014 Os Povos Nativos Originarios

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1.4.

OS ÍNDIOS: POVOS NATIVOS ORIGINÁRIOS


Quando os europeus chegaram à terra que viria a ser o "nações" indígenas, como os carijós, os tupiniquins, os
Brasil, encontraram uma população ameríndia bastante tamoios etc.
homogênea em termos culturais e linguísticos, distribuída
ao longo da costa e na bacia dos Rios Paraná-Paraguai. É difícil analisar a sociedade e os costumes indígenas,
porque se lida com povos de cultura muito diferente da
Podemos distinguir dois grandes blocos que subdividem nossa e sobre a qual existiram e ainda existem fortes
essa população: os tupis-guaranis c os tapuias. Os tupis- preconceitos. Isso se reflete, em maior ou menor grau, nos
guaranis estendiam-se por quase toda a costa brasileira, relatos escritos por cronistas, viajantes e padres,
desde pelo menos o Ceará até a Lagoa dos Patos, no especialmente jesuítas. Existe nesses relatos uma
extremo Sul. Os tupis, também denominados tupinambás, diferenciação entre índios com qualidades positivas e índios
dominavam a faixa litorânea, do Norte até Cananéia, no sul com qualidades negativas, de acordo com o maior ou
do atual Estado de São Paulo; os guaranis localizavam-se na menor grau de resistência oposto aos portugueses. Por
bacia Paraná-Paraguai e no trecho do litoral entre Cananéia exemplo, os aimorés, que se destacaram pela eficiência
e o extremo sul do que viria a ser o Brasil. Apesar dessa militar e pela rebeldia, foram sempre apresentados de
localização geográfica diversa dos tupis e dos guaranis, forma desfavorável. De acordo com os mesmos relatos, em
falamos em conjunto tupi-guarani, dada a semelhança de geral, os índios viviam em casas, mas os aimorés viviam
cultura e de língua. como animais na floresta. Os tupinambás comiam os
inimigos por vingança; os aimorés, porque apreciavam
Em alguns pontos do litoral, a presença tupi-guarani era carne humana. Quando a Coroa publicou a primeira lei em
interrompida por outros grupos, como os goitacases na foz que se proibia a escravização dos índios (1570), só os
do Rio Paraíba, pelos aimorés no sul da Bahia e no norte do aimorés foram especificamente excluídos da proibição.
Espírito Santo, pelos tremembés na faixa entre o Ceará e o
Maranhão. Essas populações eram chamadas tapuias, uma Há também uma falta de dados que não decorre nem da
palavra genérica usada pelos tupis-guaranis para designar incompreensão nem do preconceito, mas da dificuldade de
índios que falavam outra língua. sua obtenção. Não se sabe, por exemplo, quantos índios
existiam no território abrangido pelo que é hoje o Brasil e o
Devemos lembrar que a classificação descrita resulta de Paraguai, quando os portugueses chegaram ao Novo
estudos recentes dos antropólogos, baseando-se, como Mundo. Os cálculos oscilam entre números tão variados
dissemos, em afinidades culturais e linguísticas. Os como 2 milhões para todo o território e cerca de 5 milhões
portugueses identificaram de forma impressionista muitas só para a Amazônia brasileira.

