Christine Arndt Santana

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA


NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

Educação e Literatura: Voltaire e a função educadora dos


textos literários

Christine Arndt de Santana

São Cristóvão
2008
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

Educação e Literatura: Voltaire e a função educadora dos


textos literários

Christine Arndt de Santana

Texto apresentado como pré-requisito para a


obtenção do título de Mestre, do curso de
Mestrado em Educação, do Núcleo de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal
de Sergipe, sob orientação do Professor Doutor
Edmilson Menezes Santos.

São Cristóvão
2008
BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Edmilson Menezes Santos UFS (Orientador)

Profª. Drª. Carlota Josefina Malta Cardozo dos Reis Boto USP

Prof. Dr. Jorge Carvalho do Nascimento UFS


Para Vladimir de Oliva Mota, por ter sido o
“Bordão a amparar minha cegueira/Da noite negra
o mágico farol...”
As letras alimentam a alma, corrigem-na,
consolam-na [...].
Voltaire

A Literatura faz parte da ‘educação’! Por quê, e


desde quando? Porque os gregos encontraram
num poeta o reflexo ideal de seu passado, de sua
existência, do mundo de seus deuses. Não
possuíam livros sacros nem castas sacerdotais.
Sua tradição era Homero. [...] A dignidade, a
independência e a função educadora da literatura
foram estabelecidas por Homero e sua influência.
Ernst Robert Curtius
AGRADECIMENTOS

A minha família – meu pai, João Nery, minha mãe Leda Arndt, minha irmã Natália Arndt e
minha sobrinha Nicole Arndt – cujo amor alimenta minha determinação.
A minha segunda família, a do meu sogro Wellington Paixão, pelo carinho, acolhida e todos
os momentos agradáveis que me proporcionaram, em nossa convivência, suavizando a dureza
da vida acadêmica.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Edmilson Menezes, pela confiança que depositou no trabalho e
pela orientação rigorosa.
À Profª. Drª. Anamaria Freitas pela leitura atenta do meu trabalho e o prazer da amizade.
À Profª. Maria das Graças de Souza pelas indicações de leitura e dicas valiosas para o bom
andamento da pesquisa.
Aos Professores Doutores Antônio Carlos Viana e Jorge Carvalho, por toda a atenção a mim
prestada.
Ao meu co-orientador, Prof. Dr. Antônio Carlos dos Santos, cujas recomendações
enriqueceram minha pesquisa.
À Profª. Drª. Sônia Barreto, pelas rigorosas indicações metodológicas a minha dissertação.
Aos meus amigos, especificamente: Tatiana, Luciene, Daniele, Priscila, Geovânia, Guilhardd,
Ismael, Elton, Rodrigo, Jonaza, que tiveram a paciência necessária, quando precisei me
ausentar.
Às colegas de sala que se transformaram em amigas: Evelyn e Maria José, por
compartilharmos as angústias e as alegrias desse processo.
Às amigas do NEPHEM, Lidiane e Hortência.
À turma de 2006/1, pelas discussões e reflexões agradáveis.
Ao NPGED e a CAPES, que viabilizaram este trabalho.
RESUMO

O que aqui se tem em vista é compreender e identificar a tarefa educadora da literatura na


Ilustração francesa, isto é, no movimento intelectual do século XVIII. Os objetivos
específicos deste trabalho são: entender algumas expressões literárias – o panfleto, o conto,
por exemplo – como instrumentos a serviço da educação, uma vez que estes são eficazes
veículos transmissores dos valores morais e, por fim, mostrar como se dá a função educadora
da literatura em Voltaire, por meio da análise de um de seus contos. Tendo em vista alcançar
tais objetivos, o trabalho foi dividido em três capítulos. O primeiro, intitulado “Ilustração,
Educação e Literatura”, expôs o contexto do período histórico estudado, apresentando
algumas de suas principais características, via a pena voltairiana e, posteriormente,
comentadores da modernidade e do movimento ilustrado; após essa exposição, tratou,
sucintamente, da transformação ocorrida na pedagogia da época. O segundo capítulo,
“Voltaire – Ilustração e obra militante”, iniciou apontando, ainda, algumas das mudanças
ocasionadas na Era Moderna para, em seguida, apresentar Voltaire e sua época, enfocando a
influência deste autor e a revolução gerada nos espíritos a partir dessa influência; as obras
voltairianas analisadas nesse momento do trabalho, para que se pudesse enxergar o alcance da
revolução e influência do filósofo em tela, são: Memórias, Dicionário Filosófico, Cartas
Filosóficas, Tratado sobre a Tolerância, Tratado de Metafísica e O Filósofo Ignorante.
Finalmente, o terceiro capítulo, nomeado “Voltaire e a ‘moral em exercício’”, é o ponto
nevrálgico do trabalho e traz, em suas linhas, a Teoria Literária que fundamentou o tema desta
investigação, a saber, a função educadora dos textos literários; nesse sentido, foi
imprescindível, para a compreensão do problema proposto, a análise de um conto de Voltaire,
chamado Jeannot e Colin, para, dessa maneira, ilustrar como se processa a função pedagógica
da literatura.

Palavras-chave: Educação; Literatura; Ilustração; Voltaire.


ABSTRACT

What we have in mind in this thesis is to understand and identify the literature educational
role in French Illustration, known as the intellectual movement of XVIII century. The specific
goals of this research are: understand some literary expressions - the pamphlet, the short story,
for example - as instruments in service of education, considering that they are effective when
transmitting moral values and, at last, showing how the educational function of literature in
Voltaire is achieved, through the analysis of his short stories. To succeed in researching these
goals, the text was divided in three chapters. The first, called "Illustration, Education and
Literature", exposes the context of the historical period studied, presenting some of its main
characteristics, through Voltaire's writings and, after, through modern and illustrative
movement commentators; after this exposure, it discussed, in short words, the transformation
that happened with pedagogy in that time. The second chapter, "Voltaire - Illustration and
militant work", started pointing, yet, some changes that happened in Modern era to, after,
present Voltaire and his epoch, focusing in the influence of this author and the revolution that
this influence generated; Voltaire's works analyzed in this moment of the thesis, in order to
observe the revolution and influence of the philosopher, are: Memórias, Dicionário
Filosófico, Cartas Filosóficas, Tratado sobre a Tolerância, Tratado de Metafísica and O
Filósofo Ignorante. Finally, the third chapter, named "Voltaire and the 'moral in action'", the
main part of the thesis, and brings, in its lines, the literary theory that based the theme of this
investigation, to know, the educational function of literary texts; in that sense, it was very
important to the understanding of the proposed problem, the analysis of Voltaire's short story,
called Jeannot e Colin, to illustrate how the literary pedagogical function is processed.

Key words: Education; Literature; Illustration; Voltaire


SUMÁRIO

I. INTRODUÇÃO................................................................................................11

II. PRIMEIRO CAPÍTULO: Ilustração, Educação e Literatura..........................20


2.1. Primeira aproximação com a Modernidade: o conto “Pequena Digressão”................20
2.2. O que é a Modernidade................................................................................................27
2.3. A metáfora das Luzes e a razão humana......................................................................38
2.4. As Luzes Francesas e sua face educativa.....................................................................43

III. SEGUNDO CAPÍTULO: Voltaire – Ilustração e obra militante...................57


3.1. Voltaire philosophe: uma “revolução” nos espíritos....................................................57
3.2. A singularidade da presença voltairiana na Ilustração: sua Literatura, sua Filosofia..64
3.2.1. Voltaire: um mélanges entre vida e obra............................................................65
3.2.2. Sua Literatura, sua Filosofia: as armas que possuía para tornar o mundo
melhor...........................................................................................................................78

IV. TERCEIRO CAPÍTULO: Voltaire e a “moral em exercício”.........................120


4.1. A Literatura: sua natureza, suas funções, sua relação com a sociedade....................120
4.2. O “Dulce” e o “Utile”: a “moral em exercício”.........................................................127
4.3. A “moral em exercício”: uma das missões dos Philosophes.....................................134
4.3.1. Como se processa a “moral em exercício”........................................................137
4.4. Voltaire e a preparação para a “moral em exercício”................................................144
4.5. O papel de Voltaire: civilizar, esclarecer, formar, educar os seres humanos.............148
4.6. As “paixões” em Voltaire: a possibilidade de “fazer sentir”................................151

4.7. O enredo a serviço da “moral em exercício”: Jeannot e Colin.............................155

4.7.1. Considerações acerca de Jeannot e Colin.................................................156

4.7.2. Jeannot e Colin: um conto moral; não um quadro crítico dos costumes.........157
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................172
VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................177
I. INTRODUÇÃO

A relação entre Educação e Literatura não é um fato novo, remonta às origens da


cultura ocidental. Esta relação teve seu nascimento na Grécia, por volta do século V a.C., com
Górgias, siciliano, discípulo de Empédocles, que nascera por volta de 485 a.C.,
contemporâneo de Sócrates e que foi o responsável pela criação de uma nova fonte da
retórica 1 , tornando-a estética e propriamente literária. Colocando a retórica a serviço do belo,
Górgias desvinculou a literatura da poesia, fazendo com que a primeira não tivesse apenas
como expressão a segunda; ou seja, para os gregos, literatura e poesia eram sinônimas. A
prosa tinha um caráter estritamente funcional, restringindo-se a apenas transcrever a
linguagem oral comum. Foi com Górgias que nasceu uma prosa eloqüente, o que a tornou
uma composição erudita, ritmada e bela como a poesia. Nesse sentido, a origem literária da
retórica surgiu com o siciliano que encantou, com a sua eloqüência, os gregos 2 .

Posteriormente, Isócrates, ateniense que viveu, aproximadamente, de 436 a.C. a 338


a.C., foi o responsável por fazer com que esta prosa, criada por Gógias, passasse a ser vista e
aceitável apenas se estivesse a serviço de uma causa honesta e nobre. Isócrates, diz Reboul,
moralizou a retórica:

1
Retórica, aqui, deve ser entendida como a arte de argumentar, visando convencer e, também, o estudo do estilo,
ou seja, aquilo que torna literário um texto. Em suma: o estilo a serviço do convencimento. De acordo com
Reboul, retórica “[...] é a arte de persuadir pelo discurso”. (REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Tradução
Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Coleção “Justiça e Direito”). p. XIV.).
2
Cf.: Ibid., p. 04.
[...] ensino literário e formação moral estão ligados [...] ele ensina que a retórica
deve ter um objetivo para depois procurar todos os meios de atingi-lo sem nada
deixar ao acaso. Mas, ensinando-se assim a organizar o discurso, não se estaria
também ensinando a governar a própria vida? O ensino literário é uma escola de
estilo, de pensamento e de vida. Idéia bem grega, uma vez que a harmonia é o
valor, por excelência, que rege a existência tanto quanto rege o discurso 3 .

Ou seja, no momento em que se aprender a necessidade de atribuir um objetivo ao


discurso - no caso específico do que propunha Isócrates, honesto e nobre -, para que, partindo
dele, possa procurar todos os meios, harmoniosamente, de atingir esses fins, o homem passa,
também, a organizar sua própria vida, governando-a para a honestidade e a nobreza de modo a
nada deixar ao acaso, isto é, harmoniosamente. Em uma palavra, ao ser uma escola de estilo,
pensamento e vida, a literatura ensina ao ser humano que a harmonia é o valor que rege a
existência, visto que a preocupação que se tem em tentar persuadir, através da arte, passará a
ser a mesma no que diz respeito à convivência com o outro, com a vida. Assim, da mesma
maneira que o valor estético da harmonia irá guiar a forma pela qual se construirá um
discurso, produtor de uma sensação agradável, o valor da harmonia irá, também, servir de
norte a orientar a vida, a existência humana.

Entretanto, não é na Grécia antiga que esta relação (Educação e Literatura) passa a ser
uma idéia central na consciência dos pensadores ocidentais. Isso acontece séculos depois,
mais especificamente no século XVIII da era cristã, período no qual ocorreu um movimento
de idéias que se desencadeou na Europa, chamado Ilustração 4 .

Preocupado em investigar a relação Educação-Literatura, o presente trabalho


debruçou-se sobre a expressão francesa do movimento ilustrado, pois foi da França que se
desenvolveram as Luzes: as novas forças intelectuais e políticas 5 . Nesse sentido, acerca do
marco temporal, não será possível encontrar uma delimitação cronológica precisa. Para fins
didáticos, pode-se situar a Ilustração no século XVIII, levando em consideração que a

3
Ibid., p. 11-12 (grifo nosso).
4
O termo Lumières poderia ser traduzido por Luzes, Esclarecimento, Iluminismo ou Ilustração. Optou-se pela
última versão, pois ela parece revelar melhor do que os seus equivalentes o caráter militante do movimento
intelectual francês do século XVIII. Dessa forma, a versão escolhida adéqua-se ao intento de mostrar, nesta
dissertação, a dinâmica da divulgação das idéias ilustradas pela literatura. Ver a esse respeito: WYTRZENS,
Gunter. “Sur la Sémantique de l’Aufklärung en Allemagne, en Autriche et dans les Pays Slaves non Russes”. In:
FRANCASTEL, Pierre. (org.). Le Pragmatisme des Lumières Utopie et Institutions au XVIIIe Siècle. Paris:
École Pratique des Hautes Études, 1963; BARIDON, Michel. “Lumières et Enlightenment. Faux Parallèle ou
Vraie Dynamique du Moviment Philosophique?” In: Dix-huitiéme Siècle: n º 10, 1978. E, também, BELAVAL,
Yvon. “Qu’est-ce que les Lumières?” In: Dix-huitiéme Siècle: s.l.p., n° 10, 1978.
5
Cf.: VENTURI, Franco. “Les Lumières dans l’Europe du 18e siècle”. In: Europe des Lumières: Recherches
sur le 18e siècle. Tradução Françoise Braudel. Paris: École Pratique des Hautes Études, 1971. p. 17.

12
cronologia pode ser um critério ilusório quando se deseja caracterizar uma época de
pensamento. Por isso, não foi possível estabelecer um marco temporal preciso, uma vez que
se trabalha com uma época de pensamento, o que leva a se considerar, por exemplo, autores
que viveram no século XVIII cujas características de sua obra os vincula como pertencentes
ao período anterior, o século XVII 6 .

Entre os escritores franceses da Ilustração, optou-se por pesquisar a produção literária


de Voltaire uma vez que, para exemplificar a relação entre educação e literatura, sua escolha
se deu pelo fato deste autor ser considerado, por alguns comentadores, como o resumo vivo de
sua época; e, também, em razão de Voltaire ter feito uso das mais diversas expressões
literárias – como, por exemplo, contos, poemas, teatro etc. - com fins educacionais.

A Ilustração é um movimento de idéias bastante estudado pelos pesquisadores de


diversas áreas do conhecimento. Contudo, dois pontos são de difícil acesso na bibliografia a
respeito do século XVIII e do autor estudado: o vínculo entre educação e literatura e o caráter
“educador” das obras de Voltaire. Muito foi dito pelos comentadores acerca da relação entre
literatura e filosofia no século XVIII. Porém, a investigação que trata do laço que liga
literatura e educação, mais especificamente, a função educadora da produção literária naquele
período, não é tão facilmente encontrada nas obras de referência que tratam da Ilustração.
Discute-se bastante, ainda, entre os comentadores setecentistas, sobre a literatura como um
veículo de difusão das idéias ilustradas, sobre a preocupação dos autores desse período com o
esclarecimento dos homens; contudo, a bibliografia referente ao vínculo entre a literatura e a
educação é pouco acessível.

Quanto a Voltaire, o mesmo problema encontrado no que diz respeito ao século XVIII
e a relação literatura-educação ocorre nos textos dos seus comentadores. Diversos autores
fazem referência a ele, à sua importância para o século XVIII, para a literatura etc.; mas
poucos são aqueles estudiosos que se lançam a discutir aquela relação e a função educativa
que está explícita ou nas entrelinhas dos textos voltairianos.

6
Um exemplo disso é Leibniz, filósofo representante do pensamento do século XVII, mas que escreveu no
século XVIII: Ensaios de Teodicéia (1710), Monadologia (1714).

13
Portanto, a investigação realizada por este trabalho, acerca da relação, no século XVIII
francês, entre educação e literatura e sobre a função educadora dos textos literários de
Voltaire, atribuiu a este escrito um caráter duplamente original e motivou a sua realização. O
vínculo imprescindível entre educação e literatura se dá justamente por conta da urgência em
estabelecer a autonomia necessária para que o homem possa raciocinar livremente e chegar,
de maneira corajosa e audaciosa, à razão; em uma palavra: ao esclarecimento. Através da
literatura, usada como meio de propagar os ideais ilustrados, tem-se um veículo eficaz para a
formação, a educação do indivíduo.

Educação e Literatura – entendendo a primeira como o processo que possibilita ao


homem tornar-se melhor ao desenvolver as suas potencialidades, ou seja, aprender a ser
homem 7 (no caso de Voltaire, sua preocupação educacional é a do desenvolvimento da razão,
em potência, no homem, o que possibilitaria o aperfeiçoamento moral); a segunda, como
expressão poética que possui uma linguagem própria, os elementos essenciais à narrativa, a
“arte das belas letras” ou a “arte literária” – estão, significativamente, relacionadas no século
XVIII francês. Autores desse período fazem uso de uma multiplicidade de expressões
literárias – panfletos, contos, poemas, novelas, peças teatrais, dentre outros – como meios de
atingir o fim do seu projeto ilustrado, a saber, o esclarecimento, a educação dos homens. Um
autor que bem representa essas características dos “homens de letras” da Ilustração é Voltaire
cuja obra tem como finalidade esclarecer seus leitores, educá-los. Logo, o que levou à escolha
desse período específico para a investigação, que chegou aos resultados apresentados agora,
foi o fato de esse momento histórico ser considerado, por alguns autores, como o “Século da
pedagogia” 8 , uma vez que este teria sido o século que tratou da maior parte dos temas
pedagógicos, discutidos até os nossos dias; e, também, como a época em que houve a mais
espantosa diversificação da expressão filosófica que jamais tenha sido vista, ou seja, o uso da
literatura para a divulgação de idéias e a serviço de princípios pedagógicos.

7
Tornar-se melhor no seguinte aspecto: a natureza humana, pelo seu caráter inacabado, segundo Reboul, já que
o homem é um animal que nasce antes do tempo, adquire a possibilidade de se dar forma. Assim, “Esta natureza
humana, privada da educação, reduz-se [...] a quase nada. [...] há claramente uma natureza humana universal,
que consiste precisamente na possibilidade de aprender”. (REBOUL, Olivier. A Filosofia da Educação.
Tradução Antônio Rocha e Artur Morão. Lisboa: Edições 70, s.d.p.. p. 20-22).
8
Ver: GUSDORF, Georges. “De l’utopie à la réalité”. In: L’avènement des sciences humaines au Siècle des
Lumières. Paris: Payot, 1973. p. 155.

14
Porém, o esclarecimento, ao qual tanto Voltaire quanto outros filósofos desse período
pretendem disseminar entre os homens, diz respeito a um tipo específico de educação. Eles
não trabalham para instruir, ou seja, dar técnicas, ensinar a ler e a escrever, preocupações
pertencentes à Escola, que se configurou nesse momento histórico. A educação proposta pelos
ilustrados está voltada para o progresso humano, em vista da perfectibilidade do homem, para
sua formação moral, entendida como conjunto de condutas que regem o comportamento em
sociedade. Logo, o teor da informação a ser passada precisa transmitir determinados valores
morais para que o projeto traçado pela Ilustração para o gênero humano se concretize: tornar
os homens esclarecidos.

Entretanto, teria a literatura, entre as suas funções, uma que estivesse voltada à
educação, via a transmissão de valores concernentes à moral? A partir desse problema,
podem-se levantar as seguintes questões: será que a literatura pretende educar? Transmitir
valores? Será que o século XVIII, via os seus representantes, reconhecia essa função
educadora da literatura? Será que Voltaire, como um dos principais expoentes da Ilustração,
escolheu escrever de maneira poética, ou seja, literária porque sua intenção era educar
moralmente os homens, para que, dessa forma, o projeto ilustrado se concretizasse? A partir
das respostas a essas perguntas é possível resolver a problematização proposta por este
trabalho, tendo em vista que estes questionamentos foram essenciais para que se chegasse a
uma primeira resposta a respeito da dúvida levantada, a saber: se a literatura tem, como uma
de suas funções, educar. Pauta-se neste ponto a relevância das perguntas feitas ao decorrer da
investigação. Portanto, ao se analisar, a respeito de alguns aspectos, textos pertencentes à obra
voltairiana, fora imprescindível retomar tais questionamentos, em razão destes guiarem o
raciocínio para que se encontrasse, no autor utilizado como exemplo, a função educativa de
seus textos.

Nesse sentido, Voltaire precisa de um instrumento que seja eficaz para a divulgação
dos valores morais. Esse instrumento é a literatura que, dentre as suas funções, possui a de
educar: transmitir valores. Essa transmissão não é feita através de máximas morais dadas por
Voltaire em suas obras. A preocupação dele é educar, fazer com que o homem aprenda a ser
homem, torne-se melhor, para que, dessa forma, não se transforme a educação em
doutrinação, uma espécie de adestramento, no qual não há nenhuma preocupação com a

15
natureza humana, com a sua possibilidade de se aperfeiçoar. Perfectibilidade é aqui sinônimo
de natureza humana. E, segundo Reboul, “A natureza humana é o que exige ser educado” 9 .

É através dos enredos 10 de suas obras, por exemplo, que Voltaire consegue fazer com
que o homem aprenda a ser homem, torne-se melhor, visto que ao expor uma determinada
história, o leitor se identifica com alguns personagens e, conseqüentemente, com alguns
valores que são, subliminarmente, transmitidos pelos atos, pelas ações que esses personagens
praticam. Provocando, assim, a reflexão.

Portanto, a função educadora que os textos literários possuem ao transmitir esses


valores morais é o tema deste trabalho cujo objetivo geral é identificar e compreender essa
função da literatura no século XVIII francês, a partir da obra voltairiana; e, como objetivos
específicos: entender expressões literárias, o panfleto, o conto, por exemplo, como
instrumentos a serviço da educação, por serem eficazes veículos transmissores dos valores
morais e mostrar como se dá a função educadora da literatura em Voltaire, via a análise de um
de seus contos.

O caminho seguido para identificar a tarefa educativa da literatura no século XVIII a


partir de textos voltairianos foi o da leitura. Contudo, apenas aquela leitura na qual se percebe
a trajetória do pensamento do autor de modo a compreender sua ordem argumentativa. Este
foi o único meio de efetuar a interpretação precisa dos escritos literários de Voltaire, com o
fim de identificar neles sua função educativa. Este trabalho pode ser definido,
metodologicamente, como um trabalho bibliográfico; entendido como “Procedimentos de
busca, leitura, coleta, ordenação e uso de dados tirados de livros, jornais e revistas, etc. [e
também] a busca de informações bibliográficas, seleção de documentos que se relacionam
com o problema de pesquisa [...] e o respectivo fichamento das referências para que sejam
posteriormente utilizadas [...].” 11 ; no qual se adotou a perspectiva interpretativa-hermenêutica,
aqui entendida como busca dos nexos argumentativos e das estruturas lógicas do texto: “É a
leitura intensa, na qual pomos toda a nossa atenção, esquadrinhando as palavras para nelas

9
REBOUL, Olivier. A Filosofia da Educação. Op. cit.. p. 22.
10
Não apenas o enredo, mas há em Voltaire diversos recursos literários estrategicamente utilizados para atingir
seu projeto educacional. Acerca desses recursos, ver terceiro capítulo, nota 598.
11
Cf.: ALVES, Francisco José. Roteiro da pesquisa bibliográfica – Epígrafes Introdutórias. Aracaju: UFS,
1997. (apostila). p 01; e MACEDO, Neusa Dias de. Iniciação à pesquisa bibliográfica Guia do estudante para a
fundamentação do trabalho de pesquisa. 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 1994. p. 13.

16
descobrir as noções, as frases para evidenciar as teses, os parágrafos para esclarecer os objetos
de discussão, dos pressupostos, a argumentação e as implicações.” 12

Para que fosse possível alcançar os objetivos propostos, o trabalho precisou ser
dividido em três capítulos. Esta divisão possibilitou que o leitor pudesse acompanhar, de
forma sistemática, o desenvolvimento do tema no decorrer do texto. Em um primeiro
momento, foi necessário expor o contexto da Ilustração; num segundo, apresentar Voltaire
para, dessa maneira, tratar, num terceiro momento, do vínculo entre Educação e Literatura no
exemplo trabalhado. Dessa forma, no primeiro capítulo, intitulado Ilustração, Educação e
Literatura, estabeleceu-se uma relação entre os termos dessa sentença, começando por um
panorama do que foi a Idade Moderna e algumas de suas principais características, a partir de
um texto literário de Voltaire, chamado Pequena Digressão. A escolha desse texto literário,
ao se apresentar algumas das características ilustradas, serviu para que, desde o início do
trabalho, pudesse-se perceber as estratégias utilizadas por Voltaire em seus escritos, ao passar
determinadas informações de forma poética. Após essa primeira parte, que teve como objetivo
servir como exemplo do que se pretende analisar nessa dissertação, explicitou-se o que foi a
Modernidade, e suas principais características, não mais via Voltaire e o seu conto; doravante,
utilizou-se comentadores especializados acerca do assunto. Além disso, foram expostos
alguns aspectos históricos desse período, ao se traçar uma visão geral da Europa no século
XVIII, para que depois fosse possível chegar à França. Deste ponto, foi explicado o termo
“Luzes”; as várias nomenclaturas para este movimento intelectual, mostrando este período
como o primeiro da história a se autonomear. Fez-se, também, uma breve descrição do que foi
a Ilustração, a caracterização das Luzes francesas, para, em seguida, trabalhar, também de
forma sucinta, o que foi a Educação Moderna, algumas de suas principais características e
contribuições. Por fim, estabeleceu-se a relação entre a Literatura e a Educação, no século
XVIII francês, ou seja, na Ilustração, com a intenção de justificar os objetivos desse trabalho.
Essa primeira parte do presente texto justifica-se como uma preparação para o capítulo
seguinte, em razão da necessidade de se ter em mente uma visão geral do que foi a Idade

12
FOLSCHEID, Dominique. WUNENBURGER, Jean-Jacques. Metodologia Filosófica. Tradução Paulo
Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 21. “A palavra ‘hermenêutica’ limitava-se originalmente à
interpretação das escrituras sagradas, mas no século XIX ela teve o seu âmbito ampliado, passando a
compreender o problema da interpretação textual como um todo”. (EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura:
uma introdução. Tradução Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Coleção “Biblioteca Universal”).
p. 101).

17
Moderna e a Ilustração, o que ajudará na compreensão da apresentação feita sobre a vida e a
obra de Voltaire.

O segundo capítulo, Voltaire – Ilustração e obra militante, apresentou, de início,


algumas das principais mudanças geradas na Idade Moderna, como: suas novas metas, o novo
conceito de razão, a nova Teoria do Conhecimento; tudo a título de preparação, como foi dito,
para a compreensão do pensamento voltairiano. Expôs, ainda, de maneira resumida e
introdutória, algumas das principais diferenças de concepções entre o século XVII e o XVIII,
tomando como expoentes desses séculos, respectivamente, Bossuet e Voltaire, e mostrando
como o segundo, juntamente com os outros pensadores de sua época, gerou uma “revolução”
nos espíritos, quando foi de encontro ao que pensava o primeiro, que era um significativo
representante do conjunto de idéias dominantes do século XVII. Esse capítulo traz, ainda, o
que são os Philosophes e a sua função na Ilustração; os exílios voltairianos e a influência
destes em seu pensamento, uma vez que, de acordo com autores que estudam esse filósofo, os
exílios repercutiram no pensamento de Voltaire; as influências recebidas por Voltaire, ainda
na casa de seu pai; as crises pelas quais passou; a relação entre a sua vida e a sua obra; e a sua
relação com o poder. Toda essa primeira parte do segundo capítulo fornece informações
importantes para que se possa entender o que irá expor o seu segundo momento. Por conta
disso, é parte integrante desse capítulo, também, a literatura e a filosofia de Voltaire como as
principais armas que ele possuía para fazer com que os homens se tornassem melhores.
Doravante, faz-se a análise de algumas obras desse autor, explicitando seu principal objetivo,
de acordo com a interpretação deste trabalho: sua função pedagógica. As obras analisadas
nessa parte são: Memórias; Dicionário Filosófico; Cartas Filosóficas; Tratado sobre a
Tolerância; Tratado de Metafísica e O Filósofo Ignorante.

O terceiro e último capítulo, que tem como título Voltaire e a “moral em exercício”,
possui as seguintes partes: uma apresentação da Teoria Literária, que serviu para fundamentar
a função educadora da literatura; isso feito, foi explicado os conceitos horacianos de “Dulce”
e “Utile” e a relação deles com a “moral em exercício”; a “missão” dos philosophes, no que
respeita à função educativa das obras literárias; como se processa a “moral em exercício”;
uma rápida explanação sobre “o sentir das paixões”, Montesquieu e as Cartas Persas;
Voltaire e a sua consciência acerca da utilização da “moral em exercício” em seus contos; seu

18
papel como philosophe 13 : formar, esclarecer os homens; como se dá a relação desse autor
com as “paixões”, uma vez que ele afirma que é impossível e inútil suprimi-las e desejava que
fosse feito um bom uso delas. Para tal pretendia, por meio de seus escritos, criar uma
“emulação positiva”. Apesar de aparentemente não haver nenhum vínculo entre a Teoria
Literária que irá confirmar a função educativa da literatura e a “emulação positiva” em
Voltaire, é esta idéia de “emulação” que será a responsável pela apropriação que os homens
farão dos valores morais transmitidos via as obras voltairianas. A partir desse momento do
texto, foi feita a análise do conto Jeannot e Colin, com o intuito de mostrar como é possível
um enredo estar a serviço da “moral em exercício”. A escolha desse conto se deu em razão
deste expor, de maneira mais explícita, a idéia da “moral em exercício”, inclusive narrando,
em uma de suas passagens, um exemplo de “emulação positiva”. Assim, esse conto serviu
como modelo da utilização da literatura como um instrumento propagandístico, com a
finalidade de educar, ou seja, formar o homem crítico.

Pretende-se, ao término do trabalho, encaminhar o raciocínio em direção à resolução


do problema levantado anteriormente, a saber: se a literatura tem, entre as suas funções, uma
que esteja voltada à educação, via a transmissão de valores concernentes à moral; para que,
dessa forma, seja possível, através da fundamentação teórica propiciada pela Teoria Literária,
confirmar as idéias com as quais se confeccionou esse texto, afirmando, assim, que: a
literatura tem como uma de suas funções educar, transmitir valores; que os autores ilustrados,
especificamente Voltaire, estavam preocupados com essa função educadora e isso foi a razão
pela qual eles escreveram da maneira que escreveram, via literatura; ou seja, Voltaire optou
por escrever da forma como escreveu porque sua principal intenção era educar moralmente os
homens. E, como confirma, em um de seus textos, “Os verdadeiros homens de letras e os
verdadeiros filósofos mereceriam mais méritos do gênero humano do que os Orfeus, os
Hércules e os Teseus: porque é mais louvável e difícil arrancar, dos homens civilizados, os
seus preconceitos, do que civilizar homens grosseiros; é mais raro corrigir do que instituir.” 14

13
Vale ressaltar que o termo philosophe é bastante amplo e mesmo autores inimigos de Voltaire são também
denominados assim. Nesse sentido, é necessário se levar em consideração que a Ilustração foi um movimento
heterogêneo, como será discutido mais à frente, e que a generalização é, aqui, utilizada com um cunho didático.
Sobre o termo philosophe, ver citação referente à nota 180.
14
VOLTAIRE. “Réflexions sur les sots”. In: Mélanges. Paris: Gallimard (Bibliothèque de la Pléiade), 1995. p.
355.

19
II. Primeiro capítulo: Ilustração, Educação e Literatura

Le grand siècle, messieur, je veux dire le XVIIIe


Michelet 15

2.1. Primeira aproximação com a Modernidade: o conto Pequena Digressão

Em 1766, Voltaire escreve um conto chamado Pequena Digressão, também conhecido


como Os cegos, juízes das cores. O enredo versa sobre uma Instituição para cegos, chamada
Quinze-Vingts, fundada por São Luís, onde os asilados, além de serem todos iguais, decidiam
tudo por votação. Por não possuírem o sentido da vista, os cegos desenvolveram, de maneira
extraordinária, os seus outros sentidos. “Eles distinguiam perfeitamente, ao tocar, a moeda de
cobre daquela de prata; nenhum deles jamais tomou vinho de Brie por vinho de Bourgogne.
Seu olfato era mais fino que o de seus vizinhos que tinham dois olhos. Eles raciocinavam
perfeitamente sobre os quatro sentidos, isso quer dizer que eles conheciam tudo aquilo que
lhes era permitido saber [...]” 16 .

Não era possível enganá-los no que dizia respeito ao tato, paladar, olfato, enfim, aos
quatros sentidos que lhes restavam. E assim, viviam em tranqüilidade e felizes, na medida em
que se é possível, na condição em que se encontravam. Certa feita, um professor, cego ao que
tudo indica, “[...] pretendeu possuir noções claras sobre o sentido da vista; fez-se ouvir,
intrigou, formou entusiastas: enfim, todos o reconheceram como chefe da comunidade. Ele se
pôs a julgar soberanamente as cores, e tudo foi perdido” 17 .

15
Cf.: MICHELET, Jules. Apud: ORMESSON, Jean d’. Une autre histoire de la littérature française. Les
Lumières. s.l.p.: Nil Editions, 2000. p. 07.
16
VOLTAIRE. “Petite digression”. In: Romans et Contes en vers et en prose. Paris: Le Livre de Poche, 1994. p.
486. (grifo nosso).
17
Id. (grifo nosso).

20
Esse ditador, como o próprio Voltaire o chama, formou um conselho e se tornou o
único responsável pelas esmolas que a Instituição recebia. Mesmo agindo assim, nenhum dos
outros cegos se atreveu a resistir-lhe. E os atos ditatorias continuaram: julgou, aquele ditador,
que deveria determinar a cor das vestes dos outros cegos, decretando, por fim, que todos os
trajes eram brancos, “[...] embora não houvesse um único dessa cor”18 . Todas as pessoas que
enxergavam começaram a zombar dos asilados, porque estes acreditavam “cegamente” que
as suas roupas eram brancas, simplesmente em razão do ditador assim o querer. Ora, estava
claro para quem possuía os dois olhos em perfeito estado que nenhuma das vestes dos Quinze-
Vingts era branca. Por conta da zombaria que sofreram por parte dos que possuíam os cinco
sentidos, os cegos se reuniram e decidiram se queixar ao seu senhor que, chateado com a
rebeldia, recebeu-os muito mal. “[...] ele [o ditador] os tratou de inovadores, de espíritos
fortes, de rebeldes, que se deixam seduzir pelas opiniões errôneas daqueles que têm olhos, e
que ousam duvidar da infalibilidade de seu mestre” 19 . Esse desconforto criado, essa briga,
deu origem a dois partidos: os que apoiavam o ditador, ou seja, os entusiastas, os partidários
“cegos” do mestre; e aqueles que questionavam a possibilidade dele, o mestre, estar errado,
os espíritos fortes, os rebeldes, que não estavam mais aceitando as deliberações impostas, em
razão da zombaria que os videntes faziam deles.

Preocupado com a insurgência desses questionadores, o ditador resolve, para acalmar


os ânimos dos rebeldes, baixar um decreto, no qual afirmava que todas as roupas dos Quinze-
Vingts eram vermelhas, e não mais brancas como ele havia dito anteriormente. Entretanto,
“Não havia um hábito vermelho [...]. Zombaram deles mais do que nunca: novas queixas por
parte da comunidade” 20 . O ditador ficou furioso com essa nova reclamação. Os cegos
rebeldes também. Disputaram durante muito tempo a respeito desse assunto. E, depois de
muitas discussões, a paz se restabeleceu quando foi permitido a todos os Quinze-Vingts “[...]
suspenderem seus julgamentos sobre a cor de suas vestes” 21 . A partir dessa resolução, os
cegos puderam, novamente, viver em concórdia. Segundo Voltaire, ao final do conto, um
surdo, ao ler essa pequena história, “[...] confessou que os cegos tinham feito muito mal em
julgar as cores [...]” 22 , contudo, continuou firme na opinião que tinha a respeito de somente
ser possível aos surdos julgarem a música.

18
Id.
19
Id. (grifo nosso).
20
Ibid., p. 486-487.
21
Id. (grifo nosso).
22
Id.

21
Eis o panorama que Voltaire oferece. Poder-se-ia questionar: que panorama? O que
quis dizer Voltaire nas linhas de seu texto? Qual era a sua intenção? A resposta a essas
questões não serão tratadas aqui, nesta parte do trabalho. O que interessa agora é a explicação
de um outro questionamento: qual a razão de se começar um capítulo acerca da Ilustração, da
Educação e da relação desta com a Literatura, no século XVIII, a partir de um conto de
Voltaire? A resolução dessa pergunta cabe, também, à primeira lançada neste parágrafo: o que
significa esse panorama que é oferecido pelo pensador? Solucionando uma, acha-se a resposta
para a outra.

Este percurso, através do qual se tem como guia o “patriarca de Ferney”, é uma
odisséia 23 que nos fará enxergar, neste pequeno conto, as características desse fenômeno
complexo, a Modernidade. Não se pode esperar um guia melhor, uma vez que, segundo
Salinas Fortes, Voltaire foi o “[...] resumo vivo da filosofia da época”24 . E, ainda a respeito da
importância do autor da Pequena Digressão para a o século XVIII, “[...] é certo que nenhum
espírito representa melhor esta época cintilante e viva” 25 . Portanto, através desse texto
literário é possível extrair as principais características que marcaram a divisão entre a Idade
Média e a Idade Moderna, que possibilitaram o epílogo da primeira e a aurora da segunda.
Tais características justificarão a escolha do guia, ou seja, da opção em começar, através da
exposição desse conto, um capítulo que estabelece uma relação entre o movimento ilustrado, a
educação e a literatura.

Ao informar ao leitor, nas primeiras linhas, que naquela instituição (Quinze-Vingts) os


asilados eram iguais e decidiam tudo por votação, Voltaire mostra que o homem é livre para
falar o que pensa, tem liberdade de opinião. Contudo, em seguida, o autor ressalta os sentidos,
ou pelo menos os sentidos que restavam aos cegos, exaltando a forma como os asilados
desenvolveram o tato, o paladar, o olfato, como fica claro na passagem: “Eles raciocinavam
perfeitamente sobre os quatros sentidos, isso quer dizer que eles conheciam tudo aquilo que
lhes era permitido saber [...]” 26 . Ou seja, é possível conhecer através dos sentidos, porém há
um limite para isso. Tem-se, aqui, um exemplo de demonstração da herança empírica, - tão
23
Deve-se entender o termo odisséia, aqui, em dois dos seus sentidos: como longa viagem ou perambulação
marcada por aventuras e acontecimentos imprevistos e singulares; e, também, como uma investigação de caráter
intelectual.
24
FORTES, Luiz Roberto Salinas. O iluminismo e os reis filósofos. São Paulo: Brasiliense, 1999. (Coleção
“Tudo é História”). p. 40.
25
MAUROIS, André. O pensamento vivo de Voltaire. Tradução Lívio Teixeira. São Paulo: Livraria Marins
Editora, 1954. p. 13.
26
VOLTAIRE. “Petite digression”. In: Romans et Contes en vers et en prose. Op. cit.. p. 486. (grifo nosso).

22
influenciadora do pensamento de Voltaire, e uma das maiores mudanças estabelecidas no
plano científico durante a Modernidade –,com o método experimental, e as idéias de Bacon,
Locke, Newton, que possibilitaram o rompimento, a separação entre pensamento teológico e
pensamento científico (entendido, nessa época, como pensamento filosófico, uma vez que
filosofia e ciência eram sinônimas), e estabeleceu a razão como um instrumento possível de
fazer com que o homem superasse os seus obstáculos, quando acompanhada da experiência.
Mas, respeitando os limites do conhecimento, conhecendo somente aquilo que é possível
conhecer. Em outras palavras, criticando o conhecimento metafísico teológico, contrapondo-o
à idéia de conhecimento útil. Eis uma característica importante da Modernidade. “Se Deus
continua reconhecido como criador, doravante os homens não mais poderão culpá-lo pelos
males que afligem a humanidade. A razão lhes dará a possibilidade de superar todos os
obstáculos e de construir a felicidade com o próprio esforço” 27 .

Com essa exaltação dos sentidos, tendo a razão como guia seguro, só se pode conhecer
aquilo que é experimentado. Logo, a liberdade de opinião, tratada no início do texto de
Voltaire, é uma liberdade de opinião fundamentada no conhecimento empírico; só se é
possível afirmar a respeito daquilo que foi experimentado pelos sentidos, e esse será o pano
de fundo de toda a narração e a idéia central que possibilitará as outras características da
Modernidade que estão nas entrelinhas da história dos Quinze-Vingts.

Prosseguindo com a análise, outra passagem explicita “o problema” do conto,


consequentemente, um problema que a Modernidade tenta resolver: quando o saber torna-se
propriedade de alguns, quando a razão é tiranizada. O professor, cego também, julgou possuir,
ter “[...] noções claras sobre o sentido da vista [...]” 28 . Em sendo, o saber, propriedade dele, o
conhecimento, a verdade não precisará estar fundamentada numa demonstração empírica,
mesmo porque seria impossível, fisicamente, para ele, ter qualquer noção, clara ou não, a
respeito das cores. O professor se utiliza de um argumento de autoridade para fazer com que
os cegos acreditem nele. E, parece, num primeiro momento, obter sucesso, pois “[...] formou
entusiastas [...]” 29 . A Era Moderna tenta acabar com isso ao laicizar o saber, ao romper com a

27
NASCIMENTO, Milton Meira do. NASCIMENTO, Maria das Graças de Souza. Iluminismo a revolução das
Luzes. São Paulo: Ática, 2001. p. 12. (grifo nosso).
28
VOLTAIRE. “Petite digression”. In: Romans et Contes en vers et en prose. Op. cit.. p. 486. (grifo nosso).
29
Id. (grifo nosso).

23
Igreja 30 (que, aliás, pode ser identificada na pequena história, visto que Voltaire está
criticando uma Instituição, que está representando não só a Igreja, mas, também, a
Monarquia, os Colégios, a Universidade etc.).

Contudo, ao granjear partidários, entusiastas, o ditador não só consegue que todos


acreditem nele, mas, também, que o reconheçam como senhor. Consegue isso pela autoridade,
ou seja, pelo poder que ele teve de forçar os outros cegos a acreditarem nele, e a
considerarem-no seu chefe, sem se utilizar da força física 31 . A luta da Modernidade contra a
Autoridade é uma de suas principais marcas. A Luz que é proposta nesse período é uma Luz
diferente da que descreve Agostinho (Lux sui generis et incorporea), na Idade Média.
Enquanto o Bispo de Hipona sugere uma Luz vinda de Deus, a Modernidade sugere uma Luz
natural: a Razão. Se o homem abre mão da Luz natural, entra na escuridão da ignorância, e,
dessa forma, “[...] tudo [estará] perdido” 32 .

Estando tudo perdido nos Quinze-Vingts, já que seu ditador “[...] pôs [-se] a julgar
soberanamente [...]” 33 acerca do que não podia, uma vez que não se pode ter a idéia sem a
experiência, ele resolveu formar um conselho e se tornou o único responsável pelas esmolas
que eram doadas para a Instituição. Voltaire está satirizando, neste momento, aqueles que se
utilizam da autoridade para, ao criar uma Instituição, manipulá-la em proveito pessoal. Essa
Instituição é criada, intencionalmente, pelo agente que Voltaire denomina “Infame” 34 . O
ditador do conto, ao reunir um conselho e se tornar o responsável pelo dinheiro dos Quinze-
Vingts , passa a ter mais poder do que tinha antes e, mesmo agindo assim, com autoritarismo,
nenhum dos outros cegos se atreveu a resistir-lhe, uma vez que ele agora era poderoso. Isso
fica subentendido, já que ele fez com que todos os outros acreditassem que suas roupas eram
30
Que é uma das autoridades com as quais a Modernidade encerrou uma batalha. A outra autoridade é a
Monarquia. Mas, fazendo referência à primeira aqui tratada, ela pode ser classificada, segundo Reboul, como a
Autoridade do Líder. Para este autor, existem seis tipos de autoridade: a do Contrato, que é considerada a mais
racional; a do Perito, que se reconhece pela competência de alguém ou de algo; a do Árbitro, que é menos
racional, uma vez que o árbitro pode dirimir um conflito, optando por uma decisão que ele não precisa justificar;
a do Modelo, que tem como fundamento a admiração que esse modelo irradia, fazendo com que os seus
partidários queiram imitá-lo; a do Líder, que também se assenta no prestígio, mas que força seus partidários não
a imitá-lo, mas segui-lo; e a mais irracional de todas, a do Rei-Pai, que é a do monarca absoluto. Ver: REBOUL,
Olivier. A Filosofia da Educação. Op. cit.. p. 53-54.
31
Sobre esse conceito de autoridade ver: Ibid., p. 53-61.
32
VOLTAIRE. “Petite digression”. In: Romans et Contes en vers et en prose. Op. cit.. p. 486. (grifo nosso).
33
Id. (grifo nosso).
34
“[...] tudo que se opunha ao progresso das Luzes [agora, naturais, ou seja, racionais] e à obtenção de uma vida
feliz.” Cf.: NASCIMENTO, Milton Meira do. NASCIMENTO, Maria das Graças de Souza. Iluminismo a
revolução das Luzes. Op. cit.. p. 26. Ou seja, o fanatismo, a intolerância, o obscurantismo, a autoridade da
religião, a força da tradição etc.. Ver, também, POMEAU, René. La religion de Voltaire. Paris: Nizet, 1995. p.
251-252.

24
brancas, mesmo não tendo nenhuma roupa dessa cor naquela Instituição. Ao determinar a cor
das roupas da forma como determinou, o ditador usou o seu poder pautado em um dogma, em
uma verdade inquestionável que se baseia na persuasão e que, afora isso, não tem nenhum
fundamento, nem empírico, nem racional. E isso explica a raiva manifestada por ele quando
dos questionamentos dos outros cegos. O senhor ficou inflamado com a rebeldia, recebeu-os
mal e chamou-os de . “[...] inovadores, de espíritos fortes, de rebeldes, que se deixam seduzir
pelas opiniões errôneas daqueles que têm olhos, e que ousam duvidar da infalibilidade de seu
mestre” 35 .

Essa ira do ditador ocorre porque a razão se manifesta e começa a questionar os


dogmas. A Luz natural se volta contra o dogmatismo: todas as pessoas que enxergavam
começaram a zombar dos asilados. De acordo com Plauto, que afirmava que rindo se
castigavam os costumes, e com Voltaire, que satirizando tentava mudar a face do mundo 36 , a
zombaria, o riso e a sátira são excelentes instrumentos para derrubar o dogmatismo 37 . E é isso
que faz Voltaire nesse momento do texto: solicita, a todos os que enxergavam, o apoio para
zombar daqueles que se deixavam tiranizar, porque acreditavam “cegamente” que as suas
roupas eram brancas, simplesmente em razão do ditador assim o querer.

A represália sofrida pelos cegos, ao serem alcunhados de rebeldes, espíritos fortes,


inovadores, todos estes apelidos no sentido pejorativo, na boca do ditador, assemelha-se à
repressão sofrida pelos filósofos da Ilustração, que foram hostilizados pelo poder temporal e
pelo poder espiritual. Era um absurdo se deixar seduzir pelas opiniões errôneas daqueles que
têm olhos, e que ousam duvidar da infalibilidade de seu mestre. Ou seja, ousar ir de encontro
a esses poderes, temporal e espiritual; contra a autoridade do monarca, a autoridade do Rei-
Pai; e contra a autoridade divina, a do Líder; era algo que não poderia ser pensado, muito
menos praticado. E, estabelecer uma relação entre a ousadia dos cegos, em questionar a
autoridade do seu ditador, e a divisa da Ilustração, que de acordo com Salinas Fortes é um
fenômeno de transformação ideológica, um “[...] movimento intelectual [cultural] prodigioso

35
VOLTAIRE. “Petite digression”. In: Romans et Contes en vers et en prose. Op. cit.. p. 486. (grifo nosso).
36
Essa idéia está presente na obra: ROMANO, Roberto. “Voltaire e a sátira”. In: O caldeirão de Medeia. São
Paulo: Perspectiva, 2001. p. 177.
37
A esse respeito, ver: MOTA, Vladimir de Oliva. Voltaire e a crítica à metafísica. São Paulo: Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), 2005. (Dissertação de Mestrado).

25
[...]” 38 , não é uma tarefa difícil, uma vez que o Sapere aude 39 ilustrado está presente, no
conto, na fórmula “ousam duvidar da infalibilidade de seu mestre”.

Outro exemplo da crítica satírica voltairiana é quando o ditador resolve decretar que
as roupas não são mais brancas, e sim vermelhas, estabelecendo, dessa forma, a “verdade por
decreto”, ou seja, dogmática e autoritária. Sua preocupação com a insurgência desses
questionadores o faz querer resolver a situação dessa forma. Porém, os risos, as zombarias
aumentaram, porque, mais uma vez, não havia nenhuma roupa da cor vermelha entre os
asilados. Novamente, o ditador se enfurece, já que sua determinação foi questionada de novo,
refutada, e esta refutação é sempre baseada na observação daqueles que ousam enxergar
somente porque possuem dois olhos que funcionam perfeitamente. Os cegos rebelados, que
enfrentam a autoridade de seu senhor, também ficam enfurecidos.

As disputas duraram bastante tempo, sem que nenhum dos dois partidos chegasse a um
acordo. Eis uma referência direta às querelas sem fim propiciadas pelo pensamento
metafísico, que produzem arrazoados sem nenhuma utilidade à felicidade do homem, que
geram confusão, como mostra Voltaire, em outro conto, chamado “Micromégas” (1752), no
qual o protagonista da história pergunta sobre o que é a alma e como as idéias se formam. Os
filósofos falam todos ao mesmo tempo, e com diferentes opiniões40 . Ou seja, querelas inúteis,
porque Micromégas fica sem a resposta.

Voltando aos Quinze-Vingts, depois de muitas discussões, a paz somente se


restabelece quando é permitido a todos os cegos, independente do partido ao qual
pertencessem, “[...] suspenderem seus julgamentos sobre a cor de suas vestes.” 41 Quando eles
reconhecem um limite no conhecimento, os problemas são resolvidos. Para Voltaire, não é
possível ao homem tudo conhecer. E, o limite do conhecimento é, também, uma importante
característica da Modernidade 42 .

38
FORTES, Luiz Roberto Salinas. O iluminismo e os reis filósofos. Op. cit.. p. 08.
39
Sobre essa expressão, será explicado mais à frente.
40
VOLTAIRE. “ Micromégas”. In: Romans et Contes en vers et en prose. Op. cit.. p. 42.
41
VOLTAIRE. “Petite digression”. In: Romans et Contes en vers et en prose. Op. cit.. p. 487. (grifo nosso).
42
Voltaire se expressa: “Assim, sempre pronto a ceder desde que a revelação me apresente suas barreiras,
continuo minhas reflexões e minhas conjecturas unicamente como filósofo, até que a minha razão não possa
mais avançar”. (VOLTAIRE, Tratado de Metafísica. 2ª ed. Tradução Bruno da Ponte et al.. São Paulo: Abril
Cultural, 1978 (Coleção “Os Pensadores”). p. 74.

26
A partir desse ponto, o conto encaminha-se para o seu desfecho: um surdo, ao ler essa
pequena história e analisar a ação dos cegos, afirmou que eles erraram em querer julgar a
respeito das cores, mas continuou firme na opinião que tinha a respeito de somente ser
possível aos surdos efetuarem qualquer julgamento sobre a música. As pessoas estão sempre
prontas para avaliar os outros. Contudo, é muito difícil que os homens façam uma avaliação
de si próprios, uma reflexão (retorno do pensamento sobre ele mesmo). Não estão preparados
para efetivar o uso esclarecido e livre da razão e, dessa formar, chegar a uma autonomia que o
tornam livres dos preconceitos, do fanatismo, da superstição, enfim, do que Voltaire chamou
de “Infame”.

Essa última característica da Modernidade, essa busca da autonomia, é o que melhor


irá representar o pensamento de um movimento que tentou, de diversas formas, espalhar,
difundir a necessidade que o homem tem de se sair da heteronomia, da dependência às
autoridades que os subjugam, que os tornam menores. Esse movimento foi a Ilustração, e será
tratado no curso desse capítulo.

O panorama dado por Voltaire nessa obra literária, que faz o leitor rir, zombar daquilo
que representa a Autoridade, a “Infame”, está carregado de significados – como não poderia
deixar de ser, visto que se trata, como fora dito, de uma obra literária – que nos levam não ao
seu significante imediato, ou seja, o sentido denotativo que aquelas palavras possam ter, mas a
significantes que têm relação direta, estreita com as características da era Moderna. O
“patriarca de Ferney” conduz, através dessa odisséia, o seu leitor ao que melhor representa o
pensamento moderno, às suas características cruciais. Esse conto pode ser considerado como
um pequeno exemplo do grande projeto de Voltaire: educar, instruir os seus leitores. Vale
ressaltar que essa não é uma característica exclusivamente voltairiana. É uma característica
moderna, ilustrada, consequentemente, dos filósofos dessa época, ou pelo menos, da grande
maioria deles.

27
2.2. O que é a Modernidade

Michel Foucault define Modernidade, ao discutir sobre um texto de Kant intitulado


Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento” (Aufklärung)?, de preferência, como “[...] uma
atitude, que como um período da história. E, por atitude, eu quero dizer um modo de relação
com respeito à atualidade; uma escolha voluntária que é feita por certezas; enfim, uma
maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir que, ao mesmo
tempo, marca um pertencimento e se apresenta como uma missão. Um pouco, sem dúvida,
como aquilo que os gregos chamam de ‘ethos’”43 .

Ou seja, a Idade Moderna diz mais respeito a uma tomada de posição, uma atitude, do
que a um período histórico, mostrado de forma estática, como se fosse um conjunto de datas e
acontecimentos sem nenhuma relação com o presente. Ela não fica restrita ao pensamento, vai
mais além, preocupando-se com o agir e o se conduzir no mundo. Esse agir é propriamente a
missão a que estarão destinados os pensadores desse período, que tentarão, a partir de suas
penas, de seus escritos, exercer uma influência que, sendo o ponto-chave dessa missão,
assemelhe-se ao ethos helênico, ou seja, a um conjunto de hábitos, costumes, de valores que
dêem assistência ao agir do homem em sociedade. De acordo com Cambi, a Modernidade
“Foi definida como a Idade das Revoluções, como o tempo da emancipação [...], nascimento e
desenvolvimento de um sistema organizativo social que tem como eixo o indivíduo, mas que
o alicia por meio de fortes condicionamentos por parte da coletividade, dando vida a um
‘mundo moderno’ em cujo centro estão a eficiência no trabalho e o controle social” 44 .

Essas revoluções que definem a era Moderna ocorreram em diversas áreas,


instituições, e tiveram como principal característica a laicização e racionalização destas. Isso

43
FOUCAULT, Michel. “Qu’est-ce que les Lumières?” In: Revue Magazine Littéraire. nº 309, avril, 1993. p.
67. (grifo nosso). Éthos/Êthos, de origem grega, significa, dentre outras coisas: “[...] Éthos [...] costume, uso
hábito; e o verbo eíotha: ter o costume, ter o hábito. Êthos [...] caráter, maneira de ser de uma pessoa, índole,
temperamento, disposições naturais de uma pessoa segundo seu corpo e sua alma [...]”. (CHAUI, Marilena.
Introdução à História da Filosofia dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Volume I).
p. 349). A palavra “missão”, usada no texto escrito por Foucault, é também realçada por Salinas Fortes, no texto
supra citado, Franco Venturi e Ernst Cassirer. É importante notar que a palavra em questão resume o ideal dos
filósofos ilustrados em difundir seu pensamento, como fica claro no texto de Venturi, ao afirmar que os
philosophes, ou melhor, os grupos que estavam se formando no século XVII, não queriam mais ser apenas
intérpretes do espírito novo, mas queriam agir para difundi-lo. Ver referência da nota 46.
44
CAMBI, Franco. História da Pedagogia. Tradução Álvaro Lorencini. São Paulo: UNESP, 1999. (Coleção
“Encyclopaidéia”). p. 39.

28
gerou esse conjunto de hábitos, de valores, possibilitando uma atuação eficaz do homem, em
seu meio, no sentido de operar mudanças no que diz respeito ao agir e ao se conduzir no
mundo. Alguns aspectos que favoreceram essa laicização e racionalização foram propiciados
por “[...] um papel cada vez mais incisivo e mais amplo assumido pelo nascimento e pela
difusão do livro [...], [e] pelo amadurecimento de um novo perfil de intelectual (o intelectual
moderno, não mais emissário do poder religioso e político, mas caracterizado por uma
autonomia e um papel social mais incisivos e dinâmicos) [...]” 45 .

Venturi afirma existir “[...] um grupo de pessoas que não procura somente se fazer os
intérpretes do espírito novo, mas agir para difundi-lo.” 46 Esse grupo de pessoas marca o início
de um movimento de pensadores, de criadores de idéias, chamados de philosophes, que são
“[...] frequentemente homens que vivem de sua pena. [...] que carregam uma idéia, no
coração, dos conflitos políticos e religiosos do seu tempo, deixando-se guiar com [...] grande
coerência pela lógica de seu desenvolvimento, em meio a vida aventurosa que eles levam e
lutas nacionais e internacionais de seu tempo” 47 .

Esses primeiros philosophes, do século XVII, serão uma influência importante para os
philosophes das Luzes, que irão professar “[...] uma filosofia da história linear e contínua,
orientada em direção ao melhor ser geral, ao abandono de todas as superstições, à tolerância, à
justiça para todos, um reconhecimento e consagração do homem” 48 . Não se pode perder de
vista que o termo philosophe possui uma “[...] acepção mais ampla [...] e engloba desde
pensadores como Diderot até a um naturalista e botânico como Buffon” 49 .

