Autoridades Tradicionais e Estado Mocambicano
Autoridades Tradicionais e Estado Mocambicano
Autoridades Tradicionais e Estado Mocambicano
5/6 | 2004
Recomposições políticas na África contemporânea
Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/cea/1051
DOI: 10.4000/cea.1051
ISSN: 2182-7400
Editora
Centro de Estudos Internacionais
Edição impressa
Data de publição: 1 Junho 2004
Paginação: 89-115
ISSN: 1645-3794
Refêrencia eletrónica
Fernando Florêncio, « Autoridades Tradicionais e Estado moçambicano: o caso do distrito do Búzi »,
Cadernos de Estudos Africanos [Online], 5/6 | 2004, posto online no dia 17 setembro 2013, consultado o
01 maio 2019. URL : http://journals.openedition.org/cea/1051 ; DOI : 10.4000/cea.1051
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Autoridades Tradicionais
e Estado moçambicano:
o caso do distrito do Búzi
Fernando Florêncio
Universidade de Coimbra
O presente artigo pretende equacionar o modelo de relacionamento entre o Estado moçam-
bicano e as autoridades tradicionais vaNdau, baseiando-se no estudo de caso do distrito do
Búzi, na Província de Sofala. A argumentação defendida parte da consideração que as autori-
dades tradicionais vaNdau desempenham um papel de intermediários entre o Estado e as
populações rurais, retirando a legitimidade política do seu posicionamento de charneira quer
do modelo tradicional de reprodução Ndau quer do seu estatuto de «representantes» locais do
Estado. Nesse sentido, elas relacionam, num equilíbrio precário, complexo e ambivalente, dois
modelos de reprodução social em confronto, o estatal e o tradicional.
Based on a case study of the Búzi district in the province of Sofala, this article endeavours
to sketch out a model of relationships between the Mozambican state and the traditional
authorities vaNdau. The starting point of the argument is the consideration that the tradition-
al authorities vaNdau play their role of intermediaries between the state and the rural popula-
tion by deriving the political legitimacy of their «hinge» position both from the traditional
reproduction model of the vaNdau and from their statute as local «representatives» of the state.
In this sense they establish a relationship between two models of social reproduction which are
confronting each other, the traditional and the one adopted/favoured by the state - a relation-
ship which is at this stage precarious, complex, and ambivalent.
Prenant comme base une étude de cas du district de Búzi, province de Sofala, cet article
essaye d'esquisser le modèle des rapports entre l'État moçambicain et les autorités tradition-
nelles vaNdau. L' argumentation proposée part de la considération que les autorités tradition-
nelles vaNdau jouent un rôle d'intermédiaires entre l'État et les populations rurales en déri-
vant la légitimité politique de cette position de charnière tant du traditionnel modèle de repro-
duction Ndau que de leur statut de «représentants» locaux de l'État. Dans ce sens, elles éta-
blissent un rapport entre deux modèles de reproduction sociale qui se confrontent, l'un tradi-
tionnel et l'autre promu par l'État, et ceci dans un équilibre précaire, complexe et ambivalent.
Introdução
Este texto centra-se na análise dos principais processos relacionais entre as auto-
ridades tradicionais vaNdau e o Estado moçambicano1. Pretende-se esquematizar,
mesmo que de forma sucinta, os diferentes processos de mudança social desta insti-
tuição de poder local e os modos de relacionamento e participação no processo de
formação do Estado moçambicano, ao nível distrital, tomando como exemplo o dis-
trito do Búzi, na Província de Sofala.
O objectivo principal deste texto é o de demonstrar que as autoridades tradicio-
nais vaNdau desempenham um importante papel nesse processo de formação do
Estado local, à semelhança do sucedido durante o processo de formação do Estado
colonial.
As autoridades tradicionais vaNdau constituem um actor chave, em constante
confrontação com outros actores políticos locais e nacionais, numa incessante luta
pela conquista de lugares de poder político no seio do aparelho administrativo esta-
tal distrital e pelo controlo social das populações rurais do distrito.
A tese principal deste texto é a de que na formação do Estado local confrontam-
se dois modelos de organização social, o modelo estatal, protagonizado pelas estru-
turas governamentais, pelo partido Frelimo e suas organizações, e o modelo de
reprodução social Ndau, no qual as autoridades tradicionais desempenham um
papel de charneira, modelo este apoiado politicamente pelo partido Renamo,
enquanto força de oposição ao Estado e ao partido Frelimo. O processo de formação
do Estado local funda-se, em grande medida, nas dinâmicas de oposição e confluên-
cia entre estes dois modelos.
