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SUMÁRIO

PALAVRAS DO EDITOR........................................................................................................01
Silvana Maria Pintaudi

APRESENTAÇÃO.................................................................................................................02
Gloria da Anunciação Alves

A GEOPOLÍTICA DA FAVELA: DESAFIOS ATUAIS DA JUSTIÇA TERRITORIAL NO RIO DE


JANEIRO..............................................................................................................................05
Slum Geopolitics: Current Challenges of Territorial Justice In Rio De Janeiro
IVALDO LIMA

POLÍTICAS PÚBLICAS NO ESPAÇO......................................................................................41


Public Policies in Space
ARLETE MOYSÉS RODRIGUES

ÁREAS CENTRAIS URBANAS E MOVIMENTOS DE MORADIA: TRANSGRESSÃO,


CONFRONTOS E APRENDIZADOS.......................................................................................71
Inner City Central Areas and Housing Movements: Transgression, Confrontations, And Learning
FRANCISCO DE ASSIS COMARU

UM BALANÇO DE PESQUISA, 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL


RECONFIGURADO..............................................................................................................94
A research review, 10 years on the east side and a social redesign
CIBELE S. RIZEK

TRABALHO E CRISE URBANA: CONDIÇÕES DA PRECARIZAÇÃO......................................141


Work and Urban Crisis: Conditions of Precariousness
TATIANE MARINA PINTO DE GODOY

HORIZONTES DA POLITICA SOCIAL NA GLOBALIZAÇÃO DA DESIGUALDADE E O MINHA


CASA MINHA VIDA.............................................................................................................167
Perspectives on the new social policy in the globalization of inequality and the Brazilian
government's housing program
CÉSAR SIMONI SANTOS
UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM
SOCIAL RECONFIGURADO

Cibele S.Rizek
Professora do Instituto de Arquitetura e Urbanismo
Universidade de São Paulo

A Robert Cabanes, com respeito, gratidão, admiração

RESUMO
O texto faz um balanço de um conjunto de incursões de pesquisa nas fronteiras
urbanas, a leste da cidade de São Paulo e abarca resultados dessas incursões
que conformam aspectos relativos às formas de trabalho, aos programas e
políticas sociais, às políticas de cultura e seus impactos na vida e nas práticas
dessas populações. A permeabilidade do mundo do crime, a presença das
formas de operacionalização das políticas e programas, as várias parcerias que
conformam novas margens do estado embaralham categorias e exigem uma
reflexão a respeito da produção desse novo social, como resultado e não como
pressuposto desse conjunto de práticas vinculadas à produção das relações
sociais e do espaço urbano.
PALAVRAS CHAVE: periferia; pobreza; programas sociais; políticas sociais.

A RESEARCH REVIEW: 10 YEARS ON THE EAST SIDE AND A SOCIAL REDESIGN

ABSTRACT
This paper takes stock of a series of research forays towards the urban frontiers
on the east side of the city of São Paulo. We include the results of these
incursions, which conform to aspects related to working methods, social
programs and policies, cultural policies and their impacts on the lives and
practices of these populations. The permeability of the world of crime, the
UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

presence of means of operationalizing policies and programs, the various


partnerships that form new margins of the state, muddle categories and
demand a reflection on the production of this new social, as a result of, and not
as an assumption of, this set of practices linked to the production of social
relations and urban space.
KEYWORDS: periphery, poverty, social programs, social policies.

Este texto resulta da tentativa de compreender uma pluralidade de


dimensões apreendidas em incursões etnográficas, para além dos
procedimentos clássicos de generalização e apreensão de tendências sociais,
exclusivamente como resultado do tratamento estatístico de grandes bases de
dados1. Dessa perspectiva, é importante perceber, na leitura e releitura de
resultados de pesquisa, desdobramentos teórico- metodológicos, que provêm
de uma articulação a posteriori, isto é, a partir de um conjunto de reflexões que
vieram das interconexões entre momentos e temas de pesquisa. A partir dessas
incursões etnográficas foi possível acumular e compreender um mosaico de
situações e seus feixes de interconexão. Os fios entre elas apontam para uma
teia que acaba por impor como temas e questões uma abordagem que possa
apreender e tematizar práticas e atores para além de cada campo de pesquisa,
mais ou menos consagrados, a partir de objetos construídos – o trabalho, a

1
Esse texto recupera algumas ideias desenvolvidas por Isabel Georges e por mim, a partir de um conjunto
de considerações metodológicas formuladas por um texto conjunto, preparado para o seminário final do
projeto ANR Les Suds II LATINASSIST “Gouverner les pauvres en Amérique latine: gérer les femmes par
l’assistance”, em fevereiro de 2014, Nogent-sur-Marne. Pode-se, ainda, encontrar algumas de suas
referências aqui mencionadas e reelaboradas no texto de Isabel Georges, « Informalidades do Estado e
dispositivos de ordenamento : uma abordagem territorial, setorial e comparativa », Comunicação no 38°
Encontro Anual da Anpocs em Caxambu, MG, em 2014, no GT 34 « Sobre Periferias” assim como em I.
Georges e Cibele S. Rizek, Práticas e dispositivos: Escalas, territórios e atores – Texto que comporá o
dossiê elaborado pelas autoras para a Revista Contemporânea – Programa de Sociologia da Universidade
Federal de São Carlos. Na consideração dos exemplos e resultados etnográficos, porém, encontram-se
achados provenientes de pesquisas já concluídas: « O Social e o Cultural entrelaçados » (CNPq B
Produtividade em Pesquisa 2011-2014); e a pesquisa proveniente do Edital MCidades n. 11/2012 « A MCMV-
entidades no estado de São Paulo. Abordagem etnográfica de casos selecionados », coordenada por C. S.
Rizek, com a participação de Caio S. de Carvalho, Camila Moreno Camargo, Andrea Q. Castro entre outros
pesquisadores.

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saúde, o crime, as dimensões e práticas religiosas. Assim as dimensões


transversais a esses e outros tantos objetos de investigação permitiram
compreender nexos, redes de atores e modos de operação de programas e
políticas, territórios que se cruzam com ou sem superposições.

Como resultado dessa reflexão os desdobramentos teóricos e


metodológicos, para além dos recortes e da construção de objetos como feixes
de iluminação e escurecimentos, permitem afirmar que, ao se recuperar o que
estava nas zonas menos iluminadas, ao se estabelecerem relações nem sempre
claras num primeiro momento de investigação, atira-se no que se vê e acerta-se
no que, pelo menos de forma imediata, não se vê. As conexões, a possibilidade
de sua apreensão, as relações que se pôde apreender e tematizar resultaram
do que se pôde identificar como incursões em um território, em um espaço
delimitado da periferia leste da cidade de São Paulo, que se constituiu como
ancoragem, como ponto nodal de cruzamento de redes de práticas e atores, de
apreensão de dimensões que se conformaram, em um primeiro momento,
como estritamente locais, cuja apreensão e compreensão exigiram
deslocamentos de escala, para além dos níveis estritos de investigação micro
ou macro.

Assim, talvez como descoberta, alguns dos territórios se desenharam


ou emergiram como questão, a partir das práticas e dimensões observadas -
elas também - a partir de incursões e visitas, trajetórias, relatos de vida
entrecruzados. Desse ponto de vista, é possível apreender a construção
etnográfica dos territórios, tanto pela sua presença forte - contiguidade,
ancoragem de práticas, proximidades -, como pela ausência dessas dimensões,
ausência tomada como índice, por exemplo, de certa externalidade que, por
vezes, pode se tornar um dos elementos significativos de pesquisa. De qualquer
modo, pode-se indicar parte dessas conexões pela presença ou pela ausência,
mais uma vez como um procedimento de pesquisa a partir e em razão de

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UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

relações de proximidade territorial entre práticas e atores, entre nexos ou de


sua inexistência2. Pela presença e pela falta, as dimensões territoriais acabam
por se constituir um elemento cheio de sentidos e significações, amplificados,
de um lado, por práticas que se conectam territorialmente - práticas que
constituem territórios do ponto de vista da experiência dos atores e sujeitos –;
de outro, por forças estruturantes de localizações quase sempre múltiplas, que
se articulam ou que apenas se justapõem.

Dessa perspectiva, é preciso mencionar que, ao longo de um conjunto


nada homogêneo de incursões a campo, perseguindo pistas de pesquisa a
propósito de objetos de investigação, diversos entre si, foi possível apreender
processos, cujo nexo extrapola cada recorte empírico, cada pesquisa em
particular. Trata-se de pensar o que poderia ser identificado - no jogo
interescalar, assim como no entrelaçamento temporal de processos de
pesquisa diversos entre si - como “regimes de visibilidade” que permitem (ou
não): perceber e compreender dimensões da formulação, ação e formas de
operação do Estado, esse “fazer estado nas margens” a que se refere DAS
(2004); apreender e compreender sentidos que põem em xeque e em questão
formas de operação que se contaminam e se cruzam entre políticas e
programas diversos; apreender capilaridades e enovelamentos entre
dimensões que conformam campos de pesquisa distintos entre si como
políticas sociais, práticas e concepções religiosas, programas de assistência, de
cultura, de moradia e habitação, o chamado “mundo do crime”, entre outras
dimensões.

Assim, o não nomeado – aquilo que não se desenhou previamente


como objeto das incursões de pesquisa e, ao mesmo tempo, os aspectos,

2
Note-se especialmente, o exemplo de uma importante ONG local, responsável pela implementação de
um conjunto de programas e políticas sociais que desconhecia inteiramente um grande empreendimento
vinculado ao Minha Casa Minha Vida entidades que estaria para ser implementado ao lado de uma de suas
subsedes.

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Cibele S. Rizek

práticas e modos de operação que seriam identificados apenas e


necessariamente a partir das incursões a campo, a partir das conexões e da
extensão dos achados de pesquisa - se transformam em novas questões,
permitindo prospecções e projeções sobre novos objetos.

É ainda importante mencionar que o presente texto é fruto de pesquisa


coletiva, de média/longa duração, que teve início com o conjunto de incursões
a campo, que deu origem ao livro, Saídas de Emergência: Ganhar/Perder a vida na
periferia de São Paulo, e que desencadeou outros projetos, novas equipes,
novos desdobramentos, alguns dos quais alvo de comentário crítico e analítico
dessa reflexão.

ALGUNS EXEMPLOS/CENAS/SITUAÇÕES DE PESQUISA

1) Início do milênio – das novas formas de trabalho às injunções Estado/


cooperativas/associações

Em um texto que resultou de uma investigação a respeito das relações


entre trabalho “precário” e Cidade, os primeiros achados resultantes de um
conjunto de incursões de pesquisa, em um mesmo bairro, começavam a ganhar
corpo.

Entre outras dimensões, algumas questões e desdobramentos ficariam


explícitos: a primeira é a distância e as dificuldades relativas à mobilidade
urbana como condição daquilo que já identificamos em alguns textos (Georges
e Rizek, 2008, Rizek, 2012; 2010) – a viabilidade e plausibilidade do trabalho sem
registro, sem garantias, sem carteira, supostamente vinculado a uma
cooperativa, orquestrada a partir de uma associação de moradores, que só
poderia acontecer ali, em Cidade Tiradentes, onde qualquer outra alternativa
suporia a mesma precariedade de vínculos e de rendimentos salariais ou a dura
e interminável mobilidade para outros pontos da cidade, onde seria possível,
mas talvez mais difícil, obter alguma renda. O achado de pesquisa - que se
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UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

conformava em meio a visitas à Cidade Tiradentes, acompanhando Robert


Cabanes – era uma cooperativa de costura – que, à época, consideramos uma
“falsa cooperativa”, cujo regime de trabalho (em que era evidente o assédio
moral, o uso abusivo do poder de coerção sobre os trabalhadores, demissões
arbitrárias, entre outros traços de despotismo presente no cotidiano de
trabalho) conduziu à pergunta sobre as razões do uso da costura como suposta
“alternativa de geração de emprego e renda”. Essas razões se assentavam na
combinação local de saberes e práticas que permitiam, em uma condição
semelhante à do trabalho em domicílio “clássico”, um adensamento da
exploração e do uso do trabalho predominantemente feminino. A proximidade
dessa prática feminina – e, quando necessário, também masculina - de costura,
adquirida como qualificação tácita que já vinha tendo lugar nos apartamentos
exíguos dos conjuntos habitacionais de Cidade Tiradentes, permitiam o uso de
capacidades desenvolvidas a partir dos processos de construção de gênero e
exigiam quase nada de investimentos prévios, além das qualificações de
mulheres trabalhando em casa, para a entrega de peças bordadas, costuradas,
com apliques ou etiquetadas com marcas de prestígio, verdadeiras ou
“falsificadas”, combinando “formalidades e informalidades”, legalidades e
ilegalismos, em circuitos de práticas de produção e comercialização (Freire,
2009; Georges, Freire, 2007; Rizek, Georges, Freire, 2014, Rizek, 2013).

