Autoridades Tradicionais e Estado Mocambicano

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Cadernos de Estudos Africanos

5/6 | 2004
Recomposições políticas na África contemporânea

Autoridades Tradicionais e Estado moçambicano: o


caso do distrito do Búzi
Fernando Florêncio

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/cea/1051
DOI: 10.4000/cea.1051
ISSN: 2182-7400

Editora
Centro de Estudos Internacionais

Edição impressa
Data de publição: 1 Junho 2004
Paginação: 89-115
ISSN: 1645-3794

Refêrencia eletrónica
Fernando Florêncio, « Autoridades Tradicionais e Estado moçambicano: o caso do distrito do Búzi »,
Cadernos de Estudos Africanos [Online], 5/6 | 2004, posto online no dia 17 setembro 2013, consultado o
01 maio 2019. URL : http://journals.openedition.org/cea/1051 ; DOI : 10.4000/cea.1051

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Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional.
Autoridades Tradicionais
e Estado moçambicano:
o caso do distrito do Búzi

Fernando Florêncio
Universidade de Coimbra
O presente artigo pretende equacionar o modelo de relacionamento entre o Estado moçam-
bicano e as autoridades tradicionais vaNdau, baseiando-se no estudo de caso do distrito do
Búzi, na Província de Sofala. A argumentação defendida parte da consideração que as autori-
dades tradicionais vaNdau desempenham um papel de intermediários entre o Estado e as
populações rurais, retirando a legitimidade política do seu posicionamento de charneira quer
do modelo tradicional de reprodução Ndau quer do seu estatuto de «representantes» locais do
Estado. Nesse sentido, elas relacionam, num equilíbrio precário, complexo e ambivalente, dois
modelos de reprodução social em confronto, o estatal e o tradicional.

Based on a case study of the Búzi district in the province of Sofala, this article endeavours
to sketch out a model of relationships between the Mozambican state and the traditional
authorities vaNdau. The starting point of the argument is the consideration that the tradition-
al authorities vaNdau play their role of intermediaries between the state and the rural popula-
tion by deriving the political legitimacy of their «hinge» position both from the traditional
reproduction model of the vaNdau and from their statute as local «representatives» of the state.
In this sense they establish a relationship between two models of social reproduction which are
confronting each other, the traditional and the one adopted/favoured by the state - a relation-
ship which is at this stage precarious, complex, and ambivalent.

Prenant comme base une étude de cas du district de Búzi, province de Sofala, cet article
essaye d'esquisser le modèle des rapports entre l'État moçambicain et les autorités tradition-
nelles vaNdau. L' argumentation proposée part de la considération que les autorités tradition-
nelles vaNdau jouent un rôle d'intermédiaires entre l'État et les populations rurales en déri-
vant la légitimité politique de cette position de charnière tant du traditionnel modèle de repro-
duction Ndau que de leur statut de «représentants» locaux de l'État. Dans ce sens, elles éta-
blissent un rapport entre deux modèles de reproduction sociale qui se confrontent, l'un tradi-
tionnel et l'autre promu par l'État, et ceci dans un équilibre précaire, complexe et ambivalent.
Introdução

Este texto centra-se na análise dos principais processos relacionais entre as auto-
ridades tradicionais vaNdau e o Estado moçambicano1. Pretende-se esquematizar,
mesmo que de forma sucinta, os diferentes processos de mudança social desta insti-
tuição de poder local e os modos de relacionamento e participação no processo de
formação do Estado moçambicano, ao nível distrital, tomando como exemplo o dis-
trito do Búzi, na Província de Sofala.
O objectivo principal deste texto é o de demonstrar que as autoridades tradicio-
nais vaNdau desempenham um importante papel nesse processo de formação do
Estado local, à semelhança do sucedido durante o processo de formação do Estado
colonial.
As autoridades tradicionais vaNdau constituem um actor chave, em constante
confrontação com outros actores políticos locais e nacionais, numa incessante luta
pela conquista de lugares de poder político no seio do aparelho administrativo esta-
tal distrital e pelo controlo social das populações rurais do distrito.
A tese principal deste texto é a de que na formação do Estado local confrontam-
se dois modelos de organização social, o modelo estatal, protagonizado pelas estru-
turas governamentais, pelo partido Frelimo e suas organizações, e o modelo de
reprodução social Ndau, no qual as autoridades tradicionais desempenham um
papel de charneira, modelo este apoiado politicamente pelo partido Renamo,
enquanto força de oposição ao Estado e ao partido Frelimo. O processo de formação
do Estado local funda-se, em grande medida, nas dinâmicas de oposição e confluên-
cia entre estes dois modelos.
A argumentação deste texto desenvolve-se em torno de três pontos. No primeiro
traçam-se as principais linhas caracterizadoras do modelo de reprodução social
Ndau, com especial relevo para o modelo da organização política, tomando em con-
sideração as principais mudanças ocorridas desde o período pré-colonial. No segun-
do ponto demarcam-se os principais impactos da administração colonial, nas suas
vertentes histórica e política, sobre a instituição das autoridades tradicionais e o
modo de enquadramento e integração no aparelho administrativo colonial. No últi-
mo ponto salientam-se as principais linhas de força dos diferentes tipos de relação
entre as autoridades tradicionais vaNdau e o Estado moçambicano, com especial
relevância para o exemplo do distrito do Búzi.

1 Os dados empíricos apresentados neste texto reportam-se a vários trabalhos de campo efectuados entre 1994 e 2001,
e estiveram na base da Dissertação de Doutoramento, apresentada pelo autor no ISCTE em 2003, sob o título, «As
Autoridades Tradicionais vaNdau, Estado e Política Local em Moçambique». Esta investigação viria a beneficiar da
participação do autor, a partir de 1999, num projecto de investigação do CEA/ISCTE, intitulado «Estado,
Autoridades Tradicionais e Modernização Política: O Papel das Autoridades Tradicionais no Processo de Mudança
Política em África», que tem como Investigador Principal o Prof. Doutor Eduardo Costa Dias e é financiado pela FCT.
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A organização social e política Ndau

Os vaNdau de Moçambique (língua: Cindau) pertencem à grande família linguís-


tica Shona-Caranga e têm as suas raízes históricas no território correspondente ao
actual Zimbabwe. As origens históricas das actuais populações vaNdau estão relaci-
onadas com os processos de fragmentação dos reinos do Mwenemutapa e do M’bire,
no planalto central do Zimbabwe, provavelmente no século XV, e com os consequen-
tes processos migratórios de populações Shona-Caranga, os Rozvi, que foram ocu-
pando territórios desde o planalto central do Zimbabwe até ao litoral costeiro
moçambicano. Este processo migratório esteve na origem da formação de vários rei-
nos Shona-Caranga, entre os quais se destacam os de Danda, Sanga e QuiTeve. As
actuais populações vaNdau reclamam as suas origens a partir dos reinos de Danda
e Sanga.
Do ponto de vista da organização social, os vaNdau estruturam-se em unidades
sociais, cuja integração se processa com base no sistema de descendência patrilinear.
As unidades mais vastas são os grupos familiares extensos, os clãs totémicos, deno-
minados por bvumbo ou dzinza, em que o totem é designado por mutupo. Por sua vez,
o bvumbo divide-se em várias unidades menores, as ucama. A ucama, ou bajare2, é uma
unidade social mais pequena, que se reporta ao grupo de parentes agnáticos que têm
um antepassado em comum, facilmente identificável por todos os membros e que em
regra pertence à terceira geração ascendente do ego, ou seja da geração do pai do pai
de ego, o tshekulo de ego. A ucama é assim constituída por um grupo que engloba o avô
paterno do ego (o tshekulo), o pai de ego (baba), os irmãos do pai (denominados de baba
mudoco se forem mais novos que o pai de ego, e de baba mukulo, se forem mais velhos),
os filhos destes tios, e a quem o ego chama também de irmãos (hama), os irmãos de
ego, os filhos dos irmãos, e os seus próprios filhos (vana)3.
Por sua vez a ucama subdivide-se em unidades menores, os misi ou casas. Nesse
sentido, pode dizer-se que um musi (singular de misi), ou musiwango como também
pode ser denominado, corresponde a um grupo doméstico composto essencialmen-
te por um homem, sua esposa e filhos solteiros. Um homem que possua várias espo-
sas constitui vários misi, tantos como o número de esposas. No entanto, esta noção
não é partilhada por todo o conjunto de populações vaNdau. No distrito do Búzi a
noção de musi é concebida num sentido diferente do que em Machaze ou Mossurize.
Enquanto que nestes distritos um musi corresponde a uma unidade social de repro-
dução biológica, produção, consumo e residência, formada com base na esposa e
filhos, no Búzi a unidade estrutura-se a partir do próprio homem, independentemen-
te do número de esposas que possua. Deste modo, no Búzi cada homem possui e dá
origem a um único musi.