A argumentação deste texto desenvolve-se em torno de três pontos. No primeiro
traçam-se as principais linhas caracterizadoras do modelo de reprodução social
Ndau, com especial relevo para o modelo da organização política, tomando em con-
sideração as principais mudanças ocorridas desde o período pré-colonial. No segun-
do ponto demarcam-se os principais impactos da administração colonial, nas suas
vertentes histórica e política, sobre a instituição das autoridades tradicionais e o
modo de enquadramento e integração no aparelho administrativo colonial. No últi-
mo ponto salientam-se as principais linhas de força dos diferentes tipos de relação
entre as autoridades tradicionais vaNdau e o Estado moçambicano, com especial
relevância para o exemplo do distrito do Búzi.
1 Os dados empíricos apresentados neste texto reportam-se a vários trabalhos de campo efectuados entre 1994 e 2001,
e estiveram na base da Dissertação de Doutoramento, apresentada pelo autor no ISCTE em 2003, sob o título, «As
Autoridades Tradicionais vaNdau, Estado e Política Local em Moçambique». Esta investigação viria a beneficiar da
participação do autor, a partir de 1999, num projecto de investigação do CEA/ISCTE, intitulado «Estado,
Autoridades Tradicionais e Modernização Política: O Papel das Autoridades Tradicionais no Processo de Mudança
Política em África», que tem como Investigador Principal o Prof. Doutor Eduardo Costa Dias e é financiado pela FCT.
92 AUTORIDADES TRADICIONAIS E ESTADO MOÇAMBICANO
Sachiteve, em 1820.
O segundo exemplo encontra-se na ucama denominada de Chicumba, de onde
provêm toda a linha dos mambo mudoco de Inhabira, na zona da actual vila Búzi,
subordinados ao régulo Johvo. O elemento que deu origem a esta linhagem era um
indivíduo de origem Teve, chamado de Macamba, e que vivia na região de Chimoio.
Macamba era um reputado caçador de elefantes e recebeu as terras onde se situa a
actual vila do Búzi das mãos do próprio Ngungunyane7. Macamba acabaria por inte-
grar-se, por via do casamento, no bvumbo Simango e fundar a ucama Chicumba.
Contudo, não é a sua ucama que lidera a região, pois actualmente a liderança perten-
ce ao mambo Jovho que, na época da dominação Nguni, era apenas um inhamaçango
(espécie de saguta). Actualmente os descendente de Macamba são apenas mambo
mudoco do régulo Jovho.
A estrutura tradicional do poder político Ndau é do tipo piramidal, com os mambo
a ocuparem o topo da hierarquia e os saguta o escalão inferior. Numa posição inter-
mediária situam-se os mambo mudoco. Quer o mambo quer os mambo mudoco partilham
o poder e são coadjuvados por outros personagens sociais, individuais ou colectivos,
o que consubstancia a ideia de que o poder não se exerce de forma autocrática. De
forma esquemática, adiante-se que estas personagens são: o conselho dos anciãos, o
conselho da ucama, o nduna, o muvia e os maporissas.
O conselho de anciãos, denominados de madoda ou matombo8, representa uma
peça fundamental na estrutura de poder político Ndau e consubstancia a componen-
te gerontocrática desta forma de poder político. Os matombo são o grupo mais impor-
tante de conselheiros do mambo e dos mambo mudoco, em todos os domínios da vida
material e simbólica das populações vaNdau. A sua importância não se confina ape-
nas no carácter consultivo das suas funções, pois os matombo também detêm um
poder decisório. O conselho de matombo assume em muitas circunstâncias um poder
similar ao do mambo, e por vezes superior, especialmente quando estes ainda são
jovens e desconhecem as tradições, ou são pouco aptos para o cargo que desempe-
nham. Actualmente, dado que a instituição atravessa uma fase de mudança e refor-
mulação, os matombo são mesmo considerados por alguns sectores da população
como os verdadeiros «guardiões das tradições».
Na maior parte dos casos, este grupo não recebe nenhum nome específico; no
entanto, em certas zonas do distrito do Búzi o conselho é conhecido pela expressão
chicungo a mambo9.
