Considerações Sobre o Tempo Musical Petraglia
Considerações Sobre o Tempo Musical Petraglia
Considerações Sobre o Tempo Musical Petraglia
Extraído de:
PETRAGLIA, M. S. A música e sua relação com o ser humano. Botucatu:
OuvirAtivo, 2010.
Por mais que já se tenha falado e pesquisado sobre nossa relação com o
tempo, ele é um fato da vida sobre o qual não possuímos nenhum poder e que,
por isso, nos fascina e amedronta. Usamos (até vendemos) o tempo, mas não
temos sua posse. Criamos e utilizamos medidas que nos servem para organizar
os fatos históricos e cotidianos da vida, mas sabemos que nossa vivência do
tempo escapa ao cronômetro.
Cabe aqui uma relação entre os aspectos do fluxo temporal à imagem do ser
humano apresentada anteriormente. Podemos relacionar o movimento puro do
tempo à corrente terrena que se manifesta no corpo físico e corpo vital.
Lembremos que o corpo vital é aquele que conduz os processos de
crescimento, vida e morte dos organismos, que eleva a matéria inerte ao plano
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Schopenhauer (2005)
da vida. Sua tendência natural é a expansão, são as formas arredondadas e
convexas. Por outro lado, é por meio do corpo anímico e do Eu que fluem as
leis e os arquétipos numéricos universais que entalham proporções e ordenam
a substância plástica do tempo. Como já dissemos, o Eu é nosso ponto de
contato e elo com o plano essencial do mundo. É por intermédio dele que
adentramos o âmbito das leis e os arquétipos das coisas. Ao imprimir sobre o
corpo anímico esses arquétipos, o eu tem a chance de atuar sobre as
manifestações do mundo. A força anímico que se estrutura sob a ação do eu
em um conjunto de estruturas numéricas cria, organiza e separa os fenômenos
com todas as suas diferenciações. É no embate entre essas duas correntes (eu-
anímico e vital-físico) que o universo temporal (e também o universo tonal,
como veremos mais adiante) se configura. A vivência do tempo torna-se,
assim, o resultado do encontro entre a força volitiva que se expressa em nosso
sangue e em nossa vitalidade e a força ordenadora do espírito que atua em
nosso sistema nervoso e gera consciência. Maravilhosamente, essas duas
forças se encontram em harmonia no centro do nosso corpo e se expressam
em arcos de respiração e pulsar do coração.
Passamos a ter consciência do fluxo do tempo à medida que ele é moldado por
forças de contração e expansão, criando, assim, diferenciações em seu
caminho. As contrações a que me refiro são como nós em uma corda, que
marcam pontos de referência para avaliarmos seu comprimento. São os
momentos de maior intensidade e concentração que dividem a linha do tempo
em um antes e um depois. Mesmo que estes "nós" não sejam constantes, o
simples fato de existirem garante a percepção do fluxo. Quando se tornam
regulares, podemos começar a prever seu caminho, a ter a vivência consciente
de seu fluxo e a nos sentir seguros quanto ao futuro. Qual seria nosso
sentimento se, ao mirar o pôr do sol no horizonte, não soubéssemos quando - e
se - ele retornaria ao céu num eventual próximo dia? É a regularidade do
nascer diário do sol, que atua em nós como um momento de concentração
perceptiva, que nos dá uma sensação de coerência e sentido ao fluxo do
tempo.
Um outro aspecto que devemos admitir em nossa relação com o tempo é que
somos totalmente incapazes de abarcar conscientemente unidades de tempo
muito longas ou muito curtas. O tempo geológico das montanhas, assim como
as unidades de tempo do mundo celular e atômico, fogem completamente à
nossa percepção. Somos obrigados, de maneira justificada, a tomar a nós
mesmos e a nossos ciclos naturais, como o andar, a respiração e o pulso do
coração, como referência para definirmos o que é longo e o que é curto.