2 Termo utilizado na região de Butiro, distrito de Machaze, na Província de Manica.


3 O conceito de ucama em grande medida equivale ao conceito de linhagem.
FERNANDO FLORÊNCIO 93

No período pré-colonial, a principal forma de organização política das popula-


ções vaNdau eram as pequenas chefaturas. Sobre o conceito de chefatura4 existe uma
vasta literatura e debate antropológico. Neste texto o conceito surge como sinónimo
de uma forma de organização política pré-colonial em que a unidade político-territo-
rial é composta por grupos familiares, de origem diversa, ocupando em geral um ter-
ritório pequeno. A liderança desta unidade política pertence ao grupo familiar mais
antigo, o dos primeiros ocupantes da região, considerados os «donos das terras». Os
chefes, oriundos desse grupo familiar, detêm um poder político hereditário, aplican-
do-se aqui cabalmente o ideal-tipo weberiano de autoridade tradicional. Nesta forma
de organização o poder político reside sobretudo no seio de um grupo alargado de
indivíduos e não se concentra, ou centraliza, apenas na figura do soberano. O sobe-
rano partilha então o poder com os membros do seu grupo familiar e outros mem-
bros destacados da sociedade. A autoridade do soberano legitima-se quer pela tradi-
ção, quer pelas suas qualidades pessoais, como o carisma, entre outras.
As chefatura pré-coloniais Ndau eram unidades políticas governadas por um
chefe («rei»), o mambo5, que era o líder da ucama dominante da região. O território da
chefatura, ou território do mambo, designa-se por nyika. O nyika por sua vez divide-
se em unidades político-administrativas mais pequenas, denominadas de mitundu,
no caso do Búzi, ou simplesmente nyika, lideradas por um «chefe pequeno», denomi-
nado de zahambo, em certas zonas do Búzi, ou de mambo mudoco (que em Cindau sig-
nifica «chefe pequeno»), como em Mossurize e Machaze, ou ainda apenas de mambo.
Por sua vez estas sub-unidades podiam ainda dividirem-se em unidades menores,
lideradas por um saguta, termo que em Cindau significa «uma vista que pus na ponta
do meus país»6.
As chefaturas eram unidades políticas bastante autónomas umas das outras, à
excepção dos Inhamunda, da zona de Machaze, em que as unidades mantinham
uma certa dependência com o núcleo central, liderado pelo mambo Mecupe, forman-
do uma espécie de reino segmentário.
Os mambo mudoco, ou zahambo, e os saguta, eram, e ainda são actualmente, nome-
ados ou reconfirmados nos seus cargos pelo mambo principal. Em geral, estes mambo
mudoco e sagutas também pertenciam à ucama do mambo, ou então ao mesmo bvum-
bo. No entanto também existia a prática de incorporar outros indivíduos, por via de
alianças matrimoniais.
Neste particular podem sublinhar-se dois exemplos de incorporação de estran-
geiros na estrutura política Ndau. Num primeiro exemplo pode adiantar-se o caso do
actual regulado de Matire, na região do Búzi. As terras e o título de Matire foram atri-
buídas a Raimundo Pereira de Barros, um português de Goa, pelo soberano
4 Utiliza-se neste texto o conceito de chefatura como sinónimo de chefferie, na literatura francesa ou de chieftaincy, na
inglesa.
5 Os portugueses passaram a denominar estes mambo por régulos, ou seja «pequeno rei».
6 Posteriormente a administração colonial portuguesa designaria os mambo mudoco por «chefes de grupo de povoa-
ções» e os saguta por «chefes de povoação».
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Sachiteve, em 1820.
O segundo exemplo encontra-se na ucama denominada de Chicumba, de onde
provêm toda a linha dos mambo mudoco de Inhabira, na zona da actual vila Búzi,
subordinados ao régulo Johvo. O elemento que deu origem a esta linhagem era um
indivíduo de origem Teve, chamado de Macamba, e que vivia na região de Chimoio.
Macamba era um reputado caçador de elefantes e recebeu as terras onde se situa a
actual vila do Búzi das mãos do próprio Ngungunyane7. Macamba acabaria por inte-
grar-se, por via do casamento, no bvumbo Simango e fundar a ucama Chicumba.
Contudo, não é a sua ucama que lidera a região, pois actualmente a liderança perten-
ce ao mambo Jovho que, na época da dominação Nguni, era apenas um inhamaçango
(espécie de saguta). Actualmente os descendente de Macamba são apenas mambo
mudoco do régulo Jovho.
A estrutura tradicional do poder político Ndau é do tipo piramidal, com os mambo
a ocuparem o topo da hierarquia e os saguta o escalão inferior. Numa posição inter-
mediária situam-se os mambo mudoco. Quer o mambo quer os mambo mudoco partilham
o poder e são coadjuvados por outros personagens sociais, individuais ou colectivos,
o que consubstancia a ideia de que o poder não se exerce de forma autocrática. De
forma esquemática, adiante-se que estas personagens são: o conselho dos anciãos, o
conselho da ucama, o nduna, o muvia e os maporissas.
O conselho de anciãos, denominados de madoda ou matombo8, representa uma
peça fundamental na estrutura de poder político Ndau e consubstancia a componen-
te gerontocrática desta forma de poder político. Os matombo são o grupo mais impor-
tante de conselheiros do mambo e dos mambo mudoco, em todos os domínios da vida
material e simbólica das populações vaNdau. A sua importância não se confina ape-
nas no carácter consultivo das suas funções, pois os matombo também detêm um
poder decisório. O conselho de matombo assume em muitas circunstâncias um poder
similar ao do mambo, e por vezes superior, especialmente quando estes ainda são
jovens e desconhecem as tradições, ou são pouco aptos para o cargo que desempe-
nham. Actualmente, dado que a instituição atravessa uma fase de mudança e refor-
mulação, os matombo são mesmo considerados por alguns sectores da população
como os verdadeiros «guardiões das tradições».
Na maior parte dos casos, este grupo não recebe nenhum nome específico; no
entanto, em certas zonas do distrito do Búzi o conselho é conhecido pela expressão
chicungo a mambo9.
No conselho de matombo encontram-se representados, além dos anciãos mais
importantes do nyika do mambo ou do mambo mudoco, também os outros personagens
de poder, como os mambo mudoco, sagutas, nduna e maporissas.

7 «Rei» conhecido por sua resistência à ocupação colonial.


8 O termo doda significa «velho» ou «pessoa idosa» e é de origem Nguni enquanto que o equivalente Cindau é tombo.
Ambos são usados pelas populações vaNdau. O radical ma serve para formar o plural destas palavras.
9 Expressão que em Cindau significa «rodear o mambo» ou «abraçar o mambo».
FERNANDO FLORÊNCIO 95

O conselho da ucama engloba os elementos descritos no ponto anterior, tais como


os tios, irmãos, sobrinhos e filhos do mambo, ou do mambo mudoco. Em certos casos
este concelho pode também englobar as mulheres da ucama, como mãe, tias, irmãs e
esposas do mambo. Este concelho da ucama desempenha um papel político de enor-
me relevância, quer pelas suas funções quotidianas de aconselhamento do mambo,
quer sobretudo pelo poder que detêm quando da escolha de um novo mambo. No
processo de sucessão é sobre este concelho que recai a primazia da escolha, pois o
futuro mambo é escolhido por este concelho, de entre um grupo de potenciais candi-
datos, que são eles próprios elementos da ucama e por conseguinte do próprio con-
celho. Torna-se assim fácil perceber a ambiguidade política em que funciona este
grupo, pois se por um lado ele é responsável por um processo de sucessão dentro de
um ambiente de tranquilidade e ordem, imprescindível para a própria ordem da
sociedade em geral, é por outro no seu seio que se desenrolam as maiores lutas pela
conquista do poder entre os diversos candidatos, lutas essas que no tempo pré-colo-
nial assumiam bastas vezes um carácter extremamente violento e provocavam cisões
dentro da própria sociedade.
Uma outra figura de poder na estrutura política é o nduna, espécie de secretário
ou adjunto do mambo. Em certos casos pode ser um membro da sua ucama, um
irmão ou um filho do irmão mais velho, mas em geral não tem qualquer relação de
parentesco com o mambo. Pode ser também um tombo bastante respeitado a quem é
confiada a tarefa de conselheiro principal do mambo. O cargo de nduna pode suce-
der de pai para filho segundo as regras costumeiras de sucessão; contudo, o nduna
depende essencialmente do mambo e quando este último morre cabe ao seu suces-
sor e ao conselho de matombo decidir se continuam com o mesmo nduna ou se este
é substituído.
O termo nduna encontra-se mais enraizado na região de Mossurize e Machaze,
precisamente as regiões onde a dominação Nguni, estabelecida na parte Sul de
Moçambique no período anterior à ocupação colonial, se fez sentir com maior pre-
dominância. Nas regiões mais costeiras e afastadas do centro de poder Nguni,
como no Búzi, o termo não se utiliza, apesar de existir um cargo equivalente na
estrutura política, o seu titular em geral designa-se apenas por secretário do mambo,
o que provavelmente reflecte uma maior influência da presença portuguesa nesta
região.
O muvia é outra das personagens do poder político tradicional Ndau. Esta figura,
contudo, não existe em todas as chefaturas vaNdau. Existe nas chefaturas da região
de Machaze, mas já não em Mossurize. Em geral é um sobrinho do mambo, normal-
mente o filho mais velho da irmã mais velha, e desempenha sobretudo funções ritu-
ais e simbólicas, podendo em certos casos substituir temporariamente o mambo, mas
não lhe sucede no lugar. Tal como no caso do nduna, o muvia também depende direc-
tamente do mambo, que pode destituí-lo e nomear outro. Na entronização de um novo
mambo, este pode, se assim o desejar, manter em actividade o muvia do anterior mambo.
96 AUTORIDADES TRADICIONAIS E ESTADO MOÇAMBICANO

