O Noivo Ideal
O Noivo Ideal
O Noivo Ideal
Capa e Diagramação:
Letti Oliver
Revisão e Betagem:
Natália Franco e Lais Prado
Mas são essas as situações em que ela se encontra depois de uma traição, uma
noite de bebedeiras para afogar as mágoas, e um formulário preenchido por
impulso, e agora sua única opção é participar daquele programa estúpido na
esperança de, milagrosamente, conseguir um novo amor — e, de quebra, um
ótimo prêmio em dinheiro.
MARIA FLOR
lessem os próprios nomes em voz alta. Como se não bastasse, ela ainda
exigiu que fizéssemos o ritual constrangedor de levantar e caminhar até a
frente da sala, um tipo de tortura que, na minha humilde opinião, desperta
nelas (as queridas professoras) uma inexplicável onda de prazer, já que não
Pois é. Quem é Ana Júlia e por que, aos doze anos, ela já tinha muito
mais sorte no amor do que eu jamais tive ao longo dos meus recém
adquiridos vinte e sete?
Mas, voltando ao assunto das coisas que eu gostaria de nunca ter lido
— Você não vai sair desse celular? — Alguém berra no meu ouvido,
e a voz soa familiar mesmo com o barulho constante da música eletrônica.
Levanto os olhos e encaro os dois rostos zangados de Alice, minha
irmã mais nova e a responsável por enfiar na minha cabeça que seria uma boa
ideia experimentar alguma coisa alcoólica, dizendo que eu me sentiria bem
melhor depois que bebesse um pouco. O problema é que, na cabeça dela, o
conceito de “melhor” envolve, ao que tudo indica, uma terrível vontade de
vomitar e chorar.
E morrer.
— Eu já sabia que você não era acostumada com bebidas, Maria Flor,
mas você é um desastre completo. Qual é a graça de afogar as mágoas em um
copo de margarita? Um copo!
— Faria alguma diferença se fossem dois? — resmungo, sentindo a
cabeça rodar.
Também não me parece muito coerente ela supor que afogar as
mágoas pode ser algo engraçado, ainda mais se tratando das minhas mágoas,
mas prefiro não contrariar a minha irmã com devaneios bêbados. Bem lá no
meio do meu peito e, mesmo assim, esse buraco de apatia ser a única coisa
que me preenche?
Gostaria de entender em que momento as coisas começaram a dar
errado, e como eu pude ser tão cega a ponto de não perceber.
aceno. "Judas" é como ela apelidou meu ex-noivo depois que combinamos de
nunca mais mencionar o nome dele em vão. — Sua cara diz tudo. Aquele
babaca não vale o seu pensamento. Não merece nem respirar o mesmo
oxigênio que você respira. Ele te traiu, pelo amor de Deus! Pulou a cerca,
— Chama um exorcista?
— Preciso de um pouco disso. — Agarro o copo de Alice.
— Maria, eu não… — Ela tenta me alertar, mas viro todo o conteúdo
na minha boca. — Tarde demais.
uma semana. Dentro de sete dias, eu deveria estar vestida de noiva, dizendo
sim para o homem dos meus sonhos, e agora, aqui estou eu, enchendo a cara,
enquanto ele está…
— Plantando a mandioca — Alice completa com um olhar solidário
que me faz gargalhar.
Puxo minha irmã para um abraço, porque é a primeira vez que eu dou
uma risada sincera desde o fatídico dia. Ela retribui sem pensar duas vezes,
rindo também, e por alguns segundos eu até esqueço onde estamos.
Uma em um milhão?
Há duas semanas, algo assim nunca passaria pela minha cabeça. Mas,
há duas semanas, eu tinha certeza de que meu noivo era completamente
apaixonado por mim.
— Tá bom.
— Eu sabia que você não ia… — Alice para no meio de sua fala,
arregalando os olhos. — Espera, o que você falou?
— Que tudo bem, vamos fazer isso. — Ouço minha própria voz e
sinto que há alguma coisa estranha no que estou dizendo.
mais uma daquelas situações únicas, em que seria ótimo nunca ter sido
alfabetizada.
Talvez, isso me impedisse de fazer a maior besteira da minha vida.
“Uma mulher com o coração partido nem sempre está em busca de alguém
que cole os cacos, senhoras e senhores. Às vezes, tudo o que ela precisa é de
meio milhão de reais, uma viagem para Paris e, de quebra, um cara gato que
seja muito bom em física!”
MARIA FLOR
Existe uma frase na família Pinto de Barros que meu pai ama repetir
sempre que estamos prestes a fazer uma besteira, e que já foi direcionada a
mim mais vezes do que me orgulho de contar: a luz no fim do túnel pode ser
um trem.
Meu pai não é uma pessoa otimista, mas ninguém pode acusá-lo de
estar errado.
Quando ele soube da minha viagem para a capital, eu já estava
preparada para ouvir essas palavras, então não foi nenhuma surpresa quando
ele me abraçou e as sussurrou no meu ouvido, com seu timbre severo de
quem entende da vida. O problema é que, dessa vez, por alguma razão, a
frase ficou impregnada na minha cabeça e não sai nem com poder de reza.
blá, blá blá, prato que se come frio… Mas, quem pode julgar uma mulher por
desejar secretamente uma massagenzinha no ego? Ainda mais uma mulher
traída dias antes do casamento?
Espero mesmo que ele me veja e perceba a mulher fantástica que
detalhes!
— Meu Deus, você está linda! — minha mãe grita, arrancando o
celular da mão de Alice antes que eu consiga responder. Por não ser a pessoa
mais familiarizada do mundo com tecnologias, ela não consegue filmar nada
além do próprio nariz enquanto cola o rosto na tela para me enxergar melhor.
— Parece uma celebridade. Olha querido, ela não está parecendo aquela
cantora famosa? Qual é mesmo o nome dela?
Por uma fração de segundo, meu pai aparece colocando os óculos no
rosto, reparo apenas que cortou a barba grisalha, mas continua usando o
mesmo pijama listrado que minha mãe odeia. Ele não tem tempo de falar
qualquer coisa, porque Pedro se enfia na frente.
— O que fizeram com o seu cabelo? — Meu irmão franze a
sobrancelha direita, girando o boné para trás. — O que é essa coisa na sua
cara?
— É maquiagem, seu idiota! — Alice dá um tapa na nuca dele e pega
o celular outra vez, tentando cumprir (sem sucesso) a difícil tarefa de manter
os quatro dentro da imagem. — Nunca vai arrumar uma namorada com essa
Quero saber dos noivos! Você já viu eles? São bonitos? Estão hospedados no
mesmo hotel que você?
Abro a boca para responder, mas minha mãe se antecipa.
— É claro que ela não os conheceu ainda. A noiva é anônima,
esqueceu? Só vão saber quem ela é no terceiro episódio. Mas devem ser tão
bonitos! No ano passado todos eles pareciam atores de cinema. Jovens,
musculosos, lindos de morrer. Daquele tipo que a gente só vê em filmes e faz
cosquinha no útero, sabem?
Meu pai solta um pigarro ao fundo, que é ignorado com louvor. Meu
irmão, mais inteligente, fica quieto.
— Sei lá, mãe… — Alice pondera, esticando mais o braço, de modo
que, finalmente, consigo ver todos eles juntos no meio da sala de estar. —
Vai que, na verdade, o programa só faz parecer que eles não se conhecem?
Eu pensei que, talvez, eles se vissem antes. Não é uma hipótese tão absurda
assim.
— Faz sentido — Pedro aquiesce, concordando com nossa irmã como
se os dois não tivessem tentado se matar há cinco minutos. Depois, ele se
empertiga, encarando a câmera com uma expressão contrariada. — E aí,
Maria Flor, não vai falar nada?
Resisto à tentação de gritar que "é isso o que eu estou tentando fazer,
seu projeto de gente recém saído das fraldas, mas vocês não calam a boca
Por enquanto, tudo parece legítimo, sem armações. Isso na minha cara, Pedro
Henrique, foi feito para as gravações de abertura. Da próxima vez diga algo
mais educado, como "nossa, querida irmã, você está muito gata, como
sempre". Já sobre hoje, eles basicamente me filmaram sentada em um sofá
vermelho em formato de coração, muito brega por sinal, falando coisas sobre
a minha vida, carreira, família…
— Família? — Pedro se anima, arregalando os olhos verde-musgo
que se destacam em contraste com sua pele negra. Esse moleque vai dar um
trabalho quando crescer que só Jesus na causa. — Você falou da gente? Disse
o meu nome?
— Não, não, eu falei da família Oliveira, os nossos vizinhos.
— Ha, ha. Muito piadista você, Maria Flor. O que falou de mim?
— E de mim? — Alice também pergunta, com a mão no peito. — O
que você falou?
Dou uma boa olhada em cada membro da minha família antes de
responder.
Minha mãe, agora consigo ver, usa um avental cor-de-rosa todo
manchado com molho de tomate; ele forma uma combinação bastante atípica
com as argolas douradas em suas orelhas, as unhas impecavelmente feitas e o
batom vermelho-sangue. Ela sempre diz que as mulheres da família Barros
(sempre ocultando nosso nome do meio estrategicamente) devem estar
prontas a todo momento para qualquer situação, e leva muito a sério essa
filosofia.
Já o senhor Alberto, mesmo mantendo uma distância segura do
tumulto familiar, sentado em sua poltrona preferida enquanto finge assistir ao
jornal, continua atento na conversa — seu sorrisinho o entrega. Meu pai e eu
temos muito em comum, exceto pelo bom senso, pois nesse quesito ele me
ganha de longe. É um homem de aparência intimidadora, alto e com um
ótimo físico, levando em conta seus quase cinquenta e cinco anos, mas o
***
sapo na minha garganta. Tudo bem que ele deve ter idade para ser o meu pai,
mas o homem é tão bonito que fica difícil lembrar dos vinte e tantos anos que
nos separam.
Quem nunca se imaginou sentando em um cara mais velho e gostoso
decidiu procurar o seu noivo ideal? — Ele diz as duas últimas palavras com
um charme que moveria montanhas.
Engulo em seco, pensando em mil maneiras diferentes de escapar da
pergunta sem precisar fingir um desmaio.
conhecê-los?
Eu poderia dar um beijo nele por mudar de assunto (eu poderia dar
um beijo nele, ponto).
Ultimamente tenho pensando muito em beijos, e outras coisas
também, que envolvem uma cama, quatro paredes e nenhuma roupa. Acho
que a falta de sexo faz isso com as pessoas e eu nunca percebi até ficar sem.
— Muito! Quer dizer, é por isso que estou aqui, certo? — E pelos
quinhentos mil reais. — Mas eu não iria tão longe dizendo que eles precisam
colar o meu coração ou coisa parecida. — Reflito um pouco, deixando de
— E isso seria…?
— Uma secretária, é claro.
Rimos juntos. Ele, achando graça, e eu, de desespero mesmo. Quando
penso em coisas ideais que um homem precisa para chamar a minha atenção,
a lista envolve todas as principais características daquele ser que estou
tentando arrancar da minha cabeça. E, como o objetivo é seguir em frente,
melhor não cutucar o vespeiro com a vara curta, afinal de contas, a carne é
fraca e a tentação está aí pra gente cair nela.
— Medo que um raio caia duas vezes no mesmo lugar? — Olho para
Miguel, piscando uma vez demoradamente, até entender que ainda está se
referindo ao meu comentário sobre a secretária.
— Bom, quem sou eu para desafiar as leis da física? Melhor não
arriscar.
— Justo. — Miguel aquiesce, satisfeito com a minha resposta. Com
um jogo de cintura notável e pra lá de galante (típico de artistas de televisão
lindos de morrer), ele acrescenta: — Até porquê, se quisermos desafiar
alguma lei da física neste programa, que seja a lei da atração, não é mesmo?
Eu quase falo que prefiro testar aquela sobre dois corpos ocuparem —
ou não — o mesmo espaço ao mesmo tempo, mas o diretor coloca um fim à
gravação com grito, salvando-me da vergonha nossa de cada dia.
Assim como no dia anterior, todo mundo bate palmas e agradece pelo
— Ex-noivo.
— Isso, desculpe, seu ex-noivo. — Miguel parece meio… Nervoso?
Ansioso? Não sei. Mas acho estranho. — Ele sabe que está aqui?
— Não. — Olho para ele de esguelha, sem parar de andar. Meu
camarim está próximo e a assistente já me aguarda na porta. — Por que a
pergunta?
— Nada demais — responde depressa, sua voz soando meio fina. —
Boa sorte amanhã com os noivos.
— Eu vou precisar? — digo, tentando fazer graça, mas Miguel Castro
parte.
“Todo mundo conhece a suprema lei de Murphy: se alguma coisa pode dar
errado, ela certamente dará. E mais, dará errado da pior maneira, no pior
momento e de modo que cause o maior dano possível. Sendo assim, o que
vale mais a pena: esperar pelo melhor resultado e acabar se frustrando, ou
esperar pelo pior e, bem... receber o pior? Porque o pior, meus amigos, ele
certamente virá!”
JUDAS
idiota sou eu e mereço ser punido pelas escolhas que fiz e que causaram tanto
sofrimento à minha mulher. Mas a merda do arrependimento não diminui a
falta que Maria Flor me faz ou o quanto sua ausência está afetando a minha
mente e me deixando louco.
Louco ao ponto de achar que a gente ainda pode dar certo, que eu
consigo amolecer aquela pedra de gelo que ela carrega no lugar do coração. A
mulher da minha vida possui muitas virtudes, mas ser complacente não é uma
delas. Eu diria, inclusive, que seu principal charme é o temperamento do cão
que deixa qualquer pessoa choramingando com o rabo entre as pernas.
Aquela peste sempre me teve na palma das mãos e agora eu
simplesmente não tenho mais propósito algum além de correr atrás do
prejuízo. Eu correria a São Silvestre inteira se ela estivesse me esperando no
final, mas conhecendo Maria Flor como eu conheço, seria mais fácil ela me
enforcar com a faixa da linha de chegada do que me parabenizar pela vitória.
Eu soube, naquele milissegundo em que nossos olhares se cruzaram
quando tudo aconteceu, que a tinha perdido. Escutei seu coração se
despedaçando junto com o meu, o amor sendo consumido pelo pior tipo de
mágoa que existe: a traição. E soube também que seria impossível obter o seu
perdão com palavras vazias e explicações sem sentido.
Inferno! Eu jamais me perdoaria se estivesse em seu lugar, nunca
acreditaria em qualquer desculpa esfarrapada que fosse. Mas, por uma grande
ironia do destino, minha única chance de não perder a minha rosa cheia de
espinhos (para sempre), é tentando convencê-la das maiores desculpas
esfarrapadas contadas por cafajestes de todos os tempos: que aquela situação
"não era nada do que ela estava pensando" e que "eu posso explicar tudo".
MARIA FLOR
satisfação. É aquele sorriso meio torto, meio estranho, sem muitos dentes
aparecendo e que não faz jus à maquiagem delicada em meu rosto.
É um sorriso de desespero! Puro e sólido.
Sério, em que mundo da imaginação da Xuxa eu estava vivendo
quando achei que seria uma boa ideia participar desse programa? O dinheiro
é ótimo, a chance de viajar para outro país também, e a vergonha nacional
nem é algo tão ruim se levarmos em conta que as minhas redes sociais vão
lotar de seguidores (algo que pode ser muito benéfico para mostrar o meu
mas é um cretino traidor que sabe muito bem como bajular uma mulher e
colocá-la no topo do mundo com algumas frases feitas e um sorriso matador
de neurônios (e de calcinhas).
E aqui estou eu pensando no embuste… de novo!
Parabéns, Maria Flor, o amor próprio mandou lembranças.
Fico de pé e começo a andar de um lado para o outro, destruindo o
trabalho da manicure que fez um milagre ao pintar os cotoquinhos de unhas
roídas das minhas mãos. Fazer o quê? É roer as unhas ou fugir correndo para
as colinas, já que o sofrimento é o meu pastor e a ansiedade não me faltará.
— Você consegue — digo para mim mesma, em voz alta, que é pra
ver se eu acredito. — Você vai lá, vai conhecer os seus pretendentes, analisar
cada um deles e fazer comentários inteligentes para a câmera. E, se tiver um
pouquinho de sorte, talvez até se apaixone à primeira vista! Olha só, que
***
do diretor para começar seu discurso. Claramente, não sabe que estou atrás
do espelho a poucos metros dele, já que não lançou nenhum olhar na minha
direção. Isso me deixa um pouco mais tranquila, como se eu tivesse uma
espécie de vantagem em relação a eles.
Deve ser estressante ser o primeiro e, analisando bem, dá para ver que
está nervoso: ele balança a perna direita incessantemente e parece não
encontrar lugar para as mãos, hora as pousando sobre o colo, hora nos
cabelos pretos e muito lisos. Ele tem um rosto anguloso, com traços asiáticos
mais do que charmosos e um olhar sério que faria qualquer cérebro feminino
(e alguns masculinos também) derreter. Sua camisa formal, com os primeiros
botões abertos e o princípio de um peitoral definido à vista, é um charme à
parte e muito bem-vindo para o meu entretenimento.
acabou justamente por causa das minhas ausências. — Ele faz uma careta
engraçada e murmura algo em coreano que não entendo. — Mas essa é a
magia do programa.
— Como assim? — Miguel questiona, ecoando novamente o que eu
gostaria de saber.
Leonardo dá de ombros e responde:
— Geralmente, quando nos apaixonamos por alguém do cotidiano, as
informações sobre as nossas vidas pessoais vêm com o tempo e nem sempre
são o que a gente esperava, mas, como o amor já existe, a gente se esforça
para fazer dar certo e, mesmo assim, muitas vezes não é o bastante. Mas aqui,
nós estamos nos expondo, colocando os detalhes na mesa antes mesmo dos
nossos corações. Ser escolhido significaria ter alguém ao meu lado que me
quer independente da minha profissão, que não vai precisar se esforçar e se
desgastar por causa disso. Gosto da ideia de que não importa quantas horas e
dias estaremos longe um do outro, e sim o que faremos de especial quando
estivermos juntos.
Caramba, ele é bom.
É um jeito bonito e romântico de dizer que ele quase nunca vai ter
tempo para mim? Sim. Que seu trabalho é esse e eu que lide com isso?
Também. Mas entendo o seu lado, e sei o quanto é importante dividir a vida
com alguém que compreende e apoia nossos sonhos, sobretudo um tão lindo
não conversar muita coisa já que haverá episódios específicos para isso, no
máximo um cumprimento para quebrar o gelo inicial. Também sei que as
impressões de cada um sobre este primeiro contato serão gravadas
individualmente, sem a minha presença, o que só me deixa mais nervosa.
— Acho que você pode colocar em mim agora. — Isso soou tão
errado, Maria Flor. — As mãos! — E VAI COLOCAR O QUE, Ô
DESGRAÇA? — No caso, as suas mãos. Pode colocar as suas mãos em mim,
no meu rosto… especificamente.
É melhor eu calar a boca e os meus pensamentos também, porque é
cada besteira…
— Com licença — ele sussurra, sem parar de sorrir, erguendo a mão
direita com cautela.
Por não ter muita noção de onde estou, ele avança devagar e eu o
ajudo, inclinando ao seu encontro. São os dedos precisos e gentis de um
cirurgião, suaves como uma brisa da primavera, mas firmes como um raio.
Ouso dizer que nenhum dos outros quatro rapazes conseguirá me ver tão bem
quanto ele e sua experiência manual. A imagem que Leonardo provavelmente
está criando de mim em sua cabeça, enquanto acaricia o côncavo dos meus
olhos, desliza para a ponta do meu nariz e segue até a linha do maxilar, deve
ser quase um retrato perfeito.
— Aleumdaun — sussurra em seu coreano sensual, puxando uma
respiração profunda que faz seu peito inchar. Não sei se isso é bom ou ruim,
mas sua mão recua, encerrando o contato.
***
Oi, Deus, sou eu de novo. Mesmo dia, mesma situação, outro cara.
Outro cara maravilhoso.
Maurício Reis é o seu nome, e já deu para perceber que é um
pouquinho mais esperto do que Leonardo: desde que chegou, já olhou de
esguelha para o espelho pelo menos três vezes. Sabe que estou aqui, ouvindo
cada patifaria que sai de seus lábios grossos moldados em um constante
sorriso orgulhoso. Ele é quatro anos mais novo do que eu e, sendo bem
honesta, nunca me envolvi com alguém tão jovem, mas tudo tem uma
primeira vez e eu teria várias com ele numa boa (a mais importante já se foi,
mas existem coisas melhores e menos dolorosas na fila).
Ele parece uma pessoa fácil de conversar, daquele tipo que fala
demais sobre tudo e todos sem nenhuma ressalva, e que preenche cada
segundo com sua voz nos livrando da obrigação de fazer perguntas ou
procurar um assunto em comum. É estranho porque isso me faz pensar que
ele se daria muito bem com a minha família. Consigo visualizá-lo à mesa em
um almoço de domingo, fazendo piadas e expondo nossas intimidades só
para me irritar.
Ele é simples de entender, um livro aberto, e ter tirado tantas
conclusões a seu respeito em tão pouco tempo só comprova isso.
— É claro que sim — responde, após Miguel perguntar a ele se
— Já deu para ver que é um homem que sabe o que quer e não se
abstém de dizer o que pensa. Não tem medo de assustar a noiva?
— Sexo faz parte de qualquer casamento. — Maurício acena com a
mão, desdenhando da pergunta. Depois, cruza seus braços, evidenciando os
bíceps de nadador profissional. — Ela, assim como todo mundo que está nos
assistindo, sabe que dentre os prêmios existe uma viagem de lua de mel à
Paris. Até onde eu sei, o que um casal faz na lua de mel é de conhecimento
universal.
Errado ele não está.
tivesse uma consciência muito sólida de mim, pois inclina o rosto de maneira
precisa (e muito suspeita, diga-se de passagem) no ângulo do meu.
Ele não é tão alto, mas tem os ombros largos e rígidos de um nadador,
além da pele negra bronzeada de quem ama exibir o próprio corpo na piscina.
Usa uma roupa bem casual, composta por calça jeans apertada nas coxas — e
que coxas — e uma camiseta simples com a frase "I Want You" estampada
na frente. A mensagem subliminar me faz sorrir.
Diferente de Leonardo, Maurício não pede licença. Ele segura meu
queixo, quase como se soubesse da minha distração com a frase e quisesse se
invasivo, mas a força com que segura meu queixo me faz sentir coisas em um
campo abandonado ao sul que eu preferiria não sentir na frente das câmeras.
Por seu sorrisinho cínico, tenho certeza de que consegue me ver muito bem
através de alguma fresta em sua venda, mas decido não entregá-lo para a
produção.
Ele vai aprender em breve que não sou um espólio de guerra, e que os
outros quatro participantes não são seus principais concorrentes. A única
pessoa que precisa vencer aqui sou eu e não está nos meus planos facilitar a
vida de ninguém.
Mordo seu polegar com força e ele puxa a mão de volta, resmungando
pela dor.
— Porra — reclama, mas consegue manter o sorriso para a alegria dos
produtores.
— E então, é o seu número? — Eu o alfineto para deixar bem claro
que não sou idiota e sei o que estava insinuando ao medir minha boca
daquela forma.
Não nasci ontem, amigão. Posso ser trouxa às vezes, mas não sou
santa.
Maurício, surpreendendo-me, já que eu esperava irritá-lo um
pouquinho, leva o polegar à própria boca e, no tom mais radiante e satisfeito
possível, diz:
— Totalmente.
***
***
Fica bem evidente que é o mais alto dos homens até agora e, por
alguma razão, tenho a sensação de já ter visto seu rosto antes, mas isso é
impossível… eu acho. Ele tem um corpo atlético, típico de pessoas que
praticam exercícios há anos, provavelmente conhece vários esportes
diretor — meu nome é João Guilherme Monteiro, tenho trinta anos, sou
empresário e fundador da Nutra, uma franquia especializada em produtos
naturais e alimentação saudável. Não quero soar arrogante nem nada assim,
mas acho que algumas pessoas já devem ter ouvido falar de mim por aí, ou
pelo menos das minhas lojas.
Ai. Meu. Deus.
Eu o conheço!
Quer dizer, não o conheço pessoalmente, mas sei quem ele é
história antes.
Eu não queria, mas minha mente, que já não é das mais puras,
materializa a imagem na minha cabeça: nós dois em uma cela, um chicote na
minha mão, ele de joelhos… sim, porque eu me recuso a ser a sonsa que
não é macio como o de Leonardo, mas áspero, aquela pele crua com alguns
calos de quem levanta muito peso.
Com os polegares, traça minhas maçãs do rosto, resvala brevemente
sobre meus lábios e sobe para as têmporas, circundando toda a minha face
com atenção. Ele faz caretas, franze as sobrancelhas e crispa os lábios, acho
que tentando montar uma imagem na mente.
Um tempo depois — mais longo do que o diretor havia determinado e
mais rápido do que eu gostaria — ele se afasta.
bem apertados.
Na maior inocência (e cara de pau), respondo:
— O que você acha?
***
também. Mas preciso analisar mais de perto para ter certeza. Ele dá um passo,
cruza a linha do arco e o vejo por inteiro.
Arfo, confusa.
