Cadernos de Africa Corporeidades e Narra
Cadernos de Africa Corporeidades e Narra
Cadernos de Africa Corporeidades e Narra
Niterói
2020
LEANDRO DE SOUZA ROCHA
Niterói
2020
LEANDRO DE SOUZA ROCHA
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________________________
Profª. Drª. Viviane Furtado Matesco – PPGCA/UFF
(Orientadora e Presidente da banca)
______________________________________________________________________
Profª. Drª. Kiusam Regina de Oliveira – USP
(Coorientadora)
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Jorge Luiz Rocha de Vasconcellos – PPGCA/UFF
(Membro interno)
______________________________________________________________________
Profª. Drª. Elisa de Magalhães – EBA/UFRJ
(Membro externo)
Niterói
2020
Ofereço-te Exu
o ebó de minhas palavras
(Padê de Exu Libertador – Abdias do Nascimento)
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Exu, quem primeiro me disse que esse trabalho seria possível e quem me
leva aos lugares onde eu devo estar.
Aos meus ancestrais, aqueles que eu não vejo e aqueles que se mostram a mim quando
necessário. Aos que morreram, aos que sobreviveram e aos que lutaram para que eu pudesse
trilhar meu caminho.
À Profª. Drª. Viviane Matesco pela generosidade que dedicou a mim e ao meu trabalho
durante esses dois anos de mestrado, pelo interesse que teve em compreender, junto comigo, a
minha pesquisa.
À Profª. Drª. Kiusam de Oliveira, artista e intelectual negra, por quem tenho profundo
carinho e admiração, que me orientou durante o trabalho de conclusão de curso da graduação
em Artes Visuais e mesmo depois do primeiro ano do mestrado, aceitou meu pedido de
coorientação.
Ao Prof. Dr. Marcelo de Campos e ao Prof. Dr. Luis Sérgio de Oliveira pela participação
na banca de qualificação e pelas generosas contribuições que auxiliaram no desenvolvimento
do trabalho.
Às professoras e aos professores do PPGCA/UFF, ao secretário Alessandro Patrício, às
funcionárias e funcionários do IACS II, aos colegas de turma do mestrado.
Ao Paulo Nazareth, por seu trabalho de arte que me comove profundamente e por dispor
de seu tempo para me apresentar sua espiral. À dona Ana, mãe de Paulo, por me receber em
sua casa com um bom café e uma boa prosa. Ao Julio, por facilitar a incursão pelo Palmital.
Ao Renato Silva, diretor da Mendes Wood DM, por intermediar meu contato com Paulo
Nazareth.
Ao meu pai Adiel que não se cansa de me estimular e acreditar em mim. A minha mãe,
Ana Zilda, por me fazer artista. Ao meu irmão Adel por ter me ajudado a criar um ambiente
propício para trabalho durante o segundo ano da pesquisa em nossa casa em Vila Velha. Ao cão
Luther que vive conosco e tornou o último ano de escrita mais leve.
Às amigas Tawani Paiva, Ju Cancio, Mauro Pena e Eva, por terem me recebido em suas
casas em Belo Horizonte, primeiro no Ouro Preto, depois na Rua dos Morangos. À Castiel
Vitorino, Marcela Aguiar, Felipe Moreira e Victor Paiva pelas leituras críticas, atentas e afetivas
em momentos diversos. Ao Felipe Nascimento pelo companheirismo, pela escuta e pela
partilha, por criar comigo planos para o futuro e pela revisão da qualificação e do texto final. À
Karenn Amorim pelas incontáveis conversas tão tranquilizadoras e motivadoras. À Kênia Pires,
Mariane Reghim e Raul Nunes por terem me recebido de corações abertos no Rio de Janeiro e
terem sido companheiras de morada no meu primeiro ano na cidade. À Erika Villeroy pelas
trocas e cervejas durante o primeiro ano do mestrado. Ao Lucca Nahuel pela tradução do
resumo.
Às estudantes matriculadas na disciplina Imagens do Feminino e do Negro, oferecida
no curso de Artes da UFF durante segundo semestre de 2018. À colega de mestrado e de
orientação Ana Elisa Lidizia por compartilhar daquele trabalho.
À Capes pelo financiamento da pesquisa.
RESUMO
Essa pesquisa tem por objetivo a reflexão teórica e crítica a respeito do projeto Cadernos
de África, trabalho em processo do artista Paulo Nazareth. A análise explorou as relações entre
corporeidades negras e narrativas visuais a partir de um exame de seus panfletos, cadernos de
projeto, fotografias e vídeos que permitem interpretar os processos de criação de Paulo Nazareth
como sujeito de arte e de sua produção narrativa fundamentada em caracteres oriundos das
culturas africanas e afro-brasileiras. O posicionamento teórico e metodológico privilegia uma
abordagem afro-referenciada e a noção de encruzilhada é elencada e desenvolvida como
principal categoria de análise. Refletimos sobre a presença de elementos estruturantes de uma
cosmovisão africana em Cadernos de África, sendo eles o tempo, a palavra, a ancestralidade e
o mito como propriedades que orientam o trabalho do artista e que são ritualizados ao longo do
seu percurso de criação. São esses também os elementos que dão ritmo à narrativa do trabalho.
This paper aims to do a theoretical reflection and critique in respect of the project
Cadernos de África, work in progress by the artist Paulo Nazareth. The analysis explored the
relation between black corporeality and visual narratives by examining his flyers, project
notebooks, photographies and videos which allows the interpretation of the creation processes
of Paulo Nazareth as an art subject and his narrative production fundamented in characters from
african and afro-brazilian cultures. The theoretical positioning and methodologic privileges an
afro-referenced approach and the notion of crossroads is listed and developed as main analysis
category. We reflect the presence of structuring elements for an african cosmovision at
Cadernos de África, them being, time, word, ancestrality and the myth as advisors properties
of the artist’s work and which are ritualized by the creation’s route. Are them, as well, the
elements which gives rhythm to the work’s narrative.
Figura 1 (epígrafe) - Napê Rocha. Desenho digital sobre fotografia “CADERNOS DE AFRICA
_vendo coca cola_ rio de janeiro – RJ / BRASIL” de Paulo Nazareth. ................................... 16
Figura 2 - Paulo Nazareth. "Aqui é arte". ................................................................................. 20
Figura 3 - Faith Ringgold, "Woman Freedom Now". .............................................................. 22
Figura 4 - Frente 3 de Fevereiro. "Monumento Horizontal" .................................................... 22
Figura 5 - Frente 3 de Fevereiro. “Zumbi Somos Nós” ........................................................... 22
Figura 6 - Lorna Simpson. "Untitled (a person is known for the company he keeps)”............ 24
Figura 7 - Livro manuscrito em tinta preta encontrado preso ao pescoço de um homem negro
abolicionista morto durante a insurreição dos malês na Bahia em 1835 .................................. 29
Figura 8 - Paulo Nazareth. “Cadernos de projetos dedicado a cidade de Veneza” .................. 30
Figura 9 - Paulo Nazareth. “CA- projet:magez la terre - OUIDAH / BENIN - RJ / BRASIL”
.................................................................................................................................................. 33
Figura 10 - Paulo Nazareth. “Auto Declaração De Homem Negro Afro-Indígena / Afro-Borum
Ao Olho Que Nada Veh.” ......................................................................................................... 37
Figura 11 - Jaime Lauriano. “Calimba #2” .............................................................................. 38
Figura 12 - The McPherson & Oliver. “The Scourged Back”.................................................. 40
Figura 13 - Eustáquio Neves. "Sem título"............................................................................... 40
Figura 14 - Paulo Nazareth. “Right to Funeral” ....................................................................... 45
Figura 15 - Paulo Nazareth. “Right to Funeral” ....................................................................... 46
Figura 16 - Arthur Bispo do Rosário. “Uma Obra Tão Importante que Levou 1986 Anos para
ser escrita..”. ............................................................................................................................. 47
Figura 17 - Arthur Bispo do Rosário. "Uma Obra Tão Importante que Levou 1986 Anos para
ser escrita..” .............................................................................................................................. 47
Figura 18 - Janaina Barros. “Psicanálise do Cafuné: sobre remendos, afetos e territórios [Banho
para o amor]” ............................................................................................................................ 48
Figura 19 - Janaina Barros. “Psicanálise do Cafuné: sobre remendos, afetos e territórios [Banho
para o amor]” ............................................................................................................................ 48
Figura 20 - Paulo Nazareth. “Sem título” ................................................................................. 50
Figura 21 - Paulo Nazareth. “Panfletos 03” ............................................................................. 51
Figura 22 - Paulo Nazareth. “Panfleto 01” ............................................................................... 54
Figura 23 - Paulo Nazareth. “Sem título” ................................................................................. 55
Figura 24 - Maria Magdalena Campos-Pons. "Sem título". ..................................................... 56
Figura 25 (epígrafe) - Napê Rocha. Desenho digital sobre fotografia “CA -- rua - palmital -
sant L - MG / BR” de Paulo Nazareth ...................................................................................... 62
Figura 26 - Paulo Nazareth. “CA _ c _ bola na rua Cruz Vermelha _ RJ / BRASIL” ............. 65
Figura 27 - Paulo Nazareth. “CA - rua - rio de janeiro-RJ - BRASIL”.................................... 66
Figura 28 - Tiago Sant’ana. “Atravessando Estácio”. .............................................................. 67
Figura 29 - Jaime Lauriano, "Pontos" ...................................................................................... 68
Figura 30 - Maria Auxiliadora, título não identificado. ........................................................... 69
Figura 31 - Paulo Nazareth. “CA -bon soir- cotonou / Benin”................................................. 73
Figura 32 - Paulo Nazareth. “Sem título” ................................................................................. 74
Figura 33 - Paulo Nazareth. “Cara de índio” ............................................................................ 76
Figura 34 - Paulo Nazareth. “CA -salao cris - rio de janeiro-RJ / BRASIL”. .......................... 78
Figura 35 - Paulo Nazareth. “CA- salao bellos - cotonou / Benin” .......................................... 79
Figura 36 - José Christiano Júnior. “Escravo de Nação Africana Cabinda” ............................ 80
Figura 37 - Paulo Nazareth. “Qué ficar bunito ?” .................................................................... 81
Figura 38 - Paulo Nazareth. “CA_ terreiro maria conga de aruanda_estacio _ rj _ RJ / Brasil”
.................................................................................................................................................. 83
Figura 39 - Paulo Nazareth. “CA -jour de vodu- 03 - Uidá / Benim” ...................................... 84
Figura 40 - Paulo Nazareth. “The Encyclopedic Palace” ......................................................... 86
Figura 41 - Paulo Nazareth. “CA- para eternizar a imagem de minha mae - belo horizonte - MG
/ BRASIL” ................................................................................................................................ 89
Figura 42 - Paulo Nazareth. “CA -white - belo horizonte-MG / BRASIL” ............................. 90
Figura 43 – Sankofa, símbolo Adinkra. .................................................................................... 92
Figura 44 - Paulo Nazareth. “Cine Brasil” ............................................................................... 94
Figura 45 - Paulo Nazareth. “Cine África”............................................................................... 94
Figura 46 - Paulo Nazareth. “Ipê Amarelo” ............................................................................. 95
Figura 47 - Paulo Nazareth. “L’arbre d’Oublier [Árvore do Esquecimento]” ......................... 95
Figura 48 - Processo de crescimento do Òkòtó, caracol símbolo de Exu ................................. 96
Figura 49 - Carrie Mae Weems. “The Kitchen Table Series” .................................................. 98
Figura 50 - Rommulo Vieira Conceição, "O espaço se torna um lugar na medida em que eu me
familiarizo com ele", 39’10”. ................................................................................................. 103
Figura 51 - Print-screen do cabeçalho do blog Paulo Nazareth Arte Contemporânea / LTDA
................................................................................................................................................ 105
Figura 52 - Linha do tempo do blog Paulo Nazareth Arte Contemporânea / LTDA organizada
lado a lado pela pesquisadora ................................................................................................. 106
Figura 53 (epígrafe) - Napê Rocha. Desenho digital sobre fotografia “CA -goleiro – belo
horizonte -MG / BRASIL” de Paulo Nazareth ....................................................................... 110
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 6
1. PALAVRAS CRUZADAS: AUTOFICÇÕES NA TEXTUALIDADE DE PAULO
NAZARETH EM CADERNOS DE ÁFRICA ....................................................................... 17
Palavras de ordem em quatro proposições: Paulo Nazareth, Faith Ringgold, Frente 3 de Fevereiro e
Lorna Simpson .................................................................................................................................. 18
O ânimo da palavra para as culturas africanas: o sopro e o sentido .................................................. 25
“Antes de mim vieram muitos y depois de mim há outros tantos”: ancestralidade africana, continuidade
e rupturas ........................................................................................................................................... 34
“Eu preciso continuar com o funeral”: ritos de passagem e ritos de permanência ........................... 41
O Direito ao Funeral/Right to Funeral: Paulo Nazareth no Museu do Crime.............................. 42
Paulo Nazareth, Oxalá e duas atualizações do mito iorubá ............................................................... 52
A categoria amefricanidade como uma encruzilhada étnico-político-racial na trajetória de Paulo
Nazareth ............................................................................................................................................ 56
Uma escrita incorporada: entre a palavra e a imagem....................................................................... 58
2. A GRAFIA-DESENHO DA ENCRUZILHADA ............................................................. 63
Abre caminho: a encruzilhada nas fotografias de Cadernos de África ............................................. 63
A encruzilhada e suas possibilidades, sentidos, trânsitos e disputas ................................................. 68
Visualizando a encruzilhada como uma ferramenta de análise ..................................................... 72
Corpo-arquivo e corpo-arma e o corpo-encruzilhada.................................................................... 87
A espiral: um tempo de Brasil até África e de África até Brasil ....................................................... 91
Narrativas, narradores e modos de narrar.......................................................................................... 97
A possibilidade de uma narrativa encruzada através de Cadernos de África ............................ 101
3. PISTAS, RASTROS E VESTÍGIOS NA BUSCA POR CADERNOS DE ÁFRICA ... 111
Memorial inacabado ........................................................................................................................ 112
Diálogos na Encruzilhada................................................................................................................ 114
Espiral #1: Minas Gerais-Belo-Horizonte-Santa Luzia-Palmital ................................................ 114
Espiral #2: Espírito Santo-Grande Vitória-Vitória-Centro.......................................................... 130
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 134
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 140
6
INTRODUÇÃO
1Os dados e o material completo podem ser consultados na íntegra no site do projeto: <http://historyof-rt.org/>.
Acesso em: 05 dez. 2019.
7
2 Quando Paulo Nazareth nasceu, em 1977, o município já se chamava Governador Valadares desde 1938. No
entanto, o artista opta por afirmar seu gentílico figueirense em oposição ao projeto político valadarense. Essa
questão será brevemente apresentada no capítulo que trata da entrevista que fiz com Nazareth.
3
Marco Paulo Rolla é um artista multidisciplinar, atua nos campos da pintura, desenho, escultura e performance.
Assim como Paulo Nazareth, passou por formação acadêmica na Escola de Belas Artes (UFMG). Ver:
http://marcopaulorolla.com/
4 Disponível em: <https://vimeo.com/67646933>.
5
Paulo Nazareth dispõe de diversos blogs, muitos deles com o mesmo título. Para o blog referente a Notícias de
América, ver http://latinamericanotice.blogspot.com/.
8
[...]” (NAZARETH, 2012, n.p). Portanto em 2012, logo após a conclusão de Notícias de
América, Paulo Nazareth dá início ao seu atual projeto, Cadernos de África. Bastante
influenciado pela experiência anterior, dessa vez a empreitada é mais audaciosa e mais longa.
O artista conta que é propulsionado por uma espiral que nasce na cozinha de sua casa no
Palmital6. A espiral chega ao continente africano, que o fará percorrer os cinquenta e quatro
países daquele grande território.
O projeto Cadernos de África trata-se de um trabalho de longa duração ainda em
processo, pois até o momento de conclusão dessa dissertação, o artista ainda não cumpriu seu
objetivo de percorrer todos os países do continente africano. A série compõe-se de fotografias,
vídeos, objetos, instalações, panfletos, cadernos, gravuras e desenhos que têm sido expostos em
ocasiões diversas, em exposições coletivas e individuais desde o início de seu percurso de
criação. O trabalho acontece ao longo de cada viagem e também nos seus momentos de retorno
ao seu ateliê no Palmital. As viagens de Paulo Nazareth não são apenas documentadas e
expostas, são narradas pelo artista por meio das diversas mídias que dispõe.
Esses dados são úteis para anunciar alguns aspectos que se mostraram relevantes no
decorrer da pesquisa e que estão reunidos na série Cadernos de África, objeto principal de
análise nessa dissertação. Primeiro, o interesse poético, político e ético do artista em torno das
questões étnico-raciais que encontra no contato com outros sujeitos, possibilidades de invenção
artística, tendo como disparador sua experiência como estrangeiro na Índia. Segundo, os
grandes deslocamentos geográficos que o artista empreende se transmutam em deslocamentos
conceituais e epistêmicos, que puderam amadurecer em sua longa viagem pelo continente
latino-americano. Como esses aspectos se organizam em Cadernos de África, veremos adiante.
A página PAULO NAZARETH ARTE CONTEMPORÂNEA / LTDA7 é o espaço virtual
que reúne maior parte das obras que compõe Cadernos de África e desde o cabeçalho apresenta
as motivações do artista e objetivos do projeto: 1) saber o que há de África em sua casa; 2)
conhecer África antes de chegar à Europa; 3) saber o que há de sua casa em Europa; 4) saber o
que tem de África em Europa; 5) saber o que tem de sua casa em África. Deste modo, Paulo
Nazareth deixa explícito que sua ideia de África ultrapassa os limites territoriais do continente,
sendo possível encontrar África também em sua casa no Brasil e mesmo na Europa. Além disso,
considera África como um território móvel, isso quer dizer também que não é a presença física
do artista no continente africano que caracteriza um trabalho como parte do projeto. Como
6
Diversas vezes Paulo Nazareth faz essa apresentação ao falar de Cadernos de África. Uma dessas falas pode ser
vista em entrevista concedida ao Prêmio PIPA. Ver: <https://www.youtube.com/watch?v=j5LvmwDljdM>.
7
Dessa vez, refiro-me ao blog em que constam os registros de Cadernos de África.
9
veremos ao longo da dissertação, muitos dos trabalhos analisados e que compõe o projeto foram
criados no Brasil e em outros países da América Latina.
Em 2013, Paulo Nazareth expôs os primeiros trabalhos frutos de Cadernos de África na
12ª Bienal de Lyon (França) a convite do curador islandês Gunnar Kvaran. Na ocasião, o artista
levou para o espaço expositivo o vídeo L’arbre d’Oublier (2013), gravado em Cotonou
(Benim), ao lado de um conjunto de fotografias e objetos coletados durante a viagem ao país
da África Ocidental. Na parede do espaço, Paulo Nazareth anuncia os objetivos do projeto,
conforme descrito anteriormente. Nazareth faz dessa aparição pública em um evento
internacional de grande projeção uma possibilidade de apresentar uma espécie de síntese ao
mesmo tempo em que diz a que veio o projeto. É importante destacar que Paulo Nazareth não
esteve presente na montagem da exposição e nunca esteve na Europa, afinal, esse é um dos
parâmetros da sua empreitada.
Os deslocamentos já conhecidos na obra de Paulo Nazareth permanecem em Cadernos
de África: mais uma vez vemos os grandes movimentos por terra que têm se repetido ao longo
dos anos, como em Notícias de América, e os deslocamentos epistêmicos, visto que a intenção
do artista é desvendar o continente africano em sua diversidade e complexidade. A escolha de
não pisar em solo europeu antes de percorrer toda África também denota uma posição política
frente ao sistema de arte, na medida em que intenta descentralizar os lugares de produção e
difusão de arte e de conhecimento. A presença de Paulo Nazareth na Europa se dá por meio de
seus trabalhos que não deixam de circular no continente, seja pela presença dos diretores da
galeria que o representa – a Mendes Wood DM – ou pelas demais parcerias que constrói ao
longo de sua trajetória.
Foi no percurso do seu projeto Notícias de América e início de Cadernos de África que
Paulo Nazareth ganhou notoriedade do grande público e da mídia, sendo citado frequentemente
em grandes veículos de comunicação. É nesse momento que tenho meu primeiro contato com
Paulo Nazareth como artista – ou personagem. O contato também já anunciava um primeiro
incômodo na abordagem que costumam fazer de seu trabalho e trajetória.
Em um texto publicado em 2013 e veiculado na seção de cultura do jornal O Globo,
Paulo Nazareth é apresentado no título como “um artista exótico”8. O texto descreve
brevemente a trajetória de trabalho do artista e de seu percurso em Notícias de América,
apresentando também as exposições em que estava em cartaz naquele momento (12ª Bienal de
8
Ver FURLANETO, Audrey. Paulo Nazareth, um artista exótico. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 2013. Cultura.
Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/paulo-nazareth-um-artista-exotico-10544447>. Acesso em: 12
mar. 2019.
10
Lyon e 55ª Bienal de Veneza). A autora do texto se refere a Paulo Nazareth como “o queridinho
esquisito da arte” ao mesmo tempo em que descreve seu trajado simples e seu cabelo crespo,
traços que marcariam como incoerente e estranha a sua circulação no sistema de arte.
Naquele momento, estava nítido para mim a emissão de um discurso estereotipado em
relação a um artista negro que, além de exaltar suas raízes negras e indígenas, ostenta cabelos
crespos e traja roupas consideradas simples, caracteres aparentemente estranhos para um artista
de notoriedade no circuito de arte.
Desde o início do meu percurso nas Artes Visuais, os modos de presença e as ausências
dos artistas negros têm sido uma preocupação para mim. Em Notícias de América, Nazareth
coloca à venda sua imagem de homem exótico9 justamente para questionar os estereótipos
relacionados à sua corporeidade negra e indígena e as relações de exploração trabalhista e
econômica dentro e fora do sistema de arte. O artista é consciente de sua imagem e nos leva a
pensar de quais maneiras seu trabalho tem sido consumido e se de fato as questões em torno
desse debate são compreendidas pelo público.
O desconforto causado pela leitura daquele texto me fez buscar outras referências que
nem sempre me ofereciam abordagens que eu julgasse coerentes com o trabalho de Paulo
Nazareth, especialmente no que diz respeito às questões raciais que, para mim, constituem uma
matéria da maior importância em sua obra e aqui serão melhor exploradas. Por isso, as
motivações para o desenvolvimento dessa pesquisa não estão somente nos meus interesses em
relação ao trabalho do artista, mas também por identificar nas interpretações e produções acerca
de sua obra uma série de lacunas que considero importantes de serem preenchidas.
Paulo Nazareth comenta que a primeira estratégia para tratar da racialidade em
Cadernos de África foi fazer o uso exclusivo de fotografias em preto e branco10. Dessa maneira,
o artista faz saltar aos olhos os contrastes de tonalidades de cor que podem ser imediatamente
associados às discrepâncias sociais e raciais fundamentadas no racismo a partir da colonização
do continente africano e do sistema escravista que produzem desigualdades estruturais ainda no
presente. O artista opta por trazer à tona uma série de apagamentos históricos em torno dos
saberes africanos, de sua história pré-colonial, de suas contribuições e do lugar em que se
encontra o continente na atualidade. As motivações de Nazareth são, portanto, políticas, sociais
e raciais.
9
Há uma fotografia em que Paulo Nazareth posa ao lado de outro homem e segura um cartaz que diz “Vendo mi
imagen de hombre exótico”. A imagem é parte de Notícias de América. Ver:
<http://latinamericanotice.blogspot.com/2011/07/my-image-of-exotic-man-for-sale.html>.
10
O artista comenta sobre esse aspecto do seu trabalho na entrevista que será compartilhada no terceiro capítulo.
11
Passado o primeiro contato com a crítica sobre Paulo Nazareth – o texto que o trata
como “artista exótico” –, meu contato inicial com o projeto Cadernos de África se deu por meio
de sua página virtual. Naquele momento muito me interessava o modo como o artista expunha
seu trabalho de maneira direta e aparentemente simples. Em seu site, constam cerca de
quatrocentas e vinte imagens entre fotografias, gravuras, projetos e textos narrativos publicados
entre 2012 e 2014. Chamou-me a atenção o modo como Paulo Nazareth organiza sua linha do
tempo narrando suas viagens. Entre tantas imagens – algumas repetidas – com datas, eventos e
localidades nem sempre discerníveis, a temporalidade linear é esgarçada e a narrativa do projeto
flui de maneira espiralada nas quais as camadas de eventos e acontecimentos sobrepõe-se e se
combinam. O que é apresentado no blog são vestígios de suas viagens, que nós, espectadores,
podemos acompanhar e especular.
No começo da pesquisa, ainda na fase de escrita do pré-projeto, esse espaço virtual foi
o que mais me alimentou de referências e ideias, sendo parte importante do corpus da pesquisa.
Entretanto, não levou muito tempo para que eu pudesse perceber que Cadernos de África
ultrapassa os limites daquela plataforma, alcançando uma diversidade de espaços. Desde então,
meu trabalho tem sido o de buscar os vestígios e pistas deixados por Paulo Nazareth em
bibliotecas, catálogos, exposições e mostras. Nesse percurso de investigação, tive a chance de
fazer contato com Paulo e entrevistar o artista no local de partida da sua espiral: o Palmital.
Diante da diversidade da literatura sobre os temas relacionados às culturas africanas
transladadas para o Brasil, busquei aqueles que de alguma maneira fizessem uma reflexão
teórica e conceitual afro-referenciada. Quero dizer: se em minha pesquisa as questões em torno
das culturas africanas e afro-brasileiras são fundamentais, busquei aqueles que pudessem me
contemplar e auxiliar em tal empreitada com um repertório coerente com os temas a serem
explorados. O gesto poético de Paulo Nazareth em seu retorno à África influencia sobremaneira
o modo como faço a abordagem dos sentidos do seu trabalho, provocando em mim uma
gestualidade de produção de episteme coerente com suas proposições poéticas.
Para isso, a epistemologia das encruzilhadas (MARTINS, 1997) apareceu logo no início
desta empreitada como ferramenta fundamental para as minhas análises, levando-me também a
outros conceitos, categorias e possibilidades de entendimento que, entrecruzadas, auxiliam na
constituição de um corpo teórico para essa pesquisa. Leda Martins (1997), pesquisadora das
performances negras, em Afrografias da Memória, se propõe a ler e interpretar o Congado e o
Reinado mineiro, manifestações culturais de origem bantu da ordem da corporeidade, da
oralidade e do rito. A autora entende que para dar sentido a essas manifestações de raiz africana
e para entender os movimentos de travessia desses fundamentos de África para o Brasil se fazia
12
11 Exu é o orixá da comunicação, responsável pela comunicação entre humanos e orixás. Seu lugar de domínio é
a encruzilhada.
13
Figura 1 (epígrafe) - Napê Rocha. Desenho digital sobre fotografia “CADERNOS DE AFRICA _vendo coca
cola_ rio de janeiro – RJ / BRASIL” de Paulo Nazareth, 2019.
