Dione Carlos - Ialodês

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IALODÊS

Dione Carlos

1
Ialodê: Título recebido por mulheres que exercem liderança em sua comunidade.
Sankofa: Pássaro ancestral de duas cabeças (representando o passado e o futuro).
“Se wo were fi na wo sankofa a yenkyi ”

“Não é tabu voltar para trás e recuperar o que você perdeu ”

Pássaro indicador: Pássaro que guia humanos até colmeias, através de cantos
específicos entoados pelos humanos.

“O agora é agora

O agora é passado
O agora é futuro
Uma conjuração mágica de forças passadas e futuras, no presente”.
Niama Safia Sandy, antropóloga.

“O Afrofuturismo não cria em oposição a nada. Não tem a ver com confirmar algo.
Tem a ver com ser algo”, Ytasha Omack, escritora.

“O propósito desta ficção (Baseada na teoria da bolsa, em contraponto ao da lança)


não é nem a resolução, nem a estabilidade, mas o processo contínuo”, Ursula Le
Guin, escritora.

Para todas as mulheres que nos ajudaram a chegar até aqui e às que ainda virão.

2
PRÓLOGO
(A grande Mãe Pássaro está presente/ Ela se faz ouvir)
Pássaro de duas cabeças
Nós lhe invocamos, em nome de nossas avós
Nossos verdadeiros nomes
Nomes de sangue
Livres de corrente
Sonhos vivos
Sabedoria latente
De avó-ewé- folha sagrada
Sabedoria de mulher
De avó benzedeira
Ancestral presente
Olhai por nós, Grande Mãe Pássaro
Livrai-nos dos olhos de pimenta, das bocas amargas
Que toda má-água seque
E o mel escorra em seu lugar
O mel das avós
O ouro das mães
Neste lugar, aqui, agora
Onde nossas avós estão presentes
Em cada gesto
Em nossos nomes
(Se apresentam)
Ayobami (Que a riqueza me encontre)
Femi (Me ame)
Bisi (A primeira filha)
Oni (Nascida em casa agrada)
Asali (Mel doce)

3
A COLMÉIA
(Ruídos)
Bisi
Ouviu?
Oni
Sim
Bisi
O mesmo som, sempre
Oni

(Mostra uma das mãos)


Continua tremendo
Piora quando eu escuto o barulho que eles fazem
Bisi
Vai passar
Eles produzem ruídos
Nós criamos música
Oni
Precisamos ensaiar, Bisi
Bisi
Ensaiaremos
Faremos o que precisa ser feito
Nós sempre fazemos
A ferida fecha
A dor diminui
O tremor passa
Femi
Respeite o tempo da cura, Oni
Oni
Quanto tempo é isso, Femi?

4
Femi
O tempo da lágrima secar perto da boca
O tempo da língua colher a lágrima
O tempo do sorriso voltar para o rosto
Bisi
Vai passar
Oni
Queria poder tocar novamente
Bisi
Cada vez que o seu corpo ouve um instrumento, ele se cura
Você voltará a tocar, pode ter certeza
Falta só esta mão
O resto já curou, cicatrizou, fechou
Oni
Fechou
Femi
Fechou para o que não serve mais
Ayobami
Houve um tocador de banjo. Um tocador de banjo comum. Tocava desde os doze anos.
Aos quinze, perdeu dois dedos da mão esquerda em um incêndio. Passou a tocar
guitarra, com três dedos. Criou um novo estilo. Tornou-se um gênio. Quando você está
ferido, consegue extrair o melhor do seu potencial. Acredite, Oni. Além do mais, tem as
folhas
Bisi
Tem folha, tem mel, tem reza
Femi
Tem banho de água salgada para limpar, água doce para renovar
Ayobami
Tem sempre alguém cuidando, em silêncio, sem ser vista
Oni
Eles são muitos, mas nós somos mais