Assim, costura e reciclagem – em especial a que tem lugar nas pontas


mais precárias do bairro, as favelas Jardim Maravilha e Buraco do Gato -
pareciam ser as únicas possibilidades plausíveis, até aquele momento, para uma
grande massa de moradoress e moradoras de Cidade Tiradentes. A proximidade
do local de moradia era o grande trunfo dessas duas possibilidades que, dessa
perspectiva, tornavam-se funcionais, tanto para seus respectivos circuitos
produtivos, como para a população que delas necessitava para a própria
sobrevivência.

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O que essas incursões de pesquisa detectaram foi, basicamente, uma


dimensão invisível das relações e formas de trabalho, embaralhando circuitos e
territórios, como também trabalho associado e trabalho assalariado - similar ao
que alguns autores identificam como “precarizado” (Braga, 2012). Antigos
“bairros dormitórios”, produzidos por conglomerados de pequenos
apartamentos e financiados por programas de habitação social, assim como
loteamentos populares frequentemente irregulares e auto empreendidos, nas
fronteiras leste da cidade de São Paulo se transmutaram em novos territórios
produtivos (Rizek, 2012), ainda que não seja possível observar nenhuma
unidade industrial em pleno funcionamento nas proximidades3. Assim Cidade
Tiradentes - um bairro produzido pelo Estado, a 35 quilômetros do centro da
cidade – podia ser compreendido como um nó em um circuito de produção de
confecções, dentro e fora dos apartamentos, em garagens improvisadas, em
cooperativas. Sua produção chegaria a grandes lojas de consumo popular ou de
luxo, na feirinha da madrugada ou nos empreendimentos do Ministério dos
Esportes. Havia, ali, um conjunto de novas e velhas possibilidades de trabalho,
que se desenvolviam de modo mais ou menos invisível. Nas relações de trabalho
supostamente cooperativadas, ganhava corpo a possibilidade de exploração e
absorção das parcelas mais vulneráveis de trabalhadores – mulheres negras,
idosas, mulheres chefes de família em situações de muita precariedade,
presidiários, “autônomos”. Na cooperativa, foi possível observar as etapas de
confecção de camisetas, bolsas, bonés e bandeiras para atividades esportivas

3
O mesmo se poderia dizer de alguns nichos de produção, moradia e comercialização do centro da cidade,
onde pululam oficinas de costura e seus trabalhadores, que frequentemente moram e trabalham em
situações-limite, elas também dificilmente passíveis de serem descritas como trabalho em domicílio. Na
verdade, pode-se afirmar que a categoria trabalho em domicílio não se aplica inteiramente a essas
situações, em especial as oficinas cujos trabalhadores são bolivianos indocumentados. Se o trabalho em
domicílio supunha atividades realizadas nos locais de residência dos trabalhadores, trata-se aqui do
contrário: esses trabalhadores habitam os locais onde trabalham (Rizek et al., 2014).

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UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

oficiais, inclusive as bandeiras brasileiras que os atletas exibiram nas Olimpíadas


de Pequim4.

As ambiguidades e dobraduras, as articulações e o modo pelo qual


essas populações enfrentam suas condições de trabalho e de vida trouxeram
ainda elementos surpreendentes: trata-se da constituição de um mix, também
ele da ordem das indiferenciações, entre trabalho social, trabalho associado (ou
pelo menos autodefinido como tal) e trabalho assalariado, nas suas formas
menos reguladas e mais precárias5.

Alguns desses primeiros resultados substantivos apontavam para a


presença imprevisível e insuspeitável das relações entre situações precárias e
informais de trabalho e Estado. A cooperativa, proveniente de uma associação
de moradores e mutuários, teria se viabilizado e prosperado produzindo
material para um cliente em particular: um ministério do governo brasileiro,
ocupado por um dos partidos da base aliada do primeiro governo Lula. Assim,
em condições muito precárias de trabalho supostamente associado, era
possível ler a inscrição símbolo dos governos do PT - Brasil um país de todos -
estampada nas camisetas e em outros produtos fabricados em regime de
relações de trabalho informal, mas, sobretudo, precário e despótico.

Foi, então, possível detectar o lugar de um, entre muitos, diferentes


modos de informalidade e precariedade nas dobraduras da ação do Estado, um
primeiro sentido das relações informais de trabalho como parte do leque de
informalidades do Estado, presentes nas periferias das grandes cidades

4
Refiro-me ao que foi descrito em Georges, I. e Rizek, C. S. “A periferia dos direitos”, ANPOCS, Caxambu,
2008; idem, 2012; ou ainda em Rizek, C. S. “Trabalho, moradia e cidade Zonas de indiferenciação”? Revista
Brasileira e Ciências sociais – vol. 27, n. 78, 2012.
5
Há aqui uma questão de nomeação que não se pode deixar de assinalar. As palavras precariedade e
informalidade, entre outras, que apontavam para uma característica não regulada e vulnerável das
situações de trabalho, portanto para uma característica em negativo da inserção produtiva de camadas
populares parecem não dar mais conta da gigantesca diversidade e multiplicidade de situações que se
abrigavam sob essas denominações. Continuamos, entretanto, utilizando os mesmos termos, ainda que
reconheçamos sua insuficiência.

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brasileiras, a partir dos seus mecanismos de funcionamento e de suas


intersecções com outras relações socioespaciais, outros modos de ordenar e
territorializar sociabilidades.6 Trata-se de constatar que a presença do Estado
não significa, necessariamente, o aumento de formalização e, mesmo se esse
aumento chegasse a ocorrer, essa presença não institucionalizaria situações de
trabalho “virtuosas”, isto é, formalizadas e devidamente cobertas pelos
direitos – descanso remunerado, férias, fundo de garantia, 13º salário etc. (cf.
Georges, 2015, Rizek, 2010, entre outros).

Este ponto de partida empírico acabou por se converter em dimensão


analítica que revelou que a forte presença direta do Estado no âmbito local,
através de programas diretos do Governo Federal, com enorme visibilidade
política, podia não significar garantia de direitos, tanto do trabalho, como
direitos, em sua acepção mais ampla, isto é, no sentido de sua universalização.
Constatava-se, nessa e em outras incursões de pesquisa, a presença insidiosa
de distribuição de favores e consolidação de benesses eleitorais e políticas para
partidos aliados, inclusive aquele que à época estava no comando do Ministério
dos Esportes7. Nesse sentido, esse primeiro experimento de inserção no campo
de pesquisa devidamente transformado em problema teórico e empírico
funcionou como um primeiro alerta, que permitia entrever um Estado, cujo
lugar entre legalidades e ilegalidades/ilegalismos, criava e recriava
“informalidades” e precariedades sob o manto de programas de economia
solidária e de iniciativas de geração de emprego e renda, que perpassavam e

6
É possível, assim, remeter essas dimensões à contribuição de Antônio Machado da Silva (2014) sobre o
que estaria por traz da resiliência da categoria do informal, apesar do seu aparente esgotamento e de sua
transformação em continente de múltiplos conteúdos, ou, como aponta Machado, em categoria
“ônibus”.
7
Foram frequentes as menções dos trabalhadores à obrigatoriedade de participação dos supostos
membros dessa “cooperativa” nos atos e manifestações do PCdoB. Essa também era a filiação partidária
dos gerentes e promotores da iniciativa de “trabalho associado”. Ver Georges e Rizek, “À periferia do
direito: trabalho, precariedade e políticas públicas”, 2008 [2012]. Ver também Rizek, C. S. “Verde Amarelo
Azul e Branco” em Hegemonia às Avessas (Boitempo , São Paulo, 2010. Oliveira, F. Braga, R. e Rizek, C)

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UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

constituíam situações despóticas de trabalho dentro de um circuito produtivo


e político, que se enredava na constituição nada virtuosa de um social recriado.8

2) Saúde e cultura – privatizações cruzadas

Nesse mesmo território, bem como nos bairros mais consolidados da


periferia leste, a partir de incursões etnográficas, outro achado surpreendente,
explorado em textos também já publicados (Rizek, 2013; Georges, 2014, op.cit.),
apontava para dimensões territoriais diversas entre si, que se articulavam onde
se concentraram esforços de pesquisa. Acompanhando pesquisadores que
estavam às voltas com os modos de operação dos programas de saúde (ver
Georges e Santos, 2016, no prelo), um outro conjunto de achados acabou por
tomar corpo, colocando desafios muito interessantes: por um lado, a dimensão
multiescalar – a necessidade de deslocamentos escalares impostos pelos
desafios de pesquisa que, a partir de então, se colocavam; por outro lado, o fato
de que esses achados foram possíveis, necessariamente, a partir das dimensões
e incursões de pesquisa centradas em um mesmo território. Trata-se do que
pôde ser nomeado como privatizações cruzadas, que apontavam para uma
proposição e uma política de implementação de serviços de saúde e de cultura,
que teve na experiência paulista e paulistana um de seus pontos nodais.

A partir da Organização Social a cargo dos serviços de saúde em todo


território do extremo leste da cidade de São Paulo foi possível puxar os fios de
uma trama que permitiu perceber de que modo a privatização do
financiamento e gestão da cultura e da saúde se entrelaçaram, alcançando, por
um lado, a permanência intocada de políticas culturais de cunho federal que
datavam dos anos noventa e foram se atualizando ao longo das duas décadas
dos anos 2000; e, de outro lado, as políticas de terceirização de todos os

8
Ver a esse respeito Rizek, C. S. , 2016. Faces do Lulismo: Cultura e Política na Periferia de São Paulo, no
prelo. No texto a autora se apropria a noção de invenção do social tal como foi formulada por Paulo
Arantes na entrevista concedida à Revista Caros Amigos, fevereiro de 2015.

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Cibele S. Rizek

âmbitos de atenção à saúde, levada a cabo de modo pioneiro pelos governos


de São Paulo (Estado e municípios) (Rizek, 2013, Georges, 2011; Georges e
Santos, 2016, no prelo). Esse cruzamento, nas mãos do mesmo grupo de
gestores das atividades e instâncias culturais e dos diferentes níveis de atenção
em saúde, também permitiu interrogações e problematizações que, a partir de
um território específico e de um olhar voltado para os programas sociais,
tornaram possível apreender fenômenos que dizem respeito à gestão da vida,
à “trama dos viventes”9 e a um conjunto de dispositivos articulados naquele
território específico. Esses múltiplos cruzamentos permitiam compreender
dimensões que enovelavam fluxos decisórios, financiamentos e formulações,
que apontavam para um quadro estruturante da gestão da vida por meio do
governo dos pobres – de seus corpos e condutas - que se desdobra na
instituição de uma moral dos pobres, em práticas e representações que
pudessem conformar a figura exemplar do bom pobre, aquele que merece se
tornar beneficiário dos programas sociais redistributivos (Lautier, 2009 [2014];
Georges, Rizek, Ceballos, 2014; Destremau, Georges, 2016, no prelo).

“Achados de pesquisa durante as incursões etnográficas realizadas em


Cidade Tiradentes e Guaianases, entre 2011 e 2013, tiveram como subproduto a
percepção, a princípio inusitada, de indícios que apontaram para um conjunto
de novas formas de captação de recursos, por meio de eventos, práticas culturais
e de gestão de serviços privatizados de saúde na Zona Leste da cidade de São
Paulo. O cruzamento entre modos de captação, gestão terceirizada da cultura
e de ações e equipamentos de saúde apontaram para a intersetorialidade
dessas práticas, conformando o que poderia ser identificado como um
planejamento social privado minucioso por parte de Organizações Sociais de
Cultura e de Saúde, que pareciam redesenhar formas de atuação e margens do

9
Menção ao título do livro Dispositivos Urbanos e Trama dos Viventes – ordens e resistências – Patrícia
Birman ET AL. FGV Editora, Rio de Janeiro, 2015.

