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Judith Butler

Carla Rodrigues

Edição eletrônica
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ISSN: 2526-6187
Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas: Mulheres na Filosofia, V. 6 N. 3,
2020, p. 99-113.
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Judith Butler
Carla Rodrigues
Professora adjunta do Departamento de Filosofia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)


Judith Butler é uma filósofa estadunidense nascida numa família judia, em
Ohio, em 24 de fevereiro de 1956. Sua companheira é a cientista política Wendy
Brown (1955). Juntas, elas compartilham a parentalidade de Isaac, homenageado
em alguns de seus livros (a dedicatória de Precarious Life: The Powers of Mourning
and Violence, por exemplo, diz “Para Isaac, que pensa de outra forma”). Cursou
Filosofia na Universidade de Yale, hoje é professora de Literatura Comparada no
Departamento de Retórica da Universidade da Califórnia, em Berkley, onde também
é fundadora do Critical Theory Program (Programa de Teoria Crítica) e do
International Consortium of Critical Theory Programs (Consórcio Internacional de
Programas em Teoria Crítica). É professora titular da cátedra Hannah Arendt na
European Graduate School, Suíça. Intregra diversas organizações sociais, como a
American Philosophical Society, o Jewish Voice for Peace e o Center for
Constitutional Rights.
Butler é reconhecida com inúmeros prêmios, destacando-se o Prêmio
Adorno, recebido em Frankfurt, em 2012, pela contribuição para o feminismo e a
ética filosófica, e o Prêmio Brudner, na Universidade de Yale, pelos estudos sobre
homossexualidade, tema de união entre sua pesquisa e seu ativismo político em
defesa dos direitos de pessoas gays, lésbicas e trans. Seu trabalho mais recente
articula teoria crítica, ética, judaicidade e agudas críticas à violência do estado de
Israel contra o povo palestino. O início do seu interesse por filosofia aconteceu em
interlocução com o judaísmo. Na adolescência, teve problemas na escola: no início
de Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Indetidade (Butler, 1990
[2003]), ela relata que desde a infância havia descoberto que, se problemas eram
inevitáveis, era melhor ter os problemas que criasse em vez dos que para ela
fossem criados. Como uma punição por mau comportamento, sua professora
sugeriu encaminhá-la para um aconselhamento com o rabino da comunidade. O

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que era um incipiente interesse por filosofia cresceu e intensificou seu engajamento
em movimentos sociais e políticos até chegar à Universidade de Yale, onde estudou
com Seyla Benhabib e participou da Yale School of Deconstruction. Foi lá que, em
1984, aos 28 anos, defendeu a tese de doutorado Subjects of Desire - Hegelian
Reflections in Twentieth-Century France (Butler, 1987; 1999).

Principais interlocutores/as filosóficos/as


Gosto de propor que Butler é uma pensadora em trânsito. Sua primeira
pesquisa transita entre a Alemanha de Hegel e a França do início do século XX,
onde, a partir de 1930, filósofos como Jean Wahl, Alexandre Koyré, Alexandre Kojève
e Jean Hyppolite foram responsáveis por novas interpretações e traduções de
Hegel, notadamente da Fenomenologia do Espírito. Esta primeira geração de
leitores franceses de Hegel influencia filósofos como Michel Foucault, Jacques
Derrida, Jean Paul Sartre e a filósofa Simone de Beauvoir, objetos de sua pesquisa.
Em Butler, a questão do sujeito é tributária de pelo menos duas fontes: na sua tese
de doutorado, o sujeito do desejo, de Hegel, perturba o sujeito da razão da tradição
filosófica; em sua interlocução com a “virada linguística”, o sujeito passa a ser
compreendido como uma rede aberta a sucessivas interpretações. Butler transita
novamente, desta vez entre idealismo e o pós-estruturalismo do qual se aproximara
em Yale, onde foi aluna de Jacques Derrida e Paul De Man. Argumento que há nela
um estilo desconstrutivo, um modo de leitura dos textos que se vale dos autores
para ir além deles, posição de leitura resumida na citação de Gaiatry Spivak em uma
das epígrafes de Bodies that matter: On the Discursive Limits of “Sex”:
Se entendo a desconstrução, desconstrução não é a exposição de um erro,
certamente não o erro de outros autores. A crítica, na desconstrução, a mais séria
crítica na desconstrução, é a crítica de algo extremamente valioso, aquilo sem o
qual não se pode fazer nada (Spivak apud Butler, 1993, p. 27 [2019, p. 55]).
Isso que, embora não seja método, é característica marcante na abordagem
pós-estruturalista, muitas vezes foi confundido, também em outras autoras e
autores, com destruição ou aniquilamento. O equívoco chegou a situar Butler como
“má leitora” de Beauvoir, por operar, a partir da leitura de O segundo sexo, uma
desconstrução do par sexo/gênero, supostamente desconsiderando que o conceito
de gênero não consta na obra da filósofa francesa (Femenías, 2012). No entanto,

