A Invensão Das Tradições - Capítulo 6 - A Invensão Da Tradição Na África Colonial
A Invensão Das Tradições - Capítulo 6 - A Invensão Da Tradição Na África Colonial
A Invensão Das Tradições - Capítulo 6 - A Invensão Da Tradição Na África Colonial
Eric Hobsbawn e Terence Ranger Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. (Coleção
Pensamento Crítico; v. 55)
149 84-0176
CDD-398.042 CDU-398.1
III. Série
TERENCE RANGER
INTRODUÇÃO
Todavia, por mais vantajosa que fosse para os britânicos, a ideologia monárquica não era
suficiente para fornecer a teoria, nem justificar de pronto as estruturas locais de autoridade
colonial. Como poucas eram as semelhanças entre os sistemas político, social e jurídico da
África e da Grã-Bretanha, os administradores ingleses puseramse a inventar tradições
africanas para os africanos. O próprio respeito que sentiam pela ”tradição” os dispunha a
encarar favoravelmente aquilo que julgavam ser tradicional na África. Começaram a
codificar e a promulgar essas tradições, transformando desta maneira costumes flexíveis
em rígidas prescrições.
Tudo isto faz parte da história do pensamento europeu, mas também se integra bastante na
história da África moderna. Os historiadores, para chegarem a compreender as
particularidades da África précolonial, precisam compreender estes processos complexos;
muitos estudiosos africanos e africanistas europeus ainda sentem dificuldade em
libertar-se dos falsos modelos de ”tradição” colonial africana codificada. Entretanto, o
estudo de tais processos não compete apenas aos historiógrafos, mas também aos
historiadores. As tradições inventadas importadas da Europa, ao mesmo tempo que
forneceram aos brancos modelos de ”comando”, deram também a muitos africanos
modelos de comportamento ”modernos”. As tradições inventadas das sociedades
africanas — inventadas pelos europeus ou pelos próprios africanos, como reação —
distorceram o passado; mas tornaram-se em si mesmas realidades através das quais se
expressou uma incrível quantidade de conflitos coloniais.
Diversos livros recentes demonstram que nas décadas de 1880 e 90 os africanos de todo o
Leste, Centro e Sul da África estavam se tornando lavradores, sendo que o excedente de sua
produção era expropriado por exploração, através do comércio, impostos ou arrendamento,
e que sua posição subordinada era definida pelo cristianismo missionário.’ Porém, os
lavradores africanos não tiveram grandes oportunidades de usufruir as tradições inventadas
através das quais o campesinato europeu procurara defender-se contra as intrusões do
capitalismo. Quase em toda a África, os agricultores brancos viam-se não como
camponeses, mas como uma verdadeira aristocracia rural. As manifestações camponesas
européias só chegaram aos africanos por meio de algumas das igrejas missionárias, tendo
já sofrido modificações em sua forma.
A coisa que mais se assemelhou a uma igreja missionária camponesa foi a Missão da
Basiléia. Produto do pietismo de Vurtemberga, os missionários da Basiléia levaram à
África um modelo de sociedade rural derivado de sua defesa ao retorno à vida rural da
Alemanha préindustrial. Pregavam, contra a ameaça dos aglomerados urbanos industriais,
uma ”aldeia-modelo cristã” idealizada, uma ”tradição” rural reconstituída com base na
”combinação pré-industrial de ofícios empregando produtos naturais e famílias
numerosas”. Defendiam. ”uma estrutura social e econômica ”tradicional” no sentido de
existi
rem relações diretas ”entre a produção e o fornecimento locais de alimentos”. Foram para a
África em princípio para encontrar terras que servissem de refúgio às comunidades
rurais alemãs. No contato com os africanos, agiam como ”uma missão da aldeia para
a aldeia”. Na Alemanha, o modelo pietista apenas refletia de forma imperfeita um
passado bem menos orgânico e coerente. Na África, jamais haviam existido ”aldeias”
com o tamanho e a estabilidade das da Basiléia. As aldeias das missões da Basiléia,
longe de oferecer aos cultivadores africanos um meio de protegerem seus valores,
agiram como mecanismos de controle europeu autoritário e de inovação econômica.’
Foram poucas as outras igrejas missionárias que expressaram de maneira tão clara
as aspirações camponesas européias. Muitas, porém, trouxeram características
produzidas através das reações das igrejas à aspiração dos lavradores europeus. Assim,
a Igreja Anglicana reagira às tensões de uma sociedade rural cada vez mais classista
desenvolvendo rituais comunitários ”tradicionais”; mais tarde introduziu na África as
festas da colheita e as procissões da época da Ascensão, através dos campos africanos.’ A
Igreja Católica Romana reagira. à proliferação anárquica de santuários, devoções e
peregrinações rurais locais dando autorização a uma veneração mariana popular e
centralizando-a em alguns santuários aos quais se dirigiu o fluxo de peregrinos.’
Depois introduziu na África réplicas dos santuários de Fátima e Lourdes. Esta
centralização dos rituais e devoções, instituída antes que se estabelecesse um
cristianismo popular africano que a reclamasse, acarretou uma restrição, não um
estímulo à imaginação dos lavradores africanos.
As neotradições eram importantes também porque nas últimas décadas do século XIX
passou a haver uma necessidade urgente de tornar a atividade européia na África mais
respeitável e organizada. Embora na própria Grã-Bretanha, com a promoção da burocracia
e das tradições do funcionalismo na escola, no exército, na igreja e até mesmo no
comércio, a vida estivesse sendo organizada, a maior parte das atividades européias na
África tropical, administrativas ou não, haviam permanecido desorganizadas, mirradas,
irregulares e ineficientes. Com o advento do domínio colonial formal, tornou-se
imprescindível a transformação dos brancos em membros de uma classe dominante
convincente, com direito de defender sua soberania não só pela força das armas e do
capital, como também através do status consagrado pelo uso e outorgado pelas
neotradições.
quando um reitor pensa no futuro de seus alunos, não esquece que eles serão cidadãos do
maior império existente sobre a terra; ensina-lhes patriotismo... Inspira-os com fé na missão
divina de engrandecer seu país e sua raça.’ Os principiantes no funcionalismo colonial
testemunharam o êxito destes esforços. ”Quanto às escolas particulares”, escreveu Sir
Ralph Furse, um dos principais planejadores do funcionalismo colonial,
Isto fez com que se produzissem administradores que governavam seus distritos como
prefeitos arrogantes, que inventavam tradições particulares para humilhar os serviçais.
Contam de um comissário do distrito de Tunduru, ao sul de Tanganica, que ele costumava
dar um longo passeio vespertino, de chapéu. Quando, próximo à hora do crepúsculo, ele
resolvia ir para casa, pendurava o chapéu numa árvore próxima e continuava, de cabeça
descoberta. O primeiro africano que passasse por ali e visse o chapéu devia levá-lo à casa
do comissário e entregá-lo aos criados, mesmo que estivesse seguindo em direção oposta, e
ainda tivesse muito que andar. Se fingisse não ter visto o chapéu, seria para sempre
assombrado pela idéia de ser capturado pelo serviço de espionagem do comissário.”
Só que isso não foi o suficiente para garantir a aristocracia dos soldados e administradores
da África. Havia também necessidade de acreditar que muitos colonos brancos também
eram herdeiros reais ou po-
foi debatido com o Eton College um plano para fundação da ”Escola Privada do Quênia”,
sob os auspícios de Winchester e Eton, com colaboração das duas entidades na formação do
quadro de pessoal e na concessão de bolsas de estudo aos filhos dos brancos mais pobres.
Após uma viagem à Grã-Bretanha para analisar o apoio ao projeto, o Diretor de
Educação resolveu pedir que ”todas as principais escolas particulares nos enviassem
quadros dos edifícios escolares para que os meninos se lembrassem constantemente das
enormes escolas da Inglaterra, e para que os jovens que visitassem a escola pudessem
também se recordar de sua Alma Mater.”
Como toque final, a escola receberia o título de ”Rei Jorge V”, ”como lembrança às raças
atrasadas de que elas faziam parte do Império”.” Para começar, porém, a transformação
foi ocasionada principalmente por um complexo sistema de reformulações que
influenciaram a forma pela qual os brancos da África eram encarados e a forma como eles
mesmos se encaravam.
Mesmo quem pensa que na Inglaterra a paixão pelos esportes já ultrapassou todos os limites
do razoável, tornando-se uma séria ameaça à educa-
a morte de meu pai revelou o desagradável fato de que nem eu, nem os outros membros de
minha família éramos tão opulentos como pensávamos... Nem eu, nem meus irmãos
tínhamos profissão, nem meios de adquirirmos uma.
Apesar disso, ”a caça ensina muita coisa”. Harding chegou a Bulawayo em 1894, e
descobriu que ”a agricultura era um fracasso completo”, e que ”homens como eu eram
mercadoria de pouca saída”. Entretanto, ”os lojistas experientes e confiáveis podiam
conseguir quase todo o dinheiro que quisessem”. Só que o jovem cavalheiro não sucum-
biu. Partiu com um velho amigo também caçador, para procurar ouro. Logo começou a
cavar uma galeria de mina. ”Não adiantava lembrar meu amigo de que eu nada sabia sobre
escavações de minas, porque ele me reduzia ao silêncio com a resposta de que desencavar
ouro era o mesmo que desentocar uma raposa.” Dentro em pouco Harding entrou na
Polícia Britânica da Africa do Sul, encaminhado para uma carreira administrativa
considerada mais aristocrática.”
