Imagens Infantis Nos Desenhos Tradicionais e Nos Jogos de Computador
Imagens Infantis Nos Desenhos Tradicionais e Nos Jogos de Computador
Imagens Infantis Nos Desenhos Tradicionais e Nos Jogos de Computador
JOGOS DE COMPUTADOR
Maria Lúcia Batezat Duarte
UFU/UTP
1
WALLON, Henri. Do acto ao pensamento. Ensaio de psicologia comparada. Lisboa: Moraes Editores.
1979. p.161-2.
com representações mentais (com as experiências anteriores e com a memória, dizia
Vygotsky). Representar graficamente pressupõe construir uma imagem plástico-visual
do objeto, uma "representação" do objeto sempre reduzida e singular em relação à
multiplicidade e complexidade de sua concepção mental.
Quando se refere a representação no desenho, Wallon, estabelece uma
diferenciação entre o que denomina "transcrição gráfica", o desenho infantil das fases
iniciais, e "representação", o desenho de fases posteriores. Na "transcrição gráfica",
desenho das fases iniciais, as várias partes de um objeto são descritas pela criança sem
que, muitas vezes, a sua estrutura básica seja alcançada. Trata-se do sincretismo visual,
apontado também por Luquet (1969). Isto é, a criança ainda não consegue extrair do
todo (o objeto) seus aspectos estruturais, identificatórios e generalizantes. Os detalhes
do objeto são justapostos ao longo do espaço gráfico, decompondo a figura em partes,
fruto de uma percepção múltipla, ativa, diferente da visualidade possibilitada pela
contemplação do objeto a partir de um único ponto de vista. Na "representação", o
objeto desenhado a partir de pontos de vista determinados, apresenta uma configuração
unitária e totalizadora.
Para abordar a representação no desenho infantil, Wallon usa como referência as
fases de Realismo Intelectual e Realismo Visual de Luquet. Situa, na fase de Realismo
Intelectual, a passagem do sincretismo para a análise e síntese, apontando um momento
de representação inicial dos objetos identificada por "uma forma ainda rígida, mais ou
menos dispersa e estereotipada.”2 Nesse momento, a imagem gráfica é bastante
convencional. As variáveis inerentes às dessemelhanças entre as imagens visuais
externas de um objeto são excluídas. Trata-se de reconhecer o essencial e o elementar
das coisas, anulando-lhes a individualidade. Wallon considera que, nessa fase, a criança
desenha de memória ou fazendo uso de esquemas muito simplificados e estereotipados.
Frente à presença do esquema, Wallon pressupõe a capacidade de imobilizar o objeto,
isto é, ser capaz de observá-lo a partir de um ponto de vista único, de uma única face.
Trata-se de uma aprendizado e de uma conquista fundantes para o desenrolar da fase
seguinte, o Realismo Visual.
Para esse autor, a conquista perceptiva e intelectiva do "ponto de vista único",
mesmo através do reducionismo do esquema, permite maneiras novas de apreensão da
forma que garantem a possibilidade gráfica da representação plena do objeto. Nas
2
WALLON, Henri. Op.Cit, p.197.
2
representações mais usuais do desenho infantil, a figura é sintética. A forma do objeto é
identificada, geralmente, pelo “seu aspecto ortoscópico, isto é, pela visão que daria
dela a sua orientação exatamente perpendicular à linha do olhar”. Wallon cita Buhler
para esclarecer que essa imagem sintética (representação/esquema) seria, “no plano do
sensível, o equivalente a um conceito”, a uma idéia, ao significado internalizado do
objeto. 3 A conquista do ortoscopia permite a representação do objeto por meio de uma
estrutura bastante simples e fácil de aprender. Wallon apresenta como exemplo a
representação de uma cadeira pela sua visão lateral, utilizando apenas linhas que
convergem em ângulo reto, solução esta usada inclusive por um adulto que não tenha
maiores conhecimentos de desenho e arte.
Luquet também verifica a repetição de determinados esquemas nos desenhos
infantis. Considera esse tipo de representação uma conquista interna da criança, uma
conquista dissociada das relações interpessoais e do mundo externo. É o que denomina
“Modelo Interno” 4. Modelos Internos são figuras que se repetem exatamente ou com
algumas modificações em vários desenhos da criança. Luquet percebe-os como
pertinentes a determinada criança, ao seu arquivo imagético pessoal e intrapsíquico. Isto
é, a criança usa, no seu desenho, representações que foram armazenadas tendo em vista
seu próprio esforço em desenhar, suas conquistas gráficas. Este conceito de Luquet
parece extremamente válido e consequente nas fases iniciais do desenho (pré-escolares),
principalmente no que se refere à conquista da representação da figura humana, onde é
evidente a manutenção/alteração de esquemas representacionais próprios e condizentes
inclusive com o domínio cinestésico da criança.
