A Pedra Moabita e A Religião de Moabe
A Pedra Moabita e A Religião de Moabe
A Pedra Moabita e A Religião de Moabe
RELIGIÃO DE MOABE
Resumo
Descoberta em 1868, a Pedra Moabita, também
conhecida como Estela de Mesa, permanece o testemunho
epigráfico mais extenso sobre o antigo reino de Moabe.
Este documento de 34 linhas é uma inscrição comemorativa
em que o rei Mesa relata suas obras de construção e sua
vitória sobre o inimigo israelita da dinastia Omrida, que
por algum tempo havia oprimido a Moabe. Embora haja
muitos elementos ortográficos, gramaticais e históricos
dignos de discussão neste texto, o presente trabalho se
limita a identificar e analisar algumas idéias religiosas
inferidas da Pedra Moabita para compará-las com a religião
normativa de Israel, refletida nos textos da Bíblia Hebraica.
Idéias religiosas neste artigo são definidas como conceitos
e percepções humanas da divindade ao situar as ações do
deus ou deuses no contexto do culto, da terra e da guerra.
Abstract
Percepção da Divindade
A primeira noção religiosa que emerge do texto em estudo é a
noção de Quemos1 como o deus nacional de Moabe. Esta divindade
é conhecida dos tabletes de Ebla (c. 2400 a.C.),4 sendo também
refletida em topônimos como Carquemis.5 O rei Mesa se apresenta
como “filho de Quemoshyat” - nome teofórico em referência ao
2
Para conveniência do leitor, incluiu-se uma tradução texto da Pedra
Moabita no final deste artigo.
3
Nomes próprios que ocorrem na Bíblia seguem a versão Almeida Re-
vista e Atualizada, publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil.
4
J. R. Kautz, III, “Moab,” The International Standard Bible Encyclope-
dia, rev. ed. (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), 3:395.
5
Gerald L. Mattingly, “Moabite Religion and the Mesha‘ Inscription,” in
Studies in the Mesa Inscription and Moab, ed. John Andrew Dearman (Atlanta,
Ga.: Scholars Press, 1989), 211-238.
Elias Brasil de Souza - A Pedra Moabita e a Religião de Moabe 41
deus Quemos - e reivindica ter contruído um “lugar alto” (bmt) para
esta divindade. Na sequência do texto, menciona-se Quemos como
aquele que salvou Mesa de reis e inimigos. Não obstante, Quemos
também é retratado como tendo abandonado a terra de Moabe às
mãos dos inimigos, pois a opressão de Moabe por Israel é atribuída
à ira de Quemos contra seu povo.
Finalmente, Quemos retorna à terra e ordena a Mesa marche
contra os inimigos, dando a vitória ao rei moabita. O proativo
papel de Quemos na Pedra Moabita indica a proeminência desta
divindade na religião oficial de Moabe.6 As conexões com a religião
israelita emergem claramente, pois a representação de Quemos na
Pedra Moabita evoca alguns traços bem peculiares da percepção de
YHWH refletida na Bíblia Hebraica. (1) A divindade é honrada pela
dedicação de um espaço sagrado. (2) A divindade é retratada como
livrando o rei das mãos dos inimigos. (3) A divindade se envolve
nas campanhas militares. (4) A divindade, irada, pode abandonar a
terra às mãos de adversários. Em suma, representa-se a Quemos, a
exemplo de YHWH, como agindo na história de seu povo.
Percepção do Culto
A primeira alusão ao culto aparece na declaração de Mesa:
“eu fiz este lugar alto (bmt) para Quemos. O termo semita bmt
(lugar alto) originalmente significava as costas ou lombo de um
animal e posteriormente foi aplicado a uma elevação ou colina.7 De
acordo com a descrição da Bíblia Hebraica, o lugar alto continha
uma tenda ou compartimento no qual os instrumentos cúlticos eram
armazenados. Ali realizavam-se atividades cúlticas específicas tais
como sacrifício, refeição, oração, prostituição e sacrifício infantil.8
6
Tal percepção da divindade define-se como monolatria ou henoteísmo,
pois indica a adoração de um deus nacional sem rejeitar a existência de outras
divindades.
7
Elmer A Martens, “hmb,” Theological Wordbook of the Old Testament.
electronic ed. (Chicago: Moody Press, 1999), 113; Walter A.Elwell e Philip Wes-
ley Comfort, Tyndale Bible Dictionary (Wheaton, IL: Tyndale House Publishers,
2001) , 604.
8
Martens, “hmb” Theological Wordbook of the Old Testament, 113. Cf.