O que Judas está fazendo aqui?
“Atenção! Dizem que o amor e o ódio podem ser confundidos com grande
facilidade. Os sintomas de ambos incluem: palpitações no peito, mãos
geladas, sensação de desmaio e falta de ar. O autodiagnóstico pode custar a
sua vida (romântica). Ao persistirem os sintomas, um programa
casamenteiro deverá ser consultado.”
MARIA FLOR
— Meu nome é Calebe Ventura — ele diz com uma voz rouca e
grave que entra pelos meus ouvidos e se esparrama por todo o meu corpo
do dia, das semanas e meses, por serem especiais demais (doce ilusão), mas
aquelas tentando se desapaixonar são diferentes. A gente prefere fechar os
olhos a enxergar os ponteiros do relógio, torcendo para que isso os faça
passar mais depressa.
Bom, aqui vai um spoiler sobre a vida: o tempo não cura, ele no
máximo faz a gente esquecer a dor, esperando o momento certo para enfiar o
dedo na ferida.
De todas as possibilidades imagináveis, em uma coisa eu estava
(ironicamente) certa: o quinto pretendente é tão lindo quanto os anteriores.
Fazer o quê? É a triste realidade, posso ser corna, mas não sou hipócrita.
Calebe é um homem bonito e ninguém pode negar.
Seu corpo alto e tonificado foge daquele estereótipo bombado que a
casarem comigo. O que essa cria de satanás está fazendo aqui? Ele não tem
como saber que sou a noiva — eu espero — e nem se o papa aparecesse
agora para abençoar nossa união, eu aceitaria me casar com ele. Então…
QUAL O SENTIDO?
É castigo? Será que estou sendo punida por todas as vezes em que me
imaginei cometendo um crime contra a virilidade dele?
O choque me deixa paralisada, sem reação. Fantasiei muitas vezes
como seria nosso reencontro, mas nunca, nem nos meus pesadelos mais
loucos, pensei que seria em um programa de televisão. Não sei o que fazer,
ou sentir. Não sei se quero chorar, ou gritar, ou sair correndo de volta para
casa como uma criança em busca do colo da mãe. Ou se quero apenas jogar
um microfone na cabeça dele como a boa barraqueira que habita em mim.
apresentador bufar. Será que está irritado com Calebe? Ele não foi tão
insistente assim com os outros participantes. Não que eu esteja reclamando,
longe de mim. Ver Calebe encurralado me causa uma incrível sensação de
prazer.
dança.
Pelo meu ritmo furioso.
Calebe olha diretamente para mim, formando uma conexão entre
nossos olhares, uma ponte muito longa que me lembra o quão distante
estamos um do outro e o quanto já fomos próximos. Ele salta do balanço, mas
não se aproxima, fica ali, parado, com as sobrancelhas caídas, mãos nos
bolsos, um véu de seriedade encobrindo suas verdadeiras emoções.
Não parece surpreso ao me ver, como eu fiquei ao vê-lo. Ele já sabia,
percebo mentalmente. Não sei como e muito menos porquê, mas Calebe
Ventura sabia que eu estaria aqui hoje. Nosso reencontro não é uma
coincidência, e essa certeza me deixa ainda mais enfurecida, se é que isso é
possível.
— Girassol… — Ele tenta dizer, mas eu o corto, fingindo que o
apelido não me atinge em cheio como uma bala perdida no meio do peito.
— Não me chame de Girassol! — Aponto o dedo indicador para ele.
— Você não tem mais esse direito. Nem de Girassol, nem de Lírio, nem de
Rosa, nem de flor alguma! — vocifero entredentes, referindo-me aos apelidos
carinhosos que ele usava para mim quando estávamos juntos. — O que você
está fazendo aqui, Calebe?
Ele inspira profundamente, seu pomo de Adão sobe e desce,
entregando o nervosismo que tenta esconder com afinco.
direção, mas para no meio do caminho assim que ergo a mão, indicando que
não o quero por perto.
O problema dele é ser tão perfeito na maioria das coisas.
— Entendo que esteja com raiva e que não queira ver a minha cara
entendo com ela, obrigada. E, caso não se lembre, quem jogou a nossa vida
no lixo, foi você quando achou que seria uma boa ideia acompanhar a sua
querida secretária ao motel mais próximo, sabe? Aquele na rua vai com Deus,
no bairro para a puta que pariu?
Calebe rola os olhos para trás, começando a se irritar com meu
deboche.
Não posso fazer nada, é o meu mecanismo de defesa. Alguns gritam,
outros choram, há aqueles que sabem conversar com calma, e os que partem
para a violência. Já eu, debocho! Melhor dar uma de maluca do que correr o
risco de cair na lábia dele. E Calebe Ventura tem uma lábia tão boa que às
vezes até ele acredita nas merdas que fala (e eu também).
— Aquilo foi um mal-entendido — repete.
— Claro, eu imagino. Faz todo sentido mesmo. Como foi? Ela falou
que queria uma linguiça e você achou que estavam indo ao açougue?
— Maria Flor! — reclama, como se tivesse o direito. Olha ao redor e
dá um sorriso sem graça. — Será que a gente pode conversar em um lugar
mais reservado?
— Tipo um cemitério? Enquanto você fala, eu vou cavando a sua
cova. Parece ótimo.
— Você é tão quinta série — resmunga, fazendo bico.
Tento manter a compostura diante de sua feição contrariada, mas não
namoramos por muito tempo e nosso noivado acabou, como vocês já sabem,
depois que ele me traiu. Deve haver alguma regra contra a participação dele.
Não é justo com os outros pretendentes, Calebe já me conhece, seria uma
vantagem enorme. Além do mais, eu deveria ser uma noiva anônima para os
cinco, e ele já estragou a dinâmica.
— Eu não traí você.
Ignoro.
— Na verdade — Miguel diz — não é bem assim. Na segunda
temporada tivemos um participante que era apaixonado pela noiva desde o
mesma, com muita vontade de ouvir sua voz sussurrando o apelido no meu
ouvido.
— Não me…
Mas Calebe já está se afastando, e eu fico parada, olhando suas costas
MARIA FLOR
Eu não sei o que é pior: ser traída pelo noivo, ou pelo próprio pai.
— Não acredito que o senhor contou para o Calebe. — Ando pelo
quarto com o celular na mão, em uma vídeo-chamada com Alberto de Barros,
meu pai, mais conhecido como Beto. — Você deveria me apoiar, ficar do
meu lado, não me jogar na boca do leão.
— E o que você queria que eu fizesse? Ele apareceu aqui igual um
louco quando ficou sabendo que tinha saído da cidade. Estava desesperado,
chorando, eu fiquei com pena.
— Com pena dele? Tinha que ter pena é de mim que sou sua filha!
— Vocês precisam conversar, Maria Flor. Ele me contou o que
aconteceu e…
— E o senhor acreditou nele? Pai, o Calebe tem aquela cara de
Mas ele está se expondo em rede nacional, isso deve valer alguma coisa. Sei
que está magoada, e tem todo o direito de estar, mas se tem uma coisa que eu
aprendi com a idade, é que não vale a pena a gente se apegar ao orgulho
ferido quando o que está em jogo é a nossa felicidade.
— Eu estou feliz — digo teimosamente, não por ser a verdade, mas
porque eu desejo me sentir assim, preciso acreditar que estou bem sem ele
para que, eventualmente, isso se torne realidade. — Sei o que eu vi, não sou
idiota. O que o senhor ia pensar se flagrasse a mamãe na porta de um motel
com uma carranca reprovadora. Ele rumina meu afronte, e eu seguro a risada.
— Tudo bem, você está certa. — Cede à contragosto. — É mais fácil
falar, do que fazer. Você tinha que ser tão cabeça dura?
— Tive a quem puxar. — Sorrio, orgulhosa. — Sei que o senhor
gosta do Calebe e sente falta dele, mas o que a gente tinha… — Engulo em
seco, a saliva desce asperamente pela minha garganta. — Acabou. Em breve
eu vou me casar e o senhor terá um novo genro, é melhor ir se acostumando
com a ideia.
— Bom, eu tentei. Sinto muito, está bem? Sou apenas um pai velho e
senil tentando ajudar a filha. É um crime tão grave assim? — Suspira,
dramatizando. Não me parece nem um pouco arrependido por ter entregado
meu paradeiro a Calebe, mas qualquer argumento que usemos depois de ele
recorrer aos termos “pai”, “velho” e “senil”, faz a gente parecer um monstro
sem coração, então eu me calo. — Agora é tarde, ele já está aí. E, se
conheço bem aquele rapaz, não vai desistir até resolver as coisas.
— Boa sorte para ele — pestanejo, disfarçando a fagulha de euforia
que acende no meu estômago. Meu pai está certo, Calebe não vai desistir tão
fácil. — Nada do que ele disser ou fizer, vai apagar aquilo que eu vi com os
meus próprios olhos. Se ele é mesmo tão inocente como anda dizendo, então
por que não me procurou antes? Por que não foi atrás de mim quando juntei
as malas e fui embora? Por que esperou tanto tempo?
aguento mais perder para a sua mãe e Alice. Desde que você terminou com o
Calebe, elas ficaram insuportáveis.
Na verdade, meu pai é um péssimo jogador, mas Calebe nunca teve
coragem de confessar, e por ser muito habilidoso, tinha sempre que ganhar
pelos dois.
— Pode deixar. — Sorrio. — Eu amo você.
— Também amo você, querida. Boa noite.
***
que eu.
Como não sabia para onde eu seria levada, calcei um par de tênis
brancos com um vestido, e só por precaução joguei uma jaqueta jeans por
cima dos ombros. Pareceu muito apropriado para seja lá o que ele tinha em
mente de madrugada (convenhamos, o dia só começa das dez em diante), mas
agora, sentada à mesa de um restaurante requintado (e quase vazio, mas não
vou mencionar o horário de novo) vejo que minha escolha foi precipitada.
Leonardo não parece se incomodar, mesmo vestido com um terno de
para me agradar.
— E você toma café da manhã todos os dias às seis horas?
— Você não?
OLHA BEM PARA A MINHA CARA.
— Uau, agora eu fiquei curiosa. Sinto muito, mas vamos ter que
maratonar juntos todas as temporadas para você me falar as coisas que tem de
errado.
— São muitas temporadas — ele observa, mas tampouco se queixa.
ar na garganta dele.
— Ah, seria um encontro inesquecível, porém muito injusto.
Dificilmente os outros participantes teriam alguma chance com você, depois
que me visse fazendo uma traqueostomia no chão de um restaurante.
sanitárias pelas próximas dez horas, fingindo uma dor de barriga, mas me
lembro que Leonardo é médico e a última coisa que eu preciso é dele
examinando a minha falsa caganeira.
Acabei não comendo nem metade da panqueca, o suco ficou
esquecido em cima da mesa, e eu ainda preciso de cafeína. O problema é que,
quando Leonardo me perguntou o porquê de eu não estar comendo, o espírito
da Pitty baixou em mim, me desconfigurou, e eu sofri uma pane no sistema:
ao invés de dizer a verdade, respondi que estava cheia.
Me recuso a deixar que ele estrague o meu primeiro encontro e vou fazer de
tudo para tirá-lo da minha mente. Leonardo é atencioso, romântico e
cuidadoso. Vejo que está se esforçando e não posso negar que seu jeito
inteligente derruba todas as minhas defesas. Só uma idiota perderia seu
não consigo decifrar. Seus olhos estão fixos em um ponto vazio do chão, e
sob a pouca iluminação do corredor, o tom de verde de suas íris, que eu
sempre associei à cor do oceano no horizonte, parece sombrio e tempestivo
demais.
É estranho, uma expressão que não combina com ele. Calebe é o
responsável por empunhar a espada que partiu o meu coração ao meio, mas
eu nunca vi um olhar tão vulnerável e perdido em seu rosto.
— Calebe. — Seu nome foge dos meus lábios de forma quase
inconsciente e ele se empertiga, despertando do transe.
minha vontade.
— Pra você.
— O que é isso? — indago por puro despeito, pois já sei a resposta.
— Veneno — ironiza, entortando o nariz. — É café, Maria Flor.
— E por que você acha que eu vou aceitar? — Teimo.
Calebe bufa e se aproxima.
— Estou te fazendo um favor, seja boazinha e me agradeça.
— Virou masoquista, Calebe? Tá parecendo que quer ganhar um
socão. — Apesar de dizer isso, eu pego o copo, afinal de contas, é café e não
faria isso.
— Então, não me resta escolha a não ser te fazer companhia.
Assopro o café e tento beber o mais rápido possível. Calebe,
sorridente por seu planinho ter dado certo, também corre para se esconder das
pescoço tonificado.
Continuo bebendo meu café, mas minha mente não para de trabalhar.
Se ele está se escondendo da produção, significa que não pode estar aqui. Se
for pego, talvez seja até expulso. Uma mulher esperta aproveitaria a chance
para se livrar dele, mas já sabemos que a minha esperteza só funciona até
certo ponto.
O ponto se chama Calebe, codinome Judas.
— Então, o que veio fazer aqui? — pergunto, notando que o silêncio
só me torna mais consciente dos centímetros que nos separam.
você como se fosse um pedaço de carne sem poder fazer nada. Colocaram
nós cinco dentro do mesmo apartamento para gravar nossas conversas e tem
sido um inferno responder as perguntas deles sobre você.
— Então, eles sabem sobre nós dois?
— Ficaram sabendo, era inevitável depois do que aconteceu no
estúdio.
— E exatamente o que eles perguntaram a meu respeito?
Calebe emite um riso nasalado e sou atraída pelo som. Ao olhar para
estava mesmo ouvindo a nossa conversa — é a mais pura verdade. Não sei
como viver sem você, Maria Flor, mas também não quero ser o causador do
seu sofrimento. Eu não aguento ver você sofrendo.
Nenhum homem gosta de ver sua mulher sofrendo, recordo-me.
— Por que está dizendo tudo isso do nada? — indago, cruzando os
braços na frente do corpo para disfarçar o meu tremor, que pode ser o
primeiro indício de uma recaída, ou a vontade de cometer uma agressão
contra ele. Os dois casos são péssimos.
fazer o segundo.
Ele desdenha da minha observação com um aceno.
— A regra não se aplica a mim.
— Quem disse?
LEONARDO
Ela odiou.
Está escrito na cara de Maria Flor que nosso encontro foi um
completo desastre e a culpa é toda minha por ter ideias estúpidas. Primeiro
encontro decente? Acho que nem meus avós são tão antiquados.
Olho de esguelha enquanto caminhamos lado a lado e a vejo distraída
com a paisagem, sorrindo para um grupo de crianças que brinca em um
parquinho bem precário do outro lado da rua. Dispensar o motorista e
acompanhá-la até onde está hospedada também foi ideia minha — mais uma
péssima ideia, claro, levando em conta a distância de duas horas entre o
restaurante e o hotel. O que há de errado comigo?
— Pena que eu não trouxe a minha câmera — ela comenta de repente,
parando de andar com os olhos brilhando para cena que se desenrola entre as
crianças. — Queria fazer algumas fotos desse lugar.
Encaro o cenário sem o mesmo encantamento. A maneira como ela
analisa o mundo é bem peculiar, há sempre um deslumbre raro no fundo de
suas íris amendoadas que me tiram o fôlego.
Ela é linda.
Mesmo que não estivéssemos participando de um programa
televisivo, Maria Flor teria minha total atenção se nos esbarrássemos por
acaso no meio da rua. Ela não é do tipo que passa despercebida, e a cada
segundo fica mais difícil prestar atenção em qualquer coisa que não seja a sua
beleza, o rosto muito delicado e charmoso, o sorriso cheio de uma travessura
contida e suas curvas divinamente desenhadas para a completa ruína dos
homens.
limite:
— Já ouviu aquela frase de que pimenta no cu dos outros é refresco?
Troque pimenta por filhos e cu por conta bancária e o efeito será o mesmo.
Gosto muito de crianças. Crianças dos outros. Não penso em ter filhos em
um futuro próximo. — Torce o nariz e acrescenta: — Nem em um futuro
distante.
Coloco as mãos nos bolsos e me viro para ela, sentindo o riso fácil
fugir dos meus lábios. Maria Flor, além de bonita, é divertida, agradável,
autêntica... meu Deus, sua lista de qualidades é extensa demais.
de plantão.
— Acho bonito como fala deles. Meus pais também são um exemplo
para mim. — Maria Flor sorri e olha para cima, buscando a minha atenção.
— Mas não sei se posso contar com eles para conselhos amorosos.
— Como assim?
— Meu pai ainda não superou o fim do meu noivado — confessa,
espantando-me. Que tipo de pessoa é Calebe Ventura para ter o apoio do
sogro mesmo após trair sua filha? Estranho…
Prefiro não invadir o espaço de Maria Flor com perguntas sobre seu
estratégias no jogo.
Encabulada, Maria Flor volta a sorrir de uma maneira perigosamente
formidável. Ela tem o seu lado forte e desbocado que são admiráveis, mas
esse outro, o lado meigo, me desmonta inteiro.
— Você me pegou — confirma minhas suspeitas. — Meu pai ama
jogar em família e preciso arrumar um genro à altura do anterior nesse
quesito.
Finjo não perceber seu elogio velado — e inconsciente — a Calebe.
mais tranquilo. Ele gosta de dar conselhos de “homem para homem”, seja lá o
que isso significa na cabeça dele. Quando eu contei que tinha conseguido
entrar no programa, ele falou que eu só precisava ter em mente uma coisa.
Faço suspense. Maria Flor aperta minha mão e pergunta, interessada,
a voz exalando expectativa:
— Que coisa?
— Que em um bom casamento, uma pessoa está sempre certa, e a
outra é o marido.
algo que me animasse de verdade, já que levo minha profissão muito à sério.
E agora, aqui estou eu, rendido pela maneira única com que Maria
Flor pronuncia um simples doutor no final de uma frase solta.
— É ruim ser confiante?
Faltam poucos metros para chegarmos à entrada do hotel, e por mais
devagar que a gente ande, nossa despedida é iminente. Continuamos de mãos
dadas e a textura macia de sua pele não é uma sensação que esquecerei tão
cedo, menos ainda uma que eu gostaria de me desfazer.
quem sabe a noite também. Faz muito, muito tempo que não divido tantas
horas do meu tempo com alguém que não seja um paciente ou colega de
trabalho.
— Não quis te deixar magoado — explica, erguendo o rosto. Passeia
a ponta da língua pelos lábios de modo convidativo e minha visão turva se
prende às linhas que delimitam sua boca úmida. — Mas tudo bem, a cafeína
ajudou.
Chegou a hora.
A despedida.
Ao invés disso, como sou um idiota que tem ideias idiotas, eu digo:
— Não me lembro de termos pedido café.
Estranhamente, os olhos de Maria Flor quase saltam das órbitas e ela
recua alguns passos, tropeçando nos degraus.
— Olha só a hora. — Encara o próprio pulso, no qual não há relógio
algum. — É melhor eu entrar.
— Mas...
Não tenho a chance de protestar, ela corre até alcançar o último
degrau.
— Leonardo? — Maria Flor me chama lá de cima, ofegante pela
subida rápida, e, se eu estava gostando de ser chamado por ela de doutor,
nem se compara à sensação de ouvir meu nome sendo dito por sua voz
ansiosa. — Só mais uma coisa: o encontro, humm... o encontro não foi uma
droga completa — declara, pouco antes de sair correndo para dentro do
prédio.
“No escurinho do cinema tudo pode acontecer. Enquanto uns assistem o
filme, outros aproveitam para colocar a mão naquele lugar, e aquele lugar na
mão. A boa notícia é que as nossas câmeras não perdem nenhum detalhe,
mas é sempre bom lembrar que não somos os únicos de olho em tudo o que
acontece.”
MARIA FLOR
Foi assim que nosso plano perfeito nasceu. Depois que nos
casássemos, a gente planejava viajar para outros países e dividir todas as
nossas experiências em um perfil do Instagram que havíamos criado sobre
lifestyle e traveling. O perfil já estava dando ótimos resultados com nossas
postagens locais: somar o fato de Calebe ter um nome forte no mundo virtual
graças à sua rede de academias esportivas, com as minhas habilidades de
registro fotográfico e audiovisual, foi um alinhamento perfeito de sonhos.
Pensei que fosse obra do destino.
O destino me odeia e deve estar rindo de chorar agora.
ficaria com medo e pularia no colo dele para ser consolada e... — Percebo
que Maurício se remexe na cadeira, todo desconfortável. — Foi isso o que
você fez e eu acho que vou calar a minha boca agora.
Encho a mão de pipoca e enfio tudo na boca. Contanto que eu
— Chora?
— Igual uma criancinha.
Gargalho com a boca cheia de pipoca, o que rende uma cena nada
digna de milho saindo pelo meu nariz.
— Maurício! — repreendo-o, controlando o volume da risada. — Não
acredito.
— É sério. Teve uma vez que eu fui assistir Annabelle na casa de uma
amiga e eu gritei tanto que a mãe dela perguntou se eu preferia assistir Toy
Story.
de confiança.
— Borboletas — confesso de uma vez, revirando os olhos.
— Borboletas? — repete, incrédulo, com os lábios crispados.
Diferente de mim, ele consegue segurar o riso. — Tem qualquer coisa de
muito irônico em alguém que se chama Maria Flor ter medo de borboletas.
— É o que todo mundo diz. Meu pai conta que, quando eu era
pequena, alguém me disse que as borboletas se alimentavam de flores e que,
depois disso, eu passei a ter medo delas, achando que iam me devorar. Não
— Hm?
— Você e Calebe Ventura.
Um buraco, eu preciso de um buraco bem grande para pular dentro.
— Sim — murmuro, agradecendo mentalmente por estarmos em um
cinema e a baixa iluminação camuflar um pouquinho do meu
constrangimento.
— Estamos meio que morando juntos até o fim das gravações — ele
diz. Calebe já havia me contado, mas como ninguém sabe do nosso encontro
secreto no restaurante, fico em silêncio. — Mas ele não quis contar muita
coisa sobre você para nós, então eu tinha as minhas dúvidas. Agora que pude
te conhecer melhor, tudo faz sentido. No lugar dele, eu também não ia querer
compartilhar informações com o inimigo sobre uma mulher tão linda,
divertida, atraente e que tem medo de borboletinhas.
direita.
Calebe.
Sei que é ele antes mesmo de olhar, pois estive a sua procura desde
que chegamos. Depois da nossa última conversa, imaginei que daria um jeito
de aparecer em todos os meus encontros — para atrapalhar ou para me
confundir, é uma incógnita.
Ele está com um boné vermelho que me impede de distinguir seu
rosto com clareza, mas é Calebe sem sombra de dúvidas. Meu corpo
— Não posso fazer isso — digo, dando um sorriso que não alcança
meus olhos e nem a minha alma. Viro-me para frente e encaro o imenso telão,
sem de fato enxergá-lo. — Quando flagrei Calebe com outra mulher, doeu
tanto que eu achei que fosse morrer. Nunca tinha sentido nada parecido com
aquilo, então só podia significar que eu estava infartando. Era uma dor física,
palpável. Fiquei parada durante uma hora inteira dentro do meu carro,
olhando para o nada, esperando alguma coisa acontecer. Eu queria acordar, e
queria não acordar também. Foi a pior sensação da minha vida e… —
Respiro fundo e olho para Maurício de soslaio. — Pode parecer burrice, mas
não quero causar a mesma dor em outra pessoa, mesmo que a pessoa em
questão seja Calebe Ventura e eu esteja me contradizendo, já que sinto
vontade de bater nele a cada cinco segundos. Faz algum sentido? Acho que
não.
— Você tem razão, parece burrice mesmo, mas só um pouquinho. —
Maurício segura minha mão, entrelaçando os dedos nos meus. — Você é uma
pessoa boa e eu admiro isso.
— Boa… — desdenho, balançando a cabeça negativamente. — Acho
cabeça. — Não posso dizer o mesmo de mim e é por isso que a gente não vai
dar certo.
— Como assim? Está desistindo de ser o meu noivo ideal, Maurício?
— pergunto em tom de humor, mas desconfiada da mudança repentina em
sua postura. — Me dando um fora?
— Não, mas você vai me dar um fora depois que eu fizer isso…
Não consigo reagir a tempo, só assimilo a fala de Maurício quando já
o tenho sobre mim, perto demais para que eu possa fugir. Seu rosto se
consigo até imaginar a cena editada no programa, com uma trilha sonora
brega e a voz de Miguel Castro ao fundo, narrando detalhes de um beijo que
nunca existiu. Se pegarem um pedaço do filme, com os zumbis devorando
mais um figurante qualquer, vai ser melhor ainda: a analogia entre beijar e
matar ilustra bem os meus sentimentos.
Pressiono o peito de Maurício para trás, afastando-o de mim
discretamente. Ele não demonstra resistência e volta para seu lugar. Depois
lido com ele e digo minha opinião — nada amigável — sobre colocar em
prática essa ideia sem cabimento! Minha preocupação agora é apenas uma:
Calebe.
Procuro por ele com o olhar, meu coração batendo a mil por hora.
Agora que a merda está feita, não adianta fingir que não me importo com
seus efeitos colaterais. Será que ele viu? Será que se importou, ao menos um
pouco? Será que odiou? Ficou com ciúmes? Sentiu raiva? Decepção? Será
que seu coração parou de bater assim como aconteceu comigo?