17
12A firma Paulo Nazareth Arte Contemporânea / LTDA foi criada por Paulo Sérgio da Silva para enquadrar sua
produção como parte do sistema de arte de modo a legitimar sua participação efetiva nas trocas comerciais e
simbólicas desse campo. Em 24 de janeiro de 2006, a firma-artista registrou em cartório um decreto que, a partir
daquela data, transforma em Arte todas as ações efetuadas por Paulo Sérgio da Silva/Paulo Nazareth.
18
propósito de produzir uma imagem13, a qual seja de uma ação ou de um evento. Por vezes, serão
acionados projetos que ganharam corpo fora do texto, que foram executados em ações, ou
passaram a constituir objetos concretos ou instalações, mas essa não é uma condição para
minhas análises.
Ao longo da leitura, acredito ser possível perceber que os movimentos de criação do
artista não obedecem a uma linearidade simples, em que um projeto necessariamente se
concluirá em um objeto ou ação. Digo isso para afirmar que neste momento, mais importante
do que visualizar uma imagem de uma ação sendo executada, de uma instalação ou objeto,
interessa-nos a imagem que a narração da ação ou do relato propiciam. Ao longo do capítulo
serão evocados trabalhos de outros artistas que também encontram no texto uma possibilidade
de resolver suas questões e problemáticas diversas. Isso será útil para localizar o trabalho de
Paulo Nazareth em um contexto mais amplo das produções de artistas negros.
13 Há no Cancioneiro de Fernando Pessoa, uma nota preliminar em que o autor afirma que um pensamento ou um
estado de alma pode-se representar por uma paisagem, ou pode ser de fato uma paisagem como representação do
mundo exterior. Por exemplo, quando alguém diz que “há uma nuvem em meus pensamentos”, podemos
facilmente visualizar um estado de confusão ou incerteza. Diante disso, afirma que a eficácia do trabalho do artista
está não só em produzir “paisagens exteriores” a partir de suas próprias “paisagens interiores”, mas em amalgamá-
las. É desejável que o trabalho de arte seja uma exterioridade em relação ao artista, que passa a construir a
interioridade – a paisagem-estado mental – de quem observa e participa do trabalho. Me parece também
interessante explorar os usos e sentidos dos termos “imagem” ou “imagem mental” em lugar da “paisagem”, que,
no entanto, servem ao mesmo propósito. Essa abordagem se justifica por um desejo de, ao longo da pesquisa,
produzir conhecimento e exercitar a teoria a partir da poesia, como veremos adiante também, com o uso do
conceito de escrevivência, da escritora Conceição Evaristo. Me parece coerente, haja vista que o objeto de análise
é também um trabalho poético. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ph000003.pdf>.
19
étnico-raciais nos quais se vê como parte – negro escravizado, destituído de sua memória,
indígena reduzido a condição de “folclore” na história nacional. É produzindo e revirando os
arquivos orais e da memória que o artista consegue criar as bases para a sua narrativa. O que
veremos adiante são as maneiras pelas quais o artista escolhe fazer uso da palavra escrita em
sua produção autoficcional.
Antes que buscasse construir uma narrativa sobre si através do texto, Paulo Nazareth
mobilizava em seu trabalho um discurso sobre a arte. Na série de decretos conceituais Aqui é
arte (figura 2), Nazareth faz uso de uma suposta autoridade absoluta do artista como aquele
sujeito legitimado capaz de estabelecer os limites e parâmetros do que pode ou não ser
considerado arte ao transformar em arte coisas ou situações ordinárias da vida. Nesse panfleto,
Paulo Nazareth eleva ao status de arte uma atitude que é tão comum – a pesca aos fins de semana
– quanto subversiva – pois a água é imprópria para consumo. Mais do que isso, o artista
transforma em arte não apenas o gesto da pesca, mas o resultante dessa situação, que é a
manutenção da vida dos peixes e das pessoas que subsistem da atividade da pesca artesanal
nessas condições improváveis. Desse modo, Paulo Nazareth faz ao mesmo tempo um discurso
sobre a arte e sobre a vida comum.
Na série Aqui é Arte, Paulo Nazareth intenta solidificar a sua condição de sujeito de arte
com plenos poderes para determinar o que pode ser identificado como tal. Essa parece ser uma
questão importante para um artista que apesar da sua circulação pelo sistema de arte pode ainda
ser caracterizado como “exótico” pela crítica superficial. O discurso sobre a arte de Paulo
Nazareth encontra ressonância na produção de subversão dos lugares estratificados ao quais
pessoas negras são submetidas.
A raça como aspecto individual ou coletivo a ser explorada é acionado por muitos
artistas negros também por meio da palavra e em variadas linguagens, como veremos adiante.
Os trabalhos que veremos são resultantes de dois recursos poéticos que, neste momento, nos
são mais relevantes. A palavra escrita aparece como matéria de criação que possibilita uma
comunicação direta com o observador e as identidades passam a ser politizadas de maneiras
contundente.
20
Figura 2 - Paulo Nazareth. "Aqui é arte", Belo Horizonte, 2007. Impressão sobre papel jornal. Disponível em:
<http://artecontemporanealtda.blogspot.com/>. Acesso em: 03 out. 2019.
21
Faith Ringgold, artista norte-americana, desde a década de 1970 faz uso do texto como
artifício para uma comunicação que objetivava uma mobilização coletiva carregada de
proposições políticas bem demarcadas. O trabalho de Ringgold está imerso em um contexto de
lutas pelos direitos civis da população negra norte-americana, de proeminência do movimento
Black Power e também dos movimentos feministas.
A série de pinturas Flag Story Quilt apresenta textos da artista sobre imagens da
bandeira estadunidense que refletem sobre questões políticas e sociais, convocam a uma
consideração sobre o tempo presente e as posições dos sujeitos na política. No entanto, nenhuma
delas funciona de maneira tão simples e direta como a pintura Woman Freedom Now (figura
3). A pintura segmenta e organiza os dizeres que respondem a dois movimentos: o primeiro, de
convocação das mulheres a um posicionamento político orientado pela libertação individual e
coletiva; segundo, anuncia a liberdade feminina como uma realidade presente no cotidiano.
Através da pintura, Ringgold exercita um jogo de composição que explora cores
complementares – vermelho e verde – e cria oposições entre as palavras que aparecem
circunscritas por formas triangulares. Nesse sentido, a forma captura a palavra, mas essa
conquista autonomia, inclusive para se espelhar e ainda assim ser facilmente assimilada pelo
observador. Mesmo diante de condições que impõe limites às vozes de mulheres negras, essas
mulheres encontram suas próprias maneiras de se fazerem ouvidas. A violência que silencia as
mulheres se metamorfoseia em formas diversas de violência, como a que motiva a criação da
Frente 3 de Fevereiro.
Palavras de ordem são utilizadas também pelo coletivo de artistas da Frente 3 de
Fevereiro14, grupo transdisciplinar de pesquisa e ação direta contra o racismo na sociedade
brasileira. A criação do coletivo é uma resposta à violência policial direcionada a jovens negros
e periféricos: no dia 3 de fevereiro de 2004, o jovem dentista Flávio Sant’ana foi assassinado
por policiais militares em uma abordagem policial na Zona Norte da cidade de São Paulo. A
Frente mobilizou-se para a criação de um Monumento Horizontal (figura 4) no local exato da
morte do jovem negro, identificando não só o local do crime de Estado, mas também
demarcando um foco de resistência e organização coletiva.
14Fazem parte do grupo: Achiles Luciano, Adré Montenegro, Cássio Martins, Cibele Lucena, Daniel Lima, Daniel
Oliva, Eugênio Lima, Felipe Teixeira, Felipe Brait, Fernando Alabê, Fernando Coster, João Nascimento, Julio
Dojcsar, Maia Gongora, Majoi Gongora, Marina Novaes, Maurinete Lima, Pedro Guimarães, Roberta Estrela
D’Alva, Sato, Will Robson.
22
Figura 3 - Faith Ringgold, "Woman Freedom Now". 1971. Colagem sobre tela, 72,2 x 50,8 cm. Disponível em:
<https://www.moma.org >. Acesso em: 03 out. 2019.
Figura 4 - Frente 3 de Fevereiro. "Monumento Horizontal", 2004. Fonte: Casa da Lapa. Disponível em:
<http://casadalapa.blogspot.com>. Acesso em: 22 out. 2019.
Figura 5 - Frente 3 de Fevereiro. “Zumbi Somos Nós”, 2007. Disponível em: <http://www.danielcflima.com>.
Acesso em: 22 out. 2019.
23
O trabalho Zumbi Somos Nós15 (figura 5), ainda como desdobramento do caso descrito
foi executado pela primeira vez em 14 de julho de 2005 durante a final do campeonato de
futebol Taça Libertadores da América em uma partida entre os times São Paulo e Atlético
Paraense. Valendo-se de uma prática frequente entre as torcidas, o coletivo mobilizou a torcida
organizada presente nas arquibancadas do estágio e esticou três grandes bandeiras que
questionam os lugares sociais dos negros no Brasil e anunciam um levante coletivo de
resistência.
Mesmo que os artistas se identifiquem coletivamente como um grupo de ação direta,
seu trabalho não deixa de participar do circuito de arte. A bandeira que questiona “Onde estão
os negros?” (figura 5), por exemplo, esteve exposta nas fachadas do prédio do Museu de Arte
de São Paulo e do Instituto Tomie Ohtake durante a exposição Histórias Afro-atlânticas em
2018. Como o panfleto de Paulo Nazareth, que determina o que é considerado arte, a ação da
Frente é também um discurso sobre o sistema de arte, na medida em que incita a reflexão sobre
as presenças e ausências das pessoas negras nas instituições. Não há, portanto, uma
desarticulação das práticas consideradas ativistas em relação ao circuito de arte.
O trabalho da Frente 3 de Fevereiro tem a preocupação com a manutenção da vida das
pessoas negras diante das violências racistas e a intervenção direta aparece como uma
possibilidade de resolução dessa questão que é tanto política quanto poética. As complexidades
que orbitam uma experiência marcada pela raça são expressas de maneiras diversas, como no
caso de Lorna Simpson, artista norte-americana que objetiva a reflexão acerca dos estereótipos
da negritude e da branquitude16.
A preocupação de Lorna Simpson em torno das identidades em Untitled (a person is
known for the company he keeps) (figura 6) passa pela formação de estereótipos raciais que
apresentam a raça como um dado relacional e o racismo como um problema coletivo. Ao
contrário de Paulo Nazareth, Simpson não cria uma imagem autobiográfica; a artista não
descreve o que é, para ela, ser uma mulher negra em uma sociedade desigual. No entanto, a
artista destaca as desigualdades raciais por meio de dizeres banais que representam dois
posicionamentos antagônicos direcionados a diferentes sujeitos em um jogo de
15 O documentário Zumbi Somos Nós apresenta os momentos de preparação e execução da ação. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=jVHmoqHciD8>.
16 “Branquitude” assim como “negritude” é uma categoria relacional, mobilizada com sentidos diversos. Os
debates em torno da branquitude objetivam, entre outras coisas, a “racialização” do sujeito branco, que passaria a
não mais se ver como norma – pessoa –, mas como sujeito que também carrega uma marca racial – pessoa branca.
Neste texto o termo é utilizado no sentido de “qualidade de ser branco”.
24
heteroidentificação. Simpson está interessada no que “o outro” tem a dizer de modo a produzir
uma coletividade.
As frases que a artista reproduz em seu trabalho podem ser melhor traduzidas como “me
diga com quem andas e te direi quem és” no segmento preto da imagem e “o que os olhos não
veem o coração não sente” no segmento branco. O que a artista busca evidenciar são as
diferenças de tratamento direcionados a diferentes corpos, negros e brancos, que podem ser
relacionados com a produção de estereótipos raciais que identificam sujeitos negros como
potencialmente criminosos e brancos como vítimas inocentes. A resolução plástica da artista
realça que tais produções discursivas podem incorrer em casos de violência extrema, como a
que vitimou o jovem Flávio Sant’ana.
Figura 6 - Lorna Simpson. "Untitled (a person is known for the company he keeps)”, 1989. Impressão e placas
de plástico, 76,2 x 40,6 cm. Disponível em: <https://lsimpsonstudio.com>. Acesso em: 03 out. 2019.
Até aqui pudemos ver como trabalhos que se articulam através da palavra escrita podem
resultar em diferentes meios e participar do circuito de arte de maneiras distintas. O panfleto de
Paulo Nazareth, seu decreto conceitual (figura 2) opera de modo a circular entre os sujeitos de
maneira orgânica, tal qual os panfletos da vida ordinária, sendo distribuídos ou vendidos pelo
próprio artista. No entanto, eles também podem compor as exposições que Paulo Nazareth
participa dentro das instituições. O termo “arte panfletária” é banalmente utilizado para
25
Vimos que artistas negros fazem uso da palavra como um eficaz mecanismo para uma
enunciação coletiva. Se é por meio da palavra escrita que Paulo Nazareth produz sua biografia,
considero pertinente explorar essa dimensão da vida que se expressa também na oralidade.
Faremos, ao longo desta reflexão, transposições entre a palavra oral e o texto gráfico. O projeto
Cadernos de África se constitui como uma investigação sobre o continente africano e por isso,
examinaremos como a palavra estrutura uma cosmovisão africana.
Martins (1997) destaca que as sociedades africanas tradicionais são predominantemente
ágrafas, portanto o uso da palavra dá-se de maneira oral, conferindo uma relação mais orgânica
em sua propagação e difusão na medida em que, para se acessar os discursos, é preciso dialogar,
estar aberto a ouvir do outro.
De acordo com Amadou Hampaté Bâ (2010), ao tratar da textualidade oral nas tradições
africanas da savana ao Sul do Saara, observa-se um maior desenvolvimento da memória e
coesão da sociedade, pois está relacionada à própria ligação entre o sujeito e a palavra que
profere. Por esse motivo, a palavra recitada constitui parte do sujeito que enuncia, o que produz
um maior comprometimento com ela (ibi., p. 168). Existe, dessa maneira, um aumento da
26
responsabilidade em seu uso já que, de alguma maneira, o que se diz será lembrado como parte
de quem você é.
É por meio da palavra prenhe de hálito e saliva que se funda o universo para o sujeito
africano, que aparece nas narrativas mitológicas como a energia que cria e anima o mundo e os
seres humanos (HAMPATÉ BÂ, 2010; LEITE, 1992, 1996; OLIVEIRA, 2003, 2007, 2009;
SÀLÁMÌ e RIBEIRO, 2011). Há um mito-poema iorubá coletado por Luiz Marins (2012) cujo
fragmento apresenta de maneira breve a presença da respiração no ato criador, gênese do cosmo
e das pessoas:
17Obatalá, que também recebe o nome de Oxalá, é o orixá mais velho do panteão iorubá. Participa da criação do
mundo, moldando os corpos dos seres humanos em barro. De acordo com Sàlámí e Ribeiro (2011, p. 58-59), Oxalá
dá aos seus filhos criatividade, paz e tranquilidade, mas também é exigente em relação ao senso de moralidade.
Cobra que seus filhos sejam corretos e bondosos.
27
corpos humanos modelados por ele a partir da lama só adquirem vida quando Olodumaré18 – o
ser preexistente – insufla-lhes o seu próprio èmi – sua própria respiração –, no interior do corpo
humano, vitaliza-o e transforma-se no espírito – èémí. Desse modo, o corpo adquire vigor e
personalidade. No pulmão e na boca dos mortais, a palavra ainda conservaria a energia fecunda
do preexistente, tornando-se elemento sagrado e mágico da vida cotidiana.
Mais adiante, nesse mesmo capítulo, veremos como Paulo Nazareth reatualiza o mito
de Oxalá por meio de seus panfletos, posteriormente, no capítulo terceiro, através das falas do
próprio artista. Por enquanto, atentaremos-nos à palavra como propiciadora de vida.
Em outro fragmento que trata da respiração como contingências criadoras, Santos
(2012) descreve a criação da primeira existência individual, o orixá Exu, em que o hálito
também aparece como força animadora, evidenciando mais um compartilhamento dessa energia
entre os humanos e as divindades:
A palavra é geradora de movimento e por isso deve ter a sua potência regulada e seu uso
orientado, pois, após ser proferida, ela desprende de seu locutor e sua energia passa a reintegrar
a natureza e a participar da vida coletiva (LEITE, 1996). De acordo com Santos (2012, p. 46),
a palavra para os nagôs ultrapassa a racionalidade semântica, atingindo uma dimensão
energética propiciadora de axé19.
18 Na mitologia iorubá, Olodumare é o ser preexistente que origina os Orixás. Oliveira (2007, p. 141) diz que “[...]
Olodumare deu vazão à forma conhecida de existência desse mundo. [...] Olodumare não precisa de corpo para
existir pois ele é o criador do corpo. É o vazio criativo donde tudo que é, brota. É o nada de onde irradia luz. É o
infnito donde nasce a positividade do mundo. Olodumare é criador por isso não tem forma. Ele dá a forma. Ele
não assume o desenho da criatura. Não se confunde com a criatura. Ele é a possibilidade de qualquer criação. Puro
fluxo, pura fruição, Olodumare prescinde de qualquer convenção e significado. Ele é o sentido pleno e o não-
significado máximo. Não se pode falar de Olodumare, não se pode descrevê-lo. Não é possível agradar-lhe em
cultos particulares, pois Olodumare é o coletivo máximo e não se prende a nenhuma convenção institucional, seja
ela religiosa ou não. Olodumare é absoluto, não em si mesmo, pois não existe si mesmo para o absoluto. Ele é
absoluto, pois tudo que é, é por causa dele. Mas Ele já não participa das coisas. Participar das coisas é da natureza
das criaturas. Olodumare é o conjunto de tudo que existe. Ele é assim, o solo que recebe tudo e todos. E sendo
assim, Olodumare não tem fora nem dentro. Não tem hoje nem amanhã. Não tem passado nem futuro. Não tem
brecha nem parede. Olodumare não se confunde com o mundo. Ele é o Pre-existente. Ele é Primordial. Olodumare
é um nome que faz ressoar a vibração primeira e última da existência. Olodumare é vibração”.
19
Segundo Santos (2012, p. 40), o axé é a energia vital da qual provém um poder de geração que pode ser
acumulado, transmitido ou perdido. Encontra na palavra falada uma via de manifestação, posto que só pode ser
transmitida por meio do contato, seja nas experiências ritualísticas, místicas ou iniciáticas. O que produz essa
potência é a impregnação da carga emocional, história pessoal e do poder de quem a profere.
28
20
Os estudos de Leite (1992, 1996, 2008) concentram-se em pesquisas em torno de três sociedades da África
Ocidental: Yoruba, Agni (grupo Akan) e Senufo. Segundo o autor, de acordo com a bibliografia e os dados da
pesquisa é possível atribuir a um número expressivo de sociedades africanas alguns elementos estruturantes
comuns, como a palavra e a ancestralidade, foco deste capítulo.
21
Quando o artista efetua as transações, elas podem acontecer por meio de preços módicos - um real, por exemplo.
A galeria, por sua vez, estabelece outros valores de acordo com sua valorização no mercado de arte. Sobre a postura
de Paulo Nazareth frente ao mercado de arte no contexto de Cadernos de África, será destinado um outro capítulo.
29
trabalhos, como serão discutidos ao longo deste capítulo, não só sintetizam narrativas de vida
do artista, mas apresentam instruções de ações que podem vir a serem executadas por aquele
que porta o objeto.
Enquanto desenvolvia essa pesquisa, tive a chance de coletar diversos panfletos do
artista disponíveis em exposições e também consultar seus cadernos disponíveis na Biblioteca
da Escola de Belas Artes da UFMG. Alguns panfletos analisados neste capítulo foram doados
a mim por Paulo Nazareth enquanto produzíamos a entrevista que será compartilhada no último
capítulo dessa dissertação. Digo isso para reforçar que o trabalho com os panfletos e cadernos
de Nazareth é feito para circular entre o público nas exposições e pelas mãos do próprio artista.
Não basta que o público apenas observe seu trabalho, mas é importante para o artista que o
público detenha o objeto.
Figura 7 - Livro manuscrito em tinta preta encontrado preso ao pescoço de um homem negro abolicionista morto
durante a insurreição dos malês na Bahia em 1835. Fonte: Museu Afro Brasil (2006).
30
Figura 8 - Paulo Nazareth. “Cadernos de projetos dedicado a cidade de Veneza”. 2013. Disponível em:
<http://projectomultiplo.blogspot.com>. Acesso em: 22 out. 2019.
31
(KILOMBA, 2016). Por meio do uso da palavra, o colonizador impõe sua cultura, sua
cosmologia, seus modos de viver, portanto, o uso não normativo da língua sugere a
desestabilização da língua como dispositivo de controle.
Ao apropriar-se das línguas hegemônicas, Paulo Nazareth produz um gesto de subversão
da linguagem que desloca essas línguas de seu estatuto universal e colonizador. Da experiência
coletiva em que os sujeitos colonizados são desenraizados de suas línguas nativas, o artista
encontra substrato para propor reorganizações da linguagem, dos corpos e das individualidades.
Como sujeito colonizado pela língua portuguesa, Paulo Nazareth recebe esse idioma
como sua língua nativa, ao passo que é desestimulado de se comunicar por meio dos diversos
idiomas originários no território brasileiro desde antes da colonização, e mesmo os idiomas
africanos transplantados para o Brasil. O mesmo acontece com os demais: a língua inglesa que
no processo de globalização se impõe como “idioma universal”; o espanhol que se apresenta
como uma barreira linguística que impede nossa identificação total como América Latina e o
francês que também participa dos processos de colonização no continente africano. A atitude é
de se aproximar das línguas para desestabilizá-las de seu lugar de pureza e hegemonia. A escrita
torna-se um espaço de disputa em que o artista se coloca como propositor.
33
Figura 9 - Paulo Nazareth. “CA- projet:magez la terre - OUIDAH / BENIN - RJ / BRASIL”, Ouidah, Rio de
Janeiro, 2013. Imagem digital. Disponível em: <http://cadernosdeafrica.blogspot.com>. Acesso em: 12 abr.
2019.
34
“Antes de mim vieram muitos y depois de mim há outros tantos”: ancestralidade africana,
continuidade e rupturas
Ao declarar “Eu não ando sozinho, antes de mim vieram muito y depois de mim há
outros tantos” (figura 10) Paulo Nazareth expressa que a sua trajetória não existe sem aqueles
que o antecederam, seus ancestrais, e que ele mesmo um dia se tornará ancestral daqueles que
virão. Portanto, o artista compreende que é preciso reverenciar os ancestrais e, assim como a
dimensão da palavra, a noção de ancestralidade também impõe uma responsabilidade com a
vida coletiva.
De acordo com Oliveira22 (2003), a ancestralidade é um elemento criador de unidade
nas culturas africanas atualizada nas culturas negras afro-brasileiras no processo que
conhecemos como diáspora negra desde os empreendimentos coloniais e escravocratas datados
do início do século XVI. Essa realidade cultural produz uma relação responsável pelo
fortalecimento e continuidade da experiência negra fora do continente africano, que,
configurando-se como arma política, forma um conjunto de representações constantemente
acionadas para construções políticas e sociais (OLIVEIRA, 2007. p. 257). Como uma categoria
universal compartilhada por todos os sujeitos e comunidades independente da origem
(OLIVEIRA, 2009), privilegiarei a ancestralidade africana acionada como uma categoria
analítica que possibilitará uma análise dos trabalhos de Paulo Nazareth e dessa marca em sua
trajetória23.
Oliveira (2009) observa que a categoria ancestralidade não está necessariamente
relacionada aos aspectos de consanguinidade, visto que o escravismo europeu tratou de destituir
os laços de parentesco originários em sua tentativa de apagar a memória e genealogia africana.
É bem verdade que a ancestralidade se configura como um valor civilizatório que dá sentido à
experiência negra em comunidade encontrando a memória coletiva como fio condutor. No
22
No livro Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente (2003), Oliveira parte
de uma análise macrossociológica de três grandes impérios africanos - Mali, Songai e Gana - a fim de identificar
elementos estruturantes dessas sociedades, de modo a produzir a noção de uma cosmovisão africana que, mesmo
em suas particularidades, atravessa a predominância das sociedades africanas e se reatualiza no Brasil.
23 Há que se lembrar sempre da ancestralidade indígena-borun e também europeia de Paulo Nazareth, pois essas
bagagens são constantemente rememoradas pelo artista. No entanto, diante das escolhas teóricas desta pesquisa,
que privilegia em grande parte o pensamento afro-referenciado, a ancestralidade negra do artista será mais bem
aprofundada e relacionada com as reflexões teóricas aqui apresentadas.
35
contexto das comunidades religiosas de matriz africana, por exemplo, o candomblé, ela se torna
um princípio regulador de práticas e representações comunitárias24 (SODRÉ, 2017).
Para Leite (1996, p. 110) a ancestralidade africana opera como um fundamento histórico
material e concreto capaz de organizar a sociedade cuja ação realiza-se em torno da totalidade
dos aspectos da vida cotidiana, sejam elas materiais ou imateriais, tais como as dinâmicas de
espaço e tempo, produção de difusão de conhecimento, configurações parentais e comunitárias,
relações entre as pessoas, natureza e sociedade, etc. A ancestralidade é, portanto, o território
por meio do qual ocorrem todas as trocas, sejam elas de ordem simbólica, sígnicas, materiais,
linguísticas, entre outras (OLIVEIRA, 2007, p. 257).
Diante de uma visão um pouco racionalista da ancestralidade, Oliveira (2003; 2007,
2009) observa que a experiência africana não fragmenta os diferentes aspectos da vida – o
sagrado, o profano, o imaterial, o material, a comunidade, o indivíduo. Não existe
distanciamento entre a condição humana e a natureza, o que promove uma interação constante
entre todos os elementos que compõe o universo africano. A ancestralidade, ao mesmo tempo
em que ocupa o espaço do sagrado, participa da vida dos seus descendentes e por isso manifesta-
se também no mundo profano, demandando a necessidade de uma observação total da vida para
a sua compreensão.
A ancestral Nazareth de Jesus é frequentemente evocada por Paulo Nazareth como a
responsável por sua transformação em sujeito de arte e que auxilia o artista a fazer uma leitura
do passado e do presente. Em uma dessas ocasiões ela é convocada para a criação de uma carta
de “autodeclaração de homem negro afro-indígena/afro-borun” (figura 10). Antes que Paulo
Nazareth apresente-se como tal, presta reverências a Exu e Oyá25, divindades que no trabalho,
passam a constituir sua personalidade e trajetória26. A partir daí vão se delinear os outros
sentidos que atribui à sua condição mestiça que se inicia com sua ancestral de linhagem
materna. Ela é descrita como uma mulher indígena de origem borun27 que teve seu percurso de
vida interrompido diante de uma internação compulsória no Hospital Colônia de Barbacena,
24
Com alguma frequência o candomblé será citado nessa dissertação, pois essa experiência do sagrado é uma das
que sintetiza de maneira mais eficaz as relações comunitárias e a cosmovisão africana na diáspora. É também no
repertório sagrado de origem nagô que Paulo Nazareth busca boa parte de suas referências.