1 Rs 12:31; 13:32; 2 Rs 17:29; 23:19.
42 Hermenêutica, Volume 9, 39-47
Outra alusão ao culto aparece na enigmática expressão
, que Mesa removeu da cidade de Atarote para a presença
de Quemos em Queriote (l. 12). Após mais de cem anos de pesquisa,
o significado de ainda permance incerto.9 Poderia denotar
homens valentes ou alguma espécie de objeto cúltico, como, por
exemplo, um altar. A primeira opção parece pouco provável, pois
o todos os habitantes de Atarote foram destruídos. Resta a opção
favorecida pela maioria dos pesquisadores de que seria um
objeto cúltico, possivelmente um altar. Esta possibilidade torna-
se bastante provável devido a menção dos vasos () de YHWH
(ll. 17-18),10 que na destruição de Nebo, foram subtraídos desta
cidade e levados à presença de Quemos. As situações paralelas
parecem indicar objetos cúlticos correlacionados. Ademais note-se
ainda que o termo aparece em Ez 43:15, 16 para designar o
altar de holocausto do futuro templo. Portanto, presume-se que o
significado do vocábulo seja “altar” ou “altar-pilar.”11
Todavia, ainda é necessário determinar significado do termo
na frase . Esta última palavra constitu-se em um
grande desafio do ponto de vista filológico. O final em
pode ser entendido como aformativo feminino de uma divindade
ou o sufixo possessivo de uma divindade masculina. Se fosse
divindade feminina a frase completa indicaria o altar da deusa .
O problema com esta interpretação é que não existe no panteão
semítico uma divindade com este nome. Se o for interpretado
como sufixo possessivo feminino afixado a uma suposta divindade
masculina (i.e. “o altar do dela”), surge um problema de
ordem gramatical. Seria extremamente incomum que um nome
próprio fosse modificado por um pronome possessivo.
9
O termo () aparece várias vezes na Bíblia Hebraica e pode
significar a cidade de Jerusalem (Is 29:1, 2 e 7), o altar (Ez 43:15, 16) e homens
valentes (Is 33:7). O mesmo vocábulo ainda ocorre em 2 Sm 23:20 (par. 1 Cr
11:22) para denominar heróis moabitas.
10
Note-se que a vocábulo (vasos) está em um segmento danificado da
inscrição e apenas pode ser lido claramente. Os pesquisadores presumem que
originalmente havia um na linha anterior, o que sugere a leitura reconstruída
(vasos).
11
Francis Brown, Samuel Rolles Driver and Charles Augustus Briggs.
Enhanced Brown-Driver-Briggs Hebrew and English Lexicon. electronic ed.
(Oak Harbor: WA: Logos Research Systems, 2000), s.v. .
Elias Brasil de Souza - A Pedra Moabita e a Religião de Moabe 43
Em vista das dificuldades supra mencionadas, cabe examinar a
sugestão oferecida pelo epigrafista André Lemaire. Este pesquisador
traduz o termo em seu sentido comum de “amado.” 12A tradução
da frase ficaria assim: “o altar do amado dela [i.e da
cidade de Atarote].” Assim, o termo funciona não como nome
próprio, mas como epíteto da divindade adorada pelos habitantes
de Atarote. Como esta cidade era habitada por israelitas, é possível
que o “amado” fosse uma adjetivação de YHWH.
Percepção da Terra
A noção de Quemos como o patrono da terra de Moabe emerge
na declaração de que esta divindade abandonara a terra aos inimigos
de Moabe. Embora de forma implícita, a noção subjacente é de que
a terra era uma dádiva da divindade ao seu povo. Se por alguma
razão o povo fosse infiel, a divindade irada poderia abandonar
a terra aos inimigos. Nota-se também que o rei Mesa afirma ter
recebido ordem de Quemos para que retomasse algumas cidades
que supostamente estavam nas mãos dos israelitas.
Afirma-se que a terra de Medeba, quarenta anos ocupada por
Israel, foi restaurada por Quemos ao seu povo (ll. 8-9). Embora no
caso da conquista de Atarote não haja nenhuma referênca explícita
a mandato ou intervenção divina, o texto não deixa dúvidas de que a
cidade foi tomada para Quemos: “Mas eu pelejei contra a cidade [i.e.
Atarote] e a tomei. Eu matei todo o povo da cidade como satisfação
para Quemos e para Moabe.” (ll. 11-12). Em seguida menciona-se
que o rei capturou o 13 o trouxe diante de Quemos em
Quiriat.(ll. 12-13). Já com relação a Nebo, existe uma clara ordem
da divindade para que Mesa a capturasse: “Então Quemos disse
a mim: ‘Vai e toma Nebo de Israel.’ Portanto, Eu parti durante a
noite e pelejei contra ela desde o romper da manhã até o meio dia.