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não haveria radicalidade do pensamento de Butler sem um duplo gesto: ler Beauvoir
com e contra ela. Não para criticá-la – no sentido vulgar – mas para fazer da crítica
filosófica ponto de partida para formulações próprias. Assim entendo a postulação
de Butler: “Aparentemente, a teoria de Beauvoir trazia consequências radicais, que
ela própria não antecipou” (Butler, 1990, p. 112 [2003, p. 163]).
Mobilizada pela concepção de sujeito no existencialismo, Butler estabeleceu
um debate produtivo com Beauvoir na primeira parte de Problemas de Gênero,
publicado em 1990 e, desde então, um marco para a filosofia feminista. Uma das
suas consequências filosóficas foi perturbar o conceito de gênero, sobre o qual
teorias feministas pareciam estar assentadas mais ou menos confortavelmente até
ali. Embora pudesse parecer que as suas primeiras interrogações se somassem
aos discursos que anunciavam o fim dos movimentos feministas, os
desdobramentos dos debates feministas revelam que este gesto inicial de Bulter se
mostrará fundamental para a renovação dos feminismos, com a proposição de que
deixassem de ser feitos apenas em nome do sujeito mulher. Se compreendermos
que o modo como Butler problematiza o conceito de gênero se insere em um debate
filosófico canônico – a questão do sujeito – teremos a dimensão da sua
contribuição para a filosofia.
Embora Problemas de Gênero (Butler, 1990 [2003]) a tenha tornado uma
celebridade acadêmica, quando publicado nos EUA, há 30 anos, não foi exatamente
bem recebido. Butler se dedicou a dialogar com críticos, respondendo às
interpelações recebidas. Desse empenho vieram três livros: Bodies that matter: On
the Discursive Limits of “Sex” (Butler, 1993 [2019]), The Psychic Life of Power
(Butler, 1997 [2017]), Excitable Speech: A Politics of the Performative (Butler, 1997).
No primeiro, desenvolveu o argumento de que, embora o gênero seja performativo,
os corpos importam nas formas de discriminação; no segundo, retomou o problema
do sujeito, pensando estruturas de poder que moldam nossa vida psíquica e
sustentam a heteronormatividade; no último, explorou a performatividade da
linguagem como pensada por J. Austin e relida por Derrida, origem da noção de
performatividade de gênero apresentada em Problemas de Gênero.
A interlocução com teorias feministas levou Butler a transgredir fronteiras
disciplinares, transitando, novamente, entre diferentes campos. Antropólogas
feministas têm forte presença no pensamento de Butler. Gayle Rubin, por exemplo,