Na região do Búzi não se usa o termo muvia mas sim o de tetaje. Este termo tam-
bém serve para designar os tios de ego, os irmãos do pai, ou os filhos desse tios ou
mesmo os filhos das irmãs. Este termo utiliza-se igualmente para designar o perso-
nagem que desempenha um cargo semelhante ao de muvia, porque este é, por regra,
o filho mais velho da irmã mais velha do mambo. Um aspecto importante a salientar
é que o muvia, ou o tetaje, sendo filho de uma irmã do mambo não pertence à ucama
deste, devido às regras de descendência patrilinear, apesar de desempenhar funções
cerimoniais importantes. Em certos casos o tetaje não se limita a desempenhar fun-
ções rituais, mas pode assumir igualmente funções de conselheiro do mambo, sobre-
tudo no caso de ser uma pessoa de certa idade, um tombo.
No regulado de Johvo, no Búzi, a utilização do termo tetaje desvia-se de tudo o
que foi dito anteriormente e constitui uma excepção pois o termo utiliza-se para
designar o cargo de secretário do régulo, ou seja o nduna, e não ao cargo de muvia.
Por seu lado, em certas zonas de Nova Sofala, como no regulado de Inhangoro, os
termos muvia, nduna, e tetaje, não são conhecidos, existindo no entanto uma persona-
gem social que congrega em si as mesmas funções desempenhadas quer pelo nduna
quer pelo muvia. Esse personagem é conhecido pelo termo de munholi. No entanto, o
lugar de munholi representa uma diferença significativa em relação ao nduna e ao
muvia, uma vez que por norma é um membro da ucama do mambo, por vezes um filho
e, sobretudo nesta última situação, pode suceder-lhe no cargo.
Finalmente os maripossa, como se chamam na região de Mossurize e Machaze, ou
cipaios, na região do Búzi, são uma espécie de policias do mambo e do mambo mudoco.
Auxiliando em tarefas de manutenção da ordem ou, por exemplo, no acompanha-
mento das partes queixosas durante o processo de julgamento de milandos10. Os
maporissa ou cipaios podem ainda desempenhar tarefas de emissários e mensageiros.
Na região do Búzi, durante a época da administração colonial portuguesa, existia
ainda a figura do cabo de terra, ou sathanda, que era igualmente uma espécie de cipaio
especial do régulo ou do chefe de grupo de povoações, pois acompanhava-os perma-
nentemente e servia-lhes mesmo como uma espécie de guarda-costas.
Na época da dominação Nguni existiam ainda outros cargos de poder, relaciona-
dos com a vida militar, como os de phepa e ngonde, e o de shiperana, que era o chefe
máximo dos exércitos reais. Estes cargos desapareceram com a dominação colonial,
à medida que as chefaturas foram sendo pacificadas e aniquilada a sua independên-
cia e capacidade guerreira.
O modelo de sucessão, sobretudo para os cargos de mambo e mambo mudoco, cons-
titui um dos pilares do sistema político Ndau, devido à sua importância na manuten-
ção da ordem social dentro das ucama reais11. A sucessão processa-se segundo o prin-
cípio da descendência patrilinear e a regra consuetudinária mais comum é aquela em

10 Diferendos entre duas ou mais partes.


11 O termo ucama real refere-se às ucama dominantes e de onde são escolhidos os mambo e os mambo mudoco.
FERNANDO FLORÊNCIO 97

que os direitos de sucessão recaem sobre o filho mais velho da primeira esposa «lobo-
lada»12. Esta regra de sucessão, de características verticais, pode ser complementada
por uma outra, de natureza mais horizontal, que permite corrigir e prevenir algumas
distorções do sistema, como por exemplo nos casos em que o falecido não tenha
filhos, ou estes sejam ainda menores, ou considerados inaptos para desempenharem
lugares de liderança. Neste casos o sucessor poder ser um irmão do mambo. Corrigida
a situação, o cargo deve regressar depois ao legítimo musi real, ou seja, ao filho do
falecido mambo (no caso em que este era menor quando faleceu o seu pai), ou ao legí-
timo herdeiro do filho do falecido mambo (nos casos em que o legítimo herdeiro não
detinha qualidades para desempenhar o cargo). Existe ainda um terceiro modelo de
sucessão, bastante disseminado na região do Búzi, que se pode denominar de «alter-
nância entre misi reais», no qual o poder político deve recair sucessiva e alternada-
mente por todos os misi reais, segundo a ordem de senioridade. Este método de
sucessão alternada entre misi reais contradiz a regra costumeira da descendência
patrilinear directa, que tem como consequência perpetuar o poder político no seio de
um único musi real; contudo, ele serve precisamente para atenuar os conflitos entre
os misi reais, redistribuindo o poder alternadamente entre todos.

As autoridades tradicionais do Búzi


durante o período colonial

Na primeira fase do processo de ocupação colonial, que pode ser delimitada entre
1891 e 1932, o território de Moçambique encontrava-se dividido em diferentes regi-
ões, segundo três modelos diferentes de administração colonial. O modelo de admi-
nistração directa do Estado, que compreendia sobretudo as regiões a sul do paralelo
22º e de Nampula, entre os rios Lúrio, a norte, e o Ligonha, a sul. O modelo de admi-
nistração baseado nas companhias concessionárias, como a Companhia de
Moçambique, que administrava os territórios a sul do Zambeze até ao paralelo 22º
(limite sul); e a Companhia do Niassa, que administrava a região do Niassa e Cabo
Delgado. Finalmente, as regiões da Zambézia e alto Zambeze eram administradas
segundo o regime dos prazos.
Neste texto interessa sobretudo examinar a administração da Companhia de
Moçambique, por ter controlado os territórios de Manica e Sofala. Fundada por Paiva
de Andrada, em 1888, a Companhia só iniciaria a sua actividade a partir de 189213. A
concessão majestática que recebeu, inicialmente por um período de vinte e cinco
anos, estabelecia os deveres de administração e defesa dos territórios, a construção

12 O lobolo é o «pagamento» que a família do noivo efectua à família da noiva.


13 Sobre a história de Paiva de Andrada e do processo que conduziu à formação da Companhia de Moçambique, cf:
(Beach, 1993: 5-80).
98 AUTORIDADES TRADICIONAIS E ESTADO MOÇAMBICANO

de infra-estruturas, assim como os direitos de exploração mineira, agrícola, comercial


e industrial, de pesca e caça, cobrança de impostos, e a possibilidade de emissão de
obrigações financeiras e de estabelecer sociedades bancárias. No acordo de concessão
ficava igualmente definido que a Companhia devia transmitir 7,5% dos seus lucros
ao estado português. Em 1897 o prazo de concessão foi alargado para cinquenta anos,
por conseguinte até 1942.
Um dos primeiros problemas que a administração da Companhia teve que
enfrentar foi o de subordinar e «pacificar» as populações que viviam nos seus terri-
tórios. Nesse sentido, a Companhia foi obrigada a realizar um conjunto de expedi-
ções militares, com vista a subordinar as chefaturas independentes e respectivas
autoridades tradicionais. Nos territórios vaNdau, nesta primeira fase, era sobretudo
a região do Búzi a que mais preocupava a Companhia, devido à necessidade de asse-
gurar o funcionamento da fábrica açucareira que aí foi instalada. Com esse propósi-
to, foi organizada em 1896 uma expedição que visou submeter os régulos mais
importantes da região, Gerome, Jovho, Matire, Regaje, Ngwarangwara, Maxemeje,
Inhamita, Boca e Mandire.
Na zona do Búzi existia desde 1893 uma concessão da Companhia de
Moçambique a Manuel de Arriaga para a exploração de cana-de-açúcar, mandioca,
café e borracha. Para esse efeito Manuel de Arriaga fundou, em 1897, a firma Arriaga
& Companhia, que mais tarde, a 13 de Setembro de 1898, deu origem à Companhia
Colonial do Búzi. O prazo de concessão atribuído à Companhia Colonial do Búzi
coincidia com o final do prazo de administração da Companhia de Moçambique, isto
é, o ano de 1942.
Neste período as autoridades tradicionais constituíam o elo que permitia às
Companhias concessionárias controlar e enquadrar as populações africanas, nomea-
damente ao serem utilizadas para manter a ordem, recolherem o «imposto de palho-
ta», e recrutarem a mão-de-obra africana. Assim pode afirmar-se que a administra-
ção colonial, do Estado ou das Companhias, não exercia uma autoridade e um con-
trolo directo sobre as populações, mas utilizava os sistemas políticos locais para esse
efeito, numa espécie de indirect rule, do interesse da própria administração colonial
que, nesta fase, era manifestamente incapaz de controlar as vastas extensões de terri-
tório e a população sob o seu domínio.
No que respeita à administração dos territórios da Companhia de Moçambique,
importa realçar os efeitos perniciosos da reforma administrativa de 1907 sobre as
estruturas de poder tradicional Ndau. A divisão do território da Companhia em cir-
cunscrições veio delimitar progressivamente a base territorial das autoridades tradi-
cionais vaNdau, reduzindo-a significativamente e enquadrando-a na lógica da divi-
são administrativa colonial. Assim, alguns dos mambo mais influentes da região
viram os seus nyika drasticamente reduzidos e confinados aos limites de uma única
circunscrição. Tratava-se efectivamente de uma estratégia política da administração
que, apesar de necessitar da colaboração das autoridades tradicionais, sabia que
FERNANDO FLORÊNCIO 99

tinha que as controlar, cerceando-lhes assim os espaços de poder e de influência. Esta


