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Livro - Reconfigurar - A - Escola - José Pacheco

Este documento contém 3 crônicas do autor sobre a proposta de Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no Brasil. Na primeira crônica, ele critica a BNCC por impor conteúdos sem considerar seu significado ou relevância para os estudantes. Na segunda, ele reflete sobre sua própria experiência escolar e como aprendeu muitos conteúdos de forma mecânica e sem sentido. Na terceira, ele questiona aspectos específicos dos conteúdos e estrutura proposta na BNCC.

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Inês Costa Lima
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Este documento contém 3 crônicas do autor sobre a proposta de Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no Brasil. Na primeira crônica, ele critica a BNCC por impor conteúdos sem considerar seu significado ou relevância para os estudantes. Na segunda, ele reflete sobre sua própria experiência escolar e como aprendeu muitos conteúdos de forma mecânica e sem sentido. Na terceira, ele questiona aspectos específicos dos conteúdos e estrutura proposta na BNCC.

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9

Sumário

Dedicatória.......................................................................... 7

Algumas crônicas (mais ou menos) curriculares..................... 11

Outras crônicas................................................................... 47

O Terceiro Manifesto............................................................. 107

Anexo (Manifesto pela Educação).......................................... 123


11

Algumas crônicas
(mais ou menos)
curriculares

Quando questões fundamentais de currículo


não são dirigidas por educadores,
os caprichos econômicos ou políticos formam o caminho
e as práticas educacionais são governadas à revelia.

Schubert

P artilho com os eventuais leitores algumas refle-


xões sob a forma de crônicas, mais ou menos,
curriculares, reflexões sobre a proposta de BNCC.
E peço aos educadores que rezem, mas que rezem
com convicção, para que o clamor das suas preces
possa chegar aos ouvidos dos membros do Conselho
Nacional de Educação e os livre de cometer a impru-
dência de aprovar tão espúrio documento.
12 JOSÉ PACHECO

Em finais de século XX, fui relator do parecer


do Conselho Nacional de Educação sobre uma pro-
posta de reorganização curricular, num processo
semelhante aquele por que passaram os autores da
proposta de BNCC brasileira. Porque me apercebi de
que não se tratava de assunto sério, recorri à ironia,
para compensar os efeitos do corporativismo e da
baixa política refletidos no documento final.
Perguntava se teria havido um exercício de futu-
rologia por parte de quem acreditava na pertinência
dos conteúdos selecionados, quando os alunos de
então virassem adultos. Conteúdos como “mesócli-
ses, dígrafos e piroclásticas” deveriam fazer parte da
“base” curricular? Por que se remetia para uma aula
semanal de educação cívica o domínio sócio moral,
emocional, afetivo? Onde estava contemplado tudo
o que vai além do cognitivo: a ética, a estética...?
Porque razão eram readotados arcaísmos como “anos
iniciais”, “anos finais”, “salas de aula”? Os meus ques-
tionamentos foram ostracizados. A lei foi aprovada.
Decorridos alguns anos, foi revogada, para dar origem
a outra excrescência normativa.
A minha desconfiança relativamente às decisões
curriculares é antiga. Há quase sessenta anos, pergun-
tei ao professor Vasconcelos por que razão eu tinha
de aprender certos conteúdos, que esforçadamente
ele tentava ensinar. Autoritário, como era apanágio
RECONFIGURAR A ESCOLA 13