5
Bisi
Somos muitas mais
Ayobami
Eles separam êxtase de transe. Não gostam de transe
Asali
Não gostam de transe, de transa, de nada
Acham que êxtase é um tipo de droga
Acham que transe é possessão maligna
Bisi
Vamos ensaiar
Vamos responder a este tempo com tudo de bom e ruim que ele nos oferece
Oni
Quem começa?
Ayobami
Asali tem algo novo
Asali
Escrevi para mim, tinha pensado em não mostrar, depois percebi que era para todas nós
Femi
O que é íntimo é universal, Asali
Asali
É um manifesto
Ayobami
Você escreveu um manifesto sobre si ?
Asali
Para mim
Oni
Sobre todas nós
Asali
Para todas nós

6
Bisi
É sempre assim
Ayobami
Sobre nós, não é sobre eles
Talvez por isso não nos tolerem
Asali
Poderia ser sobre eles também, se não estivessem tão amortecidos
Oni
Como isso aconteceu?
Bisi
Isso nunca deixou de acontecer
Femi
Talvez continue acontecendo para sempre
Talvez exista uma razão para continuar acontecendo
Ayobami
Razão é algo que desconhecem, não há razão nenhuma que justifique as ações deles
Asali
Não conhecem o poder do mel, só do ferrão
Femi
Transformar veneno em antídoto exige vontade
É preciso muito sangue para exercer a própria vontade
Bisi
Nem todo mundo suporta dormir e acordar com dúvida
Asali
A alegria é um ato político
A alegria não é uma realidade
A alegria é uma escolha, um posicionamento existencial
Bisi
Dito isto, comecemos a responder a este tempo com tudo o de bom e de ruim que ele
nos oferece, pois eles continuam a nos chamar de bruxas em todos os lugares. Em seus
discursos, nas capas dos jornais, nas rádios, na tv, na internet

7
Ayobami
Eu poderia...
Bisi
Não
Temos um código de ética e vamos respeitá-lo
Asali
Eu acho que a gente devia mesmo, sabe, por exemplo, considerar...
Oni
Agir como eles?
Femi
Jamais seremos como eles, mas...Para proteger a nossa família, talvez, tenhamos que...
Bisi
Não
Não mancharemos as nossas mãos e tampouco os nossos nomes
Vamos começar
Asali, por favor

5 RAINHAS (COLMÉIAS)/ ENSAIO DA ARKESTRA


I
Asali
Neste manifesto, reafirmo
O meu prazer como um contragolpe
Cabem todas e todos aqui
Neste esconderijo bem guardado
Caverna-paraíso perdido
Éden-escuro universo
Feita de carne, fluídos e sangue
Dela cuido eu e bem cuidada
É minha, de mais ninguém
É preciso chegar com leveza antes de usar a força

8
Porque eu gosto da força, mas ela, ela não, ela precisa de tempo
Ela tem o tempo dela
Eu tenho o meu
Quando os nossos tempos se encontram, se fundem em gozo
E não termina
Acontece de novo
É preciso chegar com leveza antes de usar a força
Descascar, lamber, chupar, degustar
Como se fosse uma manga
Uma manga rosa com o interior dourado
E doce
Você não extrai o melhor com força
Você machuca, estraga, faz apodrecer
E fica com fome
Eu chego com leveza, sempre, antes da força
Eu dedilho, me dedico, me concentro, toco com leveza e força e leveza e força
Escorro
Gozo líquido dourado e doce
Murmuro palavras incompletas
Não formo frases
Falo em gemido
Um som agudo, longo e profundo
É preciso chegar com leveza, sempre, antes da força
Para ouvir este meu idioma sem tradução
Este meu gemido poliglota
Meu dourado e doce gozo
Vem, eu direi
Depois da leveza
Vem de novo
Durante a força