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é fonte da crítica de Butler ao estruturalismo de Lévi-Strauss e à centralidade do


complexo de Édipo, em Freud. Rubin escreveu o clássico The Traffic in Women:
Notes on the “Political Economy” of Sex (1975), onde, de um só golpe, recusa a
antropologia de matriz totêmica na qual Freud baseia o Complexo de Édipo e a
antropologia estruturalista de Lévi-Strauss, influência explícita na psicanálise de
Jacques Lacan. Já as investigações sobre gênero da antropóloga inglesa Marilyn
Strathern (Strathern, 1992) comparecem em Antigone’s Claim: Kinship Between Life
and Death (Butler, 2000 [2014]). Próxima da antropologia feminista, Butler reforça
suas críticas a Jacques Lacan propondo, em certa medida, a possibilidade de
diferentes psicanálises a partir de outra concepção de simbólico. O leque de
interlocuções na psicanálise se amplia e Butler convoca teóricos como Julia
Kristeva, Luce Irigaray, Jean Laplanche e Melanie Klein. Em 2003, a publicação de
Problemas de Gênero no Brasil foi iniciativa do psicanalista Joel Birman,
coordenador da coleção “Sujeito e História” em que o livro foi editado,
impulsionando aqui um significativo diálogo com a teoria psicanalítica (Porchat,
2007; Greiner, 2016; Fidelis, 2018).
Embora Hegel nunca perca relevância, os conceitos de assujeitamento e
biopolítica em Michel Foucault se adensam, e ela se aproxima de autores ligados à
teoria crítica, como T. Adorno. A judaicidade – apoiada em Emmanuel Lévinas,
Walter Benjamin, Hannah Arendt ou mesmo Derrida – vai sendo constituída como
elemento ético-político. Durante os 20 primeiros anos do século XXI, Butler agudiza
sua crítica ao neoliberalismo, em grande medida em interlocução com a obra de
Wendy Brown. Neste período, publicou 11 livros – não contabilizando as
organizações –, sendo o mais recente The Force of Nonviolence: The Ethical in the
Political (Butler, 2020).
Outros autores aparecem de modo mais pontual – como o sociólogo Erwing
Goffman, influência em Frames of War: When is Life Grievable? (Butler, 2009 [2015]),
o pensador palestino Edward Said, em Parting Ways: Jewishness and the Critique of
Zionism (Butler, 2012 [2017]) e o filósofo italiano Giorgio Agamben. Ela também
transita no pensamento pós-colonial, em interlocução com Gaiatry Spivak, com
quem publica Who signs the nation-state? Language, Politics, Belonging. (Butler;
Spivak, 2007 [2017]). É leitora de Frantz Fanon, Homi Bhabha e Achile Mbembe.
Sobre a crítica da violência de Estado, incorpora muitos aspectos da filosofia de

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Arendt. Ao recuperar a proposição arentiana de binacionalismo (Butler, 2012


[2017]), propõe uma saída para a violência do estado de Israel contra a Palestina e
repete o duplo gesto feito em relação a Beauvoir: pensa com e contra Arendt a fim
de retomar a filósofa alemã, com quem discute a noção de aparecimento ao pensar
a performatividade corporal e as manifestações públicas de exposição da
precariedade (Butler, 2015 [2018]).

Temas e conceitos
Há leitores que se sentem mais confortáveis em abordar a filosofia de Butler
depois de dividir a sua obra em duas partes, deixando para trás os problemas de
gênero, como se, na virada do século XXI, depois do 11 de setembro, sua filosofia
enfim se voltasse para questões ético-políticas. Na divisão, haveria o obstáculo de
compreender gênero como tema filosófico. Recuso a ideia por considerá-la
carregada de pelo menos dois equívocos: 1) o abandono dos problemas de gênero
em prol de uma filosofia política depende da compreensão do gênero como um
tema menor; 2) seria preciso sustentar o argumento de que gênero é um tema
restrito à teoria feminista, oposto do que propõe a autora. Na perspectiva que adoto,
há pelo menos três movimentos em relação ao conceito de gênero. O primeiro será
rebaixá-lo como categoria central da teoria feminista pela sua inevitável ligação
com o binarismo da diferença sexual masculino/feminino. Ela apontará para a
heteronormatividade como operador crítico das diversas formas de discriminação,
ampliando a teoria feminista para outros marcadores, como coerência corporal,
escolha de objeto de desejo, além de raça, em uma interlocução com as feministas
negras contemporâneas a ela que estavam formulando a proposição de
interseccionalidade (Crenshaw,1989). Em um segundo movimento, Butler cria
problemas com o conceito de gênero ao perceber que, embora as teorias feministas
tivessem deslocado o fundamento da identidade do sexo para o gênero, ainda era
preciso oferecer a um corpo nascido mulher a garantia da passagem ao gênero
feminino. Tornar-se mulher fechava, assim, a abertura proposta pela filosofia de
Beauvoir. O terceiro e último gesto que caberá discutir aqui será a permanência do
conceito de gênero – como categoria central na discussão ético-política sobre que
vidas importam.

