O Ultimo Jantar - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

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DADOS DE ODINRIGHT

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O ÚLTIMO JANTAR
 
 
Psicografia da médium
Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
Narrativa do espírito
Antônio Carlos

Copyright by Petit Editora e Distribuidora Ltda.


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do
Livro, SP, Brasil)
133.9 C28p
Jussara (espírito)
Romance / pelo espírito Antônio Carlos; psicografado por Vera Lúcia Marinzeck
de Carvalho. São Paulo: Petit, 2014
ISBN 9788572532822
Espiritismo 2. Romance mediúnico I. Carvalho, Vera Lúcia Marinzeck de II. Título.
CDU: 133.9
índices para catálogo sistemático:
1. Romance mediúnico : Espiritismo 133.93
 
 
Ajustado e convertido em MOBI e EPUB por:
U.E. – Braga - Outubro 2021
 
 
 
SINOPSE
 
Quem poderia imaginar que o hábito de cultivar cogumelos,
e com eles preparar as mais saborosas sopas, pudesse
custar o desencarne de Lia? Agora, do outro lado da vida,
ela está aflita e quer encontrar o assassino que planejou
tudo. Mary, uma escritora de suspense em sua passagem
pela vida terrena, recebe permissão para auxiliar Lia a
desvendar o crime do qual foi vítima. Nessa busca,
intrigantes revelações vão surpreender o leitor. Assim como
O último jantar, o mistério está servido...
 
Sumário
MARY

O PAIOL

OS COGUMELOS

A TENTATIVA

ZÉ GRILO

HISTÓRIA DE ISAURA

SABENDO DOS FATOS

VISITANDO EDSON

CENTRO ESPÍRITA

A INVESTIGAÇÃO

ESCLARECENDO OS FATOS

TEMPOS DEPOIS

 
 
MARY
Mary quando encarnada, foi uma escritora de
entretenimento, sempre gostou de literatura, amava
imaginar histórias e colocá-las no papel. E, quando se ama o
que se faz, realiza-se bem-feito. O período encarnado
acabou seu corpo físico morreu e a mudança de plano a
perturbou. O que encontrou na Espiritualidade era muito
diferente do que pensava. Ela foi, após o sepultamento do
seu envoltório carnal, levada a um posto de socorro, porém
não quis ficar e voltou ao seu antigo lar.1
O sofrimento a fez querer o auxílio dos bons espíritos, e
foi novamente ajudada.
Aceitando então a mudança de plano, adaptou-se à nova
maneira de viver. Ativa, quis ser útil, aprendeu e passou a
servir, foi trabalhar num posto de socorro. Uma tarefa
especial despertou sua vontade de trabalhar com a
literatura e pediu então para estudar sobre o assunto e foi
estagiar na Colônia Casa do Escritor.2
Ela estava amando estar ali, achou a colônia linda, tudo
era simples e prático. Gostava de maneira especial do vasto
jardim bem cuidado, onde a maioria de seus moradores,
professores e estudantes, gostava de ficar conversando,
trocando informações entre os canteiros floridos e os bancos
confortáveis. Fez novos amigos, e todos ali tinham o mesmo
objetivo: ser útil, fazer algo de bom na tarefa de instruir
pessoas por meio de escritos, palestras e filmes.
Surpreenderam-se com a maneira simples e sábia com que
os orientadores da casa ensinavam, e os novos
conhecimentos a fascinavam. Mary estava sempre dizendo:
"Como podemos ajudar, esclarecer com a boa literatura!
Não usei bem meu talento, sinto por isso. Alegro-me por
saber que terei outras oportunidades e, para aproveitá-las
melhor, quero aprender e me preparar.”
E, como não devemos ficar remoendo o passado, mas sim
aproveitar bem o presente, Mary resolveu estudar bastante,
aprender, para ser útil da melhor maneira possível. Não
queria adiar o que tinha de fazer para o futuro,
compreendera que o que importa é o presente, é fazer,
realizar no momento atual.
A literatura era o assunto preferido da colônia de estudos
e também de Mary, que estava sempre conversando,
principalmente com pessoas que, quando encarnadas,
dedicaram-se a instruir, educar e ensinar pela escrita. Mary
amava assistir a palestras, comparecia a todas que eram
realizadas na colônia e almejava um dia poder ensinar
daquele modo. Em uma tarde, ela se dirigiu a um dos salões
para ouvir um orador que há algum tempo estava no plano
espiritual e, em sua opinião, tratava-se de um exímio
palestrante.
A sala de palestra era grande, tinha poltronas confortáveis
de cor bege claro e somente alguns quadros nas paredes;
na frente havia uma pequena mesa enfeitada com flores
cor-de-rosa. A colônia recebe muitos convidados para essas
palestras de espíritos que trabalham em outras casas e até
em outros países. Recebe também alguns encarnados, que
deixam o corpo físico adormecido e vão acompanhados de
seus espíritos protetores.
Após uma rápida oração, o orador falou sobre as
parábolas de Jesus:
— As parábolas têm dois sentidos: o material e o
espiritual. O material é de fácil entendimento; são os fatos
do dia a dia das pessoas, da natureza. Mas, o espiritual
depende da evolução, da capacidade de assimilação de
cada indivíduo. Por isso é que vemos até hoje pessoas
darem explicações para esses ensinamentos de formas tão
diversas, interpretando-os conforme o entendimento que
possuem. Nós mesmos já os interpretamos de muitos
modos e certamente o faremos futuramente de outras
formas. As parábolas nos convidam a uma profunda
meditação. Devemos senti-las e vivê-las para
compreendermos os ensinamentos contidos nessas
preciosidades.
Depois de uma ligeira pausa, o orador falou dos
ensinamentos de Jesus: "O amigo importuno e o juiz
iníquo.”3
— Ao meditar sobre essas duas parábolas,
Compreendemos que Jesus insistiu em que devemos orar
sempre, que jamais, em nenhuma circunstância, devemos
deixar de fazer com sinceridade nossas Preces. Pedi e
recebereis; batei abrir-se-vos-á; buscai e achareis. Tudo o
que pedirdes ao Pai, Ele vo-lo dará... E, orai não vos deixei
de orar. Podemos achar no Evangelho vários textos
incentivando-nos a não perder a esperança e a fazer o que
nos cabe para receber o que almejamos. E nessas duas
parábolas os pedintes chegam ser impertinentes, insistem -
continuou o orador - Deus não deve se sentir importunado
com nossos pedidos importunos nem nos atende para ficar
livre. E, se Ele sabe do que necessitamos até antes de
pedirmos, por que a necessidade de fazê-lo? A finalidade do
pedido, da oração, é nos levar a crer em nós mesmos, é nos
fazer agir de forma que Deus possa nos atender. Quando
pedimos e nos preparamos para receber, nos tornamos
receptivos a esse recebimento. Por isso Jesus recomendou:
“Busque, bata, faça sua parte, prepare-se para receber.
Torne-se receptivo!”
Todos nós temos capacidade para receber. Muitos
imprudentes obstruem esse recipiente; outros o alongam. E
o pedir, orar, buscar etc., alongam essa capacidade de
receber o dom do Doador Divino. E recebe-se de acordo
com a capacidade que se tem para receber. Quem for a uma
fonte de água pura e cristalina com um dedal irá trazer um
dedal com água. Quem for com um copo trará um copo com
água. Assim acontece com quem leva um balde ou um
recipiente maior. E o importante é quem vai buscar,
caminha para chegar lá, bate, pede e recebe, faz sua parte.
E para chegar à fonte ele deve ter trabalhado e estudado a
melhor forma para ir, lá bateu, insistiu em pedir etc. Não
ficou parado esperando, e com tudo o que fez o pedinte,
tornou-se receptivo. Pedir para alguém fazer o que nos
compete é receber a água que a pessoa foi buscar na fonte.
Jesus, porém, recomendou que fizessem, nós mesmos, o
que nos compete, busquemos, criemos um ambiente de
receptividade com nosso esforço.
Mary escutava atenta. De repente sentiu que alguém em
algum lugar falava dela, e não era algo bom. Ficou inquieta
e ouviu:
"Maldita escritora!"
Olhou um tanto assustada à sua volta. Ficou aliviada, pois
ninguém escutara. Entendeu que a voz estava se referindo
a ela, portanto apenas ela a sentira, ouvira ou recebera por
sintonia.
Tentou prestar atenção no fabuloso orador do qual era fã.
Admirava-o por ele ter voltado ao plano espiritual com seu
objetivo cumprido e por ter feito o que planejara. O orador
logo terminou a palestra com uma linda oração e as pessoas
foram se retirando maravilhadas pelo que ouviram. Era de
madrugada. Palestras com convidados encarnados são
realizadas em horários em que normalmente o corpo físico
dorme.
Mary saiu do salão e foi para o jardim. Preferiu ficar
sozinha olhando o firmamento. Ficou pensando na palestra
que ouvira, memorizando-a, e concluiu que temos sempre
de fazer o que nos compete, ser autossuficientes, aproveitar
as oportunidades de aprender, praticar o bem para um dia
sermos bons. Logo o Sol4 despontou no horizonte e a nossa
aprendiz se encantou com a beleza do astro rei.
Meditou e concluiu que do Sol podemos tirar um grande
exemplo. Silencioso, ele dá luz e calor a todos igualmente.
Faz simplesmente o que tem de ser feito: existe, é útil.
"E por que não sermos assim: Fazermos por amor a todos
e sem alarde; sermos uma fonte de luz e calor?", pensou
ela.
No período da manhã, ela tinha aulas e foi assistir a elas.
Nessa colônia de estudos, havia muitas salas e elas eram
bem confortáveis. Sua turma tinha vinte e oito estudantes e
todos com vontade de aprender tornaram-se bons amigos. A
maioria das aulas era nesse período, o que fazia a colônia
ser agitada nesse horário; professores e estudantes tinham
muito que fazer.
Quando terminaram as aulas, ela dirigiu-se à biblioteca da
colônia, um lugar muito frequentado pelos moradores e
visitantes. Espaçosa, ela tinha muitas estantes repletas de
livro. Um local maravilhoso para os amantes da literatura.
Mary cumprimentou Cecília, que estagiava na biblioteca, e
foi para uma das estantes pegar um livro para fazer uma
consulta.
"Maldita! Mil vezes maldita!”
Sentiu novamente as palavras na sua mente, bem como a
raiva de quem as dizia. Mary sentiu tontura, agachou-se
num canto, colocou as mãos na cabeça e pronunciou:
— Não! Não sou maldita! Pare com isso!
— Mary! Acalme-se, por favor! O que você tem? -
perguntou Cecília, erguendo-a do chão.
— Não sei Cecília - respondeu Mary com dificuldade. -
Alguém me amaldiçoou e senti tudo rodar.
Cecília chamou telepaticamente o orientador da colônia,
que era responsável pelos estudantes da casa, e ajudou
Mary a sentar-se numa poltrona. Logo Carlos Augusto entrou
na biblioteca e dirigiu-se a elas, indagando:
— O que aconteceu?
— Mary sentiu alguém amaldiçoá-la e teve um ligeiro mal-
estar" - respondeu Cecília.
— Desculpem-me - falou Mary - Não queria causar
nenhum transtorno. Não sei o que aconteceu. Nunca pensei
que estando aqui, na colônia, pudesse sentir alguém, que
não sei quem é nem onde está, falar ou pensar em mim de
maneira tão negativa. Não entendo o que está se passando.
Carlos Augusto deu um passe em Mary e, quando ela
melhorou, lhe falou:
— Mary vamos até o meu gabinete5 para conversarmos.
Mary o acompanhou e sentou-se em frente a uma
escrivaninha. Carlos Augusto acomodou-se ao seu lado,
dirigindo-se a ela de forma carinhosa:
— Querida Mary somos responsáveis pelo que fazemos. Se
alguém se sentir prejudicado por um de nossos atos,
mesmo que não o tenhamos feito com má intenção,
podemos de alguma forma sentir pelo sofrimento ou
dificuldade que causamos. E, se pudermos, devemos ajudar
quem se sente prejudicado direta ou indiretamente pelo que
fizemos. Você, minha amiga, quando encarnada, foi autora
de muitos livros. Por intermédio deles, você não fez o mal,
não teve em momento algum intenção de prejudicar
ninguém. Mas, se alguém se sentiu prejudicado e a
amaldiçoa, e como estamos de certa forma ligados aos
nossos atos, sejam eles bons ruins ou neutros, você sente e
ouve...
— O que faço agora? Fico indiferente a essas palavras? -
perguntou Mary.
— Você não sabe mesmo o que fazer? - indagou Carlos
Augusto, olhando-a carinhosamente.
— Devo ir ver o que se passa? Mas e meus estudos? Estou
amando muito tudo aqui. Alegro-me em conviver com
outros autores, participar desse aprendizado que tanto está
me esclarecendo - falou Mary suspirando.
— Se não for, não ficará sabendo o que acontece - opinou
o orientador.6
— Que tristeza! Terei de deixar esta casa - disse Mary,
suspirando.
— Mary - disse Carlos Augusto, calmamente - lembre-se
de que Jesus recomendou que fizéssemos primeiro a
reconciliação com o nosso próximo para depois fazermos
nossa oferta ao altar. No seu caso, faça esse ser lhe querer
bem, resolva esse caso, para depois fazer outras tarefas.
Você não conhece essa pessoa, talvez nem ela a você, mas,
pelos seus livros ou por algum outro motivo, ela a
amaldiçoa. Será que você terá condições de continuar
estudando ao deixar que essa pessoa se sinta assim? Deve
procurá-la e auxiliá-la para que não a maldiga mais.
— Como vou achá-la? Saberei ajudá-la? Irei sozinha? -
indagou Mary.
— Para encontrá-la, é só seguir a voz, pensar na pessoa e
ir ao seu encontro. Saberá auxiliá-la. Você é inteligente e
capaz. E deve ir só - respondeu o orientador.
— Fiz a ação sozinha, não é? - indagou Mary.
Carlos Augusto sorriu e respondeu:
— Quando resolvemos problemas, sejam nossos ou de
outros, aprendemos muito. Você irá sozinha, mas estaremos
aqui para orientá-la. Pode contar comigo. Vá, Mary, resolva,
auxiliando quem, em aflição, está dizendo essas palavras.
— Só eu escutei porque a pessoa se referiu a mim, não é?
— Sim, nossos atos e ações a nós pertencem, e você se
sente responsável pelos livros que escreveu...
— Se estivesse no umbral7, eu me sentiria pior? -
perguntou Mary.
— Benção e maldição com fundamento - respondeu Carlos
Augusto - são sentidas em qualquer lugar. No seu caso, não
tem fundamento, não foi culpada e não deve sentir-se
assim. Talvez, se estivesse encarnada ou desencarnada no
umbral, por não ter feito as coisas com intenção de
prejudicar, você não iria sofrer. Como você está bem,
consciente de tudo o que fez, sentiu por entender que é
responsável. Para esclarecer essa situação, eu a aconselho
a ir até essa pessoa, verificar o que aconteceu e ajudá-la.
— Quando devo ir? - perguntou Mary com expressão
aborrecida, sentindo como se estivesse sendo obrigada a
fazê-lo.
— Mary, só a estou orientando. Você tem o livre-arbítrio,
que é respeitado. Não está sendo obrigada a nada.
— Desculpe-me - disse Mary, de cabeça baixa - Ao
fazermos algo, não imaginamos quanto nos prendemos às
nossas ações e que os seus reflexos nos acompanham. Você
tem razão. Não conseguiria continuar aqui sabendo que
alguém se sente prejudicado pelo que fiz, mesmo que eu
tenha feito sem a intenção de causar danos. Devo ser grata
pela oportunidade de poder procurá-lo e tentar mudar sua
maneira de pensar a meu respeito, e certamente para isso
tenho de ajudá-lo a resolver o que o aflige. Vou confiante,
sabendo que posso contar com você. Ainda bem que meus
livros não se espalharam muito, não foram tão publicados,
porque, senão eu teria problemas maiores...
— Amiga - falou Carlos Augusto, tranquilamente - Não os
veja como problemas. Porém, se os vir assim, saiba que
pode achar soluções para cada um.
— Você, Carlos Augusto, já sentiu alguém amaldiçoá-lo? -
perguntou Mary.
— Sim, e ainda bem que ele não encontrou em mim erros
ou motivos. Porque, Mary, para sentir ressonância, tem de
haver a maldade feita. Mas, pode acontecer de uma ação
bem-feita ser mal interpretada e vista como uma maldade
por alguém e por isso sermos amaldiçoados. Uma vez,
quando estava encarnado, ajudei com conselhos e
orientação uma pessoa obsedada e ela passaram a
proceder corretamente, saindo da faixa vibracional do
obsessor, porém este me amaldiçoou. Certamente, ele não
me prejudicou, em primeiro lugar porque eu não estava na
sintonia dele e depois porque quis o bem dele também e
tentei ajudá-lo. Outra da qual me lembro foi quando já
estava no plano espiritual. Socorri um desencarnado que
estava no umbral como escravo e orientei-o, ele recebeu o
socorro e se esforçou para se modificar e melhorar. Esse
espírito era talentoso na literatura e estava sendo obrigado
a motivarem encarnados a escrever o que um grupo queria.
Esses moradores da zona umbralina me amaldiçoaram.
Também não encontraram ressonância. Mas, mesmo assim,
fui até eles, marquei uma entrevista e conversamos.
Entenderam que tanto eles quanto eu trabalhava cada qual
com um ideal. Desse encontro vieram comigo dois deles,
que resolveram mudar, para viver para o bem. O resto do
grupo não me amaldiçoou mais. Muitos dos meus
companheiros e eu, ao receber uma maldição, tentamos
resolver a questão ajudando, esclarecendo. Embora isso não
nos incomode, é um prazer fazer quem não gosta da gente
nos querer bem...
— Carlos Augusto, se a maldição encontrar ressonância,
como fica o indivíduo que a recebe? - perguntou Mary.
— Ao fazermos mal a alguém - respondeu o orientador -
primeiramente o fazemos a nós mesmos. Quando estamos
errados, vibramos de tal modo que recebemos as energias
negativas. Expressar maldições é muito triste, porque quem
amaldiçoa não perdoa e quem recebe sente bastante. Por
outro lado, temos as bênçãos, que são energias benéficas,
que tanto bem fazem para quem é grato como para quem
recebe. Minha mãe é uma pessoa maravilhosa que, quando
encarnada, fez muito o bem. Uma vez um irmão dela lhe
disse: “Irmãzinha, você coleciona Deus lhe pague e
obrigado!” Ela sorriu. Um dia, minha mãe me contou que,
em muitas situações difíceis, ela pedia a Deus e pensava
nos agradecimentos que recebia. Esses fluidos a
fortaleciam, e certamente alguns desses beneficiados
intercediam por ela. E ela nunca ficou sem receber que
pedia, usando da energia da gratidão. Pelo visto, meu tio
tinha razão. Mamãe colecionava “Deus lhe pague e
obrigado.” Quando seu corpo físico estava morrendo, foram
centenas de amigos ajudá-la, lhe dar boas-vindas. Nesse
dia, estávamos meus dois irmãos, uma tia e eu ao seu lado.
Mamãe sorriu e disse: “Deus lhe pague! Obrigado!” E
tranquilamente partiu com seus inúmeros amigos para o
plano espiritual. Ela me disse depois, quando nos
encontramos no plano espiritual, que foi isso que escutou
quando seu envoltório carnal morria, e ela repetiu. Mary,
como seria bom se todos colecionassem essas duas formas
de agradecer e de receber bênçãos...
— Acho que vou começar a colecionar agradecimentos,
como sua mãe, mas antes disso vou animada me entender
com essa pessoa que não gosta de mim e que, com certeza,
a transformarei em uma amiga.
— Mary, saia da colônia e vá para onde se encontra essa
pessoa. Não se apresse em voltar: estará fazendo uma
pausa nos seus estudos. Deverá sentir como se estivesse
em férias escolares. Com certeza irá aprender muito,
mesmo.
— Será que saberei auxiliá-la? Serei bem recebida?
— Quando queremos ajudar e solucionar um problema,
devemos conhecer a pessoa e sua dificuldade. E você não
precisará dizer quem é realmente. Fale que é uma amiga, é
isso que deverá ser: uma amiga. Quando usamos da
amizade, sempre encontramos um jeito de ajudar o outro.
Lembro a você, Mary, que são muitos os postos de socorro
espalhados pela Terra e que certamente encontrará um
perto de onde irá. Logo que possível, visite-o, identifique-se
e conte a eles o que está fazendo. Peça ajuda se necessitar
e receberá auxílio.
Mary abraçou Carlos Augusto, agradeceu e saiu do
gabinete. Foi para seu quarto e olhou seus pertences:
— Vou levar só o necessário!" - exclamou.
Pegou uma mochila8 e colocou dentro uma lanterna e
alguns livros.
— Talvez tenha tempo para lê-los! - voltou a se expressar.
Foi para o jardim da colônia com a mochila e escutou
novamente:
— Maldita!
Seguiu a sintonia de quem se expressava.
Volitou...
 
 
 
1 Somos livres para permanecer nos locais de socorro.
Não querendo ficar, podemos sair com permissão, ou então
por uma vontade forte somos atraídos para onde desejamos
ir. (Nota do Autor Espiritual – N.A.E.)
2 Mary narrou esse trabalho especial, sua aventura, no

livro “O Mistério do Sobrado” Vera Lúcia Marinzeck de


Carvalho. Petit Editora. E a Colônia Casa do Escritor, esse
maravilhoso local de estudos, foi muito bem descrita por
Patrícia no livro “A Casa do Escritor” Vera Lúcia Marinzeck
de Carvalho. Petit Editora. (N.A.E.)
3 Lucas, 11: 5 e 18: 1. (N.A.E.)