9
Quero você na exaustão
A ponto da parada cardíaca
Chorando de gozo
Não é alegria
É uma pequena morte
Ela tem o meu nome
Eu quero ouvir você gozar o meu nome e não esquecer dele nunca mais
Dentro de mim
Entra e fica quem eu quero
Eu escolho você
Eu digo sim
Se eu digo não, ninguém entra
Eu me fecho, seco
Mas para você eu digo sim, vem
Quero ouvir as palavras que você não usa todo dia:
Apoplético
Fleumático
Loquaz
Pachorrento
Pândego
Taciturno
Incólume
Frugal
Belicoso
Capcioso
Empedernido
Misantropo
Iconoclasta
Insolente
Pérfido

10
Ardiloso
...
Você já amou o seu corpo hoje?
Eu amo o meu todo dia
Todo dia é dia de amar o próprio corpo
O meu corpo sempre será um oásis, mesmo numa tempestade de areia

II
Ayobami
Vermelho-rubro-sangue
Desses que surge todo mês
Talvez exista uma fase da lua que a gente ainda não percebeu
Lua nova-anciã
Lua crescente-jovem
Lua cheia-mãe
Lua minguante-feiticeira
E alguma outra fase desconhecida
Talvez nós estejamos sob esta outra fase da lua
Recebendo algum tipo de influência nova
Exercendo algum tipo de influência diferente nas pessoas
Lua-serpente
Lua-liberdade
Todo mês, uma lua
Escorrendo, sendo descartada
Não a minha
A minha lua, eu planto
Consagro a minha lua
Todo mês
Com palavras de poder
Consigo o que eu quero

11
Tenho o que eu desejo
Sou encontrada pelo que me deseja
Prospero na minha negritude
Prospero no meu cabelo, nos meus dentes, nos meus olhos
Lua-negra- rubra-vermelha-escura
Todo mês, uma lua escorrendo pelas pernas
Eu não descarto
Planto e prospero
Na minha casa tem um jardim de luas enterradas
Meu útero nutriz ainda vazio
Todo mês, uma lua
Sendo germinada
Eu colho as minhas luas
Elas crescem fortes
Folhas-ewé- de sangue bendito
Folhas- ewé- de quem abençoa
Um bebê, um desconhecido, um parente
Bate as folhas-ewé, coisa ruim leva embora
Bate as folhas-ewé, faz dormir o insone
Bate as folhas-ewé, dá coragem a quem teme
Bate as folhas-ewé, que seja uma boa viagem
Planto luas, rego com sangue
Planto luas, encontro coragem
Para voltar para mim
Para dizer que sim
Saí ontem, voltei hoje
Cheguei agora
Quem foi a primeira a sangrar na tua família?
Ela sabia plantar a própria lua?
Ela prosperou?

12
Vamos aprender a prosperar?
Não acumular, multiplicar. Vamos?

III
Oni
A minha avó veio do planeta Fome
Tinha fome e voz
Eu tenho voz, dizem
Eu tenho mãos também
Uma delas ainda treme
Esta aqui
Moldei Deus com a minha mão esquerda e o transformei em Deusa
É para Ela que eu rezo
Em nome da Deusa, da mãe e da filha
Criamos comunidades em torno de colméias
A minha avó não deixou a minha mãe nascer no planeta fome
A minha avó, a nossa avó
A avó das cinco rainhas, das cinco colméias
Colméia-cidade-comunidade-autonomia
Nós, rainhas
Sim, rainhas
O mel matou a fome
O mel acabou com aquele planeta
A minha avó sabia onde estava o mel
Ela o vendia
Ninguém entendia como ela o achava
Apenas o pássaro no mel sabia
O pássaro no mel: Ele se chamava Indicador Indicador
O canto da minha avó o chamava
Indicador Indicador, onde está o mel?