45
Ibid., p. 323-324.
46
VENTURI, Franco. “Les Lumières dans l’Europe du 18e siècle”. In: Europe des Lumières: Recherches sur le
18e siècle. Op. cit.. p. 06.
47
Ibid. p. 07. Venturi diz que um nome resume esse grupo de homens: Pierre Bayle. Ele “[...] sabe que sem uma
certa aquiescência, sem certas concessões que deverão acordar as luzes e os Estados modernos, e mesmo as
monarquias absolutas, não haveria nenhuma possibilidade de tolerância nem de vida política e econômica
renovada. Não somente ele é já um intelectual do século novo, mas se esforça em conseguir com o estado
relações que são extremamente diferentes das que eram praticadas pelos sábios humanistas. [...] Pierre Bayle é
internacional nas suas relações e na sua política e já se serve do mito da república das letras para esperar
objetivos que vão bem mais longe do que os que eram assinados pelos sábios, professores e escritores.” p. 06-07.
Em HAZARD, Paul. La crise de la conscience européenne. Paris: Fayard, 1994, no capítulo V (p. 99-114) é
possível encontrar informações acerca desse filósofo, dentre as quais o apelo que Bayle sentia em si para a busca
do conhecimento, do exame, para não aceitar nenhum julgamento prévio, sem que este passasse antes pelo seu
próprio tribunal, ou seja, sua razão.
48
GUSDORF, Georges. “Discours de l’ombre et discours des lumières”. In: Naissance de la conscience
Romantique au Siècle des Lumières. Paris: Payot, 1976. p. 40.
49
FORTES, Luiz Roberto Salinas. O iluminismo e os reis filósofos. Op. cit.. p. 12.

29
Outros aspectos tratados por Venturi, com relação às mudanças ocorridas no século
XVII, dizem respeito à Inglaterra e a sua efetiva contribuição para o movimento ocorrido no
século XVIII. A causa do sucesso dessa influência é o deísmo 50 . Os esforços de Cromwel e
Guillaume III não foram suficientes para influenciar além da Mancha, foram raros e
esporádicos. “O deísmo viria a ser, ao contrário, um credo cosmopolita, desde sua origem, e é
por seu intermédio que um fermento republicano ganha assim a França, a Alemanha, a Itália,
etc.” 51 .

Nessa parte do texto, Venturi trata das revoluções puritanas e gloriosas e as suas
relações com o século XVIII. É importante ressaltar que esses processos históricos são lentos.
Os efeitos políticos e as idéias se fazem sentir em um ritmo diferente das batalhas, dos
tratados e das revoluções. Porém, tais efeitos e idéias são importantes para estes
acontecimentos (batalhas, revoluções, etc.). Ainda segundo esse autor, as idéias inglesas que
penetraram além da Mancha, nos vinte anos que antecederam a morte de Louis XIV 52 ,
precipitaram as transformações que a França havia lentamente amadurecido. Este período é
chamado por Hazard de “crise da consciência européia” 53 .

O absolutismo francês implodira em razão das influências inglesas recebidas pelos


filósofos franceses. O que interessa a Venturi, na sua pesquisa acerca do período retratado no
seu texto é “[...] distinguir claramente os grupos que [...] sustentaram realmente uma política
de tolerância, procurando estabelecer novos contatos entre os homens de cultura e as classes
dirigentes dos grandes Estados europeus; e, enfim, conseguiram impor uma pequena fração de
seu programa à Europa, que emergia da luta contra Louis XIV” 54 .

50
Segundo Venturi, deísmo seria: “[...] certamente um mito religioso adaptado à época newtoniana, à idade das
grandes descobertas científicas, matemáticas, físicas, a afirmação em todos os domínios da lei natural. [...] ele
exprimiria a ansiedade [...] de uma época na qual a ciência dominaria o espírito dos homens.” VENTURI,
Franco. “Les Lumières dans l’Europe du 18e siècle”. In: Europe des Lumières: Recherches sur le 18e siècle.
Op. cit.. p. 09.
51
Ibid., p. 10.
52
De acordo com Jean d’Ormesson, o século de Louis XIV representa a ordem a glória das letras e das armas, a
razão. Porém, ele também tem suas zonas de sombra e seus lados obscuros, como, por exemplo, a revogação do
Edito de Nantes. Entretanto, o reinado de Louis XIV representou um dos pontos áureos da história. Cf.:
ORMESSON, Jean d’. Une autre histoire de la littérature française. Les Lumières. Op. cit.. p. 07-08. Voltaire
o classifica da mesma maneira, como um período importante e escreve uma obra intitulada Le Siècle de Louis
XIV (1751).
53
Cf.: HAZARD, Paul. La crise de la conscience européenne. Op. cit..
54
VENTURI, Franco. “Les Lumières dans l’Europe du 18e siècle”. In: Europe des Lumières: Recherches sur le
18e siècle. Op. cit.. p. 05.

30
A Inglaterra 55 vivia um regime Parlamentarista, e isso foi determinante para o
desenvolvimento do comércio, da tolerância religiosa, entre outros. Esse período, que
corresponde, também, com o final da vida de Louis XIV – uma vez que Venturi estabelece
uma relação entre o Absolutismo francês e as idéias inglesas –, foi dominado pela coalizão de
forças, as mais diversas, de diferentes países europeus, “[...] contra a vontade de dominação
da França e, ao mesmo tempo, pelo desenvolvimento, no interior do reinado de Louis XIV, de
forças que enfraqueceram e transformaram o absolutismo e o expansionismo francês.” 56 Com
a morte do Rei-Sol, não se verifica somente a reaproximação de dois adversários (França e
Inglaterra), mas constata-se uma atmosfera cultural comum, uma civilização que iria se
integrando e seria formada doravante. “A relação Inglaterra-França permanecerá fundamental,
tanto sobre o plano ideológico, quanto sobre o plano político, durante toda a primeira metade
do século XVIII e, é sobre esta base que se edificará o movimento das luzes” 57 .

Com relação à situação além das fronteiras da Inglaterra e da França, os outros países
europeus acumularam os materiais e os elementos para o desenvolvimento das Luzes, na
segunda metade do século XVIII. Nesse ínterim, são somente elementos isolados, que não
seriam capazes de criar um movimento de idéias. A Europa aumentou suas fronteiras
intelectuais, no curso do período de 1725-1740. Período esse de preparação desta “[...]
autêntica unificação intelectual, essa universalidade das luzes que se revelará nos decênios
seguintes” 58 .

Na Alemanha, vários grupos, não só religiosos, organizaram-se para transformar as


idéias esclarecidas, as ciências, as novas técnicas. Estes grupos eram uma força organizada,
capaz de impor senão sua dominação, ao menos uma pressão sobre os governos, sobre as
igrejas, sobre as universidades. Foi este acúmulo de saberes, conhecimentos, investigações
históricas que fizeram do XVIII alemão uma época de eruditos e historiadores excepcionais. 59

Na Itália, as luzes não tiveram os mesmo efeitos, as mesmas forças, a mesma


intensidade, luminosidade, que nos outros países citados anteriormente. Isso aconteceu,

55
Vale ressaltar que a Inglaterra foi tomada, também, como exemplo para a exposição do período ilustrado na
Europa devido ao fato do pensamento voltairiano ter sido muito influenciado pelos pensadores ingleses.
56
VENTURI, Franco. “Les Lumières dans l’Europe du 18e siècle”. In: Europe des Lumières: Recherches sur le
18e siècle. Op. cit.. p. 10.
57
Ibid., p. 11.
58
Ibid., p. 14.
59
Cf.: Ibid., p. 16.

31
segundo Venturi, por conta da ortodoxia católica. Esse aspecto da força religiosa na Itália leva
o autor a afirmar que Vico, filósofo italiano, foi um estrangeiro em seu tempo, uma vez que
ele foi um ilustrado 60 .

Nos outros países da Europa, os problemas a serem combatidos foram essencialmente


políticos, apesar da presença ativa de elementos históricos, religiosos e jurídicos. Tais
questões políticas, apesar de fazerem com que os Estados europeus apresentem algo em
comum, foram tratadas e recebem “cores” diferentes em cada um desses países 61 . A Rússia
transportou somente as idéias ilustradas que correspondiam aos problemas imediatos
enfrentados pela sociedade 62 . Porém, é da França, da Inglaterra e da Alemanha que surgem os
primeiros ícones do movimento ilustrado.

As lutas constitucionais, a afirmação do Absolutismo, a defesa das constituições


sueca ou polonesa tinham seus defensores e seus reformadores, mas não ainda os
verdadeiros teóricos políticos. Assim, na Polônia, será Montesquieu que dará um
tom moderno às tradições nobiliárquicas; mesmo na Rússia e na Suécia, serão os
filósofos franceses que fornecerão uma justificação aos corpos de estado de Catarina
II e de Gustave III. É da França que deveriam vir as luzes, as forças novas,
intelectuais e políticas 63 .

Depois da morte de Louis XIV, em 1715, “[...] os herdeiros dos sábios e dos escritores
do século XVII se unem para desenvolver e difundir os princípios de uma filosofia fundada
sobre o espírito de exame, o espírito científico e o espírito cosmopolita. [...] os filósofos
procuram, graças à reflexão lógica e a seus gostos pelos fatos positivos, liberar as ciências dos
preconceitos e das superstições. [...] as experiências e as pesquisas se multiplicam” 64 .

Segundo Laurent, o desenvolvimento científico dará um impulso importante à


Ilustração. Há um abandono do finalismo teológico e da lógica abstrata da escolástica, os
sábios se apóiam no presente para operar a observação dos fatos. “A ciência perde, ao mesmo
tempo, a sua ambição totalizante e sua finalidade religiosa. Ela não serve mais para

60
Cf.: Id.
61
Cf.: p. 17. As questões políticas receberam tratamentos diferentes, de país para país; isso ocasionou “cores”
diferentes que, conseqüentemente, geraram “luzes” diferentes. Estas “luzes” possuíam um conjunto de
características comuns, mas que, em razão das particularidades de cada um desses países, tinham suas
“luminosidades” próprias também. Com respeito à nomenclatura “luzes” cf.: HAZARD, Paul. O pensamento
europeu no século XVIII. Op. cit.. p. 39.
62
VENTURI, Franco. “Les Lumières dans l’Europe du 18e siècle”. In: Europe des Lumières: Recherches sur le
18e siècle. Op. cit.. p. 24.
63
Ibid., p. 17.
64
LAURENT, Bernard. L’esprit des Lumières et leur destin. Paris: Elipses, 1996. p. 23.

32
demonstrar a grandiosidade de Deus, nem para confirmar a veracidade das Escrituras” 65 . Há,
dessa forma, uma preparação para a mudança das mentalidades. A Ilustração começa a ganhar
forma e pode começar a preparar sua chegada. O terreno já está pronto. “O século XVIII é, a
justo título, o divisor de águas entre mundo moderno e mundo contemporâneo: decanta as
estruturas profundas, realiza as instâncias-guia do primeiro, contém os ‘incunábulos’ do
segundo. E a laicização aliada ao reformismo (político e cultural, sobretudo) são as bases que
sustentam este papel do século das Luzes” 66 .

Na França, de acordo com Venturi, os processos de transformações internas que se


revelaram plenamente somente ao fim da guerra de Sucessão Espanhola, apesar de estarem
muito avançados já nos últimos trinta anos do reinado de Louis XIV, “[...] são, na origem,
exatamente o oposto daquilo que se pôde observar na Inglaterra” 67 . Enquanto na Inglaterra
houve uma revolução constitucional, fixada nas formas legais, que penetraram profundamente
nos hábitos britânicos, na França o quadro era diferente: um Rei que parecia ter ganho tanto o
interior quanto o exterior, que parecia realizar o projeto da monarquia absoluta, mas que
encontra, precisamente na classe nobiliárquica, seus limites. Classe essa que formava a base
do seu poder e que não queria pagar impostos, senão os leves; que voltava novamente seus
olhares ao poder dos parlamentos; que exaltava a autonomia do alto clero; que se exprimia em
correntes religiosas diversas e opostas ao jansenismo e ao quietismo; que encontrava uma voz
no exército e na consciência dos sábios, dos eruditos, de todos aqueles que não podiam mais
aceitar a atmosfera conformista dos últimos anos do Rei-Sol. “São todas essas resistências,
esses obstáculos, essas críticas e essas rebeliões que findarão por abrir a via a esta crise que
chamamos a época da Regência” 68 . Ou seja, aqueles obstáculos, citados acima, gerados pela
classe nobiliárquica. As idéias esclarecidas

[...] nasceram, na realidade, de uma nova interpretação e de uma nova formulação de


forças colocadas em movimento pelos parlamentos que se despertaram, pelas
correntes religiosas que se revigoraram, pela crítica cada vez mais lúcida das

65
Ibid., p. 33.
66
CAMBI, Franco. História da Pedagogia. Op. cit.. p. 324.
67
VENTURI, Franco. “Les Lumières dans l’Europe du 18e siècle”. In: Europe des Lumières: Recherches sur le
18e siècle. Op. cit.. p. 11.
68
“[...] ela demonstrou sua capacidade de assimilar as idéias que, fora da França, eram desenvolvidas durante a
grande luta pela superioridade. Ao compromisso político europeu fundado entre Londres e Versailles
correspondia uma eclosão na qual já se encontrava em germe todo o século XVIII.” VENTURI, Franco. “Les
Lumières dans l’Europe du 18e siècle”. In: Europe des Lumières: Recherches sur le 18e siècle. Op. cit.. p. 11 e
13. Com relação ao período da Regência ver, também: POMEAU, René. La religion de Voltaire. Paris: Nizet,
1995 e LEPAPE, Pierre. Voltaire: o nascimento dos intelectuais no Século das Luzes. Tradução Mário Pontes.
Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

33
heranças dos libertinos, em suma, por todos os elementos abertos pela dissolução da
vontade monárquica da uniformidade. [...] Da efervescência da França durante os
últimos decênios do Rei-Sol deriva o elemento liberal e apaixonado de igualdade
que foi um dos ingredientes essenciais das luzes francesas. É, então, que se abre o
diálogo que não seria mais interrompido [...], o diálogo entre a reivindicação do
direito às liberdades e a vontade de transformações racionais e igualitárias 69 .

No tocante ao estabelecimento do pensamento moderno, na obra A filosofia do


Iluminismo de Ernst Cassirer, esse autor se propõe a descrever um movimento que, segundo
ele, “[...] longe de estar concentrado e fechado sobre si mesmo, encontra-se, muito pelo
contrário, ligado por múltiplos vínculos tanto ao futuro quanto ao passado. Ele constitui
apenas um ato, uma fase singular do imenso movimento de idéias graças ao qual o moderno
pensamento filosófico adquiriu a certeza, a segurança de si mesmo, o sentimento específico de
si e sua autoconsciência específica” 70 .

Essa obra de Cassirer situa “[...] a filosofia do iluminismo no quadro de um mais vasto
encadeamento histórico [...]” 71 . O método escolhido por esse autor quer fornecer uma
fenomenologia 72 do espírito filosófico, acompanhando, “[...] passo a passo, a consciência
cada vez mais lúcida e mais profunda que esse espírito, mesmo tratando de problemas
objetivos, adquire de si mesmo, de sua natureza e de seu destino, de seu caráter e de sua
missão” 73 .

Nesse mesmo momento do texto, Cassirer expõe a dependência e a originalidade da


época das Luzes. Dependência no que diz respeito às idéias que foram emprestadas,
utilizadas; originalidade porque houve algumas mudanças. As influências que chegam às
mãos dos pensadores ilustrados adquirem um novo sentido e abrem um novo horizonte
filosófico. Essas alterações dão a marca do século XVIII e fazem com que ele não seja apenas
uma continuação do século XVII, mas, como fora dito anteriormente, um divisor de águas.

[...] a Época das Luzes permaneceu, no tocante ao conteúdo de seu pensamento,


muito dependente dos séculos precedentes. Apropriou-se da herança desses séculos
e ordenou, examinou, sistematizou, desenvolveu e esclareceu muito mais do que, na
verdade, contribuiu com idéias originais e sua demonstração. Entretanto, a filosofia

69
VENTURI, Franco. “Les Lumières dans l’Europe du 18e siècle”. In: Europe des Lumières: Recherches sur le
18e siècle. Op. cit.. p. 12. (grifo nosso).
70
CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Tradução Álvaro Cabral. 3ª ed. Campinas: Editora da
UNICAMP, 1997. (Coleção “Repertórios”). p. 08.
71
Id.
72
Ciência dos fenômenos puros; retorno às coisas em si.
73
Ibid., p. 09. (grifo nosso).

34
do Iluminismo, [...] nem por isso deixou de instituir uma forma de pensamento
filosófico perfeitamente nova e original 74 .

Algumas das principais mudanças são: não há mais uma crença no sistema metafísico,
no “espírito de sistema”. Este é, para os filósofos dessa época, um obstáculo à razão
filosófica, uma vez que a encerra “[...] nos limites de um edifício doutrinal definitivo [...]” 75 ,
restringindo-se a deduzir “[...] verdades da cadeia de axiomas fixados de uma vez por todas
[...]” 76 . Porém, deve-se ressaltar que “[...] nem por isso o Iluminismo renuncia ao sprit
systématique, ao qual pretende, pelo contrário, incutir mais valor e eficácia” 77 . A filosofia não
é mais um domínio particular do conhecimento “[...] situado a par ou acima das verdades da
física, das ciências jurídicas e políticas e etc., mas o meio universal onde todas essas verdades
formam-se, desenvolvem-se e consolidam-se. Já não está separada das ciências da natureza,
da história, do direito, da política; [...] ela é o sopro tonificante de todas essas disciplinas, a
atmosfera fora da qual nenhuma delas poderia viver”78 . Os conceitos, os problemas herdados
do século XVII, deslocam-se e sofrem uma mudança característica de significação.

Passam da condição de objetos prontos e acabados para a de forças atuantes, da


condição de resultados para a de imperativos. Tal é o sentido verdadeiramente
fecundo do pensamento iluminista. Manifesta-se menos por um conteúdo de
pensamento determinado do que pelo próprio uso que faz do pensamento filosófico,
pelo lugar que lhe confere e pelas tarefas que lhe atribui. [...] o movimento
profundo, o esforço principal da filosofia do Iluminismo não se limitam, com efeito,
a acompanhar a vida e a contemplá-la no espelho da reflexão. Pelo contrário, ela
acredita na espontaneidade originária do pensamento e, longe de restringi-lo à tarefa
de comentar a posteriori e de refletir, reconhece-lhe o poder e o papel de organizar
a vida 79 . O pensamento deve, sem dúvida, analisar, examinar, mas também
provocar, fazer nascer a ordem cuja necessidade ela concebeu [...] 80 .

E os seus representantes, com suas atuações na sociedade, são um retrato fiel desse
“imperativo”, dessas “forças atuantes”, geradoras do sentido desse movimento que leva o
século XVIII a se auto-intitular “Século da filosofia”, visto que este período devolveu “[...]
efetivamente à filosofia seus direitos originais [...]” 81 . “O século XVIII permanece
irremediavelmente associado ao século da filosofia, dos filósofos.” 82 . Completando essa idéia,
Laurent diz que “Graças à figura emblemática do filósofo, [a Ilustração] prepara uma nova

74
Id.
75
Ibid., p. 10.
76
Id.
77
Id.
78
Id.
79
Tarefa também da Retórica, segundo Isócrates. Ver p. 12 da introdução deste trabalho.
80
Ibid., p. 10-11. (grifo nosso).
81
Ibid., p. 11.
82
LAURENT, Bernard. L’esprit des Lumières et leur destin. Op. cit.. p. 35.

35
definição de homem, de suas relações com a Natureza e a Sociedade. [a Ilustração] [...] abre
uma nova via à modernidade” 83 .

Gusdorf afirma que “As denominações atribuídas aos grandes momentos da história
são raramente inocentes” 84 . Elas têm uma razão de ser, seus epítetos não são, em hipótese
alguma, “[...] etiquetas comumente recebidas para designar o conjunto de um momento
cultural” 85 . Para ele, essas designações são adotadas posteriormente ao momento em que
ocorreram, pelos historiadores e pelos críticos “[...] enquanto que os contemporâneos [dessas
designações] não faziam uso [dela]” 86 . Para constatar essa sua afirmação, Gusdorf apresenta
como exemplo o caso dos intelectuais italianos do século XVIII, que não diziam que viviam
na época da Ilustração. “O termo se afirmou por repetição; [...]” 87 . Ao se analisar os textos de
outros estudiosos da Idade Moderna, depara-se com outras constatações acerca dessa mesma
temática. Franco Venturi, por exemplo, poderia responder a essa proposta, afirmando que,
como fora dito anteriormente, na Itália, as “luzes” foram “lampejos”, em razão da ortodoxia e
do poder da religião católica e, por conta disso, os pensadores desse país não se auto-
intitularam “ilustrados”, ou “pertencentes à Ilustração 88 . Contudo, autores como Paul Hazard
e Jean d’Ormesson entendem o movimento Ilustrado como primeiro período da história que se
autodefine 89 . Foucault, em seu referido artigo “Qu’est-ce que les Lumières” 90 , defende a idéia
de que o opúsculo escrito por Kant em 1784, com a intenção de responder à questão “O que é
a Ilustração?”, inaugura a filosofia como ontologia do presente.

Segundo Foucault, a tradição filosófica anterior a Kant pensava o presente de três


formas diferentes: como pertencente a uma certa idade do mundo, “[...] distinta das outras por
algumas características próprias [...]” 91 , com Platão; como o que possui características
anunciadoras de um futuro, ou seja, o presente como um instrumento para tentar decifrar, nele

83
Ibid., p. 33.
84
GUSDORF, Georges. “Discours de l’ombre et discours des lumières”. In: Naissance de la conscience
Romantique au Siècle des Lumières. Op. cit.. p. 39.
85
Id.
86
Id.
87
Id.
88
Cf.: VENTURI, Franco. “Les Lumières dans l’Europe du 18e siècle”. In: Europe des Lumières: Recherches
sur le 18e siècle. Op. cit.. p. 16.
89
Assegura Hazard: “A luz, as luzes, era a divisa que escreviam em seus estandartes pois, pela primeira vez, uma
época escolhia seu próprio nome. Começava o século das luzes [...].” HAZARD, Paul. O pensamento europeu
no século XVIII. Op. cit.. 39-40.
90
FOUCAULT, Michel. “Qu’est-ce que les Lumières?” In: Revue Magazine Littéraire. Op. cit..
91
Id.

36
próprio, “[...] os signos anunciadores de um acontecimento próximo” 92 , com Agostinho; e
como período de transição na direção da aurora do novo mundo, com Vico. A partir de Kant,
especificamente nesse artigo, essa questão será colocada de uma outra maneira. O presente
passa a ser o possuidor de uma diferença: a Ilustração é definida de forma negativa (Kant diz
o que ela não é) e representa uma saída, uma solução, um processo que liberta o homem do
seu estado de menoridade 93 , como “[...] um certo estado de nossa vontade que nos faz aceitar
a autoridade de qualquer um, para nos conduzir nos domínios onde lhe convêm fazer uso da
razão. [...]” 94 . A divisa da Ilustração, o Sapere aude, “[...] não significa que, no processo de
esclarecimento, os homens tenham chegado à descoberta da verdade. Pelo contrário: ousar
saber significa também ter espírito de investigação constante, prestar muita atenção ao que
acontece à nossa volta em todos os domínios, refletir permanentemente sobre as artes, as
ciências, a religião, a política, o direito, a natureza” 95 .

A saída, que caracteriza a Ilustração, e que nos liberta da menoridade, é representada,


por Kant, de uma forma ambígua. “Ela caracteriza um fato, um processo em
desenvolvimento; mas ele a apresenta também como uma missão e uma obrigação. Desde o
primeiro parágrafo, ele faz a observação de que o homem é, ele mesmo, responsável do seu
estado de menoridade. É necessário, então, conceber que ele poderia sair [desse estado]
apenas por uma mudança que ele operaria sobre ele mesmo” 96 .

A novidade do texto de Kant, de acordo com Foucault, é “A reflexão sobre o hoje,


como diferença na história e como motivo para uma missão filosófica particular [...]” 97 .
Laurent, ao tratar dos “Principais conceitos do Espírito das luzes”, mostra que “[...] o filósofo,
não somente cultiva os espíritos de observação e de reflexão sobre as coisas que o circundam,
[...] ele [...] se rende ao útil e a procurar dirigir o seu próprio curso” 98 . A Ilustração é “[...] um
processo do qual os homens fazem parte coletivamente e um ato de coragem a efetuar

92
Id.
93
Kant a define como a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. (Cf.:
KANT, Immanuel. “Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento” (Aufklärung)?” In: Textos Seletos. Tradução
Raimundo Vier. Petrópolis: Vozes, 1990. p. 100.
94
FOUCAULT, Michel. “Qu’est-ce que les Lumières?” In: Revue Magazine Littéraire. Op. cit.. p. 64.
95
NASCIMENTO, Milton Meira do. NASCIMENTO, Maria das Graças de Souza. Iluminismo a revolução das
Luzes. Op. cit.. p. 60.
96
Ibid., p. 64. É possível afirmar que essa mudança operada pelo homem sobre ele mesmo seria viável pela
educação. Porém, a esse respeito, será discorrido depois.
97
Ibid., p. 66.
98
LAURENT, Bernard. L’esprit des Lumières et leur destin. Op. cit.. p. 35.

37
pessoalmente” 99 . Kant coloca o homem no meio do processo. Ele, o homem, é agente e
elemento, sujeito e objeto, e age para mudar ele mesmo, uma vez que pretende mudar o
gênero humano. Em suma: o presente é considerado como um acontecimento filosófico do
qual o filósofo que fala, desse mesmo momento participa. É possível pensar filosoficamente o
presente, mesmo fazendo parte dele. Pela primeira vez, problematiza-se sobre sua própria
realidade discursiva 100 . O conjunto dos ilustrados pertence a um certo “[...] ‘nós’, a um nós
que se acrescenta a um conjunto cultural característico de sua própria atualidade” 101 . Esse nós
transforma-se, para o filósofo, no objeto de sua própria reflexão. “As investigações
intelectual, filosófica e científica se vêem atribuir uma função predominante no conjunto da
cultura; elas arrastam em seu rastro os valores morais e espirituais. No horizonte do vir a ser
histórico se constrói uma apoteose do homem total, liberado de todos os seus obstáculos, em
uma humanidade que teria enfim tomado o controle do seu destino” 102 .

2.3. A metáfora das Luzes e a razão humana

Ilustração é o nome que o século XVIII se dá, aproveitando-se da metáfora da luz. “O


simbolismo do claro e do escuro, da cegueira e da visão é tradicional. Depois de Platão, os
raios luminosos atravessaram os séculos para alimentar a patrística cristã, a teologia medieval
ou mesmo as utopias do renascimento” 103 . Entretanto, é necessário expor a mudança de
sentido que o termo “Luzes” passa a ter, ao deixar de ser utilizado via a perspectiva da
patrística cristã, da teologia medieval, significando “[...] a verdade revelada [...]” 104 , para
servir ao “Século da Filosofia”, o XVIII. A nova definição a esta palavra parte do ponto de
vista filosófico e não mais religioso: “[...] as luzes são, de agora em diante, antes de tudo
humanas; resultado de um trabalho e de um combate necessariamente coletivos” 105 . Elas não
são o resultado de uma retirada meditativa, mas justamente o seu oposto, uma vez que

99
FOUCAULT, Michel. “Qu’est-ce que les Lumières?” In: Revue Magazine Littéraire. Op. cit.. p. 64.
100
Cf.: FOUCAULT, Michel. “Dossier” In: Magazine Littéraire. nº 207, mai, 1984. p. 35.
101
Ibid., p. 36.
102
GUSDORF, Georges. “Discours de l’ombre et discours des lumières”. In: Naissance de la conscience
Romantique au Siècle des Lumières. Op. cit.. p. 40. (grifo nosso).
103
MENEZES, Edmilson. História e Esperança em Kant. São Cristóvão: Editora UFS; Fundação Oviêdo
Teixeira, 2000. p. 131.
104
TATIN-GUORIER, Jean-Jacques. Lire les Lumières. Paris: Dunod, 1996. p. XII.
105
Id.

38
reivindicam uma presença ativa no mundo 106 . Nas palavras de Diderot: “Nossos trabalhos
devem ter por fim estender os limites dos lugares claros ou multiplicar no terreno os centros
de luzes” 107 . A luz representa, então, o saber, o poder, a razão. Em contrapartida, por uma
estratégia intelectual do século XVIII para se auto-afirmar, se existe um Século das Luzes é
porque houve uma época das Trevas, na qual a sombra representaria a falta de razão, a
superstição, o obscurantismo, a tradição e o engano. Por conta desse binômio – Luz e Sombra
–, a Idade Média ficou conhecida como Idade das Trevas. Porém, assim como Tatin-Guorier,
Menezes chama atenção para o fato de que as Luzes do século XVIII devem ser interpretadas
em suas singularidades, uma vez que elas são diferentes das luzes (da metáfora da luz)
utilizadas em outras épocas na história da filosofia 108 . E, o motivo de se utilizar a palavra
Luzes no plural é explicado por Hazard:

A luz; ou melhor ainda, as luzes, pois não se trata de um único raio mas sim de um
feixe, projectava-se sobre as grandes massas de negrume de que a terra estava ainda
coberta; [...] brilhavam enfim; emanavam das augustas leis da razão;
acompanhavam, seguiam a Filosofia que avançava a passos de gigante. Iluminados,
eis o que eram os filhos do século [...]. Antes deles, os homens tinham errado porque
viviam mergulhados na escuridão, porque tinham sido obrigados a permanecer no
meio das trevas, das névoas da ignorância [...] 109 .

Uma das características mais notáveis da Ilustração é o fato de que “[...] as idéias
podem interferir no destino dos homens e transformar o rumo da história” 110 . Por essa razão,
Voltaire dizia que, em seu tempo, uma grande revolução estava se preparando nos espíritos.
Os ilustrados, ao trabalhar para uma transformação espiritual dos homens, que seriam
influenciados por suas idéias, colaboravam para a construção de um futuro feliz para a
humanidade 111 . Esse período tinha como características, entre outras, a autonomia da razão, a
valorização do homem. Para Salinas Fortes, significava uma “[...] profunda crença na razão
humana. [...] revalorizar o homem [...] encará-lo como devendo tornar-se sujeito e dono do
seu próprio destino, [...] esperar que cada homem, em princípio, pense por conta própria”112 .
O homem passa a ter uma nova atitude frente ao Universo. Este pode ser “[...] submetido
livremente à capacidade de julgar, comparar, pesar, avaliar, juntar ou separar de que os
106
Cf.: Id.
107
DIDEROT. Da interpretação da natureza e outros escritos. Tradução Magnólia Costa Santos. São Paulo:
Iluminuras, 1989. p. 39.
108
Cf.: MENEZES, Edmilson. História e Esperança em Kant. Op. cit.. p. 131.
109
Cf.: HAZARD, Paul. O pensamento europeu no século XVIII. Op. cit.. p. 39. Ver, também, a esse respeito,
nota 61.
110
NASCIMENTO, Milton Meira do. NASCIMENTO, Maria das Graças de Souza. Iluminismo a revolução das
Luzes. Op. cit.. p. 22.
111
Cf.: Ibid., p. 72.
112
FORTES, Luiz Roberto Salinas. O iluminismo e os reis filósofos. Op. cit.. p. 09.

39
indivíduos começavam a se tornar cada vez mais conscientes” 113 . Para que a razão seja livre
ela não pode se “[...] submeter a nenhuma autoridade que a transcenda ou nenhuma regra que
lhe seja extrínseca: ela é, para si mesma, sua própria regra” 114 . Não deve haver nenhuma
autoridade acima da razão.

Para Franco Venturi, o movimento ilustrado teve suas origens próprias; seu
desenvolvimento particular; dissensões internas, ou seja, uma heterogeneidade; momentos
áureos de renascimento e, também, de dissoluções. “Ele é obra de homens que são conscientes
daquilo que eles possuem em comum, que buscam e criam formas de organização, de
reagrupamento e de ação, que pensam e agem em função destas e que, de tempos em tempos,
formam uma avaliação de sua atividade no mundo que os cerca, tomando assim consciência
do lugar que eles ocupam na sociedade e na história” 115 .

A Ilustração é marcada pela crítica, pela polêmica, e incita o homem a ter coragem e
audácia contra a preguiça de não querer ver a verdade. Segundo Souza, este foi

[...] um movimento de idéias que se difundiu no século XVIII, em vários países da


Europa. Caracterizou-se pela defesa da autonomia da razão em face dos argumentos
tirados da autoridade e da tradição. [...] a razão deve penetrar em todos os domínios
do saber da atividade humana, para destruir os preconceitos, que são frutos da
ignorância e do obscurantismo. Assim, a filosofia ilustrada assume uma atividade
crítica em relação à tradição cultural, religiosa e institucional 116 .

Para Kant, a Ilustração é “[...] o movimento, por meio do qual passamos de uma
menoridade dependente para uma condição de maioridade e de autonomia [...]” 117 . É uma
época em que o homem deve buscar sair da heteronomia. No texto Resposta à pergunta: Que
é o Esclarecimento?, Kant afirma serem a preguiça e a covardia responsáveis por levar o
homem a fugir do esclarecimento 118 . A preguiça faz com que se ache mais cômodo ser
heterônomo, dependente de outrem, menor. A covardia é, assim como a preguiça, um entrave
ao pensar autônomo. O homem transfere para outrem as responsabilidades de sua existência
113
Ibid., p. 18. (grifo nosso).
114
Id.
115
Cf.: VENTURI, Franco. “Les Lumières dans l’Europe du 18e siècle”. In: Europe des Lumières: Recherches
sur le 18e siècle. Op. cit.. p. 03. (grifo nosso).
116
SOUZA, Maria das Graças de. Voltaire: a razão militante. São Paulo: Moderna, 1993 (Coleção. Logos). p.
06.
117
NASCIMENTO, Milton Meira do. NASCIMENTO, Maria das Graças de Souza. Iluminismo a revolução das
Luzes. Op. cit.. p. 05.
118
Cf.: KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento” (Aufklärung)? In: Textos Seletos. Op.
cit.. p. 100.

40
quando não supera tais entraves à autonomia. A razão ilustrada se preocupa com o destino e
com a emancipação do homem.

O conceito de razão pode ser, dentre outros, “[...] uma luz que, uma vez acesa, afasta
as trevas da ignorância e da servidão” 119 . Salinas Fortes entende que a “[...] Razão se propõe
como instrumento soberano de conhecimento [...] como instância suprema incumbida de reger
os destinos históricos do homem e conduzir à sua emancipação diante dos preconceitos do
passado, assim como dirigir e organizar a vida em sociedade” 120 . A razão, para o filósofo do
século XVIII, “[...] não é apenas uma faculdade de conhecer, mas é também instância que
estabelece valores para regular e orientar a vida em sociedade [...]” 121 . Segundo Paul
Hazard, “A razão é como uma soberana que, tendo alcançado o poder, toma a resolução de
ignorar as províncias onde sabe que nunca poderá reinar totalmente. [...] o que é a razão? É-
lhe primeiramente contestado todo e qualquer caráter de faculdade inata; forma-se [...]
trabalhando a partir dos dados dos sentidos, nos fornece as idéias abstractas e se diversifica
em faculdades” 122 . Ainda em Hazard, tal é o papel da razão:

[...] em presença do obscuro, do duvidoso, lança-se ao trabalho, julga, compara,


utiliza uma medida comum, descobre, pronuncia-se. Não há função mais alta do que
a sua, pois está encarregada de revelar a verdade, de denunciar o erro. Da razão
depende toda a ciência e toda a filosofia. [...] A razão basta-se a si própria: quem a
possui e a exerce sem preconceitos jamais se engana: [...] ela segue infalivelmente o
caminho da verdade 123 .

A razão, no século XVIII, segundo d’Ormesson, continua o seu reinado; porém, ela
amplia ainda mais os seus poderes e muda a sua orientação: pára de sustentar a ordem (das
Instituições temporal e espiritual) e se volta contra ela 124 . Seus inimigos são a força da
tradição (as Instituições temporais); a autoridade da religião (as Instituições espirituais); o
fanatismo e a ignorância que fazem com que o homem mergulhe no medo 125 . O homem

119
NASCIMENTO, Milton Meira do. NASCIMENTO, Maria das Graças de Souza. Iluminismo a revolução das
Luzes. Op. cit.. p. 05.
120
FORTES, Luiz Roberto Salinas. O iluminismo e os reis filósofos. Op. cit.. p. 20. “Organizar” a vida em
sociedade, assim como a Retórica e a Filosofia. (p. 12 e 35).
121
SOUZA, Maria das graças de. Ilustração e História. O pensamento sobre a História no Iluminismo francês.
São Paulo: Discurso Editorial, 2001. p. 22. (grifo nosso).
122
HAZARD, Paul. O pensamento europeu no século XVIII. Op. cit.. p. 36. Em uma mesma citação tem-se
referência à idéia de limite do conhecimento e o inatismo das idéias: não cabe ao homem tudo conhecer; logo,
deve-se preocupar com um conhecimento que seja útil ao homem e à sociedade; as idéias não são inatas, vêm
pelos sentidos, ou seja, são de natureza empírica.
123
Ibid., p. 36-37.
124
ORMESSON, Jean d’. Une autre histoire de la littérature française. Les Lumières. p. 07.
125
Cf.: NASCIMENTO, Milton Meira do. NASCIMENTO, Maria das Graças de Souza. Iluminismo a
revolução das Luzes. Op. cit.. p. 06-08.

41
encontra a felicidade na razão porque ela está a serviço do bem-estar da sociedade, uma vez
que aperfeiçoa as artes, as ciências e, desta maneira, os prazeres e as comodidades dos seres
humanos se multiplicarão 126 . “É o próprio homem que, de acordo com sua liberdade, sua
educação, as condições concretas em que vive, deve orientar seu destino de tal forma que
possa ser feliz” 127 .

Porém, como fora dito anteriormente, a Ilustração não deve ser vista como um período
homogêneo. “[...] a unidade da época é apenas um desejo piedoso, reivindicação de um
totalitarismo, que não exita, para atingir seus fins, a desfigurar a realidade” 128 . Salinas Fortes
afirma que ao se estudar o século XVIII, deve-se estar ciente de que ele não é uma doutrina
sistemática 129 . Gusdorf afirma que “A cultura do tempo em sua plena atualidade é uma
realidade ambígua na qual o olhar retrospectivo do historiador pode decifrar configurações
diversas, senão contraditórias” 130 .

Nesse mesmo texto, porém em outro capítulo, Gusdorf discute acerca da Ilustração e
das diversas nomenclaturas recebidas por este movimento na Europa, especificamente na
França (Lumières), Alemanha (Aufklärung) e na Inglaterra (Enlightenment), mostrando as
diferenças de valor entre cada uma dessas nomenclaturas. Em cada um desses países, o
movimento ilustrado teve suas características próprias. E, mesmo em um único deles, é
possível perceber, dentre os seus representantes, características peculiares. Portanto, utilizar
esses termos para designar, de uma maneira geral, o século XVIII, é tomar a parte pelo todo.
“Se as luzes são uma palavra de ordem, um slogan de combate, a denominação Idade das
Luzes, utilizada para designar o conjunto de um período, corre o risco de fixar uma realidade
móvel, acordando uma importância exclusiva a uns momentos em detrimento de outros
[...]” 131 .

126
Cf.: HAZARD, Paul. O pensamento europeu no século XVIII. Op. cit.. p. 39.
127
NASCIMENTO, Milton Meira do. NASCIMENTO, Maria das Graças de Souza. Iluminismo a revolução das
Luzes. Op. cit.. p. 22.
128
GUSDORF, Georges. “XVIIIe siècle: seconde vue ”. In: Naissance de la conscience Romantique au Siècle
des Lumières. Op. cit.. p. 25.
129
Esse assunto será discorrido no capítulo segundo, na citação referente à nota 213.
130
Id.
131
GUSDORF, Georges. “Discours de l’ombre et discours des lumières”. In: Ibid., p. 40.

42
Belaval, ao discorrer sobre o mesmo assunto, afirma que os termos Lumières e
Aufklärung não podem ser traduzidos um pelo outro 132 . As denominações, diz ele em outro
texto, dadas para as diversas manifestações do século XVIII no continente europeu
(Verlichting, Illuminismo, Prosvechtchenie, Illustrácion, além das que foram expostas
anteriormente), não são traduzidas como as mesmas coisas; ou seja, não há um vocábulo que
sozinho possa representar, de maneira uniforme, todas essas palavras, que são os epítetos dos
diversos movimentos ocorridos no velho mundo, no período setescentista 133 . Um exemplo
que ele traz é a significação da palavra alemã Bildung, que “[...] não eleva a uma liberdade
que ultrapassa o liberalismo, ela não desemboca sobre uma revolução social; ela reclama
somente a autonomia moral para uma razão que alcança sua maioridade. [...] A Razão não é
a Razão das Luzes [Lumières]” 134 . Outros aspectos que tornam a Lumières diferente da
Aufklärung dizem respeito à religião, à falta de unidade no território Alemão, à filiação da
maioria dos filósofos e as suas atividades como pastores e como professores das
Universidades. A divisão em diversos estados, sem que aja uma única monarquia,
descentraliza também a Aufklärung. Essa descentralização colabora para que o movimento
alemão tenha uma tendência mais religiosa, uma vez que

[...] o anticlericalismo não poderia se produzir em uma nação dividida em centenas


de estados, cujo centro não estaria em nenhuma parte, [...] tal qual ele se produz em
uma nação unificada por uma monarquia absoluta, hierárquica, fiel a Roma, onde o
clero representaria uma classe privilegiada [a França]. A nação germânica não é
fixa. Ela é móvel. [...] A Aufklärung nasceu da Bíblia, [...] das inspirações luteranas
e calvinistas que se unem no pietismo 135 .

A Aufklärung não se opõe à crença, mas busca preconizar a humanização da teologia,


destruindo, “[...] através da crítica racional, o seu pedantismo e certos dogmas, como a
eternidade das penas [...]” 136 , pelas quais os homem devem pagar seu pecados. E, na França, é
nas Academias, nos Salões, nos Cafés que ocorrem os debates filosóficos. Na Alemanha, o
ponto primordial de difusão da vida intelectual é a Universidade. Diversos representantes da
Aufklärung foram professores universitários 137 .

132
Cf.: BELAVAL, Yvon. “L’Aufklärung a Contre-Lumières”. In: Archives de Philosophie. Tome 42, cahier 4,
octobre-décembre, 1979. p. 361.
133
BELAVAL, Yvon. “Qu’est-ce que les Lumières?” In: Dix-huitième Siècle. Op. cit.. p. 11.
134
BELAVAL, Yvon. “L’Aufklärung a Contre-Lumières”. In: Archives de Philosophie. Op. cit.. p. 633-634.
(grifo nosso).
135
Ibid., p. 631-632.
136
Ibid., p. 633.
137
Id.

43
2.4. As Luzes Francesas e sua face educativa

A origem da Ilustração, na França, dá-se a partir de um grupo de homens que emergem


na primeira metade do século XVIII: “[...] Voltaire, Montesquieu e o grupo da
Enciclopédia” 138 , que é chamado por Venturi como Le groupe des jeunes, e tem como
componentes Diderot, Rousseau, La Mettrie, Condillac e D’Holbach.
Com relação a Voltaire, que fez parte da segunda fase da Ilustração, ele é apresentado
como o mais sensível, o mais inquieto e o mais inteligente desses homens:
[...] os outros [filósofos] se encontravam a seu lado, sobre esse mesmo caminho [...].
Mas nenhum possuía a energia, a habilidade que fez da correspondência de Voltaire
e Frederico II, por exemplo, uma obra-prima do século. E ninguém soube, como ele,
renovar, sem relaxar, suas tentativas, próximo ao rei da Prússia como próximo de
Machault; ninguém soube colocar nesse esforço um sentido tão profundo de
liberdade e de tolerância, esse sentido que ele nutrira na Inglaterra, reafirmado na
solidão da Bastilha e de Cirey 139 .

Com relação a Montesquieu, autor da “[...] obra-prima do equilíbrio do século XVIII


[...]” 140 , que marca a grande linha de divisão de águas das idéias políticas, o Espírito das Leis
(1748), prova genial da necessidade de um acordo superior entre a liberdade dos intelectuais e
os privilégios e o desejo da justiça, contida no direito natural e na tradição clássica; faz parte
da primeira fase da Ilustração francesa. Autor, também, das Cartas Persas (1721), livro
descrito por Venturi como sendo “[...] o poder da obra-prima de chegar a harmonizar as
diferentes idéias que estavam desabrochando na França desde o dia da revogação do Edito de
Nantes” 141 , Montesquieu demonstrou, nessa obra, uma capacidade superior que se
desenvolveria plenamente no Espírito das Leis, “[...] que lhe permitiu reunir idéias e ideais
diferentes em uma construção de conjunto, na qual eles não perdem sua vida e não se
encontram nem mutilados nem manchados, mas respeitados neste ecletismo superior que
Montesquieu sabia ser a condição da liberdade, em um mundo diversificado e policiado” 142 .

No que diz respeito a Voltaire e a Montesquieu, ambos tinham, ainda de acordo com o
texto de Venturi, a maturidade de “[...] produções intelectuais nas quais se reencontravam e se
confrontavam impulsão liberal e deísmo, espírito de investigação e espírito de reforma

138
VENTURI, Franco. “Les Lumières dans l’Europe du 18e siècle”. In: Europe des Lumières: Recherches sur
le 18e siècle. Op. cit.. p. 18.
139
Id.
140
Id.
141
Ibid., p. 13.
142
Id.

44
[...]” 143 . Já se pretendia, com isso, uma resposta vigorosa aos conflitos religiosos, políticos e
econômicos da época.

Le groupe des jeunes formam uma terceira fase da Ilustração e deram uma energia
nova à Europa, que saía da Guerra de Sucessão da Áustria. Eles trouxeram a rebelião, a
revolta. Representavam a
Força e energia nascente, não madura ainda, que se exprime paradoxalmente, que
muda de uma significação nova as forças herdadas do passado, que se perde
frequentemente nas divagações, mas que tem todas as características de um élan
intelectual e moral, destinado a se repercutir ao longe, e durar muito tempo. [...]
temos já lá, entre 1745 e 1754, todos os elementos pelos quais as luzes francesas se
distinguiram da Aufklärung, do deísmo inglês e do racionalismo de outros países 144 .

Antes de se tratar da relação que existe entre esses diversos pensamentos e pensadores,
ou seja, o que possibilita uma unidade a esse movimento ocorrido na Europa no século XVIII,
faz-se necessário, após a exposição das divergências entre as manifestações das “Luzes” nas
diversas partes do continente europeu, especificamente das diferenças entre o que ocorreu na
França e na Alemanha, expor o motivo da supremacia da Lumières. “[...] de Paris que foram
tiradas as conseqüências extremas e as conclusões de todo o movimento do século” 145 . São os
philosophes que, além da decadência do clero e da tolerância, conseguem afirmar os valores
de liberdade. É da capital da França que

[...] nós vemos, então, as primeiras grandes afirmações de uma igualdade de fato.
[...] Um sentimento de progresso, de desenvolvimento está presente por toda parte
onde há homens cultivados, na Europa do século XVIII. Mas a teoria do progresso,
da perfectibilidade, do caminho infinito que se acha diante do homem para o
aumento de seus bens e de seus valores, afirma-se apenas no mundo das luzes
francesas 146 .

Deve-se levar em consideração, dentre esse mosaico que representa o século XVIII, o
fato dele preparar, sobretudo, “[...] uma nova definição de homem, não mais pensado como
negativo da perfeição divina, mas como sujeito integrado ao mundo físico e social e possuidor
de seus próprios direitos 147 . O que o XVIII opera é uma “[...] verdadeira revolução nos
espíritos, que precede a revolução das instituições e dos costumes” 148 .

143
Id.
144
Ibid., p. 18-19. (grifo nosso).
145
Ibid., p. 25.
146
Ibid., p. 25-26.
147
LAURENT, Bernard. L’esprit des Lumières et leur destin. Op. cit.. p. 03.
148
Ibid., p. 04.

45
O que une os diversos pensamentos do século XVIII é “[...] o procedimento
sistemático de fazer o mundo girar em torno da razão” 149 . A única aproximação existente
entre os pensadores ilustrados se dá “[...] em virtude da participação em uma empreitada
comum [...], ou em uma mesma atmosfera cultural”150 . Não há uma unidade nos pensadores.
O que há realmente é um conjunto de pensamento, representado pelos philosophes. “A
unidade das Luzes seria, assim, antes de tudo um espírito comum, em uma incitação
partilhada a se libertar de toda tutela que pretende a uma autoridade absoluta e
indiscutível” 151 . Essa participação conjunta dos ilustrados, mesmo estes sendo filósofos com
divergências de pensamento, em prol de um objetivo maior, é assim descrita por Menezes:
“[...] mais do que uma reunião espontânea, autores tão diversos estão assim agrupados porque
metas grandiosas precisam da coesão mínima para serem alcançadas. Tais metas começam a
se formar no seio da intelectualidade ilustrada, a qual busca estabelecer uma harmonia entre
objetivos e pensamentos, e têm endereço certo: formar a opinião pública contra a paralisia e
as trevas do passado” 152 .

O ponto comum entre os philosophes é: não há como pensar o progresso sem a


instrução. Estes filósofos defendem a idéia de que a mola propulsora da história é a educação.
Ela é a responsável por tornar o homem um ser digno e esclarecido. Para esses pensadores, o
homem é um ser perfectível, que tem, como afirmara Kant, obrigação em buscar a sua
autonomia. Porém, a França do século XVIII não é ainda uma época ilustrada, mas uma “[...]
era da Ilustração, favorável ao crescimento intelectual e moral do homem” 153 . Assim, o papel
dos Homens de Letras, ou philosophes, é, a partir de suas idéias e seus escritos, desenvolver
uma intensa atividade pedagógico-civilizatória154 . “Ligada à ciência, que é uma idéia nova na
Europa e que se desenvolve desde a Renascença, a noção de Progresso está no centro do
dispositivo. O homem é indefinidamente perfectível e o progresso científico e moral é a lei da
história e a bíblia do mundo novo” 155 .

149
NASCIMENTO, Milton Meira do. NASCIMENTO, Maria das Graças de Souza. Iluminismo a revolução das
Luzes. Op. cit.. p. 12.
150
FORTES, Luiz Roberto Salinas. O iluminismo e os reis filósofos. Op. cit.. p. 14.
151
TATIN-GUORIER, Jean-Jacques. Lire les Lumières. Op. cit.. p. XII.
152
MENEZES, Edmilson. História e Esperança em Kant. Op. cit. p. 138. (grifo nosso).
153
NASCIMENTO, Milton Meira do. NASCIMENTO, Maria das Graças de Souza. Iluminismo a revolução das
Luzes. Op. cit.. p. 6.
154
Este termo é utilizado por Salinas Fortes na obra: FORTES, Luiz Roberto Salinas. O iluminismo e os reis
filósofos. Op. cit..
155
ORMESSON, Jean d’. Une autre histoire de la littérature française. Les Lumières. p. 09. (grifo nosso).

46
A intensa preocupação com a formação, educação insere-se num “[...] século que
lançou a maior parte dos temas que se impõem ao debate pedagógico até nossos dias”156 , e
tinha um ideal de educação que rompia com a tradição.

A educação medieval formava os homens para a Igreja; o humanismo clássico forma


os jovens para eles mesmos e para o mundo, para a classe privilegiada, a classe
ociosa, à qual eles pertencem, conforme as normas de um estetismo que negligencia
as coisas materiais. O sistema de valores próprio à idade das Luzes condena este
ideal pedagógico vagamente contemplativo, especulativo e, sobretudo, desocupado.
[...] Os temas do utilitarismo e da filantropia conjugam-se para repudiar o
humanismo estetizante do ensino tradicional, e o egoísmo de classe do qual ele é
expressão. Não se trata mais em preparar os espíritos cultivados capazes de brilhar
na boa sociedade, mas cidadãos úteis, suscetíveis de contribuir à empreitada coletiva
da civilização 157 .

Deve-se ensinar o homem a raciocinar por si mesmo e, nesse sentido, os pensadores


tiveram muita importância neste processo para retirar os homens da menoridade. Busca-se, na
Ilustração, uma educação cosmopolita:

O cosmopolitismo das Luzes é a afirmação de um patriotismo “com relação à


sociedade geral”, à humanidade em seu conjunto. A laicização do ensino se impõe
uma vez que se trata de formar os cidadãos do mundo, e não os fiéis de tal ou tal
seita particular cristã que seria ainda apenas uma parte da comunidade humana. A
humanidade é uma realidade de direito natural anterior, de direito e de fato, às
revelações religiosas. E por isso o poder civil deve ter a autoridade [la haute main]
sobre a educação, mas o Estado ao ensinar, não deve fechar a juventude no
horizonte limitado da comunidade nacional; ele deve desenvolver em cada um de
seus alunos o sentido da dependência à grande família humana 158 .

Além das diversas revoluções ocasionadas pela Modernidade, nos campos econômico,
geográfico, político, social, ideológico e cultural, como afirma Cambi 159 , houve, também,
uma revolução no campo pedagógico. A partir da Modernidade, ocorre a preparação para o
declínio e, posteriormente, o desaparecimento da sociedade de ordens, típica da Idade Média e
que “[...] negava o exercício das liberdades individuais para valorizar, ao contrário, os
grandes organismos coletivos [...], favorecendo o bloqueio de qualquer mudança e
intercâmbio cultural” 160 . Essa sociedade feudal, estática, autoritária, inicia a sua crise no fim

156
Ver: GUSDORF, Georges. “De l’utopie a la réalité”. In: L’avènement des sciences humaines au Siècle des
Lumières. Op. cit.. p. 155. Este autor chama o século XVIII de “Século da Pedagogia”. A esse respeito, ver
também: BOTO, Carlota. A Escola do Homem Novo. Entre o Iluminismo e a Revolução francesa. São Paulo:
UNESP, 1996. (Coleção “Encyclopaidéia”).
157
GUSDORF, Georges. “Les fins de L’Éducation”. In: Ibid., p. 115.
158
Ibid., p. 119.
159
Cf.: CAMBI, Franco. História da Pedagogia. Op. cit.. p. 196-198
160
Ibid., p. 196. (grifo nosso).

47
do século XV, quando começa um processo de laicização política e econômica da Europa.
Porém, juntamente com essa laicização política e econômica ocorre, também, o mesmo
fenômeno no plano ideológico, “[...] separando o mundano do religioso e afirmando sua
autonomia e centralidade na própria vida do homem; [...]” 161 . Este passa a ser o sujeito de
sua própria história.

Todas as revoluções citadas anteriormente, que implicaram e produziram uma


revolução também na educação e na pedagogia, fazem com que a formação do homem siga
novos itinerários sociais, orientando-se de acordo com novos valores e estabelecendo novos
modelos.

[...] Opera-se assim uma radical virada pedagógica que segue caminhos muito
distantes daqueles empreendidos pela era cristã [...] que reativam sugestões [...] da
Antigüidade e da sua paidéia, vista como uma livre formação humana em contato
com a cultura e com a vida social. Segue-se o modelo do Homo faber e do sujeito
como indivíduo, [...] potencializando a sua capacidade de transformar a realidade e
de impor a ela uma direção e uma proteção, até mesmo a da utopia 162 .

Essa visão, determinada pelas revoluções ocorridas na Modernidade, trazem a idéia,


mais uma vez, do homem como sujeito responsável por determinar o seu destino e o da
sociedade à qual ele pertence. O homem deve ser útil, Homo faber, para que possa contribuir
com o progresso das ciências, da vida em comunidade, enfim, com o progresso do próprio
gênero humano.

Portanto, os fins da educação mudam. Esta, a partir de agora, destina-se ao indivíduo


ativo em sociedade, um “artifex fortunae suae”, mas, também, útil ao mundo em sua volta,
“[...] um indivíduo mundanizado, nutrido de fé laica e aberto para o cálculo racional da ação e
suas conseqüências” 163 . Ou seja, o homem não é mais educado para ser um ornamento da
sociedade. Ele deve ser útil a ela, deve procurar, através do seu raciocínio, de sua razão,
trabalhar para que a vida se torne mais feliz, menos penosa, tanto para ele, quanto para a
família à qual ele faz parte: a humanidade.

Ocorre, também, uma mudança nos meios educativos. Antes, a Igreja detinha essa
função, juntamente com a família. Agora, toda a sociedade “[...] se anima de locais formativos

161
Id. (grifo nosso).
162
Ibid., p. 198.
163
Id.

48
[...]” 164 : as oficinas; o exército; as novas instituições sociais (hospitais, prisões ou
manicômios), [além das academias, os salões 165 e os cafés] que têm a função de controlar e
conformar a sociedade, mas também, operam num sentido educativo, uma vez que esses
lugares eram centros de difusão das novas idéias. Dentre as Instituições mais importantes 166 ,
duas sofrem uma profunda reorganização e, por conta disso, tornam-se mais centrais na
formação dos indivíduos e na reprodução da sociedade: a Escola, que “[...] ocupa um lugar
cada vez mais central, cada vez mais orgânico e funcional para o desenvolvimento da
sociedade moderna [...]” 167 .; e a Família. “A ambas é delegado um papel cada vez mais
definido e incisivo, de tal modo que elas se carregam cada vez mais de uma identidade
educativa, de uma função não só ligada ao cuidado e ao crescimento do sujeito em idade
evolutiva ou à instrução formal, mas também a uma formação pessoal e social ao mesmo
tempo” 168 .

A Escola deve assegurar a preparação para a vida. Seu papel é instruir, ensinar
conhecimentos, mas, ao mesmo tempo, comportamentos, que devem se articular em função da
didática, “[...] da racionalização da aprendizagem dos diversos saberes, em torno da
disciplina, da conformação programada e das práticas repressivas” 169 .

As teorias pedagógicas também mudam, adquirindo uma conotação histórica e


empírica,

[...] encarregando-se das novas exigências sociais de formação e de instrução,


modelando fins e meios da educação em relação ao tempo histórico e às condições
naturais do homem, que, portanto, deve ser estudado cientificamente [...], de modo
analítico e experimental [...]. [Nasce a pedagogia como ciência] como saber da
formação humana que tende a controlar racionalmente as complexas [...] variáveis
que ativam esse processo. Mas, nasce também uma pedagogia social que se
reconhece como parte orgânica do processo da sociedade em seu conjunto, na qual

164
Id.
165
“Graças à ação esclarecida de mulheres ilustres, as ciências, mas também as artes e a literatura, conhecem um
impulso considerável. [...] Menos um refúgio de mundanos que centro de difusão das idéias novas, [os] salões
são igualmente verdadeiras reuniões cosmopolitas.” LAURENT, Bernard. L’esprit des Lumières et leur destin.
Op. cit.. p. 27.
166
Os conceitos de Instituição e de Instituição Educativa, utilizados nesse trabalho, foram retirados de:
REBOUL, Olivier. A Filosofia da Educação. Op. cit.. p. 25-26. Uma Instituição é, precisamente, uma realidade
humana; relativamente autônoma; estável, uma vez que preexiste aos seus membros; constrangedora, porque
exerce autoridade e limita a liberdade de seus filiados. (p. 25-26). Já as Instituições Educativas são entendidas,
por Reboul, como a Família, a Escola, a Universidade, etc. (p. 25). Ou seja, não está restrita à escola e à
Universidade, à educação dita formal.
167
CAMBI, Franco. História da Pedagogia. Op. cit.. p. 198-199.
168
Ibid., p. 203.
169
Ibid., p. 205.

