Dualismo e Gnosticismo Na Historia Da Igreja Cristã

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O DUALISMO

NA
TEOLOGIA CRISTÃ

( A INFLUÊNCIA DO GNOSTICISMO AO LONGO DOS ANOS, NA TEOLOGIA CRISTÃ)

“ENTENDAM COMO O GNOSTICISMO, O PIOR INIMIGO DA IGREJA CRISTÃ NOS SEUS


PRIMÓRDIOS, FOI O RESPONSÁVEL PELO CELIBATO DIFUNDIDO NA IGREJA CRISTÃ ATÉ
NOSSOS DIAS. ENTENDA O PORQUE DA DIFICULDADE DA IGREJA (INSTITUIÇÃO) EM
LIDAR COM A CULTURA( SEJA COM AS MUSICAS POPULARES, ARTES, DANÇAS, FESTAS
POPULARES ETC), A DIFICULDADE EM LIDAR COM A SEXUALIDADE, E COM O CORPO EM
GERAL.
AQUI VEREMOS COMO OS ENSINAMENTOS DO MOVIMENTO GNÓSTICO DO 1° SÉCULO
ENTRARAM DENTRO DA IGREJA, E SUAS DOUTRINAS ASCÉTICAS, CONTRA A VIDA, SÃO
DIFUNDIDAS ATÉ HOJE, EM NOSSAS IGREJAS, PORÉM POUCOS SABEM DISTO, ATÉ OS
LÍDERES RELIGIOSOS, EM QUASE SUA TOTALIDADE DESCONHECEM DE TAL FATO.”

“O GNOSTICISMO COMO MOVIMENTO ACABOU!! MAS SEUS ENSINAMENTOS ESTÃO


PRESENTES EM NOSSAS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS ATÉ HOJE!”

CONHEÇA, DISCIRNA E SE LIBERTEM!!

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ÌNDICE

INTRODUÇÃO---------------------------------------------------------------------------------------------PÁG 2-4

DUALISMO ANTROPOLÓGIO PLATÔNICO: QUANDO TUDO COMEÇOU-----------PÁG 5-6

Evangelho Segundo Platão--------------------------------------------------------------------PÁG 6-8

A Controvérsia gnóstica - O QUE É GNOSTICISMO------------------------------------------PÁG 8-10

O Gnosticismo no Novo Testamento--------------------------------------------------------------PÁG 10-12

OS PAIS DA IGREJA E SUA LUTA CONRA A HERESIA GNÓSTICA--------------------PÁG 12-16

O monasticismo cristão e o celibato na igreja--------------------------------------------PÁG 16-25

Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino-------------------------------------------------PÁG 25-27

TEOLOGIA E ESCRAVIDÃO: O DUALISMO COMO FUNDAMENTO

TORTURA DOS NEGROS E INDIOS NA COLONIZAÇÃO CATÓLICA NA AMERICA-----PÁG 27-32

A REFORMA PROTESTANTE-----------------------------------------------------------------------PÁG 33-40

Puritanismo e Pietismo - o avanço do ascetismo protestante-------------------------PÁG 40-44

Avivalistas, ortodoxos e liberais - tensões e fissuras------------------------------------PÁG 44-48

Fundamentalistas e pentecostais - radicalizações e rompimentos-------------------PÁG 48-50

A Inserção do Protestantismo no Brasil--------------------------------------------------PÁG 50-58

Pentecostalismo e neopentecostalismo - o novo rosto da igreja----------------------PÁG 58-68

Conclusão geral--------------------------------------------------------------------------------PÁG 69-73

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INTRODUÇÃO

Em 16 de setembro de 1984, eu participava do culto noturno na Igreja Presbiteriana do Brasil


na Rua Cabo Ailson Simões, no 384,em Vila Velha, Espírito Santo, a convite de amigos de
um pequeno grupo de teatro do qual fazíamos parte. Eu havia pisado pela primeira vez em
minha vida num templo evangélico em abril daquele mesmo ano, contando então com 17
anos de idade. Em outubro, já com 18 anos completos, naquela noite de início de primavera,
eu aceitava, em resposta ao apelo feito pelo Pr. Jacques , a Jesus como Senhor e Salvador de
minha vida.
Os anos que se seguiram foram típicos de um jovem membro ia igreja evangélica histórica:
grupos de louvor, saídas após o culto, programações evangelísticas, sociais e esportivas,
dezenas de acampamentos, treinamentos de liderança, festinhas com os amigos da igreja, etc.
Não faltavam os debates acerca de usos e costumes desencadeadores de conflitos entre a
geração mais idosa e os mais jovens da igreja. Questões como: poder bater palmas ou não na
hora do culto, uso da bateria e guitarra no louvor, se ritmos brasileiros eram adequados ao
momento litúrgico, quais roupas eram permitidas para a freqüência ao templo, além das
questões que aflingiam (e afligem) rapazes e moças na minha idade naquela época como com
quem namorar, o que era permitido num namoro cristão, masturbação, homossexualismo e
mais, que tipo de relação deveríamos manter com os não crentes, como lidar com as finanças,
que profissão escolher, etc. Todos esses eram assuntos que dominavam nossas conversas que
muitas vezes varavam a madrugada na casa de alguém da turma.
Enquanto isso lá se iam os anos 80. Michael Jackson estava no auge da fama mundial com a
repercussão daquele que é até hoje o álbum mais vendido da história da música, Thriller, com
mais de 100 milhões de copias vendidas.
Em meio a toda essa profusão de cultura pop, a Igreja ocupava lugar central em nossas vidas.
Aquilo não era apenas a nossa Igreja, era quase a nossa casa.
Tempos depois, após trancar o curso de Psicologia na Universidade Federal do Espírito
Santo, depois de dois anos de estudos, e já cursando Teologia no Seminário Presbiteriano do
Norte na cidade de Recife, incomodava-me a sensação de que muita energia e tempo
preciosos eram gastos em nossas comunidades presbiterianas (falo desta denominação, pois lá
se deu minha experiência) com debates e desentendimentos que nada tinham a ver com a
mensagem de Jesus de Nazaré para nossas vidas. Meu sentimento na época é que vivíamos, a
partir de nossa conversão, uma relação mal resolvida com a cultura brasileira. “Vivemos no
mundo, mas não pertencemos ao mundo” era a máxima que norteava nossa conduta.

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Contudo, difícil era definir o que era “coisa do mundo” uma vez que as opiniões variavam de
pessoa para pessoa. Aos poucos, tornamo-nos jovens velhos. Conservadores, legalistas,
retrógados, um tanto divorciados da realidade e, ao mesmo tempo, tão seduzidos por ela.
Hoje, passados 25 anos, desconfio que a profusão de programações que inventávamos, algo
quase barroco, tinha por finalidade não nos dar tempo para pensar, ainda que isto não fosse
consciente. Quando falávamos em novo nascimento, levávamos isso muito a sério. Era como
se tudo o que havíamos vivido até ali perdesse,como por encanto, sua validade (“deixando as
coisas que para trás ficam”)... Havia uma cartilha a ser encenada: moral legalista, amigos
evangélicos, leituras recomendadas, espaços(guetos) a serem freqüentados, vida social
restrita, assiduidade rigorosa às programação da igreja, músicas saudáveis, sexualidade
neurotizada e, o avesso da moeda, comportamentos inadequados, músicas censuradas, livros
perigosos, certos tipos de lazer) ou aquilo que se entendia como excesso deles) censurados e,
o pecado dos pecados, namorar um (a) não crente (“que comunhão pode haver entre a luz e as
trevas?”). A cultura pop era demonizada e a igreja precisava nos afastar dela o máximo
possível. Era assim mesmo: tudo muito ambíguo.
Transferido para São Paulo em 1989 para terminar o curso de Teologia no Seminário
Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição permaneciam as mesmas questões. Mudou a
cidade, mudou a igreja, mudaram os rostos, mas os velhos dilemas permaneciam.
Donde aquela dificuldade em continuar vivendo em sociedade como uma pessoa “normal”?
Porque a sensação de se viver uma espécie de esquizofrenia existencial? Qual era a origem
daquele sentimento de ter tido o cordão umbilical que nos unia à família e ao nosso passado,
cortados de forma tão grotesca?
No pastorado, e já como professor de História do Cristianismo na Faculdade Unida de Vitória
(antiga FTU), Espírito Santo, começava a se esboçar em minha mente uma tentativa de
resposta. A clássica separação entre sagrado e profano proposta pela filosofia grega de viés
pitagórico-platônica parecia ser uma pequena luz no fim do túnel. Assombrava-me que algo
tão antigo e tão distante de nós pudesse ter algo a ver com as questões de minha mocidade.
Mais incômodo ainda era descobrir que as causas e conseqüências transcendiam em muito as
meras querelas que jaziam no seios das comunidades evangélicas. Ou seja, as causas do
problema eram muitíssimo mais profundas e suas conseqüências muitíssimo mais
abrangentes e danosas. Entretanto, a correlação era inevitável, pois o tipo de santidade ou
espiritualidade ascética e desencarnada propugnada nos ambientes evangélicos que eu
freqüentava naquela época tinha muito do dualismo neoplatônico que se esgueirou para
dentro da teologia cristã a partir, notadamente, do segundo século. Assim, a suposição era que

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nosso antagonismo com práticas e costumes sociais corriqueiros tinha sua origem no
dualismo espírito- matéria proposto pelo platonismo. Isto porque a maior parte de nossas
negativas culturais tinha a ver com prazeres e diversões, coisas que envolviam o corpo. Ora,
se o corpo é mal, essas coisas também deveriam ser.
Desejo, com este trabalho, aplacar as angústias de minha adolescência evangélica. Proponho-
me perseguir o influxo crescente do dualismo platônico sobre a teologia desde os seus
primórdios até sua plena maturidade em fins do período patrístico e desta avançando sobre a
era medieval. Feita a constatação haveremos de perguntar pelas conseqüências práticas desta
nova teologia, ou desta forma específica de teologia, uma teologia platonizada, sobre a
história do Cristianismo. Dentre muitos exemplos que poderiam ser dados, focaremos na
invasão ibérico-católica na América Latina e o conseqüente massacre dos povos ameríndios e
escravização dos povos afros ocorrido a partir do século XVI e, em segundo lugar, na
inserção do protestantismo anglo-saxônico no Brasil e sua tensa relação com a sociedade
brasileira a partir de meados do século XIX. Os exemplos escolhidos visam apontar para as
graves conseqüências de uma antropologia deformada que tem como subproduto a
desvalorização do corpo, a demonização do prazer, a expatriação do desejo,a legalização da
violência, a formalização da cultura da guerra, a oficialização do preconceito, a sanção da
cultura de classes e o desprezo pelo outro, diferente de nós.

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“DUALISMO ANTROPOLÓGIO PLATÔNICO: QUANDO TUDO COMEÇOU”

O objetivo do presente capítulo é demonstrar que a visão dualista do ser humano defendida
pela teologia cristã, ainda que um dualismo moderado, tem sua origem séculos atrás, quase
no alvorecer do Cristianismo, mais especificamente no segundo século, quando as
comunidades cristãs foram infiltradas por idéias gnósticas. O gnosticismo, por sua vez, teve
como uma das suas fontes principais o dualismo antropológico platônico. Como
conseqüência, defendia tanto a clássica separação entre espírito e matéria, quanto a
mortalidade da alma.
Ao longo dos séculos, à medida que ia se formando o pensamento teológico cristão, este
dualismo foi-se cristalizando de formas variadas, com poucas tentativas de superação do
mesmo. Esta divisão entre o mundo mal da matéria e o mundo bom do espirito não teve sua
aplicação restrita tão somente à antropologia, mas passou a determinar também a construção
mesma da sociedade em suas dimensões políticas, sociais, econômicas, culturais, religiosas;
etc.
O problema da antropologia iniciou de fato no momento em que as comunidades cristãs
começaram a elaborar uma teologia. Com forte influência da filosofia helénica, a teologia que
daí resultou é um híbrido de pensamento neotestamentário e neoplatônico. A título de
exemplo, e como nos lembra Leonardo Boff, o Novo Testamento não afirma a imortalidade
da alma, pensamento este defendido por Platão. O que é afirmado sobejamente nas Escrituras
é a fé na ressurreição dos mortos. Já o platonismo afirma a imortalidade da alma e não
reconhece a ressurreição, amplamente defendida no Novo Testamento. A mistura desses dois
pensamentos (imortalidade da alma - platônica; ressurreição - cristã) deu origem à seguinte
teologia: depois da morte do cristão a alma vê-se diante de Deus, goza de sua presença até o
fim dos tempos quando será novamente reunida ao corpo ressuscitado. “A doutrina da
imortalidade da alma dos gregos foi completada com a outra bíblica da ressurreição dos
mortos”.A partir daí passou-se a crer nos círculos cristãos que a morte só atinge ao corpo,
assim como a ressurreição também é somente para o corpo. Pode-se dizer que este
pensamento não é mais nem bíblico nem platônico, é uma terceira via.
Alfonso Garcia Rubio mostra que este debate não se limitou aos círculos acadêmicos. Tivesse
ele permanecido somente no mundo dos embates teóricos, provavelmente não mereceria
nossa atenção. Contudo, suas conseqüências práticas podem ser sentidas na forma como a
Igreja passou a valorizar a alma em detrimento do corpo, a fé cristã em detrimento das opções

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sociopolíticas, a vida no céu em detrimento da vida na terra, o Jesus divino em detrimento do
Jesus humano e assim por diante3. Por conseguinte, graves desvios e um sem número de
atitudes violentas, e discriminatórias foram sustentadas pela Igreja com base na netafísica
dualista de desprezo pelo corpo. Adiantando o debate, podemos citar de forma
pontual a Inquisição, as Cruzadas, o genocídio dos povos ameríndios e a escravidão dos
povos africanos.
Vejamos qual é a fonte dessa antropologia dualista e dicotômica.

O Evangelho Segundo Platão

Quais são as principais características desse dualismo? Para respondermos a esta pergunta,
vamos lançar um rápido olhar sobre o pensamento de Platão utilizando sua obra fundamental
sobre esse assunto, o Fédon.
Embora Platão, que viveu no século IV, não tenha sido o criador da visão dicotômica do ser
humano, pois, suas raízes se encontram na índia e na Pérsia antigas, foi ele quem estabeleceu
uma formulação teórica consistente para a defesa do dualismo.
Para entendermos seu pensamento é necessário compreendermos a distinção que ele faz entre
idéia e coisa.
“As coisas pertencem ao mundo sensível, caracterizado como mutável, temporal, caduco,
descambando facilmente para o ilusório. Já as idéias pertencem a um outro mundo, o da realidade
divina, eterna e imutável. A verdadeira realidade encontra-se unicamente além das aparências
sensíveis, no mundo das idéias. As coisas do mundo material não passam de cópias muito imperfeitas
deste mundo real. (...)”
Os dois mundos estão presentes no homem: na alma (mundo das idéias) e no corpo (mundo
das coisas). O corpo, como coisa que é, participa imperfeitamente de uma idéia, enquanto que
a alma pertence ao mundo eterno e divino das idéias.6
Para Platão a alma é incorruptível, imortal e preexistente ao corpo. Mas, uma vez encarnada,
ela perde seu contato com o mundo perfeito das idéias. Assim, o corpo é um cárcere para a
alma. O verdadeiro filósofo deseja a morte para se libertar do corpo.

Para Sócrates a morte sempre estava dentro dos planos divinos e, portanto, deveria ser bem
aceita. E, então, ele passa a explicar a razão de sua felicidade diante da morte. Para ele, o
sábio, o verdadeiro filósofo, não busca os prazeres relacionados ao corpo e nem confia nos
sentidos (visão, audição: etc) para chegar à verdade. Para este fim, confia tão somente no

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raciocínio: “Não é, por conseguinte, no ato de raciocinar, e não de outro modo, que a alma
apreende, em parte, a realidade de um ser?
O corpo, e seus sentidos enganosos, servem somente para obstaculizar nosso pensamento.

“E é este então o pensamento que nos guia: durante todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa
alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos
desejos! Ora, este objeto é, como dizíamos, a verdade. (...) O corpo de tal modo nos inunda de
amores, paixões, temores, imaginações de toda sorte, enfim, uma infinidade de bagatelas, que por
seu intermédio (sim, verdadeiramente é o que se diz) não receberemos na verdade nenhum
pensamento sensato.11
E Sócrates continua utilizando sempre palavras negativas para se referir ao corpo que nos
maltrata com suas concupiscências, dele somos escravos, ele é um intrujão que nos
ensurdece e nos desorganiza e conclui dizendo:

“(...) quando, sobretudo, não estivermos mais contaminados por sua natureza, pelo
contrário, nos acharmos puros de seu contato, e assim até o dia que o próprio Deus houver
desfeito esses laços. E quando dessa maneira,atingirmos a pureza, pois que então teremos
sido separados da demência do corpo, deveremos mui verossimilmente ficar unidos a seres
parecidos conosco; e por nós mesmos conheceremos sem mistura alguma tudo o que é. E
nisso, provavelmente, é que há de consistir a verdade. Com efeito, é lícito admitir que não
seja permitido apossar-se do que é puro, quando não se é puro!”

Sócrates afirma que não faria sentido um filósofo, depois de passar toda sua vida acreditando
na imortalidade da alma e ensinando a importância de se desligar ao máximo a alma do
corpo, encher-se de terror diante da morte. Mas Cebes, um dos discípulos de Sócrates,
questiona a idéia da imortalidade da alma, sugerindo que talvez com a morte do corpo, morra
também a alma. Sócrates insiste que “dos mortos nascem os vivos”. Dois são os destinos das
almas: no caso das almas que amaram seus corpos e com eles se mesclaram é no Hades que
elas se encontram e é de lá que elas retornam e renascem dos mortos13.
No caso das almas daqueles que amaram a sabedoria e lutaram contra os feitiços do corpo,
Sócrates também insiste em sua pré-existência e na sua existência posterior à morte após a
qual “ela se dirige, para o que é invisível, para o que é divino, imortal e sábio”.Enfim, após
a morte ela se junta à companhia dos deuses. Às almas dos maus está destinado vaguearem
até encontrarem um “companheiro desejado” e tornam a entrar num corpo. Este corpo pode
ser de um asno ou outro animal qualquer.

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Este é o raciocínio que leva Sócrates a abraçar a morte como a uma amiga e encará-la, não
como algo ruim, mas como libertação de uma coisa má, uma porta que se abre para a
verdadeira vida, eis o ideal de todo ser humano sábio. Ou seja, na imortalidade da alma o
filósofo pode depositar sua esperança. Por isso, ele já não teme a morte, ao contrário, anela
por ela, pois a mesma representa o fim do sofrimento. “Nisto reside a boa nova de Platão”.

A controvérsia gnóstica - porta de entrada do dualismo platônico na teologia cristã

Provavelmente todos os livros de História do Cristianismo reservam parte de suas páginas


para abordarem o desafio que representou, sobretudo para os cristãos do segundo século, a
controvérsia gnóstica.O que é o Gnosticismo? Qual sua filosofia de vida?Quais as
conseqüências na teologia cristã?

Gnosis- a pressuposição é de que a salvação é pelo conhecimento,e o pressuposto filosófico


básico é que a matéria é má e o espírito bom.Não só o corpo é ruim,mas toda matéria é má, e
a intenção de Deus é destruir a matéria,por que o que é bom é o espírito.O gnosticismo é um
protesto veemente contra a idéia de que a vida é boa. Decorre daí que para os gnósticos o
mundo criado era mal. Seguindo o pensamento helénico, os gnósticos desprezavam o corpo,
encarando-o como uma prisão do espírito. Uma armadilha dos poderes demônicos, do
demiurgo que criara o mundo. O objetivo da gnosis (conhecimento) seria alcançar um estado
de participação no divino que libertaria a alma do iniciado das limitações da carne. O alvo
final seria a união da alma com a pleroma, o mundo espiritual. Esse movimento, que se
intitula gnosis (ciência), acreditava ter reconhecido a inutilidade e a inferioridade de tudo o
que existe. Pregava a abstinência do casamento, da carne e do vinho. “O corpo é para os
gnósticoso “cadáver com sentidos, o túmulo que carregamos conosco”. O mundo não vem
das mãos de um Deus bom, mas de demônios. Só a alma humana,ou seja, seu verdadeiro eu,
seu verdadeiro ego, surge como uma centelha de luz de outro mundo, um mundo de luz. É
capturada pelos poderes demoníacos e banida para este mundo de trevas. A alma do homem
assim se encontra numa terra estranha, num ambiente hostil, acorrentada à prisão escura do
corpo. Seduzida pelo clamor e pelas alegrias do mundo, corre o risco de não encontrar seu
caminho de volta ao deus da luz de onde se originou.Pois os demônios tentam intoxicá-la,
porque, sem as centelhas de luz, o mundo, essa criação dos demônios, torna a cair no caos,
nas trevas. É verdade que os gregos tinham familiaridade com a depreciação da matéria-

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Falar do corpo como prisão da alma é remontar a Platão (Górgias 493 A) , mas o cosmo (=
beleza e ordem, cf. “cosméticos”) era uma estrutura unificada,graduada de baixo para cima
sem rompimento entre matéria e espirito.Ademonização de toda a corporeidade e de toda
materia era desconhecida antes da invasão do gnosticismo.Esta invasão do
pessimismo(gnosticismo),surgiu no Oriente,provavelmente na Pérsia,um pouco antes do
nascimento de jesus,abriu caminho para o Ocidente, e veio a se revelar no competidor mais
perigoso do cristianismo.
Esse dualismo configura a filosofia gnóstica: salvação pelo autoconhecimento, pela
autoelevação, e destruição da matéria - no nosso caso, a carne. E ali, essa destruição da carne
tinha duas variáveis extremadas: uma era o ascetismo; a outra, a licenciosidade.
O ascetismo é: “eu vou destruir a minha carne não dando a ela nenhum prazer, nenhum
alimento”,quanto a isto,vemos uma resposta do apostolo Paulo na carta aos colossenses: “por
que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças: não manuseies isto, não proves
aquilo, não toques aquilo outro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas
estas coisas, com o uso, se destroem. Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria,
como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor
algum contra a sensualidade” (Cl. 2:21-23)”. Freud explica: isso apenas faz com que todas
pulsões da natureza fiquem reprimidas, e um dia elas Crescem tanto no magma do
inconsciente que explodem como compulsões incontroláveis. Por isso, Paulo disse que tem
cara e fachada de sabedoria, mas com o passar do tempo vai provar que não tem poder contra
a sensualidade. Mais cedo ou mais tarde vai explodir.
O outro polo dessa consciência gnóstica, é o oposto: a “licenciosidade”. Porque se a matéria
é ruim, a carne é má e é pecaminosa, ou o indivíduo a mata pelo ascetismo, não dando a ela
nenhuma forma de prazer, alegria ou compensação, ou ele a mata pelo uso, pelo desgaste.
Obviamente essa segunda fórmula era muito mais popular! Entre negar e dizer “Deixa eu usar
até gastar”, é claro que o indivíduo diz: “Vamos usar até gastar”! Além disso, o gnosticismo
estabelecia uma dualidade, uma dicotomia onde a matéria e o espírito não se falavam. Eles
eram completamente antagônicos entre si, não se tocavam, não se permeavam, uma coisa não
tinha nada a ver com a outra. De modo que o indivíduo elevava o espírito pelo conhecimento,
e a carne ele matava ou pelo ascetismo ou pelo uso licencioso. E uma coisa não interferia na
outra: podia-se participar de todos os bacanais, mergulhar em toda promiscuidade, que o
entendimento era de que isso não tocaria o espírito, pois ficaria contido nas dimensões
malignas da matéria. Era uma maravilha! Então, o cidadão ia lá e entrava naqueles “cultos de
mistério”. Em alguns deles foi havendo o sincretismo cristão, grupos cristãos sendo

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permeados pelo misticismo gnóstico, que, por sua vez, já tinha incorporado muitas coisas do
misticismo egípcio também.
E a pressuposição era essa: “Estamos nos elevando no espírito”. Daí o esoterismo, que é
aquilo que é pertinente ao que é de dentro, fazer grupos muito pequenos, natas, confrarias
especiais —, ao mesmo tempo em que compartilhavam suas esposas. O suingue era uma
coisa absolutamente natural. E se espalhava ou a promiscuidade ou o legalismo. É
interessante que as duas coisas sejam a mesma. E ficamos pensando que o legalismo asceta é
o oposto da licenciosidade, mas não é; é irmão gêmeo.A fonte é a mesma, o mal é o mesmo,
não há nenhuma predileção por qualquer dos polos. A nossa tendência é achar que o polo
legalista é melhor. Mas só é melhor porque nós somos gnósticos nessa perspectiva: “O corpo
é ruim, a matéria é ruim”. É ou não é? As expressões externas é que diferem,mas o
espírito,infelizmente,é o mesmo.