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UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

Estado nas suas relações com programas sociais e com a população paulistana
dos bairros mais pobres, especialmente a leste da cidade. Alguns desses bairros
conformaram, assim, um território de experimentações dessas práticas cruzadas
para além das caracterizações clássicas das zonas periféricas das grandes
metrópoles (...). Talvez esses achados de pesquisa apontem para
conformações diversas, modelizações diversas de construção e gestão do
social, no âmbito das gestões lulistas e petistas e das gestões do conglomerado
de partidos nucleados pelo PSDB. Talvez se possa afirmar que estamos diante
de duas formas de invenção e gestão do social, embora com pontos de contato,
enovelamentos por vezes pouco passíveis de distinção”10 (Rizek, C. 2016, no
prelo).

A partir das incursões a campo, foi possível perceber a formação de um


terreno fértil para a ação de grupos e de empreendimentos privados que,
crescendo em espiral, ofereciam, geriam e promoviam serviços, ações e
práticas no campo das políticas sociais, de saúde e de assistência, dando origem
à gestão empresarial do cotidiano e reconfigurando as relações entre Estado,
serviços, populações e uma constelação de programas e políticas sociais e
culturais que rearranjam, em outra chave, práticas de consumo, formas de
sociabilidade e formas de expressão.

10
Ver, a esse respeito, a entrevista de Paulo Arantes n. 215/2015 já mencionada. Depois de afirmar que o
PT e o petismo inventaram um social no Brasil, distinto dos processos sociais-democratas, afirma: “falta
mencionar, mas apenas mencionar, a terceira perna desse governo do Brasil que, em conjunto ou
sucessivamente, tucanismo e lulismo consolidaram. A redescoberta da política, como se viu, deixando
para trás como relíquia arcaica a política da luta de classes, em qualquer de suas duas versões antagônicas,
liberal e socialista, recebeu sangue novo também da reviravolta gestionária do mundo corporativo, que,
por seu turno também reinventou o social, mais exatamente a responsabilidade social, e tudo o mais que
daí se seguiu, anunciando que a política dos políticos era, mesmo, o que as pessoas pensavam, um lixo. E
tudo com muita participação da sociedade civil ativa e propositiva. Perversa ou não, deu-se uma
confluência inédita com o aparato estatal e adjacências, operando segundo a mesma lógica gerencial. Não
é que a reinvenção petista da política tenha sido anulada ou sequestrada, simplesmente seus futuros
parceiros se puseram em movimento ao se darem conta, também, de que seu público alvo se movera.
Juntando as três pernas dessa fórmula tripartite de governo do país, teremos, enfim, identificado, na sua
real natureza de tecnologia social de poder, o famigerado neoliberalismo. O PT foi um de seus inventores”.
Revista Caros Amigos, n. 215, pg. 28.

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Cibele S. Rizek

Em visitas a campo ocorridas entre 2010 e 2012 e a partir da


sistematização de informações de pesquisa, a coincidência entre um conjunto
de iniciativas de cunho cultural e a gestão de programas e equipamentos de
saúde começou a se delinear como inquietação. Cruzavam-se escolas de
música, faculdades, oficinas culturais, grandes eventos da agenda paulistana e
hospitais, postos, agentes e programas de saúde e assistência à família, como
práticas das organizações social e cultural, capitaneadas pelo mesmo grupo,
constatação que foi o ponto de partida para novas incursões a campo, bem
como novas questões de investigação11.

Algumas dimensões ganhavam força como elementos estruturantes


do que se constatou em campo. A primeira foi a compreensão da gestão
terceirizada dos serviços de saúde promovida pelas gestões Serra/Alckmin e
Serra/Kassab (PSDB, DEM, PSD – partidos que compõem o quadrante centro/
direita do espectro político brasileiro), no município e no estado de São Paulo.

11
Esse conjunto de achados de pesquisa dizem respeito, especificamente, a bairros da Zona Leste da
Cidade de São Paulo, sobretudo em relação à privatização e gestão dos equipamentos de saúde. Os
achados iniciais de pesquisa, que forneceram as pistas para uma incursão mais aprofundada na questão,
provêm de anos de acompanhamento de atividades e práticas em Cidade Tiradentes – no extremo Leste
do município, que se pode caracterizar como um dos últimos bairros da cidade a se formar. Cidade
Tiradentes ficou conhecida como “o maior conjunto habitacional da América Latina”, tendo sido formada
a partir de remoções provenientes de obras e de intervenções por toda Cidade de São Paulo. Apesar de
inicialmente constituída por pequenos edifícios da COHAB, o bairro cresceu a partir de combinações entre
loteamentos e edifícios constituídos de forma regular, em pedaços de território ocupados irregularmente.
A presença de assentamentos regulares ao lado de outros pouco ou nada regulares e/ou regularizáveis –
favelas, habitações que se transformam em estabelecimentos comerciais, edifícios da COHAB, terrenos e
encostas, também ocupados irregularmente, acabou por configurar uma população de cerca de 215.000.
O bairro cresce mais do que a média dos bairros paulistanos e tem cerca de 72% de sua população
ganhando, em média, 2 salários mínimos mensais (cf
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/arquivos/publicacoes/Boletim_CEInfo_
Censo_02.pdf (consultado em maio de 2012.) Ao lado de Cidade Tiradentes, Guaianases é um bairro
também constituído por populações de baixa renda e conta – somando-se a população de Lajeado com
cerca de 250.000 habitantes. Esses bairros estão a cerca de 35 Km do centro da cidade. Guaianases conta
com o serviço de trens da CPTM e Cidade Tiradentes, apenas com serviço de algumas linhas de ônibus,
reconhecidamente insuficientes para o transporte adequado da população. A partir de achados e
informações dispersas, seguindo pistas e indícios, foi possível perceber que grande parte dos
equipamentos e serviços de saúde das periferias paulistanas estão sendo geridas por contratos com
Organizações Sociais como se constatará adiante. A especificidade das OSs, identificadas no texto, está
assim no cruzamento entre as atividades de saúde e de cultura.

106

Cidades Volume 13 Número 22


UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

Esses mecanismos de transferência de gestão da saúde do Estado para


organizações sociais tiveram início a partir do final da gestão Erundina, em 1992
– e se estendem até hoje (Georges e Santos, 2016, no prelo; Rizek, 2013)12. A
segunda dimensão decorria da presença concomitante de instituições
encabeçadas por religiosas católicas, tanto em hospitais e programas de saúde
(como o Estratégia Saúde da Família) e seus equipamentos de ancoragem, que
atendem a população que habita Cidade Tiradentes e outros distritos da Zona
Leste de São Paulo, assim como em ações, instituições e programas de cunho
cultural que se estendem a todo o município.

Assim, para entender os processos que têm lugar no complexo de


instituições de saúde geridas por essas organizações, é preciso perceber como
se enlaçam serviços e captação de recursos por meio de um mecanismo de
privatização da cultura e de terceirização dos equipamentos e serviços públicos
de saúde de modo entrecruzado13. Esse achado de pesquisa, ausente na
literatura sobre cultura e saúde em São Paulo e no Brasil, parece constituir-se
um caso em que se retroalimentam gestões e arbitragens privadas, tanto das
atividades culturais, quanto de dimensões relativas à assistência à saúde, em
suas injunções com a assistência social às famílias (Rizek, 2016 no prelo; Rizek,
2013; Georges e Santos, 2014)14. Trata-se de uma intrincada forma de
engenharia organizacional que combina, de um lado, investimentos e aplicação
de recursos; de outro, setores de atuação bastante complexos. Esses
procedimentos exigiram uma fina apreensão e manejo dos meandros dos
processos de financiamento, assim como uma perspectiva combinada que

12
A gestão Haddad não pôde alterar significativamente os contratos de gestão privada dos serviços de
saúde da cidade.
13
Em visita ao Hospital de Itaquera em maio de 2011, um dos responsáveis pelo serviço de oncologia
pediátrica afirmou que a estratégia era a captação de recursos pelos grandes eventos culturais para a
manutenção do serviço de ponta no hospital. Essa pista deu origem ao mapeamento deste texto.
14
Ver Isabel Georges e Yumi Garcia dos Santos, A produção da “demanda”: viés institucional e implicações
políticas da terceirização do trabalho social, Comunicação na ANPOCS, Caxambu, 2011; e Georges e Santos,
2014.

107

Cidades Volume 13 Número 22


Cibele S. Rizek

permita caminhar pelos processos de terceirização da saúde no Estado- sede da


privatização dos serviços públicos, sob a égide dos governos do PSDB15.

1) O Programa Minha Casa Minha Vida - Entidades: da produção do déficit à


produção da “demanda”

O Programa Minha Casa Minha Vida foi apresentado como uma das
grandes realizações dos governos Lula e Dilma e marcou as cidades brasileiras
de forma indelével. No âmbito do programa foram contratadas, até o início de
2014, 3,4 milhões de unidades habitacionais, das quais 1,7 milhões foram
entregues. A pesquisa realizada sobre o programa teve como objeto a
modalidade “Entidades”, que atende a chamada faixa 1, composta por famílias
que recebem mensalmente até 1.600 reais. A produção dessa modalidade é
contratada, não por construtoras, mas por organizações populares,
associações, cooperativas, que compõem o universo de “entidades” que se
responsabilizam integralmente pela indicação das famílias e por todo o
processo de produção — da pesquisa do terreno à entrega das chaves,
passando pelo desenvolvimento e aprovações de projeto e execução das obras
civis. Trata-se, de um lado, de uma produção ínfima, em termos quantitativos,
se comparada com toda a produção do programa; de outro lado, a presença e
permanência dessa modalidade tem uma dimensão política paradigmática,
apoiando-se na tradição de políticas habitacionais autogestionárias,
envolvendo os mais representativos movimentos de luta por moradia e reforma
urbana do país16.

15
Essa confluência entre governos municipal e estadual foi um elemento importante para a captação e
investimento que parece se configurar o fato consumado no Estado de São Paulo, mas que se desenha
como tendência em outros estados e municípios do país, a julgar por algumas linhas de financiamento do
Ministério da Cultura, em especial as que vinculam Saúde e Cultura. Ver os editais Cultura e Saúde e Rede
Saúde e Cultura no sítio http://www.cultura.gov.br, consultado em 20 de outubro de 2012.
16
A pesquisa resultou de projeto submetido e aprovado em edital do Ministério das Cidades e do CNPq,
que envolveu, sob a coordenação de Cibele S. Rizek, pesquisadores ligados ao IAU (Instituto de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – campus São Carlos) e à assessoria técnica
Peabiru e que recortou as contratações e produção realizada pela modalidade “Entidades”, no estado de

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Cidades Volume 13 Número 22


UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

O PMCMV-Entidades apresentaria, então, os requisitos que


caracterizaram a produção habitacional autogestionária à brasileira (ou o
discurso sobre essa produção afirmada e reafirmada como virtuosa, desde a
luta pela democratização): os futuros beneficiários, potencialmente
selecionados e conhecidos antes dos processos de obra por entidades e
associações credenciadas no Ministério das Cidades, poderiam participar dos
projetos e da execução, poderiam conhecer os terrenos e os entornos,
opinariam sobre a concepção, acompanhariam o gasto de recursos, entre
outras dimensões e supostas vantagens das formas de participação, que
possibilitariam a melhoria da qualidade das moradias. Esses processos, ricos e
complexos, poderiam representar uma cunha no contexto geral do MCMV –
majoritariamente destinado às construtoras e seus processos financeirizados
de acumulação (SHIMBO, 2012).