25 Oyá, também chamada por Iansã, é orixá de temperamento forte, dona dos ventos e tempestades. Segundo
Sàlámì e Ribeiro (2011, p. 78), está associada a origem mítica do rio Niger, o mais longo do continente africano,
atravessando Mali, Benim e Nigéria.
26 Neste panfleto, Paulo Nazareth se apresenta como filho de Elegua (Exu) e também de Oyá. Ao longo do segundo
capítulo retomaremos com mais atenção a relação do artista com Exu. Essa aproximação também será expressa no
capítulo terceiro por meio de sua própria fala.
27
Nome pelo qual se autodenominavam os indígenas que habitavam o entorno do Rio Doce, curso de água que
banha os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Também são conhecidos como krenak.
36
parte de uma grande experiência de violência institucional e de Estado que ficou conhecida
como “holocausto brasileiro”. Neste panfleto ele associa a internação compulsória da avó à
perseguição religiosa que ela teria sofrido por ser candomblecista.
Em outros escritos, Nazareth de Jesus aparece como uma mulher insubmissa e por isso
teria sido internada. Sua história é repetida diversas vezes, variando alguns elementos, como
uma suposta promessa feita ao diabo, que posteriormente dá lugar a uma relação com Exu. A
narrativa de Paulo Nazareth no trabalho Auto Declaração De Homem Negro Afro-Indígena /
Afro-Borum Ao Olho Que Nada Veh (figura 10) produz uma imagem do que é ser um homem
negro afro-indígena de acordo com as posições do artista. Essa imagem estaria atrelada a uma
vivência com o sagrado de matriz africana, fundamental para o seu estar no mundo e também
em seus laços de consanguinidade, marcados por uma violenta ruptura.
Os elementos da história de Nazareth de Jesus transformados e remanejados ao longo
das narrações e buscas de Paulo Nazareth mostram a tentativa de criar uma história a partir de
retalhos terceirizados de memória. Nazareth fora internada ainda nos primeiros meses de
infância de sua filha Ana – mãe de Paulo – e o artista narra que o último registro que se tem da
avó é o de entrada no Hospital (figura 14 e figura 15). Após isso, supõe que tenha falecido
devido às condições desumanas às quais os internos eram submetidos na Colônia. Por isso, a
história apresenta algumas contradições e disjunções na tentativa de Paulo Nazareth em
escrever uma história que seja capaz de suprir a lacuna deixada pela a ancestral. Tendo sua vida
interrompida, Nazareth de Jesus também não teve a chance de ser velada por seus familiares e
entes próximos, o que Paulo Nazareth tentará resolver em projetos posteriores.
37
Figura 10 - Paulo Nazareth. “Auto Declaração De Homem Negro Afro-Indígena / Afro-Borum Ao Olho Que
Nada Veh.” Brasil, 2017. Impressão sobre papel jornal, 21 x 14,8. Acervo da pesquisadora (coletado em
exposição).
38
Figura 11 - Jaime Lauriano. “Calimba #2”, Brasil, 2016. Manchetes de jornais eletrônicos brasileiros gravadas a
laser e a fogo sobre chapa de compensado naval 30 x 260 x 4 cm (30 x 50 x 4 cm cada - total 5 peças).
Disponível em: <jaimelauriano.com>. Acesso em: 21 out. 2019.
39
Paulo Nazareth ressalta uma ruptura violenta com sua ancestral como uma marca em
sua trajetória que se expressa em sua corporeidade. Essa é uma questão cara também a artistas
como Jaime Lauriano. A série Calimba #2 (figura 11) apresenta narrativas de dor e violência
para traçar um perfil que, neste trabalho, não é o perfil do homem negro, como no caso de Paulo
Nazareth em Auto Declaração De Homem Negro Afro-Indígena / Afro-Borum Ao Olho Que
Nada Veh (figura 10), mas o perfil ou o cenário da violência direcionada a corpos negros no
Brasil. Lauriano se apropria de uma série de manchetes de reportagens que relatam situações
de linchamentos cometidas publicamente por “populares” a homens negros identificados como
suspeitos de crimes. O artista expressa que o Estado não detém o monopólio da violência, que
na verdade seria capilarizada e compartilhada por toda a sociedade nesses frequentes episódios
de linchamento público. A técnica de gravação a laser e fogo sobre a madeira remete também
às marcações a ferro quente nos corpos de homens e mulheres escravizadas no período colonial.
Não há como distanciar este trabalho de proposições como a de Lorna Simpson e da Frente 3
de Fevereiro, apresentadas no início deste capítulo.
Ainda sobre a violência como uma marca nas trajetórias negras, Eustáquio Neves, na
série Memória Black Maria (figura 13) se refere as violências físicas sofridas pelas pessoas
vitimadas pela escravidão. As marcas de açoite retratadas em fotografias como The Scourged
Back (figura 12) convertem-se em marcas de resistência sem que haja qualquer romantização
ou suavização das agruras do escravismo. Neves escolhe relembrar a memória mítica de Zumbi
dos Palmares, líder da resistência quilombola no Quilombo dos Palmares por meio da
manipulação de uma fotografia feita pelo artista. O fotógrafo intervém fisicamente na fotografia
durante o processo de revelação e a palavra “Zumbi” aparece na pele do personagem
fotografado como se fossem luzes projetadas. A marca do fotógrafo não é violenta, mas sutil
ao apresentar a resistência, e não a violência, como determinante para a constituição de uma
identidade negra pós-escravidão.
40
Figura 12 - The McPherson & Oliver. “The Scourged Back”. Lousiana, 1863. 8,7 x 5,5 cm. Disponível em
<https://www.metmuseum.org>
Figura 13 - Eustáquio Neves. "Sem título" da Série Memória Black Maria, Brasil, 1995. Gelatina/prata
tonalizada. 30,8 x 22,8 cm (37,5 x 27,8 cm). Disponível em: <https://colecaopirellimasp.art.br>. Acesso em: 22
out. 2019.
As memórias da escravidão são utilizadas como artifício por Neves e Lauriano para
reverenciar os ancestrais, buscando nessas referências as possibilidades de compreensão das
problemáticas do tempo presente e invenção de modos de resistência. Sacralizada e
materializada, a ancestralidade é uma via de interpretação e produção da realidade, pois, ao
mesmo tempo, é “enigma-mistério e revelação-profecia” (OLIVEIRA, 2007, p. 257). Por isso,
a ancestralidade em sua relação com o sagrado demanda uma ritualização. Os ancestrais devem
ser alimentados como se alimenta a terra, a natureza e as demais divindades. Sendo natureza
divinizada, a comunidade se fortalece na medida em que fortalece seus ancestrais (ibid. p. 266).
Pedra fundamental da sua cosmovisão, o culto aos antepassados sintetiza os elementos
estruturantes das sociedades africanas, já que é no passado “[...] que residem as respostas para
os mistérios do tempo presente. É no passado que está toda a sabedoria dos ancestrais. Somente
no passado o africano encontra sua identidade” (OLIVEIRA, 2003, p. 47). Por meio do
sacrifício – ou seja, da reverência –, as gerações passadas tornam-se contemporâneas (HAMA;
KI-ZERBO, 2010, p. 25). A preservação de sua memória e a constante reminiscência
41
materializa sua presença na vida dos descendentes. O olhar prospectivo orientado pelo passado
cria as bases para a continuidade coletiva.
De acordo com a filósofa Sobonfu Somé (2003, p. 26), entre o povo Dagara28, os
ancestrais são também chamados de “espíritos” e, na sua condição, adquirem a capacidade de
observar o mundo invisível imaterial e o visível material, podendo enxergar os/nos três regimes
de tempo: passado, presente e futuro. Segundo a autora, os espíritos ancestrais servem como
olhos para os descendentes, pois têm uma visão que cruza dimensões, capazes inclusive de
enxergar a interioridade dos sujeitos. Esse poder dá-lhes a sabedoria necessária para ajudar a
direcionar a trajetória de quem segue em vida.
Ao convocar o espírito de sua avó para a elaboração de sua biografia, Paulo Nazareth
marca a presença constantemente atualizada do ancestral em seu cotidiano. Impossibilitado de
dar as devidas condições para que Nazareth de Jesus pudesse fazer o trânsito para o tempo dos
ancestrais, o artista eleva-a ao status de ancestral divinizado ao mesmo tempo em que incorpora
uma identidade de sujeito de arte. Por meio do trabalho, Paulo Nazareth ritualiza sua relação
com a ancestral, ao passo que sua energia diluída com a morte se organiza em torno de sua
corporeidade na medida em que é constantemente alimentada pelo trabalho29.
A morte para o africano representa uma condição de passagem tão importante quanto o
nascimento (LEITE, 1992, 1996; SANTOS, 2012). De acordo com Sodré (2017, p. 116), a
memória ancestral perpetuada possibilita que os ancestrais participem da corporeidade coletiva
na medida em que sua identidade é partilhada pelo grupo a que pertence, repercutindo nos vivos
como linguagem corporal. Por isso, a morte física não representa irreversibilidade ou
estratificação, ainda que seja uma ruptura. Devido a sua importância, os ritos devem ser
executados com cuidado e atenção, pois não representam mera despedida, mas a consolidação
de uma nova condição.
Para Leite (1996) a morte significa uma ruptura e desestabilização, porém não é
incontornável. É desestabilizadora, pois a energia vital onde se encontram os elementos
constitutivos do ser humano no interior do corpo se dissolvem. Devido à participação da energia
28 Os Dagara são um grupo étnico proveniente do norte de Gana e sul de Burkina Faso.
29
A ritualização e a reverência aos ancestrais fortalece o axé comunitário e individual. De acordo com Sàlámí e
Ribeiro (2011, p. 43), a manutenção dessa energia é o que garante a existência saudável do sujeito e da comunidade.
Seu acúmulo converte-se física e socialmente em poder, prosperidade e realização, ao passo que seu esgotamento
significa doença física, espiritual e outras adversidades. Dessa maneira, tudo o que se faça e experimente demanda
axé.
42
vital em todos os âmbitos da realidade, a morte exerce uma interferência na organização social,
pois a perda de um ente pode demandar inclusive a reorganização de papéis sociais na
comunidade (ibid., p. 109). De acordo com o autor, é necessariamente o rito fúnebre que virá a
reorganizar e restabelecer o equilíbrio e que distribuirá a energia vital do falecido e passará a
alimentar a comunidade.
Oliveira (2003) destaca a necessidade de execução do rito de passagem para que se
efetive a condição de ancestral a um ente que faleceu. De acordo com cada tradição, esse rito é
o que possibilitará o retorno do ente como novo membro da família em próxima geração, ou
permanecerá no tempo do sagrado como ancestral divinizado presente na vida dos
descendentes. Por este motivo as cerimônias são tanto ritos de passagem quanto de
permanência, pois delas nascem os ancestrais (LEITE, 1996, p. 110).
De acordo com Nei Lopes (2005), entre os iorubás, os ritos funerários podem durar
semanas e envolvem diversos membros da comunidade, principalmente a família do morto. O
objetivo é produzir um estado de bem-estar para o ente que se foi, consequentemente,
garantindo o bem-estar da família que ficou. Se o morto ficar satisfeito com as suas
homenagens, ele não voltará para atormentar a família. Em sua complexidade, cada etapa do
rito pode variar de acordo com as circunstâncias da morte ou da posição social do morto.
Na primeira página do caderno Right to Funeral (figura 14) Paulo Nazareth reconhece
a importância do rito mortuário, afirmando que após um parente, amigo ou ente querido ser
levado pela morte, espera-se que sejam feitas cerimônias, religiosas ou não, para que haja uma
despedida entre aqueles que foram e aqueles que ficaram30. Esse trabalho começa na 3ª Bienal
da Bahia (2014) e convém contextualizá-lo.
Em 2014, a convite da curadora Ana Pato, Paulo Nazareth ingressa no grupo de artistas
que compõem o projeto curatorial Arquivo e Ficção, da 3ª Bienal da Bahia, realizada no
Arquivo Público do Estado da Bahia. O grupo de trabalho ao qual Nazareth estava inserido
esteve imerso no acervo do Museu Antropológico e Etnográfico Estácio de Lima em Salvador.
De acordo com Pato, o encontro com o acervo da instituição revelou uma diversidade de objetos
30
O texto original diz “it is expected that after death takes a relative, friend or other loved one, one makes this
one a ceremony [religious or not] so that there is a farewell between those who remain alive and the deceased”
(NAZARETH, 2015, p. 01).
43
O acervo representou para Paulo Nazareth “[...] um campo rico para a pesquisa em
andamento do artista, imbuído de problematizar temas como a exclusão e o racismo a partir de
uma escritura que mistura fatos biográficos, como sua descendência indígena, negra e europeia,
e fatos históricos, como a escravidão e a ditadura [...]” (PATO, 2015, p. 132). A partir daí,
inicia-se a busca para propiciar os ritos mortuários necessários para a passagem e permanência
de pessoas negras e indígenas, mortos e esquecidos no Museu que, destituídos de identificação,
somavam apenas “corpos” no acervo: as múmias, caveiras e ossadas às quais Pato (ibid., p. 126)
se refere. O artista comenta31 que sua intenção foi tecer um diálogo com aqueles mortos,
personificá-los, respeitá-los e reverenciá-los. No caderno Direito ao Funeral, Nazareth
descreve as ações que seriam executadas durante o trabalho na Bienal, algumas delas registradas
em vídeos32 que passaram a compor as instalações na mostra.
Após a sua consideração sobre a importância do funeral, Paulo Nazareth prossegue
destacando os aspectos políticos e históricos e os avanços industriais implicados nas mortes de
grupos indígenas brasileiros: “the construction of the vitoria do espirito santo [victory of the
holy spirit] railroad, Minas Gerais (MG), caused the death of hundreds of kren [borun , bruns ,
krenacs , Aymorés] indigenous peoples, hit by the train” (figura 14). A narrativa que evoca a
imagem do avanço das ferrovias como causa de morte entre os indígenas é usada como artifício
para novamente rememorar a internação de Nazareth de Jesus, possivelmente transportada pelo
“Crazy Train”33 ao Hospital Colônia de Barbacena.
31
Fonte: 3ª BIENAL DA BAHIA. Catálogo da 3ª Bienal da Bahia: Jornal dos 100 dias. Edição Única, Salvador:
3ª Bienal da Bahia, 2014. Disponível em: <https://issuu.com/bienaldabahia/docs/jornal_100_dias_small>. Acesso
em: 11 abr. 2019.
32
Reitero que a importância para a minha análise está nas imagens produzidas pelo texto do artista e não
necessariamente nas imagens das ações do trabalho, visto que o texto não opera como mera descrição de ações ou
roteiro a ser seguido, mas como produção narrativa autônoma. Para ver um destes registros, seguir: Paulo Nazareth,
Antropologia do negro I, 2014. Disponível em: <https://vimeo.com/106514864>. Acesso em: 26 abr. 2019.
33
“Trem de doido” é como ficou popularmente conhecido o trem que transportava os internos à Colônia de
Barbacena.
44
Paulo Nazareth escreve que tratamentos similares a que Hitler impunha aos judeus nos
campos de concentração ainda existem para “mulheres e homens indígenas, negros e outros
grupos historicamente silenciados no Brasil” ao se referir às condições dos internos do Hospital
(figura 14). As figuras que abrem o texto mostram o momento em que um corpo de um homem
judeu é introduzido em uma fornalha de um campo de concentração nazista, produzindo um
paralelo entre o holocausto na Alemanha e o “holocausto brasileiro”.
Não há qualquer outra menção a situação alemã no restante do caderno, mas o artista
procura contextualizar a experiência brasileira para o público estrangeiro, como no fragmento
que diz: “[I think Lucy would have walked by where I live]34 the Belo Horizonte, this capital
would be born as Cidade de Minas, based in a transition zone between rainforest south and
cerrado [like savanna] north where I stay different landscapes and very close to each other --
--------” (figura 15). O cerrado brasileiro e a savana africana são unidades biológicas distintas,
mas que, aproximados no texto, podem oferecer ao estrangeiro uma noção equivalente da
imagem que o artista pretende criar do contexto brasileiro.
Nesse e em outros textos de Paulo Nazareth, vemos a repetição de sinais gráficos como
hifens, travessões e underlines conectando uma frase à outra. Tais sinais produzem uma
sensação de continuidade e ao mesmo tempo, de interrupções no discurso, que podem ser mais
ou menos longas, como uma fala embargada, pausada, de quem mobiliza uma narrativa com
conteúdos difíceis de serem expressos.
34
Fragmento de texto da página anterior do caderno.
45
Figura 14 - Paulo Nazareth. “Right to Funeral”. Berlim, Santa Luzia, 2014/2015 (detalhe do caderno). Acervo da
pesquisadora (cortesia do artista).
46
Figura 15 - Paulo Nazareth. “Right to Funeral”. Berlim, Santa Luzia, 2014/2015 (detalhe do caderno). Acervo da
pesquisadora (cortesia do artista).
47
Figura 16 - Arthur Bispo do Rosário. “Uma Obra Tão Importante que Levou 1986 Anos para ser escrita..”, sem
data. Tecido, linha e madeira, 256 x 75 cm. Disponível em:
<https://issuu.com/sescsp/docs/sesc_jundiai_os_penelope_bispo_do_r>. Acesso em: 03 out. 2019.
Figura 17 - Arthur Bispo do Rosário. "Uma Obra Tão Importante que Levou 1986 Anos para ser escrita..”
(Detalhe), sem data. Disponível em: <http://rpmcriticando.blogspot.com>. Acesso em: 03 out. 2019.
Vale a pena olhar para o texto de Paulo Nazareth ao lado de trabalhos como o de Arthur
Bispo do Rosário que, assim como Nazareth de Jesus, também foi interno de um hospital
psiquiátrico, desta vez, no Rio de Janeiro. No objeto Uma Obra Tão Importante que Levou
1986 Anos para ser escrita.. (figura 16) Bispo do Rosário apropria-se do texto de uma peça
publicitária que anuncia o lançamento de uma obra literária que conta a história de vida de Jesus
Cristo. Ao reescrever o anúncio e bordar o texto em tecido, a obra que levou 1986 anos para ser
escrita se confunde com o trabalho do artista elaborado a partir de uma escrita e composição
minuciosas que, assim como a textualidade de Paulo Nazareth, apresenta repetições e
interrupções, mesmo que deem a sensação de maior velocidade da narrativa. A técnica utilizada
por Bispo do Rosário é uma possibilidade de incorporar o gesto da escrita no trabalho.
O bordado como forma de escrita está presente também no trabalho de Janaína Barros
que desenvolve pesquisa sobre as interseções entre gênero e raça e constrói seus “bordados
afetivos” que expressam suas interpretações a respeito da condição de vida das mulheres negras
no Brasil. Na série Psicanálise do Cafuné (figura 18 e figura 19), Barros investiga as relações
domésticas de cuidado que conformam as mulheres negras ao estereótipo “mãe preta” que
zelam principalmente pelos filhos do senhor ou do patrão em detrimento da própria prole. Essa
48
é uma herança colonial que a artista tensiona e busca rever em sua pesquisa. No trabalho que
vemos, a artista refaz a narrativa sobre o cuidado e centraliza a atenção para as necessidades
das mulheres negras. O cuidado direcionado ao outro converte-se em um cuidado de si. Janaína
borda na barra de um vestido rosa uma receita de banho para o amor, que pode muito ser para
o amor próprio, ao invés do amor do outro. Assim como Paulo Nazareth em Direito ao Funeral,
Janaína Barros atribui ao ritual uma possibilidade de cuidado e manutenção do bem-estar e da
vida do sujeito.
Figura 18 - Janaina Barros. “Psicanálise do Cafuné: sobre remendos, afetos e territórios [Banho para o amor].
Objeto. Costura e bordado, tecido em malha e renda. 36 x 53 x 88 cm. Fonte: Viana (2018)
Figura 19 - Janaina Barros. “Psicanálise do Cafuné: sobre remendos, afetos e territórios [Banho para o amor].
Objeto. Costura e bordado, tecido em malha e renda. (Detalhe) 36 x 53 x 88 cm. Fonte: Viana (2018)
espíritos que vagueiam no museu. O movimento é algo semelhante a uma tentativa de reparação
histórica em que o artista tenta restituir o bem-estar dos mortos.
Ao pensar os “lugares sociais dos ossos encontrados no Museu”, Paulo Nazareth diz que
o trabalho foi uma encomenda feita pelos eguns35 e espíritos dos mestiços presentes naquele
espaço (figura 15). Nesse texto Nazareth apresenta um conjunto de ações que podem ser lidos
como a articulação de um posicionamento ético em relação ao espaço. Descreve: “to note the
meetings I have with eguns [ancestral spirits] - to record imagens and to sound of conversations
I have with eguns [ancestral spirits] --------------------to meet eguns [ancestral spirits] and
know about the death that these portend for me” (figura 15).
O trabalho de investigação ocorre tanto no Brasil quanto no continente africano. Sua
busca pelos mortos resulta em um projeto no qual o contato físico abre a comunicação: “projeto:
deixar que meu corpo tombado se encoste nos fosseis de pretos novos nos cemiterios de valas
comuns no bairro de Gamboa - cais do Valungo - cidade do Rio de Janeiro / Brasil” (figura
20). O caso é de produção de um paralelo desta que é uma realidade presente também no
continente africano: “deixar que meu corpo tombado se encoste nos fosseis de pretos
escravizados nos cemiterios de valas comuns na cidade de Lagos / Nigeria” (figura 20). A
descrição segue também em inglês e francês.
O trabalho conduz o artista para a criação de outro, dessa vez destinado ao Museu
Estácio de Lima (figura 21). O projeto de ação que sugere empilhar sobre a sua cabeça os
crânios dos mortos negros e nordestinos encontrados no museu aponta essa tentativa de
comunicação que extrapola o verbo e sucede a presença corporificada no espaço. “levar em
minha cabeça as cabeças dos negros de Africa e Bahia” (figura 21) significa também carregar
em sua consciência a memória daqueles sujeitos. Se o corpo é o lugar da violência máxima que
resulta em interrupção da vida, parece ser ele também uma via possível de emancipação. O
corpo do artista apresenta a possibilidade de descarregar os fósseis e o espaço positivando a
energia vital outrora diluída. Juntos, os trabalhos apresentam uma ligação traumática que tem
seu lugar no corpo e nos trânsitos atlânticos.
Figura 20 - Paulo Nazareth. “Sem título”. Cotonou, Rio de Janeiro, 2013. Imagem digital. Disponível em:
<http://cadernosdeafrica.blogspot.com>. Acesso em: 12 abr. 2019.
51
Figura 21 - Paulo Nazareth. “Panfletos 03”. Salvador, 2014. Imagem digital. Disponível em:
<http://cadernosdeafrica.blogspot.com>. Acesso em: 12 abr. 2019.
52
36
A designação brasileira “nagô” define diversos grupos provenientes como os Kétu, Sabe, Òyó, Ègbá, Ègbado,
Ijesa, Ijibu, do Sul e do Centro do Daomé e do Sudoeste da Nigéria, uma região conhecida como “Yoru baland”
(SANTOS, 2012). De acordo com Santos (2012, p. 28-29), “o termo Nàgô no Brasil acabou por ser aplicado
coletivamente a todos esses grupos vinculador por uma língua comum [...]. Do mesmo que em suas regiões de
origem todos se consideram descendentes de um único progenitor mitológico Odùduwà, emigrantes de um mítico
lugar de origem, Ilé Ifé” (grifos da autora).
37 Iku é a representação da Morte para os iorubás.
53
litografia (figura 24). O projeto descarrega o corpo do sujeito das mediações simbólicas em
torno da experiência corporal que regula os sentidos e suas apreensões a partir da linear relação
entre olho e cérebro e que se materializa em um discurso de representação que sustentam as
dicotomias sujeito/objeto, corpo/alma, corpo/sujeito (SODRÉ, 1997). Mesmo que Paulo
Nazareth não se coloque como personagem no trabalho, ele reconhece no mito uma
possibilidade de entendimento e apreensão do mundo e mostra a sua preocupação em buscar no
mito, na divindade e, portanto, na ancestralidade uma via de fortalecimento do sujeito.
Em ambos os casos, o mito e, por conseguinte, a ancestralidade aparecem como um
“regime geral de referenciação” (OLIVEIRA, 2007, p. 256) que oferece mecanismos de
produção de potência de vida assentada em ensinamentos ancestrais, posto que reveste de
sentido os seus projetos. De acordo com Oliveira (ibid., p. 277), o mito oferece para os
descendentes de africanos um manancial para a reestruturação das diversas formas de vida e
produções identitárias encontradas e possibilitadas pela diáspora. É uma busca também por
aprendizado e autonomia, afinal, o encontro de Paulo Nazareth com o mito de Oxalá produziu
um repertório que propiciou criar uma estratégia de recuperação da própria trajetória e daqueles
que necessitavam de sua assistência: os espíritos do pátio do Museu do Crime.
Leite (1996, p. 110) postula que como um princípio histórico, a ancestralidade alcança
amplitude necessária para explicar as relações dos sujeitos com o sagrado e as divindades. Além
dos homens e das mulheres que viveram em terra – os ancestrais históricos –, as divindades
sagradas estão intimamente ligadas à vida material e à organização da realidade. Uma via de
revelação da presença das divindades como ancestrais está nos mitos. De acordo com Oliveira
(2009), é na forma narrativa dos mitos que as culturas africanas encerram seus conhecimentos.
Segundo o autor, o mito representa uma cosmogonia e uma cosmologia, posto que não explica
apenas a origem do universo – a cosmogonia –, mas também sintetiza sua cosmologia na medida
em que organiza um repertório cultural e produz significado sobre ele.
54
Figura 22 - Paulo Nazareth. “Panfleto 01”. Salvador, 2014. Imagem digital. Disponível em:
<http://cadernosdeafrica.blogspot.com>. Acesso em: 12 abr. 2019.
55
Figura 23 - Paulo Nazareth. “Sem título”. Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, 2013. Imagem digital.
Disponível em: <http://cadernosdeafrica.blogspot.com>. Acesso em: 12 abr. 2019.
56
Figura 24 - Maria Magdalena Campos-Pons. "Sem título". 1999. Litografia e pasta de papel. Dimensões não
especificadas. Disponível em: <https://www.moma.org>. Acesso em: 03 out. 2019.
Até agora vimos como Paulo Nazareth se forja como personagem de seu trabalho por
meio da escrita. Sem qualquer tentativa de fixidez ou aprisionamentos, é possível elaborar quais
identidades são resultantes dos processos que o artista compartilha em suas narrativas. No texto
A Categoria Político-Cultural de Amefricanidade, Gonzalez (1988) propõe essa que é uma
categoria importante para interpretar a formação histórico-cultural brasileira, sem se distanciar
das conexões existentes com o continente africano nem subestimar sua localização no
continente americano.