A fonte principal de imigrantes britânicos com capital após a guerra era o que se
denominava a ”nova classe média alta”. A riqueza familiar gerada em empreendimentos
na área da indústria, comércio e profissões havia atenuado as diferenças de classe da
sociedade vitoriana. A educação das escolas particulares havia fornecido antecedentes
básicos para aqueles que não podiam reivindicar diretamente títulos aristocráticos como
os que tinham esse direito. Os antecedentes dos colonizadores de pós-guerra deviam
muito mais à usina, à mansão do dono de manufatura, ao reitorado rural e à caserna dos
oficiais do Exército Indiano do que à linhagem aristocrática... Entretanto, a fidalguia era
um estilo de vida com que estes se sentiam muito identificados, e pelo qual tinham um
interesse obsessivo... O fato de que os colonizadores europeus pertenciam à classe média
alta representava a maior recomendação para aqueles que sentiam ameaçado seu status e
sua individualidade na sociedade britânica.15
foi desbaratada por colonos líderes, vestidos de secretários coloniais, que. traziam fileiras
de medalhas feitas de tampas de lata e fita vermelha e fo-
14. Colin Harding, Far Bugies (Londres, 1933), p. 22. 15. M. G. Redley, op. cit., p. 9.
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ram marcando com estacas um contorno ao redor do campo, de modo a isolá-lo das
reservas de florestas, de nativos e de caça, até que o próprio campo ficasse inteiramente
”fora dos limites”.’
Por outro lado, todo projeto que visasse aumentar a população de colonos brancos através
da entrada de milhares de pequenos lavradores ou artesãos era frustrado pela
determinação, por parte daqueles que controlavam a sociedade do Quênia, de mantê-la nas
mãos dos cidadãos ”educados nas escolas particulares que tivessem patrimônio, pensão
militar, renda resultante de investimentos ou subvenção familiar estável”.
John Smith, empregado de um armazém em Londres, encontra uma vaga num certo
escritório da África oriental inglesa. John Smithers-Smith deixa o suor do rosto nos livros e
arquivos. ”É o mesmo John, só que muito mais ele... Descobriu o valor de um nome de
grosso calibre... John leva uma vida dissipada. É o costume, neste país. Raramente paga
suas contas... Vive de vales e das lindas histórias sobre o sangue azul de seus ancestrais.
John é uma verdadeira instituição neste país, e insinua-se no próprio seio da sociedade de
Nairobi.”
De maneira mais geral, a força das tradições inventadas européias dé autoridade na África
colonial ajudaram a produzir soldados, adminis tradores e colonos dedicados à ética
”feudal/patriarcal”, ao invés de à ética ”capitalista/transformadora”.
Esta questão, porém, sob muitos aspectos, é bastante enganosa. As tradições inventadas da
Grã-Bretanha do século XIX representavam uma forma de administrar uma sociedade
industrial imensamente complexa, uma maneira de gerenciar e acomodar as mudanças. Na
África, também, os brancos dependeram da tradição inventada para gerar a autoridade e
confiança que lhes permitiram tornar-se agentes de transformações. Além disso, na
medida em que essas tradições foram
16. M. G. Redley, op. cit., p. 39. 17. Roger van Zwannenberg, ”Robertson and the
Kenya Critic”, in K. King e A. Salim (9rg.), Kenyan Historical Biographies (Nairobi,
1971), pp. 145-6.
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Havia duas maneiras bem diretas pelas quais os europeus procuravam fazer uso de suas
tradições inventadas para transformar e modernizar o pensamento e o comportamento
africanos. A primeira delas era a aceitação da idéia de que alguns africanos poderiam
tornar-se membros da classe governante da África colonial, daí estender-se a esses
africanos a educação num contexto neotradicional. A segunda maneira — mais comum —
era uma tentativa de fazer uso do que as tradições inventadas européias tinham a oferecer
em termos de uma relação reformulada entre governantes e governados. Afinal, a tradição
regimental definia as posições dos oficiais e soldados; a tradição de casa-grande da
aristocracia rural definia o papel de servos e senhores; a tradição da escola particular
definia os papéis dos monitores e dos alunos que os obedeciam. Tudo isto poderia ser
usado para construir urna sociedade hierárquica claramente definida, na qual os europeus
comandavam e os africanos eram comandados, porém num contexto comum de orgulho e
lealdade. Assim, se as tradições que os trabalhadores e lavradores haviam criado para si na
Europa não exerceram grande influência sobre os africanos das colônias, as tradições
inventadas européias de subordinação tiveram uma influência realmente decisiva.
Até hoje, quase nada havia sido feito pelas crianças das classes altas (escreveu o Bispo
Tucker), as quais, sob muitos aspectos, estavam em pior situação do que os filhos dos
lavradores. Estávamos convictos de que se as classes dominantes de nosso país deviam
exercer no futuro uma influência positiva sobre seu povo e sentir-se responsável por ele, era
imperioso que se tomassem providências no sentido de aprimorar a educação destas
crianças abandonadas, da forma mais saudável possível... através da disciplina pelo
trabalho e pelo esporte em escolas internas, de maneira a fortalecer o caráter e a capacitar
os bugandeses a assumirem seus pró-
230
McGregor reproduz uma carta de um aluno bugandês, escrita no primeiro ano de vida da
escola, que nos permite ver este notável processo de socialização do ponto de vista dos
nativos.
Todos concordavam que Budo tinha conseguido criar aquela coisa impalpável, o ”espírito
da escola”. Fazia-se sentir em Budo
em sua melhor forma, tal como o respiramos na Inglaterra após várias gerações de
experiências - o espírito de equipe, de disciplina, de patriotismo local - tendo sido notável
a transposição dele para o coração da África.
Sir Philip Mitchell achava que Budo era ”um dos poucos lugares da-
18. G. P. Macgregor, Kings College, Budo: The First Sixty Years (Londres, 1967), pp. 6,
16. 19. Ibid., pp. 35-6. 20. Ibid., pp. 17-18.
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qui que têm alma”. Professores expatriados mais tarde teceram críticas ao ”hábito
budoniano de defender tradições sem valor só porque elas sempre existiriam”.21
Fossem quais fossem as tensões implícitas no ato de fazê-lo no âmbito imperial que
subordinava tão firmemente a classe ganda governante aos administradores britânicos e a
monarquia ganda à coroa imperial, não há dúvida de que os missionários criaram em
Budo um complexo bem-sucedido de novas tradições, que evoluíram gradualmente num
sentido paralelo a um cerimonialismo crescente da função do Kabaka e dos outros reis
ugandeses, de modo a obter uma síntese próxima daquela ocorrida no século XIX na
Inglaterra. As cerimônias do Jubileu de Ouro do colégio — ”Havia quatro Reis na mesa
das professoras” — foram também expressão ritual da dedicação de uma grande fatia da
classe governante ganda a essas tradições inventadas e já consagradas.22 Mas a
experiência de Budo não seria um modelo repetido; os próprios britânicos terminaram se
arrependendo da aliança original com os chefes ganda, e achando que eles não poderiam
promover mudanças realmente modernizadoras. Estas só seriam obtidas por comandantes
europeus que tivessem o apoio leal de subordinados africanos.
21. Ibid., pp. 54, 117, 124. 22. Ibid., p. 136. 23. Charles van Onselen, ”The Witches of
Suburbia: Domestic Service on the Witwa- tersrand, 1890-1914” (manuscrito não
publicado). 24. Frank Weston, ”Islam in Zanzibar Diocese”, Central Africa, xxxii, n. 380
(ago. 1914).
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finfam como operários, mas eram controlados e disciplinados pelas Leis das Relações
entre Senhores e Servos.
De Paris sugeriu-se até, como meio de instilar bem cedo um sentido da modalidade militar
nos jovens africanos, de maneira a prepará-los para uma carreira militar, que os filhos dos
tiralleurs recebessem uniformes e equipamentos em miniatura semelhantes aos dos
pais.25
Os britânicos custaram mais a seguir esta linha. Mas diante da ameaça francesa eles
também puseram-se a regularizar os regimentos africanos. Lugard dedicou sua meticulosa
paixão pelo detalhe à transformação de suas tropas nigerianas de ”turbas” em uma força de
combate disciplinada e efetiva. Logo passou a tê-los em alta estima; choviam sobre eles
elogios oficiais por sua conduta em campanhas na Costa do Ouro e no norte da Nigéria;
construía-se uma tradição regimental tão rapidamente quanto se construíra o espírito de
Budo. A administração de Lugard era formada principalmente de oficiais do exército;
também na África Oriental os ”governos eram essencialmente de caráter militar nesta
época”, e o Professor George Shepperson fez observações sobre
a estreiteza da linha entre os civis e militares... Foi através de suas forças, bem como de
suas missões que a cultura européia foi levada aos habitantes nativos da África Central
britânica.2ó
Este tipo de entrada de africanos na tradição militar teve o mesmo tipo de ambigüidades e
o mesmo grau de êxito que a criação do espírito de Budo. Às vezes, as duas formas de
socialização se reuniam, como no caso do Kabaka Edward Mutesa. Mutesa tornou-se
Kabaka quando ainda era um colegial, em Budo, e ficou lá até termi-
25. S. J. Cookey, ”Origins and pre-1914 Character of the Colonial Armies in West
Africa” (conferência, Univ. de Califórnia, Los Angeles, 1972). 26. George Shepperson,
”The Military History of British Central Africa: A Review Article”, Rhodes-Livingstone
Journál, n. 26 (dez: 1959), pp. 23-33.
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nar seus estudos; sua coroação foi realizada na capela da escola; ele liderou a procissão do
Jubileu de Ouro. Contudo, ele foi integrado à tradição regimental do exército britânico.
Ali Ma/rui afirma que os Kabakas haviam-se tornado ”uma instituição anglo-africana”, fato
nitidamente manifesto nas cerimônias que sucederam a morte de Mutesa. Ele teve dois
funerais - um em Londres e outro em Kampala, ambos caracterizados por grandes honras
militares.