4 Colônias e locais de socorro que recebem a visita de


encarnados ou em que seus moradores desencarnados
trabalham, seguem o horário do plano físico. Ver o nascer
do Sol nesses lugares é um espetáculo de rara beleza.
(N.A.E.)
5 Para o mesmo local, são dados muitos nomes. Gabinete
é uma salinha em que os orientadores recebem as pessoas
em particular para uma conversa, uma orientação etc.
(N.A.E.)
6 Carlos Augusto tinha como saber o que estava
acontecendo, talvez já soubesse, mas, como o fato se
referia a Mary e era assunto particular, sabiamente ele
motivou-a a resolvê-lo, ensinando que cabe a cada um de
nós esclarecermos o que nos compete e resolver os nossos
problemas. (N.A.E.)
7 Umbral: ambiente espiritual trevoso e infeliz criado pela
força do pensamento de milhares de criaturas em
desajuste. (N.A.E.)
8 Em Nosso Lar, obra psicografada por Francisco Cândido
Xavier, edição da Feb - Federação Espírita Brasileira, seu
autor, o Espírito André Luiz, no capítulo 5 "Recebendo
Assistência", também se refere a um espírito com uma
bolsa portando objetos, tratava-se de Lísias, espírito
visitador dos serviços de saúde, prestando atendimento a
André Luiz. (N.A.E.)
O PAIOL
Mary foi para uma chácara, perto de uma cidade de porte
médio. A casa era grande: tinha à frente um jardim; nos
fundos à esquerda ficava um pomar, e à direita, um paiol,
um galpão não muito grande onde eram guardados os
cereais e os alimentos para os animais. Foi para lá que ela
se dirigiu.
O local estava quase vazio: alguns sacos de milho e ração
estavam num canto, instrumentos de trabalho no campo,
em outro; muita sacaria vazia e alguns móveis velhos. Mary
observou tudo com curiosidade e encostou-se numa escada,
fazendo um barulho que só podia ser ouvido por
desencarnados, e foi isso que aconteceu.
— Quem está aí? É você Zé Grilo?", perguntou uma voz
feminina.
Mary reconheceu a voz que a maldizia.
Olhou para a direção de onde vinha o som e viu uma
mulher saindo de trás de alguns sacos vazios, ajeitando a
roupa. Ela aparentava ter desencarnado com cinquenta
anos; era robusta e trajava um conjunto: calça comprida e
blazer pretos, que estavam um pouco sujos. A
desencarnada sentou-se num banquinho. Bastou Mary olhar
para ela e querer que esta a visse para tornar-se visível.9 A
senhora a viu e a observou com curiosidade.
— Bom dia! Sou Mary. Estava passando e resolvi entrar.
Posso?
— Depois que entra é que pede? - falou a senhora.
— É que julguei não ter ninguém - disse Mary.
— Está bem, entendo. Você achou que não tinha nenhum
morto por aqui, não é isso?
— É... - respondeu Mary.
— Você sabe que já morreu? - perguntou à senhora.
— Sei que meu corpo morreu e que continuo viva -
respondeu Mary.
— Você disse que estava passando por esses lados? Não
tem onde ficar? Não! Se quiser, pode permanecer aqui,
desde que não me incomode. Mary? Você se chama assim?
Sou Liliana, mas pode me chamar de Lia", apresentou-se a
senhora.
— Obrigada! - Mary finalmente conseguiu falar, pois até
aquele momento estava só respondendo com a cabeça.
Liliana, ou seja, Lia, continuou olhando para Mary. Depois
de tê-la examinado bem, ela falou:
— Você com esse conjunto de saia e casaco cinza parece
ter saído do século passado! E essa blusinha branca
enfeitada com renda que veste por baixo! Deve ser muito
antiga.
Mary se olhou, sempre gostara de sua roupa. No plano
espiritual, nas colônias, nos postos de socorro, ninguém
repara nesses detalhes, e ela nunca pensara em se vestir de
maneira diferente. Depois, se acostumara a ver na
Espiritualidade espíritos vestidos de muitas maneiras.
Como Mary ficou quieta e se observando, Lia disse em
tom mais gentil:
— Não se melindre, você deve ter sido enterrada com
essa roupa. Só falta o chapeuzinho para ficar com o traje
completo. Vou recomendar ao Zé Grilo para não rir de você.
Afinal, não tem culpa de estar vestida assim, ainda bem que
você tem sapatos. Eu fui enterrada sem eles e não consigo
calçar nenhum. Vê? Estou descalça!
Mary passou as mãos pelos seus cabelos que estavam
presos num coque e pensou que, quando encarnada,
gostava de usar chapéus. Depois, olhou para os seus pés,
estava calçada com seus sapatos cinza de salto médio.
Observou Lia e viu que ela estava descalça. Ficaram alguns
instantes em silêncio. Depois Lia falou:
— Você parece ser educada, espero que seja instruída e
que possamos conversar. Estar morta é muito chato: os
vivos não nos escutam. Eu só tenho falado com Zé Grilo, e
ele não tem uma conversa interessante.
Levantou-se do banquinho e começou a arrumar os
cabelos. Queria prendê-los, mas não conseguia.
— Quer que eu a ajude? Sei fazer isso - falou Mary,
prestativa.
— É mesmo? Não consigo prendê-los por não ter grampos.
Mary fingiu que tirava grampos dos seus cabelos, plasmou
alguns, limpou os cabelos dela e os prendeu. Lia olhou-se
num espelho10 que estava num dos móveis, gostando do
resultado:
— Obrigada! Venha comigo a casa. Eles vão almoçar e
quero ver a minha filha, que ficou de vir.
Mary a seguiu e elas saíram do paiol. Andaram alguns
metros e a socorrista viu um vulto, um desencarnado, que
passou correndo. Lia explicou:
— Não se assuste. É o Zé Grilo, ele é anão. Quando era
vivo, ele era anão, e continua sendo depois de morto.
— Lia - disse Mary - aprendi que estamos sempre vivos.
Quando estamos vivendo num corpo físico, estamos
encarnados; quando este morre, estamos desencarnados.
— Gostei! - exclamou Lia - Na carne, encarnados, e sem o
corpo de osso, pele etc., com o prefixo negativo 'des'
desencarnados. Essas pessoas que a ensinaram isso devem
ter razão, é coerente. Entendo as coisas com facilidade,
tenho instrução, pois estudei.
Chegaram à casa, que era toda rodeada por uma varanda.
— Que casa bonita! - exclamou Mary.
Lia sorriu apontando com a mão para uma porta e falou:
— Aproveite que está aberta e entre.
A casa era limpa, com bons móveis antigos e com muitos
enfeites. Ao ver Mary se admirar, Lia explicou:
— A decoração foi modificada após a minha morte. Está
diferente. A segunda esposa do meu marido, intrusa e
invasora, modificou-a muito, enchendo de vasos, flores e
enfeites. Venha por aqui.
Chegando à sala de refeições, encontraram dois casais
almoçando. Lia falou, indicando-os:
— Este é Willian, meu marido ou ex, porque o ingrato já se
casou de novo. Esta é Aidê, sua esposa. Esta moça linda é
Giovana, a Gina, minha filhinha, e este é Agenor, seu
esposo.
Mary observava tudo atentamente. Willian estava bem
vestido, elegante; aparentava ter quarenta anos. Aidê era
morena, alta, magra, tinha cabelos compridos bem cuidados
e devia ter trinta e cinco anos. Agenor, o genro, era moreno
e tinha cabelos e bigodes pretos; era um homem muito
bonito. A filha, Gina, era robusta e tinha cabelos castanhos
como os olhos. Lia continuou a falar:
— Gina casou-se muito nova, com dezessete anos, faz
dois que está casada. Na época fiquei receosa por ela ser
muito jovem, mas ainda bem que deu certo. Agenor é bem
mais velho e a trata muito bem, é discreto e conversa
pouco. Não estranhe ao ver minha filha triste, ela está
aborrecida com o pai por ele ter se casado novamente e
com tão pouco tempo de viuvez.
— Recebi uma carta de Jorge Luís! - exclamou Gina.
— Jorge Luís é meu filho mais velho. Mora em Londres -
explicou Lia - É filho do meu primeiro casamento. Willian
não gosta dele por ele ser homossexual. Gina é minha filha
e de Willian.
— Como ele está? - perguntou Willian.
— Jorge Luís está bem - respondeu Gina.
— Lia! Lia! Venha cá! Rápido! Corra!
As duas escutaram o anão chamar Lia do lado de fora da
casa. Saíram correndo e foram para o paiol. Lia perguntou:
— O que foi Zé Grilo? O que aconteceu?
O anão saiu de trás dos sacos de milho e observou Mary, e
esta a ele. Sua estatura era pequena: media cerca de
noventa e cinco centímetros. Era estranho, tinha os olhos
saltados e os lábios grossos e sorria mostrando ter poucos
dentes estava sujo e tinha as unhas grandes.
— Não se assuste, Mary Este é o Zé Grilo, um
desencarnado, como você costuma chamar, ou seja, um
vivo sem o corpo de carne. Ele mora na chácara ao lado e
vem muito me visitar. Zé, esta é Mary, uma desencarnada
perdida por aí que não tem onde ficar. Convidei-a para se
hospedar aqui por alguns dias. Não ria dela, não tem culpa
de estar vestida assim.
— Oi! - exclamou Zé Grilo, esforçando-se para não rir.
— Diga logo o que tem para me dizer! Por que me chamou
tão aflito? O que aconteceu? - perguntou Lia curiosa.
— É que eu tinha visto essa aí - respondeu ele, apontando
para Mary, e queria avisá-la que havia uma pessoa estranha
por aqui, mas pelo visto você também a viu e já sabe quem
é.
— Claro que eu a vi! Escutem... É o barulho do carro de
minha filha. Eles foram embora e eu não escutei as notícias
de Jorge Luís - reclamou Lia.
— Gina falou que ele estava bem - disse Mary.
— Foi só isso que eu soube. Faz tanto tempo que não o
vejo! Estou com muita saudade dele - suspirou Lia.
— Será que ele continua a gostar de homens? - Perguntou
Zé Grilo.
— Não ofenda meu filho! - gritou Lia, exaltada.
Zé Grilo assustou-se e tratou de se desculpar:
— Não quis ofender! Longe de eu xingá-lo! Eu o conheci
pequenino. Só queria saber. Desculpe-me.
— Está bem, desculpo, tenho estado muito nervosa. Jorge
Luís deve estar como sempre. Como disse, mora muito
longe, não tenho como saber dele.
— Como você se chama? - perguntou Mary a Zé Grilo.
— José Ari. Zé Grilo é o apelido que tenho desde garoto -
respondeu ele.
— Recebeu esse apelido porque era chato e gostava de
incomodar as pessoas - falou Lia.
— Você, Lia, fica aqui neste paiol? - indagou Mary.
— Fico. Zé Grilo não, ele mora na chácara ao lado. Durmo
ali! Apontou para alguns sacos. Não gosto de ficar dentro da
casa, eles fecham as portas e eu não tenho como sair, o
paiol está sempre aberto. Depois, fico com muita raiva ao
ver a intrusa no meu lar, toda dengosa com meu marido. É
melhor ficar aqui mesmo.
— Você morreu há muito tempo? - perguntou Zé Grilo à
Mary.
— Sim - respondeu ela.
— Fale desencarnou, Zé Grilo, é melhor do que dizer
morreu - disse Lia - É tão triste falar eu morri! Desencarnei
há onze meses e meu marido já se casou de novo.
— Eu não sei quanto tempo faz que 'bati as botas', que
morri - suspirou Zé Grilo.
— Já lhe falei muitas vezes que faz treze anos - disse Lia
alterada.
— Não seja metida a saber de tudo - respondeu Zé Grilo -
Você só sabe por que escutou muitas vezes Gina falar:
Mamãe morreu há onze meses e papai já se casou de novo!
— É verdade! Perturbei-me quando meu corpo morreu. Eu
me sentia e me sinto viva. Você não se sentiu confusa
quando aconteceu com você? - perguntou Lia à Mary, que
confirmou com a cabeça.
Lia continuou a falar:
— E você, Zé Grilo, está perturbado até hoje. Se, quando
morri, fazia doze anos que você tinha falecido, então, agora,
faz treze anos. Não se esqueça mais!
— Eta, mulher brava! - exclamou Zé Grilo.
Nesse momento um encarnado entrou no paiol devagar e,
olhando tudo atentamente, pegou uma ferramenta.
— Não me ofenda, Zé Grilo. Você está na minha casa!
Anão retardado! - gritou Lia, não se importando com a
entrada do homem.
— Você, dona Lia, é insuportável! Seu primeiro marido
deve ter morrido de desgosto. E não foi à toa que o segundo
a matou. Ninguém a suporta! - respondeu Zé Grilo, também
gritando.
Lia pegou um vaso de metal e o atirou em Zé Grilo, que
deu uma risada e saiu correndo. O homem que havia
entrado ouviu o barulho e teve a sensação de ter ouvido
uma gargalhada. Com a ferramenta nas mãos, ele saiu
correndo, falando depressa e repetindo:
— Ave, Maria! Deus seja louvado! Cruz credo! Fora,
satanás!
Mary compreendeu que Lia não pegara o vaso material,
não conseguiria pegá-lo e atirá-lo. Num instinto, no
momento da ira, ela imaginou fazê-lo para atingir Zé Grilo.
Pensou que o pegara, o jogara e plasmou o barulho, a
situação. O fato aconteceu na imaginação dela. Isso não é
ouvido pelos que estão na carne a menos que tenham
sensibilidade, isto é, mediunidade. Espíritos que estão no
plano físico podem fazer barulhos que outros espíritos
escutam e onde fluidos físicos de pessoas no envoltório
carnal que tenham mediunidade mais acentuada podem ser
usados.
Desencarnados que sabem manipular isso podem produzir
barulhos iguais aos que são ouvidos por todos os
encarnados. E isso também pode ser feito por espíritos que
não sabem fazê-lo, mas que usam sua vontade. Lugares
assim são quase sempre denominados assombrados.
Lia estava só um pouco perturbada, embora tivesse onze
meses de desencarnada. Esse período de perturbação é
relativo e depende de muitos fatores. Os que não aceitam a
mudança de plano perturbam-se muito e se iludem,
achando que estão encarnados.
Lia aceitara o fato, e isso a fizera ter consciência de que
seu corpo físico morrera e de que continuava viva, embora
não soubesse viver desse modo e não entendesse ao certo
o que estava acontecendo.
Lia riu e depois mudou de humor: ficou triste e sentou-se
em alguns sacos. Enxugou algumas lágrimas, olhou para
Mary que a observava quieta e falou:
— Sente-se aqui, colega de desencarnação, e não se
assuste. Essa pessoa que entrou aqui é o Adelino, um
empregado da chácara que vê e escuta a gente. Essas
pessoas são chamadas de algo parecido com médicos.
— São médiuns - corrigiu Mary.
— É isso - disse Lia - Esse empregado às vezes escuta os
barulhos que fazemos. Já espalhou por aí que este paiol é
assombrado, mas poucos acreditam nele, pois Adelino
costuma mentir. É assim: quem mente não é acreditado
quando fala a verdade. O anão é fofoqueiro, foi nosso
vizinho. Não gostávamos dele, mas agora, como não tenho
com quem falar, aceito suas visitas. Porém, com você por
perto, não precisarei mais dele.
— Lia, é verdade o que o Zé Grilo falou? - indagou Mary.
— Sobre meus maridos? Meu primeiro esposo era uma
pessoa muito boa, casamos jovens e apaixonados, tivemos
dois filhos e ele morreu. Ficou doente e sofreu muito. Fiquei
viúva jovem. Era bonita e rica, então conheci Willian,
apaixonei-me, casei e tivemos Giovana, a meiga Gina.
Éramos muito mais ricos, meu primeiro esposo sabia lidar
com as finanças. Willian nunca fez nada, deixou tudo para
que os outros administrassem e com o tempo a nossa
fortuna diminuiu. Mas ainda somos ricos, ou seja, eles são.
Quanto à outra maldade que Zé Grilo disse, pode ser
verdade. Acho que fui assassinada.
— Tem certeza ou acha? - perguntou Mary.
— Queria não ter sido - respondeu Lia, triste, mas fui, e
deve ter sido meu marido o assassino. Foi ele! Desconfiava
que ele tivesse uma amante. Essa Aidê deve tê-lo
incentivado a me matar para casar-se com ele e ser a dona
de tudo.
— A herança, com sua desencarnação, não foi repartida? -
indagou Mary, querendo saber mais sobre o assunto.
— Foi. Quando meu primeiro marido morreu, fiquei com
quase tudo, a terça parte foi repartida entre meus dois
filhos. Quando Edson, meu segundo filho, faleceu, a parte
dele ficou para mim. Com a minha desencarnação, tudo o
que estava em meu nome foi dividido entre Willian e minha
filha, porque Jorge Luís doou o que tinha direito para Gina.
Willian havia passado alguns imóveis para seu nome com o
meu consentimento. Não foram muitos, mas mesmo assim
ele ficou um viúvo rico. Agora chega de falar. Vou descansar
um pouco. Deite-se também por aí e sinta-se à vontade...
Lia deitou-se e Mary transmitiu fluidos benéficos a ela,
que adormeceu tranquila.
Mary ficou observando por alguns minutos o local. Depois
orou pedindo a Deus que a iluminasse e a ajudasse a ser
útil. Resolveu então visitar o posto de socorro da região
como Carlos Augusto havia recomendado.
Concentrou-se, sintonizou-se, desejando ir até lá, e volitou
devagar, atraída para a casa. Isso pode ocorrer conosco,
desencarnados: concentramo-nos e somos levados para
onde desejamos ir. É à força da atração, do pensamento.
Quando em estudo na Espiritualidade aprendemos a viver
como desencarnados, recebemos instruções sobre como
localizar, ou ir sem conhecer, postos de socorro, colônias e
como sentir as vibrações desses locais.
Mary logo encontrou o posto de socorro. Ficava próximo à
cidade, cercado por muros altos. Achou o portão, bateu e
mentalizou que queria conhecer o lugar. A porta foi aberta e
uma servidora a atendeu:
— Saudações em Cristo! Bem-vinda! Entre e converse
conosco.
— Sou Mary. Atualmente faço estágio numa colônia de
estudos. Estou no plano físico, aqui na região, para resolver
um problema.
— Venha. Vou levá-la até o nosso orientador.
Mary achou o posto de socorro muito bonito, simples e
acolhedor. Seguiu sua cicerone, que a levou a uma sala
particular.
— Este é Orestes, nosso orientador!
Após cumprimentos, que são sempre muito agradáveis
Mary ficou quieta, constrangeu-se. Não tinha o que falar
sobre o que estava fazendo ali. O orientador a
compreendeu:
— Mary conte conosco se precisar de alguma coisa.
— Obrigada! Acho mesmo que irei precisar. Estou aqui
perto, numa chácara, e não sei bem o que terei de fazer,
porém estou disposta a fazê-lo a contento.
— E com certeza o fará! - exclamou Orestes, sorrindo.
— Está na hora de nossa oração - disse à moça que a
recepcionara. Não quer vir ao jardim e participar?
— Quero! Obrigada!
Mary despediu-se, agradecendo a Orestes e
acompanhando a moça, que lhe explicou:
— Todas as tardes neste horário, fazemos uma oração
conjunta, e trabalhadores e internos que se encontram em
melhores condições vêm ao jardim. As preces feitas são
ouvidas por todos do posto e até pelos que não conseguem
escutar; os que se agitam no leito acalmam-se com o poder
benéfico da oração. Orestes tem incentivado todos a orar, a
tornar-se receptivos para receber as graças pedidas.
Entendemos que é pela oração sincera que nos ligamos às
forças benéficas e às energias restauradoras.
Mary viu um grupo de doze pessoas rezando. Não precisou
indagar, sua cicerone esclareceu:
— Aqui todos têm liberdade para rezar como quiser.
Somos cristãos, estudamos os Evangelhos e somos
esclarecidos para que sigamos os ensinamentos do Mestre
Jesus. Apenas algumas orações são transmitidas, e são
normalmente feitas por três pessoas: um trabalhador e dois
internos. Essas orações devem ser breves, normalmente de
três minutos. Antes é lido por Aparecida, uma trabalhadora
que tem a voz muito bonita e muito conhecimento, um
texto do livro “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, de Allan
Kardec, sempre seguido de uma explicação. Mas nada
impede que grupos religiosos se reúnam para fazer suas
preces antes ou depois do horário marcado. Você está
vendo ali abrigados que, quando encarnados, oravam o
terço. Aqui eles oram também. Aqueles três do outro lado
farão depois suas orações. Eles pertenciam a outras
religiões.
— Aqui não se discute religião, como às vezes se faz no
plano físico? - quis saber Mary.
— Não é permitido. Se isso acontece, um trabalhador
interfere, chamando a atenção dos envolvidos com firmeza.
— São muitos os religiosos que estranham a mudança de
plano? - indagou Mary.
— A maioria estranha, revolta-se, não quer aceitar por
encontrar a Espiritualidade diferente do que pensavam e
imaginavam. Os únicos que não estranham e não discutem,
aceitando agradecidos o socorro que recebem, são os que
foram esclarecidos quando encarnados, são os que viveram
aprendendo a amar todos como irmãos.
Aparecida, uma senhora de aspecto agradável,
acomodou-se no centro do jardim, abriu o Evangelho e leu
um trecho de Mateus:11
— “Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e
as observa será semelhante ao homem sábio, que edificou a
sua casa sobre rocha; e caiu a chuva, e transbordaram os
rios, e sopraram os ventos, e investiram contra aquela casa,
e ela não caiu, porque estava fundada sobre a rocha. E todo
o que ouve estas minhas palavras e não as pratica será
semelhante ao homem louco, que edificou a sua casa sobre
areia; e caiu a chuva, e sopraram os ventos, e investiram
contra aquela casa, e ela caiu, e foi grande a sua ruína.”
Aparecida fechou o livro e falou com emoção:
— Prudentes e imprudentes ouvem as palavras de Jesus
que foram escritas nos Evangelhos. Esse texto maravilhoso,
que encerra o “Sermão da Montanha”, nos mostra que
muitos sabem o que Jesus ensinou e que a diferença está na
realização. Ter boas ideias, dizer que é lindo, fazer planos e
não realizá-los; são como os que fizeram sua casa sobre a
areia da ilusão, são os muitos que dizem: irei fazer e não
fazem. É prazeroso ouvir os ensinamentos do Mestre
Nazareno, mas só isso não resolve. Quando tudo está bem
para nós, a construção na areia parece firme; porém,
quando nos vemos em dificuldades, com problemas
dolorosos, ela desaba, não resiste ao sofrimento, à
tempestade. Ideias, ideais, planos são necessários, mas é
preciso que se concretizem que se tornem obras. Só na
prática dos ensinamentos de Jesus, com boas ações, com
amor verdadeiro, é que construímos nossa casa na rocha,
onde as adversidades não a derrubam. A casa que não cai é
a construção que fazemos em nós e que nos acompanha na
Espiritualidade.
Após a breve explanação, um trabalhador fez sua prece:
— Senhor, que tuas bênçãos caiam sobre nós, iluminando
nossos caminhos, para que possamos seguir teu exemplo
Divino de trabalho. Porque Jesus disse: meu Pai trabalha O
Mestre Nazareno também e nós devemos seguir seus
exemplos e ser úteis. Obrigado pelas oportunidades que nos
dá de reparar nossos erros e aprender servindo. Assim seja!
Depois foi até o centro uma abrigada, uma senhora que
Mary vira no grupo que estava orando. Ela fez sua oração:
— Maria, mãe de Jesus, rogai por nós, que tanto pedimos
para ser auxiliados na hora da nossa morte. Pai ajudai-nos a
aceitar essa mudança diferente do que pensávamos.
Suaviza essa saudade tão dolorosa que sentimos dos nossos
familiares. Sabemos que eles sofrem....
Ela chorou emocionada. Aparecida a acalentou e as duas
terminaram com uma Ave-Maria, mudando a segunda parte
para:
— Maria, mãe do nosso Mestre Amado Jesus, esteja
sempre nos amparando.12 A terceira oração foi feita por
outro abrigado, um rapaz que aparentava estar bem. Ele fez
sua prece com tranquilidade:
— Obrigado, Senhor, por tudo o que nos dá. Agradeço a
estes irmãos que trabalham para o nosso bem-estar. Que
bons fluidos caiam nesta casa, dando-nos consolo e alegria.
Ajude-nos a compreender nossa situação de desencarnados
e a aceitar a nova maneira de viver. Que possamos passar
de servidos a servidores. Ensine-nos a amar e a estender
esse carinho ao próximo e a esta casa que nos abriga.
Ajude-nos a ser gratos e a suportar a saudade, e que
possamos compreender que em momento algum podemos
sair daqui sem permissão. Nossa forma de viver mudou,
mas continuamos vivos. Graças a Deus!
Mary emocionou-se. A transmissão findou e alguns grupos
ficaram pelo jardim, orando. Ela despediu-se da moça que a
recepcionara com um abraço e volitou de volta à chácara.
Entrou no paiol, Lia continuava adormecida. Minutos
