Obras Completas IV de Jorge Luis Borges

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de bolso, que é ser de fácil manu- praça, o que impossibilitaria a con-

seio, para poder ser lido no ôni- sulta a uma obra de referência.
bus, na lanchonete, no banco da Ana Claudia Trierweiller
UFSC

do mérito poético de Borges, seus


ensaios encontram uma rara una-
Obras completas IV, de Jorge Luis nimidade. Completando o vo-
Borges, vários tradutores. São lume há uma pormenorizada cro-
Paulo: Globo, 1999, 680 pp. nologia e uma bibliografia de
Borges elaborada por um de seus
melhores críticos e biógrafos,
Este quarto e último volume Emir Rodríguez Monegal e devi-
das chamadas Obras completas de damente adaptada e atualizada por
Borges compreende livros publi- Jorge Schwartz e Gênese Andrade
cados entre 1975, quando o autor da Silva. Tanto a cronologia como
tinha 76 anos, e 1988, quando se a bibliografia não constam do ori-
completavam dois anos de sua ginal e foram tiradas do livro
morte. São quatro textos, todos Ficcionario, ampla antologia de
eles de prosa ensaística, todos eles Borges, organizada e anotada por
excelentes: Prólogos com um pró- Monegal e publicada no México
logo de prólogos, Borges, oral, em 1981.
Textos cativos e Biblioteca Pesso- Borges, inserido em uma cul-
al. Prólogos. Neles está o melhor tura, a hispânica, notória por obras
Borges, com toda a sua imensa prolixas, foi, como se sabe, um
cultura, sua incrível autonomia virtuose das formas breves e des-
intelectual, sua originalidade, sua denhadas. Três dessas formas es-
inteligência ágil e seu estilo que tão presentes aqui em textos para
revolucionou a prosa hispânica do os quais o adjetivo certo é simples-
século XX. Se ainda há alguns mente geniais: prólogos, resenhas
(cada vez menos, é verdade) que e minibiografias. Aliás, as rese-
questionam a narrativa inovadora nhas e as minibiografias estão tam-
de Ficciones e Al Aleph e se mui- bém embutidas em muitos de seus
tos não se convencem totalmente mais inspirados prólogos. Uma
280 Resenhas de Traduções

quarta forma de pouco prestígio livros publicados entre as décadas


no hemisfério sul entra neste vo- de 20 e 70, apresentada de forma
lume: as conferências, das quais idiossincrática, pois a série não
Borges tirou seu sustento durante obedece a uma ordenação crono-
muitos anos. Eterno heterodoxo, lógica ou temática. Nesses textos,
suspeito sempre de ser um mero sempre perspicazes, encontramos
tigre de papel literário, que tiraria as distintas facetas de Borges como
toda sua literatura da livros e não leitor e crítico: desde a mais co-
da vida, Borges cultivou e poliu nhecida de cultor dos escritores
vários gêneros tipicamente orais, anglófonos, até a menos divulgada
como a conferência e a entrevista. do conhecedor e promotor da lite-
Não esqueçamos tampouco que a ratura argentina, passando pela do
“elitista” obra de Borges tem ori- leitor contumaz da obra de histo-
gem em uma contínua conversa riadores, místicos e críticos literá-
literária, que praticou com alguns rios de vários países e épocas, so-
interlocutores ao longo de toda a bretudo dos menos freqüentados
sua longa vida, nos diferentes pa- por seus conterrâneos e contem-
péis de discípulo, par e mestre. porâneos.
Talvez muitos se surpreendam ao O Borges crítico circunstanci-
saber que essas grandes conversas ado, e mesmo técnico, de poesia
foram feitas não com ingleses ou tem uma forte presença neste li-
americanos, mas com hispânicos vro e é essa faceta a que mais so-
como o espanhol Cansinos Asséns, fre pela decisão editorial de colo-
o mexicano Alfonso Reyes, o car apenas o texto traduzido dos
dominicano Henríquez Ureña e o poemas, e trechos de poemas, ana-
argentino Bioy Casares – este úl- lisados. Nos volumes anteriores,
timo, o único mais jovem que ele. os versos originais eram coloca-
Em outras palavras, o mestre sou- dos em notas de pé de página. A
be ser discípulo – e discípulo de tradução é de Josely Vianna
mestres hispânicos. Baptista, poeta que traduziu, en-
Prólogos com um prólogo de tre outras coisas, o romance
prólogos (Prólogos, con un pró- Paradiso, de Lezama Lima, a po-
logo de prólogos, 1975), o primei- esia do argentino Nestor
ro livro destas Obras completas, é Perlongher e também a maioria
formado por uma impressionante dos poemas borgianos publicados
coleção de prefácios escritos para no tomo III das Obras completas.
Resenhas de Traduções 281

