Lisa Minari Hargreaves

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BANQUETES, ARTEFATOS E AS COMPANHIAS DOS ARTISTAS


RENASCENTISTAS: A REIVENÇÃO DE COCANHA
NO ESPAÇO URBANO COMESTÍVEL

Lisa Minari. UnB

RESUMO: A busca para a recriação do Pais de Cocanha refletiu-se, durante o século XVI,
na elaboração do banquete da corte, fruto do trabalho de reconhecidos artistas que
reuniam, sincreticamente, artefatos alimentares, arquitetura, música e teatro. Conquistar os
sentidos, proporcionando, ao público, uma experiência fenomenológica o mais abrangente
possível tornou-se, também, o objetivo das companhias de artistas renascentistas que
invadiram gastronomicamente a cidade transformando-a num grande banquete e
reinventando o Pais de Cocanha.

Palavras-Chave: Banquetes. Cidade confraternitas. Renascimento.

ABSTRACT: The search for the recreation of Cockaigne land was reflected during the
sixteenth century, in the preparation of the banquet of the court, based on the work of
renowned artists who gathered, syncretically, artifacts, food, architecture, music and theater.
Conquer the senses, providing the public, a phenomenological experience as comprehensive
as possible has become also the object of confratenitas of Renaissance artists who invaded
the city gastronomically transforming it into a feast and reinventing Cucanha land.

Key words: Banquet. City confraternitas. Renaissance.

Segundo Dall’Oglio (2002:26), durante os séculos XVI e XVII, o banquete


localizava-se entre o teatro da corte e a festa comemorativa, manifestação refinada
e significativa que adquiria a mesma linguagem expressiva e os mesmos cânones
surpreendentes da representação teatral. Na rapresentação para banquete
idealizada e retratada pelo artista Antoine Caron, “Augusto e Sibilla” – século XVI, os
atores eram vestidos em trajes romanos, e se movimentavam em um estranho
cenário, ocupado por elementos arquitetônicos, arcos, colunas, e diversos pavilhões.
Era recriada, assim, uma cidade imaginária povoada de edificios ecléticos, de
estátuas e de atores onde desenrolava-se a teatralização de um passado
recontextualizado que se materializava na dinâmica do banquete.

A produção deste universo imaginário, cenografia teatral da festa, pertencia à


trajetória produtiva do artista que operou, durante muitos anos, na corte de Catarina
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de Médici elaborando as cenografias das festas e banquetes oficiais. Na obra


“Augusto e Sibilla” o tema central é a aparição da Nossa Senhora Tiburtina que se
ergue na frente do imperador Augusto ajoelhado. Se para Sefrioui (2005:172) “Esta
pintura resume uma das preocupações fundamentais do Renascimento: conciliar a
descoberta da Antiguidade e das filosofias com os fundamentos da fé cristã”,
resume também a capacidade de sintetizar no território ritualístico do banquete, não
somente o teatro mas também a arquitetura, a escultura e a pintura.

Calculado e executado nos mínimos detalhes, o banquete era, portanto, fruto


do trabalho de reconhecidos artistas (entre os quais Leonardo da Vinci, Arcimboldo,
e mais tarde GianLorenzo Bernini, com suas estátuas de açúcar em tamanho
natural, e do escultor Giambologna) e de um “sincretismo artístico” que reunia, ao
mesmo tempo, artefatos alimentares, arquitetura, música e teatro1. O objetivo era
“conquistar os sentidos”, proporcionando, ao público, uma experiência
fenomenológica o mais abrangente possível.