depois, entrou Adelino, o empregado médium,
acompanhado de uma outra moça:
— Eva, eu escutei um barulho como se um objeto de
metal tivesse sido jogado e ouvi uma gargalhada - disse ele.
— Adelino - falou a moça - você está falando isso só para
me deixar com medo. Coloque aí a ferramenta e pegue a
que precisa. Tenho muito que fazer. Vou passar roupa e
dona Aidê é exigente. Não posso ficar vindo aqui com você!
Deixe de ser medroso!
— Medroso! Não é você que vê e escuta os defuntos! -
exclamou Adelino.
— Por que não vai ao centro espírita e pede ajuda a eles? -
perguntou a moça.
— Eu já fui lá. Eles me falaram que eu tenho de frequentar
a Casa e trabalhar, ajudando essas almas penadas. Mas eu
não quero!
— Então não reclama! - exclamou a moça.
Os dois saíram. Lia levantou-se, reclamando:
— Nem aqui no paiol eu posso dormir sossegada! Esses
dois me acordaram. Essa moça é Eva, uma das
empregadas. Temos uma outra, a Isaura, que faz muito
tempo que está conosco. Já que acordei, vou lhe mostrar o
local. Venha!
Mary a seguiu. Entraram na casa e Lia foi lhe mostrando
tudo:
— Aqui é a cozinha! A sala de estar, a de jantar... Ali é o
escritório. Tem muitos livros!
Mary olhou para a estante, havia realmente muitos livros
e diversos seus, que escrevera quando encarnada. Lia os
apontou:
— Willian gosta muito de ler. Veja estes! Conhece? Ensina
como assassinar sem ser descoberto.
— Mas no final os criminosos são castigados - falou Mary.
— Pode ser, mas a infeliz que escreveu isso, deu ideias ao
meu marido de como me matar. Venha! Vamos ao andar de
cima. Lá estão os quartos.
Lia a puxou. Subiram as escadas e ela foi lhe mostrando
tudo:
— Aqui era nosso quarto. Willian preferiu ficar agora no
que era de Jorge Luís, decorou-o todo. É lá o quarto do
casal, está trancado. Pena que as portas estão fechadas. Eu
os mostrarei a você numa outra hora, quando Eva os estiver
limpando. Só que temos de ficar espertas para não ficar
presas neles, pois ela os limpa duas vezes por semana.
Desceram as escadas devagar e Lia voltou a falar:
— Estou gostando de você, sabe escutar. Achou a casa
interessante? Não é própria para um assassinato?
— Lia - disse Mary - você deduziu que foi assassinada e
acha que foi seu marido. Como foi isso? O que aconteceu
para seu corpo morrer? Alguém está preso pelo crime?.
— Vou lhe contar tudo. Venha! - falou Lia, convidando-a a
sair da casa.
 
 
 
9 Tornar-se visível: sublimamos ou desequilibramos o
delicado agente das nossas manifestações, o perispírito,
conforme o tipo de pensamento que emitimos. Quanto mais
nos elevamos, no sacrifício pessoal da renovação moral e no
trabalho construtivo, maior a sutileza do nosso perispírito.
Os espíritos de ordem elevada apresentam um corpo
perispiritual mais sutil. Para se fazerem visíveis, eles se
utilizam de fluidos densos, extraídos do ambiente terrestre,
modificando, provisoriamente, a condição do seu perispírito
e dando a ele a forma que melhor lhes convém. (N.A.E.)
10 Os desencarnados vêem todos os objetos materiais

como os encarnados, porém sua imagem não se reflete no


espelho físico. Ao plasmar um objeto e sendo este um
espelho, ele reflete a imagem do desencarnado. Lia
plasmou sem saber, por sua vontade, junto ao espelho
material, um espelho em que ela se via. (N.A.E.)
11 Mateus, 7: 24-27. (N.A.E.)
12 Como se trata de um posto de socorro que está

próximo do plano material, as pessoas ainda têm muitos


reflexos desse plano, inclusive o hábito de orar com
mensagens decoradas. E só aos poucos as pessoas vão
modificando isso, com estudo e entendimento. (N.A.E.)
OS COGUMELOS
Lia dirigiu-se ao pomar e lhe mostrou um galpão pequeno,
uma construção que se encontrava quase toda destruída
embaixo de algumas árvores grandes, mangueiras e
jabuticabeiras. A antiga construção devia ter dez metros de
comprimento por quatro de largura.
— Aqui era onde eu fazia meu cultivo de cogumelos. Com
a minha morte, Gina quebrou e destruiu tudo.
— Por quê? - perguntou Mary.
— Ela não quer mais esse tipo de cultivo aqui na chácara.
Acabou com os meus cogumelos. Vamos ao paiol, lá
contarei tudo o que aconteceu.
Depois que se acomodaram, sentadas em alguns sacos
vazios, Lia começou a falar:
— Estava casada com Willian, Gina já era uma menina,
quando tomei pela primeira vez uma sopa de cogumelos.
Gostei demais, resolvi cultivá-los aqui na chácara, assim,
não precisaria comprá-los. Eram muito caros. Paguei para
um japonês vir aqui me ensinar. Li bastante sobre o assunto.
Willian era contra, dizia que era arriscado ter algum
venenoso. Mas eu sabia distingui-los e me gabava disso.
Aprendi a fazer várias sopas, e duas vezes por semana meu
jantar era sopa de cogumelos. Willian enjoou dificilmente
ele as provava. Adelino, que às vezes fazia as refeições
aqui, também não gostava, dizia ter gosto de mofo. Isaura
as fazia sem experimentar e Eva dizia também não tomá-las
por ter enjoado. Gina gostava, quando vinha jantar conosco,
ela tomava a sopa comigo. Meu genro não apreciava. Então,
normalmente só eu tomava a sopa. Era para mim uma
distração cuidar deles, colhê-los, lavá-los e então levá-los
para Isaura preparar a sopa. E foi depois de ter tomado uma
sopa de cogumelos que morri, ou seja, que meu corpo de
carne e osso morreu.
— Seu corpo físico morreu por isso? Tem certeza? Poderia
ter tido um enfarte - falou Mary.
— Poderia, mas não tive. Soube disso ao escutar dias
atrás uma conversa entre Isaura e Gina. Como lhe disse,
Isaura está conosco há muito tempo. Ela me ajudou a criar
meus filhos, gosta deles, e eles dela. As duas falavam que
fizeram à autópsia e que meu falecimento se deu por
envenenamento por cogumelos. Por isso Gina destruiu meu
cultivo. Todos pensaram que eu não soube distinguir algum
cogumelo venenoso. Só que tenho certeza de que não havia
nenhum tóxico. Sabia distingui-los, tinha conhecimentos
sobre eles.
— Não pode ter se enganado? - perguntou Mary.
— Infelizmente, não! Alguém colocou na minha sopa o
veneno. Fui assassinada! Não é tudo simples? Criativo foi
Willian, e ele tinha motivos para me matar! Era mais velha
do que ele, estava gorda e feia. E talvez Zé Grilo tenha
razão: era ciumenta, ranzinza, mandona. Willian já não me
queria mais. Com a minha morte, ele ficaria livre, rico e
poderia se casar com sua amante. Gostava tanto desse
saboroso prato! E foi meu último jantar! - suspirou Lia,
tristemente.
— Algum encarnado desconfia disso? - indagou Mary.
— Não, ninguém. Só Gina sentiu minha morte, como
também o fato de o pai ter se casado tão depressa. Ela
acredita como todos que peguei um cogumelo venenoso por
engano. Você está com dó de mim?
— Se quiser, eu a ajudo a desvendar esse mistério - falou
Mary, sem responder o que Lia lhe perguntara.
— Se descobrir o que aconteceu e o culpado for punido,
terei paz - suspirou Lia.
— Você quer se vingar? - perguntou Mary.
— Não. Eu só quero que, como nos livros, o assassino seja
preso - respondeu Lia.
— Lia, há outras formas de os desencarnados viverem, em
que podem ser felizes morando em locais bonitos -
expressou Mary, mudando de assunto e tentando orientá-la.
— Deve haver mesmo. Não vejo por aqui Geraldino, meu
primeiro esposo, nem Edson, meu filho que desencarnou.
Mas, eu não saio daqui sem descobrir o que aconteceu. Se
você quiser me ajudar, aceito, só não sei como o fará.
Desculpe-me, não quero ofendê-la, mas você não parece ser
esperta para isso. E uma senhora um tanto bobinha, digo,
educada demais.
Mary sorriu, achando graça. Lia realmente pensava isso
dela. Mary então disse:
— Vamos investigar! Voltaremos a casa e escutaremos as
conversas. Poderemos descobrir alguma coisa com os
comentários.
— Está bem! Vamos!
Encontraram o casal na sala de estar. Tinham feito à sesta
no aposento deles e estavam esperando pelo chá que à
empregada fora providenciar.
— É por isso que não gosto de ficar por aqui, para não ver
o comodismo deles nem o jeito dengoso como Willian trata
esta mulher - falou Lia, com desprezo.
— Lia, vamos ficar quietas e escutá-los.
— Querida - disse Willian para Aidê - você melhorou dos
enjoos?
— Melhorei, obrigada - respondeu Aidê. - Sua filha não
gostou da notícia de que vai ganhar um irmãozinho. Ela até
se engasgou!
— Você tem razão, Mary - falou Lia, baixinho.
— Podemos saber muito escutando, embora seja um
hábito feio. Mas vou esquecer a minha esmerada educação!
Então esta mulherzinha está grávida! Foi por isso que
convidaram minha filha e meu genro para almoçar, para
lhes dar a notícia. Gina até se engasgou! Ela é como eu:
engasga-se13 sempre quando recebe uma notícia
inesperada e importante. Vamos ficar em silêncio para
escutá-los.
Mary sorriu, pois era Lia quem falava. Ficaram ouvindo.
— Levaram dois sustos, ou melhor, três - disse Aidê. O
primeiro quando você voltou da viagem casado. O segundo
quando, ao chegar, disse aos dois que eu era rica, o terceiro
foi esse, que um nenê está a caminho. Achei engraçado o
espanto do Agenor quando soube que eu não me casei por
interesse. Seu genro é muito quieto, não é? Acho-o
estranho.
— É uma boa pessoa! - exclamou Willian. - É mais velho
que Gina, trata-a muito bem e faz todas as suas vontades. É
quieto mesmo, não se envolve com os nossos problemas.
Lia gostava dele.
Eva, a empregada, entrou com a bandeja, levando o chá e
a correspondência.
— Senhor Willian, Adelino trouxe as cartas. Querem mais
alguma coisa?
— Não, obrigada! - respondeu Aidê.
Eva saiu e Aidê falou baixinho para o marido:
— Seus empregados, meu querido, não têm modos
educados. Necessito orientá-los ou trocá-los.
Cada um abriu a sua correspondência. Lia virou-se para
Mary e indignada também falou baixinho:
— Petulante! Trocar meus empregados! Isaura nos serve
desde que me casei pela primeira vez e Eva veio para cá
meninota.
— O dinheiro está depositado em minha conta, querido -
disse Aidê.
As duas se inclinaram para ver o valor. Lia abriu a boca.
Mary pensou que ela fosse se engasgar. Lia então suspirou e
exclamou:
— Ela é rica mesmo!
— Você está sentindo falta da escola, querida? -perguntou
Willian para Aidê.
— Não - respondeu ela. - Deixei Márcia tomando conta de
tudo, ela é uma boa funcionária, responsável e de
confiança. Eu precisava descansar, depois, estou grávida,
realizando um sonho. Queria tanto ter um filho! Agora só
quero curtir a gravidez e depois o nenê. No futuro, vou abrir
uma escola nesta cidade e você, meu querido, irá me ajudar
com as finanças.
— Será um prazer, meu amor! - exclamou Willian.
— Veja meu bem - disse Aidê - um folheto de propaganda
daquele restaurante à beira do lago, onde nos conhecemos.
Como será que descobriram meu novo endereço? E está
com meu nome de casada!
— Deve ter sido alguma de suas amigas que deu a eles
nosso endereço - respondeu Willian. - Como aquele
restaurante é encantador! Nunca vou esquecer aquela noite
em que a conheci. Você estava linda com aquele vestido
preto. Quero minha querida, festejar lá quando fizer um ano
que nos conhecemos.
— Não aconteceu tudo depressa demais? Não faz nem
mesmo um ano que nos conhecemos e já estamos casados
e eu esperando um filho!
— Não acho que foi rápido - respondeu Willian. - Amei
você logo que a vi, estava triste com a viuvez. Viajei por
insistência de Gina, para me distrair. Encontrei você,
namoramos. Quando soube que você estava grávida, fiquei
muito feliz e quis me casar logo. Obrigado, querida, por ter
me devolvido a tranquilidade e a felicidade!
Willian beijou a mão dela, sorriram felizes.
Lia fez um sinal para Mary, para se afastarem. Foram à
varanda e a ex-proprietária da casa falou muito triste:
— Você viu como ele a trata? Com todo dengo e carinho!
Comigo ele não era assim!
— Nem no começo do casamento? - perguntou Mary.
— É... No começo ele era assim! - expressou-se Lia,
suspirando - Mary, a Aidê corre perigo. Não gosto dela, é
uma assanhada que se casou com um recém-viúvo. Só que
Willian vai matá-la! Os acontecimentos estão mudando. Não
era ela a amante dele, porque eles se conheceram depois
que eu morri, ou seja, desencarnei. Então quem era sua
amante? Aidê não se casou com ele por dinheiro. Pelo que
vimos ela é mais rica do que Willian. Foi ele quem se casou
por interesse.
— Pode ser que Willian goste dela de verdade - falou Mary.
— Não seja uma velha boba! Desculpe-me, Mary! Você é a
única que me escuta. Não quero ofendê-la! Vamos
raciocinar: se Willian tinha uma amante, será que ele ainda
a tem? Não gostava dela? Deve ter se casado com Aidê por
interesse. E, se foi isso, irá matá-la, como fez comigo, para
herdar seus bens. Se ele foi fingido comigo, pode também
estar sendo com ela.
— Lia, quanto tempo você ficou casada com Willian? -
perguntou Mary.
— Vinte anos - respondeu Lia.
— Não acha que ficaram juntos tempo demais?
— Você quer dizer que ele esperou muito para me matar?
Pode ser, mas foi só quando ele se apaixonou por outra que
quis me descartar, e para herdar minha fortuna me
assassinou. Quando ele encontrou a coitada da Aidê, que
estava louca para se casar e ter filhos resolveu dar o
segundo golpe. Ele é um criminoso!
— Você mudou seu conceito sobre Aidê muito
rapidamente - comentou Mary.
— Claro, soube agora de fatos que desconhecia que ela
não era a amante dele e que é rica. Arrepio-me só de
pensar que logo Aidê estará entre nós: Desencarnada, e por
assassinato - falou Lia.
— Você tem certeza mesmo de que não se enganou com
os cogumelos? Será que não foi uma distração sua e não
houve crime nenhum? - perguntou Mary falando devagar,
com receio de deixar Lia nervosa.
— Você não entende nada de assassinatos! - respondeu
Lia - Deve ter sido quando encarnada uma dessas mulheres
que nunca ouviu falar de crimes. Não deve entender desse
assunto. Vou responder a você pela última vez: não me
enganei! Colocaram em minha sopa um cogumelo
venenoso. Fui assassinada! E pelo meu marido! Entendeu?
— Sim, entendi - respondeu Mary - É que Willian não me
parece um criminoso.
— E assassino tem cara diferente? Que bom seria se todos
os criminosos fossem diferentes das outras pessoas, se
tivessem, para distingui-los, uma marca ou até mesmo um
escrito na testa dizendo o que fizeram de errado. Se assim
fosse, não precisaria ter investigadores, e o trabalho da
polícia seria mais fácil. Estou com dó da minha filha! Vai ter
um irmão com idade de ser mãe. Também estou com dó
dessa criança. Terá como minha Gina, um pai assassino da
própria mãe. Que vou fazer? Que vamos fazer?
— Vamos escutar mais. Devemos ir até a cozinha e ouvir
os empregados - respondeu Mary -
É isso! Empregados escutam muito e falam mais ainda.
Vamos à cozinha!
As duas empregadas estavam na lavanderia cuidando das
roupas.
— Esta é Isaura - disse Lia a Mary - Logo que me casei
com Geraldino, ela veio trabalhar conosco, é honesta,
trabalhadeira e gosta muito de todos nós. Eva, que você já
conhece, ficou órfã aos doze anos e não tinha para onde ir.
Isaura a trouxe para cá e ficou com ela no seu quarto. Fiquei
com pena dela e coloquei-a na escola, pois era analfabeta,
levei-a ao médico, ao dentista, comprei roupas e ela passou
a ajudar nos trabalhos da casa. É uma mulata bonita, não é?
Mary fez um sinal para Lia se calar e escutar.
— Eva, cuidado com o que faz! - disse Isaura.
— Isaura, você sempre foi boa para mim, mas não enche!
Já lhe disse e afirmo que não estou mais interessada no
patrão.
Tenho saído com o Nelson, o mecânico!
— O quê? - disse Lia, que se assustou e se engasgou.
Mary a ajudou lhe dando tapinhas nas costas e pediu para
ficar em silêncio:
— Lia, vamos ouvir!
— Espero que você esteja falando a verdade, Eva! -
expressou-se Isaura, contrariada - Senti muito quando
soube que você era amante do Sr. Willian, e não me venha
dizer que foi depois que dona Lia faleceu. Vocês já tinham
um caso antes.
— Isaura, não seja intrometida! Gostei do Sr. Willian, já
não gosto mais, ele me decepcionou. Fui amante dele,
tivemos alguns encontros, e foi só! - disse Eva, ficando triste
por alguns momentos.
— Você sonhou em se casar com ele! Ser a dona desta
casa! Confessa! - falou Isaura, enérgica.
— Está bem, é verdade! - exclamou Eva, suspirando. -
Quando ele voltou da viagem casado, sofri, até chorei. Mas
sou muito nova, bonita, e Nelson está interessado em mim,
quer até se casar comigo. Ele tem a oficina mecânica e uma
casa na cidade. Vou me casar com ele e me dar bem, não
serei mais empregada.
— Eva, por favor, não faça nada errado! Eu lhe peço! -
expressou-se Isaura, em tom carinhoso.
— Chega de me amolar! O que pensa que sou? Uma
assassina? Está achando que matei dona Lia? Não entendo
nada de cogumelos nem gosto deles. É um absurdo você
achar que quero matar dona Aidê. Pare Isaura, de pensar
isso! Por favor!
— Eva, na noite em que dona Lia morreu, eu tomei um
pouquinho de sopa e não aconteceu nada comigo.
— Tomou pouco! Dona Lia sempre tomava muito! Eu não
fiz nada! Não matei ninguém! - exclamou Eva, nervosa.
A bonita mulata estava suando, ela passou a mão na testa
e ajeitou os cabelos, estava muito nervosa. Isaura a olhou
com carinho. Gostava dela e estava realmente preocupada.
— Não falei a ninguém que tomei a sopa naquela noite.
Pensei como todos que dona Lia morrera do coração.
Quando veio o resultado da autópsia, levei um susto, eu
também poderia ter morrido.
— Já falamos sobre isso - disse Eva. - Se a sopa foi
envenenada depois que estava na sala de jantar, não pode
ter sido eu. Eu estava com você na cozinha.
— E o carro da dona Aidê? - perguntou Isaura.
— Não entendo de mecânica! - respondeu Eva.
— Mas está saindo com um mecânico! - disse Isaura,
suspirando.
— Só pode ter sido um acidente! Por favor, Isaura, não
pense isso de mim. Gosto de você! Meu erro foi ter dado
atenção ao Sr. Willian, não ter resistido à sua sedução e ter
sido amante dele. Chega de conversa. Vou passar roupa!
Isaura foi para a cozinha. Lia estava com os olhos muito
abertos, bem como com a boca. De repente deu alguns
gritos e pegou Eva pelo pescoço.
— Sua ordinária! Ingrata! Traiu-me depois de tudo o que
lhe fiz!
Eva não ouviu nem a viu, sentiu um ligeiro mal-estar e
passou as mãos pelo pescoço14.
Mary segurou Lia e falou com firmeza:
— Calma, amiga! Calma! Venha comigo!
Lia se deixou levar e chorou de soluçar.
Foram para o paiol. Mary a fez sentar-se nos sacos vazios
e sentou-se junto. Colocou a cabeça dela no seu colo e
passou as mãos com carinho nos seus cabelos. Ela chorou
por alguns minutos em desespero, depois foi se acalmando
e falou em desabafo:
— Eva me traiu! Sinto mais por isso! Sou inteligente e
sabia que Willian, mais novo do que eu, bonito e charmoso,
tinha outras mulheres. Ultimamente sentia que ele estava
com alguém especial. Nunca poderia imaginar que fosse
Eva. Que tristeza! Que decepção! Viu no que deu investigar,
escutar conversas alheias? - falou Lia, suspirando
tristemente.
— Mas agora sabe de mais coisas! - expressou-se Mary,
sem saber o que falar.
— Você tem razão. Já sei de tudo! Willian e Eva eram
amantes e resolveram me matar. Ele quis ficar livre, viúvo,
para casar-se com ela, que é novinha bonita e magra.
Quando morri, eles resolveram esperar um pouco para
assumir o romance. Aí ele viajou e teve oportunidade de dar
outro golpe: conheceu Aidê e se casou. Ele me matou e a
matará também. Ficará mais rico e se casará com Eva. Que
moça ingrata! Sempre a tratei bem, permiti que viesse para
cá quando não tinha para onde ir! Como a ingratidão dói!
— Será que Eva a matou ou ajudou a matá-la? - perguntou
Mary.
— Até você começa a achar que fui realmente
assassinada. Não sei! Não creio que ela fez sozinha. Embora
tenha estudado, ou melhor, frequentado a escola, ela tem
pouca cultura e não é inteligente para ter planejado tudo
isso, ou seja, ter elaborado meu assassinato de forma a
parecer um acidente, um engano terrível de minha parte.
Depois, se ela estava na cozinha, só sobrou uma pessoa na
sala: Willian. Ele é instruído, esperto e sempre leu aqueles
livros de mistério.
Mary entristeceu-se, esforçou-se para tranquilizar-se e,
quando conseguiu, orou. E, como sempre quando oramos
recebemos energias benéficas, ela as sentiu e as transmitiu
para Lia, que adormeceu.
Devagar, Mary acomodou a cabeça dela e saiu. Foi para o
jardim e rogou ajuda a Carlos Augusto. Não tardou muito e
ele foi até ela, beijou-lhe as mãos e indagou com carinho:
— Mary, por que está insegura?
Ela lhe contou tudo, falando depressa e finalizando:
— Não é mais fácil saber logo se houve assassinato e
quem o praticou?
— Você sabe fazer isso? Não! Então continue aqui com Lia
e a ajude, foi para isso que veio. Você, minha cara Mary
tentará viver um fato que por muito tempo só imaginou.
— Fui culpada? Meu Deus! Nunca quis isso! - exclamou
Mary.
— Não foi culpada! Não é! E não se sinta assim! - disse
Carlos Augusto, com carinho. - Pode acontecer de alguém
fazer algo com boa intenção e outros o usarem para o mal.
Por exemplo: a faca foi feita para facilitar a tarefa do ser
humano, e esse instrumento foi e é muitas vezes utilizado
para matar e ferir. Medicamentos que pessoas passaram
anos estudando para diminuir dores são usados para outros
fins. Há abusos quando deveria haver usos. Errados são os
que os utilizam para o mal, e não quem os fez. Você não
errou Mary, e não pode ter responsabilidades se alguém
utilizou erroneamente suas ideias. Mas, se não ajudar a
esclarecer esse fato, nunca saberá se o criminoso usou de
suas ideias, de seus livros. Tenha calma! Confio em você,
minha cara detetive.
— Será que nesta casa acontecerá outro crime? -
perguntou ela.
— Como interferir no livre-arbítrio de alguém? Como
impedir nosso próximo de fazer algo errado? Como seria
bom se pudéssemos evitar que as pessoas cometessem
maldades, como assassinatos. Você poderá auxiliar Lia, e,
se puder ajudar mais alguém, será ótimo.
— Lia não sabe quem sou eu. Devo falar? - indagou Mary.
— Não, é melhor não falar que foi você quem escreveu os
tais livros. Seja aqui uma socorrista, uma pessoa que presta
auxílio.
— E se eu não souber ajudar? - perguntou ela.
— Saberá, sim! - falou Carlos Augusto, com convicção -
Mas, se tiver dúvidas, ore, Mary. Pela oração recebemos
orientações dos bons espíritos, inspirações do alto, divinas.
Ame todos os envolvidos, quando amamos, sentimos as
dificuldades dos outros como se fossem as nossas e
ajudamos com mais precisão. Poderíamos levar Lia para um
socorro. Mas ela ficaria? Já esteve em um abrigo. Enquanto
ela não souber de tudo, não sossegará nem deixará de
maldizer a escritora. E você, agora também com dúvidas,
não ficará sem receber os clamores dela e se sentirá mais
incomodada.
— Você tem razão, Carlos Augusto. Vou tentar desvendar
esse mistério, ajudar os envolvidos e confiar mais...
— E pode contar comigo, tentarei vir todas as vezes que
me chamar. Devo ir. Até logo!
Carlos Augusto volitou e Mary sentiu-se envergonhada por
tê-lo chamado, sabia que ele tinha atividades vinte e quatro
horas por dia. Sentiu-se confiante por ter falado com ele e
entrou na casa.
 