No conselho de matombo encontram-se representados, além dos anciãos mais
importantes do nyika do mambo ou do mambo mudoco, também os outros personagens
de poder, como os mambo mudoco, sagutas, nduna e maporissas.
Na região do Búzi não se usa o termo muvia mas sim o de tetaje. Este termo tam-
bém serve para designar os tios de ego, os irmãos do pai, ou os filhos desse tios ou
mesmo os filhos das irmãs. Este termo utiliza-se igualmente para designar o perso-
nagem que desempenha um cargo semelhante ao de muvia, porque este é, por regra,
o filho mais velho da irmã mais velha do mambo. Um aspecto importante a salientar
é que o muvia, ou o tetaje, sendo filho de uma irmã do mambo não pertence à ucama
deste, devido às regras de descendência patrilinear, apesar de desempenhar funções
cerimoniais importantes. Em certos casos o tetaje não se limita a desempenhar fun-
ções rituais, mas pode assumir igualmente funções de conselheiro do mambo, sobre-
tudo no caso de ser uma pessoa de certa idade, um tombo.
No regulado de Johvo, no Búzi, a utilização do termo tetaje desvia-se de tudo o
que foi dito anteriormente e constitui uma excepção pois o termo utiliza-se para
designar o cargo de secretário do régulo, ou seja o nduna, e não ao cargo de muvia.
Por seu lado, em certas zonas de Nova Sofala, como no regulado de Inhangoro, os
termos muvia, nduna, e tetaje, não são conhecidos, existindo no entanto uma persona-
gem social que congrega em si as mesmas funções desempenhadas quer pelo nduna
quer pelo muvia. Esse personagem é conhecido pelo termo de munholi. No entanto, o
lugar de munholi representa uma diferença significativa em relação ao nduna e ao
muvia, uma vez que por norma é um membro da ucama do mambo, por vezes um filho
e, sobretudo nesta última situação, pode suceder-lhe no cargo.
Finalmente os maripossa, como se chamam na região de Mossurize e Machaze, ou
cipaios, na região do Búzi, são uma espécie de policias do mambo e do mambo mudoco.
Auxiliando em tarefas de manutenção da ordem ou, por exemplo, no acompanha-
mento das partes queixosas durante o processo de julgamento de milandos10. Os
maporissa ou cipaios podem ainda desempenhar tarefas de emissários e mensageiros.
Na região do Búzi, durante a época da administração colonial portuguesa, existia
ainda a figura do cabo de terra, ou sathanda, que era igualmente uma espécie de cipaio
especial do régulo ou do chefe de grupo de povoações, pois acompanhava-os perma-
nentemente e servia-lhes mesmo como uma espécie de guarda-costas.
Na época da dominação Nguni existiam ainda outros cargos de poder, relaciona-
dos com a vida militar, como os de phepa e ngonde, e o de shiperana, que era o chefe
máximo dos exércitos reais. Estes cargos desapareceram com a dominação colonial,
à medida que as chefaturas foram sendo pacificadas e aniquilada a sua independên-
cia e capacidade guerreira.
O modelo de sucessão, sobretudo para os cargos de mambo e mambo mudoco, cons-
titui um dos pilares do sistema político Ndau, devido à sua importância na manuten-
ção da ordem social dentro das ucama reais11. A sucessão processa-se segundo o prin-
cípio da descendência patrilinear e a regra consuetudinária mais comum é aquela em
que os direitos de sucessão recaem sobre o filho mais velho da primeira esposa «lobo-
lada»12. Esta regra de sucessão, de características verticais, pode ser complementada
por uma outra, de natureza mais horizontal, que permite corrigir e prevenir algumas
distorções do sistema, como por exemplo nos casos em que o falecido não tenha
filhos, ou estes sejam ainda menores, ou considerados inaptos para desempenharem
lugares de liderança. Neste casos o sucessor poder ser um irmão do mambo. Corrigida
a situação, o cargo deve regressar depois ao legítimo musi real, ou seja, ao filho do
falecido mambo (no caso em que este era menor quando faleceu o seu pai), ou ao legí-
timo herdeiro do filho do falecido mambo (nos casos em que o legítimo herdeiro não
detinha qualidades para desempenhar o cargo). Existe ainda um terceiro modelo de
sucessão, bastante disseminado na região do Búzi, que se pode denominar de «alter-
nância entre misi reais», no qual o poder político deve recair sucessiva e alternada-
mente por todos os misi reais, segundo a ordem de senioridade. Este método de
sucessão alternada entre misi reais contradiz a regra costumeira da descendência
patrilinear directa, que tem como consequência perpetuar o poder político no seio de
um único musi real; contudo, ele serve precisamente para atenuar os conflitos entre
os misi reais, redistribuindo o poder alternadamente entre todos.
