreja, então eles
iam ali naquela árvore, dizer aos defuntos o que nós estamos a fazer aí, a
missa pra vocês, venham todos e ajudem-nos e se não chove façam com que
chove, ali. Por exemplo, quando era tempo de canhiúma, uma bebida que nós
bebíamos aqui, canhiúma, essa bebida sempre quando aparece, porque não
aparece anualmente, não é, então primeiro iam pôr ali naquela árvore ali.
91
Francisco Lerma MARTINEZ, O povo macua e a sua cultura, p. 265.
92
Ibid., p. 266.
91
O que acontece: meu pai tem que falar com os chefes das sociedades,
porque nós, sempre que meu pai que tem de fazer culto não tem os chefes
das sociedades que vão fazer culto de antepassados, porque é um rito da
sociedade, não são da família, tem parte da família, mais da sociedade. Aí
chama tudo, aí organiza tudo e eles vão no lugar santo onde eu faço esse
culto. O que fazem as mulheres levam comida, comida na mão, aqui tem uma
comida que faz mingau, então eles levam, pode levar polenta, leite para
oferecer. Os homens, o que leva animal para sacrificar. Essa sacrifício no
culto não termina a vida de animal, não conceito de matar, partilhar o que
temos de Deus. Partilhamos com que, os nossos antepassados, porque
partilha e com Deus, partilhamos e comemos. Aí quando chega lá tem ritual
que começa, a das asas, as mulheres não entra dentro daquela lugar santa,
dentro, são dos homens selecionados, não todo mundo também, onde se faz
esse sacrifício. O outro mundo fica em redor, assim. 95
93
S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
94
Segundo Henrique A. JUNOD, Usos e costumes dos bantos, as oferendas, entre os tongas, podem
ser classificadas em: 1) oferendas individuais, familiares e nacionais; 2) oferendas simples e
sacramentais; 3) oferendas com efusão de sangue, quando não há a morte da vitima; 4) oferendas
regulares, que ocorrem em datas que estão ligadas à vida da família ou do clã, entendidas como
eventos especiais.
95
M., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, São Paulo, 28/05/08.
92
Não vai apanhar tudo, tudo, tudo porque eu também como viver cá em
Maputo, mas quando a pessoa quer fazer alguma cerimônia tradicional, às
vezes, vai a um curandeiro tem aqueles ossos que utilizavam e vai fazer
consulta então os espíritos começam a falar aí, por exemplo, quero lembrar o
meu pai, aí vai sair o espírito do meu pai ali e começar a falar, a me explicar:
eu quero que essa missa que você quer fazer, tem que fazer assim, assim,
assim ou quer que eu compro cabrito ou compro galinha pra matar aquilo ali
para fazer a recordação da morte do meu pai.
Mas, por exemplo, essa recordação a senhora vai fazer quando isso é todo o ano?
Não, escolho eu mesmo, escolho eu mesmo.
Aí, por exemplo, eu pego e aí eu vou fazer isso?
Sim, pelo menos tem que conversar com a família toda, reunir, depois de
reunir dizer que: ah, acontece isso e eu queria recordar os meus defuntos,
então é isso, então se concordar vão começar a juntar as coisas para
começar, por exemplo, comprar animais aí, outras coisas que é preciso.96
96
O., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
97
O sacrifício é um ato religioso que só pode se efetuar num meio religioso e por intermédio de
agentes essencialmente religiosos. Antes da cerimônia, nenhum dos agentes ou dos instrumentos
tem caráter religioso no grau que convém. A primeira fase do sacrifício tem como função atribuir-lhes
esse caráter: eles são profanos e é preciso que mudem de estado. São necessários ritos que os
introduzam no mundo sagrado. Isto é a entrada no sacrifício. O sacrificante não precisa ser
divinizado, mas ele precisa se tornar sagrado. Segundo Marcel MAUSS, p. 29: “Todas essas
purificações, lustrações e consagrações preparam o profano para o ato sagrado, eliminando de seu
corpo os vícios da laicidade, retirando-o da vida comum e introduzindo-o passo a passo no mundo
sagrado dos deuses”. É necessário que haja uma confiança inabalável no resultado automático do
sacrifício, trata-se de um ato religioso com um pensamento religioso – a atitude interna deve
corresponder à atitude externa. O sacrifício exige uma crença, que implica em fé. A aproximação do
sagrado e do profano se processa gradativamente na vítima. Com a aniquilação efetua-se o ato
essencial do sacrifício. A vítima separa-se definitivamente do mundo profano, fica consagrada e
sacrificada. Ela renasce sagrada. Uma forma de realizar a comunicação é entregar ao sacrificante
uma parte da vítima para consumi-la. Ele assimila as características do todo ao comer uma parte. Os
ritos fazem com que a continuidade entre sagrado e profano seja estabelecida. A vítima é o
intermediário pelo qual a corrente se estabelece. Graças a ela, todos os seres que participam do
sacrifício se unem. Para que a vítima possa ser utilizada pelos seres humanos, é preciso que as
entidades tenham recebido sua parte. Essa parte é portadora de uma santidade que o profano,
apesar das consagrações prévias que o elevaram além da sua natureza ordinária e normal, não pode
tocá-la sem perigo. Os efeitos úteis do sacrifício foram produzidos, mas o grupo de pessoas e de
coisas que se formou em torno da vítima é preciso se dissolver lentamente. Como foram os ritos que
criaram o grupo, somente os ritos podem recolocar em liberdade os elementos que o formaram.
93
Dentro do culto aos antepassados, o sacrifício, seja na sua forma animal, seja
como oferenda, assume um lugar central no ritual. Através dele manifesta-se o
caráter familiar e comunitário do rito, bem como do entendimento do mundo bantú. O
sacrifício é dividido entre antepassados e seres humanos, quando aceito, uma vez
que, dele, os antepassados retiram a força vital, enquanto que o invólucro, a parte
material propriamente dita, é deixado para os seres humanos, que o consomem e o
celebram em uma refeição ritual. Através do sacrifício entra-se em comunhão com o
outro mundo, havendo um intercâmbio entre mundo visível e invisível. Aquilo que é
sacrificado ou ofertado transmite força vital e restabelece a harmonia que, por
qualquer motivo se desvirtuou ou se quebrou entre os dois mundos, restaurando a
ordem. Quando o sacrifício é oferecido por uma família, todos os membros devem
participar; no caso de uma comunidade, a mesma coisa:
Então o mundo como que faz, tem culto dos antepassados e culto varia
região da região, mas sempre a ritual quase a mesma coisa, porque inclui
sacrifício dos animais, aqui no candomblé tem, acho, ele inclui comida que
dá, inclui bebida que dá, inclui palavras que se fala, inclui música e dança que
é muito forte na África tem que mexer o corpo bem e aí inclui orações que
não são programadas assim, não são de lei, mas de chamar o nome e os
antepassados. (...) O que acontece, meu pai tem que falar com os chefes das
sociedades, porque nós sempre, que meu pai que tem de fazer culto não tem
os chefes das sociedades que vão fazer culto de antepassados, porque é um
rito da sociedade, não são da família, tem parte da família, mais da
sociedade. Aí chama tudo, aí organiza tudo e eles vão na lugar santo onde eu
faço esse culto, o que fazem as mulheres levam comida, comida na mão, aqui
tem uma comida que faz mingau, então eles levam, pode levar polenta, leite
para oferecer. Os homens, o que leva animal para sacrificar. Essa sacrifício
no culto não termina a vida de animal, não conceito de matar, partilhar o que
98
Marcel MAUSS; Henri HUBERT, Sobre o sacrifício, p. 18-19.
94
99
M., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 28/05/08.
100
É interessante notar que esta intimidade e proximidade com os antepassados não são observadas
apenas na cultura africana, mas notamos também na cultura portuguesa, na qual os indivíduos
mantém este tipo de relação com os santos. Já no Brasil, dentro da umbanda, esta relação é
vivenciada junto aos guias.
101
Colocamos em nota outra descrição de culto aos antepassados, mais sucinta, mas que não conta
com sacrifício animal na sua celebração. Segundo Francisco Lerma MARTINEZ, O povo macua e sua
cultura, o lugar mais adequado para esta celebração é fora da povoação, no bosque, ao pé de uma
árvore de sacrifício; um lugar recolhido, silencioso e em contato com a natureza. Em volta da árvore
cria-se um pequeno ambiente, utilizando-se determinada erva., entre os macuas, para o culto, se
limpa esse espaço, tirando toda folhagem e sujeira. Em torno da árvore coloca-se um pano branco
para indicar que ela é sagrada, sendo este o altar sagrado. É oferecida farinha de mapira ou, na falta
desta, farinha de milho. Como matérias secundárias, são oferecidas bebidas de milho fermentado,
uma bebida doce de milho por fermentar e aguardente. Outros produtos também podem ser
ofertados: tabaco, arroz em casca, panos e adornos femininos (pulseiras, anéis, braceletes). São
proibidos qualquer espécie de animal e alguns alimentos: mandioca seca, frutas e qualquer outro tipo
de farinha. A cerimônia ritual é composta de algumas fases que descreveremos a seguir, ainda
baseado em MARTINEZ. A preparação ocorre na véspera da realização do sacrifício, quando um
grupo de anciãos da família ou da comunidade limpa o lugar, arrancado a erva em volta da árvore e
varrendo o chão. Atam um pano branco em volta do tronco da árvore, com aproximadamente um
metro, e fazem buracos no chão para a colocação do sacrifício. As anciãs preparam a farinha, a
bebida e outras possíveis ofertas. O chefe da família ou da comunidade avisa todos que estejam
interessados em participar. A noite anterior é passada em vigília de preparação. A reunião dos
participantes se dá, de madrugada, na casa do chefe da família ou da comunidade, dirigindo-se em
procissão para o lugar escolhido. À frente do grupo vão as anciãs, com a rainha, levando nos
recipientes adequados, a farinha, a bebida e outras oferendas. Atrás deste grupo vêem o chefe da
comunidade, o chefe da família, os anciões e os demais interessados. São excluídos os não-iniciados
e os estrangeiros. A oferta e a oração ocorrem no lugar escolhido previamente para o sacrifício,
quando todos se sentam no chão, em semicírculo, em volta da árvore sagrada, ficando as mulheres
de um lado e os homens do outro. Na frente de todos ficam as anciãs com as oferendas e o
encarregado de orientar a oração principal. As anciãs dirigem-se à árvore sagrada, depositam as
oferendas e voltam para os seus lugares. O presidente da celebração pega um pouco de farinha,
joga-a pouco a pouco no chão, enquanto recita a oração principal. A resposta da assembléia ocorre
quando todos respondem com um leve bater de palmas e, aqueles que desejam, podem fazer
invocações e pedidos aos antepassados, que também são respondidas por palmas pela assembléia.
Por fim, há o regresso à aldeia. Todos voltam para a refeição comunitária, sinal de comunhão entre
os membros da comunidade. Comem e bebem comidas e bebidas tradicionais, sendo que esta
refeição continua durante a tarde e não deve faltar comida para ninguém. Em seguida, organiza-se a
95
dança, acompanhada do som de tambores, num ambiente de festa e unidade social. A celebração
estende-se até a madrugada.
102
Cf. Frei Bernardo AMARAL, Celebração de mhamba entre os vatonga.
96
dos filhos do clã reunidos. Todos, pessoas e animais, devem passar a noite junto
aos seus antepassados, para serem assumidos e abençoados por eles. Durante a
madrugada, começa a preparação da gamela sacrificial.
105
Frei Bernardo AMARAL, Celebração de mhamba entre os vatonga, p. 16.
98
106
Frei Bernardo AMARAL, Celebração de mhamba entre os vatonga, p. 17.
99
... Maquelele é o nome tradicional, Maria, mas este significa alguma coisa em
casa, sim, é um sofrimento, então pode este nome tem história se é, é porque
para ela vir ao mundo os pais sofreram por andar atrás de curandeiros ou pra
ela poder conceder ou porque ele tinha algumas doenças que talvez podemos
considerar venéreas que, às vezes, vedam a procriação, então neste caso
concreto andaram atrás dos curandeiros sofreram bastante de ter esta
menina, então quando nasceu deram o nome de ...
Que é sofrimento?
Que é sofrimento.
100
E daqui pra frente se eu me chamasse sofrimento eu seria uma pessoa que seria mais
fácil pra eu sofrer ou não?
Seria mais fácil porque o sofrimento gerou, exatamente, algo positivo que é a
sua presença neste mundo, então é daí que a partir desse momento você
também vai procurar ser ótima pessoa pra não poder sofrer, fazer sofrer
outras pessoas. 107
107
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
101
não viventes. A qualidade da magia é a mesma, o que faz com que ela seja utilizada
para o bem – restabelecendo ou fortificando a harmonia – e o que faz com que ela
seja usada para o mal – prejuízo do ser humano e da comunidade – é a intenção do
especialista.
108
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 538.
102
109
Segundo Silas GUERRIERO, A magia existe?, p. 38-43: “Portanto, longe de significar um
desconhecimento das relações causais, como diriam os evolucionistas, a crença na magia aponta
exatamente o contrário. Há, sim, uma mentalidade voltada às causas. Ela permite estabelecer
relações causais onde o pensamento lógico não percebe nenhuma. Mais ainda, ela permite um
controle sobre a ordem dos acontecimentos. (...) Sendo um conjunto de crenças que permeia todo o
grupo social, acaba por colocar os acontecimentos em relação aos demais indivíduos. Dessa
maneira, a magia tem por função controlar, orientar e explicar a ordem das relações sociais entre o
grupo. (...) Mesmo tendo surgido entre os indivíduos, a magia só existe quando é um fato social, ou
seja, quando podemos enxergar as condições em que produzem os rituais mágicos e que marcam o
lugar que ocupam no conjunto dos hábitos sociais. Não há magia sem um procedimento específico.
Também não há religião sem culto. (...) Todo ritual expressa um mito. Os rituais, sejam aqueles
pequenos e cotidianos até os que envolvem a coletividade, dizem a nós mesmos quem somos, a que
grupo pertencemos. Trata-se de uma série de atos dispostos em procedimentos rítmicos, mas que vai
além da mecanicidade de gestos repetitivos, pois sempre se refere a um significado simbólico, um
mito. (...) A magia não é menor do que a ciência. Ela não ignora as causas reais que afetam os
fenômenos. Lévi-Strauss afirma que as duas diferem pela ordem de determinações impostas por
cada um desses tipos de pensamento. Enquanto a ciência diferencia níveis e formas de
determinações, a magia formula uma crença mais global que abarca todo os tipos de acontecimento.
Assim, para o pensamento mágico as causalidades que regem os fenômenos já são dadas a priori e
estão no nível mágico e sobrenatural. Sendo o mago, ou feiticeiro, alguém que consegue controlar
essas forças causais, a magia tem, portanto, sua eficácia. (...) Melhor que opor magia e ciência seria
colocá-las em paralelo, como duas formas de conhecimento, desiguais quanto aos resultados
teóricos e práticos, mas não pelo gênero de operações mentais que ambas supõem”.
103
atendidas. O quintal lembrava um quintal qualquer a não ser por uma pequena casa,
onde C. realiza os atendimentos.
Esperei por quase quarenta minutos para ser chamada, pois outras pessoas
aguardavam para serem atendidas. Inicialmente, C. me deu uma cadeira para
sentar, mas como ela estava em uma esteira, falei que faria o mesmo e me sentei
em frente a ela. Além das esteiras que ocupavam grande parte do espaço, havia
vários objetos que ficavam atrás dela e pendurados, que faziam parte dos
atendimentos, como garrafas, ervas, panos, objetos rituais, dentre outras coisas.
Perto dela estavam os ossículos, que ficavam dentro de uma pequena bolsa,
utilizados para adivinhação. Começamos, então, nossa conversa. Conversamos
basicamente a respeito da medicina tradicional e de temas afins, tais como:
possessão, ervas, espíritos malignos e benignos, curas e adivinhação. Ao final, C.
fez uma crítica aos curandeiros de hoje em dia e à falta de crédito que sofre a
tradição, principalmente no que diz respeito ao dinheiro.
104
110
Segundo S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09, falando a
respeito dos maziones: “É difícil ser curandeiro? Acabou desistindo e ela em vez de estar na Igreja
Católica passou pra essas igrejas de maziones, sabe aquelas Igrejas. E na verdade eu ouvi ontem a
primeira vez falar dessa Igreja que é maziones. Maziones. Então essas igrejas de maziones trabalham
tipicamente com os curandeiros, ia, então ela agora vai pra lá. Mas é uma igreja do bem? É do bem, é
que eles estão habituando a igreja para quem não sabe é do bem porque eles utilizam quase aquelas
coisas de curandeirismo, aqueles panos, aqueles etc. etc. e depois dizem que são profetas. Profetas
porque profetizam podem chegar: a senhora é boa, a senhora não sei que, não sei quanto, não sei
105
Minha senhora faz favor hoje vou te deixar, amanhã não volta mais aqui
comigo porque aquela tua avó é tão má, tão má, que senão vai me fechar
algum trabalho. (...) Minha senhora eu gosto muito de pessoas que têm
espírito assim porque tornam boas profetas pra mim. Mas quanto a si,
desculpa lá, não venha mais aqui porque a tua avó diz que ela te venceu e te
renegou, tem todo o direito de fazer tudo quanto pode e assim ninguém pode
lhe impedir, por isso eu não posso impedir aquilo que ela quer. Não quero que
você trabalhe pelos espíritos, assim, dos maziones. Quero que você pega
aquela coisa ali trabalhar tradicionalmente, por isso vai.111
Pouco tempo depois, C. ficou grávida de uma menininha. Com dois meses o
bebê começou a ficar doente, com muita febre. O espírito quis se manifestar de novo
e deu a idéia de C. buscar raízes no mato. Ela voltou com as raízes, raspou-as e as
ferveu para dar um banho em sua menina, que ficou curada. A partir daí, C. aceitou
ser curandeira e foi atrás de um curso, ou melhor, de uma pessoa, indicada pelo
espírito, para se tornar curandeira.
Como vimos na história relatada por C., ao falar sobre essa parte de sua vida,
ela atravessa alguns dos temas de magia que encontramos em Moçambique:
possessão por espíritos, adivinhação, medicina tradicional e curandeirismo /
feitiçaria (dialética entre o bom e o ruim). Agora, falaremos a respeito de cada um
destes tópicos, tendo a história de C. e sua visão de mundo como uma forma de
ilustração.
que, não sei que, então são os tais espíritos que talvez trabalhavam, podiam estar a trabalhar como
curandeiro, mas agora ele profetiza. O profetizar é o mesmo que adivinhar? Sim, sim senhora é isso
mesmo são como adivinhador”.
111
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
106
1.4.2 – Possessão
Como vimos no relato feito por C., o primeiro ponto que merece destaque é a
presença do antepassado, no caso a avó, em C.. O espírito da avó fala através dela.
Momentaneamente, toma o seu corpo para pode comunicar algo. Tal fato
chamamos de possessão. Já observamos, neste capítulo, que os antepassados se
comunicam de várias maneiras. Não nos deteremos no conceito de possessão, pois
o faremos no quinto capítulo. Agora, cabe ressaltar que a possessão pode ser vista
como desencadeadora de outros processos de magia.
O tratamento ocorre para dispersar os espíritos. Isso pode ser feito através do
balanço de folhas na frente da pessoa possuída. Além disso, há um ritual mais
complexo, que inclui o toque dos tambores, chegando a provocar e acentuar a
112
Cf. Francisco Lerma MARTINEZ, O povo macua e a sua cultura.
113
Cf. P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu.
114
Cf. Francisco Lerma MARTINEZ, O povo macua e a sua cultura.
115
É bastante interessante notar que os indivíduos quando chegam à umbanda, normalmente
passam por momentos nos quais também são possuídos por espíritos, que eles não controlam. A
partir do momento que essa experiência é significada e as possessões passam a ser controladas, o
indivíduo passa a desenvolver a própria mediunidade, tornando-se, ele mesmo, um indivíduo com
dons especiais, que o diferenciam das outras pessoas. Para aprofundar ver: Brígida Carla
MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanências, em especial capítulo I.
107
Com a nova identidade, aquele que passa a ter poderes mágicos torna-se o
alvo dos seus colegas instruídos nessas artes. Portanto, é importante que ele se
mantenha sempre em guarda, sobretudo à noite, momento em que deve defender-
se contra os feitiços noturnos. Além de drogas protetoras, o indivíduo também usa
um colar feito com determinados tipos de objetos. Tem na sua casa o próprio altar,
que fica em um lugar elevado, onde ele deposita as suas próprias oferendas. Ele
tem a possibilidade de desenvolver seus poderes subliminares tornando-se adivinho,
fazedor de milagres ou profeta. Caso o seu poder aumente e seus trabalhos sejam
bem sucedidos, ele pode até fundar uma nova escola, inventando novos ritos e
descobrindo drogas mais eficazes117.
116
Segundo P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, o feitiço contém mais
virtualidades que o amuleto e o talismã, porque eles não possuem animação vital. Não passam de
objetos naturais sem iniciativa própria e com ação automática. O amuleto é considerado protetor e o
talismã benfeitor. A sua escolha depende de sonhos, visões e formas semelhantes aos fins em vista.
O amuleto é um objeto pequeno dotado de um poder secreto, misterioso, imanente e inconsciente
que preserva o proprietário de desgraças, afugenta os malefícios e protege contra males existentes
ou suspeitos. Atua defensiva e preventivamente e em ações específicas, contra doenças, malefícios,
acidentes e toda espécie de infortúnios. Atrai coisas boas. Já o talismã não possui poder, mas certos
sinais cabalísticos nele gravados.
117
É impossível não fazer a relação com a umbanda, uma vez que muitos indivíduos que são
médiuns pensam em, um dia, tornarem-se pais ou mães-de-santo, o que permite que eles montem
seu próprio terreiro, dando a ele um caráter bastante individualizado. Segundo Brígida Carla
MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanências, p. 255: “O que podemos observar é que a
mutabilidade simbólica da umbanda está relacionada com as necessidades individuais dos membros
do grupo. Há um entendimento de que a evolução espiritual é um caminho individual, no qual não é
possível o direcionamento, já que ao fazê-lo, aspectos importantes para aquele indivíduo podem estar
sendo colocados de lado. A umbanda muda para satisfazer as necessidades de seus componentes.
Portanto, algumas vezes, o que se vê, é uma bricolagem de crenças, que, a princípio, parece sem
sentido, porém, o Centro acaba sendo a composição das crenças dos seus integrantes”.
118
Cf. P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu.
108
... há uma guia que nos guia, que nos conduz que são os tais espíritos, há
outros que saem de fato dos espíritos, falam e têm potência de pegar o seu
defunto falar consigo assim diretamente, assim como outros que não fazem
isso, só trabalham na base de tradição. Assim, aqui, nesta minha palhota
aqui, eu tenho espíritos que saem, falam, dizem coisas quando necessária
pega o espírito daquela pessoa e fala e indica que tipo de medicamento é que
deve se tratar essa pessoa.119
A possessão, no caso, tanto pode ser benéfica quanto maléfica. O que vemos
é que ela está inserida no cotidiano dos grupos bantú, mas não é algo que ocorre
sistematicamente dentro de um culto organizado. A possessão ocorre quando há a
necessidade, por parte do espírito ou de um antepassado, de comunicar algo.
119
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
109
1.4.3 - Adivinhação
No caso de C., ela não foi a um adivinho saber o que se passava, mas foi aos
maziones, que em vez de adivinhar, profetizam:
120
S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
121
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
110
122
Cf. P. Armando RIBEIRO, cm, Antropologia: aspectos culturais do povo changana e a
problemática missionária
111
próprios, deitadores de ossículos, e são eles que se invocam para receber ou fazer
reviver esse poder”123.
123
Henrique A. JUNOD, Usos e costumes dos bantos, p. 523.
112
Mas, por exemplo, me falaram que existe um tipo de curandeiro que só trabalha com
ervas.
É eu estava a dizer que há aqueles curandeiros que não têm espírito que
saem. Nós, na nossa língua nativa, chamamos nhandarumi essas pessoas
que não têm espírito que só trabalham na base de erva, são nhandarumi, só
conhecem assim como essa senhora que acaba de sair, aquela que eram
duas, a outra trabalha também, só que trabalha na base de ervas e não de
incorporação de espírito, mas ambos são curandeiros porque afinal de contas
estão na mesma luta de curar pessoas doentes ou que tenham problemas.124
124
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
113
Não, não há diferença, não há diferença até porque é a mesma coisa. Ele vai
ver que eu, por exemplo, aquela meu neto que eu tenho, eu fui a um
curandeiro pedir os medicamentos, eu e a minha comadre pedi porque eu
conhecia o que ele tem, pedi, mas eu podia ir aos tamanides. O problema deu
não ir...
Desculpa tamanide...
Tamanide é mercado, desculpa é mercado. Eu podia ir ao mercado, mas
acontece que eu não conheço os medicamentos. Eles lá podiam me dar
medicamentos falsos.
Ou coisa que vai fazer mal para a criança.
Que vai fazer mal pra criança. Então preferi ir a uma pessoa que eu lhe
conheço e ele vai me dar os medicamentos que conhece porque um dia a
minha mãe até disse: Vocês podiam ir nos tamanides comprar, chegar e dizer
quero isso, quero aquilo, quero aquilo trazerem, para eu ver, eu é que vou
dizer isto é, isto não é, isto é, agora quando eu vou, quando isto não é e
também o dinheiro já está gasto, então eu prefiro ir pedir a uma senhora.
Então há uma senhora que eu conheço que é de família, eu peço então dá
um medicamento, quando acaba eu volto, quando acaba eu volto, mas a
criança tem que tomar até os cinco dias para evitar aquela, principalmente,
aquela doença de...125
Ao quinto dice que sabia por ver que a Re curava a alguns enfermos com
ervas que lhe aplicava em (ilegível) como huma erva a que lhe (ilegível) de
bicho e que não duvida que tambem curava com outras ervas e suas raizes
que senão conhecesse porq. nem todos teem experiencia para conhecer
ervas e a raiz de que ella Re usava era a raiz de outeca / vuteca (sic)126 como
elle testemunha via com seus olhos.127
125
S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
126
A utilização de sic se dá, quando a palavra se encontra legível, o documento não está estragado,
mas a palavra lida não foi encontrada nos dicionários consultados.
127
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Maria (escrava, presa), Itu, 1755, p. 22 - frente.
114
128
Segundo Claude LEVI-STRAUSS, Antropologia Estrutural, p. 194-195: “Não há, pois, razão de
duvidar da eficácia de certas práticas mágicas. Mas, vê-se, ao mesmo tempo, que a eficácia da
magia implica na crença da magia, e que esta se apresenta sob três aspectos complementares:
existe, inicialmente, a crença do feiticeiro na eficácia de suas técnicas; em seguida, a crença do
doente que ele cura, ou da vítima que ele persegue, no poder do próprio feiticeiro; finalmente, a
confiança e as exigências da opinião coletiva, que formam à cada instante uma espécie de campo de
gravitação no seio do qual se definem e se situam as relações entre o feiticeiro e aqueles que ele
enfeitiça”.
129
Henrique A. JUNOD, Usos e costumes dos bantos, p. 418-419. (O grifo é nosso)
130
Francisco Lerma MARTINEZ, O povo macua e a sua cultura, p. 191.
115
Quando se pensa nas causas das doenças, a primeira coisa que fazem os
médicos é um diagnóstico, mas os sintomas físicos não são os únicos levados em
consideração. O grande meio de se diagnosticar as doenças é através de jogos
131
Segundo Francisco Lerma MARTINEZ, O povo macua e a sua cultura, p. 181: “Como doente,
dirigirá os seus passos numa tríplice direção, <família, sociedade e natureza>, de forma a superar
positivamente a prova e evitar o perigo de morte que toda a doença traz consigo. Recorrerá às
componentes essenciais da sociedade (Deus, antepassados, família e restante da sociedade), para
ultrapassar esta agressão existencial e passar de doente a pessoa saudável. Apoiar-se-á em
elementos profanos (alimentação e higiene), místicos (ritos, proibições, tradições e prescrições) e
comentários (família e sociedade em geral); com o seu apoio, não se sentirá só e abandonado no
sofrimento”.
132
Podemos entender a doença na umbanda como uma doença espiritual, que transforma os sinais
doentios em signos de desordem abrangente que até então permaneceram, para a pessoa, sem
sentido. No momento de entrada na umbanda eles passam a serem vistos como algo mais amplo do
que uma disfunção meramente orgânica. Segundo Paula MONTERO, em A doença como desordem,
a experiência vivida da doença tornar-se concreta e perceptível para o sujeito quando imobiliza o
corpo, provoca interrupções no fluxo cotidiano de atividades rotineiras, domésticas ou
economicamente produtivas, interrupções estas que trazem resultados nefastos para a própria
organização da família. A supressão dos sintomas só ocorre quando há uma ressignificação da
experiência vivida. A doença que em um primeiro momento é concebida como desordem torna-se,
num segundo momento, positiva, ao se constituir na possibilidade de abertura de um canal de
comunicação com os deuses. Sendo assim, conforme afirma Ibid., p. 255: “... a concepção religiosa
de doença, ao contrário, é capaz de articular essas várias dimensões da experiência mórbida – o
orgânico, o psicológico e o social -, cimentando-as de um sentido mítico mais universal”.
116
adivinhatórios. A doença sempre possui uma causa direta que precisa ser
descoberta. Quando se pensa no próprio doente, fala-se em alimentação
inadequada, falta de higiene, não cumprimento dos deveres para com a
comunidade, transgressão de leis ou violação de uma norma moral da sociedade.
Quando se pensa em outras pessoas, fala-se em intervenção punitiva e mística dos
antepassados, ação funesta de algum indivíduo dotado de poderes extraordinários,
inveja, vingança ou ciúmes. Nesse sentido, é ilustrativa a afirmação de C.:
É uma pessoa. A tradição é muito fechada, não pode formar uma escola onde
todos eles podem estar aí. Por exemplo, perante os medicamentos todos nós
conhecemos, mas cada qual a mesma raiz que a dona Brígida pode curar e,
por exemplo, cólicas eu posso curar calos, mas nunca eu vou dizer o calo eu
curo isso. A mesma raiz que cura, por exemplo, diarréia eu posso utilizar para
atenuar o fígado, mas cada qual esconde, não diz. Por que que se esconde?
A base da tradição é muito metido na feitiçaria.
O que significa ser metido na feitiçaria?
Quer dizer que os feiticeiros procuram muito os curandeiros do que os
próprios médicos da oficiais porque trabalhando no basta eu dizer: - “Brígida
eu curo cancro com esta”.
Podemos dividir a feitiçaria em dois tipos. Algumas são feitas com o intuito
de enfeitiçar pessoas, que, dentro das sociedades de tradição bantú, configura-se
como um crime, e outras que dizem respeito às operações mágicas, que visam o
bem da sociedade. Na origem, é possível afirmar que ambas, e, portanto, as
117
pessoas que as executam, são da mesma natureza; porém o uso de uma delas é
feito objetivando o interesse da sociedade, enquanto a outra é feita em oposição.
Existe nas sociedades bantú uma pessoa que é conhecida pela sua
capacidade de prejudicar os outros. Essa pessoa tem poderes sobrenaturais
extraordinários que podem causar, por si ou por meio de terceiros, dificuldades para
os indivíduos e também para a sociedade. É terrivelmente temida. Sua ação pode
ser considerada anti-individual e anti-social. Independentemente disso, pode-se
perceber que esse indivíduo possui uma função dentro dessa sociedade, que
segundo Martinez: “... tem também certa missão religiosa, em ordem a uma
correcção das transgressões do povo. Como uma espécie de função punitiva para
restabelecer a ordem social quebrada”133. O feiticeiro e o feitiço são uma
necessidade, já que, através deles, a sociedade encontra explicação para o mal. É
um modelo daquilo que o bantú não deve ser. Segundo um dos entrevistados:
E, por exemplo, vamos imaginar lá os clãs, as localidades, qual é a função que vai ter,
então, essa pessoa que é essencialmente ruim dentro desse grupo?
Bom, ele nasce numa família e está naquela família e muitas das vezes é
descoberta e aquela, como é que posso dizer: a maldade normalmente, a
pessoa começa a vivenciar-se feiticeira quando atinge, por exemplo, trinta e
cinco anos pra frente, até pode crescer sem saber que ela é exatamente,
então quando é descoberta, claro é acompanhada na sociedade, mas se ela
não consegue exatamente conter-se e distingue-se entre muitos que, muitas
das vezes é sempre acusada disto, e daquilo etc. acaba, passa a ser vaiada
do grupo, da família e da localidade, sim, então essa pessoa vai viver de fato
uma vida ruim, ia, pra onde for, pode viver algum tempo, mas como não
agüenta conter-se vai se meter a praticar aquelas malícias e se é descoberta,
também, vai ser qualquer coisa, então vai viver uma vida...134
O senhor pode me contar uma que o senhor viveu que o senhor soube da localidade do
senhor era?
São tantas. Por exemplo, mesmo aqui em Maputo tem acontecido em
Benfica, é um bairro aqui Benfica, que o pai dum casal, aliás, não o pai, é a
mãe da esposa de um casal que depois de morrer o marido em casa etc. e os
filhos estão dispersos ele veio a viver junto à filha aqui no bairro do Benfica,
veio a viver junto à filha e como ela tava carregada exatamente com esta
prática de feiticeira começou, então, a enfeitiçar os filhos do genro.
Mas os filhos do genro não eram os netos dela?
São os netos dela, mas essa prática de feiticerismo como é feito muito das
vezes à noite a pessoa não reconhece.
A pessoa que faz não reconhece?
Aliás, pode reconhecer a coisa, aí uma coisa que eles fazem e isso é bem
contado, que é sempre, eles apreciam a carne humana e como eles comem
só eles é que sabem que nunca matam a pessoa e eles ali comem, comem,
mas comem a maneira, sei lá, que até os vampiros eles conseguem ver mais
ou menos como é que é, mas eles têm uma forma própria deles, então
normalmente são os curandeiros contra feiticeiros que dizem que eles fazem
isso, então cada feiticeiro pode ser obrigado no grupo dos seus, quer dizer,
dos seus comparsas a oferecer uma pessoa pra matar.136
135
T. entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 14/07/09.
136
IDEM, entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 14/07/09.
119
Apesar de, em essência, os poderes dos curandeiros137 serem iguais aos dos
feiticeiros, sua atividade difere da dos feiticeiros. Eles trabalham durante o dia e tem
consciência de tudo aquilo que fazem; sofrem uma preparação ou passam por uma
iniciação, que difere segundo a espécie de magia que praticam; fazem uso de ervas
medicinais e outros objetos que possuem um poder especial; e, por fim, eles são os
sustentáculos da ordem social. Prevêem o futuro, curam os doentes, previnem as
desgraças e lutam contra aqueles que praticam a feitiçaria. Todo o poder dos
curandeiros se aplica a desfazer os procedimentos mágicos dos feiticeiros. Suas
drogas servem para dois fins: proteção e cura, consistindo a última na descoberta do
feiticeiro, que é a primeira coisa a ser feita para que a cura se processe. C. nos fala
de uma das formas de se descobrir o feiticeiro:
137
Segundo Henrique A. JUNOD, Usos e costumes dos bantos, p. 475-476, há diversas categorias de
curandeiros entre os tongas. São eles: “1º Aqueles cuja actividade reveste o mínimo de carácter
mágico. São os n’anga (iin-tin) ou bá-múri, que trata da arte médica. 2º Aqueles que, tendo passado
pela cerimônia do exorcismo, se tornaram eles próprios exorcistas; são designados pelo termo
gobela. 3º Aqueles que se chamam mungoma, os verdadeiros curandeiros, dotados de poder
divinatório e miraculoso, que lutam contra os bàlóii, fazem chover, influenciam o Céu, etc., sem que
tenham necessariamente de passar pelo episódio do exorcismo. 4º Aqueles cujo poder os qualifica
especialmente para descobrir os deitadores de sortes e que, por esta razão, são chamados chinussa,
os <farejadores>. 5º Os deitadores de ossículos (ba bula)”.
120
Podemos afirmar, assim, que o curandeiro tem que ser iniciado para que sofra
uma mutação quantitativa, que lhe capacite para mergulhar na participação vital com
clareza e segurança, dotado de um conhecimento da etiologia das doenças e da
terapêutica mágica. Precisa receber a sabedoria médica, herdada dos
antepassados.
Como é que alguém se torna o bom curandeiro, como é que, eu posso chegar pra
senhora e falar assim: ah, dona Celeste eu quero ser curandeira, existe isso?
Não, não, não, não. O curandeiro parte dos seus espíritos é a minha
cunhada, ela é curandeiro também, a minha cunhada começou saia aqueles
espíritos, quando sai aqueles espíritos ele até fala línguas diferentes. Ele fala
zulu, fala a minha cunhada, às vezes, falava dois, nós não percebíamos o que
ela estava a dizer, aquilo andou, quando começa a sair os espíritos e então
tens que ir a um outro curandeiro mais velho que é pra te ensinar como é que
tu vais trabalhar, ta bem. Então, ele, o outro curandeiro é que deve te ensinar
como é que deves fazer como você sabe é bom. Por exemplo, eu tenho o
dom quer ser padre, quer ser padre, então tem que estudar e tenho que fazer
aquelas cerimônias, as cerimônias.139
138
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
139
S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
140
Cf. P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu.
121
Observaremos que a tradição tão cara aos grupos de tradição bantú foi sendo
esfacelada com o início da escravidão mercantil dentro do continente africano,
causando uma mudança identitária. Assim, no próximo capítulo, buscaremos
apontar de que maneira o processo que vai da captura à chegada ao Brasil foi
vivenciado pelos bantú, com destaque para a perda de algumas das estruturas
tradicionais, e também para a forma como esse fato colaborou para as
transformações sofridas por ela dentro da própria África, fruto de diálogos culturais e
de hibridismos, antes do embarque para o Brasil, pois a vivência da diáspora: “...
não foi, (...) [uma simples] experiência destrutiva traumática que separou os negros
da África, rompendo seu sentimento de história e de tradição, mas uma via ou um
canal entre essa tradição e o que se vem desenvolvendo no novo solo”141. O que
veremos é que as pessoas de tradição bantú, quando transportadas ao Brasil,
procuraram estabelecer a sua tradição em um novo ambiente, usando os
instrumentos disponíveis e as lembranças de sua herança para conceber algo novo.
141
Edward Kamau BRATHWAITE apud Sidney W. MINTZ; Richard PRICE, O nascimento da cultura
afro-americana, p. 12.
122
1
Nelson SARGENTO; Teresa CRISTINA. Casa do samba. s. n. Zeca Pagodinho Discos, Manaus,
2007.
123
Nenhum grupo, por mais bem equipado que esteja, ou por maior que seja sua
liberdade de escolha, é capaz de transferir de um local para outro, intactos, o
2
Linda M. HEYWOOD, Introdução, In: Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 18-
19.
3
Cf. Maria Cristina Cortez WISSENBACH, Prefácio, In: Jaime RODRIGUES, De costa a costa.
124
4
Sidney W. MINTZ; Richard PRICE, O nascimento da cultura afro-americana, p. 19.
5
Cf. Manolo FORENTINO, Em costas negras.
6
A viagem ao interior demorava um tempo considerável e quando retornavam à costa, eram trazidos
até seiscentos escravos, além de cobre, marfim, sal e ferragens. Dadas as condições de viagem,
apenas dez por cento dos escravos sobrevivia e os que chegavam, estavam, muitas vezes, feridos e
machucados. A forma de colonização portuguesa, baseada no terror e na violência: “... além de
intimidar e controlar chefes e tribos, causava uma desorientação psicológica do grupo, pois, às vezes,
destruía a raiz da autoridade e da segurança na tribo e no estado, transformando, neutralizando e/ou
eliminando forças oponentes” (Roy Arthur GLASGOW, Nzinga, p. 76). Caso existissem navios
disponíveis eram imediatamente embarcados. Em Luanda, homens, mulheres e crianças eram
encarceradas em barracões, onde esperavam a chegada dos navios negreiros, que podia demorar
até cincos meses. Segundo Mugur VALAHU, Angola, p. 49: “Os Negros capturados eram levados,
após algumas centenas de quilômetros de marcha, para o porto de embarque de Luanda onde, em
estado bastante miserável, esperavam, dentro de barracões, os barcos que deviam conduzi-los à
América. Devemos dizer que, uma vez instalados nesses barracões, os negros eram bem tratados e
alimentados pelos compradores e traficantes os quais tinham todo o interesse em apresentar homens
e mulheres saudáveis, resplandecentes de saúde, se possível fosse, pois seu preço pagava-se à
vista e conforme o estado físico. Antes de embarcarem, padres brancos baptizavam os grupos de
escravos; cada um recebia então um papel com o seu futuro nome cristão. Nos barracões os cativos
eram engordados e untados com óleo de dendê, antigo costume Mbundo; por vezes, eles eram
utilizados no cultivo da mandioca, o que aumentava o seu valor. Alguns, por outro lado, eram
dizimados pela varíola.
