PDF Judith Butler
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Carla Rodrigues
Edição eletrônica
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ISSN: 2526-6187
Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas: Mulheres na Filosofia, V. 6 N. 3,
2020, p. 99-113.
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Judith Butler
Carla Rodrigues
Professora adjunta do Departamento de Filosofia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Judith Butler é uma filósofa estadunidense nascida numa família judia, em
Ohio, em 24 de fevereiro de 1956. Sua companheira é a cientista política Wendy
Brown (1955). Juntas, elas compartilham a parentalidade de Isaac, homenageado
em alguns de seus livros (a dedicatória de Precarious Life: The Powers of Mourning
and Violence, por exemplo, diz “Para Isaac, que pensa de outra forma”). Cursou
Filosofia na Universidade de Yale, hoje é professora de Literatura Comparada no
Departamento de Retórica da Universidade da Califórnia, em Berkley, onde também
é fundadora do Critical Theory Program (Programa de Teoria Crítica) e do
International Consortium of Critical Theory Programs (Consórcio Internacional de
Programas em Teoria Crítica). É professora titular da cátedra Hannah Arendt na
European Graduate School, Suíça. Intregra diversas organizações sociais, como a
American Philosophical Society, o Jewish Voice for Peace e o Center for
Constitutional Rights.
Butler é reconhecida com inúmeros prêmios, destacando-se o Prêmio
Adorno, recebido em Frankfurt, em 2012, pela contribuição para o feminismo e a
ética filosófica, e o Prêmio Brudner, na Universidade de Yale, pelos estudos sobre
homossexualidade, tema de união entre sua pesquisa e seu ativismo político em
defesa dos direitos de pessoas gays, lésbicas e trans. Seu trabalho mais recente
articula teoria crítica, ética, judaicidade e agudas críticas à violência do estado de
Israel contra o povo palestino. O início do seu interesse por filosofia aconteceu em
interlocução com o judaísmo. Na adolescência, teve problemas na escola: no início
de Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Indetidade (Butler, 1990
[2003]), ela relata que desde a infância havia descoberto que, se problemas eram
inevitáveis, era melhor ter os problemas que criasse em vez dos que para ela
fossem criados. Como uma punição por mau comportamento, sua professora
sugeriu encaminhá-la para um aconselhamento com o rabino da comunidade. O
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que era um incipiente interesse por filosofia cresceu e intensificou seu engajamento
em movimentos sociais e políticos até chegar à Universidade de Yale, onde estudou
com Seyla Benhabib e participou da Yale School of Deconstruction. Foi lá que, em
1984, aos 28 anos, defendeu a tese de doutorado Subjects of Desire - Hegelian
Reflections in Twentieth-Century France (Butler, 1987; 1999).
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não haveria radicalidade do pensamento de Butler sem um duplo gesto: ler Beauvoir
com e contra ela. Não para criticá-la – no sentido vulgar – mas para fazer da crítica
filosófica ponto de partida para formulações próprias. Assim entendo a postulação
de Butler: “Aparentemente, a teoria de Beauvoir trazia consequências radicais, que
ela própria não antecipou” (Butler, 1990, p. 112 [2003, p. 163]).
Mobilizada pela concepção de sujeito no existencialismo, Butler estabeleceu
um debate produtivo com Beauvoir na primeira parte de Problemas de Gênero,
publicado em 1990 e, desde então, um marco para a filosofia feminista. Uma das
suas consequências filosóficas foi perturbar o conceito de gênero, sobre o qual
teorias feministas pareciam estar assentadas mais ou menos confortavelmente até
ali. Embora pudesse parecer que as suas primeiras interrogações se somassem
aos discursos que anunciavam o fim dos movimentos feministas, os
desdobramentos dos debates feministas revelam que este gesto inicial de Bulter se
mostrará fundamental para a renovação dos feminismos, com a proposição de que
deixassem de ser feitos apenas em nome do sujeito mulher. Se compreendermos
que o modo como Butler problematiza o conceito de gênero se insere em um debate
filosófico canônico – a questão do sujeito – teremos a dimensão da sua
contribuição para a filosofia.
Embora Problemas de Gênero (Butler, 1990 [2003]) a tenha tornado uma
celebridade acadêmica, quando publicado nos EUA, há 30 anos, não foi exatamente
bem recebido. Butler se dedicou a dialogar com críticos, respondendo às
interpelações recebidas. Desse empenho vieram três livros: Bodies that matter: On
the Discursive Limits of “Sex” (Butler, 1993 [2019]), The Psychic Life of Power
(Butler, 1997 [2017]), Excitable Speech: A Politics of the Performative (Butler, 1997).