Na primeira fase do processo de ocupação colonial, que pode ser delimitada entre
1891 e 1932, o território de Moçambique encontrava-se dividido em diferentes regi-
ões, segundo três modelos diferentes de administração colonial. O modelo de admi-
nistração directa do Estado, que compreendia sobretudo as regiões a sul do paralelo
22º e de Nampula, entre os rios Lúrio, a norte, e o Ligonha, a sul. O modelo de admi-
nistração baseado nas companhias concessionárias, como a Companhia de
Moçambique, que administrava os territórios a sul do Zambeze até ao paralelo 22º
(limite sul); e a Companhia do Niassa, que administrava a região do Niassa e Cabo
Delgado. Finalmente, as regiões da Zambézia e alto Zambeze eram administradas
segundo o regime dos prazos.
Neste texto interessa sobretudo examinar a administração da Companhia de
Moçambique, por ter controlado os territórios de Manica e Sofala. Fundada por Paiva
de Andrada, em 1888, a Companhia só iniciaria a sua actividade a partir de 189213. A
concessão majestática que recebeu, inicialmente por um período de vinte e cinco
anos, estabelecia os deveres de administração e defesa dos territórios, a construção
14 Tendo sido publicado pela primeira vez em 1930, o Acto Colonial foi posteriormente revisto, devido à Constituição
de 1933, e declarado matéria constitucional.
15 Denominadas de regulados ou regedorias, pela administração colonial. Na verdade, a partir da introdução da admi-
nistração da Companhia de Moçambique o termo chefatura não tem qualquer valor, nem teórico nem heurístico,
para definir estas unidades políticas.
100 AUTORIDADES TRADICIONAIS E ESTADO MOÇAMBICANO
vasta área desde o Dondo até às cercanias de Chimoio, incluindo ainda zonas do Búzi
e da Gorongosa. Com a administração da Companhia de Moçambique, e mais tarde
com a administração colonial estatal, o seu nyika foi diminuindo progressivamente,
ora sendo englobado noutros regulados ora dando origem à «criação» de novos
régulos, ao ponto de, a partir de 1943, ficar confinado somente à área do posto admi-
nistrativo de Vila Machado.
O concelho do Búzi constitui um excelente exemplo no que concerne aos impac-
tos provocados pelos arranjos territoriais da administração colonial sobre as autori-
dades tradicionais. No período pré-colonial existiam na zona do Búzi um conjunto
de chefaturas que foram mantidas pela administração da Companhia de
Moçambique. Quando a administração estatal tomou conta do território, procedeu a
uma reorganização dos regulados, com vista a: a) diminuir o número de régulos, b)
garantir que as áreas dos regulados eram relativamente uniformes, e englobavam
suficiente população; c) conseguir que os regulados ficassem confinados às áreas dos
postos administrativos. Assim, houve um conjunto de regulados que desapareceu,
sendo os seus territórios distribuídos por outros regulados e os seus mambo «desclas-
sificados» para a categoria de chefe de grupo de povoações. Estão nessa situação os
antigos mambo de Chissinguana, Inhangujo, Bagaza, Chironda, Mazimba, Fumo,
Ussingué, Chicoio, Guenje, Beia, Grudja e Gerome.
No caso de Chissinguana o nyika foi por exemplo integrado no de Boca e o régu-
lo passou a chefe de grupo de povoações. Segundo algumas informações, mais tarde,
já no final do período colonial, o nyika do chefe Chissinguana teria sido desanexado
do regulado de Boca e integrado no de Marombe. Os regulados de Inhangujo,
Bagaza, Chironda e Mazimba foram igualmente abolidos e os territórios integrados
também no regulado de Boca. O regulado de Beia foi integrado no de Johvo e o régu-
lo desclassificado para chefe de grupo de povoações. Os regulados de Fumo,
Ussingué e Chicoio foram integrados no regulado de Matire. O exemplo do regula-
do de Grudja é bastante contraditório porque, segundo algumas informações locais,
Grudja nunca foi um régulo mas sim um mambo mudoco do régulo Mamudje16.