13
E ele a guiava até uma colméia escondida dentro de uma árvore
A minha mãe, as nossas mães
Mães e tias de cinco rainhas
Nós, rainhas
Sim, rainhas
As nossas mães trocaram o mel pelo ouro
E o planeta fome, cada dia mais vazio
Aquele planeta está tão distante de nós agora
O nosso planeta é dourado e brilha
Ouro: Amarelo, denso e maleável
Nascido da colisão entre duas estrelas de nêutrons
Do espaço sideral para mãos artesãs
Eles nunca entenderam como achamos mel e ouro no planeta Fome
Mas tem, colméias e jazidas inteiras nas bordas das grandes cidades, no campo
Pepitas escondidas
Eu sei onde elas estão
O ouro é um sol que nasce no fundo da terra
A minha mãe tinha dentes de ouro
"Uma mordida rica", dizem

Uma boca eletrificada


Cheia de ouro condutor
A minha mãe sabia mesmo morder
Ela era a cabeça, a que senta na ponta da mesa
A que cuida das cabeças
Uma grande mãe, dizem
Mas eu sabia
Ela era tão sozinha
Cuidando dos outros
A grande mãe na ponta da mesa
Sentada sozinha no meio do barracão

14
Guardando segredos de gerações
Indicador Indicador, onde está o mel?
Indicador Indicador, diz para mim:
Como faz para livrar um corpo da dor?
Indicador Indicador, onde está o mel?
Indicador Indicador, cuida das minhas irmãs
Indicador Indicador, que não falte o mel
Indicador Indicador, responde ao meu chamado
Indicador Indicador, me leve com você até o céu

IV
Bisi
Tradição
Cada ventre carrega uma tradição
A minha é ensinar
O que eu precisei aprender sozinha
Eu tenho aprendizes
Como eu fui um dia
Aqui, nesta cidade-colméia, quando era aldeia
Depois do mel e do ouro, veio a música
Agogo para Asali
Gã para Ayobami
Adjá para Femi
A voz de Oni
E um chekerê para mim
Uma orquestra de sinos
5 mulheres
A orquestra tornou-se uma arkestra
Trocamos violino por agogô
Violoncelo pelo gã

15
Piano pelo adjá
Soprano pelo naipe do mar
Todas cantamos ondas gigantes
Indo e vindo
Eu te amo, eu te amo
É isso que o mar nos diz
Alguém pensou isso antes de mim
Alguém viveu isso antes de mim
Tem tradição que não é minha
Aprendi na escola dos outros
Aprendi a não confrontar as partes do meu mosaico
Mas eu vivo agora o que será revivido depois de mim
Alguém sonhou com você antes de você existir
Cada pessoa é o sonho de alguém
Cada pessoa é o pesadelo de alguém
Eu quero que revivam o meu melhor
Ondas gigantes
Indo e vindo
Eu sou, eu sou
É isso que o mar nos diz
Alguém pensou isso antes de mim
Alguém viveu isso antes de mim
Tem tradição que não é minha
Aprendi na escola dos outros
Por isso eu tenho a minha escola
Sem teto, paredes, nem fileiras
Sob o pé de uma jaqueira
Elas estão atentas
Olhos grudados aqui
Enganando a morte

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Um dia, quem sabe, é
Um dia, é certo, é
Um dia: Aqui JAZZ
Já não jaz nada
JAZZ
Aqui JAZZ a fundadora de uma ARKESTRA
Manipuladora de tempo no espaço
Raio perdido no oceano
Bisi, eu, a primeira filha
A primeira mulher a nascer
Tradição
Eu reinventei a minha
Confrontei o meu mosaico
Com espelho, vidro, cimento, ferro
Diga para mim: O que você vem ensinar?
Diga para mim: O que você quer aprender?
Diga para mim: O que você quer saber?
Diga para mim: O que você já sabe?
Diga sim para mim
Diga sim para você

V
Femi
Tempo, me abraça
Assim, devagar
Eu estou viva
Tudo o que é vivo, sangra
Seja vermelho ou verde, animal ou vegetal
Eu sangrei duas vezes
Oitenta dias no total