A autora argumenta que a categoria amefricanidade tem a possibilidade de diluir as
fronteiras territoriais, linguísticas e ideológicas entre as Américas do Sul, Central e Norte, sem
deixar de lado suas bases referenciais africanas que formam cada território – como o caso dos
iorubá, banto e ewe-fon38 no Brasil – bem como os povos originários ameríndios, cuja
consequência está na construção de uma outra identidade étnica. Quando Paulo Nazareth
escreve sua “Auto Declaração De Homem Negro Afro-Indígena / Afro-Borum” (figura 10) é
disto que se trata, da construção de uma identidade amefricana que está inserida nesta
38Refere-se aos povos que no Brasil passaram a constituir o grupo jêje. Seus antecedentes ocupavam as regiões
de Togo, Gana e Benim, referentes ao antigo Daomé.
57
encruzilhada entre África, América e também Europa. Como vimos em seu panfleto, o artista
relembra sua filiação espiritual ao reverenciar os orixás Exu e Oyá para resgatar sua ascendência
indígena por meio da avó borun. Esse movimento faz com que Paulo Nazareth ocupe,
simultaneamente, posições diversas e que podem ser mais ou menos marcadas a medida em que
o artista se desloca.
Mesmo Nazareth de Jesus é uma personagem em continua tessitura. Ela, frequentemente
assinalada como uma mulher indígena-borum-krenak, também foi descrita por Paulo Nazareth
como uma mulher mestiça ao ser questionado, “Mas Nazareth era negra?” (NAZARETH, 2019,
p. 23). O artista passa a descrevê-la como filha de uma mistura, de um lugar não definido (ibid.)
que a ele é permitido investigar e especular. Ambos são simultaneamente refeitos no processo
de criação de Paulo Nazareth. As origens do artista, acionadas de maneira mais genérica ou
específica do que outras, indicam diferentes modos de pertencimento que, difusos, são parte da
produção coletiva da diáspora negra e dos trânsitos migratórios. São experiências que só fazem
sentido nas particularidades latino-americanas e negras, encontrando lugar na proposição de
Gonzalez (1988).
Como já apresentado anteriormente, as reflexões em torno do pretoguês (GONZALEZ,
1988; 1984) encontram na obra de Paulo Nazareth uma possibilidade de expansão do conceito,
ao passo que o pretoguês deixa de significar apenas uma característica de produção coletiva da
linguagem do colonizador e passa a ser incorporado como uma estratégia de produção de
narrativa. Gonzalez (1988; 1984) nos apresenta essa possibilidade de alargamento do pretoguês
usado como uma ferramenta de comunicação que propicia uma ruptura com as normas da
linguagem e viabiliza o alcance do discurso para diversos estratos sociais.
A autora contextualiza a produção de uma neurose cultural brasileira (GONZALEZ,
1984 p. 214) que tem o racismo como sintoma que, por meio desse, estabelece lugares sociais
estratificados. Fazendo um exercício paralelo à Carolina Maria de Jesus em Quarto de Despejo,
a autora afirma que diante dos processos de exclusão, os negros se encontram na lata de lixo da
sociedade brasileira (ibid., p. 225) para logo em seguida anunciar categoricamente que agora
“o lixo vai falar, e numa boa” 39 (ibid.).
39
Em apresentação no IV Encontro Anual da Associação Brasileira de Pós-graduação e Pesquisa nas Ciências
Sociais (ANPOCS) de 1980, Gonzalez relata um caso que foi disparador para a proposição de sua comunicação.
No relato da autora, as tensões raciais na academia se tornaram mais uma vez evidentes em um episódio em que
um grupo de pesquisadores e ativistas negros são convidados “[...] por uns brancos muito legais [...]”
(GONZALEZ, 1984, p. 223) a participar como espectadores em uma festa, um “[...] negócio de livro sobre a gente
[...]” (ibid.). O episódio termina em violência simbólica, verbal e física quando as pessoas negras presentes
resolvem desalojar-se do lugar de observação passiva e, de maneira autônoma, tomar para si o poder da fala.
58
Nos trabalhos discutidos neste capítulo, Paulo Nazareth “fala numa boa” ao lançar mão
das estratégias de comunicação oriundas do interior dos grupos negros aos quais pertence; ao
escrever, por exemplo, em inglês para alemães – como no caso do caderno Right to Funeral –
sem qualquer rigidez gramatical, preocupando-se apenas com os sentidos que a sua escrita
produz. Paulo Nazareth traz no gesto da escrita as marcas de sua origem e ancestralidade, o
poder animador da palavra.
A escritora Conceição Evaristo (2005) costuma dizer que sua escrita é um acúmulo de
tudo o que ouviu desde a infância, entre palavras, histórias, sons e murmúrios que habitavam
sua casa e o entorno. A autora traz a imagem de infância em que sua mãe, escrevendo-
desenhando um sol com um graveto sobre o barro do quintal, marca o solo com uma solicitação
e escrever se torna um gesto que mobiliza todo o corpo e também o espírito. A grafia passa a
ser uma incorporação que atinge dimensões ritualísticas. Nesse movimento, a palavra reivindica
uma imagem.
Mãe se abaixava, mas antes cuidadosamente ajuntava e enrolava a saia, para prendê-
la entre as coxas e o ventre. E de cócoras, com parte do corpo quase alisando a
umidade do chão, ela desenhava um grande sol, cheio de infinitas pernas. Era um
gesto solene, que acontecia sempre acompanhado pelo olhar e pela postura cúmplice
das filhas, eu e minhas irmãs, todas nós ainda meninas. Era um ritual de uma escrita
composta de múltiplos gestos, em que todo corpo dela se movimentava e não só os
dedos. E os nossos corpos também, que se deslocavam no espaço acompanhando os
passos de mãe em direção à página-chão em que o sol seria escrito. Aquele gesto de
movimento-grafia era uma simpatia para chamar o sol. Fazia-se a estrela no chão.
(EVARISTO, 2005, n.p)
O que há de aparente na escrita de Paulo Nazareth, observável nos trabalhos até então
discutidos, é a produção de uma reminiscência em que as memórias partidas pelas violências
coloniais, de Estado e pela diáspora produzem uma nova teia de realidade, que, no lugar da
autoficção, resultam em uma narrativa autoral que confere autenticidade ao seu discurso, na
medida em que produz uma imagem coerente, não como verossimilhança, mas em seu valor de
poesia na criação de paisagens no interior do observador. Um exemplo é a mobilização
constante da história de vida e morte de Nazareth de Jesus que se refaz a cada vez que é relatada.
Se as memórias são terceirizadas e fragmentárias, o artista faz o esforço poético de
combinar os retalhos para criar uma colcha narrativa que seja coerente para si. O artista se
apropria de histórias individuais e coletivas de dores e violências que poderiam causar
imobilidade, mas, como dito por Oliveira (2003), a relação privilegiada com o ancestral produz
59
descobria também que não bastava saber ler e assinar o nome. Da leitura era preciso
tirar outra sabedoria. Era preciso autorizar o texto da própria vida, assim como era
preciso ajudar a construir a história dos seus. E que era preciso continuar decifrando
nos vestígios do tempo os sentidos de tudo que ficara para trás. E perceber que por
baixo da assinatura do próprio punho, outras letras e marcas havia. A vida era um
tempo misturado do antes-agora-depois-e-do-depois-ainda. A vida era mistura de
todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser
(EVARISTO, 2017a, p. 110).
Figura 25 (epígrafe) - Napê Rocha. Desenho digital sobre fotografia “CA -- rua - palmital - sant L - MG / BR”
de Paulo Nazareth, 2019.
63
2. A GRAFIA-DESENHO DA ENCRUZILHADA
40 Ver: <http://cadernosdeafrica.blogspot.com>.
41
Aqui, refiro-me à página do projeto Cadernos de África. Ver: <http://cadernosdeafrica.blogspot.com>.
64
violências, mas para Paulo Nazareth a rua é um lugar de potências e representa uma escolha
poética que viabiliza o encontro com o outro.
A fotografia CA _ c _ bola na rua Cruz Vermelha _ RJ / BRASIL (figura 26) revela a
rua como esse campo de possibilidades. Na fotografia, vemos uma das vias de acesso à Praça
da Cruz Vermelha no Centro do Rio de Janeiro que, comumente tomada de carros, dá espaço
ao jogo e transforma-se em campo de futebol, lugar de disputa e palco da ginga dos meninos
jogadores. A chuteira nos pés do menino em primeiro plano e a bola nas mãos do garoto ao
fundo da fotografia são pontos de ancoragem que se conectam. O tracejado branco, como ponto
riscado de giz de pemba42 conduz o olhar à praça central, imponente encruzilhada no Centro da
cidade, no limite do bairro da Lapa, lugar esse que representa uma grande mística em torno do
que se conhece nas religiões afro-brasileiras como “o povo da rua”43, entidades da umbanda
que têm sua história ligada ao orixá Exu. A partir de então, a encruzilhada, que não pode mais
ser vista pelo observador, passa a ser uma especulação que ocupa o lugar da imaginação e da
imaterialidade.
Nas fotografias presentes em Cadernos de África, as encruzilhadas posam, protagonistas
ou coadjuvantes, nas cenas. A fotografia CA - rua - rio de janeiro-RJ – BRASIL (figura 28)
demanda que a observadora complete seu traçado. No entanto, existe de maneira independente
a quem olha. A encruzilhada é autônoma. Pois bem que nessa fotografia temos a encruzilhada
em dupla dimensão: a visível, com aquilo que podemos ver na configuração espacial das ruas
e calçadas, e a não visível, que nos coloca como agentes criadores da imagem. Adiante veremos
também como essas duas instâncias – o material e o imaterial – participam na formulação desse
conceito.
42
O giz de pemba é um material mineral utilizado em ritos de candomblé e umbanda. Sua utilização varia de
acordo com as necessidades litúrgicas e tem sido apropriada por artistas contemporâneos como Jaime Lauriano
(1985-) em sua série de grandes desenhos em que cartografa a violência colonialista europeia em África e no
Brasil.
43
De acordo com tradição das macumbas brasileiras, o chamado “povo da rua”, são aquelas entidades, espíritos
desencarnados que trabalham com os médiuns e tem sua história e origem relacionadas à Exu, divindade dos
candomblés de nação Ketu, pois este orixá também está associado às ruas e encruzilhadas. Por vezes, compartilha
o nome, como Exu Caveira e Exu Tranca-Rua, mas também se personificam em entidades femininas, as conhecidas
Pombogiras.
65
Figura 26 - Paulo Nazareth. “CA _ c _ bola na rua Cruz Vermelha _ RJ / BRASIL”, Rio de Janeiro, sem data
informada. Disponível em: <http://cadernosdeafrica.blogspot.com> Acesso em: 12 jul. 2019.
66
Figura 27 - Paulo Nazareth. “CA - rua - rio de janeiro-RJ - BRASIL”, Rio de Janeiro, sem data informada.
Disponível em: <http://cadernosdeafrica.blogspot.com> Acesso em: 12 jul. 2019.
67
Figura 28 - Tiago Sant’ana. “Atravessando Estácio”, Rio de Janeiro, 2016. Disponível em:
<https://tiagosantanaarte.com/2016/08/15/atravessando-estacio/> Acesso em: 18 jul. 2019.
68
Figura 29 - Jaime Lauriano, “Pontos”, 2015. Desenho das rotas de tráfico negreiro feito com pemba branca (giz
usado em rituais de Umbanda), dimensões variáveis. Disponível em: <https://pt.jaimelauriano.com/pontos>.
Acesso em: 02 out. 2019.
Figura 30 - Maria Auxiliadora, título não identificado. 1969, dimensões não identificadas. Autoria: Moisés
Patrício. Imagem cedida pelo autor.
De acordo com Santos (2012, p. 191), Exu coordena à esquerda dos caminhos
controlando a entrada e saída de todo os tráfegos. Sem que seja necessário adentrar em aspectos
práticos das diferentes liturgias que se ancoram no culto a Exu – pois não é este o objetivo dessa
dissertação –, vejamos um mito iorubá que permite-nos compreender o porquê desta relação
entre a devoção ao orixá e a arquitetura da encruzilhada, que levará também a um entendimento
da relação da fotografia de Paulo Nazareth com essa espacialidade.
Conta-se44 que Exu perambulava pelo mundo sem afazeres, ao que passou a ir à casa de
Oxalá, o criador dos seres humanos. Enquanto Oxalá fabricava os humanos, Exu observava e
aprendia, sem nada perguntar. Durante dezesseis anos aprendeu, em silêncio, tudo o que pode.
Oxalá estava muito ocupado esculpindo, mas recebia muitas visitas que iam entregar-lhe
oferendas e, por esse motivo, pediu para que Exu se colocasse na encruzilhada e recebesse os
ebós em seu nome. Em troca, poderia ficar com uma parte daquilo que deixassem. Por isso,
ninguém pode passar pela encruzilhada sem prestar reverências à Exu.
Esse mito descreve como Exu passou a receber a primazia das oferendas, tornando-se o
responsável por fazer a transposição do ebó entre o ayié e o oṛ̀ un. O ebó é uma das maneiras de
estabelecer contato com as divindades, por isso Exu é responsável pela comunicação entre os
planos materiais e imateriais da existência. Se, como dito por Santos (2012), o ebó é a maneira
pela qual a dinâmica do sistema nagô se mantém em movimento, a comunicação parece ser um
aspecto fundamental para a continuidade coletiva e individual.
44
Ìtàn coletado no livro Mitologia dos Orixás (PRANDI, 2001).
70
45
Mogobe Ramose (2011) traz a noção de “pluriversalidade” em oposição à ideia de “universalidade” da filosofia
ocidental, que se pretende unívoca e totalizante. Para o autor, a ideia de pluriversalidade compreende a elaboração
filosófica e discursiva de diversos pontos de vistas em que não há uma centralidade ou primazia de posições.
72
Ao traçar como seus objetivos “saber o que há de Brasil em África, e o que há de África
em Brasil”, Paulo Nazareth exercita a alteridade na medida em que coloca estas duas paisagens
para agir simultaneamente de modo a construir as imagens duais a que Martins (1997) se refere.
Por isso, o espelhamento dá a tônica do seu trabalho. Nesse jogo de posicionamento de imagens,
saltam não só as similitudes, mas também as contradições. A encruzilhada como ferramenta de
análise nos permite construir aproximações e distanciamentos, ao passo que as contradições
não são um risco, mas uma possibilidade de invenção e produção de deslocamentos perceptivos.
Na fotografia CA -bon soir- cotonou / Benin (figura 26), Paulo Nazareth posa ao lado
de um homem sentado em uma motocicleta, provavelmente um de seus guias-informantes na
cidade de Cotonou, no Benim. O que dá indícios dessa colaboração são os registros em
movimento nos vídeos trois personne -- pnac/ltda46 (2013) e agudah : paulo nazareth - arte
contemporanea / ltda47 (2013). Na imagem seguinte (figura 31) o artista posa junto de outros
homens em uma borracharia no bairro São Benedito, na periferia de Belo Horizonte. O ambiente
adornado por calotas de carro e o veículo da primeira foto sugerem a transitoriedade e os fluxos
que promovem os encontros registrados em fotografia.
Na fotografia CA -bon soir- cotonou / Benin (figura 31), vemos a combinação de
múltiplos contrastes que se agregam: as vestimentas claras e escuras de Nazareth e seu
informante se ajustam e se opõe. Da mesma maneira, o céu, profundamente escuro, faz saltar
aos olhos as edificações e o chão em primeiro plano. Neste lugar estrangeiro, de fato, os
contrastes estão em evidência e as diferenças parecem ser algo que o artista escolhe valorizar.
46
Nesse vídeo, Paulo Nazareth faz um passeio com mais duas pessoas em cima de uma motocicleta, na cidade de
Cotonou. Ver https://www.youtube.com/watch?v=kuJqC1Jqvdw
47
Nesse vídeo, Paulo Nazareth executa a ação “comer um punho de terra na porta do não-retorno”. Para ler a
discussão sobre o trabalho, conferir o capítulo 1. Vídeo disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=rxERsxeILfQ>
73
Figura 31 - Paulo Nazareth. “CA -bon soir- cotonou / Benin”, Cotonou, sem data informada. Disponível em:
<http://cadernosdeafrica.blogspot.com> Acesso em: 25 jul. 2019.
74
Figura 32 - Paulo Nazareth. “Sem título”, Belo Horizonte, 2012. Disponível em:
<http://cadernosdeafrica.blogspot.com> Acesso em: 25 jul. 2019.
75
Na fotografia em que Paulo Nazareth está “em casa”, no São Benedito (figura 32),
vemos a uniformidade dos tons de cinza, e o conforto também se traduz pela familiaridade com
que os homens da borracharia encaram a câmera que registra a cena; ambos sorriem em direção
a lente. Essa imagem não sugere qualquer estranhamento entre o artista e o ambiente ou entre
os sujeitos fotografados.
Se uma das estratégias colonialistas de dominação dos povos colonizados é atribuir-lhes
uma falsa homogeneidade e desfazer as singularidades – os diversos povos originários do
continente africano tornam-se, genericamente, “africanos” e as diferentes nações diluem-se em
uma “África” descaracterizada –, as fotografias de Paulo Nazareth ressaltam a multiplicidade
dos homens negros no Brasil e no continente africano. O corpo de Paulo Nazareth surge como
um ponto fixo onde a condição relacional das corporeidades negras pode ser percebida sem que
o corpo do artista seja fixado como modelo ideal.
Essa é uma preocupação de Paulo Nazareth desde Notícias de América, como vemos
em seu projeto Cara de índio (figura 33) em que, durante sua viagem pelo continente latino-
americano, o artista se coloca a buscar feições indígenas e mestiças que pudessem ser
comparadas com a sua, de modo a elaborar aproximações e distanciamentos, produzindo um
olhar sobre si e sobre o outro.
76
Figura 33 - Paulo Nazareth. “Cara de índio”, Minas Gerais, 2011. Imagem digital. Disponível em:
<http://latinamericanotice.blogspot.com/>. Acesso em: 23 out. 2019.
77
Um tema que se repete entre as fotografias da série Cadernos de África são as imagens
de salões de beleza. Os salões afro representam um lugar de retomada das identidades negras,
na medida em que o cabelo constitui uma marca da diferença racial e passa a ser controlado por
meio de tentativas de adequação à padrões estéticos de beleza euro-referenciados. O penteado
black power ou a popularização das práticas de transição capilar entre mulheres negras
corporificam uma tomada de atitude frente a este regime estético.
De acordo com a pesquisadora Nilma Lino Gomes (2011), essas práticas revelam a
articulação do que a autora chama de “saberes estéticos/corpóreos”, fruto dos debates e
formulações dos movimentos negros organizados. Os saberes estéticos/corpóreos são pensados
a partir das potencialidades do corpo em movimento e da superação das visões exóticas e
eróticas em torno dos caracteres que marcam os corpos das pessoas negras, como os cabelos
crespos, por exemplo. Nesse bojo, o cabelo black power engendra questões estéticas e políticas.
A composição das fotografias CA -salao cris - rio de janeiro-RJ / BRASIL (figura 34) e
CA- salao bellos - cotonou / Benin (figura 35) mostram uma despreocupação formal do artista.
O ponto de vista do fotógrafo na primeira imagem e a ausência de foco na segunda evidenciam
a fugacidade no ato do registro presentes na fotografia amadora, por exemplo. As imagens
apontam para a velocidade de um transeunte que passa em frente ao objeto a ser fotografado,
mas não parece ter tempo para adequar suas imagens a certos parâmetros estéticos, ou os ignora.
Essa é uma característica que aproxima seus registros das fotografias de viagem como artifício
para narrar seus deslocamentos. Há uma tensão entre a velocidade do ato fotográfico e a
permanência do registro. A preocupação de Paulo Nazareth parece mais a de tornar visível e
narrar do que construir uma imagem que obedeça a qualquer parâmetro ou convenção da
linguagem fotográfica tradicional. A tensão que se evidencia, desta vez, não é entre as duas
imagens, mas entre sua fotografia e os parâmetros normativos do que se esperaria de um registro
bem-sucedido.
78
Figura 34 - Paulo Nazareth. “CA -salao cris - rio de janeiro-RJ / BRASIL”, Rio de Janeiro, sem data informada.
Disponível em: <http://cadernosdeafrica.blogspot.com> Acesso em: 11 ago. 2019.
79
Figura 35 - Paulo Nazareth. “CA- salao bellos - cotonou / Benin”, Cotonou, sem data informada. Disponível em:
<http://cadernosdeafrica.blogspot.com> Acesso em: 11 ago. 2019.
80
Os regimes estéticos também são antigas preocupações de Paulo Nazareth, como revela
o panfleto Qué ficar bunito ? (figura 37) de 2005 que, apesar da temática, não compõe o projeto
Cadernos de África que só teve início em 2012. Neste trabalho, mais do que discutir a produção
de padrões estéticos, o artista descreve um processo de embranquecimento, a começar pelo
cabelo e que culmina em uma aniquilação do sujeito negro ao tornar-se “bunito” nos parâmetros
europeus, afastando-se o máximo possível daquilo que o caracterizaria como sujeito negro e
apagando sua memória de origem. A questão não está apenas em uma mudança de aparência,
mas na própria possibilidade – ou impossibilidade – de existência em um território hostil e em
uma sociedade desigual. Sendo o negro um elemento indesejável, “manda-se para fora” como
descreve o anúncio do salão de beleza “DE BÉsTI BIRìFUU”.
Neste panfleto Paulo Nazareth apropria-se de uma foto de estúdio feita pelo fotógrafo
açoriano José Christiano Júnior que descreve um “escravo de nação africana Cabinda” (figura
36) mas que não o caracteriza como sujeito singular, apenas como objeto; não sabemos seu
nome. A fotografia de Christiano Júnior ficou conhecida no Brasil e ao redor do mundo por
representar os tipos sociais e raciais presentes no Brasil oitocentista. Em seu estúdio o fotógrafo
fez uma série retratos de africanos de diferentes nações e explorados como escravos de ganho
que trabalhavam na cidade do Rio de Janeiro, todos como modelos sem qualquer singularidade;
objetos como eram assim considerados.
Figura 36 - José Christiano Júnior. “Escravo de Nação Africana Cabinda”, 1865. Albúmen e cartão de visita.
Sem dimensões especificadas. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br>. Acesso em 23 out. 2019.
81
Figura 37 - Paulo Nazareth. “Qué ficar bunito ?”, 2005. Imagem digital. Disponível em:
<http://artecontemporanealtda.blogspot.com/>. Acesso em: 23 out. 2019.
82
48 De acordo com Sàlámì e Ribeiro (2011, p. 67), Oxóssi é um orixá caçador, intimamente ligado às matas e, por
isso, associado às capacidades de intuição, percepção e estratégia.
49 Ogum, de acordo com Sàlámì e Ribeiro (2011, p. 65), é “a divindade do ferro, da guerra e da caça, é patrono de
ferreiros, caçadores, agricultores, guerreiros [...]. É também um orixá que defende os homens e lhes dá o senso de
autodefesa”.
50
Festa de culto aos Voduns que ocorre anualmente. Voduns são divindades do povo do Daomé que se atualiza
no Brasil como candomblé de nação Jeje. A festa anual dos Voduns no Benim é uma tradicional celebração que
reúne famílias e seus ancestrais divinizados – os Voduns – em uma celebração pública que acontece principalmente
na cidade de Ouidah. Martins (1997) recorda que os africanos não vieram sós para o Brasil. Com os ancestrais,
vieram divindades, modos diversos de visão de mundo, cosmologias, alteridade religiosa e diferentes formas de
simbolização do real. Note-se que a ideia de uma “matriz africana” nos cultos não indica que as práticas são as
mesmas, aqui e lá. A diáspora criou nos africanos e em seus descendentes necessidades particulares de organização
de seus cultos. A umbanda é uma manifestação da religiosidade afro-brasileira, isto é, é resultado do cruzamento
de práticas religiosas originárias do Brasil e também do catolicismo – por isso, sintetiza bem a noção de
encruzilhada.
51 A cena também é registrada em movimento, no vídeo chanson de vodou (2013) disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=R7XnFcu9Zvc>.
83
Figura 38 - Paulo Nazareth. “CA_ terreiro maria conga de aruanda_estacio _ rj _ RJ / Brasil”, Rio de Janeiro,
sem data informada. Disponível em: <http://cadernosdeafrica.blogspot.com> Acesso em: 11 ago. 2019.
84
Figura 39 - Paulo Nazareth. “CA -jour de vodu- 03 - Uidá / Benim”, Ouidah, sem data informada. Disponível
em: <http://cadernosdeafrica.blogspot.com> Acesso em: 11 ago. 2019.
85
Figura 40 - Paulo Nazareth. “The Encyclopedic Palace”, Veneza, 2013. Disponível em:
<http://www.mendeswooddm.com>. Acesso em: 07 nov. 2019.
87
[...] não se refere à substância da carne humana como entidade pessoal e interiorizada,
mas como uma ''máquina'' de conexão das intensidades num plano imanente ao grupo.
Num sujeito coletivo, como é o caso do grupo, corporeidade é a coleção dos atributos
de potência e ação, diferente dos atributos individuais, do mesmo modo que um grupo
é diferente de seus membros constitutivos (SODRÉ, 2017, p. 106).
Sodré (2017, p. 118) descreve que nessa visão sistêmica o corpo apresenta seu duplo
em outra dimensão da existência. Para a concepção nagô, os seres que vivem no mundo visível
– o aiyé – têm sua contraparte no mundo invisível – o oṛ̀ un – onde vivem todos os seres que
também existem no mundo material, porém destituídos de corpo. Essa duplicidade nos interessa
pelo o que já elaboramos a respeito da produção de imagens duais que o olhar através da
encruzilhada possibilita e também pelo binômio arquivo-arma postulado pelo antropólogo Julio
Tavares (2012).
Para Tavares (2012, p. 17), a corporeidade é entendida como um “conjunto de
dispositivos disparados na constituição da consciência e da ação dos sujeitos”. Segundo o autor,
o corpo negro mesmo diante dos processos desumanos de exploração, conserva-se como um
88
Figura 41 - Paulo Nazareth. “CA- para eternizar a imagem de minha mae - belo horizonte - MG / BRASIL” Belo
Horizonte, sem data informada. Disponível em: <http://cadernosdeafrica.blogspot.com> Acesso em: 07 dez.
2019.
90
Figura 42 - Paulo Nazareth. “CA -white - belo horizonte-MG / BRASIL” Belo Horizonte, sem data informada.
Disponível em: <http://cadernosdeafrica.blogspot.com> Acesso em: 07 dez. 2019.
91
Assim como Exu habita a encruzilhada e desta maneira, ativa esse território a partir de
seus próprios caracteres, Ifá (SANTOS, 2012, p. 141) afirma que cada sujeito no mundo tem
seu próprio Exu individual em seu corpo, pois se não tivesse não poderia existir como sujeito,
não teria ciência da própria individualidade. O que tivemos a chance de explorar até então,
como características da encruzilhada, seus aspectos dissonantes, conflituosos e disjuntivos,
expressam-se também na corporeidade de Paulo Nazareth, na medida em que seu corpo é
atravessado por origens diversas que se aglutinaram a partir do conflito de diferentes
proveniências.