Eu a tomei. Eu matei a todos eles, sete mil homens e estrangeiros
residentes, mulheres e estrangeiras residentes e escravas. Pois eu
12
André Lemaire, “‘House of David’ Restored in Moabite Inscription,”
Biblical Archaeology Review 20/3 (Março/Abril 1994). Logos electronic ed. Cf.
Francis Brown, Samuel Rolles Driver and Charles Augustus Briggs. Enhanced
Brown-Driver-Briggs Hebrew and English Lexicon. electronic ed. (Oak Harbor:
WA: Logos Research Systems, 2000), s.v. dwd.
13
A vocalização e significado desta expressão permancem incertos.
44 Hermenêutica, Volume 9, 39-47
a havia devotado à destruição para Astar Quemos. Eu tirei de lá
os vasos de YHWH e os trouxe diante de Quemos” (ll. 14-18).
Posteriormente, menciona-se que Yahas, construída pelo rei de
Israel, foi conquistada pelo próprio Quemos com a colaboração de
Mesa e anexada a Dibon (ll. 19-21 ). Finalmente, Quemos ordenou
a Mesa que tomasse a Auronen, o que uma vez realizado, permitiu
a Quemos estabelecer residência nesta cidade.
Ao obedecer a ordem divina, Mesa conquista os territórios
mencionados e amplia a esfera de seu domínio. Ao mesmo tempo,
nota-se que medida em que o rei moabita reconquista os territórios,
Quemos estabelece sua residência nos mesmos. Assim, a divindade
não está restrita ao santuário central, mas sua influência se estende
até as fronteiras do território moabita.14
Percepção da Guerra
A perspectiva teológica da guerra, que exigia a destruição
completa do inimigo derrotado como ato de devoção à divindade,
é claramente expressa na Pedra Moabita. Nas campanhas militares
de Mesa contra Atarote e Nebo, Mesa gaba-se de ter destruído
totalmente a população dessas cidades. Em relação à Atarote,
o rei moabita declara: “eu pelejei contra a cidade e a tomei. Eu
matei todo o povo da cidade como satisfação () para Quemos
e para Moabe” (ll. 11-12). A noção de que tal campanha consistia
em uma guerra sagrada revela-se claramente na afirmação de que
“todo o povo” (() foi destruído, sendo tal ato considerado uma
“satisfação” () para Quemos e Moabe (l. 18).
Tal concepção aparece também na campanha contra Nebo,
onde expressa-se através da raíz semítica , que significa devotar
à destruição ou destruir totalmente. É o termo usado para denotar
a destruição total do inimgo como um ato de devoção à divindade.
No trecho transcrito abaixo, Mesa afirma: “Então Quemos disse
a mim: ‘Vai e toma Nebo de Israel.’ Portanto, Eu parti durante a
noite e pelejei contra ela desde o romper da manhã até ao meio dia.
Eu a tomei. Eu matei a todos eles, sete mil homens e estrangeiros
residentes, mulheres e estrangeiras residentes e escravas. Pois eu
14
Daniel I. Block, The Gods of the Nations: Studies in Ancient Near East-
ern National Theology, 2nd ed. (Grand Rapids: Baker, 2000), 85.
Elias Brasil de Souza - A Pedra Moabita e a Religião de Moabe 45
a havia devotado à destruição para Astar Quemos.” (ll 15-17). A
expressão traduzida “eu a havia devotado à destruição” corresponde
ao termo moabita , constituído do verbo em uma
construção causativa, seguido do sufixo pronominal feminino em
referência retrospectiva a cidade de Nebo.
É interesante notar que entre as várias cidades/localidades
conquistadas por Quemos, somente Atarote e Nebo foram totalmente
destruídas. A razão para tal preferência, possivelmente, deve-se ao
fato de que estas cidades estavam sob o domínio israelita. A guerra,
portanto, contra as mesmas assumiu uma dimensão sagrada, pois
da perspectiva moabita, tratava-se de um confronto entre Quemos
e YHWH. Por isso, ao serem subtraídas de YHWH, deveriam ser
dedicadas a Quemos, o que se concretizou mediante o extermínio
de sua população, ato entendido como devoção ao deus nacional.
A percepção da guerra refletida na Pedra Moabita revela
significativos paralelos conceituais e verbais com as narrativas
bíblicas das guerras de YHWH. Algumas batalhas travadas pelos
israelitas no contexto da conquista da terra exigiram o extermínio
das populações das cidades conquistadas (Jos 6:17–21; cf. 1 Sm
15:3). O exemplo mais notável encontra-se na narrativa da tomada
de Jericó. Seguindo ordens de YHWH, os israelitas “destruíram
totalmente (), ao fio da espada, tudo quanto havia
na cidade, homem e mulher, menino e velho, bois, ovelhas e
jumentos.” (Js 6:21). Foram poupados apenas “toda a prata, e o
ouro, e os vasos de bronze e de ferro,” pois deveriam ir para o
tesouro do Senhor (Js 6:19). Em oráculo endereçado ao rei Saul, a
ordem divina era: “Vai, pois, agora e fere a Amaleque, e o destrói
totalmente () com tudo o que tiver” (1 Sm 15:3).