Sua tradução substitui uma anteri- Josely Vianna Baptista (p.11)


or, feita pelo também poeta e Por volta de 1926, incorri em
membro da Academia Brasileira de um livro de ensaios, cujo
Letras Ivan Teixeira, publicada em nome não quero lembrar, que
1985 pela editora Rocco. Embora Valery Larbaud, talvez para
nos dois casos, a tradução seja obra agradar a nosso amigo co-
de poetas, a de Junqueira possuía mum Güiraldes, louvou pela
um perfil mais “jornalístico”, pri- variedade de seus temas, jul-
gando-a própria de um autor
vilegiando a fluência enquanto a
sul-americano.
de Josely possui um tom levemen-
te mais acadêmico, privilegiando Embora apresentando opções
o literalismo, que tanto caracteri- literalistas (de cujo nome não que-
za as traduções do espanhol, em ro lembrar-me, que julgou), Ivan
geral. Um exemplo basta para ilus- Junqueira tem ouvido para a frase
trar as diferentes estratégias dos idiomática, escolhendo agradar
tradutores (itálicos meus): para complacer a e dos temas para
de sus temas, esta última uma es-
Original (p. 13)
Hacia 1926 incurrí en un libro colha particularmente feliz. Sen-
de ensayos de cuyo nombre no sível à transgressão borgiana, re-
quiero acordarme, que cria o idiossincrático incorrí en un
Valéry-Larbaud, tal vez para libro como ousei um livro. Josely,
complacer a nuestro común por outro lado, também sensível à
amigo Güiraldes, alabó por la transgressão borgiana, opta pela
variedad de sus temas, que via literal: incorri em um livro.
juzgó propia de un autor Mas ela também faz suas opções
sudamericano. idiomáticas: não quero lembrar
para no quiero acordarme e, mais
Ivan Junqueira (p. 7) ousadamente, julgando-a para que
Por volta de 1926 ousei um juzgó. Neste parágrafo, há também
livro de ensaios de cujo títu- a correção de um erro da edição
lo não quero lembrar-me, que em espanhol: o nome do escritor
Valéry-Larbaud, talvez para francês é realmente Valery
agradar nosso amigo comum Larbaud, sem acento e sem hífen
Güiraldes, louvou pela varie-
e não Valéry-Larbaud, como está
dade dos temas, que julgou
no original e foi reproduzido na
própria de um autor sul-ame-
tradução de Ivan Junqueira. Mas
ricano.
282 Resenhas de Traduções