«domesticação» das autoridades tradicionais compreendia a partição dos grandes
nyika em unidades territoriais mais pequenas, e por conseguinte menos poderosas,
mas também a «criação» de novos régulos/mambo, sem grande prestígio e legitimi-
dade para as populações, e ainda a substituição dos mais influentes e poderosos.
Com a implantação do Estado Novo assiste-se ao verdadeiro arranque de uma
política colonial estrutural definida a partir do Estado central. Pode afirmar-se que,
pelo menos no caso de Moçambique, o Estado Novo marca o arranque de um verda-
deiro colonialismo de Estado. O estado português põe termo à anterior política dos
prazos e das Companhias concessionárias e adopta uma postura legislativa e admi-
nistrativa fortemente centralizadora e unificadora. Desse nova postura política resul-
ta uma actividade legisladora bastante significativa e importante para a vida «indí-
gena», com especial relevo para: o «Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas
da Guiné, Angola e Moçambique», de 1929; a Constituição da República, de 1933; o
Acto Colonial, de 193314; a Carta Orgânica e a Reforma Administrativa Ultramarina,
ambas também de 1933.
A Reforma Administrativa Ultramarina (RAU) foi publicada pelo decreto lei n.º
23 229, de 15 de Novembro, e constitui uma peça essencial no processo de transfor-
mação das autoridades tradicionais sob a alçada da administração colonial, pois ela
define quer a nova divisão administrativa das colónias portuguesas quer as funções
de cada categoria de funcionários administrativos. No que respeita às autoridades
tradicionais, a RAU define e institucionaliza a integração destas no aparelho admi-
nistrativo colonial e o modelo de relacionamento entre o Estado colonial e as autori-
dades tradicionais.
A administração directa pelo Estado português dos territórios concessionados à
Companhia de Moçambique só se iniciou a partir de 1942, sendo por isso necessário
considerar esta data como o momento a partir do qual se faz sentir com maior acui-
dade o impacto da RAU no Búzi e o consequente enquadramento institucional das
autoridades tradicionais vaNdau. Uma das consequências mais importantes da RAU
foi o aprofundamento da lógica do enquadramento territorial das antigas chefatu-
ras15 nos moldes da nova reforma. As reorganizações territoriais dos regulados,
resultantes da RAU, vieram cercear ainda mais as áreas de jurisdição de cada autori-
dade tradicional Ndau que devia agora ficar confinada às áreas dos postos adminis-
trativos.
Como exemplo deste processo pode apontar-se o caso do mambo de Tica, que era
um dos mais importantes no período pré-colonial; o seu nyika estendia-se por uma

14 Tendo sido publicado pela primeira vez em 1930, o Acto Colonial foi posteriormente revisto, devido à Constituição
de 1933, e declarado matéria constitucional.
15 Denominadas de regulados ou regedorias, pela administração colonial. Na verdade, a partir da introdução da admi-
nistração da Companhia de Moçambique o termo chefatura não tem qualquer valor, nem teórico nem heurístico,
para definir estas unidades políticas.
100 AUTORIDADES TRADICIONAIS E ESTADO MOÇAMBICANO

vasta área desde o Dondo até às cercanias de Chimoio, incluindo ainda zonas do Búzi
e da Gorongosa. Com a administração da Companhia de Moçambique, e mais tarde
com a administração colonial estatal, o seu nyika foi diminuindo progressivamente,
ora sendo englobado noutros regulados ora dando origem à «criação» de novos
régulos, ao ponto de, a partir de 1943, ficar confinado somente à área do posto admi-
nistrativo de Vila Machado.
O concelho do Búzi constitui um excelente exemplo no que concerne aos impac-
tos provocados pelos arranjos territoriais da administração colonial sobre as autori-
dades tradicionais. No período pré-colonial existiam na zona do Búzi um conjunto
de chefaturas que foram mantidas pela administração da Companhia de
Moçambique. Quando a administração estatal tomou conta do território, procedeu a
uma reorganização dos regulados, com vista a: a) diminuir o número de régulos, b)
garantir que as áreas dos regulados eram relativamente uniformes, e englobavam
suficiente população; c) conseguir que os regulados ficassem confinados às áreas dos
postos administrativos. Assim, houve um conjunto de regulados que desapareceu,
sendo os seus territórios distribuídos por outros regulados e os seus mambo «desclas-
sificados» para a categoria de chefe de grupo de povoações. Estão nessa situação os
antigos mambo de Chissinguana, Inhangujo, Bagaza, Chironda, Mazimba, Fumo,
Ussingué, Chicoio, Guenje, Beia, Grudja e Gerome.
No caso de Chissinguana o nyika foi por exemplo integrado no de Boca e o régu-
lo passou a chefe de grupo de povoações. Segundo algumas informações, mais tarde,
já no final do período colonial, o nyika do chefe Chissinguana teria sido desanexado
do regulado de Boca e integrado no de Marombe. Os regulados de Inhangujo,
Bagaza, Chironda e Mazimba foram igualmente abolidos e os territórios integrados
também no regulado de Boca. O regulado de Beia foi integrado no de Johvo e o régu-
lo desclassificado para chefe de grupo de povoações. Os regulados de Fumo,
Ussingué e Chicoio foram integrados no regulado de Matire. O exemplo do regula-
do de Grudja é bastante contraditório porque, segundo algumas informações locais,
Grudja nunca foi um régulo mas sim um mambo mudoco do régulo Mamudje16.
Outro exemplo bem elucidativo é o de Gerome. No período pré-colonial, Gerome
e Tica eram os dois mambo mais importantes da região do Búzi. Já durante o período
da administração colonial portuguesa Gerome teve uma disputa com o seu irmão
Nhacuesse, que saiu vencedor e ficou com a alcunha de Maxemeje. Em 1942, quan-
do a administração colonial chamou os régulos da região, Gerome não se apresentou
e foi Maxemeje quem foi nomeado régulo. Gerome ficou como chefe de grupo de
povoações, subordinado ao seu irmão. Este facto provocou um enorme descontenta-
mento das populações de Gerome, e mesmo dentro da ucama real. Em 1964, por oca-
sião da morte do irmão, Gerome voltou a exigir da administração a devolução do seu

16 Não foi possível confirmar estas informações porque os livros de acento das autoridades gentílicas do concelho do
Búzi não estavam acessíveis para consulta.
FERNANDO FLORÊNCIO 101

estatuto de régulo, reclamação essa que foi preterida, tendo sido nomeado régulo o
filho de Maxemeje. Gerome sempre foi considerado pelas populações como o legíti-
mo mambo e «dono das terras» e no presente os seus herdeiros usufruem ainda de
maior respeito e prestígio do que os de Maxemeje.
Por seu lado, o chefe Guenje, que actualmente é um mambo mudoco do régulo
Ngwarangwara17, era régulo no período da dominação Nguni, subordinado ao
mambo Tica. Em 1942 o nyika de Guenje foi dividido em duas parcelas que foram inte-
gradas nos regulados de Guara-Guara e de Mamunge. Por seu turno, no período da
dominação Nguni, Mamunge era apenas um inhamaçango18 do mambo Tica, sendo
alcandorado à posição de régulo pela administração colonial. A chefatura de Guara-
Guara não existia no período anterior à dominação Nguni e foi uma criação do pró-
prio Ngungunyane, que atribuiu as terras e o título a um indivíduo de nome
Chabarezo. Essas terras pertenciam ao régulo de Guenje (Branquinho, 1966: 22).
Com a introdução da RAU as autoridades tradicionais tornaram-se parte inte-
grante do aparelho administrativo colonial, e pelo menos os régulos e chefes de
grupo de povoações acabariam por ser autênticos funcionários da administração,
cujas funções, deveres e regalias estavam consignadas na própria RAU. As autorida-
des tradicionais actuavam como intermediários entre o Estado colonial e as popula-
ções, responsabilizando-se directamente em tarefas como a recolha do imposto de
palhota, o controlo da mão-de-obra «indígena», a manutenção da ordem e resolução
de milandos, a organização da produção, sobretudo das culturas obrigatórias, e outras
tarefas designadas pelas administrações das circunscrições.
Por outro lado, as autoridades tradicionais desempenhavam simultaneamente
um conjunto de funções sociais que não relevavam directamente do seu lugar no
aparelho administrativo colonial, mas que estavam relacionadas com o seu lugar no
modelo de organização social tradicional Ndau. Neste capítulo destacam-se as fun-
ções de índole mágico-religiosa, fundamentais para a continuidade e reprodução
desse mesmo modelo de organização social.
Do ponto de vista mágico-religioso, as autoridades tradicionais ocupam um lugar
fundamental na sociedade Ndau, uma vez que são os representantes terrenos dos
espíritos, nomeadamente dos espíritos dos falecidos mambo, os varungu a mambo,
actuando como intermediários na relação entre o universo espiritual e o universo ter-
reno. Enquanto intermediários dos varungu a mambo, as autoridades tradicionais
assumem-se como intérpretes terrenos da sua vontade e, por conseguinte, como res-
ponsáveis pela manutenção da ordem e da reprodução social e cosmológica. Deste
modo, são figuras sociais temidas e respeitadas, cujo poder e prestígio deriva direc-
tamente do prestígio e poder dos varungu a mambo que elas representam. Este poder
e prestígio das autoridades tradicionais é bastante ambíguo, e as representações soci-

17 Os portugueses apelidavam-no de Guara-Guara, nome pelo qual é ainda hoje mais conhecido.
18 Termo utilizado na região do Búzi durante a dominação Nguni e que designa um pequeno chefe de aldeia.
102 AUTORIDADES TRADICIONAIS E ESTADO MOÇAMBICANO

ais apontam para uma enorme ambivalência destas figuras sociais, devido precisa-
mente a essa relação privilegiada com os espíritos. Por isso, as autoridades tradicio-
nais são fundamentais para a manutenção da ordem social terrena, pois têm essa
dupla capacidade de influência, quer positiva quer negativa, sobre a reprodução soci-
al. Um dos exemplos mais paradigmáticos deste tipo de representações sociais sobre
o poder maléfico das autoridades tradicionais prende-se com a ideia de que as auto-
ridades tradicionais podem, por intervenção dos seus espíritos, «segurar a chuva»,
provocando secas prolongadas que colocam em causa a reprodução da sociedade
inteira19.
Em jeito de conclusão, pode afirmar-se que, apesar de todas as transformações
impostas pela administração colonial sobre a instituição das autoridades tradicionais
vaNdau, esta nunca se deixou verdadeiramente encapsular num modelo do estilo
«administrative chieftaincy», ao contrário do que defende Trutz von Trotha (Thotha,
1996: 80), e continuaram a usufruir de uma forte legitimidade para as populações,
legitimidade essa que ia muito para além do seu papel de intermediários entre a
administração colonial e as populações. As autoridades tradicionais, em boa verda-
de, desempenham o papel de duplos intermediários, entre a administração colonial
e as populações, por um lado, e entre o universo dos espíritos e o universo terreno,
por outro. Neste último, as autoridades tradicionais consubstanciam a relação entre
a população e os seus espíritos e impõem-se como garantes da ordem e reprodução
social.