 
 
13 Desencarnados como Lia, que preferem continuar
vivendo como encarnados, têm os reflexos do físico, sentem
como se ainda usassem a roupagem de carne. Engasgar-se,
fato que acontece com os encarnados, se dá com eles
também. Continuam com outros costumes que tinham como
falar baixo para não serem ouvidos. (N.A.E.)
14 Nem todo mal-estar de encarnados se dá por esse

motivo. Naquele momento, pela conversa com Isaura, Eva


sentiu-se culpada e Lia criou uma energia forte de raiva e
rancor. (N.A.E.)
A TENTATIVA
Mary foi para a sala, Willian estava sozinho lendo um
jornal. Ela aproveitou para ver se conseguia induzi-lo a
pensar no ocorrido e escutar seus pensamentos. Ele largou
o jornal e pensou:
"Casei muito novo com Lia, encantei-me com ela, uma
viúva bonita e rica. Da nossa união nasceu Giovana que
tanto amo. Fiquei viúvo, fiz aquela viagem e encontrei Aidê:
bonita, elegante e muito rica. Tive sorte, estamos bem e
vamos ter um filho.”
Por mais que Mary tentasse, ele não pensava mais em Lia.
Estava empolgado com a nova esposa e fazia planos para
um futuro feliz. Ela desistiu e voltou para o paiol. Olhou para
Lia, que estava dormindo, e a chamou baixinho. Lia
acordou, sentou-se e exclamou:
— Nunca pensei que mortos dormissem! E eu o faço
sempre. Acho que tive um pesadelo! Ou não? Foi verdade?
Eva era a amante de Willian. Os dois me traíram! Qual deles
me assassinou? Foram os dois juntos? Que tragédia que
ocorreu comigo!
Antes que Lia começasse a se lamentar ou chorar, Mary a
convidou:
— Willian e Aidê já devem ter jantado. Vamos ouvir o que
eles conversam?
— É perigoso! Se eles fecharem as portas, ficaremos lá
dentro, e eu não quero ficar na casa com eles", respondeu
Lia, com ar de preocupação.
— Isso não é problema, sei abrir as portas da casa dos
encarnados. Aprendi e posso fazer isso.
— É mesmo? Você sabe? Isso é incrível! Bem, se você
consegue, podemos ir. Vamos bisbilhotar!
Escurecia, ao sair do paiol, elas viram Eva saindo da casa
e indo em direção à cidade. Lia explicou:
— Eva tem ido frequentemente pernoitar na cidade. Tem
amigos por lá e, se for verdade que está namorando esse
mecânico, vai dormir na casa dele.
Mary fingiu que abriu a porta e empurrou Lia para dentro.
Esta passou pela porta fechada sem perceber que ela não
fora aberta. Os desencarnados que têm conhecimentos
fazem isso facilmente. E alguém como Mary pode fazer com
que outros que não os tenham passem pela porta. Lia teve
a sensação de que ela abriu e fechou a porta. Mas, isso não
aconteceu. Desencarnados podem atravessar objetos
materiais.
— Você sabe mesmo! Que bom! - exclamou Lia.
Passaram pelas salas e foram encontrá-los na varanda, na
frente da casa, sentados em cadeiras que rodeavam uma
pequena mesa.
— Se soubéssemos que estavam aqui, você não precisaria
ter aberto a porta. Era só contornar a área externa. Vamos
ficar perto deles - disse Lia.
O casal falava entusiasmado, faziam planos para quando
o filhinho nascesse, escolhiam nomes, padrinhos etc. Não
diziam nada que as interessassem. Lia ficou impaciente e
reclamou:
— Willian não me tratava assim, eram raros os momentos
em que conversávamos. Normalmente era eu quem falava.
Como dá atenção a ela! Mas será que planeja matá-la?
Estará pensando nisso?
Mary estava desistindo de ficar ouvindo-os e pensou em
sugerir à sua companheira que voltassem ao paiol, quando
viu algo se movendo na sacada acima.
— O vaso! - gritou Mary - Ela gritou com tanta convicção
que seu grito foi sentido por Willian, este instintivamente
olhou para cima e percebeu que o vaso ia cair. Ele se
levantou rapidamente, empurrou para o lado a cadeira onde
Aidê estava sentada e a protegeu com seu corpo. O vaso
caiu, espatifando-se bem no local em que Aidê estava
sentada antes de Willian empurrá-la.
— Você está bem, querida? Machucou-se? - perguntou
Willian, assustado e ofegante.
— E... Eu... - Aidê não conseguia falar.
— O vaso ia cair em cima dela - falou Lia para Mary -
Vamos acudi-la, parece que ela vai desmaiar...
Mary ficou na dúvida. Não sabia se ia ao andar de cima
tentar ver quem estava lá ou se acudia Aidê, que estava
branca, tremendo, suja da terra que se espalhara e com um
pequeno corte na testa, pois fora atingida por um dos
pedaços do vaso de cerâmica.
— Isaura! Isaura! - gritou Willian.
Ele estava sujo, fora atingido por muitos pedaços do vaso,
mas não se machucara. A empregada chegou logo e
assustou-se.
— Ajude-me a levar Aidê para dentro da casa! - pediu ele.
Subiram até o quarto. Isaura foi buscar água com açúcar.
Aidê a tomou tremendo. As duas os acompanharam. Lia
olhava tudo espantada. Mary tentou auxiliar Aidê, fazer com
que ela se acalmasse. Aidê foi se tranquilizando e aos
poucos se sentindo melhor.
— Willian - finalmente Aidê conseguiu falar - O vaso quase
caiu em cima de mim! Se não fosse você, eu teria morrido!
Aquele vaso era grande e com certeza era pesado!
— Como foi cair? Há anos estava lá - falou Isaura.
— Talvez tenha ficado mal colocado, foi escorregando e
caiu - disse Aidê.
— Por favor, Isaura, faça um chá calmante para nós -
pediu Willian.
Ficando a sós, Willian segurou com carinho às mãos da
esposa e lhe falou:
— Querida, você se lembra do Reginaldo? Aquele meu
primo que encontramos quando viemos para cá? Ele me
disse que estaria de férias. Vou telefonar para ele e convidá-
lo a vir para cá, ficar alguns dias conosco.
— Por que, Willian? Ele trabalha na polícia. É investigador,
não é? Por que esse convite? Por causa do vaso que caiu?
Acha que ele não caiu sozinho?
— Não sei querida. Estou confuso. Eu me sentirei mais
calmo com ele aqui.
Isaura chegou. Os dois tomaram o chá e Willian pediu à
Isaura:
— Vá com Aidê ao banheiro e a ajude a tomar banho. Nós
nos sujamos muito com a terra do vaso. Depois, fique a seu
lado. Vou à sala telefonar e já volto.
Ele desceu e foi para a sala, Mary e Lia o acompanharam.
Willian pegou o telefone, discou e ficou satisfeito por
conseguir seu objetivo. As duas escutaram:
— Reginaldo? Você está bem? Estamos precisando de
você. Por favor, aproveite suas férias e venha até aqui
ajudar-me a resolver um problema. Não sei se é grave. Acho
que estão tentando matar minha esposa. Teve o acidente
com o carro. Agora um vaso quase caiu em cima dela. Não
dá para lhe passar mais detalhes. Você vem?
— Amanhã estará aqui? Espero ansioso! Tchau!
Willian desligou o telefone e falou baixinho:
— Vou ao terraço!
Lia puxou Mary e as duas subiram as escadas com ele.
Entraram num dos três quartos que davam para frente da
casa, ele acendeu a luz e abriu a porta-balcão. Os três
aposentos eram parecidos: todos tinham o mesmo tipo de
porta que dava para a sacada, que tinha por volta de três
metros de largura e era cercada por uma mureta de cimento
de um metro de altura. Em cima da mureta, três vasos
grandes com folhagem.
Willian examinou o local onde, até poucos minutos atrás,
estivera o vaso que caiu. Observou tudo e não achou nada
que merecesse atenção, fechou a porta e foi para o seu
quarto. As duas ficaram no corredor e o ouviram falar:
— Isaura, pode ir descansar. Quero que amanhã, logo
cedo, você arrume o quarto de hóspedes. Meu primo
Reginaldo virá nos visitar.
— O Reginaldo não é aquele que trabalha na polícia? -
perguntou a empregada.
— É! Boa noite!
— O vaso não deve ter caído sozinho - falou Lia. Estão ali
há muito tempo, e o que caiu estava bem em cima de Aidê.
Que faremos agora, minha amiga?
— Vamos para o paiol - respondeu Mary.
Mary sabia que não tinha mais ninguém na casa. Quem
tentara matar Aidê já tinha ido embora. Isaura passou por
elas preocupada e foi para seu aposento, um quarto grande
que ficava ao lado da lavanderia. Mary empurrou Lia e elas
passaram pela porta.
— Você não a abriu! Agora eu vi direito. Você passou por
ela e me fez passar. Como consegue fazer isso?
Mary balançou o ombro, Lia não insistiu por uma resposta,
estava muito confusa com o que vira. Chegaram ao paiol,
estava muito escuro e Lia reclamou:
— Não gosto de sair à noite. Não enxergo nada.
Mary ligou uma pequena lanterna que trazia no seu bolso.
Na verdade, muitos objetos que desencarnados usam no
plano espiritual têm um nome específico. Alguns são
parecidos com os que os encarnados usam. Esse pequeno
objeto que ilumina é visto somente por desencarnados ou
por alguns encarnados sensitivos. A energia usada pode ser
mentalizada por quem o segura, pode ser solar e até
produzida por outras fontes.
— O que é isto? Uma lanterna? Como você tem uma? -
perguntou Lia.
— Ganhei de um amigo, ele me ensinou a usar. Guardo-a
no bolso - respondeu Mary sorrindo.
— É muito estranho mortos, desencarnados terem uma! -
disse Lia, com ar de espanto.
— Você não está vestida? - indagou Mary.
— É mesmo! Como você a tem não me interessa. Para
mim é ótimo! Não ficaremos no escuro.
— Dona Lia! - disse Zé Grilo, entrando apressado e
tropeçando - Que claridade é esta? O paspalho do Adelino
deixou a luz acesa?
— É uma lanterna que Mary tem. Sente-se aqui - convidou
Lia.
Zé Grilo olhou curioso e sentou-se perto das duas.
Esqueceram da briga. Ele falou devagar, não tirando os
olhos do pequeno objeto que iluminava e estava na mão de
Mary:
— Vim procurá-la à tarde, mas não a encontrei. Fiquei
preocupado e curioso. Voltei agora porque sei que tem
medo de andar por aí no escuro. O que aconteceu?
— Muitas coisas - respondeu Lia - Vou lhe contar. Ficamos
sabendo de novidades que mudam os fatos. Primeiro... Lia
contou toda a história com detalhes, Zé Grilo arregalou os
olhos, ficando mais estranho ainda do que já era. Prestou
muita atenção e, quando ela finalizou, exclamou:
— Puxa! Que ingrata e desavergonhada é essa Eva! Quem
será seu assassino? Depois disso tudo que ouviram a
senhora sabe o que aconteceu?
— Willian me matou - respondeu Lia - "Certamente
prometeu casar-se com Eva e ela, ou eles, quer agora se
livrar da Aidê, matá-la.
— Tem certeza? - perguntou Zé Grilo.
— Como posso ter certeza? Estou deduzindo. É o que
parece estar acontecendo - respondeu ela.
— Lia, lembro você que vimos Eva indo para a cidade -
falou Mary, entrando na conversa - Ela pode ter voltado.
— Será que não foi Isaura? Bem, pelo que me contaram,
ela foi rapidamente ao local quando o Sr. Willian a chamou -
expressou-se Zé Grilo.
— Isaura? Por que ela faria isso? - indagou Lia.
— Estou pensando... Se o Sr. Willian tinha muitas amantes,
será que Isaura também não era ou é uma delas? -
perguntou Zé Grilo, baixinho.
— Não creio - respondeu Lia - Isaura tem a minha idade,
não tinge os cabelos nem se cuida. Porém, não duvido de
mais nada. Será?
— Lembro à senhora, dona Lia, que eu já vi um vulto todo
de preto entrar na casa pela porta de vidro da sala - falou
Zé Grilo.
— Era encarnado ou desencarnado? - perguntou Mary.
— Não sei! - respondeu ele.
— Já lhe falei, Zé Grilo, que encarnado é quem vive no
corpo de carne e desencarnado é quem vive sem o corpo,
como nós. Oh, anão burro! - exclamou Lia.
— Eu já entendi isso! Mas não sei mesmo! - respondeu Zé
Grilo, falando alto - Vi o vulto e temi. Sabe que eu tenho
medo dos espíritos maus, pois muitos deles gostam de se
vestir de preto. Não sei se esse vulto era de carne e osso ou
não. E não comece a me ofender, senão eu xingo você.
— Está bem. Peço desculpas - disse Lia.
— Estou lembrando de um fato! - exclamou Zé Grilo,
contente e já esquecendo a ofensa - A senhora recorda do
dia em que recebeu a visita daqueles rapazes
homossexuais?
— Você é intrometido mesmo! - expressou-se Lia - Isso
aconteceu há algum tempo e você estava já desencarnado.
— Sei que faz tempo", falou Zé Grilo - E não sou
intrometido. Só que não tenho nada para fazer, por isso
sempre gostei de observar os acontecimentos da região,
das chácaras.
— Deveria ter visto quem me matou. Aí sim teria feito
algo de útil - disse Lia.
— Sabe muito bem que não gosto de entrar nas casas,
tenho medo de ficar preso - respondeu Zé Grilo.
— Que grupo era esse? O que veio fazer aqui? - perguntou
Mary.
— Jorge Luís é homossexual, foi difícil para nós aceitar
esse fato. Willian, mais preconceituoso ainda, o detestava e
se envergonhava dele. Mas meu filho é dócil, educado e
bondoso.
— Como uma mocinha - interrompeu Zé Grilo.
— Não me interrompa! - gritou Lia, continuando:
— Agora acho que não fui uma boa mãe para Jorge Luís.
Geraldino, quando encarnado, cuidava dele. Depois que
fiquei viúva, era Isaura. Quando me casei com Willian, ele
queria toda a minha atenção. Eu o amava e deixei
comodamente para Isaura cuidar de Jorge Luís. Willian tinha
muito preconceito, brigava com ele, o ofendia, e eu nunca o
defendi. Jorge Luís vendeu uma propriedade que herdou do
pai, saiu de casa e foi para Londres. Foi um alívio para mim,
às brigas em casa cessaram. Dava-nos poucas notícias, nas
cartas, queixava-se de solidão. Willian dizia que ele se
acostumaria, que seria bom para ele morar longe de nós,
que iria aprender muito etc. Foi depois de um tempo, que
não me recordo quanto, que meu filho havia partido que
recebemos a visita daqueles rapazes. Eram seis moços.
Vieram num carro e em duas motocicletas, a maioria deles
estava de jaqueta preta.
Lia fez uma pausa e suspirou. Mary e Zé Grilo estavam
atentos. Ela continuou:
— Willian ficou nervoso ao vê-los. Disseram que eram
amigos de Jorge Luís, que moravam na cidade vizinha, que
sabiam que meu filho sofria longe deles e de nós e que
deveríamos ser compreensivos e aceitá-lo como ele era
chamá-lo de volta e muitas outras coisas. Willian os tratou
com muita indelicadeza e falta de educação. Eles nos
xingaram e um deles, que estava todo vestido de preto e
que viera numa das motos, virou-se para mim e disse: “A
senhora ainda irá se arrepender!” Meu marido os expulsou e
eu chorei muito. Depois disso, nunca mais os vimos. Como
ele disse, me arrependi agora que desencarnei, devia ter
ajudado meu filho, tê-lo chamado de volta, o protegido.
Quando Zé Grilo disse que viu o vulto de preto, também
lembrei desse fato, porém ele não sabe se essa pessoa era
um encarnado ou não. Estive pensando se não seria um
deles que entrou na casa, se não seria o homem que falou
que eu iria me arrepender se ao dizer isso ele não teria me
ameaçado...
— Pode ser que o moço disse isso pensando em lhe dar
uma lição ou falou achando que o tempo a faria
compreender e sentir remorso pelo que fez com o coitado
do Jorge Luís. Você não foi boa mãe - falou Zé Grilo.
— Meu amigo de infortúnios, embora me chateie com o
que você fala dessa vez tem razão! - exclamou Lia.
— Não falo por mal, é que não sei me expressar direito.
Como à senhora sabe, eu também senti falta de uma boa
mãe para me defender - disse Zé Grilo, suspirando
tristemente.
— O que você acha Mary? - indagou Lia - Será que um
desses moços quis se vingar e me matou? Ou tentou matar
eu e Willian? Colocaram o veneno na sopa quando ela
estava na sala de jantar. Deviam saber que os empregados
fazem as refeições na cozinha. Lembro do olhar daquele
rapaz, era de ódio e raiva.
— Não sei - respondeu Mary - Talvez os rapazes tenham
ficado ofendidos, com raiva na hora, e depois tenha
passado. Não quero crer que isso seja motivo de vingança.
— Vi um vulto, não sei se era homem ou mulher, todo
vestido de preto entrando pela porta de correr da sala. Ele
não passou por ela, ele a abriu - falou Zé Grilo - Talvez eles
quisessem assassinar vocês dois e, na tentativa, quando
envenenaram a sopa, morreu só a senhora. Depois, teve o
acidente com o carro do Sr. Willian, pode ter sido um
defeito, mas pode não ter sido. Não podemos também
descartar a possibilidade de ter sido o próprio Jorge Luís. Ele
foi ofendido, maltratado e, se guardou rancor, pode ter
querido se vingar. E pode estar querendo matar Willian, e
não Aidê.
— Nunca meu filho iria me assassinar. Depois, está longe -
falou Lia.
— A senhora tem certeza? - indagou Zé Grilo - que com
um gesto de cabeça negativo de Lia continuou: Jorge Luís
pode muito bem estar com esses amigos e ter pedido para
que eles os matassem ou até que contratassem alguém
para fazê-lo.
— Você é um anão maldoso! Meu filho não faria isso!
— Não está falando com muita convicção! - exclamou ele.
Mary preferiu mudar de assunto e pediu:
— Não briguem! Sejam amigos! É tão bom conversar sem
discutir!
Os dois suspiraram e aquietaram-se por alguns minutos.
Ficaram de cabeça baixa, estavam infelizes.
— É muito triste ter sido assassinada! Queria saber quem
foi e por quê.
— A senhora não tem certeza de que foi o Sr. Willian? -
perguntou Zé Grilo.
— Não amole, seu grilo chato! Tenho e não tenho! Você
me confundiu. Estou revoltada! - exclamou Lia.
— E desconta em mim? - indagou-o - Também morri. Não
fui assassinado. Lembra quando meu corpo físico morreu?
Fiquei doente por vários dias. Fui levado para o hospital.
Tive leptospirose, doença transmitida por animais. Sofri
muito, morri e padeci mais ainda. Foi um castigo ter pegado
essa doença!
— Chega, Zé Grilo, já escutei essa história muitas vezes! -
falou Lia.
— Mas a Mary não! - exclamou ele.
— Fale Zé Grilo. Quero escutar você - falou Mary.
— Fui adotado! Ninguém sabe essa história direito! -
interrompeu Lia - Para muitos daqui, Esmeralda, a mãe dele,
teve-o solteira e disse a todos que o adotara.
— Não sei se isso é verdade - falou Zé Grilo.
— Sempre me disseram que fui adotado, largado na porta
da casa de minha mãe Esmeralda. Ela me tratava bem, mas
às vezes se embriagava e por qualquer motivo me surrava.
Cresci revoltado por ser anão. É triste ter deficiência. Na
escola, as crianças me batiam, zombavam de mim, e eu
sofria muito. Aí descarregava meu ódio, minhas mágoas nos
animais, tinha prazer em maltratá-los. Minha mãe
Esmeralda faleceu, eu fiquei sozinho e acabei morrendo. A
chácara em que morávamos fica ao lado desta, ficou para
um primo meu, sobrinho da mamãe, que logo depois da
minha morte a vendeu. Os donos vêm de vez em quando e
limpam a casa. Não entro nela, não gosto de ficar trancado.
Certa vez, fiquei quinze dias fechado porque eles foram
embora e trancaram tudo. Fiquei lá sozinho. Foi horrível!
Agora moro num buraco!
— Zé Grilo - interrompeu Lia - Mary é minha visita. Por
favor, não a amole! Ela é uma senhora educada, que não
está a fim de escutar histórias desagradáveis. Você foi cruel,
matava os animais aos poucos, gostava de furar seus olhos.
— Chega, dona Lia! Não fale de mim! A senhora foi traída
e a mataram. Certamente tiveram motivos para isso!
Lia levantou-se e ergueu a mão para lhe dar um tapa. Ele
deu uma gargalhada e saiu correndo do paiol.
— Desculpe-me, Mary. Meu vizinho é terrível! Só converso
com ele por me sentir muito sozinha. - falou Lia.
— Minha amiga, me fale de você. Viu seu corpo morrer? -
perguntou Mary.
— Não - respondeu Lia - O que lembro daquela noite é que
jantei como sempre tomei a minha sopa de cogumelos, e fui
me deitar. Senti dores fortes, não consegui gritar, senti frio,
fiquei dura, e ouvi Willian ir se deitar. Ele acendeu a luz,
percebeu que eu não estava bem e chamou os empregados.
Não vi mais nada. Quando acordei, estava num hospital que
ficava dentro de outro. Estranhei tudo, não recebia visitas,
ouvia sem compreender... algo como minha filha chorando e
falando que eu havia morrido. Acabaram me confirmando.
Quis voltar para casa e eles devem ter me trazido. Fiquei
aqui no paiol.
Mary deduziu que Lia teve morte súbita por
envenenamento, sendo levada para o hospital e lá
desligada, isto é, seu espírito foi separado do corpo físico
morto e ela continuou vivendo. Isso foi realizado pela equipe
desencarnada de servidores do bem que auxilia os médicos
e enfermeiros encarnados. Ela ficou realmente num hospital
dentro de outro, ou seja, num posto de socorro no espaço
espiritual. Não foi levada para a chácara, foi por impulso,
pela sua forte vontade de querer ir. Volitou sem saber, sem
entender o que ocorria. Isso acontece muito com
desencarnados que não querem ficar em abrigos.
Lia continuou a falar:
— Ouvi uma conversa e soube que tomei a sopa com
cogumelos venenosos. Eu não me enganei. Isso é
impossível, pois eu mesma os havia colhido e não existia na
minha plantação nenhum cogumelo venenoso. Deduzi que
fui envenenada, assassinada.
— O que você acha desse primo do Willian? - perguntou
Mary.
— Reginaldo deve ter a idade dele, estudaram juntos, ele
nos visitava raramente. Não me é simpático. Por que será
que Willian o chamou aqui? Será que ele não tem medo de
que o primo descubra seu crime? Meu esposo deve ter
certeza de que é mais esperto que o primo e deve ter
planos. Mary acho que ele está querendo se livrar de Eva e
fazer tudo para incriminá-la. Só não entendo por que
impediu que o vaso caísse na coitada da moça grávida.
Pode ser que Willian e Eva tenham me matado e, agora que
ele não a quer mais, ela o esteja chantageando, por isso ele
chamou o Reginaldo, e o fará crer que foi Eva que me
matou. Ela vai para a prisão e pronto. Estou cansada, vou
descansar. Hoje o dia foi muito movimentado!
— Lia, você sabe para onde foi o Zé Grilo? - indagou Mary.
— Não se preocupe com ele - respondeu ela. "Sempre
brigamos, nos ofendemos, mas não guardamos mágoa. Ele
deve ter ido para o seu buraco, é uma pequena gruta, fica
na chácara onde ele morou quando estava encarnado, O
lugar é feio, no meio das árvores. Ele fica lá, gosta do
escuro, fala que na escuridão não enxerga nada. Ele diz,
não sei se é verdade, que na gruta, ou buraco como ele
chama, ficam os animais que ele matou. Não sei se isso é
possível. Mas tenho visto tantas coisas que não duvido de
mais nada! Veja o que aconteceu comigo! Meu corpo
morreu e eu continuo viva.
Lia passou as mãos nos pés e continuou:
— Meus pés estão doendo por andar descalça. Como
gostaria de ter sapatos!
— Veja, Lia o que achei ali no canto: um par de sapatos! -
falou a socorrista.
— Mary meu bem - disse Lia - sei que você não é esperta,
que é só uma velha, digo, uma senhora que tem boa
vontade para ajudar... Aqui tem coisas que só encarnados
podem pegar...
— Mas estes sapatos eu peguei. Veja! São como nossas
roupas!
Mary plasmou um par de sapatos confortável.
Desencarnados que sabem podem plasmar, ou seja, fazer
objetos que só os espíritos podem ver ou usar. Lia os pegou
e os experimentou. Mary fez com que eles servissem nela.
— Mary, que beleza! Como foi isso? Não, não precisa
explicar. Aconteceu e pronto! Que bom! Tenho sapatos! Se
eu não estivesse com tantos problemas, ficaria alegre. Nem
vou tirá-los para dormir. Não quero perdê-los! Quero que
esta noite passe depressa, estou curiosa para ver o que
Willian fará amanhã. Aquele maldito! E também é maldita a
escritora daqueles livros dos quais ele tirou ideias para me
assassinar sem deixar pistas.
— Você leu esses livros? - perguntou Mary.
— Alguns. As histórias são fantásticas e sempre têm os
investigadores que descobrem tudo. Talvez seja por isso que
Willian chamou o primo.
— Se os investigadores descobrem tudo e se Willian é o
assassino, ele não deveria trazê-lo para cá - disse Mary.
— Nas histórias dela, eles desvendam o mistério, só que o
Reginaldo não desvendará esse. Certamente ele culpará
Eva. Agora chega de conversa. Boa noite!
— Você não vai rezar? - perguntou Mary.
— Vou... Faz tempo que não oro. Fazia isso raramente
quando estava encarnada. Estou com vontade de rezar.
Você ora comigo?
Fizeram à prece. Lia acomodou-se e dormiu.
Mary levantou-se e foi à procura de Zé Grilo...
ZÉ GRILO
Mary não acendeu sua lanterna, aprendera a enxergar no
escuro. Para desencarnados que se esforçam em aprender,
existem oportunidades de adquirir muitos conhecimentos. A
visão perispiritual pode ser ampliada, tanto que muitos
estudiosos, ao olharem um encarnado, vêem seus órgãos
internos e detectam doenças. Muitos trabalhadores que
prestam socorro no umbral só usam essa luminária quando
no grupo há integrantes que não desenvolveram a
capacidade de enxergar no escuro. Mary sabia muito bem
usar essa facilidade. Trabalhara como socorrista por muito
tempo, servindo num posto de socorro do umbral.
Ela caminhou devagar para o lado indicado por Lia,
passou para a chácara vizinha e entrou no pomar onde
deveria estar o tal buraco. Logo o achou. Os encarnados
enxergavam ali somente o tronco de uma árvore antiga.
Mary e todos os desencarnados viam que ao lado do tronco
havia uma entrada para o interior da terra.
Ela ia entrar quando ouviu um barulho do lado direito,
alguns metros à frente. Chamou baixinho:
— Zé Grilo!
Como ninguém respondeu, ela foi até o local de onde veio
o barulho. Viu uma mulher desencarnada sentada num
tronco de árvore de cabeça baixa, chorando.
— Precisa de alguma coisa? Por que está chorando? -
perguntou Mary.
A mulher levou um susto, levantou-se e ia correr, mas
Mary a segurou pelo braço e falou com carinho:
— Desculpe-me. Não quis assustá-la. Não precisa ter
medo.
— Está sozinha? - perguntou a mulher, olhando para os
lados e tentando ver se havia mais alguém - Não preciso de
nada, não me faça mal, por favor. Sou do bando do Gordo
Leitão. Só estou de passagem.
— Eu me chamo Mary! Também estou só passando por
aqui, estou sozinha e não faço mal a ninguém. Só queria
ajudar se possível.
— Anda por aí sozinha, à noite, só para ajudar? - indagou,
observando-a bem - Você é desencarnada! É uma
socorrista? Trabalha para o bem?
— Sim - respondeu Mary. Estou indo visitar o Zé Grilo.
Você o conhece?
Ela sentou-se de novo e Mary acomodou-se ao seu lado. A
mulher suspirou, enxugou as lágrimas e falou:
— Sou a mãe do Zé Grilo. Às vezes venho aqui para vê-lo,
mas não tenho coragem de entrar no buraco em que ele
mora, lá dentro é horrível. Já pensei em levá-lo comigo, mas
não o faço porque sou tratada como escrava pelo bando do
Gordo Leitão. Eles iriam maltratá-lo por ser anão. Será que
não tem ninguém nos vendo? Terei problemas se alguém do
bando me vir falando com a senhora.
— Não há ninguém por perto. Só o Zé Grilo no seu buraco.
Por que, Esmeralda, continua vivendo assim se é tão infeliz?
- indagou Mary, carinhosamente.
— Como sabe meu nome?
— O Zé Grilo me disse - respondeu Mary. - Esmeralda,
você não me parece satisfeita com o seu modo de viver. Por
que não se arrepende de seus erros, peça perdão a Deus e
clama por ajuda?
— Eu já me arrependi e sofri mais ainda. Acho que não
mereço ajuda e não sei viver com pessoas boas e educadas
- falou Esmeralda.
— Quem não sabe pode aprender com pessoas boas que
gostam de ensinar. Morar com os bons é receber respeito,
com eles se vive com dignidade. Zé Grilo sabe que você
está aqui?
— Não. Eu o vi chegar rápido, e estava chorando, nem
olhou para os lados e entrou no buraco. Sinto muita pena
dele. Visito-o raramente, pois me acusa de muitas coisas e
acabamos brigando na maioria das vezes que nos
encontramos.
— Vou entrar e conversar com ele - disse Mary - Por favor,
me espere aqui. Vou trazê-lo para que conversem e se
entendam.
Mary entrou no buraco.15 Estava escuro e, para que Zé
Grilo a visse, ela acendeu a lanterna. Ele esfregou as mãos
nos olhos e exclamou:
— Mary, você aqui!
— Vim visitá-lo. Posso me sentar? Sentar-me? - indagou-o.
Ficaram em silêncio por instantes, Mary deu uma olhada.
Esmeralda tinha razão de não querer entrar e Lia de ter
medo do local. Era um buraco debaixo do solo, com cerca
de sete metros de diâmetro, cheio de animais mortos. Eram
cadáveres: alguns sangrando, outros quebrados. Não havia
um espaço vazio. Zé Grilo estava com uma raposa no colo
que tinha os olhos perfurados. O cheiro era insuportável. Na
verdade, não eram cadáveres materiais, estes já haviam
virado pó, voltado à natureza, como toda a vestimenta física
morta. Eram corpos de animais plasmados por ele.
— Não tem lugar nem para eu sentar. Tive até que pegar
esta raposa no colo – justificou-se.
Mary fez um sinal com a mão e os animais se
amontoaram, abrindo espaço e deixando o chão livre. Ela
sentou-se e perguntou-lhe, calmamente:
— Por que está aqui com estes animais?
— É castigo!16 Meu terrível castigo! Se você limpou o
ambiente para se sentar, não dá para tirar esta raposa de
cima de mim? Com esta claridade, vejo-os, e ela me
repugna.
— Tudo bem! - Mary fez um gesto com a mão e a raposa
juntou-se aos outros. Ele sentiu-se aliviado.
— Vê isto, Mary? São os animais que maltratei e matei.
'Não matarás' fala o mandamento, e eu matei. Não o fiz
para comer nem por estar sendo prejudicado por eles. Eu o
fiz por raiva, crueldade, torturando-os. É justo meu castigo!
Ele suspirou tristemente e ficou quieto de cabeça baixa.
Mary pensou:
— A crueldade deve ser um dos maiores erros que uma
pessoa pode cometer contra outra. E como o carma da
pessoa cruel se torna pesado, mesmo quando a maldade é
feita a um animal!
Ela entendeu que Zé Grilo não tinha conhecimento de que
estava sendo cruel, e isso amenizou seu padecimento. O
que fizera foi para descontar os maus-tratos que recebia.
Como não podia maltratar quem o fazia sofrer, ele
maltratava os animais. Mas, como isso não está certo, ele
sofria havia vários anos numa prisão imposta por ele
mesmo, porque um dia nossa consciência nos cobra.
— Por que você não pede perdão, meu amigo? -
perguntou Mary.
— Como? Falando assim: “me perdoa, senhora galinha!”
“Meu perdão, raposa!” Tenho chorado e os acariciado, e eles
nem se mexem. Acha que animais podem perdoar? E para
eles que devo pedir perdão?
— Não, é para Deus! Você, Zé Grilo, deve perdoar a si
mesmo - falou Mary, carinhosamente.
— Será que Deus me perdoará? Ele também criou os
animais, O que fiz foi errado, descontava minhas frustrações
maltratando-os. Estava sempre com raiva. Em todos os
lugares que ia me chamavam de anão, banquinho, corrimão
de escada, etc., riam de mim, e aí eu descontava no
primeiro animal que conseguia pegar. Por que será que as
pessoas criticam as outras?
— Ninguém deveria fazer isso - disse Mary. Não se deve
criticar as deficiências. Se a pessoa tem o corpo sadio nessa
encarnação, pode não ter tido no passado ou poderá não ter
no futuro. É um erro fazer críticas assim. É uma maldade.
— Eu entendo um pouco disso, de ter deficiências no
passado ou tê-las no futuro - disse ele. Já estive num lugar
que era chamado de umbral. Lá diziam que já vivemos
muitas vezes em corpos diferentes e que eu havia nascido
anão por ter abusado de um corpo físico grande. Disseram-
me que já fui alto, forte e maltratei pessoas. Se isso for
verdade, não mudei muito. Nasci anão e, como não pude
maltratar pessoas, eu o fiz com animais. Sou um caso
perdido!
— Não acho! - expressou-se Mary - Deus nos perdoa
sempre quando estamos realmente arrependidos. E você
está não é? Se pudesse voltar no tempo, você maltrataria os
animais?
— Não, de jeito nenhum! - exclamou Zé Grilo.
— Então, meu amigo, peça perdão. Quando queremos ser
perdoados, nós somos, e temos oportunidades de reparar
nossos erros e melhorar nossa vida.
— Quero isso, Mary! Se eu tiver oportunidade de nascer
de novo em outro corpo, gostaria de ser veterinário e ajudar
os animais, sendo eu deficiente ou não. Mas como faço para
ser ajudado?
— Peça auxílio, Zé Grilo! Mas me diga: você gosta de sua
mãe?
— A única que conheço é mamãe Esmeralda - falou ele,
suspirando - Gosto dela, só que, quando nos encontramos,
brigamos muito. Ela nunca me defendeu nem me
repreendeu. Talvez, se tivesse me orientado, me explicado
na primeira vez em que maltratei um cão, eu teria
aprendido e não estaria aqui com estes animais a me
torturar.
— Não podemos colocar a culpa dos nossos erros em
outras pessoas, meu amigo - explicou Mary - Você está se
autopunindo. Estes animais podem sumir caso você se sinta
perdoado. Vamos tentar? Ore e peça perdão a Deus!
Zé Grilo duvidou, porém resolveu tentar e orou:
— Pai do Céu, fui mau com os animais. Mereci ser
castigado e fui. Perdoe-me, por favor! Prometo nunca mais
maltratar ninguém. Vou amar os animais! Amém!
Mary desfez a forte impressão que Zé Grilo tinha e
sustentava daquelas figuras de animais mortos.17 Ele olhou
encantado e passou a mão pelo chão: só havia terra; os
animais haviam sumido.
Gritou feliz:
— Deus perdoou-me! Perdoou-me!
Virou-se então para Mary e perguntou:
— Quem é você? Uma bruxa?
— Sou só uma pessoa que tenta fazer o bem para ser boa
um dia - respondeu Mary - Agora, venha, tem uma pessoa aí
fora querendo falar com você.
— É dona Lia! Eu a desculpo e vou lhe pedir perdão.
Brigamos à toa - falou Zé Grilo.
Ele saiu rápido e rindo, deparando com Esmeralda. Então
parou e ficou olhando-a, quieto. Mary saiu atrás dele e
comentou:
— Vocês dois têm muito que conversar. Vamos sentar no
tronco. Zé Grilo lembre-se da oração que fez em que pediu
perdão e o obteve. Somos perdoados apenas quando
perdoamos.
— A benção, mamãe! - exclamou ele.
— Deus o abençoe, meu filho! - respondeu Esmeralda. Por
que você está tão contente?
— Aqueles animais sumiram porque eu pedi perdão a
Deus - respondeu ele.
— Sei que fui culpada por você sofrer tanto assim - disse
Esmeralda, suspirando triste.
— E eu nunca lhe perguntei se a senhora sofreu - falou Zé
Grilo.
— Pois eu também padeci muito! - exclamou Esmeralda -
Sabe, meu filho, eu errei bastante. Você tem razão em me
acusar. Sou sua mãe mesmo, você não foi adotado.
— Não fui? Por que me escondeu isso? Soube pelos
falatórios, mas a senhora sempre desmentiu. Riram tanto de
mim por isso. Diziam que eu era tão feio e pequeno que
minha mãe, ao me ter, me abandonara para não morrer de
susto, que nem minha própria mãe me amara. Sentia tanto
ao ouvir esses comentários. Por que fez isso comigo?
Ele se levantou e ia se exaltar. Mary olhou para ele e em
seguida para o buraco. Zé Grilo se acalmou e sentou-se
novamente.
Esmeralda falou baixo, com a voz triste:
— Eu era jovem quando meus pais morreram, tinha dois
irmãos mais velhos e casados que exigiam muito de mim.
Eles queriam que eu fosse muito honesta, mas não me
davam nenhum carinho ou atenção. Morava aqui na chácara
com uma velha empregada. Apaixonei-me por um homem e
só depois de algum tempo descobri que ele era casado. Ao
ficar grávida, ele me abandonou, foi um período difícil.
Tentei abortar, mas não consegui, escondi a gravidez, só à
empregada sabia. Você nasceu no tempo certo e o
escondemos. Era bem pequenino. Depois de dois meses
dissemos para todos que o encontramos na porta de casa.
Algumas pessoas desconfiaram, houve falatório, mas não
puderam afirmar nada com certeza. Nós o levamos a um
médico e ele constatou que você era anão. Apiedamo-nos e
tentamos cuidar bem de você. Quando essa senhora, que
era para mim uma segunda mãe, faleceu, ficamos só nós
dois. Não tive coragem de enfrentar a sociedade e meus
irmãos e preferi mentir. Perdoe-me, meu filho! Tive medo e
preferi dizer que você fora adotado.
— Deve ter sido difícil tudo isso para você, não é
Esmeralda? - perguntou Mary.
— Foi, sim, sofri bastante e, quando meu corpo físico
morreu, padeci mais ainda - respondeu ela - Quando
encarnada, não tive religião, fui revoltada, viciei-me em
bebida alcoólica e, pior, não eduquei bem José Ari. Quando
desencarnei, fui para o umbral e acabei fazendo parte de
um bando. Agora vago por aí. Venho aqui quando a saudade
aperta, queria sofrer em seu lugar. Amo você, meu filho!
— Não ama nada! - exclamou Zé Grilo, que, olhando para
Mary que o observava tranquilamente, resolveu mudar o
tom de sua voz - Está bem! Acredito que gosta de mim, pois
eu a amo! Acho que nós dois fomos parecidos: descontamos
nossas frustrações nas pessoas que amávamos ou que
estavam próximas. Eu a perdoo e até a entendo. Naquela
época o preconceito contra mãe solteira era bem maior.
Ficaram por instantes em silêncio. Mary pensou:
"Muitas vezes fazemos algo que não queremos por temer
a opinião alheia. ‘Um erro não conserta outro.’ Esta frase é
dita por todos nós e muito pouco praticada. Se Esmeralda
tivesse tido coragem de assumir o filho, José Ari não teria,
certamente, ganhado o apelido de Grilo, porque não seria
chato como dissera Lia. Não teria sofrido com as críticas,
escutando que a mãe o abandonara. Ela não sentiria tanto
remorso nem se amarguraria tanto, não teria se viciado em
bebida alcoólica. Tudo teria sido mais fácil, O preconceito
sempre traz consequências dolorosas. As pessoas ainda
vêem o cisco no olho do próximo e não se dão conta da
trave no seu. Vive-se em uma sociedade em que se tem
normas, direitos e deveres e deve-se, em primeiro lugar,
estar em paz com a consciência. As pessoas que costumam
cobrar bons procedimentos dos outros normalmente são
aquelas que nem auxílio oferecem. Porque aquelas que
ajudam não têm tempo para criticar. Os pais deveriam
educar seus filhos para não diferenciar crianças com
deficiência. Deveriam ensiná-los a ser caridosos e corrigir
suas tendências viciosas e maldosas. Talvez, se todos
compreendessem a Lei da Reencarnação, não haveria
distinções entre nós. E eu estou aqui, ao lado de duas
pessoas que erraram, sofreram e não souberam lidar com o
preconceito.”
— E você também sofreu, meu filho, por ter sido anão.
Deus é injusto por ter feito você assim - falou Esmeralda,
suspirando profundamente.
— Zé Grilo, Esmeralda, meus amigos - disse Mary - Deus
não é injusto. Vocês viram que sobrevivemos à morte do
corpo físico. A vida é única. Estagiamos no plano físico e
voltamos à Espiritualidade. A vida continua! Já vivemos
muitas vezes num corpo carnal, tivemos muitos nomes e
aparências, fomos de muitos jeitos. Deficiências físicas são
quase sempre reações a atos indevidos. Também podem ser
provas escolhidas, para demonstrar a nós mesmos que,
embora deficiente, podemos agir corretamente.
— Não é o meu caso! - expressou-se Zé Grilo - Sinto que já
fui mau. Tive algumas lembranças do meu passado, de
outras existências, e vi os erros cometidos.
— É uma pena! Remoer erros não serve para nada - falou
Mary. Temos de aproveitar as oportunidades do presente e
ter esperanças no futuro. E o propósito de vocês agora deve
ser aproveitar para se reconciliarem, pedir perdão, perdoar
e rogar ajuda a Deus.
— É Deus mesmo que nos acode? - perguntou Esmeralda.
— É um filho Dele ajudando a outro - respondeu Mary.
— São as pessoas boazinhas que fazem isso, não é? - quis
saber Esmeralda.
— São aqueles conscientes de que o mundo só melhorará
se as pessoas forem úteis, se deixarem de ser servidas para
servir - explicou a socorrista.
— Será que os bons nos aceitarão? Achamos que eles são
chatos e que castigam - falou Esmeralda.
— Não, minha amiga - falou Mary - os que você chama de
bons não são chatos nem castigam. Disseram isso a você
para que não pedisse ajuda, para que ficasse longe deles e
continuasse sendo escrava, servindo-os. Você já viu um
socorrista? Prestou atenção nele?
— Você é uma socorrista? - perguntou Zé Grilo - Sinto que
é diferente, tem o olhar tranquilo e parece feliz.
— Sou uma trabalhadora que aspira fazer o bem. Sou
feliz! As pessoas que querem ser boas não castigam, e sim
auxiliam. E é isso que estou tentando fazer com vocês.
Existe outra forma de viver desencarnado, há locais bonitos
e limpos. Só que, para serem assim, tem de haver ordem e
disciplina. Os que necessitam recebem ajuda e, quando
estão bem, aprendem a ser úteis.
— Mary, você acha que eles darão um jeito na minha
aparência? Poderei crescer? - perguntou Zé Grilo.
— Tenho certeza de que sim. Você também receberá
auxílio nesse sentido - respondeu a socorrista.
— Quero ir para um lugar desses, Mary! - exclamou Zé
Grilo - Estou cansado de sofrer. Quero aprender a ser bom, a
fazer o bem. Mamãe, por favor, peça para ir também, para
ficarmos juntos.
— Tenho medo! Receio que não me aceitem, afinal agi de
maneira muito errada - disse Esmeralda.
— Para onde irá, as pessoas compreendem e ajudam. Elas
seguem o exemplo de Jesus, nosso Mestre Amado, que
muito nos ama - falou Mary - Jesus perdoou Madalena. Ele
não deixou que apedrejassem a mulher adúltera.
— Vou pedir perdão! Vamos ajoelhar, meu filho - disse
Esmeralda.
Mary ia dizer que não precisava ajoelhar, mas os dois o
fizeram e pediram perdão, rogando que fossem levados
para um lugar bom. A socorrista também orou e mentalizou
o posto de socorro que havia visitado. Minutos depois, dois
jovens trabalhadores chegaram, deram as mãos para
Esmeralda e Zé Grilo e os ergueram do chão.
— Vamos, amigos! Vocês irão conosco para um abrigo!
— Até logo, Mary, e obrigado! - exclamou Zé Grilo.
— Deus lhe pague, doce senhora! - expressou-se
Esmeralda.
Os socorristas volitaram com eles. Mary olhou para o local
onde antes havia o buraco, ele tinha sumido. Ela voltou para
o paiol devagarzinho.
 