125
ocorridas durante este trajeto, bem como nos processos de diálogos culturais. O que
percebemos é que esse trajeto pode ser entendido simbolicamente como a fase
limiar de um rito de passagem, logo, de transformação de identidade, uma vez que
muitas medidas foram tomadas para transformar a pessoa livre em escravizada,
alterando seu status social, o que também destruiu visceralmente as bases da
tradição bantú.
9
Cf. Carlos SERRANO, Maurício WALDMAN, Memória d’África.
10
Cf. Alberto da COSTA E SILVA, A manilha e o libambo.
127
Mesmo a Costa Atlântica sendo a última região da África que teve contato
com povos vindos de fora do continente e começando a ser explorada por
navegadores portugueses a partir do início do século XV, o contato com outros
povos já existia, seja pelo oceano Índico, seja pelo mar Mediterrâneo e seja pelo mar
Vermelho. Porém, a presença dos portugueses provocou mudanças nas sociedades
africanas, conforme constata Souza: “O fato novo que interferiu radicalmente nas
sociedades locais depois da chegada dos portugueses foi a busca de escravos, que
11
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 181.
128
eram cada vez mais solicitados pelas colônias americanas”12. Portanto, entre os
séculos XVI ao XIX, foi em torno do tráfico de escravos que se deu a relação entre
os africanos, com destaque para os angolanos, e os europeus, com destaque para
os portugueses. Cabe notar que este contato foi regido por relações desiguais de
poder13.
O contato com líderes africanos fez com que muitos deles fossem recebidos
em Lisboa e servissem como auxiliares no processo de evangelização dos africanos,
além de permitir que os portugueses interviessem nas disputas dentro da própria
África. Durante o século XVI, Portugal iniciou, na costa africana ocidental, uma
política colonial baseada no proselitismo cristão, na imposição da própria língua e
nos bons resultados comerciais:
12
Marina de MELLO E SOUZA, África e Brasil africano, p. 28.
13
Importante ressaltar que os autores diferem quanto ao caráter da presença de Portugal em Angola.
Apenas para fazer um contraponto, gostaríamos de citar Américo BOAVIDA, Angola, p. 13-14,
quando afirma que: “Numa primeira fase, sob o panegírico de cristianização dos selvagens, os
governantes, em Portugal, atiraram para os exércitos e para as caravelas a gente rude dos campos,
os condenados e os aventureiros, para defender as conquistas de uma civilização que se dizia
ameaçada pelos bárbaros e infiéis. Depois, sob a bandeira da “dilatação da Fé e do Império”,
procurou-se justificar a política de expansionismo e de conquista que se seguiu à Independência. O
progresso das ciências e da técnica na Europa realizou as condições que facilitaram a tarefa de “dar
novos mundos ao mundo” – quando se partia em demanda de ouro e das especiarias. Sob o
imperativo da defesa de uma herança e de territórios nos quais a missão civilizadora não havia ainda
sido completada, ocuparam-se pela guerra e pela fôrça países e territórios que constituíam
unicamente o mercado de trabalhadores forçados e de escravos para as minas e as plantações do
Nôvo Mundo. E agora, é “a missão divina de um povo eleito”, bastião da civilização ocidental na luta
contra o comunismo que serve de justificação à oligarquia financeira em Portugal e aos seus
associados para tocar a mentalidade simples do povo português, para arrancar das suas terras e o
atirar às colônias e colaborar na opressão e exploração de povos que se levantaram contra a
dominação estrangeira”.
14
Tal idéia é fruto do etnocentrismo existente na época, que considerava que culturas diferentes
necessariamente eram inferiores. Segundo MARCONI, PRESOTTO, Antropologia, p. 18: essas
culturas “... são vistas dentro de um prisma de inferioridade cultural, sendo consideradas selvagens,
bárbaras e de mentalidade atrasada”.
129
15
Roy Arthur GLASGOW, Nzinga, p. 61.
16
Mugur VALAHU, Angola, p. 23.
17
John K. THORTON, Religião e vida cerimonial no Congo e áreas Umbundo, de 1500 a 1700, In:
Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 100.
18
Segundo GLASGOW, Nzinga, a rainha Nzinga representou um dos primeiros e efetivos oponentes
à dominação portuguesa em Angola, uma forma de resistência africana no século XVII, sendo uma
personalidade de destaque dentro de Angola. Por outro lado, a posição da rainha Nzinga perante a
escravidão era ambivalente, pois, às vezes, ela participava do tráfico, enquanto que em outros
momentos fechava tais mercados. Era também controversa no que se refere à questão religiosa,
muitas vezes, pautada em função de sua conveniência política. Em 1622, Nzinga foi batizada na
130
Luanda foi fundada em 1576, por Paulo Dias Novaes, sendo que os
portugueses já tinham edificado na África verdadeiros centros de vida européia.
Luanda e Benguela serviam de pontos de partida para a infiltração portuguesa no
interior de Angola e na África. Segundo Boavida19, os portugueses traziam produtos
alimentares nos porões vazios dos navios negreiros e trocavam pelos escravizados
que durante quatro séculos foram comercializados em Angola. Cerca de um milhão
trezentos e oitenta e nove mil escravos foram tirados de Angola entre 1486 e 1641,
cerca de nove mil por ano. De 1580 a 1836 mais de quatro milhões de homens,
mulheres e crianças foram levados de Angola e do Congo.
igreja em Luanda. Seu contato com os portugueses provocou mudanças no seu estilo de se vestir e
em suas atitudes. Em 1623, Nzinga torna-se rainha, mas para exigir lealdade e apoio do povo, ela
rejeita o catolicismo e retoma a sua herança cultural. Segundo Ibid., p. 92: “Portanto, seus primeiros
atos foram os de reformar aquelas leis que haviam perdido a integridade étnica devido à influência
européia, tais como a proibição às mulheres Mbundo de terem filhos no quilombo e a adoração de
Temba Ndumba, seu Deus”. Porém, com o passar do tempo e com a necessidade de negociação
com os portugueses, Nzinga, novamente, converte-se ao catolicismo. Em 1663, o catolicismo
ganhava muito prestígio, sendo que seus súditos desejavam ser batizados e houve um aumento na
extensão e na freqüência das cerimônias.
19
Cf. Américo BOAVIDA, Angola.
20
Cf. Manolo FORENTINO, Em costas negras.
21
Segundo Pedro PUNTONI, em A guerra dos holandeses, os holandeses comerciavam com
Portugal açúcar e outras mercadorias produzidas no Brasil desde o século XVI. As relações
amistosas e lucrativas entre portugueses e holandeses foi rompida, quando Portugal ficou sob o
domínio da Espanha, que através de Filipe II, em 1605, proibiu o comércio entre holandeses e as
colônias da Espanha. Este ato fez com que os holandeses reagissem. Primeiro através do
contrabando e do comércio ilegal. Segundo, com a criação da Companhia das Índias Ocidentais em
131
1621 para reunir e para organizar os comerciantes, fortalecendo os negócios com as colônias
espanholas e portuguesas. A Companhia das Índias Ocidentais tinha também um caráter militar,
estando autorizada a promover a guerra para garantir seus interesses. A Companhia das Índias faz
tentativas de conquistar regiões brasileiras. Em 1637, os holandeses controlavam áreas das
capitanias de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte. Neste mesmo ano foi enviado
ao Brasil o governador João Maurício de Nassau, que consolidou o domínio da Companhia no então
chamado Brasil holandês. Apesar de Nassau ter a imagem de bom governador, segundo Ibid., p. 10:
“Na verdade, Nassau era um homem de seu tempo, com interesses concretos. Sabia que tinha de
reconstruir a economia açucareira, para que a Colônia desse o lucro esperado. Para tanto, não
descartou o uso do trabalho escravo, já criticado na época. Com a conquista de São Jorge da Mina,
na Guiné (1637), e de São Paulo de Luanda, em Angola (1641), importantes centros de fornecimento
de escravos, Nassau procurou garantir mão-de-obra farta e barata para os engenhos”.
22
Américo BOAVIDA, Angola, p. 52.
23
Mugur VALAHU, Angola, p. 60.
24
É interessante notar que Angola teve certo contraste com o Brasil, uma vez que o negro e o
mestiço tiveram mais dificuldade de entrar na Igreja Católica (ministério). Caberia indagar os motivos
pelos quais a Igreja Católica utilizou estratégias diferentes em cada uma das localidades. Podemos
pensar na possibilidade de que em Angola o negro era visto como um sujeito ativo, enquanto que no
Brasil a sua visão era de sujeito passivo. O negro em Angola constituía a população autóctone,
enquanto que no Brasil essa população era formada pelos índios. Abordaremos com mais detalhes
esta questão no capítulo III. Também é sugestiva a afirmação de John K. THORTON, Religião e vida
cerimonial no Congo e áreas Umbundo, de 1500 a 1700, In: Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora
negra no Brasil, p. 96, ao falar a respeito da inserção do cristianismo no Congo: “No final de contas, o
cristianismo, apesar de sua forma sincrética, segundo os modelos do Congo, penetrou
profundamente em todas as regiões, embora somente no Congo e áreas ob a administração
portuguesa ele estivesse fortemente enraizado como parte da identidade local”.
132
25
Joseph C. MILLER, África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850, In:
Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 65.
26
Roy Arthur GLASGOW, Nzinga, p. 48.
133
Portanto, frente ao que falamos até agora, podemos afirmar que a partir do
final do século XVI, o comércio negreiro deixou de ser apenas mais uma atividade
ultramarina para ser o principal esteio da economia do Império Português. Além
disso, o tráfico negreiro também foi visto como um instrumento da conquista
portuguesa de Angola, uma vez que...
27
Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 28.
28
Ibid., p. 29.
29
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 46.
134
guerra – comércio, sendo que o trato foi extremamente predatório, gerados a partir
das guerras, das extorsões perpetradas contra os chefes africanos avassalados e as
feiras. “Todos esses fatores consolidam a presença portuguesa em Angola,
transformando-a na mais importante fornecedora de escravos do tráfico atlântico
europeu”30.
30
Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 109.
31
Cf. Arnold VAN GEENEP, Os ritos de passagem.
135
32
Alberto da COSTA E SILVA, A manilha e o libambo, p. 86-87.
136
2.3.1 - Captura
33
Cf. Ernest BLOCH, O princípio esperança.
34
Ibid., p. 114.
137
35
Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 325.
36
Manolo Garcia FLORENTINO, Em costas negras, p. 36.
37
Ibid., p. 103.
138
do tráfico é que cada vez mais a produção de cativos era uma atividade que se
justificava por si mesma, dada a sua natureza econômica, ou seja, lucrativa:
Os assaltantes tinham que ser rápidos: sair da área, com a presa, o mais
rápido possível, antes que os parentes e a aldeia dessem pela falta. Se
possível, sem serem identificados, para evitar represálias. A prática, embora
viesse a multiplicar-se durante o tráfico transatlântico, era bem antiga e
possivelmente fora estimulada pelas trocas transaarianas.39
38
Manolo Garcia FLORENTINO, Em costas negras, p. 98-99.
39
Alberto da COSTA E SILVA, A manilha e o libambo, p. 110.
139
Sabemos que era prática comum a escolha dos negros nos barracões pelos
oficiais dos navios. (...) indica um aspecto importante da experiência dos
escravos no tráfico: a divisão das famílias, que podia ocorrer já no litoral
africano, durante a escolha das peças a serem embarcadas. As
conseqüências disso eram marcantes para o resto da vida dos cativos. 41
40
Cf. Manolo Garcia FLORENTINO, Em costas negras.
41
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 81.
42
O., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
140
Do régulo? Nunca ouviu falar do régulo? Régulo é aquele que mais ou menos
tomava uma determinada área.
Um tipo de dirigente, de líder?
De dirigente, de líder dessa área, então quando faz essa bebida, ao chegar
ao esquema da bebida, primeiro as pessoas não podiam preparar bebida em
casa, beber antes que se bebam em casa do régulo, do dirigente, o dirigente
é que tinha que dar ordem para toda a gente beber, mas ultimamente já não
acontece isso, cada qual está na sua vida, mas antigamente era isso. Então,
antes de se beber em casa do régulo as pessoas tinham que apanhar essa
fruta, juntavam na casa do régulo, preparavam e o régulo, também, ia deitar
os defuntos, dizia: - Cuidai deste meu povo que eu estou a dirigir.43
43
S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
44
Cf. Alberto da COSTA E SILVA, A manilha e o libambo.
141
45
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 140.
46
Joseph C. MILLER, África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850, In:
Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 67.
142
47
Segundo Rosa CUNHA-HENCKEL, Tráfego de palavras, p. 45: “É necessário, porém, levar em
consideração que o processo de mistura e modificação das línguas maternas dos africanos não foi
um processo que começou a ocorrer no Brasil e sim já na África, antes de serem embarcados.
Também é preciso assinalar que estas línguas não eram, necessariamente, a língua materna dos
escravos transportados, mas sim a língua veicular usada na região onde o comércio de escravos era
efetuado e onde eles eram armazenados antes do embarque”.
48
A questão dos locais de procedência dos escravizados que chegaram ao Brasil ainda é um tema a
ser estudado. Nas palavras de Carlos Eugênio Marcondes de MOURA, A travessia do Calunga
grande, p. 17: “... os locais de procedência de várias etnias, em torno das quais se estabeleceu
grande confusão, posto que, muitas vezes, as designações dos povoados, aldeias e cidades de
proveniência dos escravizados ou os portos onde eles eram embarcados são interpretados como
nome dessas etnias, uma generalização sem cabimento e um dos temas sobre a história do afro-
negro e seus descendentes no Brasil que necessita de profunda revisão”.
49
Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 98-99.
50
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 70.
143
negreiros ficavam ancorados, o que, de certa forma, era conveniente ao tráfico: “Era
nesses lugares – os barracões ou feitorias privados – que muitos africanos
escravizados vindos do interior tinham seus primeiros contatos com os europeus ou
americanos que os levariam através do Atlântico”51.
Meses havia, portanto, em que 1500 indivíduos deixavam para sempre sua
gente, sua aldeia, sua terra, empurrados para dentro dos tumbeiros. Outros
tantos indivíduos aguardavam encurralados nas cercanias da cidade, sendo
escolhidos, alimentados e, muitas vezes, sepultados ali mesmo. Cansaço
físico, mau tratamento no percurso terrestre, subnutrição e as doenças do
porto luandense ceifavam boa parte dos escravos forasteiros, arrancados do
platô Ovimbundo e de mais longe. Durante quase três séculos, multidões de
gente em pânico eram levadas acorrentadas do interior para ser enfiadas nos
navios que partiam de Luanda, maior porto negreiro de toda a história, sem
que os europeus ali presentes tenham deixado testemunhos desses fatos.52
51
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p.67.
52
Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 83-85.
144
53
Jan VANSINA, Prefácio, In: Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 8.
145
culturais. Neste sentido, conforme afirma Slenes54, há razões para pensar que as
pessoas de tradição bantú, quando misturadas e transportadas para o Brasil, não
demoraram em perceber a existência de elos culturais profundos, que estavam para
além da linguagem. Apesar das diferenças, eles guardavam uma identidade cultural,
que possuía uma estrutura sólida, que estava subjacente aos setores da vida,
fundamentando e motivando as manifestações existenciais. É uma forma de se
pensar em como elas começaram a se entender entre si. Neste sentido, para o
autor, é totalmente inadequado afirmar que entre os povos de tradição bantú a
comunicação só teria se iniciado depois da viagem ao Brasil, com o aprendizado de
um idioma europeu ou de uma língua pidgin (linguajar simplificado). Segundo Miller:
“As distinções subjacentes entre as línguas africanas, não as suas amplas
semelhanças, forneceram o ponto de partida para colaborações efetivas, se não
também para sentimentos de grupo”55.
54
Cf. Robert SLENES, Malungu, Ngoma Vem!: África coberta e descoberta no Brasil, Revista USP.
55
Joseph C. MILLER, África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850, In:
Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 49.
146
2.3.3 - A pseudo-conversão
Antes de ser feito o embarque, em grande parte das vezes, uma última ação
colaborava para que a pessoa de tradição bantú fosse transformada em
escravizada. Isso diz respeito à questão do batismo e, conseqüentemente, da troca
de nome:
O fato de muitos serem batizados não atingia a grande maioria, uma vez que
era crescente o número de cativos que chegavam para serem embarcados, fruto dos
negócios oriundos das guerras e das invasões no interior distante. Apesar da
facilidade de pseudo-conversão ao catolicismo, notava-se que era mais difícil mantê-
los na fé, pois muitos eram conversos por conveniência e não por convicção:
56
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 117.
57
Roy Arthur GLASGOW, Nzinga, p. 59.
147
58
John K. THORTON, Religião e vida cerimonial no Congo e áreas Umbundo, de 1500 a 1700, In:
Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 95.
59
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 269.
148
É quase como se através do meu nome esse nome revelasse um pouco da minha
história.
Sua história é verdade.
Ou nem só a minha história, mas a história da minha família.
Exatamente, história da família é, é isso. Depois outra coisa que é
interessante, talvez possa saber é que os apelidos têm a ver com os
lauditórios.
Tem a ver com quê?
Lauditórios.
Que que é lauditórios?
Lauditórios é, como é que posso dizer: na chama-se tocozelas. Tocozelas é
quase que um poema que narra o que, narra o que, narra a honra e a
dignidade daquela família, ia, a partir daquilo talvez mostrou a sua elucidade
assim, nas primeiras conquistas fez dos primeiros e das pequenas, como eu
posso dizer, chefatura, chefaturas aí, porque foi havendo sempre conquista.
É quase como se fosse assim uma história, um conto...
Um conto, exatamente, e muitos nomes estão ligados a animais ou com que
esses primeiros grupos sociais das famílias se alimentavam ou admiravam a
força desses animais, a esperteza desses animais, então foram, foram
ligando, exatamente, seu apelido a esse tipo de animais. Por exemplo, os
tchaúques, estamos aqui os tchaúques. Os tchaúques, este no seu relatório
são considerados indivíduos ligados a caracóis e durante as guerras eles
alimentaram-se bastante de caracóis e isto é uma forma de os povos mais
fortes não lhes mandarem criar o gado.60
60
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
149
Notamos, portanto, que a Igreja Católica era mais um agente que lucrava com
o tráfico de escravos, seja simbolicamente, abocanhando novas almas, seja
financeiramente, recebendo pagamento pelos batismos realizados. De qualquer
forma, a transformação da pessoa bantú em escravizado realizou sua última etapa
durante a travessia atlântica, travessia, essa, que carregada de simbolismo para
essas pessoas de tradição bantú, consolidou a constituição de uma nova identidade.
61
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 61.
150
... quando se iniciava uma viagem de volta aos portos americanos, muitas
vezes os tripulantes e parte dos escravos já haviam esperado durante muito
tempo no litoral africano pelo carregamento completo do navio. Essa espera,
que poderia durar meses, certamente debilitava todos os envolvidos nas
transações, e seus efeitos podem ter sido agravados pelo fato de que muitas
vezes era preciso percorrer mais de um porto africano para encher o porão de
um navio negreiro. A longa espera e o percurso feito com escalas ampliavam
o risco de exposição a doenças, que também era agravado pelos raros
cuidados médicos e higiênicos e pela má qualidade e pequena quantidade de
água e comida disponíveis. (...) Essas condições não se alteraram,
pressionando as taxas de mortalidade e morbidade e, por vezes,
neutralizando o papel da redução do tempo das viagens em função das
alterações técnicas.63
62
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 440-441.
63
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 157.
152
64
Cf. Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes.
65
Segundo Nei LOPES, Novo dicionário banto do Brasil, p. 39: “BANZO [1], s.m. (1) Nostalgia mortal
que acometia negros africanos escravizados no Brasil. / (2) adj. Triste, abatido, pensativo. (3)
Surpreendido, pasmado; sem jeito, sem graça (BH). Do quicongo mbanzu, pensamento, lembrança;
ou do quimbundo mbonzo, saudade, paixão, mágoa”. Ainda segundo Clóvis MOURA, Dicionário da
escravidão negra no Brasil, p. 63-64: “ BANZO. Estado de depressão psicológica que se apossava do
africano logo após o seu desembarque no Brasil. Geralmente os que caíam nessa situação de
nostalgia profunda terminavam morrendo. Atribui-se tal estado depressivo à saudade da aldeia
africana da qual provinham, de modo que o banzo atingia somente a primeira geração de escravos,
isto é, aqueles diretamente importados da África. Há, porém, quem explique o banzo sem recorrer a
causas psicológicas, alegando que os africanos assim ficavam porque já estavam contaminados,
antes de embarcar, pela “doença do sono”, enfermidade decorrente da picada da mosca tsé-tsé. No
entanto, não nos parece muito plausível essa hipótese, sendo preferível a explicação da depressão
psicológica, mesmo porque muitos dos escravos acometidos de banzo terminavam suicidando-se, o
que não ocorreria no caso da doença do sono. (...) Era, portanto, uma síndrome psicopatológica que
somente se manifestava no escravo em decorrência da sua situação de homem que era corrente de
relações escravistas”. Gostaríamos de destacar dois aspectos sobre as citações acima. O primeiro diz
respeito ao fato de se levantar a hipótese de que o escravizado era passível de ter depressão,
portanto era um ser humano. O segundo refere-se à própria depressão que pode ser entendida como
uma introversão de energia psíquica. Significa que a libido está sendo congestionada pelas
dificuldades da existência. Essa introjeção conduz à recuperação de possibilidades não aproveitadas
e às elaborações anteriores de problemas represados, mas também a uma autêntica renovação.
Portanto, ao se deprimir o ser humano tem a possibilidade, ao sair de determinada situação, de
encontrar soluções criativas para as situações conflituosas que vivem. Tal situação nos remete à
questão da utopia e da consciência antecipatória, pois em todo presente, mesmo no que é lembrado,
há um impulso e uma interrupção, uma incubação e uma antecipação do que ainda não veio a ser.
Portanto, segundo Bloch, a concepção e as idéias da intenção futura são utópicas, no sentido do
sonho para frente, da antecipação: “Assim, portanto, a categoria do utópico possui, além do sentido
habitual, justificadamente depreciativo, também um outro que de modo algum é necessariamente
abstrato ou alheio ao mundo, mas sim inteiramente voltado para o mundo: o sentido de ultrapassar o
curso natural dos acontecimentos” (Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 22). Não é isto que
vemos no desembarque de escravizados no Brasil, quando tendo sobrevivido à experiência
diaspórica criaram em solo brasileiro as formas novas e criativas de lidarem com a situação que se
apresentava? As religiosidades afro-brasileiras não seriam, também, o resultado da superação do
banzo?
66
Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 253.
153
67
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 242-243.
154
oceano com a barreira da Kalunga identificava-se a terra dos brancos, mputu, com a
dos mortos. O tráfico de escravos é lembrado como uma forma de feitiçaria, pela
qual um grande número de africanos foi transportado à outra costa (margem), a
outro lugar. Por outro lado, o Kalunga também tinha um significado de retorno, uma
vez que se considerava que o lugar dos espíritos era junto com os vivos, com seus
descendentes e que, um dia, eles voltariam para ficar perto de seu povo e de sua
aldeia de origem, aspecto que veremos no sexto capítulo. Portanto, havia uma
crença de que:
... a pessoa poderia voltar da América para a África, através da kalunga, não
apenas como “alma”, depois da morte física, mas ainda durante a vida, se ela
guardasse sua pureza de espírito. (...) Como resultado de crenças desse tipo,
(...) escravos que abandonaram a esperança de voltar à África ainda nesta
vida freqüentemente recorriam ao suicídio através do afogamento, ou seja, da
imersão na água, numa espécie de “batismo” que liberasse a alma para a
travessia para a África. 68
68
Robert SLENES, Malungu, Ngoma Vem!: África coberta e descoberta no Brasil, Revista USP, p. 54.
155
69
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 282.
156
força, uma vez dirigida, atua, a não ser que outra força superior neutralize-a ou
ultrapasse-a. Essa força, quando maléfica, torna-se feitiço, como já vimos.
Apenas para recordar, a magia é religiosa, uma vez que faz parte deste
universo e uma vez que coloca fim à desordem e aos abusos das forças vitais
desencadeadas, gerando a tranqüilidade e a harmonia do ser humano e da
comunidade. É parte constituinte da lógica da estrutura sócio-religiosa. A doença,
dentro deste entendimento de mundo, é provocada por um agente mágico, por uma
força vital que prejudica. Muitas doenças têm sua origem em comportamento imoral,
transgressão de tabus, descuido dos deveres religioso-cultuais, atentado contra a
solidariedade e faltas éticas. Também se atribui a culpa aos feiticeiros e às pessoas
da comunidade que manejam a magia destrutiva. A explicação da doença sempre é
espiritualizada, tendo um valor simbólico negativo, pois é sinal de perturbação social,
sinal de perturbação na participação vital.
A ação de recusa da terapêutica branca pode ser vista dentro deste sistema
simbólico. Uma pessoa que não tinha conhecimento das causas da doença não era
capaz de curá-la, ou seja, sua ação não era eficaz. O navio negreiro, portanto,
apresentou-se como o ponto culminante do processo de transição vivido pelos povos
de tradição bantú, não só pela angústia que causava, mas também pela
possibilidade de renovação criativa que insinuava, intensificada pelos diálogos
culturais e pelos processos de hibridismo, que falaremos a seguir.
A religiosidade bantú não chegou pura da África, já que, desde o século XV,
houve o contato entre africanos e europeus. Além disso, na chegada ao Brasil,
também aconteceu o encontro deste grupo com a população indígena que aqui vivia.
O encontro entre diversas etnias africanas também ocorreu, conseqüência do tráfico
luso-brasileiro, que segundo Carneiro70, agrupou africanos das mais diversas
procedências, o que possibilitou a fusão de diversas expressões religiosas, a
formação de outras e a extinção de outras tantas. Na maior parte das vezes, não foi
possível aos africanos escravizados permanecerem com indivíduos que falavam sua
língua, eram de sua etnia ou de sua família, como já visto neste capítulo.
70
Cf. Edison de Sousa CARNEIRO, Religiões negras.
157
Ainda segundo este autor, a formação dos mercados de escravos tinha como
objetivo solucionar o costume dos escravizados recém-chegados da África ao
adentrar nas cidades, pois eles andavam pelas ruas com as moléstias citadas
anteriormente e além de tudo nus. Os mercados também se configuraram como um
local centralizado de compra e venda de escravos. Já vimos que a travessia
transatlântica era vista pelos escravizados como uma viagem para a morte. Quando
desembarcados, havia uma mudança nos seus sentimentos. Alegria, cantos e
danças eram indicadores de boa saúde, sendo uma forma de comemorar a própria
sobrevivência: “... para os africanos, rever seus conterrâneos vivos depois de terem
feito uma viagem na qual acreditavam que encontrariam a morte era motivo de
enorme alegria, o que explica a ausência de dor ou de desespero nessa ocasião”72.
O motivo de cantarem talvez fosse a certeza de que, vencida a atribulada travessia
do oceano, os que sobreviviam, e ainda tinham forças, podiam comemorar. No
desembarque, os escravizados tinham possibilidades de reencontro:
71
Cf. Jaime RODRIGUES, De costa a costa.
72
Ibid., p. 309.
158
identidade étnica ainda não fora perdida e que o reencontro era, no fundo, o
grande motivo da festa”73.
73
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 312.
74
A título de consulta ver: Adélia Bezerra de MENESES, Do poder da palavra.
75
Robert SLENES, Malungu, Ngoma Vem!: África coberta e descoberta no Brasil, Revista USP, p. 56.
76
Ibid., p. 55.
159
em comum pode ter deixado de ser para eles apenas um significante, relevando
afinidades mais profundas, para tornar-se, ela mesma, um dos elementos
constitutivos de sua nova identidade”77.
82
Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 26.
83
Interessante notar que em Angola, por sua vez, houve miscigenação, mas não havia mestiçagem,
pois quando os pais se afastavam ou morriam, as mães retornavam às suas aldeias com seus filhos
mulatos, levando de volta à comunidade tradicional e à africanização. A sociedade luso-angolana
conservava povoados nativos, núcleos etnogênicos que absorviam os mulatos transformando-os em
negros. Segundo Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 353: “Entretanto, houve no
Brasil um processo específico que transformou a miscigenação – simples resultado demográfico de
uma relação de dominação e de exploração – na mestiçagem, processo social complexo dando lugar
a uma sociedade plurirracial. O fato de esse processo ter se estratificado e, eventualmente, ter sido
ideologizado, e até sensualizado, não se resolve na ocultação de sua violência intrínseca, parte
consubstancial da sociedade brasileira: em última instância, há mulatos no Brasil e não há mulatos
em Angola porque aqui havia a opressão sistêmica do escravismo colonial, e lá não”.
84
Ibid., p. 150.
162
... cinco transações, no mínimo, desde sua partida da aldeia africana até a
chegada às fazendas da América portuguesa. Trocas pontuadas por etapas
mais ou menos longas. Até o final do século XVII, a maior parte dos
angolanos provém de zonas situadas a dois meses de caminhada dos portos
de trato. Adicionando-se a espera antes do embarque, que por vezes
alcançava cinco meses, e os dois meses necessários à travessia atlântica, se
constata que esses escravos tinham, no mínimo, quase um ano de cativeiro
ao desembarcar no Brasil.86
85
Segundo Clóvis MOURA, Dicionário da escravidão negra no Brasil, p. 234: “LADINO. Nome dado
ao africano já instruído na língua portuguesa, na religião e no serviço doméstico ou do campo, para
distinguir do negro novo, recém-chegado, a que se dava o nome de boçal (V.). Segundo Pereira da
Costa, também ao índio em iguais condições se dava o mesmo qualificativo. Ladino é corruptela de
latino, equivalente a letrado, culto, inteligente; segundo Gonçalves Viana, o termo ladino foi aplicado
originalmente em Portugal e Espanha ao mouro bilíngüe e portanto inteligente, pois além do árabe,
ou berbere, falava o romance da Península, que nos séculos VIII e IX se chamava latino”.
86
Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 147.
163
sua. Foram obtendo um senso de familiaridade uns com os outros, dada a situação-
limite e criando alianças. Houve a ampliação de características da tradição bantú
durante a colaboração mútua, com vistas à sobrevivência. A violência, característica
da escravidão, forçou consolidações políticas e depurou identidades, “...
convertendo complementaridades difusas em convincentes “etnias” coletivas
defensivas e mesmo hostis”89.
89
Joseph C. MILLER, África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850, In:
Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil,p. 55.
90
Jaime RODRIGUES, De costa a costa, p. 316.
165
Vimos, portanto, que o encontro dos grupos bantú com outras religiões deu-se
bem antes de sua chegada ao Brasil, o que nos faz supor que as misturas e as
ressignificações simbólicas ocorridas no Brasil tiveram sua origem na própria África.
Desde o século XV, havia o encontro entre a cultura portuguesa e a tradição bantú,
permeado por relações de poder. Mas, chama-nos a atenção, o fato de que além
deste encontro, outros estavam se dando nos fortes e nos navios negreiros, mas
agora entre as diversas tradições africanas. Isto, é claro, influenciou as expressões
religiosas afro-brasileiras de tradição bantú, que puderam ser observadas no Brasil
durante a escravidão. Assim, a seguir, veremos tais expressões religiosas
ancorados nos processos-crimes eclesiásticos dos séculos XVIII e XIX, buscando
destacar os aspectos da tradição bantú presentes nelas.
91
Joseph C. MILLER, África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850, In:
Linda M. HEYWOOD (org.), Diáspora negra no Brasil, p. 71-72.
166
1
Vou botar o seu nome na macumba
Eu vou botar / Teu nome na macumba / Vou procurar
uma feiticeira / Fazer uma quizumba / Prá te derrubar /
Oi, Iaiá! / Você me jogou um feitiço / Quase que eu morri
/ Só eu sei o que eu sofri / Deus me perdoe / Mas vou
me vingar / Eu vou botar! / Eu vou botar / Teu nome na
macumba / Vou procurar uma feiticeira / Fazer uma
quizumba / Prá te derrubar / Oi, Iaiá! / Você me jogou um
feitiço / Quase que eu morri / Só eu sei o que sofri / Que
Deus me perdoe / Mas vou me vingar / Eu vou botar teu
retrato / Num prato com pimenta / Quero ver se você
"güenta" / A mandinga que eu vou te jogar / Raspa de
chifre de bode / Pedaço de rabo de jumenta / Tu vai
botar fogo pela venta / Comigo não vai mais brincar / Eu
vou botar! / Eu vou botar / Teu nome na macumba / Vou
procurar uma feiticeira / Fazer uma quizumba / Prá te
derrubar / Você me jogou um feitiço / Quase que eu
morri / Só eu sei o que sofri / Que Deus me perdoe / Mas
vou me vingar / Asa de morcego / Corcova de camelo /
Prá te derrubar / Uma cabeça de burro / Prá quebrar o
encanto / Do teu patuá / Olha, tu podes ser forte / Mas
tens que ter sorte / Prá te salvar / Toma cuidado
comadre / Com a mandinga / Que eu vou te jogar.
1
Vou botar o seu nome na macumba, Zeca PAGODINHO, Dudu NOBRE. Millennium – Zeca
Pagodinho. n. 538224-2. Mercury – Polygram. São Paulo, s.d. CD-ROM.
167
... mesmo despojado de todos os seus bens materiais, arrancado da sua rede
familiar e dos seus espaços ancestrais, mantém-se portador de um imaginário
próprio, de uma carga simbólica agora fundamental para sua reorganização,
visando a domesticar uma natureza nova, restabelecendo um novo cosmos
no seu universo temporariamente desestruturado. 2
2
Carlos SERRANO; Maurício WALDMAN, Memória D’África, p. 142.
3
Sidney W. MINTZ; Richard PRICE, O nascimento da cultura afro-americana, p. 93.
168
Veremos, então, quais foram estas novas formas simbólicas e, porque não
dizer religiosas, criadas pelos africanos de tradição bantú chegados ao Brasil,
levando em consideração o fato de que as expressões religiosas daquele momento
contavam com grande influência da Igreja Católica. Ao mesmo tempo em que houve
a apropriação de novos produtos culturais, também ocorreu a manutenção daquilo
que se configurou como fundamental. O que estamos querendo dizer com isto é que
alguns componentes da herança cultural podem também ser transmitidos
inconscientemente entre indivíduos ou, talvez, de geração para geração. Pode
ocorrer que alguns traços tenham desaparecido na superfície de uma tradição
específica durante certo período histórico. Após algum tempo, quando as
circunstâncias são favoráveis e a necessidade aparece, como nas mudanças sociais
incisivas, o traço perdido é reinventado. Em alguns casos, alguma coisa estava
sendo transmitida durante todo o tempo, como uma estrutura de modelos de
comportamento, a qual também contém, de uma forma condensada, a possibilidade
de uma nova manifestação do traço perdido.
4
Gerhard KUBRIK, Angolan traits in Black music, games and dances of Brazil, p. 51. (Tradução
nossa)
170
5
Cf. Sidney W. MINTZ; Richard PRICE, O nascimento da cultura afro-americana.
6
A escolha pelos processos-crimes antigos se deu basicamente por dois fatores. Primeiro pelo fato
de não contarmos com a possibilidade do trabalho com a história oral, o que pode ser compensado
em parte pela documentação; e segundo porque os processos-crimes se configuram como um
acesso à religiosidade bantú existente em São Paulo na época, mesmo que de maneira indireta.
172
7
Segundo Antônia Aparecida QUINTÃO, Irmandades negras, as irmandades tiveram seu apogeu na
época colonial e ainda tiveram algum destaque no período imperial. Na segunda metade do século
XIX, sob a influência do catolicismo romanizado, este tipo de associação foi marginalizado e
substituído por outras formas de organização, mais coerentes com os princípios do catolicismo
ultramontano. Segundo Ibid., p. 33: “As irmandades significavam para os negros a possibilidade de
resgatarem a sua humanidade e viverem a esperança de dias melhores. Em vista disso, constituíam-
se funções essenciais destas associações – proteger, socorrer e prestar auxílio a seus membros nos
momentos de dificuldades ou de doença”. Se por um lado a classe senhorial e as elites quiseram
transformar as irmandades em meio de controle e integração do negro numa sociedade escravocrata,
eles souberam transformá-la num espaço de solidariedade, de reivindicação social e de protesto
racial, salvando sua identidade e sua dignidade. A realização das festas religiosas traduzia a
preocupação da igreja em atrair os africanos e seus descendentes. Aceitavam seus costumes desde
que pudessem adaptá-los ao catolicismo, recebendo uma nova interpretação e um novo significado.
É o caso da tradição africana da sucessão hereditária dos reis, substituída nas irmandades pelo
sistema eletivo. Os reis passaram a ser eleitos pelos seus membros, o que lhes possibilitava maior
obediência de seus súditos. No final do século XVIII, as congadas, os batuques e as sambas ainda se
realizavam pelas ruas da cidade. Ainda segundo Ibid., p. 43: “As irmandades com seus santos negros
ofereciam aos bantos uma concepção de intermediários, que podia se adaptar a sua própria. De um
lado, a visão dos santos como intercessores entre o homem e Deus, identificava-se com a própria
idéia de que os ancestrais eram encarregados de levar seus pedidos a Zumbi. Em segundo lugar, a
existência de virgens negras e de santos negros podia fazê-los pensar que esses tivessem sido
ancestrais de suas raças, não apenas ligados ao circuito familiar, mas também à esfera nacional. A
noção de família para os bantos não estava circunscrita apenas ao núcleo constituído por pais e
filhos, mas estendia-se também aos defuntos, considerados seres atuantes”. Para ela, os negros
conseguiram transformar as suas irmandades em espaços de luta e de resistência. Segundo Ibid., p.
104: “Ao participar dessas associações, os negros poderiam reconhecer um significado para as suas
vidas, na medida em que estas estimulavam a solidariedade, possibilitavam o culto aos mortos,
garantiam um enterro aos seus membros, auxiliavam materialmente os irmãos mais necessitados,
compravam de uma forma cooperativista cartas de alforria e realizavam grandiosas festas coletivas”.
174
8
A temática da Igreja Católica e da escravidão é algo a ser estudado. O que se observa são posições
divergentes e polêmicas, sendo ainda necessário que se abra a documentação e que se busque uma
maior fundamentação para aquilo que está sendo escrito. De qualquer forma, vale a pena a leitura de
Flavius Lucilius Buratto NUNES, A senzala e o claustro a escravidão e a Ordem Carmelitana na
cidade de São Paulo no século XIX - 1840-1888.
9
Serafim LEITE, Assistência religiosa aos escravos negros, In: Serafim LEITE, História da
Companhia de Jesus no Brasil, tomo II, p. 347.
10
Cf. Fernando TORRES-LONDONÕ, Igreja e escravidão nas Constituições do Arcebispado da Bahia
de 1707, Revista Eclesiástica Brasileira.
11
Segundo Rosa CUNHA-HENCKEL, em Tráfego de palavras, no Brasil, a chegada dos jesuítas e a
implantação do governo-geral fizeram com que fossem estabelecidas normas para defender os
interesses das populações ameríndias, principalmente aquelas que haviam se convertido ao
cristianismo, limitando o número de ameríndios a serem escravizados. Além da proteção religiosa que
tinham, os ameríndios também estavam susceptíveis a outros fatores que dificultava a sua utilização
no trabalho das lavouras, tais como: fugas às regiões interioranas do país, surto de epidemias que
provocavam a sua mortalidade e inadaptação a um certo tipo de trabalho. Isto fez com que a
importação de escravos da África fosse vista como desejável e imprescindível, colocada oficialmente
em prática a partir do século XVI. Era verdade que já havia experiências bem sucedidas de utilização
de escravos em outras colônias portuguesas, como as ilhas de Cabo Verde e Madeira, de São Tomé
e Príncipe, além da exportação para o Império Espanhol no Novo Mundo. O escravo negro foi o
suporte da economia brasileira por todo o período colonial e pós-colonial em que durou a escravidão.