Outro exemplo bem elucidativo é o de Gerome. No período pré-colonial, Gerome
e Tica eram os dois mambo mais importantes da região do Búzi. Já durante o período
da administração colonial portuguesa Gerome teve uma disputa com o seu irmão
Nhacuesse, que saiu vencedor e ficou com a alcunha de Maxemeje. Em 1942, quan-
do a administração colonial chamou os régulos da região, Gerome não se apresentou
e foi Maxemeje quem foi nomeado régulo. Gerome ficou como chefe de grupo de
povoações, subordinado ao seu irmão. Este facto provocou um enorme descontenta-
mento das populações de Gerome, e mesmo dentro da ucama real. Em 1964, por oca-
sião da morte do irmão, Gerome voltou a exigir da administração a devolução do seu
16 Não foi possível confirmar estas informações porque os livros de acento das autoridades gentílicas do concelho do
Búzi não estavam acessíveis para consulta.
FERNANDO FLORÊNCIO 101
estatuto de régulo, reclamação essa que foi preterida, tendo sido nomeado régulo o
filho de Maxemeje. Gerome sempre foi considerado pelas populações como o legíti-
mo mambo e «dono das terras» e no presente os seus herdeiros usufruem ainda de
maior respeito e prestígio do que os de Maxemeje.
Por seu lado, o chefe Guenje, que actualmente é um mambo mudoco do régulo
Ngwarangwara17, era régulo no período da dominação Nguni, subordinado ao
mambo Tica. Em 1942 o nyika de Guenje foi dividido em duas parcelas que foram inte-
gradas nos regulados de Guara-Guara e de Mamunge. Por seu turno, no período da
dominação Nguni, Mamunge era apenas um inhamaçango18 do mambo Tica, sendo
alcandorado à posição de régulo pela administração colonial. A chefatura de Guara-
Guara não existia no período anterior à dominação Nguni e foi uma criação do pró-
prio Ngungunyane, que atribuiu as terras e o título a um indivíduo de nome
Chabarezo. Essas terras pertenciam ao régulo de Guenje (Branquinho, 1966: 22).
Com a introdução da RAU as autoridades tradicionais tornaram-se parte inte-
grante do aparelho administrativo colonial, e pelo menos os régulos e chefes de
grupo de povoações acabariam por ser autênticos funcionários da administração,
cujas funções, deveres e regalias estavam consignadas na própria RAU. As autorida-
des tradicionais actuavam como intermediários entre o Estado colonial e as popula-
ções, responsabilizando-se directamente em tarefas como a recolha do imposto de
palhota, o controlo da mão-de-obra «indígena», a manutenção da ordem e resolução
de milandos, a organização da produção, sobretudo das culturas obrigatórias, e outras
tarefas designadas pelas administrações das circunscrições.
Por outro lado, as autoridades tradicionais desempenhavam simultaneamente
um conjunto de funções sociais que não relevavam directamente do seu lugar no
aparelho administrativo colonial, mas que estavam relacionadas com o seu lugar no
modelo de organização social tradicional Ndau. Neste capítulo destacam-se as fun-
ções de índole mágico-religiosa, fundamentais para a continuidade e reprodução
desse mesmo modelo de organização social.
Do ponto de vista mágico-religioso, as autoridades tradicionais ocupam um lugar
fundamental na sociedade Ndau, uma vez que são os representantes terrenos dos
espíritos, nomeadamente dos espíritos dos falecidos mambo, os varungu a mambo,
actuando como intermediários na relação entre o universo espiritual e o universo ter-
reno. Enquanto intermediários dos varungu a mambo, as autoridades tradicionais
assumem-se como intérpretes terrenos da sua vontade e, por conseguinte, como res-
ponsáveis pela manutenção da ordem e da reprodução social e cosmológica. Deste
modo, são figuras sociais temidas e respeitadas, cujo poder e prestígio deriva direc-
tamente do prestígio e poder dos varungu a mambo que elas representam. Este poder
e prestígio das autoridades tradicionais é bastante ambíguo, e as representações soci-