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Pintei o meu rosto com o meu sangue
Tinha sangue meu no rosto dos meus filhos quando eles nasceram
Tem sangue meu nas veias deles
Cabe uma vida inteira no olhar de um recém-nascido
Só reconhece a voz da mãe e do pai
Você deseja que ele tenha boas visões
O seu rosto é a primeira visão que ele descobre
Ele sorri com a sua voz
Você chora com o sorriso dele
Tudo o que é vivo, chora
Seja vermelho ou verde, animal ou vegetal
Eu chorei muitas vezes
Mas as lágrimas sempre secam perto da boca
Eu passo a língua, bebo choro
O meu rosto fica salgado
Você já perguntou para a sua mãe quem ela é antes de ser a sua mãe?
Porque existe uma pessoa dentro da sua mãe
Uma pessoa que talvez você não conheça ainda
Uma pessoa como todas as outras
Um pessoa como eu
Ou você acha que ela é sua mãe o tempo inteiro?
Já olhou a sua mãe bem de perto?
Mães ficam blues, azuis
Mães são blues cantados no fundo das casas
Mães se perdem
Mães já não lembram mais do próprio nome
Me abraça, tempo
Assim, devagar
Aqui, na cidade-colméia, a linhagem é materna
Tudo é passado pela mãe

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A mãe tem posse de tudo
Mel, ouro e música
Tudo vem das mães
Tudo volta para as mães
O fim nasce das mães
Toda mãe é uma arca negra
Eu toco adjá
Já ouviu um sino de adjá?
Às vezes, sou eu vibrando ali dentro
Estou chamando a mim mesma
Esvaziando a minha arca negra
Repetindo o meu nome para mim
Femi, Femi, Femi
Me ame, me ame, me ame
E eu nunca respondo
O amor correspondido é tão silencioso
O que você anda dizendo para si mesma?

PESTICIDAS
Asali
O mesmo cheiro, todo dia
Bisi
Estão queimando novamente
Femi
Sempre no mesmo horário
Ayobami
Por que gritam deste jeito?
Asali
Parecem tão desesperados

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Oni
Eles são desesperados
Bisi
Primeiro desesperam, depois gritam e ateiam fogo
Ayobami
O fogo deveria purificar, apenas isso
Femi
Para eles o fogo serve apenas para destruir
Bisi
Não entendem a nossa tradição
Oni
Só conhecem desespero
Ayabomi
Continuam queimando
Asali
Dizem que controlamos as pessoas com música
Femi
Bruxas, dizem
Bisi
Não aceitam a nossa independência
Oni
Nascem desesperados
Femi
Bruxas
Asali
Nossa avó, nossas mães, construíram escolas, hospitais, casas, creches, centros
culturais...
Bisi
Não aceitam a nossa autonomia
Ayobami
Serão consumidos pelas chamas que criaram

20
Oni
Um desespero tão profundo
Femi
Bruxas
Asali
Somos um modelo, não algo a ser destruído
Bisi
“Um modelo perigoso”, dizem

Femi
Bruxas
Asali
Três gerações de Colméias, uma comunidade autônoma, bem regulada
Bisi
Por isso mesmo “Perigosas”, Asali
Ayobami
Queimaram árvores
Oni
Eles crescem com medo
Asali
Usamos o mel, o ouro e a música para recuperar o que foi roubado de nossas avós
Femi
Bruxas
Asali
Não roubamos nada
Bisi
Não aceitam a nossa prosperidade
Ayobami
Árvores centenárias
Oni
O medo é uma religião com muitos fiéis

21
Femi
Somos bruxas
Bisi
Não como eles imaginam
Femi
Pois é...
Asali
Eles não sabem disso
Ayobami
Eles não sabem de nada
Bisi
Usaremos os sinos daqui para frente
Asali
Todas nós?
Bisi
Todas
Oni
Vamos queimar o medo

RAINHAS/OPERÁRIAS/SOLDADAS/ RITUAL/ENSAIO/TRANSE

I
Asali- ritual-mel
Rainha-soldada-operária
Morre hoje
Nasce ancestral amanhã
Renasce em milhares
Todo dia
Mel-ouro-líquido
Magia negra dourada