12
Apesar dos textos teológicos sobre a questão da escravidão no Brasil-colônia serem escassos,
HOORNAERT recupera alguns deles, nos dando alguns indícios de como o catolicismo presente no
Brasil, neste período, entendia a escravidão. Ao citar o texto teológico de Antônio VIEIRA, Sermão
vinte-e-sete do Rosário à Irmandade dos pretos em um engenho, fica claro que o cativeiro na
América é um meio-cativeiro, pois atinge apenas o corpo, uma vez que a alma encontra-se livre do
poder do diabo que governa a África. Por isso, os cativos devem aceitar a sua condição de
escravizados, pois ela representa a sua salvação. A escravidão em si não é questionada pela Igreja
Católica, uma vez que até o século XVIII a escravidão era considerada natural pelos Estados
(nações) e pela Igreja Católica, o que se questiona é a forma brutal de como os senhores de
escravos tratam-nos. Por outro lado, o texto de Manuel Ribeiro da ROCHA, Etíope resgatado,
empenhado, sustentando, corrigido, instruído e libertado, traz um discurso novo, o que mostra uma
grande sensibilidade pelo sofrimento do negro no Brasil, propondo, entre outras coisas, que o tráfico
seja declarado pirataria, que os escravos possam resgatar a sua liberdade depois de cinco anos de
cativeiro, que a escravidão é injusta, que os comerciantes negreiros estão em estado de condenação,
que os negros possam ter um casamento cristão, que seja dada liberdade aos negros que trabalhem
175
bem e com fidelidade e que seja dada sepultura cristã aos escravos. Porém, o que afirma Eduardo
HOORNAERT, em A leitura da Bíblia em relação à escravidão negra no Brasil-colônia (in inventário),
In: Eduardo HOORNAERT; Sebastião A. G. SOARES; Agostinha Vieira de MELLO; José COMBLIN,
Os negros e a Bíblia, p. 15, é que “... sempre houve uma corrente alternativa, silenciada e esquecida,
condenada pela memória oficial”. Tal trecho nos mostra que existiu uma corrente de interpretação
bíblica da escravidão que questionava, assim, como o comportamento dos próprios religiosos.
13
Luis Felipe de ALENCASTRO, O trato dos viventes, p. 138.
14
Serafim LEITE, Assistência religiosa aos escravos negros, In: Serafim LEITE, História da
Companhia de Jesus no Brasil, tomo II, p. 350-351.
176
15
Serafim LEITE, Assistência religiosa aos escravos negros, In: Serafim LEITE, História da
Companhia de Jesus no Brasil, tomo II, p. 359.
177
foi aceita por quase todos ou pelo menos pela opinião pública16. A doutrina, como já
dissemos, tinha como principal preocupação os abusos, os castigos e as torturas
infringidos aos escravizados pelos seus senhores, uma vez que a escravidão em si
não era questionada17. Ocorre que tal doutrina estava baseada em alguns temas
bíblicos, tais como: a dupla criação; a maldição de Noé; o etíope, a transmigração
babilônica; Cam, a escravidão como meio de salvação; a penitência e a disciplina
necessária.
16
Segundo Eduardo HOORNAERT, A leitura da Bíblia em relação à escravidão negra no Brasil-
colônia (in inventário), In: Eduardo HOORNAERT; Sebastião A. G. SOARES; Agostinha Vieira de
MELLO; José COMBLIN, Os negros e a Bíblia, p. 21: “Talvez seja oportuno lembrar aqui que foi só
em 1964, no documento Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II, que a Igreja Católica condenou
formalmente a instituição da escravidão”.
17
Antonio VIEIRA, em Carta do Pe. Antonio Vieira a certo fidalgo, discutindo acerca da possibilidade
de um padre italiano ir ao quilombo de Palmares, dá certas razões sobre a impossibilidade de tal
empreitada. Chama-nos a atenção, a seguinte justificativa: “Quinta: fortíssima e total, porque sendo
rebellados e cativos, estão e perseverão em pecado continuo e actual, de que não podem ser
absoltos, nem receber a graça de Deos, sem se restituírem ao serviço e obediência de seus
senhores, o que de nenhum modo hão de fazer. Só hum meyo havia efficaz e effectivo para
e
verdadeiramente se reduzirem, que era concedendolhe sua Mag. e todos seus senhores
espontânea, liberal e segura liberdade, vivendo naquelles sítios como os outros Indios e gentios
livres, e que então os padres fossem seus Parocos e os doutrinassem como aos demais. Porem esta
mesma liberdade assim considerada seria a total destruição do Brazil, porque conhecendo os demais
negros que por este meyo tinhão conseguido o ficar livres, cada cidade, cada villa, cada lugar, cada
engenho serião logo outros tantos Palmares, fugindo e passandose aos matos com todo o seu
cabedal, que não he outro mais que o próprio corpo”. (J. Lúcio D’AZEVEDO, História de Antonio
Vieira, p. 374)
18
Cf. Charles DARWIN, A origem das espécies e a seleção natural.
19
Eduardo HOORNAERT, A leitura da Bíblia em relação à escravidão negra no Brasil-colônia (in
inventário), In: Eduardo HOORNAERT; Sebastião A. G. SOARES; Agostinha Vieira de MELLO; José
COMBLIN, Os negros e a Bíblia, p. 18.
178
20
O texto afirma que: “Benção e maldição – Os filhos de Noé, que saíram da arca, foram estes:
Sem, Cam e Jafé; e Cam é o antepassado de Canaã. Esses três foram os filhos de Noé, e a partir
deles foi povoada a terra inteira. Noé, que era lavrador, plantou a primeira vinha. Bebeu o vinho,
embriagou-se e ficou nu dentro da tenda. Cam, o antepassado de Canaã, viu seu pai nu e saiu para
contar a seus dois irmãos. Sem e Jafé, porém, tomaram o manto, puseram-no sobre seus próprios
ombros e, andando de costas, cobriram a nudez do pai; como estavam de costas, não viram a nudez
do pai. Quando Noé acordou da embriaguez, ficou sabendo o que seu filho mais jovem tinha feito. E
disse: “Maldito seja Canaã. Que ele seja o último dos escravos para os seus irmãos”. E continuou:
“Seja bendito Jafé, o Deus de Sem, e que Canaã seja escravo de Sem. Que Deus faça Jafé
prosperar, que ele more nas tendas de Sem, e Canaã seja seu escravo”. (BÍBLIA SAGRADA, Edição
Pastoral, Gênesis, 9: 18-27, p. 22)
21
Segundo Laura de MELLO E SOUZA, Inferno atlântico, no século XVI, as colônias portuguesas
passaram a ser vistas como terras nas quais se cumpriam penas, mas das quais se podiam voltar
com as penas expurgadas. A própria travessia marítima assumia contornos de exílio ritual, iniciando-
se, aí, o longo trajeto da purificação. Nas práticas dos degredados observavam-se um substrato
comum europeu e traços que gradativamente se alteraram e assumiram uma coloração específica
mais moderna. Havia uma matriz portuguesa, que aos poucos foi tornando-se uma síntese. Ainda
segundo IDEM, O diabo e a terra de Santa Cruz, Enxerga-se a colônia como domínio de Deus –
Paraíso – ou do Diabo – Inferno. Para o Novo Mundo se deslocaram as projeções do imaginário
europeu. É basicamente na relação com o sobrenatural que o homem da colônia paga tributo ao
Diabo e confirma seu caráter de humanidade diabólica. Segundo Ibid., p. 70: “Constatada nos hábitos
e na vida cotidiana, confirmada nas práticas mágicas e na feitiçaria, a demonização do homem
colonial expandiu-se da figura do índio – seu primeiro objeto – para a do escravo, ganhando, por fim,
os demais colonos. Para se esquivarem dos castigos rigorosos, os escravos negros recorriam a
“artes diabólicas””. Nos fins do século XV, a expansão ultramarina levou a cabo uma fusão
179
Ora, uma das grandes obras de Deus no “novo mundo” foi a de trazer os
negros, perdidos que estavam nas trevas do paganismo africano, à luz da fé
através da “transmigração babilônica que tem decerto um aspecto negativo
(filhos do fogo de Deus), mas, sobretudo um aspecto sumamente positivo
(irmãos da preparação de Deus).22
dentro do estado. Este não era o objetivo do estado em formação. Portanto, a partir
da Independência do Brasil, inaugurou-se um momento de reordenação da realidade
social, religiosa e política existente no Brasil, mas que já se processavam durante o
século XVIII24.
24
Segundo Carlos Eduardo de Araújo MOREIRA; Carlos Eugênio Líbânio SOARES; Flávio dos
Santos GOMES; Juliana Barreto FARIAS, Cidades negras, p. 136: “Na Constituição de 1824, o
catolicismo aparece como a religião oficial do Estado, a única que podia celebrar cerimônias públicas
e construir abertamente seus templos. Além disso, estabelecia-se o direito à liberdade religiosa, mas
apenas quando exercida privadamente, e sobretudo por estrangeiros livres, em geral brancos
europeus que residiam no Brasil”.
25
Sandra Rita MOLINA, Na dança dos altares, Revista de História, p. 117.
26
Segundo Antônia Aparecida QUINTÃO, Irmandades negras, p. 96, o Decreto de 07 de janeiro de
1890 do Governo Provisório, constituído em 15 de novembro de 1889, separou a Igreja do Estado e
constituiu a ampla liberdade de culto aos brasileiros: “Art. 2º - A todas as confissões religiosas
pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem
contrariadas nos atos particulares ou públicos, que interessem o exercício deste decreto. Art. 5º - A
todas as Igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade jurídica, para adquirirem bens
e os administrarem, sob os limites postos pelas leis concernentes à propriedade de mão morta,
mantendo-se a cada uma o domínio de seus haveres atuais, bem como dos seus edifícios de culto”.
181
A Igreja Católica se opunha não apenas à separação, mas também à liberdade de culto e pelo
nivelamento dela com as outras confissões religiosas, uma vez que até então era a religião oficial.
Também, a partir do decreto, propunha-se a sujeição dos bens da Igreja à lei da mão morta,
reconhecia a obrigatoriedade do casamento civil, a laicização do ensino público, a secularização dos
cemitérios e proibia a subvenções governamentais a qualquer culto religioso. Proibia a abertura de
novas comunidades religiosas e estabelecia a inelegibilidade dos clérigos e religiosos de qualquer
confissão para o Congresso Nacional. Na Constituição de 1891, os bens da Igreja não foram
atingidos, as ordens e congregações religiosas obtiveram ampla liberdade para entrar no Brasil e as
questões relativas à subvenção foram gradativamente regulamentadas. Ainda segundo Ibid., p. 97: “A
Igreja aceitou a separação, mas nem por isso conformou-se com o fato de estar fora do poder.
Utilizou todas as suas forças para garantir presença em todos os níveis e manter seu esquema
doutrinário, o que frustrou os esforços para a construção de uma sociedade laica e anticlerical. O
estado era laico, mas a sociedade deveria continuar católica”.
27
Laura de MELLO E SOUZA, O diabo e a terra de Santa Cruz, p. 109.
182
Assim, é dentro deste contexto que até 1707, a Igreja no Brasil se regia pelas
Constituições do Arcebispado de Lisboa. Não faltaram adatações e
complementações oriundas dos Sínodos da Bahia no tempo de D. Pedro Leitão
(século XVI) e de D. Constantino Barradas (século XVII); em parte das Constituições
e dos Regimentos das circunscrições eclesiásticas existentes. “Mas a cada dia que
passava saltava à vista a insuficiência da legislação canônica, pois no Brasil
surgiram novas circunscrições que reclamavam novas determinações jurídicas”28. É
importante ressaltar que quando surgiram as Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia, podemos pensar que elas aparecem tardiamente, já que a
Igreja Católica no Brasil já se encontrava instituída, com as suas especificidades, ao
mesmo tempo em que as práticas religiosas de caráter híbrido de africanos e de
índios, também estavam sendo formadas.
28
Arlindo RUBERT, A Igreja no Brasil, p. 231.
29
Cf. Fernando TORRES-LONDONÕ, Igreja e escravidão nas Constituições do Arcebispado da Bahia
de 1707, Revista Eclesiástica Brasileira.
30
Segundo Arlindo RUPERT, em A Igreja no Brasil, D. Sebastião da Vide marcou para o dia 12 de
junho de 1707, na Bahia, festa do Espírito Santo, a reunião do Sínodo Diocesano. Concluído o
Sínodo, em 20 de junho, iniciaram-se as reuniões com procuradores do clero até 8 de julho. Neste
período ordenaram-se as Constituições Primeiras esboçadas no Sínodo. As Constituições Primeiras
só foram publicadas em 1719, em Lisboa, com nova edição em Coimbra em 1720. Além dos assuntos
referentes à parte jurídica, as Constituições Primeiras também tratam de outros assuntos pastorais,
por exemplo, a liberdade dos índios e o bom trato e catequização dos escravos.
31
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707 estão compostas por livros, que são
divididos por títulos, sendo que cada título encontra-se subdividido em números.
183
32
Segundo Jean-Yves LACOSTE, Dicionário crítico de teologia, O Concílio de Trento engendrou uma
reforma profunda na Igreja Católica que valeu, de modo geral, até o Vaticano II, dando uma base
doutrinal que foi a forma como o catolicismo pensou e agiu durante quatro séculos. O Concílio de
Trento desdobrou por quase vinte anos: primeiro período – 1545-1547; segundo período – 1551-
1552; terceiro período – 1562-1563. “Em 4 de dezembro de 1563, T. se encerra com a aprovação do
conjunto dos textos precedentemente votados, confiando ao papa numerosas tarefas, como o
estabelecimento de um catecismo e a revisão dos instrumentos da reforma católica, breviário, missal
ou índex dos livros proibidos” (Ibid., p. 1756). Foi entendido que a doutrina e a reforma estavam
entrelaçadas, mas os trabalhos se iniciaram pelo fundamento teológico, abordando aspectos como: a
revelação, o pecado original, a justificação e a doutrina sacramental. O Concílio de Trento reafirmou a
doutrina católica diante das negações dos protestantes. “A teologia de T. é assim marcada por duas
características: dar uma resposta clara aos reformadores protestantes, uma preocupação sempre
presente no plano de fundo das discussões, mas também manter certa reserva em relação a toda
questão da escola. Essa posição prudente foi, certamente, a causa dos debates sobre a graça que
agitaram a Igreja durante os dois séculos seguintes, mas também permitiu ao ensinamento de c.
servir de referência doutrinal à Igreja para uma verdadeira reforma católica” (Ibid., p. 1759-1760).
33
Arlindo RUBERT, A Igreja no Brasil, p. 234.
34
Cf. E. P. THOMPSON, Costumes em comum.
184
definido, tinha força de lei e era uma propriedade. Em condições comuns, o costume
era menos exato: dependia da renovação contínua das tradições orais. Neste
sentido, o costume pode ser entendido a partir do conceito de hábito, que diz
respeito ao ambiente vivido, que inclui práticas, expectativas herdadas e regras que
não só impunham limite aos usos, como revelavam possibilidades, normas e
sanções tanto da lei como das pressões dos grupos. Diante disto, os grupos tentam
maximizar suas vantagens, cada um aproveitando-se dos costumes do outro.
A idéia dos escravizados serem criminalizados pelos seus atos surge da idéia
dos costumes. Apesar de formalmente serem entendidos como bens ou mercadorias
é inegável que em suas práticas cotidianas mostravam-se como sujeitos, com
identidades, portadores de saberes e de fazeres. Como o costume não era algo fixo
e imutável, o seu significado variava de acordo com os grupos em questão, no caso,
escravizados e Igreja Católica, o que, muitas vezes, mais do que o consenso,
gerava o conflito. O costume de criminalizar os escravizados pode ser definido como
uma lei ou um direito não escrito, que foi estabelecido pelo longo uso e pelo
consentimento dos grupos, sendo praticado cotidianamente.
35
Carlos Roberto F. NOGUEIRA, O Diabo no imaginário cristão, p. 12.
185
36
Laura de MELLO E SOUZA, O diabo e a terra de Santa Cruz, p. 149.
37
Cf. Ibid., a representação européia do demônio não é alheia a transformação operada com o
advento do cristianismo medieval, que o coloca no lugar central da reflexão teológica da existência do
mal e do problema do pecado. Sempre que o cristianismo deixou marcas de sua influência, está
presente a crença no diabo. Segundo Luís Adão da FONSECA, Prefácio, in: Carlos Roberto F.
NOGUEIRA, O Diabo no imaginário cristão, p. 8: “Este de acordo com tradição cristã plasmada na
Idade Média, é espírito insinuador, de mil modos mascarado; ruidoso ou silencioso está sempre
37
atuante, nunca descansa; o orgulho e ódio dominam a sua incansável atividade” . O demônio é uma
criatura maravilhosa na sua inteligência e na sua vontade, existindo pela necessidade de explicar a
existência do mal e dar sentido aos permanentes dilemas da vida, buscando encontrar coerência
entre a fé num Deus único e os demônios herdados de ancestrais. Ainda de acordo com Ibid., p. 9:
“Sendo agente tentador, força o homem a optar, cria condições que o obrigam a decidir, o que, em
última análise, tem um sentido potencialmente positivo. Assim, a existência do demônio reveste-se,
para a humanidade, de dupla face: ele, o rival de Deus, transformado em inimigo do mesmo homem,
constitui-se – suma contradição – em criador de oportunidades de elevação moral”. De acordo com a
tradição cristã, os efeitos diabólicos são de ordem moral e, portanto, de desgraça, de sofrimento e de
morte, que não são agradáveis ao demônio. Em cada circunstância, tudo depende da opção
escolhida por cada um.
187
Para a Igreja Católica a causa urgente era batizar índios e africanos, já que o
batismo estava ligado ao seu projeto colonial, ou seja, à conversão religiosa. Para o
escravizado, o batismo era um fator imprescindível mesmo antes dele se integrar e
se mover em uma sociedade onde este ritual era uma iniciação ao mundo dos vivos,
mas também, dadas suas crenças, uma iniciação no mundo dos mortos – os
antepassados. O batismo “... para o negro abria-lhe a sociedade dando-lhe
condições de movimentar-se no seu interior e interagir ao lado dos outros indivíduos
que a compunham”39. Ao ser batizado, o africano ou o afro-descendente tinha a
possibilidade de receber um enterro digno, o que dentro do seu sistema de
significados simbólicos implicava na possibilidade de se tornar um antepassado,
conforme vimos no capítulo primeiro. A partir das perguntas feitas aos africanos
antes de serem batizados, vemos que o escravizado é visto pela Igreja Católica
como um pecador, condenado a insistir no erro e a manter uma relação íntima com o
demônio. As medidas normatizadoras, presentes nos processos-crimes, redefiniram
as novas práticas religiosas a serem combatidas e tentaram delimitar o espaço que
o demônio40 ocupava. A partir desta breve introdução, abordaremos as Constituições
38
Vilson Caetano de SOUSA JUNIOR, Roda o balaio na porta da igreja, minha filha, que o santo é de
candomblé, p. 152.
39
Ibid., p. 154.
40
Segundo Núbia Pereira de Magalhães GOMES; Edimilson de Almeida PEREIRA, Mundo
encaixado, o demônio é o aliado com o qual se estabelecem pactos, numa busca de anulação
temporária da ordem do mundo. A ele se pede riqueza, juventude, beleza, poder, numa tentativa de
desfazer o papel destinado à pessoa. A vitória do Mal sempre é provisória, já que à desordem
antecede uma nova ordenação, motivo pelo qual o demônio sempre é perdedor. O demônio, como
grande desorganizador, representa uma incompletude ou uma ruptura, indicativo de desarmonia e da
tentativa de retirar um elemento significativo do todo. Com uma função tão importante dentro da
sociedade era importante que o demônio ocupasse um lugar de destaque dentro do que é definido
como crime pela Igreja Católica.
188
41
Fernando TORRES-LONDONÕ, Igreja e escravidão nas Constituições do Arcebispado da Bahia de
1707, Revista Eclesiástica Brasileira, p. 611.
42
Ibid., p. 613.
189
Trabalhava-se com a idéia de que não se podia, por exemplo, batizar, sem
que ao menos fosse feita uma breve catequese. Como os escravizados eram
considerados boçais e rústicos, assim que tivessem algum conhecimento da língua
ou um intérprete, os escravizados deveriam passar por um tipo de instrução. O que
se nota, já neste primeiro momento, é que as Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia, pelo menos no que se refere aos aspectos tratados até
então, não era um documento dirigido aos escravizados, mas um documento sobre
os escravizados, isto é, sobre a conversão dos mesmos ao catolicismo, pelo menos
no que diz respeito aos vinte e seis números. Os livros tinham como objetivo garantir
que esta conversão ocorresse, mediante a compreensão da fé e dos seus mistérios,
mesmo que de maneira relativa. O documento desconhece tradições africanas e,
portanto, segundo Torres-Londonõ:
43
Fernando TORRES-LONDONÕ, Igreja e escravidão nas Constituições do Arcebispado da Bahia de
1707, Revista Eclesiástica Brasileira, p. 619.
44
Interessante notar o que nos fala Marina de MELLO E SOUZA, em Reis negros no Brasil
escravista, a respeito da apropriação dos símbolos católicos pelos africanos. A cruz era um símbolo
dentro da cultura bantú nas relações entre o mundo natural e o sobrenatural e a representação básica
da cosmologia bacongo, organizada a partir da divisão entre o mundo dos mortos e o dos vivos, um
sendo reflexo do outro e estando separados pela água. Ao adotarem a cruz católica, os congoleses
estavam expressando suas crenças tradicionais, ao mesmo tempo em que levavam os portugueses a
acreditar que eles estavam abraçando uma nova fé. Quanto à questão do encontro cultural, afirma
Ibid., p. 63: “Diálogos de surdos ou reinterpretação de mitologias e símbolos a partir dos códigos
culturais próprios, a conversão ao cristianismo foi dado como fato pelos missionários e pela Santa Sé,
assim como a população e os líderes religiosos locais aceitaram as designações e ritos cristãos como
novas maneiras de lidar com velhos conceitos”. Esta relação baseou-se em pressuposições falsas,
mas eficazes, tomando-se conceitos análogos como idênticos. As estruturas nativas foram em grande
parte conservadas, cada povo lendo a realidade segundo as suas concepções. O cristianismo
africano não foi fruto de uma combinação de cosmologias e, sim, dinamicamente construído,
resultando da forma de interação e validação das revelações ocorridas.
190
45
Segundo Antonia Aparecida QUNITÃO, Irmandades negras, as primeiras festas de coroação do
Rei e da Rainha na Irmandade do Rosário eram monopolizadas pelos angolanos, já que no
compromisso era determinada a tradição que os concorrentes deveriam pertencer. Em um primeiro
momento pode-se dizer que predominou na irmandade os bantú de Angola. Já na segunda metade
do século XIX predominou os bantú do Congo. Os bantú, segundo a autora, foram os grupos que
predominaram nas irmandades. Para ela, a penetração do catolicismo foi mais eficaz no caso bantú,
ligado ao culto dos antepassados e dos mortos, facilmente rompida com a perda da linhagem. Os
bantú foram mais permeáveis às irmandades, pois, para eles, nenhum ser é fecundado no ventre
materno sem a vontade de um antepassado das longas linhas de descendência, disposto a assumir o
compromisso de protegê-lo. A geração da vida não é fruto da decisão dos pais, nem produto do
acaso. Os bantú condenam o suicídio e todo ato de violência contra a vida humana, desde o primeiro
momento da concepção. Preservar a vida nas circunstâncias mais extremas significava preservar o
patrimônio da vida recebida dos antepassados. Cultuam-se os antepassados familiares, sendo que o
pai de família que exerce o sacerdócio, por exemplo, em Moçambique, pois servem de intermediários
entre os seres humanos e o Ser Supremo. O culto dos antepassados domina as religiões de Angola,
quando as mulheres são possuídas, durante as cerimônias, pelos mortos de sua família. Portanto,
mesmo dentro das irmandades católicas, os rituais eram assimilados como forma da pessoas de
tradição bantú, vivenciar aquilo que era importante para ela.
46
Segundo Laura de MELLO E SOUZA, O diabo e a terra de Santa Cruz, em termos de controle
social e ideológico, era fundamental que a Igreja Católica deixasse aflorar manifestações sincréticas.
Uma colônia escravista estava fadada ao sincretismo religioso. O sincretismo afro-católico dos
escravizados foi uma realidade que se fundiu com a preservação dos próprios ritos e mitos das
religiões africanas. Através da religião, os negros procuravam nichos em que pudessem desenvolver
integradamente suas manifestações religiosas: “Arrancados das aldeias natais, não puderam recriar
no Brasil o ambiente ecológico em que haviam se constituído suas divindades; entretanto, ancorados
no sistema mítico originário, recompuseram-no no novo meio” (Ibid., p. 94). A religião africana vivida
pelos africanos no Brasil tornou-se diferente da dos seus antepassados, que se originou à luz de
necessidades e de realidades novas, superpondo ao sincretismo afro-católico um sincretismo africano
e afro-ameríndio.
191
47
Homi K. BHABHA, O local da cultura, p. 20-21.
48
E. P. THOMPSON, Costumes em comum, p. 69.
192
49
Cf. Cláudia RODRIGUES, em Além das fronteiras, abre o livro examinando o testamento de três
escravos que seguem os manuais do “bom morrer”. Além disso, Amanda Aparecida PAGOTO, no
livro Do âmbito do sagrado ao cemitério público,nos auxilia a entender os passos do bem-morrer. São
eles: 1) elaboração do testamento – disposições e vontades registradas, o que prejudicaria a
Salvação da Alma. Os testamentos tinham a mesma estrutura, nos quais eram relatadas as últimas
vontades terrenas, mas servia como um mecanismo de confissão, como forma de alcançar a
Salvação da Alma; 2) sepultamento – a Alma do cristão só estaria protegida se estivesse em solo
sagrado. Desde a Idade Média havia o costume de enterrar os mortos dentro das igrejas ou próximo
a ela. Tal fato estava baseado na crença de que o morto só ressuscitaria no Juízo Final se estivesse
perto de um santo. Quanto mais próxima à imagem do santo, maior a possibilidade de salvação; 3)
mortalha – os cristãos cultivavam o hábito de enterrar seus mortos com mortalhas semelhantes às
roupas usadas pelos santos ao longo de suas vidas. Também podem ser colocadas as vestimentas
utilizadas nas irmandades e nas confrarias, que demarcava a posição social do morto e trazia
pompas ao cortejo fúnebre; 4) missas – temendo uma grande estadia no Purgatório tornaram-se
comum a realização de missas em intenção da Alma do defunto e quanto mais missas celebradas,
menores as penas sofridas antes de alcançar o Céu. A quantidade de missas entre os santos de
devoção era feita nos inventários e nos testamentos; 5) sinos – a passagem da morte era anunciada
através do som dos badalos. As pessoas de posses utilizam este recurso para demarcar sua posição
privilegiada dentro da sociedade; 6) outras pompas fúnebres – a realização dos cortejos se dava
durante a noite e se utilizava velas e tochas acesas. A importância do defunto era medida pela
quantidade de velas durante o funeral.
50
Fernando TORRES-LONDONÕ, Igreja e escravidão nas Constituições do Arcebispado da Bahia de
1707, Revista Eclesiástica Brasileira, p. 624.
193
TITULO IV.
QUE NEM-UMA PESSOA TENHA PACTO COM O DEMONIO, NEM USE DE
FEITIÇARIAS: E DAS PENAS EM QUE INCORREM OS QUE O FIZEREM.
* 896 Fazer (1) pacto com o Demonio contêm em si grave malicia, assim pela
insimisade, que Deos no principio do mundo poz entre elle, e os homens,
como tambem porque é fazer concerto com um inimigo de Deos. Por tanto
ordenamos, (2) e mandamos, que o que fizer pacto com o Demonio, ou o
invocar para qualquer effeito que seja, ou usar de feitiçarias para mal, ou para
bem, principalmente se o fizer com pedras de Aras, Corporaes, e cousas
sagradas, ou bentas, a fim de legar, ou deslegar, (3) conceber, mover ou
parir, ou para quaesquer outros effeitos bons, ou máos, incorreráem
excommunhão maior ipso facto.52
51
A respeito de mandingas, consultar a tese de doutoramento de Vanicléia Silva SANTOS, As bolsas
de mandingas no espaço Atlântico: século XVIII.
52
Sebastião Monteiro da VIDE, Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, p. 313-314.
194
Notemos, pois, no trecho citado, que mais do que sujeitos ativos, estes
indivíduos escravizados serviram como modelo, um modelo a não ser seguido pelos
católicos. O escravizado é entendido, neste momento, como um sujeito de direitos e
de deveres, que possui consciência dos seus atos e, portanto, pode ser penalizado
por eles. A noção de escravizado, assim entendida, vai ao encontro daquilo que
vimos até então. Como lembra Sousa Junior:
Ainda, segundo o autor, no século XVIII, alguns homens e mulheres vão ser
denunciados por curarem, usarem orações fortes ou portarem algum elemento que
os ajudavam a conseguir determinado fim:
53
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Teresa Leite; Escolástica Pinto da Silva, Jundiaí,
1754, p. 13 – frente; p. 11 - verso.
54
Vilson Caetano de SOUSA JUNIOR, Roda o balaio na porta da igreja, minha filha, que o santo é de
candomblé, p. 101.
195
* 902 E ainda que Deos em sua Igreja deixou graça para curar, (5) a qual se
póde achar não sómente nos justos, mas ainda nos peccadores; com tudo,
porque no modo com que se costuma usar desta graça se podem instruduzir
perniciosas superstições, e peccaminosos abusos, (6) estreitamente
prohibimos, sob pena de excommunhão maior, (7) ipso facto incurrenda, e de
vinte cruzados, que ninguem em nosso Arcebispado benza gente, gado ou
quaesquer animaes, nem use de ensalmos, e palavras, ou de outra cousa
para curar feridas, e doenças, ou levantar espinhela sem por Nós ser primeiro
examinado, e approvado, e haver licença nossa por escripto. E son a mesma
pena prohibimos, que nem-uma pessoa secular intente (8) deitar Demônios
fora dos corpos humanos. 55
55
Sebastião Monteiro da VIDE, Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, p. 315-316.
56
A utilização de sic se dá, quando a palavra se encontra legível, o documento não está estragado,
mas a palavra lida não foi encontrada nos dicionários consultados.
57
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Maria, Itu, 1755, p. 10 – frente; 22 – frente.
196
Mais uma vez no processo-crime citado acima, vemos que o escravizado era
portador de consciência, de capacidade de planejamento e de organização de suas
58
Segundo João José REIS, Domingos Sodré, p. 128: “O uso do termo malefício denota uma
mentalidade policial ainda radicada nos princípios da Inquisição, que designava como tal as artes
diabólicas dos assim definidos como feiticeiros, ou sua capacidade de fazer mal através de meios
ocultos, de ervas, rezas, encantações, mau-olhado, imprecações. De fato, todas as formas de
paganismo e práticas mágicas, mesmo inofensivas e até benéficas – o curandeirismo inclusive -,
seriam reduzidas à categoria de maleficium pelos inquisidores. Aqui também incluía a prática de “dar
ventura”, como o subdelegado se referiu – e era comum fazê-lo na época – à arte de adivinhar. Tal
arte seria igualmente competência do feiticeiro”.
59
Ibid., p. 107.
60
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Inácia de Siqueira, Martinha de Siqueira, Isidoro de
Siqueira Itapetininga, 1770, p. 3 – verso; p. 4 – frente.
197
ações, no sentido de conseguir o seu objetivo. É verdade que tais ações eram vistas
como ilícitas e, porque não dizer, anti-religiosas, uma vez que, normalmente, tais
práticas eram executadas em função do pacto feito com o demônio, além de haver a
utilização de subterfúgios para atingir o seu intuito.
Também é certo que muitas pessoas chamadas pelo Santo Ofício62 omitiram
informações, trocaram dados, ou deixaram práticas subentendidas, seja, podemos
supor, como uma forma de resistência, seja como uma maneira de preservar a si
mesmo e à pessoa denunciada. Vemos que a vizinhança tinha um papel importante
nas denúncias feitas, uma vez que tudo era observado, sendo que muitos hábitos ou
comportamentos tornavam-se motivos de dúvida. A vizinhança também servia como
testemunha, seja de acusação ou de defesa:
... alem diso sabe elle testemunha por ver e ser publico naquele bairro que os
denunciados costumão sahir pelas vezinhanças a pedirem esmolas com hua
imagem de Santa Anna, e com as esmolas fazem seos (ilegível) com
batuques e ajuntamento de pessoas da mesma coalidade e insinando nelles
algumas pessoas (...) dos mesmos feitiços, das quais fracoente da mesma
sem valia aprendendo os tais feitiços huma Maria molher de Martinho
61
Vilson Caetano de SOUSA JUNIOR, Roda o balaio na porta da igreja, minha filha, que o santo é de
candomblé, p. 138.
62
Primeira visitação do Santo Ofício (1591-1595) - visitador Heitor Furtado de Mendonça percorreu
Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba. Outras visitações foram enviadas ao Brasil, mas só é
conhecida a documentação relativa à visitação de 1618-1621 restrita à Bahia tendo como visitador
Marcos Teixeira e a tardia visitação de 1763-1769 confiada ao prelado Geraldo José de Abranches.
198
Rodriguez e fazendo outros insultos dos quais elle testemunha sabe por ser
publico e notorio naquele bairro e por presenciar o que tem deposto...63
63
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Inácia de Siqueira, Martinha de Siqueira, Isidoro de
Siqueira Itapetininga, 1770, p. 3 – frente.
64
Dentro do Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo (A.C.M.S.P.) no que se refere à escravidão
e aos escravizados, conta-se com os seguintes documentos: livros de batismo; livros de casamento;
livros de óbitos; livros de assuntos diversos: a) irmandades, b) registro geral de provisões, c) livro de
rol de desobrigas; processos: a) auto-civeis, b) crimes; exponsais; processos de casamento;
inventários / testamentos; e processos para ordenação de padres.
199
do século XVI ocorreu, pois não existiam processos que se referissem aos tipos de
crimes procurados. O fato de muitos destes processos-crimes serem escritos por
brancos e, muitas vezes, portugueses, nos mostrou a necessidade de fazer a leitura
por dentro, uma vez que os fatos são descritos de maneira parcial. Segundo Dias:
65
Maria Odila Leite da Silva DIAS, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p. 17. (O grifo é
nosso)
66
A respeito do concubinato ver: Eliane Cristina LOPES, O revelar do pecado. Os filhos ilegítimos na
São Paulo do século XVIII, e Fernando TORRES-LONDONÕ, A outra família: concubinato e
escândalo na colônia.
200
67
Hildebrando LIMA; Gustavo BARROSO, Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, p.
536: “Folguedo (guê), s.m. Ato de folgar; brincadeira; pândega”.
68
Observação: processo originário de Devassa da Visita.
69
Hildebrando LIMA; Gustavo BARROSO, Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, p.
735: “Mandinga, adj. e s.m. (Bras.) Diz-se de uma raça de negros cruzada com elementos bebere-
etiópicos e que sofreram a influência maometana (eram considerados grandes mágicos e feiticeiros);
s.f. feitiço; bruxaria”. Ainda segundo Edison de Sousa CARNEIRO, Religiões negras, p. 72: “Os
mandes (mandingas), por meio dos quais o culto malê veio para aqui, eram conhecidos como
grandes feiticeiros, e como tal temidos, - estando mesmo incorporada ao dialeto brasileiro a palavra
201
mandinga (por que eram conhecidos entre os negros), no sentido de feitiço, despacho, coisa-feita,
etc”. Já Nei LOPES, Novo dicionário banto do Brasil, p. 137: “MANDINGA, s.f. (1) Bruxaria; feitiço,
talismã (BH). (2) Qualidade de jogo de capoeira (SC) – A etimologia tradicionalmente aceita é a que
vê a origem do etnônimo Mandinga ou Mandingo. Mas a nossa opinião é a de Raymundo (1936:57):
“O termo (...) é mais certo que se prenda à prática do fetichismo entre os congueses. Estes não só se
utilizavam, como amuleto, de uns pacotilhetes, que tinham pendentes do pescoço: masalu ma- (e)
dinga, embrulinhos ou breves do colo; mas, igualmente, enraivecidos, quando contrariados,
praguejavam aos brados; era a gritaria das injúrias, eram os convícios do clamor, mayanga ma-
ndinga. As duas expressões conjugaram-se certamente, restando apenas os determinantes que se
plasmaram: ma-(e)dinga + ma-dinga > mandinga””.
70
O processo contém a seguinte observação: Título original: "Autos de Culpa que resultou na
Devassa da Visita da freguesia e vila de Taubaté".
71
O processo possui a seguinte observação: a denunciada Joana achava-se com poderes
sobrenaturais (conversava com imagens de santos, previa o futuro, revestia-se de um caráter
santificado, era visionária de demônios e catástrofes, etc.). Além disso, existia um afluxo razoável de
pessoas interessadas em curas e milagres na freguesia.
202
72
Segundo Francisco da Silveira BUENO, Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, p. 175:
“BATUQUE s.m. Dança de negros, de ritmo cadente, com sapateado e palmas”. Ou ainda, segundo
Hildebrando LIMA; Gustavo BARROSO, Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, p. 155:
“Batuque, s.m. Ato de martelar, de fazer bulha; (Bras.) nome genérico das dansas negras
acompanhadas por instrumentos de percussão; - de jaré: batuque dansado no interior baiano. Ainda
segundo Nei LOPES, Novo dicionário banto do Brasil, p. 40-41: “BATUQUE, s.m. (1) Designação
comum a certas danças afro-brasileiras. (2) Batucada. (3) O ato de batucar (BH). (4) Culto religioso
afro-gaúcho – Etimologia controversa. Para Nascentes, é deverbal de bater. Para Ribas (1979: 214)
trata-se de “fusão deturpada da expressão quimbunda bu-atuka (onde se salta ou se pinoteia)”.
Raymundo (1933: 106) escreveu: “É bailado originário de Angola e do Congo, mas, em que pese a
opinião de Cardeal Saraiva, não lhe chamavam os negros batuque, mas os portugueses; a dança é
feita com cantos em que entra a expressão kubat’ uku, nesta casa aqui. Daí, proveio batucu,
alterando em batucum e batecu, já por influência do verbo português bater”. Cf., no quimbundo, o
verbo tuka, saltar. Teríamos, então uma etimologia para a dança, outra para o ato de percutir o
tambor?”.
73
Segundo Hildebrando LIMA; Gustavo BARROSO, Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua
Portuguesa, p. 554: “Furrundú, s. m. (Bras.) Espécie de doce feito de cidra ralada, gengibre e açúcar
mascavo; especie de dança roceira”. Ainda segundo Nei LOPES, Novo dicionário banto do Brasil, p.
105: “FURRUNDU, s.m. (1) Música de origem africana (MA). (2) Furrundum”. FURRUNDUM [1], s.m.
(1) Espécie de dança roceira (BH). (2) Confusão, barulho (AA). (3) Doce de cidra ralada (VS) – De
provável origem banta. Veja-se, no quicongo, mfulu, reunião e ndungu, panela”.
203
Ainda para Dias, quando fala a respeito dos papéis históricos de mulheres
das classes oprimidas não se refere: “... a papéis sociais normativos e prescritos,
mas a mediações sociais continuamente improvisadas no processo global de
74
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Manoel da Silva, 1860, Nazaré Paulista, p. 3 – frente.
75
Cf. Lísias Nogueira NEGRÂO, Entre a cruz e a encruzilhada.
76
Aos olhos cristãos, surgia a certeza da existência de uma conspiração sobrenatural contra o
Salvador. O poder de Satã sobre a humanidade havia sido quebrado, mas ele ainda se mantinha
como um oponente. Ele odiava a Deus e todos os seres humanos, sua imagem e semelhança e
busca capturar o maior número possível de almas, para despojá-las de sua divina semelhança,
vingando-se de sua queda: negando os homens a Deus e Deus aos homens. Todos os
acontecimentos para os quais não havia explicação eram atribuídos ao Diabo. O ser humano
participa de uma história que tem sua origem na dicotomia entre o representado e o vivido, não
podendo pensar no Bem sem antes pensar no Mal. Incorporando as crenças da Antiguidade,
amplificadas pelo discurso da Igreja Católica, o Diabo preside a vida da comunidade cristã, já que em
toda parte se vê o diabólico, sendo que todo mundo é invadido por ele. Segundo Carlos Roberto F.
NOGUEIRA, O diabo no imaginário cristão, p. 42: “E sua vítima é, por excelência, a mulher. Porque a
mulher está mais predestinada ao Mal que o homem, segundo os textos bíblicos”.
77
Maria Odila Leite da Silva DIAS, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p. 157.
205
No que se refere aos locais, temos uma variabilidade muito grande, sendo
que cada crime ocorreu em uma cidade diferente, sendo elas: São Paulo, Mogi das
Cruzes, Santana do Parnaíba, Jundiaí, Itu, Mogi-mirim, Itapetininga, São Roque,
Bragança Paulista e dois em Santos. Santos pode ser uma cidade que aparece com
certa freqüência, só sendo, em número de crimes, inferior à capital, talvez, em
função do porto lá existente, o que nos remete ao tráfico de escravos e a troca de
produtos.