 
 
15 O buraco pode ser feito de matéria do plano físico. Uma
construção de matéria perispiritual é vista pelos
desencarnados e por alguns encarnados que têm a
mediunidade de vidência. Espíritos que sabem fazem locais
assim. Podem ser feitos por desencarnados como Zé Grilo,
que não tem conhecimento. Muitos fazem por uma vontade
forte, podendo criar lugares, objetos, volitar. O ex-morador
da chácara o fez para se castigar, por sentir-se culpado.
(N.A.E.)
16 Como já foi explicado, desencarnados podem plasmar
objetos e lugares. Zé Grilo, ao ter consciência do que fizera,
pensou nos animais que maltratara e matara. Esse
pensamento tomou forma e ele plasmou os animais, mesmo
sem saber. Isso, infelizmente, é comum no plano espiritual.
A culpa faz com que o espírito veja, sem parar, seus erros,
os objetos usados em assassinatos e os ferimentos do corpo
perispiritual. Como Zé Grilo disse, é um castigo, mas ele
mesmo o impôs. (N.A.E.)
17 Pode-se plasmar num impulso, por uma vontade forte
e por muitos outros motivos, mas desfazer é mais
complicado. Dificilmente o indivíduo desfaz algo que ele
plasmou por impulso. Se Zé Grilo não voltasse mais ao
buraco, os animais plasmados ficariam ali por algum tempo
e depois, por não serem mantidos pela mente dele,
desapareceriam. Desencarnados estudam e aprendem
desfazem qualquer coisa plasmada. Esse conhecimento não
é só dos bons. (N.A.E.)
HISTÓRIA DE ISAURA
Mary entrou no paiol e viu Lia dormindo, seu sono era
agitado. Aproximou-se e orou, impondo as mãos sobre sua
cabeça e acalmando-a. A socorrista recordou que, numa
aula do curso que desencarnados fazem para aprender a
servir, o orientador explicou por que as pessoas sem o
envoltório físico também dormem. Quando o corpo carnal
morre, temos de aprender a viver no plano espiritual com o
perispírito, que é a cópia do corpo físico. E, enquanto não
aprendemos, temos os reflexos do corpo material, que
podem ser mais fortes em alguns e mais fracos em outros,
dependendo do apego à matéria. Como dormimos quando
estamos encarnados, no momento em que desencarnamos
continuamos sentindo o reflexo do corpo e dormimos
também. Para alguns, o sono é reparador, para outros, o
sono é perturbado por pesadelos. Conforme os
desencarnados vão entendendo e adaptando-se, eles vão se
livrando desses condicionamentos e, não os tendo mais,
param de dormir. Ficar acordado para os bons é ter mais
tempo disponível para trabalhar, auxiliar, aprender e
progredir, e para os maus, para agir imprudentemente.
Espíritos que cometem erros acabam sentindo um vazio
que dói. Eles sentem as horas passar devagar e pensam no
sono como uma bênção que não merecem. Normalmente
têm medo de dormir e serem atacados, não podem confiar
em ninguém. Tudo isso é um sofrimento que a maioria deles
não admite. Desencarnados como Lia, que vive como se
fosse encarnada, embora saiba que seu corpo físico morreu,
dormem como se estivessem no corpo carnal.
Mary saiu do galpão. Ficou na varanda da casa, olhou para
o firmamento e se pôs a admirar as estrelas.
— Como é linda a obra do nosso Criador! - balbuciou.
Depois, começou a pensar na história das pessoas
envolvidas com aquela casa e orou.
— Meu Deus me ilumine me esclareça para que eu possa
ajudar do melhor modo possível!
Lágrimas escorreram pela sua face. Receou novamente
não conseguir auxiliar.
— Mary!
— Carlos Augusto! Que bom vê-lo! - exclamou Mary,
sorrindo.
Ela refugiou-se nos braços do orientador e ele
carinhosamente afagou seus cabelos.
— Vim conversar um pouco com você - disse ele,
gentilmente.
Mary contou tudo o que acontecera e do receio que
estava sentindo.
— Acho que não irei conseguir ajudar Lia - disse Mary.
— Mas você já a está ajudando. São amigas, você a tem
escutado. É tão bom quando temos alguém para nos ouvir -
disse Carlos Augusto.
— Como gostaria de levá-la para uma colônia!
— Lia como já lhe expliquei, ela não ficará bem em
nenhum lugar se não resolver o que a aflige.
— Você sabe o que aconteceu aqui? - perguntou Mary.
— Sei - respondeu o orientador.
— Não é melhor me falar e eu dizer a Lia? - indagou Mary.
— Temos encarnados envolvidos no caso que também
necessitam de auxílio. Fique e faça o que lhe for possível
para ser útil.
— Ajudar encarnados me parece tão difícil - expressou-se
Mary.
— Confiamos esse socorro a você. Não desanime e
esclareça esse caso para você mesma.
— Nunca pensei que alguém pudesse tirar dos meus
escritos ideias para um assassinato - suspirou Mary,
aborrecida - Nunca iria imaginar quando encarnada que, ao
ter meu corpo físico morto, me envolveria numa história de
crimes e seria uma detetive. É... Você, meu amigo, tem
razão: não posso voltar para a colônia, para os meus
estudos, e deixar Lia achando que sou culpada. Seus
maldizeres me incomodam.
— Até logo, Mary! Que Deus a abençoe!
Carlos Augusto se despediu, abraçando-a com carinho.
Mary sentiu-se melhor. O carinho de uma amizade sincera
nos faz muito bem. Ela ficou ali na varanda, meditando,
orando e pensando em tudo que vira e ouvira, o dia clareou
e ela foi acordar Lia:
— Acorde! O dia está lindo!
Lia levantou-se, passou a mão pelos cabelos e pela roupa
se arrumando, olhou para os pés calçados e disse:
— Que bom estar de sapatos! Onde está o Zé Grilo? Ele
ainda não veio?
— Não. Acho que nosso amigo está dormindo
tranquilamente - respondeu Mary.
— Vamos entrar na casa e ver Isaura fazer o café. Sinto-
me bem quando faço isso.
Mary foi com ela. Compreendeu que Lia sentia-se bem
porque sugava as energias de Isaura quando ela se
alimentava. Era como se Lia se alimentasse também. Tendo
reflexos do físico, ela sentia fome. Enquanto a encarnada
alimentava-se, ela sugava seus fluidos e, tendo a impressão
de que comia, sentia-se saciada.
Entraram na cozinha e lá estavam Isaura e Eva
conversando. Lia sentou-se numa cadeira e Mary ficou perto
delas. Escutaram as duas empregadas:
— É isso mesmo Eva, foi assim que aconteceu. O Sr.
Willian e a dona Aidê estavam na varanda. Um vaso que
ficava na mureta caiu e por pouco não espatifou em cima
dela, o Sr. Willian chamou o primo dele que é investigador
da polícia para vir até aqui. Ele acha que alguém está
querendo matar sua esposa. Primeiro o acidente com o
carro e ontem à noite com o vaso.
— Não estou gostando dessa história! - expressou-se Eva.
— Você não está mentindo? Será que você não voltou
para cá ontem à noite? - perguntou Isaura.
— Por que eu faria isso? Por que eu voltaria? Está
duvidando de mim? Acha que sou capaz de assassinar
alguém? - indagou Eva, exaltada.
— Você tem motivos para tentar matar a dona Aidê. Era
amante do Sr. Willian e queria se casar com ele - respondeu
Isaura.
— Queria! Pensava! E daí? Eu me iludi! Willian nunca me
disse que ia se casar comigo. Eu é que sonhei! Quando ele
voltou da viagem casado, fiquei decepcionada. Mas foi só.
Não vou ficar chorando por isso a vida toda. Sou nova,
bonita e já arrumei outro namorado. Se estiver preocupada
com esse investigador, é porque sempre sobra para os
pobres, para os empregados.
— Eva, naquela noite em que dona Lia faleceu, eu tomei
um pouco de sopa. Não aconteceu nada comigo. Se tivesse
cogumelos envenenados, eu também teria morrido.
— Isaura, por favor, não fale isso! Você me prometeu! -
exclamou Eva.
— Por que teme que eu conte? Foi você, Eva, quem
colocou o veneno na sopeira que estava na sala? -
perguntou Isaura, em tom baixo.
— Não! Não fui eu! Mas, se souberem da sua história,
serei acusada! Isaura, se você falar que tomou a sopa, direi
a todos o seu segredo. Sim, eles saberão que você não é
essa santinha que parece ser. Falarei a Gina, escreverei ao
Jorge Luís... Contarei que você amou e foi amante de
Geraldino, o primeiro esposo de dona Lia!
Lia se engasgou. Ela prestava atenção na conversa das
duas e, ao ouvir a revelação, ficou transtornada. Mary
ajudou-a, segurando sua mão com força. Ela melhorou
rapidamente e continuaram escutando.
— Sabe bem que amei Geraldino e que ainda o amo! -
exclamou Isaura.
— Foi e ainda é a legítima esposa dele! A sua viúva! -
expressou-se Eva.
— Conheci Geraldino quando vim trabalhar nesta casa.
Era jovem, bonita e o amei assim que o vi. Ele me disse que
seu casamento fora um erro e que só não se separava de
dona Lia pelo menino, o Jorge Luís. Logo depois nasceu o
Edson. Nós nos amávamos muito e tínhamos planos de ficar
juntos assim que os meninos crescessem. Só que ele
morreu!
— E você ficou aqui cuidando dos garotos como se eles
fossem seus filhos - disse Eva.
— Eram filhos dele, e eu prometi a Geraldino que cuidaria
dos meninos. Não sei por que contei isso a você. Segredo
não se conta!
— Contou porque isso a incomodava. Fomos amantes dos
maridos de dona Lia. E ninguém precisa ficar sabendo disso.
Para isso, basta você não dizer que experimentou a sopa.
Isaura, você provou só um pouquinho, dona Lia tomou a
sopa toda. Tinha cogumelos venenosos, fez mal a ela
porque foi em grande quantidade.
Isaura enxugou as lágrimas e falou:
— Está bem! Não falarei e você também ficará quieta!
Lia saiu correndo. Foi para o paiol. Mary foi atrás dela.
— Mary como sou infeliz! Que traição! Nunca pensei que
Geraldino me traísse. E com Isaura! Uma empregada que
era tratada como se fosse da família! Meus filhos a amam.
Quero morrer! Morrer mesmo! Ai, meu Deus!
Mary a abraçou e ela foi se acalmando.
— Será que foi Eva quem me matou? - perguntou Lia,
ainda chorando.
— Não sei! Ela me pareceu muito suspeita! - respondeu a
socorrista.
— Ainda acho que não! - exclamou Lia - Eva não é
inteligente o suficiente para ter planejado o crime.
Certamente nunca leu um livro!
— Muitos criminosos não leem livros. Alguns são até
analfabetos! - expressou-se Mary.
— Não nesse caso! - falou Lia. O meu assassinato foi
planejado por Willian, que leu aqueles livros e elaborou com
inteligência um crime perfeito. Mary acabei por descobrir
fatos que nem queria saber que meus maridos me traíram
com minhas empregadas, pelas quais tinha muita
consideração. Isaura foi minha melhor amiga, talvez a
única. As outras que denominava amigas eram minhas
conhecidas. Estou começando a achar que Willian também
matou Edson. Não deve ter sido acidente! Ele afastou meu
filho mais velho, Jorge Luís, de casa, dando a desculpa de
que ele nos envergonhava. Deve ter assassinado meu
caçula e depois a mim, recebeu mais herança e agora quer
dar um fim em Aidê.
— Será que ele fez tudo sozinho ou Eva foi sua cúmplice? -
perguntou Mary.
— Tudo leva a crer que Eva o ajudou. Ele casou-se com
outra mulher rica e, se ficar viúvo, herdará a fortuna dela.
Assim poderá casar-se com Eva - disse Lia.
— Eva deve ser a assassina - opinou Mary.
— Sabe o que estou pensando? - indagou Lia, continuando
a falar sem esperar resposta - Estou com saudade dos meus
filhos. Faz tempo que não vejo Jorge Luís, e desde que
Edson morreu não o vi mais. Acho que meu menino foi para
um lugar bom.
— Lia, conte-me como foi que ele desencarnou - pediu
Mary.
— Quando fiquei viúva com os dois filhos pequenos, Isaura
me ajudou muito. Agora sei o porquê: cuidou dos filhos de
Geraldino como se fosse a viúva dele. Eu já conhecia
Willian, que logo depois do falecimento do meu esposo me
cortejou. Namoramos e nos casamos. Tivemos Giovana, a
fofinha da Gina. Ainda bem que ela se casou e não mora
mais aqui! Jorge Luís é muito inteligente, desde garoto tinha
um modo estranho de agir. Willian queria que ele fosse mais
masculino e os dois brigavam muito. Após muitas
desavenças, ele resolveu ir embora: estudar e trabalhar no
exterior. Foi para a Inglaterra e não voltou mais. Edson era
levado. Willian também implicava com ele, pois faltava às
aulas, não gostava de estudar e era briguento. Um dia, ele
saiu para passear a cavalo, como fazia sempre, porém
demorou a voltar. Adelino foi atrás dele e o achou caído na
pedreira. Ele estava morto. Foi muito triste!
— Pedreira? Onde é esse lugar? - perguntou Mary.
— Do outro lado da estrada, fica aqui perto. É uma
pedreira desativada. Lá tem um buraco profundo. Depois do
acidente, cercaram-na. Não sei por que Edson foi lá e como
caiu.
Lia voltou a chorar e Mary a consolou. Quando ela se
acalmou, a socorrista a convidou:
— Vamos voltar para dentro da casa e continuar
escutando as conversas?
— Não, vá você. Depois você me conta, se escutar algo
interessante. Estou muito triste!
— Você ainda está com muita raiva de Isaura? - perguntou
Mary.
— Como falei, estou triste, infeliz. Mas a raiva está
passando - respondeu Lia. Admiro você, minha amiga. É
incapaz de guardar mágoas.
— Nunca odiei ninguém nem quero ter esse sentimento,
principalmente agora depois de morta. Às vezes uma
pessoa nos faz muitos favores e, por uma ofensa, não a
queremos mais como amiga. Temos facilidade de ver mais
os defeitos do que as qualidades - expressou-se Mary.
— Suas palavras são sábias - disse Lia devagar - Desejo
continuar querendo bem Isaura. Ela errou ao me trair, ao se
envolver com um homem casado. Mas, ela foi muito boa
para mim, foi uma mãe, talvez mais do que eu, para os
meus filhos. É essa lembrança que quero guardar dela.
Quero ter sempre na memória os favores que ela me fez!
Também não sinto raiva de Eva por ter me traído. Embora
tenha sido ingrata! Quando órfã, ela não tinha nem para
onde ir. Nós a acolhemos e aqui nada lhe faltou, foi bem
tratada. Acho que não resistiu aos encantos de Willian. Vou
entristecer-me mais ainda se descobrir que foi ela quem me
assassinou ou que foi cúmplice de Willian. Vá, Mary. Tente
descobrir mais alguma coisa. Vou chorar sozinha. Talvez
consiga dormir.
Mary a abraçou e sentiu que valia a pena estar ali e ajudá-
la. Lia demonstrara ser uma boa pessoa.
A socorrista entrou na casa e foi procurar Isaura, que
estava no quarto chorando e olhava com carinho fotos
antigas. Passava a mão carinhosamente numa fotografia em
que estavam retratados dois garotos e um moço, que Mary
deduziu ser Geraldino, Jorge Luís e Edson.
— Que faço? - pensava Isaura - Falo que tomei a sopa na
cozinha naquela noite ou não? Se falar, Eva contará a todos
meu segredo. Gosto dessa menina. Lembro quando Eva veio
para cá, era frágil e muito sofrida. É doloroso admitir, mas a
assassina é Eva! Matou dona Lia e agora quer assassinar
dona Aidê! Ela está com medo. E, se me está chantageando,
tem culpa. É culpada! Cometeu o crime para que o Sr.
Willian ficasse viúvo. Como ele casou-se com outra, quer
matar essa coitada para que ele fique de novo viúvo. Aí,
certamente Eva irá chantageá-lo para que se case com ela.
Dona Lia já morreu, mas dona Aidê ainda não. Se eu me
calar e dona Aidê morrer, vou ser cúmplice e ficarei com
remorso. Que devo fazer?
— Fale Isaura! - expressou-se Mary, olhando-a.
Isaura não a ouviu nem sentiu seu apelo e continuou
pensando:
— O que Jorge Luís irá pensar de mim se souber que fui
amante de seu pai? Amo-o como se ele fosse meu filho. Meu
menino já sofreu muito, o Sr.Willian ofendia-o por ele ser
homossexual, e tanto brigaram que ele saiu de casa. Dona
Lia amava o filho, mas ficava sempre a favor do esposo.
Agora Jorge Luís está bem melhor: tem um bom emprego,
mora num lugar bonito e não quis nada disto aqui, tanto
que deixou sua parte da herança de sua mãe para a irmã
Gina.
— Fale, pense um pouco sobre você! - disse Mary.
Isaura já estava pensando. Assim, bastou a socorrista
induzi-la para que ela se recordasse. Isaura não escutou o
que ela disse. Só sentiu vontade de pensar. Mary
acompanhou seus pensamentos:
"Sou filha de lavradores, meus pais eram pobres.
Trabalhavam num sítio vizinho daqui. Geraldino era rico,
tinha estabilidade financeira. Ele casou-se com dona Lia e
vieram morar na chácara. Eu vim ser empregada deles,
tinha dezesseis anos e só tinha tido um namoradinho.
Sempre fui bem tratada, dona Lia sempre foi boa comigo.
Nasceram os meninos e os amei como também amei
Geraldino. Creio que ele também me amou, confiava mais
em mim para cuidar dos filhos do que na esposa. Pedia para
que eu o esperasse até os meninos crescerem, iríamos ficar
juntos, casar. Lembro com detalhes de quando ele ficou
doente. Foi ao médico, que lhe pediu para fazer alguns
exames em um hospital mais bem aparelhado. Quando ele
obteve o resultado, veio aqui no meu quarto, sentou-se
nesta cama e muito triste falou: - “Isaura, estou com uma
doença séria no coração. Vou me internar. Se eu morrer,
cuide dos meninos por mim, por favor!” - Eu prometi e ele
não voltou. Dona Lia ficou viúva por pouco tempo. Eva tem
razão: sou eu a viúva de Geraldino. Nunca mais me
interessei por outra pessoa. Sempre o amei e cumpri o
prometido: cuidei dos filhos dele. Pena que Edson morreu!”
— Fale de Edson! - pediu Mary.
“Edson - Isaura continuou pensando - era revoltado. Não
aceitou o novo casamento da mãe e estava sempre
nervoso. Eu não conseguia acalmá-lo, vivia constantemente
agitado. Sofri muito quando aconteceu o acidente e ele
faleceu.”
— Vou fazer o almoço! - exclamou Isaura baixinho, saindo
do quarto.
Mary viu espalhadas pela cama muitas cartas de Jorge
Luís. Ele escrevia muito para Isaura e lhe mandava dinheiro,
que ela colocava numa caderneta de poupança.
O moço contava para a sua ex-babá, que a amava como
mãe, seus anseios e tudo de importante que acontecia com
ele. Tornou-se espiritualista, conforme escrevera, estudava
a Bíblia e amava ler os Evangelhos. Participava de um grupo
de estudos que acreditava na reencarnação. Tentou explicar
para Isaura numa longa missiva essa lei que nos faz
compreender a Justiça de Deus. Não tinha parceiros nem os
queria. Desejava ser útil e fazer o bem. Trabalhava como
voluntário em um hospital infantil, onde três vezes por
semana vestia-se de palhaço e alegrava crianças doentes.
Mandava fotos em que aparecia vestido dessa maneira
sempre ao lado de crianças com aspecto doentio, mas que
sorriam alegres. Jorge Luís contava que preenchia sua vida
dessa forma. Dera à sua existência um significado,
direcionara seu afeto a quem dele precisava e não sentia
carência afetiva.
Mary compreendeu que Isaura orgulhava-se daquele
jovem e tinha medo de decepcioná-lo, caso ele soubesse a
verdade sobre ela e o pai dele. Entendeu que ela sofria e
estava indecisa sobre o que fazer. Achou que ela ficaria
calada.
SABENDO DOS FATOS
Mary voltou ao galpão e encontrou Lia sentada num canto,
triste. Ao vê-la Lia disse:
— Amiga, foi Willian quem me matou! E acho que o
acidente em que Edson morreu não está bem explicado. Ele
não gostava do Jorge Luís e, quando este foi embora,
passou sua implicância para o Edson, que era um garoto. Eu
achava, naquela época, que meu marido queria educá-lo.
De fato meu filho não estava bem, era um adolescente
rebelde, não queria estudar e saía com más companhias.
Mas, foi um acidente estranho! A polícia achou o cavalo
pastando por perto. Dizem que investigaram, mas eu nunca
fiquei sabendo o que aconteceu. Willian cuidou de tudo.
Achei que era uma demonstração de carinho de sua parte.
Agora que sei que foi ele quem me assassinou, desconfio
também que matou Edson. Vou gritar para ele saber que
descobri!
Lia saiu correndo em direção a casa e Mary correu atrás
dela. Entraram na sala e encontraram Willian lendo um
jornal.
— Assassino! Você é um criminoso cruel! - gritou Lia, com
raiva.
Willian parou de ler, deixou o jornal cair, recebeu fluidos
negativos, passou a mão pela testa e falou baixinho:
— Assassinato! Não deve ter ocorrido nada disso nesta
casa! Estou com medo à toa! Lia morreu por imprudência
dela mesma, por sua mania de tomar sopa de cogumelos.
Foi um acidente! Gostava dela e senti sua morte. Amo Aidê
como nunca amei alguém. Devo estar estressado e
imaginando coisas. Ninguém quer matá-la!
— Você foi amante de Eva! Traiu-me sem pudor. Você não
presta! - gritou Lia, olhando-o fixamente.
— Eva! - falou Willian baixinho. - Será? Eu sempre disse a
ela que não a amava que era só uma aventura. Quando Lia
morreu, tive remorso por tê-la traído, e justamente com a
empregada que ela acolheu quando ficou órfã, por isso
acabei com o relacionamento. Falei até que nunca me
casaria com ela. Meu Deus! Será que Eva está tentando
matar Aidê? Tomara que Reginaldo não demore a chegar!
— Você me queria bem? Teve remorso? - indagou Lia, já
mais calma.
Willian sentiu-se incomodado e desabotoou os primeiros
botões da camisa, aliviando o pescoço. Ficou quieto. Lia
percebeu que ele estava pensando e indagou à Mary:
— Você consegue saber o que ele pensa?
— Sim - respondeu a socorrista - Vou dizer a você: seu ex-
esposo está pensando que a queria bem e a seus filhos
também.
Lia torceu as mãos, dizendo para Mary:
— Posso até perdoá-lo por ter me matado, mas, se ele
assassinou Edson, não sei o que faço - Ela virou-se para
Willian, aproximou-se e gritou:
— Assassino! Você matou Edson!
— Não e não! Edson suicidou-se! Ele mesmo se matou! -
resmungou Willian, sentindo um mal-estar.
— Como é? Do que você está falando? Pense nisso! Quero
saber! - falou Lia, autoritária.
Willian pensou. Mary ouviu seus pensamentos disse para
Lia: "Edson tinha doze anos quando Willian ficou sabendo
que o menino estava usando drogas. Não contou a você
para não magoá-la nem preocupá-la, porque você estava
sofrendo com a partida de Jorge Luís. Era ele que resolvia os
problemas do garoto na escola e até com a polícia. Edson
roubou uma quantia grande de dinheiro. E, quando o
encontraram morto, foi achado junto dele um papelote de
cocaína. A autópsia revelou que ele tomara uma overdose.
Ninguém ficou sabendo se ele caiu por acidente ou se
suicidou. Willian acredita que Edson se matou!
— É isso mesmo que ele pensou? Meu Deus! - exclamou
Lia, apertando a mão de Mary - Agora estou confusa! Será
verdade?
— Lia - disse a socorrista - vá para o paiol. Irei em
seguida.
A ex-dona da casa saiu devagar, com a cabeça baixa.
Mary deu um passe em Willian, tirando a energia de raiva,
nociva que Lia jogara nele. Ele melhorou, pegou o jornal e
tentou ler. Estava cansado, preocupado e ansioso para que
o primo chegasse logo.
“Willian - disse Mary mentalmente - pense sobre você.
Como foi a sua vida?”
Mary pediu, e ele podia ou não atendê-la. Temos o nosso
Livre-arbítrio. Nesse caso, como Willian estava apreensivo,
com vontade de falar, ele pensou, e foi como se
desabafasse com alguém. Atendeu ao pedido de Mary,
embora não soubesse dessa possibilidade nem acreditasse
ser isso possível. Os fatos acontecem independentemente
de se acreditar ou não. Sentimos energia de raiva, ódio,
bem como de amor e carinho. A socorrista transmitiu calma
a ele, que suspirou aliviado e se pôs a pensar:
"Sou de família pobre, sempre quisera ser rico, era
ambicioso. Aproveitei que era bonito e esforcei-me para ser
agradável. Estudei com vontade, fui bom aluno. Terminei a
oitava série e não consegui continuar os meus estudos. Fui
trabalhar em um escritório de advocacia, e foi lá que
conheci Lia. Ela ia lá às vezes com Geraldino e, quando
ficou viúva, passou a ir com mais frequência, para fazer o
inventário. Uma tarde vim até aqui na chácara trazer alguns
documentos e ficamos conversando. Comecei a arranjar
desculpas para vir visitá-la. Meu pai me dizia: - “Se você
quer ser rico, case-se com essa viúva.” - Fiz tudo para
conquistá-la. Lia resistiu, mas acabou se apaixonando por
mim e nos casamos. Tentei ajudá-la na administração dos
bens e com os filhos. Nasceu Giovana, minha filha, que só
me deu alegrias. Quis educá-los igualmente. Não queria que
Jorge Luís fosse homossexual, e foi um alívio quando ele foi
embora. Edson só me deu preocupações. Tive esperança de
recuperá-lo, e então aconteceu a tragédia. Escondi a
verdade de Lia, deixei que ela pensasse que fora acidente.
Evitei que minha esposa sofresse. Agora estou preocupado
com Gina, ela não gostou de me ver casado com Aidê. Será
que foi ela quem tentou matá-la?”
Willian suspirou, balançou a cabeça e balbuciou:
— Não! Gina, não!
— O que foi Sr. Willian? Que falou? Não escutei - disse
Isaura, que entrara na sala.
— Nada, Isaura - respondeu ele - estava pensando que
Gina não gostou de me ver casado com Aidê.
— O senhor não esperou nem um ano para se casar!
Magoou a menina, que é muito delicada e sensível. Mas,
bondosa como é, ela logo esquecerá a mágoa e será amiga
de dona Aidê - disse a empregada.
— Você acha mesmo, Isaura? Queria muito isso. Amo
minha filha.
— Com o esposo dedicado que ela tem que lhe faz todas
as vontades, não ficará triste por muito tempo.
— É verdade. Agenor faz tudo para agradá-la. Espero que
continue assim - expressou-se Willian.
— O senhor desconfiou dele no começo do namoro, mas
dona Lia gostava do Agenor - falou Isaura.
— É que ele era muito farrista e mulherengo quando
solteiro. Pensei que iria nos pedir muito dinheiro. Mas
Agenor arrumou um bom emprego, ganha bem e nunca nos
pede nada. Minha implicância com ele deve ser ciúme de
pai. Continuo não gostando dele, só que lhe sou grato por
fazer Gina feliz.
— Vim saber se o senhor quer algo diferente para o
almoço. Será que dona Aidê quer fazer o cardápio? -
perguntou Isaura.
— Cuide você disso. Aidê está indisposta, enjoada e não
quer nem ouvir falar em comida - disse Willian.
Isaura foi para a cozinha, Willian passou a ler o jornal e
Mary foi ver Aidê, que estava no seu aposento, deitada. A
futura mamãe sentia os enjoos provocados pela gravidez.
Aidê estava triste e pensativa. Mary acompanhou seus
pensamentos:
"Não sei se agi certo casando-me com Willian. Estou com
receio das coisas que têm acontecido. Primeiro foi o carro,
se eu tivesse ido viajar, talvez tivesse morrido. Eu tinha de
levar alguns documentos numa cidade próxima e, como
estava indisposta, Willian pediu para Adelino levá-los para
mim. Disseram que o freio estava danificado. O empregado
habilidoso e bom motorista, ao descer a serra, quando
percebeu que estava sem freio, virou o carro, entrou numa
estrada secundária e depois em um campo. Será que eu
faria isso? Certamente eu me apavoraria e tentaria
continuar descendo, o acidente poderia ser fatal. Depois o
vaso! Como caiu? Quero voltar a morar na minha cidade, no
meu apartamento. Vou pedir isso ao meu esposo. Lá tenho
segurança e amigos. Parece que atraio acontecimentos
estranhos. Tantas coisas já aconteceram comigo... Fiquei
órfã adolescente, recebi de herança um bom patrimônio e
com o meu trabalho dedicado o multipliquei. Tenho a escola,
de que gosto muito, e começo a sentir falta dela. Hoje estou
com saudade de Dirceu, o homem que amei.”
Aidê suspirou e uma imagem veio à sua mente. Era a de
um moço muito bonito, que sorria amorosamente. Ela
continuou a pensar:
"Namoramos quatro anos, ficamos noivos e, quando íamos
nos casar, ele faleceu naquele acidente de carro. Sofri
muito. Prometi a ele e a mim que nunca mais teria outro
namorado, que nunca me casaria, O tempo passou, senti
falta de companhia, queria ter filhos e não conseguia
namorar ninguém. Muitos homens se interessavam por
mim, saíamos algumas vezes e logo eles sumiam, não
queriam me ver mais, Isso ocorreu muitas vezes e me
deixava triste. Aí, uma professora me convidou a ir a um
centro espírita com ela para receber passes. Fui, melhorei e
percebi que naqueles anos eu não estivera bem. Indaguei a
uma senhora médium que lá ajudava o que se passava
comigo. Ela me explicou que meu ex-namorado, o Dirceu,
estivera ao meu lado àqueles anos todos. Ele, com ciúme,
não deixava ninguém se aproximar de mim, cobrava a
promessa que eu fizera. Foi muito bom para eu ter ido
àquele centro espírita, e foi também para o Dirceu, pois ele
compreendeu que tinha de viver como o desencarnado que
era. Conheci Willian e achei que poderíamos dar certo,
éramos ricos e viúvos... Eu sempre me considerei viúva.
Tínhamos chances de ser felizes e eu de realizar o sonho de
ser mãe. Será que a primeira esposa de Willian está aqui e
por ciúme quer me prejudicar? Estou com medo.”
Mary deu um passe em Aidê, que se acalmou e dormiu. A
socorrista ficou olhando-a e pensando no que acontecera
com ela. Muitas pessoas se confundem e, ao desencarnar,
não querem admitir que o corpo físico morra. Muitos se
iludem e não aceitam o inevitável, ficando perto de afetos.
Em alguns casos, isso pode resultar em obsessão, isto é, o
desencarnado permanece ao lado de um encarnado,
participando de sua vida e podendo até interferir nos
acontecimentos diários. Há uma troca de energias entre os
dois, o espírito absorve, retira para si energias do que está
na matéria para sentir-se alimentado. E o que está no
invólucro físico sente as sugestões e angústias do
desencarnado. Essa troca de fluidos existe porque os
imprudentes e os iludidos não querem aceitar a mudança de
plano. Há infelizmente os que obsedam por ódio e vingança.
Esses casos são mais complicados de ser resolvidos, porque
tem de haver a reconciliação e o perdão. Às vezes, basta
orientá-los, como aconteceu com Aidê e Dirceu. Muitos
desencarnados não têm intenção de prejudicar os afetos
nem querem, e, quando compreendem, aceitam o socorro e
vão para um abrigo. Os dois se amaram muito, eram noivos.
Ele desencarnou tragicamente num acidente, não aceitou a
mudança de plano e ficou ao lado dela, que num momento
de dor, no velório, prometeu que não teria mais ninguém,
que não amaria nenhum outro homem. Não se deve fazer
promessa, principalmente em momento de desespero.
Mesmo junto dela, Dirceu foi aos poucos entendendo o que
acontecera, porém não quis afastar-se de sua amada,
cobrando-lhe a promessa e fazendo tudo o que estava ao
seu alcance para afastar seus pretendentes. Ao ir pedir
auxílio em um centro espírita, eles certamente o orientaram
numa reunião de desobsessão e o encaminharam para um
local de socorro. Esse esclarecimento o fez compreender
que a vida continuava para ele e para ela. Essas
elucidações fazem bem tanto para os que vão para a
Espiritualidade como para os que ficam no plano físico.
Mary desceu as escadas e viu Eva limpando a sala de
jantar. Ela estava nervosa e gerava uma energia negativa
por estar com muita raiva. Aproximou-se da empregada e
ouviu-a, em pensamento:
— Willian é cafajeste! Malandro! Só se casou com Aidê por
dinheiro! Primeiro enganou dona Lia, foi fácil se casar com
ela, uma viúva com dois filhos. Sei muito bem o que ele faz!
Com sua conversa agradável, ele ilude as mulheres. Não sei
por que fui envolver-me com ele. Esse investigador vai
descobrir tudo. É culpa dele! Odeio você, Willian! Tenho
vontade de matá-lo.
— Descobrir o que, Eva? Pense! O que teme ser
descoberto? - Mary induziu Eva a pensar, mas esta não
aceitou a sugestão dela e ficou só xingando Willian em
pensamento.
A socorrista tentou passar energias benéficas para
acalmá-la. Eva não as aceitou, repeliu-as e continuou no seu
baixo padrão vibratório, com seus pensamentos de raiva.
Querendo o mal do próximo, a empregada criou para si uma
couraça que não permitia que nenhum fluido benéfico
entrasse. Isso acontece muito. Às vezes, as pessoas não
recebem energias restauradoras, nem em câmaras de
passes, por causa de seus maus pensamentos. Raiva, ódio e
rancor barram as energias boas, e elas voltam à origem.
Algumas pessoas não se tornam receptivas para receber
essas vibrações benéficas. Isso ocorre até com médiuns,
que às vezes se queixam que seu protetor não está
presente, pois deixou que coisas ruins lhe acontecessem.
Em primeiro lugar, nem tudo o espírito pode fazer pelo
encarnado. Em segundo, muitas vezes imprudentemente o
médium cria uma energia negativa por atitudes indevidas,
formando essa barreira. É claro que ela se desfaz assim que
a pessoa se acalma, ora, pensa diferente, mas às vezes ela
pode ficar no físico, dando ao indivíduo algum mal-estar. E,
se persistir, pode se acumular e adoecer o físico. Fluidos
gerados como os de Eva incomodam espíritos bons, que
quase sempre preferem afastar-se. Já os espíritos maus,
infelizmente, gostam de aumentá-los.
Mary sentiu Lia chorar e foi para o paiol...
VISITANDO EDSON
— Se estivesse viva, diria que iria morrer de tanto chorar.
Mas já morri! - exclamou Lia, sentida.
— Só o corpo físico morre - disse Mary. A vida continua
após a morte carnal. Somos sobreviventes da tragédia que
é o falecimento do corpo físico. Sofreríamos menos se
compreendêssemos mais esse fato natural. Porque todos
que nascem morrem; quem encarna desencarna. Acho
minha cara, que, ao termos o corpo morto, sentimos de
imediato os reflexos de nossa existência carnal. Para
aqueles que viveram sem apego, fazendo o bem, não se
deixando escravizar por coisas materiais e se ligando às
espirituais, a desencarnação é tranquila. Não existe a morte
que acaba com tudo. Só existe a vida. E essa mudança para
ser boa ou má, depende só de nós...
— Zé Grilo me disse uma vez que só morre quem é vivo,
mas isso não me serviu de consolo - disse Lia, suspirando.
— Continuamos vivas Lia, a morte do corpo só nos leva a
viver de outro modo.
— Estou com saudade do Edson - falou Lia, enquanto
lágrimas escorriam abundantemente pelo seu rosto. Sofri
muito quando ele desencarnou e ainda sofro. É muito triste
ver alguém que amamos falecer. Quando vi meu filho no
caixão, pensei que fosse morrer também. A dor é muito
grande.
Lia chorou alto, Mary também chorou só que baixinho. A
socorrista sentiu a dor da companheira.
— Querida! - exclamou Lia - Você é minha amiga! Porque
podemos dizer que alguém é nosso amigo quando este
sofre conosco! Estamos chorando juntas!
— O pranto nos dá alívio! - esclareceu Mary.
— Minha amiga, eu não tenho muito a oferecer. Você quer
dormir neste canto? Cedo-lhe o meu lugar. Quer meus
sapatos?
— Não quero nada Lia, obrigada. Estou bem sentada neste
banco e tenho os meus sapatos. Você não quer descansar
um pouco? Dormir?
— Tenho receio de dormir a essa hora - respondeu Lia - e
não conseguir fazê-lo à noite. Passar a noite acordada é
muito triste. E agora parece que não terei mais o Zé Grilo
para conversar. Ele sumiu! Enquanto você estava lá na casa,
fui atrás dele, não o encontrei e não vi mais o buraco em
que dormia. Ele desapareceu. Acho que foi viver onde os
desencarnados moram. Deus deve ter tido pena daquele
anão. Quando encarnado, ele fez atos errados e seu castigo
foi grande. Tomara que esteja bem.
— Certamente está - respondeu Mary - Descanse Lia, caso
fique acordada à noite, eu lhe faço companhia.
A socorrista fez com que Lia dormisse. Ficou por minutos
pensando onde estaria o filho dela que desencarnara e o
que teria de fato acontecido.
Resolveu ir ao posto de socorro que havia visitado e onde
Esmeralda e Zé Grilo foram abrigados. Volitou até ele, no
portão, disse que queria informações e foi convidada a
entrar. Atendida novamente pelo orientador da casa, Mary
foi direto ao assunto e pediu:
— Gostaria de obter informações sobre uma pessoa:
Edson, filho de Lia, que desencarnou há alguns anos.
Mary continuou a conversa dando mais detalhes.
— Recordo-me desse fato, o mocinho estava com
dezesseis anos. Ele atualmente está numa colônia que
abriga suicidas - esclareceu o orientador.
— Meu Deus! Ele se matou! Então é verdade o que Willian
pensou. Quero ir lá. Como faço? - indagou Mary.
— Vou pedir para um socorrista de a casa levá-la -
respondeu o orientador, gentilmente.
Não é porque desencarnamos que sabemos tudo, como
também os socorristas não conhecem todos os lugares do
plano espiritual, que é tão extenso quanto o plano físico ou
mais. Desencarnados com mais conhecimento e
experiência, ao terem referências sobre determinados
lugares, podem se sintonizar e ir sozinhos. Mary ainda não
os tinha o suficiente para isso. Ela só foi ao posto de socorro
porque ele era perto. Carlos Augusto havia lhe falado e dado
referências sobre o local onde estava localizado, como era
etc.
Logo foi até eles um senhor de agradável aspecto.
— Este é Josemar, um trabalhador que conhece bem a
região e a casa de socorro em que quer ir.
Após os cumprimentos, eles saíram do posto de socorro.
Josemar pegou delicadamente na mão de Mary e eles
volitaram. Logo estavam em frente a uma colônia de porte
pequeno, perto do umbral, em que eram abrigados
imprudentes que deserdaram da existência no físico.
Há muitas dessas casas de auxílio ou socorro pela Terra,
pelo Brasil. São singelas, simples, com jardins floridos e com
grandes enfermarias, que estão sempre com muitos
abrigados. Eles foram recepcionados por uma moça muito
bonita: Nelma.
Após escutar Mary, ela os conduziu para uma ala onde
estavam em tratamento, em recuperação jovens que
