Silva, Claudicélio Rodrigues Da (Org) - Todos Os Corpos Desejam

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1

Claudicélio Rodrigues da Silva (org.)

TODOS OS CORPOS DESEJAM

Fortaleza - CE - 2021

2
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Todos os corpos desejam [livro eletrônico] :


coletânea de artigos / Claudicélio Rodrigues da Silva (org.).
-- 1. ed. -- Fortaleza : Claudicélio Rodrigues da Silva, 2021.
PDF

Vários autores
ISBN 978-65-00-18693-2

1. Artigos - Coletâneas 2. Erotismo na literatura 3. Desejo


na literatura 4. Literatura brasileira 5. Sexualidade I. Síntique,
Sara. II. Silva, Claudicélio Rodrigues da.

21-59016 CDD-B869.9

Índices para catálogo sistemático:

1. Artigos : Coletâneas : Literatura brasileira


B869.9

Maria Alice Ferreira - Bibliotecária – CRB-8/7964

3
SUMÁRIO

Ensaios para acalmar a utopia do corpo 6


Claudicélio Rodrigues Da Silva
texto-manifesto-em-língua-de-eros / escrever: do olho de lilith 15
Sara Síntique
Imprensa e identidades queer: gênero e sexualidade no caderno 25
Vida & Arte do jornal O Povo
Francisco Rafael Mesquita Jeronimo
Feitiçaria queer e a subversão do desejo falocêntrico no 40
videoclipe “Coytada” (2018), de Linn da Quebrada
Ed Ney Borges Dias
A hora da estrela de Suzana Amaral: uma reescritura da 59
condição feminina para o cinema
Gleyda L. Cordeiro Costa Aragão
Ela precisa de sapatos novos ou a sexualidade feminina em 71
Clarice Lispector
Luciana Braga
A fruta do mundo era ela: a maçã em Clarice Lispector 85
Tayla Maria Leôncio Ferreira
Militância erótica e militância comunista em Hilda Furacão 97
Sebastião Soares de Sousa Junior
Maria Madalena e Lilith: o corpo feminino em José Saramago 111
Janyele Gadelha de Lima
Os filhos de Zeus ou a herança patriarcal em O herói devolvido 128
(2000), de Marcelo Mirisola
Ilca Andréa Barroso de Carvalho

4
“Feminista odeia sexo!”: sexualidade feminina e abuso sexual na 140
poética de Rupi Kaur
Maylle Freitas
A mística do feminino no poema “a mulher é uma construção”, 156
de Angélica Freitas
Elionete Rodrigues Barbosa
Feminino, feminismo e resistência na performance da slammer 169
Mariana Félix
Eveline de Sousa Montenegro e Claudicélio Rodrigues da Silva

5
Ensaios para acalmar (ou acender) a utopia do corpo

Claudicélio Rodrigues da Silva1

Em um pequeno texto chamado “o corpo utópico” (2013), Foucault


faz uma reflexão a respeito da materialidade do corpo e de como nos
acercamos dele. O corpo é uma “topia implacável”, diz, apontando três
tipos de utopia: uma que viabilizaria um corpo sem corpo, construído à
perfeição do nosso desejo; outra que apagaria o corpo no momento
mesmo em que ele tenta assegurar sua imortalidade (as múmias, as
máscaras mortuárias, os bustos dos túmulos…); e uma terceira, que para
Foucault é a mais incisiva, a alma, ou melhor, o mito ocidental que
atravessa a história e nos faz crer, século após século, que tudo o que é do
corpo é sujo, malfeito e impuro em contraposição às coisas da alma. É
sobre essas utopias que o corpo tem se rebelado, procurando mostrar
“suas fontes próprias de fantástico”.
Em certo momento, Foucault assegura ter se enganado a respeito
dessas utopias apagadoras do corpo, porque, de fato, “elas nascem do
próprio corpo e, em seguida, talvez, retornem contra ele” 2. Em outras
palavras, “o corpo é o ator principal de todas as utopias” 3, que constrói
seus próprios fantasmas, performa nossas subjetividades, nos molda como
sujeitos e materializa um ser histórico marcado pelo seu tempo e seu
espaço a partir do que vestimos, comemos e usamos como acessório de
beleza (maquiagem, tatuagem, corte de cabelo…). Ou seja, por mais
concreta e palpável que seja nossa corporeidade, ela acaba sendo uma
fábrica de fantasmagoria.

1 Professor de literatura brasileira, membro do programa de Pós-graduação em Letras da


UFC, coordenador do Grupo de Estudos da Língua de Eros (GELE). E-mail:
[email protected]
2 Ibid, p. 11.
3 Ibidem, p. 13.

6
É estranho pensar que a etimologia da palavra corpo designa
cadáver; e que não basta ser receptáculo de uma alma, pois o sentido
primeiro será sempre de algo morto. Assim, nosso corpo é ele mesmo um
fantasma, um território visível e ao mesmo tempo invisível, na sua
volatilidade e concretude. Foucault encerra o seu pequeno grande texto
afirmando que só o amor (eu chamaria de materialidade do desejo), é
capaz de livrar o corpo, ainda que momentaneamente, dessa utopia:

Seria talvez necessário dizer também que fazer amor é sentir o corpo refluir sobre
si, é existir, enfim, fora de tudo utopia, com toda densidade, entre as mãos do
outro. Sob os dedos do outro que nos percorrem, todas as partes invisíveis de
nosso corpo põem-se a existir, contra os lábios do outro os nossos se tornam
sensíveis, diante de seus olhos semicerrados, nosso rosto adquire uma certeza,
existe um olhar, enfim, para ver nossas pálpebras fechadas. O amor, também ele,
como o espelho e como a morte, sereniza a utopia de nosso corpo, silencia-a,
acalma-a, fecha-a como se numa caixa, tranca-a e a sela. É por isso que ele é
parente tão próximo da ilusão do espelho e da ameaça da morte; e se, apesar
dessas duas figuras perigosas que o cercam, amamos tanto fazer amor, é porque
meu amor corpo está aqui (2013, p. 16) [grifo do autor].

Onde mora o desejo? Em mim. Qual o corpo do desejo? O do outro.


O que quer o desejo? Satisfazer-se. Se fosse possível escrever uma história
do desejo, ela seria tão longa como a história da humanidade. Saberíamos
que foi perseguido por filósofos e religiosos, por reis e plebeus, por tiranos
e democratas, por cientistas e médicos. Entretanto, quem mais se
aproximou da dimensão do desejo foram os loucos e os poetas, que
traduzem o mundo com sua linguagem desviante. Não é estranho saber
que a morada do desejo é esse lugar não-lugar, que ele é ponte entre o
corpo e a alma? Por que insistimos em separar essas duas instâncias?
Pergunte ao desejo o que ele é e o que quer, e ele te responderá
com o teu corpo. Manuel Bandeira, por exemplo, ao falar da arte de amar,
alertou para a incomunicabilidade das almas e sugeriu: “Deixa o teu corpo
entender-se com outro corpo /porque os corpos se entendem, mas as
almas não”. Drummond, que cantou o amor e o prazer em muitos poemas,
ao falar das contradições do corpo, acabou conceituando Eros como a fome
que não sacia: “Meu prazer mais refinado, / não sou eu quem vai senti-lo. /

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É ele, por mim, rapace, / e dá mastigados restos / à minha fome absoluta”.
Já Hilda Hilst interrogou o próprio desejo: “Quem és? Perguntei ao desejo.
Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada”. Ou seja, a substância do desejo
é sua impermanência. Adélia Prado traduziu bem essa procura, quando
disse que “um corpo quer outro corpo/ uma alma quer outra alma e seu
corpo”. Esses e tantos outros poetas disseram sobre o desejo coisas que os
teóricos e os filósofos também querem saber.
Somos corpos desejantes. Quer queiramos, quer não. Esse que
mora em nós, que muda de nome como quem muda de roupa, e ora se
chama Eros, ora se chama libido, prazer ou pulsão, tem sido tema
constante dos discursos, tanto dos que querem vivê-lo em sua plenitude,
quanto dos que criam leis para cerceá-lo. Os historiadores da sexualidade,
do desejo e do erotismo afirmam que, de tempos em tempos, é preciso
colocar na mesa das negociações os domínios do erotismo e dos prazeres. É
o que afirma, por exemplo, Gayle Rubin (2017, p. 64): “[…] há também
períodos históricos em que as discussões sobre a sexualidade são mais
claramente controvertidas e mais abertamente politizadas. Nesses
períodos, o domínio da vida erótica é com efeito renegociado”. Isso explica
por que Foucault considera a sexualidade um dispositivo que se configura
de poderes e micropoderes que são exercidos “[...] a partir de inúmeros
pontos e em meio a relações desiguais e móveis” (FOUCAULT, 2015, p. 102).
Renegociar é o que os sujeitos dissidentes têm feito o tempo todo,
sobretudo para rasurar o cânone literário promovendo aí uma ocupação.
Renegociar é o que se fez e se faz nas lutas cotidianas dos movimentos
sociais minoritários contra o racismo, a LGBTQfobia, o sexismo. Renegociar
é o que fazem escritores e escritoras periféricxs, não-binários e
homossexuais ao criar personagens e poéticas que falem desses desejos
que um dia já foram chamados de “amores malditos” de sujeitos
pervertidos. Renegociar é o que mulheres escritoras estão fazendo quando
não apenas escrevem e publicam seus desejos, mas também politizam a
luta no espaço literário, procurando trazer à luz da superfície as irmãs que
um dia ousaram escrever e, por isso, foram invisibilizadas. Como a
sexualidade, o cânone literário é também um lugar político, marcado por
escolhas, silenciamentos e tensões.

8
Certamente nosso tempo cobra de nós uma postura firme e
corajosa na defesa do que nos move. A conjuntura do Brasil atual nos
impele a lutar contra discursos autoritários, conservadores e
fundamentalistas, que se voltam contra tudo o que é plural e amaldiçoam
os corpos e os desejos que não são heteronormativos. Se ser mulher,
negro, gay, lésbica, travesti e transexual sempre foi uma vigilante luta pelo
direito de existir e amar, por respeito e dignidade, em tempos obtusos
como esse, mais incisivamente é preciso assumir a voz da dissidência e
contradizer os que demonizam os diferentes modos de se e desejar. Os
discursos da dissidência podem ser encontrados sobretudo nas artes e na
literatura, nos domínios da criação estética, que se confundem com uma
política.
O II Colóquio da Língua de Eros, que aconteceu entre os dias 20 e 22
de novembro de 2019, na Universidade Federal do Ceará, foi um momento
de elaborar resistências, de mostrar que Eros é um incômodo ao
conservadorismo e à cultura que erigiu uma heterossexualidade como
norma para o desejo e ousou hierarquizar os sexos. Organizado pelo Grupo
de Estudos da Língua de Eros (GELE), que reúne alunos da graduação e da
pós-graduação em Letras, o Colóquio ofereceu à comunidade acadêmica
um espaço crítico onde se pudesse refletir sobre o desejo e seus territórios
interventivos. Sob o título “Todos os corpos desejam”, acolhemos trabalhos
sob cinco temas norteadores: a) políticas da sexualidade, b) literatura
brasileira contemporânea e erotismo, c) literatura LGBTQIA, cultura queer e
desejo, d) literatura, feminismo e erotismo: poéticas da resistência, e)
masculinidades em crise e erotismo. Em sete sessões de comunicações,
Trinta e dois trabalhos foram apresentados, contemplando análises de
obras literárias, música, clip musical, jornais e cultura popular. Onze desses
trabalhos são publicamos aqui, além do texto de uma das convidadas para
as mesas de conversa.
Como se vê, estudar os domínios do erótico na literatura demanda
também perceber que o prazer vem com o desprazer, que as questões de
foro íntimo também são atreladas a questões de foro público, que as
identidades de gênero e sexuais têm comportamentos que, além de uma
natureza inata, são construções culturais e sociais e, por isso mesmo,
norteiam os discursos hegemônicos de opressão. É um discurso contra-

9
hegemônico que buscamos pensar ao estudar sexualidade e erotismo, cuja
linguagem de prazer revela muito da concepção política dos corpos
desejantes de um lugar e de uma época. Estude o erotismo e encontre não
um manual para o prazer solitário, mas indícios dos comportamentos da
política sexual da carne. Estude o erotismo e encontre não apenas os afetos
lícitos e ilícitos de homens e mulheres de papel e tinta de lugares
inventados, mas sobretudo a representação das moralidades de homens e
mulheres de carne e osso de lugares reais.
Quanto ao prazer que o gênero erótico pode proporcionar, é de
outra natureza, como já bem desenhou Roland Barthes ao afirmar que
“nem a cultura nem a sua destruição são eróticas; é a fenda entre uma e
outra que se torna erótica” (2015, p. 12). Portanto, benjaminianamente
falando, escovar a contrapelo o erotismo é tarefa que se impõe aos artistas,
escritores e pesquisadores nesses tempos embrutecidos, quando “os
botões quentes da máquina política” 4 foram novamente ativados para
condenar o que não aceita condenação, para delimitar o que não tem
limites, para, enfim, censurar o que vige dentro dos sujeitos moldando sua
forma de ser e viver. E o erótico, está a serviço de quem mesmo, que tanto
querem sua cabeça os de direita e os de esquerda, os santos e os
pecadores, os moralistas e os imorais? A quem interessa a detratação do
erotismo?
Enquanto uns perseguem o Eros na tentativa de policiar o desejo
dos outros, nós perseguimos o Eros procurando refletir sobre a obsessão
daqueles que querem dominá-lo. Ao mesmo tempo, reafirmamos nosso
compromisso de fazer da universidade o espaço do respeito às diferenças.
Por isso, o “todos” do título do evento, que agora é também título deste
livro, quer sinalizar que o desejo não segue as normas dos homens, não
está nem aí para os regimentos e protocolos institucionais, que ele burla
4 Expressão do autor estadunidense Gore Vidal, autor de ficção homoerótica, no artigo
“Sexo é política” (1987) ao se referir aos sujeitos alvos das políticas de governos
conservadores, entre os quais os homossexuais e as prostitutas, que devem ser motivo de
uma campanha de condenação pública, usando geralmente as leis de proteção da infância
e a interpretação atravessada e anacrônica de textos bíblicos. Os botões do pânico
acionam frases como “não mexam com nossas criancinhas”, “salvem os valores da família”,
“protejam as famílias de bem”, “é pecado mortal gostar de pessoas do mesmo sexo”, e
assim por diante.

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sistematicamente o império da interdição com sua natureza arredia e
transgressora. Desse modo, os doze textos aqui reunidos, de simples
comunicações orais no colóquio, foram trabalhados e retrabalhados pelos
autores, num exercício acadêmico instigante, até estarem prontos para a
partilha com os leitores.
As abordagens são diversas. Mas há um ponto em comum nesses
textos que carecem de uma observação: a massiva presença de estudos
sobre mulheres, sejam elas personagens, sejam elas autoras. E os
desdobramentos apostam numa discussão urgente, exposta na violência e
no sexismo confundidos com erotismo, na mulher prostituta que subverte
comportamentos, nas mulheres reivindicando o prazer, nas mulheres
famosas da tradição judaico-cristã vistas pela lente do literário, nas
mulheres rotuladas de loucas ou imorais, nas mulheres que ousam fazer da
poesia um campo de batalha para o empoderamento de si e de outras…
Isso se deve em grande parte às contribuições do feminismo que, década
após década, tem se reinventado e nos ajudado a pensar as mulheres não
como categoria universal, e sim como sujeitos plurais, com realidades bem
diferentes entre si. De modo mais concreto, é do seio do feminismo as
principais categorias de investigação da sexualidade neste século, tais como
identidade de gênero, heteronormatividade compulsória, performatividade
de gênero, teorias queer, interseccionalidade… As teóricas feministas a
partir da década de 70 têm sido lidas, traduzidas, pensadas. bell hooks é
uma dessas teóricas acadêmicas cujos textos contribuem para o
empretecimento e a intersecção dos estudos feministas. Para ela, o
feminismo “[…] é um compromisso para erradicar a ideologia de
dominação que permeia a cultura ocidental em vários níveis – sexo, raça e
classe social, para citar alguns […]” (2020, p. 306).
Vamos aos trabalhos. A poeta Sara Síntique, abre o livro com o
“texto-manifesto-em-língua-de-eros/ escrever: do olho de lilith”, resultado
de sua fala na mesa final do colóquio, quando emocionou a audiência com
sua louvação ao poder do erótico pelas mulheres. Dois textos investigam a
cultura queer. No primeiro, Rafael Mesquita apresenta, em “Imprensa e
identidades queer: gênero e sexualidade no caderno Vida & Arte do jornal
O Povo”, uma breve análise de sua pesquisa de mestrado na qual investiga
como a imprensa cearense tem usado o termo queer nas suas matérias. Em

11
“Feitiçaria queer e a subversão do desejo falocêntrico no videoclipe
‘Coytada’ (2018), de Linn da Quebrada”, Ed Ney Borges Dias aborda as
questões políticas e identitárias queer que envolvem o trabalho musical da
artista Linn da Quebrada que seria uma “terrorista do gênero”, colaborando
para, a partir de clipes e letras de canções, promover uma derrocada da
lógica falocêntrica.
Em seguida, temos três textos de clariceanas. Em “A hora da
estrela, de Suzana Amaral: uma reescritura da condição feminina para o
cinema”, Gleyda Cordeiro recorta um aspecto de sua tese de doutorado e
analisa três personagens femininas na transposição da obra de Clarice para
o cinema. Luciana Braga, em “Ela precisa de sapatos novos ou a
sexualidade feminina em Clarice Lispector”, investiga, a partir de um
recorte de sua dissertação, a descoberta da sexualidade pela adolescente
protagonista do conto “Preciosidade”, de Laços de Família. É também um
aspecto de sua dissertação que Tayla Leôncio apresenta em “A fruta do
mundo era ela: a maçã em Clarice Lispector”, e investiga os conceitos de
epifania, desejo e pulsão na simbologia da maçã presente no romance Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres.
Na perspectiva da transgressão, dois artigos orientam nossa leitura.
Sebastião Soares traz o texto “Militância erótica e militância comunista em
Hilda Furacão”, fruto de sua pesquisa de mestrado, para discutir o papel
transgressor de uma prostituta de luxo na BH da época da ditadura que
abala a sociedade formada por homens de bem, segundo o romance de
Roberto Drummond. A mestranda Janyele Gadelha, em “Maria Madalena e
Lilith: o corpo feminino em José Saramago”, analisa a representação da
sexualidade feminina e o contexto cristão de interdição nos romances O
evangelho segundo Jesus Cristo (1991) e Caim (2009).
Por fim, os últimos artigos estão reunidos em torno de autores que
abordam o erótico, quer para exibir certos comportamentos da sociedade
heterocentrada e patriarcal (machismo, misoginia, hierarquia de gênero,
violência sexual etc.), quer para a afirmação do sujeito desviante e política
e esteticamente transgressor. A abordagem de Ilca Carvalho no artigo “Os
filhos de Zeus ou a herança patriarcal em O herói devolvido (2000), de
Marcelo Mirisola” contribui para o urgente debate sobre masculinidade e
virilidade, sua construção cultural e a representação desse masculino

12
misógino e muito seguro de sua virilidade nos contos de Marcelo Mirisola.
Encerra-se o livro com três artigos sobre poesia. Maylle Freitas, em
“‘feminista odeia sexo!’: uma análise da diferenciação de sexualidade
feminina e abuso sexual na poética de Rupi Kaur”, traz à discussão o
polêmico pensamento de que feminismo não combina com o erotismo; a
partir dos poemas de Rupi Kaur, a autora contrapõe o erotismo de autores
homens ao erotismo de autoria feminina procurando mostrar como essa
perspectiva está carregada de denúncia e empoderamento. Já Elionete
Rodrigues Barbosa, em “A mística feminina no poema ‘a mulher é uma
construção’, de Angélica Freitas”, discute a ironia no poema de Angélica
Freitas que desconstrói toda uma mística elaborada historicamente para
categorizar o ser mulher, sempre a serviço do projeto patriarcal. Eveline
Montenegro e eu, no artigo “Feminino, feminismo e resistência na
performance da slammer Mariana Félix”, apresentamos o gênero poético
slam, que tem sido lugar do empoderamento dos sujeitos periféricos,
sobretudo negros e mulheres.
Trabalhos como os que aqui apresentamos “serenizam e acalmam
nossas utopias”, como diria Foucault, porque são objetos de amor. Eles
nascem dentro dos cursos de graduação, são fomentados nos grupos de
estudos e projetos de extensão, e amadurecidos nos programas de pós-
graduação. Para chegar ao objeto livro ou anais, muito trabalho foi
despendido. E isso confirma o nosso compromisso com a valorização e
defesa da universidade pública no Brasil, lugar não apenas onde se estuda o
que foi produzido histórica e culturalmente, mas onde se produz novos
saberes. Viva o corpo pensante da universidade, viva os corpos desejantes
dos que escreveram esses artigos. Viva os corpos ávidos de desejo dos que
agora têm a tarefa prazerosa de nos ler.

Referências

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2015.


FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo: Paz & Terra,
2015.
_____________. O corpo utópico, as heterotopias. Tradução de Salma Tannus Muchail.
São Paulo: n-1 edições, 2013.

13
hooks, bell. E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo. Tradução Bhuvi
Libanio. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2020.
RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu editora, 2017.
VIDAL, Gore. “Sexo é política”. In: De fato e ficção: ensaios contra a corrente. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987.

14
texto-manifesto-em-língua-de-eros
escrever: do olho de lilith

Sara Síntique5

agradeço ao prof. Claudicélio Rodrigues pelo convite para participar dessa


mesa, para partilhar dessa fala de mãos dadas a essas mulheres que me
acompanham – não apenas na composição de uma antologia, mas na vida:
nas lutas cotidianas

e agradeço pela coragem de todas e todos que estão aqui: a querer falar,
ouvir, pensar, discutir o EROTISMO, a sociedade, a literatura, os corpos, as
artes – enquanto há todo um emaranhado de discursos controladores
forjando um NÃO ao direito de nossos corpos de viverem o que seja a
liberdade e a força de seus desejos: ditando modos, gestos, toda uma
coreografia da proibição que nos pune por sermos: CORPOS CORPOS
CORPOS VIVOS portanto PULSANTES que desejam feticham sentem
arrepiam ousam imaginam fantasiam querem desejam: cada uma cada um
a seu modo e modos tão vastos

essa fala, esse congresso, essas escritas todas: AÇÃO de contestação


necessária-urgente contra as tantas punições a que somos todas confinadas
confinados todos os dias por sermos essa potência tão nossa: EROTISMO-
PLURAL

quando a poeta Mika Andrade me convidou a escrever poemas para


compor essa antologia: que em primeiro movimento foi livro documento
PDF disponível para download – com singela versão impressa apenas para
as autoras – capa autorretrato da atriz e escritora Nádia Camuça corpo nu –
de título: ANTOLOGIA DE POEMAS ERÓTICOS: ESCRITORAS CEARENSES
e que depois se desejou doutra forma O OLHO DE LILITH vermelho e preto
com edição inteira feita por mulheres do SELO FERINA com esse furo
atravessando as páginas – vagina ânus olho segredo sem decisão de amarra

5 Poeta, mestra em Letras (Literatura Comparada) pela UFC. E-mail: [email protected]

15
– em escala impressa maior sem pudor: para tocar mais e mais peles e se
exibir a mais e mais olhos: esse corpo-livro corpo-palavra que agora transa
tátil com os corpos-leitores

quando Mika Andrade – organizadora do projeto Escritoras CE moradora do


Jangurussu poeta preta ousada – tão tímida porém ousada – me convidou
a escrever as poemas em 2018, eu já era grande parte dessa mulher que
me compõe agora desse corpo a partir do qual escrevo
e já o investigara no teatro nos exercícios como atriz quais as possibilidades
desse corpo entre elas a nudez total do corpo em performance em
fotografia em cena a nudez aos olhos de tantas gentes experimentando-a –
questionava: é erótico o corpo nu / nem sempre / é / o que é o seu
erotismo / o que é o erotismo / e o que não é

e também questionara os esconderijos de si mesmo suas formas de gozo


aprisionamentos liberdades
como esse corpo queria seu gozo consigo e com outros corpos
já era leitora de minhas mulheres mais preciosas bruxas sagradas e
procurava ansiosa pelo erotismo delas de suas palavras – o prazer que é
deixar molhar as pernas deixar molhar mesmo a vulva inteira o corpo em
frisson ao ter contato com aqueles trechos dos textos o tesão dos livros que
nos fazem fechar os olhos o prazer do texto do tato com as palavras com as
imagens delas com os corpos das palavras

experimentava uma pesquisa corpo e encontro amoroso na obra de M.


DURAS e questionava essa linha tênue e confusa que ela nos deixa entre
erotismo desejo amor paixão os corpos e suas paisagens o seu amar:partir

também deixara um escrito poesia CORPO NULO com um erotismo a seu


modo
vira incansáveis vezes o espetáculo CORPORNÔ da Cia. Dita
curtia filmes de PORNOCHANCHADA BRASILEIRA, aliás vasta pornografia e
ficava a questionar-me – e excitar com – as pornografias mesmo as
absurdas – até onde vai o corpo?

16
interessava-me enfim olhar as nuances: das situações ditas mais es cu lham
ba das às situações mais singelas aquelas em que o erotismo do corpo se
revela suave: o fio de cabelo que toca a nuca ouriçada pelo vento: o gozo:
algum grão que escapa da criação do universo: e que o recria
tocara o corpo fragmento de A origem do mundo (Courbet): aquela carne
crua sexo em pelos ventre seios: a natureza: a origem: o mistério: o corpo:
a mulher: antes de tudo: do nada
eu já escrevia poemas eróticos desde a adolescência sempre que descobria
imaginava o sexo escrevia-o: bem me lembro vinha botando nos diários nas
agendas os segredos essas palavras antes tão ocultas – confissões
questionamentos – que bem aos poucos foram descobrindo alguma
literatura o próprio corpo já não eram só as confissões e confusões eram
corpos livres que foram se soltando por aí: o corpo delas por si só –
arrastando o meu

quando MIKA me convidou a escrever as poemas que compõem esse OLHO


de LILITH tudo isso ecoou na escrita para a antologia, mas não só: essas
experiências já haviam sido força a me fazer sobreviver – revidar – a me
fazer aguentar as interdições todas foram essas conquistas que me fizeram
crescer crescer mesmo a ponto de

memória-martelo

não chorar mais – como aos dezessete anos – por ser chamada de puta –
por ter beijado um boy e uma moça numa festa – na frente de pessoas bem
controlad(or)as – PUTA em tom acusativo vergonhoso – quando o rapaz
beijado por exemplo não foi chamado de PUTA e não perdeu seu valor
moral cristão familiar – não chorar mais por ser apedrejada SUA PUTA de
uma forma a querer dizer você não vale não vale não vale nada:

uma existência NÃO VALER nada?

quando nós nos encontramos presencialmente – não todas: é difícil reunir


num só instante-espaço todas essas mulheres de uma vez dado tantos
corres para sobreviver – ou mesmo na vida online – falamos muito dessas

17
memórias e agruras cotidianas tão comuns essa vivência de cada uma que
se repete continuamente as histórias mudam um pouco de contexto muda-
se um ou outro exemplo das proibições detalhes que facilmente podem ser
trocados por outros e outros são exatamente exatamente exatamente os
mesmos: o particular não é particular

hoje aos vinte e nove anos essa palavra PUTA – hoje arma poder fúria – foi
aos dezessete anos um cair muito doído ao meu corpo quando em seu
adolescer descobria e afirmava tímido-ousado esse desejo que se formava
essa mulher essa sexualidade aberta aos gêneros – foi necessário-urgente
compreender que essa palavra esse tom acusativo PUTA é condição
indissociável da vida das mulheres quaisquer que sejam nossas escolhas

mulheres ainda em 2019 temorosas submissas doídas por enxurradas de


PUNIÇÕES por viverem esse discurso acreditarem nesse discurso que impõe
os seus corpos a parecer-ser uma grande massa de infindos ERROS: deveria
ser arcaico mas é 2019 e ainda insistem em nos fazem chorar, em nos ferir a
liberdade, em nos fazer morrer

mas quando Mika Andrade me convidou a escrever essas poemas eu já


abria a boca com muito gosto para dizer de mim de nós: PUTA SIM! ah, o
prazer de chamar-se de PUTA – essas palavras antes PEDRAS atiradas em
nós quando tornam à nossa boca com gosto de luta e que a gente diz de
boca cheia lambendo os lábios: PUTA VIADO SAPATÃO SAPATINHA QUEER
TRAVESTI TRANS BISHA PUTA PUTA SIM

uma lista de erros

nós que vimos de nos sentir tão erradas no mundo.


eu que venho de me sentir tão errada no mundo.
doentia errada desde a infância errada como tantas mulheres como tantas
meninas
erradas no mundo quando: dos abusos sexuais na infância: culpadas
quando dos estupros dos assassinatos – muito mais regra que exceção –
“Em três anos, 3.200 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil. Dado

18
consta do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e leva em consideração
dados de 2016, 2017 e 2018” (VÁRIOS JORNAIS, 2019) – feminicídio pelos
quais nos dizem: culpadas

criança errada no mundo: quando sonhar em usar uma roupa mais curta
mas a igreja evangélica batista cristã em que fui educada desde o ventre de
minha mãe não permitir porque: pecado exibir o corpo grandes partes nuas
era 1990 pecado pecado pecado o corpo desde a infância errado. errada:
por querer dançar as coreografias do é o tchan e eu queria o corpo a
DANÇAR na boquinha da garrafa ou qualquer outra dança contudo DANÇAR
simples solto DANÇAR deve ser seguido de castigo DANÇAR na boquinha da
garrafa ou qualquer outra dança. errada: quando não me sentia à vontade
nesse corpo de menina que era proibido de brincar dos mesmos jogos dos
meus irmãos – meninos homens – as tais coisas de macho – e por querer
um corpo de menino e por isso desobedecer tantas vezes e teimar
performar SER MENINO ser menina tomboy odiar ser menina odiar isso que
me diziam ser: a mulher.

– os corpos desses meninos todos também errados quando ousaram o


limiar do dito feminino –

ouvir quando aos onze anos do pai de uma coleguinha que toda mocinha
deve fechar as pernas ao sentar: ele homem adulto observar as pernas de
uma criança de onze anos abertas: mandar-me fechar as pernas da minha
provocação. errada por desejar meninas além de meninos desde cedo
muito errada o que é isso esse desejo esse corpo que também me atrai
essa coisa esquisita que sinto e é ERRADO esse sentir? erradas por não
quererem colocar suas blusas porque agora há peitinhos mamilos a raiva
desses mamilos crescendo não querermos a obrigação dessa blusa a recusa
desse sutiãs a vergonha desses mamilos esses órgãos tão pornográficos à
mulher mamífera homo sapiens

19
MAMILOS!

errada quando contrariava o tal discurso que era coisa própria das meninas
ajudar a mamãe nas tarefas domésticas e não dos meninos quando era tão
mais divertido subir no telhado da casa e ser ajudante no consertar desse
telhado muito melhor que enxugar uma pilha de pratos mas não poder
questionar isso e então mães e filhas confinadas à repetição da ordem dos
séculos mães e filhas da pia a mulher somente dela o pilar da casa mulher
esquecida na casa mulher à casa a casa à mulher os papéis tão bem
definidos há quantos quantos anos?

em casa na rua em qualquer lugar

lembro o primeiro feminicídio: a mulher assassinada em Iguatu pelo


marido: queimou-a inteira queimou seu corpo a cabeça no forno do fogão
queimou-a inteira quanto anos eu tinha não lembro vi-a no caixão –
escondam seu corpo de mulher escondam e só mostrem aos maridos
somente a eles – assassinada pelo marido – as duas filhas ficaram com uma
tia – ela pecou ao não casar com um cristão – Deus a receberá –
assassinada pelo marido

33 homens estupram uma mulher e ELA é questionada pela violência de


TRINTA E TRÊS homens o que fazia naquela festa culpada culpada todo dia
uma amiga uma conhecida uma conhecida de uma conhecida uma
estranha no jornal: abusada, assediada, violentada, morta

todo dia MARIELLES: uma mulher que ouse sua voz, uma mulher negra que
ouse sua voz, uma mulher negra LGBTQI que ouse voz – assassinada pelo
estado: estado-violador-és-tu: marido.

do fardo de estar no mundo sentindo aquilo que se diz para não sentir
do fardo de estar no mundo privando-se e esgotando-se de ser

20
UM CORPO ERRO

enquanto formos assassinadas por sermos mulheres, trans, gays, lésbicas,


enquanto tivermos os órgãos mutilados em vários infelizes sentidos o não
direito ao clitóris o não direito ao que queremos como orgasmo o não
direito a existir é URGENTE dizer-agir NOSSO PRAZER É POLÍTICO porque
NOSSO PRAZER É POLÍTICO e que se repita quantas vezes for necessário:

NOSSO PRAZER É POLÍTICO

mais do que anotei da lista

erradas dos pelos que crescem do sangue a escorrer erradas ao descobrir a


masturbação o prazer de atingir um orgasmo com os próprios dedos e que
pecado que pecado tão gostoso e orar a um Deus pedindo perdão e
continuar gozando erradas ao não descobri-lo suas frígidas frígidas erradas
por andar nas ruas e causar nos homens esses descontrolados assobios
palavrões erradas quando a denunciar o assédio insistente erradas quando
sem peitos quando corpo muito magro sem bunda sem pernas os ossos
muito à mostra mas erradas também quando corpo gordo seios enormes
celulites carnes erradas ao dizer SIM no primeiro encontro coisa de mulher
que não serve para casar coisa de PUTA erradas quando a dizer NÃO: NÃO?
você mulher tão livre prove que é livre diga sempre sim já que se quer tão
livre uma mulher livre não diz não uma mulher livre assim tão pra frente só
deve só pode diz SIM SIM SIM: dizer NÃO?

todos esses erros dos nossos corpos em 2019 isso soa tão arcaico isso
deveria ser tão arcaico batido de dizer se ainda em 2019 todos os dias
nesse país em vários países mulheres crianças meninas adolescentes
mulheres mais novas mais velhas que eu vivem enxurradas de PUNIÇÕES
de um sistema patriarcal insistente e ainda prosseguimos temorosas
submissas doídas por essa enxurrada de PUNIÇÕES e agimos ainda muito
pouco contra esse discurso que nos impõem goela abaixo

21
que MULHER exigem(os) de nós, mulheres?

lembro Virginie Despentes, em Teoria King Kong6, quando a destinar seu


texto para uma lista de todas as mulheres (e homens) possíveis de
existência finalizar a dizer:

Porque o ideal de mulher branca, sedutora mas não puta, bem casada mas não
nula, que trabalha mas sem tanto sucesso para não esmagar seu homem, magra
mas não neurótica com a comida, que continua indefinidamente jovem sem se
deixar desfigurar por cirurgias plásticas, uma mamãe realiza que não se deixa
monopolizar pelas fraldas e pelos deveres de casa, boa dona de casa sem virar
empregada doméstica, culta mas não tão culta quanto um homem; essa mulher
branca e feliz, cuja imagem nos é esfregada o tempo todo na cara, essa mulher
com a qual deveríamos nos esforçar para parecer – tirando o fato de que elas
devem ficar de saco cheio com qualquer coisa –, devo dizer que jamais a
conheci, em lugar algum. Acredito até que ela nem mesmo exista (DESPENTES,
2016, p. 11).

não ela não existe. eu também a desconheço, Virginie, essa MULHER


singular ideal singular padrão ditada por um sistema hegemônico contudo:
se não atentarmos: seguiremos corroendo nós mesmas em vias de buscar-
ser. o quanto atentamos para essa exigência exaustiva? enquanto a
tentamos O CORPO CANSA MEU CORPO CANSA O TEU CORPO CANSA NÓS
CANSAMOS ELAS CANSAM - quando somos apenas CORPOS QUE SENTEM
VASTOS PLURAIS sem moldes sujeitos abissais - NOS QUEREM CANSADAS

quantas vezes ainda?

quantas tantas vezes corpos lançados à fogueira?


quantas vezes assistiremos às fogueiras todas prontas armadas para nos
matarem todas?

6 DESPENTES, V. Teoria King Kong. São Paulo: n-1 edições, 2016.

22
rabisco onde posso

o que Julia Raiz disse em a mulher e o cavalo (2017)7: “é preciso me


convencer todos os dias que escrever vale a pena estar acordada”

assim: quando Mika me convidou a escrever as poemas que compõem essa


antologia nós sabíamos da voz-urgente de nossas lutas cada uma a
carregar sua lista exigia ter voz essa voz de todas as: Anna, Argentina, Ayla,
Bianca, Jesuana, Mika, Nádia, Nina, Suellen, Vitória, Jarid, Lizandra, Luana,
Lindsay, Renata, Adriana, Valentina essa voz de todas que reivindicam(os) a
autonomia de nossos corpos – e também daquelas que ainda não o
fizeram pelas quais lutamos (lutemos!) para que façam um dia façam –
quando aos poucos notamos que essa voz se espalha expande explode toda
e qualquer lista de erros toda e qualquer memória-martelo já não se quer
mais choro doído apenas mas grito mudança voz a valer a pena estar
acordada

escrevamos

que essa FOGUEIRA já não seja mais o que nos mata que se acenda uma
outra uma FOGUEIRA CELEBRAÇÃO que seja uma FOGUEIRA NOSSA na qual
CELEBRAREMOS NOSSA CARNE EXISTÊNCIA que seja carne FORJADA no
FOGO que da NOSSA FOGUEIRA perpetue o prazer das NOSSAS PALAVRAS
que seja CHAMA A INCENDIAR O MUNDO que seja FOGO todo

AFAGO

minha carne é profana: perdoai.


não: minha carne é profana.
perdoai: já não importa.
não importa sinto o afago.
e um sopro: arrastando tudo
7 A primeira edição de diário: a mulher e o cavalo, de Julia Raiz, é de 2017 e teve pequena
tiragem artesanal. O livro, na íntegra, com seus textos e colagens, encontra-se disponível
para leitura na internet.

23
por dentro.

nossos: os ventos por dentro: sim.


nós: as próprias tempestades.

24
Imprensa e identidades queer:
gênero e sexualidade no caderno Vida & Arte do jornal O Povo

Francisco Rafael Mesquita Jeronimo8

Introdução

O presente artigo propõe um mapeamento dos discursos


construídos sobre o termo queer no Caderno Vida & Arte do jornal
cearense de referência O Povo. Na análise, observamos as produções de
janeiro a novembro de 2019 deste segmento de cultura, entretenimento e
artes do período mais antigo do Ceará, que em 2019 completou 91 anos.
Palavra de origem inglesa, queer surge como termo pejorativo
usado para ofender pessoas não heterossexuais e não cisgêneras 1 pode ser
traduzido por estranho, esquisito, ridículo, raro ou extraordinário, mas que
foi alvo de uma apropriação linguística que levou a palavra a ser usada
como fonte de orgulho e para expressar formas de vida em desacordo com
as normas socialmente aceitas.
Queer nomeia um conjunto populacional com desejo de romper as
amarras do projeto de poder normativo e regulador que as
heterossexualidades construíram, mas também é captado por
pesquisadores pós-estruturalistas para dar título a um campo científico que
demanda uma nova mentalidade em torno dos corpos, que faz a exigência
de existência e aceitação de grupos subalternizados pelo “sistema corpo e
gênero” (BUTLER, 2017) e que denuncia a imposição de comportamentos.
A proposta deste material é, portanto, entender como esta corrente
de pensamento e também novo paradigma relacionada ao sexo, ao gênero
e à sexualidade aparece nas páginas do jornalismo cultural. O objeto
integra estudo sobre representação lésbica, gay, bissexual, travesti,
8 Mestrando em Comunicação, Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail:
[email protected].
1 Termo utilizado para descrever pessoas que não são transgênero (mulheres trans,
travestis e homens trans). “Cis” é um prefixo em latim que significa “no mesmo lado que”
e, portanto, é oposto de “trans” (REIS, 2018).

25
transexual e intersexual (LGBTI+) e queer no jornalismo cearense, que está
sendo desenvolvido por este pesquisador no Programa de Pós-Graduação
em Comunicação da Universidade Federal do Ceará. Mas o despertar para o
recorte específico deste artigo parte do interesse ocasionado pela ebulição
do debate sobre a contestação dos papéis de gênero e padrões para as
identidades e expressões sexuais que acontece nas universidades, na
cultura, nas artes, no mundo político, etc.
Afinal, queer está na ordem do dia, seja através de artistas de
projeção internacional, como Rupaul Charles, que popularizou a “drag
culture”, por meio do mundialmente assistido “Rupaul’s Drag Race” 2; seja
através do sucesso da cantora brasileira não-binária 3 Pabllo Vittar; ou
mesmo pela popularização dos textos da filósofa Judith Butler.
O artigo avalia o impacto da presença (ou ausência) do termo queer
no jornalismo a partir da incorporação de teóricas como Bento (2014),
Butler (2019 e 2017), Lauretis (2019) e Louro (1997, 2001, 2004). A base
teórica também está centrada na Análise Crítica do Discurso, a partir de
Fairclough (2001), na Análise de Conteúdo, por meio de Herscovitz (2010) e
Bardin (1977), e nos conceitos de partilha policial e partilha política, a partir
de Rancière (1996) e Marques (2012). Já em Santana (2018), Gonçalves
(2017) e Morais (2015), o texto é subsidiado a partir do entendimento do
jornalismo como integrante de uma rede de valores e saberes dominantes
que reverbera o padrão normativo ocidental hegemônico da
heteronormatividade.

Construções e conceitos sobre queer


Meu interesse em pesquisar as manifestações queer surge da
necessidade de compreender como esse movimento teórico e político
contemporâneo é representado no jornalismo.
Se queer nasce como ofensa, Spargo (2017) afirma que o termo foi
alvo de uma apropriação linguística liderada pelos corpos disruptivos, que

2 Reality show competitivo exibido em canais de TV por assinatura e na plataforma Netflix


que confere o título de Drag Queen Superstar e premia a vencedora com 100 mil dólares.
3 Pessoas cuja identidade ou expressão de gênero não se limita às categorias "masculino"
ou "feminino" (REIS, 2018).

26
levou a alcunha a ser usada como fonte de orgulho, como forma de
expressar uma forma de vida em desacordo com as normas socialmente
aceitas e que também nomearia um conjunto populacional com desejo de
romper as amarras do projeto de poder normativo e regulador que as
hetorossexualidades construíram. Já Gonçalves (2018) lembra que após a
sua elaboração enquanto manifestação das variadas performances
humanas acionadas pelo corpo e pelo desejo, queer foi preenchido de
ainda mais significados. De um lado, passou a dar nome a uma nova marca
identitária e, de outro, coroou um promissor campo teórico. Como afirma
Lauretis (2019), a expressão Teoria Queer foi inventada por ela em 1990,
surgindo, naquele momento, como um esforço de “resistir à
homogeneização cultural dos estudos de gays e lésbicas” (p. 398).
Enquanto identidade, queer pode ser um sinônimo para população
LGBTI+ (lésbicas; gays; bissexuais; transexuais, travestis e transgêneros;
intersexuais; e demais orientações sexuais e identidades e expressões de
gênero); pode qualificar aqueles que vivem uma fluidez de gênero e desejo
sexual; pode falar sobre quem está em desacordo com as definições
dominantes de masculinidade, feminilidade e sexualidade; ou mesmo pode
ser referência para os sujeitos que manifestam uma forma de ser e estar no
mundo que é estranha ou dissonante do que se espera de quem ocupa
uma das identidades LGBTI+.
Como teoria, queer designa um setor de estudos que analisa como
funcionaram historicamente dispositivos que calaram, produziram
vergonha e medo em sujeitos ditos "não normativos", caracterizada pela
inquietante crítica à normalização das identidades. E, ao mesmo tempo,
propõe justamente que se interrompa a reprodução destes códigos através
da incorporação política do “outro-abjeto”, como explica Berenice Bento
(2014).
Esta produção de saber no campo do gênero e da sexualidade
descreve uma gama diversificada de práticas e propriedades críticas, tais
como interpretações da representação do desejo entre pessoas do mesmo
sexo em textos literários, filmes e músicas, análises das relações de poder
sociais e políticas de sexualidade, críticas ao sistema sexo-gênero e estudos
sobre a identificação transexual e transgênero e sobre desejos
transgressivos.