78
Maria Odila Leite da Silva DIAS, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p. 13.
79
Carlos Eugênio Líbano SOARES; Flávio dos Santos GOMES, Negras Minas no Rio de Janeiro:
gênero, nação e trabalho urbano no século XIX In: Mariza de Carvalho SOARES (org.), Rotas
atlânticas da diáspora africana: da Baía do Benim ao Rio de Janeiro, p. 192.
206
Fazendo, agora, uma leitura bantú dos processos-crimes que se referem aos
escravizados, podemos dividi-los da seguinte maneira: em sete deles observa-se
aspectos da magia, em um apenas aspectos da religiosidade e em três elementos
de religiosidade e de magia ao mesmo tempo. Naqueles que dizem respeito à
magia, destacamos: seis sobre medicina tradicional, oito sobre feitiçaria /
curandeirismo, sendo sete de magia prejudicial e um de magia defensiva, dois de
adivinhação e um de possessão.
A primeira coisa que nos chama a atenção é o fato de existir uma presença
maior de aspectos relacionados à magia em comparação com os aspectos
relacionados à religiosidade. Um das hipóteses levantadas é que a visibilidade de
tais práticas era menor, pois não correspondiam a uma prática utilitária, elemento
presente à época no Brasil. Outra hipótese para essa pouca presença de danças e
de batuques ocorre, uma vez que em todos os processos levantados, tais práticas
aconteciam dentro da casa das pessoas, nos remetendo a um espaço privado e, por
que não dizer, escondido. O fato das danças e dos batuques ocorrerem em lugares
privados, inicialmente, nos remete à ilegalidade das mesmas, já que eram
consideradas de natureza herética, tendo que ser executadas de maneira discreta:
TITULO I.
DO CRIME DA HERESIA. QUE SE DENUNCIEM AO TRIBUNAL DO SANTO
OFFICIO OS HEREGES, E SUSPEITOS DE HERESIA, OU JUDAISMO.
866 Para que o crime da heresia, e judaismo se extinga, e seja maior a gloria
de Deos nosso Senhor, e augmento de nossa Santa Fé Catholica, e para que
mais facilmente possa ser punido pelo Tribunal do Santo Officio o
delinqüente, conforme os Breves Apostolicos (1) concedidos á instancia dos
nossos Serenissimos Reis a este sagrado Tribunal, ordenamos, e mandamos
a todos os nossos súditos, que tendo noticia de alguma pessoa Herege,
Apostata de nossa Santa Fé, ou Judeo, ou seguir doutrina contraria áquella
que ensina, e professa a Santa Madre Igreja Romana, a denunciem (2) logo
ao Tribunal do Santo Officio no termo de seus Editaes, ainda sendo a culpa
secreta, como for interior.
208
887 E quando por justa razão, que tenhão, o não possão fazer, serão sem
embargo disso obrigados a nos dar conta, (3) para que ordenemos o que for
conveniente em ordem a ser delatado o tal delicto, e se proceder segundo a
justiça pedir. E o mesmo se guardará, tanto que qualquer pessoa for notada
de suspeita na Fé, (4) ou fautor dos Hereges (5) Em quanto taes, ou der
indícios prováveis de approvar elle os seus erros; porque o castigo de todas
estas penas pertence ao dito Tribunal da Inquisição.80
Falando a respeito das casas de zungú, para Soares82, o angu foi o elemento
central que levou a criação das casas de angu ou de zungú. Por meio da
alimentação, os escravizados encontravam uma justificativa importante para se
encontrarem, se socializarem, trocarem experiências e reabastecerem velhas
lembranças de sua terra. Essas casas tinham a capacidade de reunir grupos e
pessoas que antes estavam dispersos e mesmo em conflito, agregando os
diferentes. O zungú era um espaço clandestino e proibido, perseguido durante o
período escravista. Era um espaço mais de hospedagem do que de estadia, onde se
80
Sebastião Monteiro da VIDE, Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, p. 34. (O grifo é
nosso)
81
Carlos Eduardo de Araújo MOREIRA; Carlos Eugênio Líbânio SOARES; Flávio dos Santos
GOMES; Juliana Barreto FARIAS, Cidades negras, p. 84. Interessante notar, fato que veremos no
capítulo IV, que nos terreiros, chamados por nós de familiares, o local onde acontece a gira,
normalmente, é na edícula da casa ou no final do corredor, não sendo o espaço do terreiro exposto
publicamente.
82
Cf. Carlos Eugênio Líbano SOARES, Zungú.
209
83
Cf. João José REIS, Domingos Sodré.
84
Carlos Eugênio Líbano SOARES, Zungú, p. 16.
85
Carlos Eduardo de Araújo MOREIRA; Carlos Eugênio Líbânio SOARES; Flávio dos Santos
GOMES; Juliana Barreto FARIAS, Cidades negras, p. 87.
210
Falando a respeito do culto aos antepassados, podemos notar que eles são
constituídos por alguns rituais preparatórios, pelo culto propriamente dito e por
rituais que ocorrem depois do culto, compostos por danças e por músicas. Os rituais
preparatórios dizem respeito à preparação do local, bem como da entrega das
oferendas. Recorrendo aos processos-crimes, notamos a preparação de alguns
elementos e a presença de animais, que também poderiam ser ofertados:
... com hua imagem de Santa Anna (...) formavão batuques e folguedos em
que se ajuntavam (ilegível) dos feitiços (ilegível) a denunciada Ignacia que
hua boca que tinha na (ilegível) a dera hum sapo que lhe avia introduzido e
que não sararia (...) o sapo não saísse e mais não dice...88
Ou ainda:
86
Maria Odila Leite da Silva DIAS, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p. 155.
87
Cf. Artur RAMOS, Introdução à antropologia brasileira.
88
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Inácia de Siqueira, Martinha de Siqueira, Isidoro de
Siqueira, 1770, Itapetininga, p. 4 – frente.
211
... Manoel de Freitas Mattos, Familiar do Santo Officio, e morador nesta (...)
dita villa foi ditto, que por ser informado que no sitio chamado dos Barris o
escravo chamado Antonio do capitão Francisco (...) de Menes(...) e Souza
com mais tres de Ma(...)el Jozeph da Silva chamados Manoel, Pedro e
Antonia sua mulher todos de presente presos no Forte desta Praça a ordem
do comandante della tinha convocado outros varios escravos e haviam feito
uns folguedos ilicitos com demonstrações de que neles tinha parte o diabo
por meio de feitiçarias ou sortilégios de que tratavam (...) forão presos, e que
devendo como (...)
E sendo perguntado pelo contiudo do auto de denuncia atras declarado que
tudo lhe foi lido, disse que sendo mandado pelo seo Capitão Mandante em
companhia do capitão Francisco Cardozo ao Sitio chamado dos Barris distrito
desta villa, e ahi acharão em hua casa varios negros, todos mensionados no
autto atrás (...) estavam com hum folguedo de batuque... 89
... alem diso sabe elle testemunha por ver e ser publico naquele bairro que os
denunciados costumão sahir pelas vezinhanças a pedirem esmolas com hua
imagem de Santa Anna, e com as esmolas fazem seos (ilegível) com
batuques e ajuntamento de pessoas da mesma coalidade e insinando nelles
algumas pessoas (...) dos mesmos feitiços, das quais fracoente da mesma
sem valia aprendendo os tais feitiços huma Maria molher de Martinho
Rodriguez e fazendo outros insultos dos quais elle testemunha sabe por ser
publico e notorio naquele bairro e por presenciar o que tem deposto..." (p. 3 -
frente)
... da Ritta da Silva do mesmo bairro do coal he fama publica que as
denunciadas a tinhão enfeitiçado asim como tao bem e publico e notório
sahirem muito pelo bairro com hua imagem de Santa Anna a pedirem
esmolas e como lhes formarem batuques e outras as pessoas (ilegível)
capaminosas, com ajuntamento de pessoas a quem se diz que costumão
insinarem as mesmas feiticarias e mais nao dice)... 90
89
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Manoel Pedro, Antonia, Antonio Pinheiro, 1769,
Santos, p. 2 – frente / p. 4 – frente.
90
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Inácia de Siqueira, Martinha de Siqueira, Isidoro de
Siqueira, 1770, Itapetininga, p. 3 – frente / verso.
212
Outro aspecto que cabe destacar é que a maioria dos processos-crimes que
falam a respeito da religiosidade também traz aspectos da magia. Dentro da tradição
bantú não há separação entre sagrado e profano, bom e ruim, religiosidade e magia;
ambas estão inseridas na vida cotidiana:
Aseverou também, ter ouvido de varias pessoas, e hua vez delle proprio
denunciado mesmo, estar praticando com outros que usava, de magicas, ou
simpatias diabólicas afim de vencer as mulheres para ofensas de Deos, e que
elle testemunha, supunha asim praticava o dito denunciado porque sabia; de
algumas mulheres, com quem o dito tem tido copula, as quais só se
sujeitaram a isto por similhantes meios por que são de outras qualidades, que
não hé o tal denunciado.
Dice mais que agora proximamente andava mal encaminhado com hua forra
xamada Escolatica, que aqui apareseu vindo de fora desta Freguesia, e
julgava que viera da cidade de San Paolo. Dice mais que o denunciado era
costumado a fazer e andar em danças desonestas, como batuques e outras
similhantes, com pessoas de mesmo e diverso sexo.91
91
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Antonio de Lima, Lucinda, Escolástica, 1784, São
Roque, p. 18 – frente / p. 19 – frente.
213
poderiam ser usados tanto positiva como negativamente”92. As curas, para ela,
envolviam procedimentos mágicos complexos de caráter semi-ritual. Adivinhações,
curas mágicas, benzeduras procuravam responder às necessidades e atender aos
acontecimentos diários, tornando menos dura a vida naqueles tempos difíceis.
TITULO XXIV.
DAS PESSOAS, QUE SÃO OBRIGADAS A RECEBER O SANTISSIMO
SACRAMENTO DA EUCHARISTIA, E EM QUE TEMPO, E A QUE PESSOAS
SE NÃO PÓDE, NÉM DEVE DAR.
92
Laura de MELLO E SOUZA, O diabo e a terra de Santa Cruz, p. 172.
93
Maria Odila Leite da Silva DIAS, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p. 161.
214
feiticeiros, (20) mágicos, (21) blasfemos, (22) usurários, (23) e publicas (24)
meretrices, e os que estão publicamente (25) em ódio, e outros quaesquer
(26) públicos peccadores, se não constar (27) publicamente de sua emenda,
e arrependimento, e que tem primeiro satisfeito ao publico escândalo, que
com seu máo viver tiverem dado. E quando secretamente (28) constar de sua
emenda, secretamente se lhes administrará o Santissimo Sacramento,
porque tambem então secretamente não há escândalo. Porêm no artigo (29)
da morte se administrará á aquelles, que estavão antes em peccado publico,
posto que publicamente não conste de sua emenda, tendo-se primeiro
confessado (30) com a devida disposição. Declaramos, que para este effeito
serão havidos sómente por peccadores (31) públicos aquelles, cujos
peccados constão por sentença, que passou em cousa julgada; ou confissão
feita em juízo, ou cuja infâmia foi tão notória, que se não póde encubrir, nem
desculpar. Tambem mandamos, se denegue aos peccadores (32) occultos,
quando consta não estarem emendados, se o pedirem occultamente: mas
pedindo-o (33) publicamente se lhes administrará, (ainda que secretamente
conste, que nelles não ha emenda) para se evitar o escândalo de lhes ser
negado. 94
Ao quarto dice que sabe por ouvir dizer vulgarmente que a Re usava com
ervas a pessoas que se presumião emfeitisadas mas não que elle
testemunha viu as tais curas. Ao quinto dice que sabe por ouvir dizer
vulgarm.te que a Re fazia estas curas, mas que sabe lealmente que de curar
feitiços não entendia a dita Re porque elle testemunha curou hum enfermo
que estava nas maos da Re presumindo que tinha feitiços, e ella por lhe dar
alguma cousa o andava curando com as ditas ervas e o enfermo o que
padecia era huma obstrução que elle testemunha em poucos tempos
(ilegível). (...)
Ao quinto dice que sabia por ver que a Re curava a alguns enfermos com
ervas que lhe aplicava em (ilegível) como huma erva a que lhe (ilegível) de
bicho e que não duvida que tambem curava com outras ervas e suas raizes
que senão conhecesse porq. nem todos teem experiencia para conhecer
ervas e a raiz de que ella Re usava era a raiz de outeca / vuteca (sic)96 como
elle testemunha via com seus olhos. 97
94
Sebastião Monteiro da VIDE, Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, p. 56. (O grifo é
nosso)
95
Cf. Laura de MELLO E SOUZA, O diabo e a terra de Santa Cruz.
96
A utilização de sic se dá, quando a palavra se encontra legível, o documento não está estragado,
mas a palavra lida não foi encontrada nos dicionários consultados.
97
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Maria, 1755, Itu, p. 18 – verso; p. 22- frente.
215
... por se dizer que curava mordidas de cobra do q. acusa que o Supp.do
fazsão com ervas e que (...) implicito ou explicito, e por esta razão (...) nos
ttrmos. da Const. L. 5 nos. 896.897.898 (...) foi cometido algum crime de
feitiçaria (...) e seu Livram.to por elle referidas (...) e não doutro Tribunal
algum (...) ditas feitiçarias, sortilégios e superstições...98
... cavar em três partes do chão dos (ilegível) apousento, e em todas tirou a
denunciada ossos de galinha, de vaca, e leitão e um osso que parecia ser de
gente; e de hum buraco da parede do mesmo apousento, tirou mais a
denunciada huas unhas ou aparas dellas, embrulhadas em um papel escrito
pella filha della testemunha que se achava emferma e assim, mais tirou hum
pouco de escarmento seco, que a mesma denunciada confessou ser da
mesma enferma, dizendo que tudo ella tinha (...)100 porque lhe tinhão
emsinado mas nao disse quem que quando de todo secassem aquelles
ossos, e o mais, havia de acabar a dita emferma, porem que prometia que
agora logo havia de sarar; e outro sim, disse ella testemunha que com
(ilegível)101 estando a emferma com dores intratáveis nas unhas dos pés e
mãos, de tal sorte que não podia consentir lhe tocassem nellas, nem o
mesmo o lensol da cama, e sem evacuação algua do curso natural, nem
ainda da ajuda de remédios...102
98
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Patrício Bicudo da Silva, 1749, Santana de Paraíba,
p. 6 – frente.
99
Laura de MELLO E SOUZA, O diabo e a terra de Santa Cruz, p. 168.
100
(...) corresponde às partes do processo que se encontram “comidas”.
101
Corresponde aquilo que não foi possível ler no processo, mas que se acha escrito.
102
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Páscoa, 1749, São Paulo, p. 9 – frente.
216
103
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Joana, Isabel, 1759, Santos, p. 5 – verso; p. 7 –
verso.
104
Segundo João José REIS, Domingos Sodré, p. 147-150: “A idéia de lançar mão de recursos rituais
para controlar o poder senhorial, para “amansar senhor”, por exemplo, tinha uma certa idade, como
mostram alguns estudos sobre o período colonial. (...) O amansamento de senhores por seus
escravos no período imperial chegou a fazer parte do (...) “imaginário do medo”. (...) Os casos de
envenenamento de senhores por escravos – assim como de escravos que envenenavam outros
escravos e até animais – se repetem na documentação policial, embora raramente se informe sobre
qual o ingrediente ministrado. Muitas vezes eram ervas e raízes da medicina africana, outra venenos
comprados ou roubados a boticários e taberneiros, sendo o rosalgar o mais comumente usado”.
217
Para Ramos, ainda havia um feitiço que consistia em mudar a cabeça, isto é,
transmitir os males de uma pessoa a outra. O feiticeiro preparava o despacho,
fixando nele as atribulações da pessoa que desejava enfeitiçar e o despacho era
colocado em um lugar público: o malefício era transmitido à pessoa que pisasse no
despacho, que o tocasse ou que o examinasse. Neste caso se dava a troca de
cabeça. A série de feitiços era enorme, crescendo cada vez mais com a assimilação
das práticas supersticiosas do ameríndio e do europeu, pois a “... magia torna-se
sobrevivência”106. As denúncias de feitiçaria também refletiam a tensão entre a
vizinhança, amigos e inimigos, os quais compunham o rol de testemunhas. Segundo
Dias, falando a respeito das mulheres: “A sua subsistência baseava-se em relações
tensas, de vizinhança e convívio, entre escravas, livres e forras; convívio marcado,
de um lado, por necessidade de auxílio mútuo e, de outro, por um inserção
forçada”107.
105
Maria Odila Leite da Silva DIAS, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p. 59.
106
Arthur RAMOS, O negro brasileiro, p. 170.
107
Maria Odila Leite da Silva DIAS, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, p. 74.
108
Laura de MELLO E SOUZA, O diabo e a terra de Santa Cruz, p. 204.
218
A magia bantú atua sobre unhas, cabelos, roupas, sombra, objetos usados,
terra pisada e, até, fotografias, pois estes elementos prolongam a personalidade. Há
um sistema invisível de forças e de energias, que aparecem no mundo exterior
encadeadas com ordem e com regra. Os especialistas de magia podem interferir
neste circuito vital: “Assim se explica o terror banto às forças ocultas, o exercício
contínuo da magia e os variadíssimos ritos que intentam fortificar, detectar e manejar
a vida em constante inter-acção”111. Vejamos o processo-crime abaixo:
Malefícios para lhes tirar a vida: e que despois de feita a dita confissão da dita
denunciada Joana Criola, a que tão bem assitira a denunciada Izabel de
nação congo levara elle testemunha, as ditas denunciadas, ao dito citio e as
testemunhas acima declaradas, e que em presença destas declararão as
109
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Teresa Leite, Escolástica Pinto da Silva, Manoel
Garcia, 1754, Jundiaí, p. 13 – frente; p. 11 – verso.
110
Cf. P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu.
111
Ibid., p. 57.
219
O ritual, que engloba todos os seus atos, elabora-se no mundo visível para
ser cumprido no invisível:
Por isso, a maioria dos feitiços é repleta de ossinhos, cabelos, pêlos, sangue
de defuntos e de animais, pedaços de plantas e restos de minerais, que exteriorizam
a sua força segundo a sua aparência e a sua natureza. Os seus donos recebem o
seu poder e a sua energia para atacar ou para se defender:
E não vio elle testemunha mais do que hua cabra attada ainda viva, hua
garrafa cheia de agua e varias raizes dentro, como tão bem hua cestinha com
huns cascos de câgado; e logo de fora da porta ja seria hu cheiro tão mao
que sahia da casa que por insuportável nao pode elle testemunha distinguir
se era inxofre, ou de, bode: o que tudo sabe, elle testemunha pela razão dita
física, e (ilegível) não disse, e se asignou com o Muito Reverendo... 114
Não podemos falar em uma religião ou religiosidade bantú, uma vez que
havia uma proibição de tais expressões, por isso, optamos por chamá-las de
práticas rituais e religiosas. A constituição de expressões afro-brasileiras e seus
diferentes sentidos deve ser buscada nas relações que os africanos e afro-
descendentes conseguiram estabelecer numa outra sociedade, a partir das
condições que lhes eram oferecidas. Como africano ou afro-descendente
112
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Joana, Isabel, 1759, Santos, p. 6 – frente.
113
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 60.
114
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Manoel Pedro, Antonia, Antonio Pinheiro, 1769,
Santos, p. 4 – frente / verso.
220
escravizado, ele não pôde expressar as suas práticas sociais, sexuais, familiares e
religiosas, como era feito na África, mas dentro dos limites que lhe foram impostos,
exercia opções, utilizando os resultados em proveito próprio. Africanos e afro-
descendentes conviveram de perto com o branco, o que facilitou o intercâmbio entre
as práticas religiosas dos grupos existentes, sendo que a população branca e
indígena fazia uso e se beneficiava das práticas de origem bantú.
O sistema cultural como teia de significados permitiu aos africanos e aos afro-
descendentes de tradição bantú, mesmo escravizados, reestruturar seu universo
fragmentado, reconstituindo uma religiosidade modificada pela experiência da
diáspora e da escravidão. As relações com o catolicismo e com as tradições
indígenas inserem-se no esforço de construir algo vinculado às suas tradições. Os
sistemas simbólicos são construídos e reconstruídos o tempo todo, como um
sistema de símbolos capaz de estabelecer disposições e motivações nas pessoas
através da formulação de uma identidade social.
115
Ênio José da Costa BRITO, Anima brasilis, p. 79.
221
Nas pessoas de tradição bantú que chegaram ao Brasil, havia valores que os
motivavam, bem como certas orientações de como lidar com os outros em situações
sociais, além de pressupostos e de expectativas básicas sobre o modo como
atuavam existencialmente no mundo. Tais aspectos serviram como norteadores das
reconstruções elaboradas por eles durante a época da escravidão:
116
Sidney W. MINTZ; Richard PRICE, O nascimento da cultura afro-americana, p. 28.
222
117
Sidney W. MINTZ; Richard PRICE, O nascimento da cultura afro-americana, p. 28-29.
118
Laura de MELLO E SOUSA, no seu texto, Revisitando o calundu, ao falar a respeito dos
processos pesquisados por ela, traz algumas contribuições sobre o calundu, entendendo-o como um
aspecto ritual, que obedecia a um cerimonial complexo e internamente articulado. Era composto por
adivinhações, cura de feitiços, repetição de danças e cantorias, que levavam à perda de sentidos e a
ida a terras africanas. A autora fala de modelos possíveis. A autora trabalha com um universo de 32
casos de práticas religiosas e os divide da seguinte maneira: calundus evidentes (15 casos), calundus
sugeridos (4 casos) e elementos dispersos de calundus (13 casos). Sempre, nos calundus
evidentes, há referências a danças, embaladas por instrumentos musicais, associadas a práticas
223
maneira mais clara o que foi entendido por esta prática ritual, a partir de um
processo-crime
3.4.1– O calundu121
África por volta do início da década de 20 do século XVIII. (...) Luzia era publicamente tida como
calundureira. Os habitantes de seu arraial procuravam-na para que fizesse adivinhações,
esclarecesse sobre o paradeiro de oitavas de ouro furtadas, promovesse curas. (...) Original de região
de língua bantu – a Angola portuguesa -, Luzia calundureira, foi antepassada cultural das mães-de-
santo do Brasil contemporâneo. Como elas, acreditava na inevitabilidade dos dons que o destino lhe
dera: predestinação existe, o que cabe a cada um é trabalhar”.
125
Renato da SILVEIRA, Do Calundu ao Candomblé, Revista de História da Biblioteca Nacional,
http:/www.revistadehistoria.com.br/v2/home. Acesso em: 22 maio 2008 (O grifo é nosso)
126
Laura de MELLO E SOUZA, Revisitando o calundu,
http:/www.fflch.usp.br/dh/posgraduacao/social/pag.profs/LauraSouza, p. 2. Acesso em: 22 maio 2008.
226
127
Laura de MELLO E SOUZA, Revisitando o calundu,
http:/www.fflch.usp.br/dh/posgraduacao/social/pag.profs/LauraSouza, p. 1. Acesso em: 22 maio 2008
128
André NOGUEIRA, O que digo nessas danças / Satã tem parte ligada: os calundus das Gerais,
Revista Museu, SILVEIRA, http:/www.revistamuseu.com.br/em foco. Acesso em: 22 maio 2008.
227
Os batuques eram executados para garantir aos clientes boa fortuna, cura
para as doenças e, através de adivinhações, conhecimento de algo obscuro. Alguns
indivíduos tinham a capacidade de manter o contato com o sobrenatural, como o
exemplo da curandeira C.129, sendo, muitas vezes, vistos como líderes, ou ainda
segundo o seguinte processo-crime:
... huma publica vós e fama de que a dita denunciada desfrutava favores e
merces do céo, quais erão sahirem as imagens de Cristo e da Virgem Maria,
que estavão no seo oratorio por virtude propia e irem ter de noite com a dita
denunciada em sua cama, estando ella dormindo, e fazerem se vistas ditas
imagens em sima do peito, e man da mesma denunciada, e que ella
despeitando (sic) declarava haverem vindo as ditas imagens sobre ella em
sua cama por virtude sobrenatural; o que tudo sabia e lhe testemunha por ser
notorio e ppr lho haver manifestado este facto ...130
129
Cf. C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/2009.
130
A.C.M.S.P., Processos gerais antigos: crime: Joana Dias, Lucrecia Dias, 1758, Mogi-mirim, p. 6 –
frente.
228
... os zungú eram um ponto de encontro entre libertos, livres e escravos, onde
estes encontravam solidariedade. Mas também eram locais importantes de
sobrevivência cultural e principalmente religiosa, pois ali se reproduziam com
maior segurança as práticas coletivas religiosas vindas da África,
transformadas pela escravidão, mas ainda repositórios vivos de memórias
étnicas. 132
Trata-se de uma chave política e de uma das chaves para entender mais um
processo histórico de construção de evidências para Porto Alegre – só fez
crescer a partir da década de 1830. Ao contrário da cidade baiana, a
composição étnica da população africana na Corte era majoritariamente
banto, principalmente antes de 1830. Esses afro-baianos tinham assim um
quê de estrangeiros na capital do Império, mesmo compartilhando condições
sociais e barreiras muito semelhantes para o conjunto da população negra.
Entretanto, além do espírito comunitário, de apoio mútuo, que esses
“estrangeiros” tinham de cultivar entre si naquela terra nova (formando como
131
Segundo Carlos ENGEMANN, De laços e de nós, p. 143: “A produção de sentidos, que auxilia na
compreensão e na partilha das experiências vividas, é talvez o bem mais precioso da vida comunal. A
capacidade de tornar o lugar da escravidão, estranho e hostil pela sua própria natureza, sem um
lugar com alguma familiaridade é uma das maiores vantagens na construção de uma coletividade. E
é possível que seja um dos seus maiores motores também”.
132
Carlos Eugênio Líbano SOARES, Zungú, p. 48. (O grifo é nosso)
229
133
Carlos Eduardo de Araújo MOREIRA; Carlos Eugênio Líbânio SOARES; Flávio dos Santos
GOMES; Juliana Barreto FARIAS, Cidades negras, p. 91.
134
Ibid., p. 97-98.
230
Flor da Bahia
Dor da Bahia / Chega a machucar meu peito / Na
garganta dá nó / Conviver com preconceito / Dá revolta e
dá dó / Quem no coração / Não faz distinção /
Compreende a minha dor / Cor da Bahia / É a paixão da
minha vida / Quando olho em redor / A cidade construída
/ Misturando suor / Quanta história então / De sangue e
paixão / Sobre o chão de Salvador / Na Bahia / Grão de
amor é forte medra / E eu sou flor da Bahia / Semeada
em chão de pedra / Flor da Bahia / Que oferece a
primavera / Desse grão / Dessa flor / Desse chão /
Desse amor / Flor da Bahia / É flor que ninguém arranca
/ Quando o amor é maior / Pele escura, pele branca /
Flor da pele é uma só / Corpos que se dão / Mais
1
sementes são / Sobre o chão de Salvador.
1
Flor da Bahia, Nana CAYMMI. Temas de novelas. s.n. Som Livre, Rio de Janeiro, s.d. CD-ROM.
232
2
Cf. Robert SLENES, Prefácio, In: Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade.
3
Cf. Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro.
233
processo, sendo que o que foi construído durante a liberdade, já vinha sendo
gestado desde o cativeiro. Nos dizeres de Engemann:
4
Carlos ENGEMANN, De laços e de nós, p. 30.
5
Cf. Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro.
6
Elione Silva GUIMARÃES, Múltiplos viveres de afrodescendentes na escravidão e no pós-
emancipação, p. 25.
234
Frente ao que foi colocado até então, este capítulo tem como objetivo discutir
os períodos do pré e do pós-abolição através de estudos historiográficos, buscando
perceber de que maneira os projetos cultivados durante a escravidão, que visavam a
preparação para a liberdade, resgataram estruturas da tradição bantú, dentro de um
momento histórico no qual esta alternativa mostrou-se viável. Como forma de
estabelecer tal relação, recorreremos aos estudos a respeito da tradição bantú,
como também a algumas entrevistas realizadas em Maputo, Moçambique. Não
estamos trabalhando com a idéia de que os projetos de liberdade – território, família
e antepassados – tinham apenas o sentido de resgatar aspectos da tradição bantú,
mas fazer aproximações entre os aspectos dessa tradição e os projetos existentes.
7
Segundo Sidney CHALOUB, Visões de liberdade, o tráfico interprovincial da segunda metade do
século XIX despejou no sudeste, a partir de 1850, cerca de 200 mil escravos. O auge da transferência
interna ocorreu entre 1873 e 1881, quando 90 mil negros entraram na região através do porto de
Santos e do Rio de Janeiro. Tal fato aumentou a tensão social nas províncias do sudeste. Os negros
transferidos eram jovens e nascidos no Brasil, filhos ou netos de africanos que haviam sofrido o
tráfico transatlântico. Muitos estavam passando pela primeira experiência traumática. Já para Regina
Célia Lima XAVIER, Religiosidade e escravidão, século XIX, em São Carlos, em 1832, a
desproporção entre livres e escravizados continuava preocupante para os senhores, deixando-os
sempre inseguros. A maior parte da população escrava e africana concentrava-se no campo. Os
escravizados tinham plenas condições de perceber que a balança demográfica pesava em seu favor
e sentiam seu poder de pressão. Para os senhores, não havia diferenças entre as lideranças étnicas
construídas, sendo que todos os escravizados constituíam apenas um inimigo, que devia ser
combatido. Isto não quer dizer que fossem totalmente cegos às diferenças. Os escravizados
percebiam os conflitos e as conseqüências da lei que extinguira, em 1850, o tráfico de escravos
africanos. O que teve como resultado a formação de vários movimentos de revolta em todo país.
8
Cf. Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro.
9
Segundo Ibid., atualmente se privilegia três eixos de investigação sobre os efeitos políticos do fim do
tráfico de africanos: 1) perda de legitimidade da própria instituição escravista; 2) conseqüências do
tráfico interno das áreas menos prósperas para as mais ricas, do Nordeste para o Sudeste. Os
escravos transferidos já estavam no domínio de determinados códigos de funcionamento da
escravidão no país e buscavam universalizar os princípios do mesmo código; 3) mudanças internas
aos grandes plantéis decorrentes do fim do tráfico transatlântico, que tiveram fundamental
importância às comunidades escravas. Com o fim do contínuo afluxo de estrangeiros, normalmente
homens jovens, as comunidades escravas tenderam a se cristalizarem e ampliarem o acesso à
família aos já estabelecidos nas fazendas, já que a relação entre homens e mulheres se normalizava
às gerações nascidas no cativeiro.
236
O autor ainda afirma, e assumimos esta idéia, que a hibridização, que funde
as estruturas e as práticas sociais discretas para gerar novas estruturas e novas
práticas, na maior parte das vezes, ocorre em função da criatividade individual ou
coletiva, buscando reconverter um patrimônio cultural para reinseri-lo em novas
condições históricas e sociais. Passa-se a fazer um novo uso daquela prática
cultural, a partir de um novo sentido dado àquilo que já existia. No nosso caso,
assistimos a reinvenção de aspectos constituintes da tradição bantú dentro de um
novo contexto histórico, social e geográfico.
10
Nestor García CANCLINI, Culturas híbridas, p. XIX.
11
Cf. Sidney CHALOUB, Visões de liberdade.
237
12
Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro, p. 49-50.
13
Sidney CHALHOUB, Visões de liberdade, p. 42.
238
homogêneo. Canclini novamente nos auxilia afirmando que não há uma noção
homogênea de identidade, havendo, a partir dos processos de hibridização, a
necessidade de relativizá-la: “A ênfase na hibridação não enclausura apenas a
pretensão de estabelecer identidades “puras” ou “autênticas”14.
Com efeito, talvez nenhum assunto tenha sido tão decisivo naquelas décadas
finais do Segundo Reinado quanto o significado da liberdade dos negros. Este
era um assunto econômico, pois afinal dele dependia a autonomia ou não dos
negros em suas atividades produtivas, assim como a disponibilidade ou não
da força de trabalho dos ex-escravos para os senhores que se tornavam
patrões. Este era um assunto político, pois afinal o governo podia agora
interferir mais decisivamente na organização das relações de trabalho.
Insinuava-se aqui também a questão social: afinal, eram agora necessárias
políticas públicas no sentido de viabilizar ao negro liberto a obtenção de
condições de moradia, alimentação e instrução, todos assuntos percebidos
anteriormente como parte das atribuições dos senhores. Este era um assunto
que envolvia tudo isso, se bem que isso ainda não era tudo, e se bem que
vários itens dessa agenda não tenham jamais entrado realmente em pauta.17
14
Nestor García CANCLINI, Culturas híbridas, p. XXIII.
15
Ibid., p. XXIII.
16
Os escravos como grupo eram temidos pelos senhores, mas ainda mais os africanos eram vistos
como suspeitos. Segundo Regina Célia Lima XAVIER, Religiosidade e escravidão, século XIX, p. 85:
“Neste sentido, os escravos africanos passaram a representar um perigo mais imanente: havia uma
tendência de não mais se temer este ou aquele escravo insubordinado, mas um “sujeito coletivo”,
encarnado pelos “africanos”, tomados, por isso, muito mais terríveis”.
17
Sidney CHALHOUB, Visões de liberdade, p. 26.
239
Logo, o fim da escravidão não foi um fato isolado do processo histórico, já que
ele ocasionou a necessidade de revisão da estrutura social, o que repercutiu nas
vivências cotidianas de parte significativa ou quase da totalidade da população que
habitava o Brasil. Mais do que um sistema econômico, a escravidão moldou
condutas, definiu hierarquias sociais e raciais, forjou sentimentos, além de valores e
de etiquetas de mando e de obediência. Seu fim foi marcado por tensões sociais
agudas, que por um lado reavivaram antigas demandas e por outro construíram
novos significados e novas expectativas de liberdade. O que estamos querendo
dizer é que o fim da escravidão, apesar de estar associado à questão econômica,
esteve para além dela, já que as pessoas que nela se encontravam foram
constituintes da sociedade formada no Brasil. Seu fim exigiu mudanças em vários
âmbitos.
18
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 25-26.
240
19
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 26.
20
Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 144.
21
No primeiro recenseamento geral da população do Brasil, em 1872, no Rio de Janeiro, a população
de afro-descendente somava cerca de 60 a 70% do total dos habitantes, divididos quase ao meio
241
4.1.1 - Pré-abolição
entre escravos e livres. A homogeneidade negra era apenas aparente, pois a maioria dos
escravizados era de africanos que chegavam naquele momento ou seus descendentes diretos. Além
disso, segundo Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro, p. 295: “... as fronteiras
entre escravos e cidadãos livres tornavam-se, com freqüência, muito tênues. Enquanto permaneceu
vigente a escravidão no país, para qualquer brasileiro afro-descendente, o reconhecimento da
condição livre ou escrava dependia basicamente das relações costumeiras socialmente
reconhecidas. Um brasileiro negro poderia ser escravo, liberto ou livre, dependendo para isso de se
reconhecer e de ser reconhecido como tal, o que estava estreitamente ligado ao uso de uma
linguagem racial, na qual o silêncio progressivamente se tornou signo de igualdade”.
22
Elione Silva GUIMARÃES, Múltiplos viveres de afrodescendentes na escravidão e no pós-
emancipação, p. 67-68.
242
Torna-se claro, então que escravos vivendo “sobre si”23 contribuíram para a
desconstrução de significados essenciais à continuidade da instituição da
escravidão. (...) é uma tentativa de perceber como os negros articulavam, em
suas ações cotidianas, os dois componentes centrais do viver “sobre si”: a
possibilidade de morar fora da casa dos senhores, e o desejo de certa
autonomia nas atividades produtivas às quais se dedicavam. Desvendar esta
articulação equivale a aprender um pouco do sentido que os próprios negros
conferiam à liberdade.24
23
Sidney CHALOUB nos ajuda a entender a idéia a respeito de ser uma pessoa livre, à qual estava
atrelada um conteúdo ideológico. Ideologicamente, “o viver sobre si” significa se aproximar da
liberdade, buscando destruir a imagem de uma sociedade de duas classes – livres e escravos –
desmanchando conteúdos cruciais a continuidade da escravidão.
24
Sidney CHALHOUB, Visões de liberdade, p. 235-236.
25
Robert SLENES, Na senzala, uma flor, trabalha de maneira detalhada a questão do sal dentro da
alimentação dos escravizados de tradição bantú. Comer muito sal era prejudicial para o contato com
os antepassados, portanto ter controle sobre a própria alimentação representava muito mais do que
apenas poder fazer a própria comida. Representava a possibilidade de resgate de aspecto da
tradição, que ainda não possuía canais de manifestação.
243
A formação de famílias não ocorreu sem uma série de regras, que não só
levava em conta a tradição africana, as vivências do presente, bem como as
expectativas do futuro. Segundo Rios e Mattos29, as rivalidades entre os grupos de
tradições africanas diferentes eram, muitas vezes, reproduzidas no cotidiano das
grandes fazendas brasileiras, o que tinha como conseqüência o impedimento de
casamentos e de ligações por laços de compadrio. Essas rivalidades estiveram
presentes até o século XIX, pois ainda chegavam africanos em função do tráfico,
mesmo que ilegal a partir de 1850. Como os momentos de tensão eram freqüentes,
os escravizados buscaram criar regras que minimizassem o conflito.
26
Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro, p. 38.
27
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 44.
28
Ibid., p. 35.
29
Cf. Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro.
244
30
Cf. Manolo FLORENTINO; José Roberto GÓES, A paz nas senzalas.
31
Carlos ENGEMANN, De laços e de nós, p. 140-141.
245
32
O processo de correlação de forças entre senhores e escravizados em curso desde a década de
1850 é intensificado a partir de 1865, somado ao quadro da crise institucional aberto com a Guerra do
Paraguai, produziu um ambiente necessário para a aprovação da Lei de 1871.
33
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 87-88.
34
Elione Silva GUIMARÃES, em Múltiplos viveres de afrodescendentes na escravidão e no pós-
emancipação, p. 107, faz uma comparação bastante interessante entre o discurso produzido pelas
elites em São Paulo e em Minas Gerais, fruto de uma reação às ações executadas por africanos e
por afro-descendentes: “Quanto aos discursos produzidos pela elite, temos de um lado São Paulo,
com o discurso do “descontrole e pânico” e Minas Gerais, com o discurso da “perfeita tranqüilidade” e
da “boa índole do povo mineiro”. Diante desta divergência, resta-nos a questão: por que vivendo
situações similares, as elites paulista e mineira produziram discursos diferenciados e mesmo
246
destas repercussões, nas décadas finais da escravidão, foi o conflito entre o direito
de propriedade, reivindicado pela classe senhorial, e o princípio de liberdade,
almejado pelos escravizados, o que já insinuava, mesmo para a classe senhorial, a
dificuldade de continuidade da escravidão. Estratégias e apostas políticas foram
elaboradas para momentos e para situações específicas. Segundo Guimarães
falando a respeito de Minas Gerais:
... nos anos finais do escravismo, a situação era tensa. Escravos fugiam,
matavam e morriam em busca de suas liberdades; os abolicionistas
perturbavam a paz e a tranqüilidade dos fazendeiros e estes, arraigados ao
escravismo, aceitavam como incontestável a eminência do seu fim, mas
relutaram até o último momento, esperançosos por uma solução jurídica e
gradual, para então, ao final, optarem prioritariamente pelo trabalhador
nacional, que lhes pareceu mais dócil e de fácil trato.35
antagônicos? Tanto nas regiões cafeeiras paulistas como na mineira (a Zona da Mata), havia
carência de mão-de-obra para suprir as necessidades de produção. Ambas se viram na eminência da
utilização de mão de obra exógena – São Paulo optou pelo imigrante europeu, Minas (Zona da Mata),
preferencialmente pelo migrante do sertão. É possível que Minas, possuindo reserva de mão-de-obra
(conforme analisado anteriormente), arraigada ao escravismo, e, na eminência do seu fim, apostando
no aproveitamento da mão-de-obra nacional, tenha produzido um discurso na contramão do paulista:
o da boa índole e da passividade.
35
Elione Silva GUIMARÃES, Múltiplos viveres de afrodescendentes na escravidão e no pós-
emancipação, p. 107.
36
Cf. Sidney CHALHOUB, Visões de liberdade.