49
ela desempenha uma função insubstituível e cada vez mais central: formar o
homem-cidadão 170 .

Segundo Cambi, juntamente com essa pedagogia social, nasce uma pedagogia
antropológico-utópica, que desafia a pedagogia existente à época e coloca esse desafio “[...]
como o verdadeiro sentido do pensar e do fazer pedagogia” 171 . No capítulo destinado a tratar
da laicização educativa e o racionalismo pedagógico no século XVIII, Cambi traça um
panorama da situação da Ilustração européia e da pedagogia na França, Alemanha e Itália 172 .
De acordo com esse autor, o século XVIII realiza uma grande e profunda transformação da
Pedagogia. Isso ocorre porque esta última é “[...] filha da ruptura realizada por Locke em
1693 com Alguns pensamentos sobre educação, que tinha posto em primeiro plano a
educação como instrumento de formação tanto da mente como da moral de todo
indivíduo” 173 .

Essas idéias, trazidas por Locke, serão retomadas por Condillac e Rousseau, que terão
como objetivo regenerar os povos e submetê-los ao domínio da razão. Será através da difusão
das Lumières, da Aufklärung, da Ilustração que a educação se afirmará como um dos centros
motores da vida social e das diversas estratégias da sua transformação.

São os iluministas, de fato, que delineiam uma renovação dos fins da educação, bem
como dos métodos e depois das instituições, em primeiro lugar da escola, que deve
reorganizar-se sobre bases estatais e segundo finalidades civis, devendo promover
programas de estudo radicalmente novos, funcionais para a formação do homem
moderno (mais livre, mais ativo, mais responsável na sociedade) 174 .

O papel exercido pelos philosophes, como pôde afirmar a citação acima, foi de
fundamental importância para que se produzisse uma verdadeira revolução nos espíritos, nas
mentalidades dos homens, começada no século XVIII. Toda a sociedade articula-se em torno
de um projeto educativo, apresenta-se como uma sociedade educativa, e os objetivos
essenciais da Pedagogia das Luzes, de acordo com Tatin-Guorier, seriam: transmitir
conhecimentos dos quais a validade seja assegurada; denunciar os erros que são obstáculos ao
Progresso e, formar uma opinião esclarecida 175 . Este último resume o papel exercido pelos
Homens de Letras, e será a partir desse objetivo que esses philosophes delinearão sua missão:

170
Ibid., p. 199. (grifo nosso).
171
Id.
172
A esse respeito, consultar Cambi, páginas 336-342.
173
Ibid., p. 336.
174
Id.
175
Cf.: TATIN-GUORIER, Jean-Jacques. Lire les Lumières. Op. cit.. p. 22-23.

50
fazer com que o homem se torne autônomo, capaz de fazer uso, de maneira livre e esclarecida,
do seu próprio entendimento.

Dessa forma, as proposições metafísicas, por conta da luta empreendida por esses
filósofos, com a finalidade de divulgar suas idéias, perde terreno para o empirismo também no
campo pedagógico, ocasionando um duplo efeito: o pluralismo dos paradigmas e o declínio da
metafísica 176 . O modelo de pedagogia que será adotado atenua o homem como ele é para
delinear o homem como ele deveria ser 177 , uma vez que, sendo ele, o homem, perfectível, é
capaz de tornar-se melhor. E, por isso, a atividade pedagógica exercida pelos pensadores
desse período visava melhorar o homem, aperfeiçoá-lo. “Pretende-se formar um homem
social (ativo e útil para a sociedade e não para a ‘outra vida’), delinear uma cultura
socialmente engajada, caracterizar a sociedade sob o aspecto da eficiência, de produção e de
governo, [na qual] também se coloca a instância religiosa, mas como funcional às
necessidades do homem e não legitimadora no sentido ontológico-teológico” 178 .

De acordo com d’Ormesson, os filósofos “[...] glorificam a razão e a viram contra a fé


e o dogma que não eram contestados no século precedente. [...] Diderot [...] monta uma
máquina de guerra intelectual [a Enciclopédia] [...]” 179 . Contudo, não se pode perder de vista
que essa tarefa do pensador no século XVIII, dos philosophes, não foi uma tarefa fácil.
Voltaire, na décima terceira carta, da obra Cartas Filosóficas (1734), que discorre acerca do
Sr. Locke, afirma que o número das pessoas que pensam, que refletem sobre o mundo, é
infinitamente pequeno 180 . Desta forma, é extremamente difícil mudar alguma coisa. Para que
aja uma mudança, uma melhoria na sociedade, este número de pessoas deve aumentar
consideravelmente. Por essa razão, os filósofos devem instruir os homens.

O philosophe possuidor dessa missão, que visava levar o homem à sua autonomia, e
consistia “[...] de um lado, em tornar acessível o saber dos filósofos, as grandes questões da
teologia, da física, da moral, do direito e da filosofia; [e] de outro, em construir sistemas

176
CAMBI, Franco. História da Pedagogia. Op. cit.. p. 212.
177
Ibid., p. 214.
178
Id.
179
ORMESSON, Jean d’. Une autre histoire de la littérature française. Les Lumières. Op. cit..p. 09.
180
VOLTAIRE. Cartas Filosóficas. 2ª ed. Tradução Bruno da Ponte et al.. São Paulo: Abril Cultural, 1978
(Coleção “Os Pensadores”). p. 22-23.

51
teóricos que possam ser facilmente assimilados pelo povo” 181 , ou seja, esse personagem que
entra em cena no século XVIII e tem uma preocupação pedagógica em formar a opinião
pública, teve um papel fundamental, nos anos anteriores à revolução de 1789. O “ar do
tempo” foi o responsável por esses audaciosos espíritos.

O philosophe era um novo tipo social, que hoje conhecemos como o intelectual. Ele
pretendia colocar suas idéias em uso, persuadir, propagar e transformar o mundo ao
redor. É certo que pensadores anteriores também haviam nutrido a esperança de
mudar o mundo. Os radicais religiosos e os humanistas do século XVI eram
devotados a causas. Mas os philosophes representaram uma nova força na história,
homens de letras agindo em conjunto e com autonomia considerável para impor um
programa. Eles desenvolveram uma identidade coletiva, forjada pelo compromisso
comum em face dos riscos comuns. Foram marcados como um grupo pelos
perseguidores, apenas o bastante para dar dramaticidade a sua ousadia, mas não o
suficiente para impedi-los de prosseguir na empresa. Desenvolveram um forte
sentido de “nós” contra “eles”: homens de espírito contra os fanáticos, honnêtes
hommes contra os privilégios exclusivos, criaturas da luz contra os demônios das
trevas 182 .

A preocupação dos philosophes era em formar o ser humano, e não formar um


homem, um indivíduo, um adorno para a sociedade 183 . O objetivo da Ilustração diz respeito à
função educativa que o intelectual tinha, ou seja, sua intervenção direta na vida coletiva. O
autor moderno caracteriza-se por possuir uma autonomia e um papel social mais incisivo e
dinâmico 184 . Sua influência na sociedade será determinante para que o projeto pedagógico-
civilizatório do movimento ilustrado concretize-se.

Nesse contexto social e político, mas também econômico e jurídico, deve ser
sublinhada [...] a nova fisionomia assumida pelo intelectual: o seu papel sócio-
político, a sua identidade cultural, a sua função pública, que o delinearão como uma
figura central nos séculos seguintes e o caracterizarão cada vez mais no sentido
educativo. Voltaire e Diderot, sobretudo, são os modelos mais explícitos desse novo
tipo de intelectual. Eles usam a pena como uma arma, para atacar preconceitos e
privilégios, para denunciar intolerâncias e injustiças, mas, ao mesmo tempo,
delineiam um novo panorama do saber reformulado sobre bases empíricas e
científicas e que se tornou saber útil para o homem e para a sociedade.[...] O
intelectual torna-se mediador entre sociedade e poder, adquire maior autonomia, sua
presença é ativa no âmbito social, muito ativa até, ele se põe como consciência
crítica de toda a vida social e sua produção cultural adquire uma função de guia em

181
NASCIMENTO, Milton Meira do. NASCIMENTO, Maria das Graças de Souza. Iluminismo a revolução das
Luzes. Op. cit.. p. 49.
182
DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington Um guia não convencional para o século
XVIII. Tradução José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.. p. 19. Esse “nós” é também
trabalhado por Foucault. Ver citação referente à nota 101.
183
Sobre este aspecto, ver: HAZARD, Paul. O pensamento europeu no século XVIII. Op. cit. p. 183-190.
184
Cf.: CAMBI, Franco. História da Pedagogia. Op. cit.. p. 323-324.

52
toda a sociedade civil e até mesmo em relação ao Estado, nos momentos mais
favoráveis 185 .

A função educativa do philosophe seria dupla, porque, ao se propor educar os homens,


ele “[...] estimula o novo, difunde suas sementes ideais, promove [...] modelos, slogans etc.,
como também faz convergir para as massas o poder [...]” 186 , levando o philosophe a assumir
um papel importante no que diz respeito à educação intelectual e moral do ser humano; ou
seja, sua formação.

A educação se torna cada vez mais nitidamente uma (ou a) chave mestra da vida
social, enquanto constitui o elemento que a consolida como tal e manifesta seus
mais autênticos objetivos: dar vida a um sujeito humano socializado e civilizado,
ativo e responsável, habitante da “cidade” e capaz de assimilar e também renovar as
leis do Estado que manifestam o conteúdo ético da sua vida de homem-cidadão 187 .

A pedagogia não se preocupa somente em fazer com que uma parte da população
obtenha noções intelectuais rudimentares, ou possa fazer parte dos quadros da Igreja e do
Estado. A preocupação agora é propagar “[...] uma identidade humana conforme as
inspirações e aspirações reinantes no meio” 188 . A pedagogia deve ter, a partir de agora, uma
preocupação em modelar os indivíduos conformes, o quanto possível, ao ideal de uma razão
iluminada. Deve ser “[...] entendida no seu sentido amplo, é uma das maiores preocupações
dos filósofos” 189 .

A nova imagem da pedagogia no século XVIII é laica, racional, científica, “[...]


orientada para valores sociais e civis em relação a tradições, instituições, crenças e práxis
educativas, empenhadas em reformar a sociedade também na vertente educativa. [...] Esta é,
sobretudo, a pedagogia do iluminismo [...] que torna a conformar-se, portanto, como o volante
intelectual e civil do século [...]” 190 .

185
Ibid., p. 324-325. (grifo nosso).
186
Ibid., p. 325.
187
Ibid., p. 326.
188
GUSDORF, Georges. “Les fins de L’Éducation”. In: L’avènement des sciences humaines au Siècles de
Lumières. Op. cit. p. 109.
189
TATIN-GUORIER, Jean-Jacques. Lire les Lumières. Op. cit.. p. 23.
190
CAMBI, Franco. História da Pedagogia. Op. cit.. p. 330.

53
Apesar da renovação na Escola ter sido radical, no que diz respeito às alterações
ocorridas no plano da educação, essa mudança é importante para este trabalho, menos pela
transformação da Instituição em si e mais por esta transformação ter suscitado um aspecto: à
medida que a Escola se laiciza, visando formar, sobretudo, o homem-cidadão, ela deixa para o
indivíduo particular o problema da moral. Esse modelo de Escola depositou a confiança no
letramento e na “[...] difusão da cultura como processo de crescimento democrático coletivo
[...]” 191 . Essa confiança produziu “[...] o desenvolvimento de um âmbito educativo [...]:
aquele ligado à imprensa, à difusão do livro, ao aumento de leitores, à articulação do objeto
impresso (desde o livro até revista e o jornal) e à sua fenomenologia cada vez mais complexa
(o livro como ensaio, tratado, panfleto, conto, romance, poema etc.), que veio exercer uma
ação disseminada na sociedade: uma ação educativa” 192 .

Essa ação educativa dos textos literários é a responsável pela educação moral, que fica
a critério de indivíduo particular, uma vez que os valores morais são difundidos e discutidos
via as obras literárias. Portanto, cabe aos philosophes um papel nessa educação moral; esta
serve, justamente, para dirigir as paixões, para nos indicar o caminho certo a ser seguido 193 . E,
o veículo utilizado por eles serão os textos literários. “A ironia que suscita um leitor cúmplice
e ativo, visa a sustar este público do constrangimento dos dogmas e das proibições” 194 . Ou
seja, a sátira, a ironia é a arma mais eficaz para combater os dogmas, as superstições, como
fora demonstrado no conto voltairiano que abre este capítulo. Segundo Hazard, a maior
modificação que a literatura sofreu foi transformar-se em um campo de batalha para as idéias.
No século XVIII, a crítica literária foi uma das forças da época e desenvolveu-se muito. É
nesse período que nasce a prosa racional 195 . “[...] a poesia e a arte de juntar o prazer à
vontade; e, precisamente, a poesia épica pretende ensinar as verdades mais importantes pelos
meios que maior prazer proporcionam”196 .

191
Ibid., p. 328.
192
Id. (grifo nosso).
193
HAZARD, Paul. O pensamento europeu no século XVIII. Op. cit.. p. 158. Vale ressaltar que para os
moralistas, as paixões são úteis ao homem, pois o impulsionam à ação. “As paixões são um facto natural; seria
pois um erro pretender suprimi-las: um erro e uma impossibilidade.” (p. 157). Sobre a importância das paixões
para as ações humanas, a partir de uma perspectiva voltairiana, será discorrido no capítulo terceiro deste
trabalho. Contudo, vale chamar a atenção para o fato de que existe uma diferença entre os literatos e os
moralistas. A esse respeito, será discorrido no capítulo terceiro deste trabalho.
194
TATIN-GUORIER, Jean-Jacques. Lire les Lumières. Op. cit.. p. 23.
195
HAZARD, Paul. O pensamento europeu no século XVIII. Op. cit.. p. 207-212.
196
Ibid. 212.

54
Com o movimento ilustrado, a Europa é testemunha de uma interação singular (por
conta de suas características peculiares) da filosofia com a literatura. O philosophe opta por
escrever um texto literário para melhor provocar, influenciar de maneira mais eficaz seus
leitores, a opinião pública.

No século XVIII, a filosofia se inscreve (e isso é radicalmente novo) em todas as


formas literárias: das formas clássicas prestigiosas, tal qual a poesia ou a tragédia, às
formas tradicionalmente desprezadas, das quais o romance é o exemplo mais
evidente. Das Cartas Persas de Montesquieu (1721) à A Nova Heloísa de Jean-
Jacques Rousseau (1761), o romance adquire uma dimensão filosófica sem
precedente. [...] o espírito filosófico não pode ser dissociado das formas literárias,
tradicionais ou novas, que ele emprega. Do diálogo ao conto, do romance ao drama,
opera-se uma profunda movimentação do campo literário. E a reflexão filosófica é,
ela mesma, tributária das formas que ela empresta, trabalha, altera 197 .

Uma explicação para esse relacionamento entre a filosofia e a literatura no século


XVIII é dada por Bento Prado Júnior, no prefácio do livro O filósofo e o comediante.
Primeiro, os philosophes estavam longe das universidades, não eram professores e a
philosophie não era uma disciplina técnica. Segundo, a ficção romanesca possuía um estatuto
essencialmente ambíguo 198 .

O projeto ilustrado tinha como recurso: a divulgação das idéias através de textos
literários e a confiança no poder desses recursos na formação dos homens. A literatura é, a um
só tempo, uma arma de combate e divulgação de idéias e um canal para educar os homens. A
arte é social, pois há a intenção de formar a opinião pública, formar o ser humano.
Montesquieu ao se utilizar do gênero literário e juntá-lo à filosofia, não pôs em prática uma
idéia nova na tradição filosófica, mas justificou o porquê do uso da literatura como veículo
para difundir as verdades morais, responsáveis também pela educação, pela criação do caráter
do homem. E, sua justificativa é dada de forma romanciada, uma vez que é através da fala de
Usbek – protagonista do romance epistolar Cartas Persas – que Montesquieu responde à
pergunta: por que um filósofo escreve um romance? “Para cumprir o que me solicitais, não
considerei que devesse recorrer aos arrazoados mais abstratos: com certas verdades, não basta

197
TATIN-GUORIER, Jean-Jacques. Lire les Lumières. Op. cit.. p. XI-XIII.
198
Cf.: PRADO JÚNIOR, Bento. “Filosofia e belas-letras no século XVIII.” In: MATTOS, Franklin de. O
filósofo e o comediante. Belo Horizonte: UFMG, 2001. p. 10.

55
persuadir; é preciso, além disso, fazer sentir. São dessa espécie as verdades morais. Talvez
esta passagem de história te afete mais do que uma filosofia sutil” 199 .

Segundo Mattos, a aliança entre razão e fábula, lógos e mythos, é a chave para se
entender a “[...] mais espantosa diversificação da expressão filosófica que jamais se conheceu
[...]” 200 : a Ilustração. A filosofia não fica restrita ao tratado rigoroso, estende-se ao gênero
literário atestando que a “[...] filosofia não deve ser uma controvérsia entre especialistas, mas
intervenção nos destinos da cidade, na vida e na felicidade dos homens” 201 . Portanto, a arte
servirá como uma estratégia para incentivar a instrução, para instaurar a autonomia da razão.
E um autor que bem representa estas características da Ilustração é Voltaire, em cuja obra
pretende esclarecer seus leitores, educá-los.

Após esse resumido percurso pelas características Modernas, da exposição do que foi e
significou a Ilustração; as características do seu pensamento, desenvolvido pelos pensadores
dessa época; a caracterização dos philosophes e a missão que foi encampada por eles; a
revolução na pedagogia, fazendo com que o significado de “educar”, “formar” passasse a ter
um outro sentido, diferente do que era preconizado na Idade Média; torna-se necessário passar
para o reflexo dessas transformações modernas na obra voltairiana, para que, dessa forma,
possa-se compreender melhor a relação Ilustração – Educação – Literatura. Isso significa:
entender essa sentença via as obras do “Patriarca de Ferney”.

199
MONTESQUIEU. Cartas Persas. Tradução de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Nova Alenxandria, 2005.
p. 26.
200
MATTOS, Franklin de. “Filosofia em forma de romance”. In: O filósofo e o comediante. Op. cit.. p. 196.
201
Ibid. p. 197.

56
III. Segundo Capítulo: Voltaire – Ilustração e obra militante

La majorité des Français pensait comme Bossuet: tout d’un


coup, les Français pensent comme Voltaire: c’est une
revolution.
Paul Hazard 202

3.1. Voltaire philosophe: uma “revolução” nos espíritos

No Ensaio sobre os elementos de filosofia (1759), D’Alembert inicia o seu “Quadro do


espírito humano em meados do século XVIII” tratando das mudanças ocorridas, a partir da
metade de cada século, partindo da tomada de Constantinopla, século XV, que fez renascer as
Letras no Ocidente; indo até Descartes, que fundou a base de uma nova filosofia, explicando
que este novo pensamento começou a disseminar-se após a morte de seu autor, em 1650;
passando pelo Concílio de Trento, que traçou a linha divisória entre católicos e protestantes.
Após essa exposição, D’Alembert lança olhares sobre sua própria época, sobre o seu século,
afirmando ter havido, também, uma mudança, por volta da metade do século XVIII 203 , na
verdade, uma notável transformação das idéias, uma revolução. “Assim, o nosso século
chama-se por excelência o Século da Filosofia [...]” 204 .

De acordo com Cassirer, o sentido do pensamento na Ilustração, e de um modo geral a


tarefa essencial imposta pela história, foi o de orientar-se em direção ao conhecimento de seus
próprios atos, à autoconsciência e à previsão intelectual, uma vez que “[...] a época em que
viveu D’Alembert sentiu-se empolgada por um movimento pujante e, longe de abandonar-se a
esse movimento, empenhou-se em compreender-lhe a origem e o destino” 205 . O momento

202
HAZARD, Paul. “Préface”. In: La crise da la conscience européenne. Op. Cit.. p. 07.
203
Deve-se entender Século XVIII e Ilustração como sinônimos.
204
D’ALEMBERT. “Quadro do espírito humano em meados do século XVIII”. In: Ensaio sobre os Elementos
de Filosofia ou sobre os princípios dos conhecimentos humanos. Tradução Beatriz Sidou. Campinas: Editora da
UNICAMP, 1994. (Coleção “Repertórios”). p. 04.
205
CASSIRER, Ernst. “O pensamento da era do Iluminismo.” In: A Filosofia do Iluminismo. Op. cit.. p. 21.

57
daquele século, marcado por uma “[...] efervescência generalizada nos espíritos [...]” 206 ,
impunha que se lançasse “[...] uma nova luz sobre alguns objetos, uma nova obscuridade
sobre muitos, assim como os efeitos do fluxo e do refluxo do oceano levam ao rio certas
matérias e deles afastam outras” 207 .

O pensamento, além de querer alcançar novas metas, lançando uma nova “luz” sobre
os objetos, quer dirigir seu curso, saber para onde deve ir; pretende investigar não somente o
mundo, mas ele mesmo, a sua natureza e o seu poder. Ou seja, o pensamento questiona-se
sobre si mesmo, preocupando-se com o modo de ação de sua nova força, que está em atuação.
Nesse sentido, há uma preocupação com o progresso intelectual dos homens, que não
significa uma simples extensão do saber, um progresso quantitativo, mas sim um progresso
qualitativo. “Não contente de usufruir os seus resultados, ela [a época] explora a forma dessa
atividade produtora para tentar analisá-la. É nesse sentido que se apresenta, para o conjunto
do século XVIII, o problema do ‘progresso’ intelectual. Não existe um século que tenha sido
tão profundamente penetrado e empolgado pela idéia de progresso intelectual quanto o Século
das Luzes” 208 . Essa força nova, criadora, é o epicentro da Ilustração, seu ponto de encontro e
expansão, e expressa seus desejos, esforços e realizações; recebendo, esta força, o nome de
Razão. Eis o motivo para este período estar “[...] impregnado de fé na unidade e imutabilidade
da razão” 209 . Esta passa a ser o grande instrumento de conhecimento, que tem como
responsabilidade orientar os destinos históricos do homem e conduzi-lo à sua emancipação,
em detrimento aos preconceitos do passado, das “trevas”; como também encaminhar, de
forma organizada e refletida, a vida em sociedade 210 . O homem passa a ser entendido como
agente, ou seja, “[...] como sujeito e dono do seu próprio destino, [...] [que pensa] por conta
própria” 211 .

A partir desse novo conceito de razão, é possível expor algumas diferenças entre a
Ilustração e o século XVII, no que diz respeito à filosofia e ao seu pensamento. Enquanto o
período em que viveu Descartes acreditava serem os ‘sistemas filosófico’ “[...] a tarefa

206
D’ALEMBERT. “Quadro do espírito humano em meados do século XVIII”. In.: Ensaio sobre os Elementos
de Filosofia ou sobre os princípios dos conhecimentos humanos. Op. cit.. p. 05.
207
Id.
208
CASSIRER, Ernst. “O pensamento da era do Iluminismo.” In: A Filosofia do Iluminismo. Op. cit.. p. 22.
209
Ibid., p. 23.
210
Cf.: FORTES, Luiz Roberto Salinas. O iluminismo e os reis filósofos. Op. cit. p. 20.
211
Ibid., p. 09.

58
própria do conhecimento filosófico [...]” 212 , boa parte do século XVIII francês renuncia a esse
modo e a essa forma de dedução, de derivação e de explicação sistemática, e se utiliza da
análise, pautada na experiência e na observação dos fatos e não na formulação de hipóteses,
que em sua maioria não condizem com a realidade. O que se busca na Ilustração é uma outra
concepção de verdade e de filosofia, que oferece, tanto a uma quanto a outra: uma mobilidade
maior; ou seja, o pensamento não parte dos conceitos para os fenômenos, o que ocorre é
justamente o contrário; e relação com a vida.

O encaminhamento do pensamento não vai, por conseguinte, dos conceitos e dos


axiomas para os fenômenos, mas o inverso. [...] É esse o novo programa do século
XVIII. O esprit systematique nem por isso é subestimado ou marginalizado; mas
foi cuidadosamente distinguido do esprit de système. Toda a teoria do
conhecimento se empenha em confirmar essa distinção. [...] Em contraste com esse
‘espírito de sistema’, cumpre doravante estabelecer novos vínculos entre o espírito
‘positivo’ e o espírito ‘racional: [...] Não se busque, portanto, a ordem, a
legalidade, a ‘razão’, como uma regra ‘anterior’ aos fenômenos concebível e
exprimível a priori: que se demonstre a razão nos próprios fenômenos como a
forma de sua ligação interna e de seu encadeamento imanente. Que não se
pretenda antecipar a razão sob a forma de um sistema fechado: há que deixá-la
desenvolver-se a longo prazo, pelo conhecimento crescente dos fatos, e impor-se
pelos progressos em sua clareza e em sua perfeição 213 .

De acordo com Mota, o que motiva os filósofos 214 da Ilustração a romperem com os
sistemas filosóficos do século XVII é a possibilidade de se encontrar uma outra concepção de
filosofia que, além de fazer com que o conhecimento siga o caminho contrário àquele feito no
século anterior, como fora dito, é mais útil à vida do homem em sociedade. Nesse sentido, “O
Iluminismo não se apóia em Descartes para formar seu ideal de doutrina filosófica, mas em
Newton, cuja via de investigação não é a da dedução, mas a da análise” 215 . Ou seja, o modelo
adotado não é mais o dos “Turbilhões” cartesianos, mas o do “Vazio” newtoniano. “Ao
chegar em Londres, um francês encontrará tudo muito mudado em filosofia, e também no
resto. Deixou o mundo cheio, encontrou-o vazio. Em Paris, vê-se o universo composto de
turbilhões de matéria sutil; em Londres, não se vê nada disso” 216 .

Essa nova teoria do conhecimento é aceita, em grande parte, entre os diferentes


philosophes. Estes divergem em seus resultados, apenas. O poder da razão humana está,

212
CASSIRER, Ernst. “O pensamento da era do Iluminismo.” In: A Filosofia do Iluminismo. Op. cit.. p. 24.
213
Ibid., p. 26. (grifo nosso).
214
Doravante, usar-se-á a denominação philosophe, explicada na citação referente à nota 182 do capítulo
anterior.
215
MOTA, Vladimir de Oliva. Voltaire e a crítica à metafísica. Op. cit.. p. 11.
216
VOLTAIRE. Cartas Filosóficas. Op. cit.. p. 23.

59
justamente, na capacidade de nos ensinar a percorrer o domínio empírico “[...] com toda a
segurança e a habilitá-lo comodamente” 217 , e não em romper com os limites da experiência,
com o objetivo de achar uma saída para o domínio da transcendência. A mudança de
perspectiva com relação ao conceito de razão e, conseqüentemente, sua aplicabilidade e
poder, é o que melhor pode representar a “revolução” causada nos espíritos na Ilustração. Para
uma parte importante do período anterior, a razão era a região das verdades inatas, que são
comuns ao espírito humano e ao Divino.

O século XVIII confere à razão um sentido diferente e mais modesto. Deixou de ser
a soma das ‘idéias inatas’, anteriores a toda a experiência, que nos revela a essência
absoluta das coisas. A razão define-se muito menos como uma possessão do que
como uma forma de aquisição. Ela não é o erário, a tesouraria do espírito, onde a
verdade é depositada como moeda sonante, mas o poder original e primitivo que nos
leva a descobrir, a estabelecer e a consolidar a verdade. Essa operação de assegurar-
se da verdade constitui o germe e a condição necessária de toda a certeza verificável.
É nesse sentido que todo o século XVIII concebe a razão 218 .

Ela, a razão, é menos um conteúdo determinado de conhecimento do que uma energia,


uma força que somente se pode plenamente percebê-la quando em ação e em seus efeitos.
Logo, a sua natureza e os seus poderes não são constatados em seus resultados, mas em sua
função, que consiste em “desligar” o espírito dos fatos simples, dos dados simples e de todas
as crenças pautadas na Revelação, da Tradição, da Autoridade. Após destruir essas crenças,
essas verdades “pré-fabricadas”, ela impõe-se a uma tarefa construtiva, ou seja, sua função
agora é “ligar”, construir um novo edifício, não mais orientado na Tradição, mas sim em uma
verdadeira totalidade, que deve estar pautada nessa nova Teoria do Conhecimento, que tem no
empirismo um forte representante. “É mediante esse duplo movimento intelectual que a idéia
de razão se concretiza plenamente: não como a idéia de um ser mas como a de um fazer” 219 .
Portanto, a razão diz respeito a uma tomada de posição diante do mundo 220 . O verdadeiro
poder da razão não está na posse da verdade, mas sim na sua aquisição. Diderot declara, de
acordo com Ducros, a respeito da Enciclopédia, “[...] não ser sua intenção adquirir um mero
acervo de conhecimentos mas provocar uma mutação no modo de pensar. A Enciclopédia foi
criada ‘pour changer la façon commune de penser’” 221 . O objetivo da Ilustração, no que diz
respeito ao conhecimento, não é “mergulhar” em um grande número de idéias novas, mas

217
CASSIRER, Ernst. “O pensamento da era do Iluminismo.” In: A Filosofia do Iluminismo. Op. cit.. p. 32.
218
Id.
219
Ibid., p. 33.
220
Isso explicaria o fato de diversos teóricos da Ilustração, como por exemplo, Foucault, Venturi, usarem a
palavra “missão”, quando se referem ao papel dos philosophes.
221
DUCROS. Les encyclopédistes. Paris, 1900. p. 138. Apud: CASSIRER, Ernst. “O pensamento da era do
Iluminismo.” In: A Filosofia do Iluminismo. Op. cit.. p. 32.

60
guiar o curso do espírito para metas, finalidades definidas. O homem como sujeito, pensando
o seu próprio tempo e sendo guia do seu próprio destino. Nesse sentido, o papel da educação é
algo imprescindível para que este homem esteja preparado para assumir tal tarefa. E, ao
philosophe, cabe a função de educar os homens e direcioná-los ao posto de guias de suas
vidas, conseqüentemente, da história.

O método utilizado pela razão é emprestado das ciências naturais, e consiste em

[...] partir de fatos solidamente estabelecidos pela observação mas [sic] [...] não se
ater, por certo, a esses simples fatos como tais [...]. O pensamento do século XVIII
dedica-se a essa tarefa fundamental [redução do complexo ao simples], procurando
estender o seu efeito a domínios cada vez mais vastos. [...] a idéia de cálculo perde a
sua significação exclusivamente matemática. O cálculo deixa de ser aplicável tão-só
ao número e à grandeza [...]. A idéia de cálculo tem [...] a mesma extensão que a de
ciência; ela é aplicável a todas as multiplicidades cuja estrutura se reporta a certas
relações fundamentais que permitem determiná-la inteiramente 222 .

E, para que a razão exerça sua liberdade, ela não deve se submeter a nenhuma
influência que lhe seja exterior; ela deve ser a sua própria autoridade e própria regra. “Para a
tradição religiosa e teológica uma tal pretensão seria a rigor descabida. [...] nunca será sua
razão [a do homem] a faculdade a dar a última palavra: ela é simples servidora da fé [...]. O
âmbito de atuação da Razão humana será, nestas condições, necessariamente restrito e
secundário [...]” 223 . Ou seja, Bossuet, representante da Autoridade da Tradição, é quem
influencia o modo de pensar dos homens seiscentistas. O século XVII acaba, a Ilustração
inicia; Voltaire, como representante dos philosophes, chega e faz uma “revolução” nos
espíritos setecentistas; visto que, se no campo dos conflitos entre razão e fé, Bossuet pode ser
um dos emblemas do século XVII, Voltaire e seu tempo esquivam-se de um tal conflito. Para
a Ilustração, a fé delimita um campo privado, um foro íntimo, apartado da filosofia e da razão
empírica. Como se dá essa “revolução”? Deve-se retornar um pouco no tempo, para entender
esse processo.

Apesar das diferenças existentes entre França, Inglaterra e Alemanha, ocorre, nos
século XVII e XVIII, um processo de aceleração na transição do modo de produção feudalista
para o capitalista, que já se vinha esboçado desde o século XV. A burguesia, classe
emergente, adquire poderes políticos e econômicos, que antes pertenciam à aristocracia rural.

222
CASSIRER, Ernst. “O pensamento da era do Iluminismo.” In: A Filosofia do Iluminismo. Op. cit.. p. 42-45.
223
FORTES, Luiz Roberto Salinas. O iluminismo e os reis filósofos. Op. cit. p. 16.

61
Ao lado da nobreza, encontra-se a Igreja, outro importante pilar do sistema feudal, que
fornecia o “[...] aparato ideológico justificativo de sua preservação [...]” 224 , e doravante está
em crescente declínio.

Esta crise pela qual a Igreja passa tem como conseqüência a perda do poder absoluto
que o clero mantinha sobre os espíritos. E, esta decadência do espírito teológico e dos dogmas
da tradição religiosa serão os alvos a serem combatidos pelos philosophes; pois, uma vez que
a humanidade deve estar submetida ao império da razão, é necessário, para isso, romper com
as estruturas sociais, políticas e religiosas que representam as “Trevas”, ou seja, os poderes
seculares e laicos, entendidos aqui como a Igreja e a Monarquia Absolutista. O que se
pretende com isso é estabelecer a liberdade da razão, a sua soberania em relação à fé. “É com
a condição de se conceber como livre no exercício da sua razão, como senhor de suas opiniões
e como fonte da sua própria verdade, que o universo inteiro poderá liberar-se, para o homem,
como um eventual campo de exercício para a sua capacidade racional de explicação”225 .

Bossuet, que aparece neste texto em contraposição ao pensamento voltairiano, é um


representante da Igreja, apologista da ortodoxia católica. Sua carreira literária atinge o auge
no final do século XVII, e ele resume, desta maneira, o sistema de idéias tradicional, que será
combatida pelos philosophes: “É um erro [...] imaginar que é preciso sempre examinar antes
de crer. A felicidade daqueles que nascem por assim dizer no seio da verdadeira Igreja, é que
Deus lhe deu uma tal autoridade que acreditamos primeiro no que ela propõe e que a fé
precede, ou antes, exclui o exame” 226 . Contudo, para os ilustrados, a razão deve ser soberana e
livre. “[...] e é por uma tal imagem de Razão que se baterá durante toda a vida com a
eloqüência e o talento que se lhe são próprios um homem, [...] como Voltaire” 227 .

Portanto, a Ilustração encontra-se diante de uma mudança radical de perspectiva


acerca do conceito de razão (que implicará numa transformação da Teoria do Conhecimento,
como fora dito): de acordo com Hazard, a França pensava como Bossuet, acreditando que a fé
excluiria o exame. Após o processo que levou a uma nova concepção de razão, esta passa a ter
uma nova significação e representatividade: é uma força de atuação, preocupada com o
desenvolvimento intelectual do homem; desenvolvimento esse que o leva à sua autonomia,

224
Ibid., p. 15.
225
Ibid., p. 16.
226
BOSSUET. Apud: FORTES, Luiz Roberto Salinas. O iluminismo e os reis filósofos. Op. cit. p. 19.
227
Id.

62
que o faz esclarecer-se. A França, a partir de então, pensa como Voltaire. E a revolução nos
espíritos, causada por esse philosophe, faz parte de um plano de educação, de um projeto que
deseja apresentar um “[...] programa de melhorias sociais para o aprimoramento do homem
[...]” 228 , visando, dessa forma, capacitar o ser humano a raciocinar por si mesmo e, assim,
viver de maneira independente, buscando a felicidade na vida social. Ou seja, educar o
homem para que ele tenha capacidade de resolver, através do raciocínio, das “luzes” de sua
razão, seus problemas. “A ética de Voltaire [...] é uma ética social. Seus valores são
humanísticos e a felicidade do indivíduo dentro da sociedade, sua principal preocupação. As
virtudes teologais da fé, esperança e caridade são substituídas pela fé na capacidade de o
homem resolver seus problemas, pela esperança de uma sociedade melhor e pelo amor ao
semelhante” 229 . Souza também discute sobre essa ética voltairiana, partindo de uma
perspectiva semelhante, ao afirmar que “[...] a reflexão de Voltaire sobre o mal no mundo e a
fragilidade humana vai dar origem a uma ética situada no universo estritamente humano. Se
não há certeza possível a respeito dos planos de Deus e da imortalidade da alma, é preciso
então que os homens trabalhem, com os meios que a razão lhe oferece, para a construção da
felicidade terrestre” 230 . O filósofo deve se pautar não mais na Tradição, muito menos na
religião. O que lhe resta é “[...] consultar sua própria natureza. Isso significa, em primeiro
lugar, abandonar os preconceitos da educação [que, no caso específico de Voltaire, estudou no
Louis-le-Grande, Colégio de ensino jesuítico], da pátria e, sobretudo, os da religião e dos
filósofos” 231 .

Nesse sentido, a função dos Philosophes, na Ilustração, é pedagógico-civilizatória,


porque eles não serão mais vistos como especialistas, debatedores de idéias, acostumados a
declamá-las em um círculo fechado, para seus pares. Eles sairão dos “gabinetes”,
ambicionando as ruas, os salões – instituições típicas desse período, que também podem ser
considerados locais formativos, uma vez que as discussões filosóficas e políticas do século
XVIII eram muito debatidas nestes espaços. E, qual seria o objetivo dessa missão ilustrada?
Desse combate contra os poderes secular e laico? Possibilitar que os homens melhorem,
através da instrução, e que, dessa maneira, possam viver felizes em sociedade. Isso acontece,
na prática, via a leitura de livros que destroem a superstição e o fanatismo, tornando os

228
CHAUI, Marilena. “Introdução: Voltaire Vida e Obra”. In: Voltaire. Tradução Marilena Chaui. 2ª ed. São
Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção “Os Pensadores”). p. X. (grifo nosso).
229
Ibid., p. XIII.
230
SOUZA, Maria das Graças de. Voltaire: a razão militante. Op. cit.. p. 32.
231
Ibid., p. 22.

63
homens mais virtuosos; conseqüentemente, as sociedades também; gerando, assim, uma paz
que é fruto da tolerância. Esse combate visa a um bem-estar social, a uma felicidade pública.
Mas, lutar apenas pela liberdade de expressão e tolerância religiosa não resolve os problemas.
Para que se possa alcançar a felicidade pública é necessário que haja transformações políticas
e sociais 232 . Isso foi o que Voltaire fez em toda a sua vida, basta citar, como um exemplo
apenas, dentre vários, a sua influência no destino final do caso Calas, protestante francês que
fora condenado ao suplício na roda, por ter sido acusado (rápida e injustamente) de assassinar
seu próprio filho.

Essa “revolução nos espíritos”, gerada pelo incessante esforço de Voltaire; no que diz
respeito a esse trabalho, uma vez que não somente ele lutou em prol desses estandartes
levantados pela Ilustração; foi a responsável pela mudança de mentalidade que patrocinou um
dos mais espantosos movimentos intelectual e político ocorridos no mundo, mais
especificamente na Europa, no século que recebeu as alcunhas, dentre outros nomes, de
“Século da Filosofia” e também “Século da Pedagogia” 233 . Voltaire, homem que resume este
período áureo da história universal, lutou para que a união desses dois substantivos (Filosofia
e Pedagogia) fosse capaz de gerar as mudanças sociais, políticas e, sobretudo, intelectuais nos
homens, nas sociedades. E a singularidade da sua presença parece atestar que a filosofia
voltairiana trabalha para que, através de sua obra, ocorram mudanças no espírito dos homens
de sua época, quiçá até os dias atuais.

3.2. A singularidade da presença voltairiana na Ilustração: sua Literatura, sua Filosofia

Mortier expõe que o autor do Cândido deseja ser um guia, inspirador e moderador,
capaz de mudar o mundo e a sociedade e tornar o homem um ser livre da sua miséria e do
medo. “Ele é também um escritor do qual o verbo servirá a difundir seu pensamento e a
combater todas as formas de ortodoxia intelectual e de arbitrariedade política. [...] Sem

232
Cf.: Ibid., p. 34.
233
A primeira designação, que aparece no início deste capítulo, foi dada por D’Alembert. A segunda, que se
encontra no capítulo anterior, por Gusdorf. Ver nota 156 do primeiro capítulo.

64
elaborar uma doutrina original, ele não cessa de se dedicar a uma reflexão sobre os valores
essenciais [...]” 234 .

O poder da pena voltairiana, que foi capaz de gerar uma radical mudança da
mentalidade, não só de sua época, mostra que a sua função como philosophe, como
representante de um momento tão fértil intelectualmente, culmina em uma glória literária que
é fundamentada, de acordo com Maurois, pelo fato dele defender as doutrinas novas de forma
diabólica, apaixonada, clara e mais interessante235 . “Êsse homem que sabia de tudo, [...] que
esclarecia as questões mais obscuras e dava a seus leitores a impressão de que eram, como êle
mesmo, capazes de compreender tudo, exerceu uma influência imensa sôbre a nobreza e a
burguesia culta de seu tempo” 236 . Este intérprete assegura que para entender a glória política e
popular de Voltaire, é necessário expor uma breve narrativa sobre sua vida. “A vida de
Voltaire, suas aventuras pessoais e sua posição no mundo, permitem facilmente prever o que
será sua filosofia” 237 .

3.2.1. Voltaire: um mélanges entre vida e obra

La vie de Voltaire donne le vertige.


René Pomeau 238

Ao discorrer sobre o exílio voltairiano na Inglaterra, Maurois afirma: “A leitura de


Locke provou-o de uma filosofia, a de Swift de um modelo, a de Newton de uma doutrina
científica. A Bastilha 239 inspirou-lhe o desejo de uma sociedade nova; a Inglaterra mostrou-

234
MORTIER, Roland. Préface: Voltaire et la philosophie. Réflexions sur un tricentenaire (1696-1994). In:
MEYER, Michel (dir.). Revue internationale de philosophie: Voltaire (1694-1994). Bruxelle, Vol. 48, N° 187,
mars, 1994. p. 6.
235
MAUROIS, André. O pensamento vivo de Voltaire. Op. cit.. p. 13.
236
Ibid., p. 36.
237
Ibid., p. 20.
238
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Paris: Seuil, 1970. p. 22.
239
Em 17 de abril de 1726, Voltaire é preso na prisão da Bastilha por ter convocado um nobre, o cavalheiro de
Rohan, para um duelo. O motivo desta convocação se deu por conta de uma surra que este “nobre” cavalheiro
havia mandado dar em Voltaire, no dia 4 de fevereiro, em razão de uma discussão, dias antes, que os dois
tiveram em um dos famosos salões franceses. Em 5 de maio do mesmo ano, Voltaire é encaminhado ao porto de
Calais, para cumprir sua pena, o exílio em Londres, por conta de ter proposto o duelo a um membro da nobreza,
o que significava uma afronta, já que ele, Voltaire, era um burguês, e não um nobre. Vale ressaltar que antes de
propor o duelo, Voltaire deu queixa da surra que levara à polícia, mas nada fora feito. Seu exílio em terras
inglesas duraria até novembro de 1728.

65
lhe o que podia ser essa sociedade 240 ”. É possível, portanto, vislumbrar, a partir de Maurois, o
que irá representar, posteriormente, essas estadas: em território inglês e na Bastilha.

A relação de Voltaire com o fanatismo e a intolerância foi determinada também por


sua vida errante, uma vez que ele era sempre exilado de alguma maneira, voluntária ou
involuntariamente. Essas suas idas e vindas pelo território europeu fizeram com que ele
percebesse que, em qualquer lugar do globo, o fanatismo e a intolerância são temíveis e
absurdos. Seu périplo pelas demonstrações desses horrores, quando de suas constantes
viagens, inspirou-lhe, inclusive, um conto chamado História das viagens de Scarmentado
(1756), que é considerado por Pomeau 241 o conto mais pessimista de Voltaire.

Essas experiências vividas pelo philosophe possibilitaram-lhe, além de constatar que o


fanatismo e a intolerância estão em toda parte, o arsenal com o qual ele travou a batalha
incessante contra esses absurdos; chegando, inclusive, ao ponto de interceder diretamente em
questões jurídicas, como o caso Calas, citado anteriormente. Essas tomadas de posição o
levaram a adquirir e, mais do que isso, merecer

[...] uma reputação de humanidade e coragem que o fez ilustre em milhares de lares
onde jamais seus escritos haviam penetrado. [...] como era ao mesmo tempo
admiravelmente inteligente, curioso de todas as ciências [...] e capaz de expor com
uma aparente clareza as questões mais obscuras, ele não podia deixar de exercer
sobre os homens de seu tempo, e mesmo sobre os do século seguinte, uma influência
maior do que a de qualquer outro escritor 242 .

Voltaire desejava, com a sua obra, fazer com que a humanidade fosse o menos infeliz
possível; que ela pudesse viver de maneira virtuosa, que se tornasse esclarecida e autônoma,
sendo capaz de guiar o curso de seu próprio destino, ou seja, o curso da história.

Além da influência das várias viagens, por conta dos seus exílios, no que diz respeito à
sua relação com o fanatismo e a intolerância, e o fato mesmo de existirem diversas provas da
existência destes abusos em sua época, a criança, que seria mais tarde o jovem Arouet, tivera,
desde muito cedo, contato com jansenistas, libertinos e molinistas. No que diz respeito aos
jansenistas, o abade Nicolas Gédoyn 243 foi quem leu os primeiros escritos de Voltaire. Para

240
MAUROIS, André. O pensamento vivo de Voltaire. Op. cit.. p. 15.
241
POMEAU, René. La religion de Voltaire. Op. cit.. p. 287.
242
MAUROIS, André. O pensamento vivo de Voltaire. Op. cit.. p. 19-20.
243
POMEAU, René. La religion de Voltaire. Op. cit.. p. 29-30.

66
este abade, as virtudes morais seriam conservadas; a moral pertenceria a todos os países e a
todas as religiões 244 . Seu irmão Armand era um “convulsionnaire” (grupo de jansenistas que
freqüentavam, por volta de 1730, no cemitério Saint-Médard, o túmulo do diácono Pâris,
transformando esse local em um palco de manifestações histéricas, também chamadas de
“convulsões” 245 ), fervoroso jansenista, o que acabava por fazer com que estes dois irmãos não
se entendessem tão bem. Seu pai, François Arouet, também era jansenista. O representante
dos libertinos, mais próximos ao jovem Arouet, foi: o abade Châteauneuf 246 , responsável por
formar o espírito e o coração de François-Marie. Com relação à influência exercida pelos
molinistas, estas foram recebidas no colégio Louis-le-Grand, de ensino jesuítico, nos anos de
1704 a 1711 247 . Em 1719, aos 25 anos, François-Marie abandona o seu nome de batismo e
adota o anagrama Voltaire, ficando assim conhecido na posteridade.

O período anterior ao seu exílio na Inglaterra é marcado por uma crise, que torna a
vida de Voltaire bastante conturbada. Contudo, ela se estende a outras épocas, não só a que
antecede o seu primeiro exílio. O marco dessa fase difícil é o ano de 1726. Em 4 de fevereiro,
ele se desentende com o cavalheiro de Rohan; em 17 de abril, é embastillé (embastilhado), por
ter desafiado este cavalheiro para um duelo; em 5 de maio, é encaminhado ao porto de Calais,
para cumprir seu exílio, que terminará em novembro de 1728. Ainda em 1726, padece de uma
doença que o acompanhará até suas últimas horas, a hipocondria. Em setembro, morre sua
irmã Mme Mignot, que foi a responsável pela criação de Voltaire, uma vez que sua mãe, Mme
Daumart, morreu quando o pequeno Arouet tinha apenas 10 anos de idade, em 1704. Ainda
no ano de 1726, seu irmão Armand tenta excluir Voltaire do testamento de seu pai François
Arouet, que morrera em 1º de janeiro de 1722 248 .

Dando continuidade à crise, já que esta não ficou restrita ao período descrito
anteriormente, em 1749, morre Mme du Châtelet 249 , amiga, amante e companheira de estudos

244
Desta idéia, Voltaire extrairia, mais tarde, o seu conceito de Moral universal, importante para a sua filosofia.
E, do conceito de Moral universal, a idéia de Religião Natural, que pode ser entendido como os princípios morais
comuns ao gênero humano. Ver: PELLISSIER, George. Voltaire philosophe. Paris: Armand Colin, 1908. p.
177. Acerca desse assunto, será discorrido mais à frente.
245
Cf.: VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p.
157-158.
246
POMEAU, René. La religion de Voltaire. Op. cit.. p. 33.
247
Ibid., p. 46.
248
Ibid., p. 121-123.
249
Mme du Châtelet era dona de uma propriedade em Cirey, onde Voltaire passou um de seus exílios, sendo que
este fora voluntário. Ele mesmo explica, no início de suas Memórias, que se afastou da vida conturbada de Paris
para, em 1733, passar vários anos no campo, junto com esta amiga, com o objetivo de que ambos pudessem “[...]

67
de Voltaire. Em 1750, ele parte para a corte de Frederico II, na Prússia, para um exílio,
também voluntário, intelectualmente benéfico. Contudo, a amizade não duraria muito tempo;
e, tendo suas relações estremecidas com o soberano prussiano e o rei da França, Voltaire
decide construir Ferney 250 , seu refúgio. Em 1751, Voltaire associa-se à empreitada da
Enciclopédia e, de acordo com Berl, ao jovem charmoso de Cirey, sucede o velho terrível 251 .
Em 1755, ocorre um desastre no mundo: o terremoto de Lisboa. Essa catástrofe é, para
Voltaire, um escândalo metafísico 252 , assim como a Noite de São Bartolomeu (24 de agosto
de 1572) foi um escândalo histórico.

Todos os acontecimentos dos anos 50 são marcantes na vida e no pensamento de


Voltaire. Isso o leva não a escrever por escrever, ou mesmo escrever para refletir. Voltaire

cultivar o espírito longe do tumulto mundano [...]”. (VOLTAIRE. Memórias. Tradução de Marcelo Coelho. Rio
de Janeiro: Imago, 1995 (Coleção “Lazuli”). p. 9). Esta Marquesa foi a responsável por desenvolver em Voltaire
o hábito dos estudos rigorosos e das experiências, no que diz respeito ao pensamento newtoniano; porém, eles
tiveram outros objetos de estudos, como a Literatura. Por esta razão, para Pomeau (POMEAU, René. La religion
de Voltaire. Op. cit.. p. 194-197), o Tratado de Metafísica e os Elementos da Filosofia de Newton, este último
foi dedicado à Marquesa, são menos amadores que as Cartas Filosóficas. Aquelas duas obras são as principais
produções de Voltaire em Cirey. Esta mulher também fora a responsável por reabilitar as relações de Voltaire
com a corte francesa. Voltaire permanece em Cirey até sua partida para Prússia, em 1750.
250
O castelo de Ferney encontrava-se em território francês, na fronteira com a Suíça. Voltaire o comprou e
construiu neste território seu mundo particular, com uma cidadezinha para os camponeses e até uma igreja, com
a seguinte inscrição “Deo erexit Voltaire”, e a data, em algarismos romanos: MDCCLXI. Hoje, existe uma
cidade, nesta região, chamada Ferney-Voltaire. Porém, antes de Ferney, ele passa uma temporada em outra
propriedade sua, chamada Les Délices, na fronteira com a Suíça.
251
BERL, Emmanuel. “Préface”. In: VOLTAIRE. Mélanges. Op. Cit.. p. XXII.
252
Assim se expressa Voltaire acerca do terremoto de Lisboa: “Philosophes trompés qui criez: ‘Tout est bien’; /
Accourez, contemplez ces ruines affreuses, / Ces débris, ces lambeaux, ces cendres malheureuses, / Ces femmes,
ces enfants l’un sur l’autre entassés, / Sous ces marbres rompus ces membres dispersés, / Cent mille infortunés
que la terre dévore, / Qui, sanglants, déchirés, et palpitants encore, / Enterrés sous leurs toits, terminent sans
secours / Dans l’horreur des tourments leurs lamentables jours! Aux cris demi-formés de leurs voix expirantes, /
Au spectacle effrayant de leurs cendres fumantes, / Direz-vous: ‘C’est l’effet des éternelles lois / Qui d’um Dieu
libre et bom nécessitent le choix’? / Direz-vous, em voyant cet amas de victimes: / ‘Dieu s’est vengé, leur mort
est le prix de leurs crimes’? / Quel crime, quelle faute ont commis ces enfants / Sur le sein maternel écrasés et
sanglants? / Lisbonne, qui n’est plus, eut-elle plus de vices / Que Londres, que Paris, plongés dans les délices? /
Lisbonne est abîmée, et l’on danse à Paris. / Tranquilles spectateurs, intrépides esprits, / De vos frères mourants
contemplant les naufrages, / Vous recherchez en paix les causes des orages: / Mais du sort ennemi quand vous
sentez les coups, / Devenus plus humains, vous pleurez comme nous. / Croyez-moi, quand la terre entrouvre ses
abîmes, ma plainte est innocente et mes cris legitimes”. Ver: VOLTAIRE. “Poème sur le desastre de Lisbonne”.
In: Mélanges. Op. cit.. p. 304. “Filósofos enganados que gritam ‘tudo está bem’; / Acudam, contemplem essas
ruínas medonhas, / Esses pedaços, esses retalhos, essas cinzas infelizes; / Essas mulheres, essas crianças umas
sobre as outras empilhadas, / Sob esses mármores rompidos, esses membros dispersos / Cem mil infortunados
que a terra devora, / Que, sangrentos, rompidos, e ainda palpitantes, / Enterrados sob seus tetos, terminam sem
socorro / No horror dos tormentos, seus lamentáveis dias! Aos gritos sufocados de suas vozes expirantes, / No
espetáculo assustador de suas cinzas fumegantes, / Vós direis: ‘este é o efeito das eternas leis / Que um Deus
livre e bom necessariamente escolhe’? / Vós direis, prevendo este amontoado de vítimas: / ‘Deus se vingou, sua
morte é o preço de seus crimes’? / Qual crime, qual falta cometeram essas crianças / Sob o seio maternal,
esmagadas e sangrentas? / Lisboa, que não é mais, teria ela mais vícios / Que Londres, que Paris, mergulhadas
nos prazeres? / Lisboa está danificada, e se dança em Paris. / Tranqüilos espectadores, intrépidos espíritos, / De
seus irmãos agonizantes contemplem os naufrágios, / Vocês investigam em paz as causas das tormentas: / Mas
quando vocês sentem o golpe do destino inimigo, / Tornam-se mais humanos, choram como nós. / Creiam-me,
quando a terra entreabre seus abismos, minha queixa é inocente e minhas lágrimas legítimas”.

68
escreveu para agir. Sua vida é apenas trabalho e luta. Luta, de um lado, contra a Infame 253 ,
cuja força é necessário esmagar, e do outro, a defesa de seus irmãos filosóficos, ou em
filosofia (os philosophes), contra seus inimigos, e às vezes, segundo Berl, contra eles
mesmos 254 . Nos anos 60, Voltaire será o defensor das vítimas do fanatismo, nos casos La
Barre 255 e, sobretudo, no caso Calas, no qual obtivera um sucesso sem precedentes, ao ponto
de se afirmar que: o que ele consegue, só com a pena, é incrível 256 .

Nas suas obras teatrais, Voltaire satisfaz a relação que ele estabeleceu entre o segredo
que é sua vida 257 e o desejo que ele tinha de aplauso. Ele não somente dissimulou o seu
próprio nome Arouet em Voltaire, como se utilizou de diversos pseudônimos. Contudo, não
conseguiu enganar ninguém, seu estilo é inconfundível 258 . No teatro, quando Voltaire trata de
questões filosóficas, ele opta por diálogos. Talvez pelo fato deste tema exigir uma maior
concentração – por parte de quem participa do processo teatral, tanto atores quanto platéia –, e
da complexidade do assunto em questão no diálogo. Ele escolhe o canal mais adequado (meio
pelo qual se envia uma mensagem num processo comunicativo) para que possa se fazer
compreender da melhor maneira possível, uma vez que, como philosophe, sua principal
preocupação é com a formação do homem.

Pomeau, ao analisar a relação entre Voltaire e a sua produção, indica que há uma
intimidade entre ambos. Em Zaire (1732), ele inicia sua atuação como ator e personagem em
suas obras. Não que ele estivesse preocupado em encenar, mas porque os seus principais
personagens representam o seu criador, ou seja, ele mesmo. O autor de La Henriade 259

253
Ver nota 34, do capítulo anterior.
254
BERL, Emmanuel. “Préface”. In: VOLTAIRE. Mélanges. Op. cit.. p. XXIII-XXIV.
255
La Barre foi um jovem, brutalmente condenado por cantarolar, na rua, canções consideradas ímpias; e,
também, por não ter tirado o chapéu quando passava, por ele, uma procissão. Esse caso será exposto mais à
frente, quando da discussão acerca da obra Tratado sobre a Tolerância (1763).
256
Ibid., p. XXIV.
257
Diversos comentadores, sobretudo Pomeau, afirmam que Voltaire não gostava de falar de sua intimidade.
Inclusive, sua infância e adolescência são misteriosas. Muito pouco se sabe a esse respeito. Segundo Pomeau,
Voltaire por ele mesmo é algo impensável (POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. Cit.. p. 12). Ele não
se refere às suas relações afetivas, não por ter esquecido delas, mas porque “[...] tem sob chave os segredos de
sua vida privada.” (Id). Mas, apesar dessa recusa em falar de si mesmo, ele se preocupa com a sua reputação e
deseja que os outros falem dele (Ibid., p. 14).
258
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 15.
259
Em 1728 essa obra foi publicada. Contudo, seu texto já estava pronto antes de Voltaire ir para a Inglaterra.
Mesmo possuindo um significado político, monarquista e bourboniano, seu ponto mais importante é a religião.
Seu autor guerreia contra a idéia do Deus terrível, do fanatismo, e do Deus feito homem. Ele defende a Religião
Natural. Foi feita em homenagem à atitude de Henrique IV, rei da Inglaterra, quando, em 13 de abril de 1598,
pôs fim às guerras religiosas, através do Edito de Nantes, garantindo liberdade de culto aos protestantes. É a
segunda versão da obra La Ligue. Foi dedicada à rainha Caroline, da Inglaterra.

69
(1728), pinta seus protagonistas como ele gostaria de ser e como realmente era. O papel que
Voltaire se dá nas Cartas Filosóficas é o de “um viajante filosófico” 260 . O “eu” que este autor
utiliza em sua obra é transposto, no sentido de que ele não incorpora o personagem; dá-se
justamente o contrário: quem fala é o próprio Voltaire. Em 1740, esboçando Micrômegas, seu
autor inaugura uma nova forma de ficção. Este conto é uma versão fantástica das Cartas
Filosóficas – o mesmo ocorre em outro conto, Zadig, – porque também aqui Voltaire é um
“viajante filosófico”; o protagonista do conto, habitante de Sírius, que viaja pelo nosso globo
é Voltaire em Cirey 261 . Já em Zadig (1747), o protagonista é o Voltaire mais velho, do fim do
período de Cirey, que freqüentou a corte, que esperava se transformar em ministro, que cai em
desgraça e a sua filosofia entra em crise 262 . Ao término do conto, um anjo lhe explica que é
errado se lamentar, mas ele não aceita esse argumento, não se convence.