Acredita-se, entretanto, de acordo com Wallon, que desde a idade escolar, estas
convenções gráficas, ou esquemas, são fornecidas principalmente pelo meio exterior,
pelo ambiente sociocultural. Ainda que os esquemas representacionais apresentem-se
como uma conquista gráfica (e até mesmo uma conquista interna, internalizada), suas
fontes, principalmente após o ingresso da criança na escola, não parecem ser apenas um
esforço individual e particular frente ao objeto real a ser representado, mas também a
repetição de representações gráficas usuais no meio-ambiente sociocultural. Os
desenhos passam a ser concebidos a partir de representações aprendidas, como a
3
WALLON, Henri. Op. Cit, p.213.
4
LUQUET, G.-H. O desenho infantil.. Porto: Ed. do Minho. 1969, p.81 e ss.
3
palavra, através de processos interpessoais (o desenho de outra criança, ou de um
adulto) ou através da mídia (Histórias em Quadrinhos, Desenhos Animados).
Em "Uma visão iconoclasta das fontes de imagens nos desenhos de crianças",
Brent e Marjorie Wilson argumentam que após os 8 ou 9 anos de idade se inicia um
processo de desenvolvimento artístico que permanece operacional durante toda a vida.
Trata-se da perda da ingenuidade em arte e do início do processo de “aquisição de
convenções artísticas”, um processo imitativo similar ao aprendizado da fala.5 Brent e
Marjorie Wilson coletaram desenhos e realizaram uma série de entrevistas com 147
estudantes de várias idades (maiores de 9 anos), que invariavelmente apontaram como
origem de seus desenhos outros desenhos. Isto é, indicaram o processo imitativo como
fonte de suas imagens gráficas. Para esses autores, as imagens mentais mais úteis são
justamente aquelas recebidas "através de nossas percepções prévias de outros
desenhos” e não os milhares de imagens mentais armazenadas nas vivências do
cotidiano como, por exemplo, a visualidade de uma figura humana sentada, correndo,
andando, deitada, etc. Semelhante a Wallon, no que se refere ao esforço intelectivo da
representação, consideram que: “As configurações gráficas [dos desenhos já vistos, ou
de Histórias em Quadrinhos] são imobilizadas no tempo e no espaço; elas são vistas de
6
um único ponto de observação e mantêm-se numa única posição.” São, portanto,
mais simples e de memorização mais fácil do que os objetos com os quais se relacionam
de modo anamórfico.
Frente a essas argumentações, parece possível considerar que, na produção de
desenhos infantis, apesar da amplidão dos recursos mentais de representação dos objetos
e das coisas, algumas representações são mais passíveis de utilização, porque pertencem
ao sistema psíquico de um modo específico. Como se, independentemente de uma
origem formativa mais particular ( as convenções gráficas de Luquet), ou mais cultural
(os esquemas aprendidos de Wallon e dos Wilson), determinadas imagens fossem
mentalmente armazenadas em função de um destino comum: a significação das coisas
do mundo, através do desenho.
Refletindo sobre a dialética da relação entre imagem e conceito, representação e
palavra, que pressupõem diferenças e ao mesmo tempo solidariedade, Wallon afirma:
5
WILSON, Brent. WILSON, Marjorie. Uma visão iconoclasta das fontes de imagens nos desenhos de
crianças. Revista AR´TE. 1984. n.1, p.14
6
WILSON, Brent. WILSON, Marjorie. Op. Cit., n.2, p.14
4
Não há conceito, por mais abstrato que seja, que não implique alguma imagem
sensorial, e não há imagem, por mais concreta que possa ser, que não seja
suportada por uma palavra e não faça entrar os limites do objeto nos limites desta. 7
Vygotsky relembra que o desenho é, cronologicamente, na experiência infantil,
posterior à fala:
“... o desenho começa quando a linguagem falada já alcançou grande progresso e já
se tornou habitual na criança. (...) a fala predomina no geral e modela a maior parte
da vida interior, submetendo-a a suas leis. Isso inclui o desenho.”