37
Um destes negócios era a compra e a venda de escravos, objeto de estudo de Ibid. Sabe-se que a
participação dos escravizados nos negócios de compra e de venda, mesmo que incertas e
delimitadas pelas relações de classe numa sociedade profundamente desigual, tinha regras e lógicas
consagradas pelo costume. Havia a noção costumeira de que um ato de compra e venda era passível
247
Ainda, segundo o autor, o domínio dos senhores ruía a olhos vistos, pois,
muitas vezes, os escravizados precisavam ser convencidos da legitimidade do seu
cativeiro e questionavam castigos excessivos ou aplicados por motivos injustos.
Cada vez mais eles tomavam consciência do respeito aos seus direitos e
fundamentavam ações firmes no sentido de impor certos limites aos negócios da
escravidão:
de reversão, sendo que várias negociações incluíam um período de testes, no qual o comprador
examinava os serviços do cativo, ao mesmo tempo em que se abria a possibilidade do escravizado
interferir de alguma forma no rumo das transações.
38
Sidney CHALHOUB, Visões de liberdade, p. 59.
39
A lei de 28 de setembro de 1871, conhecida como a Lei do Ventre Livre, foi a de maior impacto nas
relações escravistas. Além de libertar os filhos dos escravizados, instituiu o fundo de emancipação
que libertava escravizados com recursos provenientes de impostos sobre propriedade escrava,
loterias, multas para quem desrespeitasse a lei e dotações dos orçamentos públicos. Criava a
matrícula obrigatória dos cativos, medida que visava ao maior controle fiscal sobre os proprietários. O
escravizado que não fosse matriculado poderia ser considerado livre pelas autoridades. Essa lei abriu
perspectivas importantes para os escravos alcançarem a alforria no âmbito da legalidade. Ampliaram-
se as possibilidades de alianças de escravos com setores diversos da sociedade que poderiam ser
mobilizados em favor das ações de liberdade. Segundo Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da
liberdade, p. 51: “No final da década de 1870, os escravos perceberam que muitas autoridades
judiciais se estavam posicionando claramente em favor de suas demandas, impedindo a venda para
outras províncias dos que tinham pecúlio, concedendo alforrias aos que não eram resgatados nas
cadeias públicas, decidindo o valor das alforrias por valores mais baixos que o pretendido pelos
senhores. A partir da década de 1870, intensificaram-se as fugas de escravos dos engenhos para
Salvador, com o objetivo de acionar as autoridades judiciais nas contendas com os senhores. Assim
o faziam na certeza de que as autoridades judiciárias de seus distritos não eram suficientemente
independentes para acolher seus pleitos”.
248
40
Sidney CHALHOUB, Visões de liberdade, p. 180-181.
249
encontrarem livres antes desta data, ela não deixou de se fazer importante, o que,
para nós, implica em fazer algumas reflexões a respeito deste momento.
41
Hebe Maria MATTOS, Das cores do silêncio, p. 127.
250
âmbito pessoal, uma vez que há significados culturais a respeito dos significados da
liberdade naquela sociedade:
Em contrapartida a tudo isto, temos que ter claro que a liberdade era uma
causa dos africanos e dos afro-descendentes, uma luta que tinha significados
especialmente populares, no sentido de que eram elaborações culturais próprias,
forjadas na experiência do cativeiro. Essa luta não permanece embotada, marginal e
enfumaçada, mas se apresentava vigorosa e saudável. Aquilo que ainda não esteve
ciente foi tornado consciente quanto ao seu ato, de que é uma emergência, e ciente
quanto ao conteúdo, daquilo que está emergindo. Tinham a seu favor algo que ainda
seria do tipo que podia ser esperado, isto é, que não girava nem se perdia em torno
de uma possibilidade vazia, mas antecipava psiquicamente uma realidade possível.
Obter a alforria tornou-se utópico, pois ela era uma forma dos escravizados forçarem
o esfacelamento do sistema, ao mesmo tempo em que obtê-la implicou em uma
mudança de posição social, além de restituir ao africano e afro-descendente o seu
direito de ser livre, portanto cheio de esperança. Apesar de muitos serem livres
antes da abolição da escravidão, tal fato não passou desapercebido.
44
Hebe Maria MATTOS, Das cores do silêncio, p. 33.
252
45
Segundo Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, em Memórias do cativeiro, após a chegada maciça de
escravos de origem bantú nas décadas de 1830 e 1840, a região conheceu uma relativa estagnação,
predominando, ao final do período escravista, comunidades escravas antigas e estabilizadas. Ambas
as regiões no Vale do Paraíba fluminense conheceram um grande afluxo de africanos de língua
bantú, na fase ilegal do tráfico de escravos no Brasil (1831-1850), que coincide com a primeira fase
da expansão cafeeira no Estado. Práticas culturais de origem bantú, especialmente o jongo e o
caxambu são revalorizadas. Num contexto de legitimação dos direitos de posse da terra, reforçam-se
os elementos que delimitavam as fronteiras dos grupos em relação à sociedade envolvente.
46
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 128.
253
sobreviver com mais independência. Era imperativo redefinir o lugar dos libertos na
divisão social de trabalho, porém os senhores queriam mantê-los como força de
trabalho disponível à grande lavoura, muitas vezes, empenhando-se em dificultar o
acesso dos libertos às atividades que garantissem alguma independência em
relação à lavoura de cana.
48
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 319.
255
O que estamos querendo dizer com isto é que por maior que fosse a violência
sofrida durante a escravidão e por mais que houvesse a divisão de parentes
consangüíneos, os grupos de escravizados não eram aglomerados de indivíduos,
mas pessoas que produziam e reproduziam coletivamente comportamentos que os
ajudavam a lidar com os fatos sociais dentro de determinado contextos histórico, o
que colaborava para a construção comunitária. Formavam-se alianças interpessoais
e pequenos grupos dentro de um espaço social de convívio. Tal fato implicava em
uma interação entre identidades de pertença diferenciadas, seja em relação às
tradições, seja em relação ao local de nascimento. Acontece que tal interação
implicou também em um compartilhamento de tradições, produzindo um conjunto de
crenças e de práticas rituais, bem como a reativação de aspectos das mesmas que,
até então, encontravam-se inconscientes.
51
Carlos ENGEMANN, De laços e de nós, p. 55.
52
Ibid., p. 105.
257
Uma das diversas abordagens possíveis para a vida comunitária e sua função
no cativeiro é de que, por meio da construção de um ethos comunal,
constroem-se igualmente os significados fundamentais da articulação e da
apreensão do mundo, intra e extra-plantation. Vale dizer que, como
instrumentos que transcendem as dimensões pessoais, os signos e a sua
imediata associação a significados são, por si só, uma atividade coletiva,
comunal. No caso específico da vida cativa, a comunhão de símbolos (verbais
ou não) e de sentidos seriam uma parte fundamental no suporte à vida,
permitindo apreender as experiências vividas, quer no âmbito imediato da
escravidão, quer além dela. A apreensão do vivido seria o primeiro passo
para expandir o alcance da sua capacidade de administração do mesmo.
Com isso, postulamos que não só os escravos eram capazes de
compreender o mundo colonial que os cercava e articular-se com ele, tirando
o máximo de proveito de suas esquálidas possibilidades, mas o faziam
melhor quando vivendo em um grupo articulado como uma comunidade.
Desse modo, a possibilidade de estabelecer uma comunicação singular e
criar significados próprios era uma das vantagens da vida comunal cativa.
Não apenas a geração de significados de usos cotidianos, mas, e
principalmente, o poder de gerar sentidos para a sua própria existência.53
53
Carlos ENGEMANN, De laços e de nós, p. 139-140.
54
Sidney CHALHOUB, Visões de liberdade, p. 244.
258
No primeiro caso, o cultivo das roças emergiu como uma das dimensões
perenes dos significados da liberdade. Depois de abolida a escravidão, o acesso
contínuo às roças foi requisito fundamental da condição de liberdade. O cultivo das
roças representava a viabilização de espaços de autonomia em relação aos antigos
senhores: “... os libertos tentavam também legitimar posições conquistadas nos dias
que antecederam a abolição, quando abandonaram a lavoura de cana, expandiram
as áreas de cultivo e buscaram acesso livre aos mercados locais”56. Além da
ampliação de direitos costumeiros às roças, os libertos buscaram viabilizar a
sobrevivência em liberdade por meio do livre acesso aos mercados locais,
colocando o preço que quisessem no que era cultivado nas roças, garantindo,
assim, certa autonomia.
Percebemos, portanto, que a ligação com a terra tinha outros significados que
estavam para além do simples espaço físico. O território passou a ser visto dentro
deste contexto como uma localidade, como acontece dentro da tradição bantú: “O
vínculo com a terra serve de elemento concomitante à comunidade de sangue ou
parentesco. Existe uma participação análoga entre o grupo e a sua propriedade”59.
Segundo entrevista60 realizada em Maputo, as pessoas só vivem a tradição, pois
estão unidas conforme a localidade. Há um chefe da localidade, chamado régulo,
que é um chefe administrativo de todas as famílias deste lugar. Dentro dessa
localidade, existe algo que é comum a todos e ao mesmo tempo notamos que cada
família tem alguma coisa que a identifica através dos seus usos e dos seus
costumes, dando-lhes características próprias, inclusive no que diz respeito ao seu
aspecto religioso. A terra pertence à família: aqueles que morreram, aqueles que
vivem e aqueles que nascerão, nunca se reduzindo simplesmente aos vivos. Cada
lugar é singular e uma situação não é semelhante a qualquer outra, representando a
dimensão da fé, da comunidade e da identidade religiosa. Segundo Usarski:
58
Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro, p. 253.
59
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 147.
60
Cf. P., entrevista realizada pela autora, anotação em diário de campo, Maputo, 13/07/09.
61
Frank USARSKI, A geografia da religião, In: Frank USARSKI, O espectro disciplinar da ciência da
religião, p. 186.
261
62
Em Maputo, por exemplo, não há compra de terrenos. No caso, hoje em dia, as terras são doadas
pelo governo e mantidas por aqueles que nela habitam.
63
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
64
P. Raul Ruiz de Asúa ALTUNA, Cultura tradicional bantu, p. 156-157.
65
Ibid., p. 160.
262
A comunidade, que pode ser entendida como a família extensa, possui uma
estreita relação com o território dentro daquilo que chamamos de projetos de
liberdade. De qualquer forma, já observamos que houve a constituição da família
entre os africanos e os afro-descendentes que ocorria durante a escravidão.
Podemos, inclusive, afirmar que as famílias tiveram suas vivências e suas trajetórias
marcadas pela escravidão, mas, por outro lado a persistência daqueles que se
encontravam escravizados em se manterem unidos e se livrarem do cativeiro pode
ter sido uma das mais importantes ações deles no sentido de detonar o sistema
escravocrata e de adquirir a liberdade. Uma das razões foi que a família recuperou
aspectos importantes da tradição bantú, munindo-os de senso de coletividade, de
pertença e de identidade cultural. A família, enquanto comunidade, pode ser vista
mediante um eixo vertical e um eixo horizontal, como nessa tradição.
66
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 35.
263
67
Cf. Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro.
264
68
Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro, p. 169-170.
69
Ibid., p. 188.
70
Felizardo CIPIRE, A educação tradicional em Moçambique, p. 49.
71
Francisco Lema MARTINEZ, O povo macua e a sua cultura, p. 55.
265
73
Cf. Ana Lugão RIOS; Hebe MATTOS, Memórias do cativeiro.
74
Regina Célia Lima XAVIER, Religiosidade e escravidão, século XIX, p. 29.
75
Cf. Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade.
267
76
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 250.
77
Segundo P., entrevista realizada pela autora, anotação em caderno de campo, Maputo, 13/07/09, o
culto aos antepassados pode ser entendido da seguinte maneira: a cerimônia é chamada de
mhamba. A mhamba possui duas vertentes: 1) lembrar os defuntos; 2) realizar os sacrifícios.
A cerimônia de recordação dos defuntos tem como objetivo lembrar as pessoas da família que já
morreram. Inicialmente, a cerimônia mostra-se triste, depois se oferece comidas e bebidas, fazem-se
as limpezas das campas, há danças e cantos. É pedido a todos para rezarem, para prepararem
melhor os valores da contribuição, que pode ser dinheiro ou produtos. A preparação da cerimônia
dura aproximadamente dois ou três dias e essa preparação tem que ocorrer em paz, sem briga, por
causa dos nomes que cada indivíduo carrega. Se as pessoas vivas, com os mesmos nomes, não se
entendem significa que os defuntos do mesmo nome também estão em briga.
A cerimônia de sacrifício ocorre quando dentro da família não há paz. Alguns sinais são infertilidade,
desunião (desagregada, ninguém se interessa pelo outro), produção ou colheita ruim, doenças na
família. A família se junta para saber o que está acontecendo. Os defuntos falam que querem
mhamba. Há a necessidade de se fazer um sacrifico. Mata-se um animal. Os defuntos determinam
qual o tipo de animal, de que forma deve ser morto, onde deve ser feita a cerimônia. É uma
cerimônia, que diferente da outra, é cheia de prescrições, sendo que há a necessidade de que todas
elas sejam seguidas rigidamente. São muitos os mandamentos e só mediante a cerimônia, a família
terá paz novamente. Quem causa a falta de paz na família são os espíritos maus. Eles também têm
suas exigências. Por vezes, inclusive, exigem altares.
78
T., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
268
A adoção dos sobrenomes após a liberdade conferia aos africanos e aos afro-
descendentes uma identidade, que permitia o estabelecimento de relação entre
indivíduos e grupos dentro de um território, ao mesmo tempo em que possibilitava a
construção de relações livres. A questão da escolha do sobrenome tornou-se, então,
importante, pois os grupos de tradição bantú têm como base de sua religião o culto
aos antepassados, pessoas que tiveram uma existência histórica. Esse culto se
expressa através de uma adoração coletiva, submetida a ritos. No fundo, a religião,
para eles, é um assunto particular da família ou do grupo, que compõe a
comunidade. A homenagem aos antepassados faz-se necessária, pois existe a
crença de que os defuntos têm influência direta nas ações e na conduta do
indivíduo:
79
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 296. (O grifo é nosso)
80
Adriano Langa, ofm, Questões cristãs à religião tradicional africana, p. 15.
269
Uma das formas dos antepassados estarem presentes na vida dos vivos é
através do nome. Segundo Jahn81, como visto no primeiro capítulo, o nommo é a
força vital que produz toda a vida e que influencia as coisas por meio da palavra,
sendo que um ser vivo só se torna uma pessoa quando lhe é dado um nome. O
antepassado que tem o seu nome dado a alguém está vivo na família. É um protetor,
um defensor, especialmente com aquele que tem o seu nome, pois a ligação é mais
forte. É um sinal de respeito e de consideração com aquela pessoa que está morta.
Através do nome, a pessoa fica mais ligada à família. Quando se ofende o vivo, no
fundo, também se ofende o antepassado que carrega o mesmo nome. A paz dos
vivos também é a paz dos mortos. O nome tem uma marca, que marca a existência
da pessoa na terra. Portanto, ao se constituírem um nome, os escravizados
reformularam a constituição de suas identidades, recriando sua identidade cultural. A
adoção de um sobrenome também era algo importante, num processo no qual a
recomposição do nome próprio marcava o acesso à liberdade e à personalidade
jurídica, ao mesmo tempo em que identificava a sua linhagem e recuperava a sua
tradição. A constituição do nome trazia em si diversos significados sociais, políticos
e sociais. O nome e a identidade só podiam ser pensados em relação a uma
estrutura de rede, revelando-se a partir das suas próprias experiências sociais e em
relação ao contexto histórico no qual se inscreviam suas ações.
81
Cf. Janheinz JAHN, Muntu.
270
Podemos afirmar que havia uma concepção de mundo comum a grande parte
dos escravizados de tradição bantú, que representou uma força catalisadora, que
fazia parte da forma como eles enxergavam o mundo onde viviam. A religiosidade
permitia que eles se sentissem mais fortes e protegidos, bem como significasse a
experiência vivida; ao mesmo tempo em que foi capaz de conciliá-los, pois fazia
sentido dentro do grupo, independentemente das diferenças étnicas.
O que vemos foi que com o avançar da história, foi possível a recomposição
da religiosidade. Os aspectos não foram perdidos, foram ressignificados, se
concretizando e se explicitando, conforme as condições históricas e os produtos
culturais. Vemos que os projetos de liberdade e as mudanças identitárias trazidas
com eles possibilitaram a redefinição da religiosidade bantú tornando-a mais visível.
Essa religiosidade que se ocupou dos espaços deixados pelo sistema foi se
insinuando como uma religião. Apesar das dificuldades vividas e daquelas que
seriam enfrentadas pelos africanos e pelos afro-descendentes, podemos supor que
eles saíram deste grande processo de mudança fortalecidos, com condições de
antecipação e de esperança, já que cada vez mais foi possível se sentirem
vinculados a alguém e às suas próprias raízes.
84
Regina Célia Lima XAVIER, Religiosidade e escravidão, século XIX, p. 354.
272
Negro Rei1
Ayê / Ayê mãe África / Seus filhos vieram de longe /
Só pra sofrer / Ayê / Ayê mãe África / Todo
guerreiro / No seu terreiro / Sabe sua lei / E vai
coroar negro rei [x3] / Ayê, ayê, ayê / Ika adobale ô
/ Ika adobale a / Ika adobale a, ea / Mãe África /
Prende a tristeza meu erê / Sei que essa dor te faz
sofrer / Mas guarda esse choro / Isso é um tesouro /
Ó filhos de rei / O sol que queima a face / Aquece o
desejo mais que otin / O sal escorre no corpo / E a
dor da chibata é só cicatriz / Quem é que sabe
como será o seu amanhã / Qualquer remanso é o
descanso pro amor de Nanã / Esquece a dor
axogun / Faz uma prece a Olorun / Na força de
Ogun / Prende a tristeza meu erê / Sei que essa dor
te faz sofrer / Mas guarda esse choro / Isso é um
tesouro / Aos filhos de rei / Ayê yê yê, ayê yê yê /
Ayê yê yê, ayê yê yê / Ayê mamãe África, o meu ilê
1
Negro Rei, CIDADE NEGRA. Sinhá Moça. s.n. Som Livre, Rio de Janeiro, 2006, CD-ROM.
273
2
Até, porque, como sabemos, antes da Proclamação da República e da Constituição de 1891, não
havia liberdade religiosa no Brasil, sendo que a Igreja Católica era a única religião aceita
institucionalmente. Além disso, em relação às práticas religiosas africanas ou afro-brasileiras, vimos,
no capítulo terceiro, que dependendo do momento histórico, não era incentivado o seu
desenvolvimento, mas, sim, muitas vezes, desejada a sua extinção.
274
Por fim, entendemos que a religião é uma das expressões culturais através
das quais um grupo de determinada tradição dá sentido às experiências vividas.
Discutiremos, então, o surgimento da macumba e a formação da umbanda, como
ressignificações dos comportamentos rituais dos africanos e dos afro-descendentes
de tradição bantú, que existiram durante o período escravocrata, visando à
recuperação da doação de significado para aquilo que se vivia. Feito isto,
275
3
Cf. Lísias Nogueira NEGRÃO, Entre a cruz e a encruzilhada.
4
Os espaços urbanos negros não pertenciam tão-somente aos escravizados, já que as cidades
concentravam consideráveis populações de negros libertos e livres desde os séculos XVII e XVIII.
Segundo Hebe Maria MATTOS, Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, p. 59: “Em 1888, os
últimos cativos que tiveram sua liberdade reconhecida pela Lei Áurea – liberdade já conquistada de
fato nas fugas em massa e na incapacidade política e social de repressão do Estado Imperial – não
somavam mais que 700 mil almas entre milhões de afro-descendentes livres”. Tal afirmação, porém,
não descarta o fato de que se inaugurava neste momento histórico, uma nova forma de se viver e
uma nova sociedade, que requereu dos afro-descendentes vários modos de adaptação.
5
A Constituição Imperial de 1824 reconheceu os direitos civis de todos os cidadãos brasileiros,
diferenciando-os do ponto de vista dos direitos políticos em função de suas posses. O voto censitário
foi dividido em três gradações: cidadão passivo (sem renda suficiente para ter direito a voto), cidadão
ativo votante (com renda suficiente para escolher, através do voto, o colégio de eleitores) e o cidadão
ativo eleitor e elegível. Na terceira gradação, além do indivíduo ter renda suficiente, a ele era exigido
que não tivesse nascido escravo. Assim, os descendentes de escravos libertos, com renda, podiam
exercer plenamente seus direitos como cidadãos e súditos do Império, já aqueles escravos que
276
haviam sido alforriados não gozavam plenamente dos seus direitos. Tal fato gerou uma série de
conflitos e de lutas pela independência e por processos antidiscriminatórios. Porém, segundo Hebe
Maria MATTOS, Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, p. 23-24: “... a igualdade que se
reivindicava para os “cidadãos livres” não implicava – seja do ponto de vista das reivindicações
populares, seja como corolário lógico de sua formação com base no pensamento liberal – qualquer
proposição efetiva a favor da abolição imediata da escravidão”.
6
Segundo Andreas HOFBAUER, Uma história do branqueamento ou o negro em questão, p. 150: “A
carta de alforria, portanto, não provocava um rompimento com as estruturas de domínio; não era
garantia de uma “vida em liberdade”. O Brasil escravista não permitia a existência de um “cidadão
livre”. A sociedade era marcada por laços de dependência, de lealdades, de poder patrimonial. O
liberto não constituía a antítese do escravo, mas apenas um – possível – passo em direção à
diminuição da exploração direta, uma precondição para ocupar uma posição menos desprivilegiada
no jogo de manipulação dos laços de pertencimento. Tampouco a afirmação de uma autonomia
individual era possível ou desejável para os senhores. Como todas as sociedades escravistas, o
poder era, também no Brasil, construído a partir de laços de lealdade e de pertencimento”.
7
Hebe Maria MATTOS, Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, p. 30-31.
277
da escravidão, seja pela Igreja Católica, seja pela elite brasileira, como visto no
terceiro capítulo. O que se observou foi que, depois da formação da primeira
constituição brasileira, algumas classes de cidadãos podiam reivindicar a sua
liberdade, no nosso caso, os escravizados crioulos. Porém, esta reivindicação surtia
pouco efeito, já que os grupos mais conservadores ainda se pautavam nas
hierarquias sociais tradicionais.
8
Célia Maria Marinho de AZEVEDO, Abolicionismo, Estados Unidos e Brasil, uma história comparada
(século XIX), p. 165-166. (O grifo é nosso)
278
9
Na fase inicial da expansão européia, o conceito negro trazia consigo conotações ético-religiosas,
que se expressavam também em interpretações geográfico-climáticas acerca das origens das
diferenças. A fusão da idéia de negro com a de escravo assumiria um papel ideológico importante no
contexto da colonização do Novo Mundo. As relações entre senhores e escravizados faziam parte de
um modelo de pensamento mais amplo, que tinha como base a idéia de uma ordem hierárquica do
universo entendido como expressão da vontade divina. No Brasil acreditava-se que a transformação
das cores em direção ao branco era uma questão de tempo. Assim, a idéia de branqueamento
incentivava a crença de que as futuras gerações pudessem superar a condição de inferioridade. Além
disso, também havia uma identificação entre posição social elevada e cor branca, que também
associava o branco à pureza divina. Segundo Andreas HOFBAUER, Uma história do branqueamento
ou o negro em questão, p. 177: “... a disseminação, inclusive entre os “não-brancos”, de um ideal que
hoje chamamos de “branqueamento”: um ideário historicamente construído (uma “ideologia”, um
“mito”) que funde status social elevado com “cor branca e/ou raça branca” e projeta ainda a
possibilidade de transformação da cor de pele, de “metamorfose” da cor (raça). Ao atuar como
interpretação do mundo (das relações sociais), esta construção ideológica foi fundamental para a
manutenção da ordem social. Chamar a atenção para a cor de pele escura (ou “traços raciais
negróides”) de alguém era uma grave ofensa, sobretudo para aqueles que buscavam ascender
socialmente. Enquanto as palavras “negro” e “preto” estavam intrinsecamente associadas à vida
escrava, a cor branca estava ligada ao status de “livre””.
10
Célia Maria Marinho de AZEVEDO, Abolicionismo, Estados Unidos e Brasil, uma história
comparada (século XIX), p. 177.
279
11
Célia Maria Marinho de AZEVEDO, Abolicionismo, Estados Unidos e Brasil, uma história
comparada (século XIX), p. 187.
280
Após este breve relato sobre a situação dos africanos e dos afro-
descendentes antes de 1888 e da postura do movimento abolicionista, vamos a
seguir observar o posicionamento favorável ou contrário à escravidão, a partir de
quatro grandes grupos: a Igreja Católica, as elites agrárias, os abolicionistas e os
escravizados, que constituíam forças sociais divergentes e desiguais no pré-
abolição. Didaticamente, tanto a Igreja Católica quanto as elites brasileiras
posicionavam-se a favor da manutenção da escravidão, enquanto que os
abolicionistas e os negros escravizados insistiam no seu término.
12
Célia Maria Marinho de AZEVEDO, Abolicionismo, Estados Unidos e Brasil, uma história
comparada (século XIX), p. 198.
13
De forma pioneira, foi a Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, que falou
sobre o fato de todos os homens nascerem livres e iguais, com direito à vida, à liberdade e à busca
de felicidade. Esta é a primeira vez que a noção de cidadania é definida em termos práticos, no bojo
das revoluções liberais.
14
Cf. BÍBLIA SAGRADA, Edição Pastoral, Gênesis.
281
15
Também ao final do século XIX, a formulação da idéia de nação baseou-se na idéia de raça. Tal
idéia deu margem ao racismo, enquanto um termo que afirma que existe uma desigualdade entre as
raças humanas, partindo do pressuposto que a cultura é determinada biologicamente. A idéia de raça
construída sobre hierarquias denotando desigualdade dominou o pensamento social em muitos
lugares. O respaldo científico dado às doutrinas raciais vigentes na passagem para o século XX
remete à sua ideologia para fins políticos. O darwinismo social radicalizou o primado das leis
biológicas na determinação da civilização, afirmando que o progresso humano é um resultado da luta
e da competição entre as raças, vencendo os mais capazes ou aptos, no caso, os brancos, porque as
demais raças, especialmente os negros, sucumbiriam à seleção natural e social. Segundo Giralda
SEYFERTH, Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e
colonização, in: Márcio Choz MAIO; Ricardo Ventura SANTOS (org.), Raça, ciência e sociedade, p.
43: “Guardadas as diferenças de interpretação, todas elas tinham em comum o dogma de que a
diversidade humana, anatômica e cultural, era produzida pela desigualdade das raças; e a partir
deste dogma, produziram-se hierarquias raciais que invariavelmente localizavam os europeus
civilizados no topo, os negros “bárbaros” e os índios “selvagens” se revezando na base, e todos os
demais ocupando posições intermediárias”.
282
... houve mudança para que tudo permanecesse como dantes: os libertos no
Brasil não puderam contar com nenhuma política de restituição de cidadania
para que se dessem condições de sua inclusão na sociedade mais ampla,
mesmo porque a estrutura agrária havia ficado preservada. Os abolicionistas
também pouco puderam promover qualquer tipo de ajuda aos libertos: eram
tempos de convulsão política no país e não havia mesmo a consciência moral
no movimento como um todo.17
20
A imigração italiana ocorreu a partir da década de 1880 e continuou até a eclosão da Primeira
Guerra Mundial e, depois, foi retomada no início da década de 1920. O Brasil emerge,
temporariamente, como a principal zona de imigração no final da década de 1880, com a abolição da
escravidão e a utilização de trabalhadores italianos nos campos de café de São Paulo. A escolha do
local de imigração foi o mercado de trabalho existente, pois cada economia local apresentava
incentivos diferentes. Como incentivos podemos destacar: 1) disponibilidade de terras; e 2) planta
industrial incipiente e nova expansão urbana concomitante. Os imigrantes que chegaram ao Brasil
rapidamente ingressaram na classe de proprietários de terras, poupando dinheiro, mesmo havendo
situações de exploração dos trabalhadores subsidiados e de experiências negativas por parte das
famílias. Um contrato de cinco anos rendia dinheiro suficiente para comprar terras no país. De acordo
com o censo de 1920, eles possuíam 5,5% das fazendas do país, mesmo representando 1,8% da
população total e constituía a maioria dos proprietários estrangeiros, quase metade do total.
Concentravam-se nos estados mais ricos: São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Em 1923,
18,3% dos pés de cafés em estágio de produção na zona cafeeira de São Paulo eram possuídos por
italianos e 31,5% pelo total de estrangeiros. Em 1932, tinham elevado sua taxa de propriedade para
22% do total de pés de café naquela zona. No censo agrícola de 1924, os italianos possuíam 24%
das fazendas de São Paulo e produziam 21% do café do estado, época em que sua participação na
população total não passava de 5%. Uma das primeiras pesquisas industriais feitas em São Paulo,
em 1911, concluiu que havia mais de 50.000 trabalhadores industriais no estado, quase todos
italianos. Em 1911, 59% dos 10.204 trabalhadores têxteis de São Paulo eram italianos natos. Fica
evidente que os italianos tiveram um papel predominante na nova e poderosa estrutura industrial e
comercial que estava se estabelecendo. Uma pesquisa na década de 60 mostrou que imigrantes
estrangeiros da primeira, segunda e terceira gerações e seus herdeiros dirigiam 80% destas firmas.
Quando se consideraram os proprietários de empresas industriais com 100 trabalhadores ou mais,
mais uma vez a origem italiana predominou sobre qualquer outro grupo, com uma participação em
35% do total de firmas. Cf. Hebert S. KLEIN, A integração dos imigrantes italianos no Brasil,
Argentina e Estados Unidos, Novos Estudos do Ceprap. Como podemos observar o incentivo à
imigração foi um dos fatores que colaborou para a dificuldade de inserção do negro no mercado de
trabalho, cabendo aos negros subempregos, empregos domésticos, ou, mesmo, a inatividade.
21
Ângela Randolpho PAIVA, Católico, protestante, cidadão, p. 108-109.
284
22
Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm. Acesso em: 19
mar 2010
23
George Reid ANDREWS, Negros e brancos em São Paulo (1888-1988), p. 78.
285
apontava para uma pequena participação política dos africanos e dos afro-
descendentes.
surgia nas margens e nos interstícios deixados pela cultura dominante, em uma
situação de cunho privado ou de resistência. Imbuído do desejo de se tornar um
cidadão pleno, agora, os indivíduos de tradição bantú buscavam meios de mostrar
suas diversas facetas distanciando de sua conduta e de sua condição a identidade
de escravizado. Mesmo quando é chamado de liberto, o que serve de modelo para
sua identidade ainda é a identidade de escravizado, mas, agora, na sua outra
polaridade. Tal como escravizado e senhor, escravizado e liberto, outra categoria de
definição de identidade começou a se insinuar:
Uma vez que reconhecemos que “raça” e também “negro” e “branco” não são
“dados naturais”, mas “construções sociais” que estão ligadas e se articulam
como “idéias culturais” que têm sido usadas como critérios de inclusão e
exclusão, reivindico que deveríamos tratar tais conceitos também como parte
integrante importante da história da discriminação, isto é, como elementos
ideológicos fundamentais da história do racismo.24
24
Andreas HOFBAUER, Uma história do branqueamento ou o negro em questão, p. 25-26.
25
Interessante notar, segundo afirma Hebe Maria MATTOS, Escravidão e cidadania no Brasil
monárquico, p. 16-18: “A própria construção da categoria “pardo” é típica do final do período colonial
e tem uma significação muito mais abrangente que a noção de “mulato” (este, sim, um termo de
época diretamente ligado à mestiçagem) ou mestiço que muitas vezes lhe é associada. Na verdade,
durante todo o período colonial, e mesmo até bem avançado do século XIX, os termos “negro” e
“preto” foram usados exclusivamente para designar escravos e forros. Em muitas áreas e períodos,
“preto” foi sinônimo de africano, e os índios escravizados eram chamados de “negros da terra”.
“Pardo” foi inicialmente utilizado para designar a cor mais clara de alguns escravos, especialmente
sinalizando para a ascendência européia de alguns deles, mas ampliou sua significação quando se
teve que dar conta de uma crescente população para a qual não era mais cabível a classificação de
“preto” ou de “crioulo”, na medida em que estas tendiam a congelar socialmente a condição de
escravo ou ex-escravo. A emergência de uma população livre de ascendência africana – não
necessariamente mestiça, mas necessariamente dissociada, já por algumas gerações, da experiência
mais direta do cativeiro – consolidou a categoria “pardo livre” como condição lingüística necessária
para expressar a nova realidade, sem que recaísse sobre ela o estigma da escravidão, mas também
sem que se perdesse a memória dela e das restrições civis que implicava. (...) Era, assim, condição
287
Havia, portanto, a idéia de que o Brasil teria uma raça, um tipo ou um povo
nacional. Os imigrantes tinham um papel adicional para a formação desse povo:
contribuir para o branqueamento da nação e submergir na cultura brasileira através
de um processo de assimilação. Já em 1850, esta idéia se encontrava presente no
discurso nacionalista brasileiro, que privilegiou a questão da miscigenação. A
miscigenação foi vista como um mecanismo da nação e a base de uma futura raça
histórica brasileira, de um tipo nacional, resultante de um processo seletivo
direcionado para o branqueamento da população. Tal assunto foi obrigatório na
discussão da política imigratória, pois estava relacionada com a colonização, no
caso, a ocupação do território.
noção paradigmática usada para conceituar grupos humanos, mesmo que não tivesse sido definida
com precisão. A partir da segunda metade do século XIX, a categoria raça ganhou um conteúdo que
independia de contextos geográficos e climáticos. Estava baseada em um ideário biológico ou tinha
como referência estágios de evolução. A degeneração é de natureza biológica, uma impureza racial,
que teria surgido como resultado do cruzamento entre duas raças essencialmente diferentes. Com
este relato, é possível afirmar que Andreas HOUFBAUER discorda da idéia de que o branqueamento
é fruto de uma reação ao fim da escravidão. Para ele, a escravidão e o branqueamento podem ser
entendidos como fenômenos que se complementavam. O branqueamento não é uma idéia brasileira
formada na virada do século XIX para o XX, mas o ideário de se transformar negro em branco
perpassou longos períodos históricos. Na cor branca seriam projetados, ao longo do tempo, além de
valores religiosos e morais, outros ideais, tais como liberdade e progresso civilizatório. Ao mesmo
tempo em que esse ideário refletiu os anseios e os interesses das elites, ele também tem sido
respaldo no imaginário popular.
28
Andreas HOFBAUER, Uma história do branqueamento ou o negro em questão, p. 198.
289
Em parte alguma do Brasil este esforço para europeizar o país foi maior que
em São Paulo, e em parte alguma do Brasil seus efeitos foram mais
fortemente sentidos. Um maciço programa estatal para subsidiar a imigração
européia para o Estado resultou em que mais da metade dos europeus que
vieram para o Brasil durante a República, veio para São Paulo. Entretanto,
além do objetivo de europeizar o Estado, o principal propósito do programa
era reverter as conseqüências econômicas da “revolução” da abolição e
restaurar o controle do proprietário de terras sobre a força de trabalho. No
29
Giralda SEYFERTH, Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de
imigração e colonização, in: Márcio Choz MAIO; Ricardo Ventura SANTOS (org.), Raça, ciência e
sociedade, p. 46.
30
Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm. Acesso em: 19
mar 2010
290
31
George Reid ANDREWS, Negros e brancos em São Paulo (1888-1988), p. 91.
32
Giralda SEYFERTH, Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de
imigração e colonização, in: Márcio Choz MAIO; Ricardo Ventura SANTOS (org.), Raça, ciência e
sociedade, p. 56-57.
291
33
Homi K. BHABHA, O local da cultura, p. 167.
34
Cf. Paula MONTERO, Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil, Novos Estudos.
292
35
Segundo Sandra Rita MOLINA, Na dança dos altares, Revista de História, p. 117: “Entretanto,
sobretudo a partir do século XVIII, cada vez mais se delineou um conflito intenso entre o Estado e a
Igreja, que se deparava com as idéias de construção de um mundo no qual sobrava pouco espaço
para as verdades reveladas e negavam-se a fé e a religião como único caminho para a construção do
saber. Passava-se à edificação racional do Estado e de sua plena soberania em relação à Igreja. O
Estado moderno traz embutido em si as idéias de nascimento de uma nova moral, a moral do homem
que construiu o Estado e, portanto, a necessidade de criação de uma ética nacional que fosse
racionalizada, separada da teologia. A teoria moderna do Estado apoiou-se na tese dos três poderes
– legislativo, executivo e judiciário – e das relações entre eles. Uma vez reduzido o conceito de
Estado ao de política, e o conceito de política ao de poder, a questão mais importante a ser resolvida
dizia respeito à possibilidade de se diferenciar o poder político de todas as outras formas que a
relação de poder assumia”.
36
Cf. Ibid.
37
Paula MONTERO, Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil, Novos Estudos, p. 50.
38
O que podemos perceber pelos dados trazidos pelos processos-crimes antigos é que o combate à
feitiçaria e ao curandeiro ocorria já nos séculos XVIII e XIX dentro da Igreja Católica no estado de
São Paulo. Podemos fazer uma inferência no sentido de pensar que, anteriormente, tais práticas
293
O que mais uma vez podemos perceber é que aquilo que se encontrava
associado aos africanos e aos afro-descendentes, portanto, pessoas que pertenciam
à raça negra, como se convencionou chamar no início do século XX, estava excluído
da construção do Estado Moderno, marcado por idéias iluministas, sendo assim, um
estado secular. A religião, ou melhor, a Igreja Católica, estando separada do Estado
e recolocada dentro da ordem pública, deu possibilidade de que novas religiões
institucionalizadas pudessem se formar, se manter e se expressar. Porém, o que
assistimos foi que essa possibilidade também foi negada à população africana e
afro-descendente, caso desejassem recuperar a sua tradição. Aquilo que
religiosamente estava associado à matriz africana – curas, adivinhações, feitiçarias,
danças, cantos, batuques, possessões – deixou de ser crime condenado pela Igreja
Católica para se tornar um crime diante da sociedade civil39.
estavam associadas ao demônio e à magia negra e que, com a República, tais práticas
representavam um tipo de retrocesso para a Modernidade pretendida.
39
Segundo João José REIS, Domingos Sodré, p. 87-88: “Trazidos para o Brasil à força como
escravos, uma vez alforriados, africanos como Domingos Sodré viravam estrangeiros, sem direitos
que tinha o cidadão brasileiro ou mesmo aqueles estendidos aos alforriados nascidos no país. A
Constituição Imperial de 1824 não lhes permitia participar da vida política do país. Não podiam votar
ou ser eleitos para qualquer cargo, nem exercer ocupações no aparelho governamental em qualquer
nível”. Ainda segundo Ibid., p. 142: “No Brasil imperial, as práticas religiosas de matriz africana
existiam em uma espécie de limbo jurídico. Não eram consideradas religião pelas autoridades e
portanto passíveis de serem toleradas, conforme rezava a Constituição. O linguajar hegemônico –
das autoridades civis e eclesiásticas, e da imprensa, por exemplo – as tinha na conta de superstição
ou feitiçaria. Mas essas formas de ver e atuar no mundo tampouco constituíam crime segundo o
Código Criminal do Império, ao contrário do que ocorria na antiga colônia sob a legislação inquisitorial
e outras leis eclesiásticas e civis. Tinha o código imperial um capítulo que punia “ofensas à religião e
aos bons costumes” (mas só “sendo em lugar público”) e outro que proibia “ajuntamentos ilícitos”,
porém não explicitava que cerimônias religiosas de qualquer natureza fossem ofensivas ao
catolicismo ou ilícitas, menos ainda as consultas individuais de adivinhação e outros rituais privados”.
294
40
Walter FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade, p. 355.
296
41
Andreas HOFBAUER, Uma história do branqueamento ou o negro em questão, p. 212-213.
42
Cf. Renato ORTIZ, A morte branca do feiticeiro negro.
297
A formação de uma nova religião podia apontar para esta tentativa, no sentido
de que, naquele momento, os indivíduos de tradição bantú se percebiam, às voltas,
com a possibilidade de viverem a liberdade dentro da lógica que melhor lhe
conviesse, fato que deveria ter ocorrido com a Abolição da Escravidão. Como tal fato
não aconteceu, buscou-se uma nova forma de resgate da própria tradição, através
de uma tentativa religiosa: a formação de uma nova religião. Novamente, podemos
pensar que há, implicitamente, uma tentativa de modificação de identidade. Se a
identidade se constrói na atividade, a tentativa dos indivíduos de tradição bantú era
adquirir uma nova identidade não mais pautada na escravidão, mas em outras
bases. Neste sentido, a religião pode ser apontada como uma possibilidade utópica.