Os acontecimentos da vida de Voltaire nos dão motivo para que se comparem esses
contos a ela: a morte de Mme du Châtelet; a briga com Frederico II; sua vida errante de país
em país; ou seja, as tristezas de sua vida parecem gerar uma atmosfera de pessimismo nos
enredos de seus contos, segundo Pomeau. O autor de O mundo como está (1748) se consola
desses eventos escrevendo A História das viagens de Scarmentado. O protagonista desse
conto é um viajante que sofre diversos absurdos por onde passa e, por fim, descobre que ter
sido traído, ao final da história, é o estado mais doce da vida; pois, o que ele passara é
infinitamente pior do que qualquer outra coisa.

Cândido (protagonista de um outro conto 263 que leva o mesmo nome) pega, das mãos
de Scarmentado, a mala do “viajante filosófico”. Ele é Voltaire e a sua história, as confissões
deste autor, transportadas para o registro da ficção irônica, sendo essa a única maneira de
Voltaire mostrar-se publicamente. Como ele, Cândido acreditara estar no melhor dos mundos
possíveis. Ambos se desencantaram porque “Voltaire e Cândido têm o mérito, tão raro, de se
render à evidência dos fatos” 264 . Com Cândido, o “filósofo viajante” conclui suas viagens.

260
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 18.
261
Ibid., p. 18.
262
Id.
263
Este é considerado a obra-prima de Voltaire.
264
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 20. (grifo nosso). A respeito do grifo, é importante
lembrar que a doutrina do otimismo estava em voga e, para além disso, a Ilustração, com seus representantes, os
philosophes, adotou o empirismo e o método analítico como fundamentos para a nova Teoria do Conhecimento
que se desenhava, defendendo, assim, a idéia de que devemos nos pautar na observação dos fatos, e que disso
resultará a aquisição do conhecimento, uma vez que só podemos conhecer o que experimentamos.

70
Não se encontrará este papel desempenhado por Voltaire nos contos que se seguem 265 .
Doravante, o “jardineiro de Ferney”, engajado na grande batalha filosófica – contra o
fanatismo e a intolerância – será produzido sob outras máscaras.

O Voltaire philosophe, após Cândido, transforma-se em legião. Para combater o


ateísmo; para combater o cristianismo; para discutir as grandes questões da metafísica e da
moral; em cada uma dessas batalhas, este autor se transforma em alguém, tem um
pseudônimo diferente. Mas, mesmo assim, apesar dessas estratégias, seu estilo é
inconfundível, é latente, e o leitor consegue identificá-lo em sua obra, para, a partir dela,
esclarecer-se. “É esta presença de Voltaire que dá a seu pensamento toda sua sabedoria. A
gente o acha todo, inteiro, [...] Desenvolto ou sério, generoso ou mesquinho, pertinente ou
perdido, entusiasta ou cético, mas sempre ativo, saltitante, infatigável na perseguição da
verdade e do bem. Voltaire está presente, esperando-nos. Escutemo-lo” 266 .

Aos 80 anos ele escreveu sua última tragédia, sob a máscara de um jovem ex-jesuíta.
Vale ressaltar que ele conservou o mesmo entusiasmo dramático de sua primeira tragédia,
nesses 50 anos de exercício 267 . “Nesta ampla ‘comédia’, onde está a sinceridade do
personagem? Entre os cem papéis diversos, onde acaba a fantasia” 268 ? Voltaire caminhou em
várias direções, ao tratar de diversos assuntos, mas avançou em uma só: a oposição – feita ao
poder estabelecido, ou seja, a Monarquia Absoluta; feita à Igreja, representante do apoio à
manutenção do status quo; feita ao fanatismo, que atrapalhava a missão da Ilustração, uma
vez que empurrava os homens cada vez mais à superstição e ao medo; feita à intolerância, que
gerava crimes bárbaros; em suma, contra a Infame, que representava a unificação de todos
esses males.

De acordo com Pomeau, ele se coloca, frente a esses problemas, como “[...] o homem
da grande emancipação” 269 , entendendo o ato de emancipar-se como fora explicado no
capítulo anterior: chegar à autonomia, não mais permitir que alguém pense por nós, não ter
mais nenhuma espécie de tutor, ser independente, esclarecido. O episódio com o cavalheiro de

265
Id. Pomeau dá como exemplo o conto A princesa de Babilônia, no qual Amazan é um viajante amoroso, que
não se interessa pela filosofia.
266
POMEAU, René. “Préface”. In: VOLTAIRE. Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit..
p. XX.
267
Id.
268
Ibid., p22.
269
Id.

71
Rohan o recoloca sobre a boa rota porque, no início de sua carreira literária, Voltaire escrevia
fazendo elogios aos poderosos. Mas, percebendo o caminho que estava tomando, escrevendo
coisas absolutamente inúteis, que geravam uma perda de tempo, em seu exílio na Inglaterra,
ele resolveu escrever de maneira diferente: surge o Voltaire philosophe, graças aos períodos
em que esteve “embastilhado” e, também, exilado em solo londrino 270 .

Contudo, apesar da importância de sua estada na Inglaterra, nem lá Voltaire conseguiu


honras oficiais. Ele não parece ter granjeado muitos partidários. Apesar de ser uma figura
emblemática do século XVIII, é reprovado por muitos, em sua época; e posteriormente,
sobretudo, segundo seus acusadores, por sua falta de introspecção. O estilo voltairiano engana
muito aos que pretendem associar à filosofia o rigor do sistema, sua seriedade. Porém, “Com
Voltaire, a seriedade toma sempre uma aparência muito bufona; mas é raro que um pouco de
seriedade não se misture a essas bufonarias” 271 . Para Versaille, o que importa não é rotular ou
não Voltaire de filósofo, mas descobrir porque o seu pensamento, que fora considerado
particularmente fecundo, é, por vezes, ignorado como tal, e entendido apenas como
“brincadeira”.

A resposta para esta questão é encontrada, por Versaille, na ideologia: “[...] a direita
católica não lhe perdoa seu anticlericanismo; a esquerda, digere mal seu elogio ao luxo e seu
‘capitalismo’; os nacionalistas o têm por um cosmopolita; os crentes o classificam entre os
ateus, e estes, suportam mal o seu deísmo. Somente seu estilo é unanimemente louvado [...]: o
charme da escrita será tanto mais valorizado quanto o pensamento rechaçado 272 ”. Esta é,
talvez, uma estratégia dos seus inimigos: uma vez que seu estilo é louvado, é unanimemente
glorificado como “charmoso”, engraçado, espirituoso; seu pensamento, ficando para último
plano, não é levado em consideração 273 . Não se pode deixar de considerar, além de toda a sua
produção que deve ser vista como um pensamento sólido filosoficamente, que Voltaire

270
A esse respeito ver nota 239, deste capítulo, e MOTA, Vladimir de Oliva. Voltaire e a crítica à metafísica.
Op. Cit., primeira parte, intitulada: “A herança inglesa e a idéia de conhecimento útil”.
271
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 20.
272
VERSAILLE, André. “Voltaire: A necessidade de compreender e de fazer compreender.” In: VOLTAIRE.
Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. XLVII.
273
Roberto Romano afirma o seguinte, a respeito desse aspecto: “Não compartilhando da seriedade dos filistinos
românticos, [...] Voltaire foi visto como “não sério”. Não exercendo a “profundidade” romântica, [...] Voltaire
foi banido para a pátria gaiata e incômoda da superficialidade. Com ele, o século XVIII inteiro foi acusado de
ingenuamente acreditar no progresso, na técnica, na razão. [...] Quem ri não é sério. Esta equação é moderna,
conservadora, romântica e irracionalista.” (ROMANO, Roberto. “Voltaire e a sátira”. In: O caldeirão de
Medeia. Op. cit.. p. 194). Casini também trata desse assunto quando fala da crítica feita à leitura de Voltaire às
obras de Newton. Ver: CASINI, Paolo. Newton e a consciência européia. Tradução Roberto Leal Ferreira. São
Paulo: Editora UNESP, 1995. p. 83.

72
ensinou, aos homens de sua época e aos hodiernos, a dúvida e a tolerância, e seu pensamento
sempre fora temperado pela razão, pelo realismo e pela prudência 274 .

Voltando à sua estada na Inglaterra, ele deixa Londres, inimigo de seu protetor, Lord
Peterborough, e não mantém ligações com os meios políticos ingleses. Contudo, isso não o
impede, nem nunca o impedirá, de estar do lado da razão e da verdade. Por conta do
estardalhaço que sua obra Cartas Filosóficas causa em Paris, Voltaire decide, em 1733,
refugiar-se em Cirey (junto à Marquesa du Châtelet). Essa situação é o prenúncio de Ferney
(propriedade adquirida quando do seu retorno da corte de Frederico II), já que ele não voltaria
jamais a morar em Paris 275 . A temporada em Cirey é marcada, como fora exposto, por muitos
estudos. O philosophe trabalha infatigavelmente para adquirir a cultura filosófica, histórica,
científica e literária que lhe faltava. Ele passa seu tempo estudando e escrevendo. Porém, sua
conduta durante essa época de sua vida dá uma marca às suas obras. Por estar vivendo junto à
Mme du Châtelet, Voltaire necessita poupar as autoridades. Como explicado em nota, essa
senhora foi a responsável por tentar levá-lo novamente à corte francesa. Portanto, ele é
cauteloso com seus escritos, em razão das circunstâncias 276 .

Em 1739, ele deixa os estudos em Cirey e viaja, em companhia de Mme du Châtelet,


para Bruxelas. Durante uma dezena de anos, Voltaire deixa de lado suas aspirações
filosóficas. Inicia sua relação, através de cartas, com Frederico II da Prússia. Este soberano o
confiava missões diplomáticas. As glórias oficiais apareceram, e ele passa a ser protegido pelo
Marquês d’Argenson e Mme de Pompadour. “Ele dedica uma obra, Princesse de Navarre
(1745), pelo casamento do Dauphin [Delfin], um Poème de Fontenoy (1745), um Temple de
la Gloire (1745). Ele recebe cartas e medalhas do papa por seu Mahomet (1743). Ele é
nomeado historiógrafo da França, acadêmico e gentil-homme ordinaire de la chambre du roi
[gentil homem ordinário do quarto do rei]” 277 .

274
VERSAILLE, André. “Voltaire: A necessidade de compreender e de fazer compreender.” In: VOLTAIRE.
Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. XLVIII.
275
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 26-27.
276
Ibid., p. 28. Algumas obras desse período são: Tratado de Metafísica (1737), Elementos da filosofia de
Newton (1738), La Pucelle (1734), Micrômegas, Zadig e Le Siècle de Louis XIV (1751) que fora iniciado em
Cirey. Dessas obras, somente será analisada por esse trabalho, o Tratado de Metafísica.
277
Ibid., p. 29.

73
Mas, a morte cruel de Mme du Châtelet 278 (1749) e o fracasso de suas últimas
peças 279 , liberam-no, desobrigando-o com o poder. Assim, Voltaire poderia voltar a ser o
opositor da Infame. Depois de muita insistência de Frederico II para que fosse para a Prússia,
ele decide aceitar o convite. Este é um momento delicado e solitário de sua vida porque, além
da morte de uma pessoa que lhe era muito próxima, ele é obrigado a mudar alguns hábitos,
pois se encontra em outro país. Estes fatores o deixam vulnerável 280 .

O que o atraía para Potsdam eram as semelhanças de perspectivas que ele e Frederico
II possuíam, com relação às preocupações metafísicas e a posição anticlerical de ambos. O
philosophe se vê, na corte desse soberano, cercado de bons espíritos esclarecidos. “Frederico
II seria o ‘rei dos deístas’” 281 . É na corte, em Potsdam, que ele inicia a confecção do
Dicionário Filosófico (1764) 282 , obra mais agressiva que a Enciclopédia de Diderot 283 .

Voltaire corrigia os textos do soberano prussiano e desejava, de acordo com os relatos


de Pomeau, exercer funções mais importantes; porém, nas “sombras”. Sua raiva contra a
religião estava exacerbada. Frederico II o havia prometido, outrora, que usaria seu poder para
“esmagar a Infame” 284 . Porém, a sua decepção com este soberano não demora a acontecer 285 .
“Mas, Voltaire sempre se iludiu sobre os sentimentos que nutrem os homens de letras por seus
semelhantes” 286 . Os homens, todos letrados, que faziam parte da corte de Frederico II,
inclusive o próprio soberano, detestavam-se cordial e mutuamente. Frederico II tinha ciúmes
do talento de Voltaire. “Ele o admira e o tormenta” 287 . De acordo com Pomeau, em 1753,
Voltaire foge da Prússia e está ao ponto de ser esmagado.

O autor do Dicionário Filosófico vai para Genebra, onde é aceito sem que precise
renunciar a nada, a nenhuma da suas obras. A população é, em sua maioria, de calvinistas

278
Mme du Châtelet morreu de parto. Ela engravidou do M. Saint-Lambert, com quem mantivera um romance.
Assim Voltaire descreve a sua morte: “Mme du Châtelet morreu no palácio de Estanislau, depois de uma doença
que durou dois dias. Ficamos todos tão abalados que nenhum de nós pensou em chamar nem cura, nem jesuíta,
nem sacramento. Ela não viu os horrores da morte; só nós é que o sentimos. Fui tomado da mais dolorosa
aflição. O bom rei Estanislau veio ao meu quarto para me consolar e chorar comigo”. (VOLTAIRE. Memórias.
Op. cit.. p. 47.).
279
Como por exemplo Sémiramis (1746). Esta obra não será analisada.
280
POMEAU, René. La religion de Voltaire. Op. cit.. p. 282.
281
Ibid., p. 277-278,
282
Sobre os pormenores de sua confecção, veremos quando da análise dessa obra.
283
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 31.
284
Ibid., p. 29-30.
285
POMEAU, René. La religion de Voltaire. Op. cit.. p. 280-281.
286
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 31.
287
Id.

74
liberais. Lá é o asilo dos huguenotes perseguidos na França. Genebra o acolhe como o
philosophe que, desde a Henriade seria o defensor da tolerância religiosa. Voltaire fica
seduzido pela acolhida, mas “Les Délices” (propriedade adquirida por Voltaire em Genebra)
não é ainda o seu abrigo calmo e definitivo. Este será Ferney, sua “Terra prometida 288 ”, onde
fora realmente feliz. Ele deixa Genebra por conta de um artigo que escrevera sobre o teatro
genebrino 289 , um dos motivos de sua ruptura com Jean-Jacques Rousseau, que tinha uma
perspectiva completamente oposta à de Voltaire acerca do mesmo assunto.

Sua ida para Ferney se dá em 1758. Nos anos da década de 60, Voltaire lança seu
ataque, apoiado pelos enciclopedistas. Vale, para que se tenha uma maior compreensão desse
período, expor o contexto histórico dessa época. Os desastres da Guerra de Sete Anos (1756,
seu início; 10 de fevereiro de 1763, seu término) abalam definitivamente o Antigo Regime. O
povo não demonstra mais possuir o amor que devotava ao rei, nem o respeito que tinha pelos
nobres. Um dos pilares da sociedade francesa é retirado, expulso dela: a Companhia de Jesus
(em 10 de março de 1762); e no seu lugar, surgem as Lojas Maçônicas; os círculos filosóficos
se proliferam. O terreno está preparado para a investida de Voltaire contra os seus opositores,
e os philosophes da Enciclopédia dispostos para a batalha.

É pertinente chamar a atenção para o fato de que a empreitada voltairiana não é


essencialmente política, apesar das suas conseqüências serem. Ele não se debruça tanto aos
problemas que dizem respeito às Instituições, diretamente. Sua maior preocupação é com o
homem e a sua conduta na sociedade. Conduta essa que deve ser moralmente correta; visando,
assim, a felicidade do homem (indivíduo) e da humanidade. Como afirma Pomeau, “Idealista,
ele quer mudar ‘o espírito dos homens’ [...] com a pluma à mão” 290 . E, essa mudança foi uma
verdadeira “revolução”. Ou seja, via a Literatura, Voltaire deseja tornar os homens
moralmente melhores, ensinando-os os valores morais necessários para a subsistência da
sociedade. Aliás, não apenas subsistência, mas uma convivência pautada na felicidade geral,
da humanidade, e individual, do homem. Salinas Fortes já indicara que os philosophes tinham
como tarefa uma intensa atividade pedagógica e civilizatória para, dessa forma, intervir nos
acontecimentos. Ele continua, acerca desse objetivo da Ilustração, citando uma carta de

288
. Ibid., p. 93.
289
O nome do artigo é Genebra (1757). Nele, dentre outros assuntos, Voltaire faz um elogio à maneira com a
qual o teatro era confeccionado, representado, defendendo sua apresentação em Genebra. Já Rousseau, escreve
uma crítica, justamente, à forma como o teatro era elaborado, justificando, dessa maneira, a não representação de
peças teatrais que seguiam as convenções da época.
290
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit..p. 32.

75
Voltaire a Helvétius, “[...]‘Servi-vos de vosso espírito [...] para esclarecer o gênero humano’.
Graças à atuação destes verdadeiros propagandistas e agitadores da nova fé [philosophes]
amplia-se o círculo de pessoas que lêem. Constitui-se um público cultivado e se organiza o
espaço de uma verdadeira ‘opinião pública’” 291 .

Ainda fazendo referência à vida de Voltaire, sua relação com os sentimentos é um


tanto quanto complexa. Ele se contrapunha a Rousseau, dentre outras coisas 292 , porque ele era
o “homem dos sentimentos”, os colocando em lugar privilegiado. Apesar disso, reconhecia a
originalidade dos personagens romanescos da Nova Heloísa (1756). Por ter medo de tudo que
se aproximasse do irracional 293 , Voltaire tinha pavor ao que lembrasse irracionalidade e,
também, a Rousseau.

Por Pascal, que caíra profundamente sobre Voltaire, seu desagravo talvez se dê por
conta da convivência dele com seu irmão e com seu pai 294 , ambos jansenistas. Para o
“Patriarca de Ferney”, todo conhecimento religioso é fanático, implacável, estúpido e atroz. A
fé conduz a um fanatismo 295 . O combate empreendido por Voltaire contra o Cristianismo é
movido pelo horror do philosophe à paixão religiosa. Seu desejo é substituir a religião
“passional” por uma que seja racional e menos sentimentalista: a Religião Natural296 . O único
entusiasmo permitido por ele é aquele que nasce da contemplação celeste. O Deus é o de
Newton, primeiro motor, manifestado pela harmonia das esferas; Deus sensível ao espírito e
não ao coração 297 .

Voltaire era um autor que se preocupava com a moral, e a colocava em lugar de


destaque, mas não especificamente um moralista 298 . E, seu objetivo consistia em tornar os

291
VOLTAIRE. Apud: FORTES, Luiz Roberto Salinas. O iluminismo e os reis filósofos. Op. cit. p. 28. O
trecho que corresponde à fala de Voltaire é o que está entre as aspas simples.
292
Rousseau criticava as artes, no seu primeiro discurso, intitulado Discurso sobre as ciências e as artes; e, por
exaltar os sentimentos, traiu os philosophes. Ver: POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit..p. 46.
293
A esse respeito, trataremos no próximo tópico, ao discorrer sobre suas Memórias.
294
Assim François Arouet referia-se aos seus dois filhos, Voltaire e Armand: “Eu tenho por filhos dois loucos,
um em prosa, outro em verso”. (POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 43.).
295
Ibid., p. 48.
296
Ibid., p. 49-50.
297
Ibid., p. 51. Sobre essa concepção de Deus em Voltaire, o tópico que versará sobre a sua filosofia a
explicitará. Porém, vale antecipar que na Filosofia de Voltaire, por conta de uma preocupação com a moral,
existe uma outra concepção de Deus: ele é “remunerador” das boas ações e “vingador” das que são maléficas ao
convívio social. Ver, também, PELLISSIER, George. Voltaire philosophe. Op. cit..
298
“Tratava-se de teóricos da moral e não de psicólogos; de teóricos que, antes de mais nada, pretendem dar-nos
princípios de conduta. Tratava-se de refazer uma moral que fosse iluminada pelas luzes”. (HAZARD, Paul. O
pensamento europeu no século XVIII. Op. cit.. p. 156.). Ou seja, de acordo com Mota, a moral deveria guiar as

76
homens melhores. Sua relação com o luxo, com o dinheiro nunca fora um problema para seu
pensamento, muito menos para as suas ações. O Mundano (1736), poema de cento e vinte oito
versos decassílabos, é uma celebração do luxo 299 , mas, uma sátira a Thiriot, seu amigo. Este
vivia na abastança e não fazia nada além disso, não Voltaire 300 . Aliás, é complicado
considerar que Voltaire seja o “mundano” do poema, uma vez que ele defendera, nas suas
Cartas Filosóficas, que o homem nascera para a ação. Que não agir e não existir são as
mesmas coisas 301 .

O philosophe soube evitar os perigos dos excessos de prazeres que o mundo lhe
oferecera. E quando lhe questionaram como foi possível que ele tivesse escrito tanto, que sua
obra fosse tão vasta, ele respondeu: “[...] ‘não morando em Paris’ [...]”. Voltaire encontrou na
independência do patriarcado [Ferney] o segredo de desfrutar sem sacrificar a grande
ocupação de sua vida: escrever 302 , já que ele fora um autor que vivera para isso 303 .

De acordo com Pomeau, é necessária uma metodologia para que se possa compreender
e melhor aproveitar a leitura do pensamento voltairiano: é preciso lê-lo em bloco, por
completo. Não é possível ler sua obra por extratos. Os que dizem não gostar de Voltaire,
assevera Pomeau, é porque não o leram dessa forma. “É esta presença de Voltaire, em tudo o
que ele escreve, que é admirável, presença desse tagarela brilhante, desse sedutor” 304 . Em
outro livro, Pomeau também defende essa idéia: a da impossibilidade de se ler Voltaire por
amostragem 305 . Quando se lê dessa forma, por extratos, incorre-se no erro de criar
determinadas interpretações de trechos extraídos de seu contexto.

Ao seguir o conselho de Pomeau, percebemos que o homem que passou a sua vida
lutando para que o mundo se tornasse melhor; para que o fanatismo e a intolerância fossem
erradicados do globo; para que o homem fosse esclarecido, educado, se tornasse autônomo e,

paixões, uma vez que suprimi-las seria um erro, “[...] até mesmo uma impossibilidade – porque elas são um fato
natural [...]”. (MOTA, Vladimir de Oliva. Voltaire e a crítica à Metafísica. Op. cit.. p. 12.). Para os moralistas,
as paixões são úteis para impulsionar o homem à ação. A moral serve justamente para dirigir as paixões, para
indicar o caminho certo a ser seguido. Porém, os literatos são mais eficazes do que os moralistas. A esse respeito,
será discutido mais à frente.
299
TROUSSON, Raymond et al. (dir.) Dictionnaire Voltaire. Bruxelle: Hachette, 1994. p. 133.
300
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 91.
301
Ver: VOLTAIRE. Cartas Filosóficas. Op. cit.. p. 51-52.
302
Cf.: POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 92. (grifo nosso).
303
Ver: POMEAU, René. “Préface”. In: VOLTAIRE. Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même.
Op. cit.. p. VII.
304
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 64.
305
POMEAU, René. La religion de Voltaire. Op. cit.. p. 15.

77
dessa forma, pudesse viver melhor, feliz em sua sociedade; que não aceitou nenhum tipo de
violência, não poderia, nunca, ter sido o que o acusam aqueles que não o leram como se
deveria. Fazer isso com o homem que personifica a tolerância é a maior prova de
irracionalismo, fanatismo e intolerância que alguém pode dar.

3.2.2. Sua Literatura e sua Filosofia: as armas que possuía para tornar o mundo melhor

Les livres les plus utiles sont ceux dont les lecteurs font
eux-mêmes la moitié; ils étendent les pensées dont on leur
présente le germe; ils corrigent ce qui leur semble
défectueux, et fortifient par leur réflxions ce qui leur paraît
faible.
Voltaire 306

Tal como se reconhece uma árvore pelos frutos que dá, o


valor de uma filosofia mede-se pelos benefícios de sua
ação.
Paul Hazard 307

O que defendia Voltaire em seu combate? Questiona-se Berl, em seu “Préface” à obra
Mélanges. Ele mesmo responde: no início, o bom gosto 308 . Voltaire estava persuadido de que,
como dissera nas Cartas Filosóficas, a poesia seria a “[...] eloqüência singela [...]” 309 . Ele
reprova a má linguagem e os maus escritos e não duvida que regras edificadas pela razão
encontram-se na arte. “O talento lhe importa menos do que a verdade [...] ele trabalha não
para bem escrever, mas para bem pensar” 310 . Porque o que está nas entrelinhas de suas obras é
o projeto que a Ilustração traçou para o gênero humano; ou seja, o principal objetivo de
Voltaire está pautado na sua determinação em educar, através de seus livros, de sua literatura,
os homens; uma vez que ela, a literatura, pode transmitir valores morais caros à sobrevivência
da sociedade.

306
VOLTAIRE. “Préface”. In: Dictionnaire Philosophique. Paris: Garnier-Flammarion, 1964. p. 20. “Os livros
mais úteis são aqueles que deixam espaço ao trabalho dos leitores; eles entendem os pensamentos dos quais lhes
apresentamos o gérmen; eles corrigem o que lhes parece defeituoso e fortalecem pelas suas reflexões o que lhes
parece fácil”.
307
HAZARD, Paul. O pensamento europeu no século XVIII. Op. cit.. p. 155.
308
BERL, Emmanuel. “Préface”. In:VOLTAIRE. Mélanges. Op. cit.. p. XIII.
309
VOLTAIRE. Cartas Filosóficas. Op. cit.. p. 42.
310
BERL, Emmanuel. “Préface”. In:VOLTAIRE. Mélanges. Op. cit.. p. XV.

78
Lanson, em sua Histoire de la Littérature Française, dissera que Voltaire era o “[...]
filósofo necessário a um mundo de burocratas, de engenheiros e de produtores” 311 . De acordo
com a perspectiva que este trabalho segue, no que diz respeito à função educativa que a
literatura possui, essa necessidade ocorre justamente porque a literatura possui esse caráter
pedagógico específico, no sentido de que ela encarrega-se de educar moralmente os homens.
Especificar burocratas, engenheiros e produtores, é deter-se em profissionais que geralmente
estão à frente de cargos importantes em uma sociedade; que têm sob sua responsabilidade a
vida de centenas de milhares de pessoas e, por conta disso, têm a obrigação de se conduzirem
da melhor maneira possível, no que diz respeito ao comportamento moral. Porém, estes
burocratas, engenheiros e produtores, na maioria das vezes, não recebem uma formação no
sentido amplo desse termo, no sentido grego de paidéia 312 . Dessa forma, aposta-se na
educação doméstica que essas pessoas receberam de seus pais. Contudo, por se tratar de uma
aposta, tudo pode acontecer. E, quando o que está em jogo é a subsistência de uma sociedade,
é a melhor maneira de se viver de forma comum, é a felicidade do homem; os resultados
precisam ser, para o bem de todos, os melhores possíveis, tendo em vista o bem-estar da
humanidade. Logo, o estilo voltairiano; sobrecarregado pedagogicamente, já que seu autor
deseja, através de sua pena, educar; pauta-se nas regras edificadas da razão para poder
confeccionar a sua arte literária e, dessa forma, preocupar-se mais com o bem pensar do que
com o bem escrever, uma vez que o primeiro, conseqüentemente, levará ao segundo.

Pomeau também lança uma questão: se Voltaire não teria filosofado em verso. E como
Berl, ele mesmo responde, explicando que sim e dando como exemplo alguns poemas
voltairianos com temas filosóficos 313 . Ele diz que estes textos são pouco lidos
contemporaneamente, e afirma que para demonstrar seu pensamento, Voltaire possui um meio
mais ágil que a poesia: a prosa 314 . Mas, mesmo utilizando-se da prosa, há, na obra voltairiana
uma constante: a primazia do literário 315 . Esta primazia ocorre por conta de um estilo, de uma

311
LANSON, Gustave. Histoire de la Littérature Française. Apud: POMEAU, René. Voltaire par lui-même.
Op. cit.. p. 187.
312
Paideía significa: “Educação ou cultivo das crianças, instrução, cultura. O verbo paideúo significa: educar
uma criança (paîs-paidós em grego), instruir, formar, dar formação, dar educação, ensinar os valores, os ofícios,
as técnicas, transmitir idéias e valores para formar o espírito e o caráter, formar para um gênero de vida. Da
mesma família é a palavra paidéia, ação de educar, educação, cultura”. (CHAUI, Marilena. Introdução à
História da Filosofia dos pré-socráticos a Aristóteles.Op. cit.. p. 356.). (grifo nosso).
313
Alguns exemplos são: Epître à Julie (1722); Epître à Uranie (1734), que é Mme du Châtelet; Discours em
vers sur l’homme (1745) e La loi naturelle. Cf.: POMEAU, René. “Préface”. In: VOLTAIRE. Dictionnaire de
la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. VIII.
314
Id.
315
Ibid., p. XIII.

79
opção que ele faz, uma vez que esta maneira escolhida para escrever seus textos permite que
ele alcance seu objetivo último: esclarecer os homens, educá-los. E é esta primazia do literário
que permite que a função educativa da literatura se exerça nos textos de Voltaire.

Porém, mesmo havendo uma primazia do literário nas obras voltairianas, este trabalho
identifica algumas dessas obras como estritamente literárias (os contos, por exemplo, suas
tragédias, seus poemas) e outras, em que também ocorre esta primazia; mas, por seus
conteúdos não serem enredos fictícios, não possuírem os elementos que identificam um texto
como sendo do gênero literário – épico, poético ou narrativo – (personagens, enredo, espaço,
tempo e narrador), não são considerados como textos pertencentes a este gênero. Nesse
sentido, adotando-se essa perspectiva, um texto identificado como estritamente literário será
analisado no capítulo seguinte. Os textos que, mesmo possuindo uma primazia do literário;
uma vez que esta primazia possui uma função determinada nessas obras, faz parte de um
projeto que leva Voltaire a optar por escrever da forma que escreve; não podem ser
classificados como obras de ficção. Portanto, serão analisados neste capítulo 316 .

Além do artifício do literário, usado com fins pedagógicos, Voltaire sabe se utilizar
das boas regras da retórica 317 : ele opta, muitas vezes, por finais abruptos, como acontece em
Le Siècle de Louis XIV, Micrômegas, O Branco e o Negro (1764), Cândido. Vale ressaltar:
não é somente esse artifício literário que é encontrado nos textos voltairiano. Estes estão
repletos de outras técnicas 318 , utilizadas a serviço da primazia do literário que, como fora dito,
possui função específica no plano que Voltaire traçou para a função pedagógica de suas obras.

Como dissera Pomeau, é na prosa que se encontra o melhor desse philosophe. Seu
destaque se dá em função deste autor não estar preocupado em pensar em que gênero seus
escritos podem se encaixar; ou seja, não há, a priori, uma preocupação com a forma 319 . No

316
Os texto que serão aqui analisados são: Memórias (1759), Dicionário Filosófico, Cartas filosóficas, Tratado
sobre a Tolerância, Tratado de Metafísica e O Filósofo ignorante (1766).
317
Deve-se entender retórica como o estilo utilizado para convencer, ou seja, a expressão literária a serviço, no
caso específico de Voltaire, da filosofia; é o uso da literatura para instruir, esclarecer, educar os homens. Sobre
este conceito de retórica como sendo o estilo usado para persuadir, ver: REBOUL, Olivier. Introdução à
Retórica. Op. cit.. p. XIII. Ver, também, nota 1, na introdução deste trabalho.
318
Tais técnicas serão elencadas no capítulo terceiro.
319
Para Pomeau, não existe essa preocupação com a forma, na obra de Voltaire. (POMEAU, René. Voltaire par
lui-même. Op. cit.. p. 63.). Mas, para a análise feita neste trabalho, torna-se necessário aceitar essa formulação –
que não existe de fato essa preocupação com a forma –, contudo aprioristicamente; já que, caso não houvesse
uma preocupação com a forma do texto, ou seja, com o canal de comunicação escolhido para enviar uma
determinada mensagem, ele não optaria por escrever os textos da maneira que escreve; ele escolheu fazer

80
que concerne ao verso, Voltaire é anti-romântico. Não é possível culpar a sua época pela
ausência de sua poesia, porque as características do século XVIII já estavam presentes na
época de Racine 320 . Entretanto, parece complicado querer que a língua de um século tão
racional, de um momento tão preocupado com a razão, como foi o século XVIII, seja o
instrumento de uma obra essencialmente sentimental (como os poemas, por exemplo). Isso
não significa que não houve, durante a Ilustração, autores que não se utilizaram desse tipo de
expressão artística. O próprio Voltaire, como fora exposto, compôs diversos poemas. Porém,
seu ápice nessa expressão, como indica o início deste parágrafo, dá-se na prosa.

Questiona-se porque o autor do Poème sur La loi Naturelle (1756) lida com maestria
as palavras, ao produzir os seus textos em prosa, e não obtêm o mesmo sucesso com seus
versos. “Talvez este poeta estrangule a si mesmo, por uma severa vigia de si” 321 . A natureza
da poesia, seu sentimentalismo e subjetividade, fazem medo a Voltaire. No tópico anterior,
chamado “Voltaire: um mélanges entre vida e obra”, viu-se que o “Patriarca de Ferney” não
gosta de falar de si mesmo, e transporta para a ficção as suas confissões, sendo essa a única
maneira de se mostrar em público. Uma estratégia encontrada por ele para recusar qualquer
espécie de subjetivismo, sentimentalismo foi o teatro, a tragédia patética, usada como
necessária à sua higiene psicológica porque “Jogar com a emoção o dispensa mesmo de vivê-
la” 322 .

A maior parte da obra voltairiana, segundo Versaille, é uma apologia da marcha da


civilização para a Ilustração, para as “luzes” da razão, que se traduz pela progressão do
espírito às suas mais altas expressões. A sociedade européia do século XVIII – ao menos a
inglesa – parece, a Voltaire, tocar nesse nível superior de um humanismo bem cumprido. Esta
época é o período de exploração da herança deixada pelo século de Louis XIV, a idade de
ouro da cultura francesa, que fez eclodir escritores de gênio 323 .

filosofia assim, não por não saber formular sistemas filosóficos, ou por não possuir a seriedade, a disciplina e o
rigor necessários. Assim, caso não houvesse neste autor uma apreensão com a forma, ele não estaria preocupado
com o seu público, com quem vai ler seus livros; o que incorreria numa total falta de projeto, propósito em
escrever. E o que acontece de fato é justamente o contrário: a maior preocupação de Voltaire ao escrever é
educar os homens, transmitir os valores morais necessário para uma convivência pacífica e feliz entre os seres
humanos.
320
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 54.
321
Ibid., p. 55.
322
Ibid., p. 58.
323
VERSAILLE, André. “Voltaire: A necessidade de compreender e de fazer compreender.” In: VOLTAIRE.
Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. XLV.

81
Nós não temos hoje nem Racine, nem Molière, nem La Fontaine, nem Boileau, e eu
creio mesmo que nós não os teremos jamais; mas, eu amo melhor um século
esclarecido que um século ignorante que produziu sete ou oito homens de gênio. [...]
esses escritores que eram tão grandes em seus gêneros, seriam homens muito
pequenos em fazer filosofia. Racine e Boileau seriam jansenistas ridículos, Pascal,
um morto louco, e La Fontaine, morto como um tolo 324 .

Contudo, mesmo com a Ilustração, o fanatismo, a intolerância e a barbárie ameaçam a


marcha da civilização para o esclarecimento e freiam a ascensão da razão, à qual Voltaire
consagra todas as suas forças 325 . Ela, a razão, é um credo e não um lugar comum; somente ela
tem poderes contra a “Infame”. Portanto, tudo que representa ausência de racionalidade, como
por exemplo, o subjetivismo e os sentimentos, causam exasperação em Voltaire. Tudo o que
levaria à sua intimidade está escondido. Falar de si mesmo é falar de algo subjetivo; logo, não
racional. Ele, por conta disso, não trata de sua vida particular, como fora explicitado
anteriormente, em suas obras. Não constrói nenhuma narrativa introspectiva sobre si. O livro
Memórias é um exemplo eloqüente a esse respeito 326 .

Diferentemente – como não poderia deixar de ser, pois como foi exposto
anteriormente, existe uma oposição intransponível (no que diz respeito ao sentimentalismo)
entre o “Patriarca de Ferney” e o “Genebrino” – Voltaire não trata de sua infância, nem de sua
adolescência nas suas Memórias 327 . Ele inicia sua narração já na fase adulta. Porém, isso não
impediria que sua obra fosse autobiográfica. Ele poderia ter optado por fazer um recorte,
relacionado a um determinado período de sua vida, para falar de si. O que ocorre, no entanto,
é que o acento da narrativa, a ênfase não é colocada sobre ele mesmo, o que o torna ausente
de seu próprio romance. “Em guarda contra si mesmo, ele passa seu tempo a compor seu
personagem. Detestando o natural [...] ele visa constantemente à arte ou ao artifício” 328 . A
razão contra o sentimento e a arte contra a natureza.

324
Carta de Voltaire a La Touraille, em 12 de março de 1766. Apud: Id.
325
Id. Assim Voltaire inicia o seu verbete Raison, neste Dictionnaire: “Erasmo fez, no século XVII, o elogio da
loucura. Vocês me ordenam de vos fazer o elogio da Razão”. (VOLTAIRE. Dictionnaire de la pensée de
Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 1094.).
326
“Há, em Voltaire, um verdadeiro medo do irracional. [...] Que mundo entre as Confissões de Jean-Jacques
Rousseau e as Memórias que servem à vida do Sr. de Voltaire escritas por ele mesmo! Egoísta, Jean-Jacques
Rousseau está inteiro e onipresente em sua autobiografia”. VERSAILLE, André. “Voltaire: A necessidade de
compreender e de fazer compreender.” In: VOLTAIRE. Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même.
Op. cit.. p. XLV. Esse medo do irracional gera conseqüências em seu pensamento, em geral, e em sua posição
face à ciência. Seu ceticismo racionalista, que deveria ser a garantia de sua independência intelectual dará, ao
mesmo tempo, o limite de sua abertura de espírito. Ver, também, Ibid., p. XLVI.
327
Essa obra foi iniciada em 1758.
328
POMEAU, René. Voltaire par lui-même.Op. cit.. p. 44.

82
Como indicado, o intuito de Voltaire, que está presente em todos os seus escritos, é
esclarecer os homens, educá-los. É importante chamar a atenção para o fato de que o autor das
Cartas Filosóficas fez uso de diversas formas de expressões literárias para difundir seu
pensamento, para colocar em prática o projeto pedagógico-civilizatório da Ilustração. “Várias
nações durante muito tempo tiveram chifres e ruminavam começam agora a pensar. Quando
chega o tempo de pensar, é impossível tirar dos espíritos a força que adquiriam; [...] É a
liberdade de pensar que faz eclodir, entre os ingleses, tantos livros excelentes; porque os
espíritos foram esclarecidos, foram corajosos” 329 . Nesse mesmo texto, Voltaire indica as
contribuições dos philosophes que possibilitaram a Ilustração, ao produzirem “[...] os escritos
sólidos [...] que ridicularizaram a tolice dos nossos pais que de agora em diante é impossível
que seus filhos sejam tão tolos quanto eles” 330 .

Seus contos também são testemunhos do projeto ilustrado. Através da fala de seus
personagens, Voltaire expõe, a seus leitores, o que estes precisam aprender. Em Memnon ou
a sabedoria humana, considerado por Sérgio Miliet um esboço do Cândido 331 , Voltaire
explica que é impossível ao homem alcançar a perfeição e que, portanto, não cabe a ele
lamentar-se. Outro aspecto levantado pelo “Patriarca de Ferney” é o que diz respeito à
autonomia dos seres humanos. Memnon diz: “[...] tenho com que viver independentemente;
esse é o maior dos bens” 332 . Em o Ingênuo (1767), mais uma vez aparece, agora na voz do
Hurão, a importância da autonomia nas linhas voltairianas: “O Ingênuo respondeu-lhe que não
tinha necessidade do consentimento de ninguém; que lhe parecia extremamente ridículo ir
perguntar a outros o que deviam fazer; que quando dois estão de acordo, não há necessidade
de um terceiro para acomodá-los” 333 . A importância da utilidade, para o movimento ilustrado,
é uma preocupação do Ingênuo. Quando ele conversava com um alto funcionário do exército,
assim se expressou: “[...] Numa palavra, quero ser útil: que me empreguem e me
promovam” 334 . Assim, sua preocupação com a educação dos homens se mantém presente nos
seus escritos; tanto os propriamente literários quantos os que não possuem, necessariamente,
essa característica.

329
VOLTAIRE. “Réflexions sur les sots”. In: Mélanges. Paris: Gallimard (Bibliothèque de la Pléiade), 1995. p.
353. (grifo nosso).
330
Ibid., p. 355. (grifo nosso).
331
MILLIET, Sérgio. “Nota introdutória ao conto ‘Memnon ou a sabedoria humana’”. In: VOLTAIRE. Contos.
Tradução Mário Quintana. São Paulo: Globo, 2005. p. 175. Miliet afirma que este conto, juntamente com o
Discours em vers sur l’homme (1745), “[...] formam um conjunto de conselhos sobre a arte de bem viver”. (Id).
332
Ibid., p. 177.
333
Ibid., p. 394.
334
Ibid., p. 404.

83
Por este motivo, Memórias que servem à vida do Sr. de Voltaire escritas por ele
mesmo, uma obra produzida pelo filósofo com a pseudo-intenção de descrever a sua vida, ou
seja, deixar para a posteridade uma autobiografia, insere-se no conjunto da obra voltairiana e
deve ser considerada um exemplo importante a ser destacado, uma vez que esta pseudo-
autobiografia mostra que mesmo quando se propõe a falar de si, Voltaire, aproveitando-se das
circunstâncias, combate os seus inimigos335 , expõe o seu modo de interpretar as relações entre
os homens e o mundo. Memórias possui intenções pedagógicas, assim como todos os textos
do seu autor, e estas intenções são, juntamente com o propósito de mostrar os motivos da
ruptura entre Voltaire e Frederico II, o principal objetivo desta obra.

Porém, para que se entenda que Memórias, apesar de ser uma narrativa escrita por
Voltaire sobre si mesmo, não é um texto autobiográfico, deve-se expor o conceito de
autobiografia que será utilizado, doravante, neste texto: “[...] narrativa retrospectiva em prosa
que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando ela coloca o acento sobre sua vida
individual, em particular, sobre a história de sua personalidade” 336 . E, falar sobre sua vida
individual, sobre a história de sua personalidade foi o que menos fez Voltaire em Memórias.

O filósofo ilustrado não escrevia muito sobre ele mesmo 337 . Em Comentário Histórico
e O invejoso (1738) Voltaire se coloca em cena, é o protagonista, a narração é um testemunho
de sua vida. Poderiam ser obras consideradas autobiográficas. Mas, o que ocorre nestes livros
é o mesmo que em Memórias: Voltaire expõe-se para falar mal dos outros. Assim como
Memórias é um panfleto contra seu ex-amigo Frederico II, O invejoso é um panfleto contra o
abade francês Desfontaines. E, em Comentário Histórico, ao se utilizar de uma narração
espalhada com enunciados do tipo: “ele nos disse várias vezes”, Voltaire dispensa-se de se
confessar de maneira muito pessoal 338 . Se estes relatos são semeados de sombras, ele é o
principal responsável 339 .

335
POMEAU, René. Voltaire par lui-même.Op. cit.. p. 12.
336
LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographie. Paris: Seuil, 1975. p. 14. Apud: ALBERTI, Verena.
“Literatura e autobiografia: a questão do sujeito na narrativa”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 4, nº
7, 1991. p. 10. (grifo nosso).
337
Cf.: POMEAU, René. Voltaire par lui-même.Op. cit.. p. 12.
338
Id.
339
Id.

84
Por estas razões, não se pode considerar Memórias como sendo uma autobiografia,
pois em suas linhas não se encontram o relato de um autor que faz uma retrospectiva sobre si
mesmo, acentuando sua vida particular, tratando da história de sua personalidade. Este escrito,
por Voltaire não possuir um sistema de pensamento no qual seja inserido o problema acerca
da educação, tem como preocupação última educar os homens partindo dos instrumentos que
o autor possui, a pena, para difundir, via literatura, o que ele realmente pensa sobre o mundo.
Nesse sentido, Memórias, mesmo indicando ser as lembranças da vida de Voltaire escritas por
ele mesmo, é um veículo propangandístico utilizado para divulgar o pensamento ilustrado.

Em uma das passagens da referida obra, o autor oferece uma pista sobre seu
desconforto em escrever sobre si mesmo: “Tinha interrompido [...] minhas Memórias, [...]
mas muitas coisas que me parecem novas ou divertidas me reconduzem ao ridículo de falar
sobre mim a mim mesmo 340 ”. Contudo, o gênio do filósofo faz com que se tenha a impressão,
logo no início de sua narrativa pseudo-autobiográfica, de que realmente ele irá falar de sua
vida:

Eu estava farto da vida ociosa e turbulenta de Paris, da multidão dos presunçosos,


dos maus livros publicados com aprovação e privilégio do rei, das cabalas dos
homens de letras, das baixezas e das vilanias dos miseráveis que desonravam a
literatura. Encontrei, em 1733, uma jovem senhora que pensava de modo semelhante
ao meu, e que tomou a decisão de ir passar vários anos no campo, para lá cultivar
seu espírito longe do tumulto mundano; era a srª marquesa du Châtelet, a mulher
que na França mais tinha disposição para todas as ciências 341 .

Ledo engano. A promessa subjacente nas entrelinhas do primeiro parágrafo do livro


não é cumprida. Logo depois dos detalhes sobre o seu exílio voluntário ao lado de Mme du
Châtelet em Cirey, as Memórias mudam de tom. Deixam de ser meras recordações de um
homem célebre e passam a ser um panfleto. Após um início aparentemente confessional,
Voltaire se esquiva do foco de atenção para permanecer na periferia da narração e faz entrar
em cena, outros personagens, outras pessoas, das quais ele irá contar fatos sobre suas vidas, e,
a partir de então, quando o filósofo for falar dele próprio será para expor juízos contra estas
outras pessoas que foram convidadas a fazer parte desta narrativa por ele mesmo, em
consoante com as suas intenções de expor sua interpretação dos indivíduos e do mundo, das

340
VOLTAIRE. Memórias. Op. cit.. p. 73.
341
Ibid., p. 9.

85
relações que se estabelecem entre os homens em sociedade. Uma prova disso é que Voltaire
não faz referências às suas relações afetivas. Voltaire não se esqueceu, mas tem o poder de
esconder os segredos de sua vida 342 .

Alguns esclarecimentos a respeito do conteúdo do livro são importantes 343 . E tais


esclarecimentos apenas atestam o que fora dito, pelo próprio Voltaire, no corpo do texto de
sua suposta autobiografia, e por Pomeau, quando afirmou que as Memórias são “[...] um
panfleto contra seu antigo amigo o rei da Prússia” 344 . O título, explica Coelho, não
corresponde a uma autobiografia completa, mas a um testemunho “[...] das decepções mútuas
entre a filosofia e o poder” 345 . Em algumas passagens, Voltaire elogia Frederico II, quando
ainda príncipe, em face da disposição deste em instruir-se, apontando ser esta a razão da raiva
existente entre o ainda rei Frederico Guilherme e o seu filho:

Pode-se ver de que modo esse vândalo [o rei] ficava espantado e enraivecido por ter
um filho cheio de espírito, de graça, de polidez e amabilidade, que buscava instruir-
se e que fazia música e verso. Visse um livro na mão do príncipe herdeiro, jogava-o
no fogo; tocasse flauta, o pai a quebrava, e às vezes tratava Sua Alteza Real como
tratava as damas e pregadores na parada 346 .

Contudo, a relação entre o philosophe e Frederico II, então rei, não permaneceu
amigável. O primeiro o apoiava, no início, mas sabia que nem sempre o rei tinha razão. “Ele
até me encarregou de trabalhar num manifesto, e eu bem ou mal fiz um, não duvidando que o
rei com quem eu ceava e que me chamava de amigo não devesse ter sempre razão” 347 . O fato
de Frederico II desejar a instrução encantou Voltaire e este encantamento veio junto com
outras tantas seduções que acompanham a vida em convívio com a realeza. Frederico
mostrava-se admirador inconteste de Voltaire e isso também foi um dos determinantes para
que esta amizade fosse selada.

Não deixei de me sentir ligado a ele, pois ele era espirituoso, tinha encantos e, além
disso, era rei, o que constitui sempre uma grande sedução, dada a fraqueza humana.
Em geral somos nós, os homens de letras, que lisonjeamos os reis; este me fazia

342
Cf.: POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 12.
343
Cf.: COELHO, Marcelo. “Posfácio”. In: VOLTAIRE. Memórias. Op. cit..
344
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 11.
345
COELHO, Marcelo. “Posfácio”. In: VOLTAIRE. Memórias. Op. cit.. p. 88.
346
VOLTAIRE. Memórias. Op. cit.. p. 14.
347
Ibid., p. 23.

86
elogios dos pés à cabeça, enquanto que em Paris o abade Desfontaines e outros
calhordas me difamavam pelo menos uma vez por semana 348 .

Elogios de ambas as partes não foram suficientes para fazer com que nenhum
problema viesse a atrapalhar a relação de Voltaire e Frederico. E, um parágrafo logo abaixo a
esse que fora citado, insinuará uma das razões da ruptura entre os dois: a ambição do
soberano.

Veio-me enfim um remorso por mandar imprimir o Anti-Maquiavel, enquanto o rei


da Prússia, que nos seus cofres tinha cem milhões, arrancava um dos pobres
habitantes de Liège pelas mãos de seu conselheiro Rambonet. Julguei que meu
Salomão não pararia por aí. Seu pai lhe tinha deixado sessenta e seis mil e
quatrocentos homens esplendidamente equipados; ele aumentava seu número, e
parecia desejar servir-se deles na primeira ocasião 349 .

É necessário expor que não só a ambição de Frederico foi o motivo que ocasionou a
ruptura entre os dois. Deve-se levar em consideração a relação França-Prússia, e ter em mente
que estava em jogo muito mais que uma simples amizade, mas o destino de duas nações. E
isso gerou alguns problemas para Voltaire, segundo seu testemunho, que fez com que ele
passasse por uma situação difícil com o rei da França, em razão da sua amizade com
Frederico. E, para decepção do autor de Zadig, esta amizade não era verdadeira da parte do
soberano prussiano:

Era preciso uma permissão do rei da França para pertencer a dois senhores. O rei da
Prússia se encarregou de tudo. Escreveu para pedir-me a meu soberano. Eu não
imaginava que em Versalhes ficassem chocados com o fato de um fidalgo ordinário
da câmara, que é a espécie mais comum da corte, se tornasse um camareiro inútil em
Berlim. Deram-me plena permissão. Mas houve muitas irritações; e eu não fui
perdoado. Contrariei muito o rei da França, sem agradar mais ao rei da Prússia, que
no fundo da alma troçava de mim 350 .

As intrigas apareceram, e o desfecho dessa história pode ser resumido com uma frase
de Frederico sobre Voltaire “Deixa estar, a gente espreme a laranja, e joga fora o bagaço
[...]” 351 , e a resolução tomada por Voltaire após ter o conhecimento do apotegma proferido

348
Id.
349
Ibid., p. 23-24.
350
Ibid., p. 49.
351
Ibid., p 50.

87
pelo rei foi: “Resolvi então pôr os gomos da laranja em segurança” 352 . Depois de alguns
episódios tramados contra Voltaire, ele decide partir.

Não tinha a menor intenção de ficar em Berlim; preferi sempre a liberdade a todo o
resto. [...] É bem sabido que junto aos reis se deve sofrer; mas Frederico abusava um
pouco de sua prerrogativa. A sociedade tem suas leis, a menos que seja a sociedade
do leão ou da cabra. Frederico faltava sempre à primeira lei da sociedade, que é de
nada dizer de desagradável a ninguém 353 .

Porém, mesmo sendo este livro um panfleto contra Frederico, Voltaire não se exime
de tratar de assuntos recorrentes em sua obra: a constante preocupação com a instrução: “[...]
passar vários anos no campo, para lá cultivar seu espírito longe do tumulto mundano. [...]
Nesse delicioso refúgio, não buscávamos outra coisa além da instrução [...]. Cultivávamos
todas as artes em Cirey [...]” 354 ; crítica aos maus livros, que eram publicados com o aval do
rei, e dos homens de letras 355 ; crítica aos costumes da sociedade, feita em diversas passagens
do texto, como por exemplo: “Vi tantos homens de letras pobres e desprezados, que concluí
há muito tempo que não devia aumentar seu número. Na França é preciso ser bigorna ou
martelo: eu tinha nascido bigorna” 356 ; e, como não poderia deixar de constar, o elogio aos
enciclopedistas: “Diversos homens de letras, muito estimáveis pela erudição e pela conduta,
haviam-se associado para compor um dicionário imenso de tudo o que pode esclarecer o
espírito humano [...]” 357 . Voltaire elogia esta empresa (a Enciclopédia), trata da importância
desta obra para a humanidade e da perseguição sofrida por seus realizadores “[...] no único
século esclarecido que a França já teve: assim é que um tolo pode desonrar uma nação” 358 .

Portanto, aqueles que consideram Memórias uma narrativa autobiográfica não atentam
para o conceito de autobiografia que esta análise da obra voltairiana, agora em questão,
utiliza. Muito menos, todos os traços distintivos que o livro e o autor possuem. É não dar a
devida atenção ao objetivo maior que esse escrito, assim como todos os outros que completam
e materializam o pensamento voltairiano, possui: formar a humanidade, fazer com que o
homem aprenda a pensar por si mesmo, contribuir para que o homem torne-se autônomo.

352
Id.
353
Ibid., p 52-53.
354
Ibid., p. 09-11.
355
Cf.: Ibid., p. 9.
356
Ibid., p. 59.
357
Ibid., p. 77.
358
Ibid., p 79.

88
Ainda que apareçam registros autobiográficos – uma vez que Voltaire escreve sobre si,
mesmo quando está preocupado em transmitir uma determinada imagem a respeito de
Frederico II – o conceito de autobiografia utilizado concentra-se na narrativa em prosa, não
ficcional, que dá ênfase à vida individual, à história da personalidade de alguém. E não é isso
que ocorre em Memórias. As informações contidas nesta obra têm, em última instância, a
função de transmitir um determinado juízo, valores morais trazidos por Voltaire, a partir do
momento em que ele critica determinadas ações que foram praticadas por Frederico II.

Memórias que servem à vida do Sr. de Voltaire escritas por ele mesmo é uma obra
com a pseudo-intenção de descrever a vida desse philosophe, deixando para a posteridade
uma autobiografia, que se insere no conjunto da sua obra e deve ser considerada um exemplo
importante a ser destacado, uma vez que esta pseudo-autobiografia mostra que, mesmo
quando se propõe a falar de si, Voltaire, aproveitando-se das circunstâncias, combate os seus
inimigos 359 , expõe o seu modo de interpretar as relações entre os homens e o mundo. Essa
obra voltairiana possui intenções pedagógicas, assim como todos os textos do seu autor 360 .
Memórias, mesmo indicando ser as lembranças da vida de Voltaire escritas por ele mesmo, é
um veículo propangandístico utilizado para divulgar o pensamento ilustrado. Ao expor
exemplos vividos por ele mesmo; e, colocar nesses exemplos a sua opinião acerca do fato
acontecido, Voltaire faz juízos de valor sobre as relações que ele estabeleceu com Frederico
II. Esses juízos de valor são os responsáveis por transmitir os valores, que conseqüentemente
serão os responsáveis por formar os leitores. Voltaire é o próprio exemplo, e a sua relação
com o soberano prussiano indica condutas morais, a serem seguidas; e imorais, que não
devem ser copiadas.

Sempre impulsionado à ação, Voltaire busca no passado lições para que se possa
utilizar delas como as melhores armas, nas reformas necessárias ao presente. Ele nasceu
político 361 . Assim, ao exercer seu papel de historiador, pensa sempre no presente, ou seja, o
que é possível tomar como exemplo, para buscar, dessa forma, a melhoria da sociedade. Por
conta disso, dá-se a sua relação com Frederico II, uma vez que ele acreditava que qualquer
reforma deveria ocorrer de cima para baixo, do soberano para o povo; os grandes devem dar

359
Cf.: POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Paris: Seuil, 1970. p. 12.
360
Cf.: VOLTAIRE. Memórias. Tradução de Marcelo Coelho. Rio de Janeiro: Imago, 1995. (Coleção “Lazuli”).
361
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 73.

89
exemplo 362 . Se um príncipe é um tolo, seu povo é sem gênio 363 . Portanto, ao estabelecer um
contanto próximo com o soberano prussiano, sua intenção era a de apostar na idéia de
Déspota Esclarecido, instruindo-o, com a finalidade de fazer com que, dessa maneira, a
condição do homem pudesse melhorar, pois somente um rei-filósofo pode sustentar, sem ser
injusto, intolerante, fanático, um Absolutismo Monárquico 364 . Nesse sentido,Voltaire expõe
aos seus leitores sua relação com um déspota, que ele acreditava ser esclarecido, mas que, na
verdade, era, segundo o philosophe, um tirano. Assim, Voltaire mostra as razões pelas quais
ele rompeu com Frederico II. Porém, antes das intrigas, a permanência na corte prussiana foi
profícua para o autor das Memórias, ao ponto de algumas de suas obras terem sido
confeccionadas no período em que estava na corte do soberano prussiano.

Em 28 de setembro de 1752, na sala de refeições do castelo do soberano Frederico II,


deparara-se reunido um grupo de intelectuais que, após o jantar, iniciara uma conversação.
Num determinado momento do diálogo, estes intelectuais decidem escrever um dicionário
contra os preconceitos, a superstição e o fanatismo. Voltaire, que era um dos participantes
dessa reunião, entusiasmou-se mais do que os outros e, nos dias que se seguiram, redigiu os
verbetes: Abraão, Alma, Ateu, Batismo, Juliano, Moisés. Os outros participantes da
interlocução esqueceram-se do projeto; o que acaba dando mais estímulo ao philosophe.
Demoram alguns anos para que o dicionário fique pronto, porque mesmo sendo um escritor
fecundo e rápido, Voltaire debruça-se sobre outras tarefas, o que acaba tomando um pouco do
seu tempo. Em 1764, publica-se o primeiro volume dessa obra, que se intitula Dicionário
Filosófico. Essa obra causou escândalo. Foi condenada em Genebra, Amsterdã, Paris e teve
um exemplar queimado, juntamente com La Barre 365 , na fogueira, já que ela, a obra, tinha
sido condenada pelos poderes secular e laico. Contém 118 artigos em sua forma definitiva.