Para Visser, na Europa (1998: 98) do século XVI, a comida era organizada de
forma espetacular (muitas vezes os artistas/cozinheiros levava dias para elaborar
pirâmides, piece montee, e fantasias arquitetônicas para um banquete) e um
banquete real era como uma ópera, com intérpretes maravilhosamente vestidos à
mesa e espectadores em pé à volta bem próximos, para ver a comilança. Assim, era
comum o círculo interno de convidados nobres retirar-se após a refeição, deixando
os espectadores se aproximando para a destruição2.das comidas sobre a mesa.
“Eles atacavam a mesa e demoliam todos os requintados artefatos culinários com
um prazer talvez semelhante ao de crianças derrubando castelos de areia ou torres
de cubos de madeira. Comiam parte dos alimentos e atiravam o resto uns nos
outros.”3

No começo do século XVII o mestre de banquetes Robert May ganhou


mesmo fama e notoriedade com a criação da sua fabulosa “torta navio de guerra”
elaborada para um daqueles banquetes que só se faziam antigamente. Esta torta
era tão enormemente monumental que, para introduzi-la no salão, foi necessária
uma carroça ainda maior. Segundo Strong (2044: 116) o navio, todo de massa de
torta e açúcar entrou no salão para bombardear um castelo (edificado em papelão
revestido de doces) devidamente dotado de muralhas, torres e pontes levadiças. O
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castelo também possuía canhões de massa e de cremes, devidamente carregados.


No meio do castelo erguia-se um veado gigantesco, também comestível recheado
de vinho. À direita do cervo havia outras tortas menores contendo rã e passarinhos
vivos. A “batalha” se iniciava quando uma princesa da corte atirava uma lança no
cervo. O sangue (vinho tinto) começava assim a jorrar, enquanto os canhões do
castelo e do navio começavam a atirar. As damas presentes na festa iniciavam
assim, a “guerrear” atirando uma nas outras, cascas de ovo recheadas de perfumes,
para abafar o mau cheiro da pólvora e comendo os doces que compunham a mesa
do banquete. A batalha se concluía quando um pajem destampava as tortas nas
quais se encontravam os pássaros e as rãs vivas, e quando os animais começavam
a pular pelo salão afugentando as damas, que trepavam em cima das cadeiras e
mesas.

Neste contexto, o banquete invadia o território “Rabeliano” povoado por


alimentos inesgotáveis que incorporavam-se a uma natureza fagocitável tornando
as colinas gigantescos pratos de macarrão cobertos de queijo e os rios inexauríveis
fontes de vinho tinto. A comida farta e preciosa do banquete, jogada e
esparramada na sala, tornava possível a vivência (mesmo que parcial) do lendário
País de Cocanha, espaço lúdico que habitava os desejos da multidão4 onde o “O rito
alimentar permitia ao homem ou à mulher adultos a possibilidade de uma anulação
do tempo, de um retorno à infância, onde se abrigam as práticas do
desfarçe.”(Segalen, 2002: 83)

A primeira descrição de Cocanha remontaria ao século XIII e pertence à obra


“Li fabliaus de coquaigne”, o autor, um cidadão anônimo que dizia ter sido enviado
em Cocanha pelo papa, assim a descreve:

As casas são feitas de peixes, de salsichas e de outras coisas gostosas. Os


gansos gordos andam já assados e temperados pelas ruas onde têm mesas
sempre postas e cheias de comidas que qualquer pessoa pode comer sem
pagar um tostão. Para beber têm um rio metade de vinho tinto, metade de
vinho branco. No pais de Cocanha o mês têm seis semanas e se celebram
quatro Páscoas e todas as outras festa também são quadruplicadas. A
quaresma, ao invés, é celebrada uma vez a cada vinte anos. O dinheiro se
encontra no chão como as pedras mas, na realidade, ninguém o usa porque
em Cocanha nada se vende nem se compra, tudo que é necessário para
viver se encontra facilmente sem esforço.
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Anônimo. Descrição do Pais da Cocanha onde que menos trabalha mais ganha.
Gravura final século XVI.