43
Sidney CHALHOUB, Visões de liberdade, p. 80. (O grifo é nosso)
44
Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 22.
298
O que se buscava era um mundo mais adequado a eles. Porém, este mundo
só estava em curso para aquele que tinha o novo diante de si: o que importava não
era aquilo que foi, mas aquilo que se situava na linha de frente. Assim sendo, a
esperança é entendida, pelo autor, como um afeto expectante, ou seja, algo que
possui uma intenção desejante de amplo alcance, ao mesmo tempo em que aquilo
que se deseja não está disponível e não é acessível, o que acarreta ainda a dúvida
de sua finalização ou de sua ocorrência:
45
Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 26.
46
Ibid., p. 77.
299
47
Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 95-96.
48
George LAPASSADE; Marco Aurélio LUZ, O segredo da macumba, p. 75.
300
49
Afonso Maria Ligório SOARES, Diálogo na escola de François de L’Espinay: catolicismo e tradições
africanas, Revista Eclesiástica Brasileira, p. 604.
301
Uma vez que o negro seja camponês, artesão, proletário, ou constitua uma
espécie de sub-proletariado, sua religião se apresentará diversamente ou
exprimirá posições diversas, condições de vida e quadros sociais não
identificáveis. O que complica a questão é que essa religião sofreu não só a
influência dessas variações da estrutura social, mas, também, da pressão
cultural do europeu branco, católico e da dupla política seguida pelo Estado
português, representado por seus governadores, e da Igreja Católica
Romana, representada por seus monges mais que por seus capelães de
engenho ou curas das paróquias. Isto faz com que as superestruturas, as
representações religiosas como os símbolos da mística, os valores culturais
dos africanos ou de seus descendentes se achem subordinados a uma dupla
influência: uma no mesmo nível, a das representações coletivas dos cristãos,
dos símbolos culturais europeus, dos valores portugueses e, a outra, em nível
diferente, a das modificações morfológicas das estruturas, organizadas ou
não. (...) Da mesma forma, a religião africana tendeu a reconstituir no novo
habitat a comunidade aldeã à qual estava ligada e, como não o conseguiu,
lançou mão de outros meios; secretou, de algum modo, como um animal vivo,
sua própria concha; suscitou grupos originais, ao mesmo tempo semelhantes
e, todavia diversos dos agrupamentos africanos.50
50
Roger BASTIDE, As religiões africanas no Brasil, p. 31-32. (O grifo é nosso)
302
Bastide faz uma distinção entre o que ele denomina macumba rural52 e o que
chama de macumba urbana. Interessa-nos a macumba urbana, já que ela é uma
expressão religiosa que se forma nos centros urbanos, como São Paulo, que
iniciaram seu processo de expansão após a Abolição da Escravidão, dando origem,
mais tarde, através dele à umbanda. O surgimento da macumba urbana, para o
autor, está ligado ao processo de industrialização do país, que se operava em um
ritmo cada vez mais rápido. Como já colocado em nota neste capítulo, esta indústria
permaneceu limitada até 1913, mas as guerras obrigaram os brasileiros a criar
indústrias para aquilo que antes era importado, fazendo com que cada vez mais a
mão-de-obra saísse do campo. A industrialização poderia ter oferecido ao indivíduo
de tradição bantú um meio de vida e um canal de ascensão social, mas foram
batidos pela concorrência econômica do branco pobre e do imigrante:
51
Cf. George LAPASSADE; Marco Aurélio LUZ, O segredo da macumba.
52
Os negros pertencentes à macumba rural normalmente são de classe baixa, uma classe
socialmente desorganizada, porém não se pode dizer que a desorganização social se traduza em
uma desorganização das crenças. São as crenças que constituem o único laço de integração no meio
rural onde eles viviam, que lhes fornecem um status e um papel e que lhes asseguram certa
segurança e certo reconhecimento por parte das pessoas que os rodeiam. A macumba rural é
individualista, constituindo-se em uma série de consultas, não representando um culto organizado,
tornando-se o ponto de partida de grupos de crentes. Essas reuniões tendem a assumir a forma do
que se chama baixo espiritismo, caracterizado pela manipulação da corrente – cabocla, africana e
branca. Cf. Roger BASTIDE, As religiões africanas no Brasil.
304
O que Bastide deixa claro é que a macumba preservava tradições bantú, mas
não possuía uma eficácia no que se refere à inserção social do grupo de indivíduos
de tradição bantú. A umbanda, por sua vez, é uma reorganização social, uma
religião institucional, que possibilita a inserção social, mantendo algumas tradições
bantú, mesmo que sincretizadas e recriadas. Ressaltamos a questão da inserção
social, pois dentro de uma leitura bantú, a religião encontra-se inserida na vida
cotidiana, não havendo diferenciação entre as esferas pública e privada, religiosa e
social. Como exemplo, temos a seguinte fala:
53
Roger BASTIDE, As religiões africanas no Brasil, p. 406-407.
54
Ibid., p. 407. (O grifo é nosso)
305
Mas, por exemplo, vamos dizer assim, eu quero ficar rica aí eu vou lá no curandeiro.
Se é um bom curandeiro ele vai falar, vai dar uma bronca, vai brigar comigo.
Sim, sim, sim.
Se é um feiticeiro ruim ele vai me ajudar?
Vai te ajudar para aquilo que quer. Agora aquele bom curandeiro ele quando
fala: - Olha que eu estou a trabalhar, mas não sou rico com tanto, ele logo se
for bom curandeiro vai me dizer: cada um tem o seu dom. O senhor, você
nasceu da família Chichi, a sua família foi sempre família pobre, mas
agradece aquilo que tu tens, sim. Agora aquele ali: - Ah, eu quero ficar rico,
eu quero ficar assim, então vai trazer coisas ruins, então pra fazer isto, faça
isto, faça isto e aquilo ali, é por isso que muitos fazem e acabam perdendo
porque até pode ter algum tempo e chegaram algum tempo desaparecer tudo
que você tinha, porque aquilo ali não foi te dado de boa maneira, mas sim foi
roubar a alguém, então eles é que chamamos de feiticeiros mesmo.55
Para Bastide, a macumba chegou a ser um culto organizado, mas que passou
de algo coletivo para individual, neste caso, de religião à magia pelos seguintes
fatores: introdução de novas crenças mágico-religiosas trazidas pelo branco;
repressão física e moral da polícia; fluidez e pobreza dos sistemas míticos bantú58; e
condições sociais e culturais anômicas das sociedades industriais na primeira
década do século XX. Foi uma ressignificação da cabula, de caráter sincrético,
fusionando tradições iorubás, católicas e kardecistas em uma tradição bantú. Sua
diferença da umbanda se deu pelo seu caráter mágico e individual, enquanto que a
umbanda foi vista como uma religião que possuía um caráter coletivo. Além disso, a
macumba não respondeu às necessidades dos indivíduos de tradição bantú, sendo
necessária a formação de uma nova religião, no caso, a umbanda, que nasceu no
bojo de uma série de acontecimentos, uma vez que:
... esse marginalismo social não pode ser senão um momento de transição,
devido à exagerada rapidez das transformações do país. Com a
proletarização do negro, a assimilação do imigrante, o geral reerguimento do
nível de vida das massas, outros fenômenos vão aparecer, de reintegração
cultural e social; e nessa reestruturação, o que restou das religiões africanas
será por sua vez retomado e reestruturado para dar nascimento ao
espiritismo de Umbanda. 59
58
É importante notar que BASTIDE, como qualquer autor, é devedor do seu tempo. A afirmação de
que o sistema mítico bantú é fluído e pobre está baseada em uma idéia de pureza cultural, almejada
pelo autor, e também pelo fato dele tomar o candomblé como um modelo, a partir do qual as religiões
afro-brasileiras devem ser consideradas. Tudo isso para dizermos que discordamos da afirmação,
mas que, ao mesmo tempo, entendemos o contexto no qual ela foi proferida.
59
Roger BASTIDE, As religiões africanas no Brasil, p. 417. (O grifo é nosso)
60
Cf. Liana TRINDADE, Construções místicas e história; IDEM, Conflito social e magia.
307
Dentro deste contexto, a macumba foi vista como uma resposta a esta
situação. Para ela, a macumba foi composta por crenças e por ritos que se
relacionavam por meio de um processo sincrético, significando a predominância de
interpretação de uma forma de conhecimento em relação a outras formas. Existem
elementos bantú, tais como: a incorporação dos antigos calundus, o fechamento do
corpo, a cerimônia de evocação dos espíritos, o culto dos exus, a magia dos nós, o
jogo adivinhatório de búzios, o uso de ervas, o sacrifício de animais e as cerimônias
sob as árvores. Estes elementos somaram-se ao kardecismo que forneceu o ninho
cultural que possibilitou a introdução das entidades bantú através da incorporação61.
Para ela, os cultos de tradição bantú existiram desde o início do século XX, como
forma de reconstrução de heranças africanas no universo social urbano, muitas
vezes, operando fora da hegemonia branca:
61
Há algumas divergências a respeito da incorporação ou da possessão na tradição bantú, pois
alguns autores trabalham com a idéia de que ela não existia em África e passou a ocorrer apenas no
Brasil. Trabalharemos com mais cuidado este fato ainda neste capítulo, pois segundo relato de
nossos entrevistados em Maputo, a possessão individual já existia e ainda existe na África. Segundo
C., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09: “Curandeiro é medico
tradicional. Mas, por exemplo, me falaram que existe um tipo de curandeiro que só trabalha com ervas. É eu
estava a dizer que há aqueles curandeiros que não têm espírito que saem. Nós, na nossa língua
nativa, chamamos nhandarumi essas pessoas que não têm espírito que só trabalham na base de
erva, são nhandarumi, só conhecem assim como essa senhora que acaba de sair, aquela que eram
duas, a outra trabalha também, só que trabalha na base de ervas e não de incorporação de espírito,
mas ambos são curandeiros porque afinal de contas estão na mesma luta de curar pessoas doentes
ou que tenham problemas”.
62
Liana TRINDADE, Conflito social e magia, p. 177.
308
A autora nos aponta que tanto elementos iorubás quanto europeus foram
reinterpretados dentro da macumba, mediante uma leitura de mundo bantú. Em
função disso, a incorporação de exus na macumba se deu pela concepção bantú de
espíritos familiares ou associados à natureza e pela influência do kardecismo. Há
uma diversidade de espíritos de origens diferenciadas: espíritos de negros (pretos-
velhos) e espíritos de caboclos, caracterizando tipos sociais definidos. As entidades
foram interpretadas segundo o núcleo de significações da filosofia ou da
religiosidade bantú, organizadas em falanges, que compuseram as várias linhas,
que hoje se encontram presentes na umbanda. Destacaram-se na formação da
macumba três grandes linhas, como a autora relata: exus e pombas-gira, caboclos e
pretos-velhos. Para a autora:
63
Liana TRINDADE, Conflito social e magia, p. 192.
64
IDEM, Construções míticas e história, p. 192-193.
309
65
Paula MONTERO, Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil, Novos Estudos, p. 50.
66
Núbia Pereira de Magalhães GOMES; Edimilson de Almeida PEREIRA, Mundo encaixado, p. 191.
310
sobre o que oferece perigo e o que pode ser aceito como prática religiosa, os
repertórios de práticas pessoais construídos ao longo de suas trajetórias de
vida e as expectativas do público e dos concorrentes. Configuraram-se assim
“estilos” de culto derivados de determinadas combinações dos códigos
culturais disponíveis.69
71
Cf. Brígida Carla MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanências.
72
Do ponto de vista sociolingüístico, o Brasil colonial apresentava uma situação lingüística de
multilinguismo, segundo CUNHA-HENCKEL, em Tráfego de Palavras, p. 49: “... coexistiam três tipos
de línguas, oriundos de grupos bem diversos: as línguas autóctones dos índios que já habitavam o
Brasil à época da chegada dos portugueses; o português europeu, transplantado para o território
brasileiro pelos colonizadores; e as línguas africanas faladas pelos negros que começaram a ser
transportados como escravos já no século XVI, nos primórdios da colonização”. Vemos, aqui,
novamente, que mais uma vez no contexto lingüístico, podemos estabelecer uma analogia com a
formação da umbanda, que também trouxe em sua gênese estas três influências.
73
Paula MONTERO, Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil, Novos Estudos, p. 55.
74
Cf. Maria Helena Villas Boas CONCONE, Umbanda: uma religião brasileira.
313
podendo-se, até, afirmar que ela representou mais do que um sincretismo afro-
brasileiro, mas uma síntese brasileira, uma religião endógena.
75
Lísias Nogueira NEGRÃO, Entre a cruz e a encruzilhada, p. 37.
76
Cf. José Guilherme Castor MAGNANI, Umbanda.
77
Brígida Carla MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanência, p. 96.
314
78
Cf. Viveiros de Castro CAVALCANTI, Origens, para que as quero?, Religião e Sociedade.
79
Cf. Maria Helena Vilas Boas CONCONE, Umbanda: uma religião brasileira.
315
80
Liana TRINDADE, Conflito social e magia, p. 14.
316
Salvo Liana Trindade, o que observamos é que grande parte dos autores que
trabalha com a umbanda aborda, mesmo que de maneira sucinta, a influência
africana, principalmente quando se leva em conta o surgimento da umbanda logo
após a abolição da escravidão. Normalmente, esta influência é divida em dois
grupos africanos: bantú e iorubá, (representado pelo candomblé81). Nosso trabalho
se foca na influência bantú, sendo possível observar duas posições, de certa
maneira, antagônicas, quando se fala da origem da umbanda. Uma delas entende
que a umbanda nasceu de influências africanas, em especial a bantú82, como
colocado acima, tópico este que discorreremos a seguir.
81
Segundo Reginaldo PRANDI, Segredos guardados, p. 20-21: “O candomblé é o nome dado à
religião dos orixás formada na Bahia, no século XIX, a partir de tradições de povos iorubás, ou nagôs,
com influências dos costumes trazidos por grupos fons, aqui denominados jejes, e residualmente por
grupos africanos minoritários”.
82
Salvo este momento da origem, a influência africana, em especial a bantú, praticamente não é
abordada pelos autores, que trabalham a umbanda, e, se é feita, é feita de maneira superficial,
inconstante, espalhada por todo o texto, mas não sistematizada, como no livro Malugno de Bentto de
LIMA. No texto de LIMA, podemos observar que o autor faz afirmações como: os bantú trouxeram
para a umbanda a pemba, a arte mágica do Ku-funda, que significa riscar traços com argila branca,
vermelha ou carvão vegetal. “A pemba representa laços amistosos entre os vivos e os defuntos,
razão pela qual ela é usada na demarcação do centro sagrado, o ponto; para confirmar um
intercâmbio amigo” (Bentto de LIMA, Malungo, p. 82). Ou ainda: “A cultura banto, embora tenha feito
enormes concessões à nagô, forneceu, contudo, repito, o nome de ‘mb’nda’ – cujo significado
provável é, efetivamente, arte de curar e liderança, chefia – para designar o conjunto organizado de
crenças pan-africanos no Brasil” (Ibid., p. 226). O que vemos são intuições, que acabam não sendo
desenvolvidas. Cabe perguntarmos: a falta de aprofundamento da influência bantú na umbanda
ocorre por falta de conhecimento da história da africana e deste grupo em especial?
83
Cf. Marco Aurélio LUZ; George LAPASSADE, O segredo da macumba.
84
Ibid., p. xiii.
317
85
Marco Aurélio LUZ; George LAPASSADE, O segredo da macumba, p. 88.
86
Cf. Maria Helena Villas Boas CONCONE, Umbanda: uma religião brasileira.
87
Cf. Placide TEMPELS, La philosophie bantoué.
318
88
É importante ressaltar que durante o trabalho, quando falamos de cultura bantú, não estamos
falando de uma cultura pura. Entendemos que durante todo o processo de encontro com outras
culturas, este grupo fez negociações, que suscitaram em ressignificações culturais. Portanto, quando
falamos de grupos bantú, estamos falando de uma cultura que, desde o navio negreiro, passou por
transformações culturais. Uma discussão bastante interessante a respeito de pureza e de legitimação
pode ser vista em Maria Helena Villas Boas CONCONE, De símbolos e sua eficácia, de pureza,
identidade e legitimação, In: QUEIROZ, José J., A religiosidade do povo, p. 55-72.
89
Cf. Fernando BRUMANA; Elda MARTINÉZ, Marginália Sagrada.
90
A respeito do candomblé de caboclo, ver o texto de Jocélio Teles dos SANTOS, O dono da terra.
319
espíritos de mortos, que algum dia viveram como pessoas; ao mesmo tempo em que
a natureza deles é completamente diferente das pessoas comuns: são mortos que,
quando vivos, não foram de nosso mundo. Cabem as seguintes perguntas, a partir
da colocação dos autores: por que os dissidentes formariam um culto que
empregassem práticas estigmatizadas? A macumba e o candomblé de caboclo
vêem de onde? Para eles, ainda, como forma de lidar com o estigma, as raízes
negras foram dissimuladas, tornando a umbanda herdeira de tradições hindus (uma
tentativa de se desvincular das raízes africanas). Como se nota, tais autores não
fazem uma citação a respeito da influência bantú, entendendo que toda influência
africana na umbanda deve-se ao candomblé e é, conseqüentemente, resultado de
uma influência iorubá.
91
Cf. Renato ORTIZ, A morte branca do feiticeiro negro.
320
dialético, apesar de ter esta leitura da umbanda. No nosso entender, o autor explica
a umbanda “de fora” e não a partir dela mesma. Assim, ele não observa o
movimento interno da própria religião, necessitando abrir um instrumento de escuta,
que levasse em conta não apenas a mudança social, mas também a experiência dos
sujeitos religiosos, do adepto que se diz umbandista.
Mas ao resolver este problema o autor nos coloca outro, que diz respeito à
memória coletiva negra. Para ele, na passagem para o capitalismo, o africano e o
afro-descendente se viu subitamente como cidadão, não estando preparado para
assumir as novas tarefas propostas pela sociedade. O que se nota é que tal
afirmação não se sustenta mais, pois o que percebemos é que não foram dadas,
aos africanos e aos afro-descendentes, condições deles se fazerem cidadãos92,
como já vimos neste capítulo. Ainda para o autor, a abolição representou um
momento de desagregação do universo mítico afro-brasileiro e se deu, sobretudo, na
dominação simbólica do branco, que acarretou o desaparecimento ou a
metamorfose dos valores tradicionais africanos, que se tornaram inadequados a
uma sociedade moderna. A expansão da cidade destruiu a herança cultural africana,
que se conservara durante os séculos de escravidão:
92
Cf. Ângela Randolpho PAIVA, Católico, protestante, cidadão; Paula MONTERO, Religião,
pluralismo e esfera pública no Brasil, Novos Estudos.
93
Renato ORTIZ, A morte branca do feiticeiro negro, p. 29.
321
94
Renato ORTIZ, A morte branca do feiticeiro negro, p. 37.
95
É importante citar Viveiros de Castro CAVALCANTI, em Origens para que eu quero?, artigo no qual
o autor examina obras de outros pensadores dentre eles: Nina RODRIGUES (1935, 1945), Artur
RAMOS (1934, 1967), Édison CARNEIRO (1937, 1964, 1978) e Roger BASTIDE (1971, 1973) sobre
a questão das origens da macumba / umbanda, que normalmente são vistas como religiões de
segunda ordem, pois degradaram as raízes africanas, uma vez que ocorre o hibridismo. O que está
colocado é a questão da pureza e da degradação dos valores negros, discussões que são devedoras
de sua época. Para CAVALCANTI, RAMOS afirma que, quando se trata de umbanda, chega a ser
quase impossível falar sobre os elementos puros de origem por dois motivos: o veloz processo
sincrético ocorrido no Brasil e a influência bantú, que tem como uma de suas características centrais
a tendência à ampliação e à flexibilidade com relação a outras práticas religiosas, o que faz com que
o processo de sincretismo se desenvolva em condições favoráveis e, porque não dizer, desejáveis.
Apesar disso, é possível observar em sua obra o tema da sobrevivência de elementos culturais. A
umbanda formada em São Paulo foi constituída principalmente por grupos bantú, grupos que foram
trazidos para o Sudeste, que pela sua característica, citada acima, de flexibilização e de ampliação,
encontram-se em permanente expansão. Para CARNEIRO, o sincretismo entre os grupos bantú
ocorreu, pois eles possuem uma pequena consistência tanto à nível mitológico quanto ritual,
entendida como atrasada, inconsistente e frouxa. Já para BASTIDE, as religiões afro-brasileiras
formam-se e se transformam no Brasil, a partir de três fatos históricos: o tráfico, que busca destruir os
sistemas simbólicos das religiões africanas; a suspensão do trabalho servil; e o desenvolvimento da
industrialização e a conseqüente incorporação do negro à sociedade de classes. O candomblé é visto
como uma busca de preservação de um mundo comunitário, em contraposição à macumba que, por
sua vez, é vista como degradação e perda de valores tradicionais, que traz como conseqüência a
fluidez, a perpétua transformação e a primazia do individual sobre o coletivo. A umbanda mantém
características básicas da macumba, como a mutabilidade constante e a falta de filosofia, mas
valoriza o negro neste momento de urbanização. Segundo Ibid., p. 100: “[Bastide vê que]... a
umbanda é o resultado de um processo de eliminação, na tradição ancestral, do que está em
contradição com a sociedade moderna”. Por outro lado, BASTIDE percebe a umbanda como um
esforço para a homogeneização e para a criação de dogmas e de ritos, definindo-a como uma
ideologia religiosa. Há de se perguntar se essa heterogeneidade presente na umbanda, desde os
seus primórdios, não teria que ter sido abolida com o passar do tempo. Segundo Ibid., p. 100:
“Passaram-se décadas desde então, e o caráter heterogêneo da umbanda permanece – o
individualismo e a competição entre os terreiros reproduz-se a nível das federações. A umbanda, ao
322
aponta para a busca de uma religião pura, o que pressupõe não só uma hierarquia
de valores, que implica em inferioridade e em superioridade, mas também em uma
visão essencialista e evolucionista. Independente disso, a formação da macumba e,
posteriormente, o nascimento da umbanda representaram apenas uma degradação
da memória coletiva africana, uma vez que os autores tomam como paradigma da
memória africana apenas a cultura representada pelos grupos iorubá, pegando o
candomblé como exemplo de preservação da cultura africana. Os próprios autores
desconstroem suas afirmações, já que Carneiro96 aponta para uma continuidade,
que é pouco observada, e Bastide97, ao falar dos fatos históricos, deixa clara a
impossibilidade de se manter uma tradição pura, sem que ela sofra influências de
outras culturas. O que se observa é uma lógica imprimindo as características do
sincretismo e atuando de maneira seletiva com relação à incorporação de elementos
vindos do exterior. Toda religião, portanto, influencia e é influenciada pelo campo
religioso no qual se encontra inserida.
que tudo indica, não é uma ‘religião em busca de forma’, como a definiu Camargo (1961), mas uma
religião com uma forma particular, na qual heterogeneidade e fluidez constituem características
marcantes e compatíveis com a existência de um sistema simbólico estruturado”.
96
Cf. Edison CARNEIRO, Negros Bantus.
97
Cf. Roger BASTIDE, As religiões africanas no Brasil.
98
Cf. Lísias Nogueira NEGRÃO, Entre a cruz e a encruzilhada.
99
Cf. Liana TRINDADE, Construções míticas e história.
323
100
Lísias Nogueira NEGRÃO, Entre a cruz e a encruzilhada, p. 159-160. (O grifo é nosso).
324
Apesar de ser uma obra que não se propõe a ser um trabalho que encerre
aquilo que pode ser pesquisado sobre a umbanda em São Paulo, tudo leva a crer
que a forma como o autor apresenta seus dados, mostra que há mesmo,
implicitamente, a intenção de se fazer algo que esgote o estudo sobre a umbanda. A
obra tornou-se um clássico, fruto do seu próprio mérito e abrangência. O que
observamos é que falar de umbanda no cenário atual parece-nos ser uma tarefa
árdua, uma vez que, por vezes, temos a sensação de que, talvez, quase tudo já
tenha sido dito sobre ela pelo lugar que ocupou e ocupa durante cem anos101 de
existência no campo religioso brasileiro.
Após termos visto criticamente aquilo que alguns autores importantes falam a
respeito da relação entre tradição bantú e umbanda, apresentaremos, a seguir, a
forma como entendemos essa relação, tendo por guia a seguinte pergunta: a
umbanda pode ser considerada como uma utopia para os grupos de africanos e de
afro-descendentes de tradição bantú?
Löwy102 afirma que mesmo rejeitando a religião, Marx a via como uma
realidade social e histórica, percebendo o seu duplo caráter, isto é, ao mesmo tempo
em que é expressão da aflição do povo, ela também é um protesto contra esta
aflição. “Mas ela não era menos dialética, pois apreendia o caráter contraditório da
“aflição” religiosa: às vezes legitimação da sociedade existente, às vezes protesto
contra ela”103. Este movimento dialético da religião nos remete ao conceito de
101
Alguns autores, dentre eles, José Henrique Motta de OLIVEIRA, Das macumbas à umbanda,
trabalham com a idéia de que a incorporação do Caboclo das Sete Encruzilhadas pelo médium Zélio
de Moraes, em 1908, constitui o mito fundante da umbanda.
102
Cf. Michaël LÖWY, Marx e Engels como sociólogos da religião.
103
Ibid., p. 6.
325
religiosidade popular, nos dizendo que dentro dela encontramos a afirmação de que
suas fronteiras não são facilmente definíveis, sendo um fenômeno complexo,
construído socialmente, que carrega em si uma extrema variedade, vista na
formação das inúmeras culturas populares e nas suas expressões. A umbanda é um
fenômeno de religiosidade popular.
104
Lísias NEGRÃO, entre a cruz e a encruzilhada, p. 180.
105
Cf. Renato ORTIZ, Consciência fragmentada.
106
Renato ORTIZ utiliza o termo cultura popular. Porém, para este trabalho, estaremos usando o
termo religiosidade popular, entendendo que esse termo é uma das possíveis expressões da cultura
popular, que mesmo tendo diversos aspectos em comuns com a arte, o cordel, as danças, etc,
também possui as suas particularidades.
326
107
Boaventura de Sousa SANTOS, Pela mão de Alice, p. 323.
108
Cf. Marshall BERMAN apud Luis Carlos FRIDMAN, Por uma vida menos ordinária.
327
109
Marshall BERMAN, Aventuras no marxismo, p. 70.
328
Como naquele momento histórico não existia para estes indivíduos uma via
de emancipação, a umbanda, com todos os seus elementos, podia oferecer aos
bantú uma perspectiva comum, um sonho comum; uma tentativa de libertação da
condição de opressão e das dificuldades, uma vez que ela trazia consigo a
possibilidade de inserção social e direito à cidadania, através de uma mudança
identitária. Enquanto dimensão utópica, mais do que apenas reproduzir os valores
dominantes, a umbanda, para os grupos bantú, representou a possibilidade de
continuidade de determinada tradição, mesmo que de maneira ressignificada. Mais
do que ruptura, a umbanda foi uma tentativa utópica de continuidade de uma
tradição cultural, que há muito tempo tentava sobreviver, conforme visto em
capítulos anteriores.
Não [se] sabe viver à margem da sua comunidade. Nas grandes cidades,
agrupa-se com os indivíduos da sua família, clã ou tribo, e nunca se atreve a
romper os laços sagrados que o ligam à comunidade, que permanece no
interior. Fora da vida comunitária, a sua personalidade desorienta-se,
marginaliza-se com facilidade, traumatizando-se e dissolve-se no caos
religioso e moral. Tem que viver amparando e amparado. Sabe que a sua
vida não é exclusiva. Se ele se separa da comunidade, pode ser
amaldiçoado, caem sobre ele as mais graves acusações. O ódio dos
antepassados despeitados será implacável e a vingança dos vivos possível. A
comunidade toma represálias contra transgressores, profanadores e
anárquicos.112
110
Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 146.
111
Boaventura de SOUSA SANTOS, Pela mão de Alice, p. 316.
112
Jean Bastide MUNGUELE KIYUNGU, Dinamismo cultural bantu e religião, p. 69-70.
330
Esta utopia bantú, representada pela umbanda, foi uma tentativa de resgate
das estruturas de comunidade e de contato com os antepassados e apontou para a
continuidade e a historicidade da identidade, que são questionadas pelo imediatismo
e pela intensidade das confrontações culturais, já que na reconstrução: “... das
tradições africanas, preserva-se a temática central da cultura negra: o culto aos
ancestrais e a concepção de forças vitais como ordenadora dos símbolos e das
formas comportamentais, fornecendo sentido ao mundo social”113. Os confortos da
tradição são desafiados pela necessidade de se forjar uma nova auto-interpretação,
baseada nas responsabilidades da tradução cultural, ocorrendo a produção de
novas identidades:
113
Liana TRINDADE, Conflito social e magia, p. 150.
114
IDEM, Construções míticas e história, p. 79. (O grifo é nosso)
115
Cf. Ibid.
331
Segundo Jahn, os mortos não vivem, mas existem como forças espirituais.
Enquanto força espiritual, o defunto ou o antepassado mantém uma relação com sua
descendência: sua força vital pode estar presente nos seus descendentes. Somente
quando não tem mais descendência viva é considerado realmente morto. Os
defuntos são forças espirituais capazes de influenciar os seus descendentes vivos e
a meta consiste em afirmar as forças vitais desses. A força que existe previamente
em um antepassado adquire eficácia em um ser humano que está vivo: “A isto se
116
Segundo Lísias NEGRÃO, Entre a cruz e a encruzilhada, ainda no final da década de 50, a
umbanda encontrava-se entre a ortodoxia do catolicismo e o intelectualismo positivista, encontrando-
se ainda ameaçada e sob forte contestação. As federações tinham a difícil tarefa de legitimá-la,
provendo-a à alternativa religiosa socialmente aceita e zelando pelo seu bom nome. Fazia isto,
tentando extirpar de seus rituais tudo aquilo que podia ser considerado primitivo, bárbaro ou
evidentemente negro. Os códigos que presidiram à lógica repressiva e excludente foram
internalizados (afirmação da pureza moral e promoção do bem), como forma de se fugir da
marginalização (macumba e baixo espiritismo). De 1960-1963, houve uma intensa atividade do
movimento federativo, uma vez que era necessário legitimar a umbanda, no sentido de torná-la
respeitável como alternativa religiosa. Havia uma proposta de promover a codificação da doutrina
umbandista em seus aspectos filosóficos, científicos e religiosos, a uniformização dos rituais e atos
litúrgicos, levando em consideração as diversas particularidades do culto e as peculiaridades de cada
estado ou região do país. Preparou-se para se defender de acusações e perseguições, mas as
mesmas não impediram o seu crescimento, mas dificultaram sua aceitação enquanto uma religião
que mereceria a proteção do Estado e o respeito dos concorrentes. Falava-se em unificação
institucional e padronização ritual, mas havia setores da umbanda que não só não aderiram, mas
também combateram a tentativa de unificação institucional representada pelo congresso. “Buscava-
se dar à Umbanda uma estrutura nacional unificada e centralizada, um código ético-doutrinário
calcado na moralidade cristã e na ordem vigentes e um ritual padronizado. Dessa maneira, o órgão
diretor nacional a ser consolidado a partir das organizações já existentes (...) se constituiria na “Igreja”
da Umbanda, que se tornaria uma religião legítima e aceita tanto pelo Estado como pela Sociedade
Civil. Deixaria assim de ser uma “seita”, sem hierarquia centralizada, sem padronização ritual,
estigmatizada por desvios morais, conforme vinha sendo percebida até então” (Ibid., p. 92-93).
332
deve que a criança receba o nome daquele antepassado cuja força magara se
acredita foi encarnada na criança”117.
Mas, você faz uma diferenciação entre orixás no sentido de que eu ofereço para que
isto se reverta a mim e do guia é diferente. Não é que, acho que até vai se aproximar,
mas me parece que você faz pra um outro.
Sempre é para um outro mesmo quando é para o orixá, só que o
aproveitamento, vamos dizer assim, eu acho que a gente pode diferenciar
assim: o guia ele pode precisar utilitariamente daquilo, até numa outra
situação que acontece, pode acontecer do guia estar enfraquecido, o guia.
Por enes razões, porque os guias têm a sua vida própria extra terreiro, então
por situações nós tamos aqui com um guia, não é o que vem essa semana na
virada é um outro, mas têm um dos guias aqui que tem uma situação dele no
plano espiritual que ele tá precisando de muita ajuda, de muita força e a gente
cuida disso aqui também, entendeu, isso se reflete, por exemplo, quando
você acende uma vela, então, o guia que está bem ela se comporta de um
jeito, quando tem algum problema ela se comporta de outro, a vela. Ela
apaga, ela deforma, ela te dá indícios de que alguma coisa tá errada ali.
Então, é um cuidado também quando o guia por razões dele também tá
precisando de um axé, tá precisando de uma força e essa força pode ser
dada através de procedimentos magísticos. Então a gente dá uma reforçada
né, dá uma oferenda mais forte.120
120
C., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, São Paulo, 02/06/08.
121
Segundo Edimilson Pereira de ALMEIDA, Os tambores estão frios, candombe é um ritual que
celebra os antepassados e alguns santos católicos. A estrutura é simples. Um dos aspectos que o
caracteriza é a projeção de traços pessoais dos devotos na organização do ritual. Ao mesmo tempo
em que é possível identificar uma linha geral (heranças bantú e católica), também é possível ver a
trajetória de determinados indivíduos que demarca as especificidades do ritual. “... a força do
Candombe é proporcional à sua ligação com as origens. Considerando a imagem de um espiral,
pode-se dizer que o ritual permanece sacralizado, mas vai sofrendo alterações à medida em que se
afasta dos primórdios” (Ibid., p. 66). Aspectos que caracterizam o ritual: origem étnica dominante:
banto; temas: sérios e entretenimento (bizarria); estrutura ritual: três tambores, uma puíta, um guaiá,
canto solo e resposta em cora, dança livre (improvisos); conteúdo: tradição religiosa passada
oralmente de geração em geração, evidenciando situações de confronto (desafios) entre os
candombeiros; veículos de transmissão da sabedoria ancestral: dança (linguagem gestual), cantos e
narrativas (linguagem verbal); orientação espiritual; celebração da memória dos ancestrais (sem
334
incorporação) e louvação aos santos católicos; formas: fixo (capelas e terreiros) ou cortejo (percurso
em vias públicas). Isso representa os repertórios básicos, que indica o eixo de preservação do
candombe, ao qual pode ser associados aspectos da sociedade contemporânea, indicando o eixo de
mudança do ritual. Permite que interpretem as orientações do passado, a fim de adequá-las às
exigências do seu contexto histórico-social. “Tal situação mostra que a liberdade para interpretar as
regras dos antigos está condicionada ao conhecimento destas regras e à compreensão das
exigências do contexto em que o devoto vive” (Edimilson de Almeida PEREIRA, Os tambores estão
frios, p. 72).
122
Cf. Ibid.
123
Pai Joaquim, por exemplo, torna-se uma referência fundamental, pois é o antepassado que tem
algo a dizer aos seus descendentes. Se pode atualizá-lo como um antigo (memória afetiva) quanto
como um preto-velho (através da incorporação).
124
Ibid., p. 497-498.
335
umbanda tudo indica que houve a necessidade desta presença, que se fez de uma
maneira mais incisiva. Qual é o sentido da inserção do ritual de incorporação dos
guias de maneira coletiva e sistemática no momento histórico trabalhado?
125
Cf. Ioan LEWIS, Êxtase religioso.
126
Cabe fazer uma diferenciação entre transe e possessão. Transe pode ser definido como um
estado de dissociação, caracterizado pela falta de movimento voluntário, por automatismo de atos e
de pensamentos, representados por estados hipnóticos e mediúnicos. Pode compreender
dissociação mental completa ou parcial e vem acompanhado de visões excitantes ou alucinações,
cujo conteúdo nem sempre é lembrado de maneira tão clara. Estados de transe podem ser induzidos
por uma série de estímulos, tais como: ingestão de bebidas alcoólicas e drogas psicotrópicas,
sugestão hipnótica, aumento do ritmo respiratório, inalação de fumaças e vapores, música e dança,
ou ainda, através de mortificações ou privações, como jejum e contemplação ascética. Todos estes
meios atuam no sistema nervoso central. O transe tanto pode ter uma explicação mística como não
mística e uma sociedade que tem uma interpretação mística não precisa ficar presa a ela. Portanto, o
estado de dissociação mental – transe – pode estar sujeito a diferentes controles culturais e a
diversas interpretações culturais.
A possessão por um espírito ou por uma entidade externa pode ser uma explicação do transe, mas
nem todas as possessões por espírito envolvem necessariamente o transe. Estes dois estados nem
sempre são equivalentes. A possessão pode ser diagnosticada muito antes de um verdadeiro estado
de transe. Segundo Ibid., p. 52: “A possessão por espírito abraça, portanto, uma gama de fenômenos
mais ampla que o transe e é regularmente atribuída a pessoas que nem de longe estão mentalmente
dissociadas, apesar de poderem chegar a isso no tratamento a que subseqüentemente se submetem.
É uma avaliação cultural da condição da pessoa e significa precisamente o que diz: uma invasão do
indivíduo por um espírito”. (O grifo é nosso) A possessão por espírito é uma das principais
interpretações do transe e de outros estados associados. Pode-se dizer em uma ausência temporária
da alma da vítima, conhecida na antropologia como perda da alma. Para o autor, uma pessoa só está
possuída, estando ou não verdadeiramente em transe, se ela considera que está e outros membros
da sociedade endossam esta reivindicação.
127
Ibid., p. 30.
336
A incorporação dos guias, neste momento, pode ser entendida como uma
forma de resistência. Estes espíritos de antepassados, de certa forma,
proporcionaram o exercício de poder. A possessão, por vezes, foi uma forma de
protesto contra a condição desfavorecida e de exclusão, uma vez que ela delegou a
determinado grupo religioso um instrumento de poder. Ao mesmo tempo em que os
umbandistas eram estigmatizados também eram temidos. Foi dado um poder
religioso especial aqueles que se encontravam fragilizados socialmente:
128
C., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, São Paulo, 16/04/08.
129
Ioan LEWIS, Êxtase religioso, p. 151.
337
130
Ioan M. LEWIS, Êxtase religioso, p. 235-236.
131
Cf. Liana TRINDADE, Construções míticas e história.
338
formar a umbanda, emergiam identidades culturais que não eram fixas, mas que
estavam em transição entre diferentes posições, retirando seus recursos de
diferentes tradições culturais, produto de complexos cruzamentos e misturas
culturais.
A religião que pode ser vista como alienação da condição histórica do homem
também pode, como a umbanda, carregar, para os afro-descendentes de tradição
bantú, um caráter ambíguo, pois ao mesmo tempo em que reproduz os valores da
classe dominante, também contribui potencialmente para a resistência cultural e
religiosa, produzindo uma metamorfose religiosa. Através da umbanda é possível o
resgate de estruturas simbólicas dos grupos de tradição bantú, que foram
esquecidas com a entrada na sociedade urbano-industrial: a vida comunitária e a
religião com a função de organizar e manter coesa a comunidade.
132
Michaël LÖWY, Marx e Engels como sociólogos da religião, p. 22.
339
Toda sexta-feira1
Toda sexta-feira / toda a roupa é branca / toda pele
é preta / todo mundo canta / todo o céu magenta /
Toda sexta-feira / todo canto é santo / e toda conta /
toda gota / toda onda / toda moça / toda renda /
Toda sexta-feira / todo o mundo é baiano junto
1
Toda sexta-feira, Belô VELLOSO. Belô Velloso. s.n. Velas, Manaus, 1996, CD-ROM.