O Gnosticismo no Novo Testamento-Paulo e João lutam contra esta filosofia

Muitos gnósticos, por sua vez, se consideravam cristãos, cristãos de nível mais elevado que
dos simples crentes. Eles integraram Jesus em seu sistema como um redentor da matéria, que
se ocultava num corpo espectral (os corpos são materiais e, portanto, maléficos) e que
pregava à alma dos homens, ensinando-lhes de que maneira poderiam escapar da prisão do
corpo para entrar depois da morte no puro reino da luz.
Os gnósticos rejeitaram a ressurreição do corpo. Porque, pensando do jeito que pensavam,
não podiam acreditar que Deus estava em Cristo, e que em Jesus habitava corporalmente toda
a plenitude da divindade, como Paulo diz aos colossenses. Porque se a matéria é má, se o
corpo é mau, como Deus santo e eterno iria se encarnar nesse Container maligno? Aí eles
inventaram o Jesus da história e o Cristo ultra-histórico, supra-histórico, que era uma
emanação angelical. No batismo, esse Cristo teria penetrado o Jesus de Nazaré e antes da
cruz o teria deixado, de modo que quem morreu na cruz foi o homem Jesus. E a encarnação já
não é a essência de nada e a cruz já não significa mais nada. Porque se Deus não estava em
Cristo reconciliando consigo o mundo, cada um que dê um jeito de se salvar dos seus
próprios pecados. E o jeito deles foi o conhecimento.
Quando estamos falando de encarnação, falamos de algo absolutamente crucial! Deus estava
em Cristo reconciliando consigo o mundo. Deus estava em Cristo reconciliando consigo o
mundo, não imputando aos homens as suas transgressões. Aquele que não teve pecado, Deus

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o fez pecado por nós. Ele aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu. Foi aperfeiçoado na
obediência como homem. O mistério é este: é homem e é Deus. Inseparáveis, jungidos,
inexplicáveis. Até a tentativa de explicar se torna blasfêmia. A loucura é tão grande que só
temos de abraçá-la sem explicação. E o justo viverá por essa fé. E a glória de Deus está em
que nós não podemos explicar. Nós temos apenas que não negar!
No novo testamento temos algumas passagens em que vemos os apostolos travarem uma luta
contra a filosofia gnóstica, e seu desprezo pela existencia, pois muitos gnosticos se
consideravam cristãos, cristãos de nível mais elevado que o dos simples crentes-A primeira
Epístola a Timóteo termina com a sentença: “O Timóteo (...) Evita as conversas frívolas de
coisas vãs e as contradições da falsa ciência (gnosis). Em 1° joão 4- “Amados, não creiais a
todo o espírito, mas provai se os espíritos são de Deus, porque já muitos falsos profetas se têm
levantado no mundo.Nisto conhecereis o Espírito de Deus: Todo o espírito que confessa que Jesus
Cristo veio em carne é de Deus;E todo o espírito que não confessa que Jesus Cristo veio em carne
não é de Deus; mas este é o espírito do anticristo, do qual já ouvistes que há de vir, e eis que já agora
está no mundo”- Porque, pensando do jeito que pensavam, não podiam acreditar que Deus
estava em Cristo, e que em Jesus habitava corporalmente toda a plenitude da divindade, Aí
eles inventaram o Jesus da história e o Cristo ultra-histórico, supra-histórico, que era uma
emanação angelical. No batismo, esse Cristo teria penetrado o Jesus de Nazaré e antes da
cruz o teria deixado, de modo que quem morreu na cruz foi o homem Jesus.
Temos também em apocalipse 2:20-24-“Mas algumas poucas coisas tenho contra ti que deixas
Jezabel, mulher que se diz profetisa, ensinar e enganar os meus servos, para que forniquem e comam
dos sacrifícios da idolatria. E dei-lhe tempo para que se arrependesse da sua fornicação; e não se
arrependeu.Eis que a porei numa cama, e sobre os que adulteram com ela virá grande tribulação, se
não se arrependerem das suas obras.E ferirei de morte a seus filhos, e todas as igrejas saberão que
eu sou aquele que sonda os rins e os corações. E darei a cada um de vós segundo as vossas
obras.Mas eu vos digo a vós, e aos restantes que estão em Tiatira, a todos quantos não têm esta
doutrina, e não conheceram, como dizem, as profundezas de Satanás, que outra carga vos não
porei.”
Esta “jezabel”, citada em apocalipse,conhecia profundidades de Deus,onde vemos a historia
do conhecimento da gnosis-conhecimentos profundos que os outros não tinham,percepções
espirituais que os demais não tinham,o que caracterizava os gnósticos cristãos,que se
consideravam de nível mais elevado que os demais crentes. E a aplicação do ensino era a
sedução que induzia os indivíduos a pensarem que realmente não havia limites. O individuo
poderia ir a qualquer direção que fosse,que estava bem,uma vez que tivesse aquele
conhecimento superior ou aquela profundidade abismal de um saber que os demais não era

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dado. O próprio Jesus deixa claro que “acerca dessas coisas profundas”,são profundas,mas
são de Satanás.

OS PAIS DA IGREJA E SUA LUTA CONRA A HERESIA GNÓSTICA

Diante do desafio da heresia gnóstica, pensadores cristãos da época redigiram obras em que
procuravam combater essas idéias e definir mais claramente o pensamento cristão ortodoxo.
Dentre os principais representantes deste grupo podemos destacar Justino Mártir, no Diálogo
com Trifão, Ireneu, em seu Contra as Heresias, Tertuliano, na obra Contra Marcião e
Clemente de Alexandria, em diversos trechos dos Estrômatos.
Entre os primeiros Pais da Igreja houve quem resistisse ao dualismo e insistisse numa visão
bíblica da unidade básica do ser humano. Este foi o caso, por exemplo, de Justino Mártir que
afirmou que a carne foi criada por Deus e que a alma também, portanto, ela não é imortal.
Deixemos que ele mesmo fale: “[...] tampouco se pode dizer que ela [a alma] seja imortal.
[...] Se a alma participa da vida é porque Deus quer que ela viva. Portanto, da mesma forma,
um dia ela deixará de participar, quando Deus quiser que ela não viva. De fato, o viver não é
próprio dela como o é de Deus”.

Apesar do cinturão de segurança que se formou em torno da fé católica para preservá-la de


elementos heréticos, a teologia cristã foi profundamente influenciada por essas idéias, com
destaque para o dualismo matéria-espírito. O gnosticismo e o marcionismo como movimentos
desapareceram, mas sua percepção de uma salvação do corpo (libertação da alma da prisão
corpórea) e de uma santificação ascética permaneceu para sempre na teologia cristã.

Podemos separar os pensadores cristãos da época em dois grupos: (a) aqueles que eram
radicalmente contra qualquer tipo de relacionamento com a cultura da época, defendendo,
assim, um afastamento radical da sociedade romana; e (b) aqueles que, ao contrário, queriam
manter um diálogo com o pensamento filosófico da época e motivavam a inserção na
sociedade. Curiosamente, tanto aqueles que rejeitaram, quanto aqueles que buscaram diálogo
acabaram uns mais, outros menos, sendo influenciados pelo dualismo platônico.

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Tertuliano de Cartago - Evolução da antropologia dualista na patrística

O primeiro exemplo que daremos da influência do dualismo gnóstico e marcionita sobre a


teologia cristã encontra-se no pensamento de Tertuliano de Cartago. Tertuliano, um dos
autores cristãos que mais se empenhou no combate às heresias, chegou a defender “não só a
unidade do homem, mas também a unidade da alma e de toda a humanidade”.
Surpreendentemente, por volta do ano 207 d.C., uniu-se a um grupo que foi considerado na
época como herege, o grupo dos montanistas.
Montano, seu fundador, convertido ao Cristianismo por volta de 155 d.C., proclamava o
início de uma nova era, a era do Espírito. Insistia numa comunidade de pessoas puras. Em
suas pregações havia uma forte ênfase numa vida moral mais rigorosa. Assim, ele e seus
seguidores, praticavam longos jejuns, alimentavam-se de maneira frugal, desencorajavam o
casamento. Alguns dos seus discípulos chegaram mesmo a abandonar seus cônjuges.
Rompiam laços com a sociedade, alienavam-se do mundo28.
A partir do segundo século podemos perceber os cristãos passando da liberdade no Espírito
cada vez mais para um Cristianismo moralista e, subseqüentemente, ascético. O Montanismo
é um reflexo dessa tendência. Paradoxalmente, como é característico destes movimentos, em
que pese sua ênfase na ação do Espírito Santo, era radicalmente moralista e legalista.

Tertuliano contribuiu muito para o fortalecimento desta nova mentalidade legalista. Ele,
assim como outros cristãos do segundo e terceiro séculos, entendia que o verdadeiro servo de
Cristo deveria se apartar do mundo. Isto incluía o exército, o governo, instituições
educacionais, festas públicas; etc, uma vez que, em última instância, tudo o que dizia respeito
ao Império estava a serviço dos deuses pagãos. Sua visão do pecado era rigorista. Para ele:

Os cristãos batizados eram pessoas cujos pecados cometidos haviam sido perdoados pelo
arrependimento e pela lavagem com água e pelo Espírito Santo; mas tendo sido, portanto libertos
para cumprirem a vontade de Deus, o restante de suas vidas depois do batismo era o esforço de
‘competidores para a salvação, buscando o favor de Deus’. (...) Tertuliano não dava nenhuma
esperança para os fiéis que haviam caído em pecado grave após o batismo. (...) Não havia espaço
na igreja ou na vida cristã para um fracasso sério e deliberado em viver pelos preceitos do
evangelho - da mesma maneira que não havia espaço para qualquer tentativa, sob perseguição,
para escapar do privilégio do martírio, o único verdadeiro “segundo arrependimento”.

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Além do moralismo e ascetismo cada vez mais crescente, desde Inácio de Antioquia, deu-se
início ao costume de se exaltar o martírio como o coroamento da vida cristã. A entrega do
corpo e da própria vida por amor de Cristo seria a prova cabal de que ali estava um
verdadeiro cristão. Acerca do valor da penitência para o perdão dos pecados, Tertuliano
afirma:- “Prosterna o homem, de modo especial, ela o eleva; quando ele se acusa, ela o escusa,
quando se condena, ela o absolve; na medida em que não te poupares, nesta mesma medida, crê em
mim, Deus te poupará”.

Nosso pensador africano, o primeiro a escrever uma teologia cristã em latim e considerado
um dos autores mais produtivos da era pré- constantiniana, contribuiu imensamente para o
desenvolvimento de um Cristianismo ascético. Ele fazia diferença entre os pecados
remissíveis e os irremissíveis. Dentre esses últimos ele apontava “as faltas mais graves e
funestas, que não têm perdão; o homicídio, a fraude, a apostasia, a blasfêmia, certamente o
adultério e a fornicação”. Em seu período montanista, o escritor cartaginês defendeu a idéia
de uma Igreja espiritual “vendo nela não a assembléia dos cristãos reais, existentes, mas a
assembléia dos espirituais, isto é, dos perfeitos”.

Berthold Altaner e Alfred Stuiber nos dão, de forma pontual, várias informações sobre a
visão de Tertuliano acerca do matrimônio e da sexualidade. Citam os autores o combate às
diversas formas de vaidade feminina que ele faz em De cultu feminarum; o pedido que ele fez
à sua esposa para permanecer como viúva após sua morte, ou não desposar senão um cristão
(Ad uxorem); a exortação que ele faz a um amigo viúvo a não contrair segundas núpcias, as
quais qualifica francamente de uma “espécie de devassidão” (De exhortatione castitatis); o
feroz ataque às segundas núpcias na obra De monogamia; a imposição do uso do véu a todas
as virgens, não somente na igreja, mas sempre que aparecerem em público (De virginibus
velandis).
Enrique Dussel descreve a importância que teve para a teologia posterior o pensamento de
Tertuliano e como, apesar de sua oposição ao diálogo entre a teologia cristã e a filosofia
helénica, foi ele influenciado pela antropologia dualística platônica:
Tertuliano mostra muitas sutilezas que são próprias de um pensamento original, porém, sem
saber, caiu na própria armadilha que pretendia criticar: o platonismo, o neoplatonismo, o
helenismo com seu dualismo, intrínseco a um sentido do ser oposto ao hebreu- cristão. Não
serão nem Descartes nem Agostinho que irão inaugurar o dualismo antropológico no
Ocidente. Temos que buscar este dualismo no primeiro escritor latino-cristão de importância.

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Clemente e Orígenes de Alexandria - a teologia estabelece contato

Outro pensador, contemporâneo de Tertuliano, que merece nossa atenção foi Clemente de
Alexandria. Diferentemente de Tertuliano que abominava a tentativa de se estabelecer um
diálogo entre a Teologia e a Filosofia, Clemente se esforçou por criar essas pontes sem deixar
de ser um crítico das idéias gnósticas. Mas, novamente, sua crítica não foi rigorosa o
suficiente para impedir as influências dualistas no pensamento cristão. Clemente gostava,
inclusive, de se referir ao cristão como “o verdadeiro gnóstico”. Walker nos informa:

O que é interessante e característico acerca de seu nome é que por um lado ele se considerava
como um defensor e intérprete do Cristianismo costumeiro, consciente do dever de “não
transgredir de maneira alguma a regra da Igreja”, ao passo que por outro lado ele representava
aquela atitude simpática para com a cultura e a erudição “secular” de que a maioria dos cristãos
comuns desconfiava totalmente.

Também Cláudio Moreschini e Enrico Norelli nos dão uma idéia do interesse de Clemente
pela cultura na qual viva:
Clemente não adota a violenta recusa dos espetáculos, da moda e dos ornamentos testemunhada,
naquelas mesmas décadas por Tertuliano. Para ele, a fé cristã não se opõe à vida social, mas existe
nela, e por outro lado, como vimos, a moral racional que deve reger uma sociedade se identifica
com a moral cristã.
Nos seus escritos, é fato, existem tendências ascéticas ou com uma clara influência
platônica39. Ele não associa a identidade cristã com a recusa das coisas do mundo. Ao
contrário, ele se esforçou por conciliar os conteúdos da fé cristã com a filosofia que
predominava em seus dias. Ao fazer isto, deu uma demonstração de abertura para a cultura e
sociedade de sua época. Correu, assim, o risco de contaminar a proposta cristã com elementos
estranhos ao seu conteúdo original, o que de fato ocorreu.
O que vemos em Clemente é a difícil tarefa de colocar a fé em Cristo em relação com a
cultura que a cerca. Ou seja, a fé cristã deve se relacionar com a cultura, mas, assim, corre o
risco de ser por esta, descaracterizada. Parece-nos, contudo, que a alternativa a este risco,
seria o isolamento fundamentalista.
A tese fundamental deste trabalho é que a visão dualista platônica e neoplatônica introduziu
no pensamento teológico cristão uma tendência, que se tornou mais forte com o passar dos
séculos, de se renegar aspectos da cultura, freqüentemente chamados de “as coisas do

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mundo”, criando, por sua vez, um Cristianismo espiritualizado, com dificuldades de lidar
com o corpo, com os prazeres, com a sexualidade, com o riso. Eis o nosso paradoxo: o
necessário diálogo com a cultura helénica introduziu na teologia cristã o dualismo platônico
que, por sua vez, tornou o Cristianismo resistente às manifestações culturais sempre que estas
não se originaram nele ou possuíam elementos não compatíveis com a visão tradicional da
Igreja em dada época e local. Portanto, ao defendermos a necessidade de inculturação da fé
cristã, não podemos perder de vista a identidade própria desta mesma fé, com suas
características contra-culturais, proféticas, até mesmo, subversivas.

A Igreja precisou de coragem para utilizar o instrumental lógico grego em seu esforço de
“encarnação” na cultura helénica. Ao mesmo tempo precisou de discernimento para, neste
processo encarnatório, não abrir mão dos princípios fundantes e inalienáveis da fé cristã.
Como diz Alfonso Garcia Rubio, o risco, neste caso, "consiste no perigo de ser domesticada a
Igreja pela visão de mundo e de homem que subjaz a determinado instrumental, à medida que
tal visão do mundo e de homem é inassimilável pela fé cristã”.
O mérito de Clemente está em ele se esforçar por estabelecer canais de diálogo com a cultura
de sua época.
Pode-se dizer que em Clemente não temos ainda uma plena absorção da filosofia helenista
pela teologia cristã. O que temos é a utilização do instrumental grego para a elaboração da
teologia. O momento crítico, que estabelece um limite na passagem entre estes dois mundos,
é enfrentado pelo discípulo de Clemente, Orígenes de Alexandria. Orígenes representa uma
radicalização da interpretação dualística do ser humano. Nele a alma é preexistente, o corpo
para ela é um castigo e a salvação se constitui na libertação da alma do corpo, o que se dará
na morte deste último. Ou seja, a influência helénica sobre a teologia cristã concretiza-se
plenamente em Orígenes.

O monasticismo cristão e o celibato na igreja- consolidação da antropologia dualista

Na seqüência dos fatos históricos, o crescente moralismo e ascetismo do segundo século e


primeira metade do século terceiro, desembocam no surgimento do movimento monástico
cristão. Ainda no segundo século, um dos debates que teve lugar na maioria das comunidades
cristãs foi acerca do lugar do casamento na vida cristã. Discorrendo sobre este assunto,
Walker nos ajuda a entender a importância que este tema assumiu naqueles dias:

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“Havia muito no Novo Testamento, para não mencionar o ânimo da época,.para sugerir, por um
lado, que as relações sexuais no casamento eram uma maneira segura para prender alguém ao
mundo e seus valores, e, por outro lado, que elas não tinham lugar na vida do novo reino. Paulo
havia insistido em que “aqueles que casarem terão preocupações mundanas”, e Jesus havia
sublinhado que “na ressurreição nem casam nem se dão em casamento; são, porém, como os anjos
do céu”. Dizeres como estes são bastante responsáveis pela estima universal recebida pela
virgindade ou continência (novamente, enkrateia) no Cristianismo primitivo. Praticá-la era tanto
separar- se do mundo como viver a vida da era vindoura, e por volta do terceiro século muitas
(talvez a maioria) comunidades cristãs tinham, e reverenciavam, seus virgens, homens e mulheres.
Em alguns lugares, a admiração pela vida de continência estava aliada com a condenação direta
do matrimônio. (...) Tal radicalismo inflexível, contudo, pareceu excessivo para muitos fiéis, os
quais, como o autor de I Timóteo, defenderam o casamento. Como Clemente de Alexandria mais
tarde, eles não viam nenhuma inconsistência em afirmar que o matrimônio deveria ser
reverenciado e que a virgindade representava uma vocação autêntica (e superior) para os cristãos.

É necessário lembrar que Clemente de Alexandria e outros seus contemporâneos, defenderam


que a vida celibatária era superior à condição matrimonia. Este verdadeiro culto à virgindade
estava muito próximo dos ideais de martírio da época como vemos expressos no pensamento
de Tertuliano e Orígenes.
Assim, a virgindade assumiu uma importância extrema a partir do segundo século. Como
vimos no comentário de Walker, Paulo escrevendo aos Coríntios (I Coríntios 7:25-34) tratou
do valor da virgindade. Seu argumento era simples, aqueles que não se casavam poderiam se
dedicar integralmente à obra do Senhor. Também o livro de Atos fala das quatro filhas do
diácono Felipe que permaneceram virgens (Atos 21:9). Partindo de tais textos, muitos
entenderam que “a adesão ao Cristianismo parecia implicar aos olhos deles a virgindade.
Pessoas casadas, que não se separassem, podiam ser membros da Igreja apenas de forma
imperfeita”.
Na literatura apócrifa da época, é comum encontrarmos uma condenação do casamento como
é o caso da obra Odes de Salomão onde o casamento é a erva amarga do Paraíso. A mesma
afirmação aparece no Evangelho dos Egípcios. No Atos de João é aconselhado a separação
dos cônjuges. Na literatura patrística O Pastor de Hermas, o anjo aconselha a Hermas a que
viva com a mulher como com uma irmã. Somente a abstenção sexual possibilitava a adesão
plena à vida cristã. Aos casados era aconselhado viverem em castidade. É fato, porém, que
estes posicionamentos extremos encontraram oposição em muitos escritores da época.
Clemente de Alexandria, embora exaltasse o valor do celibato, em seu Estrômatos, apontou

17
também para o valor do casamento. Àqueles que afirmavam que não se casavam para
imitarem Cristo, ele respondeu:

‘Alguns dizem que o casamento é fornicação e foi comunicado pelo diabo, e que eles imitam o
Senhor, pois este não se casou. Ignoram a razão do fato. Em primeiro lugar tinha ele esposa
própria, a Igreja; depois não era homem comum, que tivesse necessidade de uma auxiliar segundo
a carne; não lhe era necessário ter filhos (para continuar-lhe a obra), continuando a ser
eternamente e sendo o Filho único de Deus’.
A virgindade é santa, quando busca sua fonte no amor de Deus. Deixa de ser boa, quando procede
do menosprezo ao casamento. O homem deve amar a esposa com um amor de caridade e não pelo
simples desejo. A vida sexual não implica nenhuma impureza e Clemente condena o uso judeu das
purificações após a união sexual.

Podemos perceber pelo texto acima que a questão da virgindade e da continência


(encratismo) nunca encontrou unanimidade na história do pensamento cristão.
Orígenes, influenciado pela busca platônica pela sabedoria, vivera uma vida ascética,
dedicada aos estudos e à contemplação. Este chegou mesmo a emascular-se em função de
uma interpretação literal de Mateus 19:12, embora, anos depois, arrependido, viesse a
condenar esta prática54. Assim como ele, muitos entendiam que o corpo se opunha à vida
espiritual, sendo necessário subjugá-lo e até mesmo castigá-lo. Baseando-se nas palavras do
apóstolo Paulo de que os que não se casavam podiam servir melhor ao Senhor, e nas palavras
de Jesus de que no Reino dos céus os fiéis não se casam e nem se dão em casamento, o voto
de castidade era visto como sinal de consagração e antecipação dos valores do Reino.
Orígenes faz uma lista de razões em defesa do celibato. Assim descreve o Pe. Geraldo Luiz
Borges Hackmann:

(...) paternidade espiritual dos presbíteros para os cristãos; a disponibilidade apostólica; um


sacrifício como hóstia viva e santa oferecida a Deus na própria carne; a virgindade é uma
preparação para o estado paradisíaco do corpo glorificado, que se deixa assumir totalmente pelo
Espírito; as impurezas das relações conjugais.

Embora Jesus não fosse asceta e tampouco panegirista da castidade, este último ideal
gradualmente se disseminou pelo mundo cristão. Ao ser levado a Roma, o Bispo Inácio da
Antioquia, que foi atirado às feras por volta do ano 110 — um dos privilégios dos romanos
consistia no fato de que os prisioneiros condenados à morte nas províncias eram

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transportados à capital para servirem de diversão em algum dos circos —, escreveu sete
cartas que são consideradas testemunho importante do período imediatamente posterior ao do
Novo Testamento. Na carta ao Bispo Policarpo de Esmima, menciona as pessoas que “vivem
em castidade em honra da carne de nosso Senhor”. Mas não elogia esses indivíduos. Pelo
contrário, adverte-os contra a “arrogância” e prossegue: “Se ele se vangloria, está perdido; e
se se considera mais do que um bispo, é vítima da destruição.” Evidentemente o maior valor
dos castos, pelo menos a seus próprios olhos, era uma questão que mesmo então não podia
ser omitida e causava problemas aos bispos, que naquela época ainda eram casados.