A aceitação de Mutesa nas fileiras oficiais, porém, foi uma rara exceção. Muito mais geral
foi a produção de homens como o sucessor de Mutesa à presidência do Uganda, Idi Amin.
Mazrui argumenta que a ascensão de Amin e de seu ”Iumpen-militariado” pode ser
considerada como a restauração das tradições militares pré-coloniais, suspensas desde a
conquista colonial. Porém, de fato, a carreira de Amin nos fornece um excelente exemplo
de socialização através do exército colonial. Conforme nos relata Mazrui, quando Amin foi
recrutado no Real Corpo Africano de Fuzileiros em 1946, mostrava
27. Ali A. Mazrui, Soldiers and Kinsmen in Uganda: The Making of a Military Ethno-
cracy (Londres, 1975), p. 173. 28. Ibid., pp. 177, 190, 191. 29. Ibid., pp. 206-7.
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Espelhos negros de oficiais ingleses era exatamente o que se pretendia fazer dos soldados
africanos. Como Keegan demonstrou, os exércitos europeus haviam-se baseado
livremente nos trajes e na aura romântica das raças ”guerreiras” por eles enfrentadas. Não
parecem ter feito isso na África, não como conseqüência de seus confrontos militares com
os africanos. Restou a Baden-Powell, um crítico da mentalidade formal e militar, basear-se
nas capacidades escotistas dos matabele (povo da Rodésia) para oferecer à juventude
branca um treinamento flexível, fecundamente inspirado em mitos kiplinguianos sobre a
jingal. Durante muito tempo, na África meridional, os jovens africanos eram treinados sob
rígidas normas regimentais e os jovens brancos, paradoxalmente, nas técnicas dos
mateiros.30
A admissão dos africanos ao que se pretendiam que fossem réplicas das neotradições da
Grã-Bretanha não ficou só na copa-cozinha, da casa-grande, nas escolas como Budo ou no
recrutamento para o exército. O cristão africano hipotético do Bispo Weston, em busca da
fraternidade, poderia, se tivesse sorte, ”aprender datilografia””, e muitos africanos
educados em missões ingressaram nos níveis inferiores da hierarquia burocrática. Os
escriturários africanos começaram a dar valor aos carimbos e à fileira de canetas no bolso
da camisa; as sociedades de dança africanas usavam carimbos surripiados para autenticar
sua correspondência mútua, e dançavam com trajes completos, tanto burocráticos como
militares.” O personagem louco de Graham Greene, no barco cheio de rolos de papel,
escrevinhando constantemente as minutas, enquanto procurava endireitar um mundo
alienado, foi um tributo ao poder imaginativo — embora também uma dramatização da
impotência — das formas de burocracia colonial. E, naturalmente, os cristãos africanos,
transformados em integrantes do clero da fraternidade imperfeita das próprias igrejas
cristãs, aprenderam a desempenhar os rituais inventados e reinventados da eclesiologia
européia do século XIX.
Neste sentido, houve uma certa periodização. As tradições inventadas européias foram
importantes para os africanos numa série de fases superpostas. A neotradição militar, com
demarcações hierárquicas claramente visíveis, e obviamente indispensável ao
funcionamento do colonialismo primitivo, foi a primeira influência poderosa. Seu im-
33. Tony Clayton, ”Concepts of Power and Force in Colonial Africa, 1919-1939”,
seminário do Instituto de Estudos sobre a Comunidade de Nações (Universidade de
Londres, out. 1978). 34. Martin Channock, ”Ambiguities in the Malawian Political
Tradition”, African Affairs, lxxiv, n. 296 (jul. 1975); John Iliffe, A Modern History of
Tanganyika (Cambridge, 1979). 35. Kenneth Kaunda, Zambia Shall be Free (Londres,
1962), p. 31.
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Esta foi uma das muitas razões para o prestígio relativamente alto dos empregos
não-produtivos entre os africanos da África colonial. Ao mesmo tempo, se as novas
tradições de subordinação haviam começado oportunamente a definir certos tipos de
especializações, deram origem mais tarde a conceitualizações profundamente
conservadoras destas especializações, fazendo com que os professores, ministros e soldados
africanos se opusessem abertamente a tentativas posteriores de modernização.
36. Ranger, Dance and Society in Eastern Africa. 37. Para uma análise da literatura
recente sobre a consciência proletária africana, veja Peter Gutkind, Jean Copans e Robin
Cohen, African Labour History (Londres, 1978), introdução; John Higginson, ”African
Mine Workers at the Union Minière du Haut Katanga”, Associação Histórica Americana
(dez. 1979).
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Na África Oriental alemã a idéia da centralização da monarquia tinha dois aspectos. Por
um lado, os alemães acreditavam que os próprios africanos tinham uma noção rudimentar
de realeza, e principalmente nos primeiros estágios de interação com os reis africanos
prepararam-se para apoiar as manifestações africanas de monarquia e para enfeitá-las com
alguns dos acessórios das encenações cerimoniais européias do século XIX. Assim, um
oficial alemão relatou ao Kaiser em 1890 que havia entregue presentes do imperador ao
chefe Rindi do Chagga: ”Enquanto os soldados apresentavam armas,... envolvi seus
ombros com o manto da coroação.. . do Teatro Lírico de Berlim e coloquei-lhe na cabeça o
elmo com o qual certa vez Niemann cantou Lohengrin.”39 Por outro lado, os alemães
acreditavam que as idéias africanas de governo pessoal por um monarca poderiam ser
infinitamente ampliadas de forma que a figura de um Kaiser todo-poderoso viesse a
personificar a autoridade imperial alemã. Como nos fala John Iliffe:
Mas foram os britânicos que mais elaboraram a ideologia monárquica. O rei britânico não
possuía o poder executivo indiscutível e manifesto do Kaiser alemão. Contudo, dele se
falava em termos mais místicos do que práticos. J.E. Hine, bispo da Rodésia do Norte,
achou que a coroação do Rei Jorge V foi ”uma grande cerimônia religiosa”.
Alguns aspectos do ritual, segundo ele, foram ”muito teatrais, lembrando uma
cena de ópera”. Houve também ”música demais”, especialmente escrita para a ocasião,
”música moderna, para mim barulhenta e sem melodia”. Mas,
no geral, a Coroação foi magnífica. Não foi uma simples encenação medieval, anacrônica,
sem nada a ver com o espírito do século XX; não foi uma mostra teatral de uma
magnificência bem preparada... Era um simbolismo da mais alta pompa, só que por trás
dele havia uma realidade — a unção sagrada do eleito do Senhor, um ato de caráter quase
sacramental, seguido pelo gesto de depositar sobre a cabeça deste homem a Coroa que é
o símbolo externo da terrível, porém, grandiosa responsabilidade de governar todo o povo
inglês e as várias nações de além-mar que devem sua lealdade ao Rei inglês.41
No vale acenderam-se quatro enormes fogueiras, ao redor das quais centenas de nativos
escuros pulavam e dançavam. Alguns tinham guisos nos pés, e quase todos traziam
clavas... Os europeus, abrigados por um anteparo de capim, ficaram sentados em
semicírculo, e entre eles e as fogueiras dançavam os aborigines... Depois a banda da polícia
adiantouse e à luz do fogo que morria brindaram-nos com a ”Marcha dos Homens de
Harlech”, ”Avante, Soldados de Cristo” e outras melodias.42
Porém, não foi apenas a igreja oficial que falou da monarquia em termos religiosos. Os
administradores leigos, foram ainda mais longe. Seus discursos pintaram aos ouvintes
africanos um rei quase divino; onipotente, onisciente e onipresente. Numa série de
discursos oficiais aos Sotho, por exemplo, frisava-se que o rei tinha conhecimento de sua
situação, preocupava-se com o bem-estar do povo e responsabilizava-se por decisões que
na verdade houvessem sido tomadas pelo gabinete. Em 1910, o Príncipe Arthur de
Connaught disse ao Chefe Supremo dos Sotho que o novo Rei Jorge V ”lembra-se das
reivindicações que fizestes a Sua Majestade anterior, Rei Eduardo”, e que ele sabia que
”quando ele resolver que é hora de incluir a Basutolândia na
41. J. E. Hine, ”The Coronation of King George V”, Central Africa, xxix, n. 344 (ago.
1911), pp. 200-1. 42. A.G. De La P., ”How the Angoni kept Coronation Day”, Central
Africa, xxx, n. 345 (set. 1911), pp. 242-3.