Voltaire, persuadido de que 20 volumes in-folio 366 não fariam a revolução, e que são
os livros de bolso os temidos na grande batalha contra a Infame, adota a fórmula do
dicionário, que lhe parece adaptável ao combate – uma vez que ele pretende criticar e

362
VOLTAIRE. Cartas Filosóficas. Op. cit.. p. 40.
363
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 79.
364
Id. Pomeau explica que esta posição de Voltaire não deve ser vista como antidemocrática, fazendo dele um
representante das doutrinas de opressão. No século de Voltaire, ou ele defendia o “[...] Despotismo Esclarecido
ou ele defendia o despotismo sem esclarecimento. O primeiro era a única política progressiva”. (Ibid., p. 81.). As
instituições inglesas ainda não exerciam uma influência sobre o continente e cabia a Voltaire buscar uma solução
que fosse factível, já que sua preocupação, urgente, era com o bem-estar social.
365
Ver nota 255.
366
A Enciclopédia.

90
ridicularizar as crenças oficiais (civis e eclesiásticas), o poder estabelecido e o costume dos
poderosos, além de educar os homens. Ele não permanecia estrangeiro às tendências
editoriais, uma vez que o século XVIII é a “idade de ouro” dos dicionários. Ao lado da
Enciclopédia de Diderot e D’Alembert, surgiram vários livros dessa natureza 367 . Em 18 de
fevereiro de 1760, ele anuncia a Mme du Deffand que está trabalhando em um dicionário de
idéias. Absorvido por esse projeto, rende-se ele mesmo à ordem alfabética (apesar da
descontinuidade aparente de temas, uma vez que estes não parecem estabelecer nenhuma
relação entre si), para falar sobre tudo o que ele deve pensar sobre este mundo e o outro 368 . O
primeiro título dessa obra foi La Raison par alphabet. Em 1760, ele adota o título Dicionário
Filosófico.

Do artigo ‘Abraão’ ao artigo ‘Virtude’, esta obra, que escolheu a descontinuidade


alfabética, está estruturada, em profundidade, por sua orientação anti-religiosa. Três
quintos dos artigos são consagrados à crítica judeu-cristã. Os outros se dividem
entre artigos puramente filosóficos, como ‘Bem (tudo está)’; ‘Cadeia dos
Acontecimentos’; ‘Fim, Causas Finais’; ‘Idéia’; ‘Liberdade’; artigos de conotação
política, como por exemplo ‘Igualdade’; ‘Estados; Governos’; ‘Mestre’; ‘Tirania’;
artigos que tratam sobre problemas judiciais, como ‘Leis’; ‘Tortura’. Outros que
tratam de questões relativas à psicologia humana, como ‘Amor-próprio’; ‘Amizade’;
‘Glória’; ‘Orgulho’. O eixo principal é o da denúncia de imposturas, absurdos,
horrores da Bíblia, do estabelecimento do Cristianismo, da instrução religiosa.
Voltaire dessacraliza o Livro, do qual ele contesta a inspiração divina [...] 369 .

Segundo Trousson, este Dicionário é filosófico, no sentido em que o século XVIII


entendia algo como filosófico. Para Voltaire, ele deveria gerar uma “revolução nos espíritos”,
fundada sobre o “[...] exercício da razão, da lucidez crítica que permite de se desfazer dos
preconceitos, de se libertar de antigas sujeições, de pensar livremente” 370 . Vista dessa ótica, a
filosofia não é mais um domínio reservado a especialistas, mas uma atividade própria dos
homens, das pessoas, (des honnêtes gens). “Esses devem se ‘transformar em philosophes sem
se vangloriarem de o ser’” 371 .

367
VERSAILLE, André. “Voltaire: A necessidade de compreender e de fazer compreender.” In: VOLTAIRE.
Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. XXXV. Sobre essa afirmação, ver também:
TROUSSON, Raymond et al. (dir.) Dictionnaire Voltaire. Bruxelle: Hachette, 1994. p. 54.
368
TROUSSON, Raymond et al. (dir.) Dictionnaire Voltaire. Op. cit.. p. 54.
369
Ibid., p. 54-55. Quando Trousson diz que a obra em questão é uma “descontinuidade alfabética”, a
descontinuidade se refere aos temas e não à ordem alfabética em si.
370
Ibid., p. 55.
371
Id.

91
Nessa obra, - primeiro livro de bolso da história 372 , para facilitar sua circulação e
manuseio, que fora distribuído, dentre outros lugares, em bancos de praça, possibilitando o
acesso a todos, - muitos verbetes versam sobre a necessidade da educação. A própria maneira
em que a obra foi preparada e veiculada é testemunha da preocupação de Voltaire em educar
as pessoas. Esse livro tem um propósito: criticar e ridicularizar as crenças oficiais (civis e
eclesiásticas), o poder estabelecido e os costumes dos poderosos. Segundo Voltaire, no
prefácio que ele escreveu para uma das edições do Dicionário, esse é um livro útil, pois, “Os
livros mais úteis são aqueles que deixam espaço ao trabalho dos leitores; eles entendem os
pensamentos dos quais lhe apresentamos o gérmen; eles corrigem o que lhes parece
defeituoso e fortalecem pelas suas reflexões o que lhes parece fácil” 373 .

A estratégia de Voltaire, ao colocar “[...] tudo em dicionário 374 ”, faz com que os
assuntos se tornem mais atrativos, chamando, dessa forma, a atenção do leitor. Além disso, ao
praticar essa estratégia em seus escritos, ele concentra todas as suas forças em um único
ponto: “Ele pensa por artigos. [...] O movimento do espírito de Voltaire o condenaria ao
dicionário: por natureza, sua razão é uma ‘Razão por alfabeto’” 375 . As grandes obras desse
autor são organizadas, construídas em trechos, extratos curtos sobre um determinado assunto,
que tem em seu título o anúncio do que cada um desses trechos irá tratar. Esta fragmentação
seria, em efeito, um perigoso instrumento de polêmica. Porém, não se deve deixar de
considerar que, apesar de aparentemente sem nenhuma relação entre si, esses extratos fazem
parte de um todo, alicerçando-o, de modo que à retirada de qualquer um deles, “[...] todo o
edifício vem abaixo” 376 . Essa fragmentação, relativamente arbitrária, é auto-suficiente, visto
que “[...] abre-se o volume à letra que se quer. Benefício da descontinuidade: lê-se um artigo

372
Versaille explica que entre 1770 e 1772, isto é, após a publicação do Dicionário Filosófico, Voltaire
abandona a idéia de livro de bolso e publica Questions sur l’Encyclopédie, em nove volumes. Contudo, o
princípio dos fragmentos ordenados alfabeticamente é mantido. Este estilo de Voltaire não é um artifício literário
gratuito. Dessa forma, ele discute de maneira direta e familiar com o leitor e o convida a refletir com ele. De
acordo com Pomeau, Voltaire transformou o artigo de dicionário em gênero literário. Apesar da suposta
desordem, da suposta falta de continuação, suas obras apresentam uma coerência, mesmo que redigida em
fragmentos. Seus artigos podem ser lidos autonomamente e em seqüência. Isso ocorre, também, nas Cartas
Filosóficas, seu primeiro ensaio, no qual tece reflexões sobre questões da sociedade; em Commentaire sur le
livre ‘Des délits e des peines’; em Filósofo Ignorante, entre outras obras. “Tudo se passa como se este princípio
da descontinuidade na continuidade fosse a melhor maneira, para Voltaire, de se explicar”. (VERSAILLE,
André. “Voltaire: A necessidade de compreender e de fazer compreender.” In: VOLTAIRE. Dictionnaire de la
pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. XXXVII.).
373
VOLTAIRE. “Préface”. In: Dictionnaire Philosophique. Op. cit.. p. 20.
374
POMEAU, René. “Préface”. In: VOLTAIRE. Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit..
p. VIII.
375
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 92-93.
376
Ibid., p. IX.

92
sem se associar daquele que o precedeu ou que o segue” 377 . A disposição por artigos
apresenta a vantagem de recolher o real em sua desconcertante diversidade. O “patriarca de
Ferney” acumulara muito material para as suas grandes obras. A partir de todo esse saber,
anteriormente recolhido, Voltaire diverte-se com sua “Raison par alphabet” 378 . Ele assim
classifica essa obra: “[...] honestas reflexões alfabéticas [...]” 379 .

A ordem alfabética oferece uma leitura que não necessariamente precisa ser
continuada, seqüencial, dando a possibilidade de retornos, comparações entre alguns artigos.
Voltaire preconiza, com isso, uma leitura ativa. “Esse dicionário de idéias, que se dá por
objetivo, de maneira clássica, a instrução e o prazer, pertence à literatura. Ele visa menos à
exposição de um saber do que à apresentação, sob forma de ensaio ou de livre proposta,
opiniões, humores e reflexões de Voltaire” 380 . Estrategicamente falando, seu autor explora
muitas formas, nessa obra. Todas elas tendem a fazer do Dicionário uma máquina de guerra
de perigosa eficiência. “‘Eu escrevo para agir’, proclama Voltaire. Obra de uma arte
freqüentemente sutil, sempre surpreendente, o Dicionário Filosófico é profundamente
militante. O autor ousa pensar sem temor e, animado de uma vontade pedagógica, ele
pretende aprender [ensinar] a pensar ao seu leitor de boa fé” 381 . Mesmo que os seus ledores
não sejam capazes de compreender seus artigos na íntegra, ao menos eles terão achado que se
instruíram se divertindo.

Versaille, ao tratar da necessidade que Voltaire possuía de compreender e de se fazer


compreender, afirmou que mesmo espantando-se, maravilhando-se e tentando dar conta do
mundo, este philosophe não foi um homem contemplativo. “Diante das crenças estabelecidas,
dos hábitos de pensar, dos automatismos intelectuais, este bisneto de Sócrates não pára de
raciocinar para fazer refletir seu leitor: ‘É um grande prazer colocar sobre o papel seus
pensamentos, de compreender bem claro, e esclarecer os outros, esclarecendo-se a si

377
Ibid., p. VII.
378
POMEAU, René. “Préface”. In: VOLTAIRE. Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit..
p. X.
379
VOLTAIRE. Dicionário filosófico. 2ª ed. Tradução Bruno da Ponte et al.. São Paulo: Abril Cultural, 1978
(Coleção “Os Pensadores”). p. 293. Verbete: Tortura.
380
TROUSSON, Raymond et al. (dir.) Dictionnaire Voltaire. Bruxelle: Hachette, 1994. p. 55.
381
Ibid., p. 56. (grifo nosso).

93
mesmo’” 382 . Não é de se espantar, então, que ele publique um Dicionário Filosófico, no qual
discute os assuntos que o preocupam e propõe ao seu leitor o fruto de suas reflexões “[...]
mais exatamente de suas interrogações” 383 . Portanto, ao se questionar a intenção de Voltaire
com a publicação de um dicionário, a resposta a esse questionamento nos leva à mesma
resposta encontrada para o motivo das Memórias: esclarecer os homens para que essa
educação proporcionasse sua autonomia e, dessa forma, a convivência social fosse a menos
penosa possível.

Para que se possa ter uma idéia da intenção de Voltaire em seu Dicionário Filosófico,
faz-se necessário a exposição e análise de alguns de seus artigos. Com a exposição destes,
além de se ter uma visão geral de sua filosofia, tem-se a percepção do caráter pedagógico que
essa obra possui. Assim, Voltaire de um só golpe, divulga o seu pensamento e esclarece os
seus leitores. Em “Ateu, Ateísmo”, o philosophe expõe, logo em seu início, que o homem
instruído aprende a pensar e que a religião deve ter como função, ser um freio para as más
ações humanas em sociedade.

Por que será impossível uma sociedade de ateus? Porque se considera que homens
sem freio nunca poderiam fazer vida coletiva – viver juntos; que as leis nada podem
contra os crimes secretos – ocultos; que faz falta um Deus justiceiro que castigue,
neste mundo e no outro, os malvados que conseguiram ludibriar a justiça humana. [...]
Torna-se claro como a água que é indispensável a santidade dos juramentos [...]. É
indubitável que numa cidade civilizada é infinitamente mais útil haver uma religião,
por má que seja, a não haver nenhuma 384 .

Contudo, estas palavras não devem ser compreendidas como uma defesa do fanatismo,
das atrocidades que a religião, quando má, pode cometer. Voltaire diferencia o fanatismo do
ateísmo, afirmando ser o primeiro muito mais funesto e inspirador das paixões sanguinárias
do que o segundo 385 . Justamente por concluir que uma sociedade não pode subsistir sem uma
religião, o autor do Dicionário, apesar de escolher, ou melhor, de dizer que o fanatismo é pior
que o ateísmo, opõe-se ao ateu 386 porque é importante que se entenda Deus como necessário

382
VERSAILLE, André. “Voltaire: A necessidade de compreender e de fazer compreender.” In: VOLTAIRE.
Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. XXXIV. A citação entre aspas simples é uma
carta de Voltaire a D’Argenson, escrita em 14 de dezembro de 1770.
383
Id.
384
VOLTAIRE. Dicionário filosófico. Op. cit.. p. 104-105. Verbete Ateu, Ateísmo.
385
Cf.: Ibid., p. 105. Verbete Ateu, Ateísmo.
386
Para Voltaire, o ateu somente seria possível se virtuoso, ou seja, se fosse uma pessoa formada, educada,
esclarecida. Numa sociedade que já tivesse alcançado a Ilustração, que fosse ilustrada, o ateu não representaria

94
ao bem comum. Essa crença, como fora dito, servirá como um freio à maldade humana.
Quando não couber mais às leis humanas, terrenas, recorre-se às leis divinas, pois é “[...] em
absoluto necessário, para os governantes como para os povos, que esteja profundamente
gravada nos espíritos a idéia de um Ser supremo, criador, que premia e castiga” 387 . Vale
ressaltar que essa idéia de Deus como um freio às ações humanas não é, de maneira alguma,
incompatível com a luta voltairiana contra a “Infame”.

No verbete “Caráter”, Voltaire afirma ser o homem perfectível. A esse respeito ele
assim se expressa: “[...] podemos aperfeiçoar, burilar, esconder as virtudes e os defeitos com o
que a natureza nos dotou: nada mais” 388 . Essa perfectibilidade é possível através da educação.
No verbete “Consciência”, o filósofo diz que o homem possui uma disposição para receber
princípios morais e, estes princípios, geram a nossa consciência. Voltaire, nesta parte do
Dicionário Filosófico, concorda com o pensamento lockeano, segundo o qual o homem não
possui nem idéias nem princípios inatos. Em razão dessa constatação, é importante que se dê
ao homem uma boa educação, ou seja, que se passe da melhor maneira esses princípios
morais, para que o homem possa desenvolver sua consciência da forma mais acertada
possível. “Daí segue-se evidentemente precisarmos muito que nos ponham na cabeça boas
idéias e bons princípios, desde que possamos usar a capacidade do entendimento” 389 .

A nossa consciência é formada pela educação. Voltaire humaniza a consciência e tem


como princípio filosófico a idéia de que o homem é o que é através da educação que recebe.
Segundo Locke, o homem não possui nem idéias nem princípios inatos. Voltaire concorda
com o pensamento lockeano e, por conta disso, entende que é de extrema importância que se
dê ao homem uma boa educação, ou seja, que se passe da melhor maneira possível esses
princípios morais. “Daí segue-se evidentemente precisarmos muito que nos ponham na cabeça
boas idéias e bons princípios, desde que possamos usar a faculdade do entendimento. [...]
Resulta disso tudo que só temos a consciência que nos é inspirada pelo tempo e pelo exemplo,
por nosso temperamento, por nossas reflexões. O homem nasceu sem princípio algum, mas

nenhum mal aos seus membros, porque estes não necessitariam de freios externos para guiarem suas ações. Elas
seriam guiadas por seus raciocínios, por suas razões.
387
VOLTAIRE. Dicionário filosófico. Op. cit.. p. 105. Verbete Ateu, Ateísmo.
388
Ibid., p. 117. Verbete: Caráter.
389
Ibid. p. 125. Verbete: Consciência.

95
com a faculdade [disposição] de receber todos” 390 . Nesse mesmo verbete, o autor, ao tratar do
selvagem, que não terá nenhum problema de consciência ao comer outro selvagem que lhe
fora dado pelo próprio pai, expõe como fundamentos da sociedade civil a piedade e o poder
de compreender a verdade. “A natureza preveniu contra esse horror dando ao homem a
disposição para a piedade e o poder de compreender a verdade. Esses dois presentes de Deus
são o fundamento da sociedade civil [...] pais e mães dão a seus filhos uma educação que
logo os torna sociáveis e conscientes” 391 . É necessário que o homem receba esses bons
princípios, ou seja, receba uma educação para que possa conviver, de maneira pacífica, em
sociedade. Caso contrário, não é possível exigir que o homem seja sociável. Alguém precisa
incitá-lo, criar uma emulação, mostrá-lo como viver em comum com outros homens, civilizá-
lo. “Uma religião e uma moral puras, convenientemente inspiradas, modelam de tal forma a
natureza humana, que [...] não se pratica qualquer má ação sem que a consciência deixe de
reprová-la. [...] Na dúvida quanto à bondade ou à maldade de uma ação, abstém-te. [...] É,
portanto, muito bom de vez em quando despertar a consciência [das pessoas] com uma moral
que possa impressioná-los” 392 .

A leitura dos textos voltairianos leva seus leitores a perceber o projeto ilustrado, do
qual Voltaire era um dos maiores representantes, que pretendeu fazer com que os homens
pensassem por si mesmos, compreendessem o mundo e guiassem suas vidas, tendo como
objetivo o bem da sociedade. Porém, vale ressaltar dois verbetes importantes 393 para que se
compreenda o papel de Voltaire e dos seus companheiros da Ilustração e a relação existente,
nesse período, entre Literatura e Filosofia – relação essa que determina, sobremaneira, o que
pretendeu a Ilustração e, mais ainda, é a responsável pelos resultado obtido por esse
movimento: a revolução causada nos espíritos.

Em “Letras, Gente de Letras e Letrados”, é possível observar uma das distinções


existentes entre a Ilustração e a Aufklärung: a relação entre filosofia e Universidade 394 . Na
França isso não ocorreu. Os philosophes eram contrários à Sorbonne. Eles não tiveram
vínculos com a Universidade. Assim Voltaire expõe:

390
Id. (grifo nosso).
391
Id. (grifo nosso).
392
Ibid., p. 25-27. (grifo nosso).
393
Um desses verbetes será analisado aqui nesse capítulo. O outro, “Literatura”, no capítulo seguinte.
394
Esse aspecto fora discutido no capítulo primeiro.

96
As pessoas de letras que mais serviços prestaram ao reduzido número de entes
pensantes espalhados pelo mundo são letrados isolados, os verdadeiros sábios
encerrados em seus gabinetes que não argumentaram nos bancos das universidades
nem disseram coisas pela metade nas academias; e esses têm sido quase todos
perseguidos. A nossa miserável espécie é feita de tal maneira, que aqueles que
marcham em caminhos já batidos atiram sempre pedras aos que ensinam um
caminho novo 395 .

O que resta a esses pseudos letrados, segundo Voltaire, é fazer louvores a pessoas
importantes, dedicar poemas às amantes dos reis, porque os que se propõem a iluminar os
homens são esmagados pelos poderes secular e laico. Ou seja, os que “ensinam um caminho
novo”, em razão da inveja daqueles que permanecem trilhando caminhos “já batidos”, são
perseguidos, rotulados de “espíritos fortes”, “inovadores”, “rebeldes” que têm a ousadia de se
deixar seduzir pelas opiniões enganadas dos que têm olhos e duvidam da infalibilidade do
mestre que, por sua vez, não possui o sentido da visão e quer, a todo custo, fazer um juízo das
cores 396 .

A maior desgraça de um homem de letras não será talvez tornar-se o objeto dos
ciúmes dos confrades, a vítima da cabala, do desprezo dos grandes do mundo; a sua
maior desgraça é ser julgado por parvos. [...] O homem de letras está sem socorro;
[...] Todos os homens públicos pagam tributos à malignidade; mas são pagos em
dinheiro e em honras. O homem de letras paga igual tributo sem nada receber;
desceu à arena por prazer, a si mesmo se condenou às feras 397 .

Ou seja, os homens de letras, os philosophes, não tinham o poder ao seu lado e


precisavam, urgentemente, educar a sociedade para, dessa forma, instaurar o império da razão,
principal objetivo do movimento ao qual faziam parte. Ao tornar essa a sua principal função,
os philosophes, como afirmou Voltaire, condenaram-se a si mesmos ao “covil das feras”.

No verbete “Liberdade de Pensamento”, Voltaire cria um diálogo no qual os


interlocutores discutem acerca do tema que indica o título. Medroso afirma que “[...] como
não podem condenar-nos a um auto-de-fé pelos nossos pensamentos secretos, ameaçam-nos

395
VOLTAIRE. Dicionário filosófico. Op. cit.. p. p. 236. (grifo nosso). Verbete: Letras, Gente de Letras e
Letrados.
396
Ver: VOLTAIRE. “Petite digression”. In: Romans et Contes en vers et en prose. Op. cit.. p. 486.
397
Ibid., p. 236-237. Verbete: Letras, Gente de Letras e Letrados. Em sua obra Memórias, Voltaire explica que
os homens de letras só podem ser livres para escrever se tiverem condições financeiras de se manter, se forem
independentes. Cf.: VOLTAIRE. Memórias. Op. cit.. p. 59.

97
de sermos eternamente queimados por ordem do próprio Deus se não pensarmos como os
dominicanos” 398 . E Boldmind, interlocutor de Medroso, defende a posição de que se os
primeiros cristãos não tivessem tido a liberdade de pensar, não haveria Cristianismo. Ele diz a
Medroso: “A vós apenas cabe aprender a pensar; haveis nascido com espírito; [...] Quem não
sabe geometria, pode aprendê-la; qualquer homem pode instruir-se [...] Ousai pensar por vós
mesmo” 399 . Eis o Sapere Aude, lema da Ilustração, que orientou os passos dos philosophes, na
tentativa de educar os homens para que estes pudessem ousar saber e, assim, guiarem o curso
dos acontecimentos e de suas próprias vidas 400 . Como explicado por Voltaire no verbete
“Consciência”, os homens nascem com a disposição para receberem bons princípios, que são
passados através do exemplo, ou seja, da educação, e possibilitam que a consciência humana
seja formada. Nesse sentido, cabe ao homem ousar pensar por ele mesmo para, dessa forma,
sair da heteronomia, da menoridade em que se encontra.

Em “Necessário”, também escrito em forma de diálogo, Voltaire deseja falar do que é


imprescindível a todos os homens, e não das convenções, que mudam de lugar para lugar.
Logo, ele vai falar da Lei Natural. Para ele, há noções comuns, a todos os homens, que são
úteis para que estes vivam em sociedade. E, para terminar a série de verbetes que têm uma
estrutura literária, o intitulado “Leis civis e eclesiásticas” foi escrito em forma de aforismos,
que trazem, de uma maneira geral, a idéia voltairiana de que é possível educar pelo exemplo.
“Que os suplícios dos criminosos sejam úteis. Se um homem enforcado não serve para nada,
um homem condenado a trabalhos públicos serve ainda à pátria e constitui uma lição viva” 401 .

Portanto, a diversidade de temas que são expostos no Dicionário indicam a


preocupação do seu autor em tratar, de forma aparentemente simples, objetiva, inteligível, os
assuntos que podem levar os homens ao esclarecimento, uma vez que essa diversidade
permite, ao leitor, escolher sobre que assunto aprender, independente da ordem escolhida

398
VOLTAIRE. Dicionário filosófico. Op. cit.. p. 239. Verbete: Liberdade de pensamento.
399
Ibid., p. 240. Verbete: Liberdade de pensamento.
400
Sobre essa mesma idéia de que o homem pode pensar por si mesmo, bastando querer se esforçar para
aprender, posiciona-se Kant: “Esclarecimento [‘Aufklärung’] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele
próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro
indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de
entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere
aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [‘Aufklärung’].”
Cf.: KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento” (Aufklärung)? In: Textos Seletos. Op. cit..
p. 100. O Dicionário Filosófico foi publicado em 1764 e o texto de Kant em 1784, vinte anos depois.
401
VOLTAIRE. Dicionário filosófico. Op. cit.. p. 239. Verbete: Leis Civis e Eclesiásticas. (grifo nosso).

98
acerca do assunto. Não é preciso iniciar pelo primeiro verbete para, em seqüência chegar até o
último. Pode-se escolher qualquer um deles, não importando a ordem de sua apresentação.
Porém, essa mobilidade do espírito voltairiano, que lhe permitiu a universalidade dos temas,
foi também motivo de críticas. Alguns dos seus censores afirmam que os assuntos, em
Voltaire, foram tratados de maneira superficial. Contudo, acerca desse aspecto, como fora
indicado anteriormente, essas observações negativas feitas ao autor das Memórias não
procedem 402 . Voltaire não se recusa a nenhum debate. Não há uma questão sequer que não
seja filosófica para ele.

Sua obra é grandiosa, o que dá a falsa impressão de que ela é um “caos de idéias
claras”, uma vez que ele falou de tudo. Porém, poucas criações, dessa grandiosidade,
conseguem conservar uma coerência tão forte. Ao lê-la, em suas várias representações, ou
seja, em seus diversos livros, encontra-se as mesmas interrogações atormentadas, os mesmos
questionamentos. Voltaire preocupa-se com a inteligibilidade dos seus escritos. Ele fica
intrigado com a facilidade com a qual os homens inteligentes abandonam o seu senso comum,
afirmando que esses, tão cheios de sagacidade e de gênio, são formados de erros populares,
que os tornam fanáticos 403 . E é contra isso que se resume a sua missão: contra essa
predisposição do homem a entregar-se ao fanatismo. Eis o motivo de sua dedicação em educar
os seres humanos. O autor do Dicionário questiona o sentido mesmo do saber, entendendo
que essa acumulação pouco importa.

Se a história, por exemplo, resume-se a um catálogo de fatos insignificantes, ela é


apenas uma ciência inútil. [...] Uma certa forma de erudição é mesmo inteiramente
perniciosa: ao sobrecarregar um espírito de noções absurdas e ininteligíveis, a gente
o tornaria, sem dúvida, sutil, mas não inteligente. Ao contrário, é esta sutileza
mesma que o impede de ver as coisas como elas são, que o fará oscilar ‘da
ignorância selvagem à ignorância escolástica’ 404 .

Tudo para Voltaire merece questionamento e, é sobre este princípio que ele redige o
Dicionário Filosófico. “Entretanto, contrariamente ao princípio geral do dicionário, que se

402
A esse respeito, ver discussão anterior feita sobre a profundidade e solidez do pensamento voltairiano, na
página 73, nota 273.
403
VERSAILLE, André. “Voltaire: A necessidade de compreender e de fazer compreender.” In: VOLTAIRE.
Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. XXXVIII-XXXIX.
404
Ibid., p. XXXIX.

99
consulta para achar respostas às suas questões [...] 405 ”, os artigos dessa obra levam os leitores
a se depararem com novos questionamentos. Seu autor não dá respostas aos que o lêem, mas
os ensina a duvidar, porque é pela dúvida que se aprende a pensar. Ele faz com que, ao lerem
aquele livro, os leitores observem as questões a partir do ângulo da razão e da experiência.
Não se trata mais de meditar sobre as coisas, mas sim de experimentá-las 406 . Isso explicaria a
quantidade de exemplos que Voltaire fornece, ao tratar de um determinado assunto. A
linguagem metafísica não possui relação com a realidade. Ao escrever, Voltaire parece
chamar o leitor, o tempo inteiro, para o mundo; por essa razão ele faz com que se
experimentem as coisas, tornando, assim, sua linguagem inteligível aos olhos do leitor, uma
vez que este consegue estabelecer relações do que é dito por Voltaire e o seu universo.
Inclusive, em sua vigésima quinta carta das Cartas Filosóficas, que se destina a falar sobre os
pensamentos de Pascal, o autor explica que “Uma comparação [...] serve [...] na prosa, para
esclarecer e para tornar as coisas mais sensíveis” 407 . Através da comparação – que além de
tornar as coisas muito mais claras estabelece a relação entre as idéias e o mundo,
possibilitando o acesso de um número maior de pessoas ao que foi escrito – Voltaire coloca
em atuação o seu projeto pedagógico-civilizatório, visando submeter o mundo ao império da
razão, ao fazer com que os homens se esclareçam. “Suas Cartas Inglesas [Filosóficas]abrem
uma nova era na história de seu pensamento, e, [...] no pensamento francês”408 .

Como descrito no tópico anterior, a preocupação de Voltaire era com a razão e a


verdade. Nas Cartas Filosóficas, doravante analisada, isso aparece de maneira clara porque
esta obra, escrita quando do seu exílio na Inglaterra, publicada no ano de 1734, tem como
objetivo contrapor os costumes dos ingleses ao dos franceses, mostrando que há o que se
elogiar e se criticar tanto na Inglaterra quanto na França. Este escrito não é, como os poderes
Laico e Secular francês querem fazer acreditar, um livro preocupado em criticar a França em
detrimento da Inglaterra. Voltaire critica o que deve ser criticado e elogia o que deve ser
elogiado em ambos os países. O que há nas Cartas Filosóficas é, em grande parte, uma
preocupação com a educação dos homens. A contraposição que ocorre entre os costumes
ingleses e os costumes franceses se dá como uma espécie de “pano de fundo” para que
Voltaire possa afirmar, a todo instante, a preocupação com a instrução, com a formação da

405
Id.
406
Id.
407
VOLTAIRE. Cartas Filosóficas. Op. cit. .p. 56.
408
BERL, Emmanuel. “Préface”. In:VOLTAIRE. Mélanges. Op. cit.. p. XV.

100
humanidade. Ao confrontar os dois países, ora elogiando, ora criticando, ele está, através do
exemplo, educando, mostrando como se deve e como não se deve agir.

O exílio inglês (1726-1728), no que diz respeito à instrução, é salutar para Voltaire,
fazendo com que ele herde as lições da vida e do pensamento inglês. Contudo, ele é acusado
de “mau patriota” porque pretendeu à tragédia, ao pensamento, ao caráter dos franceses um
pouco de “[...] energia da nação inglesa, inimiga hereditária [da França]” 409 . Seu erro foi
acreditar que poderia transformar os homens sem que eles se queixassem. Ele próprio não
tinha a noção exata da força de seu estilo. Por conta disso, não enxergava problema algum nas
Cartas e imaginava que teria a autorização tácita de as publicar. Porém, essa obra foi a que
rendeu a Voltaire o caminho da oposição; ele passa a ser classificado como um autor suspeito.
“O signo de sua reprovação, é que a capital, após o alerta de 1734, [expede-se um mandado
para a sua captura em razão do escândalo causado pela publicação das Cartas Filosóficas] não
é mais, para ele, uma estada segura” 410 . O parisiense não pode mais viver continuamente em
Paris. Inicia-se sua permanência em Cirey porque a insolência voltairiana, quando elogia o
“[...] pluralismo tolerante das religiões inglesas e a correção moral de seus costumes ao passo
em que critica a ausência desses elementos na cultura religiosa francesa [...] 411 ”, descontenta
o Parlamento Francês, que o pune, ao condenar as Cartas; considerada por Lepape como “[...]
um autêntico manifesto em favor das virtudes da liberdade e da tolerância” 412 .

A estrutura dessa obra pode ser assim descrita: são vinte e cinco cartas, nas quais as
quatro primeiras versam sobre os Quacres 413 , seus costumes, seus rituais e sua tolerância
religiosa. Na quinta carta, Voltaire trata da Religião Anglicana, “Aqui é o país das seitas. Um
inglês, como homem livre, vai para o céu pelo caminho que lhe agradar” 414 . Contudo, essa
aparente tolerância religiosa é desmascarada por Voltaire, ao afirmar, logo em seguida, que
para se ter um emprego, na Inglaterra ou na Irlanda, é preciso fazer parte da Igreja
Anglicana 415 . A sexta, discorre sobre os presbiterianos; também trata da “falsa” tolerância,
mas, ao final da carta, ele explica que se comparar com a França, existe uma tolerância

409
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 26.
410
Id.
411
MOTA, Vladimir de Oliva. Voltaire e a crítica à Metafísica. Op. cit.. p. 23-24.
412
LEPAPE, Pierre. Voltaire: o nascimento dos intelectuais no Século das Luzes. Op. cit.. p. 90.
413
Religiosos ingleses.
414
VOLTAIRE. Cartas Filosóficas. Op. cit. .p. 9.
415
Cf.: Id.

101
religiosa na Inglaterra, mesmo não sendo a tolerância ideal. Segundo Voltaire, se houvesse
apenas uma religião, o despotismo seria terrível, mas como são várias, elas vivem em paz,
umas com as outras 416 . A sétima carta, que fala sobre os Socinianos, Arianos ou
Antitrinitarianos, discute sobre a Trindade. A partir da oitava carta, o teor religioso deixa
espaço para o político; essa versa sobre o Parlamento inglês. Comparando a Inglaterra com
Roma, Voltaire elogia a primeira ao afirmar que nessa, o fruto das guerras é a liberdade,
enquanto que na outra, é a escravidão 417 . A nona, intitulada “Sobre o Governo” e a décima,
“Sobre o Comércio”, continuam louvando as instituições inglesas, sempre as comparando
com as francesas, principalmente no que diz respeito à discriminação que sofre, na França, os
que não são nobres. Em outros países isso também acontece; na Inglaterra, não418 . A décima
primeira carta expõe uma prática inglesa criticada pela Europa cristã: a inoculação da varíola.
As próximas sete cartas versam sobre assuntos que dizem respeito direto à filosofia. Seus
títulos são: “Sobre o Chanceler Bacon”; “Sobre o Sr. Locke”; “Sobre Descartes e Newton”, na
qual Voltaire contrapõe o francês e o inglês, afirmando ser, esse último, o que guia a sua
filosofia, e não o seu conterrâneo; “Sobre o Sistema da Atração”; “Sobre a Óptica do Sr.
Newton”; e, para fechar essa série de temas que se relacionam, “Sobre o Infinito e sobre a
Cronologia”. A décima oitava, inicia o surgimento de uma nova temática: a literatura; essa
carta trata da tragédia, fazendo críticas a autores ingleses, e discute acerca das traduções,
mostrando que elas não devem ser literais e que isso acaba enfraquecendo o sentido, a beleza
dos trechos escritos em outra língua 419 . Na décima nona, o assunto é a comédia e Voltaire
elogia alguns autores ingleses. Na vigésima, que tem como título “Sobre os Senhores que
Cultivam as Letras”, seu autor, mais uma vez, elogia a Inglaterra e critica a França, afirmando
que no continente as Letras são menos honradas do que na Ilha 420 . As cartas subseqüentes
continuam na mesma temática, versando sobre autores como o Conde Rochester e o Sr.
Waller; o Sr. Pope e alguns famosos poetas; a consideração que se deve ter pelos homens de
Letras até que, na vigésima quarta, o assunto é a Academia. Para encerrar, Voltaire, em sua
vigésima quinta carta, discorre sobre os Pensamentos de Pascal; trazendo trechos dessa obra e
refutando-os um a um.

416
Cf.: Ibid., p. 11.
417
Ver: Ibid., p. 13.
418
Cf.: Ibid., p. 14-16.
419
Ver: Ibid., p. 34-35.
420
Cf.: Ibid., p. 38.

102
Na primeira carta, intitulada “Sobre os Quacres”, Voltaire deixa transparecer o desejo
de conhecer os costumes desses religiosos, para, a partir de então, poder estabelecer uma
relação entre essa religião e a do seu país. Há, nesta carta, a vontade de se formar em relação
ao costume do outro, de se educar pelo exemplo 421 . Ou seja, Voltaire parece demonstrar estar
interessado em conhecer os costumes dessa religião. Somente a partir de então ele pode fazer
um contraponto entre a religião católica e a dos Quacres. Contudo, vale ressaltar que mesmo
maravilhado com a realidade dessa religião, Voltaire não se deixa levar pelo entusiasmo e
consegue enxergar os problemas existentes nos Quacres: “Eis como meu santo homem
abusava especiosamente de três ou quatro passagens das Santas Escrituras que pareciam
favorecer a sua seita, mas com a melhor boa fé do mundo esquecia uma centena de passagens
que a esmagavam” 422 . É importante chamar a atenção para a ironia com a qual Voltaire trata
de alguns assuntos; ironia essa que facilita na compreensão de algumas críticas.

Ainda sobre o mesmo tema, os Quacres, na segunda carta Voltaire afirma que os
homens devem ser formados 423 . Na sétima carta, sobre os Socinianos ou Arianos ou
Antitrinitários, Voltaire continua afirmando que o homem precisa educar-se 424 . Na décima
primeira carta, sobre a inoculação da varíola, o autor expõe que somente a educação banirá a
superstição e o preconceito. O filósofo diz que o homem, quando educado, consegue discernir
entre o que é bom e o que é ruim 425 . Milhares de pessoas morreram de varíola, na França, por
conta do preconceito.

O príncipe de Soubise, de saúde brilhante, não teria sido levado aos vinte e cinco
anos. Monsenhor, avô de Luís XV, não teria sido enterrado aos cinqüenta. Vinte
mil pessoas, mortas de varíola em 1723 em Paris, ainda viveriam. Como?! Então os
franceses não amam a vida?! Suas mulheres não se preocupam com a beleza?! Na
verdade somos gente estranha! Talvez daqui a dez anos adotemos o método inglês,
se os curas e os médicos permitirem. Ou então, daqui a três meses, por puro
capricho, os franceses se servirão da inoculação, se por inconstância os ingleses
estiverem enjoados dela 426 .

421
Ver: Ibid., p. 3-4.
422
Ibid., p. 4. (grifo nosso). Percebe-se, logo no início das Cartas, que essa obra não estava interessada em
elogiar a Inglaterra, mas analisar algumas práticas inglesas, comparando-as com a França. Nesse sentido, em
alguns momentos Voltaire elogia a Inglaterra; em outros, critica.
423
Cf.: Ibid., p. 5.
424
Cf. Ibid. p. 11-12.
425
Cf. Ibid. p. 16-18.
426
Ibid., p. 18.

103
Na carta de número vinte e três, intitulada “Sobre o Sr. Locke”, Voltaire afirma que o
número de pessoas que pensam, que refletem, é infinitamente pequeno. Desta forma, é
extremamente difícil mudar alguma coisa, no que diz respeito aos assuntos que interessam à
sociedade,. Para que haja uma mudança este número deve aumentar consideravelmente
porque “O número dos que pensam é excessivamente pequeno e não têm a lembrança de
perturbar o mundo” 427 . Portanto, é necessário educar os homens para que eles possam, dessa
forma, “perturbar o mundo”, tornando a vida em sociedade feliz.

A série das cartas destinadas a falar da literatura inicia versando sobre a Tragédia.
Voltaire faz uma crítica mordaz a Shakespeare e aos textos ingleses que fazem parte desse
gênero, apontando que “A veneração pelo antigo cresce à medida que cresce o desprezo pelos
modernos” 428 , esses viciam o espírito humano. As tragédias inglesas são descritas como “[...]
palhaçadas, feitas para a canalha mais vil” 429 . Já a carta que trata da comédia, que se segue à
anterior, faz um elogio a alguns escritores ingleses, influenciadores do teatro francês, e
ressalta, novamente, uma vez que fizera isso na carta anterior, a importância das peças teatrais
para a educação do homem. Voltaire afirma que “[...] é preciso que se faça justiça e que,
numa peça de teatro, o vício deva ser punido e a virtude recompensada [...]” 430 .

Na vigésima carta, o philosophe expõe que “Atualmente parece que o gosto da corte
nada tem a ver com o das letras. Talvez com o tempo a moda de pensar volte – basta que um
rei queira. Faz-se dessa nação [França] tudo o que se quiser” 431 . Esse extrato dá uma idéia do
motivo pelo qual essa obra fora banida da França e o seu autor obrigado a se refugiar em
Cirey. Porém, essa não foi a única razão que levou o livro a ser condenado e,
conseqüentemente, seu autor. Na vigésima primeira carta, Voltaire trata da preocupação com
a conduta dos homens e da importância das artes na educação, que gera, como conseqüência,
a valorização das artes, tornando-as respeitáveis, aos olhos do povo, “[...] que precisa ser
corrigido pelos grandes [...]” 432 . Mas, no entanto, em seguida, ele mostra que isso não
acontece porque “[...] se regula menos por eles [os grandes] na Inglaterra do que em todos os

427
Ibid., p. 23.
428
Ibid., p. 33.
429
Ibid., p. 34.
430
Ibid., p. 36.
431
Ibid., p. 37-38.
432
Ibid., p. 40.

104
outros lugares” 433 . Essa afirmação colabora para a interpretação de que essa obra, agora
analisada, não tinha como principal preocupação elogiar a Inglaterra e criticar a França. Seu
principal objetivo era educar os seus leitores, como afirmado anteriormente, mostrando o que
havia de bom e de ruim em ambos os países. Em outros trechos, na carta vinte e dois, por
exemplo, aparece o seguinte comentário, a respeito da Itália, da Inglaterra e da França: “Não
sei a qual das três nações devemos dar preferência, mas feliz daquela que sabe perceber suas
diferenças” 434 .

E, finalmente, na última carta, a de número vinte e cinco, ao analisar e criticar trechos


do livro Pensamentos, de Pascal, Voltaire demonstra a sua grande preocupação com a moral,
afirmando que o homem deve ser educado para viver moralmente em sociedade. O homem
possui uma disposição para receber, através de uma boa educação, os princípios morais. A
união das disposições com esses princípios gera a consciência. Por isso, o homem precisa
aprender determinados valores para que, assim, possa conviver em sociedade. O amor pelo
seu semelhante e o amor-próprio são dois importantes sentimentos que precisam ser ensinados
ao homem, para que as sociedades possam existir; uma vez que as disposições nascem com
ele, mas é necessário que uma boa educação o dê os princípios morais necessários para gerar,
juntamente com as disposições, a consciência humana.

É preciso amar as criaturas, e amá-las ternamente. É preciso amar sua pátria, sua
mulher, seus pais, seus filhos. É preciso amá-los tão bem que Deus nos faz amá-los
malgrado nós mesmos. [...] é tão impossível que uma sociedade possa formar-se e
subsistir sem o amor-próprio quanto seria impossível gerar filhos sem
concupiscência, nutrir-se sem apetite etc. O amor por nós próprios preside o amor
pelos outros. Nossas múltiplas carências nos tornam úteis ao gênero humano [...].
Sem amor-próprio não haveria invenção da arte, nem formação de uma sociedade
de dez pessoas. É o amor-próprio, dom da natureza para cada animal, que nos
adverte para respeitarmos o dos outros 435 .

Esse amor-próprio, aliado ao amor pelo outro, é importante para a manutenção dos
homens. As leis jurídicas dirigem o homem em sociedade; a educação o ensina princípios
morais. E, essa importância dada à moral alia-se, em consonância, com a idéia de que “[...] o
homem nasceu para a ação” 436 , portanto, ele deve se aprimorar para, dessa maneira, poder

433
Id.
434
Ibid., p. 42.
435
Ibid., p. 49.
436
Ibid., p. 51.

105
conviver de forma correta com os outros homens em sociedade, para que possa agir e sua ação
não tenha, como conseqüência, um prejuízo ao outro. A importância dada à educação vai
permear grande parte das vinte e cinco cartas que compõem a obra, uma vez que sendo
educado, civilizado, o homem saberá como conviver com os outros de maneira pacífica,
possibilitando uma felicidade e bem-estar social.

Essa constante preocupação com a educação dos homens, sobretudo os seus


contemporâneos, faz-se presente porque os problemas que existiam, em sua época,
perturbavam Voltaire. Um exemplo disso são os casos de fanatismo e intolerância religiosa
que eram comuns, na França, nesse período. A partir do caso Calas, a tolerância passa a ser o
centro da doutrina do philosophe. Ele não acredita mais no princípio de bondade,
benevolência e não está mais certo do triunfo da razão. “Ele mede melhor que ninguém, em
seu tempo, as ameaças às quais a pressão permanente da crueldade e do fanatismo expõe a
civilização. [...] A tolerância é, para Voltaire, o remédio específico das doenças específicas às
quais nossa civilização corre o risco de sucumbir” 437 . Fazendo uma rápida referência ao
Dicionário Filosófico, o verbete “Tolerância” assim especifica o que é essa importante
virtude, necessária a todas as sociedades, para que estas possam existir de maneira pacífica e
feliz: “O que é a tolerância? É o apanágio da humanidade. Somos todos cheios de fraqueza e
de erros; perdoemo-nos reciprocamente as nossas tolices, tal é a primeira lei da natureza” 438 .
Ou seja, os homens precisam ser tolerantes, uma vez que a diversidade é uma das principais
marcas que uma sociedade possui; e, para além disso, o ser humano possui diversas fraquezas,
que os leva a cometer erros. Portanto, os erros devem ser, em certa medida, tolerados.

No verbete “Tortura”, Voltaire narra o caso La Barre, outro exemplo de intolerância e


fanatismo, e afirma que isso não aconteceu nem no século XIII muito menos no XIV, mas no
século da razão, da filosofia, o XVIII; e que as nações estrangeiras julgam a França levando
em consideração sua cultura e ignoram que “[...] no fundo não há nação mais cruel que a
francesa” 439 . O que aconteceu a La Barre foi assim descrito por Voltaire:

437
BERL, Emmanuel. “Préface”. In:VOLTAIRE. Mélanges. Op. cit.. p. XXVI-XXVII.
438
VOLTAIRE. Dicionário filosófico. Op. cit.. p. 290. Verbete: Tolerância. Voltaire demonstra, ao término
desse verbete, possuir a mesma opinião de Bayle (ver nota 47 do primeiro capítulo); qual seja: quanto mais
religiões coexistirem, mais paz e tolerância haverá. Se houver apenas duas, “[...] hão de cortar-se o pescoço”.
Ibid., p. 291.
439
Ibid., p. 294. Verbete: Tortura.

106
Quando o cavaleiro de La Barre, neto de um tenente dos exércitos, jovem de muito
espírito e de grandes esperanças mas [sic] com toda a leviandade de uma juventude
desenfreada, foi reconhecido culpado por ter cantado algumas canções ímpias e até
de ter passado diante de uma procissão de capuchos sem tirar o chapéu, os juízes de
Abbeville, pessoas comparáveis aos senadores romanos, ordenaram não só que lhe
arrancassem a língua, que lhe cortassem a mão e que o queimassem lentamente,
como o submeteram ainda à tortura para averiguarem precisamente quantas canções
tinham cantado e quantas procissões tinha visto passar de chapéu na cabeça 440 .

Esse não foi o primeiro nem o último caso violento de intolerância e de fanatismo
ocorrido no século XVIII. Como já fora dito, o caso o Calas – que teve uma repercussão
estrondosa por conta da intervenção de Voltaire – também ocorreu no mesmo período. Essas
diversas atrocidades, cometidas pelo sistema judiciário francês, criaram em Voltaire uma
sensibilidade muito viva à injustiça. Ele chegou a escrever um comentário, que
posteriormente serviu como prefácio à obra Dos Delitos e das Penas, de autoria do italiano
Beccaria 441 , que sugeria uma proporcionalidade entre o ato criminoso e a pena que deveria ser
cumprida pelo infrator da lei. As idéias do jurista foram bem aceitas na França, talvez porque
os atos criminosos, injustos, intolerantes e fanáticos praticados pelo judiciário estavam se
transformando em uma escandalosa prática rotineira.

Contudo, é importante ressaltar que Voltaire dirige o seu ataque, as suas forças,
essencialmente à Infame 442 , não especificamente à religião. “‘Pode-se melhorar a religião’, tal
é a sua convicção e tal é o sentido de sua ação” 443 , uma vez que a religião degenerou em
fanatismo. O autor do Tratado sobre a Tolerância lança-se com furor (verbal) contra essa sua
inimiga (a Infame). Ele se exprime nas últimas conseqüências, como se tivesse ido longe
demais. Contra a infame, deve-se educar o povo. Nesse momento, ele não fala como
historiador 444 , mas como um polemista passional. Porém, quando ele passa a conclusões
concretas a respeito do problema discutido, ele retoma o seu sangue frio 445 . “Voltaire sabe
mobilizar a opinião pública em nome da justiça, ao mesmo tempo que alertava para o grande
perigo do fanatismo” 446 . A intervenção de Voltaire, no caso Calas, demonstra o poder que o

440
Id.
441
POMEAU, René. “Préface”. In: VOLTAIRE. Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit..
p. XIV.
442
Sobre Infame, ver nota 34 do capítulo primeiro.
443
Ibid., p. XVIII.
444
Acerca de Voltaire como historiador, será visto mais adiante.
445
POMEAU, René. “Préface”. In: VOLTAIRE. Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit..
p. XIX.
446
SOUZA, Maria das Graças de. Voltaire: a razão militante. Op. cit.. p. 16.

107
philosophe tinha em motivar a opinião pública a abraçar uma causa em prol da humanidade,
da felicidade dos homens em sociedade. Pomeau afirma que Voltaire conseguiu, e isso já é
uma prova de seu poder persuasivo, transformar o “processo” Calas em affaire, “caso” Calas,
sensibilizando, assim, a opinião pública, por um grande esforço polêmico. “Após o caso
Calas, a tolerância transformara-se em um desses princípios que só contestam os espíritos
bizarros ou fanáticos” 447 . É a partir desse caso que data a imensa popularidade de Voltaire.
Ele, além de defensor da família Calas, transforma-se em símbolo da esperança popular. “Na
República francesa das letras, Voltaire fundaria um principado do grande escritor: ‘iluminado’
[...] conjuntamente com seu inimigo Jean-Jacques Rousseau, habituou os franceses a esperar
do gênio literário, outra coisa que divertimentos: uma direção de consciência” 448 . Ou seja, a
literatura não serviria apenas para o prazer, para o divertimento; mas, também, para ativar a
consciência, para direcioná-la. Esse direcionamento não será pautado num dogma ou numa
crença irrefletida, mas na certeza de que o homem, possuidor de razão, é capaz de progredir,
de transformar-se, enfim, de educar-se. O investimento de Voltaire baseia-se nessa capacidade
humana, que ele deseja desenvolver e impulsionar. A literatura é o instrumento; a
transformação de um modo de pensar, o alvo.

Voltaire não poderia permanecer quieto diante da tamanha atrocidade cometida com os
membros dessa família. As circunstâncias desse caso abalaram fortemente os nervos do
“Apóstolo da tolerância” 449 . A tortura cometida com Jean Calas fora excessiva. Aliás, tortura
excessiva é já uma redundância. Voltaire conceitua essa prática como sendo uma “[...]
estranha maneira de interrogar pessoas” 450 . Diversas personalidades da época, como o
marechal Richelieu, o cardeal de Bernis, o presidente de Brosses, aconselharam-no a desistir
desse “[...] obscuro huguenote toulousiano” 451 .Um pouco antes, de acordo com Pomeau,
Rousseau fora solicitado por um protestante chamado Ribaute, para que ele interviesse em
favor do Pastor Rochette – outra vítima da intolerância e do fanatismo na época –, mas o autor
do Emílio (1759) recusou-se a participar dessa campanha. Voltaire, “[...] ardente de
indignação, lançou-se na luta” 452 .

447
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 33.
448
Ibid., p. 34. (grifo nosso).
449
Assim Salinas Fortes se refere a Voltaire, quando trata da sua atuação política. Cf.: FORTES, Luiz Roberto
Salinas. O iluminismo e os reis filósofos. Op. cit. p. 41.
450
VOLTAIRE. Dicionário filosófico. Op. cit.. p. 293. Verbete: Tortura.
451
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 38.
452
Id.

108
Voltaire formou o seu pensamento, a sua filosofia em contato com as circunstâncias.
Estas o levaram a detestar o fanatismo, a intolerância. “Em Ferney, ele tinha febre, todos os
anos, no aniversário de São Bartolomeu” 453 . Ele nutrira um amor pela humanidade. Nesse
sentido, a tortura era algo intolerável para ele, “Tudo isso que mutila seu próximo, em sua
carne ou em seu ser moral, faz sofrer Voltaire. [...] Sua sensibilidade exige que os homens,
seus semelhantes, tenham direito de respirar, de viver, de ser feliz” 454 . Para ele, é uma infâmia
aplicar, ainda no século XVIII, no século da filosofia, penas bárbaras que são
desproporcionais aos delitos cometidos. Por apostar na generosidade humana universal, já que
acreditava na moral universal 455 , Voltaire impulsionou sua luta, que o levou a escrever em
favor do homem. Essa foi a principal preocupação de toda a sua vida, fazendo-o ousar tomar o
partido da humanidade 456 . O seu alvo não são os inofensivos “convulsionários”; destes, ele
zomba 457 ; mas, os devotos fanáticos e intolerantes.

Tendo sido publicado em abril de 1763, o Tratado sobre a Tolerância foi proibido na
França. Como exposto anteriormente, esse texto trata da tolerância partindo de um caso de
intolerância religiosa praticado em Paris, que culminou na condenação de Jean Calas à morte,
tendo sido executado em 10 de março de 1762. Voltaire consegue, com essa obra, não
somente a reabilitação de Jean Calas; mas, uma revolução nos espíritos que, doravante,
clamam pela tolerância. Pomeau afirma que Voltaire “[...] não esperou o processo Calas para
se preocupar com a tolerância. A questão já agitava o meio em que ele foi criado: é notório o
clima de discussões religiosas e de perseguições em que terminou, durante a juventude de
Arouet, o longo reinado de Luís XIV” 458 .

Quando da leitura desse Tratado, observa-se o ambiente em que se encontrava a


França naquele período, no qual o poder tinha a plena convicção de que poderia atormentar a
vida das pessoas por conta de suas crenças, e os que sofriam mais com essas perseguições

453
Ibid., p. 39. Em outra obra, Pomeau assim escreve a esse respeito: “Ele, que nunca suportou a idéia de
crueldade, acaba por, nos seus velhos dias, indignar-se com uma patética veemência que se degolam idiotas para
colocar em uma caçarola! Seu anticlericalismo [...] toma uma forma mórbida. A partir de 1769, Voltaire sente
febre no dia de São Bartolomeu”. (POMEAU, René. La religion de Voltaire. Op. cit.. p. 271.).
454
Ibid., p. 83-84.
455
Princípios morais que são comuns a todos os homens.
456
VOLTAIRE. Cartas Filosóficas. Op. cit. .p. 46.
457
Sobre esse assunto ver: MOTA, Vladimir de Oliva. Voltaire e a crítica à metafísica. Op. cit.. E também, o
texto de Voltaire intitulado “Providência”. (VOLTAIRE. “Providência”. Tradução Vladimir de Oliva Mota. In:
Philosophica: Revista de Filosofia da História e Modernidade. São Cristóvão, Nº 3, março, 2002.).
458
POMEAU, René. Introdução. In: VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. Tradução Paulo neves. São
Paulo: Martins Fontes, 1993. p. VII.

109
eram os protestantes; Jean Calas é um ícone que bem representa essas perseguições. “Drama
da intolerância por certo. Voltaire tinha toda razão em escolhê-lo como ponto de partida de
sua campanha contra a perseguição religiosa. A família Calas sofrera as coerções da
legislação antiprotestante. Foi esta que criou as condições do drama” 459 . Vários
questionamentos deveriam ter sido levantados pela justiça; contudo, o inquérito seguiu apenas
uma orientação, que levava a uma única interpretação: crime calvinista. Isso gerou
sentimentos de intolerância, que foram determinantes para a sentença.

A condenação e o assassinato de Calas podem ser assim resumidos: Jean Calas era
negociante em Toulouse há mais de 40 anos. Reconhecido por todos que com ele viveram
como um bom pai, tinha 68 anos de idade, era protestante e vivia com sua mulher e os seus
filhos: quatro homens e duas mulheres. Apenas um deles não convivia com a família. Calas
parecia uma pessoa afastada desse absurdo, que era o fanatismo, ao ponto de manter em sua
casa uma empregada católica e aceitar a conversão de um de seus filhos, Louis, ao
catolicismo.

Seu filho mais velho, chamado Marc-Antoine, era um homem de letras e diziam que
possuía um espírito inquieto, sombrio e violento. Esse jovem, não conseguindo adequar-se ao
comércio e nem ser aceito como advogado, porque se exigia certificado de catolicidade –
certificado este que ele não pôde obter, por ser protestante –,decide acabar com a própria vida.
Ele comenta a decisão com um amigo e obtêm a certeza desta através de leituras acerca do
suicídio. No dia 13 de outubro de 1761, o primogênito da família Calas resolveu executar seu
plano, após ter perdido um dinheiro no jogo. Em sua casa estava, como convidado para o
jantar, um amigo seu, chamado Lavaisse, jovem de 19 anos, conhecido pela candura e
delicadeza de seus hábitos.

Após a ceia, retiraram-se todos para uma pequena sala. Marc-Antoine desapareceu.
Quando o jovem Lavaisse resolveu ir embora, Pierre Calas, irmão de Marc-Antoine, o
acompanhou até a saída. Eles desceram uma escada e encontraram no térreo, junto à loja de
Jean Calas, Marc-Antoine de camisolão, enforcado, pendurado numa porta e sua roupa
dobrada sobre o balcão. Seu camisolão estava em perfeito estado, os cabelos bem penteados,
não havia no corpo nenhum arranhão, ferimento ou machucado.

459
Ibid., p. XIV-XV.

110
Esses detalhes só deixavam a concluir que o pai, e ninguém que estivesse presente na
casa no dia da tragédia, teria alguma culpa do ocorrido. Realmente, o jovem havia se
suicidado. Porém, não foi isso que os magistrados de Toulouse decidiram entender e, o pai,
Jean Calas, fora condenado à morte – sendo antes severamente torturado – e a perder todos os
bens de sua família. “E isso em nossos dias! E isso num tempo em que a filosofia fez tantos
progressos! E isso quando cem academias escrevem para inspirar a suavidade dos costumes!
Parece que o fanatismo, indignado com os recentes êxitos da razão, debate-se com maior furor
a seus pés” 460 .