Analisando a gravura do século XVI, percebe-se uma ordenada topografia


dominada por uma montanha comestível (que na verdade era um vulcão) que
espelia continuamente moedas de ouro (elemento central na obra). Em Cocanha,
choviam constantemente perolas e diamantes mas podiam chover também ravioli ou
nhoque que caiam direto na boca dos habitantes. No porto dos ociosos, navios
carregados de mortadelas, presuntos e salsichas aguardavam para serem comidos
(espaço superior direito da imagem) enquanto, pontes de fatias de melão eram
construídos sobre rios de bom vinho grego (espaço central direito e esquerdo da
imagem). Almôndegas de todos os tipos boiavam em lagos de molhos saborosos
(lado superior central direito da obra) e podiam ser catadas à vontade pelos
moradores; fornos cheios de pão alimentavam todos os habitantes (lado central
direito da obra), aves assadas despencavam do céu direto para a mesa (lado
superior direito da imagem) enquanto os moradores comiam frutas suculentas
durante o ano inteiro. Uma fonte (lado superior direto da obra) jorrava vinho que
podia ser saboreado abundantemente em qualquer momento do dia, assim como
podiam ser saboreadas as tortas deliciosas que cresciam nos campos (lado
esquerdo superior da imagem). Nos lagos, os peixes se multiplicavam ao infinitos,
assim como multiplicavam-se, na ruas, os bois, as vacas, os porcos e as galinhas
(lado esquerdo inferior da imagem). A topografia se completava com uma colina, e
um castelo com as paredes feitas de queijo, (espaço central inferior da imagem)
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onde eram levados os infratores que desrespeitavam a única lei do pais da cocanha:
não trabalhar e gozar da vida.

A representação de Cocanha na gravura do século XVI nos remete também à


utilização dos objetos emblemáticos estudados por Pierre Francastel utilizados na
produção dos artefatos alimentares produzidos, nesta época, para os banquetes. A
montanha, o castelo, a fonte, o navio, a àrvore, o cavalo, o arco se reunem nesta
montagem sceno-geográfica fantástica que se conecta às festas populares
medievais, já que como reforça Bakhtin (1993: 243) “...as imagens de banquete, isto
é do comer e do beber, da ingestão, estão diretamente ligadas às formas das festas
populares (...) onde a poderosa tendência à abundância e a universalidade está
presente em cada imagem”. Neste contexto, Cocanha transforma-se em abundante
e saboroso espetáculo gastronômico onde o objeto emblemático adquire uma
conotação fágica voltada para o prazer do comensal.

Simonetti, em seu ensaio Cultura materiale e arti cucinarie (2008), aponta


para a existência de uma “cosa cucinaria”, que “[...] si eleva attraverso la
sublimazione da cibo ad oggetto immaginario, cosi diviene plástica, muta, scivola sui
gusti aquisti e si moltiplica”5. Para o autor, a “cosa cucinaria” não se limitaria a
decorar ou ilustrar o ato alimentar, mas o instituiria no tempo e no espaço (assim
como a própria Cocanha), representando-o por meio de uma linguagem
diversificada, onde o olhar atrela-se ao desejo de expressão e ao imaginário
individual e coletivo como momento de “libertação”.

Segundo Le Goff, (1998:8)6 Cocanha era constituida por quatro princípios


norteadores: a abundância, a ociosidade, a juventude e a liberdade, tornando-se,
desta maneira, um protesto contra os limites da domesticação das pulsões
individuais e coletivas, que iam da confissão e da penitência à Inquisição, das leis e
dos tribunais à prisão e ao patíbulo. Cocanha se situava, assim, no interior do
florescimento de uma geografia imaginária de viagens ao desconhecido e ao além,
de visões fantásticas ou escatológicas onde a comilânça se transformava em
desafio à igreja que estigmatizava a gula (a paixão de comer) como um dos
pecados capitais mais detestáveis.
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Para Baltazar apud Simonetti, (2008:89) o pais de Cocanha, representava um