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Depois do 11 de setembro, a obra de Butler ganha novos contornos. Se for verdade


que a filosofia nasce do espanto, do trauma, pode ter valor de hipótese a ideia de que, assim
como as grandes guerras na Europa tiveram imenso impacto na filosofia, sobretudo na
Alemanha e na França, o 11 de setembro produziu efeito semelhante em filósofos/as
contemporâneos/as. Butler, em diálogo com questões políticas do seu tempo, não ficou
indiferente à guerra dos EUA contra o Iraque e o Afeganistão, nem tampouco poderia ter
ignorado as consequências das ações violentas do governo. Assim, se nos anos 1990
tematizou a ausência de direito ao luto para a população gay, vítima do HIV/Aids, e o
descaso em relação a essas perdas, a partir de 2001 o tema do luto se expandiu, ganhando
densidade e se constituindo como fio condutor em seu pensamento (Rodrigues, 2017).

Como a maioria dos autores/as, Butler desenvolve vocabulário próprio,


ressignificando termos herdados da tradição, ou se valendo de conceitos existentes e
promovendo certas torções que permitirão a costura de um pensamento original. Alguns
termos da sua gramática filosófica indicam seu trânsito entre diferentes áreas e questões,
como pretendo sugerir a seguir. Diante da impossibilidade de abarcar toda a complexidade da
obra, trata-se de apresentar algumas escolhas.

Desejo e reconhecimento
No prefácio para Subjects of desire, Butler apresenta sua pesquisa como
“questionamento sobre o percurso do desejo, os trajetos de um sujeito desejante,
sem nome e sem gênero em virtude de sua universalidade abstrata” (Butler, 1987, p.
xix). Era uma indicação da sua trajetória acadêmica: uma investigação permanente
do problema filosófico e político da concepção de um sujeito universal abstrato,
sem gênero, corporalidade, sexualidade, raça, etnia, religião, local de nascimento,
idade e quantos outros tantos marcadores for preciso adicionar para compreender
que a categoria existe apenas para produzir o apagamento de todas as formas de
vida que não alcançam o estatuto da universalidade. Nesse percurso, Hegel, lido
como aquele que introduziu o desejo como problema filosófico, terá protagonismo
inicial. O sujeito da Fenomenologia do espírito, argumenta Butler, quer conhecer a si
mesmo e encontrar no “eu” a totalidade de seu mundo exterior. De maneira
interessada, ela vai à recepção francesa de Hegel para localizar o momento em que
o desejo é tomado como ponto de partida e de reformulação crítica. No prefácio à

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segunda edição de Subjects of Desire, ela revê a apresentação do próprio trabalho,