E conclui:
“Notamos que quando uma criança libera seus repositórios de memória através do
desenho, ela o faz à maneira da fala, contando uma história. (...) Vemos, assim, que o
8
desenho é uma linguagem gráfica que surge tendo por base a linguagem verbal.”
Falar e representar graficamente implica emitir conceitos, significados, sobre
objetos e sentimentos. São processos comunicativos, em que o mais interno e pessoal
encontra-se com mais externo e social. Trata-se, ao mesmo tempo, de dois níveis de
organização psíquica (o verbal e o não-verbal) e um único nível de dicurso9, um
entrelaçamento, uma vez que mentalmente, enquanto memória e percepção consciente,
a figura do objeto e a palavra que o nomeia, ou a cena vivenciada e o sentimento
resultante, ocorrem simultaneamente.
Nos estágios iniciais, via de regra, o desenho infantil necessita da verbalização,
da palavra, para que o objeto garatujado (intencionalmente ou não) seja identificado
pelo observador. Acredita-se, a partir dos argumentos de Wallon e Vygotsky que,
mesmo nos estágios posteriores, de aprimoramento realista, onde se torna clara a relação
anamórfica entre o objeto e a sua representação gráfica, a palavra permaneça atrelada ao
esquema gráfico. Ao mundo das coisas, material e concreto, impõe-se o discurso sobre
as coisas, um universo de conceitos, palavras e imagens, em entrelaçamentos e
indissociabilidades. São duas instâncias, uma da materialidade, da concreção, da coisa
ou objeto propriamente dito; outra do discurso, dos modos de nomear e significar o
objeto.
Nos desenhos infantis das primeiras séries escolares, a representação gráfica e a
palavra parecem ser coincidentes. A externalização da primeira subentende a presença
7
WALLON, Henri, Op. Cit., p.223
8
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes. 1989, p.126-7.
9
Considera-se aqui “discurso”, toda a articulação verbal e/ou não-verbal, que externalize e exponha uma
idéia do sujeito para outros sujeitos.
5
mental da última. Nesses desenhos, os modos de expressão e comunicação verbal e não-
verbal, ou verbal e visual, não são excludentes, mas simultâneos, interdependentes,
ainda que a exteriorização ocorra apenas através da representação ou esquema gráfico.
Seria possível estabelecer a seguinte relação:
2. INTER-SEMIOSE
10
BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo:Cultrix. 1964, p.18
7
produção do adulto em arte. Na arte, o adulto busca exatamente transcender, escamotear
os limites da linguagem verbal através da “fala” artística plástico-visual. Se, na
produção artística do adulto o discurso construído é “um tal fazer que enquanto faz
inventa o por fazer e o como fazer”11, isto é, é uma fala construída no momento de sua
articulação, a produção infantil de desenhos nos primeiros anos da vida escolar parece
ser muito mais uma fala previamente anunciada (Vou desenhar um barco!), um discurso
verbal reproduzido no desenho através de esquemas gráficos fixos aprendidos.
Pelo seu histórico de saturação e quase estereotipia, a leitura dos esquemas
gráficos infantis é simples e direta. O signo icônico pode significar todos os tipos de
árvores e todas as árvores do mundo quando de sua grafia seca, e a intenção da criança
que desenha parece ser esta mesma, dizer de uma árvore qualquer, de qualquer tipo, e de
qualquer parte. A particularidade do sentido surge pelo excedente da sua grafia, as
maçãs desenhadas na macieira, por exemplo, e neste caso o signo não é mais “árvore”
mas “macieira” e o jogo paradigmático está rompido, ou reduzido. Por outro lado, é
possível surgir no desenho a frase gráfica “Esta sou eu no quintal de minha casa” e
nesse caso a árvore representada ganha especificidade pelo seu lugar sintagmático no
desenho construído.
Na quarta e última parte de “Elementos de Semiologia”, Barthes apresenta o que
poderíamos denominar dois modos de saturação do signo: a conotação e a
metalinguagem. Essa saturação requer dois sistemas de significação imbricados um no
outro. Na metalinguagem, “os significados de um segundo sistema são constituídos
pelos signos do primeiro.” Isto é, o plano de conteúdo é fornecido pelo imbricamento
de um sistema de significação pleno, um signo, que completa o novo sistema de
significação. Então: C=(ERC) ou E R (ERC); ou ainda Se + Signo (Se/So). Barthes
retoma Hjelmslev para lembrar que uma metalinguagem é “uma operação” e que uma
operação (de significação) “é uma descrição fundada num princípio empírico, vale
dizer, não contraditório (coerente), exaustivo e simples”12 Assim, pela metalinguagem
uma linguagem primeira ou sistema (novo) estudado é significado.