Será?
Não sei, e não tenho como saber, pois não há mais ninguém na
poltrona onde ele estava sentado antes. Calebe não se encontra em nenhum
lugar do cinema.
“Qual é a semelhança entre uma pessoa apaixonada e um zumbi? Simples:
ambos querem comer alguém.”
MAURÍCIO
E pronto!
Parece fácil, eu sei, mas as consequências de seguir tais regras
demoram a aparecer. Ninguém consegue uma fama ruim da noite para o dia,
é preciso muita falta de caráter, erros intencionais e tapas na cara — tapas
fogo, puto das calças com um cara por fazer exatamente o tipo de coisa que
tenho feito (e me orgulhado de fazer) a vida inteira: ser a porra de um cretino.
Não pensei que Calebe fosse embora. Meu plano era executar o papel
ordinário no qual sou bom e deixá-lo com ciúmes. Todo mundo sabe que um
homem com ciúmes, por mais orgulhoso que seja, não consegue esconder
seus sentimentos por muito tempo. Na minha cabeça, sua ida ao cinema era
um indício de que estava disposto a lutar por ela.
Mas não, ele nem se importou. Não se deu ao trabalho de, sei lá, ficar
irritado comigo! Ele não a ama? Será que toda aquela história sobre tê-la
invasivo o bastante. O espaço não é grande, então meio que não temos saída
além de nos aturar; nossos contratos proíbem tentativas de morte (eu
pesquisei).
Ignoro a pergunta do mister universo, bato a porta e olho ao redor,
procurando pelo alvo da minha irritação.
— Onde está Calebe? — pergunto.
— Quem se importa? — Leonardo diz de seu canto favorito da sala,
uma poltrona da qual se apossou e onde passa a maior parte do tempo com
doutor certinho, então me aproximo, abro a garrafa gelada com a mão mesmo
e tomo um gole demorado que limpa o sabor de pipoca e manteiga da minha
boca. Sento-me em uma das banquetas giratórias perto do balcão, sentindo os
olhares deles sobre mim — menos o de Bartolomeu, que não se esforça para
ser amigável.
Cinco homens com personalidades diferentes e motivações ainda mais
distintas jogados em uma arena com janelas panorâmicas, o que pode dar
errado? Cada um de nós tem sua própria justificativa sobre participar do
programa.
Leonardo é o único que realmente se importa com o casamento à
longo prazo, ele fala sobre o amor com um brilho nos olhos que nunca vou
entender, e talvez por isso eu o despreze tanto. Inveja? Não, prefiro chamar
de dor de cotovelo.
João Guilherme é um caso à parte. Posso dizer com propriedade que
não é um cretino, mas está bem longe de ser um príncipe encantado. Para
mim, não passa de um playboy podre de rico que caiu de paraquedas no
reality show mais popular do momento e age como uma criança perdida na
Disney — uma espécie perigosa em seu habitat natural que consegue tudo o
que deseja.
Tenho que ficar de olho nele.
Mas Bartolomeu é um mistério. Ele me dá arrepios. Os produtores
engoliram seu discurso pronto de homem dos sonhos, que não deseja nada
além de uma linda esposa, dois filhos e um cachorro, mas eu não! Suas ações
dizem o contrário das palavras decoradas, tenho a constante sensação de que
ele odeia estar aqui.
não quero também. Eles que se fodam. — Isso não vem ao caso, o importante
é que Calebe estava no cinema e eu só fiz isso para ver como ele reagiria.
— E como ele reagiu? — João Guilherme cruza os braços enormes.
Ele não é alguém com quem eu gostaria de cair na porrada, e olha que eu sou
forte pra caramba.
— Foda-se como ele reagiu — Leonardo se inclina para frente com
cara de poucos amigos. Espero que ele não tenha um bisturi escondido nas
calças. — Como ela reagiu?
— Ficou em choque. — Esfrego a ponte entre meus olhos, sentindo
como uma mocinha. — E aí, ao invés de roubar ela para você, preferiu gastar
seu tempo cutucando o orgulho do Calebe. Qual foi? Desistiu de competir?
Jogou a toalha, senhor primeiro lugar em tudo?
Jogo mais um tanto de cerveja para dentro da garganta. Concordo
com João, não faz sentido. Entrei no programa determinado a ganhar a
qualquer custo, fazer a minha fama e ainda comer uma boceta, mas bastou
algumas horinhas de conversa com Maria Flor e toda a minha determinação
foi por água abaixo.
Não que eu não queira mais comê-la. Porra, eu quero muito!
casamento foi a certeza muito conveniente de que a noiva seria como eu:
alguém que só quer se divertir e viver experiências novas, que aceitaria o
divórcio sem pensar duas vezes assim que o prazo estipulado pelo programa
chegasse ao fim. Em outras palavras, uma cretina.
sua testa.
— Será que não?
Repenso a hipótese e me coloco no lugar de Calebe. Não é uma
possibilidade tão absurda assim. Parece-me, aliás, bem plausível que tenha
ido atrás dela e que estejam juntos agora mesmo, o que faz de mim um idiota,
como Bartô disse.
Isso deveria me deixar satisfeito, era o que eu queria, certo?
Mas não me sinto nada além de patético. Acabo de sacrificar a minha
permanência no programa só para fazer uma moça bonita feliz. A
Organização Mundial dos Cretinos sentiria vergonha de mim — se ela
existisse.
— Ele está um passo à frente e eu serei chutado na primeira
MARIA FLOR
foi embora, é porque não queria me assistir trocando carícias com outro, ou
porque não se importa?
Argh! Que ódio!!!
Sai da minha mente, inferno!
acontece, ou por qual motivo tomam decisões estúpidas, como abrir uma
porta no meio da madrugada, ao invés de procurar ajuda, e a resposta —
agora sei — é bem simples: preguiça, curiosidade, uma dose de "isso nunca
vai acontecer comigo" com um pouco de "vou pagar para ver".
Espio pelo olho-mágico no centro da porta, mas não vejo ninguém do
outro lado. As luzes do corredor estão acesas e não há sinal de vida à vista.
— Quem é? — pergunto, colando o ouvido na porta, mas ninguém
responde.
Ele ergue o rosto ao som da minha voz. Seus olhos preguiçosos abrem
e fecham várias vezes, como se tentassem descobrir se o que estão vendo é
real. Jogado no chão assim, claramente embriagado, vestido com uma jaqueta
preta cheia de bolsos, calça jeans rasgada e coturnos nos pés, Calebe é o
programa na frente das câmeras. — Mais um bom argumento. Não teria graça
nenhuma.
— E como descobriu onde eu estava hospedada? — pergunto,
redirecionando o rumo da conversa para não ter que concordar com ele.
se equilibrar, segurando seu cotovelo com a mão livre. — Mas não vai me
comprar com elogios.
— Não é um elogio — balbucia, indignado. — É um fato. O fogo
queima, os pássaros voam, o mundo gira, você é linda, enfim, um fato,
ciência pura, matemática, biologia, química. Eu adoro química, nós temos
química.
Não consigo me segurar e acabo rindo, mas disfarço encenando uma
crise de tosse. Assim como eu, Calebe também não é muito forte quando se
trata de bebidas alcoólicas.
— E você não está falando coisa com coisa, Calebe. — Olho para a
garrafa balançando em sua mão, o líquido aparentemente pela metade. —
Quanto você bebeu?
— Eu estou bem — murmura, enrolando a língua. — Não estou
Quanto mais tempo passo perto de Calebe, mais intensas ficam as minhas
chances de cometer um grande e irreversível erro de percurso: mirar no adeus
e acertar o bem-vindo de volta. — Você me conhece. Às vezes, me conhece
mais do que Alice ou meus pais. Sabe melhor do que ninguém que não vou
voltar atrás na minha decisão.
— Sim, eu sei, mas sinto a sua falta. — Procuro por alguma nota de
arrogância em seu tom de voz, ou do seu ego inflamado, mas Calebe não se
parece com nada além de miserável e é um pouco deprimente vê-lo assim. —
Não só do que a gente tinha como namorados. Sinto falta das coisas
pequenas, das coisas bobas, como brigar pelo controle da televisão, ou da sua
escova de dentes amarela ao lado da minha escova azul. De escutar você
cantando Skank e Charlie Brown Jr. no chuveiro, e de cheirar o seu cabelo
antes de dormir.
— Calebe…
— Você não sente saudade, Maria Flor? — sussurra. — Nem um
pouquinho?
Sinto?
Eu sei a resposta, mas não quero dizer. Não posso dizer. Casais que se
separam como nós, não podem ser amigos, podem? Deve existir alguma regra
moral que impeça tamanha humilhação.
— Não sinto nada Calebe.
frente dos olhos. É hoje que eu tenho um piripaque. Ele arreganha a boca em
um grande círculo e começa a berrar como se não houvesse amanhã:
— Diz que é verdaaaaade, que tem saudaaaaade…
— Calebe! — protesto, exasperada. — Pelo amor de Deus!
efeito do álcool, até hoje Calebe só mostrou esse seu lado frágil e fofo para
mim — que eu saiba, claro, talvez a secretária conheça também. Eu não
ficaria surpresa.
Odeio ser levada a pensar nela o tempo todo, nas coisas que sabe ou
não sobre Calebe em comparação a mim.
— Qual é a do cavalo? — Calebe pergunta, encostando-se na lateral
da minha cama. Ele dobra um joelho e apoia o braço sobre ele, mantendo a
outra perna esticada em uma pose confortável.
— Aposto que sim — desdenho, mais por costume (já que ele agora
ocupa a última posição na minha pirâmide de pessoas confiáveis), do que
para machucar seus sentimentos.
— Maria Flor, não precisa duvidar de tudo o que eu digo. Faz parecer
que tudo o que nós vivemos foi uma mentira. Além do mais, eu nunca…
Lá vem ele negar de novo.
— Não! — Eu o interrompo. — Nós não vamos conversar sobre isso,
Calebe. Eu deixei você entrar porque sou idiota e tenho um coração mole,
mas está proibido de falar sobre nós dois ou o fim do nosso relacionamento.
E muito menos sobre a sua habilidade de pular a cerca.
— Mas eu realmente não…
— Eu tenho um cavalo ao alcance das mãos e não tenho medo de
me prenderam junto ao seu corpo como nenhum outro homem foi capaz,
daquele jeito que faz uma pessoa se sentir parte da outra em todos os sentidos
da palavra.
Que Calebe é lindo não é novidade para ninguém, mas que eu ainda o
deseje tanto é uma certeza vergonhosa que jamais admitirei em voz alta.
— O que você pensa que está fazendo? — pergunto assim que seus
dedos tocam a borda da camisa. — Não permiti que ficasse pelado.
Sem se importar com o meu protesto, e com uma clara expressão de
desafio no rosto bonito como o inferno, Calebe puxa a camiseta por cima da
cabeça e a descarta no chão ao seu lado.
Ótimo, era mesmo tudo o que eu precisava: um tanquinho à vista para
provocar o meu ascendente em putaria.
Além disso, não consigo dormir direito desde que você foi embora, então me
deixe pelo menos aproveitar o momento.
Eu diria um belo "problema seu" para Calebe se não estivesse
sofrendo do mesmo mal há semanas. Guardo para mim a verdade (parece que
— Já entendi isso.
— Então, não vai mais me seguir?
— Não, é muito arriscado. Eu posso acabar fazendo uma besteira. —
Ele estica o braço e desliza a ponta dos dedos por uma mecha do meu cabelo.
— Mas, se alguma coisa acontecer e você precisar de mim, é só desbloquear
o meu número e me ligar, que eu vou correndo.
Movimento a cabeça minimamente para os lados, negando, mas não
tenho certeza se ele consegue ver, já que não diz mais nada sobre o assunto.
Talvez, daqui alguns anos, quando eu estiver casada e apaixonada
pelo meu marido, a gente consiga reatar a nossa amizade. Gosto de ter Calebe
como amigo, de conversar com ele sobre qualquer coisa, ou de apenas
compartilhar o silêncio. Mas, hoje, com todas as mágoas que ainda carrego
em meu coração, não sei se conseguiria engolir o meu orgulho e pedir a sua
ajuda.
A mão de Calebe sobe, hesitante, até o meu rosto, e a cada centímetro
que vasculha, ele faz uma pausa, testando minhas permissões. Suas digitais
raspam na superfície da minha pele, mapeando as minhas bochechas e o
formato do meu maxilar até chegar aos lábios. Faz sua pausa, esperando que
rejeite seu carinho, mas não o faço.
Finjo que seu sentimento não é uma farsa e me deixo levar pela pausa.
Escuto sua respiração, o único som que paira no ambiente. Não
CALEBE
— Amarelo ou branco?
Maria Flor segura um vestido em cada mão e os coloca na frente do
outro no quarto, com uma toalha branca enrolada na cabeça. Maria Flor está
atrasada, para variar. Estranho seria se não estivesse. Se dependesse de mim,
Bartolomeu morreria esperando. Ela escolhe um par de sapatos e os deixa
perto da cama, sobre o tapete no qual eu dormi, e depois desaparece dentro
do banheiro, levando consigo o vestido e um lenço. Minutos mais tarde, ouço
o barulho do secador de cabelo.
Estar em um mesmo cômodo que ela, sem poder abraçar seu corpo
curvilíneo ou sentir a maciez de seus lábios, é uma tortura. Ouvir o barulho
da água corrente enquanto Maria Flor tomava banho foi o pior de todos os
castigos — a imaginação fértil de um homem não passa de uma maldição.
Em outros tempos, já teríamos nos embolado entre os lençóis, trocando
carícias e segredos com palavras ininteligíveis, e eu só a deixaria partir
depois que seu prazer transbordasse e se fundisse com o meu.
Porra, eu preciso dela desesperadamente! Não tinha ideia de que a
saudade podia ser sentida em escala física até ser privado do toque da minha
mulher e condenado a uma vida de bolas roxas vinte e quatro horas por dia.
Cruzo as pernas. Calma, amigão. Estamos meio fodidos aqui.
um pernilongo me picou.
Maria Flor me analisa com a testa franzida, desconfiada, tentando
encontrar um significado oculto em minhas palavras, mas se dá por vencida
ao me ver, de fato, coçando — fingindo coçar — o maldito tornozelo.
— Tá bom... O que você acha? — Ela gira sobre os pés descalços, a
saia amarela e rodada flutua ao seu redor, revelando muito das pernas
atraentes e perfeitas para o meu completo desespero. — Ficou bom o
suficiente para aparecer na televisão? A produção disse que eu poderia
mente, mas nada sobre como eu vim parar dentro do apartamento dela. —
Parcialmente. Lembro da parte vergonhosa.
A expressão de Maria Flor vacila e ela se rende a uma risada singela.
É quase como na noite anterior, um suspiro em meio ao caos, quando beijei
seus dedos e imaginei que era a boca dela na minha, que a distância entre nós
não passava de um pesadelo e que a ponte que nos ligou um dia ainda estava
erguida, unindo nossas almas. Porque, porra, essa mulher é a minha alma
gêmea e eu fodi com tudo indo até aquele motel.
— A parte vergonhosa é suficiente — garante, o sorriso ainda
presente.
Quero dizer a ela que senti saudades de fazer piadas e rir por besteiras
ao seu lado, mas eu sei que estragaria o clima. Por outro lado, ficar em
apostaria a minha perna direita de que sua imaginação foi ainda mais além.
— Ele é um cara legal e divertido, mas não sei, falta alguma coisa. Acho que
não está levando muito a sério essa coisa de casamento. Ainda preciso
conhecer o número três e o número quatro para tomar uma decisão.
Bartolomeu parece uma alma penada esperando o juízo final, ele é esquisito.
E João Guilherme é o típico empresário rico que faz o que quer, a hora que
quer, do jeito que quer. Estou sofrendo na mão deles, sabia?
— Tenho dó, mas nem ligo — ela cantarola, chacoalhando um
conjunto de pulseiras amarelas recém colocadas no pulso.
— Doce igual uma pimenta malagueta.
— O que vai fazer agora? — pergunta, mudando o rumo da conversa.
Apoia-se no móvel atrás dela, com os braços para trás, e fixa seu olhar em um
ponto vazio do chão.
— Como assim?
— Não pode ficar no meu apartamento para sempre. — Balança a
perna direita suavemente, acho que para disfarçar o nervosismo. — Tenho
um encontro marcado para dez minutos atrás e já deve haver um carro da
língua passeia pelos lábios e me vejo fazendo o mesmo, meu corpo pedindo
secretamente pelo dela, em abstinência da sensação de tê-la nos braços, de
marcar cada centímetro de sua pele com beijos vorazes e mergulhar no ponto
mais profundo de seu corpo.
Instintivamente, diminuo mais um passo entre nós, clamando por
migalhas.
— Tá bom — ela diz sem nunca se afastar ou desviar os olhos. — O
plano é o seguinte: você fica com a chave, descansa um pouco e pede alguma
coisa para comer.
duas da tarde. Mas espero não encontrar nenhum rastro do seu traseiro aqui
quando eu voltar. Você pode deixar a chave na recepção antes de sair.
Estremeço com o balde de água fria, mas não desisto.
— Fica — peço, chutando meu ego ferido para escanteio. — Por
favor, Violeta, fica e me escuta. Eu não traí você, eu nunca trocaria você por
outra mulher.
Maria Flor suspira.
— Calebe, eu vi você. Quantas vezes terei que repetir isso? Ninguém
para se acalmar.
— E o que te faz pensar que agora eu vou acreditar? O que mudou,
Calebe?
— Digamos que você entrar em um programa de televisão para se
casar com outro cara me fez colocar os riscos de ser rejeitado em perspectiva.
Um longo e silencioso minuto se passa enquanto ela reflete sobre o
assunto. Escuto meus batimentos cardíacos descompassados no ouvido,
minhas mãos suando frio, a ressaca esquecida no churrasco.
encontro?
— Precisa de mais tempo para formular uma mentira convincente o
bastante? — ironiza com o típico sorriso "eu estou certa e você está errado".
— Já estou atrasada, vinte minutos a mais ou a menos não vão fazer
diferença.
Engulo em seco e volto para minha poltrona, a uns bons metros dela.
Toda segurança é pouco. Seria ótimo poder trocar de roupas. Ter uma
conversa que pode definir o nosso futuro, vestido com minha camisa
amassada cheirando a álcool vencido, não me dá muita credibilidade.
Pigarreio discretamente e me endireito, agarro com força os braços da
poltrona e faço uma prece silenciosa em busca das palavras certas, mas devo
ter jogado o Santo Antônio na cruz porque quando abro a boca, tudo o que sai
é claro) que isso aconteceu quando ela tinha dez anos, e eu passei quase um
mês inteiro com medo de que algum perseguidor a estivesse vigiando.
Quando criei coragem para perguntar — me segurei o máximo possível para
não parecer um namorado possessivo e ciumento demais — Maria Flor teve
uma crise de riso e me contou a verdade.
Ela e sua família têm um jeitinho bem peculiar de me deixar louco.
— Foi uma carta anônima, Maria Flor, não conta. E ele não trocou
você por ela, apenas errou as mochilas e colocou a declaração na sua por
engano. Como você pode ter amado alguém que nem conhecia tão depressa?
— Sim, foi o amor mais rápido da história, durou o tempo de eu abrir
a carta, ler a mensagem, amassar o papel e jogar no lixo. Ainda assim, foi um
amor. Não despreze o meu amor de quinze segundos, foi horrível e eu era
uma criança.
Descrente, encaro minha mulher e me pergunto se eu teria me
apaixonado tanto se soubesse que era doida varrida. E, bem, a quem estou
tentando enganar? A resposta é óbvia: claro que sim. É exatamente isso o que
mais amo nela, as divagações sem sentido, as interrupções intermináveis e
Prefiro respeitar seu espaço e não me aproximar por enquanto, mas é difícil.
Não poder confortar sua agonia com um abraço me machuca por dentro. —
Eu não queria que tudo acabasse assim. Se arrependimento matasse, eu
estaria morto e enterrado.
Parando de súbito, ela encara o teto e balbucia algo que não consigo
entender, mas meu palpite é que se trate de uma maldição para mim. Deve
estar desejando que minhas bolas caiam ou que eu nunca mais consiga ter
uma ereção de respeito. Em seguida, olha-me com a cabeça em negação.
— Quer que eu acredite que você foi parar em um motel sem querer
com a sua secretária, e que nada aconteceu entre vocês dois? Calebe, eu não
tenho tempo para isso.
Ela pega a bolsa que estava sobre a cama e se adianta em direção à
saída. Eu corro para alcançá-la, seguro sua mão suavemente e a viro para
mim. Maria Flor se deixa levar pela minha condução e encosta na porta
levianamente, favorecendo-me com a bela visão de seu peito ofegante.
— Meu Lírio, eu soube que era um motel assim que recebi a
mensagem com o endereço. Mas eu não podia recusar logo após oferecer
ajuda.
— Claro. — Ela sorri sem alegria, a expressão escarnecida,
aproximando o rosto do meu com seu poder de sedução cruel. — Santo
Calebe, o bom. Tão bom que foi entregar a carteira da secretariazinha em
mãos, no quarto de motel dela, e aproveitou para ajudá-la com o banho. Você
tinha que ser canonizado.
— O quê? Não! Tive que entrar para entregar a carteira porque ela
não conseguiria sair sem pagar e…
— Já chega — pede, firme tal qual uma flor congelada. Não posso
queixar-me de seus olhos frígidos sendo eu o único responsável por nos atirar
no inverno. — Você tinha razão, eu não acredito. É a mentira mais deslavada
que alguém já me contou na vida.
— Não é mentira! — Seguro seu rosto com as duas mãos, desespero
líquido fluindo por minhas veias. — Eu sei muito bem que não parece, mas é
verdade, Girassol, por favor, acredite em mim. Não aconteceu nada entre nós,
só foi um terrível, terrível, terrível mal entendido.
Não sei dizer qual de nós se movimenta primeiro, mas em algum
memorizar cada parte de seu corpo que meus dedos exploram, do pescoço às
clavículas, dos seios redondos e suaves à cintura sinuosa que se encaixa
perfeitamente em minhas palmas, dos quadris trêmulos à bunda gostosa
demais para minha saúde.
Eu a aperto, puxo-a para mim tanto quanto possível, e recebo a devida
recompensa a cada gemido que ela deixa escapar em meus lábios.
Nunca, nem em meus sonhos mais eróticos, cheguei perto de imaginar
como seria a sensação de tê-la outra vez. É a porcaria mais deliciosa e
indescritível que já experimentei, e quase faz valer a pena os dias, minutos e
— Como eu estou?
Analiso-a dos pés à cabeça, desarrumada, ofegante e corada.
— Como alguém que estava prestes a ser muito bem fodida há dois
minutos.
tentação, mas às vezes deixeis. Só que não vai se repetir e eu não acredito na
sua história com a zinha.
Ela só pode estar brincando.
— Então, vai fingir que não sentiu o mesmo que eu? Que isso não
significou nada?
Maria Flor tenta fechar a porta do banheiro, mas eu a seguro e, como
sou muito mais forte, ela rapidamente desiste de lutar.
Seus lábios estão inchados e lindos, o cabelo, todo bagunçado, e a
pele em suas clavículas ainda não voltou ao tom natural graças ao rubor da
excitação. Ela abre e fecha a boca inúmeras vezes, e só o fato de não negar as
minhas perguntas de imediato já me deixa mais do que satisfeito.
— Odiar você é cansativo, Calebe — declara quando reencontra a
própria voz, e seu tom aflito me faz recuar. Já a pressionei além do que
MARIA FLOR
no dicionário, encontrará uma foto minha colada na frente. E não será uma
foto bonita! Vai ser uma daquelas três por quatro toda cagada.
Ainda não acredito que beijei Calebe.
Que nós quase… quase…
Meu Deus, a gente quase transou! Se não fossem os cinegrafistas do
programa, eu estaria no auge de uma recaída orgástica. E pior, sem nenhum
peso na consciência já que a vergonha na cara eu perdi faz tempo!
Em minha defesa, Calebe é um homem que beira ao irresistível, e
confissão para poder odiar aquele safado com propriedade. O que ele pensa
que eu sou? Idiota?
— Eu gostaria de saber que tipo de crime a batata frita cometeu para
merecer tanto ódio.
Olho em direção a voz e me deparo com um homem bem vestido que
me observa de cima. Não o reconheço à princípio. Não é todo dia que
estranhos cheirando a notas de cem conversam comigo sobre a intensidade
com que destruo a minha comida. Mas basta um segundo olhar mais atento e
justifico-me, o que não é uma mentira. Além de acordar tarde por não ter
dormido direito, e do meu deslize com Calebe, ainda tive o azar de ficar presa
em um engarrafamento.
O lado bom é que pude refazer toda a minha maquiagem para não
mexe com a Maria Fofoqueira que habita em mim. Sem contar que é uma
ótima distração para a minha mente, que insiste em pensar em Calebe e seu
ótimo lábio.
Lábio? Eu quis dizer lábia!