Figura de índio, segundo o naturalista Spix


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Os grupos tupis praticavam a caça, a pesca, a coleta de embarcações, os portugueses, e em especial os padres,
frutas e a agricultura, mas seria engano pensar que foram associados na imaginação dos tupis aos grandes
estivessem intuitivamente preocupados em preservar ou xamãs (pajés), que andavam pela terra, de aldeia em aldeia,
restabelecer o equilíbrio ecológico das áreas por eles curando, profetizando e falando-lhes de uma terra de
ocupadas. Quando ocorria uma relativa exaustão de abundância. Os brancos eram ao mesmo tempo
alimentos nessas áreas, migravam temporária ou respeitados, temidos e odiados, como homens dotados de
definitivamente para outras. De qualquer forma, não há poderes especiais.
dúvida de que, pelo alcance limitado de suas atividades e
pela tecnologia rudimentar de que dispunham, estavam Por outro lado, como não existia uma nação indígena e sim
longe de produzir os efeitos devastadores da poluição de grupos dispersos, muitas vezes em conflito, foi possível aos
rios com mercúrio, ou da derrubada de florestas com portugueses encontrar aliados entre os próprios indígenas,
motosserras, características das atividades dos brancos nos na luta contra os grupos que resistiam a eles. Por exemplo,
dias de hoje. em seus primeiros anos de existência, sem o auxílio dos
tupis de São Paulo, a Vila de São Paulo de Piratininga muito
Para praticar a agricultura, os tupis derrubavam árvores e provavelmente teria sido conquistada pelos tamoios. Tudo
faziam a queimada - técnica que iria ser incorporada pelos isso não quer dizer que os índios não tenham resistido
colonizadores. Plantavam feijão, milho, abóbora e fortemente aos colonizadores, sobretudo quando se tratou
principalmente mandioca, cuja farinha se tornou também de escraviza-los.
um alimento básico da Colônia. A economia era
basicamente de subsistência e destinada ao consumo Os índios que se submeteram ou foram submetidos
próprio. Cada aldeia produzia para satisfazer a suas sofreram a violência cultural, as epidemias e mortes. Do
necessidades, havendo poucas trocas de gêneros contato com o europeu resultou uma população mestiça,
alimentícios com outras aldeias. que mostra, até hoje, sua presença silenciosa na formação
da sociedade brasileira.
Mas existiam contatos entre elas para a troca de mulheres
e de bens de luxo, como penas de tucano e pedras para se Uma forma excepcional de resistência dos índios consistiu
fazer botoque. Dos contatos resultavam alianças em que no isolamento, alcançado através de contínuos
grupos de aldeias se posicionavam uns contra os outros. A deslocamentos para regiões cada vez mais pobres. Em
guerra e a captura de inimigos - mortos em meio à limites muito estreitos, esse recurso permitiu a preservação
celebração de um ritual antropofágico - eram elementos de uma herança biológica, social e cultural. Mas, no
integrantes da sociedade tupi. Dessas atividades, conjunto, a palavra "catástrofe" é mesmo a mais adequada
reservadas aos homens, dependiam a obtenção de para designar o destino da população ameríndia. Milhões
prestígio e a renovação das mulheres. de índios viviam no Brasil na época da conquista e apenas
cerca de 250 mil existem nos dias de hoje.
A chegada dos portugueses representou para os índios uma
verdadeira catástrofe. Vindos de muito longe, com enormes

Canibalismo ou antropofagia ritual?


Na edição de 1509 das cartas de Américo Vespúcio, há uma pleno cozimento. Durante o século XVI, o Brasil era
gravura que retrata um marinheiro e três mulheres que conhecido nos mapas como Terra dos Papagaios, em
parecem seduzi-lo com a nudez de seus corpos. As índias, referência às belas aves que aqui se encontravam, ou Terra
no entanto, desviam a atenção do conquistador para que dos Canibais. A imagem do canibalismo ameríndio, porém,
uma outra, segurando um porrete, o acerte na cabeça. O seria difundida na Europa com mais intensidade a partir do
marinheiro, que a princípio pensava em atrair as belas relato de Hans Staden, explorador alemão que foi
selvagens, terminaria como iguaria em um banquete capturado pelos tupinambás em meados do século XVI. Sua
canibalesco. Desde então, a cartografia europeia, ao incrível experiência como prisioneiro de um grupo de
representar a América, passou a difundir a fama desses antropófagos foi descrita em relatos que ganharam várias
povos consumidores de carne humana. Esse alerta aos edições entre os séculos XVI e XVIII.
futuros desbravadores era traduzido nos mapas em
imagens de guerras, fogueiras e corpos fracionados em
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A história foi fartamente ilustrada com gravuras sobre os de capturados, os prisioneiros ficavam sob a guarda de um
costumes indígenas: como guerreavam, plantavam senhor e eram levados para o interior da aldeia pelas
mandioca, pescavam, caçavam, cuidavam dos doentes e mulheres. Em seguida, ganhavam uma esposa e esperavam
enterravam os mortos. Além de preparar os alimentos, as livres, como qualquer homem da tribo, o grande dia em
mulheres produziam o cauim, bebida fartamente que todos os parentes de seu amo e os demais vizinhos
consumida durante cerimônias que antecediam o banquete consumiriam o seu corpo. Ao observar como os guerreiros
canibal. capturados eram tratados, o alemão procurou traçar
estratégias com a intenção de se livrar do triste destino.
O livro descreve os pormenores do ritual antropofágico e
revela, por meio de imagens, todas as suas etapas. Depois

Ritual de execução de um inimigo dos tupinambás. Thodoro Bry.