No caso dos esquemas gráficos dos desenhos infantis, o primeiro elemento do
sistema, o significante ou plano de expressão é dado pelo próprio desenho, pelo
esquema gráfico. O segundo elemento do sistema, o significado ou plano de conteúdo é
11
PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes. 1984. p. 17
12
BARTHES, Roland. Op. Cit. p.97.
8
dado pelo signo verbal imbricado. Trata-se então de um sistema metalinguístico cuja
operação de significação parece ser coerente e simples.
Considera-se ainda que, apesar de qualquer sofisticação de leitura posterior, essa
deve ser uma operação executada “naturalmente” pelas crianças no ato mesmo de
realização de seus desenhos, frente a uma circularidade de informações ( apoiadas no
que se poderia denominar “senso comum”) que perpassa inicialmente os membros de
suas famílias e as comunidades escolares, e configura o “hábito” da “tradução” do
desenho pela palavra que o “identifica”. Estaria assim configurado um processo
metalinguístico de inter-semiose, um imbricamento de semiose visual e semiose verbal.
Entende-se que, uma vez comprovada e assimilada a ligação insolúvel entre o
esquema gráfico e o signo lingüístico na significação dos desenhos, tanto no nível da
produção quanto no nível da fruição, estaríamos frente a um processo metalinguístico
no qual não há uma nova língua mas uma língua(gem) visual associada à linguagem
verbal. Ressalte-se que nesta metalinguagem gráfica, forma e substância do plano de
expressão são internacionalmente idênticos, ainda que no plano de expressão do signo
verbal que compõe o seu segundo termo a forma (acústica, gráfica) mude conforme a
língua falada pela criança que a produz.
Observa-se que o esquema gráfico reduz e iguala todas as casas, todos os sóis,
todas as árvores, todos os pássaros, todas as montanhas, todos os mares. Para além da
criatividade infantil, o que parece estar em jogo é o sentido dessa grafia, dessa escritura,
o seu “valor de equivalência”.13 A casa de telhado trapezóide e paredes retangulares
seria a representação universal e “igualitária” de toda e qualquer moradia humana, um
esquema que substituindo e integrando a palavra é “legível” em todas as línguas,
instaura uma língua(gem) universal. Negado esse sentido, a representação esquemática
destina-se a ser apenas o registro vazio de um ato repetitivo e automático da “hora do
desenho” na escola.
Considerar esses esquemas uma lexia, um elemento de linguagem, confere um
sentido didático-pedagógico ao desenho escolar: ele pode significar a utilização de uma
metalinguagem plena de significados, de compreensões, aprendizagens.
13
BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo:Ed.Bertrand Brasil, Difel, 1957.p. 133)
9
3. ESQUEMAS DE DESENHO NOS JOGOS DE COMPUTADOR
Como se desenha uma casa, um barco, uma árvore, uma flor,... são questões
desnecessárias à criança que brinca com um CD -ROM. Em “Pintando com o Seninha”
(1995)14 ou “Magia de aprender” (1999)15 ela recebe os desenhos prontos. Basta usar o
cursor, clicar no mouse para colori-los e depois imprimir ou imprimi-los e depois
colorir. Casa, sol, montanha, são “esquemas gráficos” ensinados não mais pelo irmão, o
coleguinha da escola, a tia, o pai, a avó, mas pela máquina mágica que fala e oferece
quase tudo pronto.
Qual a diferença entre o desenho aprendido com os humanos visíveis e próximos e o
desenho aprendido com a máquina? Os humanos próximos que ensinam os esquemas
usuais de desenho geralmente não são desenhistas. São meio parecidos com a
alfabetizadora que ensina palavras e frases mas não é poeta nem escritora. Familares e
amigos que ensinam a desenhar ensinam o esquema que pertence ao “senso comum”,
ensinam o desenho que todos desenham, um esquema tão usual, tão inquestionável, que
arriscou-se aqui a compará-lo e a assimilá-lo à palavra, à lexia que identifica, diferencia
e nomeia os objetos do mundo.