No outro dia, quando tivemos nosso primeiro contato, Bartolomeu
disse muitas coisas sobre planos futuros envolvendo família e filhos. Pareceu-
me um homem sério com sonhos concretos e tradicionais que em nada
combinavam com os meus sonhos e planos — um detalhe curioso,
considerando que os pretendentes são escolhidos com base em algum
algoritmo de combinação que não entendo. Tudo o que eu descobri sobre ele
naquele dia envolvia as nossas diferenças. Mas agora, ele parece outra
pessoa.
Mais sagaz, cauteloso, esperto.
mundo.
Ah, pronto.
Até parece que eu, Maria Flor, a esperta, vou cair em uma chantagem
dessas.
Não mesmo!
Diga que não, Maria Flor. Você consegue.
São só três letrinhas. Não se deixe levar pela curiosidade! Eu não
preciso disso, ainda tenho uma vida inteira pela frente. Já me basta ter
colocado Calebe para dentro do meu quarto, não posso cometer outro erro
equivocado por causa de um homem bonito — um homem muito bonito.
Eu consigo segurar o meu espírito aventureiro por um dia. Eu
consigo…
Eu consigo…
Eu con…
Continuo sendo burra mesmo!
Ele não sabe que a ansiedade é o mal do século?
— Para onde vamos? — sondo, fingindo-me de precavida.
Meu Deus, como eu sou fraca! Meu anjo da guarda merece um salário
extra e férias estendidas por dificultar tanto o seu trabalho.
— Para o nosso encontro — ele garante o óbvio, todo felizinho.
Calebe não mentiu, Bartolomeu é mesmo suspeito, mas ele tem o seu charme.
É bonito, muito gostoso, com certeza tem dinheiro e possui uma aura
enigmática que mexe com as minhas entranhas. — Não vai se arrepender, eu
prometo.
***
mesmo patamar de intimidade que os dois. Ou, talvez, eu esteja ficando mais
louca e vendo coisa onde não tem, analisando mais do que deveria e criando
teorias da conspiração sem cabimento sobre homens que não conheço.
Acho que Calebe me deixou neurótica.
— Não precisa ficar tão tensa, não vamos demorar para voltar — ele
diz, indicando o caminho rumo a um edifício luxuoso não muito distante, e
confirmando que existe mesmo um destino final.
— Você está bem calmo para alguém que pode ser expulso do
meus ombros. Não me afasto e nem recuso seu toque, também não perco meu
tempo tentando entender que bicho me mordeu para jogar minha sorte toda
de uma vez ao vento, no mesmo dia.
Ao me encostar em seu corpo, sinto melhor as protuberâncias dos
hipnotizante que não se compara a nada que eu já tenha visto antes. Ele me
devolve o sorriso, respondendo minha provocação com um silencioso carinho
no ombro.
Finalmente chegamos no ponto mais alto do prédio e não é preciso ser
um gênio para entender que Bartolomeu é mais do que ele diz ser. Entro
timidamente em seu apartamento, fingindo costume sobre a grandeza do
lugar, e Bartolomeu me solta para fechar a porta atrás de nós. Parece um
cenário de novela, com grandes janelas panorâmicas e móveis
monocromáticos. Ele tem um lustre no meio da sala de estar! Se existe coisa
grande risco de ser ignorada novamente, por que me trouxe aqui, Bartô?
Fiquei sabendo que vocês, os noivos, foram acomodados em um apartamento
do programa, então você não deveria voltar para casa no meio da temporada.
— Nem me lembre. — Ele estremece, afastando-se até uma poltrona
Calebe disse que conversavam sobre mim, mas não pensei que fossem
obrigados a falar. Analisando agora, me parece uma situação bem estranha e
desconfortável.
— Para ele, com certeza. — Bartolomeu estica o braço e pega um
copo da bandeja que certamente não contém cafeína. Não o havia notado
ainda. — Já que continua apaixonado por você e se comporta como um
cachorro protegendo o osso sempre que falamos qualquer coisa mais ousada a
seu respeito.
Ele bebe devagar, com charme. Emoldurado pelo belíssimo cenário
dispendioso que é sua residência, ocorre-me que Bartolomeu combina com
ambiente como se fosse parte dele. Sua afirmação, no entanto, não é nada
agradável de escutar.
— Calebe não voltou para casa — ele diz, lendo através dos meus
pensamentos —, e coincidentemente não apareceu para bisbilhotar o nosso
encontro, como fez com os dois primeiros. Como foi, vocês dormiram
juntos?
que eu fizesse, e que eu sempre recusei por pura teimosia e preguiça, cairiam
muito bem agora.
— Quanto mais você fala, mais suspeito você parece. — Decido ser
franca, despejando tudo em um único fôlego. — Não me leve a mal, mas
confiar em mim.
— Confiar em você? — Agora é minha vez de gargalhar. Eu admito:
estou gostando da maneira como ele está lidando com as minhas neuras. —
Não confio nem em mim que sou doida, Bartô. Eu posso, no máximo, tentar
MARIA FLOR
sucintamente.
— Quem? Calebe? — Bartolomeu bufa, soltando um riso nasal
incrédulo. — Maria Flor, pare de se enganar. Você sabe que não quer
eliminá-lo agora.
— Claro que eu quero — protesto, e tenho que admitir, minha voz
não soa nem um pouco convincente, então acrescento, colocando mais
ênfase: — Me livrar de Calebe é a minha prioridade. Sinto muito, não posso
eliminar você agora. — Cruzo os braços sob o peito. — Afinal, por que quer
ser eliminado? Por acaso também se inscreveu em um momento de surto
deu certo.
— Qual parte não deu certo?
Olho para trás, cética. Ele não sabe ou está se fazendo de sonso?
— A parte da fidelidade?
— Tirando essa parte. — Bartolomeu torce o nariz, desdenhando da
seriedade do meu problema. — O que mais não deu certo na relação de
vocês?
Quem ele pensa que é? Um psicólogo?
A verdade é que a gente dava certo demais, até nas coisas em que não
deveríamos, e agora eu não sei se estou gostando de dar certo sem ninguém.
Sem ele.
— Não importa — digo, e dessa vez não há hesitação em minha voz.
órgãos.
Bartolomeu retira a xícara das minhas mãos e a descarta sobre a mesa.
Em seguida, segura meu queixo, induzindo-me a olhar para ele. Sua
capacidade de manter a compostura mesmo após o meu arroubo de histeria é
admirável.
— Vendedor de órgãos? — pergunta, a voz trêmula entregando sua
vontade de rir. Seus dedos parecem brasa contra a pele do meu rosto e eu
demoro alguns segundos para encontrar as palavras certas.
— Eu tenho uma imaginação fértil — defendo-me com sinceridade.
— E você não está se ajudando com toda essa conversa sentimental. Eu já
disse, não vou te eliminar do programa independente do que disser. Qual é o
problema de vocês? Todo mundo de repente decidiu ficar do lado do Calebe?
— Seu comparsa?
Ele franze os lábios, rindo baixinho.
— Algo do tipo.
Apoio-me no encosto do sofá e estreito os olhos para ele, procurando
alguma pista em seu semblante que denuncie seus pensamentos secretos.
— Está tentando me enrolar — concluo.
— Tentando ganhar tempo — ele me corrige. Grande diferença! — É
um crime tão terrível assim querer passar alguns minutos a mais ao seu lado,
longe daqueles urubus da produção? Você não está cansada de fingir estar
aparelho.
— Preciso atender — diz após conferir o nome escrito na tela. — Não
vou demorar. Pode andar por aí se quiser. — Ele começa a se afastar rumo a
outro cômodo, mas para no meio do caminho, segurando o celular contra o
peito, e diz: — Você é uma mulher muito interessante, Maria Flor.
— Já disse isso antes, o que significa?
— Eu gosto de pessoas interessantes.
Sem me dar chance de resposta, ele atende a ligação e se afasta,
caminhando pelo corredor até eu perdê-lo de vista.
***
da curiosidade há muito tempo e não aguento mais ficar parada. Quanto mais
o tempo passa, mais neuras eu crio na minha mente a respeito dele. É
humanamente impossível resistir à oportunidade de andar por aí, como ele
mesmo sugeriu. E se o meu objetivo é ocupar a mente para não pensar no
beijo de Judas, uma espiadinha de nada será muito bem-vinda.
Quem sou eu para recusar uma oferta feita de bom grado?
Aguço os ouvidos enquanto atravesso o corredor até chegar na
bifurcação. De um lado, vejo que o caminho finda em uma cozinha, do outro,
vários cômodos aparentemente fechados. Sigo pela segunda opção. Passo por
um banheiro e paro na frente de uma porta entreaberta. Não escuto nenhum
murmúrio que indique a presença de Bartolomeu lá dentro, então empurro a
madeira devagar, revelando um escritório residencial.
Ótimo! Se existe alguma pista sobre ele em algum lugar, com certeza
estará em seu escritório.
Pé ante pé, entro no cômodo, sentindo a adrenalina pulsar nos
ouvidos. Não sei ao certo o que espero encontrar, mas consigo pensar em mil
possibilidades distintas, uma mais absurda que a outra, desde notas fiscais
milionário.
Tipo... tipo o que? Ninguém coleciona pedaços de coisas mortas
dentro de potes. Pelo menos, ninguém que bata bem da cabeça.
Não. Não faz sentido.
É melhor eu ir embora.
Mas estou sozinha, e ele disse que há alguém a caminho. Ninguém
sabe onde ou com quem eu estou. Se eu tentar fugir, pode ser pior. Preciso de
reforços.
Meus pais? Não, eles não podem fazer nada para me ajudar, estando
tão longe.
A produção? Não sei se vale a pena arriscar meu leve desvio
contratual. Se eu for morta por um colecionador de rins em conserva, é mais
fácil negociar com ele de uma vez, já que não terei dinheiro para pagar a
multa do programa de qualquer forma.
As pessoas vivem com apenas um rim, todo mundo sabe disso.
Foco, Maria Flor.
Certo, e que tal a polícia? Parece a opção mais... sem noção que
***
— Amém?
— Não — ele ri, exasperando-se. — Sobre a música, o certo é “a fé
não costuma falhar”, e não “café”.
Pisco uma vez, processando a informação. Faz mais sentido na versão
dele.
— Eu cantei errado a minha vida toda?
— Maria Flor. — Ele dá alguns passos hesitantes até a poltrona mais
próxima e me olha com desconfiança. — Você está bem?
Respiro fundo. É agora ou nunca.
Diálogo, repito em minha mente, como um mantra, seja franca.
— Eu já sei de tudo, Bartolomeu.
Ele fica subitamente tenso, os ombros rígidos, sua máscara de
— Foi por acaso, quando você saiu para atender a ligação. Não tive
intenção de bisbilhotar, sinto muito. — Abaixo os olhos, com receito de
encará-lo por tempo demais e enxergar algo que traga todas as minhas
dúvidas sobre ele de volta.
— Eu queria ter contado antes, mas tive medo de como você reagiria.
— Faz sentido você ter medo, não é uma coisa... — Busco pela
palavra menos dramática possível. — Normal, se é que me entende. Eu
mesma fiquei bem assustada, e confusa, e posso ter tido um leve e rápido
debate interno sobre a possibilidade de fugir e nunca mais olhar na sua cara,
mas escolhi isso. — Aponto de mim para ele duas vezes, bastante orgulhosa
da decisão tomada. — O diálogo.
Bartolomeu deixa transparecer um novo sentimento em seus olhos,
— Não é que eu ache você uma pessoa ruim por causa disso. —
Bartolomeu rosna e tenta se afastar, mas o impeço, segurando firme em sua
camisa. — Só fui pega de surpresa. Eu sei que muitas pessoas têm gostos
exóticos, mas aquelas coisas no seu escritório vão além da compreensão.
Desculpe ter pensado que você era um criminoso. Bom, você não é um
criminoso, né? Espero que não, é claro, mas o que você esperava? Já ouvi
falar de pessoas que colecionam carros, figurinhas e até armas, mas...
— Maria Flor, do que você está falando?
Bartolomeu para de lutar contra mim. Ao invés disso, entrelaça meus
dedos aos dele e se aproxima ainda mais, apenas as mãos unidas entre nós
impedem nossos corpos de se tocarem, mas não impedem que eu sinta sua
respiração roçando em minha pele. Seu olhar percorre meu rosto, a síntese da
incompreensão pesando em seus olhos.
mais memoráveis.
O estranho entra no apartamento, troca um sorriso com Bartolomeu.
Os dois se contrastam e se complementam ao mesmo tempo, de um jeito
natural, como o dia e a noite, a lua e o sol, a luz e as sombras. Ambos têm a
mesma altura, mas o homem possui olhos e cabelos pretos, a pele branca
como porcelana, um semblante acolhedor, caloroso e aberto que não existe no
meu candidato número três.
— Olá — ele diz para mim, a voz suave como veludo. — Você deve
ser a Maria Flor.
— Sim, e você é?
Quem responde é Bartolomeu, que dá um passo à frente.
— Maria Flor, este é Gael, meu… — Eles voltam a trocar um olhar,
e eu sei a resposta antes mesmo que ele conclua sua frase. Eu sei, pois
naquele breve segundo, naquela troca que poderia ser insignificante para
muitos, a muralha de Bartolomeu desaba e todos os seus sentimentos ficam
expostos, revelando o mais profundo de todos, aquele que eu jurei sentir por
Calebe um dia. — Ele é meu namorado.
“Ah, o amor! Como pode um sentimento tão puro, bonito e cobiçado, ser tão
complicado e dar tanto trabalho?”
BARTOLOMEU
Alívio.
Nunca me senti tão aliviado em toda a minha vida. Por um momento,
pensei que o repúdio de Maria Flor fosse por causa do meu relacionamento
com Gael, que ela compartilhasse a mesma opinião que a minha família — e
necessário, como sempre. Essa é uma das coisas que mais amo nele: falar
quando me faltam palavras. — Enfim, não importa. Pode ficar tranquila, não
somos traficantes de órgãos, e nem psicopatas com manias estranhas. — Ele
aponta para mim travessamente: — Aliás, o Bartolomeu tem umas manias
de errado. Pelo menos eu não estava enganado em meu julgamento sobre ela:
Maria Flor é uma pessoa que vale a pena. Faz muito sentido que Calebe a
queira de volta, que Leonardo esteja obcecado e que Maurício tenha se
apavorado com o sentimento platônico que ela desperta em todos a sua volta.
beleza dele. Gael também nota, pois sorri amplamente assim que ela desvia a
atenção de volta para mim. — Se você já tem um namorado, por que se
inscreveu no programa? Entendo o seu pedido sobre ser eliminado, mas qual
o sentido de ter entrado para começo de conversa?
Encosto-me na mesa, um móvel pesado e antigo que Gael adora, e
organizo minha explicação na mente. Eu a treinei várias vezes nos últimos
dias, mas agora que é chegada a hora, sinto-me inseguro e tolo.
— Ele foi pressionado pela família — Gael conta, livrando-me do
fardo, fazendo parecer fácil. Ele cruza o curto espaço até mim e se acomoda
ao meu lado. É seu jeito “estou aqui por você” que sempre me acalma. As
sobrancelhas de Maria Flor tremem, formando dois arcos. — Eles não
aceitam que o herdeiro bonitão, inteligente e bem-sucedido, goste de beijar
rapazes também, então, tiveram a brilhante ideia de inscreverem ele no
programa.
— Eu só fiquei sabendo no dia em que fui selecionado.
— E por que não negou?
— Ele não podia — Gael, outra vez, assume a dianteira das
explicações. Ele sabe como é difícil para mim, e o amo duas vezes mais por
isso. — Eles disseram que, se ele não participasse, seria removido da
diretoria da empresa.
— Pensei que você fosse um programador de software. Você mentiu?
os pontos fracos do filho e usou isso para chantageá-lo. Eu disse para o Bartô
recusar, que era loucura participar do programa, fiquei puto no começo e até
brigamos, mas acabei me rendendo quando ele disse que tinha um plano.
— Participar do programa não significa vencer o programa — ela
deduz, pousando o indicador nos lábios, em uma típica pose pensativa.
— Correto — digo. — O acordo com o meu pai era de que eu
participasse do programa em troca de continuar com o meu cargo na
diretoria, ele não podia exigir que eu ganhasse, uma vez que a decisão final
depende da noiva.
— E se a noiva, no caso eu, escolher outro noivo, a culpa não será sua
— ela completa o raciocínio, os olhos iluminados. Seus pés se movem
lentamente pela sala, enquanto sua mente vagueia para outros cenários da
nossa conversa. — Mas, ele já devia saber que existia a possibilidade de você
não ser o escolhido da noiva, qual o sentido de insistir na sua participação
mesmo assim?
— Ele está desesperado. — Gael revira os olhos. — O último
relacionamento do Bartolomeu, antes de mim, foi com uma mulher.
Provavelmente, se ele passar para a próxima fase, o meu querido sogro vai
aparecer com mais alguma exigência estranha, como seguir com o casamento,
na esperança de que Bartô se apaixone pela esposa e esqueça de mim.
Maria Flor solta um suspiro colérico e me olha diretamente.
sarcástico. — Ele vai dizer qualquer coisa, desde que você aceite o nosso
pedido.
— De que lado você está? — questiono, com falsa indignação na voz.
— Você não é condescendente, Bartolomeu, então é melhor sermos
sinceros. Estamos literalmente pedindo que ela pise no próprio orgulho e
mantenha o homem que a traumatizou no programa, para garantir a nossa
felicidade. Isso não é pequeno, é grande. — Gael, totalmente certo em sua
consideração (ele tem um dom natural e irritante de estar certo sempre), vai
até Maria Flor e se abaixa. — Aposto que ele trouxe você até o nosso
apartamento sem explicar nada com nada, fez vários comentários enigmáticos
sobre ter um pedido superimportante, e ficou enrolando até eu chegar, como
se não fosse nada suspeito.
— Foi exatamente assim — ela afirma, abrindo a boca, admirada com
o acerto de Gael. — Por isso eu fiquei tão desconfiada de tudo.
— Ele tem o péssimo hábito de presumir que as pessoas vão entender
seu vocabulário econômico, como se soubéssemos ler mentes.
— Eu não sou econômico.
sem fazer muito alarde, mas seu olhar para mim é incisivo. — Ela tem tempo
para pensar a respeito. Nós vamos ser pacientes, não vamos?
Não respondo, recuso-me! Ele sabe que preciso ser eliminado, que é a
nossa única chance, que não se trata apenas do meu cargo na empresa, mas
do nosso futuro também. Eu entendo sua preocupação com os sentimentos de
Maria Flor, é algo que compartilhamos, mas posso não ter outra chance de
conseguir a garantia dela de que vai nos ajudar.
Nós não temos tempo há muito tempo.
O ar fica pesado, espelhando meus ressentimentos ansiosos. Eu e Gael
— Sim, ele é.
— E muito bonito também.
— Não posso discordar.
— Estou com inveja.
antes que Maria Flor diga mais alguma de suas frases espirituosas, escutamos
vozes exaltadas vindas da sala de entrada.
Uma discussão?
Minha risada morre.
O coração salta uma batida.
Gael?
— Essa voz… — Maria Flor murmura para si mesma, seu semblante
confuso se transforma em câmera lenta, assumindo uma expressão de
espanto. Vincos suaves surgem em sua testa franzida e ela ofega alto. — Puta
merda, eu me esqueci!
Ela corre para fora do escritório e eu me lembro que preciso mover as
pernas também.
Que porra está acontecendo agora?
Ao som da voz de sua amada, Calebe se distrai e solta Gael, que não
perde a chance e deixa o braço voar para cima, acertando Calebe no meio do
olho esquerdo. Ele se desequilibra e cai para trás de um jeito nada glorioso,
batendo a bunda no chão, as pernas dobradas em ângulos opostos.
***
Porque significaria que você não vai mais me eliminar de primeira, e eu não
quero ter esperanças vazias.
— Eu não disse que aceitaria o pedido — ela afirma, e eu me seguro
para não dar apoio à Calebe, já que preciso ser eliminado custe o que custar.
— Nós dois sabemos que você vai aceitar. — Ele apoia o braço livre
no encosto da cadeira dela, e o movimento é tão natural, como se treinado ao
longo de muitos anos, que Maria Flor nem parece notar ou se incomodar. —
Você vai teimar e espernear até o último minuto, vai tentar buscar soluções
alternativas que não envolvam a eliminação dele, e vai perder horas de sono
me culpando por dificultar tanto a sua vida. Mas, no final, você vai ajudar os
dois, porque seu coração mole é uma das suas melhores qualidades.
Maria Flor nos olha de soslaio, remexendo-se na cadeira,
constrangida. Ele deve ter acertado em cheio para deixá-la tão desconfortável.
— Não.
— Então quem precisa de empatia sou eu, Calebe. Vai logo!
— Você fala da boca pra fora, Violeta, eu sei que não consegue viver
sem mim — ele diz, todo convencido. As afrontas dela não o afetam. Maria
Flor arma o celular outra vez, e para a minha completa surpresa, Calebe se
rende e pega a carne de novo, pousando-a sobre o olho inchado. Ele faz até
uma pose! — Além disso, eu sou bonito demais para morrer jovem.
— Ora, ora, o que tem de bonito, tem de modesto — ela ironiza,
tirando a bendita foto. Em seguida, guarda o celular sem disfarçar a satisfação
ela. Os dois estavam juntos de manhã, antes do nosso encontro, e ele deve ter
vindo direto do hotel onde ela está hospedada. Esses dois parecem um buraco
sem fim. Observá-los é enervante.
Maria Flor arrasta a cadeira e fica de pé, olhando para mim.
— Nós dois também deveríamos voltar para o nosso, você sabe,
encontro e tudo mais.
Calebe afasta sua mão, seu rosto tornando-se sombrio. Ele não
consegue disfarçar o ciúme, e eu não o julgo, até o admiro um pouco por
continuar tentando, mesmo que se machuque no processo. Não deve ser fácil
assistir a pessoa que você ama saindo com um potencial pretendente. E ele a
ama. Não tenho dúvidas, é evidente na maneira como seu olhar inflama sobre
ela, como seus ombros relaxam sempre que Maria Flor sorri, no estremecer
de seus dedos ao tocar a pele dela e o timbre de sua voz ao pronunciar os
apelidos de flores.
A única coisa que não entendendo é: se ele a ama tanto quanto
transparece, por qual motivo faria algo tão desprezível como traí-la com outra
mulher? Desejo, apenas? Um momento de surto?
A menos que não tenha traído.
— Vou acompanhar o Calebe até a porta — digo para Maria Flor, que
me olha sem entender. — Espere aqui com o Gael um pouco, depois nós
voltamos para o shopping.
Apoio-me no arco da porta e evito o seu olhar. Tenho que ser sincero. — Eu
não sei o que fazer, acho que estou esperando um milagre, ou simplesmente
jogando a solução dos meus problemas nas costas de vocês dois. Reconheço a
sua determinação, Calebe, você está correndo atrás do seu amor, já eu… —
Suspiro, cansado, os ombros pesados com meus dilemas e medos. — Eu
preferi ceder à pressão da minha família e entrar em um programa
casamenteiro, ao invés de lutar pelo cara que eu amo.
— Mas você está lutando — Calebe diz, irredutível. Não é da boca
para fora, ele tem certeza do que está falando e eu fico sem reação. — Você
está lutando — repete ante o meu silêncio e choque. — Lutar nem sempre
significa derrotar um inimigo, aguentar firme e sobreviver também fazem
parte da luta. Não diminua o seu mérito. Você ficaria feliz se Gael abrisse
mão dos sonhos dele para ficar com você? — Balanço a cabeça, negando. —
partir. — Calebe? — chamo. Ele para e olha para trás. — Você está lutando
bem também.
— Vou pensar sobre as provas para Maria Flor. — É a sua resposta.
— Boa sorte.
Observo as costas de Calebe se afastando, e me ocorre que gosto dele
também, assim como gosto de Maria Flor. São boas pessoas, merecem a
felicidade, e me sinto contente por tê-los conhecido, mesmo em uma
circunstância tão adversa.
Encaro o espaço vazio do corredor deixado pela partida de Calebe.
Ela já está com sua bolsa no ombro, pronta para voltarmos ao encontro.
Será que ouviram a nossa conversa?
— Ele não pode provar justamente porque não é verdade. — Maria
Flor responde ao meu questionamento interno.
Droga.
— Vocês estavam bisbilhotando? Ouviram tudo? — sondo.
— Só o final — Gael garante, para o meu alívio. Seria muito
constrangedor.
Menos mal.
— E se for verdade? — digo para Maria Flor, voltando ao ponto
principal.
— Não é! — Ela avança para a porta, mas me coloco
estrategicamente no caminho, atrasando sua fuga.
— Mas e se for? — insisto. — Tudo bem jogar fora a sua chance de
estar com quem você ama? Não tem problema ter esperanças, Maria Flor. Sei
que estou sendo intrometido, passando do ponto, mas não consigo evitar. É
frustrante que possam amar livremente e estejam desperdiçando essa chance.
MARIA FLOR
favorito.
Ele inspira aquele ponto inchado e sedento do meu corpo, o hálito
morno me levando ao delírio. Uma de suas mãos enormes segue seu caminho
para cima, transita pela minha cintura, marcando-me com sua pegada brusca
e dominante até chegar a um dos meus seios. No momento em que o envolve
inteiro com os dedos longos, sua língua cobre a pele úmida e sensível da
minha intimidade sem nenhum pudor.