No primeiro, desenvolveu o argumento de que, embora o gênero seja performativo,
os corpos importam nas formas de discriminação; no segundo, retomou o problema
do sujeito, pensando estruturas de poder que moldam nossa vida psíquica e
sustentam a heteronormatividade; no último, explorou a performatividade da
linguagem como pensada por J. Austin e relida por Derrida, origem da noção de
performatividade de gênero apresentada em Problemas de Gênero.
A interlocução com teorias feministas levou Butler a transgredir fronteiras
disciplinares, transitando, novamente, entre diferentes campos. Antropólogas
feministas têm forte presença no pensamento de Butler. Gayle Rubin, por exemplo,
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Temas e conceitos
Há leitores que se sentem mais confortáveis em abordar a filosofia de Butler
depois de dividir a sua obra em duas partes, deixando para trás os problemas de
gênero, como se, na virada do século XXI, depois do 11 de setembro, sua filosofia
enfim se voltasse para questões ético-políticas. Na divisão, haveria o obstáculo de
compreender gênero como tema filosófico. Recuso a ideia por considerá-la
carregada de pelo menos dois equívocos: 1) o abandono dos problemas de gênero
em prol de uma filosofia política depende da compreensão do gênero como um
tema menor; 2) seria preciso sustentar o argumento de que gênero é um tema
restrito à teoria feminista, oposto do que propõe a autora. Na perspectiva que adoto,
há pelo menos três movimentos em relação ao conceito de gênero. O primeiro será
rebaixá-lo como categoria central da teoria feminista pela sua inevitável ligação
com o binarismo da diferença sexual masculino/feminino. Ela apontará para a
heteronormatividade como operador crítico das diversas formas de discriminação,
ampliando a teoria feminista para outros marcadores, como coerência corporal,
escolha de objeto de desejo, além de raça, em uma interlocução com as feministas
negras contemporâneas a ela que estavam formulando a proposição de
interseccionalidade (Crenshaw,1989). Em um segundo movimento, Butler cria
problemas com o conceito de gênero ao perceber que, embora as teorias feministas
tivessem deslocado o fundamento da identidade do sexo para o gênero, ainda era
preciso oferecer a um corpo nascido mulher a garantia da passagem ao gênero
feminino. Tornar-se mulher fechava, assim, a abertura proposta pela filosofia de
Beauvoir. O terceiro e último gesto que caberá discutir aqui será a permanência do
conceito de gênero – como categoria central na discussão ético-política sobre que
vidas importam.
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Desejo e reconhecimento
No prefácio para Subjects of desire, Butler apresenta sua pesquisa como
“questionamento sobre o percurso do desejo, os trajetos de um sujeito desejante,
sem nome e sem gênero em virtude de sua universalidade abstrata” (Butler, 1987, p.
xix). Era uma indicação da sua trajetória acadêmica: uma investigação permanente
do problema filosófico e político da concepção de um sujeito universal abstrato,
sem gênero, corporalidade, sexualidade, raça, etnia, religião, local de nascimento,
idade e quantos outros tantos marcadores for preciso adicionar para compreender
que a categoria existe apenas para produzir o apagamento de todas as formas de
vida que não alcançam o estatuto da universalidade. Nesse percurso, Hegel, lido
como aquele que introduziu o desejo como problema filosófico, terá protagonismo
inicial. O sujeito da Fenomenologia do espírito, argumenta Butler, quer conhecer a si
mesmo e encontrar no “eu” a totalidade de seu mundo exterior. De maneira
interessada, ela vai à recepção francesa de Hegel para localizar o momento em que
o desejo é tomado como ponto de partida e de reformulação crítica. No prefácio à
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Luto e precariedade
A primeira investida de Butler na distribuição desigual do luto público é uma
breve menção, em Problemas de Gênero, ao não reconhecimento, pelo serviço de
saúde nos EUA, do valor das vidas de homens gays vítimas do HIV/Aids no início
dos anos 1980. No mesmo livro, começa um debate com as concepções de luto em
Freud, desenvolvido posteriormente no capítulo “Violence, Mourning, Politics” de
Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence (Butler, 2004; 2019), com
imensa importância nas formulações sobre a resposta bélica dos EUA depois do 11
de setembro. O tema do luto se abre em duas direções: 1) o luto como condição do
despossuído (dispossessed), condição comum a todo corpo vivente marcado pela
experiência de finitude e de perda; 2) o direito ao luto como política de
reconhecimento, direito que divide os corpos entre os que importam e os que
pesam, separa vidas vivíveis e vidas matáveis.