No capítulo anterior vimos como o artista articula suas origens europeias, negras e
indígenas para a elaboração de uma identidade amefricana que continua a ser inacabada mesmo
em sua aparente “resolução”. Nesse sentido, o corpo-arquivo se expressa na corporeidade do
artista que, por meio da sua poética, mantem e reatualiza os aspectos das culturas originárias
nas quais o artista está inserido e que, como estratégia de resistência política e física, expressam-
se também na dimensão bélica do corpo.
Martins (1997, p. 28), ao descrever a encruzilhada como um operador conceitual,
afirma que ela evidencia os cruzamentos discursivos intertextuais e interculturais que resultam
nas noções de sujeito híbrido, mestiço e liminar. Ao colocar seu corpo em paralelo a outros
corpos, olhar suas feições através de outras feições, como nas imagens capturadas no Benim
(figura 31), São Benedito (figura 32) e no projeto Cara de Índio (figura 33), Paulo Nazareth
assume que sua corporeidade pode ser constantemente reelaborada por meio do contato com o
outro e que essa é, de fato, uma contingência necessária para sua criação contínua.
Essa trama de constituições é descrita por Martins (1997) como resultado da diáspora
negra em que se inscreveram nos corpos africanos os códigos linguísticos, filosóficos,
religiosos, culturais e visões de mundo do colonizador europeu. No entanto, em vista da
dinâmica da encruzilhada, tais códigos entrecruzaram-se com os dos africanos, anteriores à
colonização e também com os dos povos originários no Brasil. Incapaz de apagar a
multifacetada constituição simbólica instauradora da alteridade do corpo africano, ela torna-se
visível no trabalho de Paulo Nazareth e nas corporeidades que o artista mobiliza em sua poética.
[...] e aí começa uma espiral na cozinha de minha casa, né. Palmital, São Benedito,
descobrindo a existência dessa África que começa na cozinha, né. E aí vai nessa
espiral pelo Palmital, São Benedito e a região de Santa Luzia, Lagoa Santa.
[...] é uma espiral que vai se agrandando até o continente africano. Aí descobrindo
essa relação, né. Uma das questões: o que existe de África em minha casa e o que
existe de minha casa em África.
92
O fragmento que apresento acima é uma pequena porção da conversa que tive com Paulo
Nazareth em novembro de 2018. De saída, ao ser questionado por mim sobre o que motivou o
início de seu percurso em Cadernos de África, o artista apresenta sua ideia de uma espiral como
um local de partida e de chegada, bastante relacionada à noção que elaboramos da encruzilhada
como um lugar de trânsitos e convergências. O continente africano e a sua casa no Palmital são
pontos conectados por essa espiral.
Há um provérbio iorubá que diz: “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou
hoje”. Esse aforismo serve-nos para pensar na possibilidade de uma quebra da crença na
linearidade absoluta do tempo e que também explora, em alguma medida, uma mobilidade
poética e filosófica de trânsito nos regimes de tempo. De acordo com Sodré (2017, p.187), a
ação de Exu, ao lançar a pedra de hoje no pássaro de ontem, força o presente para transitar em
direção ao passado. A pedra e também aquele que a jogou estão posicionados no meio da ação
entre os dois tempos. Para o autor, uma interpretação que supõe como possível essa articulação
só existe em uma concepção de tempo em que o passado, o presente e o futuro não se
contradizem e, por força de uma ação, podem vir a ser simultâneos.
Essa ideia pode também ser representada pelo Sankofa (figura 43), símbolo Adinkra54,
em que sua representação gráfica é a de um pássaro cuja cabeça volta-se para trás e pega um
ovo posicionado em suas costas. A figura-provérbio sintetiza um ensinamento que diz que não
devemos nos constranger em voltar uma parte de caminho para buscar algo que foi esquecido
e, a partir de então, seguir em frente. Mais uma vez, a ancestralidade como elemento que orienta
um modo de ser e estar no mundo africano parece possibilitar a coexistência entre os tempos.
De acordo com Martins (2002, p.82), “[...] a primazia do movimento ancestral, fonte de
inspiração, matiza as curvas de uma temporalidade espiralada, na qual os eventos, desvestidos
de uma cronologia linear, estão em um processo de uma perene transformação”.
54 O Adrinkra é um complexo sistema simbólico de origem Akan, grupo étnico proveniente do Gana e da Costa
do Marfim. Este sistema organiza uma série de ensinamentos morais e filosóficos em formas de provérbios
sintetizados em símbolos gráficos.
93
Durante as viagens que compõe o projeto Cadernos de África Paulo Nazareth executou
uma série de ações em quatro vídeos que mostram sua relação cíclica e mítica com o tempo
registrados em Belo Horizonte (figura 44 e figura 46) Maputo (Moçambique, figura 45) e
Cotonou (Benim, figura 47). A motivação do artista parte da história contada de que, durante
os sequestros, os africanos vitimados pelas empreitadas escravagistas eram forçados por seus
captores a andar repetidas vezes em volta de uma árvore – conhecida como Árvore do
Esquecimento55 – para que, dessa maneira, os africanos se esquecessem o caminho de casa e
seus nomes – pois seriam batizados com nomes cristãos –, destituindo-se de suas memórias de
origem. A ação ritual do artista, que consiste em dar repetidas voltas de costas em uma árvore
é uma tentativa de reaver as memórias perdidas, recuperar suas origens e genealogia, lembrar o
caminho de casa. A ação representa também uma busca do artista por este lugar mítico e de
alguma maneira, irrecuperável.
Sodré (2017) salienta que essa atitude retrospectiva em relação ao tempo não indica uma
orientação moral ao passado, mas sugere que há sempre uma abertura de possibilidades nas
narrativas que podem ser desencadeadas por meio de uma ação que promove uma
transformação: a pedrada de hoje que altera o ontem. Desse modo, acredita-se na reversibilidade
das coisas, “isso quer dizer que o acontecimento manifesta-se inaugurando algo novo no
presente, mas numa dinâmica de retrospecção (o passado que se modifica) e de prospecção, que
se dá no ‘tornar possível’” (ibid., p. 187). A ação de Paulo Nazareth não altera materialmente o
passado, tampouco apaga as marcas do sequestro, mas é parte de um gesto de transformação
sua biografia que consiste na recuperação da memória orientada para o futuro em sua busca por
suas origens africanas.
55 Na localidade conhecida como “Costa dos Escravos” de onde foram sequestrados milhões de africanos, foi
inaugurado em 1995 pela Unesco no Forte São João de Ouidah (Benim) um memorial com monumentos que
representam as marcas do tráfico negreiro, como uma escultura da Árvore do Esquecimento e do Portal do Não
Retorno voltado para o oceano Atlântico. Atualmente o Forte abriga o Museu Histórico do Benin.
94
Figura 44 - Paulo Nazareth. “Cine Brasil”, Belo Horizonte, Minas Gerais, 2012. Frame de vídeo. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=QthqlXMRHlk> . Acesso em: 07 dez. 2019
Figura 45 - Paulo Nazareth. “Cine África”, Maputo, Moçambique 2012-2013. Frame de vídeo. Disponível em:
<https://vimeo.com/199739736>. Acesso em: 23 out. 2019.
95
Figura 46 - Paulo Nazareth. “Ipê Amarelo”, Belo Horizonte, Minas Gerais, 2012-2013. Frame de vídeo.
Disponível em: <https://vimeo.com/199738536>. Acesso em: 23 out. 2019.
Figura 47 - Paulo Nazareth. “L’arbre d’Oublier [Árvore do Esquecimento]”, Cotonou, Benim, 2013. Frame de
vídeo. Disponível em: <https://vimeo.com/199736235>. Acesso em: 23 out. 2019.
96
Para seguir o traçado da espiral como figura conceitual, analisaremos brevemente uma
imagem do interior do Òkòtó (figura 48), espécie de caracol a qual Exu está associado no culto
ao orixá. De acordo com Santos (2012, p. 143), o Òkòtó simboliza um processo de crescimento,
na medida em que sintetiza uma evolução constante e proporcional em uma cadência
harmoniosa, evidenciada em sua história calcificada. Na imagem observa-se, não uma
sobreposição das camadas que constroem as espirais, mas uma combinação que edifica sua
estrutura.
Figura 48 - Processo de crescimento do Òkòtó, caracol símbolo de Exu. Fonte: Santos (2012).
Nesse sentido, pode-se aferir que a espiral e a encruzilhada atuam como impulsos
combinados. Ilustrado pelo Òkòtó e narrado pelo provérbio de Exu, vemos que os elementos
que compõe a trajetória, os eventos, não se sobrepõem uns aos outros e a tendência é a abertura
ao infinito. Em sua vocação ao perene, contraditoriamente, a espiral apresenta também uma
condição inacabada em elaboração contínua em direção à permanência.
A espiral, portanto, pode ser entendida como o modo sob o qual o tempo e a narrativa
se comportam no interior da encruzilhada. Ajustadas, elas possibilitam a criação de uma diegese
maleável, fruto dos tempos do “antes-agora-depois-e-do-depois-ainda” (EVARISTO, 2017a),
afinal, Exu, como resultado, “[...] representa o passado, o presente, e o futuro sem nenhuma
contradição” (SANTOS, 2012, p. 185). A espiral gestada na encruzilhada a escapa; a
97
encruzilhada é seu domínio, mas não impõe limites. Sem começo ou fim facilmente
discerníveis, presta-se à comunicação e criação de uma forma terceira de narrar. Não parece
equivoco dizer que a ponte que leva Paulo Nazareth do Palmital até o continente africano e de
lá, até o Palmital novamente, é uma linha sinuosa e vertiginosa do tempo, em sua potência
poética de reinvenção do passado.
Katia Canton (2009) propõe as narrativas enviesadas como o conceito para compreender
as proposições de artistas a partir da década de 1990 cuja produção narrativa elabora-se a partir
de composições fragmentárias que operam influenciados por diferentes regimes de tempo e
recusam resoluções e linearidade absolutas.
As práticas contemporâneas, segundo Canton (2009, p. 35), estão preenchidas dos
aspectos totais da vida, como as relações com o corpo, o tempo, a memória, o lugar, e a tônica
reside na produção de espelhamentos entre essas questões cotidianas e a arte. Os jogos de
relações desses diferentes aspectos tendem a esfacelar as noções rígidas de linearidade, dando
lugar ao que chama de narrativas enviesadas.
A autora prossegue com seu argumento e diz que diante das exposições a exaustivos
estímulos e mídias, incorporam-se “[...] sobreposições, fragmentações, repetições,
simultaneidade de tempo-espaço – enfim, todo o jogo que pode fornecer elementos para criação
de uma obra de sentido aberto, que se constrói durante a relação com o outro, com o público,
com o leitor, com o observador” (CANTON, 2009, p. 37).
Nesse bojo estão trabalhos como o de Carrie Mae Weems que, na série Kitchen Table
(figura 49), trata da rotina íntima de uma mulher negra ao narrar situações cotidianas colocando
para apreciação pública elementos da vida privada. O conjunto de imagens trazem momentos
particulares dessa mulher com seu companheiro, sua filha, suas amigas, e consigo mesma.
Mesmo que a disposição das imagens lado a lado insinue uma linearidade na narrativa, existem
vácuos, lacunas a serem preenchidas pelo observador.
A organização e alterações dos elementos que compõe o cenário da cozinha, como a
gaiola de pássaro, a fotografia de Malcom X e os quadros nas paredes, todos nos planos de
fundo, induzem o observador a imaginar uma temporalidade mais alongada do que supõe a
organização ligeira quadro a quadro e que sugere também transformações no cotidiano
doméstico de Carrie Mae. O que aparece centralizado são os personagens, mas eles não
acomodam toda a narrativa, por isso cada evento parece autônomo; não há nitidez sobre o que
leva um acontecimento ao outro. O que vemos são resoluções inacabadas.
98
Figura 49 - Carrie Mae Weems. “The Kitchen Table Series”, 1990. Disponível em: <http://carriemaeweems.net>
Acesso em: 11 ago. 2019.
56
Este ìtàn me foi narrado pela primeira vez pela coorientadora desta pesquisa, a iyalorixá, educadora e contadora
de histórias Profª. Drª. Kiusam Regina de Oliveira no dia 27 de fevereiro de 2019 em uma reunião de orientação.
100
para, desse modo, fazer um inventário das necessidades humanas. Oxum57, no entanto, não quis
sair da cachoeira, Iemanjá58 sequer pensou na possibilidade de ir pra longe das águas salgadas
do mar, Ossain59 permaneceu recolhido nas matas e, assim por diante, nenhum dos orixás
aceitou a tarefa dada por Oxalá, apenas Exu. Exu, habitante das ruas, colocou-se a viajar por
todo o mundo, conversando com cada humano que encontrava pelo caminho. Durante a longa
viagem, com o passar dos tempos, percebeu que as queixas humanas já começavam a se repetir,
o que indicava que seu trabalho havia sido concluído. Assim, voltou ao encontro de Oxalá e
narrou toda sua viagem.
Esse mito traduz a narração como proveniente de um exercício de coleta e a atividade
de narrar que consiste na faculdade de intercambiar experiências. Daí, vemos a eficácia da
mobilidade exercida por Paulo Nazareth em sua elaboração narrativa, produto de suas próprias
andanças pela América Latina e por África. A série de fotografias publicadas em PAULO
NAZARETH ARTE CONTEMPORÂNEA / LTDA60 reúne registros de Benim, Zimbábue, África
do Sul, Brasil, Moçambique, entre outros países pelos quais passou. O gesto artesanal
empreendido pelo artista que consiste na coleta e reorganização dos elementos coletado de
forma a compor sua própria a narrativa é também uma via reatualização do mito.
Para a cultura nagô, a forma narrativa, intrinsecamente relacionada com as dimensões
físicas e imateriais da palavra e da oralidade, representa uma via de manutenção da memória,
bem como de perpetuação de conhecimentos ancestrais. O ìtàn61 que acabo de narrar traz a ideia
do deslocamento como fundamental para a atividade do narrador; é preciso colher histórias para
narrá-las. Essa forma narrativa é também o modo pelo qual se mantém o dinamismo dos
ensinamentos ancestrais. Afinal de contas, “a relação [...] entre o ouvinte e o narrador é
dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado” (BENJAMIN, 1987, p. 210).
57 De acordo com Sàlámí e Ribeiro (2011, p. 76), “Oxum é a Senhora dos rios, dos metais nobres, da fertilidade,
da prosperidade, da sensualidade, da sexualidade e do amor”.
58 De acordo com Sàlámí e Ribeiro (2011, p. 75), senhora das águas, Mãe dos filhos-peixes, Iemanjá está
do axé da flora e seu patrono, detém a força de preservação do axé do mundo vegetal e torna efetivo seu poder de
ação”.
60 Refiro-me ao blog que corresponde ao projeto Cadernos de África.
61
De acordo com Santos (2012, p. 57), “A palavra Nàgô itàn designa não só qualquer tipo de conto, mas também
essencialmente, os itàn àtowódówó, histórias de tempos imemoriais, mitos, recitações, transmitidos oralmente de
uma geração à outra, particularmente pelos babaláwo, sacerdotes do oráculo Ifá. Os ìtàn-Ifá estão compreendidos
nos duzentos e cinquenta e seis “volumes” ou signos, chamados Odù, divididos em “capítulos”, denominados ese
(grifos da autora)”.
101
O corpus literário de Ifá62 condensa as narrativas que organizam o sentido e o meio deste
sistema. De acordo com Sàlámì e Ribeiro (2011, p. 225), o Odù Corpus exibe função
integradora na sociedade iorubá, posto que estabelece regras e orienta ações por meio de um
conjunto de conhecimentos esotéricos e históricos.
Cada Odù significa, então, um “capítulo” deste vasto corpo literário. Associados a eles,
estão os èse, pequenos poemas onde residem os conhecimentos diversos, entre história,
geografia, filosofia e política, parâmetros éticos e morais, valores e virtudes a serem consultados
(SÀLÁMÌ e RIBEIRO, 2011). No entanto, o domínio destes conhecimentos demanda uma
especialização. Os babaláwo63, iniciados nos conhecimentos de Orunmilá, são aqueles
preparados tanto para a consulta, quanto para a interpretação das narrativas.
Sàlámì e Ribeiro (2011, p. 230), admitem que o Odù Corpus é um sistema aberto e em
contínua expansão, visto que agrega os eventos ocorridos nas trajetórias dos grupos ou
indivíduos que se organizam em torno do sistema. Os fatos ocorridos passam a ser narrados
como metáforas que, novamente, servem de substrato para a organização coletiva e
conhecimento individual. Nesta lógica há um jogo de mediação entre as normas ancestrais e os
eventos contemporâneos. Em igual sentido, importa também esse temperamento inacabado,
agregador e particular que essa condição narrativa contém.
Neste momento, parece ser possível articular a produção de uma noção particular de
narrativa que, influenciada pela proposição acerca das narrativas enviesadas de Canton (2009)
e após estabelecer diálogo entre Benjamin (1987) e Hampaté Bâ (2010), aproxima-se do mito
e do ritmo das narrativas tradicionais, como o Odù Corpus.
62
De acordo o Sàlámí e Ribeiro (2011, p. 60), Òrúnmìlà, Òrúnmìlà-Ifá, Ifá, a divindade oracular dos iorubás, é
respeitado por sua sabedoria. “A palavra Òrúnmìlà designa a divindade, enquanto a palavra Ifá designa,
simultaneamente, a divindade e o sistema divinatório a ele associado” (grifos dos autores).
63
Segundo Sàlámí e Ribeiro (2011, p. 225) os babaláwo são os “pais do segredo”, sacerdotes de Orunmilá,
preparados desde a infância para consultar, interpretar e transmitir os conhecimentos de Ifá.
102
De acordo com Maria Eliza Borges (2011, p.88), “os relatos de viagens nos remetem
ao tema da construção da memória coletiva, no qual os pares lembrar/esquecer e
identidade/alteridade funcionam como janelas a orientar o olhar do viajante”. A partir desses
modelos de orientação o viajante-narrador será capaz de articular e organizar os fragmentos das
viagens de modo a compor sua narrativa de maneira coerente com seus interesses.
Os interesses do narrador fazem parte do repertório cultural e afetivo que o viajante
carrega consigo; são as suas bagagens. Borges (2011) nomeia este repertório de “espelho
cultural”, ou seja, o modo como o viajante olha para a sua cultura e para a cultura do outro. A
partir destes valores é que o viajante narra sua viagem. Há que se pensar que, diante do espelho,
o viajante olha sempre a si mesmo em diferentes paisagens, sejam as quais é originário sejam
as estrangeiras.
A atitude de Paulo Nazareth parte da produção de uma operação lógico-comparativa
entre Brasil e África que privilegia seus interesses por meio da prática comum dos viajantes-
narradores: coleta, seleção, classificação e organização (BORGES, 2011) de eventos, casos,
objetos, histórias, lugares etc. Nesse percurso, o artista elabora seu jogo de identificações à
medida que “incorpora o imprevisível e o assimila desde o ponto de vista da cultura observada”
(ibid., p.89). No entanto, ao olhar para o continente africano, Nazareth parece não olhar apenas
“o outro”, mas a “si mesmo”; a viagem à África não lhe parece uma ida a um lugar estrangeiro,
mas um retorno ao lugar originário.
Em Elogio aos Errantes, Paola Berenstein Jacques (2012), diz que os errantes, ao errar
pelas cidades, têm como único destino e objetivo a produção de alteridade; o encontro com o
outro. Dessa experiência errática tomada como uma ferramenta, em vez de repetir qualquer
norma de reprodução das experiências vividas e coletadas, surgem outras possibilidades
narrativas; formas diversas de compartilhar experiências que dão primazia ao corpo e a vida
coletiva. Segundo a autora,
No trabalho O espaço se torna lugar na medida em que eu me familiarizo com ele (figura
50), Rommulo Vieira Conceição narra por meio do vídeo uma série de viagens em que o artista
se coloca a ocupar paisagens até então desconhecidas, mas que, ao longo de sua interação com
o espaço, esse se torna familiar e passa a compor sua trajetória íntima. A narrativa do trabalho
103
passa pelo compartilhamento das fotografias do artista nos diferentes espaços, bem como a
utilização de dados que evidenciam a passagem do artista pelos lugares, como prints do Google
Maps, imagens de bússolas, coordenadas e curvas de níveis que atestam a presença de Rommulo
nos pontos de paragem de sua viagem. Assim como Paulo Nazareth, Rommulo Vieira
Conceição usa tais elementos de modo a fornecer dados e pistas, sem, no entanto, entregar a
história inteiriça de sua errância. Não sabemos exatamente como o artista chegou em cada lugar,
mas temos as evidências de sua presença.
Figura 50 - Rommulo Vieira Conceição, "O espaço se torna um lugar na medida em que eu me familiarizo com
ele", 39’10”, 2015-2017. Print-screen de vídeo. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=kKZKcsUsWE8>. Último acesso em: 02 out. 2019.
A página virtual onde Paulo Nazareth reúne grande parte de sua série Cadernos de
África conta com um layout simples padrão da plataforma Blogspot em que está hospedado. Há
o título da página, um cabeçalho com uma fotografia e dizeres que descrevem os objetivos de
Cadernos de África e, em seguida, publicações de imagens, entre fotografias e gravuras
organizadas em linha sequencial (figuras 51 e figura 52) em que algumas delas se repetem. Por
vezes as imagens estão acompanhadas por legenda ou título, mas nem todas possuem
identificação e a maioria não possui data.
O fato de organizar sua “linha do tempo” em linha reta, certamente não quer dizer que
o artista invista em uma linearidade cronológica. No entanto, parece ser importante para o artista
indicar o local – cidade ou país – em que é feito cada trabalho, já que seu interesse é fornecer
para o público um relato visual das suas viagens pelas Áfricas e também catalogar os países
pelos quais passou antes de finalmente pisar em solo Europeu, afinal esse é um de seus objetivos
principais.
104
Após um exame das fotografias e panfletos publicados e os dados que Paulo Nazareth
disponibiliza no blog, foi possível identificar que, no período de 2012 a 2014, o artista esteve
pelo menos nos seguintes cidades: Lusaca (Zâmbia), Harare e Bulawayo (Zimbábue),
Windhoek (Namíbia), Maun (Botswana), Maputo (Moçambique), Lagos (Nigéria), Uidá,
Abomei e Cotonou (Benim), Cidade do Cabo e Joanesburgo (África do Sul) e Nairóbi (Quênia).
No Brasil, esteve em Salvador (BA), Belo Horizonte (MG), São Luiz (MA), Belém (PA), Rio
de Janeiro (RJ), São Paulo (SP), Santa Luzia (MG), Ribeirão das Neves (MG), Santo André
(SP), Venda Nova (MG), Braganza (SP), São José (TO). No restante da América Latina, passou
por Pedro Juan Caballero (Paraguai) e Buenos Aires (Argentina). No entanto, o projeto segue
em andamento e certamente este não é o número total dos lugares por onde Paulo Nazareth
passou.
Reproduzi adiante uma sequência de quatro prints da tela do blog de Paulo Nazareth de
modo a ilustrar a linha do tempo (figura 52) de Cadernos de África que, ao longo da leitura da
página, apresenta a sinuosidade característica de seu trabalho. Devo dizer que, evidentemente,
o projeto do artista não se encerra no blog. Há muitos outros trabalhos, entre desenhos,
panfletos, cadernos, objetos, vídeos e instalações que não estão publicados na página virtual.
No entanto, ela apresenta um interessante panorama do trabalho do artista em um período
específico – de 2012 a 2014 – e que em sua forma, ajudam a sintetizar a narrativa de Cadernos
de África.
Como na série Kitchen Table, a trama das viagens de Paulo Nazareth não está resolvida.
Na verdade, o artista parece mesmo dificultar qualquer tentativa de apreensão totalizante; a
única certeza que temos de seu ponto de partida é o relato que apresenta o Palmital como início-
fim da espiral. O gesto fotográfico de Paulo Nazareth é um gesto de deriva, errante, e a
organização da narrativa segue o mesmo rumo. Suas imagens sugerem trânsito; muitas delas
parecem cortadas, outras estão fora de foco ou pouco iluminadas. O fio pelo qual percorrem os
registros de Paulo Nazareth é fragmentário e vertiginoso. Muito se assemelha à sua escrita e
fala. São composições de pausas, repetições, interrupções, voltas e desvios.
105
Figura 51 - Print-screen do cabeçalho do blog Paulo Nazareth Arte Contemporânea / LTDA. Disponível em:
<http://cadernosdeafrica.blogspot.com> Acesso em: 14 ago. 2019.
106
Figura 52 - Linha do tempo do blog Paulo Nazareth Arte Contemporânea / LTDA organizada lado a lado pela
pesquisadora. Disponível em: <http://cadernosdeafrica.blogspot.com> Acesso em: 14 ago. 2019.
107
Os registros publicados em sua página virtual são pistas e rastros deixados em suas
viagens. Os regimes de tempo se embaralham de modo a produzir uma dialogia contraditória,
muito mais do que uma continuidade. Desde maio de 2012, foram publicadas 428 imagens que,
juntas, dão um tom relacional, na medida em que são resultado de aproximações e
distanciamentos; as fotografias e panfletos agem entre si.
A narrativa que Paulo Nazareth informa em Cadernos de África é um corpo aberto em
contínua expansão que não se deixa capturar. Ao colocar as imagens para agir conjuntamente,
produzindo aproximações e distanciamentos, elas nos permitem também enxergar suas
contradições. É, portanto, uma narrativa encruzada que atua não apenas em regimes
diferenciados de tempo, mas que se sustenta em formas de narrar e experienciar o real que são
próprias dos trânsitos divergentes da encruzilhada.
Como narrativa encruzada, a narrativa em Cadernos de África compõe-se também nos
tempos vivos e dialógicos, nos quais “em seu universo narrativo-textual[-visual], narra-se um
saber que traduz o negro como signo de conhecimento e agente de transformações”
(MARTINS, 1997, 41). O objetivo de Paulo Nazareth em buscar a alteridade se concretiza ao
mostrar diferentes modos de ser negro, dentro ou fora do continente africano. Uma narrativa
encruzada não pretende contar a história do mundo ou a história do continente africano a partir
da colonização, mas objetiva produzir movimentos de reenraizamento que atravessem as
corporeidades negras e o pensamento. A narrativa e o movimento são “[...] um ato de
constituição e contribuição simbólicas de uma identidade coletiva, na medida em que reagrupa
os sujeitos e os investe de um ethos agenciador” (ibid., p. 49).
Como experiência criativa da ordem do pensar-agir, o movimento-pensamento de Paulo
Nazareth e suas ações empreendidas podem ser observadas em sua complexidade além de uma
relação de causa e efeito, mas como algo que se desenvolve no interior da vida, como “[...] um
fluxo que 'veste' o movimento das intensidades a ela inerentes. O pensamento deixa de ser uma
especulação amorosa e crítica sobre a vida para tornar-se vivido como vida, numa espécie de
transformações de relações lógicas em movimentos do desejo” (SODRÉ, 2017, p. 58).