Eu grito de surpresa e tesão, estremecendo, mas ele não para, não
Nada mais importa além de nós dois. Finalmente estamos juntos outra
vez, estou completa de novo e não preciso mais lidar com um futuro em que
a gente não exista mais, um futuro no qual eu me obrigo a me casar e ser
tocada por outros homens na esperança de um dia esquecer aquele que amo.
Olho para baixo e vejo minhas mãos afundadas em seus cabelos
desgrenhados, puxando e empurrando seu rosto no ritmo determinado pelo
vaivém dos dedos que me empalam. Estou no limite, ele sabe o que deve
fazer para me levar ao êxtase, é um especialista quando se trata de mim, mas
no momento em que as ondas delirantes do ápice começam a se amontoar no
mas assim que o tenho perto o bastante para sentir sua respiração se misturar
com a minha, Calebe sussurra:
— Aqui está a prova, Margarida.
Abro os olhos, desnorteada, a claridade fere a minha visão e eu me
no meio de um encontro com outro homem, então sim, pode-se dizer que era
um sonho bom.
Acho que é oficial: eu finalmente cheguei no fundo do poço. Na
verdade, suspeito que nem o fundo do poço queira chegar tão fundo.
esqueci que teríamos companhia. Eles instalaram uma pequena câmera dentro
do carro — a qual eu também já havia esquecido — para filmar nossa
interação durante o trajeto. Aposto que ficarão decepcionados quando
descobrirem que eu hibernei como uma marmota no inverno em menos de
— explica, mostrando mais dos dentes muito brancos em seu sorriso matador.
— Você pode tentar pular, é claro, mas eu duvido que consiga subir no
telhado, para começar. Mas, se a ideia é se livrar de mim, eu acho que a
varanda do segundo andar pode ser o suficiente.
— Sorte?
Os olhos de João Guilherme brilham, como se eu tivesse caído em
uma armadilha.
— Seria muito fácil conquistar você em um dia normal. Pelo menos
agora eu terei que me esforçar um pouco.
Só não lhe dou um soco porque não quero causar um acidente.
— Pois você está muito enganado se pensa que eu sou uma mulher
fácil de ser conquistada. — Empino o nariz e o enfrento.
em minha declaração.
— Que pena. — O carro perde velocidade até parar. João Guilherme
se desprende do cinto de segurança, apoia o braço musculoso no volante e
vira para mim. — Minha intenção não era fazê-la resistir, e sim que se
João Guilherme não pensa por mais que dois segundos antes de
responder:
— Você terá que me dar um beijo. — Ele reflete um pouco, sorrindo
perigosamente, e acrescenta: — Um beijo de língua.
Quase questiono a falta de lógica em sua proposta, já que,
comumente, um de nós ficar pelado pressupõe que ao menos tenhamos nos
beijado antes, mas não ouso mostrar a ele minhas preferências ingênuas. Eu
sei que ele não precisa me beijar para fazer qualquer coisa com meu corpo
nu.
— E se eu ganhar?
— Você terá direito a um pedido — propõe, parecendo bastante feliz
com a proposta. — E eu serei o seu gênio da lâmpada.
— E eu poderei pedir qualquer coisa? — Tomada pela adrenalina, eu
ouso desafiá-lo e deixo a ponta do meu nariz raspar em sua bochecha.
João Guilherme vibra, tensionando a mandíbula.
— Qualquer coisa que esteja ao meu alcance — sussurra, inebriado,
olhos nos meus. — O que me diz?
Eu aceito.
“Nunca subestime os seus inimigos. Quem come quieto, almoça e janta.”
JOÃO GUILHERME
blusa minúscula me salta aos olhos, junto com a barriga chapada e exposta.
A mulher é uma escultura em forma de gente.
— Está me ouvindo? — pergunta, inclinando a cabeça para o lado de
um jeito quase inocente. Com as mãos para trás, ela caminha de costas no
adversários.
— Não tenho o costume de trazer mulheres para a minha casa —
conto. Viramos no final do corredor e chegamos à cozinha. — Pelo menos,
não para esta casa.
— Já entendi tudo, senhor eu-tenho-muitas-casas. — Maria Flor vai
até a ilha no centro e se acomoda em um banco alto. Dois cinegrafistas
entram logo atrás de nós, silenciosos como sombras, e se posicionam nos
cantos. Fingimos que eles não existem. — Conheço o tipo, sou quase uma
especialista, já li muitos livros com caras como você, que consideram a casa
como um refúgio masculino sagrado e estranho que não deve ser
contaminado com mulheres aleatórias e sexo selvagem.
— O que? — Não aguento e começo a rir. — Que tipo de livro você
anda lendo? — pergunto retoricamente, bem ciente de quais livros se tratam.
Já li alguns deles. — Não é nada disso, só não tenho tempo para viajar todos
os dias. Essa casa fica muito longe da cidade, é mais prático ficar no meu
apartamento no centro, ou ir para um motel quando é o caso. Além do mais,
homens assim não existem, a gente gosta de sexo seja onde for,
— Quero que você não se torne mais um problema para ela resolver
até a primeira eliminação — disse com um pouco mais de rispidez, como se
aquela decisão lhe custasse um grande esforço.
— Ei, isso não é justo! — Maurício interviu. — Na minha vez, não
teve dicas.
— Não confio em você. — Calebe se recostou na poltrona da sala
onde estávamos e colocou os braços atrás da cabeça.
E ele confiava em mim?
descobrir o que mais ele tinha a oferecer por trás da postura de homem
arrependido.
— Não. — Ele me encarou. — Por que a pergunta?
— Só estou curioso. Olhando de fora, é difícil de entender porque um
cara como você, que pode ter tudo o que quiser, está se esforçando tanto por
uma mulher que te odeia.
— Ela não me odeia — disse, desviando o olhar para o chão. Nem ele
acreditava naquela merda que estava dizendo. — Ela acha que me odeia, é
diferente.
— Bom, ela tem motivos — provoquei.
— Ela acha que tem — Calebe vociferou, começando a se irritar.
— Culpado até que se prove o contrário — pressionei mais. Calebe
— Maria Flor não é uma mulher difícil de agradar. Ela gosta de coisas
doces e um cenário bonito. Se arrumar uma câmera para que possa se distrair,
será como colocar um brinquedo novo nas mãos de uma criança.
Calebe sorriu ao descrevê-la, e por um breve momento eu senti inveja
— Pode aproveitar o seu tempo com a minha mulher, faça ela sorrir e
gaste seus olhos com a beleza dela, mas não pense que estou dando a minha
maldita bênção para fazer o que quiser.
Seu aviso flutuou até mim enquanto ele se esgueirava para outro
cômodo do nosso apartamento. Pelo visto, ele não me achava tão inofensivo
assim, talvez só estivesse disfarçando muito bem.
Depois de muito ruminar suas dicas, cheguei à conclusão de que um
piquenique em meu humilde quintal de trinta hectares seria o suficiente. Se
eu estava me aproveitando da situação para voltar para casa? Provavelmente.
— Seus pais?
— Não tive pai, minha mãe me criou sozinha e acabou falecendo há
alguns anos.
— Sinto muito.
— Já faz tempo. — Dou de ombros para mostrar que está tudo bem.
— Na época foi doloroso, só tínhamos um ao outro. Com o passar dos anos
foi ficando mais fácil. A gente meio que se acostuma.
— Irmãos?
— Você sabe que nós, os noivos, não podemos ver a sua aparência
antes dos nossos encontros — lembro-a sugestivamente. — Investigar suas
redes sociais, como o seu Instagram pessoal, seria contra as regras.
Sim, digo através de um olhar solene, eu pesquisei sobre você, e, sim,
eu vi todas as suas fotos com Calebe, incluindo aquelas que eu preferia não
ter visto.
Ouço seu gemido frustrado, seguido por um silêncio tenso. Continuo
executando a minha tarefa, lendo os rótulos das embalagens — cerejas
frescas, queijo provolone, salame, peito de peru, torradas integrais — até que
seu sussurro preenche a cozinha.
— Que bom. — Ela morde o lábio inferior, envergonhada. — Porque
ainda tem coisas lá que preciso excluir. — Em outras palavras, ela quer dizer
que aquelas fotos não significam mais nada. Não que ela me deva satisfações,
de qualquer modo. — Pensei que ficaria tudo bem fazer isso só quando o
programa fosse ao ar, não imaginava que Calebe seria um dos noivos e nem
que tudo ficaria tão confuso.
— Você se arrepende? — pergunto de maneira vaga, organizando os
produtos dentro de uma enorme cesta feita com palha trançada.
— De ter entrado no programa?
Paro de me mover e a encaro, não querendo perder nenhuma de suas
reações à questão. Estou curioso para saber se aqueles sentimentos que vi
hábito que adquiri com o passar dos anos e que costuma me confortar.
Faz muito, muito tempo desde quando tive companhia em casa pela
última vez, e não tenho lembranças de alguém cozinhando para mim em um
passado próximo (se é que montar sanduíches se enquadra na prática de
agora já não tenho certeza se quero apenas brincar. Beijá-la soa como uma
possibilidade tentadora demais para ser desperdiçada.
...e gaste seus olhos com a beleza dela...
Não consigo parar de olhar, merda!
...mas não pense que estou dando a minha maldita bênção para fazer
o que quiser.
“Nada melhor do que um bom mergulho para refrescar ideias calorentas,
mas não esqueça do seu equipamento de segurança: um noivo ideal.”
MARIA FLOR
Suruba.
Quem inventou? Os gregos?
Com certeza os gregos, eles adoravam uma bagunça e eram bem
espertos. Bobos somos nós, que em pleno século vinte e um, ainda não
péssima freira.
— O que foi? Já é a quinta vez que você suspira nos últimos cinco
minutos.
Eu nem percebi que estava suspirando, ou babando. Recomponho-me
e paro de encarar seu corpo como se tivesse uma imensa placa escrita "sente
aqui" apontando para o seu colo.
Inferno, qual é o meu problema? Quando eu me tornei uma
ninfomaníaca?
Sinto o estômago dar voltas com seu aviso. Havia quase me esquecido
que ele é um mestre na arte das insinuações indecentes.
Fico de boca fechada, com medo de dizer algo estúpido, como au au.
Vendo que me deixou sem palavras, João Guilherme estica a mão e me
entrega a caixa de tamanho médio. É relativamente pesada. Eu a chacoalho
perto do ouvido, mas o som abafado não me dá pistas do que pode haver lá
dentro.
Sem fazer cerimônia, arranco o embrulho colorido e abro a caixa.
Como você fez a minha chaminé antiga se parecer com uma obra de arte?
Olhamos ao mesmo tempo para o topo de seu telhado, e depois para o
retrato quadrado entre meus dedos, uma fração congelada do tempo que
nunca mais se repetirá, o momento exato em que uma andorinha pousava nos
tijolos da chaminé.
— O segredo está nos detalhes — explico vagamente. Não dá para
resumir anos de estudo, profissionalização e experiência de campo, em uma
conversa. — Quer tentar?
— Não, não, vou acabar fotografando o meu próprio nariz. Não sou
bom como você.
— É para os bons momentos, você mesmo disse. — Coloco a câmera
nas mãos dele. — Vamos, tente, faça do seu jeito.
— Eu já falei para tomar cuidado com as coisas que você fala. — Ele
me puxa pelo braço, como uma boneca de pano, manobrando-me em cima
dele. Rindo e sem entender nada, esbarro em uma garrafa de chá gelado,
fazendo uma bagunça na toalha xadrez. Nenhum de nós se importa. — Tudo
bem, vamos do meu jeito, então.
Com a mão pousada em minha cintura, João Guilherme limita meus
movimentos e possibilidades de fuga, mesmo não fazendo parte dos meus
planos tentar escapar — ainda. Ele acomoda minhas pernas dobradas em
cima de suas coxas, meio sentada em seu colo. Apoio a cabeça em seu
Espera aí! Eu disse culpa? Que doideira é essa? Não posso me sentir
culpada toda vez que um homem me despertar sentimentos bons.
— Eu sei como se sente — João Guilherme diz no meu ouvido. — Há
cinco anos, encontrei minha namorada na cama com cara, bem ali, naquele
quarto. — Erguendo o dedo, ele aponta para uma janela do segundo andar,
onde sei que fica o maior dos quartos.
— Tá bom — debocho. — Até parece.
— É verdade! — insiste, beliscando a minha cintura. — Ela me
trocou pelo jardineiro. Eu estava trabalhando duro para expandir os negócios
e quase não tinha tempo para ficar em casa. Existe uma expressão para isso:
quem não dá assistência, abre a concorrência.
— Oh. — É a coisa mais inteligente que consigo dizer.
Quase pergunto quem seria doida de trocar um homem como ele por
qualquer outro, mas aí eu me lembro que também me achava a última Coca-
Cola do deserto e veja só onde eu estou.
— É por isso que eu não venho para casa com frequência.
E por isso não costuma trazer mulheres com ele.
— O anel era dela? — Aponto para sua corrente com o queixo e o
sinto ficar tenso ao meu lado. — Não precisa contar se não quiser.
Ele fica em silêncio por pelo que parece um mês inteiro antes de
responder.
quarto.
— É o que eu faria. — Deixo minha cabeça pender para o lado,
deitando-me em seu ombro. — Por causa do lance de sentir que preciso fazer
alguma coisa para não pirar, entende? Primeiro, eu pensaria em colocar fogo
Sexo não é um problema. — Com uma cara e um corpo desses, não duvido
do que ele diz. — Espera, você não fez sexo com ninguém desde o Calebe?
Preciso costurar a minha boca.
Ou cortar a língua
Logo agora que tinha conseguido ficar cinco minutos sem pensar em
Calebe.
— Cala a boca — murmuro.
— É sério?
Calebe.
— Eu estou falando sério. Superar um término sozinha demora muito
mais e é bem mais doloroso, digo por experiência própria. Às vezes, é melhor
arrancar o band-aid de uma vez, ao invés de sofrer aos poucos.
— Não estou atrás de sexo. Não preciso de sexo. Sexo é sup… — Ele
aperta a minha bunda com as duas mãos. Não havia reparado no tamanho dos
seus dedos até agora, mas eles envolvem praticamente toda a circunferência
da minha carne. — Superestimado — ofego. — Primitivo. — Pisco uma vez,
quero: deixar que João Guilherme siga em frente e dê o que meu corpo
deseja, mesmo eu sabendo que imaginarei outras mãos em meu corpo, outros
dedos dentro de mim, e outro colo enquanto cavalgo nele.
Não sou tão filha da puta assim.
— Desculpe — digo, o gosto amargo escorrendo pela minha garganta.
Minha mente e corpo entram em conflito e eu me atrapalho, sem saber como
agir, o que fazer, para onde ir. — Eu não…
— Tudo bem. — Dou graças a Deus quando João Guilherme
de um homem decente.
Camisa de força, por favor!
Ocupo-me com a comida, jogando um pouco de cada coisa na boca
para mantê-la cheia. Quanto menos eu falar, melhor. Dez minutos mais tarde,
para a minha alegria, João Guilherme assume a tarefa de fingir que nada
aconteceu.
— Se nos casarmos, eu vendo a casa — propõe outra vez, mas soa
mais como uma afirmação.
Respiro aliviada e sorrio. João Guilherme é um candidato forte, temos
muito em comum. Eu só tenho que continuar tentando. Entrego-lhe um copo
de plástico com suco de laranja e brindamos como dois sócios firmando um
contrato importante.
***
na margem do lago, sem coragem para ir mais longe mesmo João Guilherme
me falando que não há perigo.
— Não sei nadar — explico, olhando para trás, onde ele me espera em
terra firme, seco e seguro. — É ridículo, eu sei, mas nunca tive oportunidade
de aprender durante a infância.
— Não sabe nadar? — pergunta, incrédulo, como se eu tivesse
confessado que chutei um cão.
— E só aprendi a andar de bicicleta aos vinte e dois.
Calebe me ensinou.
Okay, não vou contar isso.
— Não sei assobiar — diz, posicionando-se perto da margem. — Eu
cuspo, é nojento.
Ele pega uma pedrinha do chão e a arremessa com força. A pedra
quica três vezes antes de afundar, formando pequenas ondas na superfície.
— Não precisa contar algo constrangedor só porque eu contei
primeiro. — Trocamos sorrisos cúmplices.
Está quase na hora de irmos embora. De todos os meus encontros,
este foi o mais longo e divertido. Parte de mim não quer voltar.
— É o justo. Você conta algo constrangedor, eu conto outro em troca.
— Sendo assim, está me devendo. Contei duas coisas — observo,
triunfante.
solares sobre a água. Sua animação me contagia. — O que foi? Acha que
homens não podem ler romance?
— Muito pelo contrário. — Sou obrigada a revirar os olhos. — Acho
que você acaba de garantir sua vaga na grande final. — Nós dois rimos ao
mesmo tempo. — Por que não terminou o seu livro?
Ele dá de ombros.
— É meio difícil escrever um livro de romance quando se perde a
vontade de amar. E, como eu disse, era um capricho, uma bobagem.
Tudo bem, não esperava por isso. Eu o analiso. Nada em sua voz
reflete o peso de sua declaração, como se não passasse de uma frase que já
foi repetida muitas vezes — suponho que o tenha feito para si mesmo ao
longo dos últimos cinco anos. Não trouxe a câmera comigo, precavendo-me
de derrubar meu presente recém ganhado na água, mas, olhando-o de pé na
margem seca do lago, com os pés descalços e sujos, mãos nos bolsos, sei que
conseguiria captar o que ele tenta esconder se pudesse fotografa-lo.
A solidão.
— Não é bobagem — digo, segurando-me para não ir até ele e fazer
algo do qual me arrependeria mais tarde. — Há coisas que eu quero fazer
também, como pular de paraquedas, plantar uma árvore em uma área de
reflorestamento, e dirigir uma limusine, sendo que eu nem sei dirigir. Nada
disso é bobagem. — Depois de uma pausa, acrescento com fervor: — Vários
— Claro.
Ele entra no lago, encharcando as calças. Seu reflexo tremula na
minha direção à medida que se aproxima até parar ao meu lado. Pego a pedra
que ele me entrega, testo seu peso, fecho-a em meu punho e jogo o braço para
frente com toda a minha força. Ela voa no ar, cai como uma bomba e afunda
de uma só vez.
João Guilherme explode em uma gargalhada, o timbre calmo e sereno
retornando.
— Tente curvar o pulso e jogar em linha reta, para que a pedra
deslize. O segredo não está na força, mas no ângulo correto, precisa afastar
mais os joelhos e controlar a sua respiração. — É oficial: ou ele consegue
fazer tudo o que diz parecer meio pornográfico, ou eu é que tenho a mente
poluída demais. — Aqui, pegue outra.
está o fundo escuro e mortal de um lago, do outro, o ser mais maligno que
existe (uma borboleta). Eu teria escolhido o fundo do lago mesmo.
Engulo um bocado de água enquanto me debato em uma tentativa
humilhante de nadar. Felizmente, não fico submersa por tempo o suficiente
para me afogar. Braços fortes me envolvem e sou puxada para cima.
Tossindo, tremendo e chorando, agarro o pescoço de João Guilherme
e me encolho.
— Porra, você está bem? — Escuto a preocupação em sua voz.
***
Depois que me acalmei, tive que lidar com a vergonha. Não estava
preparada para ver o lado protetor de João Guilherme, mas de todas as
versões que me mostrou no dia de hoje, aquela foi a mais surpreendente,
porque ele se tornou alguém que eu espero ter na minha vida, independente
das condições. O problema é que os encontros deveriam me trazer respostas,
e eu não poderia estar mais confusa.
Sou um desastre ambulante descendo desgovernadamente uma ladeira
esburacada.
Sento-me perto da janela, onde há incidência de luz, na esperança que
gelo.
— Obrigada por me salvar — digo, de novo. Perdi a conta de quantas
vezes agradeci e me desculpei com ele.
— Agradeça trocando de roupas — insiste. — Se estiver doente no
seu encontro com Calebe, ele vai arrancar o meu couro.
Sinto meu coração dar um solavanco.
Meu último encontro é com Calebe. Será a primeira vez que nos
veremos depois do beijo e não sei como me sinto com relação a isso.
Por falar em beijo…
expectativa pelo meu próximo encontro é tão intensa que sinto dificuldades
para respirar só de pensar em revê-lo, e que odeio a parte de mim que precisa
odiar Calebe.
Temos muito em comum.
Sem dizer mais nada, ele começa a se afastar a caminho da porta, com
ombros cabisbaixos e a mão presa naquele anel em uma mania inconsciente.
Antes de sair, eu o chamo.
— Se eu ganhei, tenho direito a um pedido, certo? Ainda não sei o
que pedir. Então, vou guardar este pedido para usar no futuro.
CALEBE
Não sou do tipo que sai por aí socando os outros sem motivo. Eu tive
a boa sorte de nascer com uma estatura bem acima da média, e graças aos
meus treinos, tenho um porte físico que faz as pessoas pensarem duas vezes
antes de se meterem comigo. Se me perguntarem se eu sei como nocautear
um adversário, responderei que sim, mas só por causa das aulas de boxe, jiu-
jitsu e, às vezes, karatê, que pratico por esporte. Então, repetindo, nunca fui
um cara violento, mas tenho pensado cada vez mais em como seria a
sensação de fechar meu punho na cara de alguns dos meus colegas de
apartamento.
— Está fazendo de novo. — Bartolomeu entra no escritório com uma
xícara fumegante em mãos. O cheiro doce de camomila preenche o ambiente.
— A cara de psicopata, Calebe. Aquela que combina com você, mas que não
é saudável, lembra? Já conversamos sobre isso.
para garantir que não estrague tudo. Meu futuro depende disso. Além do
mais, somos amigos.
— O que te faz pensar que somos amigos?
— Sou o único aqui que não quer comer a sua mulher.
Aperto a mandíbula. Não tenho tanta certeza de que Bartolomeu
estaria fora da fila se já não fosse comprometido, mas é verdade, não tenho
mais ninguém com quem contar e preciso de aliados.
— Tanto faz — digo entredentes. — Não preciso de babá.
exaustão das noites sem dormir direito estão cobrando seu preço.
— Ansioso? — ele pergunta.
Culpo o cansaço pela confissão irritadiça que escapa da minha boca.
— Puto. — Inclino-me para frente e jogo o material dentro de um
envelope. — Cansado de ser o cara bonzinho que todo mundo olha como se
fosse uma aberração, um traidor de merda.
— Está pensando em desistir? — Seu timbre é cauteloso.
— Claro que não — praticamente rosno. — Eu a amo, porra! Respiro
aquela mulher. Ela me tem em uma maldita coleira. — Aponto para a porta
que ele deixou aberta. — Mas, no final daquele corredor, existem três
babacas que se acham muito melhores do que eu, fantasiando com ela,
levando-a em encontros e tentando roubá-la de mim. E sabe a pior parte?
Talvez eles consigam.
— Isso se chama ciúmes, Calebe. Está se mordendo de ciúmes.
Rio sem humor, não preciso que me digam o óbvio.
João Guilherme voltou estranho depois do encontro deles, não
conversou com ninguém sobre o que aconteceu entre os dois, e cada vez que
bagunçados do meu cabelo. Ainda sinto o gosto dela na minha boca, o sabor
de sua língua quando nos beijamos, meu corpo continua quente e faminto,
babando para ter só mais um pedacinho dela. Estou sofrendo com o pior caso
de ereção contínua da história, tenho o direito de sentir um pouquinho de
ciúmes, merda!
— Aos olhos de todos, eu sou o vilão. Sou aquele cara que partiu o
coração da mocinha, o canalha que a trocou por uma gostosa qualquer, e que
comete todo tipo de atrocidades para impedi-la de seguir em frente. — Solto
diferença, continue sendo o vilão que todos esperam e guarde para ela o
verdadeiro Calebe.
Reflito por alguns segundos, deixando a raiva esvair lentamente.
Saboreio seu conselho. Não sou uma pessoa ruim, eu faço doações de sangue
a cada seis meses, ajudo financeiramente abrigos locais que salvam animais
de rua, e organizo eventos beneficentes duas vezes ao ano, também sou
educado com a maioria das pessoas, ajudo velhinhas a atravessar a rua e toda
a merda que se espera de alguém bom, mas não preciso provar nada disso a
ninguém.
Se já estou condenado pelo crime de ser um vilão, por que não fazer
proveito da minha condenação? Quando esperam o pior da gente, os limites
meio que perdem o sentido.
***
Atrasada, como todo o sempre. Olho para cima e decido que não é
uma boa ideia subir até o apartamento dela. Não confio em mim mesmo para
Ótimo, maravilha, ela ainda nem escolheu a roupa que vai usar. Por
que eu ainda me surpreendo?
"Apenas fique gostosa", digito em resposta, acrescentando vários
emojis de fogo e coração na frente, pois sei que ela odeia.
Outra mensagem chega em segundos: "Surpresa! Eu nasci gostosa."
Disfarço meu sorriso, coçando a ponta do meu nariz quando vejo a
equipe de gravação me encarando. Em tese, eu e Maria Flor não deveríamos
manter contato, mas nem morto deixarei de falar com ela justo agora que
Vinte minutos depois, Maria Flor desce. Sei que ela chegou muito
antes de erguer meus olhos, pois todos ao meu redor respiram fundo,
prendendo suas respirações, incluindo os transeuntes anônimos e curiosos
que pararam para espiar o que estava acontecendo para reunir tantas câmeras
em um só lugar.