22
Ergue o doente
Amansa o bravo
Eterno
Ácido
Nenhum microorganismo vinga
Eu, Asali, mel doce
Adoço, amanso, ergo
Me ergo
Como uma pirâmide
Pedra a pedra
Uma por vez
Uma sobre a outra
Subo até o topo
Aponto para as estrelas
Recebo a luz do sol
Meu sorriso é uma vingança
Minha alegria é um protesto
Meu corpo é um templo bem protegido
Subo até o topo
Quem me alcança?
Você?
Vem

II
Femi-ritual-sangue
Coroa de rainha com cobra na testa
Na minha tem um dragão
Todo dragão é uma serpente com asas
Dragão-fêmea-feminina
Voa alto

23
Cospe fogo
Entorta a lança do guerreiro
Destrói armadura de robocop
Sangue verde-vermelho-vegetal-animal
Quem colocou você no mundo, robocop?
Tira essa bota de perto de mim
Marcha para o lado de lá
Virado para a parede
De castigo permanente
Nu, como um recém-nascido
Quem amamentou você, robocop?
Respeita esses peitos
Põe a cabeça no chão para o corpo que lhe gerou
Pois aqui deste meu ventre
Nasce o fim da guerra
Eu vejo um exército inteiro voltar para casa
Eu desfaço hordas
Eu vi
Eu fiz
Eu vejo
Eu faço
O meu sangue, o nosso sangue, não será mais derramado

III
Ayobami-ritual-ouro
Ouro, eu te chamo pelo meu nome
Escasso e raro, ouro
Sonho de alquimista
Material nobre
Pó de estrelas

24
Ouro-sangue-dourado-negro
Volto no tempo para buscar o que perdi
Agora, aqui, nesta palavra-sopro-ofó
Ouro, eu te chamo pelo meu nome
Ayobami
Que a riqueza me encontre
Ouro, marfim e bronze
Agora, aqui, neste bate-folha-ewé
Sai o que não serve
Fica o que é nosso
Cobre, chumbo, prata, estanho e ouro
Assim como o ouro
Aprendo a não queimar no fogo
Apago incêndio com palavra-sopro-ofó:
Colméia-ouro-mel-dourado-luas-negras-rainhas
Amarro, aperto, enlaço
Afasto, protejo, nomeio, encaminho
Ayobami
Que a riqueza me encontre
Ouro, eu te chamo pelo meu nome

IV
Bisi-ritual-Fogo
Antes do arco e da flecha, a bolsa
Antes da caça, a colheita
Antes da linha, o círculo
Antes de começo, meio e fim, eterno retorno
Consagro este movimento
Em espiral
Purifico

25
Vento, leva
Pacifico
Vento, traz
Em espiral
O pássaro no mel
O ouro na pedra
Música de rio
Voz de ancestral
Cabeça no chão
Beijo no pés
Beijo passado-presente-futuro-agora
"Levante", a ancestral diz

Não me prostro
Reverencio de pé
Sem me deixar abater
"Levante", a ancestral diz

A Grande Mãe Pássaro abre as asas e sobrevoa


Há um tipo de bico para cada pássaro
A Grande Mãe destrincha oponentes
E chama o nome de suas filhas
Grande Mãe Pássaro, ela está PRESENTE

Ritual de cura de Oni. Ela revive um evento. Livra-se dele.