fugiram da vida física e encontraram muitas decepções e
sofrimentos na continuação da vida, na espiritualidade.
Entraram numa enfermaria com tudo muito limpo e com
doze leitos. Nelma aproximou-se de um leito e disse:
— Aqui está o Edson. Vou acordá-lo para que você, Mary,
converse com ele. Edson! Acorde! Você tem visita!
O jovem abriu os olhos e observou bem os dois, Mary e
Josemar, tentando reconhecê-los.
— Você não nos conhece, Edson - disse Mary.
— Sou amiga de sua mãe, de Lia.
— Como mamãe está? Ela ainda sofre muito pela minha
morte? Hoje cedo eu a senti chorando por mim - falou ele.
— Sua mãe desencarnou e... - disse Mary.
— Desencarnou? Como? Por quê? Ela se suicidou? -
perguntou o garoto.
— Lia não se suicidou - respondeu Mary.
— Ainda bem! - exclamou Edson, aliviado - Como ela está?
— Querendo vê-lo - respondeu Mary.
— Ela sabe o que aconteceu comigo? - indagou.
— Encarnada, ela acreditava que fora um acidente. Só
agora ficou sabendo de tudo, depois de ouvir os
pensamentos de Willian, mas não sabe dos detalhes -
respondeu Mary.
— Queria lhe pedir perdão - disse Edson.
— Vou sair um pouco e já volto - falou Mary.
Mary chamou Nelma com a mão e elas saíram do quarto.
Foram ao jardim e Mary pediu:
— Será que não podemos trazer a mãe para vê-lo? Lia
ainda não foi socorrida, mas será, com certeza, em breve.
Se os dois se virem e se entenderem, será bom para ambos.
— Podem - respondeu Nelma - Vai ser muito bom para ele
pedir perdão à mãe por tê-la feito sofrer tanto. Uma grande
angústia que sentem os que imprudentemente deserdaram
da vida encarnada é o remorso por ter causado transtornos
e padecimentos a entes queridos. Saber da dor dos pais e
senti-la os amargura, e eles sentem uma grande vontade e
necessidade de serem perdoados. Traga a mãezinha do
Edson. Vou prepará-lo e o trarei para cá, para o jardim, onde
os dois conversarão.
— Você me ajuda, Josemar? - perguntou Mary ao
socorrista, que a acompanhava.
— Ajudo!
Volitaram até o paiol.
— Lia acorde! Temos visita! - exclamou Mary.
Ela acordou, sentou-se e observou o socorrista. Mary
explicou:
— Este é Josemar, um senhor desencarnado como nós que
pode nos levar até Edson.
— Para ver meu filho? - perguntou Lia, espantada.
— Sim, respondeu Mary. Ele veio aqui para nos levar. Você
chorou, pediu a Deus para vê-lo e o Pai Amoroso permitiu
que alguém viesse ajudá-la.
— Muito obrigada! Primeiro a Deus e depois a você,
Josemar. Quero ir!
Lia levantou-se e Mary ajeitou-a. Passou as mãos por sua
roupa, limpando-a, e arrumou seus cabelos.
— Pronto! Você está bem! Lia, aproveite a oportunidade
dessa visita e entenda-se com seu filho, escute-o. E não
chore, para não deixá-lo triste - recomendou Mary.
— Quero abraçá-lo e dizer que o amo! - exclamou Lia.
Os três deram as mãos e Mary pediu para a amiga que
fechasse os olhos. Volitaram, quando abriu os olhos, Lia
estava no jardim da colônia, próxima a Edson, que estava
sentado num banco. Lia ficou parada por um instante,
olhando-o. Depois correu até ele, abraçou-o e beijou-o:
— Edson, filho do meu coração!
— Mamãe! Minha mãe!
Os dois choraram abraçados. Josemar disse que ia
aproveitar para visitar um amigo ali na colônia e Nelma
falou que ia esperá-los sentada num banco não longe deles.
Mary acomodou-se perto dos dois e ficou quieta, escutando-
os.
— Mamãe, perdoe-me! Agi errado! - exclamou Edson.
— Perdoo meu filho! Conte-me o que aconteceu. Por que
agiu inesperadamente? - pediu Lia.
Edson pegou na mão da mãe e falou calmamente,
explicando tudo. Não era fácil para ele confessar seus erros,
mas sentia-se aliviado por fazê-lo:
— Como Jorge Luís era homossexual, éramos
ridicularizados pela turma da escola. Fiquei com medo de
ser também. Meus colegas zombavam de mim e criticavam-
me, eu sofria com a situação e odiava meu irmão por isso.
Conheci um grupinho que me entendeu, eles se drogavam e
passei também a fazer uso de drogas.
Edson fez uma pausa, suspirou tristemente e, sentindo o
olhar amoroso da mãe, continuou a falar.
— A diretora da escola descobriu e conversou com Willian.
Ele resolveu me corrigir, conversou comigo, explicou os
inconvenientes que os tóxicos me trariam. Seu marido foi
bom comigo. Só que naquela época achei que ele estava se
intrometendo na minha vida, afinal, ele era só meu
padrasto. Discutimos, Willian me vigiava, mas mesmo assim
fui me envolvendo cada vez mais com as drogas. Percebi
que era um dependente e que não conseguiria mais ficar
sem elas e precisava cada vez mais de dinheiro para
sustentar o meu vício. Então, roubei o talão de cheques de
Willian, falsifiquei sua assinatura e comprei drogas para
mim e para o meu grupo. O gerente do banco telefonou
para Willian, ouvi atrás da porta ele falando sobre os
cheques. Temi ser desmascarado, certamente dessa vez ele
ia lhe contar tudo. Estava apavorado e achei que não valia a
pena viver. Saí a cavalo, parei na pedreira, tomei uma
overdose, esperei alguns minutos e pulei lá de cima, como
se fosse sair voando, como um pássaro. Caí e meu corpo
morreu, permaneci, em espírito, junto ao invólucro sem
vida. Vi de forma confusa quando me acharam à dolorosa
autópsia, o velório e a senhora chorando em meu enterro. A
escuridão do túmulo me apavorou. Depois me tiraram de lá.
Hoje sei que foram os socorristas que auxiliam no cemitério
que me ajudaram. Fui para um lugar triste, o umbral, onde
outros como eu me reúnem para se queixar. Foi tudo muito
confuso e triste, arrependi-me e sofri demais. Fui trazido
para cá, onde estou me recuperando. Sei que a fiz sofrer e
seu perdão para mim é muito importante.
— Edson, Willian não foi mau com você! - exclamou Lia.
— Não, ele tentou ajudar-me. Willian contou tudo isso para
a senhora?
— Ele não me falou nada, para mim você havia
desencarnado por um acidente. Depois, até desconfiei que
ele o tivesse matado - respondeu Lia.
— Willian foi bom comigo - repetiu Edson. Ele fez de tudo
para que eu não me viciasse nem saísse com más
companhias. Se não lhe contou a verdade, é porque quis
poupá-la. Mamãe, meu pai tem vindo me visitar, ele
também sofreu com a desencarnação. Não estava
preparado e revoltou-se com a mudança de plano que foi
obrigado a fazer com a morte de seu corpo físico.
Arrependeu-se por tê-la traído e por ter feito Isaura
prometer que cuidaria de nós. Ele acha que estragou a vida
dela. Aborreceu-se muito quando a senhora casou-se
novamente. Agora está numa colônia, aprendendo a viver
como um desencarnado. A senhora já sabia que meu pai foi
amante de Isaura?
— Soube há pouco tempo - respondeu Lia, suspirando.
— Mamãe, lembre-se de que Isaura foi sempre boa
conosco e que a ajudou demais. Gosto dela!
— Você tem razão, Edson. Isaura foi muito boa conosco. É
disso que devemos lembrar. Continuo gostando dela!
— Ainda bem! - exclamou o garoto.
Ficaram conversando e lembrando de fatos agradáveis.
Mary levantou-se e foi sentar-se junto a Nelma, deixando-os
juntinhos e à vontade.
— Nelma, você trabalha aqui há muito tempo?
— Há sete anos. Gosto muito desta colônia.
— Teve algum motivo especial para você escolher esse
trabalho? - quis saber Mary.
Nelma sorriu, compreendendo a curiosidade dela, e
respondeu:
— Na minha penúltima encarnação, desencarnei por
imprudência, suicidei-me. Achei que estava apaixonada, fui
desprezada e tomei veneno. Sofri por muito tempo e fui
socorrida por bondade do Pai Maior, por dedicação de
pessoas que ajudam os que sofrem. Irmão auxiliando irmão.
Estive abrigada numa colônia igual a esta e depois tive o
esquecimento com a bênção da reencarnação. Voltei a
vestir um corpo físico, esquecer aquele ato insensato me fez
bem! No físico, fui deficiente, surda-muda. Era filha de mãe
solteira, nós nos amávamos muito. Minha mãezinha tomou
conta de mim com amor e, quando adulta, fui eu quem
cuidou dela, que ficou doente. Um dia, ao ir à padaria, olhei
o semáforo, que estava aberto para os pedestres, e pus-me
a atravessar a movimentada avenida, tranquilamente. Um
caminhão, que estava com o freio avariado, descia em alta
velocidade. Pessoas gritaram só que, como eu não ouvia, fui
atropelada, desencarnei. Dessa vez foi diferente, mereci ser
socorrida imediatamente. Tive uma existência exemplar:
não me revoltei, fui boa filha e fui religiosa. Minha mãe
sofreu muito com a morte do meu corpo físico. Dois anos
depois ela veio se encontrar comigo. Hoje ela mora em
outra colônia e nos visitamos sempre.
Nelma fez uma pausa, sorriu de modo delicado e
continuou a falar:
— Ao vir para o plano espiritual, adaptei-me rapidamente,
dias depois estava falando e ouvindo. Aprendi a viver na
Espiritualidade, passei a ser útil. Tinha horror só em falar
em suicídio e, como esse assunto me incomodava, recordei
que já me suicidara. Pedi para trabalhar auxiliando ex-
suicidas, estudei para servir com sabedoria e vim para esta
colônia. E aqui estou agradecida por poder ajudar num local
parecido com aquele onde fui ajudada.
— Aqui há muitos abrigados? - perguntou Mary.
— Sim, há muitos - respondeu Nelma - "Nossos socorridos
normalmente ficam aqui por muito tempo. Temos deste lado
às enfermarias. Do lado esquerdo temos as salas de aula, as
bibliotecas, a área de lazer, onde os que se encontram
melhor têm a oportunidade de aprender a viver como
desencarnados, de fazer o bem, de ser úteis à comunidade
que os abriga. Eu leciono no período da manhã, à tarde
auxilio nas enfermarias, onde estão os jovens. Tenho folga
um dia na semana, e hoje é minha folga. Normalmente
prefiro ficar aqui fazendo alguma tarefa extra, como agora,
que estou acompanhando Edson nessa visita tão importante
de sua mãe.
— São muitos os jovens socorridos aqui? - quis saber Mary.
— Infelizmente, sim - respondeu Nelma.
— Não entendo como alguém pode ter coragem de matar
seu próprio corpo. A morte é sempre tão temida! - exclamou
Mary.
— É difícil julgá-los, seja de corajosos, seja de covardes.
Para muitas pessoas, os suicidas são covardes ao querer
abandonar a vida física fugindo dos problemas. E você tem
razão, temos medo de morrer. Assim, muitos os tacham de
corajosos. Para mim, são infelizes, porque a vida não acaba
e eles não conseguem fugir dos problemas, que não são
resolvidos no plano material, mas se agravam no plano
espiritual. Mesmo os que são socorridos padecem, pois
sentem remorso, e a maioria tem os reflexos do corpo e das
dores que passaram. É muito pior o estado deles quando
estão vagando. E padecem muito quando estão no Vale dos
Suicidas, lugar em que se reúnem no umbral. E, como
Edson, são muitos os jovens que matam a si mesmos. Aqui
temos alas só para eles. Gosto muito de estar aqui, amo o
que faço e cada jovem que auxilio. Penso no quanto eu já fui
auxiliada.
— Você tem planos para o futuro? - perguntou Mary.
— Tenho, quero ajudar suicidas por mais uns vinte anos.
Depois vou estudar me preparar para reencarnar e, no
corpo físico, trabalhar em favor da vida. Quero tentar
impedir que pessoas matem seu próprio invólucro carnal -
respondeu Nelma, entusiasmada.
— Você conseguirá! Sabe por quê? Porque você ama o que
faz! - expressou-se Mary - Nelma, notei que Edson não se
levantou e permanece sentado. Ele não consegue fazê-lo?
— Não - disse Nelma - Edson se pune. Ele não consegue
mexer as pernas e sente dores atrozes quando pensa na sua
queda. Está fazendo tratamento, e creio que por muito
tempo ainda se sentirá assim. Disse a você que ia prepará-
lo e o fiz. Fortifiquei-o, para que não sentisse dores, e o
coloquei sentado. Espero que a mãe não perceba, vê-lo
tranquilo é melhor para ambos. Ela pensará no filho sadio e
ele se esforçará para ficar como a mãe o imagina.
O socorrista Josemar que as levara foi até Mary e disse a
ela:
— Está na hora de voltarmos.
Aproximaram-se dos dois, mãe e filho estavam abraçados.
Beijaram-se emocionados na despedida. Agradeceram à
Nelma. Os três saíram da colônia, deram as mãos e
volitaram. Em instantes estavam no paiol.
— Obrigada, Josemar! Deus lhe pague! - exclamou Lia,
agradecida.
— Por nada! Agora vou embora. Tenho muito que fazer -
falou o socorrista.
— Será que você não pode me levar? - perguntou Lia -
Não quero mais saber quem me matou nem por quê. Perdoo
todos, quero recomeçar.
— Fico contente por você pensar assim, Lia - disse Mary -
Mas, há um assassino ou uma assassina na chácara que
está querendo cometer outro crime. A vida de Aidê corre
perigo. Você deve ficar mais um pouco aqui e tentar ajudá-
la.
— Você tem razão - falou Lia - Não é estranho? Eu ajudar a
esposa do meu marido? Pensando bem, não é tão estranho
assim. Eu também fiquei viúva e me casei logo em seguida.
Está bem, Mary. Eu fico, e vou esforçar-me para ajudá-la a
não ser assassinada.
Josemar despediu-se e as duas ficaram sozinhas no
galpão.
— Estou contente por ter visto meu filho - disse Lia. E
confusa! Willian o ajudou, cuidou de tudo, me poupou. Ele
não matou Edson! Quanto a mim, já nem sei o que pensar.
Será que foi ele? Eva? Os dois? Alguém do grupo
homossexual que nos visitou? Não tenho raiva de quem fez
isso. Willian me ajudou, Eva foi criada na casa conosco.
Queria ir embora, mas não é certo deixar à coitada da Aidê
que está grávida ser assassinada. Só tem um inconveniente.
Não sei o que fazer para evitar um crime. Você sabe?”
— Vamos vigiar e tentar descobrir quem quer assassiná-la
- respondeu Mary.
— E, se descobrirmos, o que iremos fazer? Iremos à
polícia, contaremos ao delegado? Eles nos escutarão? -
indagou Lia.
Mary compreendeu que era bem complicado e respondeu,
sorrindo:
— Vamos confiar! Se aqui estamos para fazer isso,
devemos fazê-lo da melhor maneira possível, e dentro das
nossas possibilidades.
— Mary, você acha que um dia eu poderei ficar perto do
meu filho Edson?
— Sim, mas pode demorar um pouco - respondeu Mary -
Você deve ir primeiro para outro lugar, para uma colônia,
isto é, uma cidade espiritual. Deve aprender a viver como
desencarnada, a ser útil, e aí poderá pedir para trabalhar
onde seu filho estiver.
— Não ficaremos juntos porque ele se suicidou, não é? -
indagou Lia - O que ele fez foi uma grande imprudência.
Ainda bem que não existe castigo eterno e o sofrimento não
é para sempre. Deus é bom demais! Vou fazer tudo isso que
você disse e mais. Vou dar valor ao auxílio recebido e
esforçar-me para aprender. E, quando for possível, cuidarei
dele e de outros.
— Esta manhã foi movimentada! - exclamou Mary,
suspirando.
— Se foi! Descobrimos muitos fatos e fizemos muitas
coisas - disse Lia, concordando.
Lia suspirou. Aquietaram-se por alguns instantes. Então
escutaram um barulho: era um carro se aproximando...
CENTRO ESPÍRITA
Deve ser o Reginaldo que chegou. Ele é pontual. Disse
ontem a Willian pelo telefone que viria hoje e veio - falou
Lia.
— Ele é o tal investigador? - perguntou Mary.
— Sim, o primo de Willian que trabalha na polícia. Não o
acho uma pessoa agradável nem me parece inteligente. Se
pelo menos ele lesse aqueles livros, entenderia que tiraram
deles a ideia de me assassinar.
— Por que você não gosta do Reginaldo? - quis saber Mary.
— Ele é mulherengo e, quando vinha em casa, eu tinha a
impressão de que ele queria levar meu marido para
encontros com mulheres. Mas acho que não era nada disso,
já que Willian era amante de Eva, que morava em nossa
casa. Vamos lá vê-lo?
As duas saíram do paiol e foram para frente da casa. Um
senhor gordo, aparentando ter cerca de quarenta anos,
desceu do carro com uma maleta. Abraçou Willian e
cumprimentou educadamente Aidê.
Entraram e se sentaram no sofá da sala de estar.
Reginaldo indagou a Willian:
— O que acontece, meu primo? Você me parece
preocupado.
— Estou achando que algo estranho está acontecendo
aqui em casa. Tome seu refresco. Depois vou acompanhá-lo
ao seu quarto. Não quer descansar primeiro? Temos tempo
para conversar!
— Tenho somente mais alguns dias de férias. Terei de
voltar logo para casa.
Reginaldo tomou o refresco e subiu com Willian, que o
conduziu ao seu quarto.
As duas, Mary e Lia, ficaram observando-os subir e
permaneceram na sala com Aidê, que chamou Isaura e lhe
passou algumas ordens e o cardápio para o jantar. A
empregada resmungou por não ter os ingredientes para
determinados quitutes. Resolveram escolher outros.
— Ela é esnobe - falou Lia - Isaura é uma boa cozinheira,
mas não sabe fazer essas comidas diferentes. Se esta moça
ficar por aqui, vai modificar tudo.
— Vamos subir e ouvir o que Willian está falando com
Reginaldo - convidou Mary.
A porta do quarto estava fechada e Lia pediu:
— Faça como da outra vez: empurre-me para eu entrar.
Quando as duas entraram no quarto, Willian tirou um
maço de dinheiro do bolso e deu ao primo.
— Reginaldo, aceite isto! E resolva o caso para mim!
— Não é fácil trabalhar nas férias! - o primo comentou.
— Você já me fez alguns favores, sei disso, como sei
também de muitos outros fatos. Além do mais, estou
pagando e, se tudo der certo, receberá outro tanto. E você
gosta de dinheiro, não é? Irá recusar esse favor?
— Não! - exclamou Reginaldo. - Agora me conta o resto. O
que aconteceu por aqui e o que tenho mais de saber.
As duas se olharam, mas não falaram nada. Queriam
escutar tudo.
— Meu primo, quero lhe falar longe de Aidê. Acho que
alguém quer matá-la - falou Willian.
— Acha ou tem certeza? Como? Por quê? - perguntou
Reginaldo.
— Isso é você que vai ter de descobrir. Na semana
passada, Aidê tinha de levar alguns documentos numa
cidade próxima, que fica a cem quilômetros daqui. Você
sabe que para ir lá existem trechos perigosos, sobe e desce
de serra. Minha esposa acordou naquele dia passando mal,
vomitando muito, e eu pedi para Adelino, nosso empregado,
levar os tais documentos. Ele é meu funcionário há anos,
dirige bem e devagar, era motorista de Lia e das crianças.
Ele foi e, na primeira descida da estrada, notou que o carro
estava sem freio, não se apavorou, e essa foi sua sorte.
Conhecendo bem o caminho, ele desviou o carro para uma
vicinal e jogou o veículo no pasto, só danificando a lataria.
Ele não se machucou. Levei o carro na oficina mecânica
para consertar e eles não notaram nada de anormal. Achei
que fora um mero acidente. Depois, ontem à noite,
estávamos Aidê e eu na varanda quando um vaso pesado
de cerâmica, um dos que estão há anos na mureta, caiu. Se
eu não a tivesse empurrado para o lado, ele teria se
espatifado em cima dela. Foi então que desconfiei que
alguém quisesse matá-la. Pode ser só impressão,
coincidência, mas pode não ser.
— Willian - disse o investigador - ainda não entendi como
Lia morreu. Ela era conhecedora de cogumelos e tomou
uma sopa com um ou alguns venenosos. Como foi isso?
— Pois foi isso que aconteceu! - exclamou Willian. - A
morte da minha primeira esposa nada tem a ver com o que
acabei de narrar. Lia se enganou, e seu erro foi fatal.
— Será mesmo, Willian? - perguntou Reginaldo, olhando
fixamente para o primo.
— Não quero que verifique nada sobre a morte de Lia. Ela
já morreu, está enterrada e pronto - respondeu Willian.
— Bem, vou começar investigando esse tal de Adelino.
Mande chamá-lo e peça que espere na sala. Já vou descer.
Willian saiu deixando Reginaldo no quarto. As duas se
olharam e Mary falou:
— Parece que seu ex-marido chantageia o primo.
— Pois eu tenho certeza! - exclamou Lia.
— Você sabe por quê? - indagou a socorrista.
— Reginaldo era tão pobre quanto Willian. Ele ganha um
ordenado que dá para viver modestamente, entretanto
mora numa mansão grande e bonita, tem casa de veraneio
e dois apartamentos. Meu esposo uma vez me disse que o
primo estava envolvido com traficantes de droga. Acho que
não está mais. Willian sabia desse fato e deve ter provas,
agora o está chantageando. E coitada da Eva! Acho que os
dois vão culpá-la de tudo!
— Já não sei o que pensar - falou Mary - Se Willian
chantageia Reginaldo, ele está escondendo algo. Pelo
menos essa é a impressão que dá.
— Como dizia minha avó - falou Lia, suspirando - ninguém
é bom o suficiente que não tenha feito uma maldade. Como
também uma pessoa não é só má, pois os maus podem
fazer coisas boas. A maioria de nós faz o bem, mas também
pode fazer atos ruins. Já estava achando que Willian não
tinha nada a ver com o meu assassinato, mas agora volto a
ter certeza de que foi ele.
Reginaldo abriu a mala, guardou algumas roupas no
armário e pegou uma caderneta, um bloco de anotações.
Depois, desceu até a sala. Adelino já o esperava. Após os
cumprimentos, o investigador pediu:
— Conte-me com detalhes como foi o acidente na serra.
— O carro do Sr. Willian é novo, só tem dois anos e pouco
de uso. Levo-o para as revisões, parecia estar tudo bem.
Naquela manhã, meu patrão pediu-me para levar alguns
papéis a uma cidade vizinha. Na primeira descida, percebi
que não havia freio, saí da estrada, peguei uma outra de
terra que vai para uma fazenda, assim que foi possível saí
para o pasto e o carro parou.
— Você teve medo? - perguntou Reginaldo.
— Não, agi normalmente - respondeu o empregado.
— Em sua opinião, se isso tivesse ocorrido com seus
patrões, o que teria acontecido?
Adelino pensou um pouco e respondeu:
— O Sr. Willian conhece a estrada, só que dirige em alta
velocidade, talvez fizesse o que eu fiz. Ele pediu-me para
fazer esse serviço porque, como me disse, tinha de ir a uma
audiência de uma ação movida por um ex-empregado da
chácara. Agora, se fosse dona Aidê, eu não sei. Ela não
conhece a estrada e parece que não é boa motorista. Se
acontecesse com alguém que se apavorasse, acho que
poderia ocorrer um acidente fatal. A estrada é muito
perigosa.
— Audiência com ex-empregado! - expressou-se
Reginaldo. - Quem é esse ex-empregado? Por que foi
dispensado? Houve brigas?
— É o Douglas, um moço arrogante. Ele não gostava de
receber ordens minhas, reclamei para o patrão, que lhe
chamou a atenção.
Dois dias depois, por pirraça, ele arrancou do jardim as
roseiras que dona Lia havia plantado. Isaura ficou nervosa e
queixou-se ao Sr. Willian, que o mandou embora por justa
causa e não pagou o que era devido.
Douglas xingou muito, falou até demais. Disse que iria se
vingar e cumpriu: fez uma reclamação trabalhista!
— Você acha que ele seria capaz de fazer alguma outra
maldade? - quis saber Reginaldo.
— Não sei! - respondeu Adelino, sem muita convicção.
— Lia, você conheceu esse empregado? - perguntou Mary
para a amiga.
— Conheci. Sempre me pareceu uma pessoa normal. Acho
que seria incapaz de matar alguém. Esse desentendimento
deve ter sido depois de minha desencarnação, pois estou
sabendo disso agora.
Reginaldo continuou a inquirir o empregado:
— Douglas conhecia a casa por dentro?
— Sim - respondeu o empregado. - Às vezes Isaura pedia
para que ele fizesse algumas limpezas mais pesadas dentro
da casa.
Lia falou para Mary:
— Será que meu assassinato nada tem a ver com esses
atentados contra Aidê? Ou estão querendo é matar Willian?
Será que Douglas está envolvido? Ele era casado, mas
estava sempre tentando conquistar Eva.
Reginaldo fez várias perguntas. Algumas sem sentido.
Quis saber até sobre os cogumelos. Quando falou para
Adelino que ele podia ir embora, este saiu nervoso.
— Lia - pediu Mary - fique por aqui e acompanhe o primo
do seu ex-marido. Eu vou acompanhar Adelino. Preste
atenção em tudo e fique bem atenta a todas as conversas.
O empregado foi para o pátio aborrecido.
Mary escutou seus pensamentos:
"Não estou gostando disso! Se emprego não estivesse tão
difícil, eu me demitiria. Mas, se eu sair agora, vão achar que
sou o culpado! Será que tem culpado nesse caso? Ricos
pensam sempre diferente, têm mania de perseguição. E a
corda arrebenta sempre do lado mais fraco. Será que dona
Lia foi assassinada? E o Sr. Willian será o próximo? A
vingança de Douglas não ficou só na reclamação? Pareceu
que o Sr. Reginaldo está achando que estão querendo matar
a dona Aidê. Se isso for verdade, com a história do carro,
quase que sou eu quem morre! Quem se beneficiaria com
essas mortes? Só se... Quem receberia a herança? Senhor
Willian? Giovana e Jorge Luís? O filho da dona Lia é
estranho! Não estou mais gostando deste lugar. Tenho visto
vultos, ouvido risadas... E ainda tem aquela assombração do
paiol. É lá que ficam os espectros. Será que dona Lia foi
assassinada e vaga por lá, sem descanso? Arrependi-me de
ter falado para as pessoas dessas visões. Serei tachado de
mentiroso ou de louco. E poderão achar que sou um
assassino! Só falta eu ser suspeito! É bem-feito para mim.
Neguinha, minha esposa, já me pediu tanto para ir
novamente ao centro espírita... Ela tem tentado explicar-me
que lá eles me ajudarão a compreender porque ouço vozes
e vejo vultos. Sábado passado quase morri de medo. Estava
no bar e ia colocar uma pinguinha na boca quando escutei
sussurrarem ao meu ouvido: ‘Toma devagar que quero
beber junto!’ Larguei o copo cheio no balcão e fui embora.
Não é coisa de louco? É isso que vão achar que sou.”
Adelino pensava e às vezes resmungava. Estava chateado
e preocupado:
— Por que tenho de ver almas do outro mundo? Deus
podia dar essa tal de mediunidade, que faz as pessoas
verem defuntos, para quem quisesse. Estou com medo de ir
ao paiol!
Nisso Eva chegou com Reginaldo na horta onde Adelino
estava. Lia estava com eles e disse à Mary:
— Estou atenta. Reginaldo pergunta demais e escreve
muito no caderno.
— E então Adelino? Você acha que o paiol é assombrado?
- perguntou Reginaldo.
O empregado olhou feio para Eva, que deu sorriso forçado
e disse:
— Estou acompanhando o Sr. Reginaldo em um passeio
em volta da casa. Ele quer rever tudo.
— Você não respondeu Adelino. Você acredita que o paiol
é assombrado? Já viu fantasmas? - insistiu o investigador.
— Que insolente! - exclamou Lia - Referir-se a mim e ao Zé
Grilo dessa forma, chamando-nos de fantasma!
Adelino encabulou-se, ficou vermelho e respondeu, em
tom baixo:
— Senhor Reginaldo, sou médium, vejo espíritos e...
— Já sei - interrompeu o investigador. - Médiuns são
pessoas que têm sensibilidade para sentir quem já teve o
corpo morto. Sei disso!
— Então por que pergunta? - censurou o empregado.
— Perguntei se você via espíritos - disse Reginaldo, dando
uma risadinha.
— Vi alguns vultos no paiol ou acho que vi. Pode ter sido
impressão - falou Adelino.
— Não pode ser que tenha visto um ser vivo? Uma pessoa
como nós, que entrou na chácara e se escondeu lá?
— Não sei! - exclamou Adelino, não gostando do
interrogatório.
Reginaldo olhou-o bem, deixando o empregado mais
nervoso ainda. Ele fez uma pausa e falou:
— Você ouviu barulhos, viu vultos, pôs na cabeça que
eram fantasmas e por medo não foi verificar o que era. Você
não está fazendo seu trabalho direito, que é vigiar a
chácara.
— Senhor Reginaldo, tenho certeza de que no paiol não
entraram pessoas como nós - defendeu-se Adelino.
— Você procurou? Olhou direito? - insistiu o investigador.
— Não!
— Eva, vamos continuar nosso passeio - convidou
Reginaldo.
Os dois caminharam rumo ao paiol sem sequer despedir-
se de Adelino, que pensou:
— Tomara que eles vejam os vultos! Como Eva é faladeira!
Já me dedurou! Hoje vou embora mais cedo. Vou sair
quietinho.
Lia acompanhou os dois, que olharam o paiol e o antigo
cultivo de cogumelos. Depois, voltaram para a casa. Adelino
guardou as ferramentas e foi para a sua residência, Mary o
acompanhou. Ele foi resmungando:
— Maldito paiol assombrado! Acho melhor eu ir ao centro
espírita hoje!
Em casa, sua esposa, Neguinha, foi recebê-lo
carinhosamente:
— Adelino, por que você veio mais cedo?
— Hoje vou ao centro espírita com você. Estou cansado de
não entender essas visões de defuntos. Estou com medo de
que as pessoas me achem louco.
— Não é defunto, Adelino. Pessoas que tem o corpo físico
morto são desencarnados - corrigiu Neguinha.
— Pior! Desencarnado é um ser sem carne. Não faz
diferença como eu os chamo. São todos feios!
— Você um dia irá morrer - disse a esposa.
— Se isso acontecer, vou ser mais um defunto e não terei
medo dos outros. Vou ao centro espírita porque estou
cansado, ou eles tiram isso de mim, ou me fazem
compreender para eu não ter mais medo.
Adelino foi tomar banho. Minutos depois os dois saíram de
casa em direção ao centro espírita.
Mary foi junto.
Era um salão grande, com cento e cinquenta lugares, e
quase todas as cadeiras estavam ocupadas. Os dois
acomodaram-se e Adelino observou tudo e todos.
Mary cumprimentou dois trabalhadores da casa, do plano
espiritual, que ficavam recepcionando e encaminhando os
que ali chegavam sem o invólucro físico. Foi convidada a
ficar numa parte reservada para visitantes. Entretanto, ficou
atenta ao casal que acompanhava.
Uma senhora encarnada fez uma oração muito bonita.
Depois um senhor que era médico, o Dr. Lúcio, fez a
palestra.
Neguinha explicou, falando baixinho ao marido:
— Ele vai falar sobre Jesus!
Doutor Lúcio leu um texto do livro ”O Evangelho Segundo
o Espiritismo” em que Jesus amaldiçoa a figueira por não ter
encontrado frutos nela.18 Depois explicou com voz
agradável.
— Essa parábola causa indignação em muitas pessoas.
Certo dia, Jesus estava com seus discípulos e passaram
perto de uma figueira. Como estavam com fome,
aproximaram-se da árvore e procuraram frutos. Não
encontraram, porque não era tempo de ela produzir. O
Mestre, vendo que a figueira estava cheia de folhas e sem
frutos, disse: “Jamais coma alguém fruto de ti” Podemos
achar que Jesus não foi justo. Por que fazer isso com a
inocente árvore, se não era época de ela dar frutos? Jesus
fez isso se aproveitando, como sempre, de um fato ocorrido
para ensinar-nos legando um precioso ensinamento. Ele
comparou a figueira a nós, seres humanos. Muitos de nós
têm abundante folhagem sem fruto algum e vários atos
externos sem nenhuma utilidade, o perigo está em sermos
espiritualmente estéreis. Nós somos dotados de livre-
arbítrio. Podemos escolher ser ou não ser frutíferos em
todos os tempos, nos propícios e nos desfavoráveis. Nós,
humanos, devemos ser espiritualmente úteis, mesmo em
épocas difíceis ou em situações adversas. Sei que é fácil
doarmos algo quando o temos em abundância, quando
estamos alegres, felizes e sem impedimentos, sendo mais
complicado doarmos quando temos problemas, estamos em
dificuldades e nos parece difícil ser úteis. Quem faz o bem
em período de facilidades não deixa de ser útil, mas quem o
faz em período ruim é realmente bom. Quem produz frutos
quando não é tempo é bom! Ser generoso com pessoas
boas é fácil. Prazeroso é fazer o bem aos que amamos!
Agora, ser caridoso com os maus é mais difícil. Ser puro
entre os impuros, luz no meio das trevas é dar frutos o
tempo todo. Devemos entender o sentido espiritual dessa
parábola, em que Jesus quis nos dizer que nós, seres
humanos, temos e devemos produzir frutos sempre, nas
adversidades e nas épocas propícias. Espiritualmente,
temos a possibilidade de sempre dar frutos. Esse fruto é o
alimento! Quem produz dá frutos, que são os atos
benéficos, e primeiro alimenta a si mesmo e depois o
próximo. Vocês podem dizer: “Só tenho momentos
complicados!” De fato, não deixam de ter razão. É muito
difícil estarmos totalmente sem problemas. Por isso, vemos
muitos se lamentando e dizendo: “'Não faço o bem, não sou
útil porque...” e a lista de obstáculos é enorme. Como já
disse, quem produz dá frutos e alimenta-se primeiro.
Observem amigos: quando não comemos nem bebemos, o
corpo físico degenera, perde sua função e morre. Se não
usamos nossa mente, ela atrofia. E, se não temos
dificuldades, estacionamos. Desenvolvemo-nos resolvendo
problemas. Progredimos quando os solucionamos para o
bem. E muitas vezes achamos soluções para os nossos
problemas quando ajudamos outras pessoas com os delas...
Ontem mesmo encontrei uma jovem. Ela me falou que sabia
que tinha mediunidade, mas por estudar e trabalhar não
tinha horário para vir ao centro espírita. Disse a essa moça:
“Converse com Deus, chame nosso Pai para uma conversa
séria. Explique-lhe detalhadamente sua falta de tempo e
peça que adie para o futuro o seu trabalho com a
mediunidade.” Ela ficou séria e me respondeu após pensar
alguns segundos. “Vou sábado ao centro espírita!” Acho que
ela conseguiu organizar seus horários. Temos aqui aos
sábados, às dezenove horas, palestras, passes e, após,
estudo da Doutrina Espírita. Dia e hora acessíveis a muitos.
Quando deixamos de lado o comodismo, a preguiça e outros
motivos, nossa conversa com Deus leva-nos a ver e a sentir
que a figueira cheia de folhas e força pode dar frutos.
Convido vocês, meus amigos, a pensarem sobre isso e a
fazer o que compete a cada um enquanto realmente se
pode, porque pode ser que adversidades sérias nos levem a
não poder mais ser úteis, embora para algumas pessoas
não exista dificuldade que as impeça de fazer o bem.
Conheci um moço espírita convicto, que era cego. Isso para
muitos seria desculpa mais do que suficiente para não fazer
nada. Mas ele produzia e doava frutos. Jerônimo Ribeiro
Mendonça, assim o chamavam. Doente, tinha muitas dores.
Era tetraplégico, só movia a cabeça, e excursionava pelo
Brasil, dando consolo e alegria com sua voz forte e bonita. E
pasmem: ele cantava. Falava de Jesus, do seu Evangelho,
consolando as pessoas. Se ele encontrou uma maneira de
ser útil, por que nós não podemos encontrar? Se podemos
fazer o bem, façamos, porque quem pode e não faz
acumula débitos que causam sofrimentos. Agora vamos nos
preparar para receber o passe, energias benéficas que nos
fortalecerão. Que Jesus nos abençoe e nos ajude a dar bons
e saborosos frutos!
Adelino sentiu vergonha. Ele, que até então havia pensado
que Jesus faria com todos que não acreditassem nele o que
fez com aquela árvore, sentiu-se como a figueira: era forte,
sadio e nada fazia de bom para si mesmo nem para os
outros.
propícios É melhor eu dar frutos antes que Jesus me peça
conta de tudo o que deveria ter feito e não fiz!", pensou
Adelino, arrepiando-se.
Adelino ficou olhando todos os que estavam ali. Viu dona
Eny, a professora da escola do bairro, ela lecionava o dia
todo e dava aulas particulares à noite. Seu marido
encontrava-se desempregado e doente, tinha três filhos, e
estava ali, dando passes. Neguinha lhe dissera que ela
ensinava, aos sábados à tarde, alguns adultos a ler numa
das salas do centro espírita, onde funcionava uma
escolinha. Viu Waldomiro, seu amigo, que trabalhava de
boia-fria, fazendo trabalho pesado. Viu também dona
Augusta, uma viúva que fazia faxinas; o Dr. Lúcio, que
trabalhava muito e atendia no posto de saúde depois do seu
horário normal de trabalho, e sua esposa, Cleuza, que
trabalhava na prefeitura e fazia enxovais para crianças
pobres.
Adelino recebeu o passe e sentiu-se bem. Mary ficou
observando tudo. É sempre prazeroso ir às reuniões de um
centro espírita.
— Boa noite!
Uma das trabalhadoras desencarnadas da casa
cumprimentou-a sorridente.
— Sou uma das servidoras deste local de socorro. Se
Adelino realmente resolver trabalhar sua mediunidade,
seremos companheiros de trabalho.
— Você o protegerá? - perguntou Mary.
— Estarei mais tempo com ele. Tentarei orientá-lo sem,
porém, fazer o que lhe cabe.
— As pessoas confundem seu trabalho? Isto é, acham que
o desencarnado que trabalha junto do médium tem de fazer
tudo para ele? Evitar que tenha problemas ou resolvê-los? -
quis saber Mary.
— Há essa confusão, esse engano - explicou a
trabalhadora da Casa - Nós, desencarnados, também temos
limitações e devemos obedecer a certos critérios. Nosso
maior trabalho junto aos encarnados é orientá-los e motivá-
los a continuar no bem. Eles, porém, têm o livre-arbítrio de
atender-nos ou não. Somos companheiros de trabalho,
parceiros que planejam fazer algo de bom juntos.
Ela despediu-se de Mary e foi continuar sua tarefa. Nossa
amiga ficou observando o lugar, acima da construção
material, havia uma outra, no plano espiritual: um posto de
socorro para abrigar desencarnados. Grande, de agradável
aspecto, ele tinha biblioteca, um pequeno hospital e
moradias para os trabalhadores desencarnados. Muitos
socorridos foram assistir à palestra, após a reunião, eles
voltaram para o abrigo. Com uma linda oração, foi
encerrado o encontro da noite. Todos saíram.
Adelino foi embora com sua esposa e no caminho
comentou:
— Neguinha, de hoje em diante vou ao centro espírita com
você. Irei às quartas-feiras estudar e, se Deus quiser, logo
estarei dando passes. Quero dar frutos e não ter mais de me
envergonhar por ser uma figueira só com folhas!
Isso deixou Neguinha feliz. Mary também ficou contente.
Quando o casal chegou à casa, ela volitou para o paiol...
 