Será possível continuar a investigar as relações que Paulo Nazareth estabelece com
Cadernos de África e os temas apontados nessa dissertação no capítulo que segue, em que
compartilho e contextualizo a entrevista produzida por mim com Paulo Nazareth em novembro
de 2018.
108
109
110
Figura 53 (epígrafe) - Napê Rocha. Desenho digital sobre fotografia “CA -goleiro – belo horizonte -MG /
BRASIL” de Paulo Nazareth, 2019.
111
Memorial inacabado
Digo para mim e para quem mais perguntar, que havia pouca crença na efetividade desse
encontro, mas mais uma vez, o Tempo me mostrou que pouco importam as minhas tentativas
de gerenciá-lo.
No dia anterior fiz contato com Paulo e seu irmão Julio, que também trabalha como seu
produtor. Eu estava completamente sem voz (escrever sobre esse dia depois)
64A Região Metropolitana da Grande Vitória é formada pelos municípios de Cariacica, Fundão, Guarapari, Serra,
Viana, Vila Velha e Vitória.
113
Hoje (12/11) acordei muito cedo e pouco animada. Ainda sem muita consistência na voz,
ainda sem a certeza de que encontraria com Paulo. Coisas que me fizeram pensar em desistir
por hora e tentar em uma próxima. Com o passar das horas da manhã, sem receber retorno
de Julio, me perguntava o que fazer. Estou muito próxima à Santa Luzia - bairro em que Paulo
Nazareth vive - e diante disso, mesmo que não me encontrasse com Paulo, seria possível que
eu fizesse uma incursão solitária pelo bairro como parte de meu exercício de buscar os
vestígios de Paulo Nazareth e de Cadernos de África por aí. Pesquisadora stalker? Verifiquei
a possibilidade de chamar um Uber e tomada a decisão - ainda pouco segura -, comecei a me
organizar. Almocei e enquanto começava a mudar de roupa recebi ligação de Julio, que dizia
estar com Paulo próximo ao bairro onde estou e que viria até onde eu estava. Passei o
endereço e fiquei na espera, ainda sem saber como seria, se conversariamos onde eu estava,
ou iríamos para Palmital. O tempo passava, eu me arrumava em minha inquietude e
ansiedade.
Julio me manda mensagem avisando que já estão na portaria da casa, na Rua dos Morangos.
Me encaminho e encontro os dois. Vi Paulo Nazareth usando camisa amarela e calça azul.
Chinelos havaiana de cores diferentes, duas faixas laterais e um cordão de um material que
se assemelha a corda de capoeira. Pergunto o que faremos, se conversamos na Rua dos
Morangos ou vamos ao Palmital. Paulo diz que para minha pesquisa seria ótimo que eu
conhecesse o bairro. Confirmo e expresso meu desejo. Como Paulo e Julio estavam de moto,
Julio vai sozinho, enquanto Paulo e eu nos encaminhamos de ônibus.
Já no começo da conversa me coloco em uma espécie de estado de alerta, na tentativa de
apreender cada palavra, ao mesmo tempo em que espero o momento ideal para de fato
começar a entrevista. Mais uma vez o Tempo diz que esses desejos pouco importam.
Paulo começa me apresentando o entorno - ainda em Vila Clóris - que conhece bastante.
Conta da experiência de um espaço de cultura BUSCAR NO AUDIO O NOME DO ESPAÇO
bastante importante para as pessoas daquela região, pois deslocava as atividades culturais
do Centro de BH. É também no contexto DESTE ESPAÇO que Paulo conhece Mestre Orlando.
Neste período estava tentando ingressar na EBA. Falhou na primeira tentativa, mas deu
prosseguimento nos seus estudos com Mestre Orlando.
Nesse percurso estamos nos encaminhando para o ponto de ônibus MOVE para seguir até o
Palmital.
Chegar no Palmital de ônibus é relativamente simples, mas Paulo descreve algumas
dificuldades desse empreendimento, que alterou a rotina dos moradores das regiões
periféricas de BH.
Já nesse momento começamos a conversa sobre Cadernos de África, em que Paulo descreve
suas motivações iniciais, seu local de partida. Seu desejo de descobrir o que há de África em
sua Casa, e o que há de sua casa em África. Logo no começo da conversa, apresenta a
grandiosidade e amplitude do projeto, como essa espiral de vai se agrandando. Diz de um
trabalho em processo feito com imigrantes haitianos.
Desde o começo da conversa, destaca o caráter PROCESSUAL de Cadernos de África, não
só a respeito dos percursos de criação, mas deixando explícito o INACABADO. Neste
momento consigo consolidar algo que já vem pairando as minhas reflexões a respeito do
projeto: não é possível apreender Cadernos de África. Não digo nem das classificações em
categorias ou linguagens, mas no simples fato de tentar compreender onde começa e one
termina. A espiral é por demais complexa.
Nesse momento da escrita eu faço o esforço de tentar rememorar cada detalhe da fala de
Paulo Nazareth, pois os primeiros momentos não foram gravados. Por estarmos dentro de um
ônibus, em trânsito, não sabia se era o lugar ideal, até perceber que aquele era o tempo e o
lugar. Me pus a gravar a entrevista com autorização de Paulo.
Prosseguimos com a viagem e com a conversa. Ao mesmo tempo que falava de seu trabalho,
me apresentava também o caminho, as histórias envolvidas naquela região. Tudo está
conectado, afinal não há Caderno de África sem o Palmital, sem o ponto de onde parte a
Espiral. No caminho de casa conversamos sobre a presença de Exu, que aparece outras vezes
na conversa, assim como a presença de Mestre Orlando, de sua avó Nazareth. Nesse momento
percebo que as reflexões que tenho feito desse trabalho encontram grande coerência e, na
114
minha ansiedade e desejo por respostas, não preciso necessariamente direcionar questões
sobre o meu trabalho para que Paulo responda. Não é um jogo de certo e errado, com resposta
simplistas de sim ou não. Acho que nesse momento encontro certa segurança.
O caminho segue e Paulo continua contando as histórias do Palmital, que se confundem com
a sua história e com a de sua família.
O ônibus chega no nosso ponto, endereço onde localiza-se a firma (DÁ PRA ENCONTRAR
NO GOOGLE MAPS). Uma casa de muro azul, onde vive a mãe de Paulo. Entramos e Paulo
me apresenta. Paulo pede benção e eu também recebo benção. Dona Ana me recebe com café
e queijo. Me oferece uma diversidade de alimentos, de modo a me fazer sentir a vontade.
Conversamos sobre suas rezas, muitas delas direcionadas a Paulo, para que tenha sucesso,
para que tenha segurança em sua viagem. Me sinto em um espaço seguro, protegido.
Conversamos longamente sobre o atual contexto político. Dona Ana teme por todos e reza
bastante para deus, para os santos e para as almas.
Paulo me apresenta ao Barrão (porco) que está anunciado na placa afixada no muro de sua
casa. Um grande porco com grandes presas que já foi exposto em ocasião de uma mostra
organizada pelo artista.
ENTREVISTA CORRE
Diálogos na Encruzilhada
Encontrei com Paulo e Julio na Vila Clóris, bairro de Belo Horizonte relativamente
próximo a Santa Luzia. Como nos deslocamos até o Palmital, a entrevista aconteceu nos
diversos ambientes que compõe este percurso até a chegada em sua casa-ateliê e, nesse espaço,
também em diferentes compartimentos. Contextualizarei cada espaço e momento a medida da
necessidade, mas me interessa que o leitor possa criar sua própria imagem do percurso a partir
da transcrição da entrevista. Como dito por Janaina Melo (2012, n.p.) ao compartilhar suas
próprias conversas com Paulo Nazareth, os diálogos que seguem podem ser “[...] descontínuos,
vacilantes, duvidosos e móveis [...]”.
Dentro do ônibus que nos levaria ao próximo terminal, Paulo Nazareth comenta sobre
o início de seu percurso em Cadernos de África, quando eu finalmente começo a gravar o áudio
da conversa com o celular. Paulo apresenta os aspectos que já foram destacados e discutidos
nos capítulos anteriores, como a presença de uma espiral que se caracteriza por ser um ponto
de partida, além das motivações do projeto - saber o que há de África em Brasil e o que há de
Brasil em África.
115
Paulo Nazareth: É uma espiral que vai se agrandando até o continente africano. Aí descobrindo
essa relação, né. Uma das questões: o que existe de África em minha casa e o que existe de
minha casa em África. É uma questão, então qual é a cor de minha pele é uma questão. Aí
nessa pergunta, “qual é a cor de minha pele?”, as imagens que eu vou produzir, as imagens da
fotografia e do vídeo são todas em P&B. Os desenhos não, na produção dos desenhos eles já
tem cor, mas essa imagem considerada desse mundo mais próximo, mais realista, né. Assim,
pode se tratar que é uma imagem mais do real, elas são produzidas em P&B. Falando da cor,
mas com essa ausência. Mantendo essa pergunta sobre “Qual é a cor da minha pele?”. A outra
é o que tem de África em minha casa e o que tem de minha casa em África, e essa questão do
caminho, né. Eu não posso chegar em Europa sem passar por África. Aí também negado esse
eurocentrismo. Essa questão que existe o tempo todo, o desejo de ir pra Europa, não só da
américa, mas você tem esse desejo que vai estar a África e o mesmo desejo na Ásia.
Napê Rocha: Isso significa deslocar também o próprio campo da arte, não é? Porque você
expõe na Europa, mas nunca foi lá de fato. Nunca pisou na Europa.
P. N: É, nunca, nunca.
P. N: Sim, aí esse, que eu costumo dizer, essa mandinga, essa energia. É como, eu gosto de
usar até a palavra trabalho, pensando nesse duplo sentido. Esse termo genérico que a gente usa
na religiosidade de matriz afro. “Vou fazer um trabalho”, “Faz um trabalho pra mim!”. Então
é um pouco de enviar trabalho, fazer essa espécie de trabalho.
P. N: Isso, isso mesmo. Essa coisa de despacho também, que a gente vai fazendo mesmo. E às
vezes enviar pessoas, então algumas pessoas vão por mim. Eu em pessoa não, mas muitas
vezes, pessoas vão por mim. Ou pessoas que estão lá fazem algo por mim. Agora teve um
trabalho que eu apresentei lá, que chama Moinho de Vento, que são imigrantes africanos que
fizeram esse trabalho e que vai fazendo uma conexão. Esse Moinhos de Vento são esses
moinhos de café, daqueles pequenos, manual. Moinhos de vento da Holanda, antigos, não
moinhos de vento, mas moinhos de café manual da Holanda. Daí que são onze imigrantes, e
aí eles levam o moinho na frente e vão moendo o café do Brasil. Eles vão fazendo esse
movimento com o braço, que pra mim remete aos braços, fazendo a analogia aos braços do
imigrante.
N. R: A força do trabalho?
P. N: A força do trabalho, e aí esses dois tempos. O tempo espiral, esse tempo iorubá, que
chega pra nós no Candomblé, esse tempo espiralar. Fazendo essa analogia com o imigrante, o
trabalho imigrante e o trabalho escravizado na diáspora africana, dos trabalhadores da
diáspora, que esse trabalho, é um trabalho que pode ser feito uma analogia com o trabalho da
máquina. Então eu faço essa analogia com esse trabalho, com essa máquina que se desenvolve
no norte, que até hoje você vai ter isso, como por exemplo as máquinas de lavar louça, que
existem no norte, no hemisfério norte e são raras no hemisfério sul, onde a construção do
trabalho, tudo passa pelo braço. Então a máquina de...você não usa uma máquina de lavar
louça porque você tem uma empregada que vai fazer isso, vai lavar a louça no braço. Então eu
fiquei pensando nessa analogia, então Moinhos de Vento trata disso, fazendo essa analogia dos
braços e do moinho, ao mesmo tempo que eu gosto de remeter ao Dom Quixote, essa literatura,
esse grande clássico espanhol, que ao mesmo tempo é um dos grandes impérios, falando de
um tempo em que Holanda era parte da Espanha e que isso não estava bem claro, porque ao
mesmo tempo Portugal também era parte de Espanha. Teve momentos que o reino de Portugal
116
e o reino de Espanha eram o mesmo, justamente no tempo em que os holandeses vem pra cá.
É um momento em que Holanda se torna independente da Espanha, mas Portugal passa a fazer
parte da Espanha, e a presença dos holandeses em Recife influencia na construção, no
fortalecimento de Palmares. Enquanto os portugueses estão em conflito com os holandeses
(nesse caso portugueses e espanhóis), que acontecia que Portugal estava sobre domínio
espanhol, então Portugal impede a relação de Holanda com as colônias, porque a Holanda
tinha se tornado independente. Então o que acontece é que os espanhóis vão meio que proibir
o comércio dos holandeses com as colônias e por isso as colônias decidem, Holanda decide
ocupar as colônias. Mas nessa decisão deles ocuparem as colônias, tem uma guerra entre
espanhóis, portugueses e os holandeses, e os senhores de engenho meio baixam a guarda e
isso, porque eles têm que lutar com os holandeses, então é um momento que tem um
esquecimento de Palmares. Então o que eu vou tratando nesse trabalho Moinhos de Vento, que
remete ao mundo, ao círculo é isso, essa conexão, esse grande negócio que se torna a
objetificação do ser humano.
N. R: Você comentou desse tempo espiralado. Acho bastante interessante isso, porque eu tenho
pensado na relação do tempo espiralar com esse tempo que é ancestral. Porque é outra maneira
de enxergar o tempo, que não como os europeus fazem de pensar uma linha reta.
P. N: Sim, é, e ele aparece nesse movimento do moinho, que não é a linha reta. É um círculo,
mas são muitos círculos, é círculo, mas esse círculo como é esse movimento várias vezes, ele
tem uma ponta no início e quando o movimento se acaba, então é uma espiral, né.
N. R: Mas quando você parte dessa espiral da sua casa, qual é o país que você vai? Como é a
preparação? Eu li no texto da Ana Pato uma vez, dela comentando que você conversava com
um babalaô, que você até tinha feito um ebó pra poder fazer a viagem...
P. N: Sim, na verdade o que acontece é que tudo isso se torna, que eu falei do trabalho, né.
Todos esses trabalhos começam a se tornar o próprio ebó, então, mas o primeiro na verdade é,
o que acontece, a minha primeira viagem que eu fiz, pra fora do Brasil, foi em 2006, em
princípios de 2006, eu fui pra Índia, foi um deslocamento daqui pra Índia com uma parada de
um dia em Joanesburgo, então eu estive um dia na África do Sul. E acho que aí começa a
construção desses lugares, mas quando eu começo a pensar o processo de Cadernos de África,
então o primeiro deslocamento foi pro Benin, pra Cotonou. Daí eu faço Benim, Togo, Nigéria.
P. N: Isso, a Porta do Não Retorno e aí tem L’arbre d’Oublier, que é a árvore do esquecimento.
Eu fiz aqui, eu faço aqui, faço no Benim, em Ouidah, depois faço aqui, e faço em Maputo.
Então é, Aqui em BH em frente ao Cine Brasil. Ali tinha plantado uma pequena árvore do ipê
amarelo, que aqui tem quem conte que era nessa árvore que se fazia o ritual do esquecimento
e aí eu faço no iroko, na figueira, lá no mercado que eles diziam Mercado dos Escravos em
Ouidah, aí depois eu faço na Avenida Brasil aqui em Belo Horizonte e depois em frente o Cine
África em Maputo. Então vai acontecendo isso, e aí eu faço no Ouidah, a Porta do Não
Retorno.
N. R: Quando você teve no Benin, teve contato com os descendentes de escravizados que no
pós-abolição voltaram pro continente?
P. N: Sim, os agudás. Tenho contato assim, tem algumas famílias, por exemplo a família da
Silva, que em princípio eu ficaria lá com eles, mas aí o Exu mandou eu ir pra outros lados,
mas em princípio eu ficaria com eles, ficaria hospedado com a família da Silva sim.
117
N. R: E como é essa história de Exu na sua vida? Eu tenho pensado muito nesse orixá em
relação ao seu trabalho, no sentido tanto do deslocamento, do dinamismo, da rua, de produção
de um saber corporal também. Em entrevista à Revista Continente você comentou que a
primeira casa em que você viveu havia sido uma casa de Exu.
P. N: Sim, então a gente...assim, tem umas coisas bem antigas, por exemplo, a minha família
trabalhou pra uma família durante muito tempo. O pai do meu avô, depois o meu avô, minha
mãe, eu trabalhei pra essa gente e a mãe da minha mãe que é Nazareth, então Nazareth também
faz parte do meu trabalho. Eu sou Paulo da Silva e Nazareth é a mãe da minha mãe. É nome e
não sobrenome. Aí ela era [ininteligivel] de santo, né e aí então tem uma história que ela fez
um trabalho, uma promessa pra Exu, que eles chamavam de capeta, mas eles falam que ela
prometeu, mas aí também depende do jeito [que se conta], tem gente que fala que ela prometeu
café pro Exu. Prometeu uma saca de café pra Exu e que não deu certo e ela teria ficado louca
nesse curso, por causa disso, mas aí ela, nessa época ela é internada, é enviada pra Barbacena.
Ela fica vinte anos, assim, tem registro, depois disso não tem registro não, mas aí isso eu
conversava, tinha que buscar isso com os patrões, né. Então eu fui conversar com eles e eles
afirmavam que ela ficou louca por causa dessa religiosidade, e isso que deixou ela louca, e aí
eles enviaram ela pra lá. Então um pouco, pra mim, esse Exu já está aí. Então ao mesmo tempo
Nazareth faz parte do meu trabalho, também é um egun, né. Dessa ancestral.
N. R: É um ancestral divinizado?
P. N: É esse, no Benim usa isso, né, e aqui também na Ilha de Itaparica, os Egungun, e aí eles
vêm, né. É uma proteção, esse ancestral que protege, que vem de tempos em tempos. Então
pra mim, um pouco ser Nazareth é carregar esse egun, esse egungun. Pode-se pensar numa
máscara social, quando se pensa na ideia das máscaras africanas, né. De se tornar, de se colocar
a máscara, não só africana (é uma generalização, né, falar em máscaras africanas), mas do
próprio ritual do egungun, né, e as máscaras afro-brasileiras que vão pra lá, dos rituais da
burrinha, você acaba se tornando, né. Você coloca a máscara e essa máscara é você também.
Então Nazareth também é essa espécie dessa máscara social que eu me torno também. Eu sou
Paulo da Silva, mas também sou Paulo Nazareth. e aí eu sou Paulo Nazareth enquanto eu uso
essa máscara social. E aí eu posso dizer, essa máscara afro-social e aí eu me torno isso, mas é
também o que eu falo da carranca, o Nazareth é também essa espécie dessa carranca que vai
na minha frente, né.
P. N: Sim, então quem vai à frente é o Nazareth, o Paulo Nazareth. O Paulo da Silva, ele tá
protegido com essa carranca que vai abrindo esse caminho.
N. R: Como você pensa essa relação de ser preto e ser artista? Como é esse lugar, porque o
imaginário coloca sempre o artista como um sujeito branco, ilustrado...
P. N: Aí é uma, é até essa concepção, esse descobrimento, porque é o que ele falava. Porque o
Mestre Orlando, assim, tinha um conflito com a Escola de Arte, principalmente, na época, a
Guignard, os professores da Guignard, que tinha esse lugar do artista branco, acadêmico, e ele
seria um artesão, né. Então ele, por ser preto, baiano, migrante, saiu lá da Bahia, ele vem de
um lugar, da profissão de pedreiro, né. Nem pedreiro, ajudante de pedreiro, o servente. E aí
ele faz essa reviravolta, mas eles não reconhecem esse lugar dele, mas aí ele tem que afirmar,
justamente com essa palavra do artesanato, da arte nata, dessa arte que nasce conosco. Essa
questão afro, a máscara afro, descobrir esse lugar, resgatar esse lugar. Ele conta que ele
encontra esse lugar da arte quando ele vai trabalhar no restauro de uma senzala em Salvador e
vê pintura e esculturas, entalhes no interior da senzala. E aí aquilo detona nele essa bomba do
pensamento, e aí ele fala “Se eles faziam isso com as mãos amarradas, por que que eu, agora,
não posso fazer?”. E aí ele começa a fazer e traz isso também pra aqueles que andavam com
ele, então ele apresenta isso pra nós: “Você pode fazer isso.”, e aponta esse lugar do
reconhecimento, dessa arte que vem conosco, essa arte ancestral, esse lugar ancestral, até esse
exercício estético ancestral, esse pensamento. Você podia até não falar da palavra “arte”, que
é uma palavra do mundo ocidental, mas esse lugar do pensamento já estava lá com os
africanos. Lá em África, vêm os africanos pra América, pro Brasil, mais especificamente e é
transmitido, então existiam outras palavras pra definição de arte, e o pensamento de arte, e a
relação da arte com a vida, que o pensamento do ocidente vai desmembrando, e aí você tem
um pensamento ocidental na escola de arte. Você pode até pensar na Escola de Belas Artes do
Rio de Janeiro que vem com a Missão Francesa, mas a gente já tinha uma construção de arte
aqui. Pensando em Minas Gerais, você pensa no caso do Aleijadinho, que faz a construção,
119
que transforma o barroco. O barroco daqui é diferente, é uma experiência única, e é uma
experiência afro. Você transforma a religiosidade, a arte sacra mineira, ela é uma arte sacra
em princípio com a cara da catequese da católica cristã, mas ela tem um gen afro, que carrega
uma africanidade ali. Então uma coisa que o Mestre Orlando, que apontava era esse lugar.
Você tem a academia, a arte oficial, a escola de arte que tem um desejo de Europa, o desejo
de uma escola francesa. Então esse lugar dessa arte fora da academia era muito…hoje a arte
afro, o pensamento africano já é aceito na academia, né.
P. N: Sim, nessa disputa, mas a gente já tem um lugar, assim, a gente já consegue falar dessa
luta aí dentro. Então essa luta, esse lugar dessa disputa estava mais nesse lugar que era dado a
arte popular. Então você ser negro, preto, africano, o seu lugar é o lugar da arte popular, que
é, que era dado como a arte menor. Isso você pode pensar na história da arte como um todo.
Se você pensar num grande nome, do cânone da arte ocidental, o Pablo (vou falar o Pablo
mesmo), então o Pablo vai buscar a máscara africana. Aí você pega a máscara, a pintura da
máscara africana vale mais do que a máscara, o original africano. Vale mais no contexto
econômico e da construção da figura do Pablo. Porque essas regras, esses acordos são ditados
pela construção europeia, e aí essa Europa (aí eu vou falar da Europa expandida, a Europa em
América, a Europa nos Estados Unidos, na Ásia, a Europa na África), essas regras são ditadas
por eles. Eles que dão o valor econômico, e como eles são os pensadores, os que ditam as
regras econômicas, eles também vão ditar as regras do mundo da arte, então eles jamais vão
dar um maior valor econômico pro original das máscaras africanas, em detrimento da cópia,
do retrato, das máscaras de Pablo. O que Pablo pintou vale mais do que o original, porque ele
vem do lugar onde dita as regras. Você vai legitimar o seu artista, e não o outro. O outro não
é artista, é artesão, é um trabalho que não passa pelo pensamento, é um trabalho manual, é um
trabalho braçal. E aí a gente volta lá pros moinhos
P. N: É, separar isso, justamente pra desvalorizar esse outro trabalho, então não trabalhar, não
usar os braços.
N. R: É interessante quando você comenta as suas conversas com Mestre Orlando, nesse
sentido de retomar uma ancestralidade, ali já parece existir indícios de Cadernos de África.
P. N: Sim, já tem esse lugar que vai nascendo, porque é essa construção e esse encontro com
o ser negro, que é todo o tempo, denegr...“debrancado”, né. Tem que ter esse...você entrar pra
escola de arte pro seu trabalho ser aceito, então Mestre Orlando não vai ser aceito porque ele
não entrou pra escola acadêmica de Belas Artes, então pra você ser aceito você tem que entrar
lá e meio que modificar esse lugar. Você tem que entrar lá, porque do contrário você vai
continuar sendo o artista popular e que não...que pelo olhar de uma elite é aquele que não
pensa, que só faz com os braços. É bonito, existe até uma ''arte bruta'', né. Nós somos brutos,
né, continuamos lá atrás, trabalhando com a pedra, quebrando a pedra, mas não pensamos
sobre o que estamos fazendo. Quase que uma...essa arte que a gente fala da magia, da
mandinga, esse lugar continua sendo esse lugar, né. A arte bruta lá da pedra, que a gente pensa
nessa mágica que é diferente dessa arte sacra da igreja.
N. R: Você retoma muito a mitologia iorubá nos seus trabalhos, nos seus projetos. Os ìtàns de
Oxalá estão ali, a história de Iku no Museu do Crime…como você pensa isso?
P. N: Isso, pra mim essa religiosidade…eu não gosto de separar isso, então pensar a
religiosidade também como uma questão política. A gente sabe hoje, né, a religiosidade
sempre esteve na política desde sempre. A arte sempre esteve ligada com a política, né. A
pintura renascentista…tudo estava pintando os poderosos. Os retratos dos poderosos, os reis,
os faraós, se você pensar no Egito, os imperadores, os grandes heróis gregos, o Império
Romano, e aí você vai pro Renascimento, aqui, as grandes famílias. O retrato de quem? A
fotografia, quem era fotografado? E quando os servos e os escravizados apareciam, de fundo
pra ostentar a riqueza. Apareciam como objetos, como propriedade dos senhores. Ligado com
esse lugar econômico. As pinturas dos papas, você pensa na Grécia, os deuses gregos, os
deuses cristãos do império que se torna pós-Roma, anterior ao cristianismo, e o Império
Romano pós-cristianismo. Então essa religiosidade está presente o tempo todo. A arte sacra
de Aleijadinho, está aí, então o tempo todo a arte está dialogando com esse mundo sagrado.
Ela é sacra e é política ao mesmo tempo, então eu, pra mim não dá pra separar esse lugar do
sagrado e do político. Então quando eu apresento esse lugar do iorubá, essa busca por esses
Orixás, dos Minkisi também, porque a gente fala muito de um lugar do Orixá, do lugar iorubá,
é também uma questão política, que é o lugar de parte de um povo africano.
P. N: Então você pensa nos iorubá, é uma certa elite também, então eu gosto de pensar os
Orixás, mas também sem deixar de pensar esse outro lugar. Porque a gente também está
optando. Se eu apresento o mundo iorubá eu estou optando por um povo que teve os seus
vencedores também. Então eu gosto de pensar nesses outros lugares também, mas é claro que
os que mais chegam pra nós, que é mais forte entre a herança afro é a iorubá, mas eu tô sempre
apresentando, buscando apresentar esse lugar político de afirmação. Então esse diálogo, por
exemplo, da minha mãe que vem desse lugar, quando a mãe dela é enviada pra Barbacena, ela
tinha, além da minha mãe tinha mais três filhos, a minha mãe era a caçula. E aí o que acontece
é que os irmãos mais velhos seguem na religiosidade de matriz afro, e ela vai pra casa grande
e lá vai ser criada com os princípios do catolicismo. E aí você tem todo um apagamento e uma
demonização daquilo que a mãe dela fazia, então [a mãe d]ela enlouqueceu, assim não que ela
enlouqueceu, mas como ela não seguia, ela não era submissa, ela não seguia aquela
religiosidade que era pregada, ela é tida como louca. Então ela é enviada, porque ela era de
outra religião e a minha mãe vai pra casa grande, e ela sofre essa catequese. E aí ela tem essa
espécie desse conflito com os irmãos, tem esse apagamento.