agora definido como “uma indagação crítica da relação entre desejo e
reconhecimento” (Butler, 1999, p. viii). Aqui, creio que Butler nos autoriza a
sustentar esta articulação entre desejo e reconhecimento que encontramos numa
camada de interpretação de Problemas de Gênero (BUTLER, 1990 [2003]) nem
sempre percebida por leituras por vezes apressadas ou mesmo interessadas em
situá-lo como exclusivamente voltado a criticar a teoria feminista e, em
substituição, inaugurar a teoria queer (Rodrigues, 2019).
A hipótese que defendo é que o ponto central de sua interpelação aos
feminismos está ecoando a questão do sujeito, desestabilizado pelo desejo e, com
isso, desestabilizador da universalidade abstrata do sujeito da razão; sujeito cuja
sustentação ontológica se enfraquece diante da alteridade, problema ético-político
a perpassar a trajetória de Butler. Trata-se, portanto, de questão de natureza
filosófica, cujas formulações se entrelaçam à sua abordagem hegeliana e aos
desdobramentos do que chama de “questões pós-hegelianas” (Butler, 2005, p. 26).
O problema do reconhecimento se modifica, sendo pensando agora em outra chave:
o que determina a condição de possibilidade do reconhecimento? A esta indagação
se soma o conceito foucaultiano de assujeitamento, incidindo no debate político
sobre os fatores sociais, culturais e econômicos que permitem o aparecimento de
determinados sujeitos e não de outros. É importante mencionar aparecimento como
um termo tomado da leitura de Hannah Arendt.
Desejo e reconhecimento são termos que comparecerão principalmente no
debate inicial de Problemas de Gênero, notadamente no capítulo 1, “Sujeios do
sexo/gênero/desejo”, onde está o endereçamento à teoria feminista e o
questionamento das “mulheres” como sujeito do feminismo. Tratava-se de pensar
os limites de fazer o feminismo em nome da mulher como categoria universal
abstrata, retomando um problema caro à teoria feminista: lutar por incluir a mulher
como parte do sujeito universal abstrato ou pelo reconhecimento da mulher como
sujeita, ou seja, marcada por sexo e gênero, abrindo espaço para a emergência de
outros sujeitos de direitos? (Scott, 1988; 1999). Butler segue Beauvoir muito de
perto na percepção crítica de que o sujeito universal abstrato esteve colapsado ao
masculino (Butler, 1990, p. 15-16 [2003, p.31). Na mobilização do tema do desejo
em Problemas de Gênero, este comparece de modo ambíguo, tanto desfazendo o

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binarismo do par sexo/gênero quanto servindo à crítica da coerência entre sexo


biológico, gênero social e desejo sexual. A tríade funciona para incluir o desejo –
elemento de desestabilização – na configuração dos sujeitos.

Identidade e performatividade de gênero


Se o sujeito do desejo é aquele que não cabe numa identidade estável, e se o
que interessa a Butler é o ponto deste abalo, ali onde há uma fenda aberta para a
relação com a alteridade, então seu modo de pensar a identidade estará afetado
pela questão que enuncia em Subjects of desire: “qual é a relação entre desejo e
reconhecimento e a que se deve que a constituição do sujeito suponha uma relação
radical e constitutiva com a alteridade?” (Butler, 1999, p. xiv). O problema é dirigido
às teorias feministas e a dificuldade de estabilizar a mulher numa categoria de
sujeito universal abstrato. Havia, argumentava Butler, um paradoxo em preconizar a
liberdade das mulheres em nome da alteridade e, ao mesmo tempo, exigir que, para
obterem reconhecimento, fossem configuradas numa identidade estável e universal
(Riley, 1988).
Assim, Butler articula dois problemas: a política feminista centrada no
conceito de gênero estaria condenada a se manter presa à diferença sexual do
binarismo masculino/feminino, que apenas substituiria o par homem/mulher; o
gênero estaria destituído, assim como o sexo, do fundamento ontológico da
identidade, já que a substituição de sexo natural por gênero construído seria apenas
uma transferência da natureza para a cultura. Butler pretende recuperar atributos
como instabilidade, expropriação e deslocamento, que perturbam a pretensa
estabilidade da identidade (de gênero). Emerge daí a proposição de
performatividade de gênero, desdobramento da radicalização da ruptura de
Beauvoir com o essencialismo biologizante: “Não se nasce mulher, torna-se” ganha
em Butler novos contornos (Rodrigues, 2020). A performatividade de gênero seria
então o deslocamento da identidade de gênero, sendo a primeira indicação de
elementos instáveis e artificiais que nos constituem, e a segunda exigência de
elementos estáveis e naturais atrelados à compreensão metafísica do humano.
Com a proposição de performatividade de gênero, há o que chamo, ainda que
provisoriamente, de “virada normativa”, a partir da qual as normas sociais, inclusive