lugar longínquo onde as classes sociais inferiores celebravam não somente a
abundância da vida mas também da regeneração e do renascimento, possíveis só
em um contexto dinâmico de grande fluidez: o da circularidade do ser. Cocanha
tornava-se, assim, um mundo comestível, comido, mastigado, digerido, colocado em
circulação, um mundo em constante tranformação. Era um lugar onde o alto e o
baixo o pequeno e o grande, o jovem e o velho interagiam profundamente
ultrapassando e negando as fronteiras territoriais e alcançando um tipo de horror
vacui que tornava efêmera, temporária e fluida cada forma e onde se ria de todas as
construções que pretendiam ser rígidas, eternas e imutáveis. Mas Cocanha era
também “um sonho”, era “o antídoto mais eficaz contra o medo da fome”7 (Montanari
2006: 118) que trazia tranqüilidade e bem estar alimentar. Era a projeção onírica de
um pais onde a comida nunca faltava, onde gigantescas panelas de gnocchi
(nhoque) eram jogadas sobre montanhas de queijo ralado, onde as videiras eram
amarradas com salsichas e onde os imensos campos de trigo eram cercados por
carnes assadas pronta para ser devoradas. Cocanha tornava-se, assim, a terra
prometida para todos os famintos, uma versão original da idade de ouro medieval
mais próxima a um mundo “ao contrário” (Cocanha contraria as regras sociais
vigentes) do que um mundo “primitivo” e ingênuo.

A afirmação de Francastel (1983: 55) “Cada época, cada geração, cria para si
própria lugares imaginários (...) cuja riqueza é determinada pelo grau de sofisticação
e pelo nível de conhecimento do conjunto de uma sociedade” dialoga, assim, com a
ideia de Le Goff (1998:59) “ Para dominar o tempo e a história e para satisfazer as
aspirações voltadas para a felicidade e para a justiça, as sociedades humanas
imaginaram, no passado ou no presente épocas e lugares excepcionais.”

Neste contexto, a companhia de artistas, chefiada pelo pintor renascentista


Andrea del Sarto, materializava a transposição alimentar do lugar excepcional para
o mundo fenomenológico, tornando a narrativa simbólica do conto fantástico
território urbano apreensível fagicamente. Se para Francastel (1983: 59) o artista do
renascimento antecipava as tendências representativas sociais produzindo na tela o
porvir da ação coletiva, a produção renascentista das cidades alimentares ampliava
o alcance processual da edificação urbana invadindo gastricamente a esfera
simbólica e acrescentando à concretização de um porvir material, a materialização
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de um porvir simbólico compartilhado coletivamente. O artista transformava-se,


assim, no artífice fantástico que moldava o sonho colaborativo do desejo e da
necessidade de apreensão; seu pincel, assim como seu garfo, tornava-se
instrumento de edificação espacial onde, tanto a tela quanto o prato,
proporcionavam a vivência constante de novas paisagens.

Esta inusitada produção cenográfica que misturava arquitetura com comida


materializava-se visualmente na produção do cozinheiro/artista Vialardi onde eram
propostas cúpulas piramidais de cérebro de vitela, arcos românicos de camarões,
cúpulas alla Brunelleschi de amêndoas torradas, pirâmides de língua de boi, e torres
de sardinha com salada, tornando, assim, a mesa do banquete uma grande urbis
fágica parecida com a edificada pelo pintor Andrea del Sarto em 1500:

Na sua vez, Rustico apresentou um caldeirão feito de massa, em que


Ulisses assava o pai para rejuvenescê-lo, sendo que as duas figuras eram
capões em forma de gente. ...Andrea del Sarto [o pintor] apresentou uma
igreja octogonal como a de são João, mas apoiada em colunas. O
pavimento era feito de gelatina, parecendo um mosaico multicolorido; as
colunas, que pareciam de porfírio, eram salsichões; as bases e capitéis,
queijo parmesão; as cornijas eram de massa e açúcar, e os aposentos, de
marzipã. No meio havia uma estante de música feita de vitela fria, como um
livro de massa, sendo as letras constituídas de grãos de pimenta. Os
cantores eram tordos assados com os bicos abertos, usando sobrepelizes
de redanho de porco, e atrás deles havia dois grandes pombos como base
e seis cotovias como soprano... (Lippmann, 1941:166)