27
Entre as principais referências deste universo de estudos está Judith
Butler, que, no clássico “Problemas de Gênero – Feminismo e subversão da
identidade” (2017), originalmente publicado também 1990, convida-nos a
desmontar o pensamento dominante heterossexual, que necessariamente
passa pela revisão das compreensões históricas e sociais construídas em
torno do sexo, do gênero e da identidade. A estudiosa chama de
“heterossexualidade compulsória” a noção construída a partir do século
XVIII de que as diferenças anatômicas eram determinantes para o acesso à
vida política, econômica, cultural e para a definição de papéis sociais. Butler
questiona os padrões desta “heteronorma”, que classifica como violenta,
pois impõe sanções e restrições àqueles que subvertem os seus preceitos.
Conhecer as construções e os conceitos em torno do termo queer é
fundamental para o nosso empreendimento analítico, tendo em vista que
temos como proposta estudar os entendimentos dados à questão pelo
caderno de cultura do jornal O Povo.
Para mim, importa saber como o jornalismo dá (ou não) espaço a
este fenômeno identitário e científico, que, em todos os casos, manifesta-
se como um empreendimento crítico que desestabiliza, que cria uma nova
mentalidade em torno dos corpos, que destaca a exigência de existência e
aceitação de sujeitos, que denuncia a imposição de comportamentos e que
também constrói uma crítica dentro do próprio universo LGBTI+, ao
evidenciar o desacordo com LGB’s (lésbicas, gays e bissexuais) que atuam
ou colaboram com uma política de “limpeza” das condutas sexuais
dissidentes à hegemonia heterossexual (modelo hétero como perspectiva
legítima de vida a ser seguida).

Queer como ordem política

Dentro dos desafios desta abordagem, está a proposta de relacionar


a Teoria Queer, ou mesmo as identidades queer, ao pensamento de Jacques
Rancière. As construções que questionam as normas em torno da
sexualidade e problematizam os seus efeitos na sociedade, advindas dos
Estudos Queer, guardam relação com as elaborações do filósofo francês
sobre ordens políticas e policiais.

28
Como explica Marques (2012), duas lógicas governariam a ação
coletiva. Nesta “divisão do sensível”, haveria a “ordem policial”, que seria
“um conjunto de processos pelos quais se operam a agregação e o
consentimento das coletividades, a organização dos poderes, a distribuição
dos lugares e funções e os sistemas de legitimação desta distribuição”
(RANCIÈRE, 1996, p. 41), e a “ordem política”, a parte dos “sem parte”, a
“ruptura específica da lógica imposta pela ordem policial”, a disrupção da
normalidade e o enfrentamento da hegemonia, manifestada por “uma
série de atos que reconfiguram o espaço onde as partes, as parcelas e as
ausências se definiam” (RANCIÈRE, 1996, p. 42).
Ao estabelecer estas duas categorias, Rancière fala em “partilhas do
sensível”, ou seja, as duas formas “entrelaçadas” de funcionamento. “De
modo geral, a política seria responsável por perturbar a forma policial de
partilha do sensível, que define a inscrição dos sujeitos em comunidade a
partir de uma determinada distribuição de qualificações, espaços e
competências” (MARQUES, 2012, p. 130).
Em uma analogia, a crítica queer seria um empreendimento da
“ordem política”, que denuncia a lógica “policial” em torno da
“heteronorma”, que, por sua vez define os gêneros como organizados a
partir de um modelo de verdadeiro e falso. Ou seja, esta gramática
regulatória, que define corpos com pênis como masculinos e com vagina
como femininos e que determina que a única forma “natural” de
associação afetiva dos sujeitos seja pelo contato sexual destes “opostos” é
puramente de “polícia”. Por conseguinte, a luta pela emancipação do
controle operado pela heterossexualidade compulsória, o enfrentamento
destes condicionamentos e repressões morais e institucionais seria
essencialmente “político”.
Ao reconhecer uma certa dinâmica histórica na política, essa
concepção de processo não contínuo, mas pontuado por rupturas, e, ao
mesmo tempo, através do reconhecimento da existência de uma ordem
que impõe invisibilidade e concordância, a discussão das partilhas do
sensível guarda afinidades poderosas com o pensamento da Teoria Queer
sobre normas, subversão e subjetividade como possibilidade e
racionalidade.

29
Queer também seria os “sem parte” descritos por Rancière, que
atuam contra a ordem policial a fim de buscarem o atendimento de
demandas que, ao mesmo tempo, só podem ser ouvidas quando estes
buscam o “quadro simbólico policial”, como, por exemplo, o jornalismo.
Mas até que ponto os “sem parte” desregulam e transformam as
representações que registram as performances de gênero e sexuais? Os
jornais conseguem atuar na “desindentificação” e na produção de
dissensos sobre a “heteronorma” ou atuam na perspectiva do reforço desta
ordem policial?

Apontamentos metodológicos

Além da base teórica proposta, será através da técnica da análise de


conteúdo no jornalismo (HERSCOVITZ, 2010) que serão feitas as etapas do
trabalho de coleta e de seleção textos, usando o método quantitativo
(quantificação das ocorrências). Já por meio da Análise Crítica do Discurso
construir-se-á uma apreciação qualitativa (interpretação) para a avaliação
da feição central de nossa pesquisa. Para tanto, recorro fundamentalmente
às contribuições de Norman Fairclough (2001), que entende o discurso
como prática social, interação entre falante e receptor ou escritor e leitor,
envolvendo processos de produção e interpretação e sempre considerando
o seu contexto situacional.
Nesta fase, observarei significados aparentes e implícitos nas
narrativas, expondo tendências, conflitos, interesses, ambiguidades ou
ideologias presentes nos conteúdos pesquisados. Tendo como pilares a
lógica e a observação, a avaliação do discurso jornalístico dar-se-á a partir
da percepção de sua possível aproximação de uma ótica identitária ou de
confirmação da lógica de apresentação da comunidade LGBTI+
predominante na imprensa. Por fim, estabelecerei indicadores, como a
presença ou ausência de certas caraterísticas, o estudo das vozes, a
extensão ou proporção dessas características, os atributos, como positivo,
negativo ou neutro, ou mesmo medidas, como a tendência heronormativa
ou a promotora da diversidade sexual. Usarei “especificações de categorias
e níveis de medição”, assim como as “definições operacionais e suas

30
unidades de registro – palavras, expressões, frases, ideias, etc. [...]”
(HERSCOVITZ, 2010, p. 132 e 133).
Como gênero jornalístico a ser estudado, escolhemos o
“informativo”. Dentro deste universo, analisaremos as notícias, notas,
reportagens e entrevistas. A escolha pela categoria informativa se dá pelo
fato de residir neste segmento a forma mais característica e hegemônica de
apresentação do jornalismo (REZENDE, 2000). Por sua vez, a opção de
pesquisar o jornal O Povo, veículo impresso mais antigo em circulação no
Ceará, é puramente conceitual. O periódico constitui-se como uma
adequada representação do chamado jornalismo de referência.

Narrativas sobre queer no caderno vida e arte do jornal O Povo

Neste estudo exploratório, em que realizei um mapeamento dos


discursos construídos sobre o termo queer no Caderno Vida & Arte,
suplemento de cultura e entretenimento do jornal impresso cearense O
Povo, tinha como hipótese que o caderno abriria espaço para o
debate/discussão sobre as identidades queer, ou mesmo sobre a própria
teoria, tendo em vista análise dos estudos dos últimos cinco anos sobre a
cobertura do jornalismo e as temáticas LGBTI+. Questões como a chegada
de artistas trans e não binários à indústria cultural brasileira, assim como a
crescente presença de personagens “não normativos” na TV e no cinema
reforçavam a minha hipótese.
Mas esta suposição inicial começa a ser derrubada logo na
catalogação do material, tendo em vista que em minha investigação, que
analisou o conteúdo publicado pelo jornal de janeiro a novembro de 2019,
só foram encontradas 13 vezes a palavra queer, que esteve presente em
somente 10 textos. Uma aparição baixa, considerando que o tema ganha
espaço nas discussões contemporâneas de vários setores e ponderando
que estudei um período de quase um ano.
Em uma primeira intervenção, avaliando os três níveis de análise do
discurso proposto por Fairclough (2001), ou seja, entendendo o texto, a
prática discursiva e a prática social, analisei como queer foi veiculado.
Como antecipado neste trabalho, há muitas maneiras de se ler o verbete

31
queer, que, do ponto de vista geral, pode significar tanto uma postura
ético-política, como uma vertente de estudos das normatizações do gênero
e das sexualidades.
Sendo assim, ao observar deste ponto de vista global, considerando
a inclusão do termo em toda a narrativa, percebi que em 90% dos casos a
palavra é acionada pela ótica da identidade e em somente 10% das 10
notícias encontradas o conteúdo está associado à teoria.

Fonte: Produção do Autor

Avançando na análise da apresentação do termo no caderno Vida &


Arte, passei a abrir mais a lente para aprofundar os entendimentos dados à
categoria “queer como identidade”. Sendo assim, observei as seguintes
derivações: Queer como sinônimo para LGBTI+; como definição para
pessoas com fluidez de gênero e desejo sexual; e como nomenclatura para
quem está em desacordo com as definições dominantes de masculinidade,
feminilidade e sexualidade e/ou é estranho ou dissonante do que se espera
de quem ocupa uma das identidades LGBTI+. Nesse sentido, analisei tanto a
veiculação como teoria, mas também considerando as três especificações
de movimento identitário. É o que se pode ver na tabela de referências:

1 Teoria/Estudos Queer
2 Identidade 2.1 Sinônimo para as LGBTI+
Queer 2.2 Pessoas com fluidez de gênero e desejo
sexual

32
2.3 Quem está em desacordo com as
definições dominantes de masculinidade,
feminilidade e sexualidade e/ou Estranho
ou dissonante do que se espera de quem
ocupa uma das identidades LGBTI+
Fonte: Produção do Autor

Percebi que em 60% das aparições a terminologia foi usada como


um sinônimo para lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e
intersexuais; em 30% das veiculações foi usada no sentido de representar
sujeitos em desacordo com as definições dominantes de masculinidade,
feminilidade e sexualidade; e em nenhuma das oportunidades empregou-
se o verbete como referência a sujeitos que vivem a fluidez de gênero e
desejo sexual.

Fonte: Produção do Autor

Estes primeiros dados chamam atenção para o desenvolvimento de


uma representação limitada sobre a temática, considerando que, enquanto
sinônimo para LGBTI+ ou simplesmente como nomeação de um
determinado grupo, a aparição das questões queer vêm acompanhadas de
um esvaziamento discursivo.
A título de confirmação desta perspectiva, exatamente nas seis
vezes em que o termo foi usado como sinônimo da tradicional classificação
das identidades homossexuais e de gênero, ele veio somente como citação

33
do título de eventos e série televisiva, onde o veículo de comunicação não
se deu ao trabalho nem de explicar a origem ou significado deste termo
que compunha o título dos objetos mencionados. Esvaziado no seu sentido
fundante ou vítima da pressa, falta de espaço ou indiferença da rotina do
jornal e dos jornalistas para com a temática, o jornalismo do caderno de
cultura do jornal O Povo reforça a “ordem policial” que colabora para a
continuidade de um determinismo narrativo em torno do sexo, do gênero e
da sexualidade.
Ao apresentar as notícias alusivas às sexualidades dissidentes da
heterossexualidade sem “seus antecedentes, suas significações indiretas e
seu contexto” (MEDINA, 1988), o jornalismo pode vir a ser “trampolim” de
discursos que negam estes sujeitos e estas formas de vida. Não elucidar,
não contextualizar e negar a necessária anotação sobre o emprego do
verbete queer nega a própria deontologia jornalística, que aponta para a
necessidade do embasamento e explicação, sobretudo quando se trata de
nomenclaturas originárias de outra língua e que não comportam significado
tácito na leitura.
A lógica repetida aqui é a binária, que se edifica em torno do
masculino e do feminino, ou até de uma essencialidade LGBTI+, em relação
ao qual se constitui o “outro”, seu oposto, seu subordinado (LOURO, 2004,
p.42), uma relação que se baseia na normatização e na naturalização, assim
como distanciamento e negação do que vem a ser queer.
No passo seguinte desta análise, considerei as vozes presentes nesta
prática discursiva. Assim, ao observar quem fala sobre queer, nota-se a
manifestação da continuidade do assujeitamento ao poder, que
desestabiliza uma pretensa “ordem política” em desenvolvimento.
Nas páginas deste segmento do jornal, no período analisado,
majoritariamente, ao incorporar o discurso sobre queer de forma
instrumentalizada, o “lugar de fala” sobre a temática é “sequestrado”. Em
70% das vezes, o tema está colocado na voz dos jornalistas e somente em
30% na voz das fontes. E, considerando as oportunidades em que as fontes
“falam” sobre o tema, constata-se que somente em um dos casos é dada
voz ao discurso contestatório queer, nas outras duas vezes se trata de uma
aparição perdida e não explorada no todo dos textos. Tal tendência dá a
perceber que a visualização, além de pequena, quando acontece é

34
“reinstrumentalizada” (Fairclough, 2001), ganha sentido divergente, é
esvaziada, limitada, é oca.
Quando o narrador jornalista explora o tema, associa quase que
unicamente queer a um sinônimo para LGBTI+ (83%). Por sua vez, as fontes
são ainda o repositório do uso da nomenclatura como definição de pessoas
em desacordo com as definições/dissonante das identidades LGBTI+ (67%),
considerando que uma parcela referencia a palavra como o mesmo que
pessoas LGBTI+ (33%).
Recorrendo à percepção sobre a aparição da temática a partir das
“atitudes de avaliação subjacentes” (BARDIN, 1977, p. 57), onde
observamos se as abordagens foram favoráveis ou positivas, desfavoráveis
ou negativas ou simplesmente neutras, conclui-se que 100% dos textos
possuem apresentação positiva da questão queer.
Muito embora limitado e vazio, majoritariamente estanco de sua
função contestatória, o termo queer não foi diretamente negado na lógica
do jornal. Ao mesmo tempo, ao não pôr em debate o contexto que a
palavra carrega, deixa de se desenvolver o conflito que seria subjacente a
“ordem política” que o termo carrega. Nas 10 matérias informativas
apreciadas do Vida & Arte é cassada a possibilidade do debate queer
propiciar “momentos em que criam e se engajam (...) espaços de
enunciação” (MARQUES, 2012).
Outra observação pertinente a esta análise é a predominância de
jornalismo declaratório, ou seja, situação em que a narrativa se limita a dar
aspas, citar a fala dos lados envolvidos no fato, sem ir a fundo e sem cruzar
diferentes informações, sem explorar o contexto e o necessário
embasamento que seria subjacente ao conteúdo. Morais (2015) sentencia
que este tipo de execução afasta o jornalismo da essência da profissão e
lembra que a prática vem ganhando força, seja por culpa do cenário
adverso nas redações tradicionais, com unificação de veículos de um
mesmo grupo, a chamada integração, pelos cortes de gastos, demissões
coletivas e contínuas, acúmulo de funções, menos idas a campo; ou devido
a interesses que estão por trás da publicação de determinado fato.
Também é relevante a constatação de que a pouca discussão ou
embasamento das questões lançadas pelo termo queer é acompanhada,

35
assim como pode ser também justificada, pela pouca variedade de fontes
ouvidas pelo jornal/jornalista.
Mas um aspecto sui generis desta análise é que predomina nas
imagens que acompanham as matérias, por meio cartazes, ilustrações,
fotos ou frames dos filmes, o protagonismo de “cenas queer”. Impacta,
neste contexto, o fato de que, pelo menos, cinco dos textos encontrados
tratam de eventos cinematográficos sobre LGBTIs, os quais foram
acompanhados de imagens deste universo. Neste caso, escapa-se uma
“ordem política”, uma contestação queer que pulsa nas ilustrações, tendo
em vista que as cenas veiculadas abrem espaço para performances
divergentes do conjunto de normas generificadas que implicariam o
conjunto de punições, tanto óbvias, quanto indiretas (BUTLER, 2017), da
ordem policial. Consciente ou não, a provocação ausente no texto é
subjacente nas imagens.

Fonte: Jornal O
Povo, Caderno
Vida & Arte
(29/06/2019)

36
Considerações finais

Mesmo em se tratando de um recorte parcial e seminal da produção


de um dos cadernos do jornal O Povo, o estudo mostra que o jornalismo
contemporâneo ainda ensaia uma compreensão em torno do Outro.
Enquanto mediadores sociais, o jornalismo e o jornalista precisam atuar de
forma mais interessada, como notou Gonçalves (2017), de forma a tecer
caminhos de compreensão, de solidariedade e de reconhecimento.
Neste diálogo com os estudos queer, as narrativas jornalísticas ainda
integram um sistema de pedagogias e saberes sexuais limitados, que foram
classificadas, a partir de Rancière (1996), como a sustentação de uma
“ordem policial” marcada também pelo reforço de um discurso que
legitima entidades-chave de uma certa ideologia e de uma hegemonia
cultural.
O horizonte que os estudos apontam é de uma necessária
construção de subsídios de afeto e compreensão no jornalismo, que leve à
elaboração de uma outra narrativa do contemporâneo. Fomos frustrados
na nossa expectativa de encontrar no jornalismo de cultura e artes, alvo de
cobertura deste suplemento editorial, certa estratégia de posicionamento
dos jornalistas para com pessoas ou o campo queer. No geral, o
empreendimento de uma alteridade possível ficou muito longe de ser
concretizado.
Esta análise reflete, portanto, os limites para a construção de um
jornalismo plural em vozes, que dialogue mais com as cenas
contemporâneas, como fala Bento (2014), um florescer queer, disruptivo, e
que demanda uma sociedade mais crítica da normalidade e sensível às
diversas condições humanas.
Uma de nossas impressões, baseadas nos estudos em jornalismo, é
de que os valores do setor, apegado a certa objetividade limitadora de
abordagens, contextualizado pelo pouco espaço editorial e pouco tempo de
produção, além das já narradas situações provocadas pela precariedade
das condições de trabalho e trabalhistas dos profissionais, dificulte
abordagens que instalem o que Medina (2006) chama de signo da relação
ou um olhar subjetivo no jornalismo, como defende Morais (2015).

37
Em um país de predomínio heterossexual/cisgênero 1, é fundamental
o crescimento do número de aportes sobre “a diferença e a mídia” (SODRÉ,
1999, p. 232). É chegado, portanto, o momento de afirmar o papel do
jornalismo e dos jornalistas na produção e na oferta de olhares
diferenciados para questões que seguem tema de intenso debate social,
disputa política e questão de cidadania.

Referências

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1 População autodeclarada LGBTQI+ é estimada em 20 milhões de pessoas, 10% dos


brasileiros (IBGE, 2018).

38
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39
Feitiçaria queer e a subversão do desejo falocêntrico no videoclipe
“Coytada”, de Linn da Quebrada

Ed Ney Borges Dias2

O (en)canto de Linn da Quebrada

“Vocês, homens... vocês fizeram tudo muito direitinho, né? [...]


Vocês estavam fazendo as coisas todas para se proteger. E deixando ao
feminino um lugar recluso, competindo por vocês. Mas que joguinho sujo!
E acharam que a gente não fosse fazer nada”. Esse é um dos projéteis
discursivos que a artista brasileira multimídia Linn da Quebrada dispara em
direção aos homens, especialmente aos cisgêneros, em uma das cenas de
Bixa travesty (2018), documentário-ficção roteirizado por ela e pela dupla
de diretores do filme Claudia Priscilla e Kiko Goifman.
Autoidentificada como uma travesti preta, periférica e “terrorista de
gênero”, Linn da Quebrada é uma artista contemporânea que surge em um
cenário de emergência de artivistas (artistas ativistas) de dissidências
sexuais e de gênero no Brasil da última década, articuladores de políticas
que se aproximam de uma perspectiva queer (COLLING, 2018).
Queer é um vocábulo de origem anglo-saxônica que pode ser
traduzido no português como “estranho”, “excêntrico” e/ou “raro” (LOURO,
2001, p. 546). Historicamente usado como injúria direcionada aos sujeitos
desviantes das binariedades sexuais e de gênero, o termo foi, a partir do
final dos anos 1980, apropriado e ressignificado por movimentos sociais,
teóricas/os e artistas do Norte Global (LOURO, 2004). Queer é “a diferença
que não quer ser assimilada ou tolerada” (LOURO, 2004, p. 38),
materializada em “um corpo estranho, que incomoda, perturba, provoca e
fascina” (ibidem, p.8). Localizada na América Latina e permeada por
vivências próprias do Sul Global, a arte de Linn da Quebrada produz
desestabilizações específicas, mas que são instigadas, de algum modo, por
uma política queer.
2 Artista visual, pesquisador viado negro e mestrando do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail:
[email protected].

40
Lina Pereira, inventora de Linn da Quebrada (a “linda que brada”,
vinda da “linda quebrada”), nasceu em 1990, na capital São Paulo. Foi
criada no interior do estado, imersa em preceitos da comunidade religiosa
Testemunhas de Jeová, até ser “expulsa da igreja (ela foi desassociada) /
Porque uma podre maçã deixa as outras contaminadas”, como canta na
música “A Lenda”, do seu álbum de estreia Pajubá (2017). À época
moradora da Fazenda da Juta, periferia paulistana, em 2016 despontou no
cenário nacional como MC Linn da Quebrada, com o videoclipe
“Enviadescer”. Foi quando reivindicou para si a música como uma arma
artística e política na produção de desejos subversivos a um cistema
heteronormativo branco.
Segundo a transfeminista e pesquisadora Viviane Vergueiro (2015),
a corruptela “cistema” visa enfatizar o caráter estrutural e
institucionalizado de um sistema-mundo cissexista, composto por regras,
discursos e práticas reiteradas que tomam como centro normativo a
cisgeneridade e corpos cisgêneros, hierarquizando-os acima de corpos
transgêneros e perspectivas não cisgêneras, as quais “são excluídas,
minimizadas, ou silenciadas” (VERGUEIRO, 2015, p. 15). Em entrevista a
Boris Ramírez, Viviane Vergueiro afirma que: "Cisgeneridade eu entendo
como um conceito analítico que eu posso utilizar assim como se usa
heterossexualidade para as orientações sexuais, ou como branquitude para
questões raciais” (RAMÍREZ, 2014, p. 16). Assim, segundo Vergueiro:

[...] nomear cisgeneridade ou nomear homens-cis, mulheres-cis em oposição a


outros termos usados anteriormente como mulher biológica, homem de verdade,
homem normal, homem nascido homem, mulher nascida mulher, etc. [...] pode
permitir [...] que a gente desloque essa posição naturalizada da sua hierarquia
superiorizada, hierarquia posta nesse patamar superior em relação com as
identidades Trans, por exemplo (RAMÍREZ, 2014, p. 16).

Baseada em Judith Butler, Viviane Vergueiro (2015) reflete que o


cistema também se relaciona a uma matriz heteronormativa, articulando-
se, assim, o que poderia ser nomeado de uma cisheteronormatividade.
Considerando nosso contexto brasileiro, destacamos a correlação
cistemática com padrões e representações brancocêntricas racistas. Por

41
isso, neste trabalho, utilizamos a expressão “cistema heteronormativo
branco” para demarcar a conjuntura na qual Linn está inserida.
A autoafirmação de Linn da Quebrada de sua travestilidade preta
como símbolo de orgulho e resistência em suas obras ganha uma dimensão
coletiva quando contextualizada no Brasil, país que mais mata pessoas
trans no mundo, segundo o relatório Trans Murder Monitoring (TMM) de
2021 da ONG internacional Transgender Europe. Além disso, conforme o
Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais
brasileiras em 2020, da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e
Transexuais do Brasil) e do IBTE (Instituto Brasileiro Trans de Educação), o
cenário brutal de violência se agrava ainda mais para populações negras.
Dos 175 assassinatos de pessoas trans identificados no ano de 2021, 78%
deles foram de pretas/os e pardas/os, “[...] explicitando ainda mais os
fatores da desigualdade racial nos dados de assassinatos contra pessoas
trans, como já estava ratificado nas edições anteriores. [...] Os índices
médios se mantêm em uma faixa de 80% desde que iniciamos esse
levantamento.” (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021, p. 48-49).
Nessa conjuntura, uma reverberação coletiva de vozes de travestis
artistas negras se levanta na defesa e no fortalecimento das vidas e
estéticas trans: Liniker, Assucena Assucena, Raquel Virgínia, Jup do Bairro,
Ventura Profana, Linn da Quebrada, entre tantas outras. No caso de Linn,
sua arte é influenciada por uma estética-política que ela chama de
“terrorismo de gênero”. Nas palavras dela:

Quando pensei em terrorista de gênero, pensei na violência e no terror, em tocar


o terror mesmo. Porque eu acho que, pra corpos como o meu, a violência já se
naturalizou sobre mim, e quando a violência vem desses corpos como reação, ela
causa espanto. Então, eu trago a violência na linguagem ou o terror na estética
pra que isso cause um impacto e pra que as pessoas se relacionem com aquilo de
alguma forma3.

3 “Terrorismo de gênero - MC Linn da Quebrada”. Oitava temporada o Programa


Entrevista, do canal Futura. Disponível em:
<http://www.futuraplay.org/video/terrorismo-de-genero-mc-linn-da-quebrada/
347782/>. Acesso em: 18 jan. 2020.

42
Dessa maneira, o terrorismo de gênero da artista busca
desestabilizar o cistema, que, junto a outros mecanismos de opressão
(como o racismo, a misoginia, o classismo, etc.), violenta corpos
marginalizados. A reação estética violenta de Linn não é uma violência
física voltada a um indivíduo, mas sim um contra-ataque simbólico que
mira no poder masculino. Com o impacto artístico gerado, ela pretende
estabelecer uma ponte de diálogo com o público.
Essa estética está fortemente presente em Pajubá (2017), álbum
lançado com uma série de vídeo-performances no YouTube. “Coytada” faz
parte desse repertório e, além desse primeiro vídeo de 2017, teve um
videoclipe oficial publicado um ano depois, em 2018.
Diferentemente da dilatação temporal promovida nos demais
vídeos de Pajubá, a montagem frenética de “Coytada” (2018) remete a uma
desarmonia muito presente na linguagem do videoclipe (SOARES, 2012).
Num gesto contrassexual (PRECIADO, 2014), Linn da Quebrada e as
companheiras Jup do Bairro e Slim Soledad se unem em um cenário
artificial de uma cozinha para preparar uma receita ameaçadora ao
falocentrismo, produtora de venenos-afetos que contaminam a
cisheteronormatividade (SOARES, 2016).
Este artigo se dedica em estabelecer um diálogo com as subversões
de normas binárias sexuais e de gênero que são mobilizadas no videoclipe
“Coytada” (2018). Como caminho metodológico, adotamos aquele que o
pesquisador Thiago Soares (2012) propõe no livro Videoclipe: o elogio da
desarmonia. Na análise de videoclipe, o autor destaca três pontos-chave: a)
o modo como se apresenta a/o artista que canta a canção; b) a maneira
como é construído o cenário; c) a forma como o videoclipe se ancora no
tempo (tanto em termos de tempo de narrativa quando em termos de
ritmo de montagem). Assim, performance artística-espaço-tempo se torna
o fio condutor escolhido para dialogarmos com “Coytada”.
O objetivo é refletir sobre o modo como o terrorismo de gênero da
artista fricciona a lógica falocêntrica a partir do deslocamento do desejo
sexual para outras zonas erógenas. Na cozinha de “Coytada”, Linn da
Quebrada prepara uma receita com imagens vertiginosas, batidas
eletrônicas e palavras (en)cantadas, as quais se fundem em um feitiço

43
audiovisual desarmônico capaz de materializar práticas contrassexuais em
reação ao cistema.

Feitiçarias queer e desarmonias no vídeo

“A música para mim funciona como magia, como feitiço, sabe? Faz
com que acredite na minha própria existência, com que eu possa inventar
as minhas próprias verdades”4, explica Linn da Quebrada ao portal Público,
em umas das tantas entrevistas em que aproxima seu trabalho à feitiçaria.
“Eu faço das minhas músicas o que eu preciso ouvir. O que eu preciso dizer.
Não só sobre a minha identidade de gênero, mas em relação ao meu corpo,
aos meus afetos, aos meus desejos”, aponta (ibidem).
A ação de (en)cantar corpos, afetos e desejos por meio de palavras,
canções e imagens está latente no discurso de Linn da Quebrada. Para ela,
caracterizar sua arte como uma produção apenas sobre sexualidade e
gênero é uma “visão limitadora”, pois suas obras são também um trabalho
sobre corpo. “Uma pergunta que me acompanha desde o início da minha
trajetória é: o que pode um corpo? E essa pergunta foi se desdobrando em:
o que pode o meu corpo? E o que só o meu corpo pode fazer?”5.
Nessa jornada de experimentação corporal, a música surge, para
Linn, como um território de invenção de sentimentos, sensações e desejos
a ser disputado e ocupado por pessoas transgêneras, para que, assim, elas
possam imprimir no presente suas histórias e memórias, cistematicamente
silenciadas e marginalizadas. Desse modo, a palavra (en)cantada de Linn
busca o poder de criar novas realidades e transformar antigas estruturas:

4 Ver a reportagem “A (r)existência delas pode ser a revolução de um país”, de 2018, de


Mariana Duarte para a seção Ípsilon, do portal Público. Disponível em:
<https://www.publico.pt/2018/09/28/culturaipsilon/noticia/brasil-bandasonora-de-
uma-revolucao-1845057>. Acesso em: 25 ago. 2020.
5 “‘Uso o filme como plataforma para criar e desvendar mistérios sobre a minha
identidade’”. Entrevista de Linn ao Estúdio CBN, em 25 de novembro de 2019.
Disponível em: <https://cbn.globoradio.globo.com/default.htm?url=%2Fmedia
%2Faudio%2F283063%2Fuso-o-filme-como-plataforma-para-criar-e-desvendar.htm>.
Acesso em: 25 ago. 2020.

44
Tenho pensado muito na minha música como um pense-dance, como um feitiço,
como um manifesto, como uma denúncia, como uma ponte. Quando comecei a
fazer música, eu comecei a formular novas frases, novos pensamentos, que não
necessariamente já sentia. Mas eu sentia necessidade de repetir aquilo para que
aquilo fosse uma verdade em mim [...]. Para que eu pudesse construir em mim
novos desejos. Para que eu pudesse construir em mim novas sinapses, novos
pensamentos que me fizesse acreditar na minha própria existência, e que me
fizessem acreditar no meu corpo como algo possível6.

Ao estudar as obras do escritor gaúcho João Gilberto Noll, na


dissertação Feitiçarias, terrorismos e vagabundagens: a escritura queer de
João Gilberto Noll (2016), a pesquisadora Mayana Rocha Soares o
caracteriza como um feiticeiro de escritura queer, um sujeito que, com suas
palavras, quer “afetar, desconcertar, incomodar, desorientar e provocar
reflexões diversas, principalmente sobre os agenciamentos interditados e
censurados” (2016, p.11). Soares reflete que o “feiticeiro não é
simplesmente aquele que enfeitiça, mas aquele que assombra, aterroriza,
provoca medo. Suas crenças, por mais insultadas e desacreditadas que
sejam, são respeitadas pela magia e pelas possibilidades revolucionárias
que emanam” (2016, p. 10).
O feitiço lançado pela escritura queer, segundo Soares (2016), “se
torna o veneno necessário para contaminar os sistemas de significação tão
bem organizados da vida ordinária. Esse veneno podemos também chamar
de afeto” (2016, p. 10). Portanto, a/o feiticeira/o

contamina com seu veneno-afeto as representações heteronormativas da


sexualidade e seus códigos de acesso: questiona, através dos seus escritos, as
instituições promotoras e seus dispositivos de saber-poder, potencializando as
possibilidades de ruptura com as normas que criam assujeitamentos (SOARES,
2016, p. 15).

No caso de Linn da Quebrada, as palavras desempenham tanto o


papel de materializadora de possibilidade de vida negra travesti quanto de
veneno-afeto contaminador da cisheteronormatividade. Por meio da voz e

6 “[LINN DA QUEBRADA]'Minha música é feitiço, manifesto, denúncia e também ponte'”,


postado por Ponte Jornalismo no YouTube. Disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=Kgd-Yfv7yLY>. Acesso em: 20 ago. 2020.

45
do corpo, a artista compõe imagens e sons trans-enviadescidos em seus
videoclipes terroristas de gênero, os quais se transmutam em feitiços
audiovisuais para afetar o cistema com uma estética desarmônica e
desordeira.
A desarmonia é um aspecto que o pesquisador Thiago Soares
localiza no âmago do videoclipe, mídia que caracteriza como um “poderoso
instrumental de divulgação de artistas da música pop” (2012, p. 32), cuja
popularização remonta aos anos de 1980, com a criação da emissora de
televisão estadunidense MTV. Esse gênero audiovisual é marcado – em
geral, mas não em via de regra, dada a pluralidade e o hibridismo dos
videoclipes – por imagens rápidas e instantâneas “clipadas”, que são
recortadas e aglutinadas em um determinado ritmo (SOARES, 2012). Logo,
o videoclipe tem na montagem um processo-chave.
A partir de pensadores clássicos do cinema, Thiago Soares
apresenta duas perspectivas de compreensão acerca da montagem: uma
harmônica (baseada em Jacques Aumont), em que ela poderia ser
entendida como a união de unidades separadas para a formação da
totalidade fílmica; e uma desarmônica (fundamentada em Sergei
Eisenstein), em que a montagem se daria pelo desmembramento de
elementos e pela justaposição de partes independentes colocadas em
“choque” para gerar o todo de um filme. Influenciado por Eisenstein,
Soares adota o conflito como aspecto pulsante de uma obra.
Além do atrito conflituoso e criativo, a desarmonia seria outro fator
de potencial inventivo artístico, com todas as irregularidades e os desvios
que ela evoca. Tendo como referência o pensamento do teórico Gillo
Dorfles, Soares (2012) pega dele emprestado o termo “elogio à
desarmonia” para compreender como a linguagem do videoclipe espelha a
sociedade contemporânea e a arte pós-moderna. “Neste sentido, a
desarmonia existente no clipe é integradora de uma máxima da
contemporaneidade que, de alguma maneira, ‘exige’ a existência de forças
criadoras que vão de encontro ao princípio estático da regularidade”
(SOARES, 2012, p. 36).
Os feitiços audiovisuais de Linn na forma de videoclipes parecem
desejar justamente conduzir o público a uma zona desestabilizante da
pretensa “normalidade” cisgênera e heterossexual, por meio do terrorismo

46
de gênero. Especificamente em “Coytada”, acompanhamos a preparação
de um ataque à lógica falocêntrica em meio a uma narrativa que se
organiza a partir de processos culinários de destruição e de transmutação
de dildos.

“Tu vai morrer na punheta!”: o grito contrassexual como maldição ao


falocentrismo

Em meio às batidas eletrônicas do universo caótico de “Coytada”,


Linn da Quebrada vocifera no refrão: “Tu vai morrer na punheta!”, uma
maldição para a “bixinha safada” que “só quer dar pras gay bombada”, em
detrimento das afeminadas. Mais à frente na canção, dá uma rasteira no
desejo sexual concentrado no pênis quando avisa: “Eu vo tirar minha
camiseta/ Vo mostrar as minhas teta/ CHUPO CU CHUPO BUCETA!!”. Com a
declaração, a lógica falocêntrica é preterida e outras zonas erógenas são
convocadas para a ação.
A teórica feminista Elizabeth Grosz (1989), ao traçar uma definição
de falocentrismo, associa-o diretamente ao logocentrismo. Segundo ela,
tanto logos (a lógica, a razão, o conhecimento) quanto, em consequência,
logocentrismo são termos que se referem à forma dominante da metafísica
no pensamento ocidental. O logocentrismo seria um sistema que “busca,
além dos signos e da representação, o real e o verdadeiro, a presença do
ser, do conhecimento e da realidade para a mente – um acesso a conceitos
e a coisas na sua forma pura e não mediada” 7 (GROSZ, 1989, p. xix). Além
disso, o sistema logocêntrico estaria firmemente baseado em uma lógica de
identidade fundada na exclusão e na polarização binária da diferença
(ibidem).
Desse modo, Grosz define o falocentrismo como um tipo de
logocentrismo em que a função de logos é substituída pelo falo, em um
contexto de sistema patriarcal que submete mulheres a modelos e a
imagens definidas por e para homens. “É a submissão de mulheres a

7 Tradução do autor. No original em inglês: “[It is a system which] seeks, beyond signs
and representation, the real and the true, the presence of being, of knowing and
reality, to the mind-an access to concepts and things in their pure, unmediated form”
(GROSZ, 1989, p. xix).

47
representações em que elas são reduzidas a uma relação de dependência
aos homens”8 (GROSZ, 1989. p. xx): são representadas ou como o oposto
negativo, ou em termos de equivalência/similaridade, ou como
complementares a eles (ibidem). No falocentrismo, o homem-falo se faz de
centro e parâmetro, a partir do qual são constituídas as representações.
Conforme o pensamento do teórico queer Paul B. Preciado, em seu
livro Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual
(2014), a diferença sexual é uma divisão heterossexual feita sobre os corpos
de tal modo que não é possível haver simetria. O sexo – tanto no sentido de
órgãos quanto no de práticas – “é uma tecnologia de dominação
heterossocial que reduz o corpo a zonas erógenas em função de uma
distribuição assimétrica de poder entre os gêneros (feminino/masculino)”,
responsável por fazer “coincidir certos afectos com determinados órgãos,
certas sensações com determinadas reações anatômicas” (PRECIADO, 2014,
p. 25).
Segundo Preciado, o sistema heterossexual, dispositivo social
produtor de feminilidades e masculinidades, recorta da totalidade do corpo
determinados órgãos e os naturaliza como centros anatômicos da diferença
sexual. “Os homens e as mulheres são construções metonímicas do sistema
heterossexual de produção e de reprodução que autoriza a sujeição das
mulheres como força de trabalho sexual e como meio de reprodução”
(PRECIADO, 2014, p. 26).
Nessa relação desigual de poder, o pênis é privilegiado “como o
único centro mecânico de produção de impulso sexual”, e os papéis e as
práticas sexuais – normas arbitrárias inscritas nos corpos, atribuídas aos
gêneros masculino e feminino – garantem a manutenção da exploração
material de um sexo por outro (ibidem, p. 26). Ao pensar sobre a relação
falo-pênis-dildo, Preciado recorre às considerações psicanalistas de Jacques
Lacan e às críticas que a teórica queer Teresa de Lauretis tece a ele:

8 Tradução do autor. No original em inglês: “It is the submission of women to


representations in which they are reduced to a relation of dependence on men.”
(GROSZ, 1989, p. xx).

48
Teresa de Lauretis, por exemplo, critica o heterocentrismo que permite a Lacan
jogar permanentemente com a ambiguidade falo/pênis (para Lacan, o pênis é um
órgão genital que pertence aos corpos masculinos, enquanto o falo não é nem
um órgão nem um objeto, mas sim um “significante privilegiado” que representa
o poder e o próprio desejo, e confirma o acesso à ordem simbólica). Para a autora
de The Practice of Love [A prática do amor], com Lacan se coloca a questão de ter
ou não o falo a partir de uma perspectiva heterossexual (que a teoria e a prática
psicanalíticas se empenham em encontrar ou em induzir nos sujeitos), na qual a
diferença sexual homem/mulher e o ato de copular com vistas à reprodução são a
norma (PRECIADO, 2014, p. 75).

A partir disso, Preciado reflete que o dildo não é nem o falo, nem o
pênis: ele ocupa, estrategicamente, o lugar entre um e outro e “denuncia a
pretensão do pênis de se fazer passar pelo falo” (PRECIADO, 2014, p. 75).
“O dildo não é o falo e não representa o falo porque o falo, digamos de
uma vez por todas, não existe. O falo não é senão uma hipóstase do pênis”
(PRECIADO, 2014, p. 78). De acordo com o teórico, a disrupção do dildo
vem do fato de ele mostrar que masculinidade e feminilidade estão ambos
sujeitos, tal qual os corpos, às tecnologias biopolíticas de construção e de
controle.
É pelo potencial subversivo apresentado pelo dildo, pelo ânus (zona
erógena que ultrapassa as limitações impostas pela diferença sexual) e
pelas práticas sadomasoquistas (evidenciadoras das estruturas eróticas de
poder implícitas no contrato sexual que a heterossexualidade forja como
natural) que Preciado os elege como pilares de seu manifesto
contrassexual. A contrassexualidade, segundo Preciado, propõe uma
substituição da “natureza” por um “contrato contrassexual”, no qual os
sujeitos não são reconhecidos segundo esquemas binários
(homem/mulher, masculino/feminino, heterossexual/ homossexual), mas
sim como “corpos-sujeitos falantes”, equivalentes (e não iguais) entre si na
busca de “prazer-saber” (PRECIADO, 2014).
Os fluidos produzidos pelo manifesto contrassexual de Preciado
impregnam o universo prostético e artificial da cozinha terrorista de gênero
de Linn da Quebrada em “Coytada”. A relação que a artista estabelece com
os dildos é de desconstrução e transmutação em gozo vital. Na ritualística
culinária que é encenada (Figura 1), os dildos e as bananas são os

49
ingredientes principais a serem amassados, fatiados e transfigurados em
outros prazeres.
Intumescidos de potencial contrassexual, os dildos são os alvos para
os quais Linn aponta sua mira bélica e, ao mesmo tempo, são os aliados a
quem ela se junta em fricção. Ao picá-los, em uma afronta ao desejo
falocêntrico, seu feitiço audiovisual revela o segredo da materialidade do
dildo-pênis-falo: um miolo simplesmente feito de látex-carne-imaginário. O
que resta do desejo e do poder falocêntricos depois da ação cortante da
lâmina, também de plástico, de Linn da Quebrada?

SEQUÊNCIA 1 – Na montagem de “Coytada”, dildo e banana se tornam um só: natureza


plástica, brinquedo sexual orgânico. FONTE – YouTube, 2018.

O regojizo das monstras

“Merendeiras são como feiticeiras: ao cozinharem, elas estão


criando um feitiço, um feitiço não só para muitos, mas pra elas mesmas
também. As merendeiras são parte deste feitiço, são os ingredientes da
própria magia”9, elucubra Linn da Quebrada à época do lançamento de
“Coytada”10, em setembro de 2018. Com a realização assinada por NOSS. e
Sentidos Produções, o clipe traz uma direção de arte marcada por cores
vibrantes (especialmente tons de rosa e azul), um figurino fragmentário e
um ritmo frenético de edição.

9 Declaração publicada na matéria “Linn da Quebrada divulga Coytada Tour com novo
clipe”, da revista digital Aqui tem diversão, de 30 de setembro de 2018. Disponível em:
<https://aquitemdiversao.com.br/linn-da-quebrada/>. Acesso em 25 ago. 2020.
10 “Linn da Quebrada - Coytada (Clipe Oficial)”, postado em 17 de setembro de 2018.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=IUq4WWJRngE>. Acesso em: 25
ago. 2020.

50
A montagem é um dos pontos fundamentais para a construção do
crescente caos vertiginoso e orgástico que se desenrola no clipe.
Intercalam-se imagens em HD e em VHS, flertando com uma estética
ruidosa, desarmônica e nostálgica. Como reflexo das tecnologias
empregadas, há a alternação entre diferentes tamanhos de janela de
exibição. Além disso, o recurso de múltiplas telas é usado ao longo de todo
o clipe com efeitos diversos: ora acelera a sequência dos procedimentos
culinários, ora rompe a temporalidade linear das ações, ora multiplica e
amplifica a força da performance. O tempo narrativo é o do curto período
da receita, ainda mais agilizado pela noção temporal e rítmica transmitida
pela montagem.
Na introdução, Linn da Quebrada convoca as companheiras Jup do
Bairro e Slim Soledad para conjurarem a receita-feitiço do dia: a destruição
do desejo falocêntrico. “Escuta bem que essa podia ser pra você, viu? Na
verdade, quem sabe ela não é?”, (en)canta Linn em aviso prévio a quem as
assiste.
Uma bandeira do Brasil surge em quadro com a palavra “trava”
escrita nela, um estandarte que anuncia a ocupação travesti daquele
território audiovisual. Um grito queer (en)cantado marca tanto o começo
quanto o final do feitiço-clipe (Figura 2). O chamado gutural da feiticeira
dispara a vertigem da tela e funciona como um clangor que reúne e
dispersa suas guerreiras na batalha contra o falocentrismo.