O pulso
Vamos, agora, tentar chegar mais perto de tais fenômenos por meio de uma
vivência. Proponha-se o seguinte exercício: num ambiente silencioso fique em
pé, concentre-se e perceba os muitos sons e pulsos que do seu interior sobem
à consciência, em grande parte advindos de processos fisiológicos. Neste
momento em que buscamos contato com uma camada autônoma da
consciência, é importante conhecê-los para não se deixar levar por algo
externo à nossa vontade. Comece, agora, a bater palmas e vá,
gradativamente, ampliando o movimento circular dos braços, tentando ampliar
cada vez mais o tempo entre uma palma e outra. Sinta esta dilatação do
tempo e procure levá-la ao extremo da duração, numa expansão contínua da
alma, como se estivesse adentrado a “eternidade”. Neste estado de dilatação,
podemos sentir que dentro de nós uma vontade começa a se manifestar e
crescer: a vontade (muitas vezes acompanhada de ansiedade) de que “algo”
aconteça, que “algo” interrompa esta “pequena eternidade”. Conviva com esta
tensão e deixe que ela cresça até o ponto de não ser mais suportável. Então,
alcançando com o braço o extremo de um amplo movimento circular, retorne e
bata uma palma marcando com energia este momento de rompimento do
silêncio. Temos, agora, uma “eternidade” para trás e uma nova “eternidade”
diante de nós. Repita este exercício algumas vezes e atente para os distintos
momentos do processo: o período de acúmulo de tensão antes da batida, a
batida, o momento logo após a batida e o gradativo esvanecer do som da
batida no tempo, o ponto neutro entre uma batida e outra. Podemos nos
perguntar: o que de fato se acumula e torna, a partir de um certo ponto,
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No livro “O som e o sentido”, Wisnik (1989) sugere um processo linear de união entre
elemento rítmico e elemento tonal, tratando ambas as manifestações como âmbitos de um
continuum vibratório.
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A unidade “Hertz” foi batizada em homenagem a Heinrich Hertz, que descobriu e produziu
pela primeira vez as ondas de rádio em 1888. Por definição, 1 Hz é igual a um ciclo por
segundo; 2 Hz = 2 ciclos por segundo, portanto, cada ciclo com 1/2 segundo e assim por
diante.
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Ponto zero
Ciclo do pulso
Futuro Passado
Marco do tempo
Da união desses dois princípios resulta o pulso como elemento cíclico no fluxo
temporal:
Assim, podemos ter compassos de diversos tamanhos: um, dois, três, quatro,
cinco, seis, sete... pulsos e, teoricamente, com quantos pulsos quisermos,
onde a definição auditiva do compasso se dá sempre pela ênfase no primeiro
pulso do grupo. É interessante observar que a partir de quatro pulsos por
compasso surge a vontade - ou necessidade - de subdividi-lo, fazendo um ou
mais acentos leves nos pulsos intermediários, como que para nos orientar no
percurso do grande arco do compasso. No compasso de quatro pulsos somos
naturalmente levados a enfatizar o primeiro pulso e, de forma mais leve, o
terceiro pulso.
1 2 3 4 1 2 3 4 1
10
5
(3+2)
4
Tercina é o nome que damos à divisão de um pulso em três, assim como duina e quintina são
a divisão em dois e em cinco respectivamente. Curiosamente, a divisão em três de um pulso
gera mais incerteza quanto à sua exatidão. Falamos, também, em tercinas “alargadas” ou
“contraídas”.
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Pulso
Subdivisão
Com isso temos o elemento cíclico do pulso, com sua contração e expansão,
ordenando o fluxo do tempo, sempre se somando e se subdividindo em
unidades regulares. Na vida cotidiana temos inúmeros exemplos disso: a
semana (compasso) com seus dias (pulso), que, por sua vez, se subdividem em
dia e noite (subdivisão binária), horas, minutos etc. Por outro lado, podemos
considerar a semana como o pulso do "compasso lunar quaternário" (cada fase
da lua um pulso) e os dias como sua subdivisão. Se observarmos bem,
veremos quão repleta dessas relações está nossa vida. Como base comum de
todos esses aspectos temos o elemento cíclico que, como vimos, é o
sustentáculo de nossa consciência temporal terrena.
2 3
1 2
1
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O ritmo
Olhemos para as células rítmicas básicas dos assim chamados "ritmos gregos",
lembrando que os longos nos induzem a uma expansão, a adormecer, mas,
também a libertar-nos, enquanto os curtos nos levam a uma contração e ao
acordar.
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Anapesto
Anfíbraco
Espondeu
Tríbraco
Troqueu
Jambo
Pirríquio
Crético
Coriambo
2+1+2
Temos: expansão - contração - expansão; como algo que está adormecido, tem
um súbito acordar e volta a dormir. Sentimos um clima de certa expectativa,
de algo que está para nascer, mas que apenas se insinua.
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3 + 3 + 2
2 + 2 +1
3 + 3
2+ 2+2
Aqui temos um compasso que pode ser subdividido em seis unidades de tempo
que se agrupam simultaneamente em dois sons com três unidades cada, ou
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Para sintetizar o que vimos até agora, poderíamos dizer: o pulso nos conecta à
terra, o compasso e a subdivisão trazem vida e dinamizam o pulso, o ritmo é a
manifestação audível, uma criação com longos e curtos que se apoia nos três
elementos precedentes e que comunica uma ideia e um sentimento musical.
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O Alap é, na musica indiana, uma introdução lenta e de ritmo não medido, onde são
apresentados o conjunto específico de tons e os gestos melódicos característicos da raga da
composição.
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