de uma época de ditadura, respondeu: Quando fores


grande, irás precisar...
Sou “grande” e quase nada desse “currículo” me
fez falta. Não me fez mais sábio, nem mais feliz. O
professor Vasconcelos — que descanse em paz e que
Deus lhe perdoe a ingenuidade pedagógica — acre-
ditou ter me ensinado o “sistema galaico-duriense”.
Mas a minha criança apenas havia feito decoreba
sem sentido: Peneda, Suajo, Gerês, Larouco, Barroso,
Falperra, Cabreira, Marão, Padrela, Montezinho, No-
gueira, Bornes... e por aí fora, numa lengalenga sem
sentido, como tantas outras associadas a conteúdos
da grade curricular da época, decorados e debitados
em prova. Depois, esquecidos, porque a memória é
esperta e a aprendizagem não foi significativa, inte-
gradora, diversificada, ativa, nem socializadora, como
recomendariam o Vigotsky e o Bruner que fosse.
Quando, já nos meus cinquenta anos, eu viajava
por Trás-os-Montes, avistei uma bela montanha: Que
montanha é aquela? — perguntei.
Responderam: É a Serra do Larouco.
A palavra Larouco ressoou na minha memória
de longo prazo. Finalmente! Peneda, Suajo, Gerês...
Larouco! Mas nada sabia do Larouco, nem do povo
que lá morava, nem da sua cultura, nem das suas
necessidades sociais, nem nada! Apenas “sabia” uma
palavra: Larouco.
14 JOSÉ PACHECO

Refletindo sobre esse incidente crítico, concluí


que, na década de 1950, o professor Vasconcelos,
como a maioria dos professores de hoje, agia em
função de crenças, entre os quais a de que basta
definir um conjunto de áreas e conteúdos, objetivos
ou expectativas de aprendizagem e torná-los obri-
gatórios a nível nacional, para que a aprendizagem
de tais conteúdos aconteça.
O velho professor não sabia que currículo é muito
mais do que impor a abordagem de um determinado
repertório de conteúdos. E, por isso, a escola não
me ensinou os conteúdos da BNCC de então, só
me doutrinou. Aliás, confesso que a única coisa que
aprendi nessa escola foi a odiar a escola na pessoa
do professor Vasconcelos.
Mais tarde, quando compreendi que, por detrás
da BNCC da ditadura de Salazar, havia pressupostos
ideológicos e preconceitos pedagógicos, perdoei o
professor, que havia sido instruído e profissionalmen-
te socializado numa escola, que, em pleno século XXI
continua a fazer estragos, uma escola segmentada,
que, por ter herdado princípios da revolução indus-
trial, naturalizou o insucesso.
Qual a matriz axiológica determinante de con-
teúdos e expectativas de aprendizagem “nacionais”?
Qual o significado do adjetivo “nacional”? Não seria
preferível que a base curricular fosse elaborada em
RECONFIGURAR A ESCOLA 15

função de valores universais de que o Brasil carece,


que fosse uma base universal? Ou, talvez, federal,
para que não se remetesse para a redação de um
PP-P (ignorado, ou raramente cumprido) aquilo que
é caraterístico de cada estado, de cada quilombo,
de modo que as comunidades indígenas pudessem
elaborar um currículo de comunidade?
Por quê “comum”? Aquilo que é “comum” às es-
colas brasileiras é um obsoleto modelo educacional
que a nova “base” não questiona. Por quê “utilizar
termos anafóricos variados para estabelecer a coesão
em textos narrativos”, no “5º ano”? Por quê reconhe-
cer os principais produtos, utilizados pelos europeus,
procedentes da África do Sul, do Golfo da Guiné e de
Senegâmbia, no “8º ano”?
Por quê estudar “senegâmbias” na adolescência?
Por quê no “8º ano”? Por quê “ano de escolaridade”? Em
que século foi produzida esta BNCC? No século XIX?
Por quê contemplar numa “base”, naquilo que é
basilar, conteúdos curriculares (ou qualquer que seja
a designação que, eufemisticamente, quiserem dar
aos conteúdos: “objetivos de aprendizagem”, “direitos
de aprendizagem”...) como mesóclises, piroclásticas,
efeito de Coriolis, ou eugenol? Serão pertinentes?
Farão sentido nos grupos etários obrigados à sua
“decoreba”? Será necessário e indispensável “ensiná-
-los”? Contribuem para uma vida melhor? Irão fazer
16 JOSÉ PACHECO

