2.Loundo-Os Upanisads e o Projeto Soteriológico
2.Loundo-Os Upanisads e o Projeto Soteriológico
2.Loundo-Os Upanisads e o Projeto Soteriológico
RESUMO
Os Upaniṣads são parte integrante fundamental dos textos sagrados hindus, conhecidos
como Vedas. De acordo com a tradição, os Vedas comportam uma divisão dupla em termos
de funcionalidade, operacionalidade e teleologia: karmakhāṇḍa, i.e., “a seção relativa à ação”;
jñānakhāṇḍa, i.e., “a seção relativa ao conhecimento”. Esta última, concebida como
aprofundamento radical da primeira, compreende fundamentalmente os textos dos Upaniṣads
que lançam mão, no contexto da escola filosófica do Vedānta, de uma articulação
argumentativa que visa a um duplo propósito: (i) mostrar que a experiência da multiplicidade,
enquanto desdobramento reificado da dualidade primária sujeito-objeto, está
necessariamente fundada numa ignorância (avidyā) que é ela mesma existencialmente
constitutiva da problemática do sofrimento; (ii) e promover a eliminação dessa ignorância e a
consequente realização da unicidade/união fundamental que subjaz a essa dualidade,
enquanto condição ontológica que promove a experiência definitiva de felicidade e bem-
aventurança. Essa proposta soteriológica que considera o conhecimento do Real como
antídoto do sofrimento será apresentada em seus desdobramentos argumentativos por meio
de uma hermenêutica dos textos sagrados e seus desdobramentos comentariais.
ABSTRACT
1 INTRODUÇÃO
1 Ver, em especial, o ensaio de David Carpenter intitulado “The Mastery of Speech” (CARPENTER,
1994, p. 19-34).
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2 UPANIṢADS E VEDĀNTA: TEXTOS E CONTEXTOS
6 A distinção prevalente entre os termos mokṣa e preman corresponde a outras tantas vertentes de
compreensão da condição última de realização da unidade ontológica que subjaz à multiplicidade:
mokṣa aponta mais especificamente para a realização da unidade enquanto unicidade radical que
promove a diluição das individualidades; e preman aponta mais especificamente para a realização
da unidade enquanto plataforma de re-união que preserva relativamente as individualidades.
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liberto dos impulsos à aquisição subsequente de objetos, reflete uma
instrumentalização peculiar e essencialmente pedagógica da linguagem. Sua eficácia
na eliminação da ignorância e na realização da unicidade/união fundamental entre o
Absoluto Brahman e o si-mesmo (ātman), requer um processo de esvaziamento de
toda e qualquer dimensão de dualidade reificada caracterizada pela ação interessada
na aquisição privatizadora de objetos. Por conseguinte, a realização da
unicidade/união fundamental, ao invés de se consubstanciar numa experiência de um
mundo transcendente - que necessariamente reeditaria contextos de dualidade
reificada – aponta para um evento de compreensibilidade, aqui e agora, do
fundamento ontológico e condição de possibilidade de todo o aparecer fenomênico,
de toda a experiência possível, passada, presente e futura. A suspensão da ação
aquisitiva assenta, portanto, numa cognoscibilidade fundamental: se, por um lado, ela
suprime a ação interessada – i.e., fundada na reificação da dualidade sujeito-objeto –
, por outro, ela inaugura a ação responsável fundada no conhecimento das coisas ‘tais
como elas são’, i.e., enquanto determinações interdependentes de uma ontologia
fundamental.
7 Além dos Vedas, a literatura dos Tantras (ou Āgamas) é igualmente considerada śruti. Uma categoria
subordinada a śruti, denominada de smṛti (lit., “aquilo que lembrado”), inclui, entre outros, a tradição
comentarial em geral, (e.g., os kalpasūtras e os darśanas), e a tradição dos Purāṇas e dos épicos do
Mahābhārata e do Rāmāyāṇa.
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rituais e deveres morais conducentes à obtenção de condições paradisíacas à
posteriori, o segundo se consagra como “filosofia” ou “mística” no sentido estrito de
um processo de aprofundamento religioso, de um exercício reflexivo e devocional de
uma razão e emoção comprometidas com o desvelamento, aqui e agora, do mistério
último que subjaz a todo o empenho humano da existencialidade cotidiana. Há entre
os dois uma delimitação clara de contextos de aplicabilidade existencial e, por
conseqüência, uma ordenação necessária: o primeiro constitui pré-requisito para o
segundo. Em outras palavras, é do esgotamento experiencial do primeiro que
emergem as condições de possibilidade do exercício sistemático e eficaz do segundo.
Decorre, daí, a designação dos Upaniṣads como Vedānta (veda + anta [“fim”] ), i.e., a
parte final, teleológica, destinal dos Vedas. Em síntese, os Upaniṣads constituem os
textos soteriológicos por excelência da tradição indiana.
3 Matizes Hermenêuticas
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Os matizes de apropriação hermenêutica dos Upaniṣads agrupam-se em torno de seis
principais escolas filosóficas, também conhecidas como āstika ou escolas védicas8.
Em função de afinidades doutrinárias, eles se agrupam em três pares: as escolas
Nyāya e Vaiśeṣika, marcadas por um pluralismo realista e, no caso da primeira, pela
explicitação adicional dos princípios da lógica indiana; as escolas Sāṃkhya e Yoga,
marcadas por uma dualidade realista e, no caso da segunda, pela explicitação
adicional dos princípios das práticas meditativas de concentração mental; e as escolas
Mīmāṃsā e Vedānta, esta última marcada por uma realismo unicista/unitivo. Note-se,
entretanto, que a escola Mīmāṃsā não constitui, propriamente, uma escola
soteriológica9, em que pesem desdobramentos controversos nessa direção10. Trata-
se, antes de tudo, de uma escola de exegese védica11 que se debruça,
primordialmente, sobre os princípios de eficácia do ritual; daí sua vinculação mais
imediata com a seção védica relativa à ação (ritual) (karmakhāṇḍa). Note-se,
finalmente, que cada uma das escolas acima possui um cânon de textos básicos e
uma série ininterrupta de comentários e tratados independentes em sânscrito, com
continuidades e desdobramentos contemporâneos.
8 A palavra āstika que dizer literalmente “aquele/aquilo que afirma a existência”, refere-se, de forma
geral, às escolas que aceitam a autoridade dos Vedas e os caminhos de transformação por eles
propostos. Dentre as tradições indianas que se situam à margem da autoridade dos Vedas, incluem-
se o budismo, o jainismo e a escola hedonista/materialista (carvaka).
9 A obra que dá início à escola, o Mīmāṃsāsūtra de Jaimini (séc. IV), é clara com relação à sua inserção
no contexto da seção védica do karmakhāṇḍa (“seção relativa à ação ritual/moral”). Essa vinculação
reflete-se na designação específica da escola como Pūrva Mīmāṃsā (lit., “Hermenêutica
Introdutória”), em contraste com a designação alternativa da escola Vedānta como Uttara Mīmāṃsā
(lit., “Hermenêutica Final”), vinculada à secção védica do jñānakhāṇḍa (“seção relativa ao
conhecimento”).
10 É o caso das obras de Kumārila Baṭṭa (sec. VIII) e Prabhākara (sec. VII).
11 Os princípios da exegese textual, por outro lado, envolvem as chamas “seis regras hierárquicas”
enunciadas pela escola Mīmāṃsā, que se aplicam tanto à seção védica do karmakhāṇḍa quanto do
jñāna-khāṇḍa. São elas: (i) pronunciamento direto (śruti); (ii) sentido da palavra (liṅga); conexão
sintática (vākya); contexto (prakaraṇa); (v) posição no texto (sthāna); (vi) e nome (samākyā).
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explicativa da natureza dos Upaniṣads: os Upaniṣads são vedānta, i.e., a “parte final
ou teleológica dos Vedas”.
Śaṅkarādigvijaya (A Conquista dos [Quatro] Cantos [do Universo] ) escrita por Vidyāraṇya (1986).
16 “A reflexão analítica (manana) e a reiteração meditativa [dessa reflexão analítica] (nidhidyāsana) têm
17 São três as principais escolas que buscam combinar, como dois lados de uma mesma moeda, e
ainda que com pesos específicos distintos, a não-dualidade com a dualidade (dvaitādvata), a
diferença com a identidade (bhedābheda): Bhāskara (séc. VIII), Nimbārka (séc. XIII), e Caitanya
Mahāprabu (séc. XVI).
18 Os três atributos sat, cit e ananta (“existência”, “consciência” e “infinitude”) são termos consagrados
na subescola Advaita Vedānta para expressar as três marcas de Brahman mencionadas no Taitirīya
Upaniṣad,: “Brahman é existência, conhecimento (consciência) e infinitude” (satyam jñānam anantam
brahma) (TAITIRĪYA UPANIṢAD, 1983, 2.1.1, p. 662) Em seu comentário, Śaṅkarācārya observa que
se tratam de atributos “indicativos” (lakṣya) e não “denotativos” (vācya). (ŚAṄKARĀCĀRYA, 1983b,
2.2.1., p. 670-1).
19 “E, então, [esta é] a instrução [sobre ātman]:‘não é isto, não é aquilo, etc.’ ” (arthāt ādeśo nei neti)
20 “Em todos esses casos, não há diferença com relação ao fato de que se trata da apreensão de algo
como sendo outro [algo], tal como ocorre, similarmente, na experiência mundana em que a
madrepérola aparece como prata e uma lua aparece como duas [luas]”. (sarvathāpi tu
anyasyānyadharmāvabhāatām na vyabhicarati / tathā ca loke’nubhavaḥ śuktikā hi
rajatavadavabhāsate ekaścandraḥ sadvitīyavaditi) (ŚAṄKARĀCĀRYA, 1983a, p. 2)
21 Ver a nota anterior.
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outras práticas suplementares de caráter meditativo e devocional. Essa estrutura
pedagógica está fundamentalmente calcada numa tradição oral dialógica,
caracterizada por um processo de transmissão do conhecimento baseado em
“linhagens de mestres e discípulos” (guruśiṣyaparamparā). Segundo da tradição, a
iniciação do discípulo (adhikārin) exige o cumprimento de quatro pré-requisitos
(adhikāra) que constituem outras tantas virtudes éticas, morais e intelectuais
indispensáveis ao empreendimento cognitivo. Os quatro pré-requisitos
(sādhanacatuṣṭaya) são os seguintes: (i) viveka ou “discernimento” e, mais
especificamente, o “discernimento entre o finito e o não-finito”22; (ii) vairāgya ou
“desapego” e, mais especificamente, “o desapego por todos os objetos, deste e doutro
mundo”23; (iii) ṣadsampat ou a proficiência nas “seis virtudes”24; e (iv) mumukṣutva ou
“intenso desejo pela Libertação (mokṣa)”. (SADĀNANDA, 1987, 15-24, p. 9-13) As
duas primeiras são de importância vital pois constituem culminância das demais. Com
efeito, a conjunção de vairāgya-viveka (desapego-discernimento) gera no discípulo
uma convicção firme sobre a condição de não-substancialidade de todo e qualquer
objeto de relação e promove a renúncia a toda e qualquer expectativa de se alcançar,
através do intercurso apropriativo desses mesmos objetos, a eliminação definitiva do
sofrimento. As três disciplinas fundamentais em que se desdobra o método
soteriológico de reflexão racional (vicāra), enquanto aprofundamento radical do
processo de discernimento (viveka), são as seguintes: śravaṇa, i.e., o escutar dos
ensinamentos do mestre; manana, i.e., a reflexão analítica empreendida pelo discípulo
em interlocução com o mestre; (iii) e nididhyāsana, i.e., a reiteração meditativa dessa
reflexão analítica por parte do discípulo.
5 CONSIDERAÇÕE FINAIS
(uparati); (iv) tolerância (titikṣā); (v) fé/conviccção (śraddhā); (vi) e concentração mental (samādhāna).
(SADĀNANDA, 1987, 15 & 19-24, p. 9-13).
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definitiva, os anseios de Verdade (satya) e Bem-Aventurança (ānanda) que
impulsionam a odisseia existencial: a condição de “não-anulabilidade” (abādhitatva)25
e de “ausência de medo” (abhaya)26, atual ou potencial, só é possível em Brahman, lá
onde “não existe um segundo” (advitīya)27.
REFERÊNCIAS