As autoridades tradicionais do Búzi e o Estado-Frelimo

A independência de Moçambique, em 1975, e a ascensão da Frelimo a partido


único, marcam uma nova etapa no relacionamento entre as autoridades tradicionais
vaNdau e a administração estatal. A Frelimo pretendeu implantar um projecto de
sociedade que renegava as estruturas sociais existentes, quer as que se relacionavam
com a sociedade colonial quer as sociedades tradicionais. Nesse âmbito, as autorida-
des tradicionais acabavam por se constituir como actores que simbolizavam os dois
universos, colonial e tradicional. Assim, o Estado-Frelimo optou desde o inicio pela
abolição desta estrutura de poder local, acusando-a de colaboracionista com o regi-
me colonial e de representante de um tipo de sociedade, a sociedade tradicional, que
a Frelimo estimava de feudal e obscurantista, e a qual pretendia eliminar.
O processo de destituição das autoridades tradicionais vaNdau decorreu de
modo bastante semelhante ao que se passou com as restantes autoridades tradicio-

19 Após a independência as populações explicavam as secas prolongadas pelo facto das autoridades tradicionais esta-
rem a «segurar a chuva» como forma de reacção ao descontentamento provocado pela acção do Estado-Frelimo, que
as perseguiu e aboliu.
FERNANDO FLORÊNCIO 103

nais moçambicanas, e iniciou-se ainda em 1974, durante o Governo de Transição. As


populações eram convocadas pelos Grupos Dinamizadores20 (GDs) para assistirem
a assembleias populares, banjas, nas quais eram informadas que a Frelimo tinha deci-
dido abolir o sistema de regulados e que, por conseguinte, os régulos e demais auto-
ridades tradicionais deixavam de exercer funções oficiais.
Em certos casos este processo de destituição foi bastante violento e humilhante
para as autoridades tradicionais, pois eram objecto de um forte vexame público. Na
região do Búzi, como de resto em quase todos os distritos de predominância Ndau,
era prática corrente as autoridades tradicionais sofrerem maus tratos públicos duran-
te as banjas, ora sendo publicamente humilhadas e acusadas, ora sofrendo mesmo
alguns castigos físicos. No entanto, era nas zonas mais afastadas dos distritos que
essas humilhações eram mais fortes e as autoridades tradicionais eram por vezes
chamboqueadas21. Outra prática humilhante infligida pelos elementos dos GDs era a
de queimarem os cemitérios dos falecidos régulos e queimarem os objectos de culto
aos espíritos.
Estas práticas humilhantes provocaram um enorme descontentamento entre cer-
tos sectores da população rural, nomeadamente entre as próprias autoridades tradi-
cionais e seus familiares e entre os mais idosos. No geral, a reacção destes sectores era
bastante passiva e expressava-se sobretudo através de dois tipos de estratégias: pela
não participação no projecto de socialização rural, que a Frelimo pretendia implantar
como forma de alcançar um novo modelo de sociedade; ou através do «exílio» para
as cidades, onde as autoridades tradicionais rurais usufruíam de um certo anonima-
to, escapando assim às perseguições movidas pelos GDs.
É importante realçar, contudo, que, pelo menos nos primeiros tempos, os GDs
contavam com o apoio de certas camadas da população rural, sobretudo nas sedes
de distrito e nas localidades, sectores esses que apoiavam a abolição do sistema de
autoridade tradicional, por o considerarem constrangedor das suas aspirações soci-
ais. Estavam nesta situação certas grupos da população mais jovem e das mulheres,
que enquadrados pelas organizações de massa da Frelimo, como a OMM
(Organização da Mulher Moçambicana) e OJM (Organização da Juventude
Moçambicana), encaravam a abolição das autoridades tradicionais como benéfica
para a sua emancipação social, e os casos de indivíduos ou pequenos grupos familia-
res que tiveram problemas com as autoridades tradicionais durante o período colo-
nial. Também no seio das ucama reais havia indivíduos que aderiam à Frelimo e ao
seu projecto social, procurando por vezes nesta adesão alcançar uma posição de des-
taque no processo político local.

20 Os Grupos Dinamizadores foi uma estrutura criada pela Frelimo de molde a implantar o Partido em todo o territó-
rio moçambicano e funcionavam como mecanismos de mobilização e controle das populações, assim como órgãos
de implantação local das políticas do Estado-Frelimo.
21 Castigadas com o chamboco (do afrikaans shambok), espécie de bastão em madeira.
104 AUTORIDADES TRADICIONAIS E ESTADO MOÇAMBICANO

A guerra desencadeada pela Renamo já no fim dos anos 70, veio oferecer uma
nova forma de combate às autoridades tradicionais e aos grupos resilientes à implan-
tação do Estado-Frelimo e da sua política. No distrito do Búzi, a primeira acção da
Renamo foi o ataque à aldeia comunal Acordo de Lusaka, em Grudja, a 14 de
Outubro de 1980. A aldeia foi totalmente destruída e as famílias residentes regressa-
ram às suas antigas terras. Um dos factos mais salientes desta acção foi o modo efu-
sivo como a população recebeu os soldados da Renamo, saudando-os como autênti-
cos libertadores. A partir de 1980, a Renamo ocupou rapidamente vastas áreas do dis-
trito, criando as bases de Chissinguana, Grudja e Ampara.
No distrito do Búzi, a dinâmica geo-militar do conflito armado foi ligeiramente
diferente da dos distritos de Machaze, Mossurize e mesmo Chibabava. Nestes últi-
mos pode falar-se de uma ocupação por «manchas» ou «bolsas territoriais», em que
a Frelimo e a Renamo ocupavam determinadas zonas, sem continuidade entre si,
ficando entre elas um hinterland de ninguém, muitas vezes praticamente desertifica-
do e sujeito às acções militares de ambos os lados. No caso do Búzi a ocupação era
diferente, em parte devido às características económicas do próprio distrito, nomea-
damente devido à existência da Companhia do Búzi22. O Estado-Frelimo procurou
desde o inicio do conflito proteger este centro económico e, nesse sentido, estabele-
ceu uma zona defensiva, triangular, cujos vértices-limites eram a vila do Búzi (sede
do distrito), a norte, e as localidades de Estaquinha e Bândua, a sul. Esta zona cons-
tituída uma espécie de oásis da Frelimo no meio do distrito, pois estava rodeada por
zonas controladas pela Renamo, e era abastecida através da cidade da Beira, ou por
via marítima ou aérea. Fora deste triângulo a Frelimo controlava ainda uma peque-
na bolsa territorial em torno da localidade de Nova Sofala, que comunicava com a
cidade da Beira por via marítima.
Na sua obra La Cause des Armes au Mozambique, Christian Geffray explica que os
mambo desempenharam um papel importantíssimo na adesão das populações rura-
is do distrito de Eráti (a norte de Moçambique) à Renamo. Nessa obra, o autor expli-
ca que a Renamo estabeleceu uma espécie de aliança com as autoridades tradicionais
locais e que estas eram peças importantíssimas na gestão e administração das popu-
lações, e dos recursos naturais, nos territórios que o movimento controlava, funcio-
nando como intermediários entre a Renamo e as populações.
Esta ideia generalizou-se ao país inteiro, tornando-se um lugar comum, entre aca-
démicos e outros, que a Renamo instrumentalizava sistematicamente as autoridades
tradicionais para administrarem as populações civis nos seus territórios. Na região
Ndau, e em particular no distrito do Búzi, tal não sucedia com essa putativa sistema-
tização. Em geral as autoridades tradicionais aderiram à Renamo23; contudo, opta-
ram por não se identificarem publicamente e a maior parte procurou refúgio na cida-