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as de gênero, ficam esvaziadas de sua fundamentação na natureza


(homem/mulher) ou na cultura (masculino/feminino).
O paradigma da artificialidade da ligação entre sexo anatômico biológico e
identidade de gênero será a drag queen. Ao performatizar um gênero feminino, ela
representa elementos tidos como femininos, artificializáveis em qualquer corpo. A
ausência de fundamento natural para o gênero deu margem à compreensão da sua
performatividade como mero ato de vontade individual, equivocada e oposta ao
modo como Butler critica o gênero. Para ela, o “problema do gênero” é tomá-lo
como elemento que previamente definiria a existência, que mesmo não estando
mais determinada pelo sexo, passaria a estar “decidida pelo gênero” (Butler, 1993,
p. x [2018, p. 11]).
Há um ponto crucial: estamos submetidos às normas de gênero, escritas e
não escritas. Se, pensando com Foucault, o sujeito depende da obediência à norma
para se assujeitar; pensando com a releitura pós-estruturalista da teoria da
performatividade da linguagem, as normas dependem do ato performativo para
serem reiteradas. Uma vez que sexo e gênero não podem mais ser fundamentos
para a identidade, e as normas são uma repetição estilizada de atos, o gesto
político que interessa destacar em Butler é o esvaziamento do fundamento da
norma: nem natureza, nem cultura. Ou ainda, a admissão de que a transgressão da
norma está inscrita na sua concepção.
Foram muitas críticas à performatividade de gênero: 1) seria mero ato de
vontade do indivíduo liberal, e portanto sem potência de transformação política
(Braidotti, 2006); 2) seria uma forma de ignorar a materialidade dos corpos,
questão que vem tanto do pensamento materialista quanto das teorias sociológicas
de gênero, mesmo aquelas que, não necessariamente tributárias do materialismo,
entendem que o argumento do sexo anatômico biológico pesa sobre os corpos das
mulheres como fator de limitação das suas possibilidades sociais, políticas,
econômicas e sexuais; 3) a perfomatividade de gênero estaria esvaziando a
identidade de gênero e a reivindicação identitária na política; 4) a performatividade
seria acessível apenas à drag queen e a outras formas de encenação, confundindo
performance com performatividade (Preciado, 2014). Como consequência, a
materialidade dos corpos tornou-se ponto de partida para o desenvolvimento de
uma interseccionalidade radical na sua concepção de corpo. Butler rebaixa a

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centralidade da categoria gênero como instrumento de crítica às discriminações na


vida social, cultural e econômica, propondo a heteronormatividade como elemento
que constrói, orienta, oprime e constrange essa materialidade. A vulnerabilidade, a
precariedade do corpo, assujeitado a diversas formas de poder, se desdobrará em
outros conceitos, sem que suas formulações ético-políticas abandonem o gênero
como categoria útil de análise.