O desenvolvimento da pesquisa, entretanto, conduziu a constatações


e conclusões que apontavam em sentido contrário a esses pressupostos
potencialmente virtuosos. A primeira observação relevante foi a de uma corrida
de obstáculos, na qual a dimensão urbana desses conjuntos acabaria por se
tornar secundária. Os empreendimentos do estado de São Paulo localizaram-se
em terrenos comprados no mercado pelas entidades (oriundas dos
movimentos ou reconvertidas), em bairros periféricos, precariamente
consolidados ou nas franjas da mancha urbana metropolitana. Reproduziram,
assim, de modo não raro agravado, a má localização dos empreendimentos que
resultaram de outras modalidades de política habitacional em âmbito federal
(os conjuntos do BNH, estadual ou municipal). Com o valor do terreno
embutido no valor da unidade, acabou por prevalecer a lógica do terreno mais

São Paulo, embora a sistematização de informações secundárias, necessária para o dimensionamento e a


reflexão sobre o programa, tenha se estendido para o âmbito nacional. Alguns textos já publicados
serviram de base para as considerações presentes neste texto. Ver especialmente Rizek, C. S., Carvalho,
C. S. e Camargo, C. M. “Política social, gestão e negócio na produção das cidades: O Programa Minha Casa
Minha Vida Entidades”, Caderno CRH Volume 27, N° 72, 2014.

109

Cidades Volume 13 Número 22


Cibele S. Rizek

barato, que viabilizaria os empreendimentos. O problema foi, então, o processo


da compra: entidades populares precisariam encontrar, no complicado
mercado de terras das metrópoles brasileiras, terrenos de baixo custo que
permitissem a construção de um número de moradias (em geral o máximo
permitido) para viabilizar os empreendimentos.

Assim, o PMCMV Entidades acabou por conduzir até mesmo aos


movimentos por moradia que lutavam por unidades habitacionais no centro da
cidade, como o Fórum de Cortiços e o Movimento de Moradia no Centro (que
mudou o significado do “C” de sua sigla passando a se chamar Movimento de
Moradia da Cidade) a uma busca de empreendimentos nos bairros periféricos
do Lajeado, Guaianases e Cidade Tiradentes. As dimensões dos terrenos
“viáveis” pelo alto potencial construtivo ou pela quantidade de unidades a
serem construídas levaram a uma prática de “consórcios” de movimentos e
associações. Além dessas associações entre movimentos de orientações
diversas entre si que, na prática, se consorciaram, as associações e entidades,
necessariamente habilitadas previamente junto ao Ministério das Cidades,
muitas vezes com trajetórias e filiações políticas distintas, deveriam
obrigatoriamente compor e constituir as “demandas”, indicando famílias de
suas bases, para que se viabilizassem conjuntos que chegaram à marca de mil
moradias, dividindo o empreendimento em diversos contratos para que fossem
respeitados os limites de 300 unidades da normativa que regulamenta o
programa.

Note-se, ainda, que esse processo permitiu (para não dizer induziu) a
reconversão de entidades de outros campos de atuação social (a AMOVA, por
exemplo, anteriormente dedicada à alfabetização de adultos) para o campo da
habitação social. Associações e movimentos seriam transformados em
máquinas de produção e/ou contratação de casas, de acordo com as lideranças
de um dos movimentos de moradia mais importantes. Por meio desses

110

Cidades Volume 13 Número 22


UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

mecanismos, essas associações e movimentos se tornaram operadores de um


programa de governo, o PMCMV- Entidades, legitimando um conjunto de
mecanismos destinados à salvação das grandes construtoras pela versão oficial
do Programa – o Minha Casa, Minha Vida – Contrutoras, programa visivelmente
econômico, anticrise, destinado à dinamização da economia e à promoção de
empregos.

O PMCMV- Entidades constituiu um enorme campo de consenso fora


do qual parecia não haver saída para a conquista organizada da moradia. Esse
campo acabou por envolver até os movimentos responsáveis pelas mais
importantes ocupações de terrenos em São Paulo, como o Movimento dos
Trabalhadores Sem Teto (MTST), movimento que se localiza à esquerda do PT,
mas que acabou por se enredar nas formas de gestão e operação do Programa.

Dessa perspectiva, talvez se possa apontar o caráter emblemático do


PMCMV e de sua modalidade Entidades, bem como aquilo por meio do qual é
possível decifrar claramente a diferença entre a pobreza e o público alvo, entre
déficit e demanda, entre carência e sua fabricação como demanda a partir dos
programas e políticas.

Desse modo, esse mesmo caráter emblemático do PMCMV Entidades


se explica e se desdobra no cruzamento de dimensões e aspectos relevantes
para compreensão dos vínculos entre a cidade na sua face periférica e nas suas
reconfigurações; os programas de produção pública de habitação na sua face
voltada para a população de mais baixa renda; um conjunto de mutações,
modulações e reconfigurações dos movimentos de moradia, tanto nas relações
lideranças/ bases, como nas relações com os atores públicos (ministério das
cidades, fundos públicos), atores privados (donos de terras, construtoras) em
uma constelação de operadores .

Nessa constelação é possível encontrar pistas e indícios que permitam

111

Cidades Volume 13 Número 22


Cibele S. Rizek

compreender deslizamentos e reconfigurações das representações e práticas


desses movimentos. Em menos de 15 anos, vão das ocupações de edifícios no
centro da cidade de São Paulo, exigindo direito à cidade e à moradia nas áreas
centrais, à coordenação e gestão de alguns empreendimentos do Programa,
nas franjas ou fronteiras da cidade, nas periferias urbanas de São Paulo (e/ou
região metropolitana).

Assim, ao buscar identificar algumas das linhas de força que instituem


e destituem dispositivos e sujeitos sociopolíticos, nesse quadro de
cruzamentos, determinações e indeterminações, modulações e
transformações, talvez seja possível tangenciar e identificar as relações entre
a dinâmica habitacional e urbana que tem lugar a partir das diretrizes do
programa e os processos que parecem estar desenhados a partir das
conformações recentes do que André Singer denominou lulismo, fenômeno
passível de ser identificado, bem como circunscrito no tempo e no espaço dos
processos de reconfiguração do lugar do Brasil no contexto mundial, cujo
esgotamento recente pode ser identificado como processo social e político,
que se teria iniciado nos movimentos de junho de 2013.

Pode-se ainda apontar que a situação de carência e desigualdade


habitacional e urbana acabou por se se conformar como uma das evidências das
modulações mais recentes da questão social brasileira. Disso decorre a ideia de
que o cruzamento entre habitação e vida urbana acabou por se tornar um dos
objetos dos embates sobre a pobreza, suas configurações, para além da
legitimação das formas de nomeação, contagem, classificação, cálculo, gestão
e controle dos “pobres”. Assim também, nesse mesmo cruzamento, é possível
encontrar uma ancoragem da reflexão sobre a natureza das proteções sociais.
Entre direitos e mitigação das carências, essas proteções configuraram suas
portas de saída? Configuram ainda, sem dúvida, modos de governo e
procedimentos contábeis que ancoram as formas de triagem. Dessa

112

Cidades Volume 13 Número 22


UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

perspectiva são dispositivos que criam sujeitos e objetos (os públicos-alvo)


segmentados, vinculados a um universo de mínimos sociais fortemente
assinalados por instituições e agências multilaterais.

Assim o debate a respeito dos programas de habitação envolveu as


dimensões relativas à sua configuração como parte da dinamização econômica
para o enfrentamento brasileiro da crise mundial de 2008, em grande medida
em função do caráter produtivo do setor de construção civil. Como decorrência
dessas dimensões, os programas conformam-se como desdobramentos da
produção de uma habitação social de mercado, mediada por associações e
movimentos populares. Seriam então expressões do combate à pobreza como
negócio e como mercado que acabaram por enredar movimentos e associações
populares, num mix indeterminado de formas e modos de associação, nos
modos de operacionalização de um programa público na sua modalidade
entidades.

DEFICIT E DEMANDA

A questão central dos encaminhamentos mais recentes de pesquisa diz


respeito à diferença entre deficit e produção da demanda do programa. A
hipótese da construção/ fabricação da demanda surge da discussão do PMCMV
como parte de uma constelação de políticas sociais, que teriam caracterizado o
chamado LULISMO (Cf. Singer, 2012). A esse respeito é preciso problematizar o
déficit e sua produção como o resultado de um conjunto de instrumentos
quantitativos, continuamente mobilizados por agências e instituições
(Fundação João Pinheiro e IPEA). Algumas informações precisam ser
mencionadas para esclarecer as diferenças entre déficit e demanda.

De acordo com a Fundação João Pinheiro e o IPEA, o deficit


habitacional brasileiro caiu de 6.102 milhões de unidades, em 2007, para 5.792
milhões de unidades em 2012. Nesse período, apenas em 2009 o deficit teria

113

Cidades Volume 13 Número 22


Cibele S. Rizek

apresentado um pequeno crescimento em termos absolutos (6.143 milhões de


unidades), sempre em comparação com os números de 2007. Teria havido,
então, um declínio consistente do déficit: de 10.8% das unidades habitacionais,
em 2007, para 9.1%, em 2012.

Note-se, especialmente, que se altera a composição do deficit no


período: houve uma redução da co-habitação (de 41 % para 32 %) e um aumento
do ônus excessivo com o aluguel (de 32% para 46%). O número de unidades
precárias teria ainda declinado

de 21%, em 2007, para 13%, em 2012, ainda que a alta densidade das
unidades alugadas tenha se mantido em 6%. Cinco regiões metropolitanas em
diferentes localizações (Fortaleza, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo,
Curitiba) mostraram um aumento do deficit habitacional, tanto em termos
absolutos, quanto em termos relativos resultantes do ônus excessivo com o
aluguel das moradias.

Observe-se que o componente de maior peso no déficit é o ônus


excessivo com aluguel (2.660 milhões de unidades ou 45.9% do deficit, seguido
por: co-habitação 1,865 milhão de unidades ou 32.2% das unidades; e unidades
com alta densidade de habitantes - 382.000 ou 6.6%). Também é importante
assinalar que o chamado deficit e sua produção ignoram a quantidade de
imóveis vazios em áreas metropolitanas (onde o deficit cresceu). Esse cálculo
permitiu uma importante transferência de fundos públicos para parcelas do
setor de construção civil, incorporadoras, agentes que produzem a cidade e,
sobretudo, a habitação de interesse social que se conformaria como
mecanismo de distribuição de renda, ao lado de outros programas e políticas,
estimulando e protegendo interesses financeiros vinculados às empresas
construtoras e ao mercado imobiliário. Como resultado, o PMCMV, em suas
duas modalidades (empresas construtoras e entidades), não deteve as grandes
ocupações de terra e de imóveis durante o período de sua vigência (Ver Copa
114

Cidades Volume 13 Número 22


UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

do Povo e Nova Palestina, alguns dos quais já transformados em


empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida)

Também é preciso notar que o primeiro plano para habitação, durante


o primeiro Governo Lula (2003-2006), já apontava para a expansão do mercado
dos setores populares, por meio da otimização dos investimentos públicos e
privados no setor. Algo do pacto que caracteriza o lulismo como reformismo
fraco já estava presente, ainda que em menor escala, apesar da caracterização
de A. Singer, que aponta a emergência dessas características, principalmente a
partir do segundo governo Lula (2006-2010).

O PMCMV pressupôs a criação de mecanismos para a proteção dos


financiamentos habitacionais, bem como do capital investido, incluindo aqueles
disponibilizados pelo mercado de capitais. Esses mecanismos postos em
operação no PMCMV redundaram em uma fluidez das fronteiras entre o que se
pode identificar como habitação social e o que se reconhece como “habitação
de mercado” (Shimbo, 2010), propiciando, em escala nacional, a produção de
uma “habitação social de mercado”, em que a produção/provisão de habitação
social, bem como o mercado de habitação, teriam se beneficiado duplamente
pela combinação de recursos dos dois subsistemas de financiamento – o
público e o privado.

Esses elementos permitem a confirmação da hipótese que afirma o


processo de financeirização/dominância financeira da política de habitação
traçada por meio do PMCMV, permitindo explicar por que a produção
habitacional abandonou a perspectiva dos direitos sociais e da habitação como
direito, aderindo a uma lógica “de mercado”. (Royer, 2009 and Shimbo, 2010).