Apelidei seu vestido de Abaixo ao Patriarcado por um bom motivo:
vestida com ele, ela tem o poder de colocar todos os homens aos seus pés.
O negócio não passa de um minúsculo pedaço de pano vermelho que
mal cobre sua bunda. Cada vez que ela rebola, descendo os degraus do hotel,
o tecido sobe, expondo quilômetros de pernas. Um centímetro a mais e eu
conseguiria ver a sua calcinha. Sinto o pau inchar dentro das calças e apoio-
me no teto do carro para não cair de joelhos.
***
sabedoria — tudo bem que ela vai querer me assassinar daqui a pouco.
Pouso a mão em sua lombar, conduzindo-a para dentro do primeiro
grande salão branco e bem iluminado. De acordo com as minhas pesquisas, a
galeria é despretensiosa, mas requintada, cinco ou seis espaços montados
para acolher um número mediano de visitantes selecionados, com corredores
largos entre cada estação que servem de abrigo para obras menos renomadas.
— Sabia que ia gostar — sussurro em seu ouvido. — Eu tinha que
superar João Guilherme e sua câmera fotográfica.
processo?
Claro que ela sabe.
— Não vai funcionar — diz, taxativa, encarando a fotografia. Ela
recua, roça a bunda na minha virilha enrijecida, na altura perfeita graças aos
saltos, entrando no meu joguinho sórdido. — É uma gota — analisa com a
voz meiga. — Uma gota densa e melada sobre a panturrilha de uma mulher
nua.
— Humm. — Ela está certa, consigo visualizar com exatidão. É sexy
pra caralho. — Está escorrendo.
Maria Flor avança, comigo em seu encalço. Para diante de uma foto
emoldurada ao lado da porta. Ao apontar para o canto direito da imagem, sua
mão treme, e tudo em mim se contorce de necessidade e devoção. Eu adoro
como ela é toda gostosa e cheia de si, mas tem um lado tímido também contra
não a empurro contra a parede e reclamo sua boca é um mistério que não sei
responder.
Passamos por um conjunto de fotos literais que compõem um projeto
chamado "Everywhere". Na primeira delas, há um pé com os dedos se
alongando, na segunda, uma mão agarrada a lençóis brancos e, na última, a
curva de costas femininas arqueadas. O prazer manifestado em todas as partes
do corpo, como o nome sugere. Não é erótico apenas, mas íntimo demais,
quase proibido.
mulher ao meu lado e mais ninguém. Passeamos pelo salão inteiro, quietos, o
rubor carimbado em suas bochechas.
Rumo ao terceiro espaço, recebemos taças e champagnes de um
garçom uniformizado.
Deixo o assunto de lado por enquanto e vou atrás dela, que também já
se livrou de sua bebida intocada. Minhas mãos a buscam no mesmo instante e
Maria Flor não se surpreende quando a abraço por trás, capturando toda sua
pequenez com o meu corpo, como se meu toque lhe fosse natural.
— Descreva — peço, referindo-me a nova fotografia: o busto de uma
mulher deitada de perfil. — Ainda é sua vez.
Sinto-a encolher, espiando sobre os ombros em direção aos
funcionários do programa. Acho que os odeio. Melhor dizendo: eu os odeio, e
um passo à frente, ela recua. Como espera que eu não sorria com seu
comportamento arisco? É adorável.
— Segundo — continua, retomando sua listagem sobre… Sobre o que
era mesmo? Ah, sim, os motivos pelos quais devo parar de seduzi-la. Há-há.
— O Noivo Ideal é um programa de família, acha mesmo que vão mostrar
isso na televisão? — Maria Flor aponta o retrato atrás de mim, a silhueta de
duas línguas se tocando.
— Você me subestima, Girassol. É claro que consultei o diretor antes
de comprar os ingressos. Na verdade, somos obrigados a reportar tudo à
começando a ficar repetitivo. — Laço sua cintura com apenas um braço. Pega
de surpresa, Maria Flor não tem tempo de escapar. — Principalmente quando
seu corpo me diz o contrário.
Seus olhos incendeiam com ferocidade e desejo.
apertão antes de soltá-la e sorrir. — Depois, vamos testar essa sua teoria.
Eu sou como qualquer outro? Porra nenhuma!
Maria Flor estreita os olhos marrom-escuros, tentando juntar as peças
e decifrar o significado por trás das minhas palavras e intenções.
MARIA FLOR
permitida. Ele está com pressa, seja para se livrar de mim ou por qualquer
outro motivo que desconheço. Sou orgulhosa demais para perguntar, além, é
claro, de também sentir o mesmo: quanto antes nos distanciarmos, melhor.
Então, que seja!
combina com ele, e não abre mais a boca. Eu, ao invés de agradecer por seu
silêncio, já que sempre brigamos quando ele decide agir como… bem, como
ele mesmo, sinto uma repentina vontade de gritar, tanto comigo, por ser uma
fraca que sente atração por homens desleais, como com ele, por me deixar tão
confusa (e ser desleal).
Eu jurava que ele tinha um plano. Parte de mim estava ansiosa para
que tivesse. O que eu esperava? Que Calebe se oferecesse para passar a noite
comigo? Não seria contra as regras do programa, eu sei. Eu e os noivos não
podemos nos ver ou tocar antes dos encontros, mas durante, ou depois, nas
e mistério, chega ao fim mais apagado que uma fogueira na chuva. Por minha
causa.
Era o que eu queria, não era? Bem feito para mim.
Sinto um toque no meu ombro e salto para fora da minha mente, só
Engasgo com o grito que fica preso na garganta, minha alma sai do
corpo e só não caio de joelhos porque reconheço a presença taciturna da
silhueta corpulenta atrás de mim.
Seu cheiro, seu calor, a cadência grossa de sua voz.
— Calebe! — Deixo as chaves caírem no chão e giro sobre os saltos a
tempo de ver os braços dele me prendendo contra a porta. — Você quer me
matar do coração? O que você… — Acima de mim, como uma gaiola de
músculos, Calebe me afoga em seus espetaculares olhos verdes. — Como
chegou aqui tão rápido?
Jura, Maria Flor? É essa a sua preocupação? Ser pega? Não a sua,
assim, quem sabe, DIGNIDADE?
— Já cuidei de tudo — garante. Sua respiração é de alguém que
correu uma maratona. — Por que você acha que eu disse aquilo no carro, na
Os outros noivos.
Abaixo os olhos, com vergonha de encarar Calebe, sentindo-me, pela
primeira vez na vida, um pouco piranha por ter homens — no plural — para
me preocupar. O programa só vai ao ar daqui várias semanas. Eles não terão
meu pescoço à clavícula. — Você tem dez segundos para decidir, Margarida.
Nove, oito…
— Não podemos — choramingo, meu corpo pulsando de tesão,
dominado, faminto.
***
preservação.
— Não me interrompa — reclamo.
Ele sorri.
— Certo.
— E não me toque. — Ergo a mão e recuo um passo quando ele faz
menção de se aproximar. Calebe obedece na mesma hora. Se ele me tocar,
meu surto de consciência vai por água abaixo. — Preciso que faça isso por
mim agora, seja meu amigo e me dê um bom conselho. Não como Calebe,
meu ex-noivo, nem como Calebe, meu candidato a noivo, ou Calebe, o cara
que me traiu, mas como Calebe, meu amigo, aquele em quem eu costumava
confiar, que completava as minhas falas e entendia o meu coração.
Calebe nem vacila. Amo isso nele: que me conheça ao ponto de não
se surpreender com minhas crises existenciais fora de hora.
— Estou ouvindo.
Tomo fôlego antes de começar.
— Tem esse cara que me levou para sair…
— Eu já o odeio — Calebe diz, fazendo graça. Eu o repreenderia se
— Sua mente está anos luz à frente da minha, Violeta. Acho que não
consigo acompanhar a genialidade da sua analogia. A vizinha é importante
para a história? Qual era a raça da cadela? O que vai acontecer com os
filhotes? — Ele arregala os olhos teatralmente. — São muitas perguntas!
— Não existe uma vizinha e nem uma cadela, meu Deus, você é tão
bobo. — Tento parecer brava, mas sou traída pela minha própria risada. —
Estou dizendo que ele cometeu um erro colossal e acha que pode se redimir
só porque tem um rosto bonito que fica ainda mais bonito quando está no
meio das minhas pernas.
Calebe solta um som que pode ser tanto um gemido como um
engasgo.
— Uau, fomos de zero a cem em um segundo? Agora você tem a
minha atenção. — Seu olhar desce pela linha invisível que separa a minha
cabeça do restante do corpo, demorando-se nos meus seios antes de vagar
mais para o sul. — Retiro o que eu disse. — Diversão e lascívia tomam conta
do seu sorriso. — Você sempre tem a minha atenção.
Como se fosse um toque suave, sinto o seu olhar, literal, sólido, um
deslizar de dedos invisíveis explorando a pele vulnerável do meu corpo. A
familiar tensão se acumula na base da minha barriga e respiro fundo três
vezes antes de voltar a falar.
— Então me ajude. Me dê um conselho.
e sete anos e sei o que significa acompanhar um homem até o seu quarto, no
meio da noite, após um encontro safado que deixou nós dois morrendo de
tesão.
— Faça a pergunta, Copo-de-leite.
Ele se abaixa para encontrar meus olhos, parecendo tanto ansioso
como preocupado.
— Se a gente transar, ele ganha? — Assim que eu vomito as palavras,
sinto vontade de engoli-las de volta.
— nada típico dele — e ampara meu rosto. Não é um toque indecente, mas é
íntimo, e eu sinto sua proximidade em todos os pontos cegos do meu corpo,
lugares que já foram foco de sua atenção e desejo várias vezes: o vale entre
meus seios, o côncavo da minha barriga logo acima do umbigo, a parte
perigosa e sorrio. — É desse outro cara bonito que por um acaso se chama
Calebe. Agora, chega de papo furado e me diga logo o que fazer.
A expressão de Calebe suaviza, sua mão escorre ao longo do meu
ombro até o cotovelo.
— Eu acho que — ele diz em tom baixo — enquanto perde tempo se
preocupando com besteiras sobre ganhar ou perder, está se esquecendo do
mais importante.
— E o que seria?
— O que você quer. — Calebe invade o meu espaço pessoal,
beijo ardente e necessitado. Ouço a porta de fechar — ele deve tê-la chutado
com o calcanhar — e a segurança da privacidade arranca de nós os últimos
resquícios de contenção. Somos eu e ele agora, de olhos fechados para o
mundo.
Abraço Calebe, segurando-me em seus ombros para me equilibrar.
Enfio os dedos em seus cabelos macios e os puxo com força e selvageria,
arrancando dele um grunhido de aprovação. Suas mãos estão em toda parte,
desesperadas para sentir o máximo de mim, e de algum jeito ele consegue
chegar aos meus seios espremidos contra os músculos definidos de seu tórax.
liderança.
Enquanto se abaixa, seus dedos encontram um caminho fácil por
baixo do vestido curto e agarram as laterais da minha calcinha, levando-a
junto com ele para o chão. Arquejo alto quando a exposição da minha nudez
o faz rugir.
Estremeço assim que ele toca meus tornozelos e sobe com lentidão.
Eu devo estar mesmo desesperada para gemer com um toque tão casto.
Sorrindo em aprovação, Calebe mapeia minhas panturrilhas e a imagem de
um dos quadros que vimos na galeria me vêm à mente, aquele em que havia
uma gota de sêmen escorrendo pelas pernas de uma mulher, e me sinto
inflamada pela expectativa de reproduzir a cena com ele, de tê-lo em todo o
meu corpo até que seja impossível arrancar seu cheiro de mim.
— Segure-se.
Mal tenho tempo de processar sua instrução. No momento em que
agarro seus cabelos, ele ergue meu joelho por trás e acomoda minha perna em
seu ombro livre. O vestido, que nunca conseguiu esconder muita coisa, recua
na altura da minha cintura, a liberdade da minha pele se curvando ao prazer.
Calebe me mantém firme, pousa a mão aberta em minha bunda para
que eu não caia e nem saia da posição. Beijos são depositados na parte
interna da minha coxa e eu paro de respirar assim que sua boca paira sobre a
minha intimidade. Um único olhar de aviso antecede o encontro de seus
lábios com a pele sensível. Sua língua desliza devagar, provando, testando,
saboreando o banquete que eu lhe ofereço com as intenções mais puras.
Puramente depravadas.
Um gemido involuntário foge da minha garganta, o estímulo que
para me admirar.
Seu olhar faminto me deixa consciente da minha aparência arruinada.
Sinto-me obscena sob sua perspectiva, com os seios inchados à mostra, as
pernas levemente abertas em um ângulo revelador e uma camada de suor
fazendo minha pele brilhar.
— Significa — respondo, afastando os joelhos — mas gosto de
pensar que o próximo será ainda melhor.
— Ah, não tenha dúvidas. — Calebe engole em seco quando lhe
ofereço um pequeno show: agarro meu seio e deslizo a outra mão até o centro
desafio secreto.
Ele quer jogar comigo.
— Leonardo foi um cavalheiro. — Faço um beicinho inocente. —
Ele só beijou a minha mão, nada demais.
— Essa mão? — Calebe vem até mim e segura meu pulso no alto. Seu
timbre rouco é a personificação da maldade velada. Habilmente, retira o cinto
e abre sua calça, livrando seu membro em agonia da cueca apertada. Ele salta
diante de mim, tão longo e grosso quanto eu me lembrava, com o
emaranhado de veias cobrindo sua extensão da base até a ponta. —
eu fosse uma miragem. Mas, já que miragens não tocam punheta, trato de
lembrá-lo que sou real e espremo sua carne rígida.
Calebe geme, rangendo os dentes.
— Mais rápido, Malmequer, você está me matando assim, porra.
Rio baixinho com a eufórica onda de orgulho que me acomete e
atendo ao seu pedido, subindo e descendo, apertando e tremendo. Calebe toca
meu rosto, nossos olhos turvos se agarram em um abraço íntimo, dominante,
erótico. Ele fode minha mente com o olhar enquanto eu o fodo com a mão, os
dois entregues à paixão quente e incontrolável que sentimos um pelo outro.
meus seios, que os admire e fantasie com eles em sua boca — Calebe saliva
enquanto os encara —, e gosto, principalmente, que masturbá-lo me deixe tão
molhada quanto ser chupada por ele.
Percebo que está a ponto de explodir pelo modo como seu abdômen
retesa por baixo de sua camisa. O serzinho infernal que habita no meu ombro
sussurra uma ideia boa demais para ser ignorada — e a desculpa perfeita para
realizar uma vontade exclusivamente minha.
— Lembra que o Maurício quase me beijou? — pergunto, piscando
que sou.
Deus, eu não valho nada.
Calebe balança a cabeça, fulmina-me com os olhos verdes inflamados
e descontrolados — porque eu o estou levando à loucura, e amo isso.
Atendendo às minhas expectativas, ele agarra meu rabo-de-cavalo,
arruinando meu penteado à lá Ariana Grande, e se encosta na minha boca.
— Chupa mais — manda, espelhando minha malícia. — Com mais
força.
Ele tenta sair da minha boca. Tenta. Até parece que vou soltar agora. Não
nadei tanto para morrer na praia. Sugo uma última vez, longo e forte,
incentivando-o a seguir em frente. Mostrando que o quero. — Merda…
Quando o líquido morno enche minha boca, meu clímax explode e
flutuamos juntos para um mundo suspenso e isolado em que me permito amá-
lo com todo o meu ser.
Calebe se afasta por um segundo antes de se abaixar e me puxar para
um abraço.
— Eu… — Eu amo você? Não posso dizer isso. O que estou
— Impressionante — zomba.
— Sua vez, espertão. — Viro-me de costas e jogo meu cabelo por
cima do ombro, exibindo o zíper do meu vestido. Sei muito bem o que ele
está vendo: minha bunda. E sei também que é um golpe baixo (não sinto pena
Seu olhar, que às vezes é tão intenso que faz minhas pernas
bambearem, meu coração falhar e o oxigênio ser roubado dos meus pulmões.
— Você não vem? — ofego.
Não preciso chamar duas vezes. Enquanto me deito no colchão,
tremendo de antecipação, ele se levanta. No caminho, remove as demais
peças de roupa e as joga para os lados, deixando sapatos, calça e cueca
espalhados pelo quarto todo. Calebe fica bonito de qualquer jeito: vestido
com terno e gravata, com roupas de academia ou uma bermuda casual. Mas
Calebe pelado é uma coisa inexplicável.
O colchão afunda com o peso do seu corpo quando ele sobe e rasteja
até mim. Apoio-me no cotovelo, à espera de seu primeiro movimento,
abrindo mais as pernas para que me tome de uma vez e sacie a monstra
faminta que resolveu se instalar no meu útero desde que ele me deixou.
Desde que eu o deixei.
Tanto faz.
Mas Calebe não move um músculo. O cretino fica lá, de joelhos,
parado, olhando.
dor.
— Por cima da roupa — explico ao me dar conta de como minha
sentença soou errada. Pouso a mão em seu peito e comprimo minhas paredes
ao redor de seu pau, que pulsa de volta. — Não durou mais do que alguns
segundos e eu pensei em você o tempo todo, em como queria que fosse você,
o seu colo, seu corpo…
Sei que estou me entregando demais, mais do que deveria, mas não
quero mentir.
Calebe tenta, sem sucesso, conter um sorriso. Ele gosta de ter seu ego
amaciado, afinal.
— O quadro, na galeria — ele se recorda, voltando a se movimentar.
— Por isso você ficou toda estranha.
Sorrio, mordendo o lábio.
te empalando fundo.
Que ordinário!
Adeus, restinho de sanidade.
Despida de pudor e modéstia, faço movimentos circulares sobre a
pélvis de Calebe, sentindo-me uma extensão de seu corpo: para cada som que
emite, outros dois escapam de mim em deleite, cada olhar cobiçoso que ele
exprime traduz um pedido diferente, que eu atendo sem que palavras sejam
usadas no processo.
Calebe pragueja quando acelero, rebolando loucamente. Suas mãos
última estocada violenta. Eu tremo e choro, gemendo seu nome por uma
eternidade enquanto nossos espasmos se prolongam em suor e arquejos.
Quando ele me beija, abraçado a mim como se nossas vidas
dependessem disso, eu fecho meus olhos e o abraço de volta. Dentro da nossa
bolha momentânea onde tudo é perfeito, permito-me sentir a verdade que
venho escondendo até de mim mesma.
Eu ainda amo Calebe.
Nunca deixei de amar.
E estou ferrada.
“Palavras, depois de soltas, não podem ser engolidas. Alimentar-se do
silêncio é sempre a melhor opção.”
CALEBE
Estou pagando meus pecados de todas as vidas graças a ela, que ainda
vai me deixar louco.
Louco mesmo, no sentido literal da palavra, com direito a camisa de
força e tudo.
conversar comigo? Jamais. — Depois de, você sabe, um dos dois cometer
adultério.
Com cautela, eu me aproximo, não gostando nem um pouco do que
está insinuando.
com força e Maria Flor encosta a testa no meu peito. — Não sei o que estou
dizendo.
Mas eu sei muito bem. Escuto a pulsação do meu sangue no ouvido e
contenho o impulso protetor de abraçá-la. Se a tocar agora, é bem provável
que eu aceite qualquer merda que me ofereça.
— Que talvez a gente ainda possa ficar juntos — digo, sintetizando
suas palavras. — No futuro, algum dia, quando você se sentir pronta para me
perdoar, apesar da minha… — Não consigo nem dizer sem sentir meu peito
rasgando. — Traição?
Suas duas mãos ficam pousadas em meu peito e Maria Flor afasta o
rosto para me olhar.
— Isso. — É alívio que escuto em sua voz? — Obrigada por entender.
— Entender? — Sorrio sem humor, sentindo uma onda de náusea e
mágoa tomar conta dos meus sentimentos. Quanto mais a encaro, mais eu
quero tê-la perto de mim, independente de seus termos serem quase injustos,
humilhantes. — É melhor você ir agora.
Obrigo meus pés a se moverem para longe dela, uma tarefa quase
impossível levando em conta que meu corpo reage à sua proximidade como
um servo. Passar a noite inteira ao seu lado só agravou minha dependência.
— O quê? — pergunta, confusa, piscando diversas vezes como se
não acreditasse no que seus olhos enxergam.
programa. Esperava qualquer coisa, Malmequer, até o seu ódio! Mas o seu
perdão… — Nego com a cabeça. — Não preciso dele.
Eu errei em permitir que um mal-entendido nos separasse, e errei ao
demorar tanto para me explicar. Porra, errei em não correr atrás dela antes!
deixar as coisas como estão, okay? Não quero estragar a ótima noite que
tivemos com uma discussão. Foi a primeira vez em semanas que
conseguimos ficar juntos sem brigar.
Maria Flor não abaixa a guarda. Ela parece feroz, revoltada e
perigosa. E, mesmo que eu seja o alvo de sua raiva no momento, não a acho
menos do que magnífica.
— Eu estava tentando fazer as pazes, Calebe — diz entredentes. —
Eu coloquei o meu orgulho de lado e ofereci uma solução!
Meu lado racional entende que ela não está errada, que sua oferta foi
desdém.
— Quer saber? Você disse que é cansativo me odiar, mas experimente
amar você para descobrir o que é cansaço de verdade! — Arrependo-me de
cada palavra assim que elas saem da minha boca e como soam erradas. —
Não, não foi isso que eu quis dizer. — Fecho meus olhos, querendo voltar
dez segundos no tempo.
Merda! Não era para ser assim. Como as coisas se descontrolaram
tanto?
Olho para Maria Flor, paralisada no lugar, olhando para mim com um
semblante devastador.
— É melhor eu ir — ela diz, engolindo em seco e desviando o rosto
para a saída.
Aquiesço, ciente de que nada do que dissermos pode consertar a
situação agora que o estrago está feito.
No fim das contas, meu plano de me fingir de vilão deu certo, mas da
pior maneira possível: aquela em que eu de fato me transformo em um.
— Foi o que eu disse.
“Quando um não quer, dois não brigam.”
MARIA FLOR
consigo me lembrar.
Foi logo após a descoberta, ou eu segurei as lágrimas por algumas
horas? Eu as deixei cair durante o banho, ou meu travesseiro ficou molhado
por vários dias? Será que eu chorei o tempo todo?
Em que momento eu parei de chorar?
Não me lembro.
É um pouco decepcionante, admito, porque agora não tenho como
comparar aquelas lágrimas dolorosas com as atuais, que ameaçam escapar
dos meus olhos enquanto Calebe entra no estúdio vestido com um terno
ponto. Eu não tinha nada que abrir a minha boca imensa e estragar tudo.
Admito que, dessa vez, nós dois passamos do limite.
Os noivos entram um atrás do outro, em uma fila indiana comportada.
Eles foram instruídos por alguém da equipe, suponho, e seguem direto para
os seus lugares: cinco cadeiras decoradas com rosas vermelhas, organizadas
em um semicírculo no meio do palco, como objetos em uma vitrine feita
especialmente para mim.
É a primeira vez que os vejo reunidos, e meu coração começa a dar
profissional.
Como não vou conseguir escapar da questão, respiro fundo e
respondo:
— Nervosa é a palavra certa. — Cruzo as mãos em cima do colo,
sentindo o olhar de Calebe. Não o procuro ainda, seria um tiro no pé.
— Mas, já fez a sua escolha, certo?
— Eu… — Pisco, sentindo a garganta se fechar. Eu achei que tivesse
feito. Por algumas horas, tive certeza de que Calebe não era mais uma opção.
Agora…
se sentiram.
— É Maurício — Calebe volta a falar. — Conte o que achou do
beijo.
Alguém coloque uma focinheira nesse homem, por favor!
Maurício lança um olhar cauteloso a ele, como se temesse sofrer um
ataque ali mesmo. Considerando que Calebe o encara com os olhos pingando
lava vulcânica, entendo sua preocupação.
— Na verdade… — Maurício se recompõe e escolhe a pior rota de
fuga do mundo: — Odiei, ela nem beija bem.
Não.
Nem um pouco.
— Sim.
Calebe fica de pé — o único que se prontificou. As câmeras se
dividem entre ele e eu, e me sinto exposta e desconfortável. No momento em
que começa a falar, entretanto, sua voz bloqueia tudo, roubando minha
atenção.
— Correr atrás do que é importante para nós, às vezes é cansativo,
principalmente quando a gente acha que não está chegando em lugar nenhum.
Mas ninguém conquista nada sem esforço, e, muitas vezes, o valor daquilo
que almejamos pode ser medido pelo nível do nosso cansaço. — Calebe não
olha para Miguel, ou para as câmeras. Só existe eu em seu olhar. — O seu
valor é inestimável, e eu sempre soube que não seria fácil por isso, mas eu sei
também que vale a pena. Você vale a pena.
É um pedido de desculpas, percebo, com o coração socando meu
peito.