Os desenhos que surgem na tela do computador são um pouco diferentes. De algum
modo guardam a simplicidade esquemática dos outros desenhos, mas são representações
mais sofisticadas, que traduzem o exercício gráfico do adulto desenhista e ilustrador de
Histórias em Quadrinhos e Desenhos Animados (semelhantes àqueles divulgados pelos
Studios Walt Disney). São árvores de troncos e galhos retorcidos como aquelas da
floresta do Bambi; barcos pesqueiros como aquele da história de Moby Dick; olhos
amendoados, rostos redondos, corpos largos e curtos, como tantos personagens que
ilustram historinhas infantis. O traço firme de contorno preto e a cor plana dos recursos
gráficos são utilizados com precisão pelo ilustrador.
Aquilo que surge na tela do computador não é mais o esquema anônimo e ingênuo
que pertence indistintamente a todas as pessoas e identifica o objeto (como e com a
palavra). O desenho do computador identifica o objeto mas identifica (ou deveria
14
Neste aplicativo, em um dos links os traçados básicos de desenho do personagem principal e dos
demais personagens são oferecidos para que a criança copie. Outro link e a criança descobre desenhos
prontos para colorir.
15
Neste aplicativo, no link intitulado “Faça você mesmo: pintura livre”, são oferecidos desenhos prontos
para colorir e figuras de flores e bichos que podem ser arrastadas e coladas à paisagem inicial para
completá-la e decorá-la.
10
identificar) junto com ele um desenhista adulto a quem a criança, presume-se, deverá
imitar fascinada.
Percebe-se, então, uma total inversão de valores de jogo. Nos primeiros esquemas
gráficos em análise, aqueles aprendidos-desenhados no cotidiano familiar e escolar da
criança, verificou-se em sua pluralidade de sentidos e usos a presença de “códigos” de
uma língua(gem), ou metalinguagem como nos sugeriu Roland Barthes. Os demais
teóricos nos possibilitaram aproximar fortemente o movimento de grafia da palavra à
grafia esquema-representacional do objeto desenhado estabelecendo bases para a
identificação de um processo de inter-semiose. Nos esquemas gráficos dos jogos
eletrônicos analisados a grafia é suficientemente pessoal, para impedir um sentido
conceitual-abstrato que consubstancie o código da língua(gem). Parece ser também
suficientemente esquemática e repetitiva para distanciá-la do conceito de arte, palavra
não raro divulgadora dos jogos analisados que, entretanto, ainda deseja invocar uma
singularidade e identidade autoral de fato não completamente efetivadas, submersas na
mesmice das soluções gráficas que a tudo iguala.
Trata-se então, de dois esquemas gráficos distintos: o primeiro componente de um
aprendizado tão natural quanto a fala, quanto o aprendizado da língua materna; o
segundo componente de uma estratégia didático-pedagógica que oferece todas as
respostas, que estabelece um padrão estético a ser copiado, e que compreende a
produção infantil de desenhos como um mero exercício de reproduzir contornos, colar
figurinhas, e preencher espaços com cores variadas.
16
Em “L’image, un vue de l’esprit” , Bernard Darras propõe uma categorização das
imagens visuais produzidas pelos sujeitos considerando seus níveis de abstração, suas
origens cognitivas. Distinguindo o pensamento visual, cuja referência é
preferencialmente a experiência ótica, do pensamento figurativo, construido
especialmente “na rede e no jogo das categorias cognitivas”, atribui a este último o
topos de um mundo gráfico gerador de diferentes signos que atuam no ambiente
16
DARRAS, Bernard. “L’ image, un vue de l’esprit. Étude comparée de la pensée figurative et de la
pensée visuelle” Recherches en communication, n.9 Paris, 1998.
11
comunicacional. Darras indica o símile, representação gráfica que se caracteriza por
simular a realidade, ser uma réplica do real, como o signo que conserva ainda uma forte
presença do pensamento visual. Buscando registrar as características específicas do
objeto representado, o símile pertenceria ao nível subordenado de abstração cognitiva,
no qual a abstração é quase inexistente dando lugar a um simulacro de realidade. Na
outra ponta desta seqüência de imagens gráficas e atingindo a um grau máximo de
abstração, o autor situa os diagramas que constituíram e constituem a escrita primitiva,
como os hieróglifos, e conservam apenas os traços absolutamente gerais e estruturais do
objeto de referência. Os diagramas pertenceriam ao nível super-ordenado de abstração
cognitiva.