22 Antiga Companhia Colonial do Búzi.


23 Facto que se veio a comprovar à posteriori depois do final da guerra, e sobretudo nas primeiras eleições presidenci-
ais e legislativas de 1994.
FERNANDO FLORÊNCIO 105

de da Beira, sobretudo os régulos, fugindo assim ao conflito armado24. No entanto,


nas ucama dos régulos e das outras autoridades tradicionais existia uma forte identi-
ficação com a Renamo, e vários elementos aderiram a este movimento. A adesão à
Renamo foi mais explícita ao nível dos chefes de povoação, os mambo mudoco, e mui-
tos refugiaram-se nas zonas controladas pelo movimento, nomeadamente na região
da base de Chissinguana, que era uma das mais importantes. Uma possível explica-
ção para esta atitude dos régulos prende-se com o facto de eles estarem bem mais
expostos e controlados pelo Estado-Frelimo, do que as restantes autoridades tradicio-
nais (os chefes, os nduna, os muvia, os matombo, os cipaios, etc.).
Deste modo, em território Ndau dificilmente se pode afirmar que a Renamo res-
tituiu o poder às autoridades tradicionais, sobretudo aos régulos, porque na verdade
estes nem sequer se encontravam presentes, ou então preferiam ficar nas zonas esta-
tais. Nestes casos, por norma a Renamo instituía como «autoridade tradicional»
alguém que, apesar de estar ligado à ucama real, não tinha qualquer direito sucessó-
rio, nem legitimidade para ocupar o cargo. A estes indivíduos pode-se chamar de
«autoridades tradicionais Renamo» como forma de sublinhar que, apesar de desem-
penharem as tarefas que caberiam às autoridades tradicionais, não eram verdadeiras
autoridades tradicionais mas sim indivíduos investidos pela Renamo nesse cargo.
Com o final do conflito, após a assinatura do Acordo Geral de Paz, em Outubro
de 1992, o Governo moçambicano confrontou-se com a tarefa de estabelecer uma
administração única, englobando as áreas controladas pela Renamo. Esta data marca
o inicio de uma nova fase do processo de formação do Estado moçambicano.. No
processo de formação do Estado pós-guerra, as autoridades tradicionais vêm desem-
penhando um papel de crescente relevância política, económica, social e simbólica,
sobretudo ao nível dos distritos rurais.
A necessidade de alargar a administração estatal à totalidade do território e o
reconhecimento da fraca legitimidade do Estado para a maioria da população rural,
constituem dois motivos fortes para o Estado central tentar implantar uma política
nacional de captação e incorporação das autoridades tradicionais no processo de for-
mação, sobretudo ao nível local. Essa política, de certo modo, tem-se revelado bas-
tante semelhante com a que o estado colonial desenvolveu em relação às autoridades
tradicionais.
Deste modo, a partir de 1992 as administrações distritais começaram um pouco
por todo o país a desenvolverem contactos com as autoridades tradicionais locais,
primeiro num gesto de reconhecimento da sua legitimidade e autoridade e, progres-
sivamente, atribuindo-lhes algumas pequenas tarefas. Nesta fase inicial não existia
uma estratégia política central bem definida e institucionalizada, e as relações e os
moldes de colaboração entre as autoridades tradicionais e as administrações variava

24 Alguns régulos, e mesmo alguns chefes de povoação, já viviam nesta cidade antes do inicio do conflito armado,
como forma de escapar às perseguições dos GDs.
106 AUTORIDADES TRADICIONAIS E ESTADO MOÇAMBICANO

significativamente de distrito para distrito. Contudo, nem sempre a iniciativa partiu


do Estado e das administrações distritais. No caso da vila do Búzi, a Renamo teve por
exemplo um papel significativo, pois foi este movimento que tomou a iniciativa de
convocar banjas com as populações e pressionar a administração no sentido de reco-
nhecerem a importância das autoridades tradicionais.
Esta estratégia da Renamo visava capitalizar a seu favor a enorme desconfiança
existente entre as autoridades tradicionais vaNdau e a Frelimo, que se prende com o
modo como decorreu o processo de abolição das autoridades tradicionais a seguir à
independência.
Obviamente, torna-se necessário enquadrar e relativizar este processo relacional
entre o Estado distrital e as autoridades tradicionais, dado que este relacionamento é
bastante variável, não somente de distrito para distrito como de caso para caso, quer
na sua génese quer no seu grau, pois nem todas as autoridades tradicionais vaNdau
tiveram experiências humilhantes no seu relacionamento com a Frelimo. Contudo, as
autoridades tradicionais, na generalidade, não esquecem que foi a Frelimo que as
destronou. A identificação com a Renamo surge assim em consequência do apoio que
esta deu a estas estruturas de poder local, que se prendia directamente com a neces-
sidade que o movimento tinha de utilizar as autoridades tradicionais para mobilizar
e enquadrar as populações rurais nas zonas que controlava.
Neste sentido, é possível afirmar que os actuais problemas políticos do relaciona-
mento entre as autoridades tradicionais vaNdau e o Estado local (ou Estado distrital)
derivam da história recente de Moçambique, nomeadamente do processo de implan-
tação do Estado-Frelimo no universo rural e da acção da Renamo para com as auto-
ridades tradicionais, durante a guerra civil, que provocou novas identificações polí-
ticas.
As autoridades tradicionais vaNdau enfrentam actualmente ainda outro tipo de
problemas, que se prende com os impactos das reformas administrativas estatais.
Neste texto já se salientaram os impactos das reformas administrativas coloniais na
base territorial do poder das autoridades tradicionais.
A reforma administrativa realizada pelo Estado-Frelimo, em 1986, provocou um
enorme impacto, de natureza semelhante, na base territorial das autoridades tradi-
cionais do distrito do Búzi. Esta reforma, ao contrário das reformas coloniais, não
teve sequer em conta a existência dos regulados, formalmente abolidos desde 1974,
e por conseguinte a lógica no traçar dos novos limites administrativos obedeceu a
imperativos adversos para os regulados.
A partir de 1992, quando as autoridades tradicionais foram sendo progressiva-
mente incorporadas em tarefas de índole administrativa distrital, fez-se sentir em
vários casos o impacto das novas delimitações distritais.
No distrito do Búzi o regulado de Mexameje constituiu o exemplo mais paradig-
mático deste tipo de transformações, pois o regulado ficou repartido entre os distri-
tos de Chibabava (que até à reforma de 1986 era apenas posto administrativo do dis-
FERNANDO FLORÊNCIO 107

trito do Búzi) e o próprio distrito do Búzi. Na actualidade, o régulo Mexameje não


sabe ainda a que distrito depende, apesar de se relacionar com a administração do
Búzi, uma vez que o seu nyika pessoal está em terras deste distrito. Contudo, alguns
dos seus chefes de povoação, entre os quais Gerome, têm os seus nyika no distrito de
Chibabava, o que provoca conflitos de interesse entre as administrações e entre os
chefes e o régulo.
Um outro tipo de problemas relaciona-se com as alterações que a administração
colonial provocou nos processos de sucessão e nas lideranças das ucama. Em conse-
quência têm proliferado nos últimos anos várias reclamações nas administrações dis-
tritais no sentido de que a legitimidade seja reposta.
O caso do conflito entre Gerome e Mexameje é dos exemplos mais típicos deste
tipo de reclamações, como os herdeiros de Gerome e reclamarem a reposição do seu
estatuto de régulo.
Este tipo de reclamações também tem surgido para outros antigos mambo, ou
régulos, que foram depostos e desclassificados pela administração colonial, como os
casos de Chissinguana, Inhangujo, Bagaza, Chironda, Mazimba, Fumo, Ussingué,
Chicoio, Guenje, Beia e Grudja.
A estes exemplos adicionam-se ainda os de Chivi e Garágua, do posto adminis-
trativo de Nova Sofala, que pertencia à antiga circunscrição de Sofala. Com a refor-
ma de 1986, o posto de Nova Sofala ficou integrado no distrito do Búzi.
Destes exemplos, o de Chissinguana teve uma regulação sucinta, porque a zona
era ocupada pela Renamo que depois pressionou para que o representante fosse tra-
tado como régulo, no que a administração distrital cedeu rapidamente. Os casos dos
actuais chefes de povoação Chivi e Garágua, subordinados ao régulo Ampara, não
estavam ainda resolvidos em 2001, e isso tem constituído um enorme foco de confli-
tos na regedoria porque os chefes não respeitam o régulo.
O caso dos chefes Grudja e Guenje é bastante semelhante ao caso Chissinguana,
pois ambos reclamam que eram régulos no tempo da administração da Companhia
de Moçambique e foram destituídos pela administração colonial estatal. Durante a
guerra foram tratados como régulos pela Renamo, que ocupava essas regiões, e na
actualidade são igualmente tratados como régulos pela administração distrital do
Búzi, apesar de ainda não terem sido formalmente investidos como tal.
O caso Gerome é dos mais difíceis de resolver pois, como acima foi referido, o
nyika deste chefe encontra-se actualmente no interior dos limites geográficos do dis-
trito de Chibabava.
Por seu lado, o régulo Mexameje tem exercido uma enorme pressão sobre a admi-
nistração distrital do Búzi no sentido de impedir que Gerome retome o título de régu-
lo. A administração distrital do Búzi tenta desempenhar um papel regulador nestes
conflitos, mas tem algumas dificuldades nesse papel: por um lado, porque também
se constituiu como um actor político envolvido nessas lutas e a sua participação não
pode ser desinteressada; por outro lado porque esse envolvimento é encarado com
108 AUTORIDADES TRADICIONAIS E ESTADO MOÇAMBICANO

desconfiança pelas autoridades tradicionais25. De igual modo, é preciso afirmar que