239
União Sul Africana, vós obedecereis lealmente à Sua decisão”.’ Em 1915 Lorde Buxton
afirmou ao Chefe Supremo que ”Sua Majestade jamais deixa de interessar-se pelo
bem-estar dos Basuto”, e que apreciava o apoio aos ”grandes exércitos que o Rei enviou
contra Seus inimigos”.44 Em 1925, o Príncipe de Gales disse aos Sotho que estava
muito satisfeito por ver que vós ainda cultivais a memória de minha bisavó, a Rainha
Vitória... Ela já não está mais entre nós, mas o Rei continua a velar por vós, com carinho de
pai. Deveis mostrar-vos merecedores de sua proteção, ouvindo os homens que ele enviou
para guiar-vos e educar-vos.45
E em 1927, o Coronel Amery, secretário de estado para as colônias, disse aos Sotho que
”Sua Majestade o Rei, que me enviou nesta viagem através de Seus domínios, está
profundamente interessado por cada um de seus súditos — grandes e pequenos”.46
Quando o Rei dirigiu-se pessoalmente aos Sotho — como na Men- sagem Imperial de
1910 — seus assistentes puseram-lhe na boca palavras de tom patriarcal:
Quando uma criança está com problemas, vai falar com seu pai, e este, após escutar o que
ela tem a dizer resolverá o que deve ser feito. A criança deverá, então, confiar em seu pai
e obedecer a ele, porque não passa de um membro de uma grande família, enquanto o pai
tem grande experiência por ter resolvido os problemas de seus filhos mais velhos, sendo
capaz de julgar o que é melhor não só para o filho mais novo mas para a tranqüilidade e
bem-estar da família inteira... A nação Basuto é como uma filha muito pequena entre os
muitos povos do Império Britânico.4’
Não admira que em vista de tudo isto o velho chefe Jonathan tenha saudado a visita do
Príncipe de Gales à Basutolândia em 1925 com termos que alguns dos missionários
presentes, surpresos, consideraram quase blasfêmias:
Para mim, hoje é um dia de festa. Rejubilo-me neste dia como Simeão das Escrituras por
ter visto o Senhor Jesus antes de dormir no túmulo de seus pais.48
Usou-se a mesma retórica em toda a África britânica. Um observador atilado das indabas
(conferências) do governador com os chefes no
norte da Rodésia na década de 1920 ouviu-o dizer que essas reuniões ”eram consideradas
como uma demonstração (no sentido mais infantil possível) da benignidade de Sua
Majestade em relação a seus súditos africanos incultos”.” Certamente o governador
preocupava-se muito em indicar o Rei como fonte de sua autoridade e da autoridade dos
administradores distritais.
Todos vós sois um só povo - súditos do Rei da Inglaterra. O Rei deseja que todos os seus
súditos vivam juntos em paz... É para assegurar isto que se enviam Governadores... O
Governador que mora em Livingstone e tem uma grande região para administrar não pode
ficar em um só lugar, mas os Comissários Distritais... representam o Governador e o Rei,
e cuidam para que os desejos do Rei se realizem.50
ter-lhes ficado gravadas na mente... foram, em primeiro lugar, a pompa e cerimônia que
cercaram a visita - nas palavras de Kapijimpanga, ”o uniforme do Bwana brilhava tanto
que nem podíamos olhá-lo diretamen-
49. Winfrid Tapson, Old Timer (Cidade do Cabo, 1957), p. 65. 50. Governador Sir
James Maxwell, discurso na Indaba de Ndola, 6 jul. 1928, pasta ZA1/9/59/1, Arquivos
Nacionais, Zâmbia, Lusaka. 51. Alto comissário, telegrama ao secretário de Estado, 19
maio 1919, S3/28/2/4, Maseru. 52. Daily Telegraph, 30 maio 1925, ”Picturesque
Scenes”.
241
te” - e, em segundo lugar, o fato de poderem reunir-se assim amigavelmente com todos os
outros chefes do Territórios’
O Rei Jorge é o maior monarca do mundo. Não é como um chefe africano. Não gosta de
aglomerações em torno d’Ele, e espera que seus súditos se comportem muito bem.s”
Mas as visitas reais eram ocasiões necessariamente raras na África colonial. Nos intervalos,
o culto real teve de ser sustentado por rituais inventados locais. Havia gente que fazia
carreira se conseguisse dar contribuições inspiradas a esses rituais. Exemplo excelente foi
Edward Twining, mais tarde governador de Tanganica. O biógrafo de Twining conta que
a família da mãe dele achava que ela não tinha feito um bom casamento, porque o pai de
Twining, um ministro, não era considerado aristocrata. A carreira militar não muito
destacada de Twining e sua transferência para o serviço colonial foi uma tentativa de
conseguir um destaque convincente, levada a efeito do modo consagrado nas periferias
imperiais da aristocracia. Twining só encontrou distinção no final - e obviamente devido à
sua capacidade de inventar tradições com a maior sinceridade.
53. Relatório Anual, comissário nativo, subdistrito de Solwezi, 1925, ZA7/1/9/2, Lusaka.
54. ”Rodésia do Norte. A Visita Real. 11 abr. 1947, Detalhes do Programa e dos
preparativos para a transmissão”, P3/13/2/1, Lusaka.
242
À noitinha, houve a Exibição Conjunta de Toque do Tambor e Fogos d Artifício, que foi
um espetáculo em sua maior parte pessoal meu, uma ve que eu o criara, ensaiara dois
números eu mesmo, organizara tudo, com truíra uma arquibancada, vendera todos os
bilhetes pessoalmente... A. chegar, o Governador apertou um botão que na verdade não
acionav nada, embora aparentemente disparasse um foguete que, por sua ve2 acendia
uma enorme fogueira do outro lado do lago, que então disparav 50 foguetes. Neste
momento, os Corneteiros tocavam a Retirada no escu ro, e aí acendiam-se quarenta e
poucas lâmpadas, holofotes e ribaltas, os tambores e a banda começavam a tamborilar nos
instrumentos de per cussão, enquanto os espectadores acomodavam-se para escutar.. . De
pois, alguns colegiais faziam o Desfile dos Soldados de Brinquedo. Sou be dos detalhes na
Escola Duque de York, em Dover, e adaptei-os às con dições locais. Os meninos vieram
de calças brancas, túnicas vermelhas, capacetes brancos de casamata, o oficial com uma
barretina de pele de ur so... O batuque prosseguiu depois disso. Fogos de artifício. Uma
dançk de guerra executada por 120 guerreiros vestidos com peles de leopardo Plumas de
avestruz, lanças e escudos. Depois, o espetáculo ”De selvagens a soldados”, mostrando o
processo de transformação dos guerreiros nati• vos em verdadeiros soldados.
55. Darrell Bates, A Gust of Plumes: A Biography of Lord Wining of Godalming andl
Por todo o Império (escreve ele), houve comemorações no dia 6 de maio de 1935, jubileu
de prata do Rei Jorge V, até na pequena Kakamega, sede de um distrito nas montanhas do
Quênia ocidental... O poder do Estado manifesta-se com um desfile das forças policiais...
A majestade do governo foi evocada num discurso do governador, lido pelo comissário
distrital, que observou que o Rei Jorge estava presente, mesmo diante do súdito mais
desprezível, na efígie das moedas que traziam, das medalhas de seus chefes. Ele era ”um
grande soberano, que muito ama o seu povo e procura governá-lo com justiça. Sempre
mostrou um profundo interesse pessoal por vosso bem-estar” — e os mestres-escola
líderes da opinião dos lavradores estavam ainda influenciando nos princípios do
legitimismo camponês ao passarem por cima dos servos do Rei e requererem à Câmara
dos Comuns que desagravasse as ofensas recebidas... A família real foi ainda mais ligada
ao progresso material na cidadania camponesa. Na década da Rainha Vitória ”muito
poucos eram os que tinham roupas, a não ser peles e cobertores, e raros eram os que
sabiam ler. Agora tendes ferrovias, escolas, hospitais, cidades e centros comerciais, que
vos dão a oportunidade de desenvolvimento que é conseqüência da civilização e do bom
governo”. O aperfeiçoamento colonial relacionou-se à recreação dos lavradores. As
atividades do dia incluíram uma exibição do grupo local de escoteiros... Os governantes
buscavam a simpatia de seus súditos no carnaval, quase que em verdadeiras saturnais.
Havia competições exclusivamente para os africanos, pau-de-sebo, cabo-de-guerra,
cabra-cega; havia também, contudo, esportes inter-raciais, uma corrida de bicicletas, uma
corrida de asnos, até uma partida de futebol à fantasia, entre europeus e indianos, para os
nativos assistirem. Também a economia camponesa foi cooptada; havia corrida de ovo na
colher e de saco de farinha... Também se utilizou a cultura camponesa; o dia começou
com cultos religiosos. Os europeus foram a um erudito culto anglicano. Os africanos
tiveram de contentar-se com uma simples missa.”
É óbvio que os administradores britânicos levavam este tipo de coisa muito a sério —
Twining, quando governador da Tanganica, recusava-se a negociar com a União Africana
da Tanganica, de Nyerere, porque os considerava desleais à Rainha. Contudo, é muito
difícil avaliar como os africanos encaravam tudo isto. Lonsdale descreve as comemorações
do Jubileu de Ouro de Kakamega como parte do processo de ”naturalização do Estado”, e
mostra como os líderes do campesinato local agiam facilmente de acordo com as regras; na
Rodésia do Norte, os chefes apoiavam a ”teologia” administrativa dirigindo suas
57. John Lonsdale, ”State and Peasantry in Colonial Africa”, in Raphael Samuel (org.),
People’s History and Socialist Theory (Londres, 1981), pp. 113-14.
244
Uma das funções da invenção da tradição no século XIX foi dar uma forma simbólica
reconhecível e rápida aos tipos de autoridade e submissão em evolução. Na África, e sob a
influência por demais simplificadora do domínio colonial, as próprias afirmações
simbólicas tornaram-se mais simples e enfáticas. Os observadores africanos da nova
sociedade colonial dificilmente poderiam deixar de perceber a importância que os
europeus davam aos rituais públicos da monar-
58. Uma variação interessante, que desafiava diretamente a ideologia colonial imperial,
veio num sermão pregado em Bulawayo em junho de 1923 por um professor do Atalaia,
chamado Kunga: ”O Rei Jorge V diz a verdade aos ingleses, mas o povo deste país não se
atém ao que ele diz; faz suas próprias leis. Em 1912, o Rei quis vir à Rodésia visitar os
nativos e mudar as leis, mas os brancos da Rodésia do Sul enviaram-lhe uma mensagem
dizendo-lhe que não viesse, pois havia uma epidemia no país”. Pasta N3/5/8, Arquivos
Nacionais, Rodésia, Salisbury.