Sobre o luto como experiência de despossessão, observo que a filósofa se
vale da ambiguidade do termo dispossessed: despossuído é quem não tem posses,
perde o direito à terra e está obrigado a vender sua força de trabalho para
sobreviver. O despossuído está à margem, destituído das condições mínimas de
sobrevivência. A estes significados Butler acrescenta a despossessão como perda
de si, articulada com a instabilidade provocada pelo desejo na formação do eu:
“Somos desfeitos uns pelos outros. E, se não o somos, estamos perdendo alguma
coisa. Esse parece claramente ser o caso com o luto, mas só porque já era o caso
com o desejo” (Butler, 2004, p. 23 [ 2019, p. 44]). A condição de despossuído opera
como fundamento negativo para o restabelecimento de uma universalidade não
excludente, não mais marcada por qualquer elemento a partir do qual se possa
voltar a fechar o universal apenas para uns poucos.
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Bibliografia
Principais obras e traduções disponíveis
ATHANASIOU, Athena; BUTLER, Judith. (2013) Dispossession: The Performative in
the Political. Cambridge: Polity Press.
BUTLER, Judith. (1987). Subjects of desire: Hegelian reflections in twenty-century
France. New York: Columbia University Press. 1a. edição. (1999, 2a. edição).
______________. (1990). Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New
York: Routledge. 1a. Edição 2a. Edição 1999. [(2003). Problemas de gênero:
feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Revisão técnica
Joel Birmann. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.]
______________. (1993). Bodies that matter: On the Discursive Limits of ‘Sex’, London:
Routledge. [(2019) Corpos que pesam. Tradução Veronica Daminelli e Daniel Yago
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Françoli. Revisão técnica Daniel Yago Françoli, Carla Rodrigues e Pedro Taam. São
Paulo: N-1 Edições.]
______________. (1997) Excitable Speech: A Politics of the Performative. New York:
Routledge.
______________. (1997) The Psychic Life of Power: Theories in Subjection. California:
Stanford University Press. [(2017) A vida psíquica do poder: teorias da sujeição.
Tradução Rogerio Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora.]
______________. (2000) Antigone’s Claim: Kinship Between Life and Death. New York:
Columbia University Press. [(2014) O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e
a morte. Tradução André Checinel. Florianópolis: Editora da UFSC.]
______________. (2004) Precarious Life: The Power of Mourning and Violence.
London: Verso. [ (2018) Vida precária. Tradução Andreas Lieber. Revisão técnica
Carla Rodrigues. Belo Horizonte: Autêntica Editora.]
______________. (2005) Giving an Account of Oneself: a critique of ethical violence.
New York: Fordham University Press. [(2015) Relatar a si mesmo: crítica da
violência ética. Tradução Rogerio Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora.]
______________. (2009) Frames of War: When Is Life Grievable? New York: Verso.
[(2015) Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução Sérgio
Lamarão e Arnaldo Cunha. Revisão técnica Carla Rodrigues. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira.]
______________. (2012) Parting Ways: jewishness and the critique of Zionism. New
York: Columbia University Press. [(2017) Caminhos divergentes: judaicidade e
crítica do sionismo. Tradução Rogerio Bettoni. São Paulo: Boitempo.]
______________. (2014) Undoing gender. New York: Routledge.
______________. (2015) Notes Toward a Performative Theory of Assembly. London:
Harvard University Press. [(2018) Corpos em aliança e a política das ruas: notas
sobre uma teoria performativa de assembleia. Tradução Fernanda Miguens.
Revisão técnica: Carla Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.]
______________. (2015) Senses of the Subject. New York: Fordham University Press.
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Verso.
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Literatura secundária
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Reflexões sobre processos de congregação e segregação. Mestrado Filosofia.
Orientação Carla Rodrigues. UFRJ, Rio de Janeiro.
BEAUVOIR, Simone de. (1949) Le deuxieme sexe: Les faits et les mythes. Paris:
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BENTO, Berenice. (2006; 2014) A reinvenção do corpo: gênero e sexualidade na
experiência transexual. Garamond, Rio de Janeiro; EDUFRN, Natal.
BRAIDOTTI, Rosi (2006), Transpositions: On Nomadic Ethics. Cambridge: Polity
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Outras referências
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