Por volta de 150 Justino Mártir escreve: “Desde o princípio, ou nos casamos, com a única
finalidade de ter filhos, ou renunciamos ao casamento e permanecemos na mais absoluta
continência” (I Apologia 29). Em relação a isso, Justino conta uma história, que recebe sua
total aprovação, sobre um jovem cristão que solicitou permissão ao governador romano para
ser castrado. No século I, o Imperador Domiciano (m. 96) submetera a castração à punição
criminal. E o Imperador Adriano (m. 138) explicitamente estendera essa proibição inclusive
àqueles que voluntariamente concordavam em ser castrados. Foi essa sua maneira de
combater a rigorosa tendência anti-sexual e anticonjugal (predominantemente gnóstica) de
seu tempo. Adriano instituiu a pena de morte para quem fosse castrado sem permissão oficial,
e também para o médico que fizesse a operação. Justino escreve: “Assim, para que possais ter
certeza de que a libertinagem desenfreada não é um elemento de sigilo em nossa religião,
acrescento a seguinte história: certa vez um dos nossos em Alexandria endereçou uma petição
ao governador Félix para conseguir que seu médico lhe removesse os testículos, porque os
médicos de lá declaravam que só poderiam castrá-lo com permissão do governador. E quando
Félix se recusou a ceder ao pedido sob qualquer condição, o jovem permaneceu solteiro e
absteve-se com a convicção de que partilhava com os que o amparavam” (iibid.).
O jovem que Justino descreve queria utilizar sua castração para enviar uma mensagem: a dos
elevados padrões morais e ascéticos dos cristãos, e para combater as calúnias de inferioridade
moral lançadas sobre o cristianismo. Em suas “apologias” (defesas do cristianismo), Justino
empenha-se em caracterizar os cristãos — ainda uma minoria difamada naquele tempo —
como pessoas politicamente confiáveis e moralmente elevadas. O fato de preferir mencionar
o caso do jovem nesse contexto demonstra que a castidade era capaz de impressionar seus
contemporâneos. Pressupõe-se que a história do jovem em sua tentativa de tomar-se eunuco
recomenda o cristianismo à platéia. Justino tenta fazer com que ela não desaprove mas sim
aplauda.

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Os cristãos ainda não se viam como os mestres do mundo, que estaria vivendo nas trevas sem
eles. Ainda não eram considerados como as pessoas que dariam aos pagãos e aos ateus os
modelos do bom comportamento. Muito pelo contrário: os pagãos os rotulavam de “ateus” e
os cristãos queriam provar que podiam atingir os elevados ideais dos pagãos. Era isso o que
Justino tinha em mente. A opinião pública naquele tempo era dominada pela idéia —
ressaltada pelos estóicos dos séculos I e II — de que o casamento tinha de servir
exclusivamente para a procriação, e também pela idealização da castidade, pessimista,
gnóstica, em que o corpo era odiado. O cristianismo não inventou a reverência pela castidade,
a qual de forma alguma proveio de Jesus. Pelo contrário, os cristãos se adaptaram a seu meio
e então levaram o ideal da castidade até pleno século XX.

Por volta de 200, Alexandria era o centro do aprendizado cristão e gnóstico. Clemente atacou
os basilidianos. Basílides foi um gnóstico que ensinou em Alexandria por volta de 120 a 140.
Segundo Clemente, a distorção das palavras de Jesus sobre o novo casamento (Mt. 19), hoje
lugar-comum, em que se parte para a defesa do celibato, tem origem nos arqui-hereges, os
gnósticos. Escreve Clemente: “Os basilidianos afirmam que o Senhor, em resposta à pergunta
dos apóstolos se não seria melhor renunciar ao casamento, respondeu: ‘Nem todos os homens
podem entender isso’... e interpretam essa passagem mais ou menos da seguinte forma... ‘Os
que se tomaram impotentes para o casamento tomaram essa decisão em virtude das
conseqüências decorrentes do casamento para eles, porque temem as dificuldades em adquirir
os meios de subsistência’” (ibid. III, 1, 1). Mais adiante Clemente interpreta a passagem
corretamente: “Quando à afirmação de Jesus de que ‘nem todos são capazes de entender
isso’... eles (os basilidianos) não sabem que depois de (Jesus) falar sobre o divórcio, alguns
perguntaram: ‘Se tal é a condição do homem a respeito da mulher, é melhor não se casar’, e
por isso o Senhor disse: ‘Nem todos podem entender isso (sobre o divórcio), mas somente
aqueles a quem foi dado.’ Pois os fariseus queriam saber exatamente se ele permitiria a
alguém se casar com outra mulher quando a própria esposa fora condenada e repudiada por
imoralidade” (ibid. III, 50,1-3). Clemente aqui defende as palavras originais de Jesus contra
a apropriação pelos gnósticos, anticonjugais, pelo que de fato é: uma falsa e tendenciosa
interpretação realizada pelos gnósticos. O celibato se baseia num mal-entendido. Assim,
enquanto Clemente defende o casamento contra os gnósticos, como algo de bom, dádiva de
Deus, por outro lado se vê absolutamente aprisionado ao ideal estóico da apatia (anulação
das emoções) e da idéia estóica de que o casamento está exclusivamente a serviço da
procriação.

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Como vimos, a reverencia pela castidade nao começou com o cristianismo, nem o ideal da
virgindade. O taumaturgo Apolônio de Tiana (século I d.C.), informa seu biógrafo Filóstrato,
fez um voto de castidade que manteve pela vida inteira. E o naturalista Plínio o Velho, que
morreu na erupção do Vesúvio em 79 d.C., elogia o elefante como exemplar, porque só se
acasala de dois em dois anos (História natural, 8, 5). Plínio se refere aqui ao conselho ideal
de pureza que prevalecia em sua época. O elefante casto de Plínio estava destinado a ter um
grande futuro e uma longa carreira entre os teólogos cristãos e na literatura devocionista
cristã. Asiim o encontramos em Ricardo de São Vítor (m. ca. 1173), Alain de Lille- (m.
1202) e numa suma anônima do século XIII (Codex Inllnus Monacensis 22233), e também no
dominicano Guilherme Peraldo (m. antes 1270). No caso de Francisco de Sales, bispo de
Genebra (m. 1622), o elefante aparece na introdução à Vida devota do ano de 1609 (cf.
Michael Müller, Die Lehre des hl. Augustinus ln Paradiesesehe, pp. 74 e 207; John T.
Noonan, Contraception,1986,p.248). E como sempre, ele é o modelo para os casados.
Francisco de Sales escreve: “Não passa de um animal desajeitado, mas é o mais digno sobre a
face da terra e um dos mais inteligentes... Nunca muda de parceira e ama com ternura a que
escolheu, com quem, entretanto, só se acasala de três em três anos, e isso só por cinco dias e
de uma forma tão oculta que jamais é visto no ato. Mas reaparece no sexto dia, no qual
imediatamente vai direto para o rio, onde lava o corpo inteiro, não retomando à manada antes
de lavar-se. Não temos aí uma natureza boa e honesta?” (3, 39). De acordo com a furia cristã
pela continência, Francisco deu ao elefante de Plínio um ano a mais de castidade. Eis o que se
lê no texto de Plínio: “Sem recato os elefantes jamais se acasalam, exceto em segredo... Só o
fazem de dois em dois anos e mesmo assim, dizem, nunca por mais do que cinco dias. No
sexto dia se banham no rio. Até então não retomam à manada. Eles desconhecem o
aduItério’'{História natural 8, 5).

Num livro que ainda é popular entre católicos devotos em países de língua alemã, Histórias
sobre a vida de Jesus por Anna Catharina Emmerich, segundo Klemens von Bretano,
tornamos a encontrar o elefante. De fato hoje se tornou parte integrante da mensagem de
Jesus, aparecendo em numerosas passagens das visões proféticas, por exemplo: “Jesus
também falou da grande depravação da procriação na humanidade, e disse que as pessoas
devem se abster depois da concepção, citando a castidade e a continência do elefante como
prova de quanto os seres humanos ficam atrás dos mais nobres animais nessa questão”
(ditado a 5 de novembro de 1820). O jovem casal nas bodas de Caná fica assim
profundamente impressionado. “Ao fim da refeição, o noivo uma vez mais veio até Jesus e

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falou-lhe humildemente, explicando como se sentia mortificado por todo o desejo carnal, e
que ficaria feliz em viver com a noiva em continência, se ela anuísse. E a noiva também veio
por conta própria até Jesus e disse o mesmo; e Jesus chamou aos dois e falou-lhes sobre o
casamento e a pureza, que é de tanto agrado a Deus” (ditado a 2 de janeiro de 1822).

Na realidade, a colocação deste fundamento bíblico do ascetismo sexual deve-se atribuir ao


Padre da Igreja Jerônimo (m. 419/20). Em sua tradução da Bíblia para o latim (a Vulgata),
que até hoje é considerada autoridade em matéria de doutrina pela Igreja Católica, ele alterou
o texto, desviando-o para o ideal da castidade. Segundo o Kirchen- lexikon (WetzerAVelte)
católico (1899), Tobias sobreviveu a sua noite de núpcias “por causa da continência dos
recém-casados”. Pois sua mulher Sara já tivera sete maridos que morreram sobre ela, todos
durante a noite de núpcias; e também já se tinha cavado uma sepultura para Tobias. Mas ele
não morreu. Embora se diga na versão original que na primeira noite o casal dormiu junto,
Jeronimo faz Tobias esperar três noites antes de consumar sua união com Sara. E quando
Tobias dela se aproxima, depois de três noites de oração, pronuncia palavras que não
procedem do judaísmo, mas de lerônimo: “Ora, vós sabeis, ó Senhor, que não é para
satisfazer minha paixão que recebo minha prima como esposa, mas unicamente com o desejo
de suscitar uma posteridade” (Tb 8, 9). Essa a firmação forjada foi citada por todos os
teólogos rigoristas até hoje como um argumento para a finalidade exclusivamente procriadora
do casamento. Tobias originalmente disse, citando do Gn. 2, 18: " Não é bom que o homem
esteja só”; mas Jerônimo simplesmente omite essa sentença para não confundir a questão.

As primeiras legislações acerca do celibato são do início do século IV. Um rápido resumo
desses primeiros passos rumo à consolidação da exigência da vida celibatária para os
sacerdotes pode ser assim descrito: O concilio espanhol de Elvira, ocorrido em cerca de 305
d.C., é o primeiro concílio da Igreja a estabelecer regras disciplinares para o celibato. O
cânon 33 diz o seguinte: “Bispos, presbíteros, diáconos e outros com um posição no
ministério devem se abster completamente de relação sexual com suas esposas e da
procriação de filhos. Se alguém desobedecer, deverá ser removido do ofício clerical”.

Em 314 d.C., o primeiro concílio de Aries adota posição parecida em seu cânon 29, proibindo
as relações sexuais por causa do serviço do ministério sacerdotal. “A não observância implica
a perda da ‘honra de clérigo”. No mesmo ano, o concílio de Ancira, propôs uma lei de
celibato sacerdotal. Em seu cânon 10 ele prescreve a proibição do casamento para o diácono

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solteiro. “O concílio de Neo-Cesaréia (entre 314-325), estabelece a mesma proibição para o
presbítero. O cânon 1 prescreve a exclusão da ordem clerical para um presbítero que se casa”.
Outro assunto que assumiu dimensões exageradas foi a questão do martírio. Afirmamos
anteriormente que, desde Inácio de Antioquia, em princípios do segundo século, os mártires
eram vistos como o modelo de vida cristã - haviam lutado contra os poderes deste mundo,
rejeitando seus valores, entregando suas vidas por amor a Cristo. A mentalidade que reinava
na época pode ser assim descrita:
Desde o início, portanto, as igrejas tinham conhecido seus ascetas, os quais, se
individualmente ou em grupos domésticos, buscavam, na imitação de Cristo e seus
mártires, viver a vida cristã em sua plenitude através da sistemática renúncia a todas as
conexões com o mundo. Abandonando a busca e posse de riquezas, comprometidos com a
continência sexual e dedicados à oração, ao jejum e ao estudo das Escrituras, tais pessoas
buscavam viver na presente era como cidadãos da era vindoura.
Para Clemente, o martírio é a coroa da vida cristã. Jean Daniélou e Henri Marrou citam
trechos do Estrômatos nos quais o teólogo de Alexandria expõe seu pensamento a este
respeito:
‘Os apóstolos, imitando o Senhor como verdadeiros gnósticos e homens perfeitos, deram a vida
pelas igrejas que haviam fundado. Assim, os gnósticos que andam nas pegadas dos apóstolos
devem estar sem pecado e, pelo amor que consagram ao Senhor, amar igualmente ao próximo a
fim de na hora da crise enfrentarem as provações sem fraqueza e beberem o cálice da Igreja’. Ora,
aí está a plenitude da caridade, que é a mesma perfeição: ‘Chamamos o martírio de perfeição
(teleiotés), não por ser o final (íe/os) da vida do homem, mas porque manifesta a perfeição da
caridade’.
O movimento monástico cristão serviu como o útero no interior do qual foi gestado o ideal
celibatário que acabou por se transferir para a hierarquia eclesiástica. Surgido em fins do
terceiro século na região do vale do Nilo o monasticismo cristão, do grego monachos
(solitário), constituiu-se numa continuação natural das tendências que tomavam conta das
diversas comunidades cristãs do segundo e terceiro séculos.
Um dos primeiros anacoretas (fugitivo, retirado) cristãos de que se tem notícia foi Antão. Em
fins do terceiro século Antão, vivendo em um vilarejo às margens do rio Nilo no Egito,
retirou-se para o deserto. Em sua biografia Vida de Antão escrita por Atanásio, descobrimos
um eremita vivendo mais de vinte anos na solidão do deserto. Ali, lutava contra os demônios,
habitantes daquelas terras. Estes eram derrotados através de constantes orações, jejuns,
vigílias e leituras das Escrituras. A fama de Antão se espalhou e ele chegou a treinar uma

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comunidade de eremitas. Na época de sua morte, é possível que já houvesse milhares de
eremitas vivendo nos desertos do Egito e da Síria.

No período do Imperador Constantino, com o fim das perseguições marcado pela assinatura
do Edito de Milão em 313 d.C., cessou a era dos mártires. Não havendo mais a possibilidade
de coroar o testemunho cristão com a glória e o sangue do martírio,o ideal monástico passou
a atrair a atenção daqueles que entendiam a vida cristã como esforço e sacrifício. Num certo
sentido, o retiro para o deserto era uma espécie de morte: morriam para esta vida e para este
mundo para se dedicarem às coisas espirituais.
Logo no início, os monges foram motivo de preocupação para os bispos receosos de que eles
dessem início a um movimento independente da hierarquia da igreja que nesses dias já estava
bem avançada. Verdade é que a opção pela vida monástica gerou um tipo de orgulho uma vez
que, muitos monges, por se acharem mais espirituais em função de sua opção de vida,
achavam que deveriam ter a primazia na hora de decidir acerca dos dogmas e da vida da
igreja.
O monasticismo passou por um aperfeiçoamento na primeira metade do século IV com o
surgimento do tipo cenobita (vida comum) ou comunal. Pacômio, também nascido no sul do
Egito em fins do terceiro século, após um período de vida solitária, por volta do ano 320 d.C.
construiu um espaço para que aqueles que quisessem compartilhar dos ideais monásticos
pudessem viver em comunidade. González nos informa o seguinte:
Desde o princípio, quem quisesse se juntar à sua comunidade teria de renunciar a todos os seus
bens, e prometer obediência absoluta a seus superiores. Além disso, todos tinham de participar do
trabalho manual, e ninguém poderia se considerar bom demais para qualquer tipo de trabalho. A
norma fundamental passou a ser o serviço mútuo, de modo que mesmo os superiores, apesar da
obediência que lhes cabia, eram obrigados a servir aos demais.
O mosteiro fundado sobre estas bases cresceu rapidamente, e Pacômio chegou a estabelecer nove
mosteiros durante sua vida, cada um deles com centenas de monges. Além disso, a irmã de
Pacômio, Maria, fundou várias comunidades de monjas.

Desde o início a opção pela pobreza, a castidade e a obediência eram regras que deveriam ser
observadas por todo . Aquele que quisesse seguir a vida monástica. Ainda no quarto século,
Eusébio, bispo de Vercelli, organizou os bispos sob sua jurisdição segundo os padrões do
monasticismo. O que chama a atenção neste caso é que, com muito pouco tempo de
existência, o monaquismo, inicialmente visto com desconfiança pela hierarquia da Igreja,
agora começa a influenciar esta mesma hierarquia com sua proposta de vida cristã.

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Não faltaram no movimento monástico casos de atitudes extremas de autonegação e
excentricidade. Por exemplo, “Simeão o Ancião (Ca. 390-459), o mais famoso exemplo de tal
excentricidade, (foi chamado “Estilita” por que passou trinta anos de sua vida vivendo no
topo de uma coluna, onde orava e pregava aos peregrinos que vinham visitá-lo”.
Na Idade Média, os monges se tornaram os grandes defensores do celibato como regra geral
para todos os sacerdotes. Um dos movimentos mais importantes da época foi aquele
desencadeado pelo mosteiro de Cluny. Fundado na França em 910 pelo Duque Guilherme de
Aquitânia, seu ideal era que esta nova casa monástica se tornasse um centro de piedade e
observância da Regra beneditina.

O que Cluny defendia era a restauração dos ideais de celibato e propriedade comunitária, a
abolição do controle laico sobre o ofício do abade, e a dedicação mais completa do tempo dos
monges à tarefa de oração e adoração em favor do mundo.

Tudo o que foi exposto até aqui nos autoriza a afirmar que a infiltração do dualismo
antropológico nas esferas teológicas cristãs gerou um ambiente de desconfiança para com a
sexualidade, os instintos, o corpo e o prazer. Alfonso Garcia Rubio nos lembra que:

A infiltração dualista no Cristianismo fez com que a balança entre rigorismo e hedonismo se
inclinasse em favor do primeiro. As conseqüências eram previsíveis: em relação ao sexo
predominou durante muitos séculos uma atitude de medo, desconfiança e suspeita. Os
conhecimentos deficientes tanto na área biológica quanto na psicológica contribuíram também
para a permanência destas atitudes. De fato, o sexo tem sido tradicionalmente colocado num
contexto pouco esclarecido, ambíguo e penetrado de malícia. Criou-se em torno dele um ambiente
pouco sadio, de clandestinidade, reticências, angústia e sentimentos de culpa.

Agostinho de Hipona - intérprete e sistematizador

Sem sombra de dúvidas Agostinho de Hipona (354-430) foi o mais importante dos teólogos
latinos. Do período patrístico é o autor mais prolífico e de quem se tem o maior número de
obras preservadas. Sua influência teológica se faz sentir até os nossos dias em praticamente
todos os ramos do Cristianismo.
Semelhantemente aos pensadores do segundo e terceiro séculos, Agostinho também intentou
lutar contra as heresias de seu tempo, mas, sem que ele notasse, sua teologia foi
profundamente influenciada pelo neoplatonismo. Nosso teólogo africano pode ser
considerado como o grande intérprete da teologia que até ali havia sido elaborada,

25
transmitindo-a a Idade Média e desta aos nossos dias. A partir dele, temos definitivamente a
construção sistemática de uma teologia platonizada.
Agostinho, assim como Tertuliano e Ambrósio, define alma como substância, com clara
influência neoplatônica: “(...) E se quer uma definição da alma, e saber o que ela é, respondo
facilmente: É substância dotada de razão, apta a reger um corpo”.
Assim como no pensamento grego, Agostinho identifica a alma (substância) com o ser
humano. O corpo resume-se a um instrumento para realizar tarefas materiais de maneira
passiva. Em função disto, Agostinho afirma que o corpo é regido por outra substância, a
alma. Esta, para nosso teólogo de Hipona, é imortal.
Agostinho flerta perigosamente com o gnosticismo ao tratar do tema da imortalidade da alma.
Para ele é essencial provar sua espiritualidade. Faz isso mais pela intuição, do que pela razão.
Sobre isto, battista Mondin nos dáa seguinte explicação:

A sua argumentação para provar a espiritualidade da alma é a seguinte: ou a alma pode exercer
sua atividade (querer, pensar, duvidar, etc) sem o corpo, e então é espiritual, ou é incapaz de
exercer sua atividade sem o corpo, e então é material.
Ora, pelo menos em um caso a alma pode desenvolver sua atividade sem o corpo: quando conhece
a si mesma. Logo, a alma é espiritual.
A espiritualidade da alma é, pois, confirmada pelo que ela conhece de si mesma. Quando a alma
conhece a si mesma, descobre que é uma substância que vive, que recorda, que quer, etc, e isto não
tem nada que ver com o que é corpóreo. Provada a espiritualidade, Agostinho passa a provar a
imortalidade, retomando o argumento platônico da relação da alma com as Idéias.

Conclui-se daí que para Agostinho o ser humano não é uma unidade. Em sua síntese da fé
cristã com o arcabouço filosófico neoplatônico, o dualismo matéria-espírito instalou-se
definitivamente no pensamento teológico cristão. O corpo ficou relegado a mero instrumento
passivo da alma. Uma Teologia do Corpo gnóstica e dualística foi seu legado negativo para as
gerações futuras.

Tomás de Aquino - tentativa de superação do dualismo

A neo-escolástica esboçou algumas tentativas de superação do dualismo neoplatônico-


agostiniano.- Contudo, somente com Tomás de Aquino (1225-1274) temos a primeira
elaboração consistente visando à superação do dualismo espírito-matéria. Para ele o corpo é a
síntese (sínolo) de alma e corpo. Não são, portanto, substâncias distintas e conflitantes. Ao

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contrário, alma e corpo constituem um todo único. O corpo não é um castigo ou conseqüência
da queda, mas fonte de bem. Ato contínuo, é no corpo que se concretiza a dimensão histórica
e social do ser humano. Em seu corpo ele tanto experimenta sua subjetivação quanto sua
relação com o próximo.” (... ) o corpo é simultaneamente o local da comunidade e da abertura
para o encontro”.

Tomás de Aquino representou este esforço em corrigir e superar o dualismo agostiniano


quando este defende que a união entre corpo e alma é uma união profunda, substancial e
duradoura.Somente a partir desta união substancial podemos falar em um ser humano
homem/mulher. Nem o corpo nem a alma possuem subsistência autônoma, nenhum dos dois
possui autonomia de existência. Em que pese este enorme esforço em superar o dualismo
corpo-alma, Aquino pende em momentos para certa espiritualização uma vez que ele utiliza o
termo anima, onde a Bíblia utilizaria basar ou sôma e “compreende a corporeidade humana a
partir da anima".

O DUALISMO COMO FUNDAMENTO PARA UMA TEOLOGIA DE ESCRAVIDÃO E


TORTURA DOS NEGROS E INDIOS NA COLONIZAÇÃO CATÓLICA NA AMERICA

(...) foi o dualismo da teologia que permitiu que os teólogos pudessem com tanta facilidade justificar a
tortura praticada pela Inquisição, ou a escravatura praticada universalmente, ou a redução dos índios a
uma condição de servos como fizeram ainda no século XVI tantos teólogos. Somente foi possível
porque para eles, o corpo não era realmente o homem. Torturar o corpo, tirar a liberdade do corpo
podia justificar-se porque o corpo ficava de certo modo exterior à pessoa humana, como seu
instrumento.

Faces da legitimação teológica da dominação

A legitimação teológica que justificativa toda sorte de atrocidades contra os povos não-
cristãos conquistados por reinos cristãos já estava abalizada bem antes do período dos
“descobrimentos" pela Bula Romanus Pontifex promulgada pelo Papa Nicolau V em 8 de
janeiro de 1454. Esta legitimação teológica eurocêntrica tem várias faces. Seu ponto de
partida é a demonização da religião do outro que, aliás, não é reconhecido (descoberto) em
sua alteridade, mas, na linguagem de Enrique Dussel, é encoberto e desconsiderado. Assim se
expressa Dussel:

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“O fenômeno religioso oficial fica então definido pela negação radical (a “tabula rasa”) das antigas
religiões que são demoníacas ou satânicas, principalmente em suas estruturas mais conscientes (seus
templos, lugares de culto públicos e privados, calendários, escolas de sábios, teologias explícitas,
interpretação da vida cotidiana, ritos, danças, organização agrícola-sagrada etc.), e pela
implantação violenta do “catolicismo” (nova vivência religiosa que será mais estruturada e mais
antiprotestante à medida que transcorre o século XVI, que é justamente o tempo da implantação da
Igreja católica com suas estruturas institucionais).”