V
Oni-ritual-Água
De pé
A mão ainda treme
Caio
O cavalo pisoteia

26
Bem aqui
Minhas irmãs chegam
O cavalo deita sobre as quatro patas
O cavalo empina derrubando o cavalheiro
O cavalheiro cai do cavalo sem entender porquê
A mão ainda treme
Caio
O cachorro morde
Bem aqui
Minhas irmãs chegam
O cachorro lambe onde havia mordido
Foge da coleira
O homem fica com a coleira vazia
Não caio mais
Minhas irmãs estão sempre aqui
“Você tem voz”, dizem

Assumo a voz
Todas temos
Algumas só demoram para descobrir
Eu tenho voz e estou de pé
Onde tenho voz
Cavalo não pisoteia
Cachorro nenhum morde
Estou de pé e tenho voz

27
ENXAME
Bisi
Entraram em transe, a contra gosto
Asali
Talvez tenham até transado depois daquilo
Ayobami
O tipo de milagre pelo qual eu rezo
Femi
São tão sugestionáveis
Bisi
Não, eles também possuem raízes, como nós
Oni
Estavam em transe
Asali
Estavam possuídos
Femi
Despossuídos de si
Oni
Primeiro gritavam: Bruxas!
Depois caíam no chão, tortos
Asali
Quem anda errado, cai sempre errado, machuca e vive machucado
Femi
Despossuídos de qualquer certeza
Bisi
O que eles mais temem está dentro deles, bem escondido, como uma bomba armada
Ayobami
Agora que nos colocamos como bruxas, alguns nos seguem, no lugar de perseguir
Oni
O medo é uma religião com muitos fiéis

28
Bisi
Nós armamos esta bomba que eles carregam
Femi
Despossuídos do medo
Ayobami
Espero que esta bomba interior exploda de uma vez
Bisi
Não estamos aqui para destruir
Asali
Tenho a impressão que tiveram o primeiro encontro com o próprio corpo
Bisi
Estamos aqui pelo direito de continuar existindo
Oni
Como bruxas
Bisi
O que é uma bruxa?
Asali
Pareciam bebês descobrindo as próprias mãos
Ayobami
Uma bruxa é toda e qualquer mulher dona de si
Asali
Como um bebê sugando o próprio dedão
Oni
O que é uma bruxa para eles?
Ayobami
Para eles a terra é plana
Existe mesmo o fim do mundo
Bisi
O que é uma bruxa, na prática?
Ayobami
Não distinguem um macassá de um manjericão!
29
Femi
Uma bruxa é toda e qualquer mulher dona de si
Asali
Como um bebê reconhecendo a voz da mãe e do pai
Bisi
Toda e qualquer
Não é uma casta privilegiada
Ayobami
Mas ser bruxa é um privilégio
Todo privilégio envolve muita responsabilidade
Asali
Como um bebê puxando o próprio cabelo
Ayobami
Eles jamais serão bruxas
Femi
Despossuídos do temor ao Divino
Asali
Como um bebê, de pé, pela primeira vez
Femi
Estavam divinizados
Ayobami
Não serão bruxas como nós
Bisi
Não queremos que eles sejam como nós, queremos?
Asali
Dançando pela primeira vez
Movimentando o corpo com música
Bisi
Queremos que despertem