A atrocidade da sentença e os pormenores desse assassinato judicial afetam os ânimos


de qualquer espírito que não seja fanático. Com relação à condenação decretada pelo tribunal;
que não condenara à mesma sentença todos os envolvidos no caso, como deveria ser, se
realmente as investigações confirmassem a culpa deles, o que não aconteceu; resume Pomeau:
“Mas o tribunal não ousou ir tão longe. Condena em 9 de março de 1762 apenas Jean Calas a
ser ‘quebrado vivo’, depois estrangulado e ‘atirado numa fogueira ardente’. ‘Esta última
pena’, especifica a sentença, ‘é uma reparação à religião cuja feliz escolha feita pelo filho foi
verossimilmente a causa de sua morte’. Assim, Jean Calas foi condenado a uma morte atroz
com base numa mera ‘verossimilhança’” 461 . Os juízes adiaram por um dia a execução do
comerciante calvinista, na esperança que ele confessasse, o que não ocorreu. No dia 10, o
condenado teve seus membros esticados por talhas até serem completamente quebrados e foi
obrigado a ingerir dez moringas de água para que confessasse seu crime. Mais uma vez, isso
não acontece. Na roda, deitado com o rosto voltado para o sol e tendo os seus membros
estilhaçados por golpes de barra de ferro, agonizando durante horas, o padre Bourges, que
estava ali para ser o confessor do réu, não testemunha nada, além da “[...] firmeza de alma de
Jean Calas” 462 ao não se permitir mentir, confessando um crime que não cometera, mesmo
sob uma tortura tão cruel. Conduzido ao cadafalso, para ser enforcado, repete, novamente, que
é inocente.

O assassínio de Calas, cometido em Toulouse com gládio da justiça, a 9 de março de


1762, é um dos mais singulares acontecimentos que merecem a atenção de nossa
época e da posteridade. Esquece-se facilmente a quantidade de mortos em batalhas
sem conta, não somente por tratar-se da fatalidade da guerra, mas porque os que
morrem pela sorte das armas podiam também dar a morte a seus inimigos, e não

460
VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. Op. cit.. p. 08.
461
POMEAU, René. “Introdução”. In: VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. Op. cit... p. XIX. (grifo
nosso).
462
Id.

111
morreram sem se defender. Lá onde o perigo e a vantagem são iguais, o espanto
cessa, e a própria piedade diminui; mas, se um pai de família inocente é entregue às
mãos do erro, da paixão ou do fanatismo; se o acusado só tem como defesa sua
virtude; se os árbitros de sua vida, ao decapitarem-no, apenas correm o risco de se
enganar; se podem matar impunemente através de uma sentença, então o clamor
público se levanta, cada um teme por si próprio, percebe-se que ninguém está
seguro de sua vida diante de um tribunal erigido para zelar pela vida dos cidadãos, e
todas as vozes se juntam para pedir vingança. [...] Creio que, quando se trata de um
parricídio e de lançar um pai de família ao suplício mais terrível, o julgamento
deveria ser unânime [...]. A fraqueza de nossa razão e a insuficiência de nossas leis
se fazem sentir diariamente; mas em que ocasião percebe-se melhor sua miséria do
que quando a preponderância de uma única voz condena ao suplício um cidadão?
Eram necessárias, em Atenas, cinqüenta vozes além da metade para ousar
pronunciar uma sentença de morte. Que resulta disso? O que sabemos muito
inutilmente, isto é, que os gregos eram mais sábios e mais humanos do que nós 463 .

E, em 1763, o philosophe publica, apesar da proibição, o livro Tratado sobre a


Tolerância, com o intuito de, valendo-se da sua notoriedade, sua influência, transformar a
opinião pública e as práticas cotidianas, para que injustiças como essa não ocorressem nas
sociedades civilizadas. Segundo Pomeau, é importante frisar que o inquérito contra Calas,
após ele ter sido executado, foi reaberto, por conta do escândalo causado pelo livro de
Voltaire, ao dar os detalhes desta sórdida condenação, e a família Calas foi inocentada, tendo
que receber de volta todos os seus bens que foram confiscados 464 . Porém, o bem mais
precioso, o seu Chefe, Jean Calas, nunca mais seria recuperado.

A eficácia do Tratado sobre a Tolerância representa o espírito de uma época, marcada


pela autonomia da razão e a valorização do homem. A grande arma capaz de destruir o
fanatismo e a intolerância é a razão. Somente quando se submete o espírito ao império da
razão é possível banir a Infame. Esse era o principal projeto ilustrado: submeter o mundo ao
império da razão. Voltaire, por fazer parte desse projeto, não poderia propor outra arma que
não fosse essa para a grande batalha que iria encampar. Para ele, a razão, controlando as
paixões, inspira sentimentos necessários à subsistência da sociedade. “O grande meio de
diminuir o número de maníacos, se restarem, é submeter essa doença do espírito ao regime da
razão, que esclarece lenta, mas infalivelmente, os homens. Essa razão é suave, humana,
inspira a indulgência, abafa a discórdia, fortalece a virtude, torna agradável a obediência às
leis, mais ainda do que a força é capaz” 465 .

463
VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. Op. cit.. p. 03-04; 09-10. (grifo nosso).
464
Cf.: Ibid., p. 12.
465
Ibid., p. 32-33. (grifo nosso).

112
O objetivo de Voltaire com essa obra é acalentado pela sua esperança de que a
humanidade retornará à religião natural de seus primórdios; por conta disso, tende todo o seu
esforço para o clamor da necessidade da tolerância 466 . Ele não propõe os melhores projetos
para o rei francês, ao escrever o seu tratado. Ele solicita, com muita prudência, “[...]
consciente das poderosas oposições que encontrará [...]” 467 , que haja tolerância, na França;
que os protestantes tenham restituídos o direito ao estado civil: validade nos seus casamentos,
reconhecimento dos seus filhos, direito de herança; direitos esses que foram despojados com a
revogação do Edito de Nantes, em 1685.

Sabemos que vários chefes de família, que fizeram grandes fortunas em países
estrangeiros, estão dispostos a retornar à sua pátria; não pedem senão a proteção da
lei natural, a validade de seus casamentos, a certidão reconhecida de seus filhos, o
direito de herdar dos pais, a franquia de suas pessoas; nada de templos públicos,
nada de direito aos cargos municipais, às dignidades – os católicos não os têm em
Londres nem em vários outros países. Não se trata mais de dar privilégios imensos,
áreas de segurança a uma facção, mas de deixar viver um povo pacífico, de abrandar
editos talvez necessários outrora, mas que já não o são. Não cabe a nós indicar ao
ministério o que ele pode fazer; basta implorá-lo em favor dos infortunados 468 .

Muito astuciosamente, o autor do Tratado discorre, nesta passagem importante, na


qual ele faz o pedido ao rei, acerca dos chefes de família que estão, por conta das atrocidades
que se realizam em França, no estrangeiro, e lá se tornaram ricos. O fato de utilizar da
situação financeira desses chefes de família não é, em verdade, um simples detalhe. Voltaire
trabalha com essa informação porque sabe da importância que esses chefes teriam para a
economia do país. Portanto, ele se utiliza dessa notícia, iniciando, inclusive, o seu pedido por
ela. Dessa maneira, juntamente com a afirmação de que não cabe a ele indicar o que deve
fazer o ministério, o philosophe utiliza-se de duas estratégias para tentar conseguir o que
deseja: uma diz respeito à economia; a outra, ao orgulho dos ministros, que seria ferido, caso
ele indicasse o que deveria ser feito. Voltaire envolve nessa questão da importância da
tolerância universal aspectos econômicos e políticos estrategicamente para, dessa forma,
convencer os governantes de que a intolerância atrapalha, inclusive, os negócios de Estado.
Assim como na passagem anterior, essa próxima exemplifica a estratégia voltairiana: “Há na
Europa quarenta milhões de habitantes que não pertencem à Igreja Romana; diremos a cada
um deles: ‘Senhor, como estais infalivelmente condenado, não quero comer, nem negociar,

466
POMEAU, René. Introdução. In: VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. Op. cit.. p. XXXI.
467
Ibid., p. XXI.
468
VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. Op. cit.. p. 32.

113
nem conversar convosco?’” 469 . E, em outro momento do texto, assim ele se expressa em
relação ao rei: “Portanto, há humanidade e justiça entre os homens e, principalmente, no
conselho de um rei amado e digno de sê-lo [...]” 470 .

O julgamento de Jean Calas e a sua publicização através da obra de Voltaire fizeram


com que diminuíssem as torturas, as prisões, as execuções em massa de pastores; mas não
conseguiu ter força, naquele mesmo período, para modificar a lei. Somente em 1787, Louis
XVI decidiu promulgar um Edito de tolerância, “[...] em favor de seus súditos que não
pertenciam à religião católica [...]” 471 . Só 24 anos depois, o rei da França adota as
recomendações de Voltaire, no Tratado; e restitui o estado civil aos protestantes. Porém, esse
novo edito será superado, em 1789, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do
Cidadão. Portanto, importância do Tratado para os dias atuais, assim como para o período em
que viveu Voltaire, foi assim resumida por Pomeau: “No mundo em que vivemos, dois
séculos depois de Voltaire, a universalidade faz da tolerância um dever” 472 .

Voltaire, quando faz referência ao seu Tratado, no capítulo de conclusão deste, assim
resume o que esse livro representa: “Esse texto sobre a Tolerância é uma petição que a
humanidade apresenta muito humildemente ao poder e à prudência. Semeio um grão que
algum dia poderá produzir uma grande colheita. Esperemos tudo do tempo, da bondade do rei,
da sabedoria de seus ministros e do espírito da razão que começa a espalhar por toda parte a
sua luz” 473 . Ou seja, deve-se apostar no projeto que a Ilustração traçou para o gênero humano,
já que somente pela razão se pode obter essa grande colheita proposta por Voltaire, que
semeou o primeiro grão, para que os homens, ao serem esclarecidos pelos philosophes,
através de seus textos, dêem continuidade a essa arte agrícola e possam semear a virtude, a
tolerância, a bondade, enfim, todos os sentimentos inspirados pela razão e que conduzem a
vida em sociedade de maneira pacífica e feliz.

Entretanto, não foi somente a essa luta contra a Infame que Voltaire dedicou sua vida.
Essa preocupação incessante com a religião o leva aos textos históricos e, juntamente com
Mme du Châtelet, em Cirey, ele inicia um período intenso de estudos. “A proposta

469
Ibid., p. 128.
470
Ibid., p. 140.
471
POMEAU, René. Introdução. In: VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. Op. cit.. p XXII.
472
Ibid., p. XXXIII.
473
VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. Op. cit.. p. 142.

114
voltairiana, em sua superabundância, deve muito à empreitada de abranger, a fim de
compreender, a história da humanidade” 474 . Voltaire critica os historiadores pelo fato deles
serem crédulos e aceitarem, muito facilmente, as lendas, os prodígios inverossímeis. A
história não deve ser separada da filosofia. Para o philosophe o objeto da história é o
progresso do espírito humano, “[...] as artes, a indústria, o comércio, a vida material,
intelectual e moral das nações”475 . História é o quadro do espírito humano e não narração de
guerras que, o mais freqüentemente, produziram apenas o mal. Ele acredita, e exige, que o
historiador deve praticar uma crítica rigorosa. É na história que o gênio de Voltaire exerce sua
razão, sem se afetar nem se bloquear, segundo Pomeau. A história é a humanidade vista
através de um temperamento e de uma razão 476 . Voltaire lança as bases para um novo método
histórico, ao afirmar que: “O importante, pois, é saber que o método conveniente à história de
seu país não é próprio para descrever as descobertas do Novo Mundo; que não se deve
escrever sobre uma aldeia como se escreve sobre um império, que não se pode escrever a
história privada de um príncipe como se fosse a da França e a da Inglaterra” 477 . Ou seja,
Voltaire, nas suas obras históricas, demonstra a sua preocupação com o a forma com a qual se
fazia a História. Esta deveria não só estudar as guerras, a política, os grandes homens, mas
também as leis, o comércio, a moral, os costumes.

O objeto da pesquisa histórica de Voltaire é a civilização; ele preocupa-se com os


elementos que possibilitam identificar o que é o progresso: o brilho das artes, sobretudo o da
literatura e o progresso das ciências 478 . Ele explica a história pelo “Espírito do tempo”, que é
o responsável pela direção dos grandes acontecimentos do mundo. O “Espírito do tempo” de
sua época era a Razão; por isso o esclarecimento era urgente.

Nesse sentido, a ação dos grandes homens é de extrema importância para o


pensamento voltairiano, porque essas ações seriam as responsáveis por modificar o espírito

474
POMEAU, René. “Préface”. In: VOLTAIRE. Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit..
p. XI.
475
PELLISSIER, George. Voltaire philosophe. Op. cit.. p. 214. É importante observar que, mesmo quando
historiador, Voltaire preocupa-se com a educação dos homens, uma vez que mostrar a moral das nações é dar
exemplos bons a serem seguidos e ruins, que não devem ser seguidos.
476
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 67.
477
VOLTAIRE. Dicionário filosófico. Op. cit.. p. 209. Verbete: História. Vale ressaltar que esse método
proposto por Voltaire será utilizado, no século seguinte, por Michelet, que será considerado, no século vinte, o
precursor da Nova História, uma escola que a partir de 1929, com a criação dos Annales, põe em prática esse
método, proposto por Voltaire no século XVIII. Ver, a esse respeito, também, PELLISSIER, George. Voltaire
philosophe. Op. cit.. p. 213-214.
478
POMEAU, René. “Préface”. In: VOLTAIRE. Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même. Op. cit..
p. XIII.

115
das pessoas, uma vez que, segundo Voltaire, aprende-se pelo tempo e pelo exemplo. Portanto,
os grandes, que seriam representados pelos philosophes e pelos déspotas esclarecidos, teriam
importante tarefa a desempenhar, já que seriam os determinantes para o estabelecimento da
mudança dos espíritos das pessoas 479 . A civilização não é o estado natural da humanidade. Ela
é conquistada por esses grandes homens. Por esta razão, também, suas ações têm uma
importância decisiva para o estabelecimento das mudanças no espírito das pessoas, tornando-
as melhores.

No que diz respeito à filosofia, ainda no período de Cirey, Voltaire “[...] torna-se
filósofo [...] 480 ”. Vale lembrar que filosofia era, no século XVIII, uma mescla de domínios
que hoje aparecem separados: metafísica, ciência e polêmica. “A ‘philosophie’, e em primeiro
lugar aquela das ‘Cartas Filosóficas’, é uma mistura de metafísica, ciência, de ataques contra
a religião, de audácias políticas” 481 .

Entre 1734 e 1737, Voltaire trabalhou em um texto que possui uma característica
peculiar, se comparado a outras obras dele: o Tratado de Metafísica. Tal escrito não fora
confeccionado para ser polêmico, pois não era intenção de Voltaire publicá-lo. Somente Mme
du Châtelet, Formont 482 e Frederico II tiveram acesso à leitura desse livro, enquanto Voltaire
estava vivo. Por esta razão, ele, o Tratado de Metafísica, apresenta uma linguagem mais
técnica, filosófica e menos literária. Ele foi escrito como resposta às acusações que Voltaire
recebera, por conta da condenação das Cartas Filosóficas, sobretudo no que diz respeito ao
fato dele ter sido considerado defensor do ateísmo, refutado longamente no capítulo dois
desse Tratado 483 .

Apesar do nome, esta obra tem como principal preocupação o homem, a moral, assim
como todos os seus outros escritos. Voltaire inicia sua exposição pela metafísica para mostrar
que ao ser humano cabe muito pouca coisa conhecer, e que mesmo esse “muito pouco” não
oferece nenhuma utilidade para a vida do homem. Portanto, como é evidente na obra
voltairiana, há um limite no conhecimento humano e, além disso, este conhecimento deve
possuir alguma utilidade para os indivíduos, para a felicidade desses na vida social.

479
POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Op. cit.. p. 71. Essa importância dos grandes para dar exemplos a
serem seguidos pelo povo também aparece nas Cartas Filosóficas, mais especificamente na carta de número 21.
480
POMEAU, René. La religion de Voltaire. Op. cit.. p. 195.
481
Ibid., p. 190.
482
Amigo de Voltaire, com quem este trocou diversas correspondências.
483
TROUSSON, Raymond et al. (dir.) Dictionnaire Voltaire. Bruxelle: Hachette, 1994. p. 236.

116
Essa obra é a que examina mais a fundo as provas da existência de Deus. Voltaire
critica o argumento da ordem do mundo (das causas finais) no Tratado de Metafísica. Porém,
este é o argumento mais utilizado pelo philosophe em seus outros livros. O motivo para isso
se dá em razão dessa obra não ter sido escrita para ser publicada. “O ‘Tratado’ é subtraído das
preocupações da polêmica; a obra não é destinada a ser publicada, nem a circular
clandestinamente” 484 . Entre os argumentos da existência de Deus, Voltaire percebe que a
prova mais utilizada por ele, a da ordem do mundo, é bastante vulnerável ao ataque ateu 485 .
Por essa razão dissemina, nos outros escritos de sua autoria, que foram destinados a serem
publicados, o argumento das causas finais, tentando, assim, defender a necessidade da
existência de Deus, que serve como um freio às ações humanas. Ele chega a afirmar, nas
Cartas, que “[...] a lei o dirige [o homem] e a religião o aperfeiçoa” 486 . Contudo, “[...] o
argumento ‘se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo’” 487 não aparece no Tratado de
Metafísica, uma vez que esse livro não foi escrito para ser publicado. No Tratado, pouco
importa para Voltaire se Deus é “remunerador” ou “vingador”. Não há uma preocupação com
a necessidade moral da existência de Deus; a preocupação é com a idéia de Deus como um
primeiro motor, que mesmo assim é, para Voltaire, algo provável, verossímil, não uma
certeza 488 .

Nesse sentido, segundo Pomeau, a insinceridade filosófica de Voltaire aparece de


forma evidente no Tratado, levando alguns comentadores a acreditar que Voltaire teria
mudado de opinião com relação ao que escrevera, nessa obra, ao final de sua vida. Trinta e
dois anos depois, em 1766, Voltaire, aos 72 anos, escreve o Filósofo Ignorante, que contém
56 capítulos e segue a mesma trajetória metodológica do Tratado de Metafísica: inicia pela
metafísica, mas a sua principal preocupação é com o homem, com a conduta deste na
sociedade, ou seja, com a moral. Nessa obra, de maturidade, Voltaire defende a idéia de que
Deus é necessário para que alguns homens vivam, moralmente, em sociedade; afirmação que
não é feita no Tratado de Metafísica. Daí a suposta insinceridade apontada por Pomeau.
Porém, como essa última não fora escrita para ser publicada, não tinha o caráter pedagógico
tão marcante quanto às outras, possuindo, inclusive uma linguagem mais técnica e menos
484
POMEAU, René. La religion de Voltaire. Op. cit.. p. 204.
485
Um exemplo desse ataque é a obra de Diderot Cartas sobre os cegos para o uso dos que vêem, publicada em
1749 e motivo da prisão de seu autor no Castelo de Vincennes. Cf.: DIDEROT, Denis. Obras I Filosofia e
Política. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.
486
VOLTAIRE. Cartas Filosóficas. Op. cit. .p. 49.
487
POMEAU, René. La religion de Voltaire. Op. cit.. p. 206.
488
Cf.: VOLTAIRE. Tratado de Metafísica. 2ª ed. Tradução Bruno da Ponte et al.. São Paulo: Abril Cultural,
1978 (Coleção “Os Pensadores”). p. 66.

117
literária; Voltaire pôde ser mais filosófico, pôde defender uma outra concepção de Deus,
diferente da que ele defende em outros livros.

Apesar da separação de trinta e dois anos entre a confecção do Tratado de Metafísica e


do Filósofo Ignorante, a preocupação de Voltaire permanece sendo com a moral, ou seja, com
a conduta do homem na sociedade. Vale lembrar que esta preocupação não aparece apenas
nessas duas obras, mas em todos os seus escritos, servindo como uma espécie de “fio
condutor”, ou melhor, de mote, para que, a partir dessa idéia, todo o seu pensamento possa se
estruturar. Essas obras foram tomadas como exemplo porque demonstram que durante um
longo período a preocupação de Voltaire era com o bem-estar dos homens.

A atenção de Voltaire com o bem-estar social fica evidenciada em muitas de suas


obras. Essa preocupação acompanhou boa parte da vida do filósofo. Dois escritos
significativos no conjunto de sua obra, Tratado de Metafísica e O Filósofo
Ignorante, contribuem para perceber essa preocupação. Esses textos, em virtude do
longo período que marca a separação de suas confecções, trinta e dois anos, e em
virtude, também, da evidente atenção dispensada por Voltaire ao bem-estar social,
ilustram significativamente que a sociedade ocupou um lugar preponderante em seu
pensamento. Contudo, aqueles dois livros foram tomados como exemplo porque,
sobretudo neles, é possível perceber o vínculo, estabelecido pelo autor, entre a idéia
de conhecimento útil e bem-estar da sociedade, qual seja, a moral. Em uma palavra,
é a moral que, segundo Voltaire, pode tornar a vida em sociedade mais agradável.
Neste sentido, é em vista aos problemas da moral que o nosso conhecimento tem
que estar direcionado, caso contrário, não teria nenhuma serventia. Em O Filósofo
ignorante, Voltaire confessa acerca do pouco que sabe, dizendo que as reduzidas
verdades que adquiriu com sua razão serão um bem estéril em suas mãos se não
encontrar algum princípio moral 489 .

Voltaire afirma que independente do que o homem possa aprender, será útil aquele
conhecimento que irá influir numa moral 490 . Nesse sentido, seu interesse é educar os homens,
formá-los, porque educação e esclarecimento são, para o philosophe, sinônimos. E, através
dessa educação, que deve ser uma educação moral, o homem chegaria a um estado de
esclarecimento tal, que sua convivência em sociedade não seria mais marcada pelas
atrocidades cometidas pela Infame. Portanto, Voltaire está inserido no projeto pedagógico-
civilizatório da Ilustração, que pretende justamente esse objetivo: um mundo livre do
fanatismo, da superstição, da intolerância.

489
MOTA, Vladimir de Oliva. Voltaire e a crítica à Metafísica. Op. cit.. p. 53.
490
VOLTAIRE. O Filósofo Ignorante. Tradução Antônio de P. Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
(Projeto “Voltaire Vive”). p. 137.

118
Contudo, “as verdades morais devem ser sentidas”, ou seja, essas verdades, esses
ensinamentos não podem, simplesmente, ser proferidos para que, racionalmente, possa-se
obter aquisição desse conhecimento. Voltaire precisa de um instrumento específico para poder
fazer sentir essas verdades morais, para poder educar, esclarecer os homens. Esse instrumento
é a literatura. É através dela que Voltaire pretende alcançar seu objetivo. O precursor dessa
maneira de ensinar as verdades morais foi Montesquieu, com suas Cartas Persas. Usbek,
protagonista desse romance epistolar, afirmou que algumas verdades devem ser sentidas, e as
verdades morais são dessa natureza.

Portanto, se Voltaire deseja ensinar, esclarecer, educar os homens para que estes
possam, através desse esclarecimento, conduzir-se melhor na vida, ao ponto de se tornarem
autônomos, ele não deve deter-se ao tratado rigoroso para divulgar a sua filosofia. Essa deve
aliar-se à literatura, para que as verdades morais sejam gravadas no íntimo de cada um, para
que essas verdades sejam sentidas; para que se possa propagar, via a literatura – arma de
combate do philosophe – o esclarecimento que tornará possível um mundo sem a preocupação
que importunava constantemente Voltaire: “Écrazer l’Infâmie” (Esmagai a Infame).

119
IV. Terceiro Capítulo: Voltaire e a “moral em exercício”

[...] a literatura é fundamentalmente interpretação, ‘ensino’


[...].
Françoise Gaillard 491

Cada fato que aí se relata é um grau de luz, uma instrução


que supre a experiência; cada aventura é um modelo
segundo o qual podemos nos formar, e que só falta ser
ajustado às circunstâncias em que nos encontramos. A obra
inteira é um tratado de moral, reduzido agradavelmente em
exercício.
Abade Prévost 492

4.1. A Literatura: sua natureza, suas funções, sua relação com a sociedade

Um trabalho que se propõe relacionar duas áreas do conhecimento deve,


primeiramente, expor a natureza destas. Estabelecer um vínculo entre Educação e Literatura,
utilizando como exemplo desse vínculo textos literários de Voltaire, é o que pretende este
capítulo. Para tanto, torna-se necessário explicar a natureza da Literatura, suas funções e sua
relação com a sociedade, uma vez que, no que diz respeito à primeira área do conhecimento
descrita acima – sua natureza, conceito e relação com a sociedade, a partir de uma concepção
ilustrada – tais aspectos foram contemplados no capítulo um, quando da discussão sobre a
Educação Moderna.

491
GAILLARD, Françoise. Apud: BERGEZ, Daniel et al.. Métodos críticos para análise literária. Tradução
Olinda Maria Rodrigues Prata. São Paulo: Martins Fontes, 1997 (Coleção “Leitura e Crítica”). p. 180.
492
PRÉVOST. Apud: MATTOS, Franklin de. A cadeia secreta. Diderot e o romance filosófico. São Paulo:
Cosac&Naify, 2004. p. 79.

120
O período Ilustrado, também chamado de “Século da Pedagogia” 493 , tinha um ideal de
educação que rompia com a tradição. A preocupação dos philosophes era em formar o ser
humano, a espécie, e não transformar o homem, o indivíduo, num ornamento para a
sociedade 494 . Deve-se ensinar o homem a raciocinar por si mesmo. Busca-se uma educação
cosmopolita 495 . Essa busca pela educação cosmopolita, essa preocupação com a formação da
humanidade encontra, em Hazard, uma interpretação que acrescenta às funções da Literatura,
que serão expostas mais à frente, uma nova: estreitar as relações sociais.

Outras épocas interessar-se-ão pelo que há de incomunicável no indivíduo; esta [a


Ilustração] interessa-se pelo que ele tem de comum com seus irmãos. Crê que a
semelhança entre os homens provém da natureza, que a diferença provém dos
costumes, e que a superioridade da natureza sobre o costume se manifesta pelo
simples direito de anterioridade [...]. Estreitar os laços sociais é uma das funções
da literatura 496 .

Como as obras literárias têm “[...] uma função social, ou ‘uso’, que não pode ser
puramente individual [...]” 497 , elas são escritas para a espécie, para a humanidade, e não para
um único indivíduo; assim como preconiza o período ilustrado em relação à formação, à
educação do homem. Nesse sentido, ao afirmar que a Literatura estreita os laços sociais,
Hazard atribui uma grande importância aos textos literários, que desempenharam um papel
essencial na difusão das idéias e dos valores naquele momento histórico. Starobinski trata,
também, desse aspecto: o ideal racional pedagógico da arte no século XVIII, preocupado com
a formação da espécie e não apenas do indivíduo. Ele defende a idéia de que a literatura
possui uma função social que a torna coletiva e não puramente individual 498 .

A Literatura é formativa, possui a função de educar, serve como uma estratégia para
incentivar a educação, para instaurar a autonomia da razão. E, como a formação que se busca
na Literatura Moderna é uma educação moral, é necessário que os ensinamentos sejam
transmitidos via os textos literários, pois como afirmara Montesquieu, em sua obra Cartas

493
Ver capítulo primeiro, nota 154.
494
Sobre este aspecto, cf.: HAZARD, Paul. O pensamento europeu no século XVIII. Op. cit. p. 183-190.
495
Ver citação referente à nota 158, do primeiro capítulo.
496
HAZARD, Paul. O pensamento europeu no século XVIII. Op. cit. p. 220. (grifo nosso).
497
WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários. Tradução
Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003 (Coleção “Leitura e Crítica”). p.113.
498
Cf.: STAROBINSKI, Jean. “Pouvoir et Lumières dans la ‘Flûte Enchantée’”. In: Dix-huitième Siècle. S.l.p.:
nº. 10, 1978.

121
Persas, através da boca de Usbek, algumas verdades precisam ser sentidas e não
simplesmente ensinadas. E, as verdades morais são dessa natureza. Eis a justificativa da união
entre arte, ou melhor, entre Literatura e Filosofia no século XVIII, uma vez que a Ilustração
foi testemunha de um fenômeno jamais visto, até então, na história da filosofia: a divulgação
das idéias filosóficas através de romances, contos, peças, cartas e não apenas através de
tratados. Assim, Educação e Literatura estão, significativamente, relacionadas no século
XVIII francês.

Segundo Wellek e Warren, solucionar a questão sobre a natureza da literatura de uma


maneira mais simples “[...] é distinguir o uso particular dado à língua na literatura” 499 . A este
respeito, podem-se fazer três distinções dos usos da língua: os usos científicos, os usos
cotidianos e os usos literários da linguagem. A distinção entre a linguagem literária e a
científica é menos complexa, pois cada uma delas utiliza-se da língua com um sentido
completamente diferente. A científica faz uso do sentido denotativo das palavras, ou seja,
“[...] tende para um sistema de signos como o da matemática ou o da lógica simbólica. O seu
ideal é uma linguagem universal como a Characteristica Universalis, que Leibniz começara a
planejar já no fim do século XVII” 500 . A literatura, ou seja, a linguagem literária, utiliza-se do
sentido conotativo das palavras, “[...] abundante em ambigüidades; como qualquer outra
linguagem histórica, é cheia de homônimos, categorias arbitrárias ou irracionais [...];
permeada de acidentes históricos, lembranças e associações” 501 .

Tentar estabelecer uma diferença entre a linguagem cotidiana e a literária é uma tarefa
um pouco mais complexa. O conceito de linguagem cotidiana não é uniforme. As variantes
deste tipo de linguagem são “[...] tão amplas como a linguagem coloquial, a linguagem do
comércio, a linguagem da religião, o jargão dos estudantes” 502 . Assim como a linguagem
literária, a cotidiana também está cheia de “[...] irracionalidades e mudanças contextuais da
linguagem histórica” 503 . Porém, a linguagem literária “[...] tem o seu lado expressivo; ela
comunica o tom e a postura do falante ou escritor [...]” 504 , e a cotidiana, que também possui

499
WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários. Op. cit. p.
14.
500
Ibid., p. 15.
501
Id.
502
Ibid., p. 16.
503
Id.
504
Ibid., p. 15.

122
este caráter comunicativo, não pode ser limitada a ele, pois, têm-se exemplos de usos dessa
linguagem, a cotidiana, em que não há o intuito de comunicar (uma criança falando horas sem
a presença de nenhum interlocutor, por exemplo). Logo, a linguagem literária, mesmo
mantendo relações estreitas com a linguagem cotidiana, deve se diferenciar desta, e das
outras, quantitativamente porque

Os recursos da linguagem [literária] são explorados de modo muito mais deliberado


e sistemático. [...] A linguagem poética organiza, comprime os recursos da
linguagem cotidiana e, às vezes, até comete violência contra ela, em uma tentativa
de forçar a nossa consciência e atenção 505 .

De acordo com Eagleton, a literatura emprega a linguagem de maneira peculiar. Ele


chega a afirmar que, talvez, a literatura seja definível não pelo fato de ser ficcional,
“imaginativa”, mas por essa forma particular do uso que ela faz da linguagem.

[...] a literatura é a escrita que, nas palavras do crítico russo Roman Jakobson,
representa uma “violência organizada contra a fala comum”. A literatura transforma
e intensifica a linguagem comum, afastando-se sistematicamente da fala cotidiana.
[...] A especificidade da linguagem literária, aquilo que a distinguia de outras
formas de discurso, era o fato de ela “deformar” a linguagem comum de várias
maneiras. [...] A literatura, impondo-nos uma consciência dramática da linguagem,
renova essas reações habituais, tornando os objetos mais “perceptíveis”. Por ter de
lutar com a linguagem de forma mais trabalhosa, mais autoconsciente do que o
usual, o mundo que essa linguagem encerra é renovado de forma intensa 506 .

Ou seja, a linguagem literária possui suas especificidades e procura dar ênfase ao que
os lingüistas chamam de “fático”, preocupação com o ato de comunicação em si 507 . Nesse
sentido, não é possível que, na linguagem literária, ocorra uma observação, qualquer que seja
ela, desinteressada. Há uma preocupação com o ato de comunicação em si e, por conta disso,

505
Ibid., p. 16-17. (grifo nosso). Assim como para alguns autores do século XVIII, como por exemplo Voltaire, a
arte não deve ser apenas sentida, mas compreendida. Deve-se, ao ler uma obra literária, estar-se consciente e
atencioso para que se possa aprender com ela.
506
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Op. cit.. p. 03.
507
Ibid., p. 20. De acordo com Roman Jakobson, a linguagem possui funções: Fática (ênfase na comunicação em
si); Emotiva ou Expressiva (ênfase no emissor da mensagem); Poética (ênfase na mensagem); Apelativa ou
Conativa (ênfase no receptor da mensagem); Metalingüística (ênfase no código usado, ou seja, a língua) e
Referencial (ênfase no contexto da situação de comunicação). Vale ressaltar que em um processo comunicativo,
tomando como exemplo o texto literário, essas funções podem aparecer concomitantemente.

123
deve-se prestar atenção ao que se diz, no intuito de manter o ato comunicativo. “A linguagem
foi obviamente criada e é, obviamente, UTILIZADA para a comunicação 508 ”.

Kayser também afirma que a literatura possui uma linguagem e características mais
específicas. “[...] todo texto ‘literário’ (no sentido mais lato da palavra) é um conjunto de
frases fixadas por símbolos” 509 , e não qualquer amontoado de frases. Estas precisam estar
estruturadas. “O conjunto estruturado de frases é portador dum conjunto estruturado de
significados. O facto de palavras e frases ‘significarem’ alguma coisa reside na própria
essência da língua” 510 . Existem dois critérios para se distinguir, dentro da literatura, na sua
acepção mais lata, ou seja, toda linguagem fixada pela escrita, um círculo mais estreito: “[...] a
capacidade especial que a língua literária tem de provocar objectualidade [fatos] ‘sui generis’,
e o caráter estruturado do conjunto pelo qual o efeito ‘provocado’ se torna uma unidade” 511 .
Dessa maneira, utilizando esses dois critérios, é possível delimitar as fronteiras entre a
literatura e as outras ciências, uma vez que as “Belas Letras”, que são um saber literário,
criam a sua própria objectualidade. Kayser diferencia a linguagem teórica da linguagem
poética da seguinte forma: a poética caracteriza-se pela plasticidade, ou seja, a sua especial
capacidade evocadora. “Não apresenta opiniões e discussões de problemas, mas sugere um
mundo na plenitude de suas coisas. Não se referindo, como toda a outra linguagem, a uma
objectividade existente fora da língua, mas antes criando-a ela própria primeiramente,
aproveitará todos os meios lingüísticos que lhe possam servir de ajuda” 512 . Os autores, os
literatos, escolhem uma maneira menos direta e “seca” para que, assim, possam sugerir uma
“imagem” ao leitor, não apenas informações.

A formação e tais imagens, porém, é mais do que evocação duma simples


objectualidade. [...] Quando, na língua cotidiana, se verifica que uma manhã está
sombria e chuvosa, esta observação é motivada pelas atitudes que este facto nos
levará a tomar, por exemplo, quanto ao nosso vestuário. Na obra poética os
adjetivos perdem essa referência prática; mas, em troca, ganham um fundo
emocional, além da sua capacidade de evocar alguma coisa como existente no
mundo poético; o seu significado abrange mais do que a mera coisa ou qualidade
significada. [...] Os poetas não aproveitam as poucas palavras, por eles dedicadas ao

508
POUND, Ezra. ABC da Literatura. Tradução Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix,
2006. p. 33.
509
KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Introdução à ciência da Literatura.Op. cit..
p. 07. (vol. I).
510
Ibid., p. 07-08.
511
Ibid., p. 09.
512
Ibid., p. 184.

124
esboço, só exclusivamente para pintarem os objectos, mas, ao mesmo tempo, têm
por objectivo despertar emoções 513 .

A obra literária pretende não apenas passar informações a respeito de algo. Isso, os
outros tipos de linguagem já o fazem. Ela deseja sugerir sensações, despertar emoções através
dessas “imagens” 514 que são criadas a partir do uso peculiar que a literatura faz da linguagem.
O que realmente interessa nas “imagens” não é a sua visualidade, a sua representação, mas
sim o seu conteúdo emocional e sugestivo. “O poeta interessa-se menos pela imagem [...] do
que pelo fundo sugestivo” 515 . A literatura liberta a linguagem da utilidade imediata e da
necessidade única de comunicação; “[...] ela eleva a palavra acima do discurso comum para
fins de invocação, ornamentação ou comemoração” 516 . Segundo Pound, “Literatura é
linguagem carregada de significado. ‘Grande literatura é simplesmente linguagem carregada
de significado até o máximo grau possível’” 517 .

Feita a distinção entre os diferentes usos da língua, é possível determinar a natureza da


literatura: ser ficcional. Mesmo quando trata de algo que realmente ocorreu, os enunciados –
seja num romance, num conto, num poema, numa peça – não são enunciados verdadeiros, não
são proposições lógicas. O tempo e o espaço dos textos literários não são os da vida real.
“Mesmo um romance aparentemente realista [...] é construído segundo certas convenções
artísticas” 518 .

Tomando como pressuposto o “lado expressivo”, comunicativo que a literatura possui,


é primordial mostrar que a natureza da literatura está intimamente ligada à sua função, pois
“[...] devem, em qualquer discurso coerente, ser correlatos [...] a natureza de um objeto
decorre do seu uso: ele é o que faz” 519 . Pode-se afirmar, de acordo com Wellek e Warren, que
a literatura possui duas funções: uma gira em torno da sua utilidade, do seu uso para educar,
formar o homem e a outra diz respeito à palavra grega Kátharsis. A Kátharsis deve fazer com
513
Ibid., 184-185. (grifo nosso).
514
Essas imagens são, em sua maioria, criadas pelas figuras retóricas, que são divididas em figuras de palavras
(figurae verborum) e figuras de pensamento (figurae sententiarum). Ver: Ibid., p. 168.
515
Ibid., p. 187.
516
STEINER. Apud: RALLO, Elisabeth Ravoux. Métodos de Crítica Literária. Tradução Ivone C. Benedetti.
São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Coleção “Leitura e Crítica”). p. 251.
517
POUND. Ezra. ABC da Literatura. Op. cit.. p. 32.
518
WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários. Op. cit. p.
19.
519
Ibid., p. 23.

125
que o leitor alivie, através da contemplação à obra de arte, a pressão que as emoções exercem
sobre ele; “[...] suas emoções [recebem] foco, deixando-o, no final da experiência estética” 520
calmo, aliviado, tranqüilo.

A primeira função da literatura, citada acima, que preconiza a utilidade desta na


educação do homem, ou seja, uma função instrutiva da literatura é a que interessa à Ilustração,
conseqüentemente, a este trabalho. Ela, a literatura, além de formular e expressar o que quer
comunicar tem como objetivo “[...] influenciar a postura do leitor, persuadi-lo e, por fim,
modificá-lo” 521 . Para Wellek e Warren, “o elemento pragmático, leve na poesia pura, pode ser
grande em um romance com um propósito ou em um poema satírico ou didático” 522 . Voltaire
é um exemplo dessa afirmação, já que é este “elemento pragmático” da Literatura,
encontrado, também, na Ilustração, que faz dos escritos literários um instrumento educativo,
uma vez que “[...] grande parte da educação [...] passa através do imaginário 523 ”. O período
marcado pelo movimento ilustrado teve – além dessa preocupação comum, no que diz
respeito aos seus representantes, com a educação – como característica, também importante,
grande difusão de idéias através de uma

[...] riquíssima articulação de meios, que vão do ensaio ao pamphlet, do romance à


obra teatral, do poema ao ‘entretenimento’, ao conte philosophique, ao dicionário.
[...] O século XVIII é o século dos jornais e das revistas, da imprensa para as
mulheres; é o século do romance, das enciclopédias e dos panfletos; é o século em
que a imprensa começa a forjar a sociedade no seu conjunto, organizando a opinião
pública [...] 524 .

Essa difusão de informações via os textos, e principalmente os literários, mostra o


poder formativo que as obras tinham e uma finalidade na arte literária. O pragmatismo da arte,
neste caso, da literatura, não é inédito até o século XVIII. A Ilustração não é a precursora
desta tão importante função das obras literárias – apesar de ter sido o primeiro período que a
levou à exaustão de maneira sistemática 525 . Como visto anteriormente, esse uso da Literatura
com uma função moralizante, educativa, surgiu com Isócrates, na Grécia antiga. “Desde a

520
Ibid., p. 34.
521
Ibid., p. 15.
522
Id. (grifo nosso).
523
CAMBI, Franco. História da Pedagogia. Op. cit.. p. 32.
524
Ibid., p. 325 e 373.
525
Sistema, aqui, deve ser entendido como um conjunto racional.

126
emergência na Grécia de um pensamento lingüístico, assistiu-se à manifestação de um grande
interesse por aquilo que se refere à eficácia do discurso em situação 526 ”. Segundo Iser,

[...] a obra literária eficiente é aquela que força o leitor a uma nova consciência
crítica de seus códigos e expectativas habituais. A obra interroga e transforma as
crenças implícitas com as quais a abordamos, “desconfirma” nossos hábitos
rotineiros de percepção e com isso nos força a reconhecê-los, pela primeira vez,
como realmente são. Em lugar de simplesmente reforçar as percepções que temos, a
obra literária, quando valiosa, violenta ou transgride esses modos normativos de ver
e com isso nos ensina novos códigos de entendimento 527 .

O pragmatismo da arte encontra, em diversos teóricos, explicações diferentes. O que


interessa a este texto é a explicação que indica como principal intenção do pragmatismo na
literatura a formação moral, a educação através de valores morais. Ou seja, a utilidade da obra
literária é medida pelo seu poder de transformação, de modificação daquele indivíduo que a
leu; que conseguiu, com o ato da leitura, “transgredir”, “violentar” sua própria existência,
dando-lhe uma consciência nova, crítica, fazendo com que ele alcance, dessa maneira, com a
leitura de obras da literatura, sua autonomia e, consequentemente, sua formação moral.

4.2. O “Dulce” e o “Utile”: a “moral em exercício”

Leitor, quem quer que fores, tu hás de parecer-te com


algum destes dois estudantes. Se leres os meus sucessos
sem tomares sentido nas instruções morais que contêm,
não tirarás proveito desta obra; mas, se a leres com
atenção, acharás nela, segundo o preceito de Horácio, o
útil misturado com o agradável.
Lesage 528

[...] o fim da poesia é a utilidade, se bem que


proporcionada pelo prazer.
Marino 529

526
MAINGUENEAU, Dominique. Pragmática para o discurso literário. Tradução Marina Appenzeller. São
Paulo: Martins Fontes, 1996 (Coleção “Leitura e Crítica”). p. 01. Segundo esse autor, a retórica aparece como
poder de intervir no real.
527
ISER. Apud: EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Op. cit.. p. 119-120.
528
LESAGE. Apud: MATTOS, Franklin de. A cadeia secreta. Diderot e o romance filosófico. Op. cit.. p. 78.
(grifo nosso).

127
Para o poeta romano Horácio, a poesia é dulce e utile. Utilizando-se desse binômio,
Wellek e Warren desenvolvem a seguinte tese: a poesia é considerada um prazer (análoga a
qualquer outro prazer) e instrui (de forma análoga a qualquer livro didático) 530 . Então,
qualquer descrição feita sobre a função da arte, conseqüentemente, da literatura, deve fazer
justiça, simultaneamente, ao dulce e ao utile. Para que uma obra literária funcione com
sucesso “[...] as duas ‘notas’ de prazer e utilidade não devem meramente coexistir mas fundir-
se” 531 . Esses autores resumem essa idéia da seguinte maneira:

Quando nos dizem que a poesia é ‘brincadeira’, divertimento espontâneo, sentimos


que não se faz justiça nem ao cuidado, à perícia e planejamento do artista nem à
seriedade e importância do poema; quando nos dizem, porém, que a poesia é
‘trabalho’ ou ‘ofício’, sentimos a violência feita à sua alegria e ao que Kant chamou
de sua ‘falta de propósito’. Devemos descrever a função da arte de uma maneira
que faça justiça ao dulce e ao utile. [...] ‘útil’ é equivalente a ‘que não é perda de
tempo’, algo que merece atenção séria. ‘Doce’, é equivalente a ‘não
aborrecimento’, ‘não dever’, ‘sua própria recompensa’ 532 .

Investigar a função formativa que as obras literárias possuem sem estes conceitos
torna-se inviável, pois atribuir uma função educativa à literatura, sem que se leve em
consideração os conceitos utilizados por Horácio, para designar o que seja poesia, é dizer que
a função da literatura é educar e não expressar a razão, o porquê desta sua função; como a
literatura se propõe, a um só tempo, emocionar, através da arte, e educar, através dos valores
morais que são transmitidos. A intenção pedagógica dos autores da literatura (aquela que se
propõe formar moralmente seus leitores, transmitindo valores morais) é atribuir à sua arte
uma função que faça justiça tanto ao dulce quanto ao utile. Wellek e Warren apropriam-se
desses dois conceitos, fazendo com que estes justifiquem a utilidade, seriedade e a função
instrutiva que a literatura possui:

O prazer da literatura, precisamos assinalar, não é uma preferência entre uma longa
lista de possíveis prazeres, mas um ‘prazer superior’ porque é prazer em um tipo
superior de atividade, isto é, a contemplação não aquisitiva. E a utilidade – a
seriedade, a instrução – da literatura é uma seriedade prazerosa, isto é, não é a

529
MARINO. apud: PRADO, Raquel de Almeida. Perversão da Retórica, Retórica da Perversão. Moralidade
e forma literária em As Ligações Perigosas de Choderlos de Laclos. São Paulo: Editora 34, 1997. p. 29.
530
Cf.: WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários. Op.
cit. p. 24.
531
Ibid., p.26.
532
Ibid., p. 24.

128
seriedade de um dever que deve ser feito ou de uma lição a ser aprendida mas uma
seriedade estética, uma seriedade da percepção 533 .

De acordo com Reuter, “[...] às vezes até, em uma literatura de ‘idéias’, engajada ou
didática, a narrativa lá se encontra apenas para ilustrar, ‘fazer passar’ este material
nocional” 534 . A literatura ensina pelo exemplo. Quando se entra em contato com o mundo
ficcional criado pelo escritor, como em todas as aventuras pelas quais as personagens passam,
o leitor depara-se com inúmeros valores, atitudes, ações, que irão de uma forma ou de outra,
influenciá-lo em sua vida, modificá-lo. “[...] a literatura [...] é necessária àqueles que se
corromperam, pois ela permite evitar o pior” 535 .

O engajamento da literatura na Ilustração é inegável. Sua intenção crítica era encampar


uma “[...] batalha política contra a civilização aristocrática em declínio”536 ; e, no caso
específico de Voltaire, “Esmagar a Infame” 537 . É interessante notar, segundo Mattos, que o
ano de 1760 é importante, no que se refere à produção romanesca de Voltaire 538 . E, é nesse
período que o philosophe combatia, via sua pena, os mais diversos casos de intolerância. “A
literatura [...] verificava, mas também prenunciava. [...] Ela já não visava somente ao
verdadeiro e ao belo moral mais ou menos trans-histórico, mas a um verdadeiro e belo
militante, ainda que sem o saber. A literatura, dizia Madame de Stäel, já não era uma arte,
mas uma arma: para agir e para compreender” 539 .

De acordo com Kayser, toda obra literária possui uma idéia, que é a “[...] síntese do
conteúdo espiritual. Assunto, fábula, motivos estão-lhe subordinados e são, relativamente à
‘idéia’ que é o todo, algumas partes” 540 . A “idéia” aparece, também, como uma unidade de
sentido e como moral: aquela, a idéia, “[...] designava a unidade do sentido do mundo poético,

533
Id. (grifo nosso).
534
REUTER, Yves. Introdução à análise do romance. Tradução Ângela Bergamini et al.. São Paulo: Martins
Fontes, 1996. (Coleção “Leitura e Crítica”). p. 135.
535
LECERCLE. Apud: MATTOS, Franklin de. A cadeia secreta. Diderot e o romance filosófico. São Paulo:
Cosac&Naify, 2004. p. 27.
536
PRADO, Raquel de Almeida. Perversão da Retórica, Retórica da Perversão. Moralidade e forma literária
em As Ligações Perigosas de Choderlos de Laclos. Op. cit.. p. 60.
537
Ver nota 34 do capítulo primeiro.
538
MATTOS, Franklin de. A cadeia secreta. Diderot e o romance filosófico. Op. cit.. p. 22.
539
BERGEZ, Daniel et al.. Métodos críticos para análise literária. Op. cit.. p. 144.
540
KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Introdução à ciência da Literatura. Op. cit..
p. 08. (vol. II).

129
que ao mesmo tempo estava cheio da intranqüilidade de uma interrogação” 541 ; esta, a moral,
prescrevia que “[...] o leitor deveria sentir a realização da obra como resposta a um problema.
A idéia, neste caso, era uma tese moralizadora, compreensível, ao alcance da inteligência,
visando um alvo: impressionar o leitor” 542 . Partindo do conceito de idéia, Kayser afirma o
seguinte, a respeito do engajamento da literatura:

Muitas obras há que escolhem para “idéia”, com o significado de problema, de


unidade de sentido de uma zona objectual, um problema actual, do momento; que,
além disso, apresentam uma clara solução do problema e, mais ainda, pretendem
comunicá-la ao leitor como ensinamento e exortação: isto como fim de modificar a
situação problemática do presente. Trata-se da chamada literatura tendenciosa 543 .

Kayser, em seu livro, em um período logo abaixo a esse citado, afirma que estas obras
estão, geralmente, destinadas a envelhecer depressa. Porém, o que pensar de uma obra, como
por exemplo, o Tratado sobre a Tolerância 544 , que permanece atual até os dias de hoje,
mesmo tendo sido publicado em 1763? Alguns philosophes, quando trataram de problemas de
sua época, escreveram literatura tendenciosa que não envelheceu porque tais problemas eram
universais e não diziam respeito apenas à época em que ocorreram, a um período específico.
Talvez Kayser esteja fazendo referência, ao afirmar o envelhecimento da literatura
tendenciosa, aos literatos 545 ; e estes, talvez, ao escrever, não estejam preocupados com
problemas universais, atemporais, mas sim, imediatos. “Um clássico é clássico não porque
esteja conforme a certas regras estruturais ou se ajuste a certas definições (das quais o autor
clássico provavelmente jamais teve conhecimento). Ele é clássico devido a uma certa
juventude eterna e irreprimível” 546 .

Outro ponto, na teoria literária de Kayser, é discordante da idéia de que os


ensinamentos, os valores morais podem ser passados através das obras literárias. Segundo
esse crítico, “A filosofia de um poeta e uma obra de arte são dois fenômenos que devem ser
separados por princípio. [...] a obra poética, contendo embora sem dúvida problemas e idéias
abstractas, não existe para os apresentar, e não deve a sua eclosão ao desejo de os

541
Ibid., p. 14.
542
Id.
543
Ibid., p. 16.
544
Sobre essa obra, ver as páginas 107 a 115, do capítulo segundo.
545
Deve-se entender literato, aqui, como o escritor que não é necessariamente um filósofo.
546
POUND. Ezra. ABC da Literatura. Op. cit.. p. 21-22.

130
expressar” 547 . Segundo Goethe, “[...] essência traz consigo a forma, e forma nunca existe sem
essência” 548 . Há uma razão para que os philosophes optem por escrever seus textos
utilizando-se dos gêneros, por excelência, da literatura. Eles tinham um objetivo ao
escolherem uma forma específica para os seus escritos: ensinar, educar, modificar seus
leitores.

Modificar o leitor, transformá-lo, educá-lo, é uma das funções que a literatura possui.
Ela não vai descobrir a verdade, o que é justo, a moral, os valores, ela vai divulgá-los.
“Devemos distinguir as visões de que a arte é descoberta ou discernimento da verdade do
ponto de vista de que a arte – especificamente a literatura – é propaganda, isto é, o ponto de
vista de que o escritor não é o descobridor mas o fornecedor persuasivo da verdade” 549 .
Wellek e Warren asseguram que ao se tomar o termo “propaganda”, expandindo o seu
conceito para que ele signifique:

[...] ‘tentativa, consciente ou não, de influenciar leitores para que compartilhem a


nossa postura diante da vida’, então é plausível a afirmação de que todos os artistas
são ou deviam ser propagandistas ou [...] todos os artistas sinceros, responsáveis,
são moralmente obrigados a ser propagandistas 550 .

Moisés afirma que o romance está destinado ao compromisso visto que, por possuir
uma estrutura totalizante (de um mundo ficcional), “[...] é um território fértil para o
engajamento [...] facilmente se transforma em arena de combate para doutrinas polêmicas ou
antagônicas” 551 . Para ele, nos momentos mais difíceis é que se faz importante e necessária a
tarefa do romancista:

Coletando os escombros numa unidade imaginária ou dando forma à procura de


soluções para a crise, o romance cumpre sua missão de restaurar o conhecimento e

547
KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Introdução à ciência da Literatura. Op. cit..
p. 42. (vol. II).
548
GOETHE. Apud: Id.
549
WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários. Op. cit.. p.
32. (grifo nosso). Os autores explicam que não se deve tomar o termo “propaganda” no seu sentido pejorativo,
como algo de natureza tendenciosa ou enganosa que é usada para divulgar determinada causa ou ponto de vista
político, sem que se tenha compromisso com a verdade.
550
WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários. Op. cit
p.32. (grifo nosso).
551
MOISÉS, Massaud. A criação literária. Prosa I. São Paulo: Cultrix, 2003. p. 168.

131
a fé. Em tempos amenos, [...] ao atribuir-se o papel de subversor da ordem,
transformando-se em arma de combate e de ação social 552 .
Tanto Moisés quanto Wellek e Warren comentam em suas obras a recíproca influência
entre literatura e sociedade. “A literatura é a expressão da sociedade” 553 . Moisés afirma que a
literatura recebe influência externa, mas, sobretudo, influencia o ambiente, a sociedade: “É
certo, pois, que a atividade literária recebe influência externa, seja do ambiente, seja das
outras formas de expressão da realidade, mas é importante não esquecer que também
influencia o ambiente em que se desenvolve”554 .

Wellek e Warren, na mesma direção, asseguram: “O escritor não é apenas influenciado


pela sociedade: ele a influencia. A arte não meramente reproduz a vida, mas a modifica. As
pessoas podem moldar as suas vidas pelos padrões dos heróis e heroínas fictícios” 555 .

A literatura cria um mundo ficcional, ou seja, modelos; transmite, através de


exemplos, os valores morais. Valores estes que são caros para que o homem alcance a
felicidade em sociedade. Portanto, a ficção das obras literárias, o fato destas criarem um
universo e, a partir deles, transpassar os valores, os ensinamentos, educar faz com que a
literatura seja um veículo eficaz para a transmissão dos valores, para a educação dos homens.

Como as obras literárias têm “[...] uma função social, ou ‘uso’, que não pode ser
puramente individual [...]” 556 , elas são escritas para a humanidade. Quando um escritor
debruça-se sobre sua escrivaninha na intenção de produzir qualquer tipo de texto literário, ele
está interessado em criar um mundo ficcional que sirva como modelo e que, a partir dele,
deste mundo fictício, todo o gênero humano possa extrair, desta experiência estética (a leitura
da obra literária), um exemplo, um ensinamento.

Com isso, destaca-se o ideal racional pedagógico da arte. O romance de educação ou


de formação (Erziehungsroman ou Bildungroman), que segundo Bakhtin diferencia-se da

552
Ibid. p. 165 (grifo nosso).
553
BONALD. Apud: BERGEZ, Daniel et al.. Métodos críticos para análise literária. Op. cit.. p. 148.
554
Ibid. p. 305.
555
WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários. Op. cit. p.
124. (grifo nosso).
556
Ibid., p. 113.

132
maioria dos outros tipos de romance por não apresentar apenas a personagem pronta, vivendo
os fatos corriqueiros do cotidiano como em qualquer romance de ficção e sim por ter como
princípio de organização “[...] a idéia puramente pedagógica de educação do homem” 557 ,
apesar de mostrar a formação de um único personagem, no desenrolar de sua trama, é
transferido para o destino coletivo a partir do momento em que é publicado e passa, quando o
romance de educação é levado ao encontro com a sociedade, a ter uma tarefa: instruir o
gênero humano, através do exemplo, já que a literatura não pode ser puramente individual,
uma vez que ela tem uma função social a cumprir. A arte é social, pois há a intenção de
formar a opinião pública, o gênero humano. Um exemplo de romance de formação do período
ilustrado é o Emílio de Rousseau. E o Emílio é um dos exemplos de romance de formação
dado por Bakhtin 558 . Outra obra que também pode ser considerada um romance de
educação 559 é O Cândido, de Voltaire. Nesse livro, o enredo mostra a história de uma
personagem (Cândido) que, à medida que passa por diversas situações diferentes e
dramáticas, vai sendo formada. Sua formação acontece em razão dos acontecimentos e,

557
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2003. (Coleção “Biblioteca Universal”). p. 218.
558
Para Bakhtin, a maior parte dos romances e das modalidades romanescas conhece simplesmente a
personagem pronta, acabada, formada. Paralelo a esse tipo de romance, que é a maioria, existe outro,
incomparavelmente mais raro, que reproduz no seu enredo a imagem do homem em formação. O livro de
Rousseau é dado como um exemplo desse tipo raro de romance que mostra a personagem em processo de
aprendizado, formação. Portanto, uma das razões de ser o Emílio uma ficção, dá-se pelo fato deste livro criar
condições ideais de educação, através das máximas de educação (Máximas de educação são, de acordo com
Milton Meira, “[...] conjunto de princípios que deve nortear toda a ação pedagógica possível. O que é muito
diferente de um conjunto de receitas.” Cf.: NASCIMENTO, Milton Meira do. Prefácio. In: CERIZARA, Beatriz.
Rousseau a educação na infância. São Paulo: Scipione, 1990. p. 08. Com relação à última frase da citação, é
importante ressaltar que para Meira, O Emílio não é um manual de educação) dadas por seu autor, que não são
encontradas na realidade, porque assim como os outros filósofos, seus contemporâneos, Rousseau não estava
satisfeito com a educação que estava em voga na França setescentista. Logo, ele precisa criar uma ficção para
que, a partir dela, possa, como será explicitado posteriormente, influenciar o seu leitor, modificá-lo, educá-lo,
através de uma das funções que a literatura possui. Em sua Introdução, Rousseau afirma que, “Em todo tipo
projeto, há duas coisas a considerar: primeiramente, a bondade absoluta do projeto; em segundo lugar, a
facilidade da execução. Com respeito ao primeiro ponto, para que o projeto seja admissível e praticado em si
mesmo, basta que aquilo que ele tem de bom esteja na natureza da coisa; neste caso, por exemplo, que a
educação proposta seja conveniente ao homem e bem adaptada ao coração humano. A segunda consideração
depende das relações dadas em certas situações; relações acidentais à coisa, que, por conseguinte, não são
necessárias e podem variar ao infinito. [...] A maior ou menor facilidade de execução depende de mil
circunstâncias, impossíveis de serem determinadas a não ser numa aplicação particular do método a este ou
àquele país, a esta ou àquela condição. Ora, todas estas aplicações particulares, não sendo essenciais para meu
assunto, não entram em meu plano. [...] Para mim, basta que em toda parte onde nasceram homens se possa
fazer deles o que proponho; e que, tendo feito deles o que proponho, se tenha feito o que há de melhor, tanto
para eles próprios quanto para os outros”. Cf.: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Prefácio. In: Emílio ou Da
Educação. Tradução Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Paidéia). p. 05-06. (grifo nosso).
559
É importante esclarecer que onde se lê romance, deve-se entender Literatura, uma vez que não
necessariamente apenas em um romance pode-se constatar a categoria “romance de educação”, usada por
Bakhtin.