 
 
18 O leitor poderá encontrar essa parábola nos Evangelhos
de Mateus (21: 18 a 19) e de Marcos (11: 12 a 14). (N.A.E.)
A INVESTIGAÇÃO
Mary não encontrou Lia no paiol, foi rapidamente para a
casa, temendo que a amiga tivesse ficado presa lá dentro.
Se eles fechassem as portas, ela não saberia passar. Mas as
portas estavam abertas e o casal tomava chá na sala de
estar com a visita. Lia estava atenta e sorriu ao ver à amiga.
O trio conversava sobre viagens e, após alguns minutos,
resolveu ir dormir. Isaura fechou a casa. A socorrista passou
Lia pela porta fechada e foram para o galpão.
— Mary, onde você esteve? - quis saber Lia.
— Com Adelino - respondeu ela.
— Você suspeita dele? Ficou vigiando-o? - perguntou a ex-
dona da casa.
— Acho que não foi ele. Nada notei de suspeito -
respondeu Mary.
— Foram bem interessantes às conversas que ouvi - disse
Lia - Willian disse a Reginaldo que foi amante de Eva e que
teme por Aidê. Pelo jeito que falou, meu ex-marido suspeita
de Eva. Para ele é a empregada que está fazendo esses
atentados. E você nem vai acreditar no que ocorreu depois!
Aidê falou que iria ao médico amanhã cedo. Willian disse
que não poderia ir com ela por ter uma audiência no fórum
e xingou Douglas. Pelo que ele disse o empregado é um
mau caráter, e a entrada dele aqui na chácara foi proibida.
Logo após essa conversa, meu ex-esposo foi ao escritório
dar alguns telefonemas e Reginaldo ficou a sós com Aidê,
dizendo-lhe:
— Aidê, estou aqui para protegê-la. Espero contar com a
sua colaboração para desempenhar bem meu trabalho.
— Se você acha que estou correndo perigo, vou embora
daqui ainda hoje! exclamou Aidê, assustada.
— Você não deve ficar nervosa, claro que não corre
nenhum perigo. Como já disse, estou aqui para protegê-la!
Nunca aconteceu nada com os meus protegidos. Tenho um
plano e vou dizê-lo a você. Mas, será segredo, não deve
falar nem para o Willian. Promete?
— Nem para o meu esposo? Por quê? - indagou-a,
arregalando os olhos.
— Se mais alguém souber, deixará de ser segredo.
Concorda? - falou Reginaldo devagar, enquanto abria e
fechava a tampa da caneta que estava em suas mãos.
— Está bem, guardarei segredo. Pode falar.
— Você irá ao médico e dirá a todos que está doente do
coração e que terá de tomar um remédio, um tônico para
não ter um enfarte. Darei a você um vidro que parecerá
remédio. Você dirá que terá de tomá-lo quatro vezes ao dia,
seis gotas, e, se não o fizer, poderá ser fatal. Dentro desse
vidro só haverá água, pode tomá-la despreocupada. Aqui
está o vidro, amanhã você misturará com os outros. Deixará
aqui na sala, porque terá de tomar antes das refeições.
— Você acha que, se alguém quiser me matar, tentará
trocar o remédio? - perguntou Aidê - Esse plano é simples
demais, se for alguém mais inteligente, não irá cair na sua
armadilha...
— Ainda não sei se tem ocorrido tentativas de
assassinatos e se querem matar você ou Willian. E muitas
vezes planos simples dão resultados. Se o alvo não for você,
nada acontecerá se for, nosso plano pode ser uma tentação
para esse criminoso!
— Estou confusa! - expressou-se Aidê - Estava pensando
que era a alma da falecida esposa de Willian que estava
querendo prejudicar-me.
Lia parou por um instante de falar, suspirou, olhou para
Mary e disse:
— Veja que injustiça! Achar que sou eu que quero
prejudicá-la! No começo não gostei dela, senti até raiva,
mas depois compreendi que Aidê não merece nada de ruim.
Ela só quer ser feliz, ter filhos.
Reginaldo a acalmou e ela resolveu fazer tudo como
planejado.
— Como vê, minha amiga, o investigador suspeita do
primo, senão não ia pedir à Aidê para não dizer nada ao
marido. Tudo me parece perfeito: meu ex-esposo matou-me
para receber a herança; aí surgiu essa moça mais rica do
que eu querendo se casar, e ele o fez pensando em
assassiná-la e ficar mais rico ainda. É simples demais, só
que há alguns detalhes. Por que ele foi bom comigo? Por
que tentou ajudar Edson? Por que chamou o primo para
investigar? Só se for para ter um álibi. Willian suspeita de
Eva ou quer jogar a culpa na empregada, que foi sua
amante?
— Vamos descansar, Lia. Tenho uma intuição de que
amanhã descobriremos mais detalhes.
— Estou muito apreensiva para dormir, mas vou tentar -
expressou-se a ex-dona da chácara.
Lia ficou quieta e de repente começou a chorar. Mary foi
até ela e abraçou-a:
— O que se passa agora?
— Estou com medo de que Jorge Luís esteja envolvido
nessa história de crimes. Ele tem motivos para ter mágoa
de mim e de Willian. Isaura o ama muito e pode ser sua
cúmplice. Não é difícil para meu filho estar pagando alguém
para matar meu ex-marido. Ou... Pode até ser que Gina
tenha algo a ver com os fatos, ela ama muito o irmão. Ele
sempre cuidou dela, foi amigo, companheiro, confidente,
era ele que a ajudava nas lições da escola, a levava onde
queria, eram muito unidos. Gina sofreu quando ele partiu
magoado.
— Gina é tão sensível! - exclamou Mary.
— Sim, é. Mas tem um marido que faz tudo por ela.
Agenor não é um rapaz sem defeitos. Minha filha o amou
assim que começaram a namorar. Não era o genro ideal, o
que imaginei para minha menina, mas, como ela o queria,
fiz de tudo para que se casassem. Até o eduquei, ele não
sabia nem se alimentar com educação, não falava
corretamente. Acho que é por isso que, aqui em casa, fala
pouco. Fui eu quem lhe arrumou o emprego que possui e dei
várias vezes dinheiro para que comprasse roupas. Sem
Willian saber, dei a eles os móveis para montarem a casa e
o dinheiro para a viagem de núpcias. Minha filha nunca se
queixou dele, e por isso acho que valeu a pena. Analisando
friamente, Gina é feia, sem graça, e Agenor é muito bonito.
Lia fez uma pausa, suspirando profundamente.
Mary pensou que, quando conheceu Agenor, não viu amor
em seus olhos. Talvez o moço se tenha casado por
interesse. A socorrista não quis falar o que pensava para a
sua amiga, nem o que achava de Agenor nem que
suspeitava de Eva e a julgava culpada. Ela assassinara Lia
com a ajuda de William e agora queria se livrar da outra
esposa. Devia estar chantageando Willian, e este planejava
culpá-la por tudo ou talvez fazer com que a empregada
fosse acusada só de tentar assassinar Aidê. Se o crime de
Lia não fosse descoberto, ele sairia ileso.
— Se um dos meus filhos estiver envolvido nesses
atentados ou com a minha morte, vou sofrer muito! E a
lição será dolorosa por eu ter querido investigar! Ai, meu
Deus. Dai-me forças!
Mary pensou que infelizmente existem muitos assassinos
em família. Pais que matam filhos, e estes, os genitores.
— É falta de amor! - exclamou a socorrista.
— Tem razão! - expressou-se Lia, suspirando - "Talvez eu
não tenha dado amor aos meus filhos como deveria. Se eles
tiverem algo a ver com a minha desencarnação, vou sofrer
mil vezes mais do que sofri por ter morrido.
Mary a acalmou e ela adormeceu. A socorrista sentou-se,
pegou a mochila que havia levado e que estava em um
canto escondida, um livro e começou a ler. Era “O Livro dos
Espíritos”, de Allan Kardec, uma edição especial para
desencarnados.
Logo que amanheceu, Mary chamou Lia:
— Acorde, amiga! Tem movimento na casa. Vamos lá.
Isaura preparava o café. As duas acharam a empregada
abatida, com olheiras. Logo desceu o casal, que tomou o
desjejum e saiu. Aidê foi ao médico, e Willian, como dissera,
à audiência.
Minutos depois, Reginaldo também desceu e tomou o
desjejum. Depois foi para a sala de estar e ficou alguns
minutos a examinar a porta de correr.
— O que será que ele olha tanto nesta porta? - perguntou
Lia para Mary - Será que o danado do Zé Grilo tem razão?
Ele diz ter visto um vulto de negro entrando na casa por aí.
Será verdade? Esse vulto seria encarnado?
Mary pensou que Zé Grilo tinha motivos para temer vultos
vestidos de preto, pois ele fora maltratado por
desencarnados maus que se vestiam assim. Pena ele não
ter observado melhor e descoberto se o vulto era
desencarnado ou não.
— Mary, você acha que Eva pode ter voltado vestida de
preto e entrado por esta porta para fazer algo escuso? Será
que esse vulto é alguém desconhecido ou alguém que
conhecemos e que eu gosto? Será que o criminoso entrou
na casa por aqui? - indagou Lia.
— Parece que Reginaldo acha que isso pode ter ocorrido,
já que esta porta pode ser aberta facilmente - opinou Mary.
O investigador andou pelo jardim, deu voltas pela
redondeza e entrou e saiu pela porta de correr da sala de
estar várias vezes. Conversou com Isaura e com Eva
novamente. Depois, sentou-se em uma poltrona que ficava
na sala e fez anotações em seu caderninho.
Lia e Mary aproximaram-se para ler.
— Veja, amiga, o que ele escreveu! - expressou-se Mary,
indignada - Estou achando que ele é menos inteligente
ainda do que eu pensava. Acima das suspeitas é Isaura!
De fato, o investigador escrevera o nome da empregada
como suspeita. E colocara na frente:
— Ela esconde algo, e pelo jeito é grave.
— A outra é Eva - leu Lia.
— Ele tem razão em desconfiar dela - opinou Mary - Leia o
que Reginaldo escreveu: “Foi amante de Willian. Talvez
ainda o ame e queira ser esposa dele!”
— Não foi nada esperto ao desconfiar de Adelino - falou
Lia - O empregado também é suspeito. Veja o que ele
escreveu: “Empregado antigo, talvez tenha sido apaixonado
por Lia e a matou por esse motivo. Não me parece
saudável!”
— Absurdo! Adelino é bem-casado com Neguinha, que é
bonita, dedicada, e ele sempre a amou. Nunca ocorreu nada
entre nós, ele sempre foi respeitador. E, mesmo se tivesse
me assassinado, porque estaria tentando matar Aidê?
— Ele colocou na lista o ex-empregado Douglas e o
advogado de Willian. Você conhece esse profissional? -
perguntou Mary.
— Quando estava encarnada, eu o conheci socialmente.
Willian precisou de seus serviços para fazer o inventário.
Acho que ele não tem motivo nenhum para atentar contra
Aidê. - respondeu Lia.
— Reginaldo também anotou que Gina está triste. Ele
questiona se não seria remorso? - leu Mary. Se eu estivesse
encarnada, daria um tapa no rosto dele. Este sujeito não
investiga nada. Ontem desconfiei do meu filho, de Gina e do
marido dela. Foi tolice! Não penso mais nisso! Eu posso ter
desconfiado, mas ele não tem esse direito. Esqueci de lhe
falar: ontem, enquanto você foi investigar Adelino,
Reginaldo fez uma visita rápida para Gina e eles
conversaram por alguns minutos. Giovana, minha filhinha,
está triste porque me amava e eu desencarnei e porque o
pai casou-se logo com outra. Precisa de mais motivos para
se entristecer? Gina não tem de ter remorso, sempre foi
uma boa filha. Não sei por que Reginaldo não colocou como
suspeito o nome de Willian. Será pela chantagem? Pelo que
já recebeu e receberá?
Reginaldo fechou o caderninho, examinou de novo a porta
e falou baixinho sua conclusão:
— Alguém tem aberto esta porta pelo lado de fora. Faz
isso para entrar na casa? Por quê? Quem? Certamente o
assassino! Será alguém de fora? É ajudado? Ou quer que se
pense que é de fora!
— O que você acha Mary? - perguntou Lia - Que é alguém
da casa que faz isso para despistar ou é realmente alguém
que não pertence à chácara? Eva? Ela sai para voltar? Estou
achando que pode ser Eva a assassina. Mas como essa
menina pode ser a criminosa, se foi criada em minha casa?
Mas, se for levar em consideração que Eva foi amante de
Willian e que me traiu, ela pode muito bem ser a assassina.
Matou-me e agora quer o amante mais rico e viúvo de novo.
Mary nada respondeu. Ficaram na casa observando
Reginaldo, que foi ler o jornal.
No horário do almoço, Willian chegou com Aidê, ele estava
muito preocupado. A dona da casa mandou servir o almoço,
pediu para Isaura ir com Eva servir a mesa e, como
Reginaldo havia recomendado, comentou:
— Estou doente - falou Aidê, com calma. — O médico
diagnosticou uma doença séria em meu coração, por isso
tenho passado tão mal. Tenho de tomar uma medicação em
horário certo, e conto com vocês para me lembrar.
— Por que você não coloca o remédio aqui na sala de
estar? Assim é mais fácil lembrar-se - destacou Reginaldo.
— Tem razão - falou Aidê. - Vou colocá-lo aqui, neste
aparador. Tenho de tomá-lo quatro vezes por dia: após o
desjejum, no almoço, no jantar e à noite, antes de dormir.
— Querida, estou preocupado com você - disse Willian.
— Não precisa se preocupar. Tomando a medicação
corretamente, nada me acontecerá - respondeu Aidê.
Almoçaram em silêncio. Aidê logo depois foi descansar e
Willian foi para o escritório.
Reginaldo olhou para o remédio e sorriu. O vidro continha
só água. No rótulo estava escrito o nome Cardiuna e a
indicação para tomar quatro vezes por dia.
Lia falou, rindo:
— Veja Mary que nome estranho Reginaldo colocou no
remédio.
Reginaldo balbuciou baixinho:
— Armadilhas simples são as que pegam supostos
inteligentes. Se alguém estiver querendo matar Aidê, a
troca do remédio facilitará seu crime. Agora, se estiver
querendo eliminar Willian, certamente tentará outra coisa.
Aí terei de pensar em outro plano. Esta sala é muito
exposta, há sempre pessoas por aqui para que alguém,
durante o dia, faça a troca sem correr o risco de ser visto.
Se esta porta é usada, como diz a minha intuição, o
criminoso ou a criminosa virá à noite. E aí... - Ele sorriu.
O investigador foi para a cozinha e as duas desencarnadas
o acompanharam. As empregadas se assustaram quando
ele entrou sem fazer barulho. Ele sorriu cinicamente e falou
com voz pausada, olhando-as fixamente:
— Quero lhes recomendar que fiquem atentas com dona
Aidê, ela está realmente doente. Se não tomar o remédio
direito, pode morrer. Sua doença é grave!
Isaura arregalou os olhos e exclamou:
— Ave, Maria! Nesta casa já ocorreu desgraça demais!
Que dona Aidê não morra!
— Mas infelizmente é o que pode ocorrer se ela não tomar
o remédio. Por isso recomendo a vocês que não a deixem
esquecer de tomá-lo - falou Reginaldo, com seu sorriso
cínico.
Ele saiu da cozinha e Isaura se benzeu, fazendo o sinal da
cruz. Eva pensou tão fortemente que Mary e Lia a ouviram,
como se ela tivesse falado:
"Bem-feito! Tomara que morra!”
— Maldosa! - exclamou Lia - Como pode desejar que ela
morra? Você é má, Eva!
"Não sou má! - pensou Eva, sentindo as palavras de Lia,
embora não as tivesse ouvido, e sim as sentido como se
fossem seu pensamento. "Willian merece ficar viúvo de
novo. Deixou-me sem explicações. Eu que sentia remorso
por trair dona Lia! Que ele sofra! Parece tão apaixonado. Irá
sentir a morte dessa mulher! E aí estarei vingada!”
Eva saiu da cozinha e foi limpar a sala. As duas
desencarnadas foram atrás de Reginaldo, que foi falar com
Adelino. Ele contou ao empregado sobre a suposta doença
de Aidê e voltou para a casa.
As duas ficaram um pouquinho com o empregado e o
ouviram pensar:
"Vou orar para dona Aidê, como também colocar o nome
dela no caderno de vibrações do centro espírita. Coitada, é
tão nova! O Sr. Willian não tem sorte: primeiro dona Lia
morreu ao comer a sopa de cogumelos venenosos e agora a
segunda esposa que é doente! Se me comparar com ele, eu
é que tenho sorte! Neguinha é uma esposa nota mil.
Depois de ouvirem Adelino, elas foram atrás de Reginaldo,
que foi conversar com o primo no escritório:
— Willian, meu caro, você deveria convidar Gina e Agenor
para jantar aqui conosco. Gostaria de vê-los, e acho que
você deve contar-lhes sobre a doença de Aidê.
— Não sei porque contar a eles - disse Willian - Estou
preocupado demais, e talvez Gina ache bem-feito.
— Por que ela pensaria assim? - perguntou o investigador.
— Minha filha não me perdoou por eu ter me casado tão
depressa. Ela não gosta de Aidê - respondeu Willian.
— Será que não é uma boa hora para que elas fiquem
amigas? Talvez Gina fique comovida com a doença da
madrasta - falou Reginaldo.
— Pode ser que você tenha razão. Vou convidá-los - disse
Willian, determinado.
— Aproveite e convide também seu advogado - sugeriu o
visitante.
— Por quê?
— Nada como um jantar para acertar negócios -
respondeu o investigador.
— Não tenho nada pendente com ele, mas vou chamá-lo.
Willian pegou o telefone e fez as ligações. Depois falou
para o primo:
— Agenor e Gina virão, mas o advogado não. Ele já tem
outro compromisso. Vou à cozinha dizer para Isaura que
teremos convidados para o jantar.
Reginaldo ficou sozinho no escritório e fez uma ligação.
Lia e Mary escutaram-no conversando com uma pessoa e
recebendo informações sobre Douglas. Pelo que ouviram, o
ex-empregado estava trabalhando em uma outra chácara,
não muito longe dali. Quando desligou o telefone, ele saiu
sem fazer barulho, subiu as escadas devagarzinho, entrou
no seu quarto, deitou-se e logo adormeceu.
Mary disse à Lia:
— Vou procurar esse Douglas e ver se descubro algo
suspeito sobre ele. E você fique aqui atenta.
A socorrista volitou até a chácara onde trabalhava o ex-
empregado de Willian. Lera o endereço que Reginaldo tinha
anotado. Achou a localidade facilmente, bem como o rapaz,
que estava na horta regando as plantas. Por mais que ela
tentasse, ele não queria pensar no seu antigo emprego nem
nos seus ex-patrões.
Voltou e encontrou Lia sentada no sofá.
— Estou vigiando o vidro de remédio. Ninguém mexeu
nele. E você? Achou o Douglas?
— Não descobri muito. Só acho que o moço é incapaz de
matar alguém e não é muito inteligente - respondeu Mary,
indagando - Onde está o Reginaldo?
— Ainda dormindo! Mary aconteceram aqui alguns fatos
suspeitos. Eva entrou escondida no escritório, isto é,
observou bem se não tinha ninguém por perto, deu um
telefonema e falou baixinho. Como ela entrou e fechou a
porta, não pude entrar. Encostei o ouvido na porta e só
consegui entender uma palavra que ela falou: noite. Willian
também se trancou no escritório. Falou duas vezes ao
telefone. E Isaura também veio observando, não vendo
ninguém, entrou lá e telefonou. Antes, porém, ela foi ver se
Reginaldo estava no quarto. Eu a vi espiando pelo buraco da
fechadura.
— Eva e Isaura costumavam usar o telefone? - indagou
Mary.
— Eva raramente o usava. Isaura telefonava, às vezes,
para a irmã. Quando eu estava encarnada, ela me pedia. Eu
sempre dizia que nem precisava pedir que poderia telefonar
quando quisesse.
— Você não escutou nada do que Isaura falou?
— Escutei ela falar sobre a doença de Aidê. - respondeu
Lia.
No horário marcado, Gina e Agenor chegaram para o
jantar. Ela abraçou Reginaldo e cumprimentou friamente o
pai e a madrasta. Após se sentaram à mesa, Isaura foi dar o
remédio para Aidê. Deu-lhe as gotas observando se ela
realmente às tinha tomado. Willian também ficou olhando.
Foi Aidê quem explicou:
— Não estava me sentindo bem, fui ao médico e ele
diagnosticou uma doença em meu coração. Tenho de tomar
esse remédio nos horários certos.
— É grave? - perguntou Agenor, educadamente.
— É - respondeu Reginaldo - Se Aidê não tomar esse
remédio, corre risco de vida.
Willian suspirou triste.
— Sério? - perguntou Gina. - E você ficará só com a
opinião de um médico? Deve ir a outros e...
— Querida - interrompeu Agenor - não devemos nos
intrometer.
— Ah, sim. Desculpe-me - disse Gina.
— Talvez você tenha razão, filha. Vou levá-la à capital, em
um centro médico especializado - expressou-se Willian.
— Não precisa. Confio em meu médico - falou Aidê.
— Sei por informações que esse médico que cuida de Aidê
é o melhor da região - disse Reginaldo - É conhecido
internacionalmente, vêm pessoas de todos os lugares para
consultar-se com ele. Nesse centro médico que quer levá-la,
é provável que eles a mandem para ele.
— Desconhecia esse fato - falou Gina.
— Talvez porque não tenha precisado de um especialista -
esclareceu o investigador - Se você, Gina, adoecer, procure
esse profissional.
— Sempre morei aqui e nunca ouvi falar que ele era tão
bom assim - retrucou Gina, que ia continuar falando quando
Agenor a cutucou com o pé.
— De qualquer forma, vou levá-la para ser examinada por
outros médicos - falou Willian, determinado.
— Vamos primeiro aguardar, meu querido - expressou-se
Aidê - Quero fazer esse tratamento e não estou com
vontade de viajar, ir à capital. Confio nesse médico e vou
tomar o remédio corretamente.
Conversaram sobre outros assuntos.
Reginaldo foi o que mais falou, tentando alegrar o
ambiente. Depois do jantar ficaram sentados na sala de
estar. Logo após o café, Gina quis ir embora. Agenor, ao
despedir-se de Aidê, falou gentilmente:
— Se precisar de alguma coisa, pode contar comigo.
Gina olhou feio para ele. Quando saíram, Willian
perguntou:
— Aidê, você ficou triste por Gina rejeitá-la?
— Ainda seremos amigas. Você verá! Estou cansada e vou
descansar. Boa noite!
Aidê subiu depois de tomar um remédio.
Além do vidro de Cardilina, a gestante estava tomando
uma vitamina própria para o seu estado, que o médico
havia realmente receitado. Ela deixou um vidro ao lado do
outro. Willian ficou um pouco mais na sala e depois foi
dormir também. Reginaldo foi à cozinha despedir-se de
Isaura, que estava acabando de lavar a louça do jantar.
—Boa noite, Isaura. Vou dormir. Você também irá? Eva
está aqui ou foi para a cidade?
— Eva foi para a casa do noivo na cidade. Vou só verificar
se a casa está fechada e também vou dormir. Boa noite!
Reginaldo subiu para o seu quarto. Isaura fechou a casa,
mas nem chegou perto da porta de correr da sala de estar.
Lia comentou com Mary:
— Não é estranho Isaura não verificar se esta porta está
fechada?
— Não será porque raramente a abrem?
Lia balançou os ombros. As duas ficaram na sala. Isaura
foi dormir. Fez-se um grande silêncio na casa.
— Vamos para o paiol? - convidou Lia.
— Prefiro ficar aqui, é limpo e posso sentar no sofá -
respondeu Mary.
Escutaram um barulho e viram Reginaldo descendo as
escadas devagar, no escuro. Ele sentou-se numa poltrona
em um canto. De onde estava, via bem a porta e o aparador
onde ficavam os remédios. Acomodou-se e ficou atento.
— Será que ele vai ficar a noite toda vigiando? -
perguntou Lia baixinho.
— Não precisa falar baixo. Ele não nos escuta - respondeu
a socorrista - Acho que Reginaldo acredita que o criminoso
virá aqui e tentará substituir o remédio. Vamos ficar
também.
Lia acomodou-se no sofá e disse:
— De fato, aqui é melhor do que o paiol. Não estou com
sono, sinto-me agitada e aflita para que tudo termine logo.
Mary foi rapidamente ao paiol e pegou de sua mochila
dois livros. Deu um para a amiga ler, “O Evangelho Segundo
o Espiritismo”, e pegou o outro para si.
— Vamos ler. A leitura acalma e ensina. Pegue a lanterna
para clarear - orientou Mary.
As duas puseram-se a ler. Eram duas e meia da
madrugada quando os três ouviram um barulho fora da
casa, perto da porta de correr, e logo esta foi aberta.
Ficaram atentos. Reginaldo ficou imóvel, parecia nem
respirar.
Um vulto todo de preto entrou cautelosamente na sala.
Tinha uma pequena lanterna que iluminou o aparador. Abriu
o vidro que continha as vitaminas e colocou dentro uma
cápsula igual às demais. Depois, fechou-o, colocando-o no
mesmo lugar.
— Não se mexa assassino! - gritou Reginaldo.
ESCLARECENDO OS FATOS
O vulto assustou-se, vacilou por segundos e correu para a
porta na tentativa de fugir. O investigador pulou sobre ele,
lutaram, esbarrando nos móveis e fazendo muito barulho.
Lia e Mary estavam atentas, tensas, sem, contudo poder
fazer nada. De repente o vulto de preto tirou do bolso um
revólver. Reginaldo pegou-o pelo braço, forte e treinado, o
investigador continuou calmo, segurando com firmeza o seu
braço. Um tiro saiu da arma, atingindo o teto. Willian,
assustado, ao escutar o barulho, foi para a sala logo após o
tiro e acendeu a luz. Reginaldo tomou o revólver da pessoa
de preto e levantou-se. Apontando-lhe a arma, o invasor
ficou sentado no chão.
— Não se mexa bandido, senão eu atiro e o mato! - gritou
o investigador, com firmeza.
O vulto ficou quieto. Willian aproximou-se e tirou da sua
cabeça o capuz, que só tinha dois furos para os olhos.
— Você?! - exclamou Willian.
Lia se engasgou e Mary ficou sem saber se a acudia ou
ajudava Aidê, que estava na metade da escada, segurando-
se no corrimão, branca e tremendo, olhando para a sala.
Com receio de ela cair, Mary correu em sua direção,
tentando acalmá-la. Mary pediu com firmeza e, embora Aidê
não a escutasse, ela sentiu à vontade firme da socorrista:
— Sente-se, Aidê! Sente-se, por favor!
— Preciso me sentar! - balbuciou Aidê, sentando-se no
degrau e segurando firme no corrimão.
Isaura, assustada, entrou na sala e Willian, ao vê-la,
pediu-lhe:
— Isaura, fique com Aidê!
A empregada rapidamente foi até a patroa, sentou-se ao
seu lado e a amparou. Mary foi até Lia, que ainda estava
engasgada, bateu em suas costas e soprou seu rosto. Lia
acalmou-se e disse, tristemente:
— Coitada de minha filha!
— Por que fez isso? - perguntou Willian.
— Por dinheiro certamente - opinou Reginaldo.
Agenor ficou quieto. O investigador tirou da cintura uma
algema, foi até ele, puxou seus braços para trás e o
algemou.
— Você matou Lia? Responda-me! Você a assassinou? -
gritou o dono da casa.
Agenor não respondeu. Willian levantou a mão, ia dar um
soco no genro, mas Reginaldo o impediu.
— Miserável! - gritou novamente Willian, exaltado - Por
que tudo isso? Por que assassinou Lia, que sempre foi como
uma mãe para você? E Aidê? Ela nada lhe fez de mal.
Covarde! E eu que pensei que Lia se enganara com os
cogumelos. Foi você! Assassino! Fale alguma coisa, infeliz!
— Vocês não têm provas contra mim! - exclamou Agenor.
— Temos, sim! - retrucou Reginaldo. - Tenho provas de que
você comprou cogumelos venenosos e de que obteve
folhetos sobre o assunto. Aqui também tenho o vidro em
que colocou a cápsula que certamente, ao ser analisada,
saberemos o que é.
Agenor deu um salto, querendo ir para perto do aparador,
numa tentativa de destruir a prova. Foi barrado por Willian e
acabou perdendo o equilíbrio e caindo, por estar algemado
com as mãos para trás.
— Fique aí, assassino! - ordenou Reginaldo.
O investigador pegou o telefone, discou para a delegacia
e em seguida deu a notícia:
— Logo os policiais estarão aqui!
Fez-se silêncio. Willian e o primo ficaram atentos em
Agenor, que ficou sentado no chão com o investigador lhe
apontando a arma.
— Mary, que tristeza! Estou muito infeliz! - exclamou Lia.
A socorrista a abraçou e Lia chorou sentida.
A polícia chegou e levaram o suposto assassino para a
delegacia. Reginaldo os acompanhou, levando o vidro de
remédio.
Quando saíram, Willian fechou a casa e abraçou a esposa.
— Querida, tudo acabou!
— Ele queria me matar! - exclamou ela, chorando.
— Vou fazer um chá calmante - falou Isaura.
— Faça para todos nós, Isaura - pediu Willian.
O dono da casa pegou o telefone e discou. Demorou em
ser atendido:
— Filha, desculpe se a acordei, mas houve um imprevisto
e Agenor não deve retornar para casa. - Fez uma pausa, em
que Gina certamente falou algo, e respondeu
carinhosamente: - Sim, venha para cá logo cedo.
Conversaremos com você. Não fique preocupada. Eu amo
você! - disse Willian, desligando o telefone.
Isaura chegou com o chá, tomaram em silêncio, O casal
subiu para o quarto e Isaura foi para o seu aposento. Lia
convidou Mary:
— Vamos para o paiol? Agora, amiga, que descobri tudo, o
que irei fazer?
No paiol, as duas acomodaram-se num canto.
— Vamos aguardar o desenrolar dos fatos - falou a
socorrista - Depois iremos embora, levarei você para uma
colônia, um lugar onde aprenderá a viver no plano
espiritual.
Tentaram descansar.
Logo que o dia clareou, Reginaldo voltou e Mary e Lia
correram para a casa. Isaura servia o café e os três, Willian,
Aidê e o investigador, estavam sentados conversando sobre
os acontecimentos.
— Reginaldo, você sabia que era meu genro o assassino? -
perguntou o dono da casa.
— Não! - respondeu o primo.
— Você não disse que tinha provas de que ele havia
adquirido folhetos sobre cogumelos venenosos?
— Blefei! Achava que era Eva a criminosa - respondeu
Reginaldo.
— Por que tudo isso? Não entendo! - expressou-se Aidê.
— É simples - esclareceu o investigador - Agenor
confessou na delegacia que se casou com Gina por
interesse. Só que não lhe bastava os bens que ela possuía:
ele queria mais. Resolveu assassinar Lia e tinha planos para