341
2
Liana TRINDADE, Exu: símbolo e função; Mara Martins PASSOS, Exu pede passagem; Alexandre
SALLES, Èsù ou Exu?. Temos uma hipótese de trabalho. Quando olhamos para os exus e para as
pombas-gira como guias, nós os entendemos como antepassados, logo alguém que teve uma
existência terrena em determinado momento histórico. A quais pessoas correspondem os exus e as
pombas-gira? Somos inclinados a pensar naqueles africanos ou afro-descendentes que burlaram o
sistema, muitas vezes tendo ações que podem ter sido consideradas pouco éticas. Mas como diz o
mito: “No começo dos tempos estava tudo em formação. / Lentamente os modos de vida na Terra
foram sendo organizados, mas havia muito a ser feito. / Toda vez que Orunmilá vinha do Orun para
ver as coisas do Aiê, era interrogado pelos orixás, humanos e animais. / Ainda não fora determinado
qual o lugar para cada criatura e Orunmilá ocupou-se dessa tarefa. / Exu propôs que todos os
problemas fossem resolvidos ordenadamente. / Ele sugeriu a Orunmilá que todo o orixá, humano e
criatura da floresta fosse apresentada uma questão simples, para a qual eles deveriam dar resposta
direta. / A natureza da resposta individual de cada um determinaria seu destino e seu modo de viver. /
Orunmilá aceitou a sugestão de Exu. / E assim, de acordo com as respostas que as criaturas davem,
elas recebiam um modo de vida de Orunmilá, uma missão. / Enquanto isso acontecia, Exu, travesso
que era, pensava em como poderia confundir Orunmilá. / Orunmilá perguntou a um homem:
“Escolhes viver dentro ou fora?”. “Dentro”, o homem respondeu. E Orunmilá decretou que dovorante
todos os homens viveriam em casas. / De repente, Orunmilá se dirigiu a Exu: / “E tu, Exu? Dentro ou
fora?”. Exu levou um susto ao ser chamado repentinamente, ocupado que estava em pensar sobre
como passar a perna em Orunmilá. / E rápido respondeu: “Ora! Fora, é claro”. / Mas logo se corrigiu:
“Não, pelo contrário, dentro”. / Orunmilá entendeu que Exu estava querendo criar confusão. / Falou
pois que agiria conforme a primeira resposta de Exu.” (Exu atrapalha-se com as palavras. Reginaldo
PRANDI, Mitologia dos orixás, p. 66-67.
3
A palavra gira é de origem portuguesa, do verbo girar, rodar. Adaptada pelos negros teria tornado
engira. Durante a gira, os médiuns se põem a rodar, antes de estarem incorporados pelas entidades.
O movimento rotativo estabelece condições de comunicação com o transcendente. Segundo Nei
LOPES, Novo dicionário bantu do Brasil, p. 110, verbete gira: “GIRA, s.f. Sessão umbandista; roda
ritual para cultuar as entidades (OC) – Do umbundo chila ou tjila, dançar, bailar, da mesma raiz de
ichila, lugar da dança. Cp. engira. Já em Ibid., p. 97, verbete engira: “ENGIRA, s.f. Conjunto, reunião
de adeptos da cabula – Abon.: “A reunião dos camanás forma a engira”. (Nina Rodrigues, 1977: 257).
– De origem banta: ou do quimbundo njila, giro; ou do umbundo ochila, lugar da dança, deriv. De tjíla
(var. Chila), dançar, bailar”.
342
... como é morar no mesmo lugar que é o seu templo, onde você vive sua religião?
Olha, eu vou estabelecer duas coisas, né. Morar no mesmo lugar é, como eu
morava aqui antes era complicado. (...)
Por razão que não é fácil, né. As pessoas invadem, mexem nas suas coisas,
não tem muito respeito. Do lado como é agora eu acho maravilhoso. Tudo
muito prático, né, tudo muito fácil. Porque, não tem jeito, você é um
sacerdote, você é um sacerdote vinte e quatro horas. As pessoas, outro dia
quatro hora da manhã tinha gente ligando ai ...10
7
Tal como a umbanda, a presença de brancos e de imigrantes europeus retrata as transformações
étnicas e culturais que tinham lugar dentro das casas de zungú, elas ampliavam seu arco de clientes,
se tornando mais perigosas. “Com a metamorfose racial e étnica porque passava a Corte nestes
anos, o zungú perde um pouco sua natureza de espaço de exclusividade para a população negra,
aceitando tipos sociais das mais diversas origens e cores, refletindo o cadinho racial da virada do
seculo que era o Brasil” (Carlos Eugênio Líbano SOARES, Zungú,p. 95).
8
Ibid., p. 107.
9
Cf. Lísias Nogueira NEGRÃO, Entre a cruz e a encruzilhada.
10
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 07/06/08.
345
... foi o próprio caboclo Ubiratan, né, quando ele percebeu que ia começar a
pender só pro candomblé, falou: então tá na hora e a gente começou. O
terreiro era ali, onde fica a assistência era a nossa sala, porque a gente
morava aqui.
Ah! Vocês moravam aqui?
A gente morava aqui, né, isso aqui não existia ainda, isso aqui foi feito depois,
a casa era ali, a cozinha e o banheiro. Aqui era o quintal.
Mas vocês moravam, mas aí tinha alguém que morava na frente?
É tinha outras pessoas e ali aquela porta não existia.
Ah! Entendi.
Então, o terreiro era nossa sala e tinha atrás da porta de entrada tinha um
congazinho, aquela prateleirinha de arame com a imagem de Ogum, o
caboclo Ubiratan e Oxalá. Isso era o terreiro.12
Outro ponto que merece destaque na formação dos terreiros é a ligação que o
grupo possui com o território, ou melhor, com a terra. De forma muito semelhante
aos grupos de tradição bantú, que, ainda hoje, cultuam os seus antepassados em
suas casas ou em seus territórios. Como os bantú, muitos umbandistas rendem
homenagem aos guias no espaço doméstico. Mesmo em terreiros que têm apenas a
função do terreiro, não sendo moradia, a apropriação do espaço é bastante peculiar,
porque não dizer pessoal. A relação com a terra também está ligada aos
fundamentos. Salvo espaços em que a propriedade é alugada, onde, às vezes, isto
não acontece, o fundamento ou o assentamento daquela casa deve ser enterrado de
maneira ritual, sendo que ali, além de estar a força espiritual do terreiro, também
está a ascendência do pai ou da mãe-de-santo. Não podemos pensar que, como os
bantú, os antepassados devem estar enterrados na propriedade onde vive a família?
11
Segundo Lísias Nogueira NEGRÃO, Entre a cruz e a encruzilhada, a mobilidade espacial do
terreiro não é apenas interna ao espaço doméstico, mas acompanha o pai-de-santo ou a mãe-de-
santo em suas mudanças domiciliares. Mesmo sendo um espaço religioso específico, na maioria das
vezes, ele é domiciliado no próprio endereço residencial. Alguns, apesar de estarem no mesmo
endereço, são bem instalados, não interferem na rotina doméstica, com entradas independentes e
todas as instalações necessárias ao seu funcionamento. O domicílio da maior parte do terreiro possui
um caráter efêmero e mutável. O espaço do terreiro tende a refletir a instabilidade e a precariedade
da vida das camadas sociais, onde os adeptos são recrutados. Os terreiros dependem das condições
existenciais dos seus chefes: os mais estáveis são aqueles que conseguiram formar um grupo mais
amplo de sustentação, normalmente parentes e grupos de amigos.
12
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 02/06/08.
346
6.1.2 – Família-de-santo
13
Vale a citação de um trecho de uma das entrevistas realizadas com uma senhora afro-
descendente, cujos parentes freqüentavam as irmandades. É interessante notar a composição que
ela faz entre irmandades, umbanda e candomblé: “E, por exemplo, quando ela ia, quando a senhora era
criança bem pequena ela já era da Umbanda, como é que a mãe da senhora entra na Umbanda. Ela falou alguma
coisa sobre isso, como que foi? Porque a minha mãe veio de Minas, né, ela é mineira e eu acho que é
devido sei lá a influência dos meus avós, alguma coisa assim ela já conhecia, porque a minha tia, tia
avó que chamava até Benedita ela também ia então acho que ia, freqüentava a Igreja do Rosário
então já tinha aquela coisa de ir, como falo isso aí, tinha as Congadas, essas coisa de Minas elas já
eram dumas da irmandade Nossa Senhora do Rosário de Minas. Ah, lá em Minas... Lá em Minas,
então ela veio pra cá que tinha ela... O que a senhora acha, por exemplo, que a senhora está relacionando a
347
Tal fato nos lembra os cultos familiares dentro da tradição bantú. Além do Ser
Supremo, que pouco é cultuado, dentro dessa tradição o culto é prestado aos
espíritos familiares. Não causa espanto que os terreiros normalmente são formados
por pessoas de uma mesma família ou um grupo de amigos, que fica na casa do pai
ou da mãe-de-santo. Como culto aos antepassados, no caso, da família-de-santo,
que foi constituída no Brasil, é esperado que não se torne pública, pois os
antepassados de cada família e a forma como são cultuados varia de terreiro para
terreiro, dificultando, muitas vezes, uma generalização. Não seria este um dos
motivos pelos quais a umbanda tenha uma ação pouco proselitista?
Igreja, a irmandade com a Umbanda, o que que tem de parecido na irmandade com a Umbanda? É assim,
porque geralmente tem uma irmandade, tem a de Nossa Senhora do Rosário, tem a Santa Ifigênia, aí
devido a isso eles já vão com aquelas influências de, dos antigo, aí ali você freqüenta o Candomblé,
você freqüenta a Umbanda dependo do seu ritmo o que você que segui. E a mãe da senhora falava pra
senhora quem eram os guias, os Preto-Velhos elas falavam sobre isso ou não? Geralmente comentava
porque, por exemplo, se você caia, você machucava, você não tinha aquele recurso que tem agora
de você corre pro hospital então você pedia pruma entidade, pedia prum santo. Não tem aquela
história de Santa Luzia você machucou qualquer coisa no olho vai busca Santa Luzia no seu
cavalinho, aí então você já vem com aquela influência, já de pequeno você entendeu. Caia um cisco
no olho você não vai corre faze, fazia o Sinal da Cruz você pedia pra Santa Luzia, você batia o pé e
assim vai”. R., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 26/07/08.
14
Cf. Regina Célia Lima XAVIER, Religiosidade e escravidão, século XIX.
348
6.1.3 - Linhagem
15
Reginaldo PRANDI, Segredos guardados, p. 79.
16
Segundo Antônia Aparecida QUINTÃO, em Irmandades negras, a realização das festas religiosas
por parte das irmandades religiosas traduzia a preocupação da Igreja Católica em atrair os africanos
e os seus descendentes. Havia a aceitação dos seus costumes desde que pudesse adaptá-los ao
catolicismo, recebendo uma nova interpretação e um novo significado. É o caso da tradição africana
da sucessão hereditária dos reis, substituída nas irmandades pelo sistema eletivo. Os reis passaram
a ser eleitos pelos seus membros, o que lhes possibilitava maior obediência de seus súditos. No final
do século XVIII, as congadas, os batuques e as sambas ainda se realizavam pelas ruas da cidade. As
primeiras festas de coroação do Rei e da Rainha na Irmandade do Rosário eram monopolizadas
pelos angolanos, já que no compromisso da irmandade era determinada a que tradição os
concorrentes deveriam pertencer. Em um primeiro momento, pode-se dizer que predominou na
irmandade os bantú de Angola, já na segunda metade do século XIX predominou os bantú do Congo.
Os bantú, segundo a autora, foram os grupos que predominaram nas irmandades. Para ela, a
penetração do catolicismo foi mais eficaz no caso bantú, ligado ao culto aos antepassados e aos
mortos, facilmente rompida com a perda da linhagem. Já Marina de MELLO E SOUZA, em Reis
negros no Brasil escravista, versando sobre o mesmo tema, discorda de QUINTÃO, ao afirmar que
houve o estilhaçamento das relações familiares provocado pelo tráfico. Porém, os africanos e afro-
descendentes reconstruíram em novas bases laços fundamentais que uniam as pessoas, sendo a
ligação entre malungo, conforme visto no segundo capítulo, a primeira alternativa encontrada ainda
na travessia. A reunião de grupos de uma mesma etnia ou de regiões próximas, pertencentes a um
mesmo complexo social, foi outra alternativa encontrada, gerando uma forma de recriar afinidades
antes fundamentadas nas relações de parentesco. Formaram-se vínculos essenciais no processo de
redefinição de solidariedades, antes fundadas em relações de linhagens. Os grupos de procedência
podem ser considerados um substituto das linhagens entre as comunidades africanas no Novo
Mundo e a eleição dos reis como forma de recriar as estruturas sociais existentes nos lugares de
origem. O que mais uma vez gostaríamos de lembrar é a prática cultural que se mostrou significativa
para determinado grupo continuar a existir, mas a forma de expressá-la é que se modificou, como
estamos vendo ao longo do trabalho.
349
17
Reginaldo PRANDI, Segredos guardados, p. 166.
18
Cf. Edson ORPHANAKE, A umbanda às suas ordens.
19
Jean CHEVALIER; Alain GREENBRANT, em Dicionário dos símbolos, trabalham de maneira
extensa o simbolismo do sete em diversas culturas. Traremos o simbolismo do sete de maneira mais
genérica, bem como o simbolismo do sete na África. “Associado ao número quatro, que simboliza a
terra (com os seus quatro pontos cardeais) e o número três, que simboliza o céu, o sete representa a
totalidade do universo em movimento. (...) Na África, também, o sete é um símbolo de perfeição e
de unidade. Para os dogons, como o sete é a soma de 4, símbolo da feminilidade, com 3, símbolo da
masculinidade, ele representa a perfeição humana (GRIE). Os dogons consideram o número 7 o
símbolo da união dos contrários, da resolução do dualismo, portanto, símbolo de unicidade e, por
isso, de perfeição. Mas esta união dos contrários – que inclui a dos sexos – é também símbolo de
fecundação. Por essa razão, sendo o verbo análogo ao esperma como a orelha à vagina, para o
dogon, o número 7 é a insígnia do Senhor da Palavra, deus das novas chuvas, portanto, da
tempestade e dos ferreiros* (GRIE, GRIL). O sete, soma do 4 fêmea e do 3 macho, é também o
número da perfeição para os bambaras. O deus soberano, Faro, deus da água e do verbo, mora no
sétimo céu, com a água fecundadora que ele distribui sob a forma de chuva. É igualmente no sétimo
céu que o Sol cai, todas as noites, ao final do seu trajeto. A terra, como os céus, compreende sete
andares e as águas terrestres também são sete, assim como os metais. O sete é, ao mesmo tempo,
o número do homem e do princípio do universo. Como soma de 4 e 3, ele é o signo do homem
completo (com seus dois princípios espirituais de sexo diferente), do mundo completo, da criação
concluída, do crescimento da natureza. É também a expressão da Palavra Perfeita e, através dela, da
unidade original” (Ibid., p. 826-831).
350
20
Edson ORPHANAKE, A umbanda às suas ordens, p. 100.
21
Adriano LANGA, OFM, O nome na tradição africana, p. 29-30.
351
onde o sobrenome (apelido) fala sobre a história da linhagem, o nome da casa fala a
respeito da história dos guias que a integram aquela casa, muitas vezes, delimitando
a sua missão:
Ele mostrou o charuto dizendo que ele ia terminar esse charuto em casa e foi
o que ele fez. Aí ele falou: “Vocês podem se preparar porque vocês vão abrir
um terreiro”, falou assim. Quando ela me falou eu também não acreditei, mas
o homem mandou, nós fizemos. Até tava começando...
Mas antes de abrir o terreiro você já era pai-de-santo?
Não, eu não fui consagrado pai-de-santo, eu fui sendo feito pai-de-santo. Que
aí, como eu te falei, o que a gente abriu não era um terreiro, era um, a gente
começou a trabalhar em casa, vamos dizer assim, porque era uma
prateleirinha atrás da porta e ele começou a vir, amigos, conhecidos.
Então, a missão do Instituto Ubiratan é produzir, ensinar e utilizar o máximo e
o melhor possível de conhecimentos nas áreas de religião e de magia. Então,
você vê, o meu mestrado e o mestrado da Liliane estão inseridos nesse
conceito é um aprimoramento para o Instituto Ubiratan. Os cursos de magia
tão inseridos nesses conceitos, as vivências. O sítio, por exemplo, é a nossa
sede de campo.22
22
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 02/06/08.
23
Regina Célia Lima XAVIER, Religiosidade e escravidão, século XIX, p. 29.
352
24
T., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
353
25
Reginaldo PRANDI, Segredos guardados, p. 81.
354
Xi’kwembu é quando se trata de deuses, quer dizer, os mais velhos que são
considerados e também já falecidos, considera-se que estão próximos de
Xi’kwembu que é Deus. Portanto acredita-se nos xi’kwembu, que no
Xi’kwembu que é ente superior que governa o Xi’kwembu, por isso quando se
faz a cerimônia com o aquilo que bom, erradamente nós traduzimos missa
porque missa só pode ser na Igreja, mas porque muita das vezes, os
primeiros padres nossos aqui, traduziram erradamente que xi’kwembu, aliás,
missa era mhamba, mas que mhamba é dirigida, exatamente, a xi’kwembu,
para esse xi’kwembu fazerem chegar à preocupação dos seus, portanto
sucessores a Deus, sim. Então principalmente por causa disso sabe-se que
ver o Deus é sempre bom e tudo que é mal é de alguns swikwembu que
quando estão enfurecidos, quando estão, que não estão de acordo com
aquilo que é a vida dos seus familiares até podem provocar as maldades,
então estão ao serviço de demônio e é por isso que...29
26
C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 16/04/08.
27
Arque - significa início, origem, causa e princípio, mas representa também a posição de um líder,
de uma soberania e de um governo; uma espécie de ‘dominante’. Tipo - significa batida e o que é
produzida por ela, o cunhar das moedas, figura, imagem, retrato, prefiguração, modelo, ordem,
norma. Transferido ao seu sentido mais moderno é amostra, forma básica, estrutura primária, algo
que jaz no ‘fundo’ de uma série de indivíduos ‘parecidos’, quer sejam seres humanos, animais ou
vegetais. Nessas noções está contida a idéia de ‘gravação’, pela repetição constante de experiências
típicas, assim como a referência às ‘energias’ e as ‘tendências’, que levam empiricamente à repetição
permanente das mesmas experiências e das mesmas formulações.
28
Segundo Nívio Ramos SALES, Rituais negros e caboclos, quando é dito que a pessoa está com
um encosto significa que algum espírito ou egun lhe está acompanhando ou fruindo as suas energias.
A regra é que o espírito deve ser afastado através de rituais, por exemplo, o ritual do sacodimento. A
umbanda procura doutrinar o espírito no sentido dele largar a matéria e encaminhá-lo para a prática
do bem. Quando não aceita a doutrinação, ele é preso ou amarrado através de algum ritual e
mandado de volta para o espaço ou lugar de origem, porque sendo um espírito rebelde é considerado
quiumba, ou espírito inferior, tendo como função prejudicar os indivíduos aqui na Terra.
29
T., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, Maputo, 15/07/09.
355
30
Para saber mais a respeito da difusão do espiritismo no Brasil, ver a dissertação de mestrado de
Jeferson BETARELLO, Unir para difundir.
31
Lísias Nogueira NEGRÃO, A religiosidade do povo. Visão complexiva do problema, In: José J.
QUEIROZ, A religiosidade do povo.
32
Brígida Carla MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanências, p. 255.
33
Cf. Celso Alves ROSA (Decelso), Umbanda para todos.
34
Lísias Nogueira NEGRÃO, A religiosidade do povo. Visão complexiva do problema, In: José J.
QUEIROZ, A religiosidade do povo.
356
Já Prandi35 entende que até os anos trinta, as religiões afro-brasileiras poderiam ser
incluídas na categoria de religiões étnicas ou de preservação de patrimônios
culturais dos antigos escravizados e de seus descendentes, enfim, religiões que
mantinham vivas tradições de origens africanas. Com a umbanda iniciou-se um
processo de valorização dos elementos nacionais, como o caboclo e o preto-velho,
que são espíritos de índios e de escravizados. A umbanda retrabalhou elementos
religiosos incorporados à cultura brasileira. Concone afirma que os tipos existentes
na umbanda são retirados da realidade nacional, transformando em símbolos figuras
do cotidiano popular e buscando, a seu modo, o seu significado mais profundo. As
figuras-chave são os caboclos e os pretos-velhos, de um lado, e os exus e as
pomba-giras, de outro. A umbanda coloca em ação tipos que correspondem a
símbolos populares, interpretados segundo cada segmento social que dela participa.
“As duas primeiras figuras míticas (tipos) mencionadas (caboclos e pretos-velhos),
correspondem a uma dimensão propriamente mítica da sociedade, na medida em
que são mitos e símbolos fundantes da brasilidade (...)”36. As figuras míticas da
umbanda são buscadas nas camadas populares, subalternas e dominadas. Para
ela, ainda, os tipos passam por um duplo processo de mitificação e de
representação de símbolos vivos de atividades e, sobretudo, de qualidades
consideradas definidoras da brasilidade. A riqueza dos tipos corresponde à
sensibilidade da umbanda aos movimentos da sociedade brasileira, sendo as suas
figuras símbolos de movimentos desta mesma sociedade. Portanto, para ela, há a
possibilidade de se fazer o resgate da memória popular da escravidão através das
histórias dos guias e também dos pontos cantados. As histórias de preto-velho
parecem ter, pelo menos na umbanda paulista, um pano de fundo histórico mais
presente que as de caboclo. Os caboclos foram tomados no Brasil pelos africanos e
pelos afro-descendentes de tradição bantú como sendo os verdadeiros ancestrais da
terra. Os caboclos substituíram, no culto, os antigos ancestrais africanos, perdidos
na diáspora. Fazemos a ressalva de que o que se perdeu na diáspora não foi o
culto, mas a família africana e os antepassados ligados à ela e à terra, da maneira
como existia na África.
35
Reginaldo PRANDI, Referências sociais das religiões afro-brasileiras: sincretismo, branqueamento,
africanização, In: Carlos CAROSO; Jeferson BACELAR (org.), Faces da tradição afro-brasileira.
36
Maria Helena Villas Boas CONCONE, Caboclos e pretos-velhos da umbanda, In: Reginaldo
PRANDI (org.), Encantaria brasileira, p. 284. A autora faz um quadro bastante interessante a respeito
das oposições entre a figura do preto-velho e do caboclo nas páginas 286-289, mesmo que de modo
generalizantes.
357
6.2.1 – Os pretos-velhos
Negrão já entende que eles são aqueles que foram submetidos ao sistema e,
logo, cristianizados (falam de Jesus, rezam e benzem), além de moralizados e de
dignificados. Ainda para ele, os pretos-velhos se apresentam como velhos e
cansados, chegam curvados pelo peso dos anos, sentando-se em seus banquinhos.
37
Liana TRINDADE, Construções míticas e história, p. 188.
358
38
C., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, São Paulo, 16/04/08.
39
Cf. Cândido Emanuel FELIX, A cartilha da umbanda.
359
40
Cândido Emanuel FELIX, A cartilha da umbanda, p. 77-78.
41
Segundo Olga G. CACCIATORE, Dicionário de cultos afro-brasileiros, p. 247: “Vodun Também dito
vodu. Nome genérico das divindades jejes, correspondendo a orixá do nagô. F. p. – ewe ou dialeto:
“vodu”.
42
Segundo Nei LOPES, Novo dicionário banto do Brasil, p. 118: “INQUICE, s.m. Divindade dos cultos
de origem banta correspondente ao orixá nagô (BH) – Do quicongo nkisi, nkixi, entidade sobrenatural;
ídolo, fetiche.
43
PALLAS, Cantigas de umbanda e de candomblé, p. 189.
360
descargas e à defumação. Para tanto, usam cachimbo, fumo, vela, água, flores,
marafa. “São as engiras mais praticadas, constituindo ao lado das de caboclo e das
de exus, a base de toda a Umbanda”44.
Mas assim no sentido como é que a senhora sente, quem são os guias enfim, quem são
eles pra senhora?
Olha, o preto-velho eu acho que eu me identifico sabe com aquele lá do como
que ele fosse o meu avô você entendeu, que meu avô era, ele morreu bem
velhinho e minha mãe cuidava dele. Quando ele tocava bandeon, então meu
avô ele gostava de canta músicas de São Benedito, essas coisas então eu
me identifico, eu acho que sabe como se fosse um preto-velho, fosse meu
avô você entendeu, eu vejo nele a mesma coisa entendeu, quando eu vou e é
44
Edson ORPHANAKE, A umbanda às suas ordens, p. 88.
45
Segundo Olga Gudolle CACCIATORE, Dicionário de cultos afro-brasileiros, p. 53: “Aruanda Céu,
lugar onde moram os orixás e as entidades superiores, para os adeptos dos cultos afro-brasileiros.
F.p. – corr. de Luanda, capital de Angola, ou de Ruanda, região da África bântu”. Nei LOPES, em
Novo dicionário banto do Brasil, p. 32: “ARUANDA, s.f. Morada mítica dos orixás e entidades
superiores da Umbanda (OC) – De Luanda, topônimo [‘ARUANDA, forma toponímica feminina através
da qual a memória coletiva do negro brasileiro teria conservado a reminiscência de São Paulo de
Luanda, capital de Angola, porto africano do tráfico de escravos (...). Com o tempo, deixou de
designar o porto de Angola, para se transformar em lugar utópico, passando, como utopia, a abranger
toda a África: pátria distante, paraíso da liberdade perdida, terra da promissão” – Encicl. Delta-
Larousse, 1970].
361
6.2.2 – Os caboclos
46
A., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 26/07/08.
47
L., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 20/06/08.
362
Concordando com esta idéia, Trindade define o culto aos caboclos como uma
prática bantú de reverência aos antepassados, no caso, da terra, onde os bantú se
estabeleceram. Os caboclos são concebidos como legítimos antepassados da terra
brasileira: “Adquirindo a qualidade de espírito, na proporção que constitui uma
categoria social consagrada na memória coletiva das camadas populares, os
caboclos possuem, como os demais espíritos da tradição banto, qualidades sociais e
da natureza”50.
48
Cf. Jocélio Teles dos SANTOS, O dono da terra.
49
Cf. Ruth LANDES, A cidade das mulheres.
50
Liana TRINDADE, Construções míticas e história, p. 187. (O grifo é nosso)
363
54
Cf. Cândido Emanuel FELIX, A cartilha da umbanda..
55
Cf. PALLAS, Cantigas de umbanda e de candomblé.
56
Cf. Edson ORPHANAKE, A umbanda às suas ordens.
365
E no caso dos caboclos, quem foram eles quando eles estavam em Terra?
Olha, eu acho, na minha concepção, o caboclo foi as primeira pessoas que
tiveram na Terra. Os índios, vamo supor, não que todo caboclo tenha que se
um índio, mas os caboclos seria os primeiros habitante da Terra. Que cê vê
que na parte indígena eles sofreram muito também, eles não se escravizaram
como os negros, mas o índio foi tudo e do índio foi tomada, quer dizê se você
vê um índio andando aí pela Praça da Sé, à vontade como ele fica na aldeia
num fica, que que foi isso, num seria também uma parte eles não se deixaram
escraviza, mas foram extinto. Então, eu vejo isso, eu vejo o Caboclo seria não
só o índio matuto aquela pessoa que cê tem a sua terrinha lá no fim do
mundo, tá lá numa boa, o outro chega - não aqui vai se construída uma
hidrelétrica, vai se construída num sei o quê, então ranca a pessoa dali sso.
Por que que a senhora acha que na umbanda se cultua, (...) preto-velho e caboclo?
Porque é uma, uma origem de pessoas que em outro, em outra religião eles
não tiveram espaço e não deixa de se um espírito também cê entendeu, que
eles não foram reconhecido. (...) A umbanda é aquela que abraçou deu o
caminho pra você, se tem uma religião você confia nela, você tem os
segmentos, eu acho que o que mais manda na umbanda é a fé.57
57
R., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 26/07/09.
58
D., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, São Paulo, 19/07/2008.
366
59
M.Afr. C. BOUCHER, The ancestors in the bantu view, In: CENTRO DE FORMAÇÃO DE NAZARÉ,
Os antepassados e sua veneração, p. 56. (Tradução nossa)
60
É bastante interessante notar que a presença indígena dentro da umbanda se faz cada vez mais
presente em São Paulo. Em outros estados do Brasil, onde o processo de urbanização e de
industrialização não foi tão intenso e acelerado, como na Paraíba, a umbanda se constituiu mesclada
com a jurema. Já em São Paulo, é cada vez maior a presença, nos rituais de umbanda, do chá do
Santo Daime e até a formação de cultos como o umbandaime, no qual se hibridiza a umbanda com
elementos de caráter eminentemente indígena.
367
Ainda, logo no portão de entrada, quando é dia de gira, existe uma oferenda
para Exu, no caso para um Exu guia, um antepassado, que guarda o portão da
residência61, como uma forma de proteção. Podemos observar que a oferenda é
composta por uma vela62 das cores do guia – vermelho e preto – e pelos alimentos
61
Antes de falarmos sobre cada um dos aspectos deste terreiro de umbanda, gostaríamos de deixar
claro que, muitos elementos, que serão apresentados, são considerados símbolos. A palavra
símbolo, em si mesma, implica, primeiramente, em uma dualidade e uma unificação, já que o símbolo
junta duas coisas, formando uma só. O símbolo sempre é constituído por duas partes: o simbolizante
e o simbolizado. O símbolo sempre designa conjuntamente o simbolizante e o simbolizado,
exprimindo uma totalidade que passou por experiências de ruptura e, agora, é uma realidade
reconstituída. O simbolizado é o pedaço a reconstituir, é a parte ausente, impossível de se perceber.
Esse pedaço vai ser do domínio do invisível, do imperceptível, do inobservável, do inexprimível; em
suma, o não-sensível em todas as suas formas (o inconsciente, o metafísico, o sobrenatural e o
surreal). O simbolizante é a parte visível, o pedaço presente acessível à nossa experiência imediata,
a partir do qual se tende a reconstituir a realidade total. Apesar desta divisão, o símbolo é uma
criação total, que não se situa nem no simbolizante nem no simbolizado. Um símbolo, por menos
universal que seja, brota das camadas mais profundas do ser humano, nas quais se acumulam e se
enraízam as recordações e os gestos mais marcantes que foram acumulados durante a história da
humanidade e, por isso, têm sempre a função de transcender os opostos. O símbolo sempre oculta
um sentido invisível e mais profundo do que o seu sentido objetivo e visível, portanto não é
imediatamente solucionável, compreensível ou determinado anteriormente. Um símbolo carregado de
sentido nunca pode ser criado a partir de relações conhecidas, já que pertence a dois níveis
diferentes de realidade: a imagem e um conteúdo que transcende à consciência, com a qual é
necessária a comunicação. Como unificador de antagonismos, o símbolo sempre solicita a totalidade
do humano, afetando o homem por inteiro. Um símbolo é a melhor expressão de algo e se encontra
carregado de sentido. Segundo Jolande JACOBI, Arquétipo, complexo e símbolos, p. 90: “O símbolo
é, então, uma espécie de instância mediadora entre a incompatibilidade do consciente com o
inconsciente, um autêntico mediador entre o oculto e o revelado. Pertence à esfera intermediária da
realidade sutil, que só se pode expressar, de modo suficiente, através do símbolo”. Um símbolo
religioso pode proporcionar uma série de experiências psíquicas, mas isso só ocorre se o indivíduo se
encontra envolvido emocionalmente com ele, pois, apenas dessa forma, a energia contida no símbolo
pode ser liberada. Os símbolos são mutáveis através dos tempos; seu sentido e seu desvelamento
são alterados na medida em que há modificações nos reconhecimentos e nas experiências de cada
um; o conteúdo do sentido e a forma do próprio símbolo são postos em novas relações e
transformados de maneira correspondente. Portanto, cada homem e cada época traduzem o símbolo
para a linguagem atual, munindo-o com uma nova roupagem, para que a essência e o significado
dele possam permanecer e, com isso, resgatar o sentido da vida. As idéias religiosas têm um
conteúdo simbólico, não só porque ele possui um significado, mas porque aponta para várias
direções e deve significar algo que é inconsciente ou que, ao menos, não é consciente em todos os
seus aspectos, pois os símbolos religiosos são realidades vivas, existenciais, que dão sentido à vida
dos homens.
62
Jean CHEVALIER; Alain GHEERBRANT, Dicionário de símbolos, p. 933-934: “O simbolismo da
vela está ligado ao da chama. Na chama de uma candeia todas as forças da natureza estão ativas,
dizia Novalis. A cera, a mecha (pavio ou torcida da vela), o fogo, o ar, que se unem na chama
ardente, móvel e colorida, são eles próprios uma síntese de todos os elementos da natureza. Mas
esses elementos estão individualizados nessa chama isolada”. Ou ainda, em ibid., p. 232, a respeito
da chama: “Em todas as tradições, a chama (flama) é um símbolo de purificação, de iluminação e
de amor espirituais. É a imagem do espírito e da transcendência, a alma do fogo”. Ainda segundo
Brígida Carla Malandrino, Umbanda: mudanças e permanências, p. 244-245: “A vela funciona como o
primeiro elo de ligação com o divino. Através dela é feita a primeira tentativa de reconstituir uma
totalidade para além das rupturas. É o primeiro ato de contato com o divino. Importante notar, que
neste Centro, a primeira coisa a ser feita, assim que se entra, antes de qualquer ritual, é o
acendimento das velas. Conforme colocado anteriormente, as entidades da umbanda podem estar
associadas com um inconsciente brasileiro, o inconsciente cultural dos tipos subalternos. Foi
colocado também, que o contato com os arquétipos não se dá de maneira direta, necessitando de
369
A casa é bastante arborizada, sendo que muitas destas plantas são utilizadas
na gira para a composição do espaço, enquanto outras são usadas na fabricação de
compostos de ervas, como também para se fazer o banho de ervas. Para se chegar
ao terreiro atravessa-se um corredor cumprido, que dependendo da gira da noite,
uma mediação feita pelos símbolos. No caso deste Centro, o primeiro símbolo que possibilita a
entrada em contato com as entidades é a vela, que propicia aos indivíduos o primeiro contato com o
inconsciente e seus tipos”.
63
Cf. Brígida Carla MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanências, em especial capítulo III.
64
Segundo Reginaldo PRANDI, Mitologia dos orixás, p. 41: “Assim, quem viesse à casa de Oxalá
teria que pagar também alguma coisa a Exu. Quem tivesse voltando da casa de Oxalá também
pagaria alguma coisa a Exu. Exu mantinha-se sempre a postos guardando a casa de Oxalá. Armado
de um ogó, poderoso porrete, afastava os indesejáveis e punia quem tentasse burlar sua vigilância.
Exu trabalhava demais e fez ali a sua casa, ali na encruzilhada. Ganhou uma rendosa profissão,
ganhou seu lugar, sua casa. Exu ficou rico e poderoso. Ninguém pode mais passar pela encruzilhada
sem pagar alguma coisa a Exu”.
370
65
Tanto na umbanda quanto no candomblé, duas religiões afro-brasileiras, os orixás são cultuados,
porém guardam diferenças de uma religião para a outra. Segundo Brígida Carla MALANDRINO,
Umbanda: mudanças e permanências, p. 113: “Os orixás se enraízam numa área mais arcaica do
psiquismo e da história do mundo físico, já que são definidos como forças da natureza, o que torna
possível imaginá-los como arquétipos do inconsciente coletivo, em decorrência da experiência
humana com o mundo material. Os guias pertencem às lembranças históricas relativas às
experiências vividas nas origens da sociedade brasileira. De qualquer forma, os guias se identificam
com os orixás e possuem uma ligação com eles”.
371
Todo o indivíduo que vai ao terreiro para participar da gira, sendo ou não
pertencente à casa, antes de entrar na sala, onde acontecem as giras propriamente
ditas, tem que passar pela Mandala de Fogo. A Mandala de Fogo é formada por
372
66
Segundo Nei LOPES, Novo dicionário bantu do Brasil, p. 174, verbete pemba: “PEMBA [1], s.f. (1)
Na umbanda, pedaço de giz usado para riscar no chão os pontos emblemáticos ou sinais cabalísticos
de cada entidade (AN). (2) O pó extraído da raspa desse giz, que se asperge ou passa no corpo,
como proteção. Do quicongo mpemba, giz, correspondente ao quimbundo pemba, cal”.
67
Vale a consulta ao trabalho de Monalisa DIBO, Prabha-Mandala: os efeitos da aplicação do
desenho da mandala no comportamento da atenção concentrada em adolescentes.
373
68
Segundo M., entrevista realizada pela autora, gravação em áudio, São Paulo, 31/05/08: “Esta
mandala? Quando ela fica acesa, assim, no começo, ela serve para as pessoas que chegam, prá
descarregar, só de passar pela mandala e mentalizá, já pode ser descarregado; o descarrego, o que
traz da rua, o dia a dia da semana. E, aí, durante a semana também, ela faz equilibrar e descarregar
as pessoas que vem para o instituto. Ela pode servir para várias coisas, pra coisas específicas, pro
trabalho que está acontecendo à noite, mas a gente passa pela mandala pra fazê um descarrego
prévio, que é mais ou menos para equilibrar as energias, quando a gente for pra gira, pra não tá
totalmente fora”. Podemos perceber que a eficácia da magia assenta-se na crença coletiva do poder
da força vital contida na palavra, na ação ritual que a desencadeia e nos seus suportes biológicos
(homem) ou nos seus suportes materializados (objetos rituais).
374
69
Segundo Vera Braga de Souza GOMES, O ritual da umbanda, p. 122, a roupa branca: “Constitui
medida higiênica, tanto física como psíquica e homenagem especial aos seres espirituais com quem
entram em comunicação. Consideradas no sentido de uniforme, favorecem um visual mais agradável
e fazem parte da disciplina, imprescindível também em qualquer religião. Foi adotado o branco por
ser o símbolo da pureza e absorver melhor os fluídos positivos”. Ainda segundo Brígida Carla
MALANDRINO, em Umbanda: mudanças e permanências, p. 237: “Vestir o branco representa um
despojamento por parte daquele que irá trabalhar. Após se vestir de branco, o indivíduo deixa de ser
apenas ele, para fazer parte de uma comunidade mais ampla. Naquele momento, ele perde a sua
identidade individual, passando a ser um elemento de um grupo. Elemento necessário para o
funcionamento do grupo. Além disso, o branco representa um preparo e uma proteção para aquele
que se veste, já que minimiza o contato direto com o divino. Mesmo a umbanda apresentando uma
grande mutabilidade simbólica inter e intracentro, quando o ritual for uma vez estabelecido, precisa
ser cumprido de maneira rígida, sob pena de perder a sua eficácia, já que lida com forças
inconscientes poderosas”.
70
Segundo Vera Braga de Souza GOMES, O ritual da umbanda, p. 117-118: “Entre a multiplicidade
de usos na Umbanda, as ervas são também empregadas para banhos. Estes têm diferentes
finalidades, sendo escolhida a planta que possua as qualidades adequadas ao objetivo visado. Banho
de Limpeza Espiritual – Recomendado com o propósito de destruir escórias nocivas absorvidas na
vida diária ou originadas por trabalhos de magia negra. Repele fluídos oriundos da influência de
espíritos atrasados e obsessores, eliminando toda energia negativa da faixa vibratória das pessoas.
(...) Banho Ritualístico ou de Fixação – Destinado exclusivamente aos médiuns. Serve para vitalizar,
fixar e precipitar determinadas forças, em consonância com a faculdade mediúnica que estejam
desenvolvendo, com seus pais espirituais e com as entidades que neles incorporam. As plantas para
este tipo de banho variam conforme a vibração do Guia ou do Orixá com o qual se intenta sintonia”.
71
Vale a pena o trabalho de Vladimir José de Azevedo FALCÃO, Ewé, Ewé, Ossain - um estudo
sobre os erveiros e erveiras do Mercadão de Madureira, ou ainda, Pierre Fatumbi VERGER, Ewé: o
uso das plantas na sociedade iorubá.
72
Carlos Augusto TRINCA, Ritual de umbanda, p. 113. Ainda, segundo Cf. Ibid., tais estímulos
somato-sensoriais colaboram para a incorporação, que pode ser entendida como um estado alterado
de consciência. O estado alterado de consciência pode ser entendido como um estado no qual o ser
humano tem acesso às realidades profundas, arquetípicas, capazes de dar outro sentido do indivíduo
que a vivencia. Pode ser entendido como uma possibilidade inerente a todo ser humano, uma vez
que ele possui estruturas cerebrais, que possibilitam tal fenômeno. É uma alteração qualitativa no
375
74
Figura 16 - Banho de ervas
Fonte: Arquivo Pessoal
Ainda, antes do início da gira é feito o osse de Exu na Casinha dos Exus. A
Casinha dos Exus é o local dos exus, das bombo-giras (pomba-giras) e dos exus-
padrão global de funcionamento mental, na qual o indivíduo tem a impressão de ser radicalmente
diferente do seu modo usual de funcionamento. As percepções que construímos do mundo e de nós
mesmos não são neutras; apesar de terem como base a realidade física, dependem dos recursos
biológicos, culturais e psicológicos de cada um. Durante os estados alterados de consciência, o ser
humano possui uma filtragem seletiva parcial da realidade, revelando aspectos que não são
percebidos no cotidiano. São percebidos aspectos incomuns da realidade, despertados mediante
determinadas situações. Os estados alterados de consciência designa uma série de fenômenos que
vão desde um relaxamento profundo até experiências místicas.