Pensamos, assim às experiências das confraternitas dos artistas


renascentistas evocadas no “Vite dei piú eccellenti pittori, scultori, e architetti” por
Giorgio Vasari. O autor descreve a “alegre brigada de cavalheiros chamada a
companhia do Paiuolo”8 que, chefiada por Andrea Del Sarto si divertia a elaborar
novas “invenzioni” chamadas “obras para comer” quais uma porca assada
transformada em costureira ou uma cabeça de boi transformada em martelo... para o
autor, “todas coisas muito boas” e que, para Taine (1992: 101) promoviam entre os
mestres “a mesma familiaridade e a mesma intimidade fecunda do ateliê”.

Se encontravam nos aposentos da Sapienza um grupo de homens que se


denominavam a companhia do Paiuolo que não podiamser mais do que doze
e eram: Giovanfrancesco Andrea Del Sarto pintor, Spillo pintor, Domenico
Puligo, o Robetta ourive, Aristotile da San Gallo, Francesco di Pellegrino,
Niccoló Boni, Domenico Baccelli musico e cantor, o Solosmeo escultor,
Lorenzo pintor apelidadato Guazzetto e Ruperto di Filippo Lippi conhecido
pintor.” (Vasari 2004)
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A companhia del Paiuolo descrita por Giorgio Vasari materializava o encontro


interdisciplinar que a produção gastronômica renascentista revelava em sua
proposta. Já Leonardo da Vinci em seus conselhos culinários contidos no Codex
Romanoff, apontara para a estreita colaboração entre o artista e seu universo
gastronômico9. Neste contexto, a pintura, a escultura, a ourivesaria, o canto, a
música, se conectavam na experiência múltipla do banquete espetacular oferecido
no decorrer dos diversos acontecimentos. A Compagnia del Paiuolo voltava-se,
assim, para uma produção alimentar diferente inaugurando, em sua proposta
interdisciplinar, vertentes “contemporâneas” de produção10.

No século XVI, Compagnia da Cazzuola (desempenadeira) – rival eterna da


Compagnia do Paiuolo (caldeirão), organizou na cidade de Florença um
banquete/espetáculo sobre o inferno:

Passando por uma porta feita como a boca de uma serpente, os


convidados tinham realmente a impressão de começar a descida para
o inferno. Acolhidos por um demônio armado de tridente, eram
conduzidos a uma mesa toda preta onde eram obrigados a comer
pratos repunantes feitos de serpentes, lagartixas, sapos, tarantolas e
morcegos, ma do gosto muito delicado. O Vasari afirmava que como
sobremesa foram servidos ossos de mortos todos de açúcar. (Sabban,
11
F.; Serventi, S.2005:41)

O artista renascentista Sandro Botticelli, integrante fervoroso da Compagnia


del Paiuolo, em sua série de gravuras sobre o Inferno de Dante, de 1481, parece
visualizar a atmosfera deste banquete infernal, onde seres híbridos armados de
tridentes obrigam os comensais a consumir uma refeição que se divide em dois
momentos específicos: no primeiro é prevista a ingestão forçada de excrementos e
no segundo a permanência a mesa (uma mesa posta). O banquete infernal
botticelliano revela, assim, uma densidade imagética intensa, uma coleção de
corpos que se espremem no estreito espaço da costrução narrativa pedagógica de
um banquete estranho e temido. Como na performance alimentar da alegre
Compagnia della Cazzuola, os comensais eram convidados à refeição repugnante
que, se no inferno tornava-se punição inevitável para o glutão, na Itália
renascentista transformava-se em intervenção urbana liderada pelo artista que
percebia, no universo alimentar do banquete, mais uma possibilidade de discurso.
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Um cozinheiro anônimo toscano do século XVI, em sua receita “Torta a


parmesana”, se referia as camadas de massa doce como “solai” (sótãos), o chef de
cozinha italiano Artusi (século XX) descrevia o ato de recobrir o bolo de creme como
“intonacare” (rebocar), Elias (1995, 70) aponta para fatias quadrada de pão que, no
Renascimento, eram denominadas “quadras”: espaços comestíveis onde eram
dispostos os alimentos prestes a serem consumidos. Nesse contexto, parece
apropriado lembrar novamente a “Companhia del paiolo” em Florença que
propunha, em seus banquetes teatrais, a reconstrução alimentar das arquiteturas da
cidade de Florença:

Em Florença, havia a Companhia del Paiolo (da Caldeirão), cujos membros,


entre os quais o pintor Andréa del Sarto, competiam para oferecer o
banquete mais alegre e saborosamente lauto. Quando chegou a vez de o
pintor oferecer o seu jantar para os 11 companheiros, construiu um altar
cujas colunas eram feitas de salames e mortadelas, e os pilares, de
enormes fôrmas de queijo parmesão, sobre o qual estava-feito de lasanhas-
um pentagrama musical, no qual as notas vinham desenhadas com grãos
de pimenta. O referido texto musical estava apoiado sobre uma estante feita
de vitela fatiada. Os membros de outro grupo, a Companhia della Cazzuola
(da desempenadeira de pedreiro), se fantasiaram de pedreiro e chegaram a
construir uma edificação de tijolos de pão e pedras de frutas cristalizadas,
cimentadas com lasanhas. (Bolaffi, 2000: 126)

A concepção de uma cidade digerível, cenografia gastronômica, construída a


partir da experiência e da necessidade sensível do indivíduo remete à ideia de
cidade como extensão ampliada dos órgãos (MCLuhan 1964: 144), onde a urbis
está para o orbis assim como estômago está para o corpo, Neste espaço morádico
que extravasa a noção de limite imposta pela parede dérmica, se reinventa o pais de
Cocanha, símbolo hedonista de libertação das amarras do controle social, que as
confraternitas dos artistas renascentistas elegeram como território de ação artística e
gastronômica. Sandro Botticelli, Guazzetto, Andrea del Sarto, Filippo Lippi
revelavam, desta maneira, uma “possibilidade ampliada” de perceber a produção
renascentista: não somente pintura, escultura ou arquitetura, mas também o
banquete da corte, e o espaço da cidade comestível. Assim como Cocanha
desafiava gastronomicamente os limites preestabelecidos, as alegres confraternitas
desafiavam a produção artística “oficial” invadindo e se apropriando de territórios
diferenciados onde pincel e garfo, tavola e tavolozza (trocadilho italiano
renascentista entre as palavras “mesa” e “paleta”) conviviam interdisciplinarmente e
revelavam, em sua pesquisa gastroartística, a busca incessante por espaços
ampliados: a eterna Cocanha que ainda hoje perseguimos.
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NOTAS

1
No que diz respeito à passagem do Quattrocento ao Cinquecento, Strong escreve: “À medida que o
Quattrocento se aproximava do Cinquecento, surgiam os elementos para que a corte de Este transformasse o
banquete medieval no banquete renascentista: o ritual altamente organizado, a exaltação do governante, o papel
dos músicos e da corte e a presença do público como espectador” (Strong, 2004:117).
2
Este episódio é descritto por Bolaffi, (2000:380)
3
John Evelyn, descrevendo um grande jantar para os cavalheiro da ordem da jarreteira, na Casa dos Banquetes
em em Whitehall em 23 de abril de 1667 diz que a festa terminou com o “conteúdo do banquete” ou seja, os
requintados doces que faziam parte da refeição, atirados profusamente pela sala e nos convidados que alegres,
entravam no jogo. (Visser, 1998: 99)
4
Para Le Goff , In Franco Junior, (1998) : Mito, utopia, ideologia, sonho que alimentou o imaginário de vários
povos, sob a forma mais diversas. A maravilhosa Cocanha é isto: Terra de abundância, liberdade, ócio, prazeres
absolutos, eterna juventude...
5
“[...] eleva-se por meio da sublimação, de comida a objeto imaginário, tornando-se plástica, mutável,
deslizando-se sobre os gostos adquiridos e multiplicando-se” (livre tradução da autora).
6
Introdução de Le Goff do livro de Franco, H. “Cocanha – a história de um Pais imaginário”
7
“L’antidoto piú efficace della fame é Il sogno.” (Montanari, 2006:118). Livre tradução da autora.
8
Descrição analisada por Hippollyte Taine em seu livro “Filosofia da arte na Itália” (1992) .
9
“Sobre o modo correto de escolher um queijo: para saber se os enormes queijos de Romagna e Parma estão
esburacados demais -já que há vendedores nessa região que os oferecerão – coloque sempre a orelha em um
dos lados do queijo e golpeie-o com um martelo, escutando com atenção para reconhecer o som das cavidades.
Depois, se ficar satisfeito, e se for suficientemente sólido, o senhor pode comprá-lo. Agnolo Polo famoso escultor
e grande apreciador de queijos que trabalhava na oficina de Verrocchio, foi quem me ensinou isso.” (Leonardo
da Vinci: 2002:117)
“Enguias bem cozidas: para cozinhar enguias, segundo meu amigo arquiteto e escultor Bramante, o segredo é
que só lhes deve tirar a pele, mas não os ossos, antes de prepará-las. E devem permanecer apenas três
minutos na água fervente. É impossível, na verdade digerir a carne devido ao escasso tempo de cozimento mas
Bramante tem outro segredo, aqui: deve-se cortar a enguia em pedaços de meio polegar de tamanho, temperá-
los com mel e mantê-los na boca por vinte minutos (e degustar o delicioso sabor da enguia por todo este tempo).
Isso também explica por que Bramante sempre mexe a boca enquanto trabalha, pois está degustando suas
enguias.” (Leonardo da Vinci: 2002:51)
10
Citamos, por exemplo, a intervenção urbana e a Eat-art.
11
Para os autores, Allen Grieco coloca estas macabras teatralizações na esfera do grotesco sem desconsiderar
em sua análise a paródia do banquete da corte. Existem todos os ingredientes: o tema mitológico, a teatralização
e o desenvolviento do jantar, neste caso com uma exceção: como no carnaval a ideia de beleza, graça e
harmonia e perfeição da gestualidade (marco do banquete de corte) é colocada ao contrário (ao avesso).

REFERÊNCIAS

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1993.

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Barocca. Roma: Edizioni Ricciardi e Associati, 2002.

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Zahar Editora, 1994.

FRANCASTEL, P. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1973.

_________ . Imagens, visão e imaginação. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

_________ . Pintura e sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1990.


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FRANCO JUNIOR, H. Cocanha. A história de um pais imaginário. São Paulo: Companhia


das Letras, 1998.

LE GOFF, J. Por amor às cidades. São Paulo: UNESP, 1998.

Mcluhan, M. Os meios de comunicação como extensão do homem. São Paulo: Cultrix,


1964.

MONTANARI, M. Il mondo in cucina. Bari: Editori Laterza GLF, 2006.

SEGALEN, M. Ritos e rituais contemporâneos. Rio de Janeiro: FGV editora, 2002.

SIMONETTI, G-E. Le figure 523del523 godimento – cultura materiale e arte culinarie.


Roma: Deriveapprodi, 2008

STRONG, R. Banquete. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2004.

TAINE, H. Filosofia da Arte na Itália. São Paulo: Educ, 1992.

VASARI, G. Le vite dei piú eccellenti pittori, scultori e architetti. Milão: Editora Giunti,
2004.

VISSER, M. O ritual do Jantar. As origens, evolução, excentricidades e significado das


boas maneiras à mesa. Rio de Janeiro: Campus, 1998.

Lisa Minari Hargreaves


Professora Adjunta na área de Licenciatura, no Instituto de Artes na Universidade de Brasília
Coordenadora do curso de Licenciatura Diurno e Coordenadora de tutoria na Universidade
aberta do Brasil - UaB/UnB. Doutoranda na linha de Teoria Crítica e História da Arte.

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