O europeu hispano-lusitano tem sua consciência limpa, pois, sua cruzada é contra as hostes
do inferno. Decorre daí um segundo passo. Definida como religião satânica, o caminho está
aberto para a conquista espiritual. Embora, esta conquista não fosse meramente “espiritual”.
Os missionários estavam conscientes que seu serviço não era apenas ao Sumo Pontífice, mas
também aos reis de Espanha e Portugal os quais haviam sido comissionados pela Santa Sé,
pelo sistema de padroado, a tornar os súditos do novo mundo, verdadeiros cristãos católicos.
O que se pretendia era a fundação de uma “Cristandade colonial”. Confundia-se assim, a
conquista espiritual (religiosa) que ora, ao mesmo tempo, cultural, social, política e
econômica. É bem verdade que, dentro do espírito do Concílio de Trento (1545-1563), os
missionários do século XVI, sobretudo os jesuítas, buscavam prioritariamente a salvação das
almas em sua atuação evangelizadora. Contudo, por inspiração do fundador da Companhia de
Jesus, Inácio de Loyola, com seus ideais militares, os jesuítas entendiam sua tarefa
missionária como conquista de povos e territórios bem ao estilo das Cruzadas dos séculos XII
e XIII. Ora, esta conquista não considerava a possibilidade de diálogo com o conquistado. O
alvo era a doutrinação.
Uma terceira face da teologia eurocêntrica de justificação da dominação católica era o que se
chamou de “guerra justa”. A recusa em aceitar a fé católica transformava os ameríndios em
inimigos da 16 e do Império. Sendo assim, era legítimo o uso da violência contra os gentios
uma vez que esta era ‘santa’ e ‘justa’.- Exemplo clássico deste tipo de argumento para
justificar a violência contra os nativos encontramos em Juan Ginés de Sepúlveda - dentre
vários outros autores. Em seu Democrates Alter (1547), Sepúlveda acha natural que “homens
prudentes, íntegros e humanos dominem sobre os que não o são”. Recorrendo diversas vezes
a textos bíblicos e a clássicos autores cristãos como Agostinho e Tomás de Aquino, sobretudo
ao primeiro, Ginés de Sepúlveda homologa em sua obra a dominação e o uso da força contra
os indígenas. Deixemos que ele mesmo fale:

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[...] com perfeito direito os espanhóis dominam sobre os bárbaros do novo mundo e das ilhas
adjacentes, os quais em prudência, engenho, toda virtude e humanidade são tão superados pelos
espanhóis como meninos pelos adultos, mulheres por homens, pessoas ferozes e cruéis por pessoas
prudentíssimas e pródigas, intemperantes por continentes e moderados, diria enfim, como macacos
por homens.

Visando tornar os povos ameríndios verdadeiros cristãos católicos e fiéis súditos das Coroas
da Espanha e Portugal era necessário que a imensa complexidade deste novo mundo passasse
por um processo de simplificação. Ainda no século XVI esta simplificação será feita
inicialmente pelo ajuntamento de várias tribos em aldeamentos que recebiam o sugestivo
nome de reduções.
Estas reduções facilitavam o processo de conversão dos índios que, geralmente, se
estabeleciam de maneira um tanto dispersa em meio às florestas. Azzi nos lembra que no
Brasil era comum descer tribos inteiras através dos rios para o local das reduções E, por isso,
este traslado recebia o não menos sugestivo nome de descimento. Desta forma podemos dizer
que de certo modo os índios eram “descidos” e “reduzidos”. Isto traduz bem o ideal
missionário de se apagar a concepção de mundo desses povos, vista como primitiva e
selvagem, e embutir neles uma nova concepção de vida (nova cultura) oferecida pela fé
católica.
Quando era necessário, esses “descimentos” eram feitos com ajuda da coerção militar. Mas,
na maioria das vezes os missionários usavam de aliciamento, fazendo promessas de bem-
estar material. Ofereciam machados, roupas, comida em abundância etc. Na maioria das
vezes estas promessas não eram cumpridas.

Um dos lados macabros dessas reduções era a conseqüente redução numérica dos povos
indígenas. Os aldeamentos tornaram-se instrumentos de dizimação dos nativos ora porque
estes eram mortos nos confrontos militares que visavam conduzi-los à força para as reduções,
ora porque, uma vez instalados nas aldeias, morriam de doenças, epidemias, inaptidão ao
novo contexto ecológico e cultural ou pelos trabalhos forçados a que eram obrigados.
A imposição do modo de vida europeu era um grande favor a ser feito aos nativos. E eles
deveriam ficar agradecidos. A este respeito, assim se expressa Ginés de Sepúlveda:

O que podia acontecer a estes bárbaros mais conveniente ou mais saudável do que serem
submetidos ao domínio daqueles cuja prudência, virtude e religião os converterão de bárbaros, tais
que mal mereciam o nome de seres humanos, em homens civilizados o quanto podem ser, de

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facinorosos em probos, de ímpios e servos dos demônios em cristãos e cultores da verdadeira
religião?

Devemos lembrar também da mútua influência religiosa. O Pe. Bartomeu Meliá estudando as
reduções entre os Guaranis no Paraguai destaca que “na história do encontro do jesuíta com o
Guarani surgem formas de vida religiosa e econômica que dificilmente se entendem se
desligadas da etnologia guarani”. Isto significa dizer que os povos nativos também
imprimiram suas marcas no catolicismo latino-americano. Estas marcas surgiram, por
exemplo, do confronto entre os pajés guaranis e os missionários jesuítas. Esta “guerra de
messias” impõe aos missionários, aparecerem eles mesmos como ‘feiticeiros’. O xamanismo
guarani acentua a dimensão mística-profética dos próprios padres.
As reduções são essencialmente projetos colonialistas e, como tais, violentos de algum modo.
Os povos ameríndios e, posteriormente, os negros são obrigados a abandonar seus antigos
deuses e abraçar a fé cristã. Mas não fazem isto sem resistência. Assim, os missionários (e a
própria religião católica, pelo menos o catolicismo que se vai cultivar na América Latina)
acabam sofrendo também uma sutil influência da religiosidade nativa.

TEOLOGIA E ESCRAVIDÃO

Um dos contorcionismos teológicos mais impressionantes da época colonial é aquele que


busca uma elaboração teológica que concilie a pregação do evangelho com a prática
escravocrata dos conquistadores tanto portugueses, quanto espanhóis, mas também franceses,
ingleses e holandeses. Este foi um dilema vivido pelos missionários que passaram da
indignação ante a escravidão injusta dos índios (Nóbrega chegou a negar a Comunhão
àqueles que mantinham cativos os índios e amancebavam-se às mulheres) à acomodação ao
sistema diante da incapacidade de alterar a realidade e, finalmente, à busca de fundamentação
doutrinária que justificasse e legitimasse tal estado de coisas. Diante de tamanha
discrepância, não bastava recorrer ao uso da força militar, mas era necessário:

“Pacificar uma sociedade que só pode ser estruturada através da guerra e da violência política,
‘legitimar’ uma ordem intrinsecamente injusta, pois alicerçada na violação do direito natural, pelo
qual os homens nascem naturalmente livres; erigir uma ordem jurídica, baseada na negação de
todos os direitos humanos e civis das maiorias; harmonizar as relações sociais antagônicas e
conflitivas entre as classes dos senhores e dos escravos; aquietar as consciências e eliminar os

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escrúpulos dos que até então eram considerados homens sem coração, endurecidos no pecado de
escravizar injustamente; convencer os que iam sendo escravizados de que esta era a vontade de
Deus e que, na aceitação paciente de sua sorte, é que alcançariam a salvação e a misericórdia; que
o maior e pior pecado era não mais escravizar e sim revoltar-se contra a escravidão.”

Vemos assim que a teologia não serve mais como instrumento de reflexão sobre a fé visando
ao serviço fraterno e à afirmação da igualdade intrínseca de todas as pessoas, mas torna-se
instrumento de domesticação a serviço do Estado escravocrata e injusto. O papel da religião
seria de “convencimento da vontade e assentimento da razão”.
Uma vez domados pela força das armas índios e negros, caberia à religião apaziguar os
ânimos e convencê-los de que esta ora a vontade de Deus. “O missionário precisa do índio
abatido, sujeitado e atemorizado pelas armas, para pavimentar o caminho da pregação
evangélica”.
O caráter profético do evangelho de denúncia dos sistemas opiossores e injustos é
desvirtuado. Aqui, a Igreja está a serviço do sistema. Tudo o que importa é a lógica
capitalista da acumulação de bens. O papel primordial da Colônia é a transferência de
riquezas p a r a a metrópole. Dentro deste cenário, a religião tem papel fundamental
legitimando a ‘guerra santa’, aplacando as consciências, convertendo os escravos índios e
negros.
Com a entrada de milhões de novos escravos nas Américas a preocupação principal passa a
ser com a segurança da minoria branca dominadora. Um dos mecanismos mais eficazes no
controle desta situação altamente instável era a unificação religiosa. Não haveria espaço para
a tolerância com outros credos. Se aqui nesta terra estava reservado a índios e negros as
agruras da escravidão, uma vez convertidos à fé cristã, eles poderiam esperar um destino
eterno melhor, curiosamente ao lado dos seus senhores. A esperança que perderam quando
reduzidos nos aldeamentos ou quando arrastados para dentro dos navios negreiros seria
reconquistada pela adesão ao catolicismo, ainda que reservada ao futuro. Este seria “o freio e
o cabresto” com que os conquistadores dominariam as massas escravas.
Mas, se agora, com o batismo, são todos cristãos e, portanto, irmãos, como mantê-los na
condição de escravos? Freqüentariam todos a mesma igreja? Dividiriam o mesmo espaço
cúltico? A esta última questão saídas engenhosas foram engendradas. Ora, aos servos
estavam reservados os últimos bancos. Ora, assistiam ao culto do lado de fora da porta de
entrada ou pelas janelas. Ora, era realizado um culto bem de madrugada somente para os
escravos.

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O fato é que com a destruição quase completa de sua cultura, pura os índios e, sobretudo,
para os negros o batismo representava a possibilidade de reconstrução de alguma cultura
(ainda que não a sua), mas de uma nova cultura, com referenciais simbólicos e míticos fruto
do sincretismo entre o catolicismo popular, com o qual se identificavam, e suas primitivas
religiões.
Esta assimilação foi tão bem feita que textos da época apontam para o fato de muitos
escravos viverem “mais cristãmente em sua condição que muitos franceses”. Mas como
manter os escravos, agora batizados, em sua condição de presas sem liberdade e sem direitos?
Para resolver esta questão recorreu-se ao velho dualismo platônico. Assim, por exemplo, após
serem expulsos de São Paulo pelos bandeirantes, anos mais tarde, o retorno dos jesuítas só é
permitido com a condição de “se limitarem ao espiritual, quanto aos índios”. Com clareza,
Beozzo afirma: “limitar-se ao espiritual era deixar correr livre a escravidão dos índios,
aceitando que a religião só tem uma palavra a dizer no assim chamado domínio do espiritual,
sem incidências sobre a vida prática”.

Aí desabava toda credibilidade da pregação missionária, uma vez que, o amor pregado se
limitava às conquistas espirituais da vida futura sem nenhum desdobramento prático para esta
vida no caso dos escravos, índios e negros. À alma estava reservada a salvação, ao corpo
restava a escravidão. Afirma Beozzo que “a dissociação destes dois caminhos é o fundamento
da teologia da escravização”. Este era o papel da teologia da escravidão: por um lado, em
nível antropológico, desmontar toda auto-estima, dignidade humana e sentimento de honra.
Construir o percurso para o mundo das relações sociais, políticas e econômicas. Legitimar a
relação de dominação de uns sobre os outros. Apontar para um futuro de relações fraternas e
bênçãos sem fim. Separar e unir, eis o contorcionismo teológico empreendido pelos religiosos
no período colonial.
Toda esta teologia, assim como hoje a Teologia da Prosperidade, estava a serviço do projeto
capitalista de acumulação de bens.

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A REFORMA PROTESTANTE

O catolicismo no qual Martim Lutero foi criado era uma religião baseada na idéia de
recompensas meritórias que poderiam ser alcançadas pelos fiéis mediante o uso dos
sacramentos, das penitências ou das indulgências. Era uma religião de sofrimentos, de
privações extremas, de moral ascética. O fiel temia o purgatório e ainda mais a punição
eterna. Jamais havia certeza absoluta que os sacrifícios e empenhos humanos foram
suficientes para garantir a salvação da alma, como se cria. Este era o ar que Lutero respirava.
Um universo de profunda ansiedade e muita culpa o cercava. A Reforma se inicia como este
movimento de libertação deste universo religioso. Para Lutero a fé, não em doutrinas ou em
coisas, mas no fato de ser aceito por Deus foi a descoberta fundamental. Assim, o fiel não
necessita mais passar a vida se penitenciando, o cristão não depende mais da indulgência da
Igreja, sacrifícios descomunais não são mais requeridos, desconstrói-se o mundo de culpa e
ansiedade característico do catolicismo romano medieval (e, em grande medida, também do
moderno). A graça divina, recebida por meio da fé, era suficiente para garantir a nossa
aceitação “no momento em que aceitamos a aceitação de Deus”. Lutero não podia conceber a
idéia de que as obras - esforços e empenhos humanos - fossem o meio pelo qual poderíamos
nos tornar justos. Para ele, as obras não eram a causa da nossa justificação, mas apenas o
fruto da justiça. “Nossa fé em Cristo liberta-nos não das obras, mas da falsa opinião sobre
obras - isto é, da presunção absurda que a justificação é adquirida pelas obras”. Ao defender
que a relação com Deus é incondicionada, posto que baseada no amor deste Deus, que é Pai,
Martim Lutero liberta-nos da necessidade de trabalharmos duro pela igreja, mortificarmos
nosso corpo e, assim, relativizarmos nossa salvação. Com isso concorda Max Weber ao
afirmar que “o caminho para a forma de ascetismo transcendental e monástico estava fechado
desde Lutero (...) por ser considerado não-bíblico e inviável para a salvação pelas "obras".As
boas obras serão feitas apenas como uma resposta não obrigatória de um coração cheio de
gratidão. Lutero chegou a entender que o conceito paulino de justificação não tem a ver com
Deus nos transformar em pessoas boas, mas, tem a ver com Deus nos aceitar como nós
somos. A transformação (santificação) virá como conseqüência disto. Sua defesa
intransigente da justificação pela graça mediante a fé não permite a visão de que o ascetismo,
decorrente do dualismo espírito-matéria, seja a causa de nossa salvação.

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Além disso, Martim Lutero demonstra compreensão da discussão paulina sobre a luta entre o
espírito e a carne ao afirmar em uma das suas mais importantes obras, Da Liberdade Cristã,
escrita em 1520:
(...) devemos ter em conta que toda pessoa cristã possui duas naturezas: uma espiritual e outra
corporal. Tendo em vista a alma, ela é designada de ser humano espiritual, novo e interior;
segundo a carne e o sangue, é chamada de ser humano corporal, velho e exterior. (...) Neste ponto
fica claro que nenhuma coisa externa, seja qual for, pode fazer dele alguém agradável a Deus ou
livre; pois nem sua piedade e liberdade, nem sua maldade e cativeiro são corpóreos ou externos.
Que proveito tem a alma se o corpo é livre, forte e saudável, se come, bebe e vive como quer?
Inversamente, que dano sofre a alma se o corpo, contra sua vontade, está aprisionado, enfermo e
fraco, padecendo fome, sede e sofrimentos? Nada disso atinge a alma de maneira
alguma, seja para libertá-la ou escravizá-la, seja para torná-la agradável a Deus ou má.

Lutero salienta que os conceitos de “carne” e “espírito" empregados por Paulo para referir-se
à natureza humana não correspondem ao material e imaterial, mas ao ser humano que deseja
auto-suficiência, ou seja, viver uma vida sem Deus (carnal) e o ser humano que se submete
alegremente aos cuidados de Deus (espiritual).
Tal conceito, como já foi sublinhado, é um bom antídoto contra uma visão dualista uma vez
que esta justificação não depende de sacrifícios humanos (mortificação do corpo) mas,
somente, da graça de Deus.
Personalidade bem diferente de Martim Lutero foi João Calvino. Desde o seu início, por
razões históricas, o protestantismo caracterizou-se em lutar por um novo conceito de
relacionamento com Deus. Este não deveria ser baseado nos sacramentos, ou nas penitencias,
ou nas indulgências, ou na autoridade papal, ou na tradição da Igreja, todavia, tão-somente na
manifestação graciosa do amor de Deus gerando em nós a fé. A fé como certeza de sermos
aceitos por Ele. Desta forma, “a fé e não o amor ocupou o centro do pensamento protestante”.
Isto gerou notável dificuldade nos reformadores descreverem com acuidade o lugar do amor
na vida cristã. Tanto Calvino quanto Zwínglio, ciosos de certo biblicismo, concentraram-se
mais no papel representado pela Lei. Além disso, parece que a teologia de Calvino sofreu
influência de seu próprio temperamento recatado. Se de um lado temos um Lutero
exuberante, do outro temos Calvino e sua índole reservada ao ponto dele ter dificuldades em
destacar a alegria que provêm da fé. Sua ênfase na depravação total do ser humano é mais
intensa do que a de Lutero. Sua constante preocupação com a idolatria leva o reformador de
Genebra a rejeitar o uso de representações pictóricas ou qualquer outro símbolo que pudesse
desviar a mente de um Deus que é transcendente, o que acarretou uma desconfiança com as
artes em geral entre os calvinistas.

34
João Calvino enfatizava mais a vida piedosa do que a alegria cristã, o que será acentuado pelo
moralismo puritano, como veremos adiante neste capítulo. Assim afirma Paul Tillich: “Para
Lutero, a vida nova é alegre reunião com Deus; para Calvino, o cumprimento da Lei de
Deus”. Calvino não supera o conceito platônico do dualismo espírito-matéria. Ao contrário,
também para ele o corpo é uma prisão para a alma sem nenhum valor. Uma diferença é que
para ele a ascese não é para fora do mundo (como na concepção grega e monástica), mas, um
“ascetismo secular”.161 Conforme Tillich, esse ascetismo intramundano caracterizava-se de
duas maneiras: limpeza e lucro por meio do trabalho. De especial interesse para nosso
trabalho era sua compreensão da limpeza como sobriedade, castidade e temperança e, por
conseguinte, a identificação do elemento erótico como algo sujo. Nada mais católico
medieval.

Junto com Platão ele afirma que o corpo é um obstáculo a ser superado. Marcos Azevedo ao
discorrer sobre a antropologia de Calvino e o tema da liberdade cristã em sua tese de
doutoramento faz uma objeção ao pensamento do reformador neste ponto lembrando que ele
“apresenta uma perspectiva dicotomizada do ser humano, tal qual Agostinho”.Ao manter-se
fiel à antropologia dualista elaborada a partir do influxo do neoplatonismo sobre o
pensamento cristão, Calvino tende a sustentar uma vida cristã com cores legalistas. Embora, a
bem da verdade, quem levou a cabo esta tarefa não foi exatamente Calvino, mas, seus
seguidores, os calvinistas puritanos como será assinalado.
Não seria justo encerrarmos esses breves comentários acerca do pensamento de João Calvino
sem fazermos uma referência às suas opiniões emitidas no capítulo dedicado à liberdade
cristã. Inversamente ao que se poderia esperar, uma vez que ele não supera a antropologia
dualista, Calvino nos alerta para o perigo do legalismo quando se trata de desfrutarmos das
dádivas divinas. No item 10 deste capítulo ele afirma:
Atualmente é sabido que muitos acham que agimos mal quando defendemos que somos livres para
comer carne, que estamos livres da observância de dias, que somos livres para determinar o nosso
vestuário, e uma porção de coisas semelhantes. (...) Se alguém começar a duvidar se é lícito usar
linho nos lençóis, nas camisas, nos lenços, nos guardanapos, não terá certeza se lhe é lícito usar
cânhamo, e acabará hesitando até se pode usar estopa, ou pano de saco. (...) Se tiver escrúpulo
quanto a beber vinho um tanto fino, dentro em pouco nem a borra ou o vinho azedo beberá com a
consciência tranqüila.

No item 14 deste mesmo capítulo, ele demonstra corretamente preocupação com o abuso da
liberdade cristã e com o apego às riquezas. Mas, ao mesmo tempo, ele não deixa de ponderar
que:

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Certamente, o marfim, o ouro e as riquezas são boas criaturas de Deus, permitidas, e até destinadas
ao uso dos homens; também em nenhum lugar se proíbe ao homem rir ou fartar-se ou adquirir
novas propriedades ou deleitar-se com instrumentos musicais ou beber vinho.

Ainda nesta mesma direção no capítulo Sobre a Vida Cristã, ele afirma:

[...] Tampouco podemos abster-nos das coisas que mais parecem atender ao bem viver e ao bem-
estar, que à necessidade. [...] Ora, se considerarmos o fim para o qual Deus criou os alimentos,
veremos que ele não só quis prover à nossa necessidade, mas também ao nosso prazer e recreação.
Assim, quanto ao vestuário, além de considerarmos a sua necessidade, devemos aplicar-lhes o que
se vê na relva, nas ervas, nas árvores e nas frutas, pois, sem contar as suas outras utilidades e os
benefícios que delas colhemos, Deus quis alegrar-nos a visão por sua beleza e propiciar-nos ainda
outro deleite ao aspirarmos seu agradável aroma. [...] E vamos considerar que não é lícito sentir
prazer em contemplar a beleza dada por Deus às flores?

[...] Deixemos de lado, pois, essa filosofia desumana que, não concedendo ao homem nenhuma
utilização das coisas criadas por Deus, a não ser por sua real necessidade, não somente nos priva
sem razão do fruto lícito da benignidade divina, mas também, quando aplicada, despoja o homem
de todo o sentimento e o torna insensível como uma acha [tora] de lenha.

Chega a ser surpreendente a forma como João Calvino, contra os fariseus legalistas de seu
tempo, fala do desfrute dos prazeres e alegrias da vida, com cores quase poéticas. Embora,
ele em momento nenhum descuide de nos lembrar da “grande necessidade de freqüentemente
retirar-nos das coisas do mundo para que não sejamos arrastados e como que enfeitiçados por
tais afagos e lisonjas”.
Bastante singular é a história dos anabatistas. Certamente representou o mais radical dos
movimentos religiosos surgidos no século XVI. Ao falarmos dos anabatistas não estamos
falando de um único movimento. São diversos grupos, em diversos países, com vários
líderes. Em geral, podem ser classificados em anabatistas, espirituais e racionalistas. Foram
os únicos naquele período a defender a separação entre Igreja e Estado e, em decorrência
disso, defendiam uma igreja formada unicamente de crentes que manifestassem pessoal e
publicamente sua fé, os quais deveriam ser batizados (o batismo no Espírito). Por
conseguinte, eram contra o batismo infantil. As crianças eram salvas em função de sua
inocência, mas, ao chegarem à idade da razão deveriam fazer sua opção pessoal por Cristo e,
assim, serem batizadas. Não aceitavam o conceito de justificação forense defendida por
Lutero, Zwínglio e Calvino, segundo o qual ao pecador arrependido é imputada a justiça de
Deus, ainda que ele mesmo não seja per si justo. Ao contrário, pregavam a experiência da

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regeneração pela qual o Espírito Santo agia naquele que havia nascido de novo tornando-o
realmente justo interiormente. No geral, eram pacifistas. pregavam a liberdade de consciência
e, portanto, eram contra o uso da força física em questões de fé. Alguns se posicionavam
contra o estudo teológico e o sacerdotalismo. Seu ideal era um retorno às raízes da igreja do
Novo Testamento.

Pelo que tudo indica os primeiros anabatistas surgiram na Zurique de Zwínglio. Alguns dos
seus discípulos romperam com o reformador suíço por serem contra o batismo infantil
praticado por ele. No início de 1525 os principais representantes do movimento batizaram-se
mutuamente. O primeiro a receber o batismo pelas mãos de Conrado Grebel foi um ex-
sacerdote católico chamado JORGE Blaurock. Esta prática era considerada ilegal por decretos
promulgados na época dos imperadores Teodósio e Justino contra os donatistas. Essas antigas
leis foram logo retomadas e aplicadas lontra os anabatistas. Milhares foram mortos tanto em
territórios católicos quanto nos protestantes. Muitas vezes, a forma utilizada para o martírio
era o afogamento, macabramente chamado de terceiro batismo. Esses Irmãos Suíços não
aceitavam a alcunha de anabatistas (rebatizadores) uma vez que eles consideravam que .
aquele era o primeiro e verdadeiro batismo que o crente estava recebendo.
A questão central era que os anabatistas achavam que os reformadores magisteriais não
haviam sido radicais o suficiente. Ou seja, não purificaram a Igreja totalmente dos desvios
tomados pela Igreja Católica. Os anabatistas eram os “protestantes do protestantismo”. Era
necessário mais: uma restauração total do Cristianismo do Novo Testamento. Isto passava
pela teologia, mas também por questões litúrgicas e de governo eclesiástico. Alguns
anabatistas, como Conrad Grebel, chegaram a repudiar o canto na liturgia. Em 1524, Tomas
Müntzer, outro famoso anabatista, recebeu uma carta deste grupo que o congratulava por
rejeitar o batismo infantil mas, ao mesmo tempo, alertava-o: “Nós entendemos e temos visto
que tu traduziste a Missa para o alemão e introduziste novos hinos alemães. Isso não pode ser
bom, desde que não achamos nada ensinado no Novo Testamento sobre cantar, nenhum
exemplo disso.

Em busca desta restauração da Igreja, os anabatistas espirituais enfatizavam a “luz interior”


do Espírito agindo na vida dos verdadeiros cristãos. Chegaram a afirmar que a igreja visível,
externa não era necessária. Coisas como batismo e Ceia eram descartáveis. Até mesmo a
palavra escrita deveria ser deixada de lado. O importante era a voz e a experiência interior do
Espírito. Vemos a influência do dualismo espírito-matéria nesta posição dos espiritualistas em
separar o mundo material do espiritual. Os Quaker, fundados por George Fox no século XVII

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são herdeiros destes grupos. Os anabatistas racionalistas, por sua vez, propuseram a aplicação
da razão no estudo das Escrituras. Não uma razão autônoma como no iluminismo posterior,
mas uma razão iluminada pelo Espírito e pelas Escrituras. Assim, questionaram doutrinas
tradicionais como a Trindade e a Encarnação. Um dos mais famosos anabatistas racionalistas
foi o médico espanhol Miguel de Serveto. Sua insistência em afirmar que a Trindade e a
Encarnação são indefensáveis, não encontrando base nas Escrituras o levou a fugir da
Inquisição Espanhola para acabar morrendo queimado na Genebra de Calvino.
Um dos grupos mais radicais foi o dos anabatistas revolucionários. Em face da brutal
perseguição que sofreram e com a morte da maioria dos líderes mais moderados, os
extremismos proliferaram entre os anabatistas. Pregações milenaristas tornaram- se a tônica
desses líderes. Melquior Hoffman, por exemplo, afirmava receber “revelações de um fim
iminente, quando Cristo voltaria e estabeleceria seu reino numa nova Jerusalém”. Hoffman
rejeitou o pacifismo dos anabatistas primitivos e convocou seus seguidores a pegarem as
espadas e lutarem contra os inimigos do Senhor. A mais famosa conseqüência provocada por
estes anabatistas revolucionários foi a ocorrida na cidade de Münster. Após conquistarem a
cidade, liderados por João Matthys e João de Leyden, em função de seu crescente ascetismo,
os anabatistas começaram a queimar e destruir todos os manuscritos, obras de arte, outras
memórias da fé tradicional, e então prosseguiram EXpulsando da cidade todos os “ímpios” - a
saber, os católicos e protestantes moderados”. Depois de inúmeros confrontos entre as forças
do Bispo que cercavam a cidade e os anabatistas revolucionários e após meses de cerco com a
fome tomando conta dos moradores de Münster, finalmente, a cidade foi reconquistada pelos
católicos e as atrocidades que se seguiram foram coroadas pela tortura e execução de João de
Leyden que havia declarado Münster a Nova Jerusalém onde o Reino de Deus seria
estabelecido.

De modo geral, os anabatistas advogavam a separação e isolamento total do mundo. Os


protestantes, seguidores de Lutero, Zwinglio e Calvino eram considerados por eles como
mundanos. Baltasar Hubmaier, o mais teológico dos líderes anabatistas, não cansava de
enfatizar que a Igreja deveria ser constituída tão somente dos “crentes” realmente
convertidos. Ele chegou a escrever um Catecismo Cristão no qual defendia a existência de
três tipos de batismo: o batismo no Espírito, na água e no sangue. O primeiro é "a iluminação
interior do nosso coração realizada pelo Espírito Santo mediante a Palavra viva de Deus”. O
batismo na água era o testemunho externo do batismo interior com o Espírito Santo. E,

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finalmente, o batismo no sangue era “a mortificação diária da carne até a morte”. Esta era sua
visão de vida cristã.
O anabatismo representou uma tendência ascética no contexto protestante. Sua santidade era
de negação e baseada no isolamento Muitas vezes a interpretação das Escrituras beirava o
simplismo como no caso da defesa da poligamia em Münster. O movimento ajudou a
pavimentar o longo caminho que o protestantismo percorrerá nos séculos seguintes em
direção a uma defesa de vida cristã baseada em uma moral platônica. Ao mesmo tempo
contribuiu para o estabelecimento de princípios protestantes importantes como a liberdade de
consciência, a democracia e a autonomia humana.
Também peculiar foi a história da Reforma na Inglaterra. Para os fins deste trabalho não nos
interessa entrar em muitos detalhes históricos acerca das circunstâncias nas quais se deram o
Anglicanismo. Contudo, importante é ressaltar que a Reforma inglesa não começou
exatamente como uma reforma religiosa. O rompimento com Roma se deu em face do desejo
do Rei Henrique VIII de ter seu casamento com Catarina de Aragão anulado, não ter sido
atendido pelo Papa em função das pressões que este recebia do Imperador Carlos V, sobrinho
da Rainha. Questões de fundo como o desejo de Henrique de confiscar as propriedades
eclesiásticas e os pesados pagamentos de impostos a Roma também foram importantes para a
decisão final. Havia um pequeno grupo de protestantes desejosos de uma reforma abrangente
nos moldes da que ocorria no continente.

Esta oportunidade surgiu com a morte do rei em 1547 e sua substituição pelo seu filho
Eduardo VI, então com nove anos de idade. O governo foi efetivamente exercido pelo seu tio
o Duque de Somerset com o título de Protetor. Simpático ao protestantismo o Protetor
permitiu que ocorressem avanços consistentes na direção de uma reforma religiosa. Cranmer
aproveitou o momento para implementar uma série de medidas que levariam a Igreja Inglesa
definitivamente para os arraiais protestantes. Durante os cultos a Bíblia passou a ser lida em
inglês, a Ceia passou a ser ministrada aos leigos com ambos os elementos, os clérigos
receberam permissão de se casar, as imagens foram removidas das igrejas. Mas, o mais
importante ato de reforma deste período foi a publicação em 1549 do Livro de Oração
Comum. Se em sua primeira versão ainda mantinha muitas das doutrinas e costumes
católicos, na segunda edição (1552) e sob influência de reformadores do continente que
encontraram refúgio na Inglaterra desses dias, o Livro de Oração Comum fez importantes
avanços na direção do protestantismo com viés reformado, zwingliano. A par disso, o artigo

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sobre a Ceia, embora substituindo o altar pela mesa o que denotava não mais ser considerada
a Eucaristia um sacrifício, manteve-se ambíguo em sua interpretação.
Maria Tudor sucedeu Eduardo VI em 1553. Com sua morte em 1558 subiu ao trono
Elizabeth. A nova Rainha que governaria por longos 45 anos iniciou seu governo
implementando medidas cautelosas. Seu principal objetivo era unificar a Inglaterra e
reformas religiosas radicais não seriam apropriadas para este intento. Coma desejava uma
única Igreja na Inglaterra, Elizabeth fez promulgar logo no início de seu governo o Ato de
Uniformidade Elizabetana Através dele a Igreja Anglicana assumiria uma teologia
moderadamente protestante com liturgia e governo moderadamente católicos. Esta via media
adotada por Elizabeth desagradou a muitos de ambos os lados que desejam ver a Inglaterra ou
plenamente protestante ou planamente católica.
A compreensão desses fatos, com as opções feitas pela Rainha Elizabeth e as características
assumidas pela Igreja Anglicana são importantes para entendermos o assunto que será
abordado a seguir: o surgimento do puritanismo. Se no seio da Igreja Luterana surgiria no
século XVII o Pietismo como reação às características nitidamente intelectualizantes e
acadêmicas do luteranismo, na Inglaterra, os Puritanos apareceriam, ainda no século XVI,
como uma força contrária àquilo que eles consideravam serem elementos católicos em
excesso no seio da Igreja de Sua Majestade.

Puritanismo e Pietismo - o avanço do ascetismo protestante

A crescente tendência ascética na história do protestantismo tem no Puritanismo e no


Pietismo importantes instrumentos para sua consolidação. Os puritanos ingleses se
levantaram contra os "trapos do papismo” como eles se referiam aos elementos tipicamente
católicos presentes na liturgia e governo eclesiástico da Igreja Anglicana. Inicialmente, os
puritanos - o nome decorre do desejo de ‘purificar’ a igreja - não tinham a intenção de romper
com a Igreja oficial. O que eles intentavam era livrá-la de ofícios considerados remanescentes
do catolicismo como o uso de vestes clericais, ajoelhar-se na hora de receber a Ceia, a troca
de alianças no casamento, fazer o sinal da cruz, o sistema de governo episcopal etc. Tudo isso
era considerado superstição romana. Esses sentimentos foram intensificados nos dias do
reinado de Maria, a Sanguinária quando muitos protestantes ingleses se refugiaram no
continente e retornaram para a Inglaterra sob a forte influência do protestantismo continental,
mormente de cidades como Genebra, Zurique, Estrasburgo e de regiões da Holanda.

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Desse modo, a Igreja da Inglaterra estava dividida em partido. Havia aqueles que pertenciam
à Igreja Alta, ritualistas partidários do Livro de Oração e os da Igreja Baixa, evangelicais.
[os partidários da Igreja Alta] defendiam a sucessão apostólica como ordem correta do
ministério e argumentavam em favor da autoridade espiritual especial para os sacerdotes da
igreja. Embora afirmassem doutrinas tipicamente protestantes das Escrituras e da salvação,
queriam uma igreja hierárquica com bispos estreitamente ligados à coroa e uma liturgia
formal com base em um livro de culto uniforme. O partido evangelical da Igreja Baixa era
composto pelos herdeiros dos “evangélicos fervorosos” dos tempos de Cranmer, cuja maioria
tinha sido queimada na fogueira ou exilada para a Europa continental no reinado de Maria, a
Sanguinária. Queriam que a Inglaterra seguisse o exemplo da reforma da Escócia liderada por
Knox. Cada vez mais, pediam a abolição do Livro de oração comum, dos bispos, do
sacerdócio e da sucessão apostólica, bem como do culto exageradamente litúrgico. [...]
ficaram conhecidos como puritanos. Os que seguiam a teologia ritualista da Igreja Alta foram
chamados anglicanos.
Esses dois grupos são bem representados por dois famosos teólogos da era elizabetana, são
eles: Richard Hooker e Walter Travers. Hooker foi um árduo defensor da Igreja Alta, da
Uniformidade Elizabetana, da liturgia formal e do sistema de governo eclesiástico episcopal.
De fato, ele era partidário de princípios protestantes fundamentais como a Bíblia por regra, o
papel da graça mediante a fé na salvação, e a idéia de justiça forense, imputada por Deus aos
homens independentemente de seu estado. Ao mesmo tempo ele destacava o papel do livre-
arbítrio e a participação do ser humano no processo de salvação. Já Walter Travers era um
crítico do anglicanismo nos moldes puritanos clássicos. Ambos dividiram o púlpito do
Templo de Londres por isso um historiador disse que neste Templo “o sermão da manhã
expressava Cantuária e o sermão da tarde Genebra”.As posições puritanas e anglicanas ficam
patentes nas pregações desses dois personagens.
Com o acirramento de posições, o próprio ambiente puritano se dividiu em determinadas
querelas acerca do sistema de governo, doutrinas soteriológicas, bem como, entre aqueles que
desejam permanecer na Igreja oficial e os separatistas. Inicialmente contrários a idéia de
separação da Igreja da Inglaterra, liderados por Thomas Cartwright, uma ala dos puritanos
deu, finalmente, origem ao presbiterianismo inglês nos moldes da Igreja Presbiteriana da
Escócia. Separatistas mais radicais como Robert Browne e, depois dele John Smyth, John
Murton, Henry Jacó e William Ames, dentre outros, deram origem ao congregacionalismo
inglês e às Igrejas Batistas, influenciados por idéias vindas, principalmente, da Holanda.

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Assim, no caldeirão puritano havia ingredientes calvinistas, arminianos, anabatistas, e, quanto
ao governo eclesiástico, presbiterianos e congregacionais. Daí o surgimento, dependo das
opções teológicas e de governo, de presbiterianos, congregacionais, batistas gerais
(arminianos) e batistas particulares (calvinistas), além de outros grupos de menor
importância. Essas denominações constituíram as chamadas Igrejas Livres. Embora
divergindo nestes pontos, o fundamento de todos era um só: a Igreja é constituída dos
verdadeiros crentes que o são voluntariamente e por decisão pessoal. Esta Igreja é governada
por Cristo. A Bíblia, interpretada com rigor, era sua regra de fé e prática. A santificação era
requerida em termos moralistas e legalistas, portanto, a separação do mundo era condição
sine qua non para todos. Um desses grupos congregacionalistas, exilado na cidado de
Leyden, na Holanda, embarcou em 1620 no Mayflower rumo às colônias inglesas na
América, eram os “Pais Peregrinos”. Em 21 do dezembro desse mesmo ano esses cerca de
300 puritanos congregacionais lançaram os fundamentos de Plymouth na Nova Inglaterra. O
desejo do grupo era fundar ali a Nova Canaã, aquela deveria ser uma nação cristã por
excelência, com liberdade religiosa e de consciência para todos.
Talvez a mais famosa obra do puritanismo inglês seja O Peregrino de John Bunyan. O livro
retrata bem a visão dualista da vida propugnada pelos puritanos. A caminhada do cristão
rumo à Cidade de Deus é penosa e árdua, nela não há espaço para a alegria e o prazer.
Percorrê-la foi um ato voluntarioso do crente. O outro caminho é largo, festivo, alegre, cheio
de atrações, mas, seu fim, é a Cidade da Destruição.
Outra reação ascética na história do protestantismo foi um importante movimento do século
XVII conhecido como Pietismo. O Pietismo surge em uma época em que a ortodoxia
protestante já estava bastante avançada. Por ortodoxia nos referimos à forma como a teologia
protestante foi elaborada depois de passados os primeiros e dinâmicos anos do movimento
propriamente dito. Foi a forma escolástica de sistematização do pensamento protestante. Uma
teologia com fortes fundamentos racionais. Falarmos de ortodoxia protestante não é a mesma
coisa que falarmos de Reforma protestante. Assim, por exemplo, quando nos referimos ao
calvinismo não estamos falando necessariamente das idéias originais de Calvino; falarmos de
luteranismo não significa um emparelhamento com Lutero, e assim por diante. Para a
ortodoxia o elemento doutrinário foi muito mais importante do que para a primeira geração
de reformadores, embora estes não descuidassem dela.

É exatamente em face da formatação de tal teologia que surge o Pietismo. Como diz Tillich o
“Pietismo é a reação do lado subjetivo da religião contra o lado objetivo”. Diante do

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dogmatismo, da rigidez e da inflexibilidade doutrinária da ortodoxia e da institucionalização
da religião os pietistas queriam uma religião viva. Fé para eles não era crer em determinadas
doutrinas, mas união mística com Deus. O sentimento e a experiência subjetiva foram
trazidos para o primeiro plano. O pastor luterano Philip Jakob Spener é considerado o Pai do
Pietismo. Tendo estudado em Estrasburgo, Basiléia e Genebra, Spener foi fortemente
influenciado pelas idéias reformadas, mas também, pelo puritanismo inglês a partir de
contatos com obras puritanas traduzidas para o alemão como, por exemplo, as de Richard
Baxter.
Ele recorria constantemente a Lutero defendo que suas |preg|ações eram uma tentativa de
resgate do Lutero original, deformado nos teólogos luteranos posteriores a ele. Assim, ele
dizia: “Em Lutero, encontramos a experiência e o grande poder espiritual dela advindo,
juntamente com uma sabedoria que se soma a simplicidade; nos teólogos posteriores,
encontramos um vazio”.Por isso, ele completava: “Quando o homem se deixa seduzir pelo
charme da razão, a simplicidade e os ensinamentos de Cristo tornam- insossos”. Ou seja, a
experiência subjetiva de Lutero e de outros reformadores como Zwínglio e Calvino era a
arma utilizada pelos pietistas contra o objetivismo teológico pretendido pelos ortodoxos,
luteranos e calvinistas.
Ao que parece Spener foi um homem sincero que desejou verdadeiramente ver a Igreja
purificada de seus desvios, como um lugar de comunhão, de exercício do sacerdócio
universal e da prática do amor cristão. Ele se escandalizava com a situação moral dos
pastores e membros das igrejas luteranas dos seus dias. Criticava a bebedeira e aqueles que
faziam distinção entre esta e o beber ocasionalmente. Para ele ambos eram pecados e chegou
a prever a perda da salvação para quem não se livrasse desses vícios. Cria que muitos não se
convertiam devido a imoralidade da igreja: "Essa situação trágica é o maior empecilho para
que muitas pessoas bem intencionadas, ainda pertencentes a Igrejas heterodoxas
(especialmente a romana) e alertadas para o perigo das abominações, não se unam a nós”.
Seus interesses transcenderam o ambiente eclesiástico ao demonstrar preocupação com a
situação de penúria social do povo.
O Pietismo prosperou nos séculos seguintes uma vez que ele se coadunava melhor com os
novos ventos que sopravam na Europa do que a ortodoxia protestante. Esta advogava a
autoridade suprema das Escrituras interpretada de forma rigorosa, desembocando num
perigoso biblicismo como já temos visto. Ainda que tendo a Bíblia como sua base e
considerando-a em alta conta, o Pietismo acrescentou a idéia de autonomia mística do fiel.
Ou seja experiência pessoal e subjetiva rompia de certa forma, com a autoridade da Igreja.

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Este rompimento com a autoridade da Igreja era exatamente o que buscavam os novos
pensadores do século XVIII inaugurando o movimento filosófico conhecido como
iluminismo. Ambos os movimentos se opõem ao autoritarismo ortodoxo. Por isso Paul Tillich
pôde dizer que “a autonomia moderna é a filha da autonomia mística da doutrina da luz
interior”. Se os pietistas estavam sendo iluminados pela “luz interior” do Espírito, os
filósofos do século XVIII estavam sendo iluminados pela “luz interior” da razão. Esta é uma
curiosa ambigüidade do movimento pietista: levantaram-se contra aquilo que eles
consideravam um excesso de confiança na razão no labor teológico dos ortodoxos, mas com
sua forte ênfase na subjetividade, ajudaram a dar à luz ao racionalismo iluminista.

Podemos dizer que o Puritanismo e o Pietismo, ambos movimentos que fazem parte do
conservadorismo protestante e, portanto, ambos com sólidas tendências ascéticas, na linha do
dualismo, distinguem-se apenas nas ênfases: o puritanismo mais concentrado na pureza
doutrinária e o Pietismo na experiência religiosa. Essas duas tendências vão caminhar lado a
lado na história do conservadorismo protestante daqui por diante.

Avivalistas, ortodoxos e liberais - tensões e fissuras

Ainda que não seja importante, para os fins do nosso trabalho estudarmos em detalhes a vida
de John Wesley, o fato é que sua biografia está intimamente relacionada com os movimentos
avivalistas iniciados a partir do século XVIII. O Metodismo, surgido a partir de seu labor
evangelístico confunde-se com o próprio avivamento inglês deste século. Antônio Gouvêa
Mendonça assim se refere ao Metodismo:

[...] ênfase mais na conversão do que no batismo, mais na experiência religiosa do que
simplesmente pertencer a uma instituição religiosa. (...) A certeza da conversão se dava pela
capacidade de renúncia aos prazeres sociais: jogo de cartas, jogos de azar, dança, freqüência a
teatros e assim por diante. A moralidade metodista irá exercer grande influência nas concepções
protestantes na América e nas suas áreas de missão.

Vemos, portanto, que no movimento metodista havia um critério para avaliação do


verdadeiro convertido: a negação do mundo demonstrada pela abdicação aos prazeres desta
vida. Além disso, o Metodismo consolida de forma definitiva a exigência pela experiência
emocional de conversão como marca de um verdadeiro cristão, exigência esta que remonta

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aos primeiros anabatistas. Aliás, aqui também se consolida a idéia do ser evangélico.
Assumindo que existem opiniões divergentes neste ponto, nesse trabalho optamos por
entender que o evangélico é um tipo específico de protestante, sendo que este termo torna-se
consistente com o advento do Metodismo. Deste ponto de vista, quem é o evangélico? Em
primeiro lugar ele é anti-católico na linha puritano-pietista. Por conseguinte, identifica tudo o
que se relaciona com o catolicismo com o diabo, a heresia, a blasfêmia e o pecado. Mas, ele
também é anti um certo tipo de protestantismo, qual seja, o protestantismo não
conversionista, não purificado o suficiente de elementos católicos romanos, representado
notadamente por luteranos e anglicanos. Esta é uma tendência que verificamos ainda hoje
entre os evangélicos brasileiros que, grosso modo, olham de soslaio para os membros dessas
denominações considerando-os não convertidos ou, quando muito, irmãos menores.
O Metodismo também pode ser entendido como uma espécie de síntese do puritanismo e do
Pietismo. Sendo ministro anglicano, Wesley foi influenciado por idéias puritanas que
perduravam ( e perduram) na Igreja da Inglaterra. Além disso, sua experiência de conversão
imprimiu o subjetivismo típico do Pietísmo no Metodismo.
Sua adesão ao arminianismo pavimentou o caminho para os evangelistas metodistas que no
século XIX conquistariam o oeste americano. A pregação calvinista em comparação soava
um tanto elitista aos ouvidos do povo. “quando o pregador metodista pregava, ele convidava
‘todo aquele que quer’; o calvinismo oferecia salvação só aos eleitos”. Sua defesa da
santificação pessoal foi rigorosa. Chegou mesmo a ponderar a possibilidade da real perfeição
ainda nesta vida na busca pela santidade. Embora não tivesse superado o dualismo, Wesley
demonstrou séria preocupação com as opressões sociais de seu tempo. Não pode ser rotulado
de fundamentalista. Ao contrário, repudiou o obscurantismo intelectual e a alienação cultural.
Advogou a abolição da escravatura e manteve vínculos de amizade com os primeiros
abolicionistas ingleses. Seus interesses estenderam-se ao campo da medicina criando em
1746 um dispensário médico para atendimento aos pobres.
Esses movimentos avivalistas não se restringiram à Inglaterra. Nas colônias americanas, e por
influência de homens como Zinzendorf e Whitefield, os ventos do avivamento sopraram com
força. O principal nome deste período em terras americanas é do pastor congregacional
Jonathan Edwards. Edwards é considerado por muitos o último grande pregador puritano.
Embora tenha sido além de teólogo um insigne filósofo, Edwards acabou sendo conhecido
mais pelo seu famoso sermão “Pecadores nas Mãos de um Deus Irado”. Calvinista convicto,
rigoroso em seus sermões, Edwards foi expulso de sua congregação em Northampton por
recusar a Ceia aos freqüentadores da igreja que ele considerava não convertidos. Ele cria que

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somente os santos poderiam estar em verdadeira comunhão, estes eram os eleitos de Deus.
Além dele, muitos outros pregadores avivalistas percorreram as colônias americanas. Não
faltaram excessos e exploração das emoções das massas o que foi denunciado por Edwards
em seu “Tratado a Respeito das Emoções Religiosas” de 1746. Como já era de se esperar,

esses avivamentos causaram tensões e fissuras no ambiente protestante conservador típico das

colônias.

Os movimentos de despertamento espiritual adentraram o século XIX nos Estados Unidos.


Neste período conhecido como a “Era Metodista”, consolidaram-se os vários fios desta longa
trama na formação do protestantismo norte-americano. O homem do meio- oeste,
desbravador, individualista, empreendedor representava à perfeição o espírito americano.
Como afirmado anteriormente, o calvinismo com sua defesa da soberania de Deus e da
incapacidade do ser humano não se coadunava bem com este espírito. O arminianismo
metodista com sua ênfase na capacidade humana de realização e no amor de Deus por todos
era mais compatível com a formação desta nova nação. No ano de 1858, o Annus Mirabilis,
eclodiu novo grande despertamento. Grandes cruzadas evangelísticas foram organizadas. “A
ênfase era na ‘descida do Espírito Santo’ e na guerra contra os vícios cm gigantescas reuniões
de conversão e santificação”. Se a resposta ao amor de Deus era o empenho humano em
servi-lo, isto involucrado por uma idéia de santificação sob o influxo do dualismo platônico,
o resultado era uma moral que privilegiava as “coisas espirituais” e relegava os prazeres do
corpo ao mundo do pecado. A conseqüência foi que este novo despertamento trouxe consigo
o ensino do perfeccionismo, o qual já estava presente nas doutrinas metodistas. Mendonça
assim explica o perfeccionismo: “todo crente é santificado na medida em que, tendo aceito a
Cristo e dado a Ele integralmente seu coração, renuncia totalmente ao pecado”.

Talvez o melhor exemplo da influência do dualismo no tipo de teologia que se cultivou na


formação do pensamento protestante norte- americano tenha sido aquele que pode ser
formulado como a “Doutrina da Igreja Espiritual”. Surgida entre os presbiterianos mais
conservadores esta doutrina configurou-se em função do desconforto causado pela questão da
escravidão na sociedade americana. Como poderia a nação que se propunha ser a Nova
Canaã, o povo cristão por excelência, exemplo para os demais povos manter sob o jugo da
escravidão os negros africanos? A “Doutrina da Igreja Espiritual” resolvia o problema
propondo que a dimensão civil “pertence a César” e a dimensão espiritual "pertence à Igreja”.
Sendo a escravidão de cunho civil, a Igreja não deveria ser intrometer nesta questão.
Mendonça cita uma frase do pastor sulista presbiteriano James Thornwell, o qual afirmou que

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“as Escrituras não apenas deixam de condenar a escravidão, mas claramente a sancionam
como qualquer outra condição social do homem”. Eis um flagrante impulso platonista na
teologia dos avivamentos com sua tendência em separar o espiritual do temporal e assim
justificar verdadeiras atrocidades . Neste ponto, a história da colonização católica na América
Latina e a colonização protestante na América do Norte são bastante parecidas.
Encontramos também esta dicotomia entre o espiritual e o temporal nos diversos movimentos
milenaristas que borbulhavam na América do Norte no século XIX. O surgimento em 1831
dos Adventistas liderados pelo ex-batista William Miller talvez seja o exemplo mais
conhecido. Miller, baseado em estudos feitos no livro do Daniel afirmou que a segunda vinda
de Cristo se daria em 1843- 44 e o Reino milenar seria inaugurado com o estabelecimento de
uma sociedade teocrática, na qual não haveria nem pecado nem sofrimento. Um
desenvolvimento posterior dos Adventistas foi aquele criado por Charles Russel em 1870, as
Testemunhas de Jeová. Outro movimento milenarista bastante conhecido são os Mórmons - a
Igreja dos Santos dos Últimos Dias fundada em 1830 por Joseph Smith. Esses são apenas os
mais conhecidos dentre, literalmente, dezenas de outros grupos. Todos esses movimentos
demonstravam forte influência dualista em sua teologia e moral.

Essencial também para se entender o pensamento protestante norte-americano é a


compreensão daquilo que se chamou de “Destino Manifesto”. Essa ideologia, já presente na
mentalidade dos "Pais Peregrinos” do Mayflower, afirmava serem os colonos puritanos da
Nova Inglaterra o novo povo escolhido de Deus. Esses novos israelitas construiriam nessas
terras a América cristã, nação esta que seria instrumento de salvação para o restante do
mundo perdido. Eles eram os eleitos.
Portanto, uma cultura genuinamente cristã precisava ser forjada. O ideal puritano-pietista de
santidade se impôs com vigor. Comportamentos incompatíveis com a moral puritana não
seriam tolerados. Campanhas de combate ao fumo, à bebida alcoólica, aos jogos de azar, pela
guarda do domingo foram organizadas. Religião e civilização se confundiam nesse programa.
A partir dessa mentalidade, a pregação do evangelho pelos missionários e a pregação do
American Way of Life se embaralhavam numa única coisa. Ser cristão era viver o estilo de
vida do protestante americano. O canal privilegiado para a difusão dos ideais do Destino
Manifesto era a religião. Ou seja, a expansão da influência norte-americana no mundo e a
propagação da fé cristã protestante eram os dois lados de uma mesma moeda. A resposta dos
ouvintes a tais pregações gerou um tipo de Cristianismo com ética fortemente individualista,
ascética e negadora do mundo. A insistente ênfase na vida celeste em detrimento da vida

47
neste mundo era influência da teologia platonizada. Foi nesse contexto que se formaram os
grandes empreendimentos missionários norte- americanos cujo vigor é inigualável na história
das missões cristãs de qualquer época. Em sua bagagem, os missionários e missionárias
levariam a religião e a política americanas até os confins da terra, incluindo o Brasil.

Fundamentalistas e pentecostais - radicalizações e rompimentos

O século XX viu o surgimento da mais extraordinária força religiosa dentro da história do

protestantismo: o movimento pentecostal. O pentecostalismo pode ser alinhado numa longa

tradição de “reações do Espírito” na história do Cristianismo que remonta a Montano, no

segundo século. Essas “reações do Espírito aconteceram, geralmente, quando o processo de

institucionalização eclesiástica se enrijeceu em determinada época da história. Outras causas

são o dogmatismo, a clericalização e também grandes calamidades nacionais fossem elas

naturais - como a Peste Negra ou fabricadas, como guerras e depressões econômicas e

sociais.O pentecostalismo do século XX foi uma verdadeira revolução do Espírito.

O pentecostalismo iniciou acusando setores do protestantismo da época de depender em


excesso da razão e da filosofia. Os pentecostais vangloriavam-se de depender tão-somente do
Espírito Santo. Não hesitavam em vincular seu movimento com o próprio Jesus e com a
Igreja Primitiva. Todas as denominações protestantes históricas eram herdeiras das
deformações do catolicismo medieval. O pentecostalismo não. Era um salto de volta á
essência do Cristianismo, o verdadeiro Cristianismo vivido pelos primeiros cristãos. No
entanto, sem perceberem eles também estavam desenvolvendo uma teologia e, como disse
Paul Tillich “pode-se demonstrar facilmente de que ‘patriarcas hereges’, isto é, de que
filósofos, tomam sua categoria”. Quase invariavelmente esse filósofo foi Platão, ou melhor
dizendo, os neo-platônicos com seu dualismo espírito-matéria e o característico desprezo pelo
corpo e seus desejos, a separação entre razão e revelação e assim por diante.
Em face do exposto, podemos afirmar que o pentecostalismo não inaugurou algo novo na
história cristã, mas, deu continuidade a uma tendência do século precursor (para não falar dos
vários séculos anteriores) com algumas amarrações teológicas novas. O que já havia em
profusão no cenário religioso norte-americano eram os movimentos holiness que enfatizavam
a busca pela santidade e pela perfeição cristã, encontros de reavivamento espiritual em
acampamentos com muitas manifestações emocionais, ênfase no batismo com o Espírito

48
Santo como condição para a santidade. Acrescentando a esses ingredientes a teologia
fundamentalisla, o pré-milenarismo e, marco dos marcos, o falar em línguas como
comprovação do batismo com o Espírito Santo, surgiu, com grande ímpeto missionário a “era
pentecostal”.
A figura mais emblemática da origem do pentecostalismo é, sem dúvida, a do pastor negro
William Joseph Seymour. Seymour chegou a estudar por um tempo no Seminário de Parham
onde se convenceu da doutrina do batismo com o Espírito Santo. Mas, pelo tratamento racista
recebido deste, interrompeu os estudos e se dirigiu para a cidade de los Angeles. Lá,
inaugurou em 1906 num velho galpão abandonado da Rua Azusa a Missão da Fé Apostólica.

Em 14 de abril daquele ano começaram as primeiras manifestações do batismo com o


Espírito Santo seguido do falar em línguas. A repercussão foi imediata. As manifestações
extáticas seguidas gritos,convulsões,curas,milagres,profecias e glossolalias atraíram grande
número de pessoas. A “era pentecostal” estava inaugurada.
Em 1914 cerca de 300 ministros pentecostais se reuniram para fundar o Concílio Geral das
Assembléias de Deus. Seu primeiro líder, o ex-pastor batista, E. N. Bell, deixava clara a
posição pentecostal em relação à ortodoxia bíblica e ao mundo moderno: "|Essas Assembléias
opõem-se a toda Alta Crítica radical da Bíblia, a todo o modernismo, a toda a incredulidade
na igreja e à filiação a ela de pessoas não-salvas, cheias de pecado e de mundanismo”,e
concluía ele “e acreditam em todas as verdades bíblicas genuínas sustentadas por todas as
igrejas verdadeiramente evangélicas”.
Vemos nessa primeira declaração do primeiro presidente da Convenção Geral das
Assembléias de Deus a opção pelo predomínio da religião sobre a razão. A santificação
significa separação radical do mundo. Se o protestantismo não superou totalmente a
antropologia dualista, o fundamentalismo e o pentecostalismo exacerbaram o ascetismo
evangélico. Para o pentecostalismo clássico e também para o fundamentalismo, o ideal
cristão passava pelo misticismo, pelo ascetismo e pelo transcendentalismo. Segundo o
pensamento de W. Rauschenbusch, como vimos, foi exatamente isso que Jesus superou em
sua pregação do Reino de Deus. A mística de Jesus não era uma fuga da realidade, mas
estava a serviço da justiça; contra o ascetismo dos fariseus, Jesus proclamava estar mais perto
de Deus tanto mais perto estivesse do povo; em sua kenosis. Ele nos apontou um caminho
diferente do transcendentalismo, o caminho da encarnação.É curioso que o mesmo Espírito
Santo que une todos os movimentos pentecostais, paradoxalmente, também é a causa de suas
profundas divisões desde o início. A propalada liberdade do Espírito deu lugar para a criação

49
de milhares de movimentos, comunidades e ministérios, todos requisitando para si a
plenitude do Espírito, o chamado profético e, contraditoriamente a essa liberdade do Espírito,
se constituíram em denominações fortemente hierárquicas e com aguda centralização de
poder, dando origem inclusive a um fenômeno novo na história protestante: o surgimento de
igrejas familiares.

Tudo o que se escreveu até aqui neste capítulo teve por objetivo respondermos a uma
pergunta: que tipo de evangelho os missionários protestantes trouxeram para o Brasil? Ou,
colocando de outra forma, quem foi o missionário protestante que chegou no Brasil em
meados do século XIX? Em resumo, creio que poderíamos afirmar que o missionário de
primeira hora era um evangélico conservador, portanto, com perfil puritano-pietista,
conversionista na linha metodista, com traços tanto ortodoxos quanto avivalistas refletindo o
spectrum do protestantismo norte-americano forjado entre os séculos XVIII e XIX, com uma
visão de santidade perfeccionista e imbuído de uma convicção de ter sido escolhido por Deus
para pregar o verdadeiro Cristianismo ao estilo americano. Acrescente- se a isso que, o
missionário de segunda hora, chegando por aqui na primeira metade do século XX, somou a
este caldeirão a rigidez e intolerância fundamentalista e as doutrinas básicas do
pentecostalismo com sua moral ascética extrema. Não devemos desconsiderar o trajeto
geográfico feito pelo protestantismo até chegar ao Brasil. Partindo do continente europeu, ele
primeiro foi remodelado na Inglaterra, recebeu influências pietistas reconfigurado em quase
250 anos de história nos Estados Unidos, o então veio para o Brasil. Esta é a história na qual
nos concentraremos agora.

A Inserção do Protestantismo no Brasil

A conquista da hegemonia marítima pela Inglaterra e a vinda da família real portuguesa para
o Brasil em 1808 deram início a uma radical mudança no cenário religioso brasileiro. Em
1810 o Tratado da Aliança e Amizade, de Comércio e Navegação firmado com a Inglaterra
abriu o Brasil à entrada do Protestantismo. Os artigos 12 e 13 do Tratado de Comércio e
Navegação declaravam que os vassalos de Sua Majestade Britânica teriam perfeita liberdade
de consciência e licença para assistirem e celebrarem culto dentro de suas casas ou de suas
Igrejas ou capelas sob as condições de que estas tivessem a aparência exterior de habitação
comum, estendendo aos demais estrangeiros a garantia de não serem perseguidos por matéria
de consciência, sendo-lhes proibido pregar publicamente contra a religião católica ou fazer
prosélitos. Ato contínuo, a Constituição do 1824 assegurou a presença de não-católicos na

50
vida nacional, mas limitou sua liberdade de culto assim como a participação na vida política,
atendendo em parte o partido contrário à liberdade religiosa. Estabelecia o artigo 5o da
Constituição: “A religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do Império.
Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas
para isso destinadas, sem forma exterior de templo”.

O apoio dado pela Maçonaria no início da implantação do protestantismo no Brasil deveu-se


ao fato dessa Ordem apresentar se como “porta-voz da modernidade, do liberalismo e das
idéias iluministas”. Esta posição colocou-a em franca oposição à Igreja Católica. Aliás, a
Maçonaria esteve no centro do conflito entre o Império e a Igreja na década de 1870
conhecido como “A Questão Religiosa”. Dessa forma, o Tratado de Comércio seguido da
Constituição de 1824, garantindo a liberdade de culto; os anseios liberais de políticos,
intelectuais e boa parte do clero, com uma crescente admiração pelo mundo anglo-saxão; a
força da Maçonaria com sua simpatia pelo espírito protestante; e a Questão Religiosa com a
conseqüente diminuição da influência da Igreja Católica, contribuíram para a inserção do
Protestantismo no Brasil. Da parte dos missionários, obviamente esses apoios todos eram
bom vindos. Apresentar-se como instrumento desse projeto liberal modernizador poderia
render frutos com a laicização do Estado e a quebra do monopólio católico no campo
religioso. Dado curioso esse: os missionários evangélicos que vieram para o nosso País eram
representantes do conservadorismo protestante norte- americano. Conservadores do ponto de
vista teológico e moral, com posições declaradas contra o racionalismo iluminista e a
Teologia que daí nasceu. Aqui no Brasil, quem reagia aos ventos lluministas do mundo
moderno era o lado mais romanista da Igreja Católica. Contudo, nesse ambiente, os
missionários foram recebidos pelas elites brasileiras como força modernizadora liberal.
Verdadeiramente, se não eram modernos do ponto de vista teológico moral, o eram do ponto
de vista sócio-político-econômico: eram democratas, economicamente liberais, defendiam a
autonomia humana, a liberdade de consciência, a liberdade religiosa e, além disso, estavam
na vanguarda dos novos métodos pedagógicos e no estudo das novas ciências. Mas, tudo isso
untado na ideologia do Destino Manifesto.

A imigração trouxe os primeiros protestantes. Em 1823, D. Pedro I enviou o Major Schaeffer


à Europa para promover a vinda de imigrantes sem a exigência de serem católicos romanos e
contratou-se um pastor protestante para acompanhá-los, com sustento garantido pelo governo.
Em 3 de maio de 1824, realizou- se o primeiro culto da igreja evangélica luterana de Nova
Friburgo pelo pastor Friedrich Sauerbronn. Em 6 de novembro de 1824, foi celebrado o

51
primeiro culto evangélico em São Leopoldo, no Vaio do Rio dos Sinos/RS. A implantação
dessas primeiras, congregações luteranas visava atender às necessidades espirituais dos
imigrantes. Trouxeram consigo costumes e culturas próprias bem como uma compreensão da
fé tipicamente européia, alemã, luterana. De modo geral, essas congregações se configuravam
por uma mesma língua, constituindo-se em igrejas nacionais, de Estado, trabalhando a favor
da identificação de um determinado povo ou grupo étnico. Os fiéis, através delas, mantinham
um vínculo com a ‘mãe pátria’. Essa necessidade psicológica e existencial dos imigrantes
gerou inicialmente uma tendência ao isolamento cultural e uma prática pastoral e diaconal
‘para dentro’.

Entre os assim chamados protestantismo de imigração e protestantismo de missão, chegaram


ao Brasil missionários norte americanos com o objetivo de fazer uma análise das condições
‘espirituais’ do país e a necessidade de envio de missionários pata estas terras.
Podemos citar entre esses missionários pioneiros, geralmento conhecidos como colportores
(distribuidores de Bíblia), os metodistas americanos Justin Spauldíng e Daniel Kidder e o
presbiteriano James Fletcher. O trabalho realizado por Kidder, produzindo um amplo
relatório onde descreveu detalhes da vida religiosa e social do Brasil influenciou todas as
ações posteriores de envio de missões americanas ao Brasil.
A partir da década de 1850 chegaram os primeiros missionários com o objetivo de implantar
igrejas entre o povo brasileiro :congregacionais, presbiterianos, metodistas e batistas;. O
choque cultural não se limitou à sociedade brasileira. Houve também um estranhamento
mútuo entre os protestantes de imigração e os protestantes evangélicos de missão.
Os estereótipos mútuos podem ser marcados com facilidade. Aos olhos das igrejas de missão, as
étnicas pareciam como catolizantes, igrejas de estado, formalistas e ‘mundanas’.
[...] A ordem litúrgica, o uso de uma língua estrangeira e a renúncia a fazer ‘proselitismo’ eram
incompreensíveis e escandalosos para a mentalidade missionária e evangelizadora dos
‘evangélicos’. E o consumo de bebidas alcoólicas ou tabaco, a dança e outras atividades sociais
de algumas dessas igrejas chocavam a ética puritana da maioria das igrejas de missão. [...] As
igrejas de imigração, por sua vez, traziam desde sua origem uma forte desconfiança para com as
'igrejas livres’, que em muitos casos se apresentavam, nos países de origem, como proselitistas
em detrimento da 'igreja do povo’ (Volkskirche). Sua piedade parecia desordenada, fanática ou
‘entusiasta’, própria de ‘seitas’ [...]. E sua pregação inflamada e repetitiva lhes parecia
superficial, carente de sólida base confessional ou doutrinária.
Miguez Bonino ao apontar para as diferenças teológicas entre umas e outras afirma que:

52
A tendência se percebe, antes nas referências a uma piedade mais subjetiva nas primeiras
[igrejas de missão] e mais ligada aos símbolos e às formas objetivas nas segundas [igrejas de
imigração] [...]; a uma interpretação mais livre, circunstancial e exortativa da Escritura frente a
outra mais exegética e docente.295

Podemos ver os antigos antagonismos entre puritanos e anglicanos do século XVI ainda vivos
e presentes entre esses grupos no Brasil do século XIX.
O primeiro missionário evangélico a implantar uma igreja no Brasil foi o médico e pastor
congregacional escocês Dr. Robert R. Kalley. Ele chegou ao Brasil em 1855 fugindo de
perseguição religiosa na Ilha da Madeira, e fundou a Igreja Evangélica Fluminense em
1858.O Dr. Kalley era um legítimo representante do puritanismo escocês já mesclado de
wesleyanismo-metodista. Sua mensagem proclamava o conversionismo individual e a
resposta voluntária da pessoa ao amor de Deus; como esta aceitação não é definitiva, mas
sujeita à ‘recaída’, mediante tentações do mundo, daí a necessidade de uma ética rigorosa que
mantenha bem nítida a linha divisória que separa o fiel do mundo. Traduziu para o português
o publicou em série em um jornal O Peregrino de John Bunyan. Isto reflete bem sua teologia,
individualista, dualista e negadora do mundo .

Em 12 de agosto de 1859, chegou ao Rio de Janeiro o pastor americano presbiteriano Ashbel


G. Simonton. O Rev. Simonton formou-se no Seminário de Princeton. Sua teologia trazia a
ambigüidade da época: a marca do conservadorismo dos puritanos e a influência religiosa dos
avivamentos. Em seu Diário, há vários registros que demonstram uma teologia fortemente
platônica, dualística:
Quando olho para dentro, a fim de avaliar o progresso que tenho feito a caminho do céu, no
cultivo das graças espirituais, na mortificação do pecado e no desenvolvimento da aptidão para
o trabalho, tenho profundas razões para dúvidas e acabrunhamentos. O que me afeta mais é
que todos os estrangeiros que vivem aqui, protestantes nominais, rejeitam o evangelho e
descrêem dele. Deus existe e sua lei moral deve ser obedecida como for possível, mas a divindade
de Cristo, o sacrifício e a salvação continuam a ser negados universalmente. Não há esperanças
para o Brasil, com os estrangeiros que ora se misturam aos seus habitantes. Uma crença
superficial, irrefletida, desarrazoada, os afeta a todos. O mundo apela para o que é sensual. Um
outro jovem, que tem assistido aos cultos, parece ávido e persuadido da verdade e da
importância de uma religião espiritual (grifo nosso).
E Mendonça conclui: “Simonton está preocupado com um outro mundo, distante das
preocupações humanas. O ‘sensual’ para ele é o oposto do mundo platônico para qual a Igreja

53
devia transportar-se”.2 Sua visão de vida cristã era espiritualista. A vida aqui é transitória.
Devemos viver com os olhos voltados para o mundo espiritual.

Depois de algumas tentativas frustradas, os metodistas Implantaram definitivamente seu


trabalho no Brasil a partir da década de 1870 ou 1880. Foi intensa a cooperação entre eles e
os presbiterianos no início do trabalho. A teologia dos metodistas também enfatizava o
milenarismo, o conversionismo individualista, a moral ascética.
Em 1881 embarcou para o Brasil uma família de missionários batistas, o Pr. William Bagby e
sua esposa, e em 1882 outra, o Pr. Zacarias Taylor e esposa. Neste ano inauguraram a
primeira Igreja Batista no Brasil em Salvador, Bahia. Os batistas destoaram em um ponto dos
outros protestantes que aqui implantavam seus trabalhos pela sua postura algo arredia. Isto
aconteceu em decorrência de uma determinada teologia adotada pelo Rev. Taylor conhecida
como “landmarkismo”, segundo a qual a Igreja Batista é anterior a Reforma Protestante e a
única realmente neotestamentária. O historiador batista A. R. Crabtree segue a mesma linha:
O povo desta fé é mais antigo do que o seu nome histórico, porque é da mesma fé e ordem dos
cristãos do Novo Testamento. As igrejas apostólicas eram verdadeiramente batistas porque
constavam somente de crentes batizados, porque eram democráticas, e porque respeitavam a
consciência e a responsabilidade pessoal. [...] Um estudo cuidadoso e livre de preconceitos das
igrejas apostólicas convencerá qualquer pessoa de que elas eram essencialmente da mesma fé e
ordem das igrejas batistas de nossos dias.
Nem seria preciso dizer que esta teologia gerou ainda mais isolacionismo, pregação de uma
santidade moralista e antropologia dualista.
Grosso modo, os protestantes de missão seguiram muito próximos por décadas. Ainda que
em denominações distintas, cada uma com suas peculiaridades, os evangélicos eram muito
parecidos em sua teologia, usavam a mesma hinódia, e advogavam a mesma ética. Assim
prosseguiram com seus trabalhos evangelísticos com significativo crescimento, sobretudo dos
batistas. A situação começou a mudar na década de 1960. O Brasil passava por profundas
transformações no campo social e econômico com o processo de industrialização e a
conseqüente transição da vida rural para a urbana. No campo político, a situação se agravou
com o golpe militar de 1964. Mendonça argumenta que apesar de o Protestantismo ter
chegado ao Brasil como portador do liberalismo e da modernidade, mostrou-se incapaz de
acompanhar as transformações da sociedade brasileira.
A mentalidade conservadora e individualista do protestantismo, condicionada e alimentada
pelo tripé escolasticismo-Pietismo-apocaliptismo, afastou-se dos movimentos sociais que, ao

54
longo de um século, mudaram a fisionomia do Brasil. Daí, sua quase nula presença na
política, na cultura e na participação efetiva dos movimentos de mudança social.
O certo grau de sucesso em sua chegada ao Brasil no século XIX em função de
representar naquele momento uma alternativa cultural, liberal e modernizante ao modelo
católico conservador, deu lugar à estagnação e isolamento da sociedade brasileira. O que
outrora era um sopro renovador de cultura, agora não passava de conservadorismo religioso
sem relevância social; tornou-se uma subcultura. O protestantismo brasileiro não
acompanhara as mudanças nacionais e nem as mundiais com a nova configuração geopolítica
do pós-guerra. Para esta nova conjuntura global, era necessário uma nova teologia, ou uma
nova hermenêutica que desse conta dos desafios contemporâneos. Na Europa essa nova
hermenêutica estava sendo articulada por alguns importantes loólogos como Karl Barth, Emil
Brunner, Dietrich Bonhoeffer (morto pelos nazistas em 1945, após participar da organização
de um liustrado atentado para matar Adolf Hitler e acabar sendo preso), Paul Tillich (mais
tarde transferido para os EUA), Jürgen Moltmann305, dentre outros. Nos Estados Unidos
devemos destacar o papel desempenhado pelos irmãos Niebuhr e Harvey Cox.José
Bittencourt Filho aponta para os caminhos percorridos a partir dessa encruzilhada existencial
na qual os protestantes se encontraram em fins da década de 1950. Segundo ele, uma parte
dos evangélicos brasileiros percebeu a necessidade de reconfigurar o protestantismo para
além do denominacionalismo e colocá-lo a serviço da sociedade brasileira ultrapassando suas
funções meramente religiosas. Surgiu a partir daí um protestantismo ecumênico. Outra parte
entendeu que o melhor era renovar seus antigos princípios pietistas, reafirmar sua ética
individual e não social, investir contra o liberalismo teológico nos seminários, emparelhar- se
com as elites conservadoras brasileiras, e incorporar o fundamentalismo teológico à sua
agenda. Bittencourt Filho nos lembra que importantes lideranças fundamentalistas norte-
americanas visitaram o Brasil na década de 1950. Muito dinheiro de setores fundamentalistas
dos Estados Unidos foi enviado para cá resultando na fundação de editoras, como a Betânia, e
seminários como o Palavra da Vida. Esse ramo do protestantismo brasileiro embarcou
alegremente no trem da Ditadura Militar, implantando uma espécie de Ditadura Eclesiástica
nas principais denominações brasileiras àquela época. E, finalmente, um terceiro grupo optou
pelo caminho do reavivamento espiritual como solução para as mazelas nacionais. Foi este
grupo que deu origem às igrejas carismáticas (Batista Renovada, Presbiteriana Renovada etc),
rompimentos das antigas igrejas históricas.

55
Com o golpe militar de 1964, e a instalação de um regimo ditatorial em algumas
denominações evangélicas, os funcionários do Setor de Estudos e Responsabilidade Social da
Confederação Evangélica Brasileira foram demitidos, um dos escritórios da Confederação foi
invadido por agentes da repressão, documentos • i.i Conferência do Nordeste foram
destruídos, e a CEB teve um fim mulancólico316. O ISAL também se desarticulou e acabou
desaparecendo. A década de 1970 foi de terror para pastores e Iíderes progressistas com
perseguições, cassações, prisão, exílio e até morte. Não obstante, a militância deles deu
frutos.

A cooperação proporcionada pela CEB, ISAL e UCEB resultou nas experiências mais
importantes do engajamento social do protestantismo brasileiro refletido na criação, anos
depois, das chamadas “entidades ecumênicas de serviço”, como o Centro Ecumênico de
Informação (CEI), criado em 1965, que viria a se chamar posteriormente Centro Ecumênico de
Documentação e Informação (CEDI) e a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) que
surgiu em 1973.
Poderíamos acrescentara criação do CLAI - Conselho Latino- Americano de Igrejas e do
CONIC - Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, ambos ligados ao CMI - Conselho Mundial
de Igrejas. Enquanto isso, as denominações históricas e pentecostais, grosso modo,
permaneceram com a mesma ideologia dos missionários do século XIX, professando uma
cultura muito mais anglo-saxônica do que brasileira. A década de 1970 também foi a década
de estagnação no crescimento das denominações históricas. Diante dos fatos, “o
protestantismo histórico se divide entre a opção 'ecumênica’, a opção ‘pentecostal-
carismática’, a opção ‘tradicional- lundamentalista’ ou a opção ‘evangelical-
progressista’”.Uma alternativa de articulação entre Evangelho e Responsabilidade Social
mais à direita da posição ecumênica foi a representada pelos (ivangelicais com a elaboração
da Teologia da Missão Integral pelo teólogo equatoriano C. Renné Padilla. A Missão Integral,
articulada a partir dos Congressos Latino-Americanos de Evangelização (CLADE) e
inspirada no Pacto de Lausanne girava em torno do eixo “o evangelho todo, para o homem
todo, para todos os homens Continua ainda hoje atuante em várias partes da América Latina.

Concluindo: a cultura brasileira, por motivos distintos, foi rejeitada tanto pelo protestantismo
de imigração quanto pele protestantismo de missão. No caso das igrejas de imigração pelos
fortes laços que estas mantiveram com suas pátrias de origem como caminho de preservação
da própria identidade. Já as igrejas de missão, pelo viés puritano-pietista- Desse modo, não
podemos falar de uma teologia brasileira nas primeiras décadas de presença protestante no

56
País. O que aconteceu foi o transplante de teologias, estrangeiras, européia e norte-americana,
para as terras brasileiras. E, quando se tentou articular, no ambiente protestante, uma teologia
brasileira, ou seja, uma teologia a partir da realidade nacional e que contribuísse de alguma
forma para a melhoria de condições de vida do povo, Seminários foram fechados, os
mentores foram cassados, demitidos e expulsos de suas denominações. Em alguns casos
ocorreram prisões de pastores, outros tiveram que partir para o exílio e também aconteceram
casos de assassinato pela Ditadura, como a de Paulo Wright deputado cassado, irmão do Pr.
Jaime Wright, desaparecido em 1973.
O que permaneceu quase que de forma monolítica, foi a velha teologia puritano-pietista já
nossa conhecida. Essa teologia evangélica é assim caracterizada pelo teólogo metodista
Albert Outler:
O traço mais destacado [...] é seu fervor emocional, concentrado sempre nestes dois pontos, e
quase só neles: 1) a salvação: libertação do pecado e da culpa (do inferno e da condenação) e 2)
uma moralidade pessoal “auto-inibidora”, [Este é] o triunfo efetivo no Novo Mundo do
“protestantismo radical” tão severamente reprimido na Europa [...]. Essa tradição protestante
era majoritariamente “montanista” em sua eclesiologia (igreja “baixa”, igreja “livre”): anti-
sacerdotal, anti- sacramental, antiintelectualista. Ela fazia uma distinção pejorativa entre
teologia especulativa e fé existencial. Suspeitava de um clero erudito. Considerava a conversão,
e não a iniciação, o clímax da experiência cristã. Insistia na religião pessoal como a única
essência verdadeira do Cristianismo.

Ao apontarmos para a tendência isolacionista do protestantismo de imigração não significa


desconsiderar a necessidade e a liberdade de determinados grupos cultivarem suas raízes
culturais, seus símbolos e sua origem histórica. Significa, isto sim, alertarmos para o perigo
de, na celebração étnica, esses (grupos estabelecerem com o restante da sociedade uma
relação de domínio (vide o apartheid na África do Sul) ou, pelo menos, de fechamento em
sua própria cultura, numa atitude auto-satisfatória.
A universalidade da história da salvação não é a dissolução dos espaços específicos, étnicos e
diferenciados. Não é uma negação da etnicidade como criação de Deus, como espaço de
encarnação do evangelho de Jesus Cristo. É, isso sim, a negação do espaço fechado sobre si
mesmo. O que o apóstolo Paulo rejeita é “a etnicidade como mérito". A universalidade da graça
não é a eliminação de raça, sexo ou condição social, e sim sua libertação para o exercício do
amor. (grifo nosso).
E, ao apontarmos para as marcas puritano-pietistas, tipicamente norte-americanas, do
protestantismo de missão, não significa afirmar que isto por si só representa irrelevância

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social e histórica. As marcas do evangelicalismo norte-americano não desembocam
necessariamente nem tão-somente em equívocos e preconceitos culturais. Entretanto, quando
tal referencial torna-se um fim em si mesmo, não há espaço para o reconhecimento do outro
em sua alteridade, do seu valor intrínseco e da beleza de sua cultura. Neste ponto, a chegada
das missões protestantes ao Brasil lembra a mesma relação mantida pelos missionários
católicos no século XVI com os ameríndios. Ambos não reconheceram a alteridade do povo
que aqui se encontrava. O projeto colonialista estava presente em ambos: nestes um
colonialismo geográfico, físico e econômico; naqueles um colonialismo cultural. O setor
ecumênico do protestantismo brasileiro representou uma saudável alternativa de superação da
antropologia dualista platônica com a articulação entre Igreja e Sociedade e com seu
engajamento social.

Pentecostalismo e neopentecostalismo - o novo rosto da igreja

A primeira denominação pentecostal no Brasil foi a Congregação Cristã no Brasil, fundada


por Luigi Francescon em São Paulo em 1910. A segunda foi a Assembléia de Deus, fundada
em 18/06/1911 pelos missionários suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg, em Belém do Pará
(eles haviam chegado em 19/11/1910, depois de passarem pela igreja do Pr. William Durham
em Chicago, o que também ocorreu com Francescon). A Igreja recebeu o nome de Missão da
Fé Apostólica, inspirado no trabalho da Rua Azusa, em Los Angeles. Sete anos depois, os
fundadores agora acompanhados dos missionários Otto Nelson e Samuel Nystròm, mudaram
o nome para Assembléia de Deus. A mudança de nome foi feita para acompanhar a decisão
tomada pelos líderes do movimento nos Estados Unidos reunidos em assembléia entre 2 e 14
de abril de 1914. Os brasileiros começaram a assumir cargos de liderança somente na década
de 1930 com a eleição do Pr. Cícero Canuto de Lima para presidente da Convenção Geral,
sendo responsável pela região norte e nordeste. Já nesta primeira reunião debateu-se a
questão do ministério feminino. A decisão final foi:
As irmãs têm todo o direito de participar na obra evangélica, testificando de Jesus e a sua
salvação, e também ensinando quando for necessário. Mas não se considera justo que uma irmã
tenha função de pastor de uma igreja ou de ensinadora, salvo em casos excepcionais
mencionados em Mt 12:3-8. Isto deve acontecer somente quando não existam na igreja irmãos
capacitados para pastorear ou ensinar.

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O posicionamento conservador, algo machista, já dava o tom nesta primeira reunião para
desgosto de Gunnar Vingren que defendia o ministério feminino. William Read destaca
várias características das Assembléias de Deus: urbana; evangelização vigorosa, espontânea e
constante; oportunidade de todos serem líderes; organização simples da Igreja; pastor
capacita membros; apela a pessoas humildes; o ministério está no nível do povo; os humildes
atingem status social mais elevado; os migrantes encontram calorosa recepção nas igrejas;
todos são levados a buscar o Batismo com o Espírito Santo; os líderes conhecem quem possui
a "experiência pentecostal”; a relação com Deus torna-se pessoal e íntima.
No aspecto teológico, em linhas gerais, podemos afirmar que o Pentecostalismo Clássico é
arminiano; é avivalista na linha pietista; enfatiza a ação do Espírito sobre o crente; sua
escatologia é pré- milenista dispensacionalista; a santidade é ascética com separação radical
do mundo. Do ponto de vista político são conservadores tendo-se alinhado com a Ditadura
Militar e apoiando majoritariamente governos de direita.
Nos anos 1950-1960 surgem movimentos e denominações que aceitam outros sinais do
batismo no Espírito e enfatizam mais a cura divina e os milagres, tais como a Igreja do
Evangelho Quadrangular (1953), O Brasil para Cristo (1956), Deus é Amor (1962), e as
cisões de denominações, tais como a Igreja Presbiteriana Renovada, a Convenção Batista
Nacional, a Igreja Metodista Wesleyana. Nos anos 1970-80 surgem as denominações
chamadas de neo-pentecostais, tais como a Igreja Universal do Reino de Deus (1977), a
Internacional da Graça (1980), a Renascerem Cristo (1986), a Sara nossa Terra (1992). A
partir dos anos 1980-1990 proliferam as comunidades e igrejas independentes no movimento
neo- pentecostal.

O neopentecostalismo surgiu nos Estados Unidos na década de 1940. Sob a liderança e


inspiração de Essek William Kenyon, vários televangelistas norte-americanos começaram a
pregar o que se denominou “Confissão Positiva”. A Confissão Positiva é a base para o
desenvolvimento da Teologia da Prosperidade em suas várias dimensões. Em termos bastante
resumidos, podemos dizer que em sua dimensão financeira, essa Teologia é uma espécie de
versão religiosa do neoliberalismo. Afirma que os cristãos são predestinados para a riqueza,
os bens materiais, já, aqui e agora. A vida espiritual é uma transação financeira com o céu:
quanto maior a oferta, maior a bênção. A pobreza é decorrência do pecado e/ou da idolatria.
Em sua dimensão física, a Teologia da Prosperidade prega vida longa e próspera para os fiéis.
A doença é coisa satânica. Quanto mais consagrado, mais saudável será o crente. Na
dimensão política, a Teologia da Prosperidade defende certa teocracia para os nossos tempos.

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Aos cristãos estão reservados os postos de comando. Deus não fez seu povo para ser “cauda”,
mas para ser “cabeça” do mundo. Na dimensão que chamaremos de “espiritual", os teólogos
da prosperidade fazem uma polarização maniqueísta entre o bem (os cristãos) e os maus (os
não crentes). Não há espaço para o pluralismo. A Batalha Espiritual travada, normalmente em
cima de montes, gira em torno da quebra de maldições hereditárias. Se você confessa seus
pecados e ainda assim não prospera é porque a causa está nos pecados dos antepassados. É
preciso conhecer esses pecados dos antepassados, libertá-los, para que seus descendentes
prosperem. Além disso, é necessário “tomar posse" da vitória através da confissão positiva.
A teologia neopentecostal, consoante com o mundo pós- moderno, prega o consumismo
individualista, a midiatização (espetacularização) da fé; a super valorização da saúde e do
dinheiro; o alcance da bênção de forma imediata. Enfim, o mundo é reencantado à serviço do
fiel. Mendonça analisa a matriz religios.i brasileira sobre a qual ergue-se o
neopentecostalismo:

A cultura brasileira tem três componentes muito claros: a cultura ibero-latino-católica, a


indígena e a negra. A primeira não é representada pelo catolicismo tridentino, mas pela religião
popular, folclórica e festiva legada pela tradição lusitana. Dessa mistura de cultura resultou um
imaginário de um mundo composto por espíritos e demônios bons e maus, por poderes
intermediários entre os homens e o sobrenatural e por possessões. Trata-se de um mundo
maniqueísta em que os poderes são classificáveis entre o bem e o mal e manipuláveis
magicamente. O homem, através de agentes especiais, pode organizar este mundo de modo a
obter dele benefícios que não são permanentes, mas devem ser negociados no cotidiano.
Merecem atenção constante.
O autor citado ainda afirma que o neopentecostalismo se diferenciou do protestantismo
histórico ao colocar de lado a Bíblia. No neopentecostalismo esta não tem nenhuma
relevância. Em visita a IURD em Vitória, Espírito Santo, no primeiro semestre de 2009, com
alunos/as do Curso de Teologia da Faculdade Unida, presenciei o Bispo jogando com desdém
a Bíblia sobre o púlpito e vociferou: “Eu não vim aqui pregar a Bíblia. A letra mata. Eu vim
aqui falar das coisas do Espírito”. E Mendonça continua afirmando que dos pentecostais
clássicos perderam a segunda bênção, o batismo com o Espírito Santo, seguido do falar em
línguas.
Em substituição a elementos tradicionalmente protestantes entraram aspectos mágicos com o
“instrumental herdado das religiões correspondentes ao imaginário social, como novenas [...],
bênção da água tornado-a milagrosa, óleos, flores, chaves, etc. Os atos de exorcismo entram
como instrumental de reorganização do universo dos clientes, separando o bem do mal”. E

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Mendonça finaliza ponderando que “essas igrejas não constituem comunidade de crentes
comprometidos com a koinonia cristã. Estão sempio cheias, mas de clientes que buscam
solução mágica para os problemas do cotidiano e que estão sempre em trânsito”. Na mesma
visita também pude observar que, estando o templo lotado antes do início do culto, as pessoas
não conversavam entre si, o que seria muito normal em uma igreja histórica ou pentecostal. A
provável conclusão é que elas não se conheciam dada a grande rotatividade na freqüência.
Mendonça se recusa a chamar estas comunidades de igrejas, prefere “sindicato de mágicos”.

O protestantismo histórico tem certos limites em seu poder de alcançar mentes e corações na
América Latina. Sendo uma religião eminentemente discursiva, este tipo de protestantismo,
em seus diversos matizes, não atende plenamente ao anseio das camadas populares de contato
com o sagrado. O conceito de “conversão” trazido pelo protestantismo de missão implicava
um rompimento com a religiosidade e cultura populares e conseqüente assentimento com
determinado corpo de doutrinas e pacote ético Por outro lado, os processos modernizantes
pelos quais passam a sociedade latino-americana afetam de maneira profunda a vida dos
pobres e sua religiosidade.
Com a mudança na estrutura social, modifica-se também a maneira como a pessoa vai se
relacionar com este mundo. A maneira como ela o sente. Modificam-se as condições através
das quais se experimenta o sagrado. As condições sociais modernas e pós-modernas, que
reviram ao avesso a existência do indivíduo e da sociedade, e que produzem pessoas
“invisíveis” pela sua falta de poder econômico e social, criam o campo fértil para o
florescimento do pentecostalismo e, num segundo momento, do neopentecostalismo. É aqui
que as massas encontrarão uma interpelação religiosa que atenda mais plenamente aos seus
anseios.
0 processo de inserção das camadas mais pobres no pentecostalismo, segundo Palma
Manríquez, inclui num primeiro momento um processo de “cura” para o indivíduo que se
aproxima, seguido de incorporação no grupo, ampliação das possibilidades de sobrevivência
através de intercâmbios que transcendem os objetivos primários da comunidade e,
finalmente, exercício de “dons” na maioria das vezes, desconhecidos anteriormente.
Mais uma vez, o conceito de “conversão” é central para a compreensão dos desdobramentos
desse processo na vida dos fiéis. Se por um lado esta “conversão” significa ruptura com a
religiosidade e cultura anteriores, paradoxalmente, representa também um continuísmo dessa
mesma religiosidade. Os símbolos são transplantados com novas cores, uma nova linguagem
é incorporada, um novo poder é recebido. Tudo isso, feito num ambiente acolhedor no qual

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processos de retomada de poder são desencadeados. Servem como válvulas sociais. Ali, o
“Seu João” é o Evangelista João. A “Dona Maria” é a líder do grupo de oração. Mas esta
“conversão” também implica numa nova ética. O rompimento com o mundo é a conditio sine
qua non para a incorporação plena no grupo. Esta característica é causa de rompimentos
afetivos e sociais muitas vezes geradores de distúrbios e desvios de caráter psíquico.
Outro elemento chama-nos a atenção no mundo pentecostal e, sobretudo, neopentecostal.
Embora, difira do protestantismo histórico por não ser uma religião do discurso, a palavra
preenche todos os espaços do culto pentecostal, Como assevera Waldo César “talvez o
visitante ou o convertido não tivesse nenhuma voz, mas agora tem muitas, canta, geme, grita,
gesticula, fala em línguas num êxtase que apenas pode estar começando”.Há como que a
celebração de uma vida possível. O renascer de uma esperança que, pelo menos naquele
momento, pareça tópica.
A ética pentecostal é anti-mundana. Mas a palavra é voltada para as questões do “mundo”.
Ela penetra o cotidiano das pessoas. Embora demonizado, são valores deste “mundo" que são
ambicionados: a casa própria, o carro do ano, viagens... Elabora- se uma espécie de cultura
evangélica alternativa. As manifestações culturais da sociedade são rejeitadas. Dança,
música, cinema, televisão, shows, determinados espaços são coisas do diabo. Essa cultura
evangélica alternativa visa preencher essas lacunas. O mercado mais uma vez dá as cartas.
Esse é um “mundanismo” sutil que abraça com seus tentáculos esse nicho. Bom é o político
irmão. Boa é a música gospel, o filme cristão. Criam-se espaços de encontro: pizzarias,
restaurantes e até shoppings “evangélicos”. Os shows mundanos são substituídos pelos shows
gospels com danças, gritos e manifestações de extrema euforia. Paradoxalmente, não existem
mais fronteiras entre o sagrado e o profano.
A palavra, no culto pentecostal clássico, costumava apontar para o céu. Os spirituals norte-
americanos são pródigos nessa carac-terística. O neopentecostalismo mostra nova tendência.
A palavra, no culto neopentecostal cria uma ponte entre a fé e o cotidiano. As bênçãos,
mormente as materiais, são para o aqui e o agora. A este respeito Waldo Cesar afirma que “a
mensagem das igrejas tradicionais não tem, para as camadas populares, nem o gosto nem o
conteúdo do pão de cada dia”.
Esta fusão entre o interno e o externo explica em grande medida o sucesso neopentecostal.
Aliás, este é outro elemento do que nós chamamos de ‘mundanismo que ninguém vê’. O
sucesso dos pastores é medido pela sua capacidade de acrescentar fiéis à sua comunidade,
pela sua capacidade de aumentar a arrecadação, pelo tamanho do templo que ele constrói. Em
nada diferente do inundo” que incensa os empresários bem sucedidos. E, bem sucedidos neste

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caso, é sinônimo de empresa grande, grande número de funcionários, receita milionária,
poder aquisitivo; etc. Esta é, portanto, uma das marcas paradoxais do neopentecostalismo: o
mundo” é o paradigma para suas ações e até referência para sua teologia (teologia da
prosperidade).
Que importa: a palavra aqui não está a serviço de verdades doutrinárias. Esta palavra, que no
ambiente do protestantismo histórico parece tantas vezes vaga e divorciada da vida cotidiana,
no ambiente pentecostal e neopentecostal vai direto ao encontro das necessidades e anseios
diários. Não é uma palavra sobre Deus. É uma palavra para Deus. Esta palavra não é
propriedade de alguns poucos. No fenômeno glossolálico o fiel pode expressar toda sua
ligação com o sagrado, sem intermediações. Para Waldo Cesar aqui está a “mais expressiva
dimensão simbólica do culto pentecostal”.Também afirma:
O que até então era entendível na simplicidade de uma mensagem voltada para os problemas
cotidianos, torna-se, paradoxalmente, ininteligível. [...] Para os que recebem o dom de falar em
línguas desconhecidas, o fenômeno significa superar a própria língua, criar, improvisar, viver o
êxtase de uma graça indizível.
Guardadas todas as críticas pertinentes e justificáveis, não se pode negar que este tem sido
um espaço de expressão para as camadas populares, reordenamento da vida, sentimento de
acolhimento e pertença a um grupo, alfabetização, libertação do alcoolismo e das drogas etc.-
Assim, outra característica apontada por Waldo Cesar e Richard Schaull se refere ao espaço
físico dos templos pentecostais e neopentecostais.

O ajuntamento humano no interior dos templos, esteticamente mais próximos das classes
pobres, assemelha- se à composição diversificada do mundo profano, incluindo bêbados,
prostitutas, drogados, homossexuais - que não se sentem rejeitados no espaço sagrado. O que
poderia ser totalmente estranho e constrangedor numa igreja tradicional (em muitos casos
nem mesmo permitido), parece natural em bem-vindo num templo pentecostal. Várias vezes
percebemos a presença de “marginais” - a escória deste mundo -, mais ainda nas igrejas da
Universal. Num templo de Botafogo, no Rio, uma mulher em trajes sumários, atraindo a
atenção do auditório, foi logo recebida com respeito por uma obreira, que providenciou uma
manta para envolvê-la.
O templo pentecostal constituiu-se assim num espaço democrático no qual os despossuídos
encontram liberdade de movimentação e de expressão. Ali há uma espécie de resgate da
cidadania. Não há distinção de pessoas. Todos são bem-vindos como estão.

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A caminhada interna, pois, sintetiza um universo social, eclesial e religioso extremamente
diversificado. Os que se juntam no grande espaço reúnem não apenas as diferenças da vida
mundana como a diversidade protestante ou de outras religiões.
Há, no mundo pentecostal e neopentecostal uma espécie de “destino manifesto”. A
fundamentação teórica deste sentimento é a Teologia da Prosperidade. A entrega de vida
destes fiéis (conversão) significa que agora eles são “filhos do Rei” e, como tais, herdeiros da
terra. Os espaços externos devem ser dominados. Temos visto nos últimos anos uma
“invasão” de ambientes antes fechados para os evangélicos, mormente, o esportivo, o
artístico e o político. Aliás, isto é fruto de uma mudança de mentalidade: antes estes
ambientes eram vistos como mundanos, dominados por Satanás e deveriam ser evitados a
todo custo pelos cristãos. Nos últimos 20 ou 30 anos, por influência do neopentecostalismo
esta mentalidade mudou. Igrejas como Renascer em Cristo e Sara a Nossa Terra exibem com
certo orgulho os artistas e jogadores de futebol que fazem parte do seu grupo de fiéis.

O esforço com o objetivo de eleger candidatos evangélicos vem crescendo com força desde a
Constituinte de 1988. O alvo final seria a eleição de um presidente evangélico, o que
representaria o coroamento de um projeto de poder abençoado por Deus.
Assim se manifestava o ex-deputado Laprovita Vieira, da IURD:
O que mais precisamos hoje é de um homem de Deus, levantado por Ele próprio para conduzir
esta Nação. O que o Brasil precisa é que o povo de Deus ore, busque, se arrependa de seus maus
caminhos para que se levante um ‘Davi’ de dentro da sua própria igreja para dirigir esta Nação.
E, baseados neste propósito, lançamos nossos candidatos para evitar que o povo de Deus plante
o os ‘amalequitas’ colham. [...] Os cristãos evangélicos têm que ocupar o seu espaço.
Curiosamente, o que temos assistido com esse crescimento de políticos evangélicos é o
envolvimento de uma boa parcela desses políticos em projetos privados no âmbito público.
Não há um projeto voltado para as condições sociais e econômicas que alcancem todo o País.
Tem servido mais como uma espécie de marketing evangélico, ou seja, demonstração de
força das igrejas. Ou, pior, como meio de enriquecimento ilícito e de favorecimento pessoal
e, às vezes, denominacional. Isto tudo aliado a adesões em grupo (bancada evangélica) a
votações de cunho moral, o que satisfaz planamente ao anseio da clientela.

Além disso, estas igrejas também trouxeram uma roupagem modernizante, uma espécie de
“verniz”. É comum que pastores e pastoras dessas novas comunidades se vistam com roupas
da moda, se tatuem, apliquem piercings e usem uma linguagem repleta de gírias. Este é o

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caso, por exemplo, da Bola de Neve Church. No entanto, a pregação nessas igrejas continua
com forte viés moralista e fundamentalista.
Movimentos alternativos, de linha underground proliferam nos últimos tempos. O objetivo é
alcançar as várias “tribos” esquecidas pelas igrejas tradicionais: travestis, punks, adeptos do
Heavy Metal, artistas pornôs etc. Sites especializados nesses grupos são espaços de debate e
de livre expressão. Inclusive sites pornôs cristãos.

Conclusão

Iniciamos este capítulo nos referindo aos quatro grupos que constituíram a Reforma
Protestante: luteranos, calvinistas, anabatistas e anglicanos. Ao traçarmos uma linha que se
inicia na Reforma do século XVI e termina no quadro evangélico brasileiro contemporâneo é
espantoso o alto grau de complexidade que tomou conta desse cenário religioso. Várias
tentativas têm sido feitas pelos estudiosos para se estabelecer uma tipologia do protestantismo
brasileiro. A dificuldade é tanta que começamos pela impossibilidade de utilizarmos esta
nomenclatura no singular. Assim o fazemos apenas por uma questão de simplificação
didática. À rigor, teríamos que falar em protestantismos, pentecostalismos e
neopentecostalismos, sempre no plural. Se insistíssemos em ir mais a fundo, também
teríamos que falar em vários tipos de Assembléias de Deus, em metodistas no plural,
presbiterianas, etc. As subcategorias são intermináveis. Dos quatro grupos iniciais do século
XVI temos atualmente literalmente milhares de igrejas, denominações e comunidades. Bem
ao gosto desses tempos pós-modernos temos "produtos religiosos” para todos os gostos.
Nesse grande supermercado gospel, o cliente pode se fartar com tudo quanto é lipo de
mercadoria religiosa. Se não ficar satisfeito, existem muitas outras prateleiras e produtos a
serem escolhidos e consumidos.

Magali do Nascimento Cunha faz uma tentativa de organização de mosaico religioso


classificando-o em protestantismo histórico de migração (ex. Luterana); protestantismo
histórico de missão (ex. Presbiteriana); pentecostalismo histórico (ex. Assembléia de Deus);
pentecostalismo de renovação ou carismático (ex. Batista Renovada); pentecostalismo
independente (ou neopentecostalismo) (ex. IURD); e pentecostalismo independente de
renovação (ex. Renascer em Cristo).
Temos, desde a introdução desse trabalho, nos preocupado com a difícil questão da relação
do Cristianismo com a Cultura e do agravamento desta relação dada a influência da

65
antropologia platônica sobre o pensamento cristão construído ao longo de séculos. No caso da
implantação do Protestantismo no Brasil houve um claro estranhamento por parte dos
missionários com a cultura do nosso País.
A ética puritana de restrição de costumes no Brasil representava uma forma de comunicar a
negação do catolicismo e marcar a identidade protestante. A abstinência de bebida alcoólica,
do fumo, da participação em festas dançantes e populares, em especial o Carnaval, e dos
divertimentos populares como o teatro, o cinema, a música popular deveria dizer ao mundo
que os protestantes eram diferentes.
Ao afirmarmos essa resistência dos protestantes à cultura brasileira não estamos nos referindo
à cultura em geral, mas, àquilo que podemos chamar de cultura popular: folclore, músicas,
danças, ritmos, festas populares, brincadeiras, etc. Entretanto, em relação à cultura mais
clássica, política, intelectualizada e acadêmica, houve, em muitos momentos, bastante
identificação. Por exemplo, como já sublinhado, com os liberais-modernistas do século XIX,
com as forças conservadores que promoveram o golpe militar em 1964, com as eleições
presidenciais de 1989 que elegeram Fernando Collor de Mello com amplo apoio dos
evangélicos, etc.

Mas há um novo fenômeno que nos surpreende sobremaneira ao olharmos para o quadro
evangélico brasileiro atual: a construção de uma cultura gospel. Essa cultura não respeita
fronteiras e está presente em praticamente todo o universo das igrejas evangélicas no Brasil.
A proposta gospel visa exatamente superar a clássica separação dualista igreja-mundo dos
evangélicos de outrora. O crente gospel dança, houve rock, funk, pagode, usa roupa da moda,
valoriza o corpo, os ambientes de consumo por excelência, os shopping centers, etc. Ou seja,
o gospel insere-se na modernidade, ou, mais precisamente, na pós-modernidade. Acontece
que, aqui e acolá, ela toma rumos diferentes e destaca aspectos diferentes da religiosidade
“crente”. No neopentecostalismo da IURD, por exemplo, com aquilo que nos parece uma
mudança de estratégia, uma vez que na década de 1990 a postura dos líderes dessa
denominação era de ataque virulento contra a religiosidade popular brasileira, católica,
umbandista e candomblecista, agora faz-se uma incorporação consciente de elementos dessas
religiosidades em nome de uma certa inculturação da fé, o que alguns já chamam de
“umbandização evangélica”. O que falar desse uso sincrético dos símbolos da religiosidade
tipicamente brasileira fruto do casamento entre o mundo do catolicismo lusitano, das
religiões indígenas e das religiões afros em cultos evangélicos?

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Como outro exemplo, podemos citar a Igreja Renascer em Cristo que promove eventos de
música evangélica que no final das contas não se sabe muito bem se é um show, louvor,
espetáculo para pura diversão, evangelização, ou outra coisa qualquer. Os cantores/as são
chamados de “artistas gospel”. A maioria desses airtistas gospel” é oriunda de lares
evangélicos pentecostais. Mas, dos anos 90 para cá um novo fenômeno tomou conta desse
'mercado”: o artista convertido ao gospel: Mara Maravilha, Baby (Consuelo) do Brasil,
Wanderley Cardoso, Nelson Ned e Rodolfo (ex Raimundos), são apenas alguns exemplos.
Dada a proibição dos fiéis freqüentarem shows seculares, cria-se uma alternativa gospel para
a diversão dos jovens. Na Igreja Bola de Neve Church o púlpito é uma prancha de surf, os
pastores geralmente são surfistas o pregam no culto vestindo bermudões. Enfim, os exemplos
se multiplicam.

Diante desse novo fenômeno, perguntamos: essa assimilação de ritmos, estilos musicais,
danças e coreografias representam uma inculturação legítima da fé? Não seria isto também
fruto do dualismo sagrado versus profano? Não seria isto uma estratégia para afastar as
pessoas do “mundo”? Em meio a toda essa onda modernista nesse universo gospel não
permaneceriam os discursos fiéis ao cardápio puritano-pietista- moralista? Por baixo desse
verniz de inculturação, não resistiriam as velhas categorias avivalistas: conversionismo,
apocalipsismo e ética seletiva? O ascetismo, nesse ambiente gospel, não continuaria presente
com nova roupagem? Por exemplo, a música é moderna, as danças são permitidas, os
diversos ritmos desejáveis, a roupa é fashion, mas tudo isso dentro do locus evangélico. Tudo
isso vale, mas quando feito por nós, pois, dessa forma, essas coisas passariam por uma
purificação, uma lavagem espiritual, receberiam a marca da unção divina. Essas coisas valem
desde que feitas para a glória de Deus. Entenda-se glória de Deus como sinônimo de ter sido
feito sob liderança dos evangélicos. Insistimos: não seria isso uma versão pós-moderna do
antigo ascetismo cristão, da separação sagrado-profano, igreja-mundo?
Como palavra final, afirmamos que não é nosso desejo propor um protestantismo perfeito. Se
assim o fizéssemos, correríamos o risco de cair também no idealismo platônico. Até porque
assumimos a profunda complexidade que representa a implantação e a crescimento do
protestantismo no Brasil. O quadro é por demais intrincado para dele fazermos afirmações
definitivas e contundente. Também assumimos as contingências históricas, as idiossincrasias
de cada época e a natural dificuldade dos atores superarem essa confluência de fatores que
são políticos, econômicos, sociais, culturais, religiosos, e até psicológicos. Contudo, um
pouco de utopia não nos fará mal, sendo a utopia elemento constituinte da escatologia cristã.

67
Concluímos com as palavras de Julio Zabatiero em aula ministrada para uma turma de
teologia na Faculdade Unida em 2008 e que tomo a liberdade aqui de reproduzir de forma
livre o parafraseada: “ao invés de olhar para o mundo como o inimigo a ser vencido, as
igrejas podem optar pelo caminho da encarnação ou seja, o caminho da solidariedade
missionária, assumindo seu papel de comunidade cidadã. Esse seria o caminho da
contextualização crítica. Quando o Evangelho se encarna nas igrejas, elas assumem a sua
condição de comunidades includentes (não sendo discriminatórias), terapêuticas (libertando
da culpa e do medo), solidárias (não vivendo em função de seu próprio crescimento).
Podemos ser comunidades que assumem suas fraquezas e limitações não afirmando a
propriedade de “verdades absolutas” impermeáveis ao diálogo crítico, sejam elas derivadas
da religião, sejam derivadas da ciência, mas busque - a partir da Bíblia e da tradição cristã -
consensos éticos para transformações sociais viáveis. Também podemos praticar uma
teologia que não esteja centrada em dogmas, mas na descrição do compromisso pessoal e
comunitário com a contextualização crítica do Evangelho. Acrescentemos a isso, uma
teologia evangelicamente crítica das instituições, organizações e movimentos cristãos, em
busca de seu deslocamento dos modelos de cristandade para um modelo de igreja cidadã,
atuante na esfera pública, assumindo co- responsabilidade pela gestão democrática da vida
social. Finalmente, no caminho da contextualização crítica não tem um mapa pré-traçado,
deve ser construído no próprio caminhar, assumidos os riscos da vivência plena do Evangelho
na experiência pessoal e comunitária; praticando uma reflexão teológica não-fundamentalista,
posto que anti-cristã e uma imersão missionária em uma realidade que não pode ser
controlada pela própria igreja, mas que demanda uma plena e desafiadora humanização”.

68
Conclusão geral

“A ascética cristã disse que o mundo era mau e o abandonou.


A humanidade está à espera de uma revolução cristã que diga que o mundo é mau, mas trate
de modificá-lo”.
Walter Rauschenbusch

Iniciamos este estudo descrevendo a concepção antropológica grega a partir da obra Fédon de
Platão. Vimos que neste livro o filósofo ateniense narra os últimos acontecimentos na vida de
seu mestre Sócrates, o qual, em diálogo com seus discípulos mais próximos, arrazoa acerca
do sentido da vida e da morte, na mais clássica e bela descrição da fé grega na imortalidade
da alma. É bastante conhecida a comparação feita entre a morte de Sócrates e a morte de
Jesus.
Como abordado no primeiro capítulo, Sócrates está absolutamente em paz diante da morte.
Chega a demonstrar felicidade, pois, para ele, a morte representava a libertação final. Todo
verdadeiro sábio deve aspirar a isto. Corpo e alma são entes de mundo diferentes e
antagônicos entre si. Enquanto a morte do corpo não chega, o filósofo deverá ocupar-se em
meditar acerca das verdades eternas. Fazendo isto, ele estará antecipando a libertação da
alma. Mas, é na morte que a alma imortal encontrará, finalmente, seu destino eterno liberta da
prisão do corpo. Assim, a morte é a grande amiga da alma e como tal deve ser recebida com
alegria e de braços abertos. Não há, na morte de Sócrates, o mínimo sinal de terror, nenhum
sentimento de tragédia, apenas júbilo e serenidade. Transformando sua crença em ato, o
filósofo bebe a cicuta mantendo plena dignidade e calma.
Mutatis mutandis, na morte de Jesus, o horror é o ar que se respira. Diante dela, Jesus é
possuído por profunda tristeza ao ponto de quase desesperar. O evangelista Marcos que
afirma ser Jesus o Filho de Deus, não atenua a descrição da cena: “(...) a minha alma está
profundamente triste até à morte” (Marcos 14:34). Para Ele a morte é a grande inimiga a ser
vencida. E, diante da possibilidade de ser por ela tragado, está profundamente angustiado.
Apela ao Pai para ser poupado: “E dizia: Aba, Pai, tudo te é possível; passa de mim este
cálice (...)” (Marcos 14: 36). Convida seus discípulos mais íntimos para acompanhá-lo nesta
hora de dor: “Voltando-se, achou-os dormindo; e disse a Pedro: Simão, tu dormes? Não
pudeste vigiar nem uma hora?” (Marcos 14:37). Jesus, segundo o pensamento semita, sabe
que a morte é separação radical de Deus. A vida toda criada por Deus é destruída neste

69
momento. Assim é que o autor aos Hebreus pinta a cena do Getsêmani com cores fortes:
“Ele, Jesus, nos dias da sua carne, tendo oferecido, com forte clamor e lágrimas, orações e
súplicas a quem o podia livrar da morte (...)” (Hebreus 5:7). Jesus, diante da morte, clama e
chora.
Quão grande o contraste entre as cenas da morte de Sócrates e de Jesus. O filósofo sereno e
feliz. O Senhor aterrorizado, solta um grande brado (Marcos 15:34,37). Para Sócrates a morte
é amiga, para Jesus ela é o último inimigo a ser vencido (I Coríntios 15:26). “Aqui, aparece o
abismo entre o pensamento grego e a fé judaica e cristã. (...) nada nos mostra melhora
diferença radical entre a doutrina grega da imortalidade da alma e a fé cristã na ressurreição”.
Somente se assumirmos a necessidade de uma plena morte de Jesus poderemos entender toda
a dimensão da fé judaica e cristã na ressurreição. A ressurreição só é grande porque significa
a ressurreição de toda a vida e não de uma parte dela, o corpo- matéria. É porque experimenta
a total separação de Deus na morte, tanto no corpo quanto na alma, que a ressurreição de
Jesus é o grande grito de fé do Novo Testamento. Não haveria tamanha glória na
ressurreição, se a morte fosse somente parcial. Enquanto para o grego quem deve ser vencido
é o corpo, para o Novo Testamento quem deve ser vencida é a morte. “Tragada foi a morte
pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” ( I
Coríntios 15:54c,55).

A Bíblia descreve a morte como algo terrível, como um inimigo a ser vencido e mais, como
algo que aniquila toda a vida, não poupando nada, espalhando dor e tragédia, solidão e terror.
Esta mesma Bíblia também aponta para a ressurreição de Cristo como a grande notícia do
evangelho. É na ressurreição do Senhor que reside toda a esperança cristã.
É digno de nota que o processo salvífico engendrado por Cristo tem em seu centro o corpo.
“Isto é o meu corpo oferecido por vós (...). Este é o cálice da nova aliança no meu sangue
derramado em favor de vós” (Lucas 22:19b, 20b). A salvação passa pelo corpo, o Corpo
(sôma pneumatikon) de Cristo. O que Jesus estava entregando era, obviamente, a sua vida -
seu corpo e seu sangue. Sua morte e ressurreição estão no centro e no fim daquilo que Oscar
Cullmann chama de a “história da salvação”. A ressurreição do sôma pneumatikon de Cristo
se reflete diretamente sobre o nosso corpo carnal. Enquanto para o grego o corpo é um
“caixão”, para o cristão o corpo é templo do Espírito Santo. Daí que devemos dar graças a
Deus pela existência do nosso corpo: “Ou não sabeis acaso que o vosso corpo é templo do
Espírito Santo que está em vós e que vos vem de Deus, e que vós não vos pertenceis?
Alguém pagou o preço do vosso resgate. Glorificai portanto a Deus por vosso corpo" (I

70
Coríntios 6:19, 20 - TEB). A esse respeito Silvia Schroer e Thomas Staubli comentam:
“Levar a sério a metáfora paulina do corpo humano como templo do Espírito Santo em todos
os seus aspectos, significa levar a sério a plena presença de Deus na corporalidade e a
inviolável dignidade do corpo humano que daí resulta”.
Ora, tudo o que se disse até aqui nesta conclusão é para acentuar o fato de que a morte e a
ressurreição de Jesus nos servem como paradigma para uma antropologia teológica baseada
no pensamento semítico-bíblico e não no pensamento helenístico- platônico. Ousamos
afirmar que, em que pese a generalizada crença cristã na imortalidade da alma, decorrente da
crença no dualismo antropológico, ainda que esta última de forma escamoteada ou
inconsciente, não há respaldo bíblico que dê suporte e sustentação para tal idéia. Donde então
se originou este pensamento? Como procuramos mostrar no primeiro capítulo desta obra, sua
gênese encontra-se na teologia cristã da patrística a qual se cunhou sob forte influxo da
filosofia helênico-platônica.
Como já foi apontado, fosse este assunto objeto de mera discussão acadêmica, talvez não
merecesse nossa atenção e pesquisa. No entanto, nosso objetivo neste trabalho foi mostrar
que as conseqüências práticas para a vida da Igreja foram extraordinariamente brutais. A
teologia cristã-platônica que tendeu ao menosprezo do corpo e privilegiou uma proposta de
espiritualidade desencarnada, idealista, etérea e gnóstica desembocou em moralismo, em
busca deliberada pelo martírio, em demonização do sexo e da sexualidade, em condenação de
toda sorte de prazeres, em desenvolvimento de uma culpa endêmica na cultura ocidental,
serviu de referência teórica para a defesa da “guerra justa”, da violência física contra as vozes
dissonantes dentro da Igreja, sustentou o genocídio perpetrado pelas Cruzadas, o horror dos
instrumentos de tortura dos tribunais inquisitórios e sua fogueiras que matavam o corpo para
salvar a alma, serviu de suporte para a quase aniquilação dos povos ameríndios, a famigerada
escravização dos povos africanos, a arrogante colonização européia em várias partes do
mundo. No caso da inserção do protestantismo no Brasil gerou repúdio da cultura tropical
tupiniquim naquilo que havia de mais alegre, criativo e belo na sociedade brasileira: seus
ritmos musicais, seus instrumentos de percussão, suas danças regionais, suas festas populares,
seu folclore. Acrescentemos as roupas típicas e próprias para um clima tropical, o prazer e
desfrute de suas belas praias, a espontaneidade do povo, as relações informais e, pecado dos
pecados, a condenação das duas maiores paixões nacionais, o futebol e o carnaval.

É bastante conhecida a afirmação de Rudolf Bultmann de que toda teologia é


simultaneamente uma antropologia. Deus é considerado nas cartas paulinas a partir de seu

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significado para o ser humano. É na encarnação que se revela todo propósito de Deus para os
homens e mulheres criados à sua imagem e semelhança. Na encarnação se dá a “descoberta
real do Deus absoluto”. Nesse encontro com a divindade percorremos esta dupla jornada:
experimentamos o transcendente e o humano ao mesmo tempo. “O específico da experiência
cristã reside em experimentar Deus num homem, Jesus”. “Ele, que é o resplendor da glória e
a expressão exata do seu Ser (...)” (Hebreus 1:3a). Curiosamente, nossa “co-participação na
natureza divina” (II Pedro 1:4) intensifica-se na proporção em que nos aproximamos do
Deus- Ser humano, Jesus de Nazaré. É nesta condição, quando Ele está mais distante de Sua
natureza divina, poderíamos dizer em Sua condição quenótica, que encontramos nossa
verdadeira vocação?. Em Sua humanidade Jesus quer nos apontar um caminho, nos propor,
por assim dizer, uma espiritualidade. A espiritualidade de se ser humano. Talvez por isso
Boff tenha afirmado “a divinização do homem humaniza a Deus e a humanização de Deus
diviniza o homem”. O amor de Deus por Sua criação foi tamanha que por ela Ele se
humanizou. É em nossa plena humanidade que experimentaremos uma verdadeira
espiritualidade, nossa destinação final em direção ao divino.
As angústias de minha adolescência evangélica foram, finalmente, aplacadas!

“Jesus cristo é o Deus encarnado. Também nós, como criaturas de Deus somos seres
encarnados e, é atraves de nossa corporalidade, que nos relacionamos com tudo a nossa
volta.” O estar –no- mundo do homem não é um acidente, mas exprime sua realidade
essencial. Não há ser humano somente corpo matéria, ou somente espírito- imaterial.
Em sua totalidade o ser humano é corporal e espiritual. Tudo ao mesmo tempo.
Qualquer coisa diferente disso é alguma outra coisa, mas não um ser humano.”Porque
no homem só existem um espírito corporalizado e um corpo espiritualizado.

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BIBLIOGRAFIA

O DUALISMO NA TEOLOGIA CRISTÃ-WANDERLEY ROSA

O APOCALPSE DAS IGREJAS- REV.CAIO FABIO

EUNUCOS PELO REINO DE DEUS- Uta Ranke-Heinemann

TODO O CONTEÚDO FOI TIRADO DESTES 3 LIVROS.


90% DO CONTEÚDO FOI TIRADO DO LIVRO- O DUALISMO DA TEOLOGIA
CRISTÃ

MEUS AGRADECIMENTOS AOS AUTORES POR ESTAS EXCELENTES OBRAS,


LIBERTADORAS PARA NOSSAS VIDAS CRISTÃS!

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