46 Hermenêutica, Volume 9, 39-47
Conclusões e Implicações
As percepções religiosas refletidas na Pedra Moabita contém
algumas semelhanças com o a religião normativa de Israel, tais
como inferidas da Bíblia Hebraica.15 Especialmente as percepções
moabitas a respeito da divindade, do culto, da terra e da guerra
se aproximam da compreensão israelita dos mesmos elementos.
Tais similaridades podem ser explicadas devido à influência mútua,
favorecida pela proximidade geográfica dos reinos de Moabe e
Israel e aos laços de parentesco entre os dois povos, atestado pela
tradição histórica preservada nas Escrituras Hebraicas. Ademais, os
moabitas foram periodicamente subjugados pelos israelitas, o que
deve ter acarretado uma considerável influência da religião hebraica
sobre o reino de Moabe.
Pedra Moabita
Eu sou Mesa, filho Qemos[yat], rei de Moab, o dibonita.
Meu pai reinou sobre Moabe trinta anos e eu reinei depois
de meu pai. E construí este lugar alto para Quemos em
Qarhoh BMS’, porque me salvou de todos os reis e porque
me fez prevalecer sobre os meus inimigos. Omri era rei
de Israel e oprimiu a Moab muitos dias, pois Mesa estava
irado contra sua terra. E seu filho o sucedeu e disse (ele
também): eu oprimirei a Moabe. Nos meus dias falou
assim. Mas eu prevaleci contra ele e contra sua casa, e
Israel pereceu totalmente para sempre. E Omri se apossou
da terra de Medeba e habitou nela durante seus dias e
metade dos dias de seu fiho, quarenta anos. Porém, nos
meus dias, Quemos habitou nela. E edifiquei Baal Meon e
construí o reservatório e edifiquei Quiriataim. E os homens
de Gade habitaram na terra de Atarote desde a antigüidade
e o rei de Israel construiu para si Atarote. E pelejei contra
a cidade e a tomei e matei todos os homens da cidade, uma
15
Ver Walton, John H., Ancient Near Eastern Thought and the Old Tes-
tament: Introducing the Conceptual World of the Hebrew Bible Grand Rapids:
Baker Academic, 2006; Orlin, Louis Lawrence. Life and Thought in the Ancient
Near East: University of Michigan Press, 2007; Morton Smith, “The Common
Theology of the Ancient Near East.” Journal of Biblical Literature 71 (1952):
135-147.
Elias Brasil de Souza - A Pedra Moabita e a Religião de Moabe 47
saciedade para Quemos e Moabe. E removi de lá o altar
do amado dela e o transportei para a presença de Quemos
em Queriote. E assentei nela a população de Saron e a
população de Mahorat. E Quemos me disse: Vai e toma
Nebo de Israel. E parti durante a noite e pelejei contra
ela desde o romper da manhã até o meio-dia e a tomei e
matei sete mil, nativos e forasteiros, nativas e forasteiras, e
mulheres, pois os devotei à destruição para Astar Quemos.
E tirei de de lá os vasos de YHWH e os trouxe à presença de
Quemos. E o rei de Israel havia construído Jaaz e habitava
nela quando pelejou contra mim. Mas Quemos o expulsou
de minha presença e tomei de Moabe duzentos homens,
toda a unidade, e os levei até Jaaz e a tomei para anexar a
Dibon. Eu edifiquei Qarhoh, o muro do parque e o muro
da acrópole. E eu construí suas portas, e eu construí suas
torres. E eu construí o palácio e eu fiz o reservatório duplo
da fonte dentro da cidade. E não havia cisterna dentro da
cidade, em Qarhoh, e (eu) disse a todo o povo: Fazei cada
um de vós uma cisterna em sua casa. E eu excavei as valas
com cativos de Israel. Eu edifiquei Aroer e eu edifiquei
a estrada no Arnon. Eu edifiquei Bet Bamot, pois estava
derribada. Eu edifiquei Beser com cinquenta dibonitas,
pois estava em ruínas, pois toda Dibon era obediente. E
eu reinei [. . . .] cem nas cidades que eu anexei à terra. E
eu construí Medeba, Diblataim, e a casa de Baal Meon, e
levei para lá o T’N da terra. E Horonen habitou nela em
[. . . . . . .] disse Quemos para mim: Desce e peleja contra
Horonaim, e desci [. . . . . . . .] nela Quemos nos meus dias
e sobre [ . . .] de lá [. . . . .]