as administrações distritais, e a do Búzi não é excepção, não possuem mecanismos
institucionais para resolver estes problemas, nem têm legitimidade para as popula-
ções para tal. É a própria instituição das autoridades tradicionais, e neste particular
sobretudo os matombo, quem está legitimado para resolver estas contradições, devi-
do ao seu conhecimento das «tradições». Este facto atesta bem o peso que continua a
ter a gerontocracia dentro da instituição.
Apesar de tudo, as autoridades tradicionais têm vindo a desempenhar um con-
junto de tarefas administrativas de enorme relevo para o processo de implantação e
sedimentação do Estado em meio rural. Entre elas sublinhe-se: a recolha do IRN
(Imposto de Reconstrução Nacional), a manutenção da ordem e a resolução de con-
flitos, através dos tribunais tradicionais, a participação em campanhas de divulgação
agrícola da DDADR (Direcção Distrital de Agricultura e Desenvolvimento Rural) e
as campanhas de saúde, nomeadamente de vacinação, da DDS (Direcção Distrital de
Saúde). Outra função das autoridades tradicionais de especial relevância é a que se
prende com a gestão do património fundiário, ou seja, do fundo de terras da «comu-
nidade»26. Nesse âmbito cabe às autoridades tradicionais a responsabilidade de gerir
a atribuição de títulos de terras da «comunidade», tal como previsto na Lei 19/97.
No período entre 1992 e 2000, estas funções atribuídas às autoridades tradicionais
não eram objecto de qualquer regulamentação institucional e dependiam dos interes-
ses e das dinâmicas das próprias administrações distritais que, no fundo, mais não
faziam do que repor algumas das mais proeminentes funções das autoridades tradi-
cionais para a administração colonial. Nesse sentido, as variações regionais e distri-
tais eram enormes, consoante as relações de força entre os actores estatais e as auto-
ridades tradicionais, entre outras, e as próprias idiossincrasias dos actores individua-
is. Em 2000 foi promulgada a Lei 15/2000 que define o tipo de funções e prerrogati-
vas das autoridades tradicionais27 e as relações institucionais com o Estado. A Lei
15/2000 na verdade constitui-se como uma espécie de RAU, em versão mais conci-
sa, e repõe quase na totalidade as prerrogativas, funções e regalias das autoridades
tradicionais durante a vigência da administração colonial. Pode ainda afirmar-se que
a Lei 15/2000 concilia um conjunto de pretensões que as autoridades tradicionais
vinham reclamando, a nível nacional, pelo menos desde 1994, tais como o pagamen-
to de um salário/subsídio correspondente às suas tarefas, nomeadamente à recolha
do imposto; o uso de um fardamento e insígnias distintivas; e a possibilidade de usa-
rem a bandeira nacional nas suas casas.
25 A relação entre as autoridades tradicionais e as administrações distritais sofre do mesmo tipo de problemas históri-
co-políticos do que a relação Frelimo - autoridades tradicionais, pois para estas últimas o Estado e a Frelimo consub-
stancia a mesma unidade política, apesar de serem actualmente entidades sócio-políticas distintas, tal como preco-
niza a Constituição de 1989.
26 O conceito de comunidade surge neste texto apenas porque se trata do conceito utilizado na Lei de Terras, as aspas
servem para reforçar que não se trata de uma utilização conceptual nossa.
27 Na Lei 15/2000 utiliza-se o conceito de «líder comunitário», que tem um campo conceptual mais vasto pois englo-
ba as autoridades tradicionais e outros líderes loca
FERNANDO FLORÊNCIO 109

De qualquer modo, o actual processo de institucionalização das autoridades tra-


dicionais é ainda bastante incompleto e existem grandes diferenças regionais na sua
aplicação.
O distrito do Búzi constitui um excelente exemplo de discrepância regional, face
a outros distritos vaNdau28. No Búzi a administração distrital não apenas já iniciou a
redistribuição de proventos às autoridades tradicionais pela recolha do IRN (cerca de
3% do total recolhido por cada autoridade tradicional) como também decidiu em
2001 instituir um subsídio mensal de 400.000 MT. No entanto, este subsídio mensal é
distribuído apenas pelos régulos e não atinge os chefes de povoação (os mambo mudo-
co), que são assim discriminados e que, pelo menos em 2001, não recebiam nenhum
provento pelo seu desempenho mesmo na recolha do IRN.
Deste modo, a variação era não somente regional, dado que nos outros distritos
as autoridades tradicionais ou ainda não tinham recebido nada pela recolha do IRN
ou não recebiam nenhum subsídio mensal, como também local, entre os diferentes
escalões de poder no seio da instituição. Esta prática discriminatória da administra-
ção distrital actual é bastante semelhante às práticas usadas pela administração colo-
nial que, em geral, beneficiavam os régulos em detrimento das outras figuras, nome-
adamente dos chefes de povoação.
Estas situações provocam não só distorções regionais entre as autoridades tradi-
cionais como também potenciais conflitos entre os diferentes escalões de poder. Por
outro lado, discriminam ainda outros actores político-admnistrativos distritais, como
os secretários de bairro, que desempenham o mesmo tipo de funções administrativas
que as autoridades tradicionais, e estão também abrangidos na categoria de «líderes
comunitários» pela lei 15/2000, mas que não recebiam nenhumas regalias por parte
da administração distrital do Búzi.
Os conflitos inerentes ao processo de formação do Estado distrital prendem-se,
deste modo, com os diferentes posicionamentos que os diversos actores conquistam
face ao próprio Estado, diferenças que a própria Lei 15/2000 não esclarece e que, por
conseguinte acaba por permitir.
Neste sentido, pode afirmar-se que tal processo é bastante complexo, fragmenta-
do e multivocal, envolvendo uma pluralidade de actores locais, com diferentes aspi-
rações e motivações, concorrentes num combate político em torno de posições de
poder a nível distrital, quer pelo controlo do aparelho de Estado quer pelo controlo
das populações rurais.
Tomando como exemplo o distrito do Búzi, podem distinguir-se cinco grupos de
actores políticos envolvidos nesse combate: a) as autoridades tradicionais; b) as auto-
ridades e as organizações estatais; c) as ONGs (Organizações Não-Governamentais)

28 Os distritos de predominância populacional Ndau são os de Mossurize, Machaze, Chibabava, Búzi, e Machanga, e
o posto administrativo de Dombe, no distrito de Sussundenga. De realçar que os dados empíricos apresentados neste
texto se reportam a estes distritos, à excepção do de Machanga, onde nunca foi possível planear uma estadia de ter-
reno.
110 AUTORIDADES TRADICIONAIS E ESTADO MOÇAMBICANO

nacionais e estrangeiras; d) a Frelimo e as suas organizações partidárias; e) a Renamo


e as suas organizações29.
As autoridades tradicionais relacionam-se e confrontam-se com estes diferentes
grupos, de modo diversificado. No que concerne a relação com as autoridades e
organizações distritais (no sentido das diferentes Direcções Distritais e departamen-
tos estatais) saliente-se que uma característica fundamental desta relação é a depen-
dência destas face às autoridades tradicionais. O Estado distrital, nomeadamente em
áreas nucleares como a saúde, agricultura e justiça, necessita das autoridades tradi-
cionais no sentido de fazer sentir a sua presença e realizar cabalmente as suas fun-
ções na totalidade do distrito. O Estado distrital, à semelhança do Estado colonial,
não possui essa capacidade, nem legitimidade, e é pela intermediação das autorida-
des tradicionais que consegue executar essas funções.
As ONGs, nacionais e estrangeiras, surgiram nos espaços políticos distritais a par-
tir da assinatura do Acordo de Paz, em 1992, e podem considerarem-se também um
actor político local na medida em que desempenham um papel relevante na condu-
ção das estratégias de desenvolvimento do Estado que, na sua quase totalidade,
depende destas organizações, quer do ponto de vista financeiro quer técnico. O
modo de relacionamento entre as ONGs e as autoridades tradicionais é bastante vari-
ado devido, sobretudo, à extrema fragmentação da implantação distrital destas orga-
nizações. Nos distritos vaNdau essa implantação diminui consideravelmente na
ordem inversa da distância entre o distrito e a capital de província; deste modo, a pre-
sença de ONGs nacionais e estrangeiras nos distritos de Sussundenga e do Búzi é
permanente, enquanto que em Machaze, Chibabava, Machanga e Mossurize é bas-
tante rara e esporádica. Em qualquer dos casos, na generalidade as autoridades tra-
dicionais actuam como intermediários entre as ONGs e as populações, principalmen-
te para a mobilização destas últimas, podendo ainda desempenhar (em menor grau)
algumas tarefas de consultoria das ONGs para assuntos tão diferentes como a reali-
zação de cerimónias tradicionais, a localização geográfica dos projectos que não coli-
da com áreas de culto religioso, a resolução de milandos menores, etc.
As autoridades tradicionais partilham também o mesmo espaço político com a
Renamo e suas organizações. Em substância pode afirmar-se que a relação entre estes
dois actores é de complementaridade e de aliança, pois continua a existir uma forte
identificação entre as autoridades tradicionais (ou pelos menos entre um número sig-
nificativo delas) e a Renamo. Essa identificação adquiriu mesmo contornos instituci-
onais quando o movimento impôs no protocolo do Acordo de Paz o reconhecimen-
to do papel administrativo das autoridades tradicionais nas zonas que controlava, e