30
Oni
Toda religião nos coloca para dormir
Femi
Eu sonho com Deus
Ele não é mulher, nem homem
Mas eu o chamo de Deusa
Ayobami
Quero que nos respeitem, que não vejam o nosso conhecimento como uma solução
mágica para os seus problemas materiais, porque eles rezam para o Divino em suas
religiões de fachada e nos procuram para curar doenças, restituir riquezas, atrair o bem
amado... Até quando nos verão neste papel?
Bisi
Nós os acolheremos com toda a sua ignorância
Eles são muitos, mas nós somos muitas mais
Vamos curá-los, aos poucos, com mel, folha e água...
Femi
Curá-los pela escuta
Asali
Como bebês, com os olhos fechados, sorrindo para dentro, dançando, até que eles se
jogavam no chão, como se algo atropelasse aquele momento, como se qualquer
possibilidade de voltar a ser uma criança, de ouvir, ver e falar pela primeira vez, fosse
atropelada por quatro pneus de caminhão
Bisi
Estão muito machucados
Ayobami
Nós também! Há séculos, machucadas!
Asali
Sem qualquer possibilidade de tocar a própria pureza
Bisi
Não SOMOS machucadas
Fomos machucadas
Ayobami
Não farei mais o papel de curandeira, não do modo como eles imaginam
31
Bisi
Não, não mais
Femi
Vamos curá-los pela escuta
Chamá-los pelos seus nomes de antes
Asali
Acordá-los, acordar
Acordar com todos os músculos, nervos, ossos, sistemas
Acordar com tudo o que somos, temos
Acordar o coração, o pulmão, o estômago
Acordar a testa, o queixo, os lábios
Acordar os cabelos, os pelos
Acordar o púbis, o cóccix, o fêmur
Acordar, como pela primeira vez, dentro de um útero
Ayobami
É preciso respeitar o bate-folha
É preciso respeitar o ofó-palavra
É preciso respeitar a água da moringa
É preciso respeitar o sumo e o sangue
É preciso respeitar a pena e a pemba
É preciso respeitar o ponto riscado, a vela acesa, a esteira no chão
É preciso respeitar a mão que limpa, a mão que cuida, a mão que abre o búzio
É preciso respeitar a si mesma
Bisi
Conhecimento acumulado, não dividido, vira informação
Deixa de ser conhecimento
Ninguém vai roubar o nosso ouro, nem o nosso mel, muito menos a nossa música
Lembre-se: Indicador Indicador, onde está o mel?
Ninguém, além de nós, canta COM o pássaro
Eles podem reproduzir o canto, mas o pássaro nunca virá

32
Porque eles cantam PARA o pássaro, não sabem cantar COM ele, COMO ele
Você pode enganar alguns, muitos, não a todos, sempre
E ao pássaro ancestral, NUNCA, ninguém o engana
Oni
Toda religião nos coloca para dormir
Eles devem ter tantos pesadelos
Femi
Vamos curá-los pela escuta
Chamá-los pelos seus nomes de antes
Antes de abraçarem o tempo
Ontem é agora
Hoje é agora
Amanhã é agora
Agora é aqui
Deixe que o tempo lhe abrace
Deixe que o tempo trabalhe em você
Deixe que o tempo aconteça no seu corpo, no seu espírito
Que ele não passe rápido, nem devagar demais por você
Tempo, me abraça
Me abraça, tempo
Oni
Eu tive tantos pesadelos
Também dormi sonhos assim
Antes de voltar para casa
Antes de estar com vocês novamente
O medo é uma religião com muitos fiéis
Eu afirmava verdades do mundo para esconder as minhas incertezas
Até aquele dia, caída na rua
Perdida e sozinha
Longe da colméia-cidade-mãe

33
Longe de vocês
Ali, caída na rua
Perdida e sozinha
Voltei para mim, para nós
Troquei o medo pelo amor a tudo
Agora que eu voltei para mim, para nós, não quero que ninguém esteja onde eu estive
Ninguém mais
Nenhum, nenhuma a menos
Eu não quero ser como eles
Ayobami
Oni, sua mão não treme mais

EPÍLOGO
(A grande Mãe Pássaro está presente)
Pássaro de duas cabeças
Nós lhe invocamos, em nome de nossas avós
Nossos verdadeiros nomes
Nomes de sangue
Livres de corrente
Sonhos vivos
Sabedoria latente
De avó-ewé- folha sagrada
Sabedoria de mulher
De avó benzedeira
Ancestral presente
Olhai por nós, Grande Mãe Pássaro
Livrai-nos dos olhos de pimenta, das bocas amargas
Que toda má-água seque
E o mel escorra em seu lugar
O mel das avós

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O ouro das mães
Neste lugar, aqui, agora
Onde nossas avós estão presentes
Em cada gesto
Em nossos nomes
Indicador Indicador, onde está o mel ?
O pássaro pousa no mel
O mel está em nós
O mel escorre pela pele dourada, negra, negra, negra
E brilha como ouro
Mãe ?
PRESENTE

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