SEQUÊNCIA 2 – Da boca em vertigem inicial ou da bocarra multiplicada em derradeiro


deleite, ressoa o grito de Linn da Quebrada, que costura o início e o fim do videoclipe de
“Coytada”. FONTE – YouTube, 2018.

Linn e suas parceiras adentram, então, num cenário fabricado de


cozinha, bastante iluminado e colorido, que inspira artificialidade. A
estética do artifício, do falso, do paródico, está presente em todos os

51
elementos do vídeo. Em seu figurino, Linn usa seios de plástico perfurado
com alfinetes, justapostos a pedaços e restos de comida. Quer seja com os
dildos, quer seja com os seios acopláveis, as próteses fazem ecoar as
reflexões contrassexuais sobre o que é ou não “natural”. Aos poucos, o
cenário perfeitamente limpo e organizado é contaminado pela sujeira
contrassexual em desarmonia provocada pelo trio.
Alguns enquadramentos escolhidos lembram os usados em
programas culinários de televisão: planos médios, planos detalhes ou
planos de angulação zenital, de 90º, que mostram não só quem apresenta a
receita, mas também o passo a passo do alimento sendo feito. Porém,
supercloses e zoom-ins de mergulhos na imagem tensionam essa linguagem
próxima à televisiva e contribuem para a sensação de vertigem nas cenas.
Linn lidera a transmutação dos dildos-bananas, lidando ludica e
libidinosamente com os ingredientes, fazendo deles picadinho e deixando a
magia do forno terrorista de gênero ressignificar o símbolo do poder fálico,
lambido pelo calor do fogo (figura 3). Em ciranda, elas celebram o ritual
que estão promovendo. Ao final do processo, o trio regojiza e se lambuza
com a criação coletiva, na forja de um outro prazer dissidente.

SEQUÊNCIA 3 – Dildos, bananas e outros ingredientes entram no forno de Linn para serem
ressignificados pelo terrorismo de gênero da artista. FONTE – YouTube, 2018.

Devorada a torta de dildos-bananas, Linn, Jup e Slim adquirem


facetas de monstras, que se banham orgasticamente em litros de um
líquido leitoso (figura 4). Assim, corpas transgêneras negras, estigmatizadas
pelo cistema heteronormativo branco como seres abjetos, ressignificam o
estigma e transformam a monstruosidade em um aspecto de resistência e

52
de orgulho. A feitiçaria audiovisual queer do videoclipe se encerra e o
terrorismo de gênero se consolida.

SEQUÊNCIA 4 - Inundadas em estado de gozo, Linn, Jup e Slim assumem uma faceta
monstruosa que afronta o cistema por meio dos prazeres que produzem. FONTE –
YouTube, 2018.

Considerações finais

“Eu quero exatamente as coisas que eu canto, exatamente as coisas


que eu falo. [...] Eu quero criar pontes. Eu quero inventar forças junto. Eu
quero comover, que, pra mim, é nos mover coletivamente. [...] E eu quero
salvar a minha vida. Eu canto para salvar a minha vida”, afirma Linn da
Quebrada em entrevista11, ao refletir sobre sua arte. Desse desejo de erigir
pontes de comunicação para a preservação e a perpetuação da vida travesti
negra no contexto brasileiro de violência transfóbica, surgem os feitiços
audiovisuais conjurados por Linn e suas parceiras artísticas.
Em entrevista à plataforma digital ATRAVES, em 2018, sobre o
processo criativo do videoclipe “Coytada”, Linn da Quebrada reflete a
respeito da desumanização sistemática que é criada para alguns sujeitos:

Tive poucas referências. E isso acontece com muitas pessoas de diversos nichos
da marginalidade, né? Crescemos sem referências, sem acreditar que o que nós
vivemos é vida. [...] O que talvez seja interessante para quem estiver vendo seja
justamente: como eu consegui me manter viva e como eu consegui ocupar esse
espaço sendo quem eu sou? Logo eu, que não era nem humana, que não sou
nem humana. Passo a ser um ícone, mas continuo não sendo humana. Continuo
não sendo digna de amor e de outros sentimentos e afetos que são destinados
apenas para os seres humanos12.

11 “LINN da Quebrada: crise na música e na política”. Entrevista de Linn da Quebrada ao


O Povo Online, 2018. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?
v=Qqv0Y6A7qXU>. Acesso em: 24 ago. 2020.

53
Conforme o discurso de Linn da Quebrada, seu corpo está na base
da hierarquia social, bem como os das demais pessoas negras transgêneras
periféricas, e, por isso mesmo, “quando a gente move essa base, toda a
estrutura se move” (idem). Para (co-)mover essa estrutura é que os feitiços
audiovisuais de Linn são lançados.
Porém, como ela mesma lembra, “a mudança estrutural não
depende só das pessoas que estão representando” (idem). Por isso, em vez
de ser a pessoa subalternizada sobre quem é colocada a responsabilidade
de trazer respostas a dilemas sociais, Linn da Quebrada inverte a situação e
joga a reflexão também para nós, pessoas cisgêneras, que tanto nos
debruçamos sobre o trabalho dela: “O meu corpo é político, mas o seu
corpo também é político. E diante disso, então, é que nos cabe a pergunta:
qual é a sua atuação política?” (idem).
“Coytada” é um dos feitiços que a artista conjura para tentar
deslocar o pênis-homem-falo do centro do desejo sexual, a fim de abrir
espaço para outras práticas subversivas de prazer serem experimentadas,
tanto por pessoas transgêneras quanto cisgêneras. Em permanente
desconstrução, os sujeitos desviantes do cistema levantam a voz em uma
coletividade monstruosa. Corpos que, em gozo e desejo, resistem para
existir.

Referências bibliográficas

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filme-como-plataforma-para-criar-e-desvendar.htm >. Acesso em: 23 abr. 2020.

12 “PROCESSO CRIATIVO - LINN DA QUEBRADA | ONDA19”, postado por ATRAVES em


2018 no YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?
v=BcAGGgBTGz8>. Acesso em: 25 ago. 2020.

54
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55
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Transrespect Versus Transphobia World Wide. Publicado em 11 de novembro de 2020.
Disponível em: < https://transrespect.org/en/tmm-update-tdor-2020/ >. Acesso: 24 nov.
2020.

VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero


inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015.
244 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em
Cultura e Sociedade, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, 2015. Disponível em:
<https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/19685/1/VERGUEIRO%20Viviane%20%20.
Acesso em: 20 jan. 2020.

56
A hora da estrela de Suzana Amaral:
uma reescritura da condição feminina para o cinema

Gleyda L. Cordeiro Costa Aragão13

Introdução

A hora da estrela (1977) foi o último livro publicado em vida pela


escritora Clarice Lispector. Nesta obra, a protagonista é a jovem Macabéa,
uma nordestina de dezenove anos, raquítica, semianalfabeta que vive só na
cidade do Rio de Janeiro, dividindo um quarto de pensão com outras moças
em semelhante situação de precariedade. Trabalha em um escritório como
datilógrafa e tem como colega de trabalho, Glória, jovem desenvolta e
sensual. Neste enredo, tudo o que sabemos acerca das personagens nos é
apresentado por Rodrigo S. M., o narrador interposto.
Em 1985, Suzana Amaral, em seu longa-metragem de estreia,
adapta esta obra para o cinema. Além da direção, ela divide a assinatura do
roteiro com Alfredo Oroz. Nesta adaptação a diretora opta por eliminar a
figura de Rodrigo S.M. e as personagens ganham mais autonomia,
sobretudo a protagonista. Outra diferença importante entre as duas
produções é a mudança de cenário: no livro a história se passa no Rio de
Janeiro, já no filme, em São Paulo.
Na trama, as personagens femininas ganham destaque e suas vozes
são ouvidas, já as masculinas ocupam posição de comando (chefe,
supervisor) e embora tenham participação menor, o poder que elas
exercem se faz presente em vários aspectos da vida das mulheres da trama
(plano profissional, pessoal e civil). Dentre os homens do enredo,
conhecemos Olímpico, namorado de Macabéa que, embora esteja em
situação semelhante em pobreza e opressão, encontra espaço e condições
para subjugar sua companheira. Ao longo da trama, também somos

13 Doutora em Letras (Literatura Comparada), Universidade Federal do Ceará (UFC). E-


mail: [email protected].

57
apresentados à Glória (colega de trabalho de Macabéa) e Madame Carlota
(cartomante), objetos desta análise.
Por se tratar do estudo de uma adaptação de uma obra literária
para outro meio semiótico, no caso, o cinema, é importante salientar que
para os Estudos da Tradução não levamos em conta o conceito da
fidelidade, nem nos cabe estabelecer uma hierarquização das obras
estudadas, mas analisar as escolhas feitas pelo adaptador e sua equipe,
bem como os efeitos e interpretações que esta obra pode despertar no
público. Nesse tipo de análise, tomamos como princípio norteador o
conceito de tradução como reescritura (Lefevere, 2007) que considera o
tradutor como um reescritor que faz suas escolhas em função de critérios
ideológicos, estéticos ou políticos de acordo com a época de sua produção.
Para Lefevere (2007), as adaptações têm a capacidade de expandir o
alcance dessas obras de partida, atingindo um público mais vasto. Este
público, por ele chamado de “leitor não-profissional, mais frequentemente
deixa a literatura tal como ela foi escrita pelos seus autores, mas a lê
reescrita por seus reescritores. Sempre foi assim, mas isso nunca pareceu
tão óbvio quanto hoje” (LEFEVERE, 2007, p. 18).
Clarice Lispector escreveu e publicou sua obra em 1977, já Suzana
Amaral produziu um filme urbano, com elementos visuais típicos do
período de sua produção, nos anos 1980. Nessa década o país estava
encerrando um ciclo de vinte anos sob o Regime Militar e, ainda que
timidamente, se abria para um período de renovação e maior liberdade.
Nesse sentido, focalizaremos ao longo deste artigo a construção de
algumas das personagens femininas nesta reescritura, observando
eventuais novas questões que ela nos apresentaria acerca de questões
como identidade, corpo e liberdade.

Adaptando A hora da estrela para o cinema

Suzana Amaral sempre manteve uma relação muito próxima com a


literatura e foi uma leitora assídua de Clarice Lispector. A ideia de levar a
obra da autora para o cinema surgiu a partir da pós-graduação em Cinema
que cursou nos Estados Unidos. Com mais de cinquenta anos e com nove

58
filhos, ela largou tudo e foi realizar o sonho de dedicar-se ao que sempre foi
seu desejo, a direção cinematográfica.
Nesse curso, ouviu de um de seus professores o seguinte conselho:
“ao adaptar uma obra literária para o cinema, escolha o livro mais curto.
Livros volumosos representam problemas para o adaptador”. Ou seja,
escolha da autora não foi motivada exclusivamente por um gosto pessoal,
mas sim por critérios mais pragmáticos e guiada por este conselho, o livro
escolhido foi A hora da estrela (1977).
Nessa narrativa, Rodrigo S. M., o narrador interposto tem grande
importância no texto de partida, guiando o relato e dando voz à
protagonista. Em sua versão cinematográfica, ele é eliminado e deste
modo, algumas das observações impiedosas proferidas por Rodrigo são
transferidas para outras personagens, como Glória ou as Marias que
dividem o quarto de pensão com Macabéa. Em sua adaptação, a diretora
descarta a metaficção e opta por uma linguagem simples e didática,
segundo a mesma, que “vá direto ao ponto”, sem intermediários.
Ao suprimir a figura de Rodrigo S. M., a cineasta imprimiu maior
linearidade e objetividade à obra. Desta forma, ela deixou de lado “os
termos suculentos” usados pelo narrador e centrou-se na história de
Macabéa. A partir dessa escolha, outros personagens secundários
ganharam maior participação e importância na trama.
Para interpretar a protagonista, a diretora escolheu Marcélia
Cartaxo, uma jovem paraibana com curta experiência no teatro. Já para os
papéis de Glória e Madame Carlota, foram selecionadas duas atrizes
bastante conhecidas do público tanto de televisão quanto do cinema:
Tamara Taxman e Fernanda Montenegro.
Trabalhando sem ensaio, nem marcação e dando liberdade para
seus atores expressarem suas emoções, Suzana Amaral consegue um efeito
bem naturalista em suas produções, o que muitas vezes pode confundir o
público, que pode deduzir que se trata de uma obra improvisada, o que não
seria a avaliação mais adequada.

59
Literatura e cinema: recursos e limitações

Na literatura a construção das personagens se realiza por meio das


palavras e a partir da imaginação de seu autor. Esse ser ficcional nos é
apresentado através de descrições, bem como a partir de diálogos e
situações nas quais ele atua. Segundo Candido (2007), a personagem é a
representação ficcional da realidade, de pessoas reais. A personagem é ao
mesmo tempo um ser físico, psicológico e social que se define através de
suas palavras e ações. Essas ações e posicionamentos são motivados pela
busca de um objetivo, que muitas vezes, encontra obstáculos para sua
realização. Deste modo está caracterizado o conflito, outro componente
essencial para a trama, pois sem empecilhos, não há ação. É este elemento
que fornece a força dramática ao personagem e que é desenvolvido nos
relacionamentos com as outras personagens. No cinema, por sua vez, a
construção das personagens se realiza de forma coletiva, uma vez que
vários profissionais estão envolvidos neste processo: diretor, roteirista,
câmera, iluminador, figurinista, maquiador, ator. É sabido que questões
orçamentárias se apresentam como um fator decisivo na realização de uma
produção cinematográfica, sendo também responsável direto pelo
resultado final.
Um dos aspectos essenciais na caracterização desses seres fictícios é
constituído através dos figurinos. No caso de Macabéa, as peças utilizadas
são extremamente simples, ela utiliza roupas em cores apagadas e suas
peças vão dos tons de cinza aos terrosos. Suas vestimentas não possuem
detalhes chamativos como laços, decotes ou babados. Nesse aspecto, a
produção contrasta com o exagero típico da década de 1980. O corte das
peças é discreto e pudico (“sou virgem”). A jovem usa sobretudo saias ou
vestidos na altura dos joelhos, com corte reto, sem evidenciar sua silhueta
(afinal, ela era carente de curvas). Invariavelmente usava um único par de
sapatos de cores escuras, com meias azul-marinho. Macabéa não usa
acessórios como joias e/ou bijuterias, seu cabelo é solto, mas penteado e
discreto. Ela também não usa maquiagem. Batom para ela, era um luxo. Em
apenas algumas cenas a cor vermelha aparece, materializada na forma de
um batom chamativo e mal passado e nas unhas roídas onde há um resto
de esmalte. Seus gestos são contidos, o olhar é sempre voltado para o

60
chão. Com isso, o efeito transmitido é de inferioridade, medo e
insegurança. A ausência de cores vibrantes, estampas e acessórios passam
um efeito de apagamento.
Uma vez que o filme se passa na cidade de São Paulo, centro urbano
e sem tantos atrativos naturais como a cidade do Rio de Janeiro (cenário do
livro), Macabéa se perde no cinza da paisagem e sua invisibilidade fica mais
evidente. Uma das marcas de Macabéa é a submissão. Este aspecto de seu
comportamento fica bem explícito ao analisarmos seus momentos de
interação com as demais personagens do enredo. É possível observar este
tipo de comportamento sobretudo quando ela está diante de alguém do
sexo masculino.
Gloria é apresentada como o oposto de Macabéa. A jovem era uma
colega de trabalho da jovem nordestina. Por serem as únicas mulheres na
firma, por força das circunstâncias, elas se aproximaram. No entanto,
contrastando com a ingenuidade e franqueza da jovem nordestina, Glória
era dissimulada e traiçoeira. Nascida na capital, filha de portugueses, a
jovem tinha autoconfiança embora não houvesse tantos motivos para isto.
Glória possuía atributos que faltavam à Macabéa: corpo e discurso.
Ainda que não fosse exatamente bonita, para os que passavam fome, seus
excessos representavam fartura e sinal de fertilidade.
Nessa adaptação, a personagem Glória ganha maior destaque do
que em seu texto de partida. Ela apresenta o comportamento de uma
mulher emancipada e não se subjuga totalmente ao machismo impregnado
em nossa sociedade. A jovem exerce seu poder de sedução com
desenvoltura e vive sua sexualidade de forma plena. Ela gosta de seduzir e
decide com quem ficar e enquanto lhe for conveniente. Quando
imprevistos acontecem, como é o caso de uma (ou mais) gravidez
indesejada, por exemplo, ela não hesita em praticar a interrupção,
ignorando a lei e os dogmas religiosos. A religião não exerce nenhuma
pressão sobre suas escolhas e não há medo de punições na esfera criminal.
Para ela, o aborto é uma consequência natural para quem tem uma vida
sexual ativa, tendo o homem que arcar com as despesas dos
procedimentos necessários. Nesse aspecto, a cineasta introduz no enredo
um assunto que ganhava espaço na época: os direitos reprodutivos das
mulheres. Sobre esta questão, Ávila afirma:

61
O debate sobre o aborto, a sexualidade, que coloca o corpo como tema da
política, se instala nos anos 1980. As feministas trazem uma grande contribuição
para expandir a luta da luta política por democracia. A chegada de mulheres
brasileiras do exterior; com a promulgação da anistia política em 1979,
representa uma profunda contribuição aos termos desse debate no Brasil em
função da experiência da militância feminista em outros países, o que já apontava
para internacionalização do debate no Brasil (ÁVILA, 2019, p. 165).

Já Macabéa, que teve uma educação mais conservadora, o sexo é


tabu. Tanto é que a mesma ao se apresentar, afirma: “Sou datilógrafa,
virgem e gosto de Coca-cola”. Para ela (e para as pessoas do seu meio
original), virgindade seria uma marca de pureza e a vida sexual, uma
exclusividade das mulheres casadas. Outro ponto a ser destacado também
é o fato de, em virtude de sua condição um pouco mais privilegiada faz com
que Glória desconheça as limitações orçamentárias de Macabéa.
Logo nas primeiras cenas é possível perceber o contraste que há
entre as duas moças do escritório: Macabéa com sua aparência discreta,
quase apagada. Exerce seu trabalho datilografando textos escritos por
outras pessoas. Glória, por sua vez, tem seus cabelos claros, fartos,
cacheados e soltos. Suas roupas são em cores vibrantes como azul royal,
vermelho. Suas formas são reveladas e valorizadas por decotes, vestidos de
alça. Cabe a ela fazer anotações em uma prancheta. Enquanto Macabéa
fica sentada atrás da máquina pesada, Glória circula desenvolta pelo
escritório e também se ocupa em efetuar pagamentos. Por ter mais
mobilidade, tem mais liberdade que sua colega. Quanto à competência de
Glória, nenhum comentário é feito pelos superiores, mas sobram críticas à
Macabéa, sobretudo em relação à qualidade de seu serviço. O papel sujo e
amassado, palavras escritas de forma incorreta são alguns dos defeitos
apontados pelos superiores.
Glória, por sua vez, não estabelece uma divisão tão clara entre vida
pessoal e profissional. Durante o horário de trabalho ela telefona para seus
namorados ou é procurada por eles. Ela interrompe seus afazeres e usa o
telefone da empresa (serviço caro nessa época) para conversas pessoais.
Em uma dessas ligações, ela pede dinheiro a um de seus contatos, um
homem casado. Diz que precisa de oitenta mil cruzeiros “para o serviço”.

62
Faz chantagem: afirma que se não receber o dinheiro na mão em dois dias,
algo poderia acontecer à esposa do interlocutor. Marcam um encontro no
bar da esquina e exige dinheiro vivo, pois em determinado lugar não
aceitam cheque. Sem entender muito bem do que se trata, mas atenta à
conversa, Macabéa observa o diálogo.
Na cena se passa em um bar popular, Macabéa e Glória almoçam.
Enquanto Glória come um prato tipicamente brasileiro, com arroz, feijão e
carne, Macabéa, por ter menos condições, come um cachorro quente com
Coca-cola. Logo em seguida, chega um homem vestido de paletó e gravata.
Sem falar nada, abre a carteira, tira um maço de dinheiro e entrega à
Glória, sai imediatamente. Tímida e constrangida com a cena, Macabéa é
apenas uma testemunha silenciosa.
Franca e direta, Glória conversa com Macabéa sobre o que a levou
pedir dinheiro ao ex-namorado:

Glória: - Cê já fez isso alguma vez? Aborto?


Macabéa: - Aborto?
Glória: - É, tirar filho.
Macabéa balança a cabeça.
Glória: - Quer dizer que você é virgem mesmo?
Macabéa: - Sou. Sou sim.
Glória: - Quantos anos você tem?
Macabéa: - Dezenove. Completei mês passado.
Glória: - Sabe com quantos anos eu pedi a virgindade? Quinze anos. Sabe quantos
abortos eu já fiz? Cinco abortos.
Macabéa: - E você não teve medo?
Glória: - Eu não. Muita gente diz que é pecado mas eu não acredito nisso. É que
nem tirar dente, só que custa mais caro. Eu sempre fiz com médico. Não vou
qualquer lugar não.

Esta cena do filme é uma criação dos roteiristas, não constando no


texto de partida o que demonstra que a diretora optou por introduzir
questões emergentes de seu tempo e expor ao público assuntos que
durante o período de exceção eram proibidas de serem abordadas. Ao fazer
essa escolha, a diretora opta por inserir questões essenciais para o
movimento feminista naquele contexto o que não deixa de ser uma atitude

63
ousada uma vez que o Brasil é um país conservador e até então de maioria
católica. Conforme argumenta Ávila:

Os temas iniciais do debate local foram o aborto e contracepção, trazendo


consigo a ideia da autonomia das mulheres para decidirem sobre suas ações
reprodutivas e sexuais. Nesse momento, proliferam grupos feministas em torno
de temas específicos, como violência e saúde, começando a se configurar uma
relação privilegiada entre a área de saúde e reprodução (ÁVILA, 2019, p. 165).

Além da questão reprodutiva, Amaral introduz outras questões


incômodas de nossa sociedade: o machismo e o racismo impregnados nas
relações afetivas. Em outra sequência, que se passa na pensão, ocorre uma
cena na qual esses temas se misturam no discursos das colegas de quarto
de Macabéa. É um dia de domingo, como indica uma criança que brinca em
uma varanda da pensão. As colegas se encontram reunidas no quarto.
Macabéa pinta as unhas, e uma outra moça faz uma espécie de alisamento
no cabelo de uma terceira. Uma quarta moça coloca roupas no varal. Ela
afirma:
- Domingo é bom pra gente acordar mais cedo e ficar mais tempo
sem fazer nada.
Com esta afirmação, ela deixa claro que para as classes baixas, não
existem opções de lazer viáveis e que em uma rotina extenuante, o ócio
acaba se tornando uma forma de lazer.
No ritual da beleza, que muito lembra formas de tortura, uma
colega passa uma espécie de produto químico no cabelo da outra que tem
cabelos crespos. Ao puxar como força, a moça reclama.
Moça 1: - Aperta que o Jacinto gosta dela com o cabelo bem liso.
Moça 2:- Cabelo liso é de índio. Cabelo ruim é de preto e preto é filho do diabo.
Moça 1: - Credo, que bobagem! Quem falou isso?
Moça 2: - Mas cabelo liso é bem melhor. Você não viu a Carmélia? Ela bota
creme. Ela bota tudo. Ela gasta uma grana para alisar aquele cabelo.
Moça 1: - Você sabia que o namorado dela fez mal pra ela e que eles vão se
casar?
Moça 2: - É?
Moça 1: - E ela falou que nunca mais vai trabalhar. Ele não quer. Imagina que ele
falou assim: “Imagina que se eu vou deixar minha mulher se embonecar toda e
ficar atrás de um balcão?”. Ai, eu virei e falei…

64
A partir deste diálogo podemos perceber um discurso racista
bastante arraigado em nossa sociedade, a submissão feminina em relação
aos padrões de beleza vigentes à época, bem como a recorrência da
masculinidade tóxica que se arroga o poder de decidir o destino de suas
companheiras. Neste filme, temos por um lado, Glória que vive de forma
mais liberada e de outro, moças que após uma gravidez inesperada, se
submetem aos seus companheiros e largam seus empregos para exercer o
exclusivo papel de esposa e mãe.
Esta situação apresentada no filme não consta no livro e as colegas
de quarto de Macabéa adquirem mais destaque nas telas. Elas serviriam,
portanto, de meio-termo entre a personalidade moderna, liberada,
sexualizada de Glória e a conservadora, pudica, virgem, obediente de
Macabéa, que representaria a jovem pura do interior, como seus valores
arcaicos e ultrapassados. No livro, Glória é apresentada com uma moça de
ancas largas: “Pelos quadris adivinhava-se que seria boa parideira,
enquanto Macabéa lhe pareceu ter em si mesma o seu próprio fim.
(LISPECTOR, 2017, p. 88)”, mas no filme ela recusa esse destino.
No meio onde Macabéa e Glória vivem, a masculinidade tóxica é
exercida por Olímpico e pelo patrão, Seu Pereira. Machistas, julgam as
mulheres pela aparência embora sejam feios, deselegantes e grosseiros.
Trazem consigo conceitos moralistas ainda que não possamos considerá-los
como pessoas éticas (Olímpico já matou um homem na Paraíba e o chefe,
senhor Pereira, não paga o salário mínimo da funcionária, conforme as leis
trabalhistas vigentes).
Já quase no fim da narrativa, surge outra personagem feminina
importante para o enredo, Madame Carlota. Ex-prostituta, ela soube, a
partir de suas habilidades encontrar outras oportunidades na vida. Quando
envelheceu, passou a ser cafetina. Depois, com o avançar da idade, deixa
de lado os encantos do corpo para explorar seus dons discursivos e a
carência das pessoas.
É a partir de suas habilidades com a palavra que ela passa a ganhar
a vida. Servindo-se de uma retórica cativante, abusando dos diminutivos e
de falsas promessas, o destino que ela prevê para suas clientes, é em sua
maioria positivo e transformador.

65
Madame Carlota induziu Glória a seduzir Olímpico, namorado de
Macabéa, com a promessa de que deste modo Glória estaria livre de seus
erros do passado. Empolgada, Glória convence Macabéa a visitar a
cartomante ainda que esta desconhecesse sua função. O encontro entre a
vidente e a jovem nordestina sela o destino da segunda. Diante das falsas
previsões, a moça imagina-se em um futuro auspicioso ao lado de um rapaz
bonito, rico e amoroso.
Macabéa acredita piamente em todas as afirmações de sua vidente.
O ar desconfiado do início da sequência abre espaço para a excitação e
confiança no futuro que se avizinha. No entanto, no final da consulta,
Carlota afirma que vê “Uma luz. Uma estrela brilhante. Uma estrela”. É
nesse aspecto que a falha na previsão se insinua.
Macabéa sai da casa da vidente com o semblante alegre. As
revelações despertam na jovem nordestina uma força até então não
reveladas. A palavra tem grande poder. Decidida a começar uma nova
etapa de sua pobre existência, ela solta os cabelos, os passos são firmes,
ela segue destemida em relação ao futuro predito. A ar cabisbaixo e os
ombros curvados descritos na apresentação da personagem dão lugar a
cabeça erguida, o nariz levemente empinado, a espinha ereta. Nesse ponto,
o trabalho feito no que se refere à expressão corporal dos atores se mostra
atento e com efeitos claros nas cenas.
O desfecho do filme é o mesmo do livro, com a reprodução dos
detalhes descritos nas páginas. Distraída, Macabéa não percebe o sinal
fechado (uma metáfora de sua vida limitada, sem a esperança do sinal
verde para uma vida plena). O carro importado que segue em velocidade
tampouco enxerga as pobres moças que atravessam o seu caminho. A
morte de Macabéa é o desfecho de uma vida repleta de nãos, de falta e de
limitações de toda sorte. A atitude do atropelador também revela muito
sobre a sociedade e o tempo em que vivemos: fechado em seu carro caro e
estrangeiro, alheio ao que se passa ao redor, incapaz de ver as pessoas que
transitam diante de si, ele atropela a moça e foge indiferente ao destino
que contribuiu para selar. Macabéa fica para trás, sozinha como sempre
esteve, agonizando no chão duro da cidade. O sangue rubro escorre pela
boca. Há uma revoada de pássaros. Deitada em posição fetal, a jovem

66
morre ao lado de chumaços de capins que teimam em nascer no meio das
pedras.

Conclusão

Nesta reescritura da obra de Clarice Lispector, a diretora Suzana


Amaral teve a habilidade e o talento de transpor para as telas o texto de
partida, com poucas alterações no enredo, sem abster-se de deixar sua
marca pessoal.
No filme, as mulheres ganham destaque e as personagens
secundárias (Glória, Madame Carlota e até mesmo as companheiras de
quarto de Macabéa) expõem suas vozes. Em seus discursos, é possível
identificar a opressão exercida pela sociedade machista que impõe
modelos de comportamento e exigem que as mulheres sigam padrões de
beleza e de conduta.
Em suas falas, as personagens abordam temas comuns no
quotidiano das mulheres como liberdade sexual, aborto, relacionamentos
abusivos. Através de um olhar feminino e feminista, Suzana Amaral
reescreveu a obra de Clarice Lispector mantendo as questões que
permeiam a existência de Macabéa e de tantas mulheres brasileiras que
vivenciam as opressões quotidianas tanto no plano pessoal quanto
profissional. De forma sensível e bem-sucedida, a diretora combinou ficção
e realidade em seu primeiro longa-metragem, uma característica que
também estará presente em suas produções posteriores.

Referências

ÁVILA, Maria Betânia. Modernidade e cidadania produtiva. In: BUARQUE DE HOLLANDA,


Heloísa. Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do
tempo, 2019, p. 163-176.
CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. São Paulo: Cidade: Perspectiva, 2007.
LEFEVERE, André. Tradução, reescrita e manipulação da fama literária. Tradução de
Claudia Matos Seligmann. Bauru: Edusc, 2007.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro, Rocco, 2017.

67
Filmografia
A Hora da estrela. Direção: Suzana Amaral. Roteiro: Alfredo Oroz. São Paulo. Produtora
Raiz Filmes. Embrafilme. 1985. Color. DVD. 98 min. Son. 35 mm.

68
Ela precisa de sapatos novos
ou a sexualidade feminina em Clarice Lispector

Luciana Braga14

Preciosa rotina

“Preciosidade” é o oitavo conto da coletânea intitulada Laços de


Família, publicada em 1960. Se por um lado, este conto é dedicado à
grande amiga de Clarice, Mafalda Veríssimo, a quem, com seu esposo Érico
Veríssimo, Clarice convidaria para serem padrinhos de seus filhos; por outro
lado, em depoimento na seção “Fundo de gaveta” publicada inicialmente
no livro A legião estrangeira (1964) e resgatado por Benjamin Moser na
obra Todos os contos, publicada em 2016, sobre a feitura do conto, Clarice
diz:

“Preciosidade” é um pouco irritante, terminei antipatizando com a menina e


depois pedindo-lhe desculpas por antipatizar, e na hora de pedir desculpas tendo
vontade de não pedir mesmo. Terminei arrumando a vida dela mais por
desencargo de consciência e por responsabilidade que por amor. Escrever assim
não vale a pena, envolve de um modo errado, tira a paciência. Tenho a impressão
de que, mesmo se eu pudesse fazer desse conto um conto bom, ele
intrinsecamente não prestaria. (LISPECTOR, 2016, p.645).

É bem provável que esse depoimento tenha estimulado o desejo de


aprofundar a leitura dessa narrativa pouco explorada ainda pela crítica
literária especializada. Clarice diz que esse conto não é bom, que ele não
presta, assim como disse que a obra A Via Crucis do Corpo (1998) é lixo. É
preciso ler essas obras que os autores aparentemente rejeitam. Talvez eles
não estejam rejeitando, mas tentando seduzir o leitor a ler atentamente
essas obras e se questionarem. Em A Via Crucis do Corpo (1998) temos um
retrato forte do humano e do erótico, em “Preciosidade” também, pois em
ambas obras a violência está presente e ela nem sempre agrada o leitor,
mas acredita-se que a presença dela diz muito sobre a forma como o ser
14 Mestra em Letras (Literatura Comparada), Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail:
[email protected].

69
humano entra em contato com o outro, já que nem sempre é por uma via
segura, tendo em vista que a transgressão é, muitas vezes, também
violenta.
O conto se inicia revelando a rotina vivida pela adolescente de
quinze anos não nomeada. Cada dia é vasto, longo, devagar, assim como os
olhos da menina que não era bonita. Ser feia aos quinze anos é mais que
antipatia da criadora, é crueldade. Se em “Felicidade Clandestina”, no auge
da infância, uma menina sofre por não se enquadrar nos padrões sociais,
na adolescência, esse sofrimento é ampliado ao ponto de provocar nessa
adolescente o desejo de se fechar para si e para o mundo, dificultando o
conhecimento de sua sexualidade aflorada nessa idade.
Entretanto, conforme a narradora, apesar da feiura, havia “por
dentro da magreza, a vastidão quase majestosa em que se movia como
dentro de uma meditação. E dentro da nebulosidade algo precioso. Que
não se espreguiçava, não se comprometia, não se contaminava. Que era
intenso como uma joia. Ela” (LISPECTOR, 2009, p. 82).
É a terceira vez em cinco linhas que Clarice utiliza o vocábulo vasto,
é uma palavra repetida “a todo transe” no dizer de Barthes (2015, p.51),
primeiro como adjetivo se referindo ao dia, depois como advérbio
indicando o modo como a protagonista abre os olhos e agora como
substantivo para indicar algo que existe dentro da menina. Há, portanto,
um desejo de chamar a atenção para algo grandioso dentro da pequenez
de uma adolescente de quinze anos. Algo tão imponente como o dia que se
anuncia com o raiar do sol, ou como o abrir dos olhos que denotam mais
uma jornada de vida. Esse algo vasto, grandioso, imponente, secreto, reside
dentro dessa menina se movendo “dentro de uma meditação”, ou seja,
esse elemento quase não se move e quase não é visto porque fica dentro
da “nebulosidade”. Esse mistério anunciado ao raiar do dia é a virgindade
da menina que não se espreguiça, não se compromete, nem se contamina,
é a pureza desse ser que se esconde na repetição das palavras e dos dias.
Segundo Freud (2018), a virgindade é encarada por grande parte da
sociedade como um tabu, isto é, um interdito. Para ele, a exigência de que
a mulher se mantenha virgem até o casamento, por exemplo, proibindo
que a mulher leve qualquer lembrança de uma relação sexual com outro
homem que não seja o seu futuro esposo é, na verdade, uma “persistente

70
continuação do direito à posse exclusiva de uma mulher, o que constitui a
essência da monogamia, a extensão desse monopólio ao passado” (FREUD,
2018, p. 155). Em outras palavras, a valorização da virgindade não é uma
atitude que demostre respeito pela mulher ou pelo corpo feminino, mas
uma tentativa de tomar posse não só da mulher e de seu corpo, mas de
suas experiências sexuais.
Relacionando esse ponto de vista freudiano ao conto de Clarice,
percebe-se o peso da virgindade sobre a protagonista. O peso é tamanho
que a autora utiliza um vocábulo que denota algo especial, valioso, caro, e,
sobretudo, raro. Ser virgem aos quinze anos é manter intacta sua memória
sexual. É não possuir ainda nenhuma experiência sexual para reprimir ou
relembrar. Ser feia aos quinze, então, pode ser uma espécie de fuga da
personagem ou proteção. Afinal, sem a beleza, seu bem mais precioso
continuaria resguardado na vastidão do seu ser. Contudo, beleza é um
aspecto bastante variável e nem sempre levado em consideração. Dessa
forma, o pronome pessoal “Ela” que é colocado sozinho na frase pode se
referir ao mesmo tempo à preciosidade, isto é, a virgindade da menina, ou
a própria protagonista que, assim como esse pronome, também vive de
forma isolada e solitária. Afinal, ela acordava antes de todos para ir à
escola.
O percurso da casa para a escola é bastante simbólico e lembra o
caminho que a protagonista de “Os Laços de Família”, Catarina, faz da
estação para seu apartamento. Estar sozinha para ambas é estar consigo
mesma e é, portanto, um momento propício ao devaneio. Em
“Preciosidade”, devaneio não é um momento de felicidade, imaginação e
criatividade, é como um interdito, um crime, é como se a personagem
roubasse esse momento consigo para se sentir mais leve. Segundo Freud,
“[...] a pessoa feliz nunca fantasia, somente a insatisfeita. As forças
motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos e toda fantasia é a
realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória” (FREUD,
1996, p.137). Dessa forma, a fantasia ou devaneio da protagonista é, na
verdade, um desejo de alterar sua realidade e transformá-la em algo mais
satisfatório para ela. No entanto, essas fantasias só eram permitidas se
“ninguém olhasse para ela”, pois a detentora da preciosidade não se sente
capaz de conviver com os demais de maneira simples. Tornar-se mulher é

71
complexo, é solitário, é quase um crime e essa menina não quer
testemunhas durante seu difícil processo.
Conforme Moraes e Lima em “Inquietudes de ser mulher em Laços
de Família”, a personagem do conto em questão é fragmentária e apresenta
conflitos entre o Ser versus Parecer (MOARES; LIMA, 2012, p. 359). Ou seja,
os quinze anos deveriam indicar o início do processo de “ser mulher”, mas
ela não parece mulher, ela ainda é uma menina. Ela ainda guarda sua
preciosidade e seu riso dos outros. Ela se esquiva dos olhares assim como
das transformações do seu corpo. Se a menina de sete anos de “Restos do
Carnaval” já se mostrava tão pronta para usar batom vermelho e se vestir
de rosa, essa adolescente de quinze anos ainda não sabe ser, parece que
assim como Lóri, ela não sabe ter corpo. Se ela era, também não sabia ser
nem parecer. Enquanto Lóri inicia sua aprendizagem no banho do mar, a
protagonista de “Preciosidade” mente para si mesma que não há tempo
para tomar banho. Nesse ponto ela se distancia de Lóri e se aproxima de
Miss Algrave com medo de ver o seu próprio corpo nu, pois, para Bataille,
“a mulher nua está próxima do momento de fusão, que sua nudez anuncia”
(2017, p.155).
Dessa forma, o corpo nu é um corpo pronto para a vivência da
experiência da continuidade já anunciada no Banquete (1987), de Platão,
mas a adolescente em questão não está pronta para largar a infância e
observar seu corpo em processo de tornar-se mulher. Não é só uma fuga da
aparência que ela julga feia, mas uma fuga do próprio corpo, do seu eu que
ela prefere esconder, assim como esconde sua preciosidade. O banho
envolve a água e a menina rejeita tudo que é líquido, fluído, erótico. Até o
pão que ela se alimenta é duro e não amolece a manteiga, duro como seus
lábios em contato com o frio da manhã.
Benedito Nunes, em O Drama da Linguagem (1995), afirma:

as coisas exercem uma fascinação contínua sobre os personagens de Clarice


Lispector, insinuando-se a experiência interna em momentos de pausa
contemplativa, que proporcionam, independente do entendimento verbal e
discursivo, um saber imediato arraigado à percepção em estado bruto (1995,
p.123).

72
Podemos perceber essa influência das coisas na personagem na
figura do “ônibus trêmulo” (LISPECTOR, 2009, 83), metáfora dela mesma.
Ao se avistar o ônibus, percebe-se o estado interno da personagem. Ela o
contempla e teme, porque ele é o outro e quando o outro se aproxima
dela, é a si que ela enxerga. A simples ideia de que ela poderia encontrar
alguns homens dentro do ônibus faziam do ato de levantar o braço para
pará-lo uma representação de poder, porque o outro aqui também é
transporte de vários outros.
Ela tinha o poder de parar o ônibus, mas se tremia de medo de
parar também os olhares dos homens. E acima de tudo, ela tem “medo que
lhe ‘dissessem alguma coisa’, que a olhassem muito.” (LISPECTOR, 2009,
p.83). Entretanto, acredita-se que esse medo de ser desejada não é o medo
de ser o objeto de desejo do outro, mas é o medo de se reconhecer como
um objeto de desejo, é o medo de se ver como uma mulher bonita e
desejável, vulnerável demais para manter sua preciosidade em segurança.
A pulsão do olhar, segundo Freud, “é autoerótica no início de sua atividade,
ou seja, ainda que tenha um objeto, ela o encontra no próprio corpo.”
(2017, p.41). Essa menina se sente incapaz de encontrar o objeto de desejo
no próprio corpo, pois ela não busca um corpo análogo ao dela, porque
sequer observa seu próprio corpo, foge de sua imagem, como quem foge
do pecado ou do desejo. No entanto, parece que quanto mais ela tenta se
afastar da pulsão, mais seu corpo inteiro se erotiza ainda que ela negue e
afaste de si qualquer sensação de gozo, como um banho ou um olhar ou
palavra que indique desejo do outro.
O que a poupava disso tudo é que, por enquanto, os homens não a
notavam, mas essa situação estava prestes a mudar, conforme podemos
ver no seguinte trecho: “À medida que dezesseis anos aproximava em
fumaça e calor, alguma coisa estivesse intensamente surpreendida – e isso
surpreendesse alguns homens” (LISPECTOR, 2009, p.83). Destaca-se que os
dezesseis anos se aproximam em fumaça e calor ao invés do frio que
endurecia seus lábios pela manhã. Essa mudança de clima indica também
uma mudança de corpo, a infância cristalizada nela está cedendo pouco a
pouco lugar à efervescente juventude. Essa “alguma coisa” é a sexualidade
se anunciando em seu corpo e sendo notada por alguns homens surpresos.
Para Bataille, a imagem da mulher desejável anuncia suas partes peludas e

73
animais. “O instinto inscreve em nós o desejo por essas partes” (BATAILLE,
2017, p.167). Em outras palavras, ainda que o homem tente se manter
afastado dos animais, como se isso fosse de fato possível, o desejo erótico
devolve ao homem a sua animalidade.
A literatura de Clarice contribui nesse aspecto para que o leitor
possa evidenciar o mesmo que Maria Esther Maciel (2016) diz sobre a
poesia de Derrida que desconstrói os chamados “próprios do homem”, à
medida que possibilita também:

evidenciar que a travessia das fronteiras entre as esferas humana e não humana
consiste em reconhecer, ao mesmo tempo, as diferenças que distinguem os
homens dos outros animais e a impossibilidade de essas diferenças serem
mantidas como instâncias excludentes, uma vez que os humanos precisam se
aceitar como animais para se tornarem humanos. (MACIEL, 2016, p.47).

O problema é que a protagonista de “Preciosidade” não aceita nem


seu lado animal nem humano, porque ela não se aceita como mulher. Ela
ainda não é capaz de ser. Assim, ela evita o outro de todas as formas,
porque sem o contato do outro ela se sente segura como uma rotina
seguida exatamente igual todos os dias. “Ela fazia mais sombra do que
existia” (LISPECTOR, 2009, p.84), isto é, ela é um ser quase, vive à deriva do
não existir, mas a sua apatia pela vida não a joga no abismo da morte, pois
ela se conforma em apenas “parecer” que existe.
No ônibus, ela é silêncio, os operários são silenciosos, tudo é
“riqueza distribuída e silêncio.” A única riqueza dentro daquele ônibus era a
preciosidade dela, embora ela confesse um desconforto, deve haver algum
orgulho em possuir algo que os outros não possuem. Seu silêncio, porém,
não é capaz de guardar o seu segredo, todos, desde os estranhos aos seus
familiares “sabiam” que ela era esse ser complexo à deriva do existir, mas
só se pode dizer o que se compreende. Clarice assinala no texto que todos
sabem, mas nas entrelinhas entende-se que não há compreensão porque
há silêncio. Sobre o silêncio, Maria Lucia Homem (2012, p.34) diz que há
uma diferença em calar o que não se pode dizer e calar o que se supõe já
dito. No conto, acredita-se que o silêncio da personagem ora é interditado
por ela mesma e ora é uma ideia de que tudo está subentendido. Talvez o

74
silêncio só seja cortado pelo som simbólico dos sapatos da menina, uns
“sapatos com dança própria” (LISPECTOR, 2009, p. 84).