245
Parece-me que havia de modo geral quatro maneiras pelas quais os africanos procuraram
aproximar-se das tradições inventadas européias, de maneira relativamente autônoma, sem
aceitar os papóis a eles atribuídos pelos europeus dentro delas. Num certo aspecto, a
burguesia africana aspirante procurava apropriar-se da gama de comportamentos e
atividades que definiam as classes médias européias. Por outro lado, muitos governantes
africanos - e seus partidários - lutavam para obter o direito de exprimirem sua autoridade
através dos títulos e símbolos da monarquia neotradicional européia. Os africanos
novamente adaptaram o simbolismo neotradicional europeu como se fosse um modismo,
manifestando sua sofisticação não através da ”imitação” dos europeus, mas de uma mostra
de sua impressionante capacidade de atualizar-se, de discernir as realidades do poder
colonial e fazer sobre elas comentários perspicazes. Contudo, sob muitos aspectos, quem
usou de forma mais interessante as neotradições européias foram africanos erradicados, que
precisavam descobrir novas maneiras de construir uma nova sociedade.
uma classe cada vez maior e mais bem organizada de africanos educados que tinham sido
atraídos a Kimberley pelas oportunidades lá existentes de emprego e de utilização das
habilidades e alfabetização que possuíam.
Tais homens aspiravam tornar-se cidadãos estáveis do universo liberal britânico do século
XIX - um universo de liberdade, igualdade sob a
246
O esporte (diz Willan) era importante na vida da pequena burguesia africana de Kimberley,
proporcionando-lhes mais um motivo de associação e um meio de disseminar o valor
hegemônico da sociedade em que viviam. Jogava-se tênis em três clubes: Blue Flag
Tennis Club, Champion Lawn Tennis Club e Come Again Dawn Tennis Club... Muito
mais populares, entretanto, eram o críquete e o rugby, esportes mais jogados na Colônia do
Cabo em geral... O críquete foi o jogo realmente adotado pela pequena burguesia africana
de Kimberley. Não admira, pois afinal o críquete não era apenas um jogo. Era antes uma
instituição exclusivamente britânica que englobava tantos dos valores e ideais... a que
aspiravam os pequenos burgueses. O críquete era um espaço de treinamento social: a
analogia entre o críquete e a vida era amplamente aceita, sendo inquestionável seu valor
na formação do caráter. ”Cautela, cuidado, paciência e decisão”, segundo alegava um
escritor do Diamons Fields Advertiser em 1893, ”inculcam-se com a viril prática diária do
críquete”. O críquete personificava e propagava a idéia do império.
Em Kimberley, os dois clubes africanos (que tinham vários times cada) eram o Duke of
Wellington Cricket Club... e o Eccentrics Cricket Club: até mesmo os nomes são
sugestivos, simbolizando ambos qualidades sobre as quais se construiu o Império
Britânico.59
Mais tarde, na história africana, tudo isto veio a ser çonsiderado pelos brancos como uma
supervalorização do ideal do império. Na Africa do Sul não havia lugar para uma classe
governante negra e jogadora de críquete. O críquete africano extinguiu-se, e foi mais tarde
substituído pelo futebol proletário, esporte das massas na África moderna. Apenas em
sociedades coloniais excepcionais, como Serra Leoa, a sociedade creole podia demonstrar
regularmente seu real poder através de elaborados rituais neotradicionais europeus.
59. Brian Willan, ”An African in Kimberley: Sol. T. Plaatje, 1894-8”, Conferência sobre
formação, cultura e consciência de classes: a construção da África moderna (jan. 1980),
pp. 3, 5, 14-15.
247
Foi incentivado a adquirir para uso na Inglaterra e em seu país alguns dos símbolos
do cerimonialismo real britânico: um coche real, um uniforme de gala de almirante,
jaquetas escarlates para seus criados em Lealui. ”Quando os reis se reúnem”,
anunciou o velho rei Lozi, ”nunca há falta de assunto”.”
60. Henry Rangeley ao ”Caro Mr. Cohen”, mar. 1938, Manuscritos Históricos 20,
RA1/1/1, Lusaka; G. Caplan, The Elites of Barotseland, 1878-1969 (Califórnia, 1970). 61.
M. R. Doornbos, Regalia Galore: The Decline and Collapse of A nkole Kingship (Nairobi,
1975).
248
apoio colonial à monarquia Ankole, seguido de uma reação na qual ”oficiais a serviço na
região desaprovaram que o título de Rei fosse usado para referência aos governantes de
pequenos Estados africanos” `’2
taram por obter o título de rei, convites para coroações britânicas, por manifestarem sua
autoridade interna com coroas e tronos, coroações e jubileus à moda britânica. O
Omugabe de Angola conseguiu um trono e um brasão, bem como uma coroa.ó3 O
sucessor de Lewanika, Yeta, lutou infatigavelmente para proclamar um status real
especial. Teve certas vantagens. Sempre que um membro da realeza visitava a Rodésia do
Norte, a administração procurava desesperada outras atrações que não as Cataratas de
Vitória para lhe mostrar. Acabavam por recorrer aos Lozi. Ao comentar as alternativas
cerimoniais para a visita do Príncipe de Gales, em 1925, o governador lamentou que ”de
modo geral certamente nenhum destes Chefes causará grande impressão”,
consolando-se, porém, com a idéia de que a ”exibição aquática” de Lozi certamente seria
”coisa deveras pitoresca como cerimonial nativo”.64 Yeta trouxe sua frota pelo Zambeze
ao encontro do Príncipe, mas procurou frisar em seu discurso que ”seria um grande prazer
para nós receber e saudar Vossa Alteza Real em nosso território com cerimônias
adequadas”.”` Além disso, havia milhares de Lozi trabalhando nas minas e cidades do
sul, muitos como escriturários e supervisores. Estes ”novos homens” estavam
perfeitamente preparados para fazerem doações e prepararem abaixo-assinados para
recuperarem o título de ”Rei” para seu chefe supremo. Em último lugar, o status especial
de Baroce significava que a administração não poderia simplesmente impor ”reformas”
locais, mas teria de negociar com Yeta.
Com todas estas vantagens, Yeta alcançou um notável triunfo simbólico no final de seu
reinado. Estava decidido a assistir à coroação de 1937. Os obstáculos eram incríveis. A
secretaria de Estado em Londres havia a princípio decidido não convidar nenhum chefe
africano para a cerimônia, restringindo-se aos príncipes indianos. Os administradores da
Rodésia do Norte alegaram que a coroação era um rito sacramental apropriado apenas
para os brancos; os africanos não podiam penetrar neste sacrário; a liturgia da coroação
”não significaria nada para a grande maioria dos nativos”.” Yeta, contudo, usou todas
Lusaka.
Ibid. Ibid. De Sir Herbert Stanley ao Sir Geoffrey Thomas, 7 jul. 1925, P3/13/3/8,
Lusaka. Discurso de Yeta III, 18 jun. 1925, RC/453, Lusaka. Memorando sobre o
secretário de Estado ao governador, 6 fev. 1937, parte 1/1792,
249
as suas vantagens; fez concessões à ”reforma” do governo local e foi convidado. Sua
viagem para o sul foi triunfal, pois a mão-de-obra migrante Lozi acorreu aos magotes à
linha do trem para doar fundos para a viagem. Yeta foi recebido pelo rei; apresentou-lhe a
saudação real Lozi; e retornou em triunfo a Baroce, onde os progressistas Lozi
mostraram-se
muito satisfeitos com a honra concedida a Baroce pelo Império Britânico, que convidou
Vossa Alteza para assistir à Coroação e, além disso, deu a Vossa Alteza um dos melhores
lugares da Abadia, privilégio de que apenas algumas dentre milhares de milhões de pessoas
gozaram.ó7
Esta vitória foi registrada para a posteridade pelo secretário de Yeta, Godwin Mbikusita,
cuja obra Yeta III’s Visit to England foi publicada. em 1940.
A Coroação (escreveu Mbikusita) foi o maior evento que já vimos ou que jamais veremos
em nossas vidas. Ao assistir ao Cortejo da Coroação, sentimo-nos como se estivéssemos
sonhando ou entrando no Paraíso.
Todavia, ele também deixou bem claro que Yeta prestou homenagem ao Rei Jorge de rei
para rei, relatando que Sobhuza II da Suazilândia lhe havia telegrafado ”desejando... que
saúdes o Rei com a etiqueta e o espírito real africano”.68
Não foram apenas os grandes chefes que já uma vez haviam possuído o título de ”Rei” que
utilizaram este tipo de política simbólica. O recurso à neotradição política real foi uma das
técnicas da grande invenção de tradições ”tribais” ocorrida em toda parte nas décadas de
1920 e 30.`i4 Leroy Vail relata o que ocorreu no caso: os Tumbuka tinham instituições
religiosas e sociais diferentes. Sob o colonialismo, porém, um grupo de africanos
educados nas missões criou uma supremacia Tumbuka. Chilongozi Gondwe foi escolhido
para chefe em 1907, e iniciou uma campanha para imprimir se status real nas cabeças
dos Tumbuka. Todo ano comemorava o aniversário de sua ascensão ao trono, e começou a
usar o título de ”Rei”. Foi entusiasticamente apoiado pela elite missionária, que começava
a produzir uma histopria, mítica do antigo império Tumbuka. Conforme afirma Leroy
Vail,
67. Sobre a visita de Yeta à Inglaterra, veja seção de arquivo 2/324, ii, Lusaka. 68.
Godwin Mbikusita, Yeta III’s Visit to England (Lusaka, 1940). 69. Terence Ranger,
”Traditional Societies and Western Colonialism”, Conferência sobre Sociedades
Tradicionais e Colonialismo (Berlim, jun. 1979). Publicado sob o título ”Kolonialismus in
Ost-Und Zentral Afrika”, J. H. Grevemeyer (org.), Traditionale Gesellschaften und
europãischer Kolonialismus (Frankfurt, 1981).