Está usando sua única chance para consertar aquilo que quebramos
***
encara de volta. Estou usando outro vestido virginal. Meu figurinista não tem
muita noção de personalidade, mas deve ser coisa do programa, para brincar
com o conceito de noiva pura.
Por mim, eu o jogaria no fogo — do inferno — com muito bom
grado.
A porta se abre e eu me viro, pensando se tratar de alguém da
produção, mas sou pega de surpresa por Calebe, que tranca a porta depois de
entrar.
— O que veio fazer aqui? — pergunto na defensiva.
Já não me sinto mais possessa de raiva, ou triste e devastada. Tá, eu
admito, sua declaração no meio do programa me derreteu e meu estoque de
panos para passar quando se trata de Calebe parece não ter um fim.
alguém é você. E não vou te pressionar a voltar para mim e fingir que nada
aconteceu. Eu só não quero perder isso. — Ele deposita um selinho na minha
boca, que não rejeito. — Não depois do que fizemos, de tudo o que sentimos.
— A gente sempre acaba brigando — digo, encarando sua boca e
desejando beijá-lo. — Como se estivéssemos em uma guerra sem fim.
Calebe me solta e puxa seu lenço do bolso de seu paletó, o tecido
branco se desdobra.
— Esta é a nossa Bandeira Branca da Paz, me dê a sua mão. —
Levanto meu braço e Calebe começa a amarrar aquele pano ao redor do meu
pulso. — Sabia que existe uma Convenção que regulamenta o uso da
bandeira?
— Isso é um lenço. — Sorrio, só de implicância.
— Bandeira — insiste, dando mais um nó. — Se chama Convenção
de Genebra. Ao levantar uma bandeira branca no meio da guerra, um exército
está desistindo da batalha, ou pedindo uma trégua. Essa é a nossa trégua.
É um jeito bobo de resolver nossa briga, mas também é fofo.
— E o que acontece se um de nós dois não respeitar a trégua? Ou se
Olho para meu pulso quando ele termina seu trabalho, o lenço branco
todo embolado e frouxo, e acabo sorrindo.
— Desculpe por ter sido insensível naquele dia. — Até eu me
surpreendo comigo mesma. Mas, se Calebe está sendo maduro, eu também
consigo.
Não custa nada tentar.
— Já passou. — Ele me abraça e beija minha testa. — Quero apenas
que não me descarte, que me considere como um dos seus candidatos e que
candidato com privilégios. O único. — É a última coisa que ele diz antes de
me beijar, selando nosso acordo de paz.
“Família: conjunto de pessoas que se amam. Sinônimo: hospício.”
MARIA FLOR
o que isso significa. Prefiro não pensar na minha mãe assistindo pornôs de
qualquer tipo.
Pedro Henrique logo se propôs a fazer aquilo que ele faz de melhor:
ser uma criança pré-adolescente fofa? Não, não. Explanar todos os meus
defeitos e histórias constrangedoras de família, como a vez em que eu me
vesti de mamãe noel sexy durante o natal porque queria fazer uma surpresa a
Calebe, mas entrei no quarto errado e me sentei em cima do tio Tom, um
primo do meu pai que estava passando as férias com a gente.
— O quê?
— Teste de fidelidade — prossegue, animada — para sabermos se são
fiéis. Papai se recusa a eliminar o Judas, Pedro também o idolatra, mamãe o
considera um filho e já não acredita mais que ele te traiu de verdade, então eu
sou a sua única esperança. Quero garantir que você tenha uma opção não-
adúltera entre seus três finalistas.
Encaro minha irmã, seu belíssimo rosto de princesa, os cílios longos e
escuros. Quem a julga pela aparência, pensa que se trata de uma dama da alta
sociedade, com seus sorrisos fáceis e a voz de veludo. Ninguém imagina que
por trás de toda a fachada encantadora, existe uma mente ardilosa, quase
criminosa.
— Eu não sabia que falava dois idiomas, Alice. — Sorrio para ela,
disfarçando quando uma câmera dá um zoom bem na minha cara.
— Eu não falo. — Ela une as sobrancelhas, sem entender.
— Fala português e muita merda! — ralho. — Tá maluca, cacete? O
que eles vão pensar de você? E se um deles retribuir?
Alice desdenha de mim com a mão.
— Ah, eu sou uma vaca, Maria Flor, é bom que saibam logo, caso
entrem para a família. Veja o Judas, ele pode ser o que for, mas não me
subestima. Não ligo para o que pensam de mim. — Alice me olha de
esguelha. — Mas, se um deles retribuir, você vai ficar triste? Não está
Alice pega sua taça de vinho e bate contra o meu copo de água, em
um brinde profano que faz um calafrio percorrer minha espinha.
— Deixa comigo, Blood Mary, sei o que estou fazendo.
***
— Você não está falando sério — ofego, dando risada contra a sua
boca.
Sua mão escorrega até minha coxa e me aperta por baixo da saia
volumosa.
fôlego entre um movimento e outro, mas não encontro brechas. Ele continua
me beijando e eu continuo retribuindo.
Sua ereção é um pulsar rígido que faz meu interior se contrair,
chorando para senti-lo aqui e agora. As mãos de Calebe pressionam minha
bunda, moendo com ganância até alcançar a linha tênue entre a dor e o
prazer.
Meus pulmões ardem, meu corpo inteiro vibra com o conflito sobre
encerrar o beijo ou morrer por falta de ar. Escolha difícil! Calebe, felizmente,
cede primeiro e se afasta. Ao contrário de mim, que estou ofegante como uma
***
Calebe já havia antecipado todo o rolê e sacou um lenço de seu bolso,
calcinha.
— Como assim, ela te chutou?
— Acho que… — Calebe hesita, parecendo desconfortável. —
Tentou passar o pé descalço no meu pau, isso é possível?
Quase caio para frente.
Antes que eu consiga explicar o plano mirabolante da minha irmã,
ouvimos murmúrios bem próximos de onde estamos.
— Aí! — É uma voz feminina.
transando ali atrás? Você está transando com Judas, Maria Flor?
— Não está em posição de me julgar, não acha? — pestanejo. Não
estou brava com ela por ter chupado um dos meus candidatos a noivo,
Maurício já não é minha primeira opção faz tempo (até ele sabe disso), mas
não deixa de ser esquisitíssimo.
Alice faz uma careta, mas não rebate meu argumento.
— Podemos apenas cortar? — Maurício sugere, na maior paz.
— Se cortar o meu cabelo eu corto o seu pau fora, Maurício. Com os
dentes!
MARIA FLOR
Dia 1:
O carma é uma vadia.
A maioria das pessoas já ouviu essa frase pelo menos uma vez na
vida. O carma é uma vadia daquelas bem gostosas que voltam para desgraçar
tudo ao nosso redor no pior momento possível, quando a gente menos espera,
pensaram em um ménage?
— Tecnicamente, qualquer coisa acima de três pessoas é uma suruba.
— Os três me encaram com cautela. Preciso aprender a filtrar as coisas que
penso antes de falar. — Não que eu esteja interessada nem nada assim.
Não estou!
Já brinquei várias vezes comigo mesma sobre ficar com mais de um
deles e me livrar do estresse de eliminá-los. Mas existe um abismo entre
brincar e praticar. Eu sou uma criatura monogâmica demais para algo tão
radical.
com força.
Vai ser uma longa semana.
***
Dia 2:
Estou acostumada à dinâmica de compartilhar uma casa com muitas
pessoas: a falta de privacidade, o som constante de conversas vindas
geralmente da sala ou da cozinha, o compromisso não verbalizado de dar
Muito aleatórios.
— O que acham de Quarto Vermelho da Dor? — João Guilherme
estica o braço, sem levantar da poltrona, e pega mais uma fatia da pizza
tamanho gigante que compramos para a janta. Duas, pois eles comem como
leões.
Como não há nada de interessante para fazer no apartamento, só nos
resta comer e fazer vários nadas juntos pela segunda noite consecutiva.
Estamos reunidos na sala mesmo — eu, Calebe e João Guilherme —
já que a cozinha é pequena demais para acomodar todos nós. Nem consigo
imaginar como faziam para caber aqui dentro quando eram cinco ao invés de
três. Leonardo ainda não chegou do trabalho.
Acho interessante que continuem mantendo o máximo de suas rotinas,
diferentes de outros programas de reality show em que o confinamento é
absoluto. Mas faz sentido, já que a proposta do programa envolve uma
escolha que nos impactará na vida real.
— Muito batido — digo, refletindo a respeito. — Já foi usado antes
em uma obra literária famosa.
alto.
Os dois já perderam o controle.
Ouço o barulho de chaves e da porta sendo aberta. Leonardo entra e
fico feliz que não esteja de plantão outra vez. Ele saiu ontem, pouco depois
da minha chegada, e só voltou agora porque emendou seu turno em outro
hospital.
— Boa noite, doutor. Está com fome? — Aponto para as duas caixas
de pizza abertas sobre a mesa de centro. — Tem de Calabresa e de Frango
com Catupiry.
uma boa escolha? E aí, depois que a criança cresce, sempre rola aquele
segundinho de constrangimento quando ela se apresenta a alguém? Pensem
comigo: se o nome se popularizar, os participantes dos próximas temporadas
terão que chamar o quarto assim.
— Um nome engraçado. — Calebe ecoa o que todos estamos
pensando. — E broxante!
Tenho que rir, porque adoro a ideia.
— Quarto da Fornicação — João Guilherme ri engasgado com o
pitaco de Leonardo, que dá de ombros, rindo também. — É, ao mesmo
***
Dia 3:
Seis e quarenta e dois da manhã, vejo no relógio sobre a cabeceira.
Por que caralhos meus olhos estão abertos às seis e quarenta e dois da
manhã? Será que algum barulho me despertou? Parece tão silencioso lá fora.
Fecho os olhos e tento voltar a dormir, mas continuo intrigada com
meu despertar repentino. Eu nunca acordo sem um alarme. Nunca! Resolvo
conferir por via das dúvidas e jogo as cobertas para o lado, saindo do
conforto da minha cama.
— Volto logo — digo para o espaço aconchegante e agora vazio no
colchão.
Na ponta dos pés, abro uma fresta na porta do meu quarto e espio o
Leonardo ri alto.
— Aposto que Alice adorou.
— A ideia foi dela, é claro. Eu teria vendido de qualquer jeito, mas,
segundo minha doce irmã, um vestido de noiva proveniente de um casamento
que deu errado é como um bastão amaldiçoado, e eu estaria arruinando o
futuro de um casal feliz. — Rindo, termino de comer e giro no banco, ficando
de frente para Leonardo enquanto ele faz sua refeição. — Mas era um bom
vestido, corte grego com bastante renda. Pode acrescentar à lista de modelos
a serem evitados.
contagem regressiva soando alto nos meus ouvidos. Temos poucos segundos,
então fazemos valer cada um deles com um beijo urgente.
Sua língua me invade, cobiçosa. Gotas de seu cabelo molhado pingam
sobre meu rosto e sua mão se infiltra por baixo da minha blusa, apanhando
meu seio inteiro em uma massagem deliciosa. Uso todo o meu autocontrole
para não gemer à medida que o beijo fica mais molhado, mais intenso e mais
urgente.
Quando estou a ponto de jogar o bom senso pelos ares e arrancar
Dia 4:
Bartolomeu e Maurício chegaram pouco antes do meio-dia para um
episódio especial de socialização entre os eliminados, os finalistas e eu, em
um suposto dia comum. Não sei onde fica a parte do comum nisso, mas sigo
desempenhando meu papel de noiva e repetindo que, se nada der certo, pelo
menos estarei rica.
Dois cinegrafistas foram enviados para registrar tomadas melhores da
nossa pequena reunião familiar — se é que podemos chamar assim. Como
Leonardo ajustou seus horários para estar em casa durante o almoço,
somamos um total incrível de oito pessoas. Se antes eu já achava o
apartamento pequeno demais, agora é impossível dar um passo para o lado
sem esbarrar em alguém.
lavar pratos e organizar toda a comida enviada pela produção, darei um belo
sermão neles sobre não me chamarem para me esconder junto.
Entretanto, ao dar um passo rumo ao corredor, Maurício aparece na
minha frente com uma expressão ansiosa.
— Preciso que fale com a sua irmã, ela não atende as minhas ligações
há uma semana. — Certo, ele consegue a minha atenção.
— Você e Alice continuam se falando? — Ergo as sobrancelhas em
uma expressão julgadora. Na real, não me importo que os dois se envolvam,
só não esperava.
Maurício tem a decência de titubear antes de responder:
— Algo do tipo, nos encontramos algumas vezes, mas ela sumiu de
repente, não me responde, não me atende, ignora minhas mensagens no
Instagram. — Uau, ele até mesmo a procurou nas redes sociais.
por João Guilherme, que aproveita a deixa para escapar do meu olhar
intrigado.
***
Dia 5:
Encaro a urna.
Ela foi deixada pela manhã. Quando acordamos, ou melhor, quando
fomos acordados, nos deparamos com uma caixa no meio da sala, sobre uma
espécie de pedestal. Além dela, havia várias pessoas com câmeras nos
ombros, outras carregando refletores e microfones, mas a grande surpresa foi
a presença de Miguel Castro dentre eles, todo bonitão e cheio daquele seu
carisma de apresentador.
tenhamos nos aproximado. Quando paro para pensar em tudo o que passei
nas últimas semanas — com todos os cinco — e em toda a loucura, sei que,
independente de qualquer coisa, ainda os quero em minha vida.
— Sabe que, se encarar demais, ela não vai criar asas e sair voando
pela janela, né? — Leonardo aparece acima de mim. Estava tão concentrada
em meu próprio mundinho de conflitos internos que não o ouvi se
aproximando.
Olho para ele, achando alguma coisa estranha, até entender que são
suas roupas. Estou acostumada a vê-lo com o branco de sempre, e não com
bermuda e camisa sem mangas. Seus braços são mais definidos do que
parecem por baixo das costumeiras vestes formais.
— Tenho esperanças em telecinese — digo após minha inspeção
descarada.
— E para fazer telecinese, você precisa estar deitada no chão?
— O tapete é confortável. — Passo as mãos sobre a textura felpuda.
Não conto que tenho mania de deitar no chão e encarar o teto quando quero
pensar. — Tem espaço, se quiser.
Ele entende a minha deixa de que não quero falar sobre a urna.
— Tem espaço no chão? — Ergue as sobrancelhas, achando graça.
— No tapete. — Chego para o lado para reforçar minha oferta.
Leonardo pensa a respeito e decide que se sentar é bom o bastante. Ele apoia
ideia.
— É estranho pra caramba! — digo, rindo, porque é verdade. — Até
meio mórbido. Porém, como eu sou estranha, e não adianta negar, admito que
gostei. Sim, já vi coisas do tipo nas minhas séries com médicos bonitões, mas
nem se compara a ganhar isso de um médico bonitão de verdade.
— Bom saber que a minha aparência foi o grande diferencial do
presente.
Sei que estamos brincando, mas sinto uma necessidade repentina de
me explicar.
— Você é bonitão, mas o que me deixou feliz mesmo, foi saber que
pensou em mim. Que, em pouco tempo, já me conhece bem o suficiente para
saber que sou esse tipo de pessoa que não acha estranho ganhar presentes…
inusitados, digamos assim. — Guardo a moeda no bolso do meu short e olho
para ele. — Então, obrigada.
Como Leonardo está sentado, e eu, deitada, vejo com nitidez seu rosto
iluminado, não pela luz das lâmpadas, mas por uma emoção sincera que parte
de algum lugar em seu coração.
para o quarto antes que Calebe ou João Guilherme venham atrás de mim. Nós
três combinamos de dar a você um pouco de privacidade para não se sentir
pressionada. Eu só queria ter certeza de que estava bem.
Ah, é mesmo, a urna. Eu me esqueci totalmente dela durante
preciosos minutos de felicidade. Olho para o cubo com desdém e constato,
em minha infinita falta sorte, que ele continua ali, intacto, esperando por
mim. Nenhum milagre divino a fez desaparecer e nem explodir. Gemo de
frustração ao mesmo tempo que Leonardo sorri e começa a se distanciar.
MARIA FLOR
Eliminar Leonardo foi a coisa mais difícil que fiz desde o início do
programa. Escrever o nome dele em um papel e colocar dentro de uma urna?
Ele merecia bem mais do que isso. Eu sei que não sou a responsável pelas
regras do jogo, mas queria ter feito mais por ele, dito mais coisas, passado
mais tempo ao seu lado. Será que teria feito alguma diferença?
pendendo para fora. — Mas, tem uma nuvem agourenta em cima da sua
cabeça. Talvez seja o caso de chamar um padre.
Estupidamente, olho para cima — onde não há nuvem alguma, é claro
— e depois para ele. João Guilherme está vestido com seu habitual figurino
caseiro, que consiste em bermuda, chinelos e um torso com vários gominhos
para quem quiser ver. Percebo que ele acabou de sair do banho, pois trouxe
consigo o cheiro do sabonete de lavanda e do desodorante masculino.
— Estava tentando falar com o Leonardo. — Mostro o meu celular
consiga dizer alguma coisa. — Não estou me inferiorizando nem nada assim.
Eu sei que sou um bom partido.
— Você é um ótimo partido. — Não sei como, mas escuto o seu
sorriso, e acabo sorrindo também.
sobre o assunto. É estranho falar sobre isso com você? Porque, se for, eu
posso calar a boca.
— Continue — pede, incentivando-me com um sorriso. — Eu quero
saber.
— Quer saber por que estou tentando falar com Leonardo há mais de
duas horas? Porque assim eu posso ocupar minha mente com outra coisa que
não seja o casamento. Porque eu sei qual nome eu quero chamar no altar, mas
tenho medo de não conseguir, e não quero pensar sobre isso. Porque eu acho
que Calebe não me traiu, e acho que talvez eu goste tanto dele que nem me
importo mais com isso. Mas, mesmo assim, de vez em quando, a dúvida
aparece e eu sinto como se meu coração estivesse sendo devorado por larvas.
E eu não sei se consigo viver assim pelo resto da vida. Isso acabaria com nós
dois, acabaria com ele de novo. — Meneio a cabeça para os lados. — Então,
é isso, você é a minha escolha segura porque nós somos iguais e talvez seja
melhor assim.
João Guilherme agarra minhas duas mãos e não faz nada por um
longo momento. Eu espero, apreensiva, repassando na minha mente tudo o
que eu acabo de dizer.
— Calebe sabe — diz, finalmente. — Ele sabe que você tem medo.
Mas, eu não sou a sua escolha segura, sou a sua desculpa para fugir. Acredite
quando eu digo que não ligo de ser o que você precisar que eu seja, mas
levou uma parte de mim, doeu como o inferno e era preferível fugir daquele
sofrimento do que me afundar nele ainda mais. Gosto de Calebe, gosto de sua
companhia, do seu cheiro, da sua voz quando me chama pelo nome de
alguma flor e de como meu corpo sempre sabe quando ele está no mesmo
ambiente que eu antes mesmo dos nossos olhos se encontrarem. Eu o amo.
Mas existe um limite para o quanto eu consigo suportar daquela dor
novamente.
— Está me dizendo para escolher o Calebe ao invés de você? —
pergunto, dando de ombros, como se nada daquilo fosse importante.
base da minha barriga como acontece quando Calebe me toca, mas não
encontro nada.
— Você acha que somos iguais e que entendo você por causa do que
eu te contei sobre isso. — Ele se afasta e balança a corrente, o anel escorrega
sobre os grumos de prata. — Mas tem uma coisa que você não sabe, vem
comigo.
Deixo-me guiar até o escritório. Quando a porta se abre, João
Guilherme me solta e caminha até a mesa. Parada no meio do cômodo, eu o
assisto abrir e fechar gavetas, procurando por alguma coisa. Não demora
muito e ele exclama ao conferir os armários ao lado das prateleiras, de onde
retira um grande envelope de papel.
— O que é isso? — pergunto assim que ele me entrega aquilo. Sinto o
peso de seu conteúdo antes de abrir e espalhar tudo sobre a mesa.
— São provas. — Ele desliza uma das folhas até mim. — Veja por si
mesma. São provas de que Calebe não traiu você.
É… o que?
Relutante, pinço a primeira folha com os dedos trêmulos, como se ela
minutos antes do meu flagra, o tempo quase exato da academia até o motel.
Passo para outras folhas, um arquivo de vinte ou trinta páginas
contendo conversas e mais conversas enfadonhas entre Calebe e um contato
salvo como “AJ - Secretária”, que presumo se tratar de Ana Júlia, a
secretariazinha, nas quais eles conversam sobre coisas como “fiz a
encomenda do novo equipamento na semana passada”, ou “você tem uma
reunião marcada com o gerente da imobiliária ao meio-dia”, tudo
estritamente ligado ao trabalho — leio linha por linha.
carinhoso.
— Shhh — diz, embalando-me. — Ligue para ele, Florzinha. Calebe
não queria que eu contasse, mas eu não podia ficar sentado esperando. Nós
não somos iguais, você ainda tem uma chance.
Eu ainda tenho uma chance.
Aos poucos, vou me acalmando externamente, já que é impossível
controlar o tornado dentro de mim.
Eu ainda tenho uma chance.
uma grande ironia do destino, para outra Ana Júlia aleatória que não faz ideia
de quem eu ou Calebe sejamos, mas não: sei o número de Calebe de cor, já o
digitei vezes demais nos últimos anos para errar justo agora. A tela do
celular, mostrando todos os nove números, também não me deixa mentir.
É o telefone de Calebe.
Quem falou que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar?
Atônita, sinto quando meu dedo ganha vida própria e desliza sobre a
tela, encerrando a ligação na cara dela.
— O que você está fazendo? — João Guilherme abre os braços,
indignado, sem entender nada da minha reação.
— Era ela. — Não consigo tirar os olhos do celular, o objeto
ritualístico responsável pela invocação do meu pior pesadelo. — Ana Júlia é
por uma mãe que sabe falar o alfabeto de A a Z só usando palavrões como
exemplo. Meu repertório é extenso.
E se eles quiserem apenas assumir o relacionamento?
Por favor, que não seja isso!
argumentos convincentes. Estou fugindo, sou uma covarde. Calebe veio atrás
de mim, aceitou se expor nacionalmente só para me conquistar outra vez e
conseguiu suportar o sofrimento de me ver com outros homens, escolhendo-
os para ocupar o lugar que um dia foi dele. Calebe foi atrás de provas para me
convencer de sua inocência. Ele está lutando.
E o que eu fiz?
Fugi.
— Guilherme. — Agradeço por minha voz não falhar. — Você pode
dirigir?
Ele sorri.
— Mas é claro, Florzinha.
***
Mas, assim que pisamos no terceiro ambiente, uma sala menor no piso
superior onde a banda se apresenta sobre um palco intimista e aconchegante,
eu o sinto.
Primeiro, vem o formigamento nas minhas pernas, ele sobe devagar,
fazendo cócegas dentro da minha pele, em seguida, meu coração se perde em
compassos arrítmicos, como se outra sintonia interferisse em meus
batimentos. Por último, meus olhos são atraídos por um magnetismo
irresistível que faz os meus arredores desaparecerem e nada mais existir além
de mim e aquela presença.
A presença de Calebe.
Quando o encaro, ele já está olhando para mim. Por um segundo,
somos apenas um homem e uma mulher consumidos pela atração instantânea
de nossos corações e corpos. Lembro-me que foi assim desde a primeira vez
que nos vimos. Mas não dura muito, a compreensão de ser pego no flagra o
atinge e o rosto de Calebe torna-se lívido.
Surpresa, idiota!
Vejo a mulher ao lado dele, com os cotovelos apoiados sobre a mesa,
falando qualquer porcaria sem perceber que Calebe não está ouvindo nada de
sua tagarelice.
— Aquela é a Ana Júlia? — João Guilherme pergunta, visivelmente
surpreso.
no meu ouvido:
— Concordo, olhe só para você.
— Obrigada. — Retribuí seu sorriso. — E obrigada por vir. Por favor,
não me deixe fazer nada estranho.
Calebe se levanta a duas mesas de distância, já recuperado do susto.
Ele exibe um maxilar tenso, seu olhar cauteloso vaga para João Guilherme, e
depois para mim, como se tentasse resolver uma equação complicada. Ao
deslizar os olhos até a mão na minha cintura, ele abre um imenso sorriso nada
amigável.
Sorrio de volta, mostrando todos os meus dentes da maneira mais
"também quero atacar você" que consigo.
— Nada estranho, tipo o quê? Jogar uma garrafa de Black Cab Stout
na cabeça dele? Eu gostaria de ver isso.
— Nada estranho que envolva garrafas de nenhum tipo sendo jogadas
em seres humanos ou paredes. Nem copos, ou pratos. — Faço uma careta. —
Ou cadeiras.
Paramos bem diante de Calebe. Está vestido casualmente, com o
combo calça jeans e uma camisa de botões que deve ser branca, mas parece
meio cinza, meio amarela, graças à luz focal refletida sobre a mesa.
Empurro a avalanche de tristeza e decepção para longe e me
concentro em Calebe, meu Calebe, o homem que sempre tenta me fazer
sorrir, que conhece o meu corpo e como satisfazer meus desejos, que é amado
pelos meus pais como um membro da família. Não vim até aqui para provar a
mim mesma que ele não presta, eu vim porque eu quero que sejamos verdade
no meio de coincidências que parecem mentira.