matá-lo, Willian. Como você viajou e voltou casado, e ele
investigou e descobriu que Aidê era rica, Agenor resolveu
deixá-lo viúvo, para que herdasse a fortuna dela, e matá-lo
em seguida. Com sua morte, Gina seria a herdeira.
— Será que esse criminoso mataria minha filha? -
perguntou Willian.
— Talvez, mas certamente só o faria depois de algum
tempo - respondeu Reginaldo. - Fomos agora pela manhã ao
departamento onde Agenor trabalha, abrimos duas gavetas
de sua escrivaninha que estavam trancadas e obtivemos
muitas provas. Nome e endereço do local onde ele comprou
o cogumelo venenoso e o outro veneno. Também havia uma
investigação completa sobre Aidê. Achei que o criminoso ou
a criminosa, já que julguei ser Eva, tentaria trocar o remédio
para o coração. Mas ele já havia preparado tudo e veio
colocar no vidro de vitaminas uma cápsula a mais, que
continha um veneno que causa enfarte. Pelo que dissemos
tudo se tornou ainda mais fácil para ele.
— Gina deve estar chegando, escuto o barulho do carro.
No telefone, esta madrugada, ela me pareceu sonolenta
demais. Nem perguntou onde estava Agenor e o que ele
estava fazendo.
— Agenor disse no depoimento que sedava a esposa
quando tinha de sair - explicou Reginaldo.
— Vocês não obtiveram essas confissões depressa
demais? - indagou Aidê.
— Levamos Agenor preso e o ameacei com tortura.
Certamente não ia usar esse método. - Reginaldo sorriu
cinicamente - Mas o amedrontamos, e ele preferiu nos dizer
tudo. Queria resolver o caso logo, pois tenho de ir embora.
— Tenho vontade de surrá-lo, de bater nele até ficar
exausto. Ainda bem que ele não conseguiu fazer o que
planejara que não conseguiu assassinar Aidê nem fazer uma
maldade maior com Gina.
Giovana entrou na sala, ainda estava sonolenta.
Cumprimentou-os, sentou-se e serviu-se do café.
— Mary - expressou-se Lia, sentida - coitadinha de minha
filha! Não me importo de sofrer, mas não queria que ela
sofresse.
— Papai, não entendi bem o que me falou nesta
madrugada. Acordei e não vi o Agenor, lembrei vagamente
que me dissera para não me preocupar, que ele não iria
dormir em casa. Por favor, me explique o que está
acontecendo.
— Acho que ele irá demorar a voltar para casa - disse
Reginaldo, devagar.
— Por quê? O que aconteceu? - quis saber Gina.
— Ele está preso! - respondeu o investigador.
Gina se engasgou. Isaura correu para acudi-la.
— Papai, por favor, me explique o que está acontecendo -
pediu Gina novamente, assim que conseguiu falar.
— Filhinha, tenha calma, vou lhe falar tudo. Eu tinha
certeza de que sua mãe se enganara e tomara a sopa
naquela noite com algum cogumelo venenoso. Senti a
morte dela. Quando viajei e conheci Aidê, senti que poderia
recomeçar minha vida ao seu lado e ser feliz. Quando
aconteceu o acidente de carro com Adelino, achei que fora
sorte não ser Aidê quem dirigia. Mas, quando o vaso caiu da
sacada, desconfiei que alguém queria matá-la, pois, se eu
não a tivesse empurrado, ela certamente teria morrido. Por
quê? Para quê? Tive a ideia, inspirada por Deus, de chamar
o Reginaldo.
Ele veio, investigou e inventou a doença da Aidê e o
remédio que ela tinha de tomar.
— Achei - explicou Reginaldo - que, se alguém queria
matá-la, essa seria uma oportunidade. A pessoa tentaria
trocar o remédio. Só que ele foi mais esperto, não pensou
como eu. Veio realmente de madrugada e colocou uma
cápsula no vidro de vitaminas que Aidê está tomando.
— E Agenor os ajudou, não é? - perguntou Gina, baixinho.
Ninguém respondeu. Todos a olharam com piedade,
parecia que Gina não tinha ouvido que eles disseram que
seu esposo estava preso. Ela virou-se para a empregada,
que permanecia ao seu lado, e indagou:
— Isaura, por que vocês estão me olhando assim? Por
Deus! Foi Agenor? É ele o assassino?
— Filha - respondeu Willian - sinto dizer-lhe, mas foi seu
marido que veio aqui e colocou a cápsula no vidro de
remédio de sua madrasta.
Gina abraçou fortemente Isaura e ficou quieta. O telefone
tocou. Reginaldo levantou-se e o atendeu, ele conversou por
um instante e, ao desligar, falou para todos:
— Foi confirmado! Agenor confessou! Na cápsula havia
veneno. Ao tomá-lo, a pessoa tem uma morte rápida e
parece ser vítima de um enfarte. Já prenderam na capital a
pessoa, o farmacêutico especializado em venenos, ele os
fazia por um preço exorbitante. Agenor, ao vir aqui, viu o
remédio que Aidê estava tomando, comprou um vidro dele,
tirou o conteúdo de uma das cápsulas e colocou dentro o
veneno. Seria questão de dias, ela o tomaria e morreria.
Gina começou a chorar e Isaura a consolou.
Willian levantou-se e foi abraçar a filha, quando ela
acalmou-se, seu pai lhe contou tudo.
— O que faço agora? - perguntou Gina.
— Por que você não vai para Londres e fica um tempo
com Jorge Luís? Ele gosta tanto de você - opinou Isaura.
— Isaura tem razão, minha filha, o melhor é você viajar.
Seu irmão cuidará de você, como ele sempre fez. Vou agora
mesmo me encontrar com nosso advogado, pedirei a ele
para fazer uma procuração, para que eu possa cuidar do
seu divórcio. Quero que Agenor fique muitos anos na prisão,
e acho que ficará.
— Papai, é muito triste pensar que morava, amava o
assassino de minha mãe! - exclamou Gina, chorando. -
Odeio-o! Vou fazer isso mesmo: viajar, ficar com meu irmão.
E o senhor fará meu divórcio. Quero que cuide de tudo para
mim. Não quero nunca mais ver esse traidor!
— Faço tudo o que você quiser filhinha!
Lia chorava. Aproximou-se da filha, que passou a chorar
mais ainda. Afastou-se e comentou:
— Acho que Gina me sente. Vou ficar calma - disse a mãe
desencarnada.
— Vou telefonar para Jorge Luís - falou Gina - Irei agora
para o meu apartamento arrumar minhas malas. Isaura
venha comigo, por favor. Ela pode ir, não é, papai? Não
quero ficar sozinha aqui nesta cidade para não escutar os
comentários maldosos que vão aparecer. Foram muitas as
minhas amigas que me avisaram para ter cuidado com o
Agenor. Eu não lhes dei atenção, as considerei invejosas.
Não quero escutar: "Eu não avisei?" Se tudo der certo, vou
hoje mesmo para a capital, me hospedo num hotel e
embarco logo que possível para Londres.
— Faça isso, filhinha. Isaura irá com você. Ela lhe fará
companhia.
As duas saíram. Aidê perguntou a Reginaldo:
— Como Agenor vinha aqui?
— Ele disse no depoimento que sedava Gina todas as
vezes que queria sair. Para vir à chácara, ele usava uma
pequena moto que guardava na garagem do prédio,
deixava-a escondida numa curva da estrada e continuava a
pé até aqui.
— Você fez guarda esta noite. Como sabia que o criminoso
entraria por esta porta? - continuou a inquirir Aidê, curiosa.
— Acho minha cara, que Deus me instruiu. Deu-me
vontade de examinar a porta e, quando o fiz, percebi que
ela se abria facilmente pelo lado de fora. Então fiz meu
plano - Reginaldo suspirou, sorriu e completou: — E deu
certo! Agenor era muito observador. Aproveitou que Isaura
gostava muito dele e, quando ela ia visitá-los, conversava
muito com ela, induzindo a conversa para os assuntos da
chácara. Chegava até a telefonar para a ingênua
empregada com o pretexto de lhe falar de Gina. Foi assim
que ele soube que Aidê tinha de viajar e que o casal
gostava de sentar-se, após o jantar, na varanda. Naquela
noite, na véspera da viagem, ele veio e com habilidade
danificou o carro. Também veio e colocou a mesa com as
cadeiras na posição ideal para que ele pudesse empurrar o
vaso. Isaura lhe havia dito que Aidê gostava de sentar-se ali
e ficar observando o jardim.
O investigador fez uma pausa e falou, decidido:
— Willian, vou embora. Já resolvi o caso e devo ir para
casa. Volto logo a trabalhar, minhas férias estão acabando.
Espero que não venha a precisar mais de mim.
Willian o convidou para ir ao escritório.
Pagou o que combinaram e ainda lhe deu uma
gratificação. Reginaldo despediu-se e partiu.
— Os telefonemas que Isaura, Eva e Willian fizeram e dos
quais suspeitamos não tiveram nada a ver com o caso -
expressou-se Lia, dirigindo-se à Mary.
— Acho que Eva telefonou para o namorado, Isaura deve
ter falado com a irmã e Willian deve ter resolvido algum
problema - opinou a socorrista.
Eva chegou e foi Aidê, que estava na sala, que lhe contou.
— O Sr. Agenor? Incrível! Como ele pôde assassinar a
dona Lia? Que pessoa cruel! Dona Aidê, agora que está tudo
resolvido, quero me despedir. Meu namorado Nelson, o
mecânico, convidou-me para morar com ele, e eu aceitei.
Fiquei com medo de sair antes e o Sr. Reginaldo pensar
coisas erradas a meu respeito. Mas, agora que descobriram
o criminoso, não quero mais trabalhar aqui.
— Claro! Pode ir embora. E, se quiser, agora! Depois você
acerta tudo com o advogado de Willian - falou Aidê,
suspirando aliviada por se livrar da ex-amante do marido.
Eva não se fez de rogada e foi arrumar suas coisas,
quando acabou, despediu-se rapidamente do casal e foi
embora. No caminho encontrou com Adelino e contou a ele,
que também se assustou:
— Coitadinha da dona Gina! - comentou.
Na sala da chácara, Mary e Lia continuavam com o casal.
Aidê pediu ao marido:
— Willian, vamos embora daqui? Você não tem motivos
para ficar nesta chácara. Sua filha irá viajar e você pode
deixar seu advogado administrando os bens que tem. Tenho
um apartamento montado, mas podemos nos mudar para
uma casa quando nosso filho nascer. Tenho minha escola
para cuidar.
— Mas, querida, o que eu farei lá? - perguntou ele.
— Você me ajudará na administração. Não gosto de ir a
bancos e não entendo de aplicações financeiras - respondeu
Aidê.
— Posso fazer isso mesmo? Não quero ficar ocioso -
retrucou Willian.
— Que mentiroso! - exclamou Lia, rindo. Nunca trabalhou!
Aqui não fazia nada. Mas, acho melhor eles irem. Quem
sabe com Aidê ele aprenderá a trabalhar?
Willian continuou a falar com a esposa:
— Você tem razão de não se sentir bem nesta casa depois
de tudo o que se passou. Eu também já não gosto daqui.
Você espera um filho, e é justo que eu a acompanhe para
onde quiser morar. Deixo tudo por você, querida. Vou ajudá-
la, depois, quero ter tempo para cuidar do nosso nenê.
Podemos nos revezar: quando você for à escola, eu fico com
ele; quando eu tiver de sair, você fica. Assim nosso bebê
não ficará sozinho com as empregadas.
— Estamos só nós dois em casa. Vou à cozinha fazer algo
para almoçarmos - falou Aidê.
— Não precisa. Vou agora à cidade encontrar com o
advogado. Não demoro. Já acertei com ele por telefone. Vou
somente para pegar documentos. Trarei nosso almoço. E
hoje à tarde levo você para o seu, ou seja, o nosso
apartamento. Volto para cá amanhã e acerto tudo
definitivamente. Voltarei aqui só quando necessário.
— Ah, Willian! Que bom ter um marido que faz as minhas
vontades! - exclamou Aidê, alegre.
— Vou ser sempre assim, querida! Amo você - expressou-
se ele, apaixonado.
Willian saiu e Aidê foi para o quarto arrumar as malas.
— Acho que devemos ficar aqui. Não é bom deixá-la
sozinha - concluiu Lia.
Willian logo chegou com o almoço. Depois também
retornaram à chácara Gina e Isaura. O dono da casa pediu
para a empregada permanecer na sala. Eles sentaram-se no
sofá para conversar:
— Giovana, minha filha, assine a procuração para
fazermos o seu divórcio. Cuidarei de tudo o que é seu.
Ela assinou e disse:
— Conversei com Jorge Luís pelo telefone, ele ficou triste
por saber dos acontecimentos, mas alegre com a minha ida.
Vou partir às duas horas da tarde, o senhor me leva para a
rodoviária? - Com a afirmação de Willian, ela continuou a
falar, tristemente: - Vou de ônibus e ficarei num hotel.
Amanhã eu compro a passagem de avião para Londres e
parto. Com tudo assinado, o senhor tem a procuração para
resolver o divórcio. E já sabe: quero a separação o mais
rápido possível.
Willian contou a elas que também ia se mudar e finalizou:
— Gina, vou desocupar seu apartamento e trarei os
móveis para esta casa. Vou cobri-los e depois resolveremos
o que fazer.
Alugarei seu apartamento. Deixarei Adelino cuidando de
tudo aqui. Pedi ao advogado para arrumar sua
aposentadoria, Isaura, e você pode escolher: se quiser ficar
aqui, poderá; se preferir e quiser morar na cidade, temos
um apartamento pequeno e desocupado. Para mobiliá-lo,
poderá pegar os móveis que quiser daqui, e não precisa
pagar nada.
— Não quero ficar aqui, Sr. Willian - respondeu Isaura -
Agradeço-lhe por arrumar minha aposentadoria e por
oferecer o apartamento e os móveis, porém vou morar com
minha irmã na cidade. Ela ficou viúva, sozinha e precisa de
mim. Não se preocupe comigo, tenho minhas economias e,
depois, Jorge Luís sempre me manda dinheiro. Ajudo o
senhor a arrumar tudo, e, quando partir, eu o faço também.
Acertaram todos os detalhes. Chegou à hora de Gina
partir. Ela abraçou Aidê, que lhe falou, carinhosamente:
— Gina, nossa casa é sua também! Não se esqueça disso,
como também que este nenê que eu espero é seu irmão.
Aproveite para aprender bem o inglês e volte para lecionar
em minha escola.
— Obrigada, Aidê! Desculpe-me se fui indelicada com
você. Faça papai feliz!
Gina abraçou demoradamente Isaura e Willian foi levá-la à
rodoviária. Lia chorou:
— E agora, Mary. O que eu faço?
TEMPOS DEPOIS
Com tudo resolvido, Mary abraçou Lia e falou,
carinhosamente:
— Que tal você ir para um local onde aprenderá a viver
como desencarnada? - Vamos orar agradecendo a Deus por
tudo ter terminado bem e pedir ao Josemar para vir buscá-
la.
Lia abaixou a cabeça e orou com fé e sinceridade. E
melhor: perdoou Agenor.
Naquele momento, ela não tinha raiva de ninguém. Mary
pediu mentalmente ajuda a Josemar, que, podendo ir, logo
estava ali na sala:
— Vamos, Lia! Vou levá-la para o nosso posto de socorro.
— E Mary? Ela não pode ir também? É uma boa pessoa,
merece - pediu Lia.
— Obrigada, amiga - disse Mary - porém não irei com
vocês. Vou embora também, mas para onde moro. Estarei
bem. Não se preocupe.
Lia deu um abraço apertado na amiga, agradeceu
comovida e partiu com Josemar.
A socorrista olhou pela última vez a casa, agradeceu a
Deus pela oportunidade de ter sido útil e volitou.
Chegando à Casa do Escritor, onde estava para estudar,
Mary foi agradecer ao orientador Carlos Augusto e voltou
aos seus afazeres. Tinha muito que fazer e tinha de colocar
a matéria em dia.
O tempo passou rapidamente. Meses depois, ao ter dois
dias de folga, Mary foi visitar Lia no posto de socorro onde
ela estava abrigada. Lia a recebeu com alegria:
— Mary, que bom vê-la! Queria agradecê-la mais uma vez
e desculpar-me. Josemar me disse que você estava ali para
ajudar-me. Nem percebi, achei que era tão necessitada
quanto eu. Agora sei que Reginaldo recebeu sua intuição.
Foi você que o orientou, não foi? Você sabia quem era o
assassino?
— Não - respondeu Mary - Achei que Zé Grilo tinha visto
realmente alguém entrar pela porta de correr da sala e que
essa pessoa não perderia a oportunidade de trocar os
remédios para matar Aidê.
— José Ari e Esmeralda também querem vê-la. Agora o
chamamos pelo nome, o grilo chato ficou no passado. Os
dois e eu estamos aprendendo muito, já faço pequenas
tarefas. Vou chamá-los. Espere-me aqui.
Lia deixou Mary sozinha no banco do jardim. Ela
aproveitou para admirar as flores e pensar:
“É incrível alguém não querer ficar abrigado aqui,
entretanto, são muitos os que saem. Lembro de uma vez
que estava servindo num posto de socorro e preocupei-me
com esse fato, porque eu também logo que desencarnei saí
de uma casa de auxílio. Uma orientadora me convidou para
ir com ela entrevistar uma socorrida. Ela a indagou: “O que
você deseja realmente? Quer receber ajuda? O que almeja
para você?” E a socorrida respondeu, deixando-me
indignada: “Quero estar bem. Almejo ser uma pessoa como
você. Quero ter um cargo importante aqui dentro.” A
orientadora calmamente tentou esclarecê-la: “Para ser útil,
tem de aprender, para conhecer e saber fazer tem de
estudar. Aqui há ordem e disciplina e temos normas a serem
seguidas. Faça o que for recomendado e poderá, um dia,
trabalhar aqui dentro.” E a mulher respondeu: “Acho que
não entendeu. Não quero trabalhar. Quero mandar como
você.” Ao que a orientadora respondeu: “Eu trabalho! A
orientação que faço é parte da minha tarefa.” A socorrida
fez uma expressão de desdém e falou: “Aqui pelo visto é
como em muitos outros lugares! Quando estava no corpo
carnal, encarnada era médium e fui a vários centros
espíritas. Eles me aconselhavam sempre à mesma coisa.
Diziam que eu precisava estudar aprender e recomendavam
que eu procurasse um tratamento, uma ajuda médica.
Resultado: ninguém deixava que eu mandasse. Queria dizer
às pessoas para elas fazerem isso ou aquilo, mandar até em
espíritos. Morri, desencarnei e escuto a mesma coisa.” A
orientadora respondeu: “Filha, o que temos para oferecer
aqui é isso: ajuda ao próximo. Estude e trabalhe, e comece
pelas tarefas simples.” A socorrida respondeu: “Então eu
não fico! Vou embora, ouviu? Vocês não são caridosos!
Recusam auxílio! Vou embora mesmo! Vou vagar, sofrer!” A
orientadora abriu o portão e ela saiu. Explicou-me em
seguida: “Entendeu Mary? Essa mulher quer o que não
temos para dar. Esta casa tem objetivos a cumprir, tarefas a
realizar, sem esquecer da ordem e da disciplina. Ela já foi
orientada diversas vezes. Na enfermaria em que estava,
passou a ser um problema, era exigente, queria mandar. Até
os outros socorridos queixavam-se dela. Essa pessoa não
sofreu o suficiente para aceitar com humildade o que temos
a oferecer. E ainda tentou fazer chantagem, como se nós
fôssemos culpados por seus padecimentos, como se estar
socorrida aqui fosse um favor que ela estava nos fazendo, e
não recebendo. Quando essa senhora estava encarnada, era
obsedada. Por suas peregrinações pelos centros espíritas, os
espíritos foram doutrinados e socorridos. Mas, pelas suas
ações erradas do passado e por seu orgulho, ela adoeceu e
foi recomendado a ela um tratamento médico. Ela se
recusou a fazê-lo. Queria nas reuniões dos centros espíritas
ser digna de piedade e fazia tudo para chamar a atenção,
perturbando a ordem e a harmonia dos trabalhos. Não
queria estudar, mas sim ser importante e mandar.
Desencarnou e não mudou. Aqui também não temos o que
ela quer.”
O trio aproximou-se e despertou a socorrista de seus
pensamentos:
— Mary, aqui está José Ari! - exclamou Lia.
Mary os observou e deparou com eles diferentes.
Esmeralda estava vestida discretamente, sem o excesso de
maquiagem, estava muito bem. José Ari, um homem com
um metro e cinquenta centímetros, sorria. Tinha todos os
dentes sadios, estava bonito e feliz.
— Que bom revê-la, Mary - expressou-se ele - Estou
fazendo um tratamento para não ter mais o reflexo do corpo
físico que tive. E, como queria crescer, o estou fazendo aos
poucos. Vou ficar com um metro e setenta e cinco
centímetros.19
Mary os abraçou.
— Obrigada, Mary - disse Esmeralda - José Ari e eu muito
lhe devemos. Estamos tão bem aqui! Aprendemos,
trabalhamos e temos planos de ser úteis com
conhecimento.
Conversaram por alguns minutos. Depois os dois voltaram
aos seus afazeres. Lia ficou a sós com a amiga e comentou:
— Vou contar a você as novidades de minha família. O
filho de Aidê nasceu, é um lindo menino, o casal é feliz.
Tenho visitado sempre Edson, que melhora a cada dia.
Agenor foi julgado e condenado. Tentou desmentir seu
depoimento, disse que o fizera sob tortura, mas havia
provas contra ele. Ficará doze anos na prisão, e espero que
se regenere.
— E seu outro filho, o Jorge Luís? Ele está bem? -
perguntou Mary, educadamente.
— Sim, está - respondeu Lia, sorrindo - Meu filho é um ser
humano maravilhoso. Não tem parceiro e não sente falta.
Está aprendendo a amar todos como irmãos que somos. É
um ótimo profissional e é reconhecido pelo trabalho que faz.
Dá valor às amizades e tem muitos amigos. O Evangelho é
seu livro de cabeceira, e está se esforçando para vivenciá-
lo. Continua com seu trabalho voluntário em hospitais e
participa de um grupo de apoio aos familiares dos doentes.
Estou muito contente com ele.
— E Giovana? Como ela tem passado? - quis saber Mary.
— Gina emagreceu, fez plástica, está linda. Jorge Luís e
ela continuam grandes amigos. Minha filha pensa em voltar
e trabalhar com a madrasta na escola. As duas têm se
falado muito por telefone e tornaram-se amigas. Willian está
bem, cuida do filho, da casa e faz pequenos trabalhos para
a esposa. Eva foi morar com o mecânico, mas não deu
certo, agora ela está namorando outra pessoa. Isaura está
contente, está morando com a irmã. Meu ex-esposo pensa
em vender a chácara. Adelino ainda trabalha lá cuidando de
tudo e não deixou mais de ir ao centro espírita. Geraldino,
meu primeiro esposo, veio visitar-me, nós nos entendemos
e nos desculpamos nos tornamos amigos. Só uma coisa me
intriga: por que você foi ajudar-me?
— Lembra, Lia que você achava que Willian a havia
assassinado e que havia tirado a ideia dos livros lidos?
— Lembro. E quem me assassinou nunca os lera -
respondeu Lia.
— Você amaldiçoou a escritora - completou Mary.
— Fui injusta com ela - falou Lia, olhando bem para a
amiga - Mary você é essa escritora?
— Sou!
— Meu Deus! Que vergonha! Eu a xinguei e você não
tinha nada a ver com isso. Por favor, me desculpe! - pediu
Lia.
— Tenho, Lia responsabilidades por aquelas obras. Quando
fazemos algo, somos responsáveis. Ao escrever esses livros
quando encarnada, eu não o fiz para as pessoas tirarem
ideias e praticarem o mal. Eu os escrevi para entreter,
porque amava fazê-los. Essa ação me pertence. Você,
achando-se prejudicada, clamou por justiça e foi-me pedido
para ver o que acontecia e para ajudá-la. Porque, amiga, se
alguém nos amaldiçoa e se temos condição, devemos
reverter à situação.
— E você a reverteu. Hoje a bendigo! Oro todos os dias
pedindo a Deus para abençoá-la.
— É bem melhor receber bênçãos! - exclamou Mary,
alegre.
Abraçaram-se emocionadas e despediram-se.
— Uma vez amigas, sempre amigas! - expressaram-se as
duas juntas, rindo.
Mary voltou à Casa do Escritor agradecida pela
oportunidade que Deus nos dá de reparar nossos atos,
mesmo os que fazemos sem a intenção de prejudicar.
O palestrante preferido dela foi como convidado à Casa do
Escritor falar de Jesus e do seu Evangelho. Entusiasmada,
ela chegou bem antes do horário marcado e sentou-se na
frente. E, como sempre, foi muito proveitoso. Mary narrou-
me o que ouviu o que lhe foi mais importante. Assim, há no
texto frases profundas, que merecem meditação. E, se fez
bem a ela, certamente fará a nós.
O esmerado senhor com sua voz agradável e forte leu o
seguinte texto do Evangelho de Mateus:20
— Não acumuleis tesouros na Terra, onde a ferrugem e os
vermes os consumirão, onde os ladrões os desenterram e os
roubam; acumulai tesouros no Céu, onde nem a ferrugem,
nem os vermes os consumirão; onde os ladrões não
penetram nem roubam, pois, onde está vosso tesouro,
também está o vosso coração. É por isso que vos digo: Não
vos inquieteis por encontrar o que comer para o sustento de
vossa vida, nem por terdes roupas para cobrir vosso corpo.
A vida não é mais do que o alimento, e o corpo mais do que
a roupa? Observai os pássaros do céu: eles não semeiam e
não colhem, e não guardam nada nos celeiros; mas vosso
Pai Celeste os alimenta; vós não sois muito mais do que
eles? E quem é aquele dentre vós que pode, com todos os
seus cuidados, acrescentar à sua estatura a altura de um
côvado? Por que também vos inquietais pela roupa?
Observai como crescem os lírios dos campos; eles não
trabalham, nem fiam; e, entretanto, eu vos declaro que nem
mesmo Salomão, em toda a sua glória, nunca se vestiu
como um deles. Se, pois, Deus tem o cuidado de vestir
desse modo uma erva dos campos, que hoje existe e que
amanhã será lançada na fornalha, quanto mais cuidado terá
em vos vestir, homens de pouca fé! Não vos inquieteis,
dizendo: Que comeremos ou o que beberemos, ou com o
que nos vestiremos? - como fazem os pagãos os que
procuram todas essas coisas; vosso Pai sabe que tendes
necessidades delas. Buscai, pois, primeiramente o reino de
Deus e sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas de
acréscimo. Por isso, não fiqueis inquietos pelo dia de
amanhã, pois o amanhã cuidará de si mesmo. A cada dia
basta a sua aflição.
E após ensinou:
— Contemplai as aves do céu! Não semeiam nem ceifam,
nem recolhem em celeiros... Contemplai os lírios do campo
como crescem como são belos! A nossa Terra é tão linda! A
natureza está em perfeita harmonia com o Criador, embora
a harmonia seja instintiva. Devemos, com nosso esforço,
estabelecer em nós essa harmonia consciente com Deus,
nosso Pai. Existe uma profunda afinidade entre o ser
humano espiritualista e a natureza. JESUS chamou a
atenção dos seus discípulos, legando-nos um precioso
ensinamento sobre as preocupações e as inquietações do
ser humano com o dia a dia, com o amanhã, levando-nos a
meditar sobre a serenidade, a beleza e a quietude da
natureza. Quando vivemos no estreito círculo só de nossa
vivência, seja ela encarnada ou desencarnada, vemos só as
nossas necessidades diárias. E são muitos os encarnados
que só fazem isso, não dormindo direito, chegando a
abreviar a vida física, e preocupando-se tanto que se
tornam infelizes. E essas preocupações dos encarnados não
são só dos pobres, que às vezes não têm o necessário para
uma existência decente. Os que julgam possuir riquezas
também se preocupam com o que têm e com o que
desejam ter. Pelo que sabemos o Mestre Jesus não foi
milionário nem mendigo e nunca lhe faltou nada. Para que
tantos cuidados com supérfluos perecíveis? Por que não
pensarmos em nos harmonizar com as Leis Divinas? Quando
encarnado, eu achava que só os que viviam no corpo físico
tinham preocupações excessivas com o que faziam com o
que comiam etc. Aqui na Espiritualidade compreendi que
ninguém muda só porque troca de plano. Sobre os
moradores do umbral eu não ouso falar, eles nem percebem
ainda a necessidade de fazer o bem. Abrigados e até
moradores das colônias, muitos ainda, fazem as coisas para
receber algo em troca, desejando ter, e não ser. O ser
humano espiritualizado se harmoniza com o Deus do mundo
e entra em grande harmonia com o mundo de Deus. Os
grandes mestres espirituais não nos recomendam não ter
nada, mas sim o necessário para uma existência decente.
Eles ensinam a não ter posses, e sim a usufruir com
sabedoria. O indivíduo esteja ele encarnado ou não, que se
harmoniza com Deus contempla suas obras e por elas
sentem Sua paz. Aquele que vive os ensinamentos de Jesus
não necessita de rótulos, elogios, não espera louvores nem
teme censuras, porque tudo o que faz é sem interesse.
Realiza com amor e entusiasmo as tarefas que compreende
que têm de ser realizadas, não esperando resultados.
Após ouvir a palestra, Mary ficou no pequeno jardim da
colônia olhando as flores, que eram belas. Maravilhas da
natureza que não revelam vestígios de excesso de cuidado,
afobação, nervosismo e que não visam resultados, mas que
realizam inconscientemente com a máxima perfeição cada
obra, a vontade de Deus, e o fazem sem interesse, sem
temer censura. É o que o ser humano deveria fazer
conscientemente: obras lindas e perfeitas, somente porque
lhe compete fazer isso.
E o Evangelho de Jesus Cristo é o caminho mais seguro
para uma existência no bem em todos os planos da vida.
 
 

FIM
Ao terminar a leitura deste livro, provavelmente você tenha
ficado com algumas dúvidas e perguntas a fazer, o que é
um bom sinal. Sinal de que está em busca de explicações
para a vida. Todas as respostas que você precisa estão nas
Obras Básicas de Allan Kardec.
 
 
 
19 Não seria difícil orientadores, trabalhadores do posto de
socorro modificarem o perispírito de José Ari, assim como de
qualquer socorrido. Mas, para que o necessitado dê valor, se
esforce para melhorar e com isso se eduque, são feitos
tratamentos que duram meses e até anos. (N.A.E.)
20 Mateus, 6: 19-21, 25-34. O leitor poderá encontrar mais

explicações sobre esse bonito ensinamento em O Evangelho


Segundo o Espiritismo. Allan Kardec - Capítulo 25 - Buscai e
Achareis, nos itens 6, 7 e 8 - Observai os Pássaros do Céu.
Petit Editora (N.A.E.)
 

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