René Ménil, o Poeta Trickster de Tropiques Ou Teoria e Crítica, Humor e Criação em Uma Revista-Laboratório Antilhana
René Ménil, o Poeta Trickster de Tropiques Ou Teoria e Crítica, Humor e Criação em Uma Revista-Laboratório Antilhana
René Ménil, o Poeta Trickster de Tropiques Ou Teoria e Crítica, Humor e Criação em Uma Revista-Laboratório Antilhana
mais
Do ponto de
vista antropológico, o que é exatamente
um trickster?
De um modo muito simples: é o que Índice # 2 (2022)
semeia a desordem no mundo da ordem ou o que
Agulha Revista de Cultura #
inventa [1] uma nova ordem quando o caos
se instala no
mundo; é o que joga com o tempo e o espaço, e também Agulha Revista de Cultura #
com a linguagem;
aquele que, em mitologias muito
diferentes, ou longínquas, dialectiza o que se crê
Índice # 1 (2012-2021)
perfeitamente sabido e conhecido, jogando o jogo
insolente de inverter ou desregular
a série cronológica ARC | Fase II | Edição # 01
depois, em 1978. É então que o público leitor teve enfim acesso à série
de números de uma revista ARC | Fase II | Edição # 15
composta e publicada em condições muito modestas e precárias
em Fort-de-France, pequena ARC | Fase II | Edição # 16
cidade colonial da Martinica. Aliás, é preciso não esquecer
que um dos seus redatores – no caso,
ARC | Fase II | Edição # 17
uma mulher, Suzanne Césaire – solicita e busca,
inclusive, papel de impressão ao censor oficial de
Vichy, durante o período da Dissidência
antilhana até ao seu término. E os seus números se ARC | Fase II | Edição # 18
igualmente nesta série “Surrealismo Surrealistas”, da Agulha Revista de Cultura, vista de uma outra ARC | Fase II | Edição # 27
perspectiva, que, invertendo a simples sequência cronológica, espelha a escritora
da Martinica, já
Agulha Revista de Cultura #
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René
Ménil, pelo seu lado, professor de filosofia no liceu Schoelcher de Fort-de-France,
fez uma Agulha Revista de Cultura #
carreira importante de ensaísta embora nunca tenha eu encontrado, nas bibliografias
de trabalhos Agulha Revista de Cultura #
brasileiros, uma referência ao seu ensaio fundamental, Tracées: identité, negritude, esthétique aux
Agulha Revista de Cultura #
Antilles (Robert Laffont, 1992), o que é surpreendente pois, já em 1932, ainda
em Paris, ele é um
cofundador da revista Légitime
défense. [3] Dito
de outro modo: Ménil permanece ainda mais Agulha Revista de Cultura #
Repensando criticamente
Tropiques Agulha Revista de Cultura #
leitores – essencialmente
estudantes de liceu, nascidos e vivendo na Martinica – sabiam ler nas Agulha Revista de Cultura #
entrelinhas,
preencher os silêncios, interpretar os símbolos, as elipses e as antífrases e c)
os textos Agulha Revista de Cultura #
publicados dirigiam-se, ao mesmo tempo, ao leitor antilhano e ao censor
francês. Assim, Pétain e
Agulha Revista de Cultura #
seu regime eram denunciados por meias palavras mas nunca
claramente nomeados enquanto dura
o período da chamada “Dissidência” antilhana.
Enfim, a autocensura interior (freudiana) Agulha Revista de Cultura #
Outra
observação sua: “o empréstimo ao surrealismo,
que é simplesmente proclamado em Agulha Revista de Cultura #
diversos lugares nos textos, não deve paralisar
a análise nem sugerir preguiçosas interpretações Agulha Revista de Cultura #
mecanicistas”.
Agulha Revista de Cultura #
Ménil
nota ainda presenças e ausências nos textos de Tropiques: Agulha Revista de Cultura #
Assim, o comentário
poético, ao que parece, não ilumina o homem no trabalho, os instrumentos de Agulha Revista de Cultura #
trabalho,
as obras de trabalho. Ao contrário, a paisagem (em deflagração), a vegetação (em
tumulto), Agulha Revista de Cultura #
a animalidade (raivosa), o coração humano e a sociedade (em tormento)
– gestos e cores – em
Agulha Revista de Cultura #
realizações patéticas. (Ibidem.)
Agulha Revista de Cultura #
Agulha Revista de Cultura #
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Em
suma, para Ménil, a revista tem “literatura
demais” Agulha Revista de Cultura #
(trop de littérature), insistindo
no “mistério”, por Agulha Revista de Cultura #
definição, quase impenetrável
e remetendo ainda ao
Agulha Revista de Cultura #
“romantismo” mais
exaltado que trabalha todos os textos,
do interior. É portanto literatura altamente
elaborada, de Agulha Revista de Cultura #
exotismo de Tropiques joga com duas linguagens diferentes no interior da mesma língua
(o Agulha Revista de Cultura #
francês). Daí um certo maneirismo e preciosismo que apreende e talvez surpreenda,
o leitor atento Agulha Revista de Cultura #
e culto.
Agulha Revista de Cultura #
Ménil
sugere igualmente que os textos de Tropiques
deveriam ser lidos e analisados em Agulha Revista de Cultura #
confronto com a estética elaborada das literaturas
latino-americanas, em espanhol. [6]
Agulha Revista de Cultura #
Entre
os pontos positivos da revista, René Ménil destaca a pesquisa sobre história, fauna
e flora Agulha Revista de Cultura #
locais, o inventário de elementos do folclore oral antilhano, a busca de
componentes vindos de
Agulha Revista de Cultura #
África. É, segundo ele, a leitura posterior de Bachelard,
sobretudo do livro Matérialisme rationnel
(de 1953) – ainda não feita em 1945, claro – que permite a compreensão “retroativa” dos esforços, Agulha Revista de Cultura #
mostrando a imbricação
das intuições de cada um com os fatos observados. Na análise dos contos Agulha Revista de Cultura #
orais, lamenta
ainda a ausência de leituras estruturalistas. Agulha Revista de Cultura #
Para
Ménil, o interesse dos textos está, sobretudo, no plano filosófico-político e a
reedição da Agulha Revista de Cultura #
revista responde a uma “necessidade
social” e, de certa forma, demorou demais. Emprega em Agulha Revista de Cultura #
relação a si próprio e
aos seus companheiros a forma “écrivant”
(e não écrivain): “nesse laboratório
Agulha Revista de Cultura #
de pesquisa, cada um deles
sendo absolutamente livre no seu trabalho de produção do texto”. Hoje,
percebem-se
melhor “dissonâncias” e “contradições” entre os textos que remetem
a diversas Agulha Revista de Cultura #
Ménil
refere ainda a predominância da poesia sobre a política, o que acentua o “lado idealista” Agulha Revista de Cultura #
Esta,
no fundo, é a grande questão. Os números de Tropiques
não foram reimpressos por longo Agulha Revista de Cultura #
tempo e foi praticamente impossível encontrá-los,
em livraria ou biblioteca, durante mais de 30 Agulha Revista de Cultura #
anos. Assim, uma boa parte das reflexões,
feitas nos anos 1940, extraviou-se. A esquerda antilhana
Agulha Revista de Cultura #
perdeu, de certa forma,
a sua memória crítica uma vez que a leitura atenta da revista não foi feita
Agulha Revista de Cultura #
pela
geração seguinte e a “herança de conceitos
filosóficos” não foi digerida. Uma ruptura se fez por
problemas, inclusive,
vários: “problemas de línguas mal definidas
na sua natureza e no seu Agulha Revista de Cultura #
funcionamento” (Ménil refere-se evidentemente à diglossia
antilhana francês-crioulo que não é de Agulha Revista de Cultura #
modo nenhum bilinguismo, uma vez que há hierarquização
social e cultural das duas línguas), “do
Agulha Revista de Cultura #
folclore
ainda não diferenciado da literatura” e mesmo “sem perspectiva de ação política”.
Agulha Revista de Cultura #
Por
essas breves notas que percorrem e resumem as 35 páginas do seu juízo crítico sobre
a revista
Agulha Revista de Cultura #
Tropiques, o leitor pode avaliar
não só as qualidades como as exigências intelectuais de René Ménil.
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No momento em
que, no Brasil, se começa a traduzir ensaístas antilhanos francófonos é urgente Agulha Revista de Cultura #
traduzi-lo. Agulha Revista de Cultura #
O jovem trickster-poeta
em ação Sobre o diretor
1. Atlas Lírico da América
Nº
III de Tropiques, outubro de 1941: dois
textos, “Introduction au merveilleux” e “L’action
fulgurante”.
“Introdução
ao maravilhoso” é um denso ensaio filosófico dividido em 9 partes e precedido por
um resumo revelador: “Estamos à procura do
nosso verdadeiro rosto. Condenamos suficientemente
a literatura artificial que,
dele, nos pretende dar a imagem: poetas atrasados, heróis de clichés,
supersticiosos
fazedores de alexandrinos, cobardolas declamadores de nada. Narciso martinicano
onde te reconhecerás? Mergulha o teu olhar
no espelho do maravilhoso: os contos, as lendas, os
cantos. Verás aí inscrever-se,
luminosa, a segura imagem de ti mesmo.” O ensaio é a introdução 2. Conexão Hispânica
teórica para
dois textos do número seguinte sobre literatura oral em crioulo.
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Nas
Notas, com o subtítulo de “A ação fulminante” e como uma nota-comunicação, René
Ménil,
acrescenta um pequeno texto de três páginas na mesma direção: citando a psico-análise
(sic) e a
etnografia, reafirma, segundo
Hegel, a unidade humana do sonho e da ação. Última frase: “Cada um
sabe que a palavra do mago produzia o seu efeito com a certeza do
relâmpago.”
3. Escritura conquistada -
Nº
IV de Tropiques, janeiro de 1942: dois
textos, hispanoamericana
“Introduction au folclore martiniquais” e “Drame
légendaire au crepuscule”.
A
primeira frase do primeiro texto começa como um
conto para crianças: “Era uma vez…” e articula-se
evidentemente
com os dois ensaios anteriores de Ménil.
Assinado em parceria com Césaire, o texto
de janeiro de
1942 funciona como uma demonstração da teoria para 4. Partituras do Maravilh
analisar a produção
anônima e popular: com pouco mais
de quatro páginas, coloca a problemática da literatura
oral em crioulo, modo de expressão alusivo e metafórico
de “um povo que tem fome” e que exprime, a seu
modo,
o seu “medo” através da figura do
“zumbi” (haitiano).
Nas duas últimas partes
do ensaio, os autores analisam
pari passu
um conto popular sobre a derrota de Colibri
5. Surrealismo Surrealist
com o seu tambor, personagem tradicional,
morto por
vários animais (Cavalo, Boi, Peixe-Armado), enviados
pelo Bom Deus contra
a pequena ave e o seu instrumento que marca o ritmo. A última frase retoma
o tom
do conto infantil: “Era uma vez um homem negro
agarrado à sua terra”.
O
texto final é uma total surpresa, desestabilizando qualquer leitor: um conto fantástico
sob a
forma de uma carta, escrita quase à moda do século XVII, em que o Destinador
emprega o “vous”
dirigindo-se a um “caro amigo”, não nomeado. Este surge como
avatar de Dom Quixote a cavalo e
empunhando uma lança no alto de um morro, desce
até à “imensa catedral” de um burgo da
Martinica, justamente Gros-Morne, seu burgo natal. Ironia e pastiche, alegoria e
simbolismo, tudo
se conjuga num texto imprevisto em que o muito sério Ménil revela
sua faceta de trisckter. A frase
final
é: “Mas, sabei-o, não escapareis mais, desde
então, à injunção trovejante do vosso desejo
armado. Já disse demais. Adeus.”
Nº V de Tropiques,
abril de 1942, dois textos: “Laissez passer la poésie” e “Couleurs d’enfance,
couleurs
de sang”.
O
texto “Deixai passar a poesia…” é um ataque feroz à pequena burguesia mulata da
Martinica,
dividido em nove partes e, ao mesmo tempo, um poema em prosa. Anuncia
a descoberta da “mina
minada, o humor”.
“Anunciamos a chegada do humor às Antilhas”.
Dirigindo-se com ironia ao “meu
colonial amigo”,
evoca ainda o célebre passeio coletivo em companhia dos novos amigos (Breton e
Jacqueline,
Lam e Helena, Masson), à floresta de Absalom através do jogo surrealista do “belo
como”: [10] … belo como o encontro na floresta antilhana, no
coração de uma clareira iluminada por
uma fina luz sangrenta, de um canibal e de
uma mulata [11] de tez cor de cinza”, o que retoma
um
texto anterior de Suzanne Césaire, repetindo-lhe a frase sem indicar a fonte:
“A poesia da Martinica
será canibal. Ou não
será”, apenas com mudança da pontuação. A frase final – “Deixai passar nas
Caraíbas tumultuosas, à altura
do gavião, a voz total, mortal, exaltante da poesia” – retoma e
sintetiza o
início do Cahier em que o narrador descreve
as Antilhas em voo planado de um grande
pássaro que desce progressivamente à terra,
numa espécie de zoom cinematográfico.
Em
“Cores de infância, cores de sangue”,
Ménil apresenta um poema em prosa, de quase três
páginas e meia, em torno do tema
partida e volta, exílio forçado e retorno. O título “Cores de
infância, cores de sangue” retorna como fecho do poema. Voltaremos
ao texto mais adiante.
Nº
duplo VI-VII de Tropiques, fevereiro de
1943: três textos “In Memoriam”, “Le Dictateur” e
“Notes sur Mallarmé”.
“In
memoriam”, no interior da revista, tem como subtítulo, [12] “Aquele
que chamávamos o
mestre”: Ménil presta homenagem, bastante corajosa para a época
e em nome da redação, a Jules
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O
segundo texto é um delicioso e, ao mesmo tempo, assustador conto surrealista, intitulado
“O
Ditador”. Amante de trevos de 4 folhas e habitando uma torre, o personagem central
desvela desde a
primeira frase o seu aspecto inquietante-grotesco: “O ditador caminhava na pradaria. Sem muito
pensar,
colhia trevos de 3 folhas e, sem muito pensar, seja pela saliva, seja por discreta
sutura, seja
por hábil dissimulação, fazia trevos de 4 folhas”. O conto incorpora
dois discursos outros: o de um
cronista legendário e a “teoria” posta em ação pelo
ditador. Este discorre sobre seus projetos de
modelar o novo homem com ajuda de
engenheiros-psicólogos e grandes encenações psicodélicas.
Última frase: “O trevo, no céu, se tinha acentuado com luz florescente,
e dir-se-ia, hipnótica. O
ditador, no elevador, esmigalhava entre os dedos um falso
trevo natural de 4 folhas que colhera num
dos jardins suspensos da torre de marfim.”
Voltaremos ao texto mais adiante.
No
terceiro texto do número, René Ménil com “Notas
sobre Mallarmé” retoma um diálogo interno
da revista – diálogo com Césaire –
sobre a poesia francesa. [13] A última
parte é voluntariamente
polémica: “Mallarmé
no ápice de uma história em que alguma coisa podia ainda ser feita por
reflexão.
/ Suprema poesia. / Mallarmé tão perto de fazer o grande salto, estanca.” E
Ménil termina
as suas notas articulando Mallarmé a Breton, este, aliás, exemplo
de quem não interrompeu a sua
trajetória.
Nº
X de Tropiques, fevereiro 1944: “Poème”.
Primeiro
número de Tropiques a circular depois
da grande crise do final de 1943: a proibição de
publicação da revista pela censura
oficial e, logo a seguir, o fim da “Dissidência” antilhana, ou seja, o
fim do regime
de Vichy nos territórios franceses da América (Martinica, Guadalupe e Guiana
francesa).
O ano de 1944 é importante ainda porque o casal Aimé-Suzanne Césaire, a partir do
verão, passa mais de seis meses no Haiti, deixando os filhos com as avós em Fort-de-France.
Aimé 21 mulheres surrealistas
Césaire é convidado para um colóquio internacional e uma série de conferências.
A guerra
terminou no mar das Caraíbas embora continue na Europa e no Oriente.
CEL - FLORIANO MARTIN
René
Ménil publica, neste número de recomeço, um poema em prosa. A primeira frase:
“Colhíamos injúrias do chão para com elas fazermos
diamantes.” A ele voltaremos mais adiante.
Nº
XI de Tropiques, maio de 1944, dois textos:
“Situation de la poésie aux Antilles” e “La dernière
insurrection”.
René
Ménil refaz o panorama literário da Martinica, três anos depois do primeiro número
da Séries Especiais
revista: “Situação da poesia nas Antilhas.” Primeira frase: “Todo renascimento põe na ordem do dia Agulha Hispânica 2010-2011
a velha
querela do fundo e da forma.” O fim do texto aborda o romantismo: “O romantismo Agulha Revista de Cultura -
antilhano aí está com sua nova concepção
da beleza crioula”. E resume: “Romantismo
antilhano: 1999-2009
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É
uma das joias escondidas, a meu ver, de Tropiques,
e o conto surrealista mostra a outra face de S45 | O RIO DA MEMÓRIA
REVISTAS
Ménil, poeta em prosa. Sobre o texto
ainda ver mais adiante.
S46 | O RIO DA MEMÓRIA
MARTINS [Parte 1]
Nº
XII de Tropiques, janeiro de 1945: “Introduction
à 1945”, segundo o sumário inicial. S47 | O RIO DA MEMÓRIA
MARTINS [Parte 2]
De
René Ménil, um novo texto teórico muito importante intitulado, no interior da revista,
“O S48 | O RIO DA MEMÓRIA
humor: introdução a 1945”, a ser lido integralmente e em que se destacam, na
sua longa história, MARTINS [Parte 3]
Sócrates, Lautréamont e Dada. E na literatura moderna: Baudelaire,
Breton, Éluard, Langston S49 | ACAMPAMENTO MU
Hughes, Césaire para exaltar “os tiros de salva do humor atroz.” Num parágrafo anterior descreve o BELCHIOR
canções em que o
negro toma a si próprio como alvo dos seus sarcasmos.” S51 | VOZES POÉTICAS | M
LUCCHESI
S52 | ACAMPAMENTO MU
HERMETO PASCOAL
A diversidade
dos textos de Ménil não deixa de surpreender Projeto Editorial Banda Hisp
o leitor que, conhecendo seus ensaios
posteriores sobre Vanguardas no Século XX - A
literatura antilhana, tem dele apenas uma imagem de Hispânica
ensaísta-marxista-professor
de filosofia. Viagens do Surrealismo [Par
Como
um verdadeiro trickster, ele surge, de
repente, em AGULHA REVISTA DE CUL
ÍNDICE GERAL
Tropiques, com outro tom e
outro estilo, entre lirismo e
paródia, confissão e crueldade, comicidade e leveza,
humor
e onirismo. O mundo parece, então, ser visto, ao mesmo
Acervo de Matérias
tempo, pelo olhar novo
da criança e do fool sem ilusões e
Janeiro (24)
sem
peias na língua. E sobretudo com um alto grau
presciência, anunciando o que só será
revelado ou Dezembro (111)
conhecido mais tarde. Novembro (55)
Destacamos,
a seguir, cinco textos de René Ménil que nos Outubro (23)
parecem dever ser olhados de mais perto
e com mais vagar. Setembro (54)
A face do verdadeiro écrivain
e não mais simples e utilitariamente écrivant,
como modestamente
Agosto (33)
tenta se apresentar,
neles se revela, herdeiro de uma dupla linhagem que, em francês, vem de
Nerval,
Rimbaud, Lautréamont, confluindo com os seus amados poetas do Romantismo alemão: Julho (43)
Maio (22)
Abril (22)
“Drama legendário
ao crepúsculo” ou o desejo armado de um Quixote antilhano
Março (11)
No nº IV de
Tropiques, “Drama legendário ao crepúsculo”
é um verdadeiro conto imprevisto, pondo
Fevereiro (22)
em cena, na paisagem antilhana, o fantasma
de Dom Quixote a cavalo, debaixo de uma mangueira
(árvore inexistente evidentemente
em terras da Mancha espanhola). Do ponto de vista da formal, o Janeiro (127)
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nomeado, mas que só pode ser Aimé Césaire. Narra uma aparição fantástica e termina
por uma Novembro (30)
injunção ao amigo não nomeado. Outubro (33)
A
aparição, no início, imóvel no alto da colina, “entre a mangueira meditativa e o abrigo Setembro (11)
desabitado”, atravessa depois
teatralmente o cenário ambíguo que junta elementos europeus e Agosto (11)
africanos, antilhanos
e imaginários, passa diante da “catedral”
do burgo de Gros Morne (onde
Julho (22)
nasceu Ménil, como já se sabe) e avança pela “ponte-levadiça do castelo de vidro com enormes
arcos de terra batida”. Construir em argila ou terra batida é, aliás, uma forma
de construção Junho (22)
A
carta é ao mesmo tempo uma parábola e um sonho de olhos abertos, que cada leitor
deve Março (11)
interpretar à sua maneira. Tudo sugere que esse cavaleiro ao mesmo tempo literário
e mítico, Fevereiro (10)
patético na sua desmedida e grandioso no seu sonho ideal (com toda a carga
conotativa do Dezembro (11)
“Cavaleiro da triste figura” diante da decadência da Espanha e seus
impasses), é uma injunção ao
Novembro (33)
amigo Aimé Césaire num estilo quase paródico de grandiloquência
arcaizante:
Setembro (22)
Agosto (33)
Quant à vous, cher ami, vous ne cessez, les yeux écarquillés, malgré l’ombre
tombée, de voir la Julho (22)
flame impérieuse de la fausse lance et, soudain, le coeur battant,
vous reconnaissez votre propre
Junho (33)
désir, crucifié, équestrement debout au haut de la
colline… Mais sachez-le, vous n’échapperez
plus, dès lors, à l’injonction tonante
de votre désir armé. Maio (11)
Abril (33)
J’en ai trop dit. Adieu. (Ibid.). [16]
Março (22)
Fevereiro (17)
“Desejo
armado” retoma de certa forma não só a injunção do Cahier, presente desde 1939, como
Janeiro (34)
ainda a de Suzanne, que a cita ipsis litteris: “voici le temps de se ceindre les reins comme un vaillant
Novembro (33)
homme.”
Outubro (22)
Setembro (22)
“Cores de infância,
cores de sangue” ou o mundo visto pelo olhar infantil
Agosto (22)
No volume V,
de abril de 1942, o texto, com pouco mais de três páginas, é um verdadeiro poema
em Julho (11)
prosa, dividido em quatro partes. Começa como conto
fantástico: “En ce temps-là, le ciel était
une
Maio (11)
merveilleuse teinture bleue, frémissante, où s’ecrasait la fleur d’encre des
cocotiers. Ma vie n’était
pas encore
quotidienne.” [17] Abril (44)
Março (11)
Nesse
tempo fora do tempo cronológico, destacam-se as tardes, momento em que começavam
as
Fevereiro (23)
viagens nas asas das borboletas, viagens de exploração da terra de diferentes
cores: terra vermelha,
terra amarela. Dezembro (13)
A
segunda viagem do menino é a descoberta de um feiticeiro, na realidade, um galo
colorido, ao Novembro (12)
Na
terceira secção do texto, aparece, nos seus sonhos noturnos, um cavalo terrível,
a seguir Agosto (79)
lentamente domesticado pelo olhar infantil: Julho (13)
Junho (22)
C’est vers la même époque qu’apparut pour la première fois, dans mes rêves et
dans mes Maio (35)
Julho (56)
Junho (90)
A
quarta secção, a mais longa, descreve o encantamento infantil diante de vidros de
diferentes
cores. A alegria do menino torna-se “frenesia” ao descobrir cristais com múltiplas facetas que Maio (69)
brilham sobretudo
à noite diante da chama trêmula da lâmpada a petróleo. O final do poema em Abril (56)
prosa é: Março (23)
Fevereiro (22)
Janeiro (67)
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Dans mon miroir aux alouettes le monde était pris au piège. Dans mon miroir
tout se précipitait, Dezembro (11)
se concentrait, gelait, crépitait, de chaud, de froid, de vie. Novembro (23)
Abril (14)
Março (68)
“O ditador”
ou o delírio do poder e a criação do novo homem
Novembro (317)
No volume VI-VII,
de fevereiro de 1943, em plena guerra e no seu momento talvez mais dramático e
ainda
incerto, Ménil, numa cidadezinha de uma ilha antilhana que sobrevive com dificuldade,
isolada pelo bloqueio naval anglo-americano, escreve um conto entre farsa rasgada
e fantasia
desabrida sobre o sonho e as aventuras do poder absoluto.
O
conto tem sete páginas e incorpora dois outros textos diferentes, impressos aliás
em itálico: a)
Floriano Martins
a citação de um cronista antigo (legendário) chamado Brocelte [21] sobre uma rainha também muita
antiga, chamada Etha (igualmente legendária, claro), que percebeu, uma noite, a
importância de
uma certa lua iluminando os chifres de elefante colocados no alto
de uma torre de marfim; e b) o
discurso do ditador que se põe em cena, com a ajuda
dos seus engenheiros-psicólogos (sic),
diante
de uma multidão, ou seja, a totalidade dos habitantes do seu país (imaginário).
O momento que se
vive então é o encerramento do “PLANO DECENAL PSICOLÓGICO”. E o
ditador fala a “vários
milhões de homens,
mulheres e bebês” (sic).
Um
exemplo claro de farsa rasgada:
E
o ditador fala durante horas e horas aos seus 20 milhões de ouvintes hipnotizados
“pela lua e
pelo elefante”. Todo o conto
deveria ser citado.
“Poema” ou o
retorno ao lirismo surrealista
No volume X
de Tropiques, de fevereiro de 1944, Ménil
volta a publicar um poema em prosa, de uma
única página, impresso integralmente
em itálico, exceto o título. A linguagem é ao mesmo tempo
vaga e melodiosa. A marca
de Nerval e do Rimbaud das Illuminations
me parece clara. É o poema
provavelmente mais surrealista de Ménil.
Escrito
quase todo no imperfeito do ponto de vista de um nós (nous) coletivo, narra
a trajetória
(com a expulsão não se sabe ao certo de quem nem de quantos, mas com
retorno no final) e a
felicidade utópica dos “filhos da derrisão”. Derrisão é o riso zombeteiro ou o comportamento,
dito
ou gesto, que denotam desprezo por outrem, geralmente de forma irônica ou sarcástica.
O trisckter
é um mestre e um filho da
derrisão.
Dividido
em três partes, a segunda de apenas 4 linhas, inserida entre duas partes maiores,
respectivamente de 9 e 11 linhas, o poema narra: a) na primeira parte, a saída forçada
e muito cedo
pela manhã, de um grupo indistinto de jovens da cidade (no singular);
b) na segunda, a reação dos
pássaros [23] descrita
em imagens aquáticas que terminam aparecendo nos sonhos, também
aquáticos, de mulheres
adormecidas; e c) na terceira, em um movimento inverso ao da primeira
parte, a procura
das cidades (agora no plural) que partem em busca dos jovens, antes expulsos.
O
texto é muito absconso jogando com sinestesias e semelhanças fônicas de palavras
de
significação muito diferente, [24] constrói-se
a partir de sensações e movimentos vagos de euforia
claramente ascendente. Sua tradução
seria um desafio para qualquer tradutor. Constitui um relato
alusivo e metafórico
de uma expulsão das cidades, e pelas cidades, dos “filhos” que usam a derrisão
e
o humor (as grandes armas de Lautréamont), e que, no final, vêm a reconhecer os
seus exilados e
partem ao encontro dos que partiram, levando prendas a oferecer-lhes.
Para
que se tenha uma ideia, citamos o início de cada uma das partes:
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Nous ramassions des injures pour en faire des diamants. Le temps avait la blancheur
du blé. Nous
étions forcés de sortir de la ville tôt. Le linge séchait déjá sur
les villages. Sous chaque porte il y
avait un baiser […]
Les villes venaient à nous. Chacune avait son nom, son amour
et ses dons. Chacune s’abritait
derrière une parole de bal, derrière un loup vivant.
Chacune
brûlait d’un feu secret, d’une secréte
ardeur. […] [25]
“A última insurreição”
ou um outro conto surrealista
Em maio de 1944,
quando, nas Antilhas francesas (Martinica, Guadalupe e Guiana), a guerra já
terminara
desde o ano anterior, Ménil publica um conto estranho sobre uma derradeira
insurreição,
que não aconteceu, aliás. É, portanto, uma narrativa imaginária que se desenrola,
numa cidade desconhecida (ou inexistente), banhada por uma ribeira (Rivière aux écailles) cujo
nome junta água
e escamas/placas de animais marinhos brilhando ao sol, tudo se passando fora do
tempo (uma revolta negra não acontecida) e dentro do tempo contemporâneo (com holofotes
varrendo o céu noturno em leques abertos ou flechas de luz). Por outras palavras:
uma narrativa
dentro e fora de um espaço, que vários indícios apontam como antilhano,
dentro e fora do tempo
histórico (o da II Guerra).
Narrado
na primeira pessoa por um homem que acabou de perder a mulher amada, de nome
Méloré,
cuja cabeça cortada é lançada no meio de negros que se divertem, junta o espetáculo
de
uma revolução sanguinária e cruel, encontro sigiloso de padres e mulatas numa
Cidadela de outro
tempo, com salas e túneis secretos, um espaço que parece sair
da imaginação do marquês de Sade
ou de um filme de Buñuel.
Trata-se
de uma insurreição também com muitas mulheres, ora torturadoras cruéis, ora vítimas
mortas, nas ruas: além da degola da amada, há três enforcadas num pátio e que sorriem,
um cavalo
esventrado pela turba feminina com “horríveis crueldades”, além das duas mulatas e a mulher
desconhecida
encontrada no próprio quarto de Méloré e que é, provavelmente, uma encarnação da
Morte. Ambos, narrador e desconhecida de tez de argila, fazem amor. Mas o narrador
não morre,
sendo reencaminhado, no final, para ir ver como está agora a cidade adormecida,
depois dos
terríveis acontecimentos da noite:
A
narrativa acompanha assim a trajetória do narrador, completamente atordoado (hébété) pela
cidade, do meio-dia, com o sol
a pino, até o momento em que toda a gente dorme, passando pelo
crepúsculo. “Le soleil lançait vers nous la meute devorante
de sa lumière” (= o sol lançava na nossa
direção a matilha devoradora da sua
luz) é a primeira frase e a frase final reza: “va-t-en voir
comment dort la ville” (= vá ver como dorme a cidade).
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O
diálogo que fecha o conto é melancólico. Note-se que a descrição física da mulher
morta e da
mulher-Morte aproxima-se: ambas têm a tez de argila clara com um toque
de violeta na pele. São,
talvez, a mesma, como no soneto “Artémis” de Nerval: “La Treizième revient… C’est encore la
première”
(= A décima terceira retorna… É ainda a primeira).
À guisa de conclusão
aberta
Pretendeu-se
aqui somente apresentar, forçosamente por alto, não só um escritor antilhano de
língua francesa praticamente desconhecido no Brasil e na América hispânica, como
dar uma ideia
da sua primeira produção, muito variada, dentro de uma revista-laboratório,
afiliada ao
Surrealismo, nos anos 40 do século passado.
René
Ménil, em Tropiques, é ao mesmo tempo
um teórico e um crítico (como Suzanne Césaire,
aliás) que trabalha e continuará
a trabalhar sobre identidade e ainda um poeta em prosa, herdeiro
de uma dupla tradição
(o romantismo alemão e a poesia da revolta francesa).
Seria
urgente analisá-lo no contexto dos escritores que pensam a problemática da descolonização
e da identidade americana com suas múltiplas camadas de significação e suas temporalidades
diferentes e arriscar traduzi-lo, uma vez que a sua obra nos ajudaria a compreender
as Américas.
NOTAS
2. Do tipo: com a pedra lançada ontem, mata o pássaro hoje. Este, aliás,
é um dos orikis de Exu.
7. Situada na parte
norte-atlântica da Martinica, Gros-Morne é uma das comunas da ilha e foi colonizada
tardiamente no século XVIII. Hoje vive essencialmente da agricultura do ananás e
da mandioca. A sua altitude
permite uma visão da costa atlântica. No seu território
existe ainda a Habitação Saint-Etienne, fabricante
tradicional de rum.
8. Aimé Césaire,
nascido em 1913, tem então 28 anos incompletos e Suzanne, nascida em agosto de 1915,
ainda
não fez 26 anos.
9. A mesma constatação
desolada reaparece em vários outros colaboradores da revista: Césaire, Suzanne
Césaire,
René Hibran.
LILIAN PESTRE
DE ALMEIDA | Romanista de formação,
ensaísta e tradutora, publica em francês e/ou português
sobre literaturas francófonas,
literatura comparada, iconografia e iconologia. O nº 115 da Agulha Revista de
Cultura, de julho de 2018, publicou uma edição especial sobre o seu trabalho,
sob o titulo “Entre o Mediterrâneo
e as Caraíbas”. Últimas publicações: Vampire
liminaire: de Lautréamont aux Césaire. Königshausen & Neumann,
2019, e os
posfácios às traduções de Suzanne Césaire: Escritos de Dissidência (Papéis
selvagens, 2021) e Sony
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Labou Tansi. O ato de respirar (Cultura e Barbárie,
2021).
JAN DOČEKAL
| Historiador de arte e artista, nascido em Třebíč, República
Tcheca, em 1943. Formado como metalúrgico, estudou história da arte e
estética, foi operário, tecnólogo, publicitário, diretor de vendas em uma gráfica
e professor de educação artística. Preparou
mais de cem exposições de arte e
foi comissário do Simpósio de Esculturas Mladá
tvorba Žďár nad Sázavou
(2000). Colaborou com a Galeria Moravian de Stanislava
Macháčková por 25
anos. É membro do grupo
surrealista Stir up e já realizou trinta
exposições
originais. Livros e catálogos publicados: Jaroslav Vyskočil (1996), Horácka Fine
Arts Club (1999), Horácka Fine Arts Club (2000), About Graphics (2001), Max
Švabinský Graphics (2001), Everyday Things / Beyond the Art of Arts
(2004),
Reviews Texts Interviews (2005),
Interviews 2005-2013 (2014), Josef Kremláček (monografia, 2020).
É coautor do
Dicionário de Belas Artistas
Tchecas e Eslovacas (1998) e editor do livro Vlastimil Toman, Life Journey (2015).
concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
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