P. N: Isso, eu vou retomando. E aí, você pergunta do Exu, né. Eu falei, ele aparece lá, mas
depois, eu nasci no Morro do Carapina, e aí a gente vai morar num barraco de um...o que
acontece é que era um morro que tinha um terreiro que era desativado, e aí o seu Zé do
Madeireira transforma o terreiro em barracos de aluguel, e aí eu saio, eu fui nascer no Hospital
Santa Terezinha e do hospital eu vou direto pro barraco de Exu e aí as coisas vão como são. E
aí depois a gente vem pra cá pra Belo Horizonte, a gente fica morando no Cafezal um tempo,
depois pra cá pro Palmital. E acaba um pouco desvinculando dessa família, assim. Então a
construção de Cadernos de África é assim, eu tenho essa ligação com Mestre Orlando, que um
pouco, aponta pra esse lugar lá atrás também. E aí essa coisa de carregar...
121
Chegando à casa de Paulo Nazareth, ele me apresenta à sua mãe, dona Ana, que nos
recebe com café. Após uma conversa, Paulo me leva a parte de cima de sua casa, onde fica seu
ateliê. Ele começa a me mostrar alguns trabalhos que compõe a série Círculo Branco, imagens
publicitárias protagonizadas por modelos negros em que o artista intervém e pinta círculos
brancos com tinta e giz de pemba. Paulo comenta a relação dos círculos brancos com a mitologia
iorubá:
Paulo Nazareth: E aí eu faço esses...então ao mesmo tempo que é a pinta da galinha d’angola
sobre esses cartazes, então no começo eram cartazes de música, que é um desses lugares em
que o negro tem uma possibilidade de ascensão social. A música, o esporte, então eu vou
colocando essas pintas da galinha d’angola, que fala desse lugar e desse ato de a galinha
espantar a morte, que é o novo, a criação do novo, a criação da vida, o que espanta a morte é
a vida, né. Então é um pouco essa mandinga, esse trabalho de espantar essa morte, esse
genocídio e ao mesmo tempo é um diálogo com…eu chamo esse trabalho de Círculo Branco,
geometria branca, que são os desenhos que depois eu venho, faço esse com tinta látex e depois
passo o efun ou então o pó de pemba.
N.R: Então não é só tinta, tem também a dimensão imaterial do trabalho com a pemba.
P. N: Isso, isso. E aí comecei com os cartazes e esses lugares da publicidade e esse jogo, e aí
até nessa questão, que é o lugar do exótico, ''qual é a cor da minha pele?'' a questão da
negritude. Esse aqui fala muito disso, do exótico [aponta para um trabalho da série Círculo
Branco], você trata de um exotismo, e aí um negro, ''vamo pegar um original, um africano''.
N.R: Tem algumas reportagens que te colocam como ''um artista exótico'', andarilho...
P. N: Sim, essa questão fala justamente desse lugar. Tem uma descompreensão, né. Eu estou
falando justamente, questionando essa exotização do homem negro, do indígena, da América
Latina. Estou questionando essa exotização, e aí algumas reportagens, assim, não
compreendem esse lugar e acaba reforçando. É um jogo do trabalho. E aí esse lugar da
possibilidade, da relação social e racial, e esse lugar de comprar, do lugar do capitalismo, né.
Não quer dizer que você tem o respeito, né. Você compra o respeito.
P. N: Sim, aí você tem até a própria questão, que é sempre um jogo entre a conquista da
liberdade e receber a liberdade.
N.R: E te reconhecerem também como liberto, não é? Porque não basta só você ser forro, você
tem que andar com seu documento de alforria.
122
Aqui me refiro a uma ação de Paulo Nazareth em que o artista anda continuamente
portando seu documento de identificação pendurado no pescoço. O artista denuncia episódios
constantes de abordagem policial que o levaram a antecipar o protocolo da “batida”.
P. N: Sim, é isso. Aí você tem essa diferença, né. Entre ser branco e ser negro, e aí quando
você fala do documento é até hoje, porque um homem negro precisa sempre apresentar esse
documento, já ao homem branco, não se exige isso. Isso é muito forte, também se pensar na
questão de gênero, porque também até hoje vai muito disso, muitas vezes é o homem que é
essa figura que apresenta o perigo. As mulheres, em relação ao gênero não é tão perigosa
quanto o ser masculino. E é isso, passa por essa questão do documento, da carteira de
trabalho...
P. N: Esse foi uma exposição lá…Esse são os negócios que eu vendo lá na feira. Eu vou fazer
o seguinte, eu vou te dar alguns.
N.R: Como que você pensa essa questão do…porque muitos trabalhos seus estão na página,
no blog, muito estão fora…como você pensa isso? Por que um blog?
P. N: Então na verdade, os panfletos vêm antes do blog. Os panfletos são tratados, pra mim,
no universo da gravura. Na Escola de Belas Artes eu tive uma formação de gravura, então eu
tenho pensado muito nessa gravura que é expandida, que é a gravura presente no mundo, essas
gravuras encontradas [aponta para caixas de papelão]. Todo o universo da gravura, das xilo,
serigrafia, metal. Essas gravuras soltas desse mercado. E essa coisa do mito da galinha da
angola, que fala quando Oxalá pega a galinha e solta ela no mercado, no mercado que é essa
metáfora do mundo, então ali no mercado tem muitos encontros, muitas encruzilhadas.
É, então aí vai lá, é um pouco isso. Eu tenho pensado esse lugar do...desses diferentes
mercados, o mercado da arte, o mercado oficial da arte, esse circuito fechado, esse mercado
fechado, esse mercado expandindo, a rua…aqui tem como se fosse uma banca, né, as caixas
de feira, então a gravura vai aparecendo. Aquela que tava lá em baixo [térreo da casa] é uma
prensa pra gravura, né. E aí isso eu considero como gravura, eu fazia edição de 1.500, e são
panfletos, às vezes como anuncio no jornal. Que é um pouco a função da gravura no princípio
também, que é esse de divulgar o trabalho, e aí comecei a vender isso, e aí então começou, o
que aconteceu, comecei a fazer os panfletos, e aí, um amigo, eu nem sabia, nem tinha muito
contato com internet. E aí tava nascendo o blog, e aí um amigo falou assim, ele olhou “Ah,
por que você não faz um blog? Isso aqui já é um blog.”. E aí ele me ajudou a fazer o primeiro
e daí depois eu comecei a publicar. O negócio é que depois eu fiquei...no começo eu publicava
mais, aí depois eu fui meio ficando sem tempo. Era engraçado, Numa época não tinha internet
aqui, demorou muitos anos pra chegar a internet, em 2012, 2013, começa a chegar bem devagar
aqui. Não tinha serviço de internet, nem se eu quisesse. Uma vez eu comprei um modem que
pegava em todo lugar e não pegava aqui. Então agora tem um serviço mais ou menos, mas tem
o serviço aqui. Antigamente não tinha internet, mas eu usava muito a da Escola de Belas Artes,
entrava lá e ia alimentando o blog, então é uma questão logística também, porque é muito
tempo na estrada, falta de conexão, falta de internet mesmo e não dá…e aí eu vou alimentando
ele de tempos em tempos.
123
N.R: No Cadernos de África o último material é de 2014, que eu lembro que os panfletos da
Bienal da Bahia estão lá. Como que foi essa experiência da Bienal? Os projetos já existiam
antes ou foram depois que você conheceu o espaço?
P. N: Não, a ideia era partir de lá, né. Tem esse da Antropologia do Negro, nasce lá com o
contato com esses corpos, mas que é um que eu vou empilhando os crânios. Mas, por exemplo,
tem um trabalho que tem essa ligação, por exemplo quando eu passo pelo Valongo no Rio, na
Zona Portuária, eu ando ali na Gamboa, tinha o cemitério dos Pretos Novos, no Centro
Cultural…tem essa relação, mas que é também anterior, tem um dos trabalhos que faço, bem
anterior, de 2009, que é cavar, eu vou cavando uma cova no Centro do Campo da Memória da
ditadura da Argentina. O que eu faço é cavar um buraco nesse lugar, na possibilidade de
encontrar corpos. E aí, isso eu vou ampliando, não só na Argentina, mas em diversos lugares
da América. O projeto é cavar, é fazer buracos ao acaso, na possibilidade de poder encontrar
ao acaso, ossadas. Essas múltiplas camadas de violências, paralelas às ditaduras.
N.R: E no Rio isso também é muito presente. Ali na Zona Portuária estão fazendo escavações
para as obras do VLT e há pouco tempo encontraram ossadas e uma estrutura de um mercado.
P. N: Então é esse acaso que é uma quase certeza, né. E aí que eu faço isso, e aí depois eu vou
descobrir a existência de um cemitério parecido com o da região do Valongo lá na Nigéria,
mas que aí esse cemitério ele é removido. Ele era um cemitério de escravizados, era um
cemitério português, porque os portugueses que atuavam lá, que fazia essa…então aqueles que
morriam no caminho, na andança…então o Valongo era quem chegava depois de atravessar o
Atlântico e ali, sem forças morria, na região da Nigéria, em Lagos, era aqueles que andavam
do interior da África, e aí quando chegavam ali, eram aqueles que chegavam e morriam.
P. N: Sim, eles tinham caminhado. Faziam uma travessia do interior da África, caminhando
até a costa e morriam antes de serem embarcados, então eles eram enterrados ali. Então o
processo é semelhante, só que a travessia era terrestre, aqui era a travessia marítima. Então
isso vai vindo…e até essa conversa com esses mortos e então eu venho fazendo isso. E aí
depois aparece esse diálogo com a Bienal da Bahia e aí é o tempo que eu chego nesse lugar.
O Eustáquio Neves tinha também chegado ali, alguns artistas que estavam nesse grupo da Ana
Pato. Foi uma memória que o Eustáquio Neves tinha levantado. O Augusto, que era um moço
lá do Instituto Sacatar, ele sabia disso porque ele é um baiano lá de Salvador, e aí ele indicou
e aí o Museu, aparentemente (o Museu chamava Museu do Crime, foi apelidado Museu do
Crime) estava de portas fechadas. E aí, nesse grupo a gente consegue ter acesso. Então essa é
uma construção que vai acontecendo, e aí eu tenho contato com esses crânios, com esses
corpos, diferentes corpos.
P. N: Sim, tem um caderno aqui que eu criei para o funeral. Que aí é um projeto que ainda tá,
que é um processo, mas sim, eu faço um pequeno funeral, que são coisas que eu venho fazendo.
Eu não como carne, mas as vezes eu preparo a carne para os outros comerem, como quem
prepara um funeral. Mas o Cadernos de África é esse processo. O trabalho é essa série que vai
abraçando. É um estado, como se eu tivesse em um estado de Cadernos de África. Então tem
esses sabonetes aqui desse caminho que eu fiz, uma série e América e essa aqui que tá
agrandando. Então é no meio desse processo de Cadernos de África. Então os sabonetes dos
caminhos, dos vários lugares onde eu estive hospedado, é sabão, que você tem os mais
cheirosos, tem o mais sabão, dependendo do lugar de hospedagem.
124
Essa [Right to Funeral] foi uma publicação em inglês que esteve numa mostra na Alemanha,
era o Genocide In America. Tem também a versão em português.
P. N: Sim.
N.R: Eu acho muito interessante como você constrói essas línguas outras.
P. N: Sim, e aí faz parte de um projeto de é o Bureau de Langue que é onde eu vou aprendendo
a língua do outro e outro vai aprendendo a minha língua. Que aí é um processo, é um trabalho
que tem uma coleção de dicionários e as máquinas que fazem tradução.
P.N: Esse trabalho que eu venho fazendo, eu vou ver se o Julio tá aí, que a gente pode ir lá em
cima, mas aí são os que eu chamo dos Produtos de Genocídio, que eu tenho esse meio que
mercadinho, né. É um mercadinho mesmo. Aqui tem um mercado que eu…e aí são essas, esses
produtos de genocídio que ao mesmo tempo dialoga com o que eu chamo de Cara de Índio,
Cara de Negro, Cara de Indígena, que são essas imagens estereotipadas.
N.R: De onde é?
P. N: Esse é da África do Sul. Então eu comecei primeiro com essas imagens que eram dos
nomes indígenas, dos povos indígenas, aí tem os Aymorés, os Tupis e depois entrou nesse
lugar do…aí aparece o negro, depois essas imagens que vão durando, vão ficando
estereotipadas, né, a Moreninha do Rio...
P. N: É, aí é Nêga Fulô…sempre como produto…aí tem a Indiana, que é indiana, mas tem cara
de indígena. E aí vão aparecendo essas imagens, a Baianinha…são essas imagens que acabam
entrando no mesmo lugar do, que conversa com os produtos, com o círculo branco, da
geometria branca, do efun. Então são essas imagens que vêm aparecendo aqui, do Ray Charles
aparece aqui como o estereótipo do lugar de ascensão social, esses heróis, carnaval, enfim,
essas imagens estereotipadas, o que é o “ser negro”, né. Aí tem a vassoura do terreiro, né.
Então são essas duas imagens que são essa aproximação entre o ser negro e o ser. E aí eu entro
em um lugar que eu chamo do genocídio…que é uma analogia aos irmãos de barco, né, os
malungos, que são os irmãos no genocídio. Quando o negro…o negro em África é considerado
índio/indígena e enquanto o negro é o indígena, “os negros da terra”, que são os indígenas,
que são colocados na mesma condição que os africanos trazidos pra cá. Aí essa irmandade que
é construída, essa irmandade pelo processo de genocídio. Então, você pensa que esse Cadernos
de África é esse processo, essa condição.
N.R: Você acha que você tenta produzir uma certa coletividade com esse estado? Pensando
nas fotografias do Cadernos de África.
P. N: Sim, mas é muito também...eu gosto sempre de pensar essas, esse lugar que é, na verdade,
tá falando da…que é esse lugar, né, que fala do ser negro, mas que o ser negro é diverso, mas
eu volto na questão África e América, na construção de América e na construção de irmandade.
Porque ser negro só se torna uma questão racial quando se tem a construção de América,
porque um negro na África é diferente, não é “o negro”. Não é o “povo negro”, é Zulu, é
Xangana, Massai, Benguela, Mina, Efon, Iorubá...até o banto é uma multiplicidade de povos
que aí quando você vê, a gente fala “iorubá” e “banto”. Então eu fico sempre falando desse
lugar, ser negro não é ser só um, mas volto na questão da irmandade, quando todos são
colocados num barco e enviados pra América.
E aí você tem essa questão da irmandade pra se manter. Essa coisa que a gente fala sempre,
“tamo no mesmo barco” tem um porquê, “estamos no mesmo barco; vamos nos cuidar porque
tamo no mesmo barco.”, mas aí nesse lugar, a gente, a irmandade com o ser indígena, com os
povos indígenas também é necessária porque é um processo de genocídio igual, também, com
as suas diferenças. Um que tá aqui, permanece aqui e tem uma, esse lugar e sua diversidade
também, na África também. Então quando se fala “os negros”, você está generalizando
diversos povos, e quando eu falo “os índios” também é uma generalização.
N.R: É uma memória perdida, né? A Conceição [Evaristo] sempre fala muito disso. Que os
escritores e artistas trabalham com uma memória terceirizada, com lembranças que não são
nossas. É preciso sempre tentar reelaborar alguma coisa.
P. N: Sim, é uma reconstrução, quando a gente da América vai pra África uma das questões,
várias vezes, já me perguntaram, estando na África, no continente, porque nós da América
falamos tanto, nós negros, afrodescendentes, falamos tanto, tocamos tanto na questão da
escravidão. Porque não tem como falar de África, africanidade, negritude na América sem
tocar nesse assunto.
P. N: É, a gente mesmo não tocando, tocamos. Nós somos os herdeiros da diáspora. Nós somos
os que saíram no grande sequestro, na grande diáspora. Os que ficaram no continente talvez
não carreguem isso. São outros traumas, outras questões. Pensar na África do Sul, a questão
do apartheid tá sempre aí, se mais ou se menos, mas uma coisa que não se resolveu. E a gente
na América tem que tocar nesse assunto, no assunto da escravidão que não se resolveu. Está
aí o tempo todo, o racismo é uma…vem daí e isso às vezes reflete lá no próprio continente.
Então é sempre esse lugar dessa aproximação, dessa irmandade, mas pensando na diversidade
dos povos e diversidade do ser indivíduo. Como é que eu penso a construção de uma pessoa,
um indivíduo que seja diferente do indivíduo do capital esse indivíduo que é o egoísta, do que
escapa, que o mais importante é ele. A própria liberdade, a liberdade dele, de um único
indivíduo e não de um povo.
N.R: Falando sobre diáspora e deslocamentos, você viaja muito por terra, não é?.
P. N: Sim, sim, é uma das escolhas que eu faço. Teve um tempo em que algumas vezes, eu
pego o vôo, né. De agora também eu gosto também, assim, eu gosto muito do ônibus. Meu
126
principal meio é estar perto da terra e vivendo essa relação com as pessoas, mas também eu
passei a gostar do espaço do avião, que é esse lugar de exposição. Esse lugar dessa
performance cotidiana, essa ação, essa condição do meu corpo estar ali, né, e estar com essa
vestimenta, a minha vestimenta do sempre, então, que é um pouco dessa faca cortando ali,
então eu gosto muito de atravessar esses aviões onde a classe...você tem os executivos na
frente, aqueles lugares mais caros e que a gente depois passa. Então eu gosto muito de
atravessar esse lugar, com essa roupa, e esse chinelo de dedo, essa cara, esse, essa minha
vestimenta, essa minha máscara, essa máscara que sou eu. Atravessar isso que é uma ação, é
um acontecimento ali, então isso às vezes gera um estranhamento, ainda mais nesses tempos
que estamos entrando, porque é a favela. A favela enquanto lugar de resistência, enquanto
lugar de aquilombamento. É ela ali, então eu tenho que seguir nisso, tenho que estar ali, tenho
que falar “olha, gente, vai continuar”. Então esse corpo que fala, que grita.
P. N: Assim, a viagens que eu faço, eu viajo mais por terra do que voando, mas eu fiz alguns
voos na África, então tem, talvez no Cadernos de África tem voo do Quênia pra Ouidah…eu
faço um voo da Península Árabe pro Quênia, faço um voo do Quênia, Nairobi pra...onde que
eu fiz esse voo? Deixa eu ver onde que eu fiz…talvez Camarões, pode ser. Depois Cotonou
no Beni,. Depois eu fiz um voo de Moçambique, Maputo pra Joanesburgo, Cape Town, mas a
maior parte por terra mesmo, cruzando as fronteiras terrestres.
P. N: Sim, mas o Cadernos de África, ele prevê um trajeto por terra, por todos os países de
África, né. Aí claro que gente tem as ilhas, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Madagascar,
que tem necessidade de barco ou voo, mas o que é terra…exige a terra, mas essa relação com
o voo também é um lugar de experiência, e que é uma questão que é, por exemplo, que é uma
coisa muito forte, esse lugar que eu falo desse lugar social, esse estranhamento, o lugar racial,
isso aparece aqui na América e aparece em África. Eu fiz uma vez, um voo de São Paulo pra
Nairobi, por exemplo, no Quênia, eu levei uma batida da polícia aqui no aeroporto de São
Paulo e levei uma no Quênia, em Nairobi.
N.R: Evidencia as similitudes que você está buscando…o que tem aqui, e o que tem lá.
P. N: É, isso. Então às vezes falam “ah, você está procurando isso.”. Não é que eu estou
procurando, eu estou analisando.
P. N: Não é como se, alguns falam “ah, você gosta de levar batida.”.
P. N: É, mas tem gente que acha que é alguma coisa que eu…“Tô aqui, vem cá me dar uma
batida.”. Não, não tem isso, mas é um fato.
P. N: É, da experiência. E a pessoa fala “mas você gosta, você fica procurando, provocando.”.
Provocando sendo o que eu sou. “Esse tipo de roupa que você usa.”. Quase como se eu tivesse
que embranquecer, então você tem a possibilidade do embranquecimento. O
embranquecimento vai te proteger, se você se embranquecer você não vai mais passar por isso,
então eu não quero me embranquecer. Eu não quero passar por esse processo, eu não quero
deixar que ser o que sou, mas não deixar de ser o que eu sou não quer dizer que eu queira
continuar sofrendo isso que se sofre. Que um corpo negro, um corpo indígena sofre. O que eu
quero é que isso parece de acontecer. Mas esse processo de discriminação, racismo, classismo,
isso é uma coisa dessa sociedade adoentada há muito séculos. Seria bom que houvesse uma
cura. Estamos trabalhando pouco a pouco para essa cura, mas não é uma cura que é uma
pessoa, um artista que vai fazer, mas nesse processo de conversa, de mandinga, de reza, de
trabalho…acho que essa acumulação, esse ajuntamento de forças. Aí eu vou pensando a arte
também como esse lugar político, científico também, essa ciência da arte. Pensar esse lugar da
religiosidade, esse lugar sagrado, e aí esse lugar serve pra todos os lados, se pensar que a arte
política pode ser tanto uma arte política de resistência, quanto uma arte política de opressão.
São valores. Não é que a gente vai pensar que toda arte é libertária, você tem artistas que optam
pelo lado do opressor.
N.R: Você acha que essa dimensão das experiências da negritude que você trabalha em
Cadernos de África, você acha que elas são…como você vê a recepção das pessoas em relação
a esse trabalho, no sentido de conseguir compreender esses pontos? Porque se em Notícias de
América, as questões de América Latina foram bem assimiladas, eu acho, você acha que o
mesmo acontece com Cadernos de África?
P. N: Olha, na verdade eu nem sei se Notícias de América é bem assimilada. Tem uma
aceitação, até por esse lugar formal-estético, a imagem que aparece bonita, a cor. Um pouco
no Cadernos de África, é um pouco da…tem a estética aí que existe, o lugar formal da imagem,
do objeto de arte, mas em um primeiro contato com a imagem, você tem uma imagem preto e
branco, que é um lugar que não é “bonito”. Meio que, não é um “bonito” porque é um lugar
meio “falso”, “falso” porque você tem a cor, você já tem a cor, analógica, aí eu tenho uma
imagem que é digital, que eu já posso produzir a cor. Só que aí eu tenho a possibilidade de
apresentar a cor, e aí eu opto em não apresentar a cor. Aí já existe uma certa...o que eles podem
entender como “falso”. É um preto e branco falso, porque eu poderia ter cor, e eu retiro a cor.
É quase como uma moda, um kitsch, um p&b kitsch porque hoje qualquer pessoa pode fazer
essa imagem p&b simulando uma fotografia, com uma máquina digital simula um p&b, e aí
você pensa nesse retrô, não sei o que…essa imagem que é bonita, ou um falso bonito, o que
eles chamavam de kitsch. Então fala “Pô, por que ele tá fazendo isso?”, aí entra no lugar do
documento, mas é um falso documento, mas pra mim esse próprio trabalho trata disso. Desse
lugar, dessa imagem que poderia ser uma imagem falsa, mas é uma real, eu opto por retirar a
cor desse lugar, e aí falo desse processo popular, a popularização da possibilidade de fazer
imagem. A câmera fotográfica já é possível, você pode fazer imagem com um celular, com
tudo, então eu opto por fazer essa imagem sem cor. Todos têm essa possibilidade. E tem esse
lugar, então esse “não-bonito” é um pouco mais difícil de resolver com a falta de cor. Aí eu
preciso de achar uma luz, achar uma composição, mas que num primeiro olhar é uma imagem
“mal feita”, uma imagem míope, corta as cabeças. Aí você pergunta como é esse “aceitar”, é
um lugar da...tem uma dificuldade em aceitar essa imagem.
N.R: Mas você acha que isso é pelas questões formais ou por que você coloca de maneira mais
explícita as questões da experiência de um corpo negro, por exemplo?
P. N: É acho que…talvez ambos. Eu acho que talvez não dê pra separar, quando eu falo dessa
imagem, dessa imagem p&b, que é um falso p&b, então logo cai nessa falsidade, que usam o
termo em inglês que talvez tenha mais força pra falar disso, o “fake”. “Essa imagem é fake.”.
E pensar nas fake news…então essa imagem cai nesse lugar, no primeiro olhar, que é o fake,
128
porque você tem todas as possibilidades de realizar uma imagem com cor, mas as imagens
estão falando disso, eu estou falando de cor. E aí vem essa...e aí ela se torna esse documento,
né, mas é claro que se eu tiver falando de um documento, a cor teria mais informação, então é
um documento não completo, mas que quer falar de um lugar de documento. Então a gente tá
falando desse processo de documentação, é uma tentativa. Tem essa foto, e a imagem não fica
tão “bela”, tão decorativa. Apesar que pode combinar com qualquer coisa, com qualquer cor,
mas tem esse estranhamento. Esse lugar que ao mesmo tempo assume com mais força um
lugar de questionamento, um lugar social, um lugar racial, mas é isso. Por exemplo, essa
imagem do…só dando continuidade, por exemplo a imagem, uma das mais conhecidas, que é
aquela de Notícias de América, “Para tampar o sol de seus olhos”, então ela tem essa função
e ela cumpre essa função, que é bonita. E agora as outras imagens têm essa função mais de
faca, de faca cega, de cortar, de ser mais agressiva, apesar que esse nem por isso ela perde a
sua beleza.
N.R: Porque também as questões são muito duras, não é? Como tratar essa dureza?
P. N: Sim.
N.R: A dimensão da escrita também aparece bastante nesse processo. Como é isso, porque nos
seus currículos aparece a informação de que você estudou um período de Linguística na
UFMG. Você acha que isso marca o seu trabalho também?
P. N: Sim, sim. Por exemplo, a questão linguística aparece em muitos lugares, e é o lugar
social. Eu estou falando...eu gosto sempre de lembrar esse lugar da fala que aqui no Brasil é
muito forte, você falar “as pessoas falam errado”, “não sabe nem falar português direito e vai
aprender uma outra língua estrangeira, vai aprender inglês”. Então isso é muito forte, de a
gente ficar com vergonha de falar, vergonha de escrever, a gente não escreve, né. Agora um
pouco mais, né, tem o zapzap, o Facebook, a gente começa a escrever mais, uma escrita
informal, mas começa a escrever mais. Há algum tempo atrás a gente não escrevia, ficava com
vergonha de escrever uma carta, de escrever errado, tinha medo de escrever errado. Fazia
redação, todo mundo falava…por exemplo, tem um cara aqui que uma vez eu fui fazer uma
prova pra ele, um trampo ali, ele falava que não sabia fazer redação, então as pessoa ficavam
com medo de fazer...então as pessoas tinham medo de fazer redação, de escrever. E eu tinha
um, quando eu saí, vim lá da roça, de Santo Antônio das Figueiras, eu falava “ingrês”, falava
“ingrês” mesmo, e “pranta” e tudo. Trocava esse “L” pelo “R” e não percebia, pra mim,
“planta” e “pranta” era a mesma coisa. “Ingrês” e “inglês”. Demorei anos pra perceber isso.