17 Os portugueses apelidavam-no de Guara-Guara, nome pelo qual é ainda hoje mais conhecido.
18 Termo utilizado na região do Búzi durante a dominação Nguni e que designa um pequeno chefe de aldeia.
102 AUTORIDADES TRADICIONAIS E ESTADO MOÇAMBICANO
ais apontam para uma enorme ambivalência destas figuras sociais, devido precisa-
mente a essa relação privilegiada com os espíritos. Por isso, as autoridades tradicio-
nais são fundamentais para a manutenção da ordem social terrena, pois têm essa
dupla capacidade de influência, quer positiva quer negativa, sobre a reprodução soci-
al. Um dos exemplos mais paradigmáticos deste tipo de representações sociais sobre
o poder maléfico das autoridades tradicionais prende-se com a ideia de que as auto-
ridades tradicionais podem, por intervenção dos seus espíritos, «segurar a chuva»,
provocando secas prolongadas que colocam em causa a reprodução da sociedade
inteira19.
Em jeito de conclusão, pode afirmar-se que, apesar de todas as transformações
impostas pela administração colonial sobre a instituição das autoridades tradicionais
vaNdau, esta nunca se deixou verdadeiramente encapsular num modelo do estilo
«administrative chieftaincy», ao contrário do que defende Trutz von Trotha (Thotha,
1996: 80), e continuaram a usufruir de uma forte legitimidade para as populações,
legitimidade essa que ia muito para além do seu papel de intermediários entre a
administração colonial e as populações. As autoridades tradicionais, em boa verda-
de, desempenham o papel de duplos intermediários, entre a administração colonial
e as populações, por um lado, e entre o universo dos espíritos e o universo terreno,
por outro. Neste último, as autoridades tradicionais consubstanciam a relação entre
a população e os seus espíritos e impõem-se como garantes da ordem e reprodução
social.
19 Após a independência as populações explicavam as secas prolongadas pelo facto das autoridades tradicionais esta-
rem a «segurar a chuva» como forma de reacção ao descontentamento provocado pela acção do Estado-Frelimo, que
as perseguiu e aboliu.
FERNANDO FLORÊNCIO 103
20 Os Grupos Dinamizadores foi uma estrutura criada pela Frelimo de molde a implantar o Partido em todo o territó-
rio moçambicano e funcionavam como mecanismos de mobilização e controle das populações, assim como órgãos
de implantação local das políticas do Estado-Frelimo.
21 Castigadas com o chamboco (do afrikaans shambok), espécie de bastão em madeira.
104 AUTORIDADES TRADICIONAIS E ESTADO MOÇAMBICANO
A guerra desencadeada pela Renamo já no fim dos anos 70, veio oferecer uma
nova forma de combate às autoridades tradicionais e aos grupos resilientes à implan-
tação do Estado-Frelimo e da sua política. No distrito do Búzi, a primeira acção da
Renamo foi o ataque à aldeia comunal Acordo de Lusaka, em Grudja, a 14 de
Outubro de 1980. A aldeia foi totalmente destruída e as famílias residentes regressa-
ram às suas antigas terras. Um dos factos mais salientes desta acção foi o modo efu-
sivo como a população recebeu os soldados da Renamo, saudando-os como autênti-
cos libertadores. A partir de 1980, a Renamo ocupou rapidamente vastas áreas do dis-
trito, criando as bases de Chissinguana, Grudja e Ampara.
No distrito do Búzi, a dinâmica geo-militar do conflito armado foi ligeiramente
diferente da dos distritos de Machaze, Mossurize e mesmo Chibabava. Nestes últi-
mos pode falar-se de uma ocupação por «manchas» ou «bolsas territoriais», em que
a Frelimo e a Renamo ocupavam determinadas zonas, sem continuidade entre si,
ficando entre elas um hinterland de ninguém, muitas vezes praticamente desertifica-
do e sujeito às acções militares de ambos os lados. No caso do Búzi a ocupação era
diferente, em parte devido às características económicas do próprio distrito, nomea-
damente devido à existência da Companhia do Búzi22. O Estado-Frelimo procurou
desde o inicio do conflito proteger este centro económico e, nesse sentido, estabele-
ceu uma zona defensiva, triangular, cujos vértices-limites eram a vila do Búzi (sede
do distrito), a norte, e as localidades de Estaquinha e Bândua, a sul. Esta zona cons-
tituída uma espécie de oásis da Frelimo no meio do distrito, pois estava rodeada por
zonas controladas pela Renamo, e era abastecida através da cidade da Beira, ou por
via marítima ou aérea. Fora deste triângulo a Frelimo controlava ainda uma peque-
na bolsa territorial em torno da localidade de Nova Sofala, que comunicava com a
cidade da Beira por via marítima.