29 Existem ainda outros actores políticos distritais de forte relevância, como empresários, líderes religiosos (sobretudo
da igreja católica e das diversas igrejas de cariz protestante), curandeiros e outros elementos da AMETRAMO
(Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique), contudo, à excepção talvez da AMETRAMO, falta a estes
actores um carácter de grupo político organizado e a sua acção reveste-se de uma natureza mais individual do que
colectiva. Por outro lado, muitos deste actores encontram-se igualmente identificados e integrados nos grupos acima
descritos.
FERNANDO FLORÊNCIO 111

nos Estatutos do partido, de 1992, existe no organigrama um órgão consultivo do


Presidente, denominado de «Conselho de Famílias e Chefes Tradicionais», o que
atesta a importância desta instituição de poder tradicional. Contudo, à medida que o
governo central moçambicano foi integrando as autoridades tradicionais em tarefas
de índole administrativas e se foi «aproximando» desta instituição, as autoridades
tradicionais foram igualmente adoptando um discurso político cada vez mais pru-
dente e neutro face ao Estado30.
Esta «neutralidade» corresponde no fundo a uma estratégia política, uma vez que
as autoridades tradicionais sabem bem que dependem também do Estado para legi-
timarem institucionalmente o seu estatuto, assim como para obterem regalias e prer-
rogativas sócio-económicas. No entanto, é perfeitamente notório que a Renamo, pelo
menos a nível dos seus dirigentes distritais, não se sente confortável com uma puta-
tiva aproximação/identificação entre as autoridades tradicionais e o governo, devi-
do à enorme capacidade de mobilização da instituição. Nesse sentido, a Renamo
exerce bastas vezes uma forte pressão, por vezes clandestina, sobre as autoridades
tradicionais31.
No distrito do Búzi, como de resto em toda a área Ndau, é sobretudo com os ele-
mentos da Frelimo e das suas organizações que as autoridades tradicionais se afron-
tam e confrontam numa forte luta política. Os conflitos entre estas duas forças assen-
tam numa dupla natureza: a) histórica, devido ao tipo de relacionamento imposto
pela Frelimo após a independência, com fortes repercussões ainda hoje; b) de espaço
político de actuação, porque ambas concentram uma parte das suas atribuições na
mobilização e enquadramento das populações, com interesses e pontos de vista anta-
gónicos, resultando daí uma forte concorrência política.
Esta conflitualidade não é, porém, generalizada a todo o distrito do Búzi, onde
não existe em todos os regulados, nem é uniforme em grau. Uma das razões prende-
se directamente com o facto de a própria Frelimo ter uma capacidade diminuta para
cobrir o espaço distrital e de, por conseguinte, existirem vastas áreas onde a presen-
ça da suas organizações é esporádica e se resume a pequenas visitas. No caso do dis-
trito do Búzi, a capacidade de implantação da Frelimo quase que se resume ao triân-
gulo da Companhia do Búzi, limitado pelas localidades de Bândua e Estaquinha e da
própria sede de distrito, e da localidade de Nova Sofala. É neste espaços que os con-
flitos são mais agudos e sistemáticos.

30 Nota-se nesse discurso que formalmente as autoridades tradicionais, sobretudo as mais jovens, produzem uma visão
que separa o Estado do partido Frelimo, delegando no primeiro uma maior consideração e legitimidade. Contudo,
uma análise mais profunda das práticas e das representações sociais demonstra que em grande medida essa separa-
ção é sobretudo discursiva e, para a grande maioria das autoridades tradicionais, inexistente.
31 Um dos exemplos são as banjas que o governo distrital realiza para mobilizar as populações para os seus programas
de saúde, educação, etc. Quem mobiliza as populações são as respectivas autoridades tradicionais da região. Não
raras vezes estas são posteriormente pressionadas pelos dirigentes da Renamo para mobilizarem uma nova banja,
por vezes no dia seguinte, para o movimento criticar e desmobilizar a participação das população. Por vezes, ainda,
as próprias autoridades tradicionais assumem um papel activo de crítica e desmobilização da população.
112 AUTORIDADES TRADICIONAIS E ESTADO MOÇAMBICANO

De entre as estruturas partidárias da Frelimo, as que se destacam neste processo


de afrontamento com as autoridades tradicionais são, principalmente, algumas das
suas organizações de massas, como a OMM (Organização da Mulher Moçambicana)
e a OJM (Organização da Juventude Moçambicana), os secretários de bairro e de
célula, e os antigos membros dos extintos GDs. O confronto maior acontece com os
secretários de bairro e de célula e com os GDs. Com estes são sobretudos os ressenti-
mentos históricos que enformam as relações.
No caso dos secretários de bairro e de célula o problema é mais complexo. Por um
lado, porque se trata de organizações da Frelimo e, por conseguinte, os confrontos
assumem um carácter político.
Por outro porque, apesar disso, o governo distrital usa os secretários de bairro e
de célula para tarefas de índole administrativa em tudo semelhantes às das autorida-
des tradicionais32 e as áreas geográficas de actuação, dos secretários de bairro e de
célula, é bastante semelhante às dos chefes de povoação e sagutas, existindo assim um
conflito directo entre ambos.
Além disso, os dois grupos possuem diferentes tipos de legitimidade social para
as populações, sendo que os elementos da Frelimo usufruem de uma menor legiti-
midade do que as autoridades tradicionais pois, ao contrário destas, não desempe-
nham funções de natureza mágico-religiosa nem representam uma componente do
modelo de reprodução social Ndau, que as populações pretendem preservar.
De certo modo, esta disputa entre as autoridades tradicionais e as organizações
da Frelimo consubstancia uma confrontação mais profunda entre dois modelos dife-
rentes de organização das sociedades rurais.
No distrito do Búzi, a administração tem tentado nos últimos anos resolver estes
conflitos, nomeadamente entre as autoridades tradicionais e os secretários de bairro,
e estabelecer uma espécie de modus vivendi informal entre as duas estruturas. Esta
solução encerra em si uma profunda contradição, na medida em que se pretende
integrar duas estruturas numa única, transformando os secretários de bairro numa
espécie de sagutas dos chefes de povoação. No entanto, é evidente que as duas estru-
turas têm para as populações fontes de legitimidade bastante diferentes e represen-
tam universos sociais e modos de organização social opostos.
Por outro lado, a base social de apoio de que estas estruturas usufruem no uni-
verso rural também é diferente, o que aponta para a necessidade de um processo de
transformação e mudança social mais profundo no seio do próprio universo rural
Ndau.

32 A Lei 15/2000 estabelece que os secretários de bairro também são «líderes comunitários», com o mesmo tipo de tare-
fas e regalias que os outros «líderes comunitários», tais como as autoridades tradicionais e, nesse sentido, a Lei poten-
cia este tipo de conflitos em vez de os resolver.
FERNANDO FLORÊNCIO 113

Conclusão

Pode adiantar-se, em jeito de conclusão, que ao nível distrital, e tomando o caso


do Búzi como exemplo, a relação entre o Estado moçambicano e as autoridades tra-
dicionais vaNdau consubstancia uma confrontação entre dois modelos de governa-
ção e de controle social que no fundo são antagónicos e têm bases sociais legitimado-
ras diferentes. O modelo estatal, veiculado pelo partido Frelimo, pretende introduzir
uma mudança social profunda nas estruturas sociais rurais, sob o rótulo da moder-
nidade, consolida o seu poder e legitimidade entre os sectores mais jovens da popu-
lação rural, sobretudo nas zonas urbanas e semi-urbanas do distrito (sede e localida-
des).
As autoridades tradicionais, por seu lado, representam uma identidade cultural
local, e um modelo de reprodução social tradicional, com o qual uma parte significa-
tiva da população ainda se identifica e que pretende preservar. Ao contrário do
modelo estatal, o modelo de reprodução tradicional encontra-se ainda fortemente
implantado nas zonas mais profundas do distrito, menos urbanizadas, vulgarmente
designadas pelas próprias populações de «mato»33.
O «mato» representa um espaço social distrital onde o Estado e a Frelimo têm
enormes dificuldades de penetração e de legitimação perante as populações. As auto-
ridades tradicionais jogam aqui o papel de representantes e intermediários do Estado
distrital, que deste modo depende inteiramente das autoridades tradicionais para se
institucionalizar nestas áreas.
Esta diferenciação entre «mato» e zonas urbanas (vilas e localidades) gera igual-
mente uma profunda diferenciação entre as autoridades tradicionais do «mato» e as
das vilas e localidades. Estas últimas são obrigadas, por um lado, a disputar os seus
espaços sócio-políticos com outros actores políticos distritais, nomeadamente com os
secretários de bairro, e a sua legitimidade é mais questionada pelos sectores mais
modernos da população rural, nomeadamente pelos jovens e pelas mulheres. Ao
contrário, as autoridades tradicionais do «mato» praticamente não encontram resis-
tências à sua autoridade e governam quase que hegemonicamente as populações
rurais.
Ambos os modelos têm enormes dificuldades em se afirmarem política e social-
mente nos núcleos duros contrários e a ambiguidade da relação entre Estado e auto-
ridades tradicionais reside precisamente no facto de ambos precisarem um do outro
para se legitimarem nesses zonas adversas. As autoridades tradicionais, em meio
urbano, necessitam do Estado para se afirmarem junto dos jovens e outros sectores
modernos, e são facilmente mais manipuláveis, enquanto que o Estado e a Frelimo
praticamente não existem no «mato».

33 A designação de «mato» é vulgarmente utilizada pelas populações das sedes e localidades, as populações urbanas,
e entre estas sobretudo nos sectores mais modernos, jovens escolarizados, empresários, trabalhadores das ONGs,
membros do aparelho estatal e dos partidos políticos, e tem para estes uma óbvia conotação depreciativa.
114 AUTORIDADES TRADICIONAIS E ESTADO MOÇAMBICANO

As zonas urbanas e semi-urbanas das vilas e localidades constituem-se como


zonas de intersecção entre estes dois modelos de organização social, espécie de
«espaços mestiços» intermédios. Estes «espaços mestiços» constituem assim arenas
políticas onde a confrontação entre actores e modelos de organização social é mais
premente, pelo controle social das populações rurais vaNdau.

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