250
rar, dada a natureza da educação vitoriana por eles recebida nas escolas missionárias.
Um ministro africano, Edward Bote Manda, apoiou o filho de Chilongozi, John Gondwe,
como novo chefe. Manda criou um rito de coroação elaborado, que incluía uma série de
”votos de chefia” baseados nos da coroação britânica — ”Prometeis solenemente proteger
nossa religião cristã e observar os ensinamentos da Bíblia que norteiam o correto governo
de vosso povo?” A supremacia Tumbuka começou a assumir as características de uma
monarquia cristã progressista.70
Veremos que estas tentativas de manipular o simbolismo real britânico eram complexas. Se
do ponto de vista dos chefes elas eram principalmente reafirmações do status, do ponto de
vista dos educados em missões eram também uma tentativa de redefinir a autoridade dos
chefes. O rito da Coroação Britânica, segundo Mbikusita,
mostra grande cooperação entre a Coroa e o Povo, e isto evidencia que embora o povo
seja súdito do Rei, o Rei também é súdito do povo... Para nós é surpreendente que na
Inglaterra a Rainha seja coroada junto com o Rei. Isto é um sinal de matrimônio
irrevogável e de um verdadeiro companheirismo. A civilização européia levou séculos
para apreciar isto; esperamos que átravés dos ensinamentos e exemplos a nós concedidos
por esta civilização, esta geração venha a aperceber-se disso.
Contudo, assim como a dedicação ao simbolismo real revelou-se, afinal, restrita aos
colonialistas, seus frutos por toda a África foram no máximo ambíguos. Os africanos
educados perceberam afinal que o caminho para o poder efetivo, de forma a trazer
mudanças modernizadoras, não estava nos pequenos ”reinos” africanos. Começaram a in-
70. Leroy Vail, ”Ethnicity, Language and National Unity”, (pesquisa da Univ. de
Zâmbia, 1978). Dr. Vail está organizando um volume sobre etnicidade e economia política
na África do Sul. 71. Mbikusita, op. cit., pp. 56, 63-4, 145.
251
Enquanto isso, os governantes africanos que realmente conseguiram adquirir alguns dos
acessórios da monarquia neotradicional sofriam um processo irônico. Tratava-se, como
Doornbos expressa muito bem em relação a Ankole, de uma transformação das instituições
monárquicas costumeiras, flexíveis e adaptáveis, numa monarquia colonial ”adaptada à
estrutura burocrática e enfeitada com o correr do tempo com uma grossa camada de
cerimonialismo”. A essência da mudança em Ankole transformaria o Omugabe ”num
instrumento de hierarquia burocrática e relegaria os valores tradicionais ao nível do
folclore”. As aspirações de tornar-se mais parecidos com o rei/imperador terminaram por
tornar os governantes africanos realmente mais parecidos com ele, pois eles passaram a
ocupar cada vez mais o centro cerimonial de suas sociedades, em vez de estarem no
núcleo político ou cultural. Foi um processo perfeitamente resumido pelo título do livro
de Doornbos, Regalia Galore (Abundância de adereços). Porém, ao contrário do
cerimonial do rei/imperador, que ainda desempenha uma função na reduzida
Grã-Bretanha pós-imperial, o cerimonial dos reis africanos acabou não servindo para
refletir nada de importante. A monarquia Ankole foi abolida sem qualquer sombra de
oposição, e a imprensa local resumiu na manchete a transição para um símbolo de
autoridade mais abertamente burocrático — ”O trono substituído pela cadeira do
presidente”.73
Entretanto, não foram apenas os governantes e o clero africanos que tentaram manipular
os símbolos da tradição inventada européia. Também se apoderaram deles milhares de
outros que viviam uma economia colonial, seja como trabalhadores ambulantes ou como
pequenos escriturários e funcionários. Cada um destes dois grupos procurava adaptar-se à
nova sociedade colonial, e faziam-no em parte pela participação em associações de dança
em que algumas tradições inventadas européias eram adotadas para exprimir a essência do
colonialismo, como fonte de prestígio, ou como sinal de bom gosto. John Iliffe
72. Seção de Arquivo 3/234, Lusaka contém as versões original e censurada dos
Discursos. 73. Uganda Argus, 28 set. 1967.
252
Como já expliquei, estas ocasiões carnavalescas eram muito mais do que uma mera
imitação dos brancos. As sociedades de dança descendiam de associações mais antigas que
durante décadas, e provavelmente
do interior, ora evidenciando uma mudança no equilíbrio de poder, pela adoção dos
costumes Omani, ora pela adoção dos costumes indianos. Entre outras coisas, as
associações de dança conseguiam captar com muita perspicácia as divisões básicas
existentes na sociedade colonial européia, usando-as como base para o concurso de dança.
Antes da formalização do colonialismo, as equipes francesas competiam com as britânicas
e alemãs. Sob o colonialismo, as equipes que representavam o poder marítimo competiam
com a infantaria colonial. No Quênia, as equipes que professassem lealdade à coroa
britânica - ”Kingi” - competiam com as equipes que representassem os rivais mais
evidentes dos ingleses, os escoceses. As equipes ”Scotchi” desfilavam pelas ruas de
Mombasa, vestindo saiotes e tocando gaitas de fole, consagrando assim a invenção
bem-sucedida, no século XIX, da tradição escocesa. Os galeses, infelizmente, estavam
menos presentes no império africano, e não houve druidas nos concursos de dança
africanos!76
74. Iliffe, A Modern History of Tanganyika, pp. 238-9. 75. Ranger, Dance and Society
in Eastern Africa. 76. Ibid.
253
Estas danças eram executadas por homens que ou tinham segurança em seu ambiente
urbano litorâneo ou podiam retornar a seus lares no interior. Outros, porém, sentiam-se
deslocados, necessitando não só refletir sobre a experiência colonial, mas também
descobrir uma maneira de organizar suas vidas como um todo. Para essas pessoas, foi útil
uma tradição européia em particular — a modalidade militar. Era o modelo mais nítido
disponível, principalmente nos primórdios do colonialismo. Suas demarcações de
autoridade eram óbvias, assim como seus métodos de inspirar a disciplina no trabalho;
constituía uma parte essencial das primeiras sociedades coloniais européias, e parecia
oferecer um modelo completo de comunidade operativa. Estava tão à mão, que a
modalidade e a metáfora militares eram amplamente empregadas pelos missionários
europeus, que armavam e treinavam seus recém-convertidos antes que se estabelecesse o
domínio colonial formal, e continuaram a treinar os colegiais e a organizá-los em bandas
estrídulas durante grande parte do período colonial.” A disciplina apropriada, entretanto,
não era simplesmente reforçada pelos brancos; muitas vezes, era algo que os próprios
africanos procuravam. Afinal, a adaptação às exigências do novo sistema colonial era
coisa que os próprios africanos tinham de fazer. Era necessário um novo modelo de
interação social, de hierarquia e controle para muitos agrupamentos africanos que queriam
tornar-se comunidades. A modalidade militar poderia ser utilizada pelos africanos para
todos esses fins.
O Prof. Ogot cita um caso impressionante. O Bispo Willis visitou convertidos africanos
espalhados no oeste do Quênia em 1916.
77. Terence Ranger, ”The European Military Mode and the Societies of Eastern África”
(conferência da Univ. de Califórnia, Los Angeles, 1972).
254
As tradições inventadas da Europa do século XIX haviam sido introduzidas na África para
permitir que os europeus e certos africanos se reunissem para fins de ”modernização”.
Mas havia uma ambigüidade inerente ao pensamento neotradicional. Os europeus adeptos
de algumas neotradições acreditavam que respeitavam os costumes. Apreciavam a
idéia dos direitos consuetudinários e gostavam de comparar o tipo de título possuído por
chefes africanos com os títulos aristocráticos que reivindicavam. Existia assim um
profundo malentendido. Ao comparar as neotradições européias com os costumes da
África, os brancos estavam sem dúvida comparando coisas muito diferentes. As tradições
inventadas européias caracterizavam-se por sua rigidez. Envolviam conjuntos de regras e
procedimentos registrados - como os ritos de coroação modernos. Davam segurança porque
representavam algo imutável num período de transformação. Ora, quando os europeus
pensavam nos costumes africanos, atribuíam a ele, naturalmente, estas mesmas
características. A afirmação feita pelos brancos de que a sociedade africana era
profundamente conservadora - que levava uma vida fundada em regras antiqüíssimas e
imutáveis; numa ideologia baseada na imobilidade; uma estrutura social claramente
definida como hierárquica - não implicava sempre numa denúncia do atraso ou da
relutância dos africanos em modernizar-se. Significava, com freqüência, um elogio às
admiráveis virtudes da tradição, embora um elogio completamente equivocado. Esta atitude
em relação à África ”tradicional” tornou-se mais evidente quando os brancos entenderam
nas décadas de 1920 e 30 que na África não ia acontecer uma rápida transformação
econômica, e que a maioria dos africanos teria que continuar em comunidades rurais; ou
quando os brancos começaram a deplorar as conseqüências das mudanças que já
78. F. B. Welbourn e B. A. Ogot, A Place to Feel at Home (Londres, 1966), pp. 24-5.
255
As tribos modernas da África central não são restos de um passado précolonial, mas
criações coloniais de administradores coloniais e intelectuais africanos... Os historiadores
não limitam a suposta homogeneidade Chewa em vista dos indícios históricos de incessante
assimilação e dissociação de grupos periféricos... Não distinguem entre um sistema de
governantes mais velhos, imposto pelo congelamento colonial da dinâmica política, e o
desequilíbrio de poder e influência competitivo, instável, fluido do período pré-colonial.”