Para os guerreiros tupis, mesmo quando prisioneiros, era Banalizada pela mídia, essa narrativa acende a ideologia
uma grande honra morrer durante os combates ou colonial, um conjunto de pressupostos, nem sempre
demonstrar sua bravura ao enfrentar o sacrifício e a sina de verdadeiros, que reforça a inferioridade dos povos
ser consumido pela tribo. Por ser cristão e europeu, Staden africanos e ameríndios. Entre esses preconceitos estava a
certamente não concebia a cerimônia como um tupi. E, antropofagia. A prática não era, porém, uma mentira, uma
com certeza, não queria ser sacrificado em um ritual. Por invenção europeia, mas um ritual controlado por regras.
temer a morte, ele era considerado um covarde pelos Entre os tupis, por exemplo, os guerreiros se sentiam
índios. Como cristão, precisava convencê-los de que era um honrados quando morriam em um banquete canibal. Para
aliado e não merecia morrer. os europeus, no entanto, comer carne humana era
abominável, pois nem mesmo os leões ingeriam seus
Desde o início dos descobrimentos e da expansão europeia, semelhantes.
o contato do homem branco com os canibais é descrito e
desenhado em livros. No século XX, o assunto recebeu Ao banalizar as cenas de canibalismo, os europeus
reforço ainda maior no cinema e na televisão. Hoje, a prisão pretendiam comprovar que índios e negros agiam como os
de um explorador por uma tribo canibal é uma cena piores animais e necessitavam da intervenção de povos
comum em filmes e desenhos animados que retratam mais “civilizados” para promover a paz. Os conquistadores
aventuras passadas na África e na América. Depois de feito tinham a intenção de controlar as terras, as riquezas e a
prisioneiro, o europeu é conduzido por guerreiros ao força de trabalho dos nativos. Para os europeus, os índios e
interior da aldeia, onde existe um grande tacho com água negros seriam incapazes de dominar seus instintos,
fervente e muitos nativos ansiosos para degustar a iguaria promovendo, por isso, guerras, emboscadas e traições. A
capturada durante um confronto bélico. A cena atesta a preguiça destes povos inviabilizava o cultivo dos campos e a
selvageria de povos perdidos em terras afastadas da domesticação dos animais, por isso dependiam da carne
civilidade do homem branco. humana. Portanto, para os conquistadores, o canibalismo
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era sinônimo de barbarismo e da incapacidade de se
autogovernar. A intervenção colonialista europeia seria um
meio de erradicar o costume de comer carne humana, de
livrar os próprios nativos do destino cruel e, por fim,
conduzi-los à civilização.

Esses relatos, inicialmente, destacam a preguiça dos índios,


o gosto pela guerra e pela carne humana. Em um segundo
momento, os relatos difundem a superioridade da religião
cristã e demonstram a inteligência e a capacidade dos
europeus para manipular os nativos. Esses preconceitos vão
originar o mito da superioridade do homem branco.

A biografia de Hans Staden é também um bom exemplo


para se entender como os cristãos legitimavam as guerras e
a escravidão nas colônias: os europeus seriam senhores de
povos incapazes de obedecer às leis mais elementares. A
partir de centenas de narrativas de viagem, percebe-se
como os europeus contavam tanto com a fé em Deus
quanto com a superioridade de seus navios e armas de fogo
para dominar outros povos. Entre os séculos XVII e XIX, aos
poucos as vitórias europeias no mundo colonial tornaram-
se garantia de sua superioridade intelectual, e da missão de
converter os bárbaros em “homens civilizados”. Desta
forma, legitimavam as intervenções militares, o domínio
sobre os povos ameríndios e africanos para o “bem e
progresso da humanidade”. Eis, então, como a narrativa de
Hans Staden, falsa ou verdadeira, não importa, contém os
princípios do colonialismo e do imperialismo que ainda
persistem na atualidade.

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