Entre esses dois níveis polares, Darras estuda o nível de base, aquele que não é nem
sub nem super, mas apenas ordenado. O nível de base seria então o topos dos infinitos
esquemas nos quais os objetos são representados graficamente com diferentes soluções
que os tornam representantes mais ou menos gerais e genéricos de uma classe de objetos
do mundo visível. Darras cita estudos da psicologia cognitiva para dizer que o nível de
base é “principalmente constituído de propriedades figurativas” e que são
“principalmente estas propriedades figurativas que servem de componentes ao
programa de fabricação de esquemas”17 Neste nível de abstração os traços figurativos
resumem-se às propriedades gerais e consens uais do objeto, a representação gráfica
apresenta-se mesmo como um “resumo cognitivo”:
Este nível de abstração é privilegiado porque funciona como um resumo
cognitivo de atributos dos mais distintos, mas é também o nível que é mais
freqüentemente solicitado. Em geral, as palavras que nele são originadas são as
mais curtas, e segundo nossa hipótese, as imagens gráficas que nele se originam
18
são as mais simples e destinadas à comunicação e à repetição.
Darras acrescenta:
O nível de base fornece à demanda os esquemas gerais e consensuais que
constituem as respostas standars. A propriedades figurativas originárias deste
resumo cognitivo são ao mesmo tempo as mais gerais e as mais distintivas. Elas
oferecem além disso a incomparável vantagem de terem sido elaboradas a partir
do consenso da comunicação comum. 19
17
DARRAS, Bernard. Op. Cit. p.86. As traduções do francês são minhas.
18
Ibidem, p.86
19
Ibidem, p.88
12
No percorrer desses níveis apresentados por Darras encontram-se em jogo
diferentes graus de abstração e cognição. Quanto maior o grau de abstração e mais
esquemática a figura, maior o valor de código, de signo, adquirido pela representação
gráfica. Maior, também, a sua relação com caracteres da linguagem verbal e sua
possibilidade de uso como recurso comunicacional imediato em determinado meio
ambiente.
Revendo então as representações gráficas infantis à luz da hipótese de Darras,
parece possível asseverar que estas representações usuais e de caráter universal seriam
pertencentes ao pensamento figurativo no domínio do nível de base (ordenado) e
integrantes do agrupamento de imagens que Darras denomina Iconotipo, caracterizando-
o pela sua produção rápida, consensual, mediatizável, coletiva ou individual, de duração
efêmera e comunicação local. O próprio autor cita a infância como a etapa de vida de
grande produção de iconotipos, termo cunhado para distinguir os esquemas gráficos
ocasionais dos repetitivos. O autor acrescenta que os iconotipos são signos gráficos
neutros, polivalentes e polissêmicos, e esclarece que neste caso:
...os processos de repetição coordenam a memória processual e esta
contribui para estabilizar e automatizar a produção de iconotipos. A maior parte
dos estudos concernentes à memória processual postulam que existem módulos
ou unidades cerebrais de tratamento automatizado. Esses módulos engendram e
conservam seqüências standartizadas e congeladas. Elas se caracterizam pelas
seguintes propriedades: ausência de controle voluntário, irrepreensibilidade,
rapidez de resposta, eficácia, habilidade, rigidez e inflexibilidade. A vantagem
desses automatismos é de reduzir o custo e a carga mental, eles permitem uma
economia do trabalho mental...20
Parece incorreto concordar com Darras apenas quando ele indica o que a difusão do
iconotipo seria local e não universal (ou quase) como se percebe ser a presença dos
esquemas gráficos estudados. Talvez, na verdade, os esquemas por nós observados
como generalizantes (casa, árvore, nuvem, água, montanha, sol,) sejam um grupo
especial de iconotipos, cuja relação esquema gráfico-palavra, aproxime-os bastante da
função e das características dos pictogramas, estes sim, classificados por Darras pelo
seu caráter universal, sua autonomia parcial, mas também pela rigidez que lhes é
peculiar .
20
Ibidem, p.90
13
As casas apresentadas abaixo são desenhadas por todas as crianças, por um longo
tempo.
Luis Fernando 7a
Thaís 6a
Selma 7a
14
Esquemas Gráficos de Jogos de Computador
Quadro inicial do jogo “Magia de Desenho pronto para colorir (J.2) Desenho colorido com figuras
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EDUSP. 1980.
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DARRAS, Bernard. “L’ image, un vue de l’esprit. Étude comparée de la pensée
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15
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---------------.Imaginaire et pedagogie. De l´iconoclasme scolaire a la culture des
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LEVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. São Paulo: Ed. Trinta e Quatro. 1993.
LUQUET, G.-H. O desenho infantil. Porto: Ed. do Minho. 1969.
PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes. 1984.
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CD-ROM Pintando com o Seninha. São Paulo: MPO Vídeo/Airton Senna Promoções e
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