Os sapatos com dança própria

Os sapatos da menina ganham destaque logo após a chegada dela à


escola e diferente do que se pode pensar, eles não são iguais aos outros. Os
sapatos da protagonista detêm a personalidade que a menina busca
esconder e silenciar diante dos outros. Os “sapatos com dança própria”
representam o movimento desse corpo imobilizado no dizer de Elódia
Xavier (2007). Ao avançar na narrativa, percebe-se que

Era feio o ruído de seus sapatos. Rompia o próprio segredo com tacos de
madeira. Se o corredor demorasse um pouco mais, ela como que esqueceria seu
destino e correria com as mãos tapando os ouvidos. Só tinha sapatos duráveis.
Como se fossem ainda os mesmos que em solenidade lhe haviam calçado quando
nascera. (LISPECTOR, 2009, p.84).

Compreende-se que a feiura do ruído dos sapatos se assemelha a


feiura da própria menina, mas o que a incomoda de fato não é o simples
som, mas o fato de ele denunciar a sua chegada e impossibilitar a sua
passagem de forma despercebida. O ruído dos sapatos denuncia a presença
do corpo que ela tanto renuncia. O conflito entre o eu e o outro é tão forte
nesse conto, que o eu, a menina, sente vontade de correr tapando os
ouvidos para não entrar em contato com o outro, representado pela
presença do masculino, seus colegas de escola. É importante salientar a
durabilidade de seus sapatos como metáfora de sua infância. Ao visualizar
o conflito da personagem e seu desespero, percebe-se o pânico que ela
possui ao sequer imaginar sair da infância. Dessa forma, esses sapatos que
parece que a acompanham desde o seu nascimento são referência de uma
fase que ela está lutando para não abandonar. Ela interdita a si e aos
outros, porque impede-os de pensar, foge da companhia, das palavras e
dos possíveis olhares. Ela foge do mundo, daí a grandiosa importância dos
seus devaneios.

75
Esse conflito existencial é justificado porque “ela era tratada como
um rapaz” (LISPECTOR, 2009, p.85). Como exigir de uma menina que aceite
seu corpo de mulher, as marcas de sua sexualidade, se ela sequer é tratada
como tal? Talvez a inteligência dela na escola também fosse um escudo
para que ninguém notasse o quanto ela era feminina ou fosse uma fonte de
prazer não declarada, afinal, conforme Freud, o trabalho intelectual, tanto
em jovens como em adultos, “acarreta uma excitação sexual concomitante,
que talvez seja o único fundamento justificado para a – de resto, duvidosa –
atribuição de transtornos nervosos ao ‘excesso de trabalho’ mental”
(FREUD, 2016, p.117). O fato dela desabar quando não consegue fazer um
risco simétrico em seu caderno reforça essa segunda ideia que é
complementada nos seus infinitos desenhos de estrelas até a exaustão.
No retorno para casa, ela acreditava que a fome que a dominava a
deixava ainda mais feia e invisível, comparada a carne escura dos animais
de caça. Mais uma vez, pode-se estabelecer um paralelo entre o humano e
o animal, em que a protagonista não se sente, na verdade, como um animal
de caça, mas como a própria caça, embora ela é que esteja faminta. Em
casa, ela come como um centauro, figura pertencente à mitologia grega
formado por metade homem e metade cavalo. Não se pode negar a grande
presença dos animais na obra de Clarice Lispector. O cavalo, por exemplo já
aparece em Perto do Coração Selvagem (1998), romance inaugural da
autora, em que o animal se configura como uma representação da
liberdade almejada pela personagem Joana. Conforme se pode observar no
seguinte trecho da obra:

O cavalo de onde eu caíra esperava-me junto do rio. Montei-o e voei pelas


encostas que a sombra já invadia e refrescava. Freei as rédeas, passei a mão pelo
pescoço latejante e quente do animal. Continuei a passo lento, escutando dentro
de mim a felicidade, alta e pura como um céu de verão. Alisei meus braços, onde
ainda escorria a água. Sentia o cavalo vivo perto de mim, uma continuação de
meu corpo. Ambos respirávamos palpitantes e novos (LISPECTOR, 1998, p.71).

Em Perto do Coração Selvagem, o cavalo é “continuação do corpo”


de Joana, sendo assim, Joana é metaforicamente um centauro também,
ambas as meninas encontram no cavalo a velocidade, a força, o desejo de ir
além. Esse outro não é um oposto a elas, mas é a partir da imagem do

76
cavalo que entendemos a personalidade dessas duas meninas que anseiam
a liberdade de uma cavalgada no marasmo de seus dias. Adiante, ela repete
três vezes para si como um mantra “Sou vigorosa, sou vigorosa, sou vigora”
(LISPECTOR, 2009, p.86), porém vigoroso é o centauro ou o cavalo, ela não
assume esse vigor, tanto que se prende à contagem, mas não ao sentido
real da palavra. Como centauro, ela assume inevitavelmente sua parte
humana e é com essa parte que ela entra em conflito. A menina acredita
que repetindo o adjetivo mencionado eliminará a rejeição da sociedade
sobre ela e a sua própria rejeição. Ela repete na esperança de que essa
mentira se torne verdade.
No entanto, na madrugada seguinte, ela sofreria uma grande
transformação e, por isso, não é como um centauro que ela acorda, mas
como uma avestruz. Não é mais a ideia do cavalo tão pertinente ao
universo masculino, mas a ave feminina e avestruz por possuir a
característica marcante de esconder a cabeça. Ela também queria enfiar a
cabeça na terra e passar despercebida pelo mundo. Ela se recolhe e se
inibe como uma forma de evitar o desprazer. Por enquanto, ela era a
“princesa do mistério intacto”, apenas por enquanto, pois ela errara o ritual
e esse erro custará sua vida inteira. Ela pensou que estava caminhando
sozinha para a escola, como sempre fazia, mas “não, ela não estava
sozinha. Com os olhos franzidos pela incredulidade no fim longínquo de sua
rua, de dentro do vapor, viu dois homens. Dois rapazes vindo.” (LISPECTOR,
2009, p.87). Esse momento em que a personagem vê os dois homens ao
longe vindo em sua direção representa o simbólico momento de contato
com o outro. Ela que vivia ensimesmada, presa em sua condição de menina
quase mulher, ansiosa por passar despercebida pelos homens, será notada.

A sexualidade feminina

A busca por entender a sexualidade feminina, feminilidade e o


sofrimento feminino são temáticas centrais na obra freudiana. As duas
primeiras são muitas vezes utilizadas como sinônimas, mas designam
aspectos diferentes. Sobre a diferença entre sexualidade feminina e
feminilidade, conforme Maria Rita Kehl no posfácio da obra intitulada
Amor, sexualidade, feminilidade, de Freud:

77
enquanto o primeiro diz respeito a questões ligadas ao erotismo e ao gozo
feminino (e os obstáculos sintomáticos a ele), o segundo analisa a feminilidade
como modo de a mulher habitar seu corpo, simbolizar sua castração e fazer da
falta (de pênis) condição de desejo pelo homem (KEHL, 2018, p. 361).

É evidente que a estudiosa se apoia nos estudos freudianos sobre a


vida sexual da mulher, em que ele elabora uma divisão em duas fases, a
primeira com um caráter masculino e a segunda especificamente feminina.
A protagonista de “Preciosidade” confundida com meninos, comparada
com um centauro, está saindo dessa primeira fase e inicia agora a segunda.
Freud não conseguiu desvendar biologicamente o que se passa no corpo da
mulher durante essa transição. Talvez a personagem clariceana esteja
vivenciando essa transição de forma tardia e traumática, daí o pedido de
desculpas da autora provavelmente pelo que será narrado adiante.
Ela sabia que eles iriam olhá-la, porque ela havia errado os minutos
e não havia mais ninguém além dela. Foi quando começou a dança dos
sapatos deles:

Os sapatos dos dois rapazes misturavam-se ao ruído de seus próprios sapatos, era
ruim ouvir. Era insistente ouvir. Os sapatos eram ocos ou a calçada era oca. A
pedra do chão avisava. Tudo era oco e ela ouvia, sem poder impedir, o silêncio do
cerco comunicando-se pelas ruas do bairro, e via, sem poder impedir, que as
portas mais fechadas haviam ficado. Mesmo a estrela retirara-se. Na nova palidez
da escuridão, a rua entregue aos três. Ela andava, ouvia os homens, já que não
poderia olhá-los e já que precisava sabê-los. Ela os ouvia e surpreendia-se com a
própria coragem em continuar. Mas não era coragem. Era o dom. e grande
vocação para um destino. Ela avançava, sofrendo em obedecer. Se conseguisse
pensar em outra coisa não ouviria os sapatos. Nem o que eles pudessem dizer.
Nem o silêncio com que cruzariam (LISPECTOR, 2009, p.88).

Os sapatos no conto são metonímia dos corpos. Os sapatos que


cobrem os pés da protagonista e a acompanham todos os dias da casa para
a escola parecem ter sido colocados nela quando ela nasceu. Os sapatos
são, ao mesmo tempo, um elo com o passado, a infância, e com o futuro, a
adolescência. O som sapatos dos rapazes se misturam ao som dos sapatos
dela, porque em um momento os corpos também estarão misturados, a

78
preciosidade será perdida no final dessa dança violenta e erótica. A
narradora afirma que tudo é oco, o chão, os sapatos, mas acredita-se que
também a menina é oca, vazia, isenta de contato com o outro. Ela não os
observa, mas ela se coloca em questão e os coloca em questão, essa
atitude não é coragem, mas a certeza de estar diante de uma situação
transgressora. Ela sofre porque construiu interditos que estão prestes a
serem rompidos e de toda a angústia que a ansiedade produz, ela se
concentra nos sapatos, seu elo com a infância.
Ela pensa em fugir, mas no fundo sabe que estaria fugindo de si
mesma, seu corpo repele e anseia pelo contato. Além disso, eles ainda
poderiam correr atrás dela e tornar a experiência ainda mais longa. Ela
queria fechar os olhos e não ouvir mais o som dos sapatos deles. Queria
dizer para si que foi tão rápido que ela não sentiu, mas a experiência sexual
é tudo menos rápida dentro da gente. A aproximação final, o toque, a
violência são descritos com as seguintes palavras, também ocas:

O que se seguiu foram quatro mãos difíceis, foram quatro mãos que não sabiam o
que queriam, quatro mãos erradas de quem não tinha a vocação, quatro mãos
que a tocaram tão inesperadamente que ela fez a coisa mais certa que poderia
ter feito no mundo dos movimentos: ficou paralisada (LISPECTOR, 2009, p.90).

Observa-se que a violência se dá de tal modo que o corpo da


menina fica imobilizado, pois ela viveu tanto tempo fugindo dos olhares
dos outros e sobretudo do toque que acabou impondo a si mesma uma
disciplina de animal sacrificado. Ela é incapaz de tomar qualquer iniciativa,
ela é, no dizer de Elódia Xavier (2007), um corpo imobilizado. Imóvel pelo
medo, pela culpa, pelo desejo, pelo próprio ser mulher. Sua existência é o
seu fardo. O texto de Clarice dá a entender que eles também estavam
iniciando nessa prática violenta. Eles se iniciam sexualmente pelo ato
erótico da violência e ela se inicia pelo medo e pela culpa que ela se impõe
por ter saído mais cedo, pelo som de seus sapatos e por não ser invisível
aos olhos dos homens. Talvez o que mais imobiliza o corpo dessa menina-
mulher é a consciência tardia de que seu corpo feio também atrai a
atenção masculina, também é um objeto de desejo.
A alegoria dos sapatos continua mesmo depois da fuga dos rapazes:

79
Ficou de pé, ouvindo com tranquila loucura os sapatos deles em fuga. A calçada
era oca ou os sapatos eram ocos ou ela própria era oca. No oco dos sapatos deles
ouvia atenta o medo dos dois. O som batia nítido nas lajes como se batessem à
porta sem parar e ela esperasse que desistissem. Tão nítido na nudez da pedra
que o sapateado não parecia distanciar-se: era ali a seus pés, como um sapateado
de vitória (LISPECTOR, 2009, p.90).

O devaneio da menina é puramente erótico. Ela é o objeto de


desejo usado e abandonado, roubada, violentada, oca. O som que batia nas
lajes também bate nela, dentro dela. Ela é a porta que não se abre com
esperança que desistam. Ela é a porta imóvel, é esse corpo oco que se abre
para os outros entrarem e passarem por ele. Ela é essa pedra nua que
recebeu o sapateado dos homens. Ela é o corpo imolado, um corpo sem
seus antigos mistérios, sem sua pura virgindade. Quando ela entende isso,
o som desaparece como se tivesse se transformado em um som suave de
castanholas. O som sede lugar ao silêncio. Ela apanha seus pertences
caídos no chão e vê seu caderno aberto com uma “letra redonda e graúda
que até esta manhã fora sua” (LISPECTOR, 2009, 91). Ela já não reconhece
sua letra porque ela havia mudado e descoberto seu segredo maior, sua
sexualidade.
Segundo Gilda Plastino, sobre o discurso da falta em Laços de
Família (2009), “há vários motivos recorrentes, dentre eles o ‘vazio’, a
sensação de que a torrente da vida estancou, a solidão, a ausência de si
mesmo, que conotam a sensação de falta e perda” (PLASTINO, 2008,
p.144). Essa sensação é fortemente percebida quando a personagem pede
licença e vai ao lavatório e rompe o silêncio com um grito “Estou sozinha no
mundo! Nunca ninguém vai me ajudar! Nunca ninguém vai me amar! Estou
sozinha no mundo!” (LISPECTOR, 2009, 92). Talvez esse momento de
histeria seja motivado pela perda da preciosa virgindade, ou seja, a
consciência de ter se tornado mulher. A psicanálise não foi capaz de dizer o
que é uma mulher, mas Freud dedicou anos de sua vida investigando como
uma menina se torna mulher. Provavelmente a personagem se tornou
mulher no ato da violação do seu corpo ou na consciência tardia de que ela
tinha um corpo desejável que a deixava a deriva do medo e dos homens.
Ela perdeu sua preciosidade e grita que agora é sozinha no mundo, mas no

80
seu interior ela sabe que sempre foi sozinha, porque a solidão era a
condição que ele impôs para a sua própria existência.

Conclusão

Após tomar consciência das transformações que essa experiência


sexual do contato com o outro havia feito nela, a menina, agora moça,
decide que precisa cuidar mais de si. Ela já não é mais a garotinha feia que
sai sem tomar banho para ir à escola. Agora ela sabe que ela vê os homens
e eles a enxergam. “Uma pessoa não é nada”, é o que ela sussurra para si
em protesto, “Uma pessoa é alguma coisa” é o que ela diz com gentileza,
mesmo sem acreditar em suas palavras. Clarice diz que arrumou a vida
dessa personagem. Talvez por fora uma mulher esteja mesmo sempre bem
arrumada, mas por dentro há sempre algo de oco, de misterioso, algo
quebrado.
A solução da menina para suprir a perda da preciosidade foi a
exigência de sapatos novos. Esse desejo final é a metáfora do abandono
derradeiro da infância e o início de uma vida inteira como mulher ou como
fênix, afinal ela renasceu das cinzas, ela juntou suas coisas e caminhou
sozinha até a escola. Toda mulher deixa de ser preciosa um dia, mas a fênix
sempre se renova após a morte.

Referências

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BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução Fernando Scheibe. 1. ed. 2ª reimp. Belo
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1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.

81
FREUD. Sigmund. Obras completas: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise
fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). vol. 6,
Tradução: Paulo César de Souza. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras: 2016.
HOMEM, Maria Lucia. No limiar do silêncio e da letra. São Paulo: Boitempo/ Edusp. 2012.
KEHL, Maria Rita. Posfácio: Freud e as mulher. In: FREUD, Sigmund. Amor, sexualidade,
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__________, Clarice. A Via Crucis do Corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
__________, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco. 1998.
__________, Clarice. Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
__________, Clarice. Todos os contos/ Clarice Lispector; organização de Benjamin Moser.
– 1ª edição – Rio de Janeiro: Rocco, 2016.
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MORAES, Vera; LIMA, Maria Elenice Costa. “Inquietudes de ser em Laços de Família”. In.
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XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? o corpo no imaginário feminino. Florianópolis: Ed.
Mulheres, 2007.

82
A fruta do mundo era ela:
a maçã em Clarice Lispector

Tayla Maria Leôncio Ferreira15

Introdução

A obra de Clarice Lispector tem uma forma especial de resgatar as


entranhas das personagens, feita através de uma linguagem extremamente
original, rica de imagens, em que as palavras estão sempre em processo
constante de modificação do sentido delas mesmas, revelando o traço
inventivo e poético da autora. Em O Drama da Linguagem: uma leitura de
Clarice Lispector (1973), Benedito Nunes afirma que desde Perto do
Coração Selvagem vemos definir-se uma união íntima entre a existência e a
linguagem, na perspectiva de duas questões que se entrelaçam: a
identidade pessoal e o Ser (1973, p. 132). A prosa da autora mostra a alma
humana a partir de profundos questionamentos que conduzem a
linguagem à sua própria reinvenção, ao desnudamento do que é o ser e à
relação com o mundo à sua volta.
Dentre as obras publicadas pela autora, a escolhida para elaboração
dessa pesquisa é seu sexto romance, Uma Aprendizagem ou O Livro dos
Prazeres (1998), publicado originalmente em 1969. Na obra, Loreley, ou
simplesmente Lóri, conhece Ulisses, professor de filosofia, numa noite em
que esperava um táxi e ele lhe oferece uma carona. Após conhecê-lo, eles
passam a se encontrar, e Ulisses provoca Lóri a fazer uma travessia em
direção a si mesma, desenvolvendo uma busca de aprendizado, pois ela
amava pela primeira vez e tinha que passar pelo processo de aprendizagem
desse novo sentimento. Ulisses surgira-lhe como uma espécie de tábua de
salvação, queria dele o desejo e a liberdade: “ser tão protegida a ponto de

15 Mestra em Letras (Literatura comparada), Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail:


[email protected].

83
não recear ser livre: pois de suas fugidas de liberdade teria sempre para
onde voltar” (LISPECTOR, 1998, p. 19).
Para Lóri, tudo está por acontecer. Tudo se constrói lentamente,
desdobrando-se o “eu” numa trajetória construída a partir de escolhas e
descobertas. Seu gosto de “ser” é encontrar na figura externa os ecos da
figura interna. A narrativa desenrola-se num prazer individual que remete
ao prazer do outro e concretiza o próprio mistério pela releitura de si
mesmo. Em Lóri, as faces do erotismo se manifestam pela aprendizagem
dos prazeres: o prazer da descoberta da eroticidade enclausurada, o prazer
de ser, “apesar de”. Ela tenta refazer os laços que interrompera com o
mundo, restaurando as formas de conectar-se com o universo ao seu redor.
Isto ocorrerá a partir do momento em que lhe torna possível entregar-se às
experiências simples de seu cotidiano, como um mergulho inesperado no
mar, ou a mera contemplação de frutas maduras na feira. Vivenciadas como
um milagre, cada uma dessas experiências cotidianas permitirão a Lóri
exprimir uma vasta gama de sensações, perpetuadas de erotismo. Na
experiência de comer a maçã, o que então é experimentado por ela? Que
tipos de interpretações míticas, psicanalíticas e históricas o ato de comer e
a representação da maçã podem adquirir e o que elas nos dizem sobre a
aprendizagem do desejo?
São essas as principais questões que direcionam a escrita desse
trabalho, que tem como principal objetivo discutir a representação da maçã
no romance Uma Aprendizagem ou O livro dos Prazeres. Lóri e Ulisses são
envolvidos por um intenso desejo, e Ulisses mostra Lóri o caminho do
autoconhecimento para que ela se afirme como mulher e possa também
desejar. Nesse percurso, são as aprendizagens de Lóri que a farão entrar em
contato com a possibilidade de existir através do prazer. E uma dessas
aprendizagens é o momento em que ela come uma maçã.

Comer o fruto do desejo

No início do livro, logo na primeira página a imagem da maçã


aparece quando Lóri “fora à cozinha para arrumar as compras e dispor na
fruteira as maçãs que eram a sua melhor comida, embora não soubesse
enfeitar uma fruteira, mas Ulisses acenara-lhe com a possibilidade futura

84
de por exemplo embelezar uma fruteira” (LISPECTOR, 1998, p. 13). As
maçãs são as frutas preferidas de Loreley, o que demonstra inicialmente
sua incapacidade de apuro estético, pois ela não consegue sequer organizar
uma fruteira. E representa também a sua inabilidade de lidar com seu
desejo, ela não consegue arrumá-lo, organizá-lo, expressá-lo bem.
O escritor Garcia-Roza explica que “o sujeito surge somente a partir
do desejo. É pela ação de assimilar o objeto que o homem se vê como
oposto ao mundo exterior. O primeiro desejo é um desejo sensual: o desejo
de comer” (GARCÍA-ROZA, 2005, p. 141). Ou seja, para que Lóri se
reconhecesse como mulher desejante, ela demonstra o desejo através da
comida, que no livro surge a partir da maçã. Ainda, Segundo Nadiá Ferreira,
“come-se não só para a manutenção da vida e para eliminar o desprazer
provocado no organismo pela fome, mas também por gozo” (FERREIRA,
2004, p. 17). Ao retomar as ideias construídas por Freud, Nadiá Ferreira faz
um percurso investigativo sobre as teorias do amor na psicanálise,
explicando que no sujeito as primeiras demonstrações de amor e desejo
estão ligadas à fome. Tanto que, a mãe, por possuir a fonte de alimento da
criança, passa a ser o seu primeiro objeto de desejo. O comer, dessa forma,
se associa diretamente com as sensações de prazer, pois o desejo em Freud
nada mais é que a tentativa de sair de uma sensação de desprazer e ir de
encontro à sensação de prazer. Por isso as aprendizagens de Lóri são várias,
e o livro se inicia com uma vírgula e termina com dois pontos. A narrativa
se trata de um recorte de algo que não se concluiu. É a própria linguagem
se fazendo desejo nos fazendo persegui-la, tal como Lóri procura aprender.

E Lóri continuou sua busca no mundo. Foi à feira de frutas e legumes e peixes e
flores: havia de tudo naquele amontoado de barracas, cheias de gritos, de
pessoas se empurrando. [...] Às vezes comparava-se às frutas, e desprezando sua
aparência externa, ela se comia internamente, cheia de sumo vivo que era.
(LISPECTOR, 1998, p. 127)

Quando Lóri vai à feira e se depara com as frutas, legumes, e flores,


vislumbra a própria vida da fruta nela, cheia de sumo, sem se preocupar
com a sua imagem exterior, se “comia internamente”. Esse estímulo vindo
do interior do organismo é denominado por Freud como pulsão, pois “o

85
estímulo pulsional não advém do mundo exterior, mas do interior do
próprio organismo” (FREUD, 2017, p. 19). Sigmund Freud (2017) explica
que o termo pulsão é usado para conceituar os estímulos que atingem o
psíquico, ou seja, a pulsão seria o representante psíquico dos estímulos que
se originam dentro do organismo e alcançam a mente. A pulsão se
caracteriza por ser um conceito fronteiriço entre o anímico e o somático,
ela é “o representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo
que alcançam a alma” (FREUD, 2017, p. 25). Já a força pela qual a pulsão se
manifesta é chamada de libido, “exatamente análoga à fome, libido deve
nomear a força com a qual a pulsão se manifesta- nesse caso, a pulsão
sexual, da mesma forma que, no caso da fome, a pulsão de nutrição”
(FREUD, 2018, p. 199).
Percebemos que Lóri espera tanto provar do fruto, da vida e do
prazer, que ela experencia a pulsão se tornando a própria fruta, pois
“dentro daquele fruto que nela se preparava, dentro daquele fruto que era
suculento, havia lugar para a mais leve das insônias diurnas que era a sua
sabedoria de bicho acordado” (LISPECTOR, 1998, p. 118). A fome de Lóri
pode ser entendida como a fome de desejo, a fome de prazer. Apesar de se
perceber como fruto, ela não oferece seu sumo vivo a outro, ela mesma se
devora, sendo fruto de seu próprio desejo. E por isso ela quer comer, e está
cheia de sumo vivo. Ela se devora internamente porque como corpo
desejante, é o seu corpo moradia dos seus prazeres. Nadiá Ferreira explica
que:

A sensação de fome, eliminada pelo objeto que porta o alimento, inaugura a


primeira experiência de satisfação sexual. A nutrição, com a finalidade de
preservar a vida, e a sucção, com a finalidade de satisfação sexual, se misturam,
fundindo e confundindo o que pertence à ordem da auto-conservação do
indivíduo com o que é da ordem do sexual (FERREIRA, 2004, p. 23)

Come-se para se nutrir e viver, e o alimento surge para o ser


humano desde a infância como uma necessidade. No entanto, o comer
nessa narrativa surge como pulsão sexual e não exclusivamente como
pulsão de nutrição, pois o intuito de se “comer internamente” é busca de

86
satisfação do desejo e não de suprir uma necessidade orgânica, pois Lóri
come porque deseja.

A maçã, que era sua fruta preferida

O próprio verbo comer já traz por si só uma vasta carga erótica que
é mencionada e explicada por Freud como uma das formas de pulsões. Mas
em Uma Aprendizagem, a pulsão não é para comer qualquer comida, mas
uma maçã. Por isso se questiona por que a maçã é escolhida nessa
representação do desejo e da fome, e quais simbologias e significados a
maçã traz consigo no Ocidente. Ao escrever sobre os significados medievais
da maçã, Adriana Zierer faz a seguinte constatação:

Apesar de outros frutos estarem associados ao pecado original, como o figo e a


uva, a maçã a partir do século XIII passou a ser a principal representação da
transgressão de Adão e Eva no Éden. A ingestão do fruto proibido significou a
possibilidade de atingir o conhecimento através do livre-arbítrio, mas também
levou ao sofrimento (a expulsão do local divino, a necessidade do trabalho e as
dores no parto). Em outras culturas, como a germânica, para obter a sabedoria o
deus Wotan abdicou da visão de um dos olhos e ficou nove dias pendurado na
árvore Yggdrasil sem comer ou beber. A maçã também está ligada ao simbolismo
da árvore, eixo do mundo, associada à cruz e a Cristo. Como se acreditava que o
conhecimento vinha do alto, uma metáfora era a arbor inversa, cujas raízes estão
no céu, sendo Cristo o mais belo fruto enviado pelo céu (Deus) à terra (Maria).
(ZIERER, 2001, p. 105).

Além disso, é importante ressaltar que a maçã é proveniente de


uma árvore, elemento simbólico em várias culturas. Devido ao fato de suas
raízes mergulharem no solo e seus galhos voltaram-se ao céu, é
considerada como representante das relações entre a terra (o microcosmo)
e o céu (macrocosmo). Tem o sentido de centro, e sua forma vertical faz a
árvore do mundo ter sinônimo de Eixo do Mundo e está também
relacionada à cruz da redenção, que na iconografia cristã é representada
como a árvore da vida (ZIERER, 2001, p. 110).
Ao retomar a Gênesis e a origem do pecado, a narrativa de Uma
Aprendizagem parte da origem do mito bíblico para representar a busca da
identidade de Lóri. Por isso, Ulisses, o filósofo, a aconselha a partir do “eu”.

87
Ela, que segundo ele ainda não poderia ter um nome, precisava aprender a
sua identidade. O desvencilhar-se do nome é o ponto de partida para que
Lóri pudesse conhecer a vida.
À medida que Ulisses provoca Lóri a fim de que ela aprenda a se
reconstruir como ser humano e saber sobre o prazer, ele também não dá as
respostas subitamente para ela, e por isso, muitas vezes, Lóri tem a
sensação de sentir que Ulisses sabe das respostas, mas não as fornece, pois
dar respostas não faria com que Lóri aprendesse. Aprender a viver no
caminho da busca é que consolidará sua aprendizagem. Nesse caminho,
Lóri também terá que aprender a se desnudar de seus conhecimentos, pois
até mesmo o “não em entender era tão vasto que ultrapassava qualquer
entender- entender era sempre limitado.” (LISPECTOR, 1996, p. 43). Apenas
o não saber desnuda, explica Georges Bataille: “O não saber comunica o
êxtase. O não saber é antes de tudo Angústia. Na angústia aparece a nudez,
que extasia” (2017, p. 86). E o que comunica o êxtase nas experiências de
Lóri é exatamente sua incapacidade de lidar com situações do simples
cotidiano, sua inexperiência, sua incompreensão.
A maçã, como símbolo de proibição e ao mesmo tempo de
conhecimento, é apresentada nesse contexto como um elemento decisivo
na travessia dela em direção ao prazer. Lóri come porque quer que o
próprio desejo a constitua e lhe mostre alguma verdade. Na cena em que
se morde a maçã, Lóri sente finalmente a vida lhe acontecer:

Foi no dia seguinte que entrando em casa viu a maçã solta sobre a mesa. Era uma
maçã vermelha, de casca lisa e resistente. Pegou a maçã com as duas mãos: era
fresca e pesada. Colocou-a de novo sobre a mesa para vê-la como antes. E era
como se visse a fotografia de uma maçã no espaço vazio. Depois de examiná-la,
de revirá-la, de ver como nunca a sua redondez e sua cor escarlate - então
devagar, deu-lhe uma mordida. E oh, Deus, como se fosse a maçã proibida do
paraíso, mas que ela agora já conhecesse o bem, e não só o mal como antes. Ao
contrário de Eva, ao morder a maçã entrava no paraíso. Só deu uma mordida e
depositou a maçã na mesa. Porque alguma coisa desconhecida estava
suavemente acontecendo. Era o começo - de um estado de graça. (LISPECTOR,
1998, p. 134)

88
Ao colocar o desejo como pecado original, o cristianismo identifica o
desejo como perdição. Por isso, para que Lóri aprenda o desejo, é
necessário que ela coma o fruto proibido. A falta, introduzida pela lei, sob a
forma de proibição, revela que o Éden não era um lugar tão perfeito, já que
não havia espaço para a tentação. Como bem explica Nadiá Ferreira:

Adão e Eva, nossos primeiros ancestrais, criados por Deus e colocados em um


lugar paradisíaco, estavam proibidos de comer o fruto da árvore que ficava no
Éden. Sem interdito não haveria a Serpente e, consequentemente, não surgiria a
tentação que os levou ao ato de transgressão. Deus, como agente inaugural da
lei, funda o desejo (FERREIRA, 2004, p. 12).

A maçã aqui perde seu caráter de proibição. Na narrativa, a maçã é


ressignificada, pois representa um conhecimento que liberta a
protagonista, ao invés de puni-la, como acontece no mito bíblico. Ao invés
de conduzir à desgraça, comer a maçã é um momento epifânico de um
estado que, embora momentâneo, seja um estado de graça, pois ao
contrário de Eva, ao morder a maçã Loreley entra no paraíso.

Estado de graça

O estado de graça lhe surge como uma epifania, conceito trazido


por Olga de Sá na publicação de A Escritura de Clarice Lispector (1976), que
compreende a epifania como uma súbita revelação interior que dura um
momento fugaz, como uma iluminação, um momento privilegiado que não
precisa ser necessariamente excepcional ou chocante, mas que sempre
descortina através dos pensamentos a realidade íntima das coisas e de si
próprio. Nas palavras da autora, a epifania é:

A expressão de um momento excepcional, em que se rasga para alguém a casca


do cotidiano, que é rotina, mecanicismo e vazio. Mas é também defesa contra os
desafios das descobertas interiores, das aventuras com o ser. Por isso a epifania é
sempre um momento de perigo, à borda do abismo, da sedução que espreita
todas as vidas. [...] Enfim, a epifania, é um modo de desvendar a vida selvagem
que existe sob a mansa aparência das coisas, é um pólo de tensão metafísica, que
perpassa ou transpassa a obra de Clarice Lispector (SÁ, 1976, p. 106).

89
Em Clarice Lispector, a epifania surge na vida dos personagens a
partir da experiência com a vida cotidiana. Em Uma Aprendizagem, o
simples ato de comer uma maçã revela a Lóri um estado de graça que a faz
sentir parte daquele mundo como nunca havia sentido antes:

O corpo se transformava num dom. E ela sentia que era um dom porque estava
experimentando, de uma fonte direta, a dádiva indubitável de existir
materialmente. No estado de graça, via-se a profunda beleza, antes inatingível,
de outra pessoa. […] Nem de longe Lóri podia imaginar o que devia ser o estado
de graça dos santos. Aquele estado ela jamais conhecera e nem sequer
conseguia adivinhá-lo. O que lhe acontecia era apenas o estado de graça de uma
pessoa comum que de súbito se torna real, porque é comum e humana e
reconhecível e tem olhos e ouvidos para ver e ouvir. (LISPECTOR, 1998, p. 135)

Ao comer a maçã, Lóri finalmente percebe a verdade do mundo a


sua volta, ela vê, enxerga e ouve de uma forma diferente de antes. No mito
bíblico, o que acontece aos sentidos de Eva e Adão ao morderem a maçã é
um estado de conhecimento das coisas, pois logo se percebem nus,
angustiados e com medo, é a maçã que os humaniza, mas eles são
castigados e expulsos do paraíso, e o ato transgressor desse pecado original
supõe a irrupção do mal no mundo e a impossibilidade de ascender à
árvore da vida.
O deus da tradição judaico-cristã, portanto, não considera nos seres
humanos nenhuma possibilidade para a liberdade através do
conhecimento, pois para estabelecer a ordem natural da hierarquia, é
necessário que Deus seja onipotente sobre qualquer circunstância. É a
partir disso que Lóri o questiona, pois pensa por qual motivo esse deus que
conhece tudo e todos não lhe surge nos seus momentos de angústias, ela
que “sentia uma pressa por dentro, sentia pressa: havia alguma coisa que
ela precisava saber e experimentar, e não estava sabendo e nunca soubera”
(LISPECTOR, 1998, p. 63). Nessa urgência, “a palavra de Deus era de tal
mudez que aquele silêncio era ele próprio” (LISPECTOR, 1998, p. 65). E, por
isso, ela “sentiu que o Deus também precisava dos humanos - e então
negou-se a Ele” (LISPECTOR, 1998, p. 65).
Nessa experiência de comer a maçã, algo é violado, pois há uma
experiência do pecado que Lóri vivencia. Segundo Georges Bataille, uma

90
das grandes características da manifestação do erotismo é a presença de
dois conceitos que se opõem, mas ao mesmo tempo se entrelaçam: o
interdito e a transgressão. O interdito e a transgressão se opõem sempre
de maneira inconciliável (BATAILLE, 2017). Bataille diz que “a coletividade
humana, em parte consagrada ao trabalho, se define nos interditos”
(BATAILLE, 2017, p. 64).
O filósofo Michel Foucault ao retomar a ideia de Bataille, percebe a
relação entre erotismo e transgressão e propõe que “a transgressão é um
gesto relativo ao limite; é aí, na tênue espessura da linha, que se manifesta
o fulgor de sua passagem, mas talvez também sua trajetória na totalidade,
sua própria origem” (FOUCAULT, 2006, p.32). A transgressão é essencial
para a passagem do ser de um estado equilibrado para o estado de pletora
sexual intrínseco ao erotismo. Ela faz emergir certa animalidade no
homem, porém não acaba com a interdição, nem vice-versa. Sem as
transgressões ou sem as interdições, o erotismo nunca estaria completo.
Bataille diz que todo erotismo é sagrado, e no sagrado há uma
verdade de milagre. Isso porque diante dos ritos sagrados tangenciamos,
assim como no encontro erótico, a continuidade perdida. A ligação que tem
o erotismo com o sagrado não necessariamente converge em um Deus. O
sagrado consiste nessa busca de continuidade, ou seja, um ser descontínuo,
limitado, incompleto, procurando a continuidade absoluta. O cristianismo
procurou sempre utilizar-se da transformação da descontinuidade egoísta
para a continuidade visada pelo amor a Deus.
Em O Erotismo, Bataille explica que no momento da transgressão, o
interdito não existe sem a experiência do pecado, e o “domínio do erotismo
é o domínio da violação” (BATAILLE, 2017, p. 41). Ou seja, o erotismo tem
um caráter violador, pois para que exista é necessário que algo se rompa,
se transgrida, se profane. A graça da epifania, mesmo sagrada, é uma
espécie de graça profana, não é a graça dos santos.
O filósofo italiano Giorgio Agamben em seu livro Profanações
escreve diversos ensaios e em um deles, intitulado Elogio à Profanação,
define profanação dizendo que essa se trata de restituir os aspectos da
esfera sagrada para a espera humana. Acontece quando os humanos se
utilizam dos poderios do sagrado negligenciando a separação entre os dois
mundos, “profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de

91
negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela em uso particular”
(AGAMBEN, 2007, p. 59). Ou seja, os seres humanos profanam quando
fazem o uso particular de um dos atributos da ordem do divino. Ao viver o
estado de graça, Lóri profana o sagrado pois negligencia o êxtase que sabe
existir com os santos, e que ela desconhece. Ela traz a experiência mística
para sua vida, como uma experiência particular que é dela, mas também
que poderia ser de qualquer ser humano. Já que Deus não lhe surge em
suas preces, nessa experiência ela vai até ele, não ascendendo à árvore da
vida, mas trazendo o êxtase e o conhecimento do que lhe parecia sagrado e
inalcançável, à sua disposição.
Em Uma Aprendizagem, o momento epifânico se realiza num ato
que é também transgressor. Ao se sentir muda em relação ao Deus, em
alguns momentos Lóri percebe “em si a vontade intensa quase pungente de
se lamentar, de acusar, sobretudo de reivindicar” (LISPECTOR, 1998, p. 64).
E o que ela reivindica é isso mesmo, poder usufruir do prazer, do desejo e
do conhecimento, poder se constituir como pessoa, como mulher, como
corpo desejante. O estado de graça que ela experimenta é de uma lucidez
que a transforma, “era como se viesse apenas para que se soubesse que
realmente existia” (LISPECTOR, 1998, p. 135).

Havia experimentado alguma coisa que parecia redimir a condição humana,


embora ao mesmo tempo ficassem acentuados os estreitos limites dessa
condição. E exatamente porque depois da graça a condição humana se revelava
na sua pobreza implorante, aprendia-se a amar mais, a esperar mais. Passava-se a
ter uma espécie de confiança no sofrimento e em seus caminhos tantas vezes
intoleráveis. Havia dias tão áridos e desérticos que ela daria anos de sua vida em
toca de uns minutos de graça (LISPECTOR, 1998, P. 137).

Ao experimentar a graça da condição humana, Lóri finalmente se


considera pronta para a entrega com Ulisses. Após morder a maçã, eles têm
um último encontro em que podem se entregar de corpo e alma, após as
longas esperas e aprendizagem. Em um dos momentos em que ela está ao
lado de Ulisses, Lóri quase adormece e passa a visualizar um fruto:

Foi nesse estado sonho-vislumbre que ela sonhou vendo que a fruta do mundo
era dela. Ou se não era, que acabara de tocá-la. Era uma fruta enorme, escarlarte

92
e pesada que ficava suspensa no espaço escuro, brilhando de uma quase luz de
ouro. E que no ar mesmo ela encostava a boca na fruta e conseguia mordê-la,
deixando-a no entanto inteira, tremeluzindo no espaço. Pois assim era com
Ulisses: eles se haviam possuído além do que parecia ser possível e permitido, e
no entanto ele e ela estavam inteiros. (LISPECTOR, 1998, p. 153)

Nesse momento Lóri percebe que mesmo doando seu desejo ao


outro, o desejo se mantinha indestrutível e inalcançável. O desejo mesmo,
como se sabe, é indestrutível porque não tem um objeto para satisfazê-lo
plenamente. Só existem satisfações parciais, o que implica seu infindável
retorno. A fruta que surge para Lóri é grande, pesada e brilha no escuro.
Como uma imagem sagrada que enfatiza a busca de continuidade no corpo
do outro. Mesmo usufruindo o prazer, o desejo seria sempre a fruta
preciosa que agora lhe era acessível, pois “a fruto do mundo era dela”.

Conclusão

Percebemos que nesse romance acontece uma história progressiva


de Lóri, que caminha da dor ao prazer. Uma dessas aprendizagens é
justamente experienciar o direito de ser, quando ela morde a maçã. Ao
representar o conhecimento e pecado original, experienciar a maçã
simboliza o ato de experienciar com sabedoria a vida, o desejo de aprender
e usufruir do prazer. O momento de epifania em Clarice ocorre, portanto,
quando suas personagens vivenciam o estar à beira do inesperado, do
mistério que as envolve, a revelação é narrada a partir de experiências
rotineiras que descortinam o mundo. As personagens de Clarice se
metamorfoseiam à medida que assumem um caráter ritualístico. As ações
das personagens no caminho da aprendizagem são experimentadas como
rituais, cada um tendo a sua devida contribuição para Lóri entrar em
contato com o sagrado, ora realizando uma prece, ora questionando-o ou
profanando-o. Se antes ao tomar banho no mar Lóri vivencia o despudor do
seu corpo, ao devorar a maçã ela assume a responsabilidade do prazer e do
desejo que já conhece, por isso a personagem pressente que a vida dela
nunca mais será a mesma após as intensas e profundas aprendizagens que
teve.

93
Referências

AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.
BATAILLE, Georges. O Erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte, Autêntica Editora,
2017.
FERREIRA, Nadiá P. A teoria do amor na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
FREUD, Sigmund. Amor, Sexualidade, feminilidade. Trad. Maria Rita Salzano Moraes. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
FOUCAULT, Michel. Prefácio à transgressão. In: Ditos e escritos. Vol III. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2006.
FREUD, Sigmund. Pulsão e seus destinos. Trad. Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2017.
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
LISPECTOR, Clarice. Uma Aprendizagem ou O livro dos Prazeres. Rio de Janeiro: Rocco,
1998.
SÁ, Olga de Sá. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1976.
ZIERER, Adriana. Significados medievais da maçã: fruto proibido, fonte do conhecimento,
ilha Paradisíaca. Mirabilia: Eletronic Journal of Antiquity, n. 01, p. 105-119, 2001.