com que os alunos sejam mais sábios, mais felizes,


quando forem grandes?
Na BNCC os objetivos já estão escritos de forma
propícia à “catalogaçaõ”. Eles serão convertidos em
“descritores”, para elaboração de itens de prova, que
serão pré-testados. Os itens, que “passarem nos tes-
tes de campo”, irão para um “banco de itens”.
Na época de aplicação de provas — não confundir
prova com avaliação e muito menos com a prática
de uma avaliação efetivamente formativa, contínua
e sistemática! — entre os milhares de itens disponí-
veis, serão escolhidos alguns, segundo (misteriosos)
critérios, para “cair na prova”. Tal como ainda acon-
tece nos inúteis rituais de “avaliação”, alguns itens
de provas anteriores serão utilizados nas provas dos
anos seguintes, com fins de aferição. Enfim! Mais uma
contribuição para a redução do currículo ao “sacros”
rituais de sala de aula. Os professores preocupar-se-
-ão em estudar exames anteriores, tentando adivinhar
padrões, limitando os processos de aprendizagem a
conteúdos treinados em “simulações”.
O Brasil já dispõe de sistemas que ajudam os
professores a construir simulados a aplicar nas suas
turmas (outro dispositivo sem sentido, desde há mais
de um século), a partir de sistemas on‑line. Se a pro-
posta de BNCC for aprovada, imagino esses processos
a serem assimilados por sistemas auto-instrutivos
RECONFIGURAR A ESCOLA 17

on-line, usando tecnologia interativa, e o processo


de avaliação passa a monitorar o ritmo e desenvolvi-
mento do aluno, indicando materiais instrucionais (vi-
deos, filmes, materiais, etc. on‑line) que o aluno pode
usar para “corrigir” sua “dificuldade de desempenho”.
Validando a profecia de Orwell, os donos de tais “sis-
temas” poderão transformar as escolas públicas em
“vendas de mercadoria”, através de “franquias”, como
quaisquer McDonalds da instrução, terceirizando a
gestão, produzindo escolas charters, considerando a
educação, não como direito, mas como mercadoria.
Nesse dantesco cenário (e não me considero
profeta de desgraças), os professores farão signi-
ficativo despêndio de tempo (que deveria ser de
aprendizagem) num ridículo treino de alunos para
os testes, algo que inúmeros estudos demonstram
serem altamente destrutivos e comprometerem a boa
qualidade da educação. Acaso os autores da BNCC
leram esses estudos?
À partida, a consulta pública sobre a BNCC está
viciada. Presumo que os autores da proposta de BNCC
também tenham sido vítimas da escola do professor
Vasconcelos. Talvez ignorem que, nesse modelo de
escola, por maior mérito que tenha a proposta, a
maioria dos conteúdos nela considerados não será
aprendida. E que o laborioso afã de a conceber terá
sido tarefa vã.
18 JOSÉ PACHECO

Suspeito de que os autores da BNCC desconhe-


cem que há outros modos de conceber e desenvolver
currículo em novas construções sociais de apren-
dizagem, nas quais os conteúdos são efetivamente
aprendidos por todos. Um modelo de escola não
segmentada, sem reprovação, sem recurso a “classes
de apoio”, ou necessidade de “recuperação”. Desen-
volvendo currículo subjetivo a par de um currículo
universal (não “nacional”) adequado a um currícu-
lo glocal e comunitário. Envolvendo os jovens em
aprendizagens significativas, como diriam o Bruner
e o Vigotsky, que, por razões óbvias, não puderam
participar da elaboração da BNCC brasileira.
Em recuados tempos, quando um governante
pretendia publicar uma lei, mandava afixá-la escrita
em couro, ou papiro. Quando era necessário afixar
uma nova lei, cobria-se o texto anterior com uma
camada de cal. Porém, a exposição à intempérie
provocava a queda da cal e o texto antigo voltava a
ser visível. Talvez o mesmo aconteça com medidas
de política educativa da atualidade: são palimpsestos.
RECONFIGURAR A ESCOLA 19

“Curricular”