133
também, por conta das viagens efetuadas pelo protagonista; ou seja, da experiência, da
demonstração 560 .

Portanto, o gênero romanesco, mais especificamente a modalidade romance de


educação, ao expor a formação de um personagem, expõe um conjunto de valores morais, que
são passados de maneira imperceptível, não através de máximas morais, e fazem com que o
leitor, ao mesmo tempo em que a personagem, forme-se, eduque-se. Vale lembrar que essa
não é uma prerrogativa apenas do romance de educação, mas sim, da expressão literária de
uma forma geral.

4.3. A “moral em exercício”: uma das missões dos Philosophes

[...] a função moral da literatura requer a persuasão do


leitor de fazer o que lhe é proveitoso.
Varga 561

O mérito de uma obra avalia-se por sua utilidade ou por


sua sedução, e mesmo por ambas, quando ela é susceptível
de tê-las [...].
Laclos 562
À maneira de Kant, que via em Rousseau o Newton da
moral, a estética do século XVIII procura e exige um
Newton da arte.
Cassirer 563

Além de ser chamado de “Século da Filosofia” e “Século da Pedagogia”, a Ilustração,


de acordo com Cassirer, recebe uma outra denominação: “Século da Crítica”. De acordo com

560
Termos caros ao pensamento voltairiano. O tema da viagem é recorrente na Ilustração. Nela, segundo o
pensamento da época, formamos o espírito e o coração. Algumas obras literárias da época que tratam da viagem
são: Cartas Persas; O Cândido; Micrômegas; O Ingênuo; História das viagens de Scarmentado; entre outras. A
demonstração também é importante já que segundo Voltaire, aprendemos através da experiência.
561
VARGA. Apud: PRADO, Raquel de Almeida. Perversão da Retórica, Retórica da Perversão. Moralidade
e forma literária em As Ligações Perigosas de Choderlos de Laclos. Op. cit.. p. 43.
562
LACLOS, Chordelos. As relações perigosas ou cartas recolhidas num meio social e publicadas para o
ensinamento de outros. Tradução Carlos Dummond de Andrade. São Paulo: Globo, 1993. p. 10.
563
CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Op. cit.. p. 373.

134
esse comentador, essas duas fórmulas (filosofia e crítica) constituem a expressão de uma
mesma realidade.

Elas tendem a caracterizar sob seus diversos aspectos o dinamismo intelectual com
que a época sente-se interiormente animada e que alimentou os seus mais originais
movimentos de idéias. Em todos os grandes espíritos do século manifestam-se os
laços íntimos que unem à filosofia a crítica estética e literária – e não por acaso mas
[sic]sempre na base de uma unidade profunda e intrínseca dos problemas. Sem
dúvida, existiram sempre relações estreitas entre os problemas fundamentais da
filosofia especulativa e os da crítica literária, a partir dessa Renascença que queria
ser um “renascer das artes e da ciência” e resultou tanto de permutas diretas e
estimulantes quanto de um enriquecimento recíproco. Mas o Século do Iluminismo
deu um passo a mais; ele deu uma outra conotação, nitidamente mais estreita, à
reciprocidade que deve existir entre esses dois domínios. Ela confere-lhe uma
significação que já não é simplesmente causal mas [sic]originária e substancial; não
se trata somente de acreditar que filosofia e crítica encontram-se e concordam em
seus resultados indiretos, mas de afirmar e apurar uma unidade natural entre as duas
disciplinas 564 .

Portanto, o laço existente entre a filosofia e a literatura, no período ilustrado, pode ser
considerado muito estreito. Os philosophes, como dito anteriormente, utilizaram-se da
expressão literária como estratégia, na intenção de colocar como problema central (para eles
mesmos) a urgência em esclarecer os homens. Nesse sentido, a literatura passou a ser uma
espécie de arma de divulgação e, ao mesmo tempo, de combate aos preconceitos, tendo como
telos a formação dos seres humanos, para que se pudesse alcançar a Ilustração.

A esse respeito, acerca da relação entre filosofia e literatura na Ilustração, Bento Prado
afirma que esse cruzamento (entre filosofia e aquilo que se chama hoje literatura) ocorre de
modo muito diferente do cruzamento atual 565 . Isso aconteceu em razão de os philosophes
estarem longe das Universidades, ou seja, eles não eram professores, a filosofia não era uma
disciplina técnica, e a ficção romanesca possuía um estatuto essencialmente ambíguo 566 . Qual
seria, então, questiona-se Bento Prado, a tarefa da filosofia? Ele mesmo responde: “A
filosofia [...] não tem sentido senão como terapia ou como purificação da alma. A Teoria em
si mesma, se não transfigura a vida, não vale nada”567 . A teoria precisa ter uma influência, um

564
. Ibid., 367-368.
565
PRADO JÚNIOR, Bento. “Filosofia e belas-letras no século XVIII.” In: MATTOS, Franklin de. O filósofo e
o comediante. Belo Horizonte: UFMG, 2001. p. 09.
566
Ibid., p. 10.
567
Ibid., p. 15. Prado explica que para que se entenda o conceito de filosofia e o conceito de literatura hoje, é
necessário compreender os diversos modos diferentes de resposta à questão que diz respeito à relação entre esses
dois domínios no passado.

135
poder de transformação na vida; a filosofia deve mudar a consciência, purificar a alma das
pessoas. E, um excelente instrumento para operar essa transfiguração é a literatura.

É consenso entre alguns teóricos essa reciprocidade entre a filosofia e a literatura.


Como também, a que existe entre a literatura e a educação, no sentido de que há uma função
educadora na literatura. Kayser, quando trata da “idéia” e afirma que esta pode ser
considerada uma “tese moralizadora”, que tem como objetivo impressionar o leitor, expõe que

Logo à primeira vista se verifica estarmos em presença duma atitude semelhante à


que imperou até ao século XVIII, segundo a qual a toda a obra poética era inerente
uma função didática. Ainda no século XVIII se exigia nas poéticas [...] que fosse
ponto de partida de todo o processo da criação uma idéia abstracta, moralizadora;
achada a tese, o artista devia procurar o assunto conveniente e trabalhá-lo depois
segundo as regras estabelecidas 568 .

De acordo com Wellek e Warren, a real função da literatura é fazer com que os leitores
enxerguem, de maneira muito mais clara, o que já sabem 569 . Através do discurso literário,
pode-se conhecer a alma humana. Dostoievski, Shakespeare, Balzac, Machado de Assis,
Voltaire são fontes inesgotáveis para se conhecer a alma do homem: “Forster [na obra Aspects
of the Novel] fala do número muito limitado de pessoas cuja vida interior e motivações nós
conhecemos e considera que o grande serviço do romance é revelar a vida introspectiva dos

568
KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Introdução à ciência da Literatura. Op. cit..
p. 15. (vol. II). (grifo nosso). Vale ressaltar que essa concepção de “tese moralizadora”, explicada por Kayser,
lembra a existência de um tipo específico de romance, que surgiu no Realismo e é uma de suas principais
características: o “romance de tese”. Segundo Moisés, em seu Dicionário de Termos Literários, o conceito de
“romance de tese” é: “Romance em que, na discussão de questões sociais, políticas ou religiosas, se defende [sic]
uma tese oriunda das Ciências, da Filosofia ou da Teologia”. (MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos
Literários. São Paulo: Cultrix, 2004. p. 405). Porém, apesar da crítica literária considerar como o precursor do
“romance de tese” Zola e o seu Le Roman experimental, escrito e publicado no século XIX, essa categoria
literária já podia ser encontrada no século XVIII, como explicou Kayser. Voltaire, e outros tantos pensadores da
Ilustração, escreveram “romances de tese”, e estes são, para Reboul, textos que se destinam a persuadir, ou seja,
são textos retóricos. (REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Op. cit.. p. XIV). Raquel Prado segue a mesma
direção de Kayser ao afirmar que o Realismo tem sua origem no século XVIII. Ela o denomina “realismo
moral”, no qual estética e reflexão ética se enriquecem mutuamente. (Cf.: PRADO, Raquel de Almeida.
Perversão da Retórica, Retórica da Perversão. Moralidade e forma literária em As Ligações Perigosas de
Choderlos de Laclos. Op. cit.. p. 18).Mattos também atribui a um autor da Ilustração, Diderot, a fundação do
realismo moderno. Ver: MATTOS, Franklin de. A cadeia secreta. Diderot e o romance filosófico. Op. cit.. p.
13. Entretanto, no caso específico de Voltaire, o mais acertado seria dizer “conto de tese”, uma vez que esse
philosophe não escreveu nenhum romance e tinha muitas críticas a respeito desse gênero. Esse assunto será
discorrido mais à frente.
569
Cf.: WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários. Op.
cit. p.29.

136
personagens” 570 . Um exemplo desse comportamento do leitor com relação à personagem é
descrito por Diderot, em sua obra Elogio a Richardson. Segundo o philosophe, um amigo seu,
surpreendido pelo momento da leitura do romance, reagiu como se fosse íntimo das
personagens. Assim Diderot narra o fato:

Eu estava com um amigo, quando me entregaram o enterro e o testamento de


Clarisse, dois trechos que o tradutor francês suprimiu, sem que se saiba muito bem
por quê. Este amigo é um os homens mais sensíveis que eu conheço, e um dos mais
ardorosos fanáticos de Richardson: falta pouco para que ele o seja tanto quanto eu.
Ei-lo que se apodera dos cadernos, que se retira a um canto e que se põe a lê-los. Eu
o examinava: primeiro eu vejo correr lágrimas, logo ele se interrompe, soluça: de
repente, levanta-se, caminha sem saber aonde vai, lança gritos como um homem
desolado, e dirige exprobrações das mais amargas a toda a família dos Harlove 571 .

Ou seja, a literatura revela uma gama de personagens, com seus conflitos, dramas,
problemas, alegrias, que servem como modelos para os leitores. A partir do desenrolar das
tramas, da apresentação de suas vidas, as personagens ensinam maneiras de se viver, de reagir
a determinadas situações, enfim, valores morais que são passados, não através de máximas
morais, mas sim, de ações. A moral é posta em exercício quando o enredo está em
desenvolvimento. E, dessa forma, a função educadora, formadora que a literatura possui pode
se concretizar. Pound, também quando trata da verdadeira função da literatura, afirma que “A
literatura não existe num vácuo. Os escritores, como tal, têm uma função social definida,
exatamente proporcional à sua competência COMO ESCRITORES. Essa é a sua principal
utilidade” 572 .

4.3.1. Como se processa a “moral em exercício”

Quando um autor pretende educar moralmente através de valores que são passados em
suas obras de ficção, ele não está preocupado em transmitir esses valores através de máximas
morais, preceitos que devem ser seguidos fielmente pelos leitores. Sua preocupação é fazer
com que esses ensinamentos sejam passados de maneira sutil, no desenrolar da trama traçada,

570
Ibid., p.29.
571
DIDEROT. Obras II: Estética, Poética e Contos. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2000. p. 26.
572
POUND. Ezra. ABC da Literatura. Op. cit.. p. 36. (grifo nosso).

137
no momento em que o enredo se desenvolve. “A instrução moral, pois, não vem aqui sob a
forma deliberativa dos sermões, eloqüência inútil segundo Rousseau, mas é sugerida [...]” 573 .
No capítulo intitulado “Uma técnica de Trompe L’oeil”, Raquel Prado expõe como se dá essa
sugestão, não deliberativa, que possibilita aos leitores formarem-se: “[...] ao reconhecer Mme
de Merteuil como um monstro, a sociedade se reconhece se desestrutura. E, num jogo de
espelhos, tão ao gosto do grand siècle, o horror da sociedade diante da Marquesa se reflete no
horror dos leitores que se reconhecem no romance de Laclos” 574 .

A moralização pretendida pelo autor de uma obra literária não é uma “moralização
aberta”, segundo Mattos. É uma moral posta em prática, através das personagens, e não por
máximas. Diderot desconfiava desse tipo de “moralização aberta”, através de máximas
morais, e afirmava que “[...] um autor deve ‘entrar furtivamente’ e não ‘de viva força’ na alma
de seus leitores” 575 . Voltaire se utilizou da mesma técnica: colocar a moral em prática em seus
escritos literários. Somente dessa maneira, pôde o philosophe estabelecer uma relação entre a
sua idéia de “emulação positiva” 576 e a função educadora da literatura; a moral posta em
prática, através das ações das personagens, toca “furtivamente” a alma do leitor, e o modifica,
o forma, o educa.

Ao tentar explicar como é possível colocar a “moral em exercício”, Mattos inicia sua
exposição afirmando que com Richardson, o romance passa ao serviço da moralidade, já que
sua obra pretende mostrar a relação essencial entre a felicidade e a virtude, que “[...]
independente de qualquer consideração ulterior a esta vida, nós não temos nada de melhor a
fazer para sermos felizes do que sermos virtuosos” 577 . Richardson deve ser considerado como
o continuador da tradição dos moralistas. “Mas, se Montaigne, Charron, La Rochefoucault e
Nicole puseram a moral ‘em máximas’, Richardson a pôs ‘em ação’, o que não é a mesma
coisa” 578 . Ainda utilizando-se de Diderot, Matos explica que a máxima “[...] é uma regra de
conduta abstrata e geral, e, por isso mesmo, cabe-nos fazer sua aplicação. Em contrapartida, a

573
PRADO, Raquel de Almeida. Perversão da Retórica, Retórica da Perversão. Moralidade e forma literária
em As Ligações Perigosas de Choderlos de Laclos. Op. cit.. p. 44.
574
Ibid., p. 59. Merteuil é, juntamente com Valmont, protagonista da obra As Ligações Perigosas.
575
DIDEROT. Apud: MATTOS, Franklin de. A cadeia secreta. Diderot e o romance filosófico. Op. cit.. p. 75.
576
Sobre essa relação, será discorrido mais à frente.
577
DIDEROT. Obras II: Estética, Poética e Contos. Op. cit.. p. 18. Vale ressaltar que as obras de Ricardson
foram traduzidas para o francês, pelo Abbé Prévost, em 1742 (Pamela); 1751 (Clarisse Harlowe) e 1755
(Charles Grandisson). Montesquieu publicou sua obra Cartas Persas em 1721.
578
MATTOS, Franklin de. A cadeia secreta. Diderot e o romance filosófico. Op. cit.. p. 77.

138
ação imprime em nosso espírito uma ‘imagem sensível’, pondo-nos diante de exemplos vivos,
de carne e osso” 579 . Continua o próprio Diderot: “[...] aquele que age, nós o vemos,
colocamo-nos em seu lugar ou a seu lado, apaixonamo-nos por ou contra ele: nós nos unimos
a seu papel, se é virtuoso; nós nos afastamos dele com indignação, se é injusto e vicioso” 580 .
Assim colocada, a moral permite que não se faça nenhuma aplicação, no que diz respeito à
ação de outrem; mas a obra literária dessa forma produzida, é moral aplicada e possibilita ao
leitor saber, a partir dos exemplos que são passados, as condutas que deve seguir para que se
torne uma pessoa virtuosa.

Essa mesma idéia aparece no “prólogo” de Manon Lescaut (1731), obra literária do
século XVIII, escrita por Antoine-François d’Exiles, conhecido como Abbé Prévost. Esse
livro narra a história de um jovem de boa família, que arruinara sua vida por conta do amor
dedicado a uma cortesã. Prévost procura expor ao leitor que o seu livro não é apenas uma
“leitura agradável”, mas que serve, sobretudo, “à instrução dos costumes”. Para explicar isso,
ele inicia a constatação de uma contradição que existe nos seres humanos. Tal constatação é
assim explicada por Mattos:

[...] estimamos, em idéia, os “preceitos morais”, mas, “na prática”, deles nos
afastamos. [...] “Todos os preceitos da moral não sendo senão princípios vagos e
gerais, é muito difícil fazer deles uma aplicação ao detalhe dos costumes e das
ações”. Todos amamos, por exemplo, a “doçura” e a “humanidade” e temos
inclinação para praticá-las, mas, no momento de exercitá-las, freqüentemente
hesitamos. Várias questões se colocam: é realmente esta a ocasião para sermos
doces e humanos? Não estamos enganados quanto a nosso objeto? Em suma,
tememos ficar aquém ou além de deveres que estão encerrados de modo demasiado
obscuro nas noções gerais de humanidade e doçura. Nestes casos, só a
“experiência” pode determinar racionalmente a inclinação do coração, mas nem
todo mundo pode se beneficiar dela, que depende das situações diferentes em que
cada qual se acha colocado pela fortuna. Assim, para suprir a experiência, existe o
“exemplo” e daí a “extrema utilidade” de obras como Manon 581 .

Ou seja, quando se depara com a ação das personagens em uma determinada obra
literária, o leitor tem a possibilidade de vislumbrar uma experiência, talvez nunca vivida por
ele (e que pode nunca ser vivida). Contudo, essa experiência servirá como um exemplo a ser
seguido no momento em que esse leitor deparar-se com algo semelhante. Como não se pode

579
Id.
580
DIDEROT. Obras II: Estética, Poética e Contos. Op. cit.. p. 16.
581
MATTOS, Franklin de. A cadeia secreta. Diderot e o romance filosófico. Op. cit.. p. 78-79.

139
antecipar os acontecimentos da vida, fica complicado saber como se deve agir em uma
situação nova, em que não se tem um modelo de comportamento a ser seguido, ou seja,
valores morais que possibilitem a tomada de decisão. A literatura serve, entre outras coisas,
justamente, para que seja possível proporcionar aos homens inúmeros exemplos de conduta,
nas mais diversas situações. Ao tomar essas situações como um paradigma de
comportamento, o leitor consegue acumular uma espécie de experiência, ainda que não vivida
por ele, que o ajudará nas ocasiões em que ele precise tomar decisões, no que diz respeito ao
seu comportamento. Nesse sentido, Mattos afirma que a tarefa do romancista é maior do que a
do moralista, porque esse último mobiliza apenas a razão 582 , e o romancista, além da razão,
mobiliza os sentimentos.

“O efeito mais importante dessas ‘imagens’ é produzir ‘equivalências de ação’” 583 . Ao


se ler um livro, o leitor, durante algumas horas, gasta uma energia igual à da personagem.
Quem lê o Cândido fica angustiado nos momentos em que o protagonista, de mesmo nome,
passa por momentos aflitivos; fica alegre, aliviado, nas poucas passagens de tranqüilidade,
alegria. Quando a obra termina, a energia gasta é equivalente à que Cândido gastou para
passar por todas as desgraças, e pouquíssimas alegrias que percorreu. O mesmo ocorre com o
hurão de O Ingênuo. Todos os seus sofrimentos são sentidos pelo leitor e, ao término de sua
aventura, está-se exausto dos momentos passados em estado de desespero 584 . Isso acontece
porque “[...] o romance deve [nos] tornar virtuoso(s). A equivalência de emoção cria uma
equivalência de conduta, a qual tem o valor de um compromisso” 585 .

Entretanto, é importante chamar a atenção para o fato de que Voltaire é um dos


maiores críticos, na França, da obra de Richardson. A razão da crítica é a forma exacerbada
com que autor inglês apresenta as “paixões”. “Para dar voz às paixões, ele não hesita em
passar por cima das ‘barreiras’ que ‘o uso e o tempo prescreveram às produções das artes’ e
em pisotear ‘o protocolo e suas fórmulas’. Antes de mais nada, o gênio de Richardson não
recua diante da pintura de cenas fortes e patéticas [...]” 586 . Voltaire, além de escolher, logo,

582
Ibid., p. 79.
583
Ibid., p. 80.
584
Vale ressaltar que é possível detectar essas mesmas sensações nas leituras de outras obras de Voltaire; aliás,
nas leituras de obras literárias. A ênfase dada aos contos voltairianos se dá em razão deste autor ser o exemplo
escolhido, por este trabalho, para mostrar como se dá a formação moral via literatura.
585
CHOUILLET. Apud: Id.
586
Ibid., p. 81.

140
preocupar-se com a forma, preocupa-se, e muito, com o conteúdo de seus textos. Suas
discussões são racionais ou em vista de uma racionalidade. Já Diderot, defensor do estilo
richardsoniano, inquieta-se com a melhor maneira de fazer o seu leitor sentir, através do
“silêncio” e do “ruído”, propiciados pelo teatro587 . Em Voltaire, há a prevalência do logos, do
discurso, mesmo quando ele pretende tocar as paixões daqueles que o lêem. Por esse motivo,
a relação entre o que fez Richardson, segundo Diderot, e a intenção de Voltaire em criar uma
“emulação positiva” no seu leitor, fazendo com que, ao ler um determinado texto, este saiba
como conduzir a sua vida virtuosamente, torna-se possível e não se incorre em erro, ao se
afirmar que Voltaire colocou a “moral em exercício” para formar, educar o gênero humano. A
crítica feita pelo “Patriarca de Ferney” ao literato inglês não o impossibilita de colocar a
moral em prática, uma vez que Voltaire não escreveu através de máximas morais, como
fizeram os moralistas. Ele foi um philosophe romancista, que se preocupou em tocar a razão e
os sentimentos 588 .

Na Ilustração, não existe diferença entre ético e estético no romance 589 ; ou seja, há
uma estreita relação entre moralidade e forma literária. Parece ocorrer, tantos século depois,
um retorno ao que pregou Isócrates, retor grego que moralizou a retórica por entender que ela
só poderia ser aceitável se estivesse a serviço de uma causa honesta e nobre 590 . No XVIII,
forma e conteúdo estão a serviço da moralidade, uma vez que “[...] forma estética e reflexão
ética se enriquecem mutuamente. [...] [no] realismo moral do século XVIII, moralidade e
forma literária se determinam” 591 . Segundo a interpretação de Raquel Prado, uma das
principais características da literatura da Ilustração, essencial quando se leva em consideração
as leis da retórica, é a preocupação com o público 592 . Não se deve esquecer que a missão dos
philosophes era pedagógica e civilizatória; portanto, a mais importante preocupação da
literatura, naquele momento, não poderia deixar de ser com os seus leitores. Diderot é

587
“[…] trata-se dos mesmos ‘quadros’ energéticos, com pouco discurso e nenhum decoro, preenchidos
sobretudo por gritos, ruídos ou silêncio, os mais apropriados para expressar as vozes das paixões”. (Ibid., p. 81-
82.
588
Para Voltaire, é uma impossibilidade excluir, da vida dos homens, as paixões. A razão deve, sempre,
controlá-las. A esse respeito, será discorrido mais adiante.
589
PRADO, Raquel de Almeida. Perversão da Retórica, Retórica da Perversão. Moralidade e forma literária
em As Ligações Perigosas de Choderlos de Laclos. Op. cit.. p 11.
590
Cf.: REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Op. cit.. p. 11.
591
PRADO, Raquel de Almeida. Perversão da Retórica, Retórica da Perversão. Moralidade e forma literária
em As Ligações Perigosas de Choderlos de Laclos. Op. cit.. p. 18 e 82.
592
Ibid., p. 33.

141
considerado um dos fundadores do realismo moderno 593 ; o mesmo pode ser dito de Voltaire, e
dos outros philosophes que, com suas penas, tentaram mudar a face do mundo, tentaram
formar os homens para que estes fossem autônomos e alcançassem a Ilustração.

Uma forma de expressão literária que possui esses fins; a saber, formar o homem, e
que foi bastante difundida no século XVIII, sobretudo na pena de Voltaire, é o panfleto.
Como define Yves Reuter 594 , são textos escritos de forma polêmica e direta. Tais escritos
possibilitam, também, que conheçamos a vida íntima de alguns personagens 595 . De acordo
com Hazard 596 , a maior modificação que a literatura sofreu no século XVIII foi transformar-
se em um campo de batalha para as idéias. Ou seja, por mais que a origem desse tipo
“moralista” de literatura tenha surgido na Grécia antiga, somente séculos depois,
especificamente no período Ilustrado, esse uso será feito de forma intensificada, com o
objetivo de esclarecer os homens, fazer com que se possa alcançar o que os philosophes
chamavam de Ilustração, uma vez que eles tinham plena consciência de que os homens de sua
época não estavam nesse estágio de esclarecimento ainda 597 . Por isso, a instauração da razão
como força para dirigir o mundo era urgente naquele momento; por isso a necessidade de
formar, educar os homens.

Em 1721, Montesquieu publica suas Cartas Persas, que contou com trinta edições
enquanto o seu autor ainda estava vivo. Como dito no primeiro capítulo deste trabalho, a

593
MATTOS, Franklin de. A cadeia secreta. Diderot e o romance filosófico. Op. cit.. p. 13. Conferir explicação
mais detalhada acerca desse assunto na nota 568 deste capítulo.
594
Cf.: REUTER, Yves. Introdução à análise do romance. Op. cit.
595
Um panfleto que possibilita esse conhecimento, dentre outros, é o texto Memórias, de Voltaire, no qual ele
desfere sua arma, a pena, contra Frederico II, monarca prussiano, que se tornou seu inimigo. Tempos depois, eles
reataram as relações. Sobre esse assunto, ver capítulo segundo, páginas 76-83.
596
Cf.: HAZARD, Paul. O pensamento europeu no século XVIII. Op. cit. p. 207
597
Voltaire, e depois Kant, chegam a afirmar, em seus textos, que eles ainda não vivem num momento Ilustrado.
“Vejo que hoje, neste século que é a aurora da razão, algumas cabeças dessa hidra do fanatismo renascem ainda.
Parece que seu veneno é menos mortal e suas bocas menos devoradoras. O sangue não correu pela graça versátil
como correu durante tanto tempo pelas indulgências plenárias, vendidas no mercado; mas o monstro ainda
subsiste: quem quer que procure a verdade se arriscará a ser perseguido. Será preciso ficar ocioso nas trevas? Ou
será preciso acender uma chama na qual inveja e a calúnia acenderão suas tochas? Creio que a verdade não deve
se ocultar diante desses monstros assim como ninguém deve se abster de ingerir alimento por medo de ser
envenenado.” (VOLTAIRE. O Filósofo Ignorante. Op. cit.. p. 163). “Se for feita então a pergunta: ‘vivemos
agora em uma época esclarecida [aufgeklärten]’?, a resposta será: ‘não, vivemos em uma época de
esclarecimento [‘Aufklärung’]. Falta ainda muito para que os homens, nas condições atuais, tomados em
conjunto, estejam já numa situação, ou possam ser colocados nela, na qual em matéria religiosa sejam capazes de
fazer uso seguro e bom de seu próprio entendimento sem serem dirigidos por outrem. Somente temos claros
indícios de que agora lhes foi aberto o campo no qual podem lançar-se livremente a trabalhar e tornarem
progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento [‘Aufklärung’] geral ou à saída deles, homens, de
sua menoridade, da qual são culpados”. (KANT, Immanuel. “Resposta à pergunta: Que é ‘Esclarecimento’
(Aufklärung)?” In: Textos Seletos. Op. cit.. p. 112).

142
explicação dada pelo philosophe por ter optado em escrever de maneira romanciada, ou seja,
literária, é colocada na boca do protagonista do romance, na carta 11 (a obra é epistolar).
Nessa carta, Usbek se propõe a discorrer sobre a virtude, a justiça e, por conta disso, expõe a
Mirza, seu destinatário, que preferiu não escrever arrazoados abstratos, uma vez que com
“certas verdades” é preciso fazer sentir e não apenas persuadir. Afirmando isso, Montesquieu
quis, segundo Mattos, mostrar que a verdade filosófica não se exprime apenas na forma do
conceito, mas também de maneira sensível, ao misturar razão e fábula, logos e mythos. “Mais
ainda: enquanto os ‘arrazoados abstratos’ e a ‘filosofia sutil’ têm um efeito limitado e apenas
‘persuadem’, as histórias, além de persuadir, ‘fazem sentir’ sendo portanto mais eficazes para
exprimir as ‘verdades morais’” 598 .

Mais uma vez, aparece a valorização das paixões (porque será através delas que o
leitor conseguirá “sentir” mais fortemente as verdades morais), em detrimento do
racionalismo clássico do século XVII. As paixões foram reabilitadas pelo século XVIII;
porém, não se pode perder de vista que cabe à razão guiá-las, para que se possa chegar ao
esclarecimento. Mesmo em Voltaire, que, como visto anteriormente, valoriza o discurso
racional em suas obras, ele afirma que é impossível suprimir as paixões, e mesmo um erro.

Montesquieu influenciou, com sua obra romanesca, não apenas os decisivos romances
filosóficos: A Nova Heloísa, As ligações perigosas ou A religiosa. Mas, também, o conto
filosófico de Voltaire, baseado no procedimento do dépaysement, ou seja, na “[...]
transplantação [das personagens] para uma realidade estranha, que é preciso a todo preço,
entretanto, assimilar 599 ”. Assim, as personagens precisam “aprender” a conviver com a nova
realidade, os costumes, as crenças e passam, dessa maneira, por um processo de formação.
Vale lembrar que através dos enredos das obras, os autores divulgam não só valores morais,
ou seja, regras de conduta para o comportamento em sociedade, mas também os valores
ilustrados, as principais idéias defendidas pelos philosophes na Ilustração.

598
MATTOS, Franklin de. A cadeia secreta. Diderot e o romance filosófico. Op. cit.. p. 36. “Aliás, sustentar o
valor didático incomparável do exemplo concreto será, segundo Georges May, um lugar-comum entre os
romancistas da primeira metade do século, um dos argumentos prediletos dos autores que procuravam conciliar o
alcance moral e a fatura realista do romance. No prefácio de Manon Lescaut, por exemplo, Prévost caracterizará
o romance como ‘tratado de moral’ agradavelmente reduzido a ‘exercício’ e, no Elogio de Richardson, Diderot
dirá a mesma coisa usando o termo ‘moral aplicada’”. Cf.: Id. De acordo com Mattos, Montesquieu deve ter sido
um dos primeiros a explorar essa idéia no prefácio das Cartas.
599
MATTOS, Franklin de. A cadeia secreta. Diderot e o romance filosófico. Op. cit.. p. 38. O que acontece com
Cândido, Zadig, O Ingênuo, para citar alguns exemplos.

143
Nesse contexto, a propaganda ilustrada, difundida via as obras literárias, era um
importante recurso para a formação do homem, já que esses valores ilustrados também
formavam e auxiliavam na assimilação dos valores morais. E, segundo Auerbach, o maior
mestre dessa propaganda foi Voltaire. A maneira como ele escreve, as técnicas, os artifícios
retóricos que utiliza 600 servem, perfeitamente, à publicidade dos valores ilustrados.
Comentando uma passagem de um texto voltairiano, Auerbach chama a atenção para “[...] o
ethos educacional do grande iluminista que seria capaz de empregar a força do último suspiro
para a formulação espirituosa e amável de um conhecimento” 601 . Ainda de acordo com esse
intérprete, há uma função didática nos escritos de Voltaire 602 . Assim, é possível afirmar que a
educação é, para Voltaire, um elemento importante em suas reflexões. O autor do Cândido
acredita que o homem é perfectível. A esse respeito ele expressa, no Dicionário Filosófico,
que o homem é um ser passível de, pela educação, melhorar, já que é possível aperfeiçoá-
lo 603 . Por essa razão, deve-se instruir o indivíduo para que ele se torne melhor. Para Voltaire,
não há o que não possa ser ensinado ao homem: “Ensina-se honestidade aos homens, senão
poucos chegariam a tê-la [...]. Ensina-se tudo aos homens” 604 . E esta foi a tarefa de toda a sua
vida.

4.4. Voltaire e a preparação para a “moral em exercício”

600
Tais técnicas são elencadas por Auerbach e podem ser assim resumidas: colocar o problema desde o primeiro
momento, fazendo com que a solução que se espera já esteja na colocação; “iluminar” de maneira excessiva uma
parte pequena de um todo, deixando o resto na “escuridão”, resto este que serviria de contrapeso do que foi
“clareado”; simplificação dos problemas, tornando a velocidade da narrativa extremamente alta e o uso constante
de metáforas. (Cf.: AUERBACH, Erich. “A ceia interrompida”. In: Mimesis: A representação da realidade na
literatura ocidental. 4ª ed. Tradutores não nomeados. São Paulo: Perspectiva, 2002 (Coleção “Crítica”). p. 360-
362). O próprio Voltaire explica, na vigésima quinta carta da obra Cartas Filosóficas, que se utiliza de metáforas
porque a comparação tem como objetivo esclarecer e tornar as coisas mais sensíveis. Como o projeto de Voltaire
está diretamente ligado à educação, a divulgar valores morais para a sociedade, e suas obras servirem de
difusoras do seu pensamento, ele usa o mecanismo da comparação para se fazer entender por um número maior
de pessoas. Ver citação referente à nota 407 do capítulo segundo.
601
AUERBACH, Erich. “A ceia interrompida”. In: Mimesis: A representação da realidade na literatura
ocidental. Op. cit. p. 369.
602
Ibid., p. 367.
603
Cf.: VOLTAIRE. Dicionário filosófico. Op. cit.. p. 117. Verbete: Caráter. E, também, ver nota 386 do
capítulo anterior.
604
. VOLTAIRE. Cartas Filosóficas. Op. cit.. .p. 54.

144
Os contos voltairianos foram escritos em um longo período, compreendido entre os
anos de 1715 e 1775. Com pouco mais de vinte anos de idade, o jovem Arouet escreveu O
carregador caolho (1715) e Cosi Sancta (1715). Mas, sua primeira publicação em forma de
conto data de 1747; trata-se de Memnon, que será uma primeira versão de Zadig (1748).
Somente trinta e dois anos depois de escrever os primeiros contos, Voltaire resolve publicá-
los. Por quê?

Deloffre explica que, inicialmente, o philosophe enxergava o conto “[...] como uma
espécie de jeu de societé e os escrevia para diversão da corte da duquesa du Maine, trazendo-
lhe essas histórias assim como ‘outros portavam flores ou caça’” 605 . A partir de 1734, depois
da publicação e do escândalo gerado pelas Cartas Filosóficas, Voltaire se instala na
propriedade de Madame du Châtelet, em Cirey, e dedica-se aos estudos da grande literatura,
das experiências físicas e da obra de Newton. Nesse período, ele continua a escrever seus
contos e aproveita os enredos para tratar dos grandes temas que o ocupam nos momentos de
estudos. Esses contos sevem, ainda, como distração aos hóspedes que Madame du Châtelet
recebe. São dessa época: o Sonho de Platão (1737 ou 38), inspirado pelo Timeu; e Gangan,
primeira versão do Micrômegas, fruto das conversas entre Voltaire e Maupertuis que esteve
no pólo.

Em 1739, uma rápida estada em Paris inspira a confecção de Visão de Babouc ou O


mundo como ele vai, considerada, por alguns críticos, como a obra em que Voltaire “[...]
exprime de modo lapidar a sabedoria de seus contos” 606 . De 1744 a 1747, ao lado de Madame
du Châtelet, não mais em Cirey, agora em Sceaux e Versailles, o philosophe retorna ao conto.
Mergulhado na agitação desses dois lugares, escreve a primeira versão do Memnon. Esse
conto foi o primeiro a ser publicado, por conta da insistência da Duquesa du Maine. “As
publicações de Zadig e Visão de Babouc, em 1748, confirmam a mudança de atitude de
Voltaire em relação aos escritos que costumava tratar de ‘bagatelas filosóficas’” 607 .

Entre os anos de 1750 e 1753, o endereço de Voltaire é a corte de Frederico II, rei da
Prússia. Nesse período, ele dá o formato final ao Micrômegas, cujo esboço já havia sido

605
DELOFFRE. Apud: MATTOS, Franklin de. A cadeia secreta. Diderot e o romance filosófico. Op. cit.. p. 23.
606
Ibid., p. 23. Esse pequeno histórico acerca da confecção de alguns contos de Voltaire foi extraído, também, de
Mattos, páginas 22 a 25.
607
Ibid., p. 24.

145
mandado, anteriormente, ao soberano. Quando deixou a Prússia, nas circunstâncias descritas
no capítulo anterior, ele escreveu a História das viagens de Scarmentado (considerado, por
Pomeau, um dos contos mais pessimista de Voltaire), publicado em 1756. Em seguida, em
1758, aparece o Cândido, sua obra-prima. Com esses dois escritos, Deloffre observa que esses
textos voltairianos ganham um acento mais pessoal. Ao reaparecerem, no período 1763-1769,
o caráter desses contos havia mudado completamente.

Consciente, desde o imenso sucesso de Cândido, do alcance do gênero que


subestimara durante tanto tempo, Voltaire doravante se entrega a ele com uma
aplicação que é quase um consentimento. [...] nada ilustra melhor o caminho que
percorreu o conto voltairiano: bem afastado da graciosa fantasia do Crocheteur
borgne [O carregador zarolho], tornou-se um instrumento bem pesado, posto a
serviço de uma causa exterior a ele 608 .

Nesse percurso, percebe-se que a perspectiva de Voltaire, no que diz respeito ao conto,
mudou. No início, esse gênero literário não passava de uma “bagatela filosófica”.
Posteriormente, o conto recebe uma importância no pensamento voltairiano, ao ponto de se
tornar uma grande arma de difusão de idéias, posto a serviço de uma causa exterior ao
philosophe. Essa causa, que caminha pari passu com o projeto pedagógico-civilizatório da
Ilustração, consiste em formar o homem, ilustrá-lo para que, dessa forma, possa-se viver de
maneira virtuosa, conseqüentemente, feliz. E, tais questões inquietaram Voltaire que, por
respeito ao gênero humano, contribuiu para que o mundo se tornasse um lugar melhor para se
viver, através dos seus escritos. O texto literário, pelas razões explicadas anteriormente, serviu
para que o philosophe pudesse “tocar”, “fazer sentir” os seus leitores; provocar uma mudança
de mentalidade, em vista de um progresso moral. Para tanto, foi necessário que ele mudasse
seu pensamento com relação ao gênero literário, e o adotasse como estratégia, instrumento
propagandístico de divulgação dos valores morais responsáveis por tornar os homens
melhores.

Como se vê, nesses sessenta anos, Voltaire praticou o conto de modo intermitente:
dedicou-se ao gênero ainda mocinho, abandonou-o completamente, calando-se por
muito tempo; voltou a experimentá-lo em seguida, abandonou-o de novo, e aos
poucos rendeu-se finalmente a seu encanto, reconhecendo-lhe a importância. Para
tanto, certamente foi preciso que renunciasse em parte à rigidez de sua formação
clássica, andando no mesmo sentido que os ventos do tempo, cada vez mais
favoráveis ao gênero romanesco 609 .

608
Id.
609
Ibid., p. 24-25. (grifo nosso). O gênero romanesco foi favorecido pelo movimento ilustrado pelas razões
expostas anteriormente.

146
O conto voltairiano, além da veiculação dos valores necessários para tornar os homens
melhores, assenta-se na idéia da “demonstração”, importante categoria do pensamento
ilustrado. A demonstração é fundamental e mesmo um dos traços estruturais e essenciais da
narrativa em Voltaire. Nesse sentido, a absoluta inocência do herói gera uma espécie de
“tabula rasa”. Portanto, o herói está predisposto à experimentação, ou seja, à sua formação
através da experiência vivida no decorrer do enredo. A explicação para a relação entre a
inocência e a demonstração é simples: “[...] Hurão ou não, importa muito que ele seja
ingênuo, pois sobre um sujeito virgem a demonstração terá o rigor científico que pode ter em
laboratório (a inocência dos indivíduos é uma forma dessa tabula rasa necessária à
experimentação)” 610 .

É importante chamar a atenção para o fato de que Voltaire, apesar de se utilizar do


conto, era um crítico mordaz do romance. Suas críticas podem ser assim resumidas: para o
leitor experimentado, o romance é inverossímil porque a exposição da alta sociedade é feita
com a intenção de agradar o leitor, sendo que o escritor não a conhece, uma vez que seu
tempo está destinado a escrever o romance, e, por conta disso, não conhecendo a alta
sociedade, a descreve exageradamente; ao buscar um “ar de verdade”, o romancista confunde-
se com seu herói; pela necessidade de ser copioso, o romance é escrito ao correr da pena,
deixando de lado o rigor necessário à criação literária; procura justificar sua utilidade através
de pretextos morais, mas por tentar seduzir a imaginação do leitor, ao contar histórias
amorosas, cai na baixa complacência 611 . Entretanto, o conto é, para Voltaire, uma espécie de
antídoto aos defeitos do romance porque além de ser mais breve é fantasista, não
concorrendo, dessa forma, com a história.

À diferença do romance que cria uma espécie de hipnose a fim de arrastar o leitor
para outro mundo, o conto voltairiano não cessa de multiplicar as idas e vindas
entre a ficção e a história presente, entre a ficção e a reflexão solta [detachée]; ele
supõe uma constante vigilância do leitor e uma constante distância do autor. Longe
de prefigurar a estética do romance realista, como se diz às vezes numa visão
grosseira das continuidades da história literária, a estética do conto voltairiano
volta-lhe as costas, e constitui em muitos aspectos um esforço para questionar pelo

610
DIDIER. Apud: MATTOS, Franklin de. A cadeia secreta. Diderot e o romance filosófico. Op. cit.. p. 128.
Esse “Hurão” é o personagem principal do conto O Ingênuo.
611
Cf.: MATTOS, Franklin de. A cadeia secreta. Diderot e o romance filosófico. Op. cit.. p. 129. Críticas dessa
natureza possibilitaram, ainda no século XVIII, o surgimento do Realismo, escola literária que pregava,
justamente, a verossimilhança nos seus enredos.

147
escárnio aquilo que aparece ao século XVIII como uma facilidade e uma aparência
enganadora 612 .

Além da primazia do literário, como afirmara Pomeau, há, na obra voltairiana, a


primazia da razão. Sendo essa uma das maiores oposições entre Voltaire e Richardson,
conseqüentemente, Diderot, quando do Elogio ao autor inglês. Mas, esse desprezo pelo
gênero romanesco, aqui entendido como o romance propriamente dito, não faz com que
Voltaire deixe de ser, juntamente com Diderot e outros autores da Ilustração, um dos
precursores do Realismo, como fora dito, anteriormente 613 .

4.5. O papel de Voltaire: civilizar, esclarecer, formar, educar os seres humanos

A Grécia e Roma civilizaram VIA LINGUAGEM. A


linguagem de vocês está nas mãos de seus escritores.
Pound 614

[...] o texto retoma o mundo, e o autor ‘ensina’ alguma


coisa do mundo ao leitor, que o ignora.
Rallo 615

Raquel Prado afirma que o romancista 616 tem como obrigação, enquanto sua tarefa,
denunciar o que as leis escritas não podem punir. “Se a corrupção da sociedade é inevitável,
até certo ponto ela tem como se defender, ainda que esta tarefa seja interminável. É aí que
intervêm os fundamentos-garantias da moral natural e o papel do romancista-moralizador, que
denuncia o que as leis escritas não podem punir” 617 . Voltaire fez isso em sua época, assumiu
essa missão de denunciador dos erros, dos crimes que não eram, ou não podiam ser punidos

612
MENANT. Apud: Ibid., p. 131.
613
Ver nota 78.
614
POUND. Ezra. ABC da Literatura. Op. cit.. p. 37.
615
RALLO, Elisabeth Ravoux. Métodos de Crítica Literária. Op. cit.. p. 104.
616
Deve-se entender romancista como o escritor que produz textos literários, ainda que estes não sejam
propriamente romances. No caso específico dos autores da Ilustração, os philosophes, eles eram romancistas
também, visto que se utilizaram das mais diversas expressões literárias para divulgar suas idéias.
617
PRADO, Raquel de Almeida. Perversão da Retórica, Retórica da Perversão. Moralidade e forma literária
em As Ligações Perigosas de Choderlos de Laclos. Op. cit.. p. 99.

148
pelo direito positivo. Mattos explica, a partir de Chouillet, que a tarefa do romancista é
ensinar, aos prisioneiros da Caverna de Platão, a distinguir o verdadeiro do falso 618 . Nesse
sentido, os objetivos do romancista são dois: desejar que acreditem nele, que considerem sua
história verossímil; mas quer, igualmente, interessar, encantar 619 . O papel do “Patriarca de
Ferney” na Ilustração, segundo Souza, foi esclarecer os homens, como fica claro em uma
passagem do livro, dessa comentadora, Voltaire a razão militante:

Assim, ao se propor lutar contra vários adversários, Voltaire constrói um


pensamento essencialmente crítico, segundo o qual cabe à razão e à filosofia
esclarecer os homens para que se libertem da superstição, da ignorância e da
opressão. [...] a demolição efetuada por sua filosofia não é pura destruição. É feita
em nome do uso esclarecido e livre da razão, único instrumento capaz de libertar os
homens de tudo que os amedronta e lhes dar o conhecimento verdadeiro das coisas
que são úteis ao seu bem-estar e felicidade 620 .

Esta preocupação com a felicidade, ainda de acordo com Souza, dá-se porque, para
Voltaire, a infelicidade do homem existe não por conta das desigualdades sociais e sim em
razão da heteronomia em que este se encontra. Apesar de não estar escrito de forma explícita
que há uma preocupação de Voltaire com a educação do homem, esta preocupação existe. Da
mesma maneira que existe em todos os escritos ilustrados, uma vez que o objetivo maior da
Ilustração estava pautado no esclarecimento dos homens para que estes pudessem alcançar a
autonomia. Não só esta citação de Souza, que traz, nas suas linhas, o motivo da infelicidade
do homem e como resolver este problema (através da autonomia 621 ), deixando claro a união
entre Voltaire e o ideal pedagógico ilustrado, demonstra o caráter educativo que a obra
voltairiana possui. Salinas Fortes refere-se a Voltaire como sendo “[...] o resumo vivo da
época” 622 . Época esta que, como fora dito, tinha um ideal pedagógico: esclarecer a
humanidade para que esta alcançasse a autonomia da razão.

618
CHOUILLET. Apud: MATTOS, Franklin de. A cadeia secreta. Diderot e o romance filosófico. Op. cit.. p.
86.
619
Ver: Ibid.,p. 121. Vale ressaltar que Mattos utiliza a palavra “verdadeiro”. Optou-se aqui utilizar a palavra
“verossímil”, já que no desenvolver da idéia, Mattos explica que esse interesse, encantamento que o romancista
precisa ter, só é conseguido com o exagero, o que acaba por comprometer a verdade na história, no enredo da
obra. Sobre o “paradoxo do romance”, ver: Mattos, a obra citada acima e MATTOS, Franklin de. O filósofo e o
comediante. Ensaio sobre literatura e filosofia na Ilustração. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
620
SOUZA, Maria das Graças de. Voltaire a razão militante. Op. cit. p.07-08. (grifo nosso).
621
Só é possível que se chegue à autonomia através da educação, pois é ela quem possibilita ao homem o uso
esclarecido da razão.
622
FORTES, Luiz Roberto Salinas. O iluminismo e os reis filósofos. Op. cit. p.40.

149
onduta dos indivíduos em sociedade e a literatura é um instrumento
fundamental no processo instrutivo. Em uma de suas obras623 , Voltaire chama a atenção para
a importância das artes na formação do homem, afirmando que o povo precisa ser corrigido
pelos grandes, entendendo estes como os autores que, através das suas obras, podem formar,
educar os homens 624 .

Noutra passagem desta mesma obra, ainda sobre as influências das artes, o filósofo
mostra a importância de se ensinar pelo exemplo e pelos costumes dizendo que “Quase todos
se governam, pensam e sentem por influência do costume e da educação” 625 . A consciência
dos homens é inspirada pelo tempo e pelo exemplo, como afirmara o philosophe em seu
Dicionário Filosófico 626 . A serviço dessa educação pelo exemplo, ou seja, funcionando como
instrumento para que se possa alcançar esse objetivo, a literatura cria um mundo ficcional;
transmite, através dos enredos, modelos a serem incorporados como lições, que possibilitam o
aprendizado dos valores morais. Valores estes que são caros para que o homem alcance a
felicidade em sociedade. Felicidade que, como fora dito, depende não de sua condição social,
mas sim, da sua autonomia, do uso que o homem irá fazer da sua razão, em outras palavras,
da sua educação.

Portanto, a ficção das obras literárias, o fato destas criarem um universo e, a partir
deles, transpassar os valores, os ensinamentos, educar, faz com que a literatura seja, a um só
tempo, uma arma de combate utilizada pelos philosophes contra a tradição, e um veículo
eficaz para a transmissão dos valores, para a educação dos homens, com o intuito de se chegar
ao ideal pedagógico e civilizatório, segundo Salinas Fortes, do movimento ilustrado: a saber,
tornar os homens autônomos, esclarecidos.

623
Sobre a obra referida, Cartas Filosóficas, ver o capítulo anterior, páginas 100-106.
624
Cf.: citação referente à nota 432, do capítulo anterior. Ver, também, o capítulo referente ao Iluminismo de:
ABBAGNANO, N. e VISELBERGHI, A. História da pedagogia. Tradução de G. Quartin. Lisboa: Livros
Horizonte, 1981.
625
VOLTAIRE. Cartas Filosóficas Op. cit. .p.55. (grifo nosso).
626
Ver as citações referentes às notas 387, 388 e 389, do capítulo segundo.

150
“Em diferentes períodos da história o domínio da função estética parece se expandir ou
se contrair: Carta pessoal, às vezes, foi uma forma de arte, como foi o sermão [...]” 627 . O
século XVIII, com a Ilustração, é um exemplo de expansão do domínio da função estética. O
discurso literário, usado como canal de difusão de idéias e, conseqüentemente, possuidor de
um caráter pedagógico, foi responsável pela profusão de obras supostamente ingênuas – no
sentido de que não possuíam o objetivo apenas de entreter o leitor, como à primeira vista
parecia –, que tinham como meta verdadeira educar os homens, ensiná-los os valores
necessários para que eles chegassem à autonomia da razão. E, como já dissera Auerbach,
Voltaire foi o maior mestre em utilizar-se desse instrumento.

4.6. As “paixões” em Voltaire: a possibilidade de “fazer sentir”

Os antigos conheceram pouco essa inquietação secreta,


esse amargor das paixões abafadas que fermentam todas
conjuntamente. [...] os negócios do fórum e a praça pública
preenchiam todos os seus momentos e não deixavam
nenhum espaço para os fastios do coração.
Chateaubriand 628

Voltaire cria na possibilidade de perfectibilidade do homem. Para ele, este poderia se


tornar melhor através do tempo e do exemplo, que são, juntamente com a noção de “lei
natural”, os responsáveis por gerar a consciência humana 629 . Entretanto, o homem só poderia
melhorar, de acordo com o “Patriarca de Ferney”, se fosse livre. Nesse sentido, para o
philosophe, o homem possui uma “porção de liberdade”, uma vez que a Providência não é
descartada, totalmente, do pensamento voltairiano 630 : “Nossa liberdade é, como todo o resto,

627
WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários. Op. cit. p.
17-18.
628
CHATEAUBRIAND. Apud: BERGEZ, Daniel et al.. Métodos críticos para análise literária. Op. cit.. p.
152.
629
O homem possui disposições, segundo Voltaire “lei natural”, que precisam receber bons princípios para que a
sua consciência seja gerada. Esses princípios são inseridos na consciência através do tempo e do exemplo.
630
Para Voltaire, a Providência divina existe, mas é geral e não particular, como pensara a irmã Fessue, ao rezar,
pedindo a Deus que restabelecesse a vida de seu pardal. (Ver: VOLTAIRE. “Providência”. Tradução Vladimir
de Oliva Mota. In: Philosophica: Revista de Filosofia da História e Modernidade. São Cristóvão, Nº 3, março,
2002). Mas, Deus deu ao homem uma “porção de liberdade” que o possibilita agir no mundo; deixando ao
encargo do Ser Supremo tudo o que diz respeito à Providência geral. Portanto, apesar da Providência – que

151
limitada, variável, numa palavra, muito pouca coisa, porque o homem é muito pouca
coisa” 631 .

Martin-Haag, comentadora da obra voltairiana, ao tratar dessa mesma temática, utiliza-


se dos conceitos – explicados pelo philosophe em seu Dicionário – de “Causas finais”,
universais e necessárias, e “Causas contingentes” para afirmar que cabe ao homem ajudar a
Deus, ao produzir causas contingentes e, dessa maneira, aperfeiçoar a ordem do mundo e a
própria humanidade. “A educação e a filosofia, por exemplo, devem reforçar a consciência
moral. [...] Voltaire afirma que a causalidade divina deixa voluntariamente um lugar ao
homem, ao seu trabalho e a sua ação” 632 .

Ou seja, a partir das noções de “Causas finais” 633 e “Causas contingentes” 634 , Voltaire
explica a parte de liberdade que cabe ao homem dentro do plano da Providência geral, que
não é abolida de seu pensamento. Assim, mesmo com o poder divino regendo as coisas no
mundo, mais uma vez ressaltando, de maneira geral, o homem tem poder de ação, pode
intervir em seu destino, mudar a sua vida, graças às “Causas contingentes”. O exemplo dado
por Voltaire é o da jovem encerrada num convento. Seu útero, devido à idéia de “Causa
final”, foi criado, por Deus, para gerar vida. Mas, ao ser essa jovem colocada em um claustro,
nunca utilizará esse órgão para a finalidade à qual ele possui; entretanto, isso não significa
que a “Causa final” deixou de existir. Caso a enclausurada saia do convento, a “Causa
contingente” deixa de exercer poder sobre a mesma e, assim, a “Causa final”, efetivar-se-á.
“[...] uma infeliz idiota, encerrada dentro de um claustro aos quatorze anos, fecha nela para
sempre a porta donde devia sair uma geração nova; nem por isso a causa final subsiste menos;
e agirá se a pobrezinha for libertada”635 .

Nesse sentido, foi criado uma “Causa contingente” (o enclausuramento), que


determinou uma intervenção na “Causa final”. Quando o homem tem poder de ação, cria

impossibilita a idéia de liberdade –, o ser humano tem, por conta da “porção de liberdade” dada por Deus, poder
de ação, de intervenção em seu próprio destino.
631
VOLTAIRE. Elementos da Filosofia de Newton. Tradução Maria das Graças de Souza. Campinas: Editora
UNICAMP, 1996. p. 39.
632
MARTIN-HAAG, Éliane. Voltaire: du cartésianisme aux Lumières. Paris: Vrin, 2002. p. 72.
633
“Quando os efeitos são invariavelmente os mesmos, em qualquer lugar e em qualquer tempo, quando esses
efeitos uniformes são independentes dos seres aos quais pertencem, nesse caso há, visivelmente, uma causa
final”. (VOLTAIRE. Dicionário filosófico. Op. cit.. p. 191).
634
De acordo com Voltaire: “[...] há efeitos produzidos por causas finais e efeitos em grande quantidade a que
não se pode dar esse nome.” (Id). Estes últimos podem ser considerados “Causas contingentes”.
635
Ibid., p. 192.

152
“Causas contingentes” e pode optar por efetivar ou não a “Causa final”. É a partir dessa
possibilidade de ação, de escolha, que Deus entrega ao homem a “porção de liberdade” que
lhe cabe. Mota explica que a “[...] finalidade identifica-se, assim, a uma retirada inteligente de
Deus que permite ao homem livre contribuir ou não com a ordenação do mundo. [...] A
ordem, nesse caso, seria a felicidade coletiva dos homens [...]” 636 . Vale lembrar que a
preocupação com a felicidade dos homens em coletividade foi uma constante no pensamento
do “Patriarca de Ferney”, uma vez que ele estava inserido no projeto pedagógico-civilizatório
da Ilustração. Com essa “porção de liberdade” o indivíduo age, toma as suas decisões, tendo
como telos, caso este indivíduo tenha uma formação moral, a felicidade da sociedade.

Porém, existe, no homem, uma “lei natural” 637 , que somente vira ato através da ação
que este venha a tomar. Portanto, o ato, para existir, necessita da “porção de liberdade”,
reservada ao homem, para que ele possa, a partir desse ato, tornar-se melhor. É essa distância
entre a força e o ato que deixa espaço para a ação humana. O grau de liberdade será
determinado pelo bom ou mau uso que o homem fará das paixões.

Ser livre, para Voltaire, é poder fazer o que se quer, a partir de uma causa (idéia, que
pode ser guiada pela paixão ou pela razão). “Ser verdadeiramente livre é poder. Quando posso
fazer aquilo que quero, eis minha liberdade; mas quero necessariamente aquilo que quero,
pois de outro modo eu quereria sem razão, sem causa, o que é impossível. Minha liberdade
consiste em andar quando quero andar, desde que não sofra de gota” 638 . Mas, vale ressaltar
que o que motiva a ação humana são as paixões; elas são a potência da alma, de acordo com
Voltaire. Cabe à razão orientá-las.

Quando a idéia é orientada pela razão, o homem é esclarecido, autônomo; quando a


paixão abusa de seu poder, o homem é levado pela embriaguez. Como a “lei natural” é uma
força – não o ato em si; e a consciência humana é formada a partir da união entre as
disposições e os princípios, dados ao homem pelo tempo e pelo exemplo, ou seja, pela

636
MOTA, Vladimir de Oliva. “Sátira e metafísica”. In: Voltaire e a crítica à metafísica. Op. cit.. p. 102-103.
637
A “lei natural” pode ser entendida, em Voltaire, como instinto, disposição, força. É importante explicar a
construção da “lei natural” no pensamento voltairiano: essa noção foi gerada a partir da transposição da idéia de
“lei” do mundo da física, em Newton, para o da moral, em Voltaire. Lei seria, de acordo com Martin-Haag, “[...]
um fato geral ou de uma relação constante que se pode aplicar a uma infinidade de casos.” (MARTIN-HAAG,
Éliane. Voltaire: du cartésianisme aux Lumières. Op. cit.. p. 109). Ver também, com relação à influência de
Newton na obra de Voltaire: MOTA, Vladimir de Oliva. “A herança inglesa e a idéia de conhecimento útil”. In:
Voltaire e a crítica à metafísica. Op. cit..
638
VOLTAIRE. O Filósofo Ignorante. Op. cit.. p. 304. (grifo nosso).

153
educação –, é necessário que sejam gravados na consciência do homem bons princípios, para
que, a partir deles, este possa agir de maneira correta em sociedade, ou seja, moralmente. A
pretensão de Voltaire é o equilíbrio entre a razão e as paixões, já que estas são a potência que
motiva os seres humanos à ação; tendo sempre a primeira como guia da segunda.
Minha liberdade consiste em não fazer uma ação má quando é representada por
meu espírito como necessariamente má; [...] Podemos reprimir nossas paixões, [...]
mas nesse caso não somos livres nem ao reprimir nossos desejos nem ao nos
deixarmos arrastar por nossas inclinações, visto que em ambos os casos seguimos
irresistivelmente nossa última idéia, e esta é necessária; portanto, faço
necessariamente o que ela me dita. É estranho que os homens não estejam contentes
com essa porção de liberdade, isto é, com o poder que receberam da Natureza para
fazer o que quiserem em muitos casos 639 .