73
Segundo Beatriz Caiuby LABATE; Sandra Lúcia GOULART; Henrique CARNEIRO, Introdução, in:
Beatriz Caiuby LABATE; Sandra Lúcia GOULART (orgs.), O uso ritual das plantas de poder, p. 30: “...
o consumo de uma substância psicoativa é fundamental para a organização de conjuntos simbólicos
e rituais bastante complexos. Observa-se que a utilização desse tipo de substância em contextos
religiosos é também bastante comum e extensa, manifestando-se em diferentes culturas e épocas
históricas”.
74
Segundo Jean CHEVALIER; Alain GHEERBRANT, Dicionário de símbolos, p. 377, a erva é:
“Símbolo de tudo o que é curativo e vivificante, as ervas restauram a saúde, a virilidade e a
fecundidade. Foram os deuses que descobriram suas virtudes medicinais. (...) De modo geral, as
ervas são, muitas vezes, oportunidades para teofanias de divindades fecundantes”.
376
mirins, todos, no caso, guias. O osse75 consiste em, inicialmente, uma limpeza da
casinha e, em seguida, no acendimento de velas, na entrega de oferendas feitas
com bebidas, sempre alcoólicas76, e comidas. Também o pai-de-santo comunica-se
com os exus e, se necessário, é feita uma limpeza espiritual. Existem dois espaços
reservados para as Casinhas dos Exus, um deles onde ficam o exu – Tranca Ruas -,
a bombo-gira – Sandra Rosa, - e o exu-mirim – Brasinha - do pai-de-santo, e um
outro espaço onde ficam os outros exus, bombo-giras e exus-mirins da casa.
75
O ritual do osse é um ritual através do qual é feita, inicialmente, uma limpeza na Casinha dos Exus.
Posteriormente, o pai-de-santo ou a mãe-de-santo fazem alguns procedimentos de magia. São
oferecidas bebidas, comidas e fumos aos exus, aos exus-mirins e as bombos-gira (pombas-gira).
Também se fazem algumas orações. Segundo Carlos SERRANO; Maurício WALDMAN, Memória
D’África, p. 153, os elementos só são eficazes para a função que foram criados depois de investidos
pela curandeiro – sacerdote: “... sacralizá-lo pela enunciação de fórmulas e orações bem como pela
criação de novos acessórios, adornos e símbolos que irão fornecer ao objeto de culto símbolo de um
ancestral mítico a força necessária para a sua função. Em suma, para conquistar uma eficácia
“operatória”, são necessários ritos de nomeação da imagem, pelos quais a palavra torna efetivos os
poderes reservados às imagens”.
76
Interessante notar que Henrique A. JUNOD, no seu livro Uso e costumes dos bantos, p. 457, faz a
seguinte observação a respeitos dos indivíduos que foram possuídos: “Não é somente no altar que se
realizam estes actos de adoração. Onde quer que esteja, o exorcismado, antes de beber cerveja,
deitará uma pequena quantidade à parte, para os seus espíritos. Antes de comer, deitar-lhes-á um
pouco de comida. Trata-se, portanto, duma adoração quotidiana, muito mais contínua e muito mais
individual que os ritos da ancestrolatria, duma comunhão real com os espíritos que, depois de terem
atormentado o exorcista, se tornaram os seus benfeitores e lhe deram o poder de ganhar mais
dinheiro curando outras pessoas. Há, no exorcita, muito mais religiosidade que no indígena em geral”.
377
77
Segundo BRUMANA; MARTINEZ, Marginália Sagrada, p. 137, nota 6, o trânsito entre estes
espaços exige signos explícitos desta passagem – tirar sapatos e objetos metálicos. Para eles: “As
razões alegadas por agentes e clientes são múltiplas e às vezes contraditórias. Os sapatos impedem
o contato com a terra e sua energia; os objetos metálicos dificultam a ação de limpeza dos ‘maus
fluídos’. Mas outras também podem ser ouvidas: sapatos e objetos como relógios, jóias, óculos, etc.
entram em contradição com a humildade e antiguidade dos espíritos”. Já Renato ORTIZ, em A morte
branca do feiticeiro negro, afirma que, nos terreiros de umbanda, dança-se descalço, pois o ser
humano é fonte de correntes elétricas maléficas. Se ele tira o sapato e fica em contato direto com a
terra, a corrente pode escoar pelo solo; sendo a terra o lugar para o qual se dirigem as correntes
elétricas. A sola do sapato tende a isolar o indivíduo do solo, impedindo que as correntes maléficas
sejam expulsas do seu corpo.
78
Podemos pensar no espaço sagrado e profano do terreiro de umbanda como complementares e
compensatórios, ao mesmo tempo em que eles se opõem, eles também possuem um ao outro. Em
lugares predominantemente sagrados, como o local da gira, há conversas profanas (sexo, trabalho,
dinheiro); em um lugar especificamente profano, como o lado de fora da casa, há a Casinha dos
Exus, que contém elementos sagrados. A religião pode ser vista como uma expressão simbólica
deste grupo religioso e, conseqüentemente, o espaço religioso como expressão simbólica da relação
entre o profano e sagrado, entre os seres humanos e os guias. Observa-se também que este espaço
sagrado não é reinventado constantemente, sendo investido deste sentido. Conforme afirma
BRUMANA; MARTINEZ, Marginalia Sagrada, p. 117, a respeito do culto umbandista: “O culto
umbandista é aquele que permite a transposição do profano ao sagrado sem perdas nem renúncias.
É o profano diretamente sacralizado, (...) o que permite a construção do sagrado com os mesmos
elementos que constituem o profano. Esta ‘bricolagem’ religiosa do imediato é uma das chaves da
umbanda”. Os espaços profano e sagrado normalmente não estão totalmente delimitados. O sagrado
deve pactuar com o profano. O espaço é sagrado e profano ao mesmo tempo, dependendo da
intenção e do sentido da ação de quem transita por ele. Esta passagem fluída entre os dois domínios
tem sua correspondência na passagem entre as atitudes, no meio do ritual ou nos intervalos entre um
momento e outro do mesmo. “A extrema proximidade entre o profano e o sagrado que o culto
umbandista apresenta, exige por outro lado a operacionalização de mecanismos altamente
ritualizados para a instauração, a segregação e delimitação deste último” (Ibid., p. 125). Em função de
tudo isto, utilizamos as palavras sagrado e profano.
378
79
Brígida Carla MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanências, p. 247-248.
379
No fundo, de frente para o público, situa-se o altar, composto por duas partes
distintas: a de cima onde ficam as imagens, chamado de Pegí e a de baixo,
onde são colocados os imãs dos assentamentos, que é o Congá
propriamente. Generalizando, chama-se ao conjunto dos dois de Congá. Sua
disposição é diversificada, obedecendo a predominância da nação seguida.
Possui, no entanto, pontos em comum, como a ausência de imagens de Exu
e Pomba Gira e, sempre, encimada pela figura de Oxalá, o qual nunca é
representado crucificado. 48
80
Segundo Brígida Carla MALANDRINO, em Umbanda: mudanças e permanência, p. 226: “... o
congá possui uma importância enorme dentro de um centro de umbanda. Muitas vezes ele é
chamado de altar, em referência ao altar cristão. Porém, o congá é representativo da individualidade
daquele centro, do seu espírito. (...) Por isso, cada congá tem a sua própria forma, sofrendo a
influência do chefe carnal e espiritual da casa; o congá dá identidade ao terreiro de umbanda”.
48
Vera Braga de Souza GOMES, O ritual da umbanda, p.127.
381
Figura 21 – Atabaques
Fonte: Arquivo Pessoal
81
Segundo Vagner Gonçalves da SILVA, Candomblé e Umbanda, p. 110: “... o kardecismo, sendo
praticado por um estrato social mais elevado da população, autodenominando-se uma religião cristã,
legitimando a possessão dos espíritos e apresentando um discurso racional frente aos fenômenos
mágicos, serviu como mediador para a constituição da umbanda, que, sob sua influência, se
desenvolveu como religião organizada”.
382
82
Cabe um esclarecimento ou a divulgação de um fato interessante ocorrido durante a execução do
trabalho etnográfico. A seqüência apresentada sofreu uma reformulação no ano de 2008, tendo como
objetivo a maior inclusão da assistência no ritual. Além disso, em função de questões que não se
tornam relevantes para este trabalho, o terreiro em questão passou a se denominar publicamente
como exercendo a hierosofia, apesar de manter grande parte da estrutura ritual e das linhas da
umbanda. Esta modificação, no nosso entender, deu maior possibilidade ao grupo de inserir novos
elementos rituais, símbolos e dogmas na sua prática religiosa. Segundo Brígida Carla MALANDRINO,
Umbanda: mudanças e permanências, p. 252-260: “Os símbolos importantes dentro dos centros
visitados se configuram como um elemento de ligação com o mundo divino, ou melhor, com os
espíritos e entidades. Através destes símbolos, é possível, àquelas pessoas que se encontram dentro
da umbanda, a criação de uma ponte, de um contato com o mundo divino e transcendente, que não
está presente no decorrer das atividades cotidianas. (...) O que podemos observar é que a
mutabilidade simbólica da umbanda está relacionada com as necessidades individuais dos membros
do grupo. Há um entendimento de que a evolução espiritual é um caminho individual, no qual não é
possível o direcionamento, já que ao fazê-lo, aspectos importantes para aquele indivíduo podem estar
sendo colocados de lado. A umbanda muda para satisfazer as necessidades de seus componentes.
Portanto, algumas vezes, o que se vê, é uma bricolagem de crenças, que a princípio parecem sem
sentido. (...) Podemos dizer que há uma relação dialética entre a umbanda e seus integrantes. O fato
da umbanda apresentar uma mutabilidade constante permite a permanência nesta religião, ao
mesmo tempo em que a manutenção de alguns símbolos de outras religiões propicia a mudança para
a umbanda. Por outro lado, como a umbanda é uma religião que possui uma visão individual da
religiosidade, ou melhor, da vivência da religiosidade, entendida como uma necessidade individual,
ela se permite ser composta por uma diversidade de crenças que interagem. Além disso, apesar da
proposta institucional de cada centro, não é impedido aos seus integrantes que levem as suas
crenças individuais, nem tão pouco que as vivam”.
383
Ritual do beija-mão
Ao som dos atabaques são cantadas músicas para Exu, como, por exemplo:
“Embarabo / Ê majubá, bera lecoché (bis) / Ele exu bara, bara lecoché / Embarabô é
mojubá / para obedé, Exu Lonan, Exu Lonan, para obedé, Exu Lonan, Exu Lonan.
(bis)”83. Todas as pessoas presentes ficam viradas para a rua. Todos cantam e
dançam.
83
Anotações, caderno de campo, Instituto Ubiratan, São Paulo 10/05/08.
384
Ritual de Defumação
Oração
84
Anotações, caderno de campo, Instituto Ubiratan, São Paulo, 10/05/08.
85
Segunda Vera Braga de Souza Gomes, O ritual da umbanda, p. 115-116: “A queima das plantas,
provocando o desprendimento das energias positivas que encerram, tem por finalidade afastar as
negativas, despertar o psiquismo do médium e condicionar sua mente aos Guias espirituais, pela
vibração correspondente de cada um. (...) Certas ervas provocam reação de tal maneira agressiva e
incômoda sobre espíritos mais atrasados, que eles são compelidos a retirar-se. Como cada planta
possui uma propriedade, liberando um elemento específico, a escolha é feita segundo o objetivo
pretendido. Há as apropriadas para descarregar pessoas e locais e as que atraem determinadas
falanges ou seres espirituais”.
385
Ritual do Bate-cabeça
Abertura da gira
86
“Em alta noite / estava sentada / em alta noite / estava sentada / adorando meu Jesus crucificado /
adorando meu Jesus crucificado / Toalha branca / estava vermelha / toalha branca / estava vermelha
/ pelo sangue que escorria de suas veias / pelo sangue que escorria de suas veias/ saudei Oxalá,
saudei / saudei Oxalá, senhor / eu vim foi saudar meu táta / minha babá / na umbanda, meu babalaô”.
Anotações, caderno de campo, Instituto Ubiratan, São Paulo, 19/04/08.
87
Anotações, Caderno de Campo, Instituto Ubiratan, São Paulo, 29/03/08.
386
Consulta coletiva
88
Segundo Brígida Carla MALANDRINO, Umbanda: mudanças e permanência, p. 85-86: “O transe
de possessão é o elemento central do ritual umbandista, ou melhor, da gira. É também um marco
significativo não só da umbanda, como também das religiões afro-brasileiras. Nas giras, o momento
essencial é o da descida dos espíritos que vêm para trabalhar e praticar a caridade. Pode-se supor,
que uma gira de umbanda não acontece sem que haja um transe de possessão ou em linguagem
comum, uma incorporação. O transe de possessão se caracteriza por um estado alterado de
consciência (parcial ou total), que normalmente se manifesta através de alterações comportamentais,
sensoriais, perceptivas e mnemônicas evidentes. Além do aspecto psicológico, o aspecto psico-
cultural reforça, explica e justifica o transe de possessão frente a quem está possuído e a
comunidade. É um papel aprendido no caso de incorporação de guia, não ocorrendo o mesmo nas
incorporações de orixá. Quanto mais aprendizado o indivíduo possui, maior será a sua possibilidade
de controle. Durante o transe de possessão, o que se expressa no comportamento do médium é a
personalidade do deus: expressões, gestos, tom de voz, caráter e temperamento, o que faz com que
ele seja reconhecido pela comunidade. Dentro deste universo religioso, a comunicação com os
espíritos é normal e necessária, pois só assim médium e guia podem praticar a caridade. (...) Por
isso, dentro da umbanda a possessão é um fenômeno coletivo, pois é um processo socialmente
aceito, no qual as entidades que incorporam no médium fazem parte da mitologia e do sistema de
representações do grupo. É ao mesmo tempo a individualização do coletivo, pois cada médium
personifica uma ou várias dessas entidades, dando-lhes uma interpretação pessoal”.
387
das mãos na testa ou no peito e a outra nas costas, entre as omoplatas. Cada
entidade quando chega, cumprimenta os atabaques, a entrada do espaço sagrado e
prepara o local onde vai trabalhar, fazendo os pontos-riscados89 e acendendo as
velas. Segundo Gomes:
Passes e consultas
Depois que cada um dos guias está pronto para o trabalho, as pessoas da
assistência e os filhos-de-santo que não estão incorporados são chamados para
tomar os passes e fazer as consultas. Em alguns casos, a mãe-de-santo, que não
incorpora as entidades da umbanda, faz consultas através de instrumentos de
adivinhação, como baralhos, por exemplo. O passe é feito por três entidades, que
falam, mas como os médiuns estão em desenvolvimento dão apenas passes. Além
da utilização de toques corporais, são também utilizados objetos das entidades,
plantas e certo tipo de fumo para a execução do passe. A consulta, por sua vez, é
feita pela entidade do pai-de-santo, que fica sentada em um banquinho e conversa
com as pessoas que a procuram, dando conselhos a respeito dos problemas que
são trazidos. Em alguns casos, é pedido para a pessoa fazer determinado banho ou
acender uma vela, ou mesmo fazer uma oferenda ou um trabalho para alguma
entidade.
89
Segundo M., entrevista concedida à autora, São Paulo, 02/08/08: “... pra que que se risca o ponto ou o
que é o ponto riscado? Ele é como, sabe a nossa mandala, ele é como a mandala, só é como se fosse,
assim é como a mandala traçadamente, é um riscado, é um arranjo geométrico que a gente faz nas
pedras e ele serve é como se fosse, eu sempre aprendi aqui, que é como se fosse uma entidade de
cada guia, então ali pra quem sabe lê que é diferente da leitura das mandalas, né, que a gente
aprendeu e tal é como se falasse que linha é, quem é a entidade, que linha é, no que trabalha, da
onde veio e tal é como se fosse a identidade deles, então faz o riscado por isso. Por isso que não é
toda entidade que risca ponto assim, né, de cara, vem bem antes aí coloca, nem sempre ta revelado
tudo das entidades no ponto, eles não revelam também, do Vudu, mas ali ta orixá, né, que trabalha
na freqüência de qual orixá, quem é o nome ta mais ou menos na linha”.
90
Vera Braga de Souza GOMES, O ritual da umbanda, p. 112-123.
388
Depois que todas as pessoas presentes são atendidas, cada guia, um por um
na seqüência inversa de sua chegada, pede autorização para a mãe-de-santo,
cumprimenta o congá e os atabaques, as outras entidades e se dirige para frente do
congá. Primeiro dança ao som da música, se contorce, agacha-se e, por fim, já
desincorporado, o médium deita-se no chão de frente para o congá, como no Ritual
do Bate-Cabeça e se levanta. Neste terreiro, após a subida destes guias, uma nova
linha vem em terra. Novamente, dá-se o processo de incorporação, porém, neste
momento, não há mais passes ou consultas, mas uma grande confraternização com
cantos, danças, bebidas e comidas. A impressão que se tem é de se estar
participando de uma grande festa. A ordem impera no primeiro momento, enquanto
que no segundo encontra-se a desordem.
Fechamento da gira
91
“Eu fecho a nossa gira com Deus e Nossa Senhora, eu fecho a nossa gira sambolê, pemba de
Angola”. Anotações, Caderno de Campo, Instituto Ubiratan, São Paulo, 19/04/08.
389
92
Henri HATZFELD, As raízes da religião, p. 114. O autor ainda traz três idéias a respeito dos rituais:
1) O ritual é uma atividade social, sendo um assunto do grupo. Essa simbólica prática e coletiva não
pode agradar exatamente a todos. O ritual é um modo de expressão, que pretende que todos estejam
em acordo. “O ritual pode implicar todas as nossas relações com o mundo, com a natureza, com a
sociedade, com os outros homens”. Ibid., p. 125. Mesmo um ritual que tenha um caráter privado, está
baseado em uma convenção social. Os rituais são atividades simbólicas coletivas. A manipulação dos
objetos simbólicos é assegurada pelo grupo. Os rituais constituem a resposta coletiva do grupo a
situações conhecidas e dominadas através do ritual.
2) O ritual situa-se num ponto onde fazer e dizer não se distinguem. O simbolismo lógico nasce a
partir de uma evolução da prática gestual que no ritual pode acumular duas finalidades: 1) Ao projeto
de efetuação, mistura-se um projeto simbólico, de expressão; 2) Além de fazer, sua finalidade
também é de comunicar, informar, exprimir. O rito é, simultaneamente, uma ação necessária e um
conjunto de sinais expressivos, porque sendo uma situação comum ao grupo, todo grupo é incitado
para ação e para essa troca de informação. Pode ser a conseqüência de certa instância afetiva e a
reposta dada ao fim da tensão. O ritual dá uma forma obrigatória a pulsões afetivas incertas. Ele nos
diz o que devemos pensar e sentir. À medida que participamos do ritual, eles nos orientam e nos
fazem entrar no nosso papel.
3) O ritual abre a porta da transcendência. A ação ou o drama que os homens interpretam supõem
que eles não estejam sós, que sejam ouvidos e que se eles dão, há alguém para receber. Há uma
porta aberta para outra realidade. A transcendência é uma criação da atividade simbólica, portanto
ela varia conforme varia a primeira. “Estão em vias, através da acção simbólica colectiva, de revelar a
si mesmos aspectos do mundo que só essa acção simbólica era capaz de revelar. Os deuses, os
demônios, os antepassados, as forças invisíveis são produtos da actividade ritual. De modo nenhum
são a sua causa, a sua origem ou a sua razão”. Ibid., p. 136. O ritual é um gesto expressivo, uma
comunicação e uma espera de resposta de outro. Surgem, daí, duas idéias importantes: 1) O divino e
a divindade não surgem como um sentimento, por mais forte que ele seja; mas no curso de uma
reação simbólica a uma situação difícil; 2) A transcendência é o que a atividade simbólica acrescenta
390
O ritual tem uma função que pode ser de preservar o ser humano do perigo e
ter uma vida sem imprevistos e sem angústia, isto é, uma condição humana bem
estabilizada e bem definida. Pode se constituir também como ações simbólicas
através das quais se capta e se maneja a força sobrenatural, o que implica na
renúncia da condição humana definitiva, deixando o ser humano inacessível a si
próprio. Criam-se ritos, pois o ser humano sente-se angustiado por se perceber
como um mistério para si próprio, ficando dividido entre o desejo de definir por
regras uma condição humana imutável e a tentação de se tornar poderoso, de
ultrapassar os seus limites:
ao mundo tal como ele é conhecido pelos nossos sentidos e instintos, nascendo de um rito, um pouco
como os contornos de uma lógica das coisas que se devem à linguagem.
Portanto, concluímos que os rituais têm como funções: comunicação, canalização de emoções e
manutenção da coesão do grupo. Os ritos conciliam a sociedade com os deuses, pois abrem a porta
da transcendência. Os ritos são uma criação coletiva; o simbolismo gestual parece obra de uma
prática coletiva; o grupo procura a sua expressão através do ritual, sendo um esforço comum através
do qual se elaboram as crenças e as representações. Os afetos presentes no ritual adquirem uma
espécie de legitimidade e de autoridade, fruto do esforço de dois sentimentos: a motivação afetiva e o
investimento afetivo que cada indivíduo faz no grupo. Como só existe tradição na repetição de uma
simbólica já constituída, supõe-se que o simbolismo lógico repetiu, comentou, organizou conjuntos
simbólicos já constituídos pela prática ritual.
391
... certos ritos têm precisamente por função de utilizar o sagrado enquanto tal,
manifestar (por atitudes negativas) que ele está separado da condição
humana pela sua transcendência, bem como realizar (por acções positiva)
uma participação do homem nos seus arquétipos superiores, isto é, uma
sacralização, uma consagração da condição humana.94
Quando pensamos nos rituais de umbanda, podemos supor que uma de suas
características é a plasticidade, uma vez que dentro dessa religião a mutabilidade
tanto simbólica quanto ritual é constante, pois possui a capacidade de ser
polissêmica e de se acomodar à mudança social pela qual passa o grupo. O ritual é
uma linguagem eficaz, principalmente no que se refere à sua capacidade de
satisfazer a necessidade de simbolização deste grupo, na medida em que atua
sobre a realidade social do mesmo, agindo sobre as relações que o grupo
estabelece com o meio cultural. Além disso, o ritual como preservação da tradição,
segura de maneira ressignificada traços da mesma.
95
Martine SEGALEN, Ritos e rituais contemporâneos, p. 31.
96
Mary DOUGLAS, Pureza e perigo, p. 20.
393
uma coisa pode ser sujo em relação à outra. Quando pensamos nos rituais
umbandistas, observamos que após o adepto tomar o banho de ervas e vestir a
roupa branca não é permitido tocar em pessoas da assistência que chegam da rua.
O toque ou o contato físico é visto como uma forma de impureza. Tal fato tem um
sentido diferente do toque que ocorre na hora do passe, quando tocar significa
exatamente o contrário, ou seja, é através do toque que as energias negativas são
retiradas da pessoa tornando-a puro e limpo.
Os ritos religiosos e mágicos podem ser vistos como uma forma de higiene, já
que existem coisas que precisam ser separadas, pois não podem ser reunidas e
confundidas sem perigo, configurando-se como formas de interdições médicas e
higiênicas: “O sagrado é objeto de adoração da comunidade. Pode ser reconhecido
por regras que expressam seu caráter essencialmente contagioso”97. O sagrado
precisa ser tratado como contagioso, porque relações são expressas por rituais de
separação e de demarcação e por crenças no perigo de se cruzar fronteiras
proibidas. Por exemplo, durante o ritual do ossé, antes da entrega das oferendas, é
necessária uma limpeza na Casinha dos Exus do pai e da mãe-de-santo, que só
pode ser executada por um filho, designado pelo pai-de-santo, e por uma filha, eleita
pela mãe-de-santo, sob o risco de alguma coisa perigosa acontecer, caso a limpeza
seja executada por outra pessoa ou de maneira incorreta.
As regras rituais são sustentadas por crenças que contêm perigos específicos
em suas violações. Quanto mais nos aprofundamos nestas regras, mais
percebemos que estamos estudando sistemas simbólicos: “... passarei a sustentar
que nossas idéias de sujeira também expressam sistemas simbólicos e que a
diferença entre o comportamento da poluição em uma parte do mundo e em outra é
somente uma questão de detalhe”98. Assim, a sujeira pode ser pensada como um
conjunto de relações ordenadas e uma contravenção desta ordem. Onde há sujeira,
há sistema. Ainda, segundo a autora, a sujeira é um subproduto de uma ordenação
e de uma classificação sistemática das coisas, na medida em que a ordem implica
em rejeitar elementos inapropriados. A impureza ou a sujeira é aquilo que não pode
ser incluído, caso se queira manter uma ordem.
97
Mary DOUGLAS, Pureza e perigo, p. 34.
98
Ibid., p. 49.
394
Outro aspecto de relação entre os dois rituais é a formação dos círculos e dos
semicírculos, o que podemos entender como a delimitação de um espaço que
podemos chamar de magicamente protegido102. No caso bantú, temos a formação
99
Segundo Jean CHEVALIER; Alain GHEERBRANT, Dicionário de símbolos, p. 933, o vegetal é um
“... símbolo da unidade fundamental da vida. Inúmeros textos e imagens, em todas as civilizações,
mostram a passagem do vegetal ao animal, ao humano e ao divino, e o contrário. (...) Um circuito
incessante passa através dos níveis inferiores e superiores da vida. (...) É também um símbolo de
caráter cíclico de toda existência: nascimento, maturação, morte e transformação. (...) A vegetação é
naturalmente o símbolo do desenvolvimento, das possibilidades que se atualizarão a partir do grão,
do germe; e também a partir da matéria indiferenciada que a terra representa.
100
Segundo Milton SANTOS, em Metamorfoses do espaço habitado, o espaço é um sistema de
realidades, ou seja, um sistema formado pelas coisas e a vida que as anima, supõe uma legalidade:
uma estruturação e uma lei de funcionamento. O espaço é uma realidade relacional, isto é, coisas e
relações juntas. É percebido como conteúdo e representado no interior de si mesmo outros tipos de
relação que existem entre objetos. Ainda, segundo Ibid., p. 26-27, pode-se definir o espaço como: “O
espaço deve ser considerado como um conjunto indissociável de que participam, de um lado, certo
arranjo de objetos geográficos, objetos naturais e objetos sociais, e, de outro, a vida que os preenche
e os anima, ou seja, a sociedade em movimento. O conteúdo (da sociedade) não é independente da
forma (os objetos geográficos) e cada forma encerra uma fração de conteúdo. O espaço, por
conseguinte, é isto: um conjunto de formas contendo cada qual frações da sociedade em movimento.
As formas, pois, têm um papel na realização social. Pode existir uma reorganização das funções
entre as diferentes frações de território. Cada ponto do espaço é importante, efetivamente ou
potencialmente. Sua importância decorre de suas próprias virtualidades, naturais ou sociais,
preexistentes ou adquiridas segundo intervenções seletivas.
101
Segundo Jean CHEVALIER; Alain GHEERBRANT, Dicionário de símbolos, p. 723: “A planta
simboliza a energia solar condensada e manifesta. As plantas captam as forças ígneas da terra e
recebem a energia solar. Elas acumulam essas forças; daí as suas propriedades curativas ou
venenosas e seu emprego na magia. (...) As plantas trazem as suas sementes. Algumas delas, tais
como o hissopo, exercem um papel purificador”.
102
Segundo Ibid., p. 585: “A mandala é literalmente um círculo, ainda que o seu desenho seja
complexo e muitas vezes se encerre em uma moldura quadrada. Como o iantra (de uso
emblemático), mas de modo menos esquemático, a mandala é ao mesmo tempo um resumo da
manifestação espacial, uma imagem do mundo, além de ser a representação e a atualização de
potências divinas; é assim uma imagem psicagógicas, própria para conduzir à iluminação de quem
a contempla”.
395
Outros rituais que gostaríamos de destacar são aqueles que dizem respeito à
questão da legitimação da hierarquia. Bourdieu, em “Lês rites comme actes
d’institution”105, afirma que na formulação da teoria do rito de passagem, foram
deixadas de lado as questões que dizem respeito à função social do ritual e à
significação social do limite. Há uma diferença de significado para aqueles em que
determinado rito diz respeito e para aqueles aos quais ele não está relacionado. O
autor utiliza o termo ritos de consagração, ritos de legitimação ou ritos de instituição,
ao invés de ritos de passagem, pois tem como objetivo destacar as propriedades
variantes dos ritos sociais, entendidas como ritos de instituição.
103
É importante destacar que, na umbanda, há diferenças entre as giras semanais e as festas.
Normalmente, nas giras semanais não existe comida e bebida distribuída à assistência. No caso das
festas, por exemplo, festa de exu, festa de pretos-velhos, ou descida de orixás, normalmente é
servida comida e bebida à assistência, como uma forma de compartilhamento.
104
Mary DOUGLAS, Pureza e perigo, p. 81.
105
Cf. Pierre BOURDIEU, Lês rites comme actes d’institution. Actes de la recherce em S. Sociale.
396
A consulta é outro aspecto cotidiano que nos permite uma aproximação entre
aquilo que é bantú e umbandista. A consulta é algo usual dentro da umbanda. Como
vimos, em toda gira, há a consulta aos guias que estão presente dentro do terreiro.
Há também momentos em que estas conversas ocorrem fora do momento da gira e
o pai ou a mãe-de-santo as fazem desincorporados. Em alguns momentos, o guia
pode estar próximo e irradiar coisas a eles, mas também a consulta pode ser feita
através de alguns instrumentos que possuem um caráter adivinhatório. A umbanda,
porque sofreu uma séria de influências, possui uma variedade de instrumentos
adivinhatórios – jogo de búzios, cristais, taro, jogo de cartas, dentre outros -
diferentemente do grupo que pesquisamos, que se utilizam basicamente dos
ossículos. Na umbanda, muitas vezes, também é importante decifrar as mensagens
que querem ser dadas pelos guias. Quando isto não é feito através de suas próprias
vozes, pode ser feito através dos instrumentos adivinhatórios, como no exemplo a
seguir:
Quer dizer, a única vez que eu vi você atender foi quando cê tava com um baralho?
Ah, leitura de carta cigana! Não, mas eu atendo, eu atendo pessoas.
Você atende como Liliane?
Como Liliane.
Mas cê tá influenciada?
Não, às vezes é intuição. É isso, é aquilo, mas eu sei.
Então a entidade me dá um diagnóstico e quem vai atender sou eu.
Mas por exemplo, além do baralho cigano, cê faz, cê trabalho com, porquê, com outro
tipo de, outro tipo, búzios, alguma outra coisa?
Não, não, só baralho cigano. Eu fiz o curso de baralho cigano pra iniciada.106
problemas, são feitas indicações de procedimentos, que podem solucionar ou, pelo
menos, ajudar para que as coisas se resolvam. Esses procedimentos incluem:
oferendas, banhos de ervas, orações, tratamento com remédios caseiros, como
garrafadas, acendimento de velas, leitura de textos sagrados, execução de
trabalhos, o que nos coloca em relação, novamente, com a tradição bantú, já que a
preparação tanto do banho de ervas quanto de remédios caseiros nos remete ao
médico tradicional, que encontramos em Maputo:
Mas, por exemplo, essas raízes que a criança toma, ela toma para não ter, então eu
nasci eu já vou tomar ou eu tomo pra curar depois que eu tenho?
Não, não. Não. Logo que nasce a criança tem que ter algumas raízes
tradicionais.
Ela vai beber isso?
Vai beber durante os cinco anos. Depois de cinco anos, pronto, pra não ter
problema. Mesmo aquilo ali, como que se diz, episitria aquilo que, às vezes, a
criança...107
Por fim, os motivos pelos quais as pessoas fazer as consultas nos leva à
questão da feitiçaria e do curandeirismo. É verdade que dentro da umbanda,
diferentemente da tradição bantú, não existe uma visão dialética de bem e de mal. A
umbanda, ao sofrer a influência de valores cristãos, seja através do catolicismo
popular, seja através do kardecismo, tem como mote não fazer o mal. Porém, o fato
de não fazer o mal deliberadamente, não significa que as pessoas não possam ser
atingidas por este mal. Assim, a umbanda não pratica feitiçaria, mas se defende
dela, através do que chamamos de curandeirismo dentro da tradição bantú:
107
S.C., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 10/07/09.
400
tava tão tranqüila. Uma mulher começou a passar mal, levei a mulher no
banheiro, voltei. Então eu senti que energeticamente aquelas pessoas tavam
meio que dependendo de mim, da minha reação. Porque só tinha eu lá fora
de dentro, né.108
108
L., entrevista concedida à autora, gravação em áudio, Maputo, 13/06/08.
109
Clifford GEERTZ, Observando o Islã, p. 103.
110
Cf. Paula MONTERO, Da doença à desordem.
401
formação desse canal de comunicação ocorre, para nós, não apenas através da
doença, mas de todo um arcabouço de dificuldades, que são enfrentadas no dia-a-
dia. Vemos, assim, que é constituída uma relação entre dois eventos que não é
causal, mas que permite uma ressignificação do fato para estas pessoas. Segundo
Jacobi, tais eventos podem ser chamados de sincrônicos e são explicados da
seguinte maneira:
Nota-se que algo paralisador pode ser substituído por um símbolo significativo
e enriquecedor da vida. Os eventos que dificultam a vida são entendidos como uma
mensagem dos guias ou dos antepassados, que, como sabemos, são intermediários
entre os seres humanos e o Ser Supremo. Portanto, a dificuldade pode ser
transformada em símbolo e adquirir um sentido para além do próprio fato concreto,
já que os símbolos religiosos formulam uma imagem da construção do mundo e um
modelo para a conduta humana, que são mutuamente reflexos. Tais símbolos
tornam crível a visão de mundo e tornam justificável o ethos, enquanto molduras da
percepção ou telas simbólicas pelas quais a experiência é interpretada e constituem
orientações para a ação, como guia de condutas. O lado visão de mundo da
perspectiva religiosa centra-se no problema da crença e o lado do ethos no
problema da ação:
111
Jolande JACOBI, Arquétipo, complexo e símbolo na Psicologia de C. G. Jung, p. 61-62.
402
112
Clifford GEERTZ, Observando o Islã, p. 117-118.
113
José de Souza MARTINS, A sociabilidade do homem simples, p. 55.
403
Mais uma vez o que vemos é uma leitura simbólica dos acontecimentos, por
que não dizer uma leitura utópica? A angústia e o desespero são transformados em
aprendizado e esperança. A tradição bantú ensina que reinventar é possível. Para
Certeau114, a prática cotidiana não se faz notar com produtos próprios, mas nas
maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante.
Opera no campo de um sistema, coloca em jogo uma apropriação, ou uma
reapropriação, da cultura dos locutores, instaura um presente relativo a um momento
e a um lugar e estabelece um contrato com o outro numa rede de lugares e de
relações. Há procedimentos populares que jogam com os mecanismos da disciplina
e não se conformam com ela a não ser para alterá-los, enfim, há maneiras de fazer
que formam a contrapartida dos processos mudos organizadores da ordenação
sócio-política. As maneiras de fazer constituem as mil práticas pelas quais os
usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas de produção sócio-
cultural. Essas práticas colocam em jogo uma razão popular, uma maneira de
pensar investida numa maneira de agir, uma arte de combinar indissociável de uma
arte de utilizar:
114
Cf. Michel de CERTAU, A invenção do cotidiano.
115
Ibid., p. 44-45.
404
Não podemos falar sobre o futuro da tradição bantú, nem da umbanda, mas
vemos que um dos seus traços marcantes – a manutenção da tradição através da
tradução mediante a dimensão utópica – continua presente, buscando, atualmente,
a inserção das pessoas na sociedade, seguindo um lema que desde sua gênese
esteve presente: mudar para poder permanecer.
405
CONCLUSÃO
1
Sérgio Figueiredo FERRETI, Sincretismo afro-brasileiro e resistência cultural, In: Carlos CAROSO;
Jeferson BACELAR (org.), Faces da tradição afro-brasileira, p. 127.
2
Ernest BLOCH, O princípio esperança, p. 156.
406
de tradição bantú, uma vez que ela nasceu a partir de uma experiência concreta,
contendo em si um caráter antecipatório, portador de esperança. Apontar a
umbanda enquanto uma utopia bantú, ainda se encontrava em um nível teórico, o
que nos levou a entender o que é bantú na umbanda na atualidade.
Frente ao que foi colocado até então, é possível afirmar que nossa hipótese
foi corroborada, uma vez que as expressões e as ressignificações religiosas dos
bantú no Brasil podem ser entendidas como formas de continuidades e de
sobrevivências, que se precipitaram a partir das condições históricas e dos
acontecimentos sociais. Por isto, essas expressões não se mantiveram de maneira
igual, sendo que dentro desta tradição alguns aspectos foram recuperados, outros
descartados e outros transformados, no intuito de uma reorganização simbólica. O
que vimos foi que para cada momento histórico trabalhado, houve a formação de
práticas culturais diversas que adquiriam um novo sentido e um novo significado.
Por outro lado, o fato de existir uma ressignificação cultural, que apontou para
processos de hibridismo, não impediu que aquilo que é estrutural não pudesse ser
traduzido, permanecendo ao longo do tempo como um componente cultural
inconsciente, que pode ser visto como uma forma de resistência. Ao significar, os
410
Este trabalho possui alguns desafios que não chegaram a ser superados,
sejam elas de ordem empírica, sejam elas de ordem teórico-metodológica. Quanto
às questões de ordem empírica, vemos como falta a não realização de trabalho de
campo em Angola. Apesar de vários escravizados terem vindo de Moçambique,
sabemos que a maior parte dos escravizados trazidos ao Sudeste eram
411
provenientes de Angola, sendo que aqueles que não eram originariamente desta
localidade, passaram por ela, já que a mesma possui o porto que embarcou mais
pessoas ao Brasil. Talvez, peculiaridades da tradição bantú em Angola possam ter
passado desapercebidas. Além disso, entendemos que outra limitação fala a
respeito da impossibilidade de realizarmos o trabalho etnográfico em Maputo, no
caso a descrição do culto aos antepassados. Utilizamos descrições feitas por outros
autores, que não deixam nada a desejar, mas a descrição feita por nós poderia
apontar este ritual na atualidade, bem como dar um toque de concretude ao próprio
ritual. Por fim, não houve a utilização de documentos de fins do século XIX e início
do século XX. O seu uso poderia ter nos auxiliado não só no entendimento da
religiosidade existente no pré e no pós-abolição, como também na melhor
compreensão dos projetos de liberdade. Quanto às questões de ordem teórico-
metodológica, nossas limitações se iniciam pelo tempo. Percorremos um período
longo, o que pode ter implicado em uma perda de profundidade dos momentos
abordados. Além disso, trabalhamos com apenas uma das expressões bantú no
Brasil. Como dissemos no início desta conclusão, as trilhas tomadas pela tradição
foram múltiplas, o que, talvez, inviabilize possíveis generalizações. Por fim, muitos
textos a respeito da tradição bantú não foram escritos por pessoas pertencentes a
essa tradição, o que implicou em termos que fazer traduções em vários momentos,
não esquecendo que toda obra tem a sua parcela de ideologia.
Conseguimos destacar três grandes horizontes que foram abertos por este
trabalho. O primeiro deles diz respeito ao papel que os indígenas tiveram na
formação da umbanda. A umbanda como uma religião brasileira e eminentemente
híbrida pode ter contado com uma influência indígena muito maior do que se soube
até então. A presença dos caboclos como entidades, que estão no princípio de sua
formação, pode ser um indício disto. Um segundo ponto é a questão da influência
bantú no jeito de ser do brasileiro. A tradição bantú chegou ao Brasil logo na sua
constituição. Vemos múltiplas expressões bantú em várias áreas da cultura brasileira
– música, linguagem, religião -, porém pode existir uma presença bantú para além
do dado cultural e essa presença ser constituinte do jeito de ser brasileiro ou da
alma brasileira. Por fim, um último horizonte aberto por este trabalho fala sobre as
transformações das tradições ao longo do tempo, no sentido de apontar diferenças
entre a forma como a tradição se comporta dentro de contextos diaspóricos dentro
412
dos seus locais de origem. Pudemos perceber que a tradição bantú comportou-se de
maneira diferente no Brasil e em Moçambique, no primeiro caso, visando o
hibridismo, no segundo caso, optando pela separação. Talvez, coubesse perguntar
sobre a forma como a tradição se comporta no sentido de obter a sua sobrevivência,
em diferentes localidades, atravessada por contextos históricos diversos.
3
Mia COUTO, A varanda do frangipani, p. 46-47.
413
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