Eles riam de mim, “probrema”, “pranta”...e riam muito de mim, e eu não sabia porquê, e eles
repetiam “problema!”...e eu não entendendo, não caia a ficha, não conseguia perceber onde
tava a piada do “probrema” e levou muitos anos. Eu tinha uma professora de português que
tentou auxiliar ali, até que um dia um menino que trabalha na padaria, e aí, riram de mim o dia
inteiro, eu falando “ingrês”, aí ele falou assim “tá, então eu vou te explicar. A diferença é o
“L” aí, o ‘in-gue-rês’ e o ‘in-gue-lês’. Você tá falando ‘inguerês’.”. E aí eu saquei, consegui
sacar. Ingrês e inglês, in-gue-rês e o in-gue-lês. Mas isso aí eu vou construindo isso.
P. N: Isso, hoje eu continuo escrevendo e aí eu vou entrando cada vez mais nesse mundo, nesse
lugar, que aí eu vou estudar. Aí eu vejo que, por exemplo, o Camões escrevia “ingrês”, ele
grafava “ingrês”. Então eu vou estudar edição de texto na Linguística. Antes de entrar pra
Letras eu fui pra Índia. Comecei esse processo, daí começa o Bureau de Langue, e aí começa
a aparecer essa diferença do inglês. Não existe só o inglês dos E.U.A. e da Inglaterra, existem
muitos ingleses, da África do Sul, da Índia, o inglês da Jamaica, e aí eu vou escutar os
“Bitles”…não é os Beatles [imita um sotaque britânico], também tem os “Bitles”. Então essa
possibilidade, isso vem do português, então “ingrês” e “inglês”, “in-gue-re-ja”...vou ver essa
129
N.R: E como é essa relação de compra e venda que você constrói, porque o mesmo panfleto
que você vende aqui por um real, você dá de graça, você vende na Mendes Wood...Como que
é isso?
P. N: Não, é que as vezes tem a cortesia, né. E a gente faz isso, você dá um, você tem a mesa
ali, a loja de banana, de goiaba, daí você parte uma goiaba e oferece uma goiaba pras pessoas
experimentarem e levarem mais goiaba. O mesmo caso da maconha. O cara, “Toma aí.” e
depois…é essa relação do comércio, da cortesia.
P. N: Aqui tem uns cachorrinhos aqui, eles latem, mas eles são mansos. Eles só mordem se
estiver de costas. Isso, eles são assim mesmo, mas não precisa ficar preocupado não [risos].
130
Aquela montanha ali é a…esse topo ali que a gente tá vendo é a Serra da Piedade, então aqui
a Estrada Real passava, e embaixo dele tá Caetés, que é outra cidade da época da Colônia,
então esse lugar aqui é bem estratégico. Então em cima você tem uma igreja antiquíssima lá
no topo, Serra da Piedade, Santa Luzia está logo ali, o centro Histórico, e aí você passa indo
pra lá. Sabará tá mais ali, e aqui era só esse miolo aqui e alí em cima é a tampa. Aqui é o
Caldeirão Setor 7, e ali em cima é a Tampa.
P. N: A Tampa do Caldeirão, isso mesmo. E aí essas casas, todo esse morro aqui era tudo
verde, assim, era uma mata, e só ficava o miolinho aqui e aí foi se ampliando. Então aqui o
pessoal é meio assim, o pessoal fala que é o seguinte, que aqui não é favela. Essa casa aqui da
esquina não é favela, aquela ali é. Outros fala que todo esse, até o lado de lá da rua é favela,
do lado de cá não é favela. Aí chega do lado de lá, naquela casa verde ali ó, verde embaixo,
meio rosa, vermelho, ali seria favela, então toda essa faixa, até o galpão ali, pra lá, é favela. Aí
do galpão pra cá é favela, daí onde passa aquele caminhão é favela, daí no lado de cá não é
favela. Tudo igual, mas.
P. N: Isso, aí chega naquela casa ali onde tem o morro, os dois lados desse morro é favela,
aquele galpão lá é favela, na frente não é favela. Aquela casa comprida não é favela, mas pra
lá seria favela, mas tem muito mato ainda, então é meio…meio fazenda. Aí todo esse morro é
favela até chegar lá na antena, aí na antena já não é favela. Então tudo nesse lado de cá do
morro é favela. Aí a gente segue a rua, até o final dela, do lado esquerdo não é favela, do lado
direito é favela. Aí a gente tem um barraco lá naquela antena, do alto do morro, lá é favela. E
aí você tem uma linha ali, aí desse lado é Santa Luzia, do lado de lá é Vespasiano. Lagoa Santa
tá aqui, nessa região, e eu gosto sempre de pensar nesse território porque…o Território de
Lagoa Santa, Luzia, então eu sempre gosto de subir lá no morro e pensar esses caminhos como
os caminhos de Luzia, essa mulher afro, negróide, e essa mais antiga desse território. Então,
pra mim, pensar esse Cadernos de África é um pensar a partir desse lugar aqui, né. É pensar
uma África da diáspora, mas existe esse lugar anterior à grande diáspora. Esse lugar também
dessa África anterior às grandes navegações. Uma África de Luzia, uma questão de uma África
pré-América, pré-histórica, pré-colonial, de um outro mundo. E aí uma outra possibilidade de
navegação de África pra cá, e aí você pode pensar na Ásia, um outro caminho, que não é esse
que nos foi apresentado.
Logo em seguida chega Julio que nos alerta do outro compromisso do artista.
Encerramos a entrevista, entretanto os dois me levam de carro a um outro ateliê no alto de um
morro, onde se encontravam algumas peças da série Produtos de Genocídio sendo
confeccionadas em resina, mas eu não continuo a gravação. No caminho de volta conheço mais
do espaço-entorno que é o Palmital.
Foi por acaso que descobri que Paulo Nazareth estaria em Vitória no dia 26 de
setembro de 2019, como parte da programação de um curso formativo oferecido pelo Programa
131
de Pesquisa e Formação da Galeria Homero Massena65 em que eu, até então, acompanhava os
encontros. Seria a primeira vez que o artista estaria na cidade em um evento de arte.
Para esse evento Paulo Nazareth foi convidado a fazer uma fala pública sobre os
deslocamentos na construção de seu trabalho. Após o fim da exposição da fala do artista e
durante a abertura para as perguntas do público, tive a chance de fazer ao artista uma questão
que orbitava as minhas reflexões. Propus a Paulo Nazareth que comentasse sobre os
deslocamentos empreendidos no mercado de arte a partir de um caso compartilhado pelo
próprio artista em uma entrevista publicada na revista Elástica (2012).
Napê Rocha: Boa noite, Paulo. Obrigado pela sua fala e por compartilhar o seu trabalho, com
a gente. Você comentou que o mercado é um lugar muito importante, um lugar de encontro,
lugar de trocas, e eu tenho me debruçado sobre o seu trabalho já algum tempo e tenho lido
muitas entrevistas suas. Eu gosto de pensar como a sua fala ressoa no seu texto, que ressoa no
seu trabalho de uma maneira geral. Daí lembro de ter lido um fragmento de uma fala sua pra
revista Elástica, acho que de 2012, em que conta um causo seu com um possível comprador
que, naquele momento ele identifica o seu trabalho como um trabalho bom pra se investir. E
ele quer comprar uma foto sua, que por acaso é uma foto em que você segura um cartaz escrito
“vendo minha imagem de homem exótico”. Só que ele também estava esperando que você
desse uma garantia pra ele de que aquele trabalho não seria reproduzido, mas aí fica um jogo
entre vocês dois ali. Ele quer a garantia, mas você não quer dá essa garantia tanto assim… E
alguns críticos vão atribuir a você uma postura um pouco desestabilizadora no mercado de
arte, as vezes é escorregadio, cria caso… Daí eu queria que você comentasse um pouco sobre
os deslocamentos que você constrói dentro do mercado de arte. O que significa por exemplo
vender gravura na feirinha da Savassi e vender gravura na feira de arte, vender junto com
limão, vender banana assinada pelo artista em Miami. Enfim, queria você comentasse desses
deslocamentos dentro do contexto do mercado de arte.
Paulo Nazareth: Eu vendi um…de vez em quando fico voltando lá atrás, porque vender coisas
eu…dentro do mercado eu já estou há muito tempo, então desde lá de Santo Antônio das
Figueiras que eu vendia chuque, que varia o nome: “chuque, sacolé, geladinho, chup-chup”.
A gente dizia chuque. Eu vendia chuque pra dona Alzira que era uma dona que criava porcos
e ela tinha uma porca que se chamava Neném, e ela andava atrás dela, e a Neném ia
engordando, engordando até não dar mais. Ficava supergorda, obesa e quando ela estava nesse
estado de obesidade, a porca espirrava sangue. Quando a porca estava nesse estado ela matava,
fazia uma farofa e convidava a comunidade que ia lá comer as carnes da Neném e ela pegava
outra Neném. E aí outra porca com o mesmo nome e essa história se repetia, então a
comunidade comeu muitas vezes, muitas Nenéns, que tinham o mesmo comportamento da
outra Neném: andavam atrás dela até se tornar obesa, até ter problemas cardíacos, de
respiração e ser morta. E ela fazia chuque. Ela inventava chuque de todos os tipos, de pão, de
café com leite, de outros tantos e eu e outros meninos íamos vendendo essa iguaria. Hoje as
pessoas chamam de…tem o chuque gourmet, né. Chup-chup gourmet. Mas ela já fazia a
gourmetização há muito tempo. Mas a gente vendia isso e vendia também...outra coisa que eu
vendia era o refugo, o lixo do alto forno o lixo da...então essa sobra, eu e outras crianças
garimpávamos o lixo e aí pegava os restos do ferro, a borra do ferro e a gente vendia isso no
65 O Programa de Pesquisa e Formação é uma iniciativa de formação da Galeria Homero Massena, espaço da
Secretaria de Estado de Cultura do Espírito Santo localizada no centro cidade de Vitória. Em 2019 foram
oferecidos dois módulos do curso Processo: Criação Crítica Mediação. O primeiro chamado Arte Sociopolítica e
Corporeidades e o segundo, O deslocamento na construção poética. Paulo Nazareth compunha a programação
deste segundo módulo.
132
ferro velho. Então eu já vendia no mercado. Eu tenho um projeto que é comprar uma ação da
Vale, mas eles não querem vender uma ação, então eu vendo essas borras. O trabalho é
especificamente fazer o que eu sempre fiz, vender o refugo, o que eu achasse na linha de ferro.
Aquelas coisas perdidas da Vale do Rio Doce, o resto a borra. Hoje eles não estão mais jogando
a borra, eles tão pegando tudo. Inclusive as barragens, a Vale, a Samarco etc e tal, eles brigam
porque eles tão querendo garimpar essa lagoa de dejetos e produzir mais dejetos. Então eles
querem garimpar essa poça de lama tóxica e fazer uma outra poça de lama mais tóxica ainda.
E aí tem todo esse terrorismo de falar que as barragens vão arrebentar em cima de uma
cidadezinha aqui e outra ali, e aí eles precisam trabalhar isso. Mas eu tenho um projeto que é
vender esse refugo, esse lixo, e com esse dinheiro, comprar uma ação. Só uma. Eu ainda não
consegui não. Eu tô querendo entrar num mercado de ações, mas só com uma ação só. E aí a
partir daí eu vendi limão, até misturar a gravura com sabão e doce de coco. Que nem, gostam
de falar que se a cocada sai com gosto de sabão é culpa do coco e não do açúcar, porque a
gente tem sabão de coco, não sabão de açúcar. E aí fica ali a cocada e o sabão, os dois
convivendo junto, se a cocada tivesse sabor de sabão, não era culpa do coco. E a banca tava
ali, então essa mistura de sabão e cocada já é uma questão da arte. Até uma questão de
deslocamento, já que eu estou falando de deslocamento, o deslocamento do cheiro do sabão
pra cocada. A cocada ficou com cheiro de sabão, e as vezes o sabão fica com cheiro de cocada.
Mas a partir daí eu vou me envolvendo, e ai eu acabei entrando por acaso nesse mercado maior
de arte por esse meu mercadinho. Então os galeristas chegavam, compravam o desenho na
minha mão, bem barato e depois me propuseram participar de um mercado, uma feira. Aí eu
participei. “Ah, uma feira?”, então vamos levar banana e aí levei banana, fez o maior sucesso.
E ai eu misturava esse lugar. No final é tudo mercado, é tudo mercado. As vezes a gente fala
“ah, tá no mercado”, as vezes quer manter uma questão...a gente fica assim com um pé atrás
no mercado de arte..a gente fica com não sei o que lá das quantas, mas o que eu fiz tá
mergulhado no mercado o tempo todo. A gente pra chegar aqui veio num mercado de
transporte. Ou veio de carro ou veio de Uber...outro mercado aí! O mercado virtual, o Uber,
ou veio do ônibus, né, um mercado muito mafioso, o transporte público, etc e tal. Então o
deslocamento de qualquer ponto que a gente tá na cidade, até a pé tem uma relação com o
mercado. Porque as vezes a gente coloca sapato, chinelo...mas até esse deslocamento a pé tem
algo que vem do mercado. Coloca um pedaço de borracha nos pés pra proteger e vai. Se não,
“ah, vou me deslocar de bicicleta”. Tem tanto de bicicleta do transporte...aí tem esse lugar da
bicicleta que foi gourmetizado. Andar de bicicleta virou assim...algumas pessoas podem andar,
outras não. A ciclovia está em determinado ponto da cidade, no centro. Dando a volta no
centro, mas você não tem uma ciclovia que vai pra periferia, não tem uma ciclovia que
atravessa a ponte. Então o deslocar de bicicleta é um deslocar por hobby, por uma outra
questão que não a mobilidade na cidade. Mas tá tudo isso dentro desse universo desse grande
mercado. Aí o que eu faço é pedir a proteção dos meus santos e jogar e ir pra essa roda. Eu
falo da capoeira angola. É fazer a mandiga. Você tem que entrar. Às vezes você está ali e você
é empurrado pra dentro desse jogo e o que você faz é jogar. E aí as vezes a gente faz as nossas
mandigas, porque as vezes você tem um jogador que tem a capacidade corporal acima da sua
e consegue fazer um aú, uma bananeira, um salto mortal e aí o que nos resta é fazer mandinga.
Que é a ginga, o brincar, a distração. Então quando a gente, na capoeira angola, na nossa
capoeira mãe, nossa capoeira filosófica, quando a gente joga com um oponente muito maior,
o que você tem que fazer é se fazer miudinho. A gente fala o jogo de dentro, o miudinho, o
miudinho, o miudinho, o miudinho, o miudinho. E aí você faz o corpo miudinho, o corpo
miudinho até entrar dentro desse corpo, embaixo desse corpo maior. E aí esse corpo miudinho
não permite que esse corpo gigante o atinja. E você assim por dentro, sempre miudinho. O
lugar mais seguro dentro da roda jogando com o corpo muito pesado é dentro desse corpo, se
a gente tá falando dessa ginga. E se a gente vai manter o acordo do jogo. Porque as vezes
acontece de você ter um acordo que é esse acordo do jogo de capoeira, e esse jogar miudinho
também faz parte do jogo de capoeira, mas esse...essa forma de corpo miudinho irrita esse
corpo maior e as vezes ele sai da regra. Ele viola e regra. As vezes tem que esperar isso. Poder
sair desse...debaixo desse corpo, porque as vezes ele pode ser traiçoeiro. Pode trair o jogo e
fugir da regra e aquele jogo que era de capoeira pode se tonar uma outra coisa. Isso pode
133
acontecer nesse mercado também, a gente faz esse jogo miudinho, essa ginga, essa brincadeira,
essa mandinga, mas a gente sabe que tá lidando com um monstro maior do que nós. Aí a gente
tem que ir aprendendo quando pular fora. Você tá debaixo desse corpo, mas em alguns
momentos você tem que pular fora. Sair de baixo. Não sei se eu te respondi de acordo...E esse
causo que você contou, essa imagem é um jogo também. Porque “vendo minha imagem de
homem exótico” e essa imagem, justamente essa imagem que é esse negócio com esse cara,
essa imagem, atrás dela, tem uma outra escrita que está escrito “no se vende. Cuidado con
estafadores”. Quer dizer, “não se vende, cuidado com um estelionatário, estafadores,
aquele cara que passa a perna”. Então é um jogo entre o cartaz “vendo minha imagem de
homem exótico” e o escrito atrás., que não se vende. E cuidado com o estafador. Então é isso,
a própria imagem está lidando com essa jogada. O que o cara pergunta é algo que não dá pra
responder, se essa imagem será ou não...firmada como objeto de arte na história da arte, no
mercado de arte. Mas a gente está lidando não só com o artista, mas com o negócio, que o
mercado tem uma vida própria. E tem gente que vai trabalhar com aquele…se ele faz uma
compra de um objeto ele vai querer que aquele objeto de arte mantenha seu “valor”. Não
exatamente como objeto de arte, mas seu valor como objeto de desejo, como objeto de
investimento financeiro, mas é sempre um jogo. Mas isso as vezes é uma aposta que as vezes
ele faz e perde. É uma máquina que as vezes pode ser uma máquina dos jogos de azar.
Essa foi a última vez que encontrei com Paulo Nazareth. Acredito que, de lá até este
momento, na verdade desde a entrevista no Palmital em novembro de 2018, meu interesse maior
não tem sido o de fazer análises do discurso do artista, mas, ao longo do processo da pesquisa,
buscar os rastros da narrativa de Paulo Nazareth em seu trabalho e vice-versa.
O que a entrevista e a resposta de Paulo Nazareth à minha pergunta mostram é que
existe uma coreografia própria do ritmo e da fluidez da narrativa de Paulo Nazareth que
atravessa os relatos partilhados em seus panfletos, seus projetos de ação, a organização de sua
linha do tempo e que também pode ser percebido através da sua fala. O obetivo do artista não
é de pormenorizar seu objeto de arte, mas reatualizar sua história de vida por meio do relato a
ponto de transformar ela mesma – sua história – em objeto de arte.
134
CONSIDERAÇÕES FINAIS
imemorial. Ambos servem para tornar a existência no presente e a continuidade no futuro como
algo próspero.
O corpus da pesquisa compreende trabalhos de grande amplitude de circulação
paralela ao sistema de arte. No primeiro capítulo, foram analisados exclusivamente os panfletos
e cadernos de projeto e, no segundo, analisamos fotografias e o blog PAULO NAZARETH ARTE
CONTEMPORÂNEA / LTDA. É importante salientar que o grupo com o qual Paulo Nazareth
dialoga diretamente desde os encontros promovidos pela sua errância, além dos seus pares do
sistema de arte, evidentemente são pessoas negras que podem experimentar dificuldades de
acesso a espaços institucionais de arte, como o artista mesmo relata viver apesar de ser um
artista de notada expressão nacional e internacional. O blog PAULO NAZARETH ARTE
CONTEMPORÂNEA / LTDA, portanto, opera como um dispositivo que pode alcançar um
público que, muitas vezes, é repelido pelas instituições, pelos espaços de consumo de arte e dos
espaços formativos. Além das fotografias e panfletos, os vídeos analisados também estão
disponíveis e facilmente localizáveis nas páginas virtuais do artista. Foi esse o primeiro espaço
onde tive contato com os trabalhos de Cadernos de África e mesmo que ao longo da pesquisa
eu tenha buscado outros trabalhos do artista em exposições, coletado eu mesma alguns panfletos
e recebido doações, considero importante tratar sobre um objeto de arte que está amplamente
disponível para apreciação.
O trabalho de Paulo Nazareth, no entanto, não deixa de circular no sistema de arte, nas
feiras e exposições no Brasil e no exterior. O artista, como relata na entrevista transcrita no
capítulo três, sabe usar de maneira hábil os diversos espaços que compõe o mercado de arte. Na
feira Art Basel Miami Beach com o trabalho Banana Market / Art Market ou na feirinha da
Savassi vendendo gravura e sabão de coco, Paulo Nazareth mostra que os trânsitos que exerce
poeticamente em Cadernos de África são também experimentados dentro do próprio sistema
no qual está inserido e atua de maneira dinâmica. Não pisar em solo europeu antes de percorrer
todos os países do continente africano, como orienta o seu trabalho, não significa negar aquele
que, para alguns, pode ser considerado como o referencial máximo do sistema de arte. Paulo
Nazareth não é um artista que está à margem do sistema, ao contrário, utiliza o sistema ao seu
favor e joga com ele. Sua participação na 55ª Bienal de Veneza com o trabalho The
Encyclopedic Palace, por exemplo, foi um importante movimento do artista ao levar duas
lideranças indígenas para o espaço expositivo e relatar as violências colonialistas sofridas por
esses povos no território que produziu e produz essas violências ao longo da história do
Ocidente.
136
Para abordar a constituição do sujeito de arte Paulo Nazareth, bem como sua
textualidade, foi fundamental que analisássemos seus panfletos e cadernos de projeto por serem
esses os trabalhos onde a narrativa textual do artista se faz mais presente. A palavra aparece no
trabalho de Paulo Nazareth como um artifício criador de coletividade que se potencializa em
sua comunicação panfletária e de sua escrita que se corporifica no pretoguês (GONZALEZ,
1988; 1984). A escrita foi abordada como parte desse processo em sua dimensão coletiva a
partir do conceito de escrevivência (EVARISTO, 2017a) que nos possibilita enxergar as marcas
e traços por detrás do texto de Paulo Nazareth ativadas por meio da ancestralidade como
fundamento para a ação e criação. Ao identificar a ancestralidade como fundamento de seu
trabalho foi possível discorrer sobre a presença de sua ancestral, Nazareth de Jesus, responsável
por seu estabelecimento como sujeito de arte. Nazareth é partícipe de todo esse caminho, como
vimos nas narrações de Paulo que ritualiza sua relação com a ancestral, de modo a suturar a
fissura causada pela sua morte.
No segundo capítulo, a encruzilhada (MARTINS, 1997) foi utilizada como operador
conceitual que orientou as análises dos trabalhos de Cadernos de África. A encruzilhada por
ser o território simultaneamente material e imaterial onde as culturas negras são gestadas,
possibilita uma leitura a partir de seu interior. A encruzilhada oportunizou uma leitura dos
trabalhos presentes em Cadernos de África à medida que produzíamos aproximações e
distanciamentos, fabricando imagens de dupla face em que as tensões são admitidas em seu
valor poético e crítico. Essas contradições habitam a rua e o corpo, que aparece como
instrumento de enunciação e produção de gestualidades de resistência a partir de um saber-
corporal (TAVARES, 2012) que operam na manutenção dos aspectos culturais presentes nas
origens de Paulo Nazareth e na continuidade da vida material desses grupos. Como resultado,
podemos avaliar que a encruzilhada oferece ricas possibilidades de interpretação de práticas e
poéticas oriundas das culturas africanas na medida em que, além de partir da mesma matriz que
seu objeto de análise, ela mesma possibilita a insurgência dessas criações. Como apontado por
Leda Martins (1997, p. 26), “a cultura negra é uma cultura das encruzilhadas”.
Ao longo da dissertação foi possível perceber que a narrativa presente em Cadernos
de África recusa apreensões lineares, operando a partir de uma dinâmica espiralar do tempo que
encontra sua motricidade em uma relação privilegiada com o passado, a ancestralidade e o mito.
Por isso a produção de uma narrativa encruzada que admite os desvios, contradições e
sinuosidades que sua narrativa apresenta. Propor uma narrativa encruzada significa ler o
mundo a partir de uma lente que não só supõe, mas preconiza uma relação ritualizada com a
ancestralidade para a consolidação de uma existência e continuidade factíveis nas quais os
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sujeitos negros existem em suas potências diversas. O passado serve de substrato para imaginar
e consolidar realidades futuras e o mito oferece respostas para as questões que não são de
maneira alguma inéditas, como nos ensina Ifá por meio dos Odù. A narrativa encruzada
reconhece o tempo como coisa maleável, matéria plástica para criação e o corpo como canal de
medição da narrativa. Ela apresenta uma possibilidade de reescrita da história das populações
africanas, de suas contribuições e presenças marcantes no contexto das Artes Visuais.
O terceiro capítulo trata-se de um compartilhamento de dois momentos da pesquisa
que se sucedeu. A entrevista com Paulo Nazareth significou uma importante realização no
percurso do trabalho. Com aquele material em mãos pude perceber que as minhas análises não
se encontravam descoladas da poética do artista. Não considero de maneira alguma que as falas
de Paulo Nazareth é que legitimam as minhas análises, mas compreendi que partir, como faz o
artista, de pressupostos afro-referenciados e de um pensamento estruturado a partir de uma
cosmovisão africana foi a escolha mais eficaz para o empreendimento da pesquisa. Por se
tratarem muitas vezes de questões as quais eu já havia discutido através dos trabalhos do artista,
optei por não fazer tantas análises ao longo da transcrição, oferecendo ao leitor a possibilidade
de criar suas próprias interpretações e intervir na narrativa produzida por Paulo Nazareth. O
ritmo da entrevista é consoante a cadência narrativa de Cadernos de África, uma vez que a
temporalidade aparece diluída e a espacialidade embaralhada.
Optei também por compartilhar um segundo encontro com Paulo Nazareth em que tive
a possibilidade questioná-lo sobre uma especificidade do seu trabalho – sua relação com o
mercado de arte –, mas que certamente oferece-nos subsídios para a interpretação de aspectos
integrais de sua poética. O que Paulo Nazareth apresenta como uma ginga que possibilita sua
legitimação no sistema de arte sintetiza um modo de estar no mundo que não é nada menos que
uma sabedoria corporal produzida pelos povos africanos e seus descendentes que, na diáspora,
possibilita os trânsitos necessários para a sobrevivência e manutenção da vida. É, como se diz
popularmente, uma malandragem que garante a subsistência.
Esse é um posicionamento de corpo que é característico do que Paulo Nazareth
convencionou e tem desenvolvido como “arte de conduta”. De acordo com o artista, esse termo
foi utilizado pela primeira vez para se referir ao seu trabalho por um jovem artista que ele teria
conhecido em meio a suas viagens pela América Latina. Em diálogo com Janaina Melo, Paulo
Nazareth (2012, n.p.) afirma ter ouvido que fazia “[...] algo que se chama de ‘arte de Conducta’.
Diz que não é performance ou acion! e sim conduta...”. O que define seu trabalho como “arte
de conduta” é o posicionamento ético em relação ao trabalho de arte e um modo de se colocar
diante do mundo que borram os limites entre arte/vida assim como dilui as fronteiras entre
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