Ainda é necessário apontar que a viabilização e implementação do


Programa Minha Casa, Minha Vida – inspirado no modelo chileno e
posteriormente divulgado pelas agências multilaterais – contou, para seu

115

Cidades Volume 13 Número 22


Cibele S. Rizek

processo de viabilização, com seu desdobramento na forma entidades. Com


uma pequena parcela dos fundos e subsídios (os cálculos variam entre 1% e 3 %
do total de investimentos públicos) o Programa conseguiu o apoio ou, pelo
menos, a aquiescência dos movimentos de moradia “clássicos”, como os que
se agrupam em torno da UMM, assim como os novos movimentos, como o
MTST. Esses dois movimentos tiveram, historicamente, relações de maior
proximidade (UMM) ou maior distância em relação aos governos do ciclo
petista. Apesar de suas distinções e divergências, ambos aderiram e apoiaram
o PMCMV – especialmente na forma entidades. Esse apoio se deve à alocação
de fundos públicos para subsidiar a produção habitacional pelas entidades
populares, processo que deveria ser precedido de sua certificação pelo
Ministério das Cidades.

A hipótese da diferenciação entre deficit e demanda, desdobrada na


que afirma a produção da demanda pelo próprio programa e seu modo de
operação, é ousada e não se aplica somente à provisão habitacional, já que se
originou de um conjunto de estudos sobre os programas e políticas sociais – em
especial Programa de Saúde da Família e Bolsa Família. Desse ponto de vista,
outros estudos enfatizam

A importância dos critérios de definição da ‘demanda’, e de sua medida, dentro


da própria lógica de justificação da instituição e de sua existência, que passa
pelo serviço realizado e ...pela aplicação das regras que levam à sua
concretização. Nessa perspectiva, a própria necessidade da população é
secundária (...)Todavia, ficou evidente que a definição do acesso ao programa,
assim como a definição da categoria dos beneficiários – ou a sua ‘rotulação’ (...)
- o estabelecimento de regras a seu respeito e a sua justificação implica numa
tarefa central da atividade dos trabalhadores sociais de forma geral. Constitui
o coração dessa atividade (...) e forma a base de suas lógicas de legitimação
(Georges e Santos, 2011).

No âmbito do PMCMV – Entidades, as associações provenientes dos

116

Cidades Volume 13 Número 22


UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

movimentos ou aquelas que se convertem para a produção de unidades


habitacionais e conjuntos (associativismo de ocasião) compõem os grupos de
beneficiários, que deverão acompanhar o processo de produção das moradias
submetidas à dinâmica do preço da terra/localização/ viabilização dos conjuntos
pelo número de unidades. A partir das incursões etnográficas foi possível
identificar os procedimentos utilizados pelas associações para a composição
dos grupos de beneficiários. Esses procedimentos obedeciam a uma lógica mais
privada que pública ou politizante. Entretanto, a partir dessa dinâmica é a
própria continuidade e legitimidade das associações constituídas, ou não pelos
movimentos, assim como a continuidade, ou não, das assessorias técnicas e sua
legitimidade, que passa a ser posta em questão. Nesse processo bastante
complexo, a exemplo de outros programas e políticas, as associações e
organizações se transformaram em ferramentas de operação do PMCMV,
perdendo seu caráter de movimentos sociais que nasceram pela/na
reivindicação de direitos, em especial, vinculadas ao direito à moradia e à
cidade.

Desse modo, é possível afirmar que os achados de pesquisa apontaram


para a disjunção clara entre deficit e demanda, por meio de uma
problematização das duas categorias, Esses elementos permitem identificar,
assim, conflitos e contradições presentes no Programa (ocupações de terrenos
urbanos concomitantemente à produção de conjuntos, por exemplo, como
ocorreu na Copa do Povo e Nova Palestina, e outras) que perpassam as relações
entre movimentos de moradia, seu caráter crescentemente empresarial, que
acaba envolvendo um modelo de negociação; o subsídio público e a natureza
do lulismo definida por Singer, entre outros, como reformismo fraco e pacto
entre frações de classe e Estado.

O caráter de mercado da política de moradia permite, ainda, vislumbrar


o aquecimento do mercado por baixo, bem como a transformação da pobreza

117

Cidades Volume 13 Número 22


Cibele S. Rizek

em nicho de negócios, na contramão dos direitos à moradia e à cidade como


historicamente reivindicados.

1) Instâncias de ordenamento concorrentes e regimes de moralidade


liminares: tudo junto e tudo misturado

A normalização e capilaridade das experiências próximas ao “mundo


do crime” apareceram nas falas recolhidas e situações de pesquisa
sistematizadas em vários momentos, e a partir de objetos diversos, como a fala
que se segue, de uma futura beneficiária do PMCMV - Entidades:

“Meu marido foi morto – vou logo dizendo. Foi morto porque fazia
coisa errada. Eu tinha dois filhos e uns vinte e poucos anos quando ele foi
morto”. Esmeralda, participante de um grupo do PMCMV entidades – abril de
2014, quando apontou que sua alternativa de moradia e sustento foi mudar para
o quintal da casa dos sogros no extremo sul da cidade de São Paulo. Também
seria possível relatar a “consciência dos momentos de vacilo” ou mesmo cenas
do trabalho cotidiano dos agentes culturais nas atividades que se pautam pela
oposição: práticas culturais x mundo do crime17.

Assim, também, em dezembro de 2012 – caminhando em atividade de


acompanhamento de visita domiciliar com uma agente comunitária de saúde –
sexta-feira, pouco depois das 12 horas, essa agente me perguntou: “a senhora
não se importa de ser filmada, não é? A senhora acabou de ser filmada”. E, mais
uma vez, pouco tempo depois: “Também não se importa de ser fotografada,
não é? Também acabou de ser fotografada. É que hoje é sexta-feira à tarde. É

17
Ver Rizek, C. S. « Faces do lulismo: políticas de cultura e cotidiano na periferia de São Paulo », in André
Singer e Isabel Loureiro (coord.), Desigual e Combinado, Capitalismo e modernização periférica no Brasil.
Boitempo Editorial, no prelo.

118

Cidades Volume 13 Número 22


UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

dia do vale-coxinha ... quando a polícia chega pra cobrar a parte dela. Aí fica
assim meio complicado”.

Essa mesma agente, contato de várias equipes de pesquisa graças à


disponibilidade para receber pesquisadores e mostrar como conhece bem o
bairro e as famílias atendidas, alertou sobre uma grande quantidade de indícios
e de sinais visuais, sonoros, gestuais, completamente despercebidos para a
equipe de pesquisadores. Talvez, por um contato cotidiano e muito
provavelmente familiar com o tráfico, Imaculada pôde me mostrar o que ela via
e o que nós não víamos, em um procedimento corriqueiro de acompanhamento
e visita às famílias. Também nesse âmbito, uma dimensão visivelmente
territorial se anunciava – sobretudo um modo de ler esses sinais, índices e
pistas, que nasce de práticas e de modos de agência, das tramas e das relações,
pouco visíveis para quem, ainda que aceito, não pertenceria àquele território,
não eram parte daquela construção de práticas, redes, afetos e fluxos. Seria
ainda possível indicar outros exemplos que parecem apontar o que Feltran
(2011) mostrou, a partir das suas evidências empíricas.

Como já se observou (Georges & Santos, 2016, no prelo, capítulo 10), a


análise da trajetória dessa agente comunitária demonstra a convivência e a
utilização pendular de um conjunto de quadros de referência de conduta,
quadros paralelos que possibilitaram, diante de um conjunto de dificuldades e
urgências, que ela reassumisse o domínio sobre o seu destino e encontrasse
saídas “de emergência”18.

As vicissitudes e urgências, a viração e o restabelecimento das


condições de sobrevivência, presentes nesse percurso de mais de 50 anos,
permitem compreender como diferentes lógicas e códigos morais,
aparentemente antagônicos, de fato, coexistiriam. Nos meandros dessa

18
Referência ao livro de mesmo nome, organizado pelas autoras e por Cabanes, R. e Telles, V. S. (2011).

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Cidades Volume 13 Número 22


Cibele S. Rizek

coexistência, muitas vezes aparentemente labiríntica, é possível perceber como


situações sombrias seriam superadas, como as emergências quase contínuas
seriam contornadas, como se pode constatar na descrição a seguir:

A trajetória de Imaculada ilustra, ao lado de outras falas, em outras


situações de pesquisa sobre programas de moradia ou agentes de cultura, essa
capilaridade e normalização, esse vai e vem de práticas que compõem os
territórios e que conformam a vida das populações-alvo e dos agentes que
operacionalizam, na ponta, as políticas sociais. Talvez seja mesmo impossível
compreender os desdobramentos e dimensões dessas políticas sem
compreender essas dimensões de dobra, as oscilações e utilizações pendulares
dos códigos e instâncias morais e de governo, no quadro de um conjunto nada
evidente de relações de força, de modos e práticas de resistência e, ao mesmo
tempo, de instrumentalização da cesta ou do quadro de referências, serviços,
bens, virações, relações que vem compondo as práticas cotidianas da
reconfiguração da pobreza no Brasil.

CULTURA, FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA E A VIRAÇÃO DE CADA DIA – A


TRAJETÓRIA EMBLEMÁTICA DE UM AGENTE CULTURAL

Chamava muito a atenção de toda equipe de pesquisadores do


programa Minha Casa, Minha Vida/modalidade Entidades19 a narrativa clara, a
linguagem articulada, a disponibilidade de fala de Lísias. A maneira como a
trajetória escolar e os fatos da vida política do país se entrelaçavam ao longo da
narrativa não eram usuais entre futuros beneficiários do PMCMV-Entidades. Em
Artur Alvim (periferia leste), em um sábado pela manhã, numa reunião de
candidatos ao Programa, encontramos uma figura que fugia fortemente do
padrão usual. Embora tivesse um rendimento muito próximo do limite do

19 Pesquisa etnográfica, já mencionada, sobre o Programa MCMV- Entidades, concluída em 2015.

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Cidades Volume 13 Número 22


UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

programa (R$ 1600,00) como técnico e agente de cultura, em uma ONG, em


Cidade Tiradentes – rendimentos perdidos rapidamente já que o contrato da
ONG com o programa de Centro da Juventude acabou - Lísias trazia no corpo a
marca de uma outra formação – via PROUNI – em uma faculdade particular da
Zona Leste. É formado em Letras em um estabelecimento de ensino, já vendido
para um outro grupo empresarial. Havia ali indícios de politização do discurso,
um grau de domínio reflexivo sobre a própria trajetória, consciência dos
momentos “de vacilo”, clareza de um projeto que – com idas e vindas, altos e
baixos – parecia viável 20

Morando com os pais em um quartinho nos fundos, sua trajetória


estaria marcada pela inserção em Cidade Tiradentes e adjacências. Seu
percurso profissional e de estudos tinham imposto, como condição para
concluir o ensino de segundo grau, outra mudança de endereço: Vila Dalila,
onde fosse possível a concomitância entre a escola e o trabalho informal e
precário (que Lísias qualificou como trabalho escravo) em uma revendedora de
carros usados.

Sua experiência de trabalho remontava à condição de trabalho infantil


e adolescente, com o pai, consertando panelas nas feiras livres e vendendo
chocolate nas estações de metrô. Tentou, também, por indicação de um amigo,
trabalhar em loja de tecidos do Bom Retiro. Não obteve a vaga. Estudando e

20
Ver a esse respeito Malogros educacionais de Maria Sylvia Carvalho Franco no Jornal O Estado de São
Paulo, 5 de abril de 2015. No artigo a autora retoma a discussão que vincula educação e
desenvolvimentismo. Comparando o que chama de “engrenagem cepalina” e o último sopro do
desenvolvimentismo do primeiro governo Dilma. O artigo aponta a fragilidade da relação entre
desenvolvimento e educação posta em marcha pelos governos do PT enfatizando a autonomia dos
estabelecimentos de ensino superior transformados em negócios lucrativos, por meio de processo de
concentração da propriedade que se expressou em fusões e aquisições. Assim, 1/3 dos contratos vão para
cursos de baixo custo (direito, enfermagem, administração, pedagogia, ciências humanas). Esses
processos podem ser vistos no horizonte das periferias urbanas da cidade de São Paulo em suas
modulações e alterações recentes, assim como na trajetória de agentes sociais e culturais, ONGS e OSs
que implementam programas e políticas e que estariam criando esse novo “social” por meio dos
mecanismos de “inclusão”.

121

Cidades Volume 13 Número 22


Cibele S. Rizek

trabalhando onde era possível – na clássica viração brasileira – viu nascer os


CEUs, em especial o CEU Inácio Monteiro, onde começou a fazer teatro,
durante a gestão Marta Suplicy.