— O que estão fazendo aqui? — ele pergunta, seu tom de voz neutra
não revela nada.
Ana Júlia se levanta, reconhecimento estampado em seu rosto
tranquilo, e assume a dianteira da situação, dizendo:
ferir durante uma trégua. — Reviro os olhos. — Não pode ferir o meu
coração e tudo mais.
Se ele disser que não pode cumprir com os tratados de Genebra, então
eu posso virar as costas e ir embora.
— Estranho. — Calebe segura minha mão e a gira de um lado para o
outro.
— O que é estranho?
— Você, agindo toda diplomática. — Ele se aproxima para analisar o
seu polegar. — Já perdi você uma vez, não quero correr o risco de perder
novamente. Se for para piorar as coisas entre nós e diminuir as minhas
chances de estar ao seu lado no altar daqui alguns dias, prefiro jogar você
sobre o meu ombro e arrastá-la de volta para o apartamento.
Ah! Isso explica o que Ana Júlia falou sobre Calebe querer esperar
pelo casamento. Por um momento, pensei que estivessem se referindo ao
casamento deles.
Mas Calebe nem imagina que é a minha primeira opção, que não
suporto a ideia de tê-lo magoado com minhas inseguranças, ou que não tenho
coragem de dizer que também sinto medo de perdê-lo para não precisar
admitir que ele sempre foi meu.
— A Bandeira Branca da Paz serve para os dois lados. — Não vou
machucar você, deixo nas entrelinhas, dando-lhe com sorriso sincero. —
Vamos logo com isso.
Calebe exala, aliviado, faz um sinal positivo com a cabeça e
desconecta nossas mãos para se juntar a João Guilherme e Ana Júlia. Meus
dedos protestam de saudade, mas não o chamo de volta, como gostaria de
intimidador:
— É isso o que acontece quando você não cuida das suas coisas
direito.
Eles não estão falando dos documentos.
— Na verdade — Ana Júlia intervém, evitando o banho de sangue
verbal dos dois — é uma coisa boa, vai nos poupar tempo! — Focando em
mim, ela diz: — É o seguinte, a culpa foi minha. Eu sabia que o motel não
era uma boa ideia, mas estava desesperada, entende? Eu estava sem transar há
dois anos! Sabe como é isso? Ficar tanto tempo sem fazer sexo que começa a
ao de Calebe. — São iguais, mas, quando percebi que era você, fiquei
desesperada.
— Atendeu o meu celular? — Rugas surgem na testa franzida de
Calebe.
— Foi por engano, eu já disse, tá legal? — Ela deixa a garrafa de
lado. — Se eu não a tivesse chamado, acabaríamos envolvidos em outro mal
entendido. Deveria me agradecer por salvar a sua pele.
Levando em conta que eu já estava quase chorando quando desliguei
Ele me devolve o gesto: obrigado, também não vou a lugar nenhum. — Mas
Calebe me contou o que aconteceu e a história toda parecia suspeita demais,
até um pouco cômica.
— Minha vida sexual é cômica — ela lamenta, chorosa, empunhando
a garrafa como uma espada. — Eu sou uma piada. É claro que você não
acreditou! Só uma idiota acreditaria que o namorado foi ao motel para levar a
carteira a uma pobre coitada que não tinha como sair sem pagar a conta do
quarto. Mas, acredite, é a mais pura e trágica verdade.
— Você ficou presa no motel? — João Guilherme verbaliza o mesmo
Ela bebe os últimos goles de sua garrafa-espada. Se fosse eu, já estaria caindo
de bêbada. — Pode não parecer, mas sou uma paqueradora inexperiente. Faz
dois anos e meio que me divorciei, e fiquei muito tempo sozinha nos meses
seguintes. Agora que decidi voltar a viver, toda vez que tento transar com
alguém, uma tragédia acontece.
— Aconteceu uma tragédia? — João Guilherme se empertiga, seus
ombros largos parecem tensos sob a camiseta justa.
— Eu estava de folga naquele dia — ela conta. Lembro-me de Calebe
ter mencionado o mesmo. — E era a primeira vez que eu tentava ficar com
um homem desde o meu divórcio. Eu sei que essas coisas são perigosas, mas,
como disse, estava desesperada. Chegando lá, no entanto, tudo começou a dar
errado. Primeiro, descobri que ele era vinte centímetros mais baixo, dez anos
mais velho e não se chamava Lucas.
— Ela não sabe — Calebe, que já deve ter ouvido a história antes,
responde com aspereza ao questionamento de João Guilherme, cuja feição
também não é das melhores.
— Ele me disse para chamá-lo de Baratão. — Se João Guilherme voar
no pescoço dela, eu não vou impedir. — Mas, depois que eu tirei as roupas e
liguei a banheira de hidromassagem, Baratão recebeu uma ligação — ela faz
uma pausa dramática — da mãe dele.
— Ele atendeu uma ligação enquanto estavam transando? — Sou
obrigada a rir.
Nós três fazemos o impossível para não dar risada, mas quando Ana
Júlia gargalha, ninguém mais consegue evitar. A história é tão surreal que
parece mentira.
— Por isso eu precisei entrar no motel — Calebe acrescenta depois
de se recompor, ainda com lágrimas nos olhos. Ele não havia me explicado a
dinâmica de como acabou lá dentro. — Ela não tinha como sair.
— Afinal, o que aconteceu com a mãe do tal Baratão? — João
Guilherme pergunta, interessado na conclusão da história.
— Não sei, nunca mais falei com ele. — Ana Júlia dá de ombros,
coloca os cotovelos sobre a mesa e apoia o queixo nas mãos fechadas. Seu
cabelo castanho-dourado cria um efeito degradê na superfície da madeira, um
raro jogo de luzes que eu ficaria feliz em registrar algum dia. — Tentei sair
com mais alguns caras depois, mas foram encontros tão desastrosos quanto o
primeiro.
Pobre Ana, compadeço-me de sua dor.
— Talvez seja o caso de desistir desses encontros. Aplicativos são
perigosos. — João Guilherme a olha com uma expressão de cautela, não
querendo ser intrometido, mas não conseguindo ficar quieto também.
— Era justamente o que eu estava falando para ela antes de vocês
chegarem — Calebe o apoia.
Ana Júlia os ignora estoicamente. Eles estão certos em se
MARIA FLOR
lado no altar, é exatamente o que farei. A outra opção é a gente fugir para se
casar em uma cidade pequena onde ninguém possa nos atrapalhar.
— Gosto da segunda opção.
— Calebe Ventura eu juro que estou procurando uma tesoura para
seu plano.
Esfrego as pernas, mantendo a biscate depravada que vive dentro de
mim sob controle. Já está mais do que provado que eu e Calebe não
conseguimos manter uma conversa normal sem que ela acabe se tornando
sobre sexo.
— Depois que eu tiver uma aliança no dedo e o meu nome estiver ao
lado do seu em uma certidão de casamento, podemos testar todas as suas
fantasias sexuais envolvendo minhas roupas, Calebe. — Até porque, espero
fazer o mesmo com ele vestido de terno e gravata. — Mas, agora, concentre-
se em chegar ao nosso casamento.
— Todas, todas? — Seu tom é de puro desejo. Parece que toquei no
ponto fraco da fera. — Porque eu posso ser bem criativo.
É verdade…
O dinheiro.
Droga. Transar com Calebe é sempre incrível, mas transar com ele
tendo meio milhão de reais na minha conta bancária, deve ser melhor ainda.
Acho que eu posso aguentar.
— Nos vemos no altar. — Reviro os olhos, ciente de que ele não pode
ver meu gesto de rebeldia.
— Boa garota — diz, vitorioso. — Agora, tenho que desligar. Chame
a sua irmã para te fazer companhia. — Para me ajudar a não surtar, ele quer
dizer. — Ainda hoje estaremos casados e eu me certificarei de arrancar esse
vestido do seu corpo com as minhas próprias mãos.
— Promete?
— Prometo, meu Lírio. — Sinto a vibração risonha e feliz no timbre
do meu apelido. — Agora, tenho que desligar, estamos entrando em um
túnel.
***
quê?
— Ele é um cretino. — Ela desdenha dele com um jogar de ombros
elegante. — Cretinos não namoram.
— Você é uma cretina.
— Obrigada. — Não foi um elogio. Alice segura minhas mãos. —
Você está linda, Maria Flor. Não arranque o seu vestido, seria um desperdício
de beleza e você merece mais do que um cartório corrupto no interior. Nem
faz sentido que seja um lugar corrupto, para de ser louca.
— Sei lá! Depois de tudo o que a gente passou, tenho medo que
aconteça mais alguma coisa que nos impeça de casar. Você sabe como
funciona: o trem no fim do túnel e blá, blá, blá, Lei de Murphy, o pão que
sempre cai com a manteiga para baixo. Quero estar mentalmente preparada
para o pior.
celular contra o peito. — Eu não os amo como amo Calebe, mas me importo
com todos os cinco igualmente, sempre serão parte desse capítulo da minha
vida e quero que sejam felizes. Quem disse que não podemos ser amigos só
porque eu os rejeitei?
— Dê um tempo a ele — Alice me aconselha, mastigando um
camafeu de nozes. — Talvez seja hoje, amanhã, ou daqui um mês, mas
Leonardo vai superar e perceber que vale mais a pena ter você como amiga,
do que não a ter de maneira alguma. E, se mesmo assim ele insistir nessa
enroscando com o Maurício pelos cantos. O que ele tem de tão interessante,
afinal de contas?
— Além de um Porsche? — Alice busca uma garrafa de água no
frigobar do meu camarim e a estende para mim. — Aqui, segure. — Faço
como ela manda. — Agora, tente encostar o seu dedo médio no polegar.
— Não consigo. — Faltam, no mínimo, dois centímetros para a minha
mão se fechar ao redor do plástico.
— Pois é.
— O que isso deveria... Ah! — Solto a garrafa no chão, tentando
arrancar do meu cérebro a imagem do largo pau de Maurício. — Ah, meu
Deus Alice. Vá embora logo!
***
paletó, ele puxa a fotografia que tiramos juntos em sua casa há algumas
semanas. — Sobre o medo de nunca mais encontrar um lugar no mundo para
se encaixar. Eu… — A voz dele embarga, mas as lágrimas que se acumulam
em seus olhos nunca chegam a cair. — Eu decidi vender a casa. Você estava
certa, é um mausoléu.
João Guilherme me entrega a fotografia. O velho casarão compõe o
cenário ao fundo, como a lembrança preciosa de um tesouro. Eu e ele
estamos abraçados, iluminados pela luz solar da área externa, e todas aquelas
acreditasse no que acaba de ouvir. Uma emoção alegre irradia por todo o seu
rosto e se transforma no sorriso mais brilhante e sincero que já vi tomar conta
de seus lábios.
— Calebe é um filho da puta de sorte — diz, beijando minha testa
antes de se afastar. — Me deixe dar um soco nele qualquer dia.
— Contanto que não bata com muita força — peço, brincando. — É
um belo rosto e eu gosto dele inteiro.
Gosto muito.
***
escolhido e, como mágica, ele aparecerá por detrás das cortinas para dar
início ao cortejo. Acho cruel e arriscado que submetam as famílias dos dois
finalistas a participarem da cerimônia até o último segundo, mas é obvio que
se trata de uma estratégia para estimular possíveis barracos, afinal, haja o que
houver, vale de tudo pelo entretenimento e o show não pode parar.
Deixo a calmaria fluir pelo meu corpo, contemplando a realização do
meu sonho. Só agora me permito acreditar: eu vou me casar com Calebe.
Eu vou me casar com Calebe.
conseguiria sentir esse nível de felicidade, e muito menos que seria Calebe o
causador dela.
Miguel concorda, balançando a cabeça. Observamos as pessoas
andando de um lado a outro, cuidando dos preparativos finais. O diretor passa
— É óbvio que não. — Faço o mesmo que ele e fixo meu olhar à
frente. — Calebe veio atrás de mim porque meu pai contou onde me
encontrar.
— Saber o seu paradeiro e entrar no programa são coisas diferentes.
Ele não se inscreveu, então, para participar, precisaria da ajuda de alguém
muito importante envolvido com a produção.
Uma luz acende na minha cabeça. Sei onde ele pretende chegar.
— E você foi o cara que o colocou para dentro — deduzo, entendendo
tudo. — Desde o começo, você sabia! Por isso me desejou boa sorte naquele
escondeu essa parte, acho que por medo de eu recusar. Por isso fiquei tão
nervoso quando você contou a sua versão dos fatos. Uma versão equivocada,
graças a Deus.
Lembro mesmo de ter percebido uma certa tensão entre os dois.
— E como Calebe conhecia você para pedir um favor tão
complicado?
— Frequento uma de suas academias há mais de dois anos — explica.
— Já nos encontramos algumas vezes e treinamos juntos também.
Meu escolhido.
Meu amor...
— Esperem!
Ah, puta que pariu.
Aperto os olhos com força. Eu sabia que ia dar alguma merda, afinal,
é o meu casamento. Maria Flor Pinto de Barros não tem um segundo de paz.
Olho para Miguel, o responsável pelo grito. Ele segura um celular na
mão e encara a tela com olhos arregalados, o rosto lívido, balbuciando
palavras ininteligíveis.
Não deve ser nada importante, digo a mim mesma, tentando manter a
calma, mas, não nasci tão equilibrada assim para permanecer inabalável
frente a um possível desastre matrimonial — só pode ser um, resta saber a
férias.
Alguns convidados, ao longe, começam a se levantar de seus lugares e
o som ensurdecedor de suas vozes se elevando é o suficiente para que meu
corpo comece a tremer. Dentre eles, identifico meus pais e irmãos, seguidos
por Bartolomeu, Gael e até João Guilherme.
— O que foi? — digo, estranhando como minha língua parece
inchada dentro da boca. — Por que estão me olhando assim? O que
aconteceu?
Miguel solta um grunhido e acaba com o curto espaço entre nós com
dois passos largos, segurando meus braços como se temesse minha queda.
— Eu sinto muito, Maria Flor — Miguel lamenta. Não gosto do som.
Não gosto que ele lamente. Casamentos não são para lamentações. — É o
Calebe... — Ele hesita, aperta-me com mais força. — Parece que ele se
envolveu em acidente, dentro de um túnel, a caminho do estúdio.
— O que?
Acidente? Túnel? Do que ele está falando? O que aconteceu com a
invasão zumbi?
Não pode ser. Começo a rir. Não pode ter acontecido algo com
Calebe. Não o meu Calebe. Ele... ele prometeu...
Espero que Miguel desminta, que todos comecem a gargalhar,
dizendo que se trata de uma pegadinha de péssimo gosto. Espero que Calebe
apareça com seu sorriso idiota dizendo que a ideia de me dar um susto foi
dele — é algo que Calebe faria.
Porque Calebe é um idiota.
O idiota que eu amo.
Mas nada disso acontece.
Os semblantes de pena continuam se multiplicando ao redor e meu
riso frouxo vai minguando até se extinguir.
Ele não ousaria fazer algo estúpido como morrer bem no dia do nosso
LEONARDO
Patético.
Eu sou patético.
que eu reconheço por trás da máscara e touca graças aos seus enormes e
muito brilhantes olhos azuis.
Arabella é uma boa enfermeira, muito prestativa aos pacientes e
comprometida com o trabalho. Coincidentemente, temos pegado vários
plantões juntos desde que foi admitida no hospital, há cinco meses. Não nos
falamos com frequência, já que ela parece excessivamente tímida perto de
pessoas que não estejam doentes ou morrendo, mas eu sempre a vejo pelos
corredores, cuidando de algum enfermo ou conferindo seus relatórios.
— Algum problema? — pergunto assim que ela coloca metade do
corpo dentro da minha sala, segurando uma prancheta com força contra o
peito.
— A senhora Marta, do quarto trezentos e quatro — explica em tom
de desculpas.
— Deixe-me adivinhar — digo, levantando-me da cadeira. Ajeito
meu jaleco enquanto me aproximo da porta. — Está reclamando de dor nas
costas de novo e disse que só vai aceitar a medicação se for aplicada por
mim.
Arabella relaxa visivelmente os ombros e confirma com a cabeça.
Que tipo de expressão assustadora eu devo estar fazendo para deixá-la tão
apreensiva?
— Sinto muito — diz, espiando-me com a cabeça baixa.
sempre achá-la baixa demais. Ela é gostosa de escutar, mesmo abafada pela
máscara.
— Por acaso você anda me espionando, Arabella? — brinco, tentando
fugir da resposta, já que, sim, eu me sinto ansioso, mas não posso explicar o
motivo da minha ansiedade sem parecer, bem… patético.
Ela arqueja, arregalando os olhos.
— Não! — exclama, esganiçada, chacoalhando a cabeça em meio a
um riso exagerado. — É claro que não. Por que eu faria uma coisa dessas?
Nós nem nos conhecemos direito, não somos amigos, e não é como se eu
tivesse sentimentos por você nem nada assim. Só sentimentos profissionais,
sabe? Sentimentos respeitosos de uma enfermeira normal pelo médico de
plantão.
Uau, foram muitas palavras agora.
A única faixa de pele exposta em seu rosto fica subitamente rosada, as
orelhas, bem coradas, e ela olha para trás, como se buscasse uma rota de fuga
segura. Acho que a deixei constrangida. É quase uma menina, sete ou oito
anos mais jovem do que eu, recém-formada e pouco acostumada com as
— Você está certa. — Finjo que não notei a sua reação encabulada e
continuo caminhando para manter a conversa natural. — Aconteceu uma
coisa recentemente que afetou a minha vida e, por consequência, o meu
trabalho. Peço desculpas antecipadas caso eu precise de mais ajuda que o
normal.
— Fico feliz em ajudar, é o meu trabalho.
Oito palavras, parece que voltamos à estaca zero.
O silêncio se instaura em nosso trajeto. E, enquanto caminhamos sem
pressa, sua pergunta sobre como estou me sentindo volta para assombrar
minha mente.
Estou bem longe de estar bem.
Imaginei que o plantão me ajudaria a não pensar tanto no casamento
de Maria Flor e Calebe — é impossível que ela escolha João Guilherme — e
funcionou um pouco, já que os pacientes e as rondas me mantêm ocupado.
Porém, não pensar não significa não sentir, e sentir é tudo o que tenho feito
desde o começo.
A pressão das gravações constantes, somada à expectativa de um
amor inesperado, me fez sonhar alto demais. Eu fechei os olhos para os sinais
e ousei cobiçar um amor que não me pertencia. O amor de Maria Flor nunca
foi meu.
O que sentíamos, o que eu senti, não era amor, e, por um lado, é bom
saber disso, pois nunca havia sentido nada tão forte por ninguém antes, então,
se o amor é ainda mais grandioso e avassalador, não vejo a hora de senti-lo
de verdade pela pessoa certa.
Eu não estou bem, mas ficarei eventualmente.
— Sabe guardar segredo? — pergunto, optando pelas escadas ao
invés do elevador. Arabella me acompanha sem questionar nosso trajeto.
— Sim. — Ela se apoia no corrimão enquanto subimos. — Eu acho.
— Já ouviu falar daquele programa chamado O Noivo Ideal?
acreditar que seja verdade. Talvez esteja brincando com a minha cara.
Arabella puxa sua máscara para baixo. Há uma linha avermelhada na
curva do seu nariz, deixada pelos elásticos. Sua boca, a qual eu não me
lembro de ter visto antes, é volumosa, possui um tom rosado natural e se
***
basicamente isso.
— E hoje está sendo gravado o último episódio, com a escolha final
da noiva e o casamento?
— Exato.
— É uma pegadinha? — Ela me encara entre as fendas de seus olhos
estreitos e desconfiados.
— Estou dizendo a verdade e nada mais que a verdade — juro, rindo
de mim mesmo pelo nível de ridículo que cheguei. — Pareceu uma boa ideia
na época e eu estava bem confiante de que seria escolhido.
— Sabia que ofende todas as pessoas na casa dos trinta anos quando
se chama de velho?
— Não é uma questão de idade — explico. — Eu tenho uma alma
idosa viciada em trabalho que gosta de acordar cedo, assistir ao jornal das
nove, ficar em casa nas folgas de sexta-feira e que tem um ódio particular por
vizinhos que escutam música alta nas manhãs de domingo.
— Eu quis dizer maduro — ela aponta, solícita, ignorando minha lista
de gostos incomuns. — Um profissional bem sucedido e financeiramente
estável, educado, bonito e responsável. Você é o combo completo.
mãos nas barras do corrimão, de costas para ela. — É o que a maioria das
pessoas pensa: quem rejeitaria um cirurgião? Mas isso é besteira. Meu
relacionamento mais longo durou quatro meses e eu já tinha perdido as
esperanças de me casar, até escutar o anúncio sobre a abertura das inscrições
para O Noivo Ideal no rádio do meu carro, às cinco da manhã, quando estava
a caminho do hospital. Então, sim, eu sou maduro, bem sucedido, educado e
responsável, mas nada disso foi o bastante para evitar que eu me sentisse
patético!
fiquei com medo de doer demais e acabar estragando o momento dela com a
minha — engulo o amargor — inveja.
Relaxo as mãos do aperto e me endireito. Arabella me acalenta com
um sorriso piedoso.
ou Calebe, mas acho que conheço você um pouco. E tenho certeza que, se a
Maria Flor teve a chance de conhecê-lo, vai querer a sua amizade. Ela vai
querer que você sorria, que fique bem, que seja feliz e a apoie, e se você não
estiver lá quando ela disser sim para o homem que ama…
Maria Flor vai se sentir triste.
Porra, que merda eu estou fazendo aqui?
— Eu preciso… — Ofego, impactado. — Preciso ir.
— Vá logo.
Sinto seu leve empurrão de incentivo e começo a me mover, descendo
os degraus. Tenho que comunicar minha saída do plantão para que arrumem
um substituto, depois dirigir o mais depressa possível para o estúdio, e torcer
que Calebe e Maria Flor ainda não tenham se casado.
Abro a porta, o corredor do hospital se mostrando em toda a mesmice
de piso branco e portas cinzentas. Mas paro antes de atravessar e olho para
trás. Arabella, no alto da escadaria, me assiste partir com os olhos inundados
de expectativa, como se houvesse algo inacabado a ser dito.
— Obrigado, Arabella.
Ela umedece os lábios fartos com a língua e enche os pulmões em
uma respiração profunda. A adrenalina faz meu coração agredir a caixa
torácica e eu me vejo ansioso por seja lá o que mais ela tem a dizer.
Como nunca conversamos assim antes?
MARIA FLOR
Estava bom demais para ser verdade, nem me casei ainda e já vou
ficar viúva.
Todo mundo veio para o hospital.
E por “todo mundo” eu quero dizer TODO MUNDO: meus pais, que
quase tiveram uma síncope quando ficaram sabendo que Calebe havia se
acidentado; meus irmãos, é claro; assim como João Guilherme, Maurício, e
até Bartolomeu com Gael; todos os cinegrafistas do programa também
vieram, acompanhados pelo diretor, Miguel Castro e até o Juiz de Paz!
Resumindo, uma pequena horda.
— Calebe Ventura — digo na recepção, batendo a mão em cima do
balcão. A pobre da recepcionista arregala os olhos ao me ver vestida de
noiva, com a torcida do Flamengo inteira atrás de mim. — Se ele não estiver
morto, avise que vou matá-lo!
— Desculpe — a mulher se levanta. — Mas vocês não podem filmar
aqui. Isso é um hospital, temos pacientes…
— Meu noivo é um paciente! — brigo, tentada a enfiar meu buquê em
seu nariz. — Ele sofreu um acidente de carro. Seu nome é Calebe Ventura!
Calebe. C-A-L-E…
— O que está acontecendo aqui? — Alguém pergunta. Só reconheço
a voz quando giro sobre os saltos e o encaro.
Ver Leonardo depois de tantos dias tentando falar com ele é um baque
imenso que, somado ao meu pico de estresse causado pela possível morte do
meu futuro marido, faz meus olhos lacrimejarem. Ele está vestido com uma
espécie de uniforme verde que não favorece sua beleza nem um pouco, há um
crachá de identificação pregado na roupa, com sua foto e nome, e seu cabelo
preto está escondido por baixo de uma touca azulada.
Marcho até ele com passos firmes e aponto o dedo para o seu nariz.
— Tem noção do quanto eu sofri na sua eliminação? — A esta altura,
nem me importo mais em manter a voz baixa. — De como foi difícil para
mim? De quantas vezes tentei ligar e fui ignorada? Esperei você aparecer no
casamento, dizendo que estava tudo bem, mas você não apareceu, e agora
Calebe está morto!
— Uma coisa não tem nada a ver com a outra, Maria Flor — Minha
irmã coloca a mão no meu ombro, tentando me acalmar.
— Calebe não está morto — Leonardo diz, naquele tom doce e
eloquente tão característico de sua personalidade. — Eu posso levá-la até ele,
mas o resto vai ter que esperar na sala de espera.
Ele olha por cima do meu ombro e faz uma expressão reprovadora
para o número de gente. Mas não deixo passar sua tentativa de sair impune.
— Por que não me ligou de volta? Por que não me atendeu e nem
retornou as minhas ligações? — questiono, sentindo meus ossos tremendo
por