Luto e precariedade
A primeira investida de Butler na distribuição desigual do luto público é uma
breve menção, em Problemas de Gênero, ao não reconhecimento, pelo serviço de
saúde nos EUA, do valor das vidas de homens gays vítimas do HIV/Aids no início
dos anos 1980. No mesmo livro, começa um debate com as concepções de luto em
Freud, desenvolvido posteriormente no capítulo “Violence, Mourning, Politics” de
Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence (Butler, 2004; 2019), com
imensa importância nas formulações sobre a resposta bélica dos EUA depois do 11
de setembro. O tema do luto se abre em duas direções: 1) o luto como condição do
despossuído (dispossessed), condição comum a todo corpo vivente marcado pela
experiência de finitude e de perda; 2) o direito ao luto como política de
reconhecimento, direito que divide os corpos entre os que importam e os que
pesam, separa vidas vivíveis e vidas matáveis.
Sobre o luto como experiência de despossessão, observo que a filósofa se
vale da ambiguidade do termo dispossessed: despossuído é quem não tem posses,
perde o direito à terra e está obrigado a vender sua força de trabalho para
sobreviver. O despossuído está à margem, destituído das condições mínimas de
sobrevivência. A estes significados Butler acrescenta a despossessão como perda
de si, articulada com a instabilidade provocada pelo desejo na formação do eu:
“Somos desfeitos uns pelos outros. E, se não o somos, estamos perdendo alguma
coisa. Esse parece claramente ser o caso com o luto, mas só porque já era o caso
com o desejo” (Butler, 2004, p. 23 [ 2019, p. 44]). A condição de despossuído opera
como fundamento negativo para o restabelecimento de uma universalidade não
excludente, não mais marcada por qualquer elemento a partir do qual se possa
voltar a fechar o universal apenas para uns poucos.

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Já a abordagem do luto como um direito é tributária também do modo como


Butler interpreta Antígona, tragédia de Sófocles em que a personagem reivindica
cumprir rituais fúnebres para o irmão, Polinices, a quem Creonte havia proibido o
enterro por ter lutado contra Tebas. Butler percebe que o clamor de Antígona
implicava um duplo gesto: reconhecer o valor da vida do irmão e ser reconhecida na
pólis. A condição de enlutável que nos separa entre humanos e inumanos ganha
ainda mais importância em Frames of War (Butler, 2009; 2015), articulando-se com
a condição de precariedade dos viventes. Vida e morte serão compreendidas como
categorias relacionais e o valor atribuído a uma vida está diretamente ligado ao
modo como a enlutamos.
Por fim, a precariedade será um elemento central na sua crítica à
racionalidade neoliberal, reunindo a materialidade dos corpos com a vida psíquica
do poder, a reivindicação de condições materiais com o confronto às formas de
sujeição. Se todo sujeito está exposto à morte, a precariedade é condição de
possibilidade da vida e induzida por políticas de discriminação, que funcionam
separando a vida natural sem valor da vida simbólica com valor. A distribuição
desigual do luto público é compreendida, assim, como um sintoma – nem todas as
vidas são iguais – e como uma política de indução de precariedades a certas
formas de vida em que operam marcadores interseccionais que fundamentam
discriminação, opressão e violência.

Bibliografia
Principais obras e traduções disponíveis
ATHANASIOU, Athena; BUTLER, Judith. (2013) Dispossession: The Performative in
the Political. Cambridge: Polity Press.
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France. New York: Columbia University Press. 1a. edição. (1999, 2a. edição).
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York: Routledge. 1a. Edição 2a. Edição 1999. [(2003). Problemas de gênero:
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Joel Birmann. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.]
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Routledge. [(2019) Corpos que pesam. Tradução Veronica Daminelli e Daniel Yago

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Stanford University Press. [(2017) A vida psíquica do poder: teorias da sujeição.
Tradução Rogerio Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora.]
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Columbia University Press. [(2014) O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e
a morte. Tradução André Checinel. Florianópolis: Editora da UFSC.]
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London: Verso. [ (2018) Vida precária. Tradução Andreas Lieber. Revisão técnica
Carla Rodrigues. Belo Horizonte: Autêntica Editora.]
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New York: Fordham University Press. [(2015) Relatar a si mesmo: crítica da
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Lamarão e Arnaldo Cunha. Revisão técnica Carla Rodrigues. Rio de Janeiro:
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Harvard University Press. [(2018) Corpos em aliança e a política das ruas: notas
sobre uma teoria performativa de assembleia. Tradução Fernanda Miguens.
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Estado-Nação? Língua, política, pertencimento. Tradução Vanderlei J. Zacchi e


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Literatura secundária
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