Resumindo: a “lei natural”, para virar ato, precisa da ação humana. Essa ação é
impulsionada pelas paixões 640 . Como, então, tornar o homem melhor, aperfeiçoá-lo? Como
atingir a finalidade desse aperfeiçoamento: o progresso moral? Responde Voltaire: agindo
sobre as paixões e sobre a razão, entendida aqui como “opinião publica” ou “espírito do
tempo” 641 .

Portanto, para efetivar a “lei natural”, torná-la ato, Voltaire acreditava que os
philosophes deveriam agir sobre as paixões e o “espírito do tempo”, fazendo, assim, com que
os homens pudessem, por si só, aperfeiçoar-se moralmente. Nesse sentido, o papel do
“romancista-moralista”, via a sua literatura, é gerar uma “emulação positiva”, que seria,
utilizando termos voltairianos, a causa contingente responsável por efetivar a “lei natural”,
agindo sobre as paixões e a razão (“espírito do tempo”) e possibilitando que os cidadãos
possam melhorar moralmente. Essa é a explicação para o motivo de Voltaire escrever contos,
ou seja, textos literários: ele coloca as paixões a serviço da razão, no momento mesmo em que
expõe, em seus contos, a “moral em exercício”. O que pretendia o philosophe era “[...]
dedicar-se ao exame dos costumes, isto é, da economia das paixões e da razão que caracteriza
uma ordem das coisas ou uma ordem da sociedade, a fim de criar uma “emulação” positiva
que excita os homens ao progresso” 642 .

639
Ibid., p. 304-305.
640
Ver: MOTA, Vladimir de Oliva. “Sátira e metafísica”. In: Voltaire e a crítica à metafísica. Op. cit.. p. 103-
105.
641
Voltaire pauta-se na opinião pública porque, para ele, a razão, sozinha, pode equivocar-se. Nesse sentido, ele
entende o conceito de razão a partir de “espírito do tempo”, que considera algo bom para a sociedade, quando é
útil para esta; entendendo útil como virtuoso.
642
MARTIN-HAAG, Éliane. Voltaire: du cartésianisme aux Lumières. Op. cit.. p. 127.

154
Mota, ao tratar da função da sátira em Voltaire, explica que essa “emulação” “[...]
supõe uma comparação e, desta maneira, um uso crítico da história universal com propósito
de colocar as paixões a serviço da razão e do interesse público e, desta forma, estabelecendo
costumes que contribuam para o bem-estar da sociedade 643 .” Para esse comentador, o meio
para agir sobre as paixões, para a efetivação das “leis naturais”, criando uma “emulação
positiva”, é através do exercício da sátira. “Esta é a função ‘construtiva’ da sátira: contribuir
para o melhoramento moral do homem” 644 . Dessa maneira, Voltaire, via suas obras literárias
– e, de acordo com a análise feita por este trabalho, não somente a sátira –, pretende excitar os
homens, apresentando-os exemplos que devem ser seguidos para que a humanidade alcance o
progresso moral, tão almejado pela Ilustração. A apresentação desses exemplos é feita quando
o philosophe, ao escrever os seus enredos, coloca a “moral em exercício”. Suas personagens
indicam, aos homens, o caminho para o aperfeiçoamento moral. E, a melhor maneira de
constatar essa função da literatura na obra voltairiana é através da pena do próprio Voltaire.
Nesse sentido, faz-se necessária a análise de um de seus contos, chamado Jeannot e Colin, em
razão deste trazer, em suas linhas, um enredo que exorta a importância da educação. Além
disso, esse conto é considerado, por alguns comentadores de Voltaire, como um conto
Moral 645 .

4.7. O enredo a serviço da “moral em exercício”: Jeannot e Colin

As artes têm em comum com a ciência serem, como estas,


fundadas na razão, e devem deixar-se conduzir pelas luzes
que a natureza nos deu.
Le Bossu 646

643
MOTA, Vladimir de Oliva. “Sátira e metafísica”. In: Voltaire e a crítica à metafísica. Op. cit.. 105.
644
Id.
645
Milliet, na apresentação que ele faz desse conto, explica que esse texto deve ser considerado mais um conto
moral do que um quadro crítico dos costumes. Ver: MILLIET, Sérgio. “Nota introdutória ao conto ‘Jeannot e
Colin’”. In: VOLTAIRE. Contos. Op. cit.. p. 343. Mervaud também o rotula como conto moral. Ver:
MERVAUD. Apud: GUITTON, Edouard. “Notices et Notes”. In: VOLTAIRE. Romans et Contes en vers et en
prose. Op. Cit.. p. 918.
646
LE BOSSU. Apud: CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Op. cit.. p. 374.

155
4.7.1. Considerações acerca de Jeannot e Colin

Jean-Joseph Vadé, poeta francês, morreu em 1757. Porém, o autor de uma coletânea
de contos, dentre os quais Jeannot e Colin, Guillaume Vadé, nunca existiu. Este é mais um
dos pseudônimos utilizado por Voltaire.

Publicado em 1764, Jeannot e Colin tem como espaço, para o desenvolvimento do


enredo, a França do século XVIII. Sérgio Milliet, responsável pelas notas introdutórias aos
textos voltairianos publicados pela edição de 2005 da Editora Globo, afirma que “Jeannot e
Colin, em que pesem as alusões a acontecimentos contemporâneos [à época de Voltaire], é
mais um conto moral que um quadro crítico de costumes”647 . Na confecção desse conto, que é
uma preparação para outro, publicado posteriormente 648 , Voltaire encontra-se em Ferney. É
uma obra de maturidade, que apresenta o trabalho como algo útil e a salvação da França como
sendo a agricultura científica e a indústria; ou seja, não é mais o Voltaire cortesão, mas o
“Patriarca” que traz, para suas terras, artesãos relojoeiros e inicia a organização de uma
fábrica de meias de seda 649 .

Tal conto é uma narrativa que atesta a preocupação de Voltaire com a educação moral,
ao indicar, em suas linhas, as conseqüências maléficas geradas por uma má formação. Ele
ensina via os valores morais que são passados e mostra que a verdadeira importância da
educação moral, e seu principal objetivo, é a busca da felicidade, a convivência pacífica, o
bem-estar social. Eis a razão da ode à amizade, da preocupação do autor em expor um
exemplo de companheirismo verdadeiro, ao ponto de colocar como epifonema que “[...] a
felicidade está no trabalho e na generosidade” 650 , e não na vaidade, como pensou a família
Jeannotière 651 .

Já que essa felicidade, buscada pelos philosophes na Ilustração, está pautada na


autonomia do homem, como afirmara o próprio Voltaire em um verbete do seu Dicionário

647
MILLIET, Sérgio. “Nota introdutória ao conto ‘Jeannot e Colin’”. In: VOLTAIRE. Contos. Op. cit.. p. 343.
(grifo nosso).
648
O Ingênuo. Cf.: GUITTON, Edouard. “Notices et Notes”. In: VOLTAIRE. Romans et Contes en vers et en
prose. Op. Cit.. p. 919.
649
MILLIET, Sérgio. “Nota introdutória ao conto ‘Jeannot e Colin’”. In: VOLTAIRE. Contos. Op. cit.. p. 343.
650
Id.
651
Composta por Jeannot e seus pais.

156
Filosófico 652 , é necessária a busca pelo progresso moral para que, dessa maneira, o homem
possa viver em sociedade, tendo em vista os valores que são importantes ao bem-estar. Como
dito anteriormente, o progresso moral é a finalidade última do aperfeiçoamento humano,
buscado pelo “Patriarca de Ferney”, assim como os philsophes, seus contemporâneos.

4.7.2. Jeannot e Colin: um conto moral; não um quadro crítico dos costumes

Aos 70 anos, em sua propriedade localizada na fronteira com a Suíça, o “Patriarca de


Ferney” publicou um conto, aparentemente ingênuo, que narrava a história das venturas e
desventuras de dois amigos: Jeannot e Colin. Ambos viviam na província francesa, mais
especificamente na cidade de Issoire, em Auvergne, “[...] famosa em todo o universo por seus
colégios e seus tachos” 653 . O pai de Jeannot, conhecido na cidade, era vendedor de mulas; o
de Colin, um pobre lavrador, que cultivava a terra, possuía quatro animais e sofria bastante
com os abusos praticados na arrecadação de impostos.

Esses dois meninos eram bastante bonitos para aquele rincão. “[...] estimavam-se
muito e tinham dessas pequenas intimidades, dessas pequenas confidências que a gente
sempre relembra com agrado, quando torna a encontrar-se mais tarde” 654 . Quando estava
próximo ao final do ano, um alfaiate deu a Jeannot uma roupa pomposa, refinada, que veio
acompanhada de uma carta endereçada ao senhor de La Jeannotière, seu pai. “Colin mirou a
roupa, sem sentir inveja; mas Jeannot tomou um ar de superioridade que afligiu Colin. Desde
esse momento Jeannot não estudou mais, olhava-se ao espelho e desprezava a todo
mundo” 655 . Um tempo depois, o senhor de La Jeannotière recebeu uma carta do senhor seu
pai, ordenando que o filho fosse à Paris. “Jeannot subiu para o carro, estendendo a mão a
Colin com um nobre sorriso protetor. Colin sentiu seu próprio nada e chorou. Jeannot partiu
em toda a pompa da sua glória” 656 .

652
VOLTAIRE. Dicionário filosófico. Op. cit.. p. 217. Verbete Igualdade. A esse respeito, Souza também
comenta. Ver páginas 151 e 152 deste capítulo.
653
VOLTAIRE. “Jeannot e Colin”. In: Contos. Op. cit.. p. 345.
654
Id. (grifo nosso).
655
Id. (grifo nosso).
656
Id. (grifo nosso).

157
A partir desse momento do enredo, Voltaire inicia um diálogo com o leitor, com a
intenção de explicar o porquê de a família Jeannotière ter partido para Paris e como eles
ficaram ricos:
Os leitores que gostam de instruir-se devem saber que o senhor Jeannot pai
adquirira uma fortuna imensa nos negócios. Indagais como se fica assim tão rico?
Mera questão de sorte. O senhor Jeannot era bem [apresentável, simpático], sua
mulher também, e ainda estava bastante viçosa. Foram ambos a Paris, devido a um
processo que os arruinava, quando a sorte, que eleva e rebaixa os homens a seu bel-
prazer, o apresentou à esposa de um empreiteiro dos hospitais militares, homem de
grande talento e que podia gabar-se de haver liquidado mais soldados em um ano
do que um canhão em dez. Jeannot agradou a madame; a mulher de Jeannot
agradou a monsieur. Em breve Jeannot participava da empresa; meteu-se em outros
negócios. Quando a gente está na correnteza, é só se deixar carregar; e faz-se sem
trabalho uma fortuna imensa. [...] Foi o que aconteceu a Jeannot pai, que em breve
se transformou em senhor de La Jeannotière e que, tendo adquirido um marquesado
ao cabo de seis meses, retirou da escola o senhor marquês seu filho, para introduzi-
lo na alta sociedade de Paris 657 .

Eis que se inicia o desenvolvimento que levará, à desgraça, os Jeannotières; entretanto,


eles não têm a menor noção do que está para acontecer. O amigo Colin, que ficara no
Auvergne, sempre saudoso, fiel e terno, escreveu uma carta de cumprimentos a Jeannot,
felicitando-o pela nova situação, pelo título recebido. Porém, o marquesinho não enviou
resposta alguma ao amigo provinciano. “Colin adoeceu de pesar” 658 .

Enquanto isso, em Paris, os pais de Jeannot, preocupados com a melhor educação que
o filho poderia ter, procuraram por um preceptor. Encontram-no. Este era um “[...] homem da
alta e que nada sabia [...] 659 ”, fazendo, assim, com que coisa alguma fosse ensinada ao
pupilo. Jeannot pai queria que o filho aprendesse latim; madame Jeannotière, não. Para
resolver esse impasse, os pais de Jeannot convidaram para jantar, além do preceptor, um
famoso autor, que escrevia “obras agradáveis”, com a intenção de que ele pudesse ajudar na
solução desse problema.

Jeannot pai iniciou a conversa, afirmando ser esse autor, que fora convidado para
jantar, um homem da corte que sabe latim... E o convidado irrompeu: “Eu, senhor, latim?!
Não sei uma palavra de latim e me dou muito bem com isso: é claro que se fala muito melhor
a própria língua quando não se divide a aplicação entre elas e as línguas estrangeiras. Veja
todas as nossas damas: têm um espírito muito mais agradável que o dos homens; as suas

657
Ibid., p. 345-346. (grifo nosso).
658
Id. (grifo nosso).
659
Id. (grifo nosso).

158
cartas têm cem vezes mais graça; e, se nos levam essa vantagem, é porque não sabem
latim” 660 .

Madame Jeannotière, ao término das palavras do ilustre convidado, disse que tinha
razão em não querer que seu filho aprendesse latim, uma vez que esse conhecimento não teria
nenhuma utilidade para o rapaz, já que não se pleiteia em latim, quando se tem um processo;
não se representa ópera nem comédia em latim; não se ama em latim; e o único interesse dela
era que seu filho obtivesse sucesso na sociedade e fosse um “homem de espírito”. O pai, após
essas exposições, contrárias ao que ele pensava, desistiu da idéia de que seu filho aprendesse
latim, e resolveu que ele não perderia seu tempo conhecendo Cícero, Horácio e Virgílio.
Porém, sua preocupação com o que o filho iria aprender aumentou; e, na aflição em que se
encontrava, sugeriu que fosse ensinado ao rapaz um pouco de geografia.

“De que lhe serviria? 661 ”, retrucou o preceptor, completando que o senhor
marquesinho não precisaria de um esquadro quando fosse viajar, muito menos medir a
latitude quando fosse de Paris a Auvergne. Mais uma vez o pai concordou e acrescentou se
não seria possível, então, ensinar astronomia ao seu filho. Novamente sua proposta foi
recusada, e o preceptor completou dizendo que ninguém no mundo se guia pelos astros.
“Madame ficou de pleno acordo com o preceptor. O marquesinho estava no auge da alegria; o
pai hesitava” 662 , e questionava o que deveria ser ensinado ao seu filho. “A ser amável –
respondeu o amigo a quem consultavam [o autor das ‘obras agradáveis’]. – E, se sabe os
meios de agradar, saberá tudo: é uma arte que aprenderá com a senhora sua mãe, sem que
nenhum dos dois se dê o mínimo de trabalho” 663 .

A essas palavras, madame, grata que ficou, “[...] beijou o gracioso ignorante [...]” 664 ,
disse que seu filho lhe deveria toda a sua educação e que não seria ruim que ele aprendesse
um pouco de história. A essa solicitação, tanto o preceptor quanto o famoso convidado
colocaram-se contra, dizendo que esse é um conhecimento desagradável e inútil. O preceptor
exclamou que se abafa o espírito das crianças, quando se ensina esse amontoado de coisas

660
Id.
661
Ibid., p. 347.
662
Id.
663
Id. (grifo nosso). Com relação à sentença “[...] se sabe os meios de agradar [...]”, é uma alusão aos Essais sur
la necessite et les moyens de plaire, de Moncrif. Essa informação aparece em nota do editor.
664
VOLTAIRE. “Jeannot e Colin”. In: Contos. Op. cit.. p. 347.

159
inúteis; e que a ciência mais absurda de todas é a geometria, que tem por objetos coisas que
não existam na natureza.

Pai e mãe, apesar de não compreenderem nada do que era dito, mostravam-se de pleno
acordo. O preceptor continuou seu discurso, defendendo que caso o marquesinho precisasse
desses vãos conhecimentos, poderia chamar alguém para fazer isso para ele, já que

Um jovem senhor de bom nascimento não é nem pintor, nem músico, nem
arquiteto, nem escultor; mas faz florescerem todas as artes, animando-as com a sua
munificência. Mais vale sem dúvida protegê-las que as exercer; basta que o senhor
marquês tenha bom gosto; compete aos artistas trabalharem para ele; eis porque há
muita razão em dizer-se que as pessoas de qualidade (refiro-me às bastante ricas)
sabem tudo sem nada ter aprendido, pois com o tempo, são capazes de julgar todas
as coisas que encomendam e pagam 665 .

Nesse momento, o amável ignorante tomou a palavra e afirmou que o grande objetivo
do homem é triunfar na sociedade, como havia dito, anteriormente, a mãe de Jeannot. E,
acrescentou à sua fala um questionamento: “[...] será com as ciências que se obtêm esse
triunfo?” 666 . Madame respondeu, prontamente, que não e perguntou o que afinal seria
ensinado ao seu filho, “Pois é bom que um jovem fidalgo possa brilhar de vez em quando
[...]” 667 .

Conversaram, ainda, durante algum tempo. E, depois de colocarem em exame todas as


possibilidades das vantagens e desvantagens das ciências, resolveram que o marquês iria
aprender a dançar. Logo o seu dom se desenvolveu para o canto também; e, em seguida, ele
começou a escrever canções, que cantava para as suas namoradas. “Mas como sempre havia
em seus versos alguns pés de mais ou de menos do que cumpria, mandava-os corrigir a vinte
luíses por produção: e foi posto na Année Littéraire, ao lado dos La Farre, dos Chaulieu, dos
Hamilton, dos Sarrasin e dos Voiture” 668 . E assim, o jovem marquês fez sucesso na sociedade,
principalmente entre as mulheres.

Em razão disso, a marquesa acreditou ser mãe de um bel esprit, e passou a oferecer
vários jantares a tantos outros beaux esprits de Paris. “Isso logo virou a cabeça do jovem, que
adquiriu a arte de falar sem entender e aperfeiçoou-se no hábito de não prestar para coisa

665
Ibid., p. 348. (grifo nosso).
666
Id.
667
Ibid., p. 348-349.
668
Ibid., p. 349. (grifo nosso).

160
alguma” 669 . O pai, ao perceber a sua “eloqüência”, arrependeu-se de não o ter mandado
aprender latim, pois acreditava que com esse conhecimento ele poderia alcançar um alto cargo
na justiça. A mãe encarregou-se de solicitar um regimento para o filho. Visto que tal
regimento demorava a chegar, o marquesinho dedicava-se ao amor, que o fazia gastar muito;
enquanto seus pais viviam na abastança, sem se preocupar com os gastos do filho.

E assim, a desgraça daquela família ia se alastrando, imperceptivelmente. Uma das


vizinhas da família Jeannotière era uma viúva, moça e nobre, que achou poder salvar a fortuna
dos pais de Jeannot desposando o jovem marquês e apropriando-se dela. Atraiu o rapaz para a
sua casa, amou-o e deixou-se amar, encantou-o, seduziu-o e, ao fim de algum tempo,
governou-o. Conseguiu convencer os pais do jovem Jeannot a concederem-lhe a mão de seu
filho em casamento. Todos ficaram felizes com o matrimônio que se aproximava.

Entretanto, um dia, quando estava Jeannot ajoelhado perante sua noiva, enquanto “[...]
gozavam, num terno e animado colóquio, as primícias de sua ventura [...]” 670 , chega,
alarmado, um dos camareiros de sua mãe, informando que seus pais estavam sendo
despejados de casa e que se falava até em prisão. Desesperado e sem entender nada do que
acontecia, Jeannot ficou sem reação alguma. Sua noiva, a boa viúva, incitou-o a ir até sua
casa, punir aqueles que faziam mal à sua família. Lá chegando, seu pai estava preso, todos os
criados haviam fugido, carregando o que podiam do resto da fortuna dos Jeannotières e, sua
mãe, aos prantos, sozinha em um canto da casa, desolada, sem consolo. “[...] nada mais lhe
restava que a lembrança da sua fortuna, da sua beleza, das suas faltas e das suas loucas
despesas” 671 . O marquesinho, após ter chorado tanto quanto sua mãe, disse a ela que não se
preocupasse porque sua noiva, a viúva, o amava loucamente e, além disso, era muito generosa
e rica. Com absoluta certeza ela os ajudaria.

Dito isso, ele se levantou e disse à mãe que ia à casa de sua noiva, buscá-la. Lá
chegando, “[...] encontrou-a num colóquio com um jovem oficial muito amável”672 . Com ódio
no coração, despedaçado pela dor, Jeannot sai à procura de seu antigo preceptor. Ao encontrá-
lo, desabafou todas as suas dores e decepções e pediu conselhos. O preceptor disse a Jeannot
que ele deveria se tornar, assim como ele, preceptor de meninos. “‘Ai de mim! nada sei; o

669
Id. (grifo nosso).
670
Ibid., p. 350.
671
Id. (grifo nosso).
672
Id.

161
senhor não me ensinou coisa alguma, e foi o primeiro fator da minha desgraça’” 673 . Ao
escutar esse desabafo, um bel esprit, que estava presente, sugeriu que Jeannot escrevesse
romances 674 , afirmando que esse era um ótimo recurso em Paris.

Sem encontrar consolo com aquele que deveria ser o primeiro a lhe dar sábios
conselhos, o jovem, desesperado, foi atrás do confessor de sua mãe. Este era um senhor muito
respeitado, que dirigia a vida de senhoras da alta sociedade. Mas, Jeannot saiu desse encontro
sem o menor apoio. “O marquês esteve a ponto de desmaiar; seus amigos trataram-no mais ou
menos da mesma maneira e, numa só tarde, aprendeu melhor a conhecer o mundo do que em
todo o resto de sua vida” 675 .

Ao se encontrar nesse estado deplorável, sem ter nenhuma idéia do que fazer para sair
daquela situação, Jeannot avistou, de longe, um veículo simples, que não corria muito, se
aproximando. Havia, no carro, um homem grosseiramente vestido, acompanhado se sua
mulher, vestida da mesma forma. Ao passar pelo marquesinho, o viajante pôde contemplá-lo,
arrasado em sua dor. O quadro dramático não contribuiu para que Jeannot não fosse
reconhecido pelo seu fiel amigo provinciano. O homem do carro era Colin. Ele desceu
correndo, abraçou seu desesperado amigo, que deixava escorrer, na face, suas lágrimas de
vergonha.

Colin disse ao amigo que apesar de ter sido abandonado por ele, sempre o estimou.
Jeannot lhe contou uma parte de sua história e o saudoso amigo disse que o ajudaria. Disse,
também, que era dono de uma pequena manufatura de ferro, que trabalhava muito, não havia
mudado de condição; porém, estavam, ele e a sua mulher, bem. Em razão disso, ajudariam
Jeannot. Colin pediu ao amigo: “Não sejas mais marquês; as grandezas deste mundo não
valem um bom amigo” 676 , e solicitou que ambos voltassem à terra natal e trabalhassem juntos.
“Jeannot, desconcertado, sentia-se dividido entre a dor e a alegria, a ternura e a vergonha; e
dizia baixinho: ‘Todos os meus amigos da alta me traíram, apenas Colin, a quem desprezei,

673
Ibid., p. 351. (grifo nosso).
674
Vale lembrar a crítica feita por Voltaire aos romances. Ver tópico intitulado “Como se processa a ‘moral em
exercício’”, neste mesmo capítulo.
675
VOLTAIRE. “Jeannot e Colin”. In: Contos. Op. cit.. p. 351.
676
Ibid., p. 352. (grifo nosso).

162
vem em meu socorro. Que lição!’. A magnanimidade de Colin animou as generosas
inclinações de Jeannot, que a sociedade ainda não destruíra” 677 .

O provinciano, ao perceber que Jeannot não poderia abandonar os pais, acalmou-o,


dizendo que iria ajudar, também, a seus pais. Conseguiu, já que entendia um pouco de
negócios, tirar o senhor de La Jeannotière da prisão. Assim, voltaram todos ao Auvergne. Os
pais de Jeannot retomaram sua antiga profissão; o antigo marquesinho desposou a irmã de
Colin, que o fez muito feliz. “E Jeannot pai, e Jeannote mãe, e Jeannot filho viram que a
ventura não está na vaidade” 678 .

Assim termina a narrativa de Voltaire. Assim ele descreve o desenrolar de uma


amizade que tivera tudo para não permanecer ativa, constante, viva. E por que Colin fez o que
fez por Jeannot, mesmo depois de tudo que sentiu e passou? Há uma razão para essa atitude
nobre do amigo provinciano; e, será essa razão que guiará análise que doravante se inicia.

Voltaire conceitua, no Dicionário Filosófico, o que é a amizade:

É um tácito contrato entre duas pessoas sensíveis e virtuosas. Digo sensíveis,


porque um monge, um eremita pode não ser mau e viver sem amizade. Digo
virtuosas, porque os malvados só conhecem cúmplices, os lúbricos têm
companheiros de deboche, os ambiciosos, associados, os políticos arrebanham os
de feitio faccioso, os homens vulgares e ociosos têm ligações apenas, os príncipes,
cortesãos;mas os homens virtuosos e só eles têm amigos 679 .

Então, como alegar que havia uma amizade entre Jeannot e Colin se o primeiro
mostrou-se como uma pessoa sem nenhuma virtude? A análise responderá a essa pergunta e
ajudará a entender como, através da “moral em exercício”, Voltaire é o responsável por criar
uma “emulação positiva” no leitor, tornando-o, dessa maneira, melhor, e dando-lhe uma
formação moral; ou seja, educando-o.

Logo no início da história, ao situar as personagens, dizendo onde elas moravam e a


profissão dos pais dos dois protagonistas, Voltaire descreve a amizade de Jeannot e Colin,
apontando para o fato de que eles se estimavam muito e tinham dessas pequenas intimidades,
que são as responsáveis pela união de duas almas nos laços da amizade. Na continuação,

677
Id. (grifo nosso).
678
Id. (grifo nosso).
679
VOLTAIRE. Dicionário filosófico. Op. cit.. p. 93. Verbete Amizade. (grifo nosso).

163
Jeannot recebeu um presente, que teve o poder de transformar as suas ações, deixando-o
arrogante, sem querer mais estudar e desprezando todos com o olhar. Esse presente era uma
roupa, muito elegante, que o amigo Colin admirou “[...] a roupa, sem sentir inveja” 680 . Nesse
momento, inicia-se a mudança na relação desses dois amigos e, sobretudo, no comportamento
de Jeannot. Entretanto, no que diz respeito a Colin, ele manteve seu carinho, admiração e
retidão de caráter, ao que tudo indica, uma vez que não sentiu nenhuma inveja do presente
recebido pelo seu amigo.

Os acontecimentos seguintes expõem a partida da família Jeannotière e, mais uma vez,


a arrogância de Jeannot, que “[...] partiu em toda a pompa da sua glória” 681 . Enquanto que
“Colin sentiu seu o seu próprio nada e chorou” 682 . Essas reações, o choro, o sentimento de
nulidade, parece atestar dois aspectos importantes: primeiro, Colin percebeu a mudança de
atitude do amigo e, além disso, ao sentir que não podia mudar a situação, o fato de Jeannot
partir, viu o quanto era impotente; segundo, somente uma pessoa muito sensível pode deixar
expor, dessa maneira, seus sentimentos. Uma vez que esse choro não é fruto, somente, do
sentimento de nulidade sentido por Colin; ele diz respeito, também, ao fato de Jeannot estar
de partida, deixando Colin sem poder desfrutar da amizade que eles, durante um bom tempo,
nutriram um pelo outro.

Voltaire, nesse momento, inicia um diálogo com o leitor, com o propósito de


responder a uma pergunta, colocada por ele mesmo: como os pais de Jeannot ficaram ricos
repentinamente. O autor explica, a seus leitores, que isso acontecera por sorte e afirma que
“Quando a gente está na correnteza, é só deixar-se carregar; e faz-se sem trabalho uma
fortuna imensa” 683 . Ou seja, a fortuna adquirida pelos Jeannotières não tinha uma origem
honesta, já que fora conquistada à custa de acordos que não estavam pautados do méritos dos
que fizeram parte dele. Essa é, inclusive, uma das razões dadas por Sérgio Miliet, no prefácio
desse conto, para a rápida ruína dessa família. “[...] o dinheiro dissipa-se com maior rapidez
do que é adquirido quando provém da especulação” 684 . Como a riqueza estabeleceu-se muito
rapidamente, fora, conseqüentemente, gasta na mesma intensidade. E, enquanto Jeannot

680
VOLTAIRE. “Jeannot e Colin”. In: Contos. Op. cit.. p. 345. (grifo nosso).
681
Id. (grifo nosso).
682
Id. (grifo nosso).
683
Ibid.,p. 345. (grifo nosso).
684
MILIET, Sérgio. “Nota introdutória ao conto ‘Jeannot e Colin’”. In: VOLTAIRE. Contos. Op. cit.. p. 343.

164
gastava o dinheiro, seus pais estavam preocupados com a vida na corte, ou seja, com a
aparência.

Inicia-se, então, com a chegada e estabelecimento na corte parisiense, a desgraça dessa


família, mesmo não tendo, nenhum de seus membros, a percebido. Jeannot pai se transformou
em senhor de La Jeannotière e recebeu um marquesado. Por isso, tirou o seu filho da escola,
para que este, agora marquês, fosse introduzido na alta sociedade de Paris. Colin, ao saber das
novidades a respeito do amigo, enviou-lhe uma carta, felicitando-o pelo título recebido.
Jeannot não respondeu à carta de Colin, que “[...] adoeceu de pesar” 685 , o que indica atestar
um dos aspectos expostos anteriormente: a sensibilidade de Colin, seu afeto à amizade que
nutrira por Jeannot. Mais uma vez ele dá provas de ser uma pessoa virtuosa e,
conseqüentemente, capaz de desenvolver um laço de amizade estreito, como era no início a
sua, com seu ausente, e agora marquês, Jeannot.

Ao retirar o filho da escola, com a intenção de torná-lo parte da alta sociedade


parisiense, o senhor de La Jeannotière, preocupado com a sua educação, procura por um
preceptor. Este, que era “[...] um homem da alta e que nada sabia, não pôde ensinar coisa
alguma a seu pupilo” 686 . Jeannot pai queria que seu filho aprendesse latim; a mãe não queria.
Para resolver esse problema, eles resolveram chamar para jantar, em sua casa, juntamente
com o preceptor, um homem “ilustre”, autor de “obras agradáveis” 687 , para que ele os
ajudasse na dissolução desse impasse.

O “ilustre” convidado mostrou-se disposto a ajudar, assim como o preceptor que “nada
sabia”. Não somente o latim foi pauta de discussão no jantar, mas também: a geografia, a
astronomia, a história e a geometria. E, todas essas tiveram, de acordo com o preceptor e o
convidado, algo em comum, no decorrer da conversa: eram ciências inúteis, que não serviriam
em nada para que o marquesinho conseguisse o que pretendia sua mãe: o único interesse dela
era que seu filho obtivesse sucesso na sociedade e fosse um “homem de espírito”. Dessa
forma, ele seria destaque na alta roda de Paris e agradaria os desejos da mãe que tinha como
objetivo alcançar esse posto para o seu filho.

685
VOLTAIRE. “Jeannot e Colin”. In: Contos. Op. cit.. p. 346. (grifo nosso).
686
Id. (grifo nosso).
687
É notória a ironia voltairiana, quando do uso dessa expressão no conto.

165
Não restando nenhuma outra ciência, dentre as que foram discutidas durante o jantar,
que fosse de utilidade para o que se pretendia com o marquesinho, Jeannot pai começou a
questionar o que deveria ser ensinado, a seu filho, então. “A ser amável – respondeu o amigo
a quem consultavam [o autor das ‘obras agradáveis’]. – E, se sabe os meios de agradar,
saberá tudo: é uma arte que aprenderá com a senhora sua mãe, sem que nenhum dos dois se
dê o mínimo de trabalho” 688 . O convidado ilustre resume, em uma frase, o que aprenderia o
marquesinho, para que fosse estabelecido o desejo de sua mãe. Nesse momento, o preceptor
também se manifesta, e discorre sobre o que cabe a um jovem senhor de bom nascimento, a
saber: ter bom gosto para adquirir algumas obras de arte; porém, não saber nenhuma delas,
posto que isso não seja necessário. Caso possua dinheiro, saberá tudo sem nada ter aprendido,
uma vez que será capaz de, com o tempo, julgar todas as coisas que encomendou e pagou.

“O amável ignorante tomou então a palavra e disse: [...] Madame observou muito bem
que o grande objetivo do homem é triunfar na sociedade. Mas, falando com sinceridade, será
com as ciências que se obtêm esse triunfo?” 689 . A mãe de Jeannot respondeu que concordava
que isso não seria possível através do ensinamento das ciências, qualquer que fosse. Mas, não
atentou para a grande diferença entre o que ela desejava a seu filho – ser um “homem de
espírito” –, e o que diziam, tanto o preceptor quanto o “amável ignorante”, no que diz respeito
ao que Jeannot deveria se tansformar.

O resumo feito acima, que afirma ser o grande objetivo do homem triunfar na
sociedade, descreve o que vem a ser um “bel esprit” e não um “homem de espírito”, como
quisera que se transformasse seu filho, anteriormente, a senhora de La Jeannotière. Há um
abismo quase intransponível entre esses dois conceitos. O primeiro assemelha-se a “espírito”
e é entendido, sempre, no sentido pejorativo. O segundo é um homem gentil, educado,
delicado, fino, que nunca deve ser entendido no sentido pejorativo 690 . Ou seja, criou-se um

688
VOLTAIRE. “Jeannot e Colin”. In: Contos. Op. cit.. p. 347. (grifo nosso).
689
Ibid., p. 348. (grifo nosso).
690
Ver: LEPAPE, Pierre. Voltaire: o nascimento dos intelectuais no Século das Luzes. Op. cit.. p. 15.
Voltaire, no Dicionário Filosófico, no verbete Espírito, na seção segunda, expõe as diversas acepções que a
palavra “espírito” possui. E, nesse momento do texto, ele assim se posiciona a respeito da diferença entre
“homem de espírito” e “bel esprit”: “O espírito, na acepção comum da palavra, contém muito do belo espírito e,
entretanto, não significa precisamente a mesma coisa, pois jamais o termo ‘homem de espírito’ pode ser tomado
maldosamente e ‘belo espírito’ é algumas vezes pronunciado ironicamente. Donde vem essa diferença? É que
um ‘homem de espírito’ não significa ‘espírito superior’, ‘talento notável’ tal como ‘belo espírito’ significa. Esta
expressão, ‘homem de espírito’, não anuncia pretensão, e ‘belo espírito’ é um cartaz [...]”. (VOLTAIRE.
Dicionário filosófico. Op. cit.. p. 171. Verbete Espírito. (grifo nosso).

166
abismo impossível de se transpor entre o que a mãe desejava para seu filho e o que este
realmente se transformou.

Voltando ao enredo, após toda a conversa, que levou à conclusão de que não se
deveria ensinar nenhuma ciência ao jovem marquês, uma vez que estas seriam inúteis ao
propósito da educação que ele deveria receber para alcançar o objetivo estipulado pela mãe,
ficou decidido que Jeannot aprenderia a dançar. E, com o passar dos tempos, a impressão que
se tinha era a de que o marquesinho “nascera’ para isso.

Ele também iniciou a confecção de canções, que lhe renderam o amor de muitas
jovens. “Mas como sempre havia em seus versos alguns pés de mais ou de menos do que
cumpria, mandava-os corrigir a vinte luíses por produção: e foi posto na Année Littéraire, ao
lado dos La Farre, dos Chaulieu, dos Hamilton, dos Sarrasin e dos Voiture” 691 . Como não
sabia nada, pois nada lhe fora ensinado, precisava mandar corrigir seus versos, já que eles
apresentavam problemas. Mas, o que chama a atenção é que, mesmo não tendo nenhum
talento, já que não recebeu nenhum ensinamento, ainda assim ele ganhou destaque, não só
entre as mulheres, como entre os autores que se sobressaíam na alta roda, chegando a publicar
os seus versos em uma revista, juntamente com outros escritores que, ao que indica Voltaire,
eram renomados. Vale ressaltar que, como o próprio enredo demonstra, o fato de esses autores
serem renomados não que dizer que eles fossem, realmente, talentosos.

Com o sucesso obtido por seu filho na corte, “A senhora marquesa julgou então ser
mãe de um bel esprit, e deu para oferecer jantares a todos os beaux esprits de Paris. Isso logo
virou a cabeça do jovem, que adquiriu a arte de falar sem se entender e aperfeiçoou-se no
hábito de não prestar para coisa alguma” 692 . Eis o resultado de uma má educação, de uma
má formação. O fato de nada ter sido ensinado a Jeannot, fez com que ele se tornasse um
inútil à sociedade, a sua família e a ele mesmo. Isso fica claro, quando o enredo chega ao seu
clímax 693 : o momento da ruína dos Jeannotières.

691
VOLTAIRE. “Jeannot e Colin”. In: Contos. Op. cit.. p. 349. (grifo nosso).
692
Id. (grifo nosso).
693
Na retórica clássica, era sinônimo de gradação ou “figura de adição”. Em sua acepção moderna, momento de
maior intensidade na seqüência das idéias ou dos acontecimentos que, de modo geral, ou ocorre próximo ao fim
da história, ou se identifica com ele. Ver: MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. Op. cit.. p. 78.

167
Um dia, enquanto o jovem marquês estava na casa de sua noiva, uma viúva nova e
moça, chegou um dos empregados de sua família e o avisou que seus pais estavam sendo
despejados de casa. O marquesinho saiu em socorro de sua família, mas quando chegou em
seu lar, deparou-se com sua mãe, aos prantos, e a notícia de que seu pai havia sido preso. Para
a senhora de La Jeannotière, “[...] nada mais lhe restava que a lembrança da sua fortuna, da
sua beleza, das suas faltas e das suas loucas despesas” 694 . Na tentativa de consolar a mãe,
Jeannot pediu para que ela tivesse calma e não se preocupasse, porque sua noiva, que segundo
ele o amava loucamente e além de rica era generosa, os iria ajudar.

Porém, não esperava Jeannot que sua noiva não o amava e não estava nem um pouco
interessada em ajudá-lo naquele momento. Se ele tivesse aprendido alguma virtude, qualquer
que fosse, saberia identificar, entre as pessoas que o circundavam, aquelas com as quais ele
poderia contar nos momentos mais difíceis. Por viver apenas da aparência, ele acabava por
esquecer quem poderia estender-lhe a mão, e buscava a ajuda dos que, assim como ele,viviam
da aparência e, por conta disso, não iriam se preocupar em ajudar quem não tivesse nada a
oferecer.

Tomado pelo desespero, Jeannot foi à procura do seu preceptor, com a intenção que
ele, “um homem da alta e que nada sabia”, pudesse lhe dar algum conselho que o indicasse
como sair daquela situação. A única coisa que seu antigo preceptor soube lhe aconselhar foi
que ele tratasse de se tornar preceptor de outros meninos para, dessa maneira, viver. “‘Ai de
mim! nada sei; o senhor não me ensinou coisa alguma, e foi o primeiro fator da minha
desgraça’” 695 . Esse foi o primeiro lampejo de lucidez do jovem marquês. Somente a partir
dessa conversa com o seu preceptor, ele conseguiu identificar em que momento iniciara o
nascimento da sua desgraça. Só quando se dá conta de que nada saberia fazer, Jeannot
consegue entender o quanto ele tinha sido irresponsável.

Ao sair da casa de seu antigo preceptor, o marquesinho correu ao confessor de sua mãe
que, não se sentindo, em momento algum, inclinado a ajudar aquela família; afinal, eles não
teriam mais o mesmo prestígio social, logo, não interessavam ao confessor; mostrou não ter
nenhuma atenção ao problema que era narrado pelo filho de sua confessora. “O marquês

694
VOLTAIRE. “Jeannot e Colin”. In: Contos. Op. cit.. p. 350. (grifo nosso).
695
Ibid., p. 351. (grifo nosso).

168
esteve a ponto de desmaiar; seus amigos trataram-no mais ou menos da mesma maneira e,
numa só tarde, aprendeu melhor a conhecer o mundo do que em todo o resto de sua vida” 696 .

Por conta da educação não recebida, ele não entendia, apesar de se achar partícipe
desse processo, como se davam as relações sociais. E, em razão disso, somente a experiência,
a demonstração, conseguiu ensinar-lhe mais em uma tarde do o que ele aprendeu em toda a
sua vida. Então, quando não havia mais nada a ser feito por ele, uma vez que nada poderia ser
feito por uma pessoa que não servia realmente para nada, Voltaire insere, em sua história,
com um propósito importante, uma peripécia 697 : o reencontro entre Jeannot e Colin.

O momento que levou Jeannot ao reconhecimento de Colin o envergonhou, fazendo


com que ele chorasse. O provinciano, ao reencontrar o amigo, solicitou-lhe: “Não sejas mais
marquês; as grandezas deste mundo não valem um bom amigo” 698 , e disse-lhe que o ajudaria,
assim como a seus pais, comprovando, assim, os aspectos ditos anteriormente, no que diz
respeito ao caráter de Colin; sua sensibilidade e virtuosidade.

Colin, que nunca esquecera do amigo, fez questão de resolver todos os problemas que
o afligiam e, em razão disso, “Jeannot, desconcertado, sentia-se dividido entre a dor e a
alegria, a ternura e a vergonha; e dizia baixinho: ‘Todos os meus amigos da alta me traíram,
apenas Colin, a quem desprezei, vem em meu socorro. Que lição!’” 699 .

O interessante é que essa lição, dada pela vida em Jeannot, serviu como um incentivo
para que o agora “antigo marquês” buscasse desenvolver algo que ele já tinha, mas não havia
se dado conta; fizesse com que ele percebesse o que realmente é importante para que se possa
viver em paz: ser virtuoso. “A magnanimidade de Colin animou as generosas inclinações de
Jeannot, que a sociedade ainda não destruíra” 700 . Ou seja, mesmo após toda a contaminação
pela qual Jeannot fora exposto na vida cortesã, as inclinações, que podem ser nomeadas, aqui,
também, como disposições, mantinham-se em Jeannot e apenas esperavam que lhe fosse

696
Id. (grifo nosso).
697
De acordo com Aristóteles: “[...] é uma reviravolta das ações em sentido contrário [...] segundo a
verossimilhança ou necessidade [...]”. A peripécia pode, também segundo Aristóteles, vincular-se a outro
expediente: o reconhecimento, que “[...] como a palavra mesma indica, é a mudança do desconhecimento ao
conhecimento, ou à amizade, ou ao ódio, das pessoas marcadas para a ventura ou desdita”. (cf.: ARISTÓTELES.
Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção “Os pensadores”). p. 40-41).
698
VOLTAIRE. “Jeannot e Colin”. In: Contos. Op. cit.. p. 352. (grifo nosso).
699
Id. (grifo nosso).
700
Id. (grifo nosso).

169
inculcado bons princípios, através de um ato educativo, para que, dessa maneira, sua
consciência fosse formada.

Ou seja, Voltaire, em uma história, expõe empiricamente, através das ações de Colin,
o que ele mesmo pratica quando se põe a escrever os seus contos: a “emulação positiva”.
Colin incitou Jeannot, no momento em que animou as suas inclinações, a se tornar uma
pessoa melhor; a tentar aprender a viver de forma digna, justa, generosa, em suma: virtuosa.
Essa foi a razão para a escolha do conto analisado, uma vez que a intenção última deste
trabalho é expor porque a literatura tem como uma de suas funções mais importantes educar
moralmente o leitor e também explicar como acontece essa formação via as obras literárias,
como a moral pode ser posta em prática, nos enredos dos textos literários, e dessa maneira
educar. Jeannot e Colin, além de colocar a “moral em exercício”, toma como exemplo esse
mesmo procedimento, no momento em que se opera a “emulação positiva” gerada por Colin,
no intuito de melhorar, aperfeiçoar Jeannot.

Nesse sentido, Voltaire pretendeu, com esse conto, colocar duplamente a “moral em
exercício”, objetivando deixar claro para seu leitor, segundo a interpretação deste trabalho, a
importância de se levar uma vida longe dos vícios; de procurar, em todos os momentos, o
caminho da virtude; ser amigo, no sentido que o próprio “Patriarca de Ferney” dá a essa
palavra. O conto encera sua história com a seguinte frase:“E Jeannot pai, e Jeannote mãe, e
Jeannot filho viram que a ventura não está na vaidade” 701 , e esse epifonema indica, ao leitor,
que, como fora exposto anteriormente, a felicidade está na virtude, no trabalho, nos valores
morais. Esses valores devem ser o norte, o fim último do escritor que tem como objetivo
educar, formar, tornar o homem capaz de ser autônomo e fazer justa e rigorosamente o
contrário do que fizera o preceptor de Jeannot que, ao não ensiná-lo nada, contribuiu, assim,
para o surgimento de um ser humano nulo, heterônimo, incapaz de se guiar pela sua razão e
de agir.

Voltaire, autor que pertenceu ao período que se auto-intitulou Ilustrado, teve como
orientação os valores morais para, a partir deles, criar uma “emulação positiva” em seus
leitores, que os levaria a adquirir os bons princípios que devem ser inculcados na consciência,
possibilitando o desenvolvimento das disposições que todos os homens possuem. Isso os

701
Id. (grifo nosso).

170
levaria à ação, baseada na melhoria e no bem-estar social, na felicidade dos homens. Dessa
maneira, o philosophe contribuiu para a tentativa de efetivação do projeto pedagógico-
civilizatório que a Ilustração, através de seus representantes, traçou para o gênero humano.

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quanto mais nos afastamos da rica interioridade da vida


pessoal, da qual a literatura é o exemplo supremo, mais
descolorida, mecânica e impessoal se torna a existência.
Eagleton 702

Uma nação que negligencia as percepções de seus artistas


entra em declínio. Depois de um certo tempo ela cessa de
agir e apenas sobrevive.
Pound 703

Um homem lúcido não pode permanecer quieto e


resignado enquanto o seu país deixa que a literatura decaia
e que os bons escritores sejam desprezados, da mesma
forma que um bom médico não poderia assistir, quieta e
resignadamente, a que uma criança contraísse tuberculose
pensando que estivesse simplesmente chupando bala.
Pound 704

Vive-se em uma época comumente chamada de “Era da Informação”. A velocidade


com a qual as informações chegam até as pessoas é realmente algo de espantoso. Pode-se
saber, no mesmo momento, um acontecimento ocorrido do outro lado do mundo. Além disso,
esse avanço tecnológico possibilita que pessoas, espalhadas pelo globo, possam se comunicar
ao mesmo tempo. Entretanto, com o desenvolvimento ocorrido em várias áreas da
comunicação, especificamente dos livros, que teve seu apogeu no século XVIII, com a

702
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Op. cit.. p. 297.
703
POUND, Ezra. ABC da Literatura. Op. cit.. p. 14.
704
Ibid., p. 37.

171
profusão de obras que foram editadas naquele período, percebe-se que a atenção dos leitores
às obras literárias vem diminuindo proporcionalmente ao avanço dessas tecnologias que
poderiam ajudar na disseminação dessas obras.

Além dessa espécie de abandono, que tem gerado um distanciamento das obras
clássicas, dos autores, enfim, dos artistas, a Ilustração recebeu críticas, nos séculos seguintes
ao XVIII. Autores do século XX, ao tratar da segunda grande guerra, chegaram à conclusão
de que a humanidade está se afundando em um estado de barbárie. “A promessa do
Iluminismo não se cumpriu, e, mais do que isto, a própria razão, de cuja força se esperava a
transformação do mundo, tornou-se ela mesma, instrumentalizada, ferramenta de
opressão” 705 .

Contudo, mesmo que se critique a Ilustração e o seu projeto, ao afirmar que ele não se
concretizou, esse projeto ilustrado deve ser visto como algo que se mantém vivo enquanto
uma possibilidade. A questão que se levanta é: se não for a razão, o que irá resolver o mundo?
O fato de uma boa idéia ter sido má utilizada não invalida a utilidade, tanto naquela época
quanto hoje, do pensamento ilustrado. “Julgo que o pensamento dos filósofos iluministas do
XVIII francês sobre a história e a sociedade, na medida em que expressava uma aspiração de
mudança social e política, e enquanto estas mudanças não estavam efetivamente sendo
realizadas, encerrava, como ideais, possibilidades históricas que depois foram estreitadas e
alteradas pela ‘força das coisas’” 706 . Segundo Voltaire, quem é esclarecido não pode ser mal,
porque será sempre impelido a praticar boas ações, uma vez que tem a razão como guia e,
necessariamente, ao seu espírito, uma má ação será apresentada como reprovada. Nesse
sentido, invalidar o projeto que a Ilustração traçou para o gênero humano seria desacreditar na
força atuante, no imperativo que a razão se transformou a partir das ações dos philosophes,
uma vez que “[...] a razão não é apenas faculdade de conhecer, mas também instância que
estabelece valores para regular e orientar a vida em sociedade [...]” 707 .

Portanto, a utilidade deste trabalho está pautada, dentre outros aspectos, na


recuperação desse ideal ilustrado e, conseqüentemente, da literatura, que deve ser entendida
como o instrumento que possibilita a formação do homem, responsável por tornar a existência

705
SOUZA, Maria das graças de. Ilustração e História. O pensamento sobre a História no Iluminismo francês.
São Paulo: Discurso Editorial, 2001. p. 21.
706
Id.
707
Ibid., p. 22.

172
mais suportável, mais pessoal, uma vez que tem como objeto a natureza humana; a arma que
tem o poder de moldar os valores morais necessários à convivência pacífica, feliz das pessoas;
o veículo responsável por gerar uma transformação nos espíritos, que leva a sociedade, de
uma maneira geral, a voltar a agir, não mais apenas sobreviver, levando os homens a viver em
um estado de bem-estar social.

Assim, para que seja possível trazer à baila o projeto ilustrado, expondo seus
objetivos, o primeiro capítulo versou sobre ele e sua relação com a educação e a literatura.
Vale ressaltar que, logo no início, algumas das principais características da Ilustração foram
apresentadas através de um conto de Voltaire, chamado Pequena Digressão. Esse
procedimento serviu como uma apresentação do movimento estudado e, também, como uma
amostra do alcance dos textos literários, no que diz respeito às possibilidades de aprendizado
quando da leitura desses tipos de texto. Ainda que, no caso doravante apresentado, esse
aprendizado não diga respeito a uma formação moral, já que o teor da informação passada, e
analisada nessa parte do trabalho, correspondia à apresentação de características de um
momento histórico, com a intenção de apresentá-lo, vale como um exemplo acerca do poder
que os textos literários possuem e o quanto se pode conhecer através de suas linhas.

Após a exposição, via o conto e os comentadores, da Modernidade e,


conseqüentemente da Ilustração, traçando um esboço desse movimento nos principais países
da Europa e chegando à sua manifestação francesa, esse capítulo tratou da mola propulsora da
história, a educação, apontando algumas das mudanças ocorridas no que concerne à sua
manifestação moderna. Toda essa apresentação teve como objetivo mostrar, além dessas
mudanças, o papel que os philosophes desempenharam na sociedade, via os seus textos que,
vale ressaltar, tinham uma ação educativa, pretendiam educar os seus leitores.

Na seqüência, o segundo capítulo, após ter tido seu terreno preparado pelos assuntos
tratados no primeiro, teve como objeto Voltaire e sua obra. A conclusão a que essa parte do
trabalho chegou pode ser sintetizada no seguinte enunciado: Voltaire, uma revolução nos
espíritos de sua época. A singularidade de sua presença, através da sua literatura e da sua
filosofia, tornou Voltaire um guia capaz de mudar a face do mundo, na tentativa de tornar o
homem um ser livre da miséria e do medo. Todas as mudanças geradas pelo “Patriarca de
Ferney” foram feitas a partir de sua pena. E, sua preocupação com a educação moral dos
homens norteou seus escritos e temas, fazendo com que ele agisse em nome da humanidade

173
até os últimos dias de sua vida, escrevendo em vista da autonomia humana, grande ideal
ilustrado.

Mas, como explicitado no título deste texto, a intenção era expor a função educativa
dos textos literários e tomar Voltaire como um exemplo. Nesse sentido, fez-se necessário a
apresentação de um terceiro capítulo, que teve como objetivo explicar, via a teoria literária, a
função formativa que a literatura possui e, também, como se dá esse processo, ou seja, como
se educa via enredos fictícios, via textos literários. A resposta a essas questões foi encontrada
em textos técnicos e no conto analisado por este trabalho.
Educar moralmente alguém, ou seja, moralizá-lo, significa transmitir valores morais
que servirão como regras de conduta, modelos de comportamento que deverão ser adotados
no decorrer da vida, nas mais diversas situações. Nesse sentido, apresentar máximas de
conduta e esperar que os homens se baseiem por elas não funciona. O século XVIII,
especificamente a Ilustração, dentre todas as mudanças que ocasionou no pensamento,
acreditava no conhecimento empírico e tinha como um de seus principais pilares a
demonstração, a experiência. Assim, não se pode esperar que, sem nenhum modelo, o homem
aja via uma máxima moral. Como ele irá saber se aquela máxima, naquele determinado
momento, não estará sendo injusta? Só é possível resolver essa questão alterando a maneira de
se educar moralmente os homens. As máximas não funcionam mais no século em que a
experiência é a base de todo o conhecimento.

Logo, é preciso encontrar a solução para esse problema: como ensinar valores morais
não mais através de máximas. E, a solução encontrada é a colocação da “moral em exercício”;
seu instrumento: a literatura. Quando a personagem, através de suas ações, age de maneira
correta ou não, ela está transmitindo, via o enredo que é narrado, valores, regras de
comportamento, modelos de conduta. Dessa forma, além da experiência que é passada,
fazendo com que o leitor saiba o que aconteceu com a personagem, a partir das atitudes que
ela tomou; transmitem-se verdades morais, já que, de acordo com Montesquieu, elas
devem“ser sentidas”; e, sendo a literatura uma arte, ela tem o poder de tocar a alma das
pessoas, fazê-las sentir determinados tipos de verdades: as morais.

Portanto, Voltaire, em seus escritos, quando narrou determinadas histórias,


especificamente a dos amigos Jeannot e Colin, colocou a “moral em exercício”, transmitindo,
dessa maneira, os valores necessários para que o homem alcançasse a felicidade, o bem-estar

174
social. Seu principal objetivo era esclarecer, educar, formar os homens; gerar uma “emulação
positiva” para que eles, através de suas paixões, que deveriam ser guiadas pela razão, agissem
da melhor forma possível. Por conseguinte, a literatura, ao se utilizar da “moral em exercício”
e da “emulação positiva”, educa seus leitores mostrando valores morais que os seres humanos
devem possuir para que possam agir em determinadas situações. Situações essas que o próprio
enredo indica, quando as personagens agem.

Mesmo com todas as críticas, posteriores, recebidas pela Ilustração, “[...] se


refletirmos bem, veremos que as queixas pelas promessas não realizadas e a constatação da
irracionalidade do nosso mundo não anulam a importância dos pensadores iluministas. Foram
eles que nos alertaram para o fato de que cabia ao homem construir sua vida, tomar nas mãos
o seu destino e organizar as sociedades à luz dos valores universais estabelecidos pela razão.
[...] O legado do Iluminismo, [...] é inquestionável” 708 . E, a maneira que os philosophes
encontraram para difundir essas idéias foi escrevendo obras que ajudassem na divulgação
desses ideais; obras, também, literárias, que tinham uma dupla função: expor a necessidade do
homem se tornar autônomo, e dar modelos de conduta, valores, educar moralmente.

Como se vive em um mundo que não conseguiu, ainda, se livrar dos problemas que a
Ilustração enfrentou, “[...] sem dúvida, a ‘infâmia” de hoje não tem mais o mesmo rosto que
exibia no século XVIII. O próprio Voltaire dizia que ela é como um monstro de mil cabeças
[...]. Cabe-nos, hoje em dia, identificar suas novas fisionomias. É nessa perspectiva que o
ideal voltairiano permanece ainda como algo que merece ser resgatado em nossa época [...],
ele havia dito que os livros mais úteis são aqueles que deixam um espaço aberto para o
trabalho do leitor. Leitores ilustrados, pois, mãos à obra” 709 . Ou seja, é importante que se dê à
literatura a importância que ela possui para que, dessa forma,ela possa continuar formando
moralmente os homens e, assim, eles possam lutar contra os grandes inimigos de Voltaire: a
Ignorância, a Superstição, a Intolerância, o Preconceito, o Erro.

708
NASCIMENTO, Milton Meira do. NASCIMENTO, Maria das Graças de Souza. Iluminismo a revolução das
Luzes. P. 72-73.
709
SOUZA, Maria das Graças de. Voltaire: a razão militante. p. 66.

175
VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Obras de Voltaire:

VOLTAIRE. A filosofia da História. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,
2007. (Projeto “Voltaire Vive”).

VOLTAIRE. Cartas Filosóficas. Tradução Bruno da Ponte et al.. São Paulo: Abril Cultural,
1978. (Coleção “Os Pensadores”).

VOLTAIRE. Comentários políticos. Tradução Antônio de P. Danesi. São Paulo: Martins


Fontes, 2001. (Projeto “Voltaire Vive”).

VOLTAIRE. Contos. Tradução Mário Quintana. São Paulo: Globo, 2005.

VOLTAIRE. Contos e novelas. Tradução Mário Quintana. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

VOLTAIRE. Conselhos a um jornalista. Tradução Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São


Paulo: Martins Fontes, 2006. (Projeto “Voltaire Vive”).

VOLTAIRE. Correspondence (Édition Theodoe Besterman). Paris: Gallimard (Bibliothèque


de la Pléiade), 1977.

VOLTAIRE. Deus e os homens. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,
1995.
176
VOLTAIRE. Dicionário filosófico. 2ª ed. Tradução Bruno da Ponte et al.. São Paulo: Abril
Cultural, 1978 (Coleção “Os Pensadores”).

VOLTAIRE. Dictionnaire de la pensée de Voltaire par lui-même. Paris:Éditions


Complexe, 1994.

VOLTAIRE. Dictionnaire philosophique. Paris: Garnier-Flammarion, 1964.

VOLTAIRE. Elementos da Filosofia de Newton. Tradução Maria das Graças de Souza.


Campinas: Editora UNICAMP, 1996.

VOLTAIRE. Lettres choisies. Paris: Garnier Frères, 1955.


VOLTAIRE. Mélanges. Paris: Gallimard (Bibliothèque de la Pléiade), 1995.

VOLTAIRE. Memórias. Tradução de Marcelo Coelho. Rio de Janeiro: Imago, 1995 (Coleção
“Lazuli”).

VOLTAIRE. O Filósofo Ignorante. Tradução Antônio de P. Danesi. São Paulo: Martins


Fontes, 2001. (Projeto “Voltaire Vive”).

VOLTAIRE. O preço da Justiça. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins
Fontes, 2001. (Projeto “Voltaire Vive”).

VOLTAIRE. Politique de Voltaire. Paris: Armand Colin, 1963.

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