aqui é provável que se trate de uma dução anterior, de Maria Rosinda


intervenção da coordenação edito- Ramos da Silva, foi revista por
rial brasileira, que procedeu a cor- Maria Carolina de Araujo e Jorge
reções similares no conjunto das Schwartz, os mesmos que efetua-
Obras completas. ram a delicada operação nas Obras
Se houve mais rigor neste e nos Completas I, II e III.
outros tomos em relação às refe- Neste livro, pleno de saboro-
rências do que no próprio original sas citações, também sentimos falta
castelhano, o mesmo rigor não se de um pouco mais de rigor acadê-
aplicou às centenas de citações de mico. De novo, há rigor para os
autores estrangeiros espalhadas textos em espanhol, como na nota
pelo texto. Estas citações foram 2 da p. 202, quando se localiza
traduzidas não do original, mas da com precisão uns versos espanhóis
tradução espanhola de Borges. Em referidos por Borges como sendo
muitos casos, essa opção não traz de “um anônimo sevilhano”. Fal-
maiores prejuízos, inclusive por- ta esse rigor, contudo, para as re-
que a tradução de Borges é, com ferências a outras línguas, que
freqüência, excelente e próxima da constituem a maioria, como esta
letra do original. Em outros, con- de Leconte de Lisle: “Libertem-
tudo, a localização e confronto no do tempo, do número e do es-
com os textos originais poderia paço e devolvam-lhe o repouso que
revelar surpresas importantes, pois lhe haviam tirado.” Estes versos
muitas delas parecem ter sido são citados como se fossem prosa,
adaptadas por Borges, para melhor embora o próprio Borges diga que
servir seu estilo ou sua argumen- pertencem a “uma estrofe”. Eles
tação. pertencem, de fato, aos Poèmes
Tal como nos outros volumes, antiques (1852) e constituem os
houve um esforço por apresentar dois últimos versos da última es-
uma nova tradução e quando esta trofe de “Hélène”:
não foi possível, talvez por pro-
Et toi, divine Mort, où tout
blemas de direitos autorais, che- rentre et s’efface,
gou-se à solução intermediária e Accueille tes enfants dans
problemática de reaproveitar uma ton sein étoilé ;
tradução antiga mudando algumas
de suas escolhas. Foi o que acon- 115 Affranchis-nous du temps,
teceu com Borges, oral, cuja tra- du nombre et de l’espace,
Resenhas de Traduções 283

Et rends-moi le repos que la xão do então adolescente Emir


vie a troublé ! Rodríguez Monegal, talvez sejam
(disponível no site http:// os textos curtos mais bem acabados
www.educnet.education.fr/ de Borges. Aqui, em uma revista
musagora/muses/musesfr/ feminina, esse Borges de 37 a 40
leconte.htm#r2) anos, pôde escrever com mais es-
pontaneidade do que para outras
Neste caso, como podemos ver, revistas onde esperava ser lido por
a tradução da tradução de Borges seus pares e produziu alguns de seus
segue de perto, mas não totalmen- textos mais profundos. Enrique
te, o original, talvez porque o es- Sacerio-Garí e Emir Rodríguez
critor citasse a passagem de me- Monegal, os primeiros a divulgar
mória. Um pequeno detalhe, no esses textos (Textos cautivos –
entanto, nos diz como esse cotejo ensayos y reseñas en El Hogar,
com o original pode ser fértil. O Barcelona, Tusquets, 1986) omiti-
texto brasileiro diz: Libertem-no ram alguns deles em sua edição. O
e devolvam-lhe, enquanto o origi- mesmo não deveria acontecer em
nal francês diz Affranchis-nous e um volume de Obras completas,
rends-moi, ou seja Libertem-nos onde se espera exaustividade, não
e devolvam-me. Uma consulta ao seletividade. Ademais, em 1993 o
texto castelhano revela que o des- editor francês das Oeuvres
vio vem de lá: “Libérenlo del complètes, Jean Pierre Bernès, já
tiempo, del número y del espacio havia incluído as peças eliminadas
y devuélvanle el reposo que le por Monegal, a pedido do próprio
habían quitado.” Borges, sem dú- Borges e em 2000 a editora Emecé
vida mais interessado na idéia que publicou um livro de 226 páginas
na propriedade poética dos versos, (Borges en El Hogar) com “todos
simplifica a simetria e a perspecti- los textos que habían quedado sin
va, suprime o sujeito vie [vida] e o recoger” no volume de Sacerio-Garí
ponto de exclamação e traduz, mui- e Monegal. A tradução de Textos
to livremente, troublé por quitado. cativos esteve a cargo de Sérgio
O terceiro livro deste volume, Molina, um dos poucos tradutores
Textos cativos, reúne os textos que que traduzem intensa e exclusiva-
Borges publicou, de 1936 a 1939, mente do espanhol entre nós.
na revista feminina El hogar. Es- Molina traduziu também o último
ses textos, que provocaram a pai- livro deste quarto tomo das Obras
284 Resenhas de Traduções