Na sua obra La Cause des Armes au Mozambique, Christian Geffray explica que os
mambo desempenharam um papel importantíssimo na adesão das populações rura-
is do distrito de Eráti (a norte de Moçambique) à Renamo. Nessa obra, o autor expli-
ca que a Renamo estabeleceu uma espécie de aliança com as autoridades tradicionais
locais e que estas eram peças importantíssimas na gestão e administração das popu-
lações, e dos recursos naturais, nos territórios que o movimento controlava, funcio-
nando como intermediários entre a Renamo e as populações.
Esta ideia generalizou-se ao país inteiro, tornando-se um lugar comum, entre aca-
démicos e outros, que a Renamo instrumentalizava sistematicamente as autoridades
tradicionais para administrarem as populações civis nos seus territórios. Na região
Ndau, e em particular no distrito do Búzi, tal não sucedia com essa putativa sistema-
tização. Em geral as autoridades tradicionais aderiram à Renamo23; contudo, opta-
ram por não se identificarem publicamente e a maior parte procurou refúgio na cida-
24 Alguns régulos, e mesmo alguns chefes de povoação, já viviam nesta cidade antes do inicio do conflito armado,
como forma de escapar às perseguições dos GDs.
106 AUTORIDADES TRADICIONAIS E ESTADO MOÇAMBICANO
28 Os distritos de predominância populacional Ndau são os de Mossurize, Machaze, Chibabava, Búzi, e Machanga, e
o posto administrativo de Dombe, no distrito de Sussundenga. De realçar que os dados empíricos apresentados neste
texto se reportam a estes distritos, à excepção do de Machanga, onde nunca foi possível planear uma estadia de ter-
reno.
110 AUTORIDADES TRADICIONAIS E ESTADO MOÇAMBICANO
29 Existem ainda outros actores políticos distritais de forte relevância, como empresários, líderes religiosos (sobretudo
da igreja católica e das diversas igrejas de cariz protestante), curandeiros e outros elementos da AMETRAMO
(Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique), contudo, à excepção talvez da AMETRAMO, falta a estes
actores um carácter de grupo político organizado e a sua acção reveste-se de uma natureza mais individual do que
colectiva. Por outro lado, muitos deste actores encontram-se igualmente identificados e integrados nos grupos acima
descritos.
FERNANDO FLORÊNCIO 111
30 Nota-se nesse discurso que formalmente as autoridades tradicionais, sobretudo as mais jovens, produzem uma visão
que separa o Estado do partido Frelimo, delegando no primeiro uma maior consideração e legitimidade. Contudo,
uma análise mais profunda das práticas e das representações sociais demonstra que em grande medida essa separa-
ção é sobretudo discursiva e, para a grande maioria das autoridades tradicionais, inexistente.
31 Um dos exemplos são as banjas que o governo distrital realiza para mobilizar as populações para os seus programas
de saúde, educação, etc. Quem mobiliza as populações são as respectivas autoridades tradicionais da região. Não
raras vezes estas são posteriormente pressionadas pelos dirigentes da Renamo para mobilizarem uma nova banja,
por vezes no dia seguinte, para o movimento criticar e desmobilizar a participação das população. Por vezes, ainda,
as próprias autoridades tradicionais assumem um papel activo de crítica e desmobilização da população.
112 AUTORIDADES TRADICIONAIS E ESTADO MOÇAMBICANO
32 A Lei 15/2000 estabelece que os secretários de bairro também são «líderes comunitários», com o mesmo tipo de tare-
fas e regalias que os outros «líderes comunitários», tais como as autoridades tradicionais e, nesse sentido, a Lei poten-
cia este tipo de conflitos em vez de os resolver.
FERNANDO FLORÊNCIO 113
Conclusão
33 A designação de «mato» é vulgarmente utilizada pelas populações das sedes e localidades, as populações urbanas,
e entre estas sobretudo nos sectores mais modernos, jovens escolarizados, empresários, trabalhadores das ONGs,
membros do aparelho estatal e dos partidos políticos, e tem para estes uma óbvia conotação depreciativa.
114 AUTORIDADES TRADICIONAIS E ESTADO MOÇAMBICANO
Bibliografia