Da mesma forma, a África do século XIX não se caracterizava pela falta de competição
econômica e social interna, pela autoridade indiscutível dos mais velhos, pela aceitação
dos costumes que dava a cada um — jovens, velhos, homens e mulheres — um lugar na
sociedade, definido e protegido. A competição, o movimento e a fluidez eram
79. Crítica a S. J. Ntara, History of the Chewa, org. Harry Langworthy, feita por W. M.
J. Van Binsbergen, African Social Research (jun. 1976), pp. 73-5.
256
Os termos da reconstrução foram ditados pelas autoridades coloniais nos anos que se
seguiram a 1895, quando a pacificação significou a imobilização das populações, o reforço
da etnicidade e uma maior rigidez da definição social.80
Por isso, o ”costume” no corredor de Tanganica era mais uma invenção que uma
restauração. Em outras partes, onde a dinâmica competitiva do século XIX havia dado aos
jovens muitas oportunidades de estabelecerem bases independentes de influência
econômica, social e política, os mais velhos assumiram, sob o colonialismo, o controle de
alocação de terras, das transações matrimoniais e das funções políticas. Ao contrário do
século XIX, no século XX as gerontocracias de pequenas proporções foram uma
característica marcante nessas sociedades.
O. Marcia Wright, ”Women in Peril”, African Social Research (dez. 1975), p. 803.
257
Há uma literatura antropológica e histórica cada vez maior sobre estes processos, que aqui
não será possível resumir. Porém, alguns comentários impressionantes darão uma idéia do
debate. Assim descreve John Iliffe a ”criação das tribos” na Tanganica colonial:
81. Henry Meebelo, Reaction to Colonialism (Manchester, 1971). 82. Terence Ranger,
”European Attitudes and Áfrican Realities: The Rise and Fall of the Matola Chiefs of
South-East Tanzania”, Journal ofAfrican History, xx, n. I (1979), pp. 69-82. 83. John
Iliffe, A Modern History of Tanganyika, pp. 323-4.
258
A questão não consiste apenas no fato de que esse suposto costume ocultava novos
equilíbrios de poder e riqueza, uma vez que era exatamente isso que o costume sempre
lograra fazer no passado; o problema é que estas construções de direito consuetudinário, em
particular, tornaram-se rígidas e codificadas, incapazes de refletirem prontamente
mudanças futuras. Colson comenta que:
Uma vez mais, creio que a questão não é que as ”tradições” mudaram para acomodar-se a
novas circunstâncias, mas que, a certa altura, elas pararam de mudar. Uma vez que
”tradições” relacionadas à identidade comunitária e ao direito territorial estavam escritas
nos registros dos tribunais e expostas aos critérios° do modelo consuetudinário inventado,
um novo e imutável corpo de tradições havia sido inventado.
84. Elizabeth Colson, ”The Impact of the Colonial Period on the Definition of Land
Rights”, in Victor Turner (org.), Colonialism in Africa (Cambridge, 1971), iii, pp. 221-
51.
259
reagindo às condições desenvolvidas entre 1908 e 1921, assumiram a forma atual na década
de 1920.85
Por volta da mesma época, os europeus começaram a interessar-se mais pelos aspectos
”irracionais” e ritualísticos da ”tradição”, olhando-os de forma mais tolerante. Em 1917,
um teólogo de missão anglicana sugeriu que pela primeira vez os missionários do campo
”colhessem informações a respeito das idéias religiosas dos negros”, para que sua relação
com a sociedade tradicional pudesse ser compreendida. ”No século XX já não nos
contentamos em cortar o nó, como fizeram no século XIX, e dizer: a ciência acabou com
essas superstições.”R6 Após a I Guerra Mundial, os anglicanos na África Oriental,
defrontando-se com a necessidade de reconstruir a sociedade rural após a devastação da
luta e o impacto posterior da depressão, começaram a fazer análises antropológicas dos
aspectos do ritual ”tradicional” que haviam contribuído para a estabilidade social. Dessa
pesquisa veio a conhecida política da ”adaptação” missionária, que produziu seu exemplo
mais desenvolvido nas cerimônias cristianizadas de iniciação da diocese Masasi, no
sudoeste de Tanganica.87 De maneira mais geral, surgiu desta espécie de pensamento e
prática — com a ênfase nos rituais de continuidade e estabilidade — um conceito de
”Religião Tradicional Africana” imemorial que de maneira nenhuma faz justiça à
variedade e vitalidade das formas religiosas africanas précoloniais.
É claro que nada disso poderia ser realizado sem uma grande parcela de participação
africana. Como escreve John Iliffe:
85. Wyatt Mac Gaffey, Custom and Government in the Lower Congo (Califórnia, 1970),
pp. 207-8. 86. ”The Study of African Religion”, Central Africa, xxxv, n. 419 (nov. 1917),
p. 261. 87. Terence Ranger, ”Missionary Adaptation and African Religious Institutions”,
in Terence Ranger e Isaria Kimambo (orgs.), The Historical Study of African Religion
(Londres, 1972), pp. 221-51.
260
Durante os vinte anos após 1925, Tanganica passou por uma vasta reor ganização social
na qual os europeus e africanos uniram-se para criai uma nova ordem política baseada na
história mítica... Analisando o sis tema (de governo indireto), um oficial concluiu que seus
principais parti dários eram os chefes progressistas... Naturalmente, eles eram as figura
centrais do governo indireto, cuja atitude maior era dar-lhes liberdade di ação. As
administrações nativas empregavam muitos membros da elite local... Até mesmo
homens que haviam recebido educação, mas sen postos de administração nativa,
geralmente reconheciam a autoridade he reditária... Em compensação, muitos chefes
recebiam com simpatia o; conselhos daqueles homens.
Assim como nacionalistas mais recentes procuravam criar uma cultua nacional, aqueles
que construíram as tribos modernas frisavam a cultua tribal. Em ambos os casos, os
intelectuais assumiram a liderança... C problema foi sintetizar, ”selecionar o melhor (da
cultura européia) e di luí-lo no que possuímos”. Ao fazê-lo, os intelectuais naturalmente re
formularam o passado, de forma que suas sínteses foram, na verdade, no vas criações.A9
Uma das áreas em que os intelectuais africanos interagiram com a teo ria missionária da
”adaptação” foi a da invenção da ”Religião Tradi cional”.
na estabilização da sociedade.
88. Iliffe, op. cit., p. 324. 89. Ibid., pp. 327-9, 334.
261
É muito fácil perceber as vantagens pessoais que estes inventores da tradição procuravam
ganhar. O professor ou ministro bem-sucedido que se tornasse braço direito de um chefe
supremo, seria homem de real poder. O clero africano que construiu o modelo da
”Religião Tradicional” para apresentá-la como a ideologia inspiradora das comunidades
pré-coloniais estáveis pretendia fazer o mesmo nas sociedades africanas modernas por
meio do cristianismo ”adaptado”.91 Mesmo assim, Iliffe conclui que
seria errado ser cínico. O esforço de criar uma tribo Nyakyusa era tão honesto e construtivo
quanto o esforço basicamente semelhante, quarenta anos mais tarde, de fazer de
Tanganica uma nação. Ambos foram tentativas de construir sociedades em que os homens
pudessem viver bem no mundo moderno.92
Só que havia ainda uma ambigüidade nas tradições inventadas africanas. Sem levar em
conta o quanto elas possam ter sido utilizadas pelos ”tradicionalistas progressistas” para
introduzir novas idéias e instituições — como a educação obrigatória sob a chefia
Tumbuka — a tradição codificada inevitavelmente tornou-se mais rígida de forma a
favorecer os interesses investidos vigentes na época de sua codificação. O costume
codificado e reificado foi manipulado por tais interesses investidos como uma forma de
afirmação ou aumento do controle. Isto aconteceu em quatro situações em especial, pelo
menos.
Os mais velhos tendiam a recorrer à ”tradição” com o fim de defenderem seu domínio dos
meios de produção rurais contra a ameaça dos jovens. Os homens procuravam recorrer à
”tradição” para assegurar que a ampliação do papel da mulher na produção no meio rural
não resultasse em qualquer diminuição do controle masculino sobre as mulheres como
bem econômico. Os chefes supremos e aristocracias dominantes em comunidades que
incluíam vários agrupamentos étnicos e sociais apelavam para a ”tradição” para manter ou
expandir seu, controle sobre seus súditos. As populações nativas recorriam à ”tradição”
para assegurar que os migrantes que se estabeleciam na área não viessem a obter nenhum
direito econômico ou político.
90. Ibid., pp. 335-6. 91. Ranger, ”Missionary Adaptation and African Religious
Institutions”
Esta situação gerou muitas tensões. Os migrantes voltavam para uma sociedade
fortemente controlada pelos mais velhos; os velhos, por sua vez, ficavam alarmados com
as novas habilidades e a renda adquirida pelos migrantes. Passaram então a reforçar os
direitos prescritivos consuetudinários que lhes davam o controle sobre as terras e as
mulheres, de proteção, portanto. MacGaffey descreve a aldeia colonial de Bakongo nos
seguintes termos:
Os homens ficam cadetes até mais ou menos os quarenta anos, talvez até mais... Ficam à
disposição dos mais velhos, que os tratam de forma muitas vezes autoritária. Os jovens
consideram os mais velhos invejosos e críticos. O status de jovem é o de dependente... O
controle exercido sobre ele pelos velhos é função de seu monopólio gerencial no serviço
público de rotina.