Essa nova descoberta das práticas teatrais foi de fato um ponto de


inflexão. “Fizemos As Troianas e, nesse processo, graças ao diretor de teatro
do CEU, descobri (...) que podia subir ao palco e falei – É isso que eu quero fazer
da minha vida”. Começaria então uma trajetória que o encaminharia para o
trabalho como agente de cultura, bem como para as agruras e alegrias de uma
vida que sofreria as oscilações dos graus de precariedade e pobreza, ao sabor
de projetos e financiamentos.

A primeira experiência de trabalho, a partir daí, foi a de agente cultural


em uma escola no período de férias, implementando brincadeiras e
experiências teatrais. Por meio de suas atividades de teatro e, posteriormente,
da participação no Conselho Gestor do CEU, Lísias reencontrou uma professora,
cuja ajuda teria sido fundamental para que escrevesse seu primeiro projeto e
pudesse conseguir o posto de recreação por três meses, com um salário muito
modesto – talvez o mínimo do período. Também por essa rede de contatos
acabou por conhecer a ONG da qual participaria com um trabalho teatral com
jovens. A ONG – Ação Comunitária teria mantido um convênio com a prefeitura
de São Paulo por cinco anos, não renovado na atual gestão. Desse modo, como
agente de cultura, Lísias chegou a receber – depois de duas promoções, cerca
de R$ 1700,00 por um trabalho diário com teatro para jovens que, como
afirmou, “ não caíram na droga e na rua; só alguns ... um deles (...) consome
crack... os demais, não. São como filhos que a gente encaminha ...”

Depois da não renovação do “projeto” com a ONG em que trabalhava,


Lísias estava desempregado. Sua renda não ultrapassaria os R$ 1600,00 – teto
do programa de moradia PMCMV-Entidades naquele momento. Durante a
entrevista, vendo o álbum da formatura que mostrou com orgulho, pedi que
122

Cidades Volume 13 Número 22


UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

falasse sobre os vários pontos de cultura e equipamentos culturais de Cidade


Tiradentes. Lísias os conhecia bem: o Centro Cultural, os CEUs, as ONGs que
operacionalizam os programas de Assistência, o ponto de cultura do bairro, a
Biblioteca Solano Trindade, vinculada ao coletivo Força Ativa, grupo importante
no local, o Pombas Urbanas. Tinha o mapa dessas iniciativas na cabeça, assim
como, por meio de uma trajetória que combinava locais de moradia, escape do
mundo do crime e trabalho com adolescentes, pois também conhecia os
percalços da proximidade com o tráfico.

Desempregado, não parecia querer “voltar atrás”. Queria trabalhar


com teatro e talvez no cruzamento entre teatro e educação, fazendo jus à
qualificação adquirida, em especial na Trupe de Choque, coletivo premiado,
contemplado pelo fomento ao Teatro de São Paulo.21 Ao mesmo tempo, é
importante caracterizar a ONG, cujo contrato de gestão não teria sido renovado
pela gestão Haddad. Trata-se da Ação Comunitária, fundada em 1967, que se
autodefine como resultado da ação de “grandes empresários brasileiros”.

Em seus 47 anos de trajetória, a Ação Comunitária vem construindo um sólido


conhecimento na área socioeducativa e de desenvolvimento comunitário, que
remete ao seu surgimento (...) quando grandes empresários (...) decidiram
investir em projetos sociais arrojados que se diferenciassem do padrão
tradicional assistencialista. Tal espírito de pioneirismo perpetuou-se na cultura
e nos valores da Ação Comunitária, que (...) busca atuar de forma
inovadora(...). Como resultado do Planejamento Estratégico 2013 - 2018, a
oferta de serviços sociais para inclusão social foi reorganizada para criar maior
especialização e sinergia entre todas as áreas da organização. Estabeleceu-se
como prioridades, além do atendimento (...) a aproximação junto ao governo

21
Para a II Trupe de Choque, promover residências artísticas em bairros periféricos ou em locais como
hospitais psiquiátricos “significa abordar a exclusão e o isolamento provocados pela sociedade do
consumo, buscando (...) questionar (a) ... segregação e as distâncias físicas e simbólicas que ela é capaz
de impor”. Seus espetáculos contam com um processo de investigação que envolve Núcleos de Pesquisa
artística na sua sede, em equipamentos públicos, entre os quais os CEUs. Além deste objetivo, realizam-
se ensaios abertos e outras ações culturais que envolvem os projetos do grupo. Ver
http://www.teatropedia.com/wiki/II_Trupe_de_Choque consultado em 28 de agosto de 2014

123

Cidades Volume 13 Número 22


Cibele S. Rizek

para influenciar políticas públicas, produção e a disseminação de


conhecimento. 22

Esse mix de práticas – combinando na mesma trajetória uma ONG de


inscrição empresarial nas velhas e novas concepções vinculadas à filantropia
brasileira, grupos de teatro que lutaram e conquistaram a Lei do Fomento
Público em movimentos pela autonomia da produção teatral (Arte contra a
Barbárie e Redemoinho) - parece apontar para um conglomerado nada
homogêneo de concepções, sentidos, modos de operação que constituem
novos agentes e trabalhadores da cultura e “do social” nos territórios mais
pobres da cidade e em seus equipamentos. Nesses territórios conformam-se os
públicos-alvo de programas sociais e de cultura entrelaçados em novas
combinações.

A esse respeito cabe lembrar que, interrompida pela gestão em curso


na Prefeitura de São Paulo, a continuidade do governo do PSDB consagrou um
“modelo” de gestão privada de equipamentos que parece tangenciar as
práticas de ONGs de natureza empresarial, como a Ação Comunitária. Por esse
motivo, visitar esse processo pelo qual se cruzam formas de privatização pode
ser útil para desvendar uma parcela das periferias e das classes populares como
nichos de negócios que se retroalimentam. 23

O TRABALHO PRECÁRIO E FLEXÍVEL COMO PROJETO DE VIDA

Na trajetória de Lísias, fomento público ao teatro, políticas e


equipamentos culturais e educacionais como os CEUs e o PROUNI, ações
culturais voltadas para a juventude, transformada em público-alvo no combate
à pobreza por ONGs e OSs, conformam uma inserção precária e bastante

22
A ONG tem como parceiros construtoras, bancos, grandes redes de varejo e de comunicação. Destacam-
se como programas: formação continuada de educadores, Primeiras Letras, Ritmo som e movimento,
Preparação para o Trabalho, Conexão Jovem, Brincadeiras que educam. Cf In
http://www.acomunitaria.org.br/ consultado em 28 de agosto de 2014
23
Ver entrevista de Paulo Arantes já mencionada.

124

Cidades Volume 13 Número 22


UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

“flexível” em um mercado de trabalho pouco concebido como tal, que combina


“trabalho social” e “trabalho cultural” ou, antes, o trabalho como agente
cultural enquanto “trabalho social”. Essa imbricação está presente em parte
significativa dos projetos culturais voltados para as populações de baixa renda,
como se pode observar nas informações e dados a respeito da gestão do
Projeto Guri.

Uma das dimensões do desdobramento de programas e projetos que


entrelaçaram a produção cultural com o trabalho social acabou se ancorando
em uma das saídas para o enfrentamento de um novo modo de conformação
das práticas e da produção de artes e cultura: trata-se da constituição de
coletivos de artistas - de teatro, dança, artes plásticas etc. Esses grupos, assim
como o número de profissionais envolvidos com o trabalho artístico estão em
crescimento significativo no Brasil, desde a década de noventa. Nas periferias
adquiriram uma face própria e constituíram um mercado de trabalho que traz a
marca do precariado brasileiro.24 Entre os que vivem do trabalho artístico ou
das práticas dos agentes culturais, há uma grande predominância do trabalho
por conta própria. Porém, crescentemente, em função de políticas e programas
sociais, alguns coletivos e grupos se transformaram em cooperativas, (pondo
em operação um conjunto de novos e velhos dispositivos do trabalho) ou ONGs,
ou acabam por gerir projetos financiados por Organizações Sociais. Pode-se
apontar que a maioria desses agentes trabalha de maneira informal ou precária,
de forma bastante “naturalizada”. Lísias, por exemplo, quer viver de teatro,
como ator, agente cultural ou técnico, mesmo que isso implique nunca ter
experimentado a situação de um vínculo formal de trabalho “com carteira”. A
menção à formalização das relações de trabalho, distante das expectativas e da

24
Lilinana Segnini apontou um crescimento de profissionais dos espetáculos e das artes da ordem de 67%
entre 1992 e 2006. É possível perceber uma certa estratificação dessa precariedade entre profissionais das
artes e da cultura que fazem parte das camadas de alta e média renda dos agentes culturais e artistas que
se encontram nos estratos de mais baixa renda, habitando as periferias das cidades brasileiras.

125

Cidades Volume 13 Número 22


Cibele S. Rizek

experiência de parte considerável dos profissionais em arte ou de agentes de


programas de cultura da atualidade, parece apontar que estão em cena novas
formas e novos modos de regulação e objetivação que normalizaram a
precarização das condições de trabalho e vida, a condição temporária de
provimentos oriundos de cachês, leis de incentivo, formas de trabalho
cooperativado e, finalmente, como acontece com parte considerável dos
trabalhadores brasileiros, a “viração”, não mais como sinal de atraso, mas como
condição perene. A flexibilização do trabalho se agrega às formas de uso da
força de trabalho nos últimos 30 anos. Se é verdade que nem todo trabalho
flexível é precário, ainda que no Brasil essa aproximação seja bastante plausível,
também é interessante notar que a literatura sobre o trabalho e o mercado de
trabalho aponta que as formas de contratação e de precariedade do trabalho
em artes e cultura parece se constituir dispositivo e experimentação, revestida
de um conjunto de justificativas enobrecedoras e supostamente
emancipadoras: o trabalho voluntário que deixa de ter conteúdo meramente
filantrópico para entrar na agenda das práticas empresariais; as dimensões
corporativas de uso de um trabalho que se distancia das formas clássicas e
aparece como não trabalho; o nascimento de dispositivos poderosos de
intermediação entre corporações empresariais e populações organizadas como
“comunidades” carentes a serem ordenadas e integradas à “vida em
sociedade”, isto é, passíveis de se tornarem objetos de governo ou
governamentalidade;25 novas formas de gestão, que se transformam e se
desdobram no gerenciamento da precariedade dos trabalhadores em arte e
cultura, na administração da vida das populações transformadas em públicos-
alvo de práticas, em um leque de formas organizacionais – institutos, ONGs,
Organizações Sociais e seus mecanismos de financiamento. É possível, assim,
entrever que os trabalhadores que constituem o campo das práticas de cultura,

25
Ver M. Foucault Em Defesa da Sociedade, Martins Fontes, São Paulo, 2002

126

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UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

em especial os mais empobrecidos, que combinam cultura e “trabalho social”,


se conformaram como uma espécie de núcleo avançado de flexibilização do
trabalho, o que se coadunou com financiamentos por editais, fluxos de
financiamento público e privado, condição informal e precária de vida e
trabalho elevados à situação de normalidade e normalização.26

A gestão da produção e da vida “por projetos”, que não se restringe


aos profissionais das artes, talvez seja o exemplo mais claro dos
desdobramentos dos processos de flexibilização, que resultam em um trabalho
de múltiplas tarefas pela incorporação crescente dos saberes de gestão, pelo
domínio da técnica de produção de projetos de financiamento, ou pela
contratação de profissionais especializados na elaboração de projetos para
pedido de financiamento e seus desdobramentos. A vida e o trabalho pautados
por projetos, financiamentos e suas oscilações acompanha os processos de
terceirização e gestão das grandes empresas e resulta na produção de vínculos
de trabalho instáveis, temporários, subcontratados ... e, talvez, o campo do
trabalho nas artes e na cultura e sua complexidade, suas virtualidades e
possibilidades, suas potencialidades emancipadoras e humanizadoras tenham
funcionado como dispositivo e como uma espécie de antecâmara para esse
conjunto de inovações organizacionais que captura a elaboração e efetivação
do trabalho que envolve a construção de subjetividades de modo significativo.
Talvez fosse possível perceber essa progressão crescentemente naturalizada
como instância do que Dardot e Laval denominaram fabricação de sujeitos
neoliberais. Processo que ganharia espaço não apenas entre gerentes e
gestores, mas entre as camadas empobrecidas do precarizado, cada vez mais

26
Ver Lilinana Segnini que mencionou a obra Retrato do Artista enquanto trabalhador de Pierre Michel
Menger, Roma Editora, Lisboa, 2005. Esse autor constrói a ideia de que as artes e o trabalho artístico se
constituem como laboratório de flexibilização. Utilizo aqui a ideia de dispositivo mais do que a ideia de
laboratório. A respeito dessa noção ver G. Agamben, O que é o contemporâneo. Argos, Porto Alegre,
2009. Cabe ainda lembrar o vínculo entre produção cultural e artística e negócio. Veja-se ainda a ideia de
focalização das políticas culturais, expressão utilizada por C. R. Lara Guimarães, in Tendências das Políticas
Culturais em Tempos de Capitalismo Tardio. Universidade e Revista ano XXI n. 50. Brasília. Andes 2012.