completas, Biblioteca pessoal. Pró- Por sinal, há um capítulo ini-


logos, uma coleção de breves e ins- cial de instruções. Aí está
pirados prefácios escritos por escrito que os homens do fu-
Borges para uma coleção de obras turo não hão de se fantasiar
significativas da literatura univer- de postes de telégrafo nem
sal publicadas pela editora corricar de um lado para o
Hyspamérica em 1985. Assim, da outro, embutidos em armadu-
página 241 à 627 temos uma uni- ras de celofane, em recipien-
tes de vidro ou em caldeiras
dade de tom, que falta aos outros
de alumínio. (pp. 263-4)
tomos. A maneira de traduzir de
Molina é uniforme em todas essas Uma consulta ao original revela
páginas, uma maneira que possui as virtudes e as vacilações da ma-
dois traços que singularizam esse neira de traduzir de Molina:
tradutor: extrema correção na in- Por lo pronto, hay un capítu-
terpretação do espanhol e alguns lo inicial de instrucciones. Ahí
percalços na idiomaticidade do por- está escrito que los hombres
tuguês brasileiro. del porvenir no se disfrazarán
A familiaridade de Sérgio de postes de telégrafo ni
Molina com a língua e a cultura corretearán de un lugar a
portenhas é responsável por 386 otro, embutidos en armaduras
páginas de tradução correta, sem de celofán, en recipientes de
os erros, por leitura apressada ou cristal o en calderas de
desconhecimento lingüístico e cul- aluminio. (p. 228)
tural, que costumam caracterizar A difícil expressão por lo pron-
as traduções brasileiras do espa- to está muito sensatamente
nhol. O problema de Molina pa- traduzida por por sinal e o facil-
rece ser o excesso de confiança nas mente enganoso cristal correta-
regras gramaticais e nos dicioná- mente traduzido como vidro, duas
rios, pois algumas de suas esco- escolhas que comprovam a natu-
lhas, embora corretas, estão dis- ralidade com que Molina enfrenta
tantes do uso, mesmo culto, do aspectos espinhosos e escorregadios
português do Brasil. Um bom do espanhol, em que tantos brasi-
exemplo aparece em uma resenha leiros fracassam. No entanto, aí
do livro Things to come, de H. G. por ahí, não hão de se fantasiar
Wells (itálicos meus): por no se disfrazarán e [hão de]
corricar por corretearán mostram
Resenhas de Traduções 285

que sua competência idiomática do Corricar1 [Do rad. de correr


português possui zonas de sombra + -icar.], V. int.
ou turbulência. Embora existen- 1. Correr a passo miúdo.
te, a forma aí é muitíssimo menos 2. Andar ligeiro.
usada que ali para indicar locali- 3. Bras. Andar de um lado
zação textual. Hão de como equi- para outro; perambular,
valente do futuro é certamente vagabundear.
uma escolha abonada por Corricar2 [De corrico + -
gramáticos (o Aurélio eletrônico, ar2.]
por exemplo, diz “como auxiliar, V. int. Bras.
junto do infinitivo precedido da 1. Pescar de corrico.
preposição de, haver forma os tem- Segundo os dois dicionários,
pos compostos do futuro”) mas não corretear e corricar seriam equi-
encontra apoio no uso; o mais valentes bastante apropriados. O
apropriado, no caso, seria a utili- uso, contudo, confirma apenas o
zação do futuro normal, tão culto lexicógrafo espanhol, não o brasi-
em português brasileiro como em leiro. Uma busca no Google traz
espanhol portenho. Corricar, por 2870 ocorrências para corretear
sua vez, parece ser um caso de contra 62 para corricar (destas, a
excesso de confiança no dicioná- maioria esmagadora no sentido de
rio, e merece maior atenção. corricar2: pescar de corrico). A
Em espanhol, corretear, é um experiência cotidiana confirma os
verbo de uso geral e freqüente, as- dados do Google: qualquer nativo
sim definido, pelo María Moliner de espanhol conhece a palavra
eletrônico: corretear enquanto que corricar
Corretear intr. Ir corriendo parece um item raro ou técnico.
de un lado para otro, como Apesar dos problemas assina-
hacen los niños. Ir sin lados, o volume IV das Obras com-
necesidad de un lado para pletas de Borges é o que menos
otro. Callejear. sofre na passagem para o português
Corricar, o equivalente encon- do Brasil.
trado por Molina é dividido em Walter Carlos Costa
corricar1 e corricar2 pelo Aurélio: UFSC

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