94
Militância erótica e militância comunista
em Hilda Furacão

Sebastião Soares de Sousa Junior16

Introdução

Hilda Furacão é um romance narrado em primeira pessoa pelo


autor/narrador/personagem Roberto Drummond. A narrativa não segue
uma linearidade e se fragmenta em núcleos de enredo diversificados, mas
é concedida maior centralidade à prostituta que nomeia a obra, Hilda
Furacão. Mais especificamente, ao mistério que encobre a personagem,
pois esta emerge de uma situação inusitada e inexplicável a partir de uma
metamorfose inverossímil, considerando uma tradicional estrutura de
privilégios sociais.
Hilda Gualtieri Von Echveger é filha de um casal de imigrantes
europeus e pertencente a uma tradicional família belo-horizontina. Ainda
jovem, já encantava os homens com o seu maiô dourado na piscina do
Minas Tênis Clube, além de ser atração nas missas dançantes. Ou seja,
gozava de uma posição socialmente confortável. Porém, um fato inusitado
se dá no dia 1º de abril de 1959, dia da mentira, quando a garota abdica de
sua posição privilegiada e passa a ocupar o quarto 304 do Maravilhoso
Hotel, na Zona Boêmia, tornando-se prostituta e porta-voz daqueles
sujeitos marginalizados que lá vivem.
A data escolhida para a metamorfose não está posta de maneira
arbitrária, são os 5 anos que precedem o golpe civil-militar de 1964, que
trará um regime de exacerbada repressão e de privação das liberdades
individuais. A sociedade mineira de 1959 está moldando-se repressora,
preparando-se para uma ditadura que durará 21 anos. Portanto, o que se
observa é uma Belo Horizonte configurada em conflitos entre os que
desejam interditar e os que resistem à repressão. Ou seja, entre militares e

16 Mestrando em Letras pela Universidade Federal do Ceará. E-mail: [email protected].

95
civis apoiadores de um golpe e estudantes alinhados a ideologias de
esquerda e membros do Partido Comunista. A narrativa de Hilda Furacão
marca a existência desse cenário conflituoso e bélico já no primeiro período
do romance:

Na época dos acontecimentos que tanto deram o que falar envolvendo Hilda
Furacão, eu trabalhava como repórter na Folha de Minas numa Belo Horizonte
que cheirava a jasmim e ao gás lacrimogêneo que a polícia jogava nos estudantes
e que acabava sendo o perfume daqueles dias. (DRUMMOND, 1991, p. 11)

A citação acima, evidencia, a partir de percepções olfativas, a


apreensão deste cenário belicoso. O movimento estudantil confronta o
poder do Estado, que concentra o potencial e o aparato bélico para
reprimir, sem que haja uma equivalência de forças. Portanto, a balança
pende de forma diametralmente desigual. Mas os recursos da resistência
não se entregam facilmente, além de se munirem de outras armas mais
sutis. O cheiro do jasmim, delicada flor, resiste e se mistura ao odor do gás
lacrimogênio. A fragrância agradável da planta se coloca junto ao cheiro
que faz chorar, como uma emanação de esperança.
Os conflitos na obra não se limitarão apenas ao embate entre polícia
e estudantes, mas também a partir de uma perspectiva discursiva e
moralizante, entre religiosidade e erotismo. A metamorfose de Hilda
Gualtieri em Hilda Furacão, produzirá um abalo profundo no seio da
sociedade mineira, de perplexidade à curiosidade. Os jornais passam a
cobrir diariamente o desenrolar dos fatos que envolvem a prostituta ao
mesmo tempo em que cobrem o advento de um projeto denominado de
Cidade das Camélias, que era encabeçado pelo vereador Padre Cyr e
recebia forte apoio da Liga de Defesa da Moral e dos Bons Costumes,
liderada por Dona Loló Ventura.
O projeto de Padre Cyr, denominado de Cidade das Camélias,
consistia em remover do centro da cidade todos aqueles ocupantes da
Zona Boêmia e jogá-los para a margem. Portanto, pretendia-se retirar do
seio da TFM (Tradicional Família Mineira) aqueles habitantes das
imediações da rua Guaicurus, que tinha “[...] seus cães vadios, seus gatos
talvez famintos, seus mendigos, seus loucos, suas mulheres, seus rufiões,

96
seus gigolôs, seus travestis, seus foragidos da polícia.” (DRUMMOND, 1991,
p. 54). Ou seja, intentava-se realocar todas as classes de avessos, marginais
e esquecidos pelas políticas públicas para um espaço isolado. Mas, a partir
da metamorfose da garota em prostituta, estas pessoas contarão com a
proteção da cortesã e heroína Hilda Furacão.

Mistério e razões para transgredir

Parte considerável do enredo se alicerça no mistério da


metamorfose da protagonista. O narrador frequentemente se interrogará e
questionará os seus leitores sobre a razão de uma moça deixar o conforto e
os privilégios de uma tradicional família mineira para integrar um espaço de
marginalidade e de miséria. Ao falar sobre a sua personagem, e na
tentativa de explicá-la, Roberto Drummond faz uma pausa no enredo para
fazer um convite, que consiste em pedir a ajuda de seus leitores para o
desvendamento de Hilda Furacão. Para isto, estabelece algumas diretrizes
necessárias para a concretização desta análise:

É necessário, mais uma vez, interromper esta narrativa para dar uma pista: Hilda
Furacão ou, como quiserem, a Garota do Maiô Dourado, não é apenas uma
personagem complexa – é, em si mesma, como direi, uma complicada trama;
pede sherloques, pede analistas freudianos e não-freudianos para desvendá-la,
pede repórteres, e é um desafio; prometo, no decorrer desta narrativa, tentar
responder à pergunta:
- Por que a Garota do Maiô Dourado trocou o Minas Tênis Clube pela Zona
Boêmia?
Até lá, no entanto, que tal fazermos um jogo, já que este não é propriamente um
romance, mas um brinquedo lúdico, tendo Hilda Furacão como centro de tudo?
(DRUMMOND, 1991, p. 42)

O autor/narrador discorre sobre as habilidades e competências


necessárias para a compreensão de sua personagem e, consequentemente,
da própria obra, já que o mistério possui um lugar de destaque na
narrativa. Porém, o imbricado de profissionais necessários para uma análise
satisfatória de Hilda Furacão, só parece atestar a impossibilidade de fazê-lo.
Consciente disto, Drummond põe a prostituta como um brinquedo lúdico,

97
onde o leitor fará suas experimentações e tirará significações à maneira do
próprio tato, da subjetiva vivência com a obra. Duas páginas à frente, o
narrador oferece, para o exercício do interlocutor, espaços em branco para
que este possa pôr as suas conjecturas sobre a razão que teria motivado
Hilda a deixar o conforto do Minas Tênis Clube e ocupar um lugar de
destaque na Zona Boêmia.
Aceitando o convite expedido pelo autor/narrador, este artigo se
propõe a brincar com a ludicidade do romance/objeto, construindo uma
possibilidade semântica para a metamorfose de Hilda. Entende-se aqui
que, a transformação ou a mudança de papéis da personagem não se deu
ao acaso, mas como consequência do contexto repressor que se moldava
na Belo Horizonte do final dos anos de 1950 e início de 1960. Hilda Furacão
figuraria na narrativa como a força do desejo diante da interdição ou
representaria o caráter transgressor do erótico frente a tentativa de
repressão.
A afirmação de que Hilda Furacão seria a personificação da força
transgressora do desejo se fundamenta na concepção de Bataille (2017)
sobre o erotismo. Segundo o autor, somos seres descontínuos, pois
nascemos de uma reprodução sexuada, onde a nossa existência se dá na
morte dos elementos que nos geraram: espermatozoide e óvulo morrem
para dar origem a um novo embrião. Portanto, não fazemos parte de um
processo contínuo de existência, estamos sós. Iremos, por esta razão,
direcionar as nossas energias na busca de uma saudosa continuidade e,
para tal, utilizaremos a experiência amorosa e o erotismo. Para que nos
seja dada a vivência da continuidade perdida, se faz necessário ultrapassar
os limites socialmente delimitados, transgredir as interdições impostas.
Hilda Furacão, como elemento transgressor diante de um cenário
repressor, coordena, para além de motivações ideológicos e sonhos
revolucionários, a possibilidade de um retorno, ainda que breve, àquela
continuidade perdida descrita por Bataille (2017). O que Roberto
Drummond propõe com a sua ficção para os já conhecidos fatos históricos,
é uma saída alternativa para o desfecho infeliz que recaiu sobre o Brasil
real. A sutil arma da prostituta contra a interdição é o “Mal de Hilda”, uma
doença a que os homens anseiam por se contagiar. Consistia em “um
calafrio que subia pelas pernas e uma alegria infantil; alegria de menino

98
que ganha o velocípede tão sonhado ou a bicicleta sempre aguardada e
adiada; e alguma coisa próxima do delírio, um não-sei-quê político, por
mais estranho que possa parecer.” (DRUMMOND, 1991, p. 73-74).

O "Mal de Hilda" e a elevação do sujeito marginalizado

O “Mal de Hilda”, assim como a doce fragrância do jasmim, ataca a


partir do deleite oferecido aos sentidos; submete e vence pelo encanto. O
poder da prostituta possibilita um retorno a épocas mais amenas, mais
próximas da experiência de continuidade, à infância, onde se goza
livremente dos próprios desejos ao mesmo tempo em que se recebe
carinho e cuidados exclusivos, além de produzir uma motivação política que
mais se aproxima de um delírio, pois se orienta pela abstração do desejo.
Na luta entre o erótico e o bélico/militar, em Hilda Furacão, o desejo
parece levar vantagem. Mais ainda, o que se mostra na narrativa de
Roberto Drummond, é que na função de resistência ao progressivo
aumento da repressão, o erotismo se faz mais eficiente que o próprio
Partido Comunista, com o seu antagonismo histórico às forças que
coordenam o golpe civil-militar em curso no período que ambienta a obra.
A maneira como o autor concebe a ideologia comunista, a qual professou
por anos na sua juventude, devido ao desenrolar dos fatos históricos que
marcaram o século XX, parece sugerir certa desilusão com a não
concretização dos sonhos revolucionários. Deste modo:

Manifestando certa descrença na leitura marxista da história e da sociedade, que


se fundamenta na dialética dos contrários e também vê o sistema como um todo,
Roberto Drummond faz dos radicalismos políticos da década de 1960 um dos
temas mais frequentes de sua obra. (FERNANDES, 2011, p. 249).

A citação acima foi retirada da obra de Maria Outeiro Fernandes,


que estudou as perspectivas pós-modernas em algumas narrativas de
Roberto Drummond, dentre elas, Hilda Furacão. Uma forte característica
pós-moderna consiste na descrença, na desilusão do sujeito que abraçou as
promessas racionalistas iniciadas com o projeto iluminista, que acreditava
que as luzes da razão levariam a humanidade à igualdade e à prosperidade.

99
Mas as atrocidades assistidas durante o século XX, como as duas grandes
guerras, os governos nazifascistas, a eugenia, acabam por gestar um sujeito
desorientado e desesperançado, descrente de ideologias ou de um
entendimento maniqueísta de sociedade.
Roberto Drummond, assim como se vê em Hilda Furacão, integrou o
Partido Comunista e sonhou com uma sociedade justa e igualitária. Desejou
realizar a revolução que libertaria os oprimidos de seus algozes. Mas este
sujeito, assim como os outros militantes de esquerda, não viu a revolução
acontecer. O ideal comunista, aparentemente concretizado na União
Soviética, rui com a ascensão, os crimes e a queda do grande bloco. Mas a
militância do autor não finda com a descrença no Partido Comunista ou na
percepção maniqueísta da sociedade, pela própria ênfase dada à
marginalidade em sua ficção:

De certa forma, muitas tendências pós-modernas incorporam em suas produções


uma estratégia de “guerrilha”, herdada dos anos de 1960, pela ênfase dada à
marginalidade. Existe, porém, uma forte consciência de que essa marginalidade
não está fora do sistema, mas habita nos interstícios e subterrâneos de seus
fundamentos, o que gera um dos efeitos mais polêmicos da pós-modernidade,
que é o fato de propor uma crítica não mais estruturada no esquema de
oposições binárias, mas que atua com base em contradições e paradoxos
(FERNANDES, 2011, p. 22-23)

A centralidade de uma personagem social e tradicionalmente


marginalizada evidencia a prática de guerrilha adotada por Roberto
Drummond em Hilda Furacão. Ao usar a sua escrita ficcional para subverter
as hierarquias constituídas, pondo no alto uma prostituta, o autor/narrador
parece concretizar aqueles sonhos revolucionários de outrora, além de
produzir uma correção histórica para uma classe que sempre esteve à
margem. Na ficção drummondiana, ainda que indireta e provisoriamente, a
revolução do proletariado parece se efetivar, de maneira sutil e não
partidarizada.
Segundo Fernandes (2011), Drummond, como um escritor
fortemente marcado por perspectivas pós-modernas, não vê a realidade a
partir de uma lógica cartesiana ou binária. Diferente de alguém mais
alinhado com o cabedal de atuação do Partido Comunista, que concebe a

100
realidade da seguinte forma: a burguesia é a inimiga da classe trabalhadora
proletariada, portanto, esta deve ser combatida.
Para o escritor pós-moderno, incluindo Roberto Drummond, as
relações de poder se dão de maneira mais complexa, pois os mecanismos
de dominação se ramificam para além do binarismo. A insurgência e a
marginalidade, mesmo estas, estão previstas numa lógica poder. A luta de
classes exclusiva, como pauta unívoca essencial para a constituição de uma
sociedade mais justa, trata como menos relevante as demandas
minoritárias, por exemplo. Para o romancista, o erotismo, configurado na
força inerente do desejo, se apresenta como uma alternativa mais honesta,
já que constitui o âmago da vontade individual.

Erotismo versus comunismo

Em Hilda Furacão, pode-se observar um forte movimento


iconoclasta na maneira como o narrador usa o cinismo para expor
determinadas demagogias ou hipocrisias advindas de importantes
instituições sociais, em especial a Igreja Católica e o Partido Comunista. O
erotismo, no romance, desvela o que está oculto sob a máscara de uma
moralidade rígida e incorruptível. Por exemplo, é o que se pode observar
em uma aula de moral comunista, que deveria ser proferida pelo Camarada
Zico, com o tema “O homem temperado no aço e a sexualidade”.
Esta aula tinha como objetivo orientar os companheiros (as) sobre
como eles deviam se portar sexualmente. Na fala do Camarada Zico: “- Não
tenham dúvidas, companheiras e companheiros: o homem do mundo novo,
temperado no aço, vai ser casto e se guardar para uma união fundada no
amor e no respeito mútuo com a companheira de sua vida.”(DRUMMOND,
1991, p. 120). Como se pode observar, não há muita diferença entre a
noção heteronormativa clássica estabelecida pela sociedade burguesa e os
ideais do Partido Comunista. Em ambos os casos, há uma elevação da
castidade e um modelo único de união amorosa, em uma típica rigidez
cristã milenar e sectária.
Ainda sobre a aula de moral comunista, há um determinado
momento em que o Camarada Zico tem a fala interrompida pela
Companheira Zora que, num tom acusatório, o interpela: “– Uma questão

101
de ordem, companheiros. Gostaria que o Camarada Zico, antes de começar
a nos falar sobre a moral comunista, nos explicasse o que estava fazendo na
tarde da última quarta-feira em plena Zona Boêmia?” (DRUMMOND, 1991,
p. 120). Momentos após a interpelação das Companheira Zora, o Camarada
Zico encerra a reunião e sai constrangido. Segundo o narrador, em nenhum
outro momento houve a retomada da aula.
Descobre-se que, não só o Camarada Zico realmente estava na Zona
Boêmia na data afirmada pela Companheira Zora e confirmada,
posteriormente, pela Companheira Rosa, mas também foi visto em uma fila
para o quarto 304, de Hilda Furacão, no Maravilhoso Hotel. O professor de
moral comunista disputava com os demais homens, coronéis e burgueses,
alguns minutos daquela sensação de continuidade proporcionado pelo
“Mal de Hilda”. Os rivais históricos, capitalistas e comunistas – importante
lembrar que se vivia a Guerra Fria – sucumbiam aos encantos eróticos da
prostituta. Ambos contradizendo a própria moralidade, seja ela advinda do
Partido ou da religiosidade.
Outro fato interessante, é que a Companheira Zora interrompeu o
Camarada Zico em sua aula sobre moral comunista, não pelo aspecto
contraditório que existe no falar-se em moralidade e castidade quando se
pegava uma fila para ver uma prostituta, mas por ciúmes. A Companheira
era secretamente apaixonada pelo Camarada, como disse depois a Roberto
Drummond. Portanto, a causa do amor e do coração a revoltou muito mais
do que qualquer aspecto de contradição ideológica. Eros é posto mais uma
vez a frente do Partido.
Drummond põe o erotismo como a causa mais essencial e mais
legitimamente necessária para a correção das desigualdades
historicamente constituídas. A prostituta que recebe esses clientes não
precisa do dinheiro deles, portanto, não está à margem por determinação
sistêmica ou por um imperativo dos mecanismos de poder que criam esses
espaços para o recebimento de uma determinada classe de mulheres
economicamente miseráveis, conduzidas à prostituição pelos contextos
existenciais.
Hilda Furacão existe para desvelar e pôr às claras as hipocrisias
desse sistema político, econômico e cultural. Através do humor e do
cinismo, o narrador subverte o halo de grandeza com que se apresentam

102
algumas instituições. Neste artigo, o foco é o discurso moralizante da
instituição Partido Comunista. Nem sempre o erótico é a razão da
ridicularização da ideologia comunista, mas às vezes um fato gozado, como
o que Roberto Drummond vai extrair um dente com um Camarada do
Partido, Alencastro, que é dentista.
Drummond chega ao consultório do camarada – cujos filhos
chamavam-se Marx, Vladimir, Lenin, Gorki e Luís Carlos (em homenagem a
Luís Carlos Prestes) – queixando-se de dor. Ao analisar, o dentista concluiu
que seria necessária uma extração. Após duas infrutíferas tentativas de
anestesiar o dente, o camarada afirma ao narrador que ele teria que ser
forte, pois deveria fazer a remoção sem o anestésico. Mas para consolá-lo,
ele cantaria a internacional comunista simultaneamente:

Começou a cantar: “De pé, oh vítimas da fome”, enfiou o boticão na minha boca,
“de pé, famélicos da terra”, pegou meu dente com o boticão, “bem unidos,
marchemos, nessa luta final”, começou a extrair o dente com o boticão, foi
puxando e cantando, “numa terra sem amos”, e deu o arrancão final – com meu
dente ensanguentado preso no boticão, como se fosse a pequena bandeira
vermelha de minha devoção revolucionária (DRUMMOND, 1991, p. 109).

O narrador constrói um cenário cômico e iconoclástico para se


referir a importantes referências comunistas, a começar pelo nome dos
filhos do Camarada Alencastro, que homenageiam as principais figuras da
esquerda mundial de todos os tempos. O uso da internacional para fins tão
pouco gloriosos é a própria ridicularização da sacralidade do símbolo, assim
como o sangue de um dente extraído representar a bandeira vermelha e a
devoção revolucionário.
O narrador de Hilda Furacão, desse modo, subverte a grandiosidade
de importantes instituições a partir da desconstrução dos símbolos que
conferem a elas halos de importância suprema. No que concerne ao
Partido Comunista, o erótico sempre acaba aparecendo como uma melhor
opção para as personagens, uma alternativa mais digna de devoção
revolucionária. É o que se pode observar no romance da Companheira Rosa
com o Companheiro Lima (Roberto Drummond).
Os dois companheiros se relacionavam na clandestinidade, até a
descoberta do partido que, diante do conhecimento do romance, os intima

103
para uma reunião solene com o alto escalão. Ao chegarem no local
determinado, os camaradas hierarquicamente superiores informaram que
eles estavam ali para que o Companheiro Lima explicasse quais seriam as
suas reais intenções com a Companheira Rosa, se casariam ou se, ao
menos, noivariam. Diante da negativa para ambos os questionamentos, o
Partido Comunista determinou que eles tinham 24 horas para findar a
relação. Apesar da ordem do Partido, eles decidem continuar namorando
escondido. Como afirma o narrador:

eu e a Companheira Rosa continuávamos o nosso namoro clandestino às


escondidas do Partido e descobrimos que o mais seguro era namorar dentro dos
cinemas; comprávamos ingressos, entrávamos e ficávamos lá aos beijos e
abraços, minhas mãos ávidas percorrendo seus seios de Jane Mansfield; tínhamos
o cuidado de evitar os filmes políticos ou de arte, tão ao gosto dos militantes do
Partido. (DRUMMOND, 1991, p. 156).

São o humor e o erotismo os grandes aliados do imperativo


iconoclástico. É possível que os militantes não reconheçam um legítimo
traço revolucionário na reprodução de um modelo burguês de
relacionamento, que é a própria reafirmação de uma postura repressora
tão cara aos movimentos conservadores e religiosos. Os companheiros,
com suas mãos ávidas que percorrem seios, não rompem com os ideais de
uma sociedade mais justa e igualitária, mas com os códigos moralizantes
estanques, a que as sociedades capitalistas já empregam com afinco. A
verdadeira revolução deve ser erótica, ou seja, sem a privação dos impulsos
e do desejo.
E Eros serve não só à agitação revolucionária, mas como elemento
de amparo diante de um contexto adverso. É o que se observa em uma
prisão, onde alguns militantes de esquerda estão presos como
consequência de uma tentativa de organização de uma greve geral
operária, dentre eles o próprio Roberto Drummond. Por não possuírem
livros para um estudo dirigido político/ideológico adequado, um dos
companheiros sugere que eles façam uma “sessão de estudo político
mentalizado”:

104
Cada um de nós devia deitar de costas na cama e recordar trechos do livro Dois
passos para a frente, um para trás, de Lenin; depois, de posse de nossas
recordações, faríamos um debate. Ora, eu nunca tinha lido Dois passos para a
frente, um para trás, nem nenhum outro livro de Lenin – assim, quando espichei
na cama da cela, primeiro segui os movimentos de uma aranha, que é velha e
constante companheira dos presos políticos do mundo; depois passei a recordar,
uma a uma, as mulheres que de alguma maneira eu amei; desde a negra Das
Dores, a cuja mão mágica devo o início de meu jogo sexual, nos bons tempos do
Araxá, até a que realmente foi a primeira: chamava-se Alição, fazia a vida na
pobre Zona Boêmia de Santana dos Ferros. (DRUMMOND, 1991, p. 13).

Como se pode observar, o ideário comunista ou os sonhos


revolucionários são insuficientes para apaziguar a angústia do contexto
prisional. Sequer servem para entreter ou anular o tédio do cárcere. O
caráter solene e austero de um estudo leninista é posto muito abaixo nas
prioridades introspectivas do narrador/personagem. O que primeiro chama
a atenção de Roberto Drummond, e o impele a uma reflexão, é a relação de
companheirismo entre os aracnídeos e os presos políticos do mundo.
Seguida a reflexão sobre a aranha, o narrador parece encontrar
verdadeiro alento, para a sua situação adversa, em reminiscências eróticas.
Vê-se nessas lembranças certa nostalgia orgulhosa, pois o que se observa é
uma pormenorizada descrição das mulheres amadas, que são catalogadas,
na mente de Drummond, por habilidade e nome. Portanto, o erotismo
embala e transcende o contexto claustrofóbico da prisão, mostrando que
este não pode ser encarcerado jamais. E o narrador permanece, em
condição reminiscente, ainda ignorando a obra de Lenin, com as
lembranças de sua primeira experiência sexual com a prostituta de Santana
dos Ferros, cidade natal do autor/narrador, Alição:

ao me ver, com cara de menino, eu que enfrentei uma fila enorme até chegar
diante dela, ali, na luz difusa de seu quarto (ela podia ser minha avó), foi tomada
de súbita devoção e ordenou:
- Primeiro, menino, você ajoelha e reza uma ave-maria.
Obedeci. Depois, ela me puxou para a cama que gemia uma estranha canção e
beijou meu rosto com seus lábios ásperos, que pareciam ter calos adquiridos no
longo exercício da profissão; ainda deitado na cama da cela, esqueci Alição e torci
inutilmente para um mosquito que, após tentar voar para a liberdade, caiu nas
teias da aranha; então, percorri o corpo de pele muito branca de Maria Teresa, a

105
quem, na verdade, não amei, apenas a via trocar de roupa pela veneziana da
janela da casa de Tia Çãozinha e Tia Ciana, em Santana dos Ferros. Quando o
Camarada Dimas Perrin iniciou o debate sobre Dois passos para frente, uma para
trás, eu recordava Neli, paixão dos anos de infância em cujas pernas eu aplicava
injeção de água em Araxá. (DRUMMOND, 1991, p. 13-14).

As lembranças eróticas do narrador continuam ao mesmo tempo


em que, supostamente, os colegas de militância rememoram trechos da
obra de Lenin no silêncio da cela. A citação acima evidencia que o Partido
Comunista não é única instituição que sofre com o imperativo iconoclástico
do escritor pós-moderno em Hilda Furacão, mas a própria Igreja Católica,
que tem uma das suas principais orações, destinada àquela que concebeu
virgem e representa o casto papel da mulher no ocidente, entoada pelos
lábios “calejados” de uma prostituta que terá relações sexuais com um
menor.
As reminiscências eróticas só são interrompidas por uma posterior
observação do mosquito e novamente pela aranha, o que coloca o estudo
comunista ainda mais abaixo nas prioridades reflexivas de Drummond em
sua cela. Quando o Camarada Dimas Perrin finalmente decide principiar o
debate, o narrador ainda se entretem com a lembrança de uma
experiência, uma paixão que sequer se concretizou sexualmente. Portanto,
todo o ideário político-ideológico, alicerçado no sonho revolucionário, é
posto em segundo, ou terceiro plano, se se considera o inseto e o
aracnídeo. O erótico, em Hilda Furacão, assume importância transcendente
na dinâmica do enredo da narrativa e das personagens.
Outro episódio que bem distingue a militância comunista da erótica,
sendo esta mais bem sucedida que aquela, é a da greve dos bancários. Em
razão da campanha pela Cidade das Camélias, – projeto que almejava
retirar as prostitutas e outros avessos da Zona Boêmia de Belo Horizonte
para um local isolado e longe do centro – ou por temor de que a zona fosse
acabar ou por incitação da propaganda contra, a procura pelos
estabelecimentos da região crescem e fazem com que o preço de Hilda
Furacão aumente devido a excessiva procura.
A consequência do aumento da tarifa de Hilda Furacão faz com que
os seus clientes procurem outras maneiras de garantir um maior contágio

106
com o “Mal de Hilda” ou aquela experiência de saudosa continuidade
advinda da relação com a cortesã. A alta do valor, portanto, impulsiona os
bancários a entrarem em greve. A prostituta, por conseguinte, passa a ser
confundida, pelos portais conservadores da época, com um membro do
Partido Comunista. Como narra Drummond:

Houve quem visse nesse efeito do Mal de Hilda um "perigoso componente


político e ideológico"; pois que, naqueles dias, os bancários entraram em greve e
o pedido de aumento de 100% teve como justificativa, mais do que a carestia
propriamente dita (o continuado aumento do pão, da carne, do leite), a
circunstância muito especial de que o câmbio de Hilda Furacão tinha dobrado de
preço; para explicar o fervor grevista dos bancários, contou muito mais o fato de
vários deles estarem atacados pelo Mal de Hilda do que a força do Partido
Comunista, cujas células dominavam todos os bancos. (DRUMMOND, 1991, p. 73)

Hilda Furacão, ainda que militasse por aqueles que habitualmente


recebiam a atenção do Partido Comunista, não poderia ser colocada dentro
da militância partidária de esquerda. Seria possível distinguir, de imediato,
a postura moralizante da instituição em oposição ao caráter libertário e
anárquico do erótico. O discurso conservador que une o partido à
prostituta, o faz porque ambos representam uma ameaça às normas
socialmente estabelecidas no sistema capitalista. Portanto, essa ação
simbiótica, é um movimento que torna aquilo que deve ser combatido em
uma coisa só, uma unificação dos adversários. Em Hilda Furacão, este
movimento é encabeçado pelo núcleo conservador e religioso.

Conclusão

A narrativa de Hilda Furacão distingue bem as militâncias e os


impulsos revolucionários que as move. O Partido Comunista é exposto e
revelado em suas hipocrisias, especialmente no que comunga com a moral
burguesa. Pela descrença na leitura marxista da história, Drummond não
concebe a militância comunista como boa em uma leitura maniqueísta de
sociedade. A esquerda não existe fora do sistema, é o que mostra o autor.
E, enquanto importante instituição, terá desvelado os seus aspectos
grandiosos pela iconoclastia cínica do escritor pós-moderno.

107
A militância erótica, por outro lado, se apresenta ao enredo como
uma alternativa mais honesta e verdadeiramente grandiosa. O caráter
revolucionário do erotismo está na subversão de todo o sistema, uma
anulação do sujeito e da sociedade constituída na descontinuidade. A única
pauta desta militância é a livre perpetuação do desejo e a sua força reside
na abstração do impulso das vontades individuais. O que está prometido no
universo simbólico do erotismo, com o “Mal de Hilda”, é um perpétuo
retorno ao saudoso estado de continuidade, ainda que impossível pois,
como afirma Bataille (2017): do universo contínuo, só se pode ter um
vislumbre.
Inegavelmente, em Hilda Furacão, o poder advindo do erotismo se
faz mais eficaz na resistência ao cenário repressor, porque através do “Mal
de Hilda” a prostituta consegue organizar uma greve dos bancários que,
como pauta, pediam 100% de aumento – êxito que o Partido Comunista
não conseguiu efetuar em sua militância histórica nesse meio – e fazer com
que os vereadores votassem contra o projeto da Cidade das Camélias,
beneficiando as prostitutas e outros avessos que viviam na Zona Boêmia de
Belo Horizonte. Mas o final da obra une ficção e realidade no espectro da
desesperança pós-moderna, pois em 1º abril de 1964, enquanto Hilda
Furacão vai embora para a Argentina, instaura-se uma ditadura que durará
21 anos.

Referências

BATAILLE, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.


DRUMMOND, Roberto. Hilda Furacão. 4ªed. São Paulo: Siciliano, 1991.
FERNANDES, Maria Lúcia Outeiro. Narciso no labirinto de espelhos: perspectivas pós-
modernas na ficção de Roberto Drummond. 1ªed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011.

108
Maria Madalena e Lilith:
o corpo feminino em José Saramago

Janyele Gadelha de Lima17

Introdução

Nascido em 16 de novembro de 1922, em Azinhaga, Portugal, José


de Sousa Saramago é o único ganhador do prêmio Nobel de Literatura em
Língua Portuguesa, o que nos aponta para a grandiosidade e relevância que
sua obra ocupa em nosso cenário literário. Tendo se aventurado nos
diversos gêneros como poesia, crônica, conto, literatura de viagem, teatro,
literatura infantojuvenil, é no romance, porém, que se encontra, segundo
uma pesquisa realiza por Junior (2017), o maior interesse dos estudiosos e
da crítica pelo autor. Podemos sugerir vários motivos para o preterimento a
esse gênero: como a sua famosa escrita saramaguiana que foge às regras
sintáticas de pontuação para dar uma maior proximidade à oralidade; ou
também o fato de que alguns de seus livros abordam temas históricos de
Portugal, dotados seja de um viés fantástico ou de uma nova visão para tais
acontecimentos; outro motivo pode ser as construções alegóricas que o
autor lança mão a fim de criticar uma sociedade alienada; ou também pelo
seu gosto de recontar, em espécie de paródias, com um toque de crítica e
ironia, histórias já conhecidas, como aquelas que estão consagradas há
séculos na tradição cristã dentro da bíblia.
Foi baseado nesse último ponto que, em 1991, Saramago escreveu
O evangelho segundo Jesus Cristo, livro em que decide recontar a vida do
filho de Deus. Interessante ressaltar que teremos uma nova versão da
história de Jesus sendo contada por um ateu, já que era assim que o autor
se considerava, logo, é de imaginar que alguns pontos polêmicos pudessem
surgir a partir de tal reescritura. O evangelho de Saramago rompe com a
17 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do
Ceará (UFC). E-mail: [email protected].

109
visão tradicional cristã desde o princípio, uma vez que, para nosso autor,
Jesus é concebido como qualquer outro ser humano, a partir de uma
relação sexual entre seus pais, no caso, Maria e José. Além disso, outras
coisas se apresentam contrárias ao que encontramos na bíblia, Jesus, por
exemplo, encontra Maria de Magdala18, ou Maria Madalena, uma prostituta
que o ajuda a curar umas feridas dos pés, mas que, para além do ato de
solidariedade, logo se apaixonam e vivem um intenso e erótico romance.
Diante disso, podemos imaginar que a recepção de tal livro possa
ter gerado uma série de burburinhos e represálias em um país de origem
fortemente católica. Assim, a obra foi censurada pelo governo, visto como
uma heresia por setores religiosos, e o autor foi excluído da lista de
candidatos ao Prêmio Literário Europeu, o que fez com que, pesaroso,
Saramago decidisse por se exilar em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, na
Espanha.
Tal desgosto não impede, porém, de, em 2009, Saramago repetir a
dose, e publicar Caim, agora uma nova versão do antigo testamento. Temos
neste novo livro um Deus criando um jardim com seu primeiro homem e
mulher (Adão e Eva), seus primeiros filhos (Caim e Abel) e o primeiro caso
de assassinato (Caim matando seu irmão Abel por ciúme e inveja). Deus
permite que Caim viva apesar do crime que cometeu, porém seguirá em
uma jornada pelo mundo com uma mancha em seu rosto que o acusará
sempre do que fez, mas que não permitirá que ninguém o faça mal.
Caim começa, então, sua jornada vagando sem destino e é
justamente nesse ponto que começam os elementos de cunho fantásticos
dessa obra. Caim viaja no tempo, vai do presente ao passado, do passado
ao seu passado anterior, e de lá para o futuro. Nessas viagens depara-se
com as grandes histórias bíblicas, sempre contadas com novas perspectivas,
sob olhares críticos e, muitas vezes, com outros finais: nosso protagonista
presencia o momento em que Abraão leva seu filho Isaac para o sacrifício,
vê a torre de Babel, bem como a queima das cidades de Somoda e
Gomorra, além do grande dilúvio. Em uma dessas paradas, Caim conhece
Lilith, uma mulher poderosa e sedutora com quem vive uma ardente
18 Saramago a descreve como Maria de Magdala pelo fato de Jesus a ter encontrado na
cidade de Magdala, mas nos referiremos a ela por Maria Madalena, já que é mais
conhecida assim.

110
relação e com quem gera um filho, Enoch, Interessante pensar que Lilith
teria sido, segundo as lendas, a primeira mulher criada por Deus, mas que,
por não aceitar ser submissa ao homem, fugiu do paraíso e tornou-se um
demônio. Foi essa figura que Saramago deu espaço e palco em sua obra.
Percebemos pelo enredo das duas obras citadas acima que
Saramago faz uma espécie de paródia do texto bíblico, e, mais do que isso,
que faz uso de um elemento que até, então, não encontrava lugar em seu
texto original: o erotismo. Jesus, como nos apresenta a bíblia, nunca
respondeu às vontades e aos desejos da carne, não teve amantes ou
esposa, era metade homem e metade divino. Mas no evangelho de
Saramago, Jesus não só perde a virgindade, como se entrega
completamente para uma prostituta e com ela decide viver um
relacionamento. Na obra Caim, são muitas as passagens em que o autor
coloca esse novo elemento em foco, principalmente na relação entre o
personagem principal com Lilith. Neste outro romance, Saramago não só
reescreve os fatos bíblicos, como dá voz a uma personagem que foi
perdendo seu lugar e sofrendo um certo apagamento nas bíblias cristãs 19. A
Lilith de Saramago é dotada de uma força e um poder, que ao lado de sua
sexualidade e de seu erotismo acentuado, a empoderam.
Interessante pensar antes de tudo que a polêmica gerada na
publicação dos dois livros deve-se ao fato de que a sociedade não aceitava
a união que o autor fez entre dois pólos que para ela era impossível de
estarem juntos: o erótico e o sagrado. Pensando em O evangelho segundo
Jesus Cristo (1991), por exemplo, Jesus como ser divino não poderia jamais
ceder aos instintos e desejos carnais, não poderia cair nas tentações
sexuais do corpo de uma mulher. Se fosse um homem comum, tudo bem,
mas sendo Jesus Cristo, o filho eleito de Deus, não era coerente que a
sexualidade ali estivesse. Por isso, ao incluir o erotismo em seu romance, a
obra tornou-se obscena aos olhos desse público, sobre isso Bataille (2017,
p. 243) já nos ressaltava:

19 Ainda é possível encontrar bíblias que citem Lilith como a primeira mulher criada por
Deus, porém, a grande maioria, com o tempo, foi apagando sua figura e fazendo referência
a ela principalmente com expressões como: espírito maligno.

111
O homem nunca conseguiu excluir a sexualidade, a não ser de uma maneira
superficial ou por falta de vigor individual. Mesmo santos têm ao menos
tentações. Nada podemos fazer além de reservar domínios em que a atividade
sexual não possa entrar. Assim, há lugares, circunstâncias, pessoas reservadas:
todos os aspectos da sexualidade são obscenos nesses lugares, nessas
circunstâncias, ou em relação a essas pessoas.

Dessa maneira, fica claro que há lugares em que o erotismo não


pode entrar, ou se entra, não é visto com bons olhos, o que acontece
justamente com o evangelho de Saramago. O sexo entre dois seres é algo
comum, aceitável, mas quando está no domínio de santos e divindades
ultrapassa qualquer nível de normalidade e entra na obscenidade que não
poderá ser permitida. Além disso, Saramago retira um dos pontos
essenciais para a divinização de Jesus Cristo ao inserir o elemento sexual
mostrando, assim, essa impossibilidade de coexistência entre os pólos, pois
ao excluir a concepção de Jesus segundo a bíblia, sem sexo, tornando Jesus
diferente de todos os homens, pois nasceu de uma virgem a partir da
concepção pelo Espírito Santo, e, por outro lado, inserindo em sua obra, a
concepção por vias sexuais, em que todos os corpos desejam, todos os
homens reproduzem e nascem de maneira igual, a partir da relação sexual
entre um homem e uma mulher, o autor quebra e rompe com esses
paradigmas preestabelecidos colocando os dois pólos em reflexão. Dessa
forma, entende-se a origem da recepção e as críticas negativas que a obra
teve, principalmente dos setores religiosos, pois Saramago rompe com
certos códigos que foram propagados durantes séculos pela tradição cristã.
É justamente nessa transgressão que o autor faz, de dar voz, luz e
foco para uma prostituta e uma expulsa do paraíso, e de trazer para o meio
sagrado o erótico, que encontraremos o objetivo de nosso trabalho, isto é,
a análise da sexualidade e do erotismo de duas personagens femininas de
cada uma das obras: Maria Madalena e Lilith, respectivamente.

Maria Madalena

Retomando o objetivo de nosso estudo, que é a análise da


personagem feminina Maria Madalena, bem como sua relação com sua
sexualidade e com seu corpo e de que maneira isso irá refletir na forma

112
como a sociedade irá tratá-la, comecemos pelo momento em que sua
moradia é apresentada na obra. Jesus, em suas andanças, estava a caminho
de Nazaré, mas seus pés, devido a tanto chão andado, estavam em feridas,
foi quando, decidindo parar naquela cidade de Magdala em busca de ajuda,
encontrou uma casa.

Quis, porém, o destino que, passando ele pela cidade de Magdala, se lhe
rebentasse ali, do pé, uma ferida que andava retinente em sarar, e em tal jeito
que parecia o sangue não querer estancar-se. Também quis o destino que o
perigoso acidente tivesse ocorrido à saída da cidade de Magdala, mesmo em
frente, por assim dizer à porta, de uma casa que ali havia, afastada das outras,
como se não quisesse aproximar-se delas, ou elas a repelissem. (SARAMAGO,
2017, p. 275)

A partir da descrição da residência de Maria Madalena já podemos


inferir que algo acontece para que ela more no fim da cidade, quase que
como já expulsa, e em uma casa isolada que passa a sensação, para quem
olha, de que ela está sendo repelida por toda a cidade. Seguindo a leitura,
Jesus bate à porta, a mulher vem e o convida a entrar pra tratar-lhe dos
pés. É, então, que Jesus e os leitores compreendem qual motivo de
tamanha repressão da cidade para com ela.

Está desconfiado de que a mulher é uma prostituta, não por particular habilidade
sua em adivinhar profissões à primeira vista, ainda não há muitos dias ele próprio
poderia ter sido identificado pelo cheiro a gado cabrum que tresandava, e agora
todos dirão, É pescador, foi-se aquele cheiro, outro veio, que não tresandava
menos. A mulher cheira a perfume, mas Jesus apesar da sua inocência, que não é
ignorância, pois não, lhe faltaram ocasiões de ver como procediam bodes e
carneiros, tem bom senso que chegue para considerar que cheirar bem do corpo
não é razão suficiente para afirmar que uma mulher é prostituta. Na verdade,
uma prostituta deveria era cheirar ao que frequenta, a homem, como o cabreiro
cheira a cabra e o pescador a peixe, mas, talvez, sabe-se lá, essas mulheres se
perfumem tanto justamente por quererem esconder, disfarçar ou, mesmo,
esquecer o cheiro do homem. (SARAMAGO, 2017, p. 276-277)

Ao sabermos que Maria Madalena é prostituta podemos retornar


ao que Bataille (2017, p. 160) nos afirma que “a prostituta de baixo nível
está no último grau do rebaixamento. Mesmo sem vergonha, ela pode ter

113
consciência de viver como os porcos”. Nesse fragmento podemos observar
a que ponto a prostituição é vista em uma sociedade, a que nível a mulher
é colocada e como é taxada. Excluída de sua cidade, tratada como animal
que se enxota quando incomoda, a prostituta vive dessa maneira apenas
por ter utilizado seu corpo de uma maneira que não consideravam como a
correta e permitida pelos códigos.
Maria Madalena se portava com as características descritas no
Malleus Maleficarum20 que eram consideradas como perigosas do sexo
feminino, isto é, que poderiam levar o homem à perdição, e no caso de
Madalena “não havia dúvida, a túnica, mesmo para um leigo, era de
prostituta, o corpo de bailarina, o riso de mulher leviana” (SARAMAGO,
2017, p. 277). Madalena tinha tudo que o patriarcalismo repudiava na
mulher: roupas que pudessem marcar seu corpo, um corpo esbelto que
pode usar a dança para seduzir o homem, e um sorriso que busca provocar,
além, é claro, de ter uma sexualidade aflorada e ser prostituta. Maria
Madalena ia contra os preceitos do meio patriarcal e aproximava-se do
obscuro e demoníaco, uma vez que se acreditava que “a espontaneidade
natural, a sexualidade, os desejos da carne, a mulher e o feminino, a dança
e o jogo, tudo isso passa a ser poder do adversário, Dionísio transformado
em Diabo” (WHITMONT, 1991, p. 103).
E como estamos lidando com uma sociedade patriarcal, em que
segundo Whitmont (1991) há uma modificação de uma estrutura social
ginecolátrica para uma patriarcal, temos, assim, uma mudança também de
pensamentos e posturas, em que três elementos serão rejeitados e
desvalorizados nessa fase do patriarcalismo, estamos falando: “(a) da
divindade feminina (consequentemente, dos valores femininos); (b) dos
impulsos naturais; (c) das emoções e dos desejos espontâneos”
(WHITMONT, 1991, p. 88). Assim, a mulher deveria reprimir toda a sua
essência, natureza, interioridade e emoção, não poderia agir segundo seus
instintos e desejos, mas sim, segundo aquilo que o patriarcado considerava
como o correto.
Jesus, filho desse contexto patriarcal, ciente da postura que Maria
Madalena estava tendo, logo começa a pensar que está caindo em
20 Livro publicado na Alemanha, no século XV, pelos teólogos e inquisidores Sprenger e
Kramer, que instituía uma verdadeira caça às bruxas.

114
tentação, que tais atitudes são incoerentes com os preceitos em que fora
criado, pois Maria Madalena age com sua espontaneidade, brinca com seu
corpo e não reprime sua sexualidade, isto é, não a utiliza apenas da
maneira como rege os códigos, mas do modo como ela considera
conveniente para ela mesma. Notando isso, Jesus mostra-se preocupado
diante de uma mulher transgressora.

Jesus, em aflição, pediu à sua memória que o socorresse com algumas


apropriadas máximas do seu célebre homónimo e autor, Jesus, filho de Sira, e a
memória serviu-o bem, murmurando-lhe discretamente, do lado de dentro do
ouvido, Foge do encontro duma mulher leviana, para não caíres nas suas ciladas e
logo, Não andes muito com uma bailarina, não suceda que pereças por causa dos
seus encantos, e finalmente, Nunca te entregues às prostitutas, para que não te
percas a ti e aos teus haveres [...] (SARAMAGO, 2017, p. 277)

Porém, Maria Madalena cuida tão bem dos ferimentos de Jesus e o


trata tão zelosamente que tais questões parecem ser esquecidas ou sem
importância. É nesse momento que a imagem de prostituta vai sendo
desconstruída na obra, um exemplo disso é o fato de que muito se
relaciona a imagem de sujeira e miséria com a prostituição, mas ao reverso
disso, Maria Madalena tinha uma casa muito bela, arrumada, em nada
parecida com o lugar de imundície que comumente relegam como local das
prostituas: “Jesus olhou em redor o pátio, surpreendido porque em sua
vida nunca vira nada tão limpo e arrumado” (SARAMAGO, 2017, p. 276). Tal
fato já vai quebrando a imagem que ele próprio tinha do que seria esse tipo
de mulher, o que facilitou essa abertura maior para que pudesse conhecê-
la. Até que finalmente se deixa levar também por seus desejos sexuais e
perde com ela a sua virgindade.

Aprende o teu corpo, e ele aí o tinha, o seu corpo, tenso, duro, erecto, e sobre ele
estava, nua e magnífica, Maria de Magdala, que dizia, Calma, não te preocupes,
não te movas, deixa que eu trate de ti, então sentiu que uma parte do seu corpo,
essa, se sumira no corpo dela, que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que
um estremecimento o sacudia por dentro [...] era ele quem gritava, ao mesmo
tempo que Maria, gemendo, deixava descair o seu corpo sobre o dele.
(SARAMAGO, 2010, p. 281)

115
Jesus passa ainda uma semana na casa de Maria Madalena, tempo
necessário tanto para curar suas feridas quanto para aprender mais sobre
as artes sexuais que sua professora com tanta paciência lhe prometeu
ensinar. Durante essa semana, Madalena não recebeu nenhum cliente,
muitos vieram bater em sua porta, mas não atendeu nenhum, sua
dedicação estava exclusiva para aquele aprendiz. Além disso, disse a Jesus
que ficasse se quisesse, ou então ela iria com ele, e prostituta não mais
seria. Mas Jesus precisava partir para Nazaré, e assim aconteceu.
No entanto, tempos depois, Jesus retorna, encontra a mesma
casinha com a impressão de estar sendo repelida por toda a cidade e
reencontra Madalena. A partir de então, os dois seguem juntos. Madalena
vai com Jesus por suas peregrinações, torna-se sua mulher, embora sem
casamento. Interessante pensar que os dois vivem em constante estado de
transgressão, pois como nos salienta Bataille (2017) o casamento seria a
transgressão sancionada do interdito, isto é, casando haveria a
possibilidade de viver uma sexualidade lícita, mas nem a isso Jesus e Maria
Madalena se rendem.
Tempos depois, quando estão de passagem por Magdala,
descobrem que, quando deixaram a cidade, os habitantes destruíram sua
casa. Finalmente conseguiram extinguir a prostituta de sua bela e pura
cidade, o animal foi, enfim, enxotado.

Lilith

Já na obra Caim (2009) encontramos a personagem Lilith que faz


referência a uma figura mitológica de mesmo nome que percorreu o
imaginário de diversos povos, como os sumérios, babilônios, hebraicos,
árabes, persas e outros. Em cada uma dessas culturas, o mito de Lilith teve
transformações e perspectivas um pouco distintas, mas sua base foi sempre
mantida: Lilith foi a mulher que não aceitou ser submissa a homem
nenhum.
Mesmo se fazendo presente em diversos povos e culturas “a lenda
de Lilith, primeira mulher de Adão, foi perdida ou removida durante a
época de transposição da versão jeovística [da Bíblia] para aquela
sacerdotal que logo após sofre as modificações dos Pais da Igreja”

116
(SICUTERI, 1985, p. 23). Assim, chegou uma das versões mais conhecidas,
aquela em que Adão, cansado de viver sozinho no paraíso, pede a Deus por
uma companhia. Lilith é, então, criada. Porém, durante o primeiro ato
sexual, Lilith não aceita ter que ficar na posição abaixo de Adão e exigia que
também ela tivesse direito ao gozo e ao prazer. Tendo seu pedido negado, e
ao tomar consciência de que foi criada apenas para ser submissa a Adão,
enfurecida, Lilith não aceita tal situação, sai do paraíso e se recusa a voltar,
sendo transformada em demônio.

‘Nós dois somos iguais’ – disse Lilith antes de iniciar sua carreira endemoninhada
– ‘uma vez que saímos do mesmo barro.’ Não obteve justiça nem foi atendida por
Adão em suas necessidades, motivo pelo qual dessa disputa se originou a
primeira cisão do laço matrimonial e as consequentes vinganças mútuas que
acabaram por produzir crimes de sangue (ROBLES, 2006, p. 2).

É baseada nessa figura que temos a personagem com quem Caim se


relacionará. No romance de Saramago, Lilith é destituída, aparentemente,
dessa forma sobrenatural, mas mantém algumas marcas que são
primordiais a essa aura mitológica: como a sexualidade e o poder. Lilith é a
mulher que governa a cidade de Nod, o que já demonstra seu poder e
autoridade. É casada com Noah, porém não conseguiu engravidar dele, o
que faz com que o marido aceite calado as investidas sexuais que sua
esposa faz com os homens que lhe agrada, já que Lilith tem uma sede
sexual insaciável.
Podemos notar que as marcas do patriarcalismo, assim como no
Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), também se mostram fortemente
apresentadas em Caim (20199), exemplo disso ocorre quando Caim chega
na cidade de Nod, que é conhecida como a terra dos errantes, e vai
perguntar quem é o dono da cidade, a fim de ir procurar com ele algum
trabalho.

E o senhor daqui, é quem, O senhor é senhora e o seu nome é lilith, Não tem
marido, perguntou caim, Creio ter ouvido dizer que se chama noah, mas ela é
quem governa o rebanho, disse o olheiro, e imediatamente anunciou, Aqui está a
pisa do barro. (SARAMAGO, 2009, p. 49)

117
Ou seja, o fato de Caim perguntar pelo senhor da terra, e, depois de
saber que quem governa é uma mulher e não um homem, e continuar a
questionar se essa senhora não teria um marido, nos mostra como os
preceitos de uma sociedade patriarcal são enraizados, uma vez que a figura
de uma mulher tendo autoridade sobre toda uma cidade seria a última
coisa a se imaginar e que chega ao ponto de causar certa surpresa.
Na cidade de Nod, Caim vai buscar trabalho como pisador de barro
em um dos empreendimentos que pertencem a Lilith. Quando a encontra,
pergunta a um rapaz quem é aquela mulher e é dessa maneira que Lilith é
vista pela sociedade e apresentada aos leitores:

Regressaram ao palácio, desta vez pela parte edificada anterior à ampliação em


curso, e aí viram num balcão uma mulher vestida com tudo o que devia ser o luxo
do tempo e essa mulher, que à distância já parecera belíssima, olhava-os como
absorta, como se não desse por eles, Quem é, perguntou Caim, É lilith, a dona do
palácio e da cidade, oxalá não ponha os olhos em ti, Porquê, Contam-se coisas,
Que coisas, Diz-se que é bruxa, capaz de endoidecer um homem com feitiços,
Que feitiços, perguntou Caim, Não sei nem quero saber, não sou curioso, a mim
basta-me ter visto por aí dois ou três homens que tiveram comércio carnal com
ela, E quê, Uns infelizes que davam lástima, espectros, sombras do que haviam
sido [...] (SARAMAGO, 2016, p. 51)

Interessante pensar que a imagem de Lilith passa a ser de uma


feiticeira ou bruxa, e isso baseado no fato de seu poder e de sua
sexualidade acentuada. O demoníaco e a bruxaria sempre estiveram
intimamente ligados ao gênero feminino, uma vez que, segundo se
pensava, as mulheres seriam mais conectadas com instintos e a natureza,
enquanto os homens com o lado mais racional. Tanto é que o Malleus
Maleficarum instituía primordialmente uma perseguição ao gênero
feminino como o predominante ligado as artes da bruxaria:

O Malleus é dirigido principalmente às bruxas. Seu texto é alimentado pelo ódio à


mulher, pela misoginia, em função da qual são atribuídas a ela características
desabonadoras, amealhadas enciclopedicamente e interpretadas como
conotações machistas, as mais pejorativas, na primeira parte do livro, para
justificar as práticas terríveis prescritas na terceira parte: ‘A razão natural para isto
é que ela é mais carnal que o homem, como fica claro pelas inúmeras

118
abominações carnais que pratica. Deve-se notar que houve um defeito na
fabricação da primeira mulher, pois ela foi formada por uma costela de peito de
homem, que é torta. Devido a esse defeito, ela é um animal imperfeito que
engana sempre.’ (Malleus, Parte l Questão 6) (BYINGTON, 2009, p. 34)

Dessa forma, o fato de uma mulher ter todo o poder de uma cidade,
ter uma necessidade insaciável por sexo, buscar vários parceiros sexuais,
mesmo sendo casada, e conseguir todos os homens que deseja, só poderia
ter uma justificativa: ser uma bruxa.
Uma mulher numa sociedade patriarcal, como vimos anteriormente
em Whitmont (1991), deveria reprimir seus desejos, instintos e
espontaneidades, em vez de libertá-los e exibi-los para toda a sociedade.
Mas Lilith não reprime nenhum desejo, assim, quando põe os olhos em
Caim gosta do que vê e deseja que ele vá a seu palácio. Chegando lá, as
servas de Lilith o esperavam para banhá-lo antes do seu encontro com
Lilith. O banho já apresenta a atmosfera erótica do palácio, e Caim, pela
primeira vez ejacula:

O contacto insistente e minucioso das mãos das mulheres provocou-lhe uma


ereção que não pode reprimir [...]. O resultado, vistas as circunstâncias, era mais
do que previsível, o homem ejaculou de repente, em jorros sucessivos que,
ajoelhadas como estavam, as escravas receberam na cara e na boca.
(SARAMAGO, 2016, p. 54)

As servas de Lilith funcionam como condutoras da relação sexual


que logo haverá entre Lilith e Caim. Elas são signos de transgressão, riem,
brincam com o pênis de Caim, e engolem seu sêmem, ou seja, estão
totalmente livres de qualquer código de conduta, agem mediante seus
instintos e desejos. Após esse primeiro contato sexual, Caim é, então,
levado à Lilith.
O sexo entre Lilith e Caim é completamente o oposto do que seria o
proposto por Deus entre ela e Adão. Por ser a primeira vez de Caim, e por
não ter amarras nessas questões, Lilith toma as rédeas do ato sexual, é ela
que com uma palavra rege toda a cena: “entra”. Não é mais uma mulher
submissa, é uma mulher que faz do homem quase uma espécie de presa a
ser dominada e devorada, pois “lilith, quando finalmente abrir as pernas

119
para se deixar penetrar, não estará a entregar-se, mas sim a tratar de
devorar o homem a quem disse, Entra”. (SARAMAGO, 2016, p. 59). Caim é
seu amante, mas é antes de tudo seu servo que recebe uma ordem de sua
senhora, e que está ali para servi-la como pode:

caim já entrou, já dormiu na cama de lilith, e por mais incrível que nos pareça, foi
a sua própria falta de experiência de sexo que o impediu de se afogar no vórtice
de luxúria que num só instante arrebatou a mulher e a fez voar e gritar como
possessa. Rangia os dentes, mordia a almofada, logo o ombro do homem, cujo
sangue sorveu. Aplicado, caim esforçava-se sobre o corpo dela, perplexos por
aqueles desgarros de movimentos e vozes, mas, ao mesmo tempo, um outro
caim que não era ele observava o quadro com curiosidade, quase com frieza, a
agitação irreprimível dos membros, as contorções do corpo dela e do seu próprio
corpo, as posturas que a cópula, ela mesma solicitava ou impunha, até ao acme
dos orgasmos. (SARAMAGO, 2009, p. 60)

Se um dia uma mulher foi submissa no sexo, não foi Lilith, é ela que
comanda todos os atos, Caim obedece seu ritmo, deixa-se estar onde
precisa estar e faz o necessário para satisfazer os desejos de sua senhora,
que tem uma fome sexual voraz e orgástica. Se o patriarcalismo vinha
pregar que a mulher deveria reprimir seus desejos, se fazer presente no
sexo apenas para satisfazer seu homem e procriar, Lilith vem mostrar que a
mulher devia satisfazer a si mesma, liberar seus desejos até mesmo com
ranger de dentes.
Lilith destrói os discursos segregadores, em que só os homens
tinham direito ao prazer e ao gozo. Lilith permite que a mulher fale sobre
sexo abertamente, sobre suas ânsias sexuais, que brinque, se divirta, que
até possa ranger os dentes em seu momento orgástico, dessa maneira,
Lilith é a personificação de uma sexualidade sem condicionamentos
patriarcais. Por isso é a senhora da terra de Nod, da terra dos errantes, da
terra onde não falta transgressão.
Lilith ainda não havia conseguido engravidar de Noah, e por isso o
marido ainda aceitava essas aventuras de sua esposa, pois também tinha
vergonha do fato de não conseguir procriar, ou seja, sua masculinidade
estava ferida, assim, se a mulher engravidasse, mesmo que de qualquer
homem, Noah poderia dizer que era seu, e sua virilidade estaria a salvo.

120
Além disso, o esposo não parecia ser o mais eficiente para saciar sua
mulher na cama, o que a dava ainda mais motivos para que ela procurasse
formas de suprimir seus desejos.

Marido consentidor como os que mais o tem sido, noah, e, todo o tempo, como é
costume dizer-se, de vida em comum, havia sido incapaz de fazer um filho à
mulher [...], viria a tornar-se cómoda maneira de viver, só perturbada pelas
raríssimas vezes em que lilith, movida pelo que imaginamos ser a tão falada
compaixão feminina, decidia ir ao quarto do marido para um fugaz e insatisfatório
contacto que a nenhum dos dois comprometia, nem a ele para exigir mais do que
lhe era dado, nem a ela para lhe reconhecer esse direito. Nunca, porém, lilith
permitiu a noah que entrasse no seu quarto. (SARAMAGO, 2011, p. 61).

Percebemos, dessa forma, que Lilith não iria se submeter à vida


toda a um homem que não era capaz de lhe satisfazer, uma vez que seus
instintos e desejos eram, para ela, primordiais e precisavam ser saciados
como o de qualquer outra pessoa, independente do gênero. E foi Caim, que
além de suprir sua sede por sexo (pois diz que se ele ficar manda embora
todos os seus amantes), conseguiu engravidar Lilith. Nasce, então, Enoch,
filho esse que Caim só verá quando o menino completar quase dez anos,
pois embora a vida seja boa no palácio com Lilith, não pode ficar, pois
precisa continuar com sua jornada de caminhante.
Notamos que Lilith governa não só a cidade, mas seu próprio corpo,
pois é ela quem dá ou não permissão, quem decide quem entra ou não em
si, e não os costumes, preceitos ou regras sociais. Lilith domina uma cidade,
domina o sexo, domina seu corpo. E os homens, principalmente os
homens, têm medo desse poder todo nas mãos de uma mulher, por isso a
consideram uma bruxa, porque é fácil e justificável temer uma bruxa.
Lilith, nessa ânsia de não aceitar ser submissa, passa uma
mensagem que vem se propagando dos tempos mais antigos até hoje, “eu
sou todas as mulheres, os nomes delas são meus, disse lilith” (SARAMAGO,
2011, p. 126). Lilith se apresenta quase como que a personificação do
gênero feminino, de como a mulher deveria ser com seu próprio corpo,
como deveria lidar com sua vida e com seu poder, ser dona de tudo o que
puder e ter sempre a boca aberta para dizer “entre” ou “saia”, e não se
calar diante daqueles que buscam amordaçá-las.

121
Por fim, é interessante tomar cuidado para não cair no equívoco de
considerar Lilith como uma feminista, inclusive como uma das primeiras a
que temos memória, pois, precisamos reconhecer que não é bem isso que
ela prega. Lilith não busca essa horizontalidade entre gêneros que o
feminismo almeja, mas ao contrário, ela rebaixa o sexo masculino, coloca-o
na posição de submisso e a mulher na posição de soberana, é, assim, uma
verdadeira inversão de papéis que Lilith prega.

As mulheres saramaguianas

Saramago nunca teve receio em ousar nas personagens femininas,


sempre foram fortes e marcantes, e pudemos ter um exemplo disso por
meio de Maria Madalena e Lilith, mas podemos citar muitas outras, como
Blimunda, de Memorial do Convento (1982), Joana Carda e Maria Guavaira
de A jangada de pedra (1986), a mulher do cego, de Ensaio sobre a
cegueira (1995), e muitas outras. Mas o que essas mulheres saramaguianas
têm em comum? O fato de serem mulheres que não se deixaram reger por
ordens sociais estabelecidas, pelo contrário, são mulheres ressignificadas
em seu tempo, que rompem com tradicionalismos, com códigos, com
preceitos, que desobedecem; mulheres que seguem seus instintos, que
lutam e até matam, que não são sexo frágil, fazem do homem o frágil, não
precisam dele, valem por si; são mulheres inteligentíssimas, mas que
também são emoção; são as consideradas pecadoras e transgressoras que
Saramago dá voz e coloca como protagonistas da sua tessitura narrativa.
É assim que acontece com as duas personagens femininas das obras
aqui analisadas, ao fazer uma espécie de paródia do evangelho, o autor
poderia optar por Jesus se relacionar com qualquer personagem, mas foi
logo com a prostituta que isso aconteceu, o que é de grande relevância
dentro da obra. Caim viaja no tempo por diversas vezes, encontra inúmeras
mulheres, mas é justamente com aquela que faz referência à que foi
expulsa do paraíso que ele vive seu caso amoroso. Porém é relevante
pensar como essas duas mulheres foram taxadas em seu meio
simplesmente pela maneira como decidiram tratar do seu corpo e de sua
sexualidade.

122
Primeiro, Maria Madalena, uma prostituta. Podemos inferir que a
escolha dessa profissão deveu-se ao fato de condições financeiras, pois não
há relatos de que ela tivesse família ou algo que a pudesse sustentar, tanto
é que assim que Jesus a chama para ir viver com ele, ela abandona a vida
de prostituta. Bataille (2017) nos confirma tal relação entre a prostituição e
a condição financeira quando retoma que a origem da decadência das
prostitutas está ligada com sua condição de miséria. Tal fato nos mostra
que o corpo foi o meio utilizado para sobrevivência, e que quando não foi
mais necessário, parou de utilizá-lo com esse fim. Já Lilith, dorme com
vários homens a fim de satisfazer seus desejos e anseios sexuais. Não é por
questão de sobrevivência financeira, mas de sobrevivência como mulher,
com sua natureza interior, com seus desejos.
Porém, como Maria Madalena não tinha família que a ajudasse, que
a protegesse, alguém por ela, era tratada como uma escória da sociedade.
Vivia excluída, no fim da cidade, afastada de todos, como se morar perto
dela pudesse significar pegar uma doença contagiosa. Ao se mudar,
destroem sua casa e o que um dia ela ali construiu. É o rebaixamento
humano. Enquanto Lilith, por governar a cidade, não poderia ser tratada
mal, não poderia ser desrespeitada, era a senhora de todos, então, na falta
de outra justificativa, foi considerada bruxa, afinal só com poderes
sobrenaturais para uma mulher conseguir atrair para si tanto poder e que
tivesse tanta libido.
Observamos que a sociedade taxou essas mulheres mediante a
forma como lidaram com seus corpos e com sua sexualidade. A que deitava
com todos, mas que era pobre, poderia ser rechaçada, excluída, e
poderíamos jogar pedras e queimar sua casa, mas aquela que tem poder,
que governa nossa cidade, que paga nosso salário, devemos temer, pois
somente algo de outro mundo justificaria tamanha autoridade e erotismo
em uma mulher, então, seria prudente não mexer com ela, a fim de não
sofrer consequências sobrenaturais.

Conclusão

A proposta de Saramago de apresentar a seus leitores versões


variadas daquelas consagradas na bíblia nos rendem muitas reflexões e

123
estudos. Detemo-nos em nossa pesquisa na questão do feminino, que
sempre ganha um espaço muito relevante na produção literária do autor,
mas em particular no que diz respeito ao erotismo e a relação que a mulher
estabelece entre seu corpo e sua sexualidade a partir dos preceitos sociais
em que está inserida, pois é essa sociedade que está pronta para encurralá-
la.
Depois de expor rapidamente cada uma das obras, e de analisar as
personagens selecionadas, podemos constatar que Saramago não teve
medo de transgredir nenhum código imposto, seja ele social ou, e
principalmente, religioso, uma vez que, como nos salienta Bataille (2017) o
sexo é um interdito, mesmo que não nos lembremos exatamente quando
começou, a interdição sobre o sexo, existente de maneira global, parece
sempre haver existido, logo a atividade sexual, ou tudo que seja ligado a
ela, é essencialmente uma transgressão. Ademais, ainda de acordo com
Bataille (2017), o interdito e a transgressão são dois termos inconciliáveis,
porém, não se negam, ou seja, quando Saramago transgride esse interdito
sexual ele não o nega, pelo contrário, ele o supera, pois é só quando
deixamos de ser submissos desses interditos que nos pregam que, enfim,
tomamos consciência deles.
Ou seja, é a partir da transgressão, do modo como Madalena e Lilith
rompem com os interditos e seguem seus instintos, necessidades e
vontades, que se tornam conscientes da sociedade e dos preceitos que a
elas são instaurados. Por isso, Maria Madalena é repelida por toda a
cidade, por isso Lilith é temida e considerada bruxa, e ambas sabem o
motivo disso, pois a partir do momento que quebram a suposta ordem
imposta elas desestabilizam a todos e que se tornam conscientes, e tornam
os outros também conscientes, da existência de certas normas que regem o
meio em que vivem.
A partir de Maria Madalena e Lilith pudemos notar como a forma
que uma mulher decide tratar seu próprio corpo, bem como dar voz e
atender às suas necessidades e desejos sexuais, podem atormentar e gerar
conflitos sociais. A transição de uma sociedade ginecolátrica para uma
patriarcal foi muito penosa para com as mulheres, tirou delas o que de mais
natural tinha, os seus anseios, instintos e desejos. Fingir que não existem e
viver apenas para saciar os do gênero oposto é um crime e uma crueldade

124
sem precedentes em nossa história. Com essas personagens, Saramago
vem nos alertar que é possível sim romper com tais códigos que foram
impostos, mas que não são imprescindíveis a serem obedecidos.
Madalena nos ensina a usar nosso corpo da forma que melhor
puder nos servir. Lilith nos mostra como gritar, como libertar nossas
vontades e não aceitarmos a posição de submissão. Ser taxada de
prostituta ou bruxa, e sofrer os preconceitos de tais denominações, é um
preço que ainda se paga pela escolha de viver livre com sua sexualidade,
mas quem sabe, e torcemos por isso, um dia ele deixe de existir.

Referências

BATAILLE, G. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.


BYINGTON, C. Prefácio. In: KRAMER, Heinrich & SPRENGER, James. Malleus Maleficarum.
O martelo das feiticeiras. 20 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2009.
DIAS, B. O erotismo e a libertação feminina no evangelho de Saramago. Letras Escreve,
Macapá, v. 7, n. 4, 2º semestre, 2017.
JUNIOR, J. Imagem, imaginação e esclarecimento em Saramago: pregação aos que não
creem no que veem e creem no que não veem. 2017. 69f. Relatório de Pesquisa (Pós-
Doutorado)- Programa de Pós-Graduação do Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2017.
ROBLES, M. Mulheres, mitos e deusas: o feminino através dos tempos. São Paulo: Aleph,
2006.
SARAMAGO, J. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras: 2017.
SARAMAGO, J. Caim. São Paulo: Companhia das Letras: 2009.
WHITMONT, Edward. Retorno da deusa. São Paulo: Summus, 1991.

125
Os filhos de Zeus ou a herança patriarcal
em O herói devolvido (2000), de Marcelo Mirisola

Ilca Andréa Barroso de Carvalho21

Nos domínios de Zeus

Na mitologia grega, Zeus é considerado o pai dos deuses e


exercia autoridade sobre eles e sobre os que estavam sujeitos à morte. Era
o soberano do Monte Olimpo e foi concebido, ao longo do tempo, como
protótipo de virilidade em razão de seus inúmeros envolvimentos amorosos
com deusas e mortais, jamais aceitando uma resposta negativa daquelas
que desejava. Mais tarde, esse pensamento foi desenvolvido como uma
representação do potencial masculino, o qual não admite contestação por
parte daqueles a que julgavam estar abaixo de sua vontade. Apesar de esse
ainda ser o pensamento vigente, há resistência nos discursos e ações dos
que não acreditam que o poder está destinado apenas aos que,
socialmente, foram eleitos por convenção. Com essa recusa, os
descendentes de Zeus, na tentativa de manter o que foi estabelecido,
acirram seus desejos e os ampliam nas mais diversas situações do
cotidiano, seja na realidade ou na ficção.
Não é preciso muito esforço para perceber que existe, na
literatura brasileira contemporânea, uma tendência que retrata as vivências
e os dramas do cotidiano. Assim, não raro, personagens são inseridas em
situações comuns e se fazem presentes na prosa de escritores como
Marcelino Freire, Marçal Aquino e Marcelo Mirisola. Nessa perspectiva,
temas como violência, exclusão, racismo, machismo e loucura constituem
um amplo material de estudo para quem deseja pesquisar e compreender
a atual sociedade brasileira através de textos literários. Não obstante,
incide, sobre este trabalho, a análise de alguns contos do livro O herói

21 Mestranda em Letras (Literatura Comparada) pela UFC. E-mail: [email protected].

126
devolvido, de Marcelo Mirisola, o que constitui apenas uma pequena
mostra da maioria dos contos nessa obra.
Narrados em primeira pessoa, em situações cotidianas atuais, tais
contos, por meio de uma linguagem crua e de enredos ásperos, denunciam
ações que desprezam, de uma forma geral, a sexualidade das pessoas que
vivem, na maioria das tramas, à margem da sociedade – prostitutas,
homossexuais, ambulantes. Em oposição ao herói romântico, que se
apresenta nobremente à sociedade, os heróis de Mirisola mostram-se
confusos, solitários e incapazes de estabelecer um vínculo afetivo com as
demais personagens que com eles dividem a cena. Assim, homens,
mulheres, homossexuais e até adolescentes não são poupados do escárnio
e do desprezo dos narradores protagonistas. Dentre estes citados, faz-se,
aqui, a referência aos elementos femininos das narrativas, por serem estes
os que mais dividem com os protagonistas os enredos na obra.
O herói devolvido traz como epígrafe uma citação de Luciano de
Samósata presente em seu Diálogo dos mortos:

Hermes:
– A Helena é esse crânio aí.
Menipo:
– Então, foi por essa coisa que se equipararam mil navios, vindos de todas as
regiões da Hélade? Foi por ela que sucumbiram tantos gregos e bárbaros, e que
tantas cidades foram devastadas? (MIRISOLA, 2000, p. 9).

A maneira como Helena é citada no texto de Samósata mostra que


o feminino, independentemente de seus atributos, era objeto de desprezo
dos homens desde os tempos mais antigos. Ao usar esse diálogo como
epígrafe, Marcelo Mirisola denuncia o tratamento dispensado às mulheres
ao longo do tempo e prenuncia, em seu livro, que esse tratamento não
mudou, que está longe de ser modificado e que as mulheres têm relevância
em seus textos.

Os filhos de Zeus

A maioria dos contos de O herói devolvido apresenta protagonistas


masculinos heteronormativos e solitários, apesar de sempre haver uma

127
referência feminina nas tramas. Reflexo de uma sociedade machista,
misógina e preconceituosa, os protagonistas estudados destacam-se pela
maneira como tratam suas companheiras de enredo, sem o menor apreço
por sua sexualidade, o que evoca uma constância, uma repetição de
procedimento, um modus operandi. Para tanto, todos fazem uso da
variante informal da linguagem por meio de palavras nada convencionais e
estranhas à literatura canônica, quando se referem ao corpo feminino em
geral e, especialmente, à sua genitália. Apesar disso, esses narradores estão
longe de pertencerem à mesma classe social da maioria das mulheres nos
contos, vez que, muitas vezes, o pensamento deles se distancia do enredo
principal, envolvendo o leitor em seu próprio devaneio, que, quase sempre,
apresenta-se por intermédio de um conhecimento intelectualizado, alheio
ao entendimento de suas parceiras. A constância dessas ações sempre
ocorre mediante a impossibilidade de uma não correspondência imediata
de realização do desejo desses protagonistas. Nessa perspectiva, tem-se
uma figura masculina que, num jogo de conquista ou em meio a uma
relação em andamento, angustia-se e evoca pensamentos que debocham e
desprezam sua parceira, na tentativa de aplacar a ansiedade advinda por
não ter sua vontade imediatamente satisfeita, conforme atesta as seguintes
passagens dos contos “Bié” e “Basta um verniz para ser feliz”,
respectivamente:

– Conheci a Drica no café Amsterdam. Você já foi lá?


Não, nunca fui.
– É a embocadura, entende? É a Foz da galera GLS! O delta!
putaqueopariu.
1931, Nova York,
Delta do rio Hudson. Os rapazes de Al Capone à espera do carregamento de
arenque e do uísque desviado do porto de NY (fabuloso...). Mas Bié estava
falando de outra foz que absolutamente não tinha nada a ver com ilhas de
aluvião de feitio triangular. Dei uns tratos à bola. E pensei comigo mesmo: “lixo
sexual”. (MIRISOLA, 2000, p. 35).

A mulher dele é baixinha e tem tetas grandes. Eu e ele parecemos irmãos (nossa
bunda é grande). Qualquer dia chupo as tetas dela. O babaca confia em mim.
Eles são rotarianos. Um dia chamei ela num canto e disse: “você gosta de
mulher, não gosta?”. (MIRISOLA, 2000, p. 97).

128
No conto “Basta um verniz para ser feliz”, o protagonista faz-se de
amigo de uma família de classe média alta, mas elabora pensamentos que
rebaixam o feminino, mostrando o caráter cíclico da composição dessas
personagens:

O garoto é bicha e quer fazer ESPM. A menina é uma biscate eles me chamam
de “tio”, os cínicos. [...] Êta familiazinha de merda! Eu me dou muitíssimo bem
com todos eles. Eles me adoram. Eu os odeio.
– Sabia que sua mãe não suporta você, Fernandinha?
Aí o arremedo de piranha chora. Se descabela, e eu lhe dou uns conselhos:
– Mas eu falo com ela, vai se divertir que eu garanto.
– Jura, tio?
– Juro, é claro que eu juro. A mãe se queixa da filha. Eu digo para não se
preocupar com a piranha. (MIRISOLA, 2000, p.100).

Nessa passagem do conto, é possível perceber que o narrador


evidencia seu desprezo quando faz referência as personagens mãe e filha.
Todavia, pai e filho também recebem igual tratamento, o que assinala a
dificuldade do protagonista em desenvolver afetividade ou mesmo uma
relação amistosa com qualquer personagem do conto. Para o narrador, é
impossível estabelecer um laço amistoso com essa família, pois as relações
estabelecidas entre os próprios membros são falsas e inconsistentes,
escondidas sob a capa de um verniz, verniz esse que também esconde a
hipocrisia do protagonista.
O conto “Bié” narra o encontro do protagonista com uma jovem
lésbica em um restaurante. Enquanto conversa com ela, pois a tem como
alvo de conquista, tece pensamentos acerca de sua sexualidade,
demonstrando total menosprezo pelo feminino:

Quando ela respirou duas vezes antes de arremessar – (a imagem é fraca, mas
veio dela) – e finalmente me disse: “faz dois meses que nos separamos... eu e
minha namorada”; fui condescendente, quase um veado, levado a contragosto,
mas todo ouvidos. Ao mesmo tempo tive uma curiosidade escrota e o princípio
do que seria uma ereção à francesa. Eu, Bié e a outra numa suruba, foi o que
pensei. (MIRISOLA, 2000, p.35).

129
Apesar de ser destacado, o desprezo do narrador protagonista não
recai apenas sobre o feminino, mas também sobre a homossexualidade de
sua companheira de cena, melhor evidenciado na seguinte citação:

Mas que merda! Uma lésbica apaixonada? Ela tem o quê? Amor por mulheres?
O que mais?
O amor lésbico é de segundo time. É um amor sem pica. Foi aí que tive
confiança no meu amor, depois, é claro, eu daria uma chance para o dr. Freud e
para a minha inestimável pica. Um erro. De antemão, um erro. (MIRISOLA, 2000,
p.35).

Nas duas citações do conto “Bié”, o discurso do narrador mostra o


quanto ele se volta somente para si e para suas necessidades. Tal
comportamento encontra eco numa sociedade que se acostumou a ver
como natural a supremacia masculina sobre a feminina, baseada na
dominação e no poder exercido, apenas, pelo homem. Dessa forma,
consolidou-se a ideia de que a sexualidade feminina estaria sempre
disponível e pronta para atender os desejos masculinos. Não obstante, hoje
se sabe que esse pensamento não se dá por uma consequência biológica,
baseada na anatomia dos sexos, mas por uma construção social. O
pensamento desviante do protagonista é quem lhe tira a máscara e o
desnuda para o leitor, mostrando uma oposição entre o comportamento
dele na hora da conquista e de suas fantasias secretas.
Ao explicar o princípio do isomorfismo entre relação sexual e
relação social, Foucault (1984) declara que a penetração foi pensada como
ato modelo da relação sexual, cristalizando, assim, a ideia polarizada de
atividade e passividade, e que por analogia a essa concepção, o sujeito
ativo seria superior ao passivo. Nessa perspectiva, estabeleceu-se uma
hierarquia de dominação que coloca o indivíduo que penetra como
superior ao outro parceiro, independente de ser do sexo feminino ou não.
No conto, o protagonista inferioriza a homossexualidade, pois a concebe
como fraqueza. Na primeira citação, ao reagir a contragosto, o narrador
compara-se a um “veado” (homossexual masculino), por apresentar
tolerância, complacência ao ouvir a narrativa de Bié. Isso ocorre porque
numa sociedade patriarcal, como a brasileira, a sexualidade é regida
compulsoriamente pela heteronormatividade, que está associada à

130
supremacia masculina sobre a feminina. Assim, a mulher e tudo o que a ela
seja peculiar e/ou associado é visto e tratado como negativo. No imaginário
brasileiro, convencionou-se e difundiu-se a ideia de que os homossexuais
masculinos apresentam traços femininos, além de serem, sexualmente,
penetrados, ou seja, passivos. Na segunda citação, o protagonista
questiona diretamente a homossexualidade de sua companheira de trama,
depreciando o “amor lésbico” por ser um amor sem pênis. Dessa maneira,
nos dois casos citados, o narrador apresenta-se como herdeiro e
representante da cultura falocêntrica, na qual aquele que possui o
falo/pênis domina e submete o parceiro à sua vontade.
O narrador do conto “Basta um verniz para ser feliz” também se
mostra homofóbico quando se remete ao pai e ao filho, ambos
homossexuais e igualmente alvos da linguagem depreciativa de quem narra
o conto, conforme apresenta o seguinte trecho:

O problema é que ela não tem coragem de enfiar o dedo no cu dele: “Enfia!
Enfia Que Vai Salvar Seu Casamento!” o casamento deles tá em crise. Eu vivo
falando para ela enfiar o dedo no cu dele. Mas ela não tem coragem.
Ela tem raiva da filha. E protege o veadinho do filho. (MIRISOLA, 2000, p.98).

Aqui, é válido esclarecer que neste conto, Mirisola ridiculariza a


classe média brasileira que, em conformidade ao que se apresenta no
texto, é desestruturada em suas relações familiares, apesar de ostentar um
alto padrão econômico-financeiro.
A concepção de atividade e passividade ainda retorna no final do
conto “Bié”, quando o narrador manifesta interesse em saber se Bié exerce,
na relação sexual com sua namorada, o status ativo ou passivo:

Ela era virgem como tal. Nunca ninguém havia fodido Bié. Aí é que entrava (com
efeito, sem a pica...). iria fodê-la nas ideias.
Depois viria o sexo. Onde minha desvantagem era evidente (havia dois meses
que Bié rompera ‘o namoro’ com a três-por-quatro). Desconfiei que Bié era a
parte macha do acerto, apesar do Oscar ‘língua santa’ Schmidt. Bié me garantiu
que não:
– Não! Aconteceu, a gente se gostou. Não havia submissão e jugo, entende?
– Eu lhe disse que sem submissão não tinha graça. (Mirisola, 2000, p. 38).

131
Apesar de ter como preferência a submissão e o jugo do parceiro,
não se pode afirmar que o narrador protagonista seria um exemplo de
indivíduo perverso no sentido freudiano do termo, uma vez que não se tem
como objetivo deste trabalho discorrer sobre as perversões à luz da
psicanálise. Entretanto, é preciso esclarecer que para Freud (2016), a
sexualidade humana dita “normal”, também apresenta elementos
perversos durante o ato sexual e que somente alcançam a condição
patológica, quando se considera a intensidade e o predomínio de um
desses elementos, ou seja, não se pode considerar como perversão
determinadas ações presentes na relação sexual, mesmo que essas ações
sejam percebidas como cruéis e violentas. Freud atestou isso no texto Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade (2016) e ainda declara, no que
concerne ao estudo das perversões (sadismo e masoquismo), que a
agressividade apresenta-se como um elemento importante da sexualidade
da maioria dos homens:

No tocante à algolagnia ativa, o sadismo, é fácil apontar as raízes no que é


normal. A sexualidade da maioria dos homens mostra um elemento de
agressividade, de inclinação a subjugar, cuja significação biológica estaria na
necessidade de superar a resistência do objeto sexual por algum outro meio
além de fazendo-lhe a corte. (2016, p. 51).

Essa agressividade a qual Freud se refere, também está presente


de forma incisiva em “Bié”, vez que o protagonista deixa claro seu desejo de
submeter e subjugar sexualmente suas parceiras, conforme a última citação
extraída do conto.
À guisa da informação freudiana, a história da masculinidade
sempre foi acompanhada pela violência ao longo do tempo. Construto
social e histórico, a violência masculina esteve presente em todos os cantos
do planeta desde as primeiras civilizações e permanece até hoje nas mais
diversas sociedades. Sempre associada à força física e ao código de honra
masculino, sofreu modificações com o passar do tempo por estar em
consonância com a sociedade de cada época. A partir da Revolução
Francesa, o comportamento masculino foi significativamente mudado e o
uso da violência arrefeceu-se e cedeu espaço para o uso do bom senso, do

132
controle e da dominação. Acerca disso, Fabrice Virgili (2013, p. 83), em seu
texto “Virilidades inquietas, virilidades violentas”, declara:

Se, com a Revolução Francesa, os homens adquiriram a cidadania e o monopólio


guerreiro, passou-se também progressivamente de uma masculinidade ofensiva
– ser um homem era combater, adotar comportamentos desafiadores e fazer a
demonstração da sua força ao preço da violência – para uma masculinidade
dominada. A caserna que formava para o ofício das armas ensinava
principalmente a obediência e o controle; a escola instruía sobre a necessária
temperança, sobre o bom uso da razão em detrimento da raiva. As
manifestações mais violentas entre “homens”, como as rixas camponesas ou
urbanas, os duelos, desapareceram, ou pelo menos perderam a sua intensidade
qualitativa e quantitativa. Assim, no início do século XX, o novo modelo
masculino que se impôs passo a passo foi aquele de uma relação contida e
racional com a violência.

Apesar dessa mudança, a violência masculina não desapareceu


completamente. O que houve, ainda segundo Virgili (2013, p.84), foi “uma
acomodação individual com uma nova forma social”, pois sua compreensão
e validação variavam de acordo com os indivíduos. Se no início do século XX
a violência constatada e considerada era somente a física, hoje se percebe
um desdobramento desse tipo de agressão quando referenciado ao
feminino, uma vez que há variadas formas de violência que podem ser
praticadas contra a mulher, como a moral e a psicológica.
Legítimos representantes da sociedade patriarcal, os protagonistas
de Mirisola também se apresentam como agressores de suas parceiras,
conforme ocorre nos contos À guisa de orquídeas e Os noivos. No primeiro,
em um desentendimento com a amante, o narrador revela que deu-lhe
bofetadas: “Ela me acusou de ser parecido com o Raul Gil. E disse que eu
chupava paus por tabela. Apliquei-lhe o devido corretivo, dei-lhe umas
bofetadas e broxei no sofá-cama... maldito gosto de Q-boa. As putas de
hoje não tem classe.” (MIRISOLA, 2000, p. 17); no segundo, confessa que
estuprou a filha de uma zeladora, uma menina de aproximadamente doze
anos idade:

E foi ótimo ter começado por Anelise, filha da zeladora. A menina devia ter uns
doze anos. A mãe, desconfiada, passou a negligenciar a bunda pra gente. [...]

133
Pelancuda – apelidamos a zeladora assim –, mãe da ninfeta Anelise (que foi
devidamente estuprada por mim e por Geraldi), fechou o cu, digamos,
eticamente. (MIRISOLA, 2000, p.82).

Não obstante a gravidade da violência citada, não é a física que se


configura como a mais habitual nos contos, mas a psicológica, pois
humilha, rebaixa e ridiculariza as personagens femininas para o leitor,
expondo-as à degradação e ao julgamento livre de quem lê a obra.
“Anelise (ou Araribóia, o herói devolvido)”, último conto a ser
analisado, além de trazer o recorrente desprezo pelo feminino, traz como
elemento novo a insegurança do narrador protagonista, que é revelada
quando ele se aproxima do sexo oposto, visando a uma conquista que não
se realiza de forma muito satisfatória para ele, pois é rejeitado por várias
moças antes de ser aceito por apenas uma, o que demonstra sua
incapacidade de sedução diante da presença do feminino. Essa rejeição
aflora sua insegurança e a necessidade de se autoafirmar narcisicamente
para si e para elas, o que o leva gabar-se de seus atributos.

É que eu não tenho coragem de perguntar: “Você vem sempre aqui?”. Aí eu


pergunto da cor dos mamilos. Não se trata de falsa ingenuidade. Ou deboche.
Ou inveja dos corpinhos malhados. A questão é falta de coragem (ou travação
mesmo) de chegar na mina e falar, por exemplo, que “está fazendo sol, né?”.
(MIRISOLA, 2000, p. 133).

Catso! Dessa vez fiquei entre o erudito e o popular. Mezzo Homero. Mezzo
Barros de Alencar. O que acontece? Catso, catso. Eu sou um cara equilibrado. O
que essa mulherada tá pensando? [...] Mas e daí? Também tenho um papo
legal. Uso gírias: - E aí, Mina? – não te conheço. Tá falando comigo? (MIRISOLA,
2000, p.134).

Neste conto, mais importante do que evidenciar a dificuldade do


narrador na realização da conquista, é realçar sua vulnerabilidade diante
dos objetos que causam seu desejo, confirmando que o masculino também
se aflige numa sociedade que identifica os homens como seres fortes,
dominadores e detentores do acesso sistemático e absoluto do corpo da
mulher, que, por ser percebida como objeto de satisfação sexual, não
deveria recusar a demanda. Em outras palavras, a cultura patriarcal é

134
responsável pela desigualdade entre os gêneros e violenta não somente as
mulheres, mas também os homens, uma vez que os fragiliza diante de
qualquer recusa, impelindo-os ao uso da violência contra quem os
contraria.
Data da Idade dos Metais o declínio do poder feminino e a
ascensão do patriarcado, que era regido por duas premissas basilares: a
submissão feminina ao masculino e a subordinação dos mais jovens aos
mais velhos. Com o passar do tempo, tal sistema sofreu modificações, mas
conservou os princípios de superioridade e submissão, mantendo a
desigualdade entre homem e mulher. A ela, cabia apenas procriar, cuidar
da casa e da família. As narrativas de O herói devolvido apresentam
protagonistas que espelham, na contemporaneidade, homens
continuadores desse modelo de sociedade. Dessa forma, não reconhecem
as mudanças ocorridas nas relações sociais que colocam em perigo sua
condição de superioridade, e reproduzem, na tentativa de manter seu
padrão hegemônico, ações abusivas contra o que antes lhes estava
submisso e sob seu controle. Somente dentro dessa perspectiva
compreende-se a conduta de tais personagens nas tramas aqui analisadas.
A maioria das personagens femininas existentes na obra são
mulheres solteiras que não mantêm um relacionamento fixo com o
protagonista ou com terceiros. Mesmo pertencentes à classe social
economicamente desfavorecida, são mulheres livres, que estampam na
“cara da sociedade” o domínio de seu desejo. Diante de tanta
independência, resta aos confusos protagonistas rebaixar essas mulheres e
manter o interesse apenas por seus corpos.
Lia Zanota Machado (2004, p. 36), em “Masculinidades e
violências: gênero e mal-estar na sociedade contemporânea”, afirma que
“Sujeitos e corpos femininos são controlados como se ‘pessoas’ não
fossem, isto é, como se fosse possível suprimir o saber sobre a sua inserção
em relações sociais, tornando-os, assim, puros corpos disponíveis”. Corpos
disponíveis, é como as mulheres se apresentam nos contos desta obra de
Mirisola, vez que não há, em momento algum das narrativas, desejo de
envolvimento por parte dos protagonistas. Herdeiros da cultura patriarcal,
mostram-se perdidos quando confrontados por uma resposta negativa
vinda do feminino, como se às mulheres não coubesse decidir sobre seus

135
corpos e seu desejo. Assim, destinam a elas todo o seu desprezo (pelo
pensamento), objetificando-as, na tentativa de rebaixá-las para que
consigam se sobressair na sociedade, mantendo, dessa forma, o status quo
do poder.

A herança de Zeus

Em O herói devolvido, Marcelo Mirisola expõe um protótipo


masculino ancorado no machismo e na misoginia, representado por
homens solitários, impacientes, preconceituosos e saudosos de uma
condição que, nas últimas décadas, vem sendo contestada por setores da
sociedade que, no decorrer do tempo, perceberam-se como agentes
participativos e igualmente construtores de história. Sendo assim, recusam-
se a aceitar o declínio de padrões comportamentais preestabelecidos – os
quais lhes conferiram um lugar privilegiado durante muito tempo – e no
esforço de resgatar tais padrões, não compreendem que são tragados por
um sistema que os beneficia, mas que também os oprime diariamente. A
falta dessa percepção faz com que se disponham contra o que foi, durante
séculos, considerado propriedade sua: a mulher e tudo o que a ela está
relacionado, principalmente, sua sexualidade. Com efeito, na obra de
Mirisola, é nítido o apego dos protagonistas a esse modelo de sistema do
passado, mas ainda presente, que os influencia a desqualificar sexualmente
o feminino nas narrativas.
As figuras femininas presentes nos contos são vistas apenas como
objeto de satisfação sexual dos protagonistas, mas “o não” desferido a eles
por Bié e por várias moças do conto “Anelise (ou Araribóia, o herói
devolvido)” é simbólico, portanto carregado de significação, uma vez que
confirma o corpo feminino como sexuado, como sujeito desejante e como
sujeito social. E é nessa perspectiva que elas devolvem esse homem, esse
protagonista, esse herói à sociedade que tanto o protegeu e ainda protege.
Diante disso, O herói devolvido confirma-se como importante
leitura por denunciar ações, pensamentos e valores ainda muito sólidos na
sociedade brasileira. Mirisola, certamente, não pode falar do lugar
reservado apenas às mulheres, mas consegue escancarar bem as portas do
sistema que criou, alimentou e ainda sustenta esse homem frágil, falho e

136
trágico. Dessa maneira, o autor revela, em seus escritos, que, enquanto
essa estruturação social for mantida, todos, de alguma forma, perderão.

Referências

BARROS, M. N. A. As deusas, as bruxas e a Igreja: séculos de perseguição. Rio de Janeiro:


Rosa dos Tempos, 2001.
FOUCAULT, M. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1984.
FREUD, S. Três ensaios sobre s teoria da sexualidade. In: Obras completas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2016. p. 13-154.
MACHADO, L. Z. Masculinidades e violências: gênero e mal-estar na sociedade
contemporânea. In: SCHPUN, M. R. (org.). Masculinidades. São Paulo: Boitempo Editorial,
2004. p. 35-74.
MIRISOLA, M. O herói devolvido. São Paulo: Editora 34, 2000.
MUSZCAT. S. Violência e masculinidade: uma contribuição psicanalítica aos estudos das
relações de gênero. Orientador: Nelson da Silva Júnior. 2006. 207 f. Dissertação (Mestrado
em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
VIRGILI, F. Virilidades inquietas, virilidades violentas. In: CORBIN, A. et al. (org.). História da
virilidade: a virilidade em crise? Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. p. 82-115.

137
“Feminista odeia sexo!”:
sexualidade feminina e abuso sexual na poética de Rupi Kaur.

Maylle Lima Freitas22

Introdução

Segundo Borges (2010), o erotismo de autoria feminina não é um


fenômeno que surgiu junto com a modernidade, existem registros de obras
eróticas de autoria feminina desde a Grécia antiga. Contudo, todos nós
sabemos que estamos vivendo um período inédito na história: o
surgimento e popularização da internet. Portanto, apesar dos textos de
autoria erótica feminina já existirem pelo mundo, incluindo o Brasil com
autoras como Gilka Machado e Hilda Hilst, a internet nos permite acessar e
disseminar novas formas de literatura de uma maneira diferente dos livros
físicos de maneira epidêmica, com apenas cliques e compartilhamentos um
texto subitamente pode dominar uma esfera gigantesca de influência. É
nesse cenário digital, com as novas mídias, que a autora Rupi Kaur surgiu e
começou a brilhar com, a partir das definições de Coelho e Costa (2018), o
“Artivismo” literário. A poesia da autora, conhecida como instapoet, apesar
de reunida em livros físicos e e-books, teve sua origem na divulgação online
pela rede social de imagens instagram, na qual a autora continua
frequentemente a vincular poesias. Ao investigar sobre a autora no
processo de elaboração deste artigo. Percebemos que, apesar do
conhecimento internacional da obra da artista, existe uma carência de
estudos literários sobre suas obras, fato que procuramos ajudar a
transformar a partir da divulgação desta pesquisa.
Iniciando o tratamento da obra literária, percebemos que Rupi
Kaur, ao publicar uma seleção de poesias no livro Outros jeitos de usar a
boca, divide o livro em algumas subseções assim intituladas: a dor, o amor,

22 Graduanda em Letras Português e Espanhol. Universidade Federal do Ceará/PIBIC-UFC.


E-mail: [email protected].

138
a ruptura e a cura. O livro inicialmente nos choca com poesias breves,
diretas, marcantes, denúncias e desabafos da mais pura dor. Em geral, a
dor envolve questões relacionadas à sexualidade: o abuso sexual, o prazer
unilateral masculino, misoginia e, inclusive, atendo-se a questões de
racismo. Buscamos entender, com Nigro, Chatagner e Laranja (2017), o
estupro e a violência de gênero sobre a ótica feminina na literatura e as
marcas de violência contra a mulher na literatura, a partir de Gomes
(2013), e como isso se constrói na poética de Kaur.
O desejo se constrói em contraposição à repulsa, e vice-versa, pois
são semioticamente relacionados às paixões, um procura estar próximo e
estar longe do objeto em questão. É possível perceber, na poética de Kaur,
primeiro a presença da repulsa: a falta do desejo, os desprazeres, o que
deveria ser evitado. Depois, a obra começa a explorar o desejo: o prazer, o
querer, a união harmônica.
Este estudo defende que o livro Outros jeitos de usar a boca se
torna ainda mais erótico ao trazer inicialmente a repulsa e o abominável,
pois, quando o leitor entra em contato com o erotismo e o desejo, é
constituído um imaginário do que é verdadeiramente esse Eros feminino. E
também o que não é.

Literatura, gênero e artivismo

Ao pensar o que é literatura, Sartre (2006 [1947]) já tratava da


função social dessa arte. Concluindo que a literatura pode se relacionar ao
engajamento social. A literatura engajada é aquela que te faz conhecer
algo do mundo em que se vive e auxiliar a transformar atitudes a partir
desse conhecimento. A tese baseia-se no pressuposto de que, ao perceber
uma injustiça e sensibilizar-se com ela em uma experiência literária, esta
ajudaria a desbravar questões sociais latentes e instaurar um desejo de
mudança no leitor, incluso mudanças pessoais de atitude perante a vida.
De maneira bastante resumida, é essa uma importante semente que Sartre
plantou na teoria literária.
Existe atualmente um termo bastante recente para referir-se à Arte
e ao engajamento social, chame-se “Artivismo”. O artivismo não é de
apenas uma face, mas é múltiplo e plural, existindo ainda uma vertente

139
ligada primordialmente a questão feminina, o artivismo feminista, o qual
nos ateremos mais profundamente neste texto, que se define “como um
movimento de luta em prol da consolidação dos direitos das mulheres, em
uma realidade que as inferioriza e tentam subalternizar o ser mulher e suas
produções.” (COELHO; COSTA, 2018, p. 26, grifos no original). Uma das
características citadas pelas autoras Coelho e Costa (2018) ao definirem o
Artivismo, é a presença de suportes diferenciados para elucidação dessa
arte: muros, performances nas ruas, intervenções artísticas e as redes
sociais da internet podem ser exemplos dessas novas mídias para a arte.
Rupi Kaur, publicamente feminista, utiliza principalmente do
instagram para divulgação de suas poesias. A rede social, gratuita e
extremamente popular, permitiu que seus textos se tornassem populares
ao redor do mundo. A autora atualmente conta com cerca de 3,8 milhões
de seguidores em seu perfil oficial, em qual segue a publicar poesias
frequentemente. Consideramos a arte de Rupi, devido ao seu caráter
feminista e devido a subversão dos meios tradicionais de se vincular a
poesia, uma poesia artivista. Juliana Costa (2014), acredita em uma estrita
relação do verso e o protesto em poetas contemporâneas e que “as vozes,
que foram historicamente silenciadas, ao conseguirem um espaço de fala,
denunciam a ordem hegemônica que busca, na interiorização de suas
ideologias, legitimar-se como única possibilidade” (COSTA, 2014, p. 43).
Para a autora, a poesia de protesto tem propósitos comunicativos e que a
partir de recursos estilísticos singulares podem ajudar a resistência e luta a
causas sociais, em seu estudo tratando-se da causa feminista e antirracista.
Para a análise da obra literária, nos valemos de Chatagnier, Laranja
e Nigro (2017) na consideração da ótica da violência de gênero e abuso
sexual na literatura sob um eu-lírico feminino. As autoras afirmam que “A
violência do corpo tomado sem consentimento sangra incapacidades,
impulsos e sonhos, e na ausência do empoderamento pelo discurso,
sujeitos são e estão estuprados.” (NIGRO; CHATAGNIER; LARANJA, 2017, p.
142). A literatura surge como uma aliada das mulheres, onde podem ser
sujeitos do seu discurso, exercer suas denúncias, escrachar a dor que
violou seus corpos, sensibilizar o leitor a essa questão latente no seio da
sociedade patriarcal. A literatura ajuda a dar a voz a quem não tem voz na

140
sociedade e são continuamente silenciadas por diversas instituições sociais,
até mesmo as que deveriam auxiliá-las, como a Justiça.
Gomes (2013) também atém-se ao problema de violência contra a
mulher na literatura, contudo, não se atém somente a eu-líricos femininos,
mas também aos masculinos e como essa narrativa masculina ajuda na
manutenção do poder patriarcal e ajuda a validar atitudes de violência
contra a mulher em detrimento da questão da honra masculina, uma
postura que expõe na literatura feminicídio, abandono e violência. Gomes
afirma que:

Diferente dessa postura que narra a opressão e a violência contra a mulher como
regras sociais da tradição patriarcal, a literatura de autoria feminina, no século
XX, passa a questionar os diferentes tipos de violência física e simbólica contra a
mulher quando repudia a dominação masculina. (GOMES, 2013, p. 3).

A tese de Gomes (2013) é que a literatura masculina é imbricada


com ideários machistas, refletindo a sociedade e período histórico em qual
foram escritas recepcionadas, e a literatura feminina foi em contramão a
essa supremacia masculina tanto cultural quanto literária. Em relação a
literatura erótica de autoria masculina, não é diferente, Luciana Borges
(2013), ao discorrer sobre o pensamento de Anaïs Nin, afirma que a
literatura erótica de homens é “inadequada para acessar a ‘caixa de
Pandora’ da sensualidade feminina” (BORGES, 2017, p. 2). Em consonância
com Borges, percebemos que a literatura de autoria feminina trouxe
inovações estéticas e temáticas a literatura em geral, inclusive à erótica.
Para Bataille, “O erotismo é um dos aspectos da vida interior do
homem. Enganamos-nos quanto a isso porque ele busca incessantemente
no exterior um objeto de desejo. Mas esse objeto corresponde a
interioridade do desejo.” (BATAILLE, 2013 [1957], p.53, grifos do autor).
Para o autor, o erotismo é intrínseco ao ser humano e faz parte do nosso
ser. O erotismo é o desejo constante, o desejo consciente que difere o
humano dos outros animais. O desejo é a busca e projeção no outro do que
nosso próprio interior almeja, portanto neste artigo trataremos do desejo
como um aspecto humano e suscetível a aspectos sociais.

141
Rupi Kaur trabalha com o amor, com o desejo e sensualidade em
sua obra. Contudo, a autora também trata de um mal estar social do abuso
de corpos femininos; não trata a dor na sua obra como sentimentos
individuais de negação e dilema com sua própria sexualidade, sentimentos
que Bataille (2013 [1957]) afirma afligir as mocinhas do século passado.
Essa dor é a denúncia de abusos externos que ferem a sexualidade
feminina e maculam sistematicamente a vida das mulheres ao redor do
mundo.
O trabalho de Rupi Kaur como artista, apesar de possuir uma
grande visibilidade e reconhecimento, ainda carece de trabalhos
científicos, principalmente na área de literatura. Em trabalhos de cunho
social existe um reconhecimento de seu ativismo, tal como ocorre no
“Projeto de livro ilustrado sobre menstruação”, de Feix (2018), uma
proposta de material elaborada no Sul do Brasil a partir da polêmica de
Rupi publicar uma foto em que mostrava as roupas sujas de sangue
menstrual e no trabalho “Feminist Implications of the instagram content of
Rupi Kaur” (2017), estudo realizado no Sri Lanka relacionado ao feminismo
no ambiente da mídia social instagram. Estes são dois breves exemplos de
pesquisas acerca do trabalho de Rupi Kaur, como podemos ver, são
conteúdos de cunho sociológico e afastados da análise literária.
Em relação a estudos com um viés literário, podemos citar “From
Subordination to Emancipation: Constructing the Female Self in the Works
of Alice Walker and Rupi Kaur”, de Lulić (2019). Este é um trabalho sobre o
ethos feminino na obra de Kaur e Walker, uma pesquisa de literatura
comparada elaborada na Croácia. Não obtivemos conhecimento de mais
nenhuma pesquisa publicada sobre a obra de Rupi Kaur durante o período
de escrita deste texto e nenhuma que se vinculasse diretamente com o
estudo do Eros.
Conseguimos perceber que os trabalhos aqui citados são de
diferentes partes do mundo, contudo são textos escassos e é
extremamente incipiente o estudo literário acerca da autora. Por isso, não
haverá riqueza de trabalhos sobre o mesmo tema no estado da arte para
diálogos ao longo deste texto, marcando o ineditismo da presente
pesquisa.

142
Outros jeitos de usar os Anais (de congresso)

Os poemas representam uma forma de arte já muito bem


estabelecida na literatura e já passaram em sua trajetória existencial por
diversas tendências de formalização, estilo e temáticas. Apesar de poemas
serem um modo tradicional e bem estabelecido de propagação da arte,
acreditamos que a Arte por essência pode se reinventar, criando novas
formas de si, novas experiências estéticas, sensoriais, psicológicas, sociais,
entre o que mais a humanidade possa alcançar. Os poemas na
modernidade agora não mais dependem da impressão em papel ou da
proclamação em público: podem estar na internet, nos muros, em
camisetas e vídeos online, por exemplo. Dessa maneira, os poemas agora
podem surgir e propagar-se de maneiras até antes impensáveis. O título da
tradução Brasileira da coletânea de poesias Milk and Honey é Outros jeitos
de usar a boca, um título bastante poético e representativo. Ele demonstra
essa ressignificação da poesia e das artes, há outros jeitos de usar o que já
usamos, ele reflete a revolução literária que vivemos.
A literatura, por ser um fenômeno social, reflete questões da
sociedade em que é escrita, do tempo que foi escrita e recepcionada.
Sabemos, a partir de Jauss (1994 [1967]), que a recepção de uma obra é
um fator extremamente importante na historiografia literária e que
nenhuma obra surge em um vácuo, mas sim em um contexto histórico-
social-literário específico. Rupi Kaur surge em uma época que o feminismo
continua a se alastrar, as políticas horizontais buscam igualdades entre
diversos estratos sociais e existe uma luta mundial contra opressões de
gênero em diversas culturas. Em uma época que tanto se fala de local de
fala, Kaur mostra-se uma mulher de seu tempo, afinal, como afirma Engel
(2009), todos somos autores e leitores do nosso próprio tempo, apenas
podemos convergir ou de alguns preceitos do nosso próprio tempo, Kaur
usa seus poemas para falar da dor de ser mulher, estrangeira, não-branca,
em uma atualidade que grita aos nossos ouvidos o reconhecimento de suas
dores.
A primeira parte do livro já nos mostra ao que essa compilação de
poemas veio: ser direta, profunda, intimista, atual e tocante ao seio do
feminino, intitula-se a dor. Vejamos o primeiro poema do livro:

143
como é tão fácil pra você
ser gentil com as pessoas ele perguntou
leite e mel pingaram
dos meus lábios quando respondi
porque as pessoas não foram
gentis comigo
(KAUR, 2017, p. 11, grifos no original)

O poema já nos insere em temáticas que serão trabalhadas ao


longo de toda a primeira parte do livro: a falta de gentileza sofrida pelas
mulheres, um tratamento hostil. Podemos perceber a analogia do “jorrar
leite e mel” como a terra farta prometida na bíblia para o “povo escolhido
por Deus”. Contudo, apesar do texto apresentar inicialmente figuras
agradáveis, como um elogio a gentileza de um interlocutor e alusões à
fartura, o final não é aprazível. Não existe uma reciprocidade da
amabilidade, existe a gentileza em face à não-gentileza. Dos ricos lábios do
eu-lírico nasce a voz que responde “não foram gentis comigo, mas eu sou
quem jorra leite e mel, eu sou a que sou uma entidade do sagrado e essa é
minha voz”. São os jeitos de usar essa boca que queremos desvendar, a
boca da mulher como a caracterização de um ser quase místico e divino,
contudo, que não tem um poder opressivo, mas sofre opressões do
mundo. É um movimento de retorno, o mundo é árido com o eu-lírico
feminino, mas ao retornar suas atitudes para o mundo esse eu-lírico
feminino não devolve o mesmo tratamento que recebeu, mas sim a
gentileza. Percebemos um esforço unilateral do eu-lírico em perpetuar atos
de gentileza. Ela doa seu ser ao mundo com o que há de mais rico e doce,
em face à amargura do mundo.
A primeira parte do livro apresenta diversas formas de dor: o
abandono paternal, a toxicidade familiar e entre as pessoas em geral, o
silenciamento feminino, a infância corrompida, o abandono e questões de
abuso físico e psicológico, entre outros fatores. Nessa parte do livro
percebemos a questão da repulsa e o não-desejo. Leiamos o poema
abaixo:

sexo exige o consentimento dos dois

144
se uma pessoa está ali deitada sem fazer nada
porque não está pronta
ou não está no clima
ou simplesmente não quer
e mesmo assim a outra está fazendo sexo
com seu corpo isso não é amor
isso é estupro
(KAUR, 2017, p. 25)

O poema acima representa uma questão latente na sociedade


atual: o estupro. O poema é um avanço histórico acerca da compreensão
desse fenômeno, afinal, o abuso dos corpos femininos é culturalmente
justificado e negado em diversos casos. A chamada “cultura do estupro”
culpabiliza as vítimas de abusos sexuais com diversas argumentações já
cristalizadas no imaginário de diversas sociedades: “mas se foi o marido
não é estupro, uma mulher tem deveres com o homem”, “ela estava com
roupas provocadoras e saia para festas, a mulher tem que se dar ao
respeito”, “quem mandou estar sozinha tarde da noite? Ela que foi
descuidada”, “mas se ela queria antes porque mandou parar durante? Se
começou tem que terminar”. Estas são falácias conhecidas que podem ser
abstraídas de um pensamento coletivo acerca do estupro dos corpos
femininos, mas Rupi Kaur é clara, não existe justificativas para tentar tratar
o estupro como um ato sexual. Para um ato poder ser considerado sexual a
única variável que pode ser levada como decisiva para isso é o
consentimento, nada mais. Não existindo a presença desse consentimento,
caracteriza-se o estupro. O poema dialoga profundamente com questões
que estão na consciência social, existe uma enorme articulação com os
discursos patriarcalistas opressivos aos corpos femininos, apesar de serem
listados no poema alguns motivos como “não está pronta” ou
“simplesmente não quer”, podemos reviver questões psicológicas bastante
delicadas às mulheres e dialogar com o que é a relação sexual, esta para
Rupi se fundamenta em um princípio bastante básico e universal: o desejo,
marcado no poema pelo consentimento.
Contudo, o estupro não é o único ponto negativo que pode afetar a
sexualidade feminina, também maltratada pelo tratamento dado ao corpo
feminino pelo homem, como podemos observar no poema a seguir:

145
ele a destripa
com os dedos
como quem raspa
as sementes
de um melão-cantalupo
(KAUR, 2017, p. 35)

Figura 1: Melão-Cantalupo
Disponível em: Rupi Kaur, 2017, p. 35.

Podemos perceber nesse poema que há uma descrição de


masturbação, um “ele” está com os dedos penetrando a vagina de outrem,
sendo a genitália feminina representada pela analogia com o melão.
Contudo, não há desejo ou erotismo. O termo “destripar” tem como
significado, no dicionário Michaelis online,23 a retirada de vísceras de um
animal morto, rasgar o ventre ou executar chacina ou carnificina. Portanto,
apesar de esse poema representar um suposto momento de prazer sexual,
o “ele” age como um destripador, assim como se retira as sementes de um
melão, um ato sem prazer ou desejo, apenas prático. Como tirar as
sementes antes de comer.
Não podemos deixar de comentar que o melão pode ser associado
a vagina também pelo formato oval no seu centro, formato que pode ser
similar ao de grandes e pequenos lábios da vulva, criado pela sobreposição
das sementes e as camadas fibrosas internas do melão. Simbolicamente no

23 A palavra “destripar”, no dicionário, é considerada como variante linguística da palavra


“estripar”. Disponível em:
<https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/estripar/>,
acesso em 13 de agosto de /2020.

146
poema, a vagina e o melão ao serem postos em equiparação, são objetos a
serem devorados. E, antes disso acontecer, é necessário um processo
anterior: destripar as sementes. Tornar aquilo mais fácil de comer, uma
etapa a ser seguida antes que um objetivo seja realizado. O poema traz a
voz ativa de um “ele” exercendo uma ação na mulher, passiva desse ato,
como um animal morto ao ser destripado e que apenas um lado terminará
saciado, enquanto o outro é apagado e absorvido em benefício de outrem.
Em quebra ao que anteriormente analisamos. a partir da página
quarenta e oito somos apresentados a uma nova parte do livro: o amor, as
temáticas principais dessa parte são relacionadas a emoções positivas,
relações familiares plenas, maternidade saudável, romance e erotismo.
Para a temática do erotismo a ser trabalhada, observemos o poema abaixo:

ele tocou
meu pensamento
antes de chegar
à minha cintura
meu quadril
ou minha boca
ele não disse que eu era
bonita de primeira
ele disse que eu era
extraordinária
- como ele me toca
(KAUR, 2017, p. 61, grifos no original)

Podemos perceber que como o poema, tal como o do


estripamento, a figura evocada por esse poema é o contato de um homem
ao corpo de uma mulher, sendo o próprio eu-lírico feminino a descrever
esse contato. Contudo, ao contrário do poema anterior, o toque não
começou pela genitália feminina, e sim foi primeiro um contato mental,
antes de sumariamente existirem toques pelo corpo. Os elogios não
partiram do físico, mas sim do plano psicológico: o eu-lírico disse que foi
chamada de extraordinária. Bataille (2013 [1957]) trata da interioridade do
desejo, o desejo não surge do corpo por si só, mas da interioridade de
quem deseja. Ou seja, não podemos afirmar que o desejo é desvinculado
de nosso psicológico, nossas emoções e projeções. O eu-lírico feminino ao

147
descrever como foi aos poucos tocada psicologicamente e fisicamente pelo
personagem, descreve a interioridade do seu desejo. Este desejo pode ser
interpretado como desejar uma conjugação psicológica antes de uma
conjugação carnal, um elogio à alma antes de um elogio supérfluo ao
carnal. O poema trata de um tipo de conexão que não parte da relação
sexual e sim de uma conexão mental entre dois seres, sendo dessa
interioridade projetada na relação com o personagem masculino que surge
o desejo desse eu-lírico. Podemos reafirmar esse pensamento com o
poema da página seguinte:

estou aprendendo
a amá-lo
me amando
(KAUR, 2017, p. 62)

Figura 2: Mulher aprendendo a se amar


Disponível em: Rupi Kaur, 2017, p. 63.

A ilustração que segue o poema é de uma mulher deitada, com a


boca aberta e a mão entre as próprias pernas. Novamente invocada a ideia
do toque no corpo feminino, mas pela primeira vez o toque da
masturbação feminina, o toque a si mesma. O poema e sua imagem
reforçam a ideia do desejo que parte do interior antes de chegar ao outro,

148
e esse desejo é relacionado ao amor. O amor no texto pode ser entendido
de maneiras distintas, a primeira forma seria que o desenvolvimento do
amor-próprio influencia na capacidade de amar outra pessoa, como um
processo de aprendizagem de alguém em relação aos seus próprios
sentimentos. Uma segunda interpretação possível, reforçada pela
ilustração da cena de masturbação presente na obra, é de um amor sexual.
Ou seja, ao descobrir como se dar prazer, o eu-lírico feminino estaria em
um processo de aprender a ter prazer com o outro. Afinal, como já
discutido, o desejo parte de uma interioridade, da busca e vivência do que
é desejado. É de suma importância afirmar a importância da masturbação
feminina como um processo de libertação nos relacionamentos,
permitindo que a mulher descubra seu corpo e a própria sexualidade,
processo de autoconhecimento apresentado no poema. Por fim, vejamos o
último poema da análise:

só de pensar em você
minhas pernas abrem espacate
como um cavalete com uma tela
implorando por arte
(KAUR, 2017, p. 65)

Figura 3: Cavalete.
Disponível em: Rupi Kaur, 2017, p. 66.

149
O eu-lírico evoca novamente a questão da interioridade e projeção
do desejo no outro, apenas ao imaginar o “você” já se evoca o desejo no
eu-lírico. A relação sexual desejada é descrita como “arte”, a tela vazia
esperando o pincel e suas cores, como quem implora o surgimento dessa
beleza. Esse poema traz interessantes imagens, a relação sexual é
retratada como a união de dois seres capazes de auxiliar em criações
artísticas: as pernas como o cavalete aberto, um suporte, a tela pode
relacionar-se à vagina e subentende-se que no encontro do pincel, o falo,
deslizando sobre a tela, a genitália feminina, cria-se a obra-prima.
Poderíamos interpretar, em termos freudianos, que a pulsão seria
satisfeita, ao menos temporariamente, com a realização desse desejo, na
poesia representada como a conjunção harmônica em uma relação
heterossexual.
Os poemas de Kaur, em geral, trazem a presença de um erotismo
heterossexual, mas reconstruindo as noções do sexo heteronormativo,
comumente centrado na satisfação do homem. Não obstante, as mulheres
heterossexuais são em diversos estudos apontadas como as mais
insatisfeitas sexualmente, segundo matéria da Revista Galileu 24. A poesia
nos faz perceber uma relação sexual harmoniosa, contudo essa harmonia é
muito além do estímulo corporal mais adequado, mas sim de relações
saudáveis e não-abusivas, com a capacidade de criar algo belo física e
emocionalmente.
Após a leitura de todos os poemas selecionados para essa pesquisa,
podemos perceber que existe na obra a presença do desejo e da repulsa,
do sexo e do abuso. Para visualizar melhor esses conceitos podemos nos
valer da análise semiótica em nível fundamental (SARAIVA; LEITE, 2017)
dos termos “desejo” e “repulsa”, pensados a partir da obra e com um
enfoque na sexualidade feminina. Observemos o quadrado semiótico
abaixo:

24 Mulheres lésbicas são mais satisfeitas no sexo do que as heterossexuais. Revista


Galileu, São Paulo, 13 de jul. de 2018. Disponível em:
<https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Saude/noticia/2018/07/mulheres-lesbicas-sao-
mais-satisfeitas-no-sexo-do-que-heterossexuais.html>. Acesso em: 06 de agosto de 2020.

150
Quadro 1: Quadrado semiótico de desejo e repulsa.

O quadro acima representa a oposição semântica entre desejo e


repulsa, que são paixões do espírito. O desejo e a repulsa podem ser
negados, gerando a “não-repulsa” e o “não-desejo”, que juntos
representam um sentimento de indiferença e neutralidade em relação a
essas paixões. Os complementários do quadrado semiótico são as palavras
localizadas nas laterais do quadro, ou seja, o primeiro complementário é a
combinação do “desejo” e da “não-repulsa”, que poderia ser interpretada
na obra como a sexualidade saudável, ou seja, a representada na análise
dos três últimos poemas, onde existe realização do desejo feminino e a
questão da repulsa não é apresentada. A combinação de “Repulsa” e “Não-
desejo” aplicado à sexualidade feminina pode ser interpretada na obra
como abuso dos corpos femininos e estupro, pois foi a realização de um
ato em que não houve consentimento ou desejo, tal como podemos
observar nos primeiros três poemas analisados. Portanto, a partir das
relações de oposição semântica fundamental entre “desejo” e “repulsa”, as
paixões primordiais, podemos criar camadas de significado que abarquem
o que seria a sexualidade saudável, o abuso sexual ou a indiferença que
representaria a ausência de desejo, relações de significados que podem ser
usadas para compreender mais profundamente os fundamentos
semióticos dos poemas analisados.

Conclusão

A partir da análise de poemas selecionados do livro Outros Jeitos de


Usar a boca de Rupi Kaur, concluímos que a obra pode ser considerada
“Artivista”, pois mescla a arte da poética com a denúncia de abusos dos

151
corpos femininos, além do meio de vinculação dos poemas ter sido
inicialmente o instagram, não livro físico comercializado, ou seja, utiliza-se
de novas mídias para divulgação de Arte. A autora, declaradamente
feminista e de etnia indiana, utiliza a obra como local de fala para questões
silenciadas na sociedade contemporânea.
Não obstante, Outros jeitos de usar a boca nos apresenta o que
seria realmente a sexualidade feminina, em contraposição ao abuso dos
corpos femininos que é perpetuado em detrimento do prazer masculino e
uma cultura patriarcalista. Os poemas de a dor trazem claramente a
repulsa sentida pelas mulheres em relação ao tratamento social que
recebem, o abuso de seus corpos e o estupro. A sexualidade feminina
verdadeira começa a ser evocada em o amor, em qual existe a presença do
desejo e da sexualidade feminina saudável, além de relações sociais
harmônicas, relacionando-se ao desejo feminino que não é evocado
apenas pelo contato e estimulação do corpo, mas sim pela interioridade do
seu desejo satisfeita, um desejo não apenas físico.
Rupi mostra ao mundo o que a mulher deseja ardentemente, mas
também o que não pode ser chamado de desejo e amor, e sim de dor. A
dor que é constantemente reforçada pela cultura patriarcalista do estupro,
confundindo estupro e relação sexual. Acreditamos que a poética de Rupi
Kaur ajuda a desmistificar a falácia de que “feministas odeiam sexo” e que
“o feminismo odeia os homens”, pois a autora, ao retratar o
relacionamento heterossexual diferencia o abuso do corpo feminino e a
sexualidade feminina.
Rupi nos ajuda a vislumbrar que o Eros feminino existe e resiste.

Referências

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152
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Diadorim / Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Programa de Pós-Graduação em
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REDAÇÃO GALILEU: Mulheres lésbicas são mais satisfeitas no sexo do que as
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julho de 2018 - 15h07. Disponível em:
https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Saude/noticia/2018/07/mulheres-lesbicas-sao-
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SARAIVA, José Américo; LEITE, Ricardo. Exercícios de semiótica discursiva. Ed. Imprensa
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SARTRE, Jean-Paul. O que é literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo:
Editora Afiliada, 2006 [1947].

153
A mística do feminino
no poema “a mulher é uma construção”, de Angélica Freitas

Elionete Rodrigues Barbosa25

Introdução

O percurso histórico da mulher sempre registrou o estigma de


inferioridade dela em relação ao homem. Apesar de muitos avanços
obtidos pelas lutas femininas, muito tem que se conquistar ainda para o
reconhecimento da igualdade entre os gêneros. Esse processo, porém, é
marcado discursivamente pela estereotipização do comportamento
feminino, do que é ser mulher e vem encontrando oposição, como na
produção literária feminista, que põe em questão o valor da mulher na
sociedade, negando-se à arbitrariedade dessa ideologia opressiva.
Diante da temática em questão, esse artigo pretende abordar o
construto do “ser mulher” sob a ótica da mística do feminino, definição
inaugurada por Simone de Beauvoir na obra O segundo sexo: fatos e mitos
(1949), a qual trata dos mitos que rodeiam a representação da mulher,
desde a sua concepção até a velhice. Posteriormente, esse tema foi
desenvolvido por Bethy Friedan em Mística feminina (1971) com uma
ênfase maior sobre a problemática da mulher que abdica de uma carreira,
ou de estudos, para ser dona de casa. Corroborando com a discussão
apresentada pelas duas autoras, temos Butler, que também vê na mística
do feminino um mecanismo de opressão de gênero, mas que se distancia
um pouco da ótica das outras estudiosas quando complementa a reflexão
com a questão da homossexualidade e do binarismo, temas destacados
pela autora como fundamentais quando se fala de liberdade sexual.
Nas referidas obras serão mostrados os mecanismos que a
sociedade utiliza para manter a mulher alienada sobre seu papel/função

25 Licenciada em Letras pela Universidade Estadual Vale do Acaraú, mestranda em


Literatura Comparada pela UFC. E-mail: [email protected].

154
social. Nisso, está resguardada e validada a função da mulher na sociedade
sexista patriarcal. Para tanto, será utilizado como objeto de análise dessa
mística do feminino, o poema “uma mulher em construção” do livro Um
útero é do tamanho de um punho (2012), de Angélica Freitas. Nossa
escolha desse poema recai no fato de que retrata, a nosso ver, de forma
simbólica, a construção do gênero feminino como produto de uma
sociedade patriarcal opressora.

A desconstrução da mística do feminino no poema “a mulher é uma


construção”

Os papéis de gênero sempre foram e são consolidados através de


uma ideologia estruturada por um sistema sexista capitalista que tem como
propósito manter a “mulher” em um engessamento na sua condição de
fêmea, como se só tivesse essa função no mundo e não fosse um ser
humano dotado de desejos próprios. Isso não é aleatório, mas pensado
como condição da perpetuação da opressão de gênero. Nesse contexto, o
que queremos dizer é bem ilustrado por Beauvoir (2016, p. 11) ao ressaltar
que:
ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico,
econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é
o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e
o castrado que qualificam o feminino.

Assim, essa definição de gênero feminino vai sendo repassada por


gerações e constituindo-se como ‘modelo de fêmea, mulher, feminino’.
Seguindo o argumento de Friedan (1971, p. 54): “quando uma mística é
vigorosa extrai dos fatos sua própria ficção, alimenta-se dos que poderiam
contradizê-la e alastra-se por todos os recantos de uma cultura,
confundindo até os sociólogos”. Desse modo o poder das mistificações são
obstáculos difíceis de se romper e, diante disso, tem-se a permanência de
estereótipos criados pela sociedade até os dias atuais.
Tendo como base diferentes reflexões teóricas acerca da mística do
feminino, será analisado como o poema “a mulher é uma construção” da
autora gaúcha Angélica Freitas descreve e desconstrói essa mística.

155
Nesse sentido, vejamos o que os versos seguintes expressam sobre
a materialização desses mitos:

a mulher é uma construção


a mulher é uma construção
deve ser

a mulher basicamente é pra ser


um conjunto habitacional
tudo igual
tudo rebocado
só muda a cor

particularmente sou uma mulher


de tijolos à vista
nas reuniões sociais tendo a ser
a mais mal vestida

digo que sou jornalista

(a mulher é uma construção


com buracos demais

vaza

a revista nova é o ministério


dos assuntos cloacais
perdão
não se fala em merda na revista nova)

você é mulher
e se de repente acorda binária e azul
e passa o dia ligando e desligando a luz?

(você gosta de ser brasileira?


de se chamar virginia woolf ?)

a mulher é uma construção


maquiagem é camuflagem

toda mulher tem um amigo gay

156
como é bom ter amigos

todos os amigos têm um amigo gay


que tem uma mulher
que o chama de fred astaire

neste ponto, já é tarde


as psicólogas do café freud
se olham e sorriem

nada vai mudar —


nada nunca vai mudar —
a mulher é uma construção (FREITAS, 2012)

Angélica Freitas utiliza a ironia e o humor para descrever o que é ser


“mulher” em uma sociedade machista. Ela mostra como essa construção
histórica/cultural se apresenta dentro de um formato padronizado por
convenções sociais, políticas e até mesmo religiosas. Para tanto, Freitas
emprega, de forma metafórica e alegórica, uma linguagem imagística na
descrição da construção da “mulher” como a de um conjunto habitacional,
na qual casas ou apartamentos são construídos de forma igual, fruto da
mesma massa, com as mesmas necessidades, tendo apenas cores
diferentes – quando têm – como a construção da mulher e de como ela
deve ser na sociedade patriarcal, “igual a todas”, feita da mesma massa e
pronta para realizar o que se espera dela enquanto “mulher”. Na primeira
estrofe vemos que:

a mulher basicamente é pra ser


um conjunto habitacional
tudo igual
tudo rebocado
só muda a cor

Notemos que, nesses versos, a autora faz uso de uma comparação


estranha, ao pensar em um ser humano comparado a um objeto feito pelo
homem: um conjunto habitacional, prédios. Isso serve para ilustrar a
construção do gênero como planejado e minunciosamente medido e

157
realizado por uma sociedade machista. Logo, o poema nos mostra uma
ideia de projeção de uma força potencialmente geradora, de uma vontade
radical de se manter uma “tradição”.
Nesse ponto, dialogando sobre a construção do gênero como
mecanismo de opressão que busca sua concretização através da
feminilidade imposta às mulheres, o eu lírico do poema – na contramão do
planejado/esperado – mostra certa resistência a essa padronização
estruturada, como se pode observar nos seguintes versos:
“particularmente, sou uma mulher de tijolos à vista”. Como podemos
observar, o poema segue com seu ritmo próprio e vai sugerindo uma
mulher que não quer “parecer delicada”, com um acabamento (reboco/
feminilidade) igual ao das outras, ‘ela se coloca como diferente quando
inicia com “eu, particularmente”, já se distanciando das outras. Para
reforçar a diferença, o eu lírico assume uma postura de contraste, pois “nas
reuniões sociais tendo a ser a mais mal vestida”. Assim, a mulher do poema
vai quebrando, a seu modo, essa padronização, que Butler chama de “atos
performáticos”. De acordo com a autora:

se os gêneros são instituídos por atos descontínuos, essa ilusão de essência não é
nada mais além de uma ilusão, uma identidade construída, uma performance em
que as pessoas comuns, incluindo os próprios atores sociais que as executam,
passam a acreditar e performar um modelo de crenças. (BUTLER, 2019, p. 214).

Assim, através de rituais de crenças repetidos na sociedade onde as


pessoas esperam que toda mulher seja heterossexual, que queira casar, ter
filhos, que tenha o “dom materno”, a mistificação do feminino é
transformada em algo natural e inquestionável, não como um ato
performático. No entanto, a mulher do poema entende essa atuação e,
dentro de suas limitações, ela cria uma “identidade”. Isso é observado no
verso “digo que sou jornalista”; assim, ao se apresentar com uma profissão
diferente da esperada pelas pessoas, a mulher mostra sua rebeldia, quebra
com o modelo padronizado e ganha características próprias, justamente o
oposto preconizado no aprisionamento do gênero, “ela é jornalista”, não
apenas mulher.

158
Retomando a ideologia da mística do feminino, ter uma profissão
não seria motivo de orgulho, mas uma ação que está sob o julgo de uma
sociedade machista, na qual a mulher que desempenha outra função, além
das relacionadas ao casamento e à maternidade, faz isso como algo a mais
enquanto sujeito social e, portanto, pode abdicar dela em função da
família. É como se o fato de ser profissional impedisse de ser uma “boa”
esposa e uma “boa” mãe, que fosse uma negação de sua condição de
fêmea, pois “ser fêmea é, de acordo com essa distinção, uma facticidade
que não tem em si nenhum significado” (BUTLER, 2019, p. 217); ou seja, o
fator biológico que condiciona à mulher à maternidade não pode ser visto
como empecilho ou mesmo escolha para desenvolver outra atividade que
ela almeje desempenhar. Muito menos deve servir de julgamento moral de
seu comportamento sexual e materno. Ser mãe não deve ser visto como
objetivo maior da mulher, muito menos obrigação.
Dando seguimento à análise do poema, sobre o corpo da mulher,
Freitas descreve:

(a mulher é uma construção


com buracos demais

vaza

A autora, através da metáfora que compara o corpo da mulher a


uma parede que tem “buracos demais”, representa os órgãos sexuais da
mulher de forma irônica, pois salienta o que o corpo desta representa para
a sociedade, em especial para o olhar masculino. Através da figurativização
de “vazar” temos a representação da menstruação. Esse tema é abordado
de forma rápida pela poeta, sem destaque, e não como função “essencial”
e “sublime”26, mas como se o fato da anatomia feminina não fosse
significativa, apenas diferente, e que o sangramento menstrual significasse,
simplesmente, algo que causa desconforto.
Em um contexto de rebeldia e de insatisfação com o corpo, o eu
lírico dialoga com Butler, pensadora que coloca as questões de gênero

26 Os termos essencial e sublime se referem ao fato de a menstruação ser necessária


para a gerar vida. Cf. BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos.

159
como um “problema”, a divisão sexo/gênero ser sempre sinônima de
masculino/feminino, ao que ela chama de binarismo. Longe disso, a autora
defende a ideia de “identidade” e caracteriza o padrão seguido por forças
poderosas de opressão como “atos performáticos”.
Em consonância com a discussão apresentada acima, podemos
afirmar que a mística procura fortalecer os canais de opressão patriarcal e
para tanto busca convencer a mulher de que ela representa um papel que
lhe foi designado mesmo antes dela nascer, pois – para que essa
dominação e alienação continuem – é necessário que sejam reforçadas e
alimentadas constantemente.
A mídia, nesse sentido, é um instrumento essencial na disseminação
em massa desse ideário feminino, logo está a serviço de manter a mulher
manipulada, pois assim manterá, através dela, o controle de toda a
sociedade.
Para demonstrar o papel dos meios midiáticos nesse engessamento
e alienação da mulher, Angélica brinca e debocha com o que as revistas
publicam sobre/de/ para as mulheres. Isso é muito característico da autora,
o que de certo modo suaviza a leitura de um verso como: “a revista nova é
o ministério dos assuntos cloacais… perdão... não se fala em merda na
revista nova”. Nesse recorte, há a denúncia do quanto a mídia em geral,
colabora, fortemente, com toda essa estereotipização e aprisionamento do
ser mulher dentro do “universo feminino”, de suas “obrigações”, com
destaque para a atenção desmedida com a beleza, a culinária, em
conseguir um bom partido e criar filhos saudáveis.
Freitas reafirma o quanto a mulher utiliza de recursos (estilos/atos)
para cumprir esse papel que lhe foi imposto, mostrando ainda um aspecto
importante do feminino que permeia o universo da mulher: a estética.
Vejamos os seguintes versos:

a mulher é uma construção


maquiagem é camuflagem

Para início dessa análise, utilizaremos a tese defendida por Beauvoir


(2016, p. 203) ao afirmar que “é sempre difícil descrever um mito, pois ele
não se deixa apanhar, nem cercar. Habita as consciências sem nunca postar-

160
se diante delas, como objeto imóvel. É, por vezes, tão fluido, tão
contraditório, que não se lhe percebe, de início, a unidade”. Entendemos,
com isso, como é complicado para a mulher desvincular-se de certas
convenções, dentre elas a “juventude eterna”, e que para mantê-la usa de
todos os artifícios possíveis, entre eles a maquiagem. Recurso esse
entendido aqui no poema como camuflagem, ou seja, um jeito de esconder
sua verdadeira identidade, de se moldar ao que se espera dela: que seja
sempre jovem, bonita, delicada. De acordo com a filósofa, “a maquilagem e
as joias também servem para a petrificação do corpo e do rosto”
(BEAUVOIR, 2016, p. 222). Ainda segundo a autora:

a função do adorno é muito complexa: possui entre certos primitivos um caráter


sagrado; mas seu papel mais habitual é completar a metamorfose da mulher em
ídolo. [...] Ela pinta a boca e o rosto para dar-lhes a solidez imóvel de uma
máscara. [...] Na mulher enfeitada, a Natureza está presente, mas cativa, moldada
por uma vontade humana segundo o desejo do homem. [...] a mulher sofisticada
sempre foi o objeto erótico ideal. (BEUVOIR, 2016, p. 222).

Em termos mais concretos, entende-se que o adorno vai para além


de questão estética, mas em ir se moldando a algo que é considerado como
modelo, como paradigma do que “todas” devem ser se quiserem agradar à
sociedade, pois não é somente aos homens que as mulheres buscam
agradar, mas às outras mulheres também.
Na contramão de todo esse aprisionamento de busca pelo ideal do
feminino, Angélica vai desconstruindo de forma simples, e até bem direta,
essa universalização do “ser mulher” e coloca em questão o “ser eu” de
uma pessoa que, mesmo sendo um modelo construído por um sistema
patriarcal opressor, pode repensar sua vida, sua existência, seu
sexo/gênero: “você é mulher...e se de repente acorda binária e azul....e
passa o dia ligando e desligando a luz?”. Mesmo iniciando com uma
afirmação, pois desde que nasceu lhe disseram que é uma mulher, pode
acontecer de alguém não se ver desse jeito: “pode acordar binária ou azul”,
ou seja, não se reconhecer nesse corpo/ gênero. Ao contrário disso,
reconhecer-se como um ser masculino, representado ironicamente pela
autora pela cor “azul”. E quando isso acontece essa hipotética pessoa fica
confusa, os pensamentos ficam incoerentes e acabam por trazer certo

161
desiquilíbrio, situação psíquica expressa no verso “e passa o dia ligando e
desligando a luz”, em que se nota uma tentativa de trazer à tona essa
realidade conflituosa ou apagá-la da mente, para, talvez, ter
“tranquilidade” novamente. Como nos diz Butler:

o corpo é um conjunto de possibilidades porque a forma como ele existe no


mundo e como é percebido pelos outros não é predeterminada por uma essência
interior, e sua expressão concreta no mundo deve ser entendida como a acepção
e a expressão de um conjunto de possibilidades históricas (2019, p. 215).

As possibilidades históricas materializadas por diferentes estilos


corporais são nada mais que ficções culturais reguladas por punições,
alternadamente incorporadas e disfarçadas por coerção na demonstração
dessas atuações que vão se perpetuando através das gerações e sofrendo
modificações de negação ou afirmação desses estilos conforme o contexto
em que cada ser, individualmente, se localiza.
Na representação de um “eu” legitimador de performances,
Angélica continua com seu jogo de cutucar o eu lírico através de
questionamentos que levem à reflexão desse ser no mundo: “(você gosta
de ser brasileira? de se chamar virginia woolf ?)”. No jogo utilizado pela
poeta na tessitura dos versos, chama a atenção a representação linguística,
o emprego de palavras em letras minúsculas, inclusive em nomes próprios
e início de períodos, como se todos os termos estivessem diminuídos e
estabelecessem uma continuidade entre os enunciados; os versos
colocados entre parênteses, demonstram uma quebra proposital na
trajetória da construção da mulher, como se o eu lírico conversasse com a
leitora e iniciasse um diálogo quase que confessional ao fazer os
questionamentos acima. Como se interrogasse o interlocutor, indagando se
ele detém plena consciência de si mesmo. Talvez esses sejam os versos
mais complexos do poema, pois trazem em seu âmago diversas
interpretações, que seguindo a ótica de uma abordagem subversiva anti-
mística atuam como um questionamento de algo arbitrário (a
nacionalidade, o próprio nome), assim como do gênero.
Nas palavras de Butler (2019, p. 217), “ser mulher é ter se tornado
mulher, ter feito seu corpo se encaixar em uma ideia histórica do que é

162
uma ‘mulher’, ter induzido o corpo a se tornar um signo cultural, é ter se
colocado em obediência a uma possibilidade histórica delimitada [...]”.
A incorporação involuntária de um ser, ao que se diz dele sobre sua
sexualidade, movimenta claramente um conjunto de estratégias, criando
um estilo desse ser. Esse estilo nunca é completamente autoestilizado,
portanto precisa ser alimentado através da vivência desses atos repetitivos,
os quais estão inseridos em um processo histórico que condiciona e limita
possibilidades.
Sobre a naturalidade dos atos convencionais, Angélica sai de forma
discreta, mas simbólica, para questões de gênero que não devem chamar a
atenção da sociedade: a homossexualidade,

toda mulher tem um amigo gay


como é bom ter amigos

todos os amigos têm um amigo gay


que tem uma mulher
que o chama de fred astaire

De início, no referido dístico, a poeta vai apresentando a relação de


amizade entre mulheres e gays: “toda mulher tem um amigo gay, como é
bom ter amigos”, uma proximidade que não chama a atenção, nem
incomoda, já que está amparada por um sistema binário de organização no
qual a mulher e o gay são tidos como femininos. Como nos diz tão bem
Butler (2019, p. 217): “os gêneros devem ser discretos como estratégia de
sobrevivência, pois são performances com consequências punitivas”.
Gêneros discretos são parte das exigências que garantem a "humanização"
de indivíduos na cultura contemporânea; e aqueles que falham em fazer
corretamente seus gêneros são regularmente punidos (BUTLER, 2019, p.
217).

No entanto, na estrofe seguinte, as relações de amizade são mais


complexas, “todos os amigos têm um amigo gay, que tem uma mulher”.
Temos aí representado, de forma até meio inocente, um conhecimento
geral de que alguns gays são casados. O uso da palavra “todos” simboliza
uma generalização de que isso é uma realidade abrangente e,

163
propositalmente, não reconhecida pela sociedade, até mesmo pelas
próprias esposas, como no verso: “que o chama de fred astaire”.
Ressalte-se que o que a autora chama de gênero discreto está
relacionado à heterossexualidade, cada um em seu papel determinado:
homem/mulher e feminino/masculino. Para Beauvoir e Friedan, um gênero
discreto está relacionado à fragilidade e obediência. No caso da mulher,
isso se concretiza ao cumprir com os papéis de esposa, mãe, dona de casa.
Nesse último verso, observamos uma performa-se de casal
defendido por Butler como “ato performático” para representar os modos
de ser/viver das pessoas, como condição de se ajustarem a modelos
binários e heterossexuais aceitos pela sociedade sexista. Para ilustrar essa
performance, Angélica utiliza o nome do dançarino Fred Astaire, ou seja, a
mulher com um marido, que é um gay não-assumido, vivem uma
performance de par.
Dando continuidade a questão de aparências e preconceito, na
penúltima estrofe do poema, Angélica traz à tona um tom de melancolia ao
ilustrar esses temas:

neste ponto, já é tarde


as psicólogas do café freud
se olham e sorriem

Assim, a poeta deixa claro que as pessoas julgam e condenam


outras que não se enquadram nesse modelo ofertado pela sociedade
machista e capitalista que impõe o modo de vida de todos e todas. Por fim,
Angélica Freitas arremata o poema com seguintes versos:

nada vai mudar —


nada nunca vai mudar —
a mulher é uma construção
O registro aqui é mais uma vez irônico: por mais que tentem impor
um papel fixo e definitivo à mulher, ela é um ser em construção e, portanto,
continuará desafiando padrões, apresentando-se dentro de uma
pluralidade existencial e lutando por sua autodeterminação.
O plano de vida de uma pessoa, independente de gênero, deve
estar aberto a mudanças e escolhas a todos e todas, à medida que novas

164
possibilidades se apresentem na sociedade e no íntimo de cada ser
humano. Contudo, sabemos que essa mudança não acontecerá sem lutas,
sem conflitos, sem dor. Sem fazer apelo à coragem. Segundo Beauvoir
(2016, p. 172), “é negando a Mulher que se pode ajudar as mulheres a se
considerarem seres humanos”. Já Friedan (1971, p. 321) ressalta que “cada
mulher que combata as últimas barreiras no caminho da igualdade total,
barreiras disfarçadas pela mística feminina, facilitará o caminho das que
vierem atrás”.
Daí a importância de autoras como Angélica, que surgem como um
divisor de águas na poesia feminista, abordando de forma leve, porém
profunda, esse universo opressor e legitimado pela sociedade que é a
construção de gêneros/identidades de forma arbitrária e convencional.

Conclusão

Através do presente trabalho foi possível identificar como a


construção do que “deve ser uma mulher” foi fortemente estruturada na
cultura ocidental, provocando diversas interdições a quem não pertence ao
sexo masculino. Essa reflexão foi possível através da análise do poema “a
mulher é uma construção”, presente no livro Um útero é do tamanho de
um punho (2012), de Angélica Freitas.
No referido texto, a poeta faz um irônico jogo semântico entre a
construção social da figura da mulher e a construção civil. Ela, ao longo dos
versos, vai desmontando clichês associados culturalmente à mulher de
forma incisiva e irreverente, como da estética, da profissão e também
chama a atenção para o corpo feminino. Isso, com versos que vão da rima
de efeito cômico à crítica política feminista de forma natural.
A poeta consegue, na tessitura do poema, registrar nos seus
aspectos linguísticos e fazer poético a consciência de que política e poesia
não se dissociam, em especial, ao se falar de mulher, uma política
feminista. Ressaltamos, que mesmo com todos os ganhos advindos de lutas
feministas, ainda é preciso uma força de vontade extraordinária para ser
fiel a um plano de vida diferente do escolhido por todo um sistema
estruturado, e isso, Angélica deixa bem evidente em seus versos.

165
Referências

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro,
2016.
___________. O segundo sexo: a experiência vivida, volume 2. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2016.
BUTLER, Judith. Atos performáticos e a construção dos gêneros: um ensaio sobre a
fenomenologia e teoria feminista. In: Pensamento Feminista: conceitos fundamentais/
Audre Lorde...[et al]; Organização Heloisa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Bazar do
Tempo, 2019.
FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.
FRIEDAN, Betty. Mística Feminina. Petrópolis: Vozes, 1971.

166
Feminino, feminismo e resistência na performance
da slammer Mariana Félix.

Eveline de Sousa Montenegro27


Claudicélio Rodrigues da Silva28

Introdução
Quando se fala em poesia oral, geralmente lembramos das
melopeias gregas descritas por Aristóteles em sua Poética. Ou, então,
vamos à Idade Média, com os menestréis, trovadores e jograis que
perambulavam por vilas, feudos e castelos performando suas poesias
narrativas ou sentimentais. Ou, ainda, para nos aproximarmos espaço-
temporalmente de nossa realidade brasileira, lembramos dos cantadores e
violeiros das feiras e praças do Nordeste, dos cordelistas, dos repentistas
em seus desafios. A poesia oral tem uma história milenar. Das comunidades
primitivas eminentemente orais às de oralidade secundária, a poesia oral
era um veículo mnemônico utilizado tanto para a conservação do
patrimônio cultural quanto para a diversão, nesse caso, mais próximo ao
que entendemos hoje por literatura ou estética.
De qualquer modo, poesia oral e corpo eram inseparáveis. Se nos
aproximarmos dos espaços urbanos, encontraremos os saraus, lugares
propícios para se corporificar poesia na cidade. Em um sarau, se lê poesia,
se performa poesia, se lê um texto previamente escrito ou improvisando.
Mas este artigo quer discutir o slam, gênero novíssimo da poesia falada que
tem sido o meio pelo qual vozes e corpos de sujeitos minoritários se fazem
ouvir desde as periferias.
Um campeonato ou batalha onde as armas são o corpo, a voz e o
texto poético. Assim podemos denominar o slam. Nessa experiência, a

27 Mestranda do PPG-Prof em Letras UFC, área de linguagens e letramentos. E-mail:


[email protected]
28 Professor de literatura brasileira e membro do PPGLetras-UFC, coordenador do Grupo
de Estudos da Língua da Eros (GELE). E-mail: [email protected]

167
modulação da voz e a presença do corpo são elementos tão importantes
quanto o ritmo, o verso e o discurso que o poema engendra. Do outro lado,
uma audiência interage a partir do interesse provocado pelo slammer.
Entre a audiência e o poeta, um júri. Que vença o melhor.
As noites de Chicago, no ano de 1986, com seus bares tocando
jazz, viram pela primeira vez a Poetry Slam, obra de Marc Smith com o
grupo Chicago Poetry Ensemble. A semelhança com o vaudeville dadaísta
nas noites de Zurique do início do século XX não é à toa, porque tanto lá
como cá é a poesia falada a estrela. No Brasil, o ano é 2008 e a responsável
por realizar o primeiro campeonato de slam é Roberta Estrela D’Alva,
fundadora do Zona Autônoma da Palavra (ZAP!) que realizou o primeiro
campeonato de slam do país, no bairro de Pompeia, em São Paulo (KLIEN,
2018, p. 134).
Aqui o slam se popularizou rapidamente, a ponto de se ter um
registro de 145 coletivos país afora, segundo Menegaro 29 (2019, p. 21). É
justamente a força do coletivo, em sua maioria mistos (TREVISAN, 2018),
que constitui a marca do slam. Entretanto, embora o slam tenha sido
apresentado ao público brasileiro por uma mulher, os homens e o
machismo, a priori, dominavam o cenário nacional do slam. Fato
confirmado no Slam BR (Campeonato brasileiro de poesia falada) de 2015,
no qual metade dos participantes eram do gênero feminino, mas somente
uma conseguiu ir para segunda fase, e nenhuma conseguiu chegar à final.
Justamente por isso, em 2016 nascia o Slam das Minas - SP, um
coletivo de poesia falada organizado e disputado exclusivamente por
mulheres e que possui em diferentes localidades do Brasil. Luz Ribeiro, uma
das idealizadoras do projeto, em entrevista à revista Capricho informa que
“Os versos das mulheres não perdiam em nada para os versos dos caras,
então como a gente não conseguia passar de fase?” (OLIVEIRA, 2018). A

29 De acordo com a listagem apresentada no documentário, Slam: Voz de Levante (2017),


há trinta e cinco slams no estado de São Paulo, trinta e um no estado do Rio de Janeiro,
dezenove em Minas Gerais, doze no Rio Grande do Sul, nove no estado da Bahia, nove em
Santa Catarina, seis no Espírito Santo, cinco no Distrito Federal, três no Mato Grosso,
quatro no Mato Grosso do Sul, quatro no Estado do Pernambuco, dois no Ceará, dois na
Paraíba, um no Pará, um em Sergipe, um no Rio Grande do Norte e um no estado do Acre.
(MENEGARO, 2019, p. 21)

168
partir daí, as slammers (como são chamadas as poetas) perceberam, assim
como em outras iniciativas de incentivo à escrita feminina de poesia, a
necessidade de se organizar coletivamente com outras mulheres. Júlia Klien
(2019, p. 110) ressalta que “as estratégias políticas da poesia feita por
mulheres hoje, não está confinada no âmbito da produção individual, mas é
potencializada em iniciativas coletivas”. Tal fortalecimento pode ser
confirmado nos resultados conquistados pelas Mulheres desde 2016 no
Slam BR, já que Luz Ribeiro, Bell Puã, Pieta Poeta e Kimani foram as
campeãs da competição nacional de poesia falada respectivamente em
2016, 2017, 2018 e 2019. Ou seja, as mulheres precisaram criar um
ambiente no qual elas tivessem voz e espaço para falar sobre as suas
vivências, o machismo, o racismo, a homofobia e outras formas de violência
sofridas por elas. Menegaro corrobora essa visão ao reconhecer as
performances nas batalhas como um meio para romper silêncios e fazer
reivindicações feministas:
[...] Participar dessas batalhas tornou-se uma forma de romper o silêncio usando
o corpo como meio de expressão e renúncia às imposições que visam o controle
e a domesticação, principalmente no caso das mulheres. A poesia do Slam está na
performance, que só acontece com o uso do corpo e da voz, ou seja, esses
sujeitos potencializam o seu dizer através de uma ação poética comprometida em
reivindicar. (MENEGARO, 2018, p. 2)

Dessa forma, pode-se salientar a importância dos slams,


principalmente os de mulheres, na exploração de temáticas feministas,
performadas discursiva e corporalmente com o intuito de reivindicar
direitos, denunciar formas de opressão e demarcar um espaço de
resistência, nesse caso, estamos falando do espaço geográfico mesmo,
geralmente periférico, mas também o espaço literário prioritário da poesia,
o gênero seminal do protesto e da denúncia. Esse valor ideológico da
poesia, e sua maleabilidade ao corpo de quem a performa, tornam o
poema, mais do que um panfleto, um veículo paras as políticas do corpo.
A participação cada vez maior de mulheres em festivais literários,
saraus e competições como as do slam é, certamente, herdeira das pautas
feministas, sobretudo a de terceira onda, ali pelo início da década de 1970,
quando militantes começaram a se questionar a respeito do uso da

169
categoria mulher como um dado universal pelo qual todas as mulheres, não
importava se pertencentes ao primeiro ou terceiro mundo, do centro ou
das margens geográficas e sociais, tinham de projetar sua luta. Foram
reflexões de feministas negras e lésbicas 30 que promoveram uma revisão do
feminismo e impulsionaram no percurso rumo a uma diversidade de pautas
interseccionadas.

A alma performática do Slam

O espírito do Slam é essencialmente a performance. Sua oralização


em ambientes públicos, suas regras, seus slammers, suas temáticas evocam
o tempo inteiro a ideia de performance. Mesmo as atuações gravadas e
divulgadas na internet, em ambientes como o Youtube, Facebook e
Instagram, remontam sempre a um contexto de atuação num espaço e
tempo definidos previamente.
Ao assistirmos uma batalha do Slam, conseguimos compreender o
que afirma Zumthor sobre a poesia oral só se materializar devido a união
de certos elementos, como locutor, destinatário, texto, circunstância, corpo
e voz: “[...] a performance é uma ação complexa pela qual uma mensagem
poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida” (1997,
p. 33). A concretização desta ação requer um locutor e um destinatário
(poeta e público), um texto (poema), as circunstâncias (espaço e tempo), o
corpo e a voz. A poesia oral só acontece quando há a junção desses
elementos.
O corpo é peça chave na performance do slam, pois a sua própria
existência é responsável por contar histórias. O corpo da slammer e a sua
voz são a própria poesia sendo concretizada a partir da observação de três
regras fundamentais que se popularizaram nas batalhas de Slam no Brasil:

30 Nomes como os de Audre Lorde, bell hooks, Gayle Rubin, Kinberlè Cranshaw, Patricia
Hill Collins, Angela Davis, entre outras estadunidenses, contribuíram sobremaneira para
essa diversidade de pautas. No Brasil, é mais ou menos na mesma época que nomes como
os de Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro (fundadora do Geledés) pautam as discussões sobre o
feminismo negro no Brasil.

170
“os poemas devem ser de autoria própria do poeta que vai apresentá-lo,
deve ter no máximo três minutos e não devem ser utilizados figurinos,
adereços, nem acompanhamento musical” (D’ALVA, 2011, p. 122). A
primeira regra remete ao conceito de autorrepresentação, pois as
slammers batalham com poesias que falam de suas vivências únicas e
particulares, porém não individuais. Por isso, esse espaço precisa se tornar
democrático, o que é viabilizado com a segunda regra, que
simultaneamente limita o tempo e permite que mais mulheres, e outros
sujeitos, se manifestem. Quanto mais mulheres participam, mais corpos e
vozes são vistos e ouvidos, Para Menegaro, o corpo concretiza a
performance, compõem o poema e politiza mulheres no Slam:

O corpo é o meio através do qual a performance se materializa, ele é, portanto,


parte do poema. O corpo é poético porque faz parte da composição do poema,
configurando uma estética própria. O corpo é político porque poetas/slammers
assumem um protagonismo outrora negado a eles, que constituem grupos
historicamente oprimidos e subjugados. (2018, p.2)

Ainda que o corpo concretize a performance e materialize a


temática da poesia, atualmente o alcance dessa poesia oral é expandida
pela “oralidade mecanicamente mediatizada, diferenciada no tempo e/ou
no espaço” (ZUMTHOR, 1997, p. 37). Já que a recepção e a difusão dessas
poesias e dos slams ocorre através dos meios eletrônicos e não somente
pelo contato direto nos encontros presenciais. Dessa forma, para
compreendermos a potência dos textos do slam, temos que levar em
consideração também as atuações das slammers, pois sem as
performances veiculadas na internet, principalmente no Facebook e no
Youtube, teríamos que trabalhar somente com os poemas escritos,
desconsiderando o aspecto performático. Acerca disso, Klien (2019) afirma
que o poema se modifica, pois o escrito perde traços da corporeidade, ou
seja, o movimento corporal, a modulação da voz, os silêncios demarcados:

Um poema escrito é tradicionalmente o território do estranhamento da


linguagem, do esgarçar da significação, em que a voltagem poética é
frequentemente perseguida às custas da comunicabilidade. Mas a poesia oral,

171
como lembra Luna Vitrolira, poeta de Recife, é uma “poesia de mensagem”, ou
seja, uma poesia na qual a comunicabilidade aparece como objetivo principal,
sobrepondo-se aos procedimentos linguísticos de desarranjo sintático,
investigação lexical, etc. É assim que os saraus e os slams tornam-se instrumentos
poderosos para as poetas feministas. (KLIEN, 2019, p. 127 – 128).

É nessa conjuntura que slam, redes sociais e feminismo se


relacionam, expandindo e fortalecendo essa “nova poesia escrita por
mulheres, lésbicas e trans, uma poesia diferente, que surpreende, que
interpela, irrita, fala o que quer, fala o que sente, o que dói, que se faz ouvir
em saraus, na web, nas ruas, enfim onde a sua palavra chega mais
alto”(KLIEN, 2019, p.105). Ter o que dizer acerca de ser mulher numa
sociedade que designou o feminino como frágil, e esperar adesão do
ouvinte, é o que propõe essa poesia de mensagem, que se confunde com a
prosa, nas orações diretas, sem o trabalho de figuras de linguagem, sejam
sonoras ou de pensamento, e cuja função é a comunicabilidade imediata
com o público ouvinte.. A rima e o ritmo dessa poesia muitas vezes seguem
como referência a métrica e a modulação do rap.

A voz poética de Mariana Félix

Mulher preta, periférica, apresentadora31, escritora e slammer,


finalista do Slam Br em 2014, 2015, 2016 e 2017. Mariana Félix se faz
presente fortemente na web. Nesse suporte, produziu dois zines: “Só se for
uma rapidinha” (2015) e “Gavetas” (2016), dos quais encontramos alguns
vestígios na internet, mas nada integral, pois muito do que se é produzido
por essas poetas contemporâneas sobrevive na rede simultaneamente
acessível e inacessível.
A escritora, que se autodeclara feminista, publicou de forma
independente os livros Mania (2016), Vício (2017) e Abstinência (2019),
neles encontramos uma mescla de poesias, crônicas e dissertações sobre a
emancipação da mulher negra, empoderamento feminino, política e as
relações da autora com a cidade de São Paulo, assim como o registro

31 Apresentadora do programa Slam mulheres plurais - “Além da Poesia”, transmitido pela


Rede TVT, e do Canal Prosa Poética.

172
escrito de suas poesias performadas em diversos coletivos e
disponibilizadas nas redes sociais, a autora afirma que “escreve porque
sabe que disputar narrativas é urgente, sabe que ser a protagonista de sua
história é sobrevivência” (FÉLIX, 2019).
Os poemas escolhidos para análise neste estudo são “Direito”, que
integra o livro Vício (2017), e “Baseado em escrotos reais”, que integra o
livro Abstinência (2019); todos eles com performances disponibilizadas no
Youtube e/ou no Facebook por diferentes coletivos de poesia e pela própria
escritora. Na análise, refletiremos sobre as temáticas femininas e feministas
abordadas, e tentaremos caracterizar a performance como uma força
motriz de resistência e de denúncia das formas patriarcais de opressão
feminina.
O poema “Direito32” foi performado na edição de dezembro de 2016
do Slam Resistência e proporcionou à slammer a vaga de campeã da edição
em um empate com Mayara Vaz33. A performance do poema encontra-se
na página do Facebook e no canal do Youtube da própria autora; além
disso, há também uma versão do poema recitado por ela em um projeto de
vídeo-poema.
No primeiro verso do poema, também chamado de “Fabiana”, há
uma alusão ao primeiro tema de interesse feminino que será reivindicado e
denunciado na performance, o direito ao aborto, essa pauta recorrente nas
demandas feministas e “que é visto como uma questão prioritária de
direitos humanos” (PIMENTEL, 2012), mas que encontra bastante
resistência social, baseada em argumentos de caráter religioso. A poeta
opta, então, por defender seu ponto de vista, através de um texto poético
que em muito lembra uma crônica, já que conta uma história e
simultaneamente fazer uma crítica a essas pessoas que embasam seus
argumentos contra o aborto em aspectos religiosos, mas possuem uma
“religiosidade seletiva”:

32 Performance disponível em:


<https://www.facebook.com/marifelixoficial/posts/1443278449052454/>. Acesso em 02
de agosto de 2020
33 Por ser a última edição do ano, não houve desempate, já que o ganhador garantiria
uma vaga no Slam BR, porém a Mayara Vaz ficou com a vaga, pois Mariana Félix já tinha
garantido sua vaga

173
Sentou para fazer o teste
Pela primeira vez juntou as mãos
Pediu ao Deus cristão: reprovação.
Ali sentada, não chamava Maria
E era pouca a sua graça
Sabia que nenhum Espírito Santo a abençoara.
…………………………………………...
Se levantou, ensaiou as explicações para o Pastor
Para a sua mãe, para a sociedade
Pensou em procurar aquele
Que do que ela carregava era dono de metade
Mas recuou... (FÉLIX, 2017, p. 15)

Nesses versos, a slammer apresenta a situação, uma mulher


aparentemente jovem que faz um teste que se imagina ser de gravidez,
pois a personagem na sequência junta as mãos e faz um pedido ao Deus
cristão de aprovação ou reprovação do que está prestes a fazer? O narrador
declara ser essa a primeira vez que a jovem reza. Ela não deseja ser
“abençoada” com um filho, pois não era Maria, não possuía muita graça e
tampouco fora abençoada pelo Espírito Santo. A maternidade aqui não é
vista como uma graça, pelo contrário, é um peso que ela não deseja
suportar. tudo dá conta de que não se trata de uma situação de bençãos. A
comparação com o episódio bíblico em que Maria é consultada por Deus
através da visita do anjo para a possibilidade de ser mãe do seu filho (uma
escolha livre, portanto), entra em atrito com as instâncias que impedem a
mulher de ter direito sobre o próprio corpo, ou seja, o direito feminino é
interditado pela religião, a família e a sociedade.
Em seguida, nota-se um discurso de resistência na crítica a várias
formas de opressão da mulher, exemplificada pelos versos: “Não queria
aquilo/Que dentro já habitava/Não queria escolher nome próprio/Nem ser
casada/Queria sua vida mudada.” (FÉLIX, 2017, p.15). A resistência está no
uso dos advérbios de negação que marcam a opinião contrária do eu lírico
em relação à instituição patriarcal do casamento. Na performance, a
slammer é incisiva nessa negação. A voz nega, mas seu corpo nega
também; seu dedo em riste acompanha cada uma das negações.

174
Na sequência, embora o eu que narra o fato afirme que a jovem
decide pelo aborto sem remorso, percebe-se um sentimento de culpa a
cada ação da personagem. Talvez o termo “sem remorso” signifique “com
resignação”. Aqui se exemplifica o argumento da urgência da
descriminalização do aborto, pois, embora os dados sejam imprecisos, “é
possível traçar um perfil de mulheres em maior risco de óbito por aborto:
as de cor preta e as indígenas, de baixa escolaridade, com menos de 14 e
mais de 40 anos, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, e
sem companheiro” (CARDOSO, 2020, p.20):

Procurou uma farmácia


Pediu ao moço a droga mais usada
Para se livrar do que não aguentava
Mas já carregava
Parou em um parque
Chorando pediu perdão ao ventre e quem nele habitasse
Tomou o comprimido
E sem remorso, disse adeus...
E pediu:
Pai, perdoa os erros meus! (FÉLIX, 2017, p.15-16)

Nos versos a seguir, nos deparamos com mais uma denúncia, o


abuso de crianças e adolescentes do sexo feminino em seus próprios lares.
Dados recentes34 comprovam que o perfil das vítimas, em 46% dos casos, é
o de adolescentes (mulheres) entre 12 e 17 anos, e que a violência sexual
ocorre, em 73% dos casos, na casa da própria vítima ou do suspeito, e é
cometida por pai ou padrasto em 40% das denúncias.

Mas o erro não era dela


Tomou tanta pílula vivia de tabela
Calculou cada risco do que sempre lhe invadiu as pernas
Achou que um comprimido era pouco
Tomou logo a cartela inteira e como um sopro
34 Dados divulgados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
(MMFDH). Disponível em:
<https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/maio/ministerio-divulga-
dados-de-violencia-sexual-contra-criancas-e-adolescentes> Acesso em 19 de maio de
2020.

175
Foi parar no pronto-socorro.
Ao abrir os olhos, quem estava lá?
O pai da criança a lhe acariciar...
Como já fazia a anos
Naquele inferno que chamavam de lar
E ela disse, sem bebê e sem ventre
Que estava cansada daquilo, que seguiria em frente
Não aceitaria mais seus abusos
Enquanto ele fingia ser crente
O mesmo pai, o da criança e o dela
Disse que como homem ele honrava o que tinha entre as pernas
E que era direito dele como pai, ser o primeiro a se deitar com ela (FÉLIX, 2017,
p.16)

Nesse momento da performance, a slammer eleva seu tom,


gesticula sua revolta, denuncia a sua indignação ao narrar sua história de
abuso pelo próprio pai, narrativa que se repete em muitos lares brasileiros
cotidianamente. A fala do pai é um reflexo direto da ideologia patriarcal
que coloca a mulher como objeto do desejo e propriedade do homem, a
começar pelo pai. Vale salientar, também, o papel da plateia nessa
performance, pois a recepção dela foi diferente se comparada a outras
performances da própria Mariana Félix, nas quais a audiência é sempre
participativa e animada; nessa, os espectadores se mostram atentos,
silenciosos mesmo, talvez sensibilizados, chocados ou reflexivos. O fato é
que essa poesia constata e expõe uma realidade da qual todos já ouviram
falar ou vivenciaram, mas que é tratada como tabu. O silêncio da plateia
parece confirmar isso.
No último trecho, o eu lírico evidencia outro problema relacionado
à violência sexual de adolescentes, que é a “cegueira” da mãe e dos
familiares da vítima, isso é destacado pela marcação do tempo, “Fabiana foi
abusada/Durante 13 anos em sua própria casa”, e do espaço, “[...] sua
própria casa/No quartinho em que sua mãe guardava coisas usadas/Logo
ali, escondidinho, debaixo das escadas.”. O uso do diminutivo reforça essa
marcação do espaço, e fortalece o teor denunciativo do poema. Ao fazer
referência a um espaço pequeno que era da mãe, que estava debaixo da
escada, ou seja, um lugar de movimento, o poema acaba por lançar luz ao
espaço da mulher numa sociedade cujos valores são todos medidos pela

176
régua do masculino. Numa sociedade falocêntrica, o lugar da mulher, além
de ser o da cozinha, o espaço privado, é também o lugar do silêncio, sob o
risco de ser violentada. No poema escrito, observamos que o nome da mãe
é grafado com letra minúscula, seja porque ela não impediu, não notou,
não acolheu, não fez nada, o fato é que ela claramente também já foi
silenciada.
Por fim, nos últimos versos, o eu lírico escancara sua crítica à
hipocrisia dos que se posicionam contra o aborto por um moralismo que se
confunde com questões religiosas. De modo satírico, a slammer descreve,
em um culto de domingo, a mãe e o estuprador da filha, que pareciam um
casal tão lindo, e o pastor que culpabiliza a vítima, enquanto ele próprio,
conivente, retira dos dízimos o dinheiro para um aborto clandestino:

No culto de domingo
Dona glória e Seu José pareciam um casal tão lindo
O pastor disse que Fabiana que estava desgarrada por ter sumido.
No bolso do Pastor: dólares
Pra um aborto clandestino
De uma irmãzinha com quem estava dormindo
Respondeu aos pais de Fabiana sorrindo:
“Irmãos, Deus os abençoe pelo dízimo! (FÉLIX, 2017, p. 16-17)

O poema “Baseado em escrotos reais”35 foi performado em agosto


de 2017 no Slam das Minas SP e em outubro do mesmo ano no Slam da
Guilhermina (2º Poetry Slam do Brasil). É uma performance que se
encontra com mais facilidade, pois está nas redes sociais da slammer e dos
coletivos. Trata-se de um poema mais marcado pela subjetividade da
autora em sua condição de escritora, mulher e negra. Quanto à forma, o
longo poema de uma só estrofe modula a alternância de versos longos e
curtos, numa rima e rítmica que o aproxima da dicção do rap. Tal densidade
melódica significa muito a qualidade da performance oral.
O interessante título apresenta uma duplicidade semântica, uma
vez que “escrotos” lembra “escritos”; essa aproximação não é meramente
sonoro-verbal, pois participa da composição de um termo muito utilizado

35 Performance disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Q9rK9qjOBIo>.


Acesso em 02 de agosto de 2020.

177
nas aberturas de novelas e romances cujo roteiro foi “baseado em fatos
reais” ou “escritos reais”. Portanto, a subjetividade é apresentada desde o
título. Levando-se em consideração que uma das características do slam é
que “os poemas devem ser de autoria própria do poeta que vai apresentá-
lo” (D’ ALVA, 2011, p.122), aqui a voz do eu lírico aproxima-se a da autora.
Além disso, identifica-se a vivência de mulher preta que se relacionava com
um homem branco, um homem escroto, como o próprio título já alerta:

Te deu saudade né?!


Me procurou…
Andou dizendo que sou mais linda que qualquer flor
E eu logo pensei:
Olha quem está por aqui…
O rapaz dos olhos verdes que vivia a me iludir (FÉLIX, 2019, p. 54).

Na performance dos três últimos versos, a slammer usa um tom que


sugere um misto de surpresa e de deleite, mas não de felicidade ao vê-lo, e
sim mais como alguém que pensa: agora é a minha vez de dar o troco!
Acrescenta, ainda, uma caracterização do indivíduo com quem se relaciona,
“O rapaz dos olhos verdes que vivia a me iludir”, que evidencia a diferença
racial e o tratamento que esse homem destinava a ela. Logo ficamos a par
do tipo de relacionamento tóxico que mantinha com esse homem
claramente machista. Na performance, sua expressão já é mais séria e seus
gestos são incisivos, cada gesto enfatiza uma frase e demonstra está
condizente com o que é falado:

E eu sempre servia pro que me cabia


Você me mandando nude
E eu te mandando poesia
Olha que fria!
No Dia das mulheres compartilhou link de site de pornografia
Disse que por lá
Nós nunca éramos esquecidas
Fazia piada machista
E ria
Na minha cara e na das outras meninas
……………………………………..

178
E eu me perguntava:
Como pode tanta misoginia?
A mãe? Era Rainha
As outras? Tudo puta, vadia
As irmãs? Princesinhas
Namorada? Só se for loira e magrinha
E eu? Logo pretinha
Sonhando em chamar de meu
Um escroto racista! (FÉLIX, 2019, p. 54)

Nesses versos, percebe-se a objetificação das mulheres, a


desvalorização das lutas e conquistas femininas, pois o personagem
debocha das mulheres nos versos. Quanto à performance, os ouvintes
estão mais participativos e ovacionam o trecho irônico, o que costuma ser
uma característica bem frequente no slam, um verso aplaudido é um soco a
atingir o “adversário”, no caso, o destinatário do discurso. O eu lírico
denuncia a conduta misógina masculina e os estereótipos atribuídos às
mulheres de forma bem dicotômica (mãe/rainha; outras/putas, vadias;
irmãs/princesinhas; namoradas/loiras, magrinhas). Essa denúncia é muito
importante, pois é legitimada pela voz que a expressa, já que essas
experiências estão conectadas à identidade da poeta como mulher e como
mulher preta. Por isso, imediatamente após a denúncia, o eu lírico frisa a
importância da representatividade, do slam, na construção de uma
identidade independente “Foi-se a época em que eu era iludida/ Foram as
minhas iguais/Na roda de poesia/Que me ensinaram a ser minha!” (FÉLIX,
2018, p.54). A identidade que se fortalece não é somente a da slammer:

[...] embora usem o seu corpo no fazer poético, esses sujeitos transcendem o
subjetivo, o eu que se coloca no poema não é individualizado, ao contrário, trata-
se de um eu comunitário, que se mostra prioritariamente na perspectiva do
coletivo, considerando o pertencimento a um grupo do qual sua voz simboliza a
representatividade. (MENEGARO, 2018, p.5)

No poema, há ainda uma crítica ao lugar do desejo numa relação


masculino-feminino, já que devido a objetificação da mulher, o homem,
produto dessa sociedade patriarcal e machista, tende a se preocupar com o
seu próprio prazer e a desconsiderar o prazer feminino, porém o eu lírico já

179
se conscientizou, se libertou e não aceita mais ser tratada como objeto. Daí
se compreender que a base de um poema a ser performado no slam é
mostrar o que é ser mulher numa conjuntura social toda elaborada para
atender aos desejos e expectativas do homem, e sabendo disso, como é
necessário uma busca por liberdade ao mesmo tempo que se luta por
empoderamento.

Chegou devagar...
Sondando a neguinha
Pra ver se eu ainda era a mesma que você comia
Que se lambuzava e depois cuspia.
Hoje devolvo a sua indigestão
Em cada uma das minhas rimas!
Eu mendigando carinho
Você caralho a dentro
Exigindo de quatro
E eu no quarto passando veneno
Eu não me esqueço!
Ficou guardado na memória
De um corpo que não é mais escravo das suas histórias!
Amizade colorida? Pra quem?
Se seu sentimento era todo preto e branco
Regado de desdém
E eu me afastei
Nenhum macho mais fez comigo
O que eu permiti que você fizesse, Meu Bem!
Os que tem medo de mim
Estão é certos!
Porque eu não aceito meia conversa
E nem ser tratada feito objeto (FÉLIX, 2019, p.54-55)

Paralelamente a essa crítica, a autora retoma nos versos seguintes


uma resistência simbólica, pautada na questão racial, e que origina um
sentimento de empoderamento da mulher preta, pois devido ao “viés
político, levando em consideração também o entendimento do gênero e da
raça como performativos, essas performances são ações de resistência
situadas no corpo e a partir do corpo pela voz e pela palavra que dele
emana.” (MENEGARO, 2019, p.65).

180
[...]
Sabe aquelas pretinhas bem folgadas?
Que se acham lindas, maravilhosas e não aceitam serem mal tratadas?
Então, eu sou uma das que lidera esse bonde
De mulheres exigentes que não dão mole pra homem!
Os troféus que eu guardo lá em casa
Só me lembram o quanto você é nojento
O quanto eu sempre fui crônica e você história pequena, sem enredo
Mas agora você me segue, acha graça
No in box até tenta me dar uma cantada
E eu? Vou rir da sua cara!
Lembrar bem de quando você me humilhava!
De quando a branca era a sua escolha nata
E eu não passava da preta pobre que você não andava de mãos dadas
(FÉLIX, 2019, p.55)

O recado do último trecho é que a mulher não quer mais ser mero
objeto de satisfação sexual para o homem, nos moldes das irreais atrizes
pornô. Ela não se permite a objetificação, e ainda se afirma como mulher,
preta e escritora, papéis pelos quais ela realiza cotidianamente seu
empoderamento:

[...]
Então com meus dois pés no chão
Vou te dar um recado!
Seu punheteiro, arrombado
Misógino, mal amado
Deixei de reproduzir na cama esse seu filme barato!
Não sou sua atriz pornô
Sou preta e escritora
E hoje você vai assistir de camarote
Essa Preta aqui, ser aplaudida
Por essa platéia toda! (FÉLIX, 2019, p.55)

Como se vê, tal poesia de combate é voltada duplamente para


outras mulheres, no ensejo de que elas se vejam no que está sendo dito; e
para os homens, para se reconheçam no tipo de masculinidade tóxica e
escrota que ela denuncia e, com isso, promova a abolição do sexismo e da

181
misoginia de suas relações afetivas. Acima de tudo, essa é uma poesia
comprometida com uma luta pelo respeito e dignidade entre os gêneros.
A união de poetas na construção de coletivos onde possam exercer
a liberdade para produzir e veicular suas poéticas, e o próprio discurso dos
textos parecem se mover na direção de uma leitura interseccional. Esse
aprendizado certamente vem do projeto feminista negro que, segundo
Carla Akotirene, “[...] desde sua fundação, trabalha o marcador racial para
superar estereótipos de gênero, privilégios de classe e
cisheteronormatividade articuladas em nível global” (2019, p. 22). Ou seja,
as mulheres têm consciência de que o sistema de opressão atravessa
classe, raça, gênero e sexualidade, e, por isso, é preciso se desvencilhar
dessa malha tecida por uma sociedade falocêntrica, hierárquica e misógina,
para a qual a mulher não passa de uma construção do desejo do homem
para seu usufruto.

Conclusão

A performance poética do slam é marcada pelo subjetivismo e por


um forte teor crítico e denunciativo, atravessado pelas relações de gênero,
de corpo, de raça e também pelas várias pautas do feminismo que
aparecem em praticamente todas as poesias, embora o feminismo como
tema e como conceito não apareça concretamente nos textos.
Quanto à natureza formal do texto a ser performado, mesmo
quando o poema é publicado em livro, a dicção vocal e a corporeidade são
suscitadas, ou seja, são poemas que cobram do leitor uma ação de leitura
hiperlinkada, ler o texto vendo o vídeo ou ouvindo o áudio da performance.
Essas estratégias de leitura traduzem a afirmação de Paul Zumthor (1993)
de que toda performance atualiza o texto, sempre renovado e em devir.
Isso se refere ao que o autor chamou de “movência”, que pressupõe que a
dicção performática de um texto, num espaço e tempo determinados,
confere a ele uma ressonância de novidade, uma vez que “cada
performance torna-se, por isso, uma obra de arte única, na operação da
voz” (ZUMTHOR, 1993, p. 240).
Portanto, os poemas de uma batalha de slam solicitam a presença
de três elementos essenciais não apenas na concretização do poema, mas

182
na sua recepção: corpo, voz e contexto. É isso o que caracteriza o “gênero”
slam como um estilo capaz de comunicar uma mensagem política e de
ecoar vozes antes silenciadas. Dessa forma, consideramos que a slammer
Mariana Félix, conforme os dois poemas aqui analisados, faz de sua arte
poética um documento de denúncia e crítica à opressão patriarcal,
sintetizadas na objetificação e estereotipação da mulher e no machismo
que regula as relações afetivas. Nesse sentido, a poesia é ativismo e o
ativismo é poesia, assim como a poesia é feminista e o feminismo é poesia.

Referências

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______________. A letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das


Letras, 1993.

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O II Colóquio da Língua de Eros, que aconteceu entre os
dias 20 e 22 de novembro de 2019, na Universidade
Federal do Ceará, foi um momento de elaborar
resistências, de mostrar que Eros é um incômodo ao
conservadorismo e à cultura que erigiu uma
heterossexualidade como norma para o desejo e ousou
hierarquizar os sexos. Organizado pelo Grupo de Estudos
da Língua de Eros (GELE), que reúne alunos da graduação
e da pós-graduação em Letras, o Colóquio ofereceu à
comunidade acadêmica um espaço crítico onde se
pudesse refletir sobre o desejo e seus territórios
interventivos. Sob o título “Todos os corpos desejam”,
acolhemos trabalhos sob cinco temas norteadores: a)
políticas da sexualidade, b) literatura brasileira
contemporânea e erotismo, c) literatura LGBTQIA, cultura
queer e desejo, d) literatura, feminismo e erotismo:
poéticas da resistência, e) masculinidades em crise e
erotismo. Em sete sessões de comunicações, Trinta e dois
trabalhos foram apresentados, contemplando análises de
obras literárias, música, clip musical, jornais e cultura
popular. Onze desses trabalhos estão publicamos aqui,
além do texto de uma das convidadas para as mesas de
conversa.

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