127

Cidades Volume 13 Número 22


Cibele S. Rizek

marcadas pelo ideário do empreendedorismo, transformadas em


empreendedores de si e empreendedores sociais e culturais, não só pela
propagação de um ideário do “empreendedorismo” mas através de um
vocabulário e de uma gramática que percorrem o processo, que vai da
formulação à operação de programas apresentados como virtuosos,
integradores, inclusivos, vinculados a um horizonte de conquista de direitos.
Mais do que isso, talvez possamos perceber o modo como o financiamento
privado e público da produção cultural, na exigência de suas contrapartidas –
tenham transformado a vida e o trabalho pautado por projetos em modo de
gerir não apenas a vida e o trabalho dos produtores e criadores, mas também
de seus públicos-alvo, acondicionados em programas de inclusão pela cultura.

Há também uma enorme semelhança entre esse processo de produção


de projetos e obtenção de patrocínios públicos e privados e uma transformação
de coletivos de arte e de artistas em ONGs. Nessa confluência, pode estar
operando mais um ponto de articulação entre produção cultural e trabalho
social que, por meio de práticas ainda ancoradas nas dimensões emancipadoras
das relações arte/sociedade, acaba por produzir um social como dimensão
híbrida27, como criação de objetos de gestão, acomodação e pacificação da
precariedade e da desigualdade. A constituição desse novo modus operandi,
dessa nova forma das relações entre Estado, capital, mercado e produção
cultural também gerou um conjunto de lutas e conflitos e algumas conquistas
em âmbito municipal e nacional. Assim é preciso mencionar que o destino
dessas vitórias é significativo, já que geraram opacidades e ambiguidades
como: discussão permanente sobre critérios de arbitragem e tomada de
decisões e as oscilações pendulares entre obtenção e não obtenção de
financiamentos, comprometendo a permanência de grupos e coletivos, nos
territórios mais pobres da cidade.

27
Ver Entrevista Paulo Arantes já mencionada.

128

Cidades Volume 13 Número 22


UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

No âmbito do que se observou, a trajetória de Lísias apontou para um


aprendizado que conforma a gestão da própria vida, a partir desses
expedientes e dispositivos, uma gestão de si e da própria sobrevivência, na/
pela ausência de vínculos de assalariamento e direitos, consolidando e
redefinindo o chamado “trabalho autônomo”, que tangencia crescentemente
as formas de empreendedorismo e empresariamento da cultura e do trabalho
social. Ainda nesse mesmo âmbito, objetividades (trabalho precário) e
subjetividades (a ideia de uma normalização desses processos) são
atravessadas por um conjunto de agenciamentos novos. São dispositivos que
se enredam em um horizonte de empresas e de um conjunto de “comunidades”
reencontradas e simuladas em públicos-alvo.28 Essas dimensões parecem
redesenhar os campos e mecanismos de produção e divulgação da cultura e de
seus financiamentos. Resta, então, entender que se trata da constituição de um
campo de forças, de conflitos. Então, cabe perguntar pelos elementos que se
constituem os eixos estruturantes dessa conformação, tanto em seus novos
componentes, como em suas redefinições e deslizamentos. 29

Alguns elementos marcantes ganharam também destaque nas


incursões etnográficas e nas trajetórias recompostas como material de
pesquisa. Entre eles, a presença do “crime” como traço do cotidiano30, como

28
Em texto de qualificação, Guimarães afirma que a obtenção do financiamento por meio de projetos e
editais é frequentemente anterior ao encontro da “comunidade” com o qual será desenvolvido. Há
exceções e alguns projetos têm resultados muito interessantes do ponto de vista da visibilidade de
experiências e tradições vivas. Resta saber se essas experiências são a regra ou a exceção. In C. R. Lara
Guimarães – Entre o encantamento e a experiência vivida: uma tradução dos pontos de cultura em Belo
Horizonte (MG) 2010 – 2014
29
Dessa perspectiva cabe notar as dimensões postas a nu a partir do coletivo “Fora do Eixo”,
anteriormente hegemônico na Secretaria de Cultura da Cidade de São Paulo e presente no Ministério da
Cultura – gestão Juca Ferreira. Em entrevista recente na secretaria da Cultura da cidade de São Paulo, o
coordenador dos CEUs afirmou que esse coletivo e seu ideário fortemente vinculado ao empresariamento
da cultura e às “oportunidades de negócio” têm acesso pequeno aos grupos e coletivos de cultura da
zona Leste da Cidade de São Paulo. Ao que parece, onde há uma dimensão politizada, a hegemonia dessa
e de outras iniciativas têm menos alcance.
30
Com Gabriel Feltran, é possível utilizar a expressão “mundo do crime” como “ uma representação do
conjunto de relações sociais e discursivas que se estabelecem, prioritariamente no âmbito local, em torno
dos negócios ilícitos do narcotráfico, dos roubos, assaltos e furtos. (...) O “mundo do crime” é também

129

Cidades Volume 13 Número 22


Cibele S. Rizek

esfera que se localiza sempre ao lado, nas diferentes narrativas, embora se


possa constatar sua capilaridade, sua interioridade e intimidade com os
entrevistados.31 Essa presença e essa “dobra” que combinam legalidades e
ilegalismos, geridos cotidianamente pelos diferentes lados desse origami,
apontam que o crime ganhou um aspecto de normalidade notória, passando a
compor as cenas e as rotinas diárias, alterando as gramáticas que ordenam e
constituem as relações. Talvez as dimensões mais evidentes desses exemplos
de normalização venham exatamente do fato que as incursões a campo, que
acabaram por apreender as práticas e dimensões do “crime”, tinham como
objeto programas de moradia, ou de saúde, ou a operacionalização de
programas sociais ou de cultura, ou ainda cooperativas de emprego e renda.
Sua transversalidade e capilaridade são quase onipresentes, bem como a
pluralidade de códigos que orienta práticas e cotidianos. Por vezes, de modo
paradoxal e por vezes, de forma associada à presença do crime e em nome do
combate a ele, outras presenças e mediações se articulam constituindo os
novos componentes que vêm alterando a dinâmica cotidiana e suas cenas nas
periferias urbanas, cenas que se normalizam e se alastram, constituindo novos
ordenamentos sociais inscritos indelevelmente naqueles espaços.

Dessa perspectiva, talvez não seja possível pensar nessas práticas e


ordenamentos da vida cotidiana nas periferias contemporâneas sem colocar no

um ambiente de sociabilidade e o argumento é que ele tem se expandido para além dos praticantes de
atos ilícitos”. Feltran, Gabriel de S. in Trabalhadores e Bandidos categorias de nomeação, significados
políticos,www.neip.info/html/objects/_downloadblob.php?cod_blob=724 consultado em 15 de maio de
2014
31
Algumas falas apontam para essa normalização das experiências próximas ao “mundo do crime” tal
como aparecem em relatos sobre a viuvez precoce de uma participante de um grupo do PMCMV
entidades (abril de 2014) ou nas perguntas de uma agente de saúde que percebeu que estávamos sendo
fotografadas e filmadas. “É que hoje é sexta- feira à tarde. É dia do vale coxinha ... quando a polícia chega
pra cobrar a parte dela”... (dezembro de 2012). Em atividade de campo em setembro de 2013, com
bolsistas e estudantes, passamos pelo centro de Cidade Tiradentes, quando ouvimos, em tom pouco
amigável: “porque vocês estão filmando? Estão filmando nós!” Desligamos a câmera, guardamos os
equipamentos e seguimos nosso percurso.

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Cidades Volume 13 Número 22


UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

horizonte um conjunto de programas e políticas sociais combinadas, que vão


de programas de transferência de renda aos programas de incentivo e às
práticas culturais; de programas de saúde aos de moradia, bem como pelas
teias e tramas que ganham densidade a partir dos desenhos e normativas de
cada programa, de suas proposições e dispositivos com origem nos órgãos e
instituições que compõem o Estado e que se estendem até operadores,
condicionalidades, implicações locais. Essas tramas de relações, pressupostos e
formas de operação se desdobram pelas condições de vida, pelas formas de
consumo e endividamento, pelas perspectivas e fluxos de trajetórias de
moradia nas cidades e suas periferias. Assim, além da transversalidade e
capilaridade da dobra legal/ilegal, programas e políticas sociais, processos de
mapeamento, gestão e produção de públicos-alvo comparecem, também
transversalmente, pela mão das novas formas de consumo, pela inserção em
um ou vários programas ou pela inevitável contabilidade e mapeamento pelo
Cadastro Único e suas muitas operacionalidades e funcionalidades.

Desse modo, uma última observação oriunda das incursões a campo


talvez possa recolocar em questão os novos núcleos e modos de governo
pequeno e cotidiano que se espalham pelas periferias. Trata-se, exatamente,
dos programas e políticas sociais (Bolsa Família, programas de cultura,
programas de saúde, programa Minha Casa, Minha Vida) que reconfiguraram o
cotidiano das populações das periferias, desdobrando-se em um conjunto de
modos e agentes de operação que, para além das condicionalidades,
implicaram “trabalho social” e ancorando-se no já mencionado Cadastro
Único32. Importa assinalar que esses processos redundam em mapeamento e

32
« O Cadastro Único é um banco de dados que foi criado para o Governo Federal possa saber melhor
quem são e como vivem as famílias brasileiras mais pobres. (...) No Cadastro Único temos dados sobre
renda, tipo de moradia, escolaridade, idade e outros. O cadastro deve ser atualizado a cada dois anos ou
sempre que houver uma mudança na situação da sua família. Podem ser cadastradas as famílias (...) que
ganham até meio salário mínimo mensal por pessoa; ou que ganham até 3 salários mínimos de renda total
por mês”. A inscrição é condição para os benefícios dos programas como o Bolsa Família, a Tarifa Social
de Energia Elétrica e o Telefone Popular, entre outros. In

131

Cidades Volume 13 Número 22


Cibele S. Rizek

construção de públicos para os mais diversos programas, o que também acaba


incidindo sobre a construção minuciosa das demandas, condições e modos de
acompanhamento de cada programa. Nesse feixe - por vezes articulado (mas
não necessariamente de modo prévio e muito menos na forma de um complô
conscientemente armado) de processos e programas e seus modos cotidianos
de implementação e acompanhamento - duas observações ganham corpo. A
primeira diz respeito à construção e, principalmente, à forma de operação e à
capilaridade dos programas, o que acaba por configurar o que, com Paoli,
poderia ser identificado como um “mundo do indistinto”33 ou um “mundo da
indistinção” em que se embaralham, por exemplo, associações oriundas dos
movimentos sociais com instituições que se conformam como Organizações
Sociais de todos os tipos, o que se constituiu em um campo que abrange desde
organizações religiosas até fundações de origem empresarial. De qualquer
modo, seria possível identificar aí um processo importante de gestão da vida
cotidiana pautada por critérios de eficiência mensuráveis nos termos de cada
um dos programas. No âmbito desses programas, é possível e necessário
identificar um deslizamento que permite compreender como os operadores se
transformam e são transformados por esses mesmos critérios de avaliação e
eficiência, crescentemente acoplados aos programas sociais, que se instituem
como poderosos instrumentos de gestão da vida de todos os dias, de
organização e de mapeamento da pobreza, de transformação das populações
em situação de precariedade em públicos-alvo fragmentados por idade, sexo,
atividade, necessidade, não raro identificada e atribuída a partir de critérios de
cada programa, de cada uma das instituições e atores envolvidos.34 É

http://www.servicos.gov.br/repositorioServico/cadastro-unico-para-programas-sociais-do-governo-
federal-cadastro-unico
33
Ver Paoli, M. C. – O mundo do indistinto in Oliveira, F. e Rizek, C. S. (orgs) A Era da Indeterminação.
Boitempo, São Paulo, 2007
34
Cf. Paoli, op. cit, p. 228: “Operou-se uma passagem que abandona a estruturação clássica baseada em
classes sociais distintas, antagonicamente relacionadas, para uma classificação cujo recorte é montado
por critérios de renda, faixa etária, pertencimento étnico, de gênero, patamar educacional e inserção no
mercado de trabalho – e (...)cada um destes critérios torna-se um grupo social, para quem não apenas é

132

Cidades Volume 13 Número 22


UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

imprescindível, ainda, que se possa encontrar uma fenda de descrição e


compreensão que supere as identidades pendulares atribuídas a essas mesmas
populações, que oscilam entre a culpabilização, a criminalização e a vitimização.
35

As dimensões, formas, desdobramentos e modulações do trabalho


social que acompanha cada programa, sua insistência discursiva em formas de
avaliação e eficiência parecem operar uma funda despolitização que, ao menos
temporariamente, parece afastar esses grupos - devidamente fragmentados a
partir de critérios identitários - de sua constituição enquanto sujeitos políticos
ou, pelo menos, sujeitos políticos vinculados a um horizonte de formação de
uma experiência de classe. Esse complexo de elementos combinados enquanto
tecnologias sociais de gestão da pobreza operam também por meio de um
processo nada desprezível de ativação e mobilização de recursos pessoais,
culturais, de sociabilidade das populações no sentido da sua inserção em
atividades vinculadas ao funcionamento de uma economia de mercado, que
poderia operar na transformação da pobreza em nicho de pequenos e grandes
negócios36. Essa gestão e ativação por meio dessas políticas viabilizaram um
conjunto de novas atividades que recebem a marca dos empreendedorismos
de todos os tipos: da microempresa que formaliza o trabalho passível de ser

dirigida uma programação específica, ‘adequada’ à sua nova inserção limitada no mundo – programações
uniformes e específicos para jovens, crianças, velhos, mulheres, (...)Todo esse arranjo fere de frente a
capacidade política dessas pessoas, fechando as possibilidades de interação múltipla, ou seja, como
mostra (...) Rancière (...), ‘a supressão da aparência do povo e de sua diferença a si: (...) o fato de cada um
estar em seu lugar, de fazer ali sua própria atividade e ter a opinião idêntica e de fazer ali o que há para
fazer ali’. Confirma também (...) os achados foucaultianos sobre o que chamou de “a tecnologia política
dos indivíduos” e a assustadora sobreposição da contagem estatística com a vida real da sociedade”.
35
Cf. Natália Melo L'inclusion et la formation de ses limites: une étude de l'assistance aux sans domicile fixe,
apresentado no Seminário do Projeto Latinassist em Nogent sur Marne, - fevereiro de 2014
36
Ver a esse respeito Sanfelici, D. M - A metrópole no ritmo das finanças: implicações socioespaciais da
expansão imobiliária no Brasil Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Geografia da FFLCH – USP, 2013. Em análise do setor da construção civil no Brasil, demonstra-se que a
lucratividade a partir de 2007 resulta de um processo de investimentos no chamado “setor econômico”
combinado com a abertura dos capitais nas bolsas de valores. Ver ainda Lucia Shimbo, Habitação social
de Mercado. A confluência entre Estado, empresas construtoras e capital financeiro, Belo Horizonte, Ed.
C/Arte, 2012.

133

Cidades Volume 13 Número 22


Cibele S. Rizek

compreendido como informal37 ao empreendedorismo social de novas e velhas


associações, bem como ao empreendedorismo cultural de coletivos que
acabam por encenar o que D´Andrea qualificou, a partir de categorias nativas,
como “orgulho periférico” ou como “sujeitos periféricos”.38 Também chama a
atenção de observadores mais atentos que essas políticas vistas como de
ativação – que explicitam o que está presente como recurso pouco ou nada
utilizado para fins de inserção econômica e de mercado – tomam as dimensões
subjetivas e os elementos presentes nas dobras mais ou menos implícitas de
relações e formas de sociabilidade como molas propulsoras para a realização
de atividades assimiladas à esfera da realização econômica. Caberia, então,
ressaltar, por hipótese, um deslizamento entre uma subjetividade que era, na
análise dos movimentos sociais e populares dos anos setenta e oitenta,
pressuposto analítico de resistência e conflito – nem sempre visíveis –, a partir
de matrizes de análise ancoradas em autores como E. P. Thompson39, para a
necessidade de se pensar as dimensões subjetivas como o que alguns
compreendem como “fabricação do sujeito neoliberal”, a partir de uma
concepção, segundo a qual o neoliberalismo não se conforma apenas como
mais um momento da história do capitalismo, mas como uma racionalidade que
passa a lhe ser própria. 40

37
Dessa perspectiva cabe ressaltar que os velhoas binaridades, entre as quais a clivagem entre trabalho
formal e informal não parecem mais ter potência descritiva para dar conta das novas formas de inserção
produtiva, inclusive as resultantes dos programas de estímulo ao empreendedorismo.
38
Ver D´Andrea, T. op. cit. Também é possível mencionar a análise de Marcia P. Leite que aponta uma
“gestão diferencial dos territórios” aplicada às formas de ativação de populações das diferentes favelas
do Rio de Janeiro, De "territórios da pobreza" a "territórios de negócios": dispositivos de gestão das favelas
cariocas em contexto de "pacificação - ANPOCS, Águas de Lindóia, 2013
39
A menção a Thompson indica uma referência de impacto nas ciências humanas no Brasil dos anos
setenta.
40
Ver, a esse respeito, Laval, C. e Dardot, P. La nueva razón del mondo, Gedisa Editorial, Barcelona, 2013.
Os autores sustentam que o neoliberalismo é não apenas ideologia ou política econômica, mas uma
racionalidade que tende a estruturar e organizar a ação dos governantes assim como a conduta dos
governados. Seriam suas características a generalização da competição como norma de conduta e da
empresa como modelo de subjetivação”. O neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, um
capitalismo sem o lastro de suas referências arcaizantes e plenamente assumido como (...) norma geral
da vida. O neoliberalismo pode ser definido como o conjunto dos discursos, práticas e dispositivos que

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UM BALANÇO DE PESQUISA: 10 ANOS NA ZONA LESTE E UM SOCIAL RECONFIGURADO

Assim, trata-se de identificar, no cotidiano das regiões periféricas das


cidades, formas de gestão e de gestão diferencial de territórios periféricos no
sentido: da fabricação de nichos de negócios - como se pode constatar a partir
do programa Minha Casa, Minha Vida; como de formas de governo, que se
associam e conformam aquilo que Lautier denominou “governo moral dos
pobres”41; e/ou, a partir da presença de formas militarizadas que se desdobram
em extermínio e encarceramento massivos de populações pobres e negras.
Também é preciso notar que esse governo da pobreza, bastante invisível e
ancorado nas “virtudes morais”, pode ter como tentáculo o que se
convencionou chamar de “economia criativa”, que faz explodirem, de um lado
os novos coletivos de produção cultural em uma miríade de atividades,
projetos, parcerias; e, de outro, associações não raro resultantes dos
movimentos populares e sociais, ONGs e Organizações Sociais que se voltam
para a implementação e acompanhamento de cada um desses programas e
seus financiamentos e benefícios. Desse ponto de vista, o exemplo do
programa Minha Casa, Minha Vida-Entidades é emblemático exatamente
porque deveria contemplar as entidades constituídas pelo longo percurso de
lutas dos movimentos de moradia. Por outro lado, também é importante notar
que algumas dessas entidades contempladas e constituídas como participantes
do referido programa reconverteram suas atividades a partir de outros setores
de atuação – bastante diversos, diga-se de passagem – para operar como
“máquinas de produção de casas”42, para construir a demanda e organizá-la a
partir de uma rede de sociabilidades frequentemente privada (família,
vizinhança, conhecidos), para além de qualquer vínculo público ou politizante.

determinam um novo modo de governo dos homens (...)” O conceito de ‘racionalidade política’ elaborado
por Foucault estaria então na base dessas considerações. Uma racionalidade política é pois (...) uma
racionalidade governamental” p. 15
41
Ver Revue Tiersmonde, março de 2013, Lautier, B. Gouvernement Morale des Pauvres et dépolitisation des
politiques publiques en Amérique Latine.
42
Depoimento de uma liderança de entidade participante do PMCMV- modalidade entidades.

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Diante desse quadro de constituição de um governo moral dos pobres,


que ganha operadores e modos de operação que poderiam ser identificados
como margens do estado, localizando-se em zonas de indeterminação ou zonas
de indistinção entre o Estado e o que acabou sendo denominado sociedade
civil, no cruzamento da constituição da demanda de cada programa e dos
protagonismos e formas de participação requeridos para que o “bom
beneficiário” acabe contemplado, cumprindo as condicionalidades de cada
benefício, uma nova injunção coloca no horizonte interrogações a respeito da
vida cotidiana. O processo de esgotamento do lulismo, pensado como
reformismo fraco, pode ter criado um vácuo que, no âmbito de camadas de
maior renda, vêm permitindo a expressão de uma guinada à direita, de
proporções, no mínimo, assustadoras. Do lado dos trabalhadores e da
população pobre, pode-se apontar a timidez e, talvez, a inversão da lógica que
presidiu a luta e a conquista de direitos, mesmo que haja indícios de alguns
embates – como por exemplo, as mobilizações por transporte ou a recusa dos
modos de operar do coletivo, Fora do Eixo, nos territórios urbanos que acolhem
os grupos culturais mais politizados. De qualquer modo, o horizonte dos
direitos parece ter se desvanecido; parece ter sido esvaziado de suas dimensões
politizantes. Resta saber se esse horizonte já foi definitivamente enterrado,
permitindo novas destituições dos patamares de conquistas que mal chegaram
a se constituir.

CONSIDERAÇÕES QUASE FINAIS

A partir do cruzamento de várias temáticas de pesquisa – o trabalho,


as privatizações, a captação da demanda e os regimes morais – esse
experimento coletivo de pesquisa fez emergir um novo objeto: aquele “social”
reconfigurado que se constitui uma das características principais das formas de
governo dos anos 2000. Um dos traços principais desse dispositivo de governo,
que garantiu uma certa governamentalidade, durante mais ou menos uma

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década, é seu caráter híbrido, pouco nítido, de junção inédita entre


fabricação/reconhecimento da demanda social, políticas sociais e mercado,
provocando uma transformação, pouco evidente, da política (social) em
negócio. Nesse sentido, o trabalho pôde ser apreendido como resultado do
processo de criação de informalidades, impulsionado, entre outros atores, pelo
Estado; as privatizações de certos setores deram lugar a um planejamento
social privado; a “demanda” da população, ou a demanda social ocupou o lugar
da “participação”, legitimando as entidades que participam desse novo
mercado do social; e, atravessado e recriado pelas trajetórias, esse novo meio
social dá lugar a um conjunto de moralidades, cuja característica principal
parece ser o seu entrelaçamento. O seu resultado concreto é o encolhimento
do conflito, o desaparecimento das posições divergentes e das relações de
poder entre indivíduos e coletivos, esvaziadas do seu sentido, em favor de um
empreendedorismo e empresariamento, que se instaurou como o valor
dominante e, principalmente, estruturante. Desta forma, esperamos ter
mostrado como, concretamente e a partir do trabalho de campo, dominação e
apropriação, dispositivos e agenciamentos, dimensões funcionais como nós de
circuitos e representações e discursos se articularam em uma riqueza, que
talvez apenas a imersão nas dimensões percebidas e vividas pelos contrapontos
entre regimes de enunciação e visibilidade, possam ser apreendidas.

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Enviado em: 08/11/2016


Aceito em: 12/12/2016

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