A referência mais remota ao termo “currículo”


remonta ao século XVII. E são várias as concepções
de currículo, associadas a diferentes formas de se
conceber a educação. Tradicionalmente, currículo é
a seleção cultural de determinados conhecimentos
e práticas. Mas não é só isso. É também o conjunto
de experiências, vivências, procedimentos, opções
metodológicas, modos de avaliação... Currículo é,
pois, um conceito de vasto espectro semântico, de
difícil unanimidade. Kelly, Goodlad, Gimeno Sacristán
e muitos outros autores diferem na sua definição.
Deparei com dezenas de definições, que são reflexo
da época e do contexto sócio-político em que foram
produzidas, ou da corrente pedagógica e teoria da
aprendizagem em que estão filiadas. Perante este
fato, remeto para a leitura das obras de diferentes
teóricos, eximindo-me a reproduzi-las neste despre-
tensioso livrinho de prosa acessível ao comum dos
mortais, incluídos os especialistas, mais ou menos,
especializados em currículo.
20 JOSÉ PACHECO

Na Finlândia, o processo de reforma do cur­


rículo envolveu todos os educadores do país. Como
declarou a ministra da educação finlandesa: “Para
que o novo modelo seja bem-sucedido, os professo-
res nas nossas escolas têm muita liberdade. E uma
mudança curricular não poderia ser diferente. Nós
vamos continuar com a política de sempre, não di-
zemos aos professores quais materiais devem usar,
como ensinar (...). Eles têm de ter liberdade, porque
são eles que sabem o que funciona melhor com cada
aluno”. E acrescentou: “Além de o currículo focar
nos projetos interdisciplinares, ele também avança
no maior uso de ferramentas digitais em sala de
aula. E esse processo de digitalização não significa
apenas colocar um computador em sala de aula, mas
usar essas ferramentas tecnológicas para aumentar
e melhorar o processo de aprendizado”. No Brasil,
abriu-se uma consulta pública de um documento
previamente elaborado. Milhões de sugestões de
alteração, quase todas fundadas no senso comum
foram colhidas, além de 27000 pedidos de inclusão
de novos objetivos para a educação. E uma base
comum curricular cativa do velho modelo escolar
será promulgada, em breve. Uma reforma que, em
breve, será reformada no chão das escolas. Isso
mesmo: os discípulos do velho e esclerosado modelo
educacional perdem-se em tentativas de reforma.
Se bem que a obsessão uniformizadora e sele-
tiva da escola venha sendo questionada por muitos
RECONFIGURAR A ESCOLA 21

“especialistas”, pesquisadores instalados em torres de


marfim induzem os políticos a acrescentar camadas
de tinta nova em velhos palimpsestos. Até mesmo a
recente euforia da introdução das novas tecnologias
de informação e comunicação nas escolas pode vir
a concorrer para a sedimentação de velhas práticas.
As escolas poderão continuar a ser palimpsestos
nos quais os registos primitivos não se apagaram,
indiferentes aos dados fornecidos pela investigação
educacional. Talvez seja chegado o tempo de fazer
prevalecer critérios de natureza científico-pedagógica
nas decisões de política educativa.
Que razões sustentam a reprodução de um
modelo obsoleto de Escola, que gera insucesso, ex-
clusão, abandono? A expressão “insucesso escolar”
não se constituirá em paradoxo? Quando nos con-
frontamos com o facto de a maioria dos alunos não
completarem com sucesso a sua educação básica,
não será preciso ultrapassar a atribuição de culpas
ao “sistema”? Como explicar o facto de algumas re-
ferências teóricas contarem mais de um século e se
manterem dramaticamente atuais, apesar e contra o
desenvolvimento das chamadas ciências da educação?
Até quando insistiremos teimosamente em equívocos,
naturalizações e ideias-feitas?
Sabemos que o caos precede a mudança e que
o Brasil passa por um período de caos político, um
tempo de crise de valores, uma crise educacional
geradora de oportunidades, a exigir um compromisso
22 JOSÉ PACHECO

ético. Façamos a nós mesmos duas perguntas: Para


se refundar a educação, não teremos de repensar
a escola? Não teremos de repensar o conceito de
currículo e de desenvolvimento curricular?
RECONFIGURAR A ESCOLA 23

Currículo, ética, cidadania

Brasil, Abril de 2015. Em Goiás, onde governantes


desesperados entregam a educação à guarda da Po-
lícia Militar, alunos organizam um “quebra-quebra”:
destroem mobiliário, depredam o edifício da sua
escola; num colégio particular no Rio, um jovem de
12 anos agride com pontapés um colega de 11 anos e
é “suspenso por um dia”...
O amigo Severino diz-nos que cidadania é a me-
dida da qualidade de vida humana, que se desdobra
apoiada na presença das mediações histórico-sociais.
E o nosso amigo Freire, que alguns energú-
menos exigem que saia das escolas (embora, na
maioria delas, o seu espírito jamais tenha entrado),
considerava a educação uma prática de liberdade.
Porque havia lido esses e outros sábios brasileiros,
a Cida entrou na sua nova escola disposta a fazer
jus à leitura dos mestres. Chegada ao refeitório,
deparou com uma longa fila e no último lugar da
fila se colocou.
24 JOSÉ PACHECO

Não tardou que uma criança lhe dissesse: Tia,


por que não vai lá para a frente da fila? Por que não
“fura a fila”?
Meu querido, eu não “furo fila” — contestou a Cida.
A criança insistiu: Na nossa escola, as educadoras
passam à nossa frente. Você é educadora, pode passar.
Exatamente por ser educadora é que eu não vou
para a frente da fila, meu querido — Completou a
Cida. E por aí se quedou o breve diálogo, mas não
o episódio... Outra professora chegou ao refeitório,
ultrapassou todo mundo e se serviu de alimento.
A mesma criança, que falara com a Cida, ousou in-
terpelar a tia que “furara a fila”. Foi repreendido por
essa e outras indignadas educadoras “furonas”.
A Cida herdara uma cultura diferente daquela
que ali prevalecia. Havia trabalhado numa escola
onde palavras como respeito e cidadania não serviam
apenas para enfeitar um PP-P escrito, onde as regras
eram decididas em coletivo e por todos cumpridas,
onde valores escritos não eram negados na prática.
Onde se educava no exercício da cidadania. Na es-
cola de “furar fila”, a Cida surpreendia-se com o fato
de haver banheiro de aluno (coletivo e sem espelho)
diferente de banheiro de professor (coletivo e com
espelho) e este separado do banheiro do diretor
(privativo e com espelho). Surpreendia-se que todo
mundo “achasse normal” que até no defecar e urinar
RECONFIGURAR A ESCOLA 25

houvesse hierarquia. Sabia que não se prepara jovens


para a cidadania, mas que se educa na cidadania, em
contextos onde haja igualdade na diversidade, onde
prevaleça o exemplo. Isso ela aprendera numa escola
onde não se “furava fila”.
A Cida desta história encontrou quem partilhas-
se esperançosas práticas. Porém, quando se propôs
trabalhar em equipe, reunir em assembleia com os
alunos, partilhar projetos com a comunidade, foi-lhe
dito que, há alguns anos, outra Cida havia tentado
fazê-lo e se arrependeu.
Vícios e tabus se revelam nos mais ínfimos por-
menores, representações sedimentadas tendem a es-
conder a origem de formas sociais de dominação. Não
surpreende, por isso, que uma solícita supervisora
tenha demovido a Cida dos seus audazes propósitos,
ordenando-lhe que desse as suas aulinhas e fizesse o
que lhe mandavam fazer. E que uma prudente diretora
a aconselhasse: Cida, tenha paciência. Aqui, manda
quem pode, obedece quem tem juízo.
Qual terá sido o desfecho desta história? A Cida
terá conseguido cumprir o PP-P e desenvolver cida-
dania? Ou terá passado da fila do refeitório para a
fila de espera da consulta de psiquiatria?
Esta história admite vários desfechos. Inclusive,
aquele que o eventual leitor lhe quiser dar.

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