A reação dos jovens a esta manipulação da ”tradição” assumiu duas formas. O objetivo
principal era levar a melhor sobre os mais velhos e sua esfera de tradição local, mas
inventada pelo regime colonial. Isto podia ser feito pela adoção de certas neotradições
européias. Assim, os migrantes que retornavam geralmente estabeleciam-se como
catequistas — com ou sem o reconhecimento das missões — e fundavam
suas próprias aldeias com base em novos princípios de organização, como foi o caso das
congregações uniformizadas do oeste do Quênia, de que o leitor ainda há de se lembrar.
Entretanto isso era mais fácil de ser feito no princípio do período colonial, antes que a
igreja européia e o Estado europeu começassem propriamente a exigir uma subordinação
ao costume. Na aldeia de MacGaffey, os jovens, privados de alternativas concretas,
refugiavam-se em fantasias.
Todavia, também se abrira outro caminho para os jovens no período colonial, antes do
surgimento dos partidos nacionalistas. Visava superar o ”costume” reificado dos mais
velhos através de recursos a aspectos mais dinâmicos e transformadores do tradicional.
Analistas recentes observaram cada vez mais os amplos movimentos de erradicação da
feitiçaria ocorridos no período colonial, com a promessa de unia sociedade sem males, por
assim dizer. MacGaffey conta como em sua aldeia de Bakongo as acusações de feitiçaria
feitas pelos mais velhos causaram grande descontentamento, fazendo com que surgisse
um ”profeta” que se dispôs a eliminar a feitiçaria, proeza que privaria os mais velhos de
uma poderosa forma de controle social. O resultado foi a ”paralisação temporária dos mais
velhos”. Roy Willis demonstrou como no sudoeste rural da Tanganica, na década de 1950,
jovens tentaram romper o controle exercido pelos mais velhos sobre a terra e os
”serviços públicos de rotina” locais, através de uma série de movimentos de erradicação da
feitiçaria, que venceram o costume inventado através da utilização de recursos da Idade do
Ouro pré-social.” Das muitas nutras análises que sustentam o debate, vou contentarme em
citar um relato particularmente convincente, embora não
O livro de Denise Paulme, Women of Tropical Africa, embora vise refutar uma imagem
européia estereotipada da opressão das mulheres africanas, revelou, entretanto, de forma
muito nítida, duas coisas. A primeira foi um colapso de caráter prático, no período
colonial, de muitas instituições consuetudinárias que regulavam as relações entre os
sexos, um colapso quase sempre desvantajoso para as mulheres sob o aspecto econômico.
A segunda coisa foi o uso constante que os homens faziam da ”tradição”. Anne Laurentin
afirmou em seu capítulo
da antologia que
96. Sholto Cross, ”The Watch Tower Movement in South Central Africa, 1908-1945”
(tese de doutorado apresentada à Universidade de Oxford, 1973), pp. 431-8. §7. Anne
Laurentin, ”Nzakara Women”, in Denise Paulme (org.), Women of Tropical Africa
(California, 1963), pp. 431-8.
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reafirmaram seu controle sobre assuntos locais queixando-se de que os mais jovens
estavam desrespeitando as tradições; os homens reforçavam sua autoridade sobre um
sistema econômico e social em transformação queixando-se de que as mulheres estavam
desrespeitando as tradições.
Uma antologia mais recente de ensaios sobre as mulheres africanas prova sem sombra de
dúvida este argumento. Como nos lembra Caroline Ifeka-Moller, os registros coloniais
sobre a ”tradição” africana, nos quais se baseava o novo costume inventado, provinha
exclusivamente de informantes masculinos, de forma que ”as crenças nativas femininas”
não eram registradas. Assim, ”o domínio masculino da sociedade, ou seja, seu controle
sobre crenças religiosas e organização política”, expressava-se de maneira ainda mais
clara na tradição inventada colonial do que jamais fora antes. Não se deu grande atenção às
mulheres nem em trabalhos dos etnógrafos do governo indireto, nem dos estudiosos da
adaptação missionária — nem de intelectuais africanos com base missionária.98 Além
disso, os homens africanos estavam perfeitamente preparados para recorrer à autoridade
colonial com com o objetivo de impor o ”costume” às mulheres, uma vez que ele já
estivesse definido. Na Rodésia do sul, e em toda a zona de migração de mão-de-obra
industrial, os administradores aplicavam punições por adultério e impunham um controle
paternalista sobre o casamento para atender a diversas queixas constantes de homens
”tradicionalistas”.99 Entrementes, na ausência de imigrantes do sexo masculino, as
mulheres passaram a desempenhar um papel cada vez mais importante na produção rural.
Uma vez mais, as mulheres tinham dois meios possíveis de se afirmarem frente à tradição
dominada pelos homens. Podiam optar pelo cristianismo missionário e suas idéias de
direitos e deveres femininos, ou procurar usar as contrapropostas alternativas disponíveis
dentro da cultura africana. Às vezes, as mulheres tentavam desenvolver ritos de iniciação
feminina, que no passado haviam contrabalançado a influência ritual masculina no
microcosmo. Outras vezes, tentaram basear-se em formas de associação ritual regional e em
movimentos proféticos macrocósmicos do século XX, para desafiar as restrições da
sociedade limitada do costume inventado.
Alguns estudos recentes procuraram explorar estas iniciativas femininas. Richard Stuart,
num trabalho não publicado, mostra como
98. Caroline Ifeka-Moller, ”Female Militancy and Colonial Revolt”, in S. Ardener (org.),
Perceiving Women (Londres, 1975). 99. Eileen Byrne, ”African Marriage in Southern
Rhodesia, 1890-1940” (tese de pesquisa de humanidades da Univ. de Manchester, 1979).
266
100. Richard Stuart, ”Mpingo wa Amai - The Mothers’ Union in Nyasaland” (manuscrito
não publicado). 101. Sherilyn Young, ”Fertility and Famine: Women’s Agricultural
History in Southern Mozambique”, in Palmer e Parsons (orgs.) Roots of Rural Povery.
267
Os dois outros recursos à ”tradição” com base nas relações descobertas no novo costume
colonial são ainda mais diretos. Ian Linden conta como os chefes Ngoni da Niazilândia
tentaram usar a aliança colonial com os administradores e missionários para exercer
controle sobre seus súditos Chewa. Para fazê-lo, esboçaram o conceito de uma ”cultura
Ngoni” disciplinada e sadia e de uma ”cultura Chewa” decadente e imoral - os mesmos
conceitos que Binsbergen critica, dizendo serem eles falsos com relação ao século XIX;
eles argumentaram que a cultura Ngoni havia prevalecido antes da chegada dos europeus
e devia ser agora apoiada, contra as práticas ”abomináveis” dos Chewas; exploraram o
gosto europeu pelas hierarquias nítidas de status para consolidar redes de poder muito
menos definidas no passado. Os Ngoni conseguiram também tornar mais rígida sua
”tradição” de disciplina e bravura militar através do uso seletivo da modalidade militar
européia.
Pode-se lançar mão de outro exemplo da Niazilândia para mostrar o uso da ”tradição” pelos
nativos com o objetivo de manter o controle sobre os imigrantes. Matthew Schoffeleers
demonstrou como os Mang’anja de Lower Shire Valley conseguiram reter o controle da
autoridade, o controle da alocação de terras, e daí por diante, embora fossem em número
muito menor do que os imigrantes de Moçambique. Fizeram-no através de recurso conjunto
às ”tradições” de chefia pré-colonial e às ”tradições” do culto territorial local. Aliás, a
história do vale no século XIX revela enorme fluidez; aventureiros fortemente armados
penetraram na região e subjugaram os Mang’anja; foram destruídos os santuários do culto
territorial; ocorreram rapidamente mudanças na auto-identificação do povo, que utilizava
diferentes rótulos étnicos de acordo com as variações do prestígio. Foi a pacificação
colonial que rompeu com o poder dos aventureiros armados, restaurou os chefes Mang’anja
e realmente estimulou a invenção da identidade Mang’anja. Com o costume codificado
colonial, o direito que tinham os chefes Mang’anja de distribuir a terra passou a ser
sagrado. No século XX, os Mang’anja obtiveram uma autoridade, em nome da tradição,
que jamais haviam exercido no passado.102
102. lan Linden, ”Chewa Initiation Rites and Nyau Societies”, in Terence Ranger e John
Weller (orgs.), Themes in the Christian History of Central Africa (Londres, 1975);
Matthew Schoffeleers, ”The History and Political Role of the Mbona Cult among the
Mang’anja”, in Ranger e Kimambo (orgs.), The Historical Study of African Religion.
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CONCLUSÃO
Outros novos estados, menos atingidos pelas críticas de Ngugi, expressaram sua soberania
com hinos nacionais, bandeiras e comícios que Eric Hobsbawm diz, neste livro, serem
típicos da Europa do século XIX. Representando estados territoriais multiétnicos, as
nações africanas estão muito menos envolvidas na invenção de ”culturas nacionais” do que
estavam os românticos escoceses ou galeses.
103. Ngugi wa Thiong’o, Detained: A Writer’s Prison Diary (Londres, 1981), pp. 58-9.
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grantes - grupos explorados com que Ngugi simpatiza - algumas vezes conseguiram
extrair a vitalidade remanescente na mescla de inovação e prosseguimento inerente às
culturas nativas, uma vez que elas continuaram a desenvolver-se apesar dos rigores do
costume codificado colonial.
Quanto aos historiadores, resta-lhes, pelo menos, uma dupla tarefa. Precisam libertar-se da
ilusão de que o costume africano registrado por administradores ou por muitos
antropólogos sirva de orientação para o estudo do passado africano. Também precisam,
porém, verificar quantas tradições inventadas de todos os tipos têm a ver com a história da
África no século XX, e trabalhar no sentido de compor relatos melhor fundamentados
sobre tais tradições do que este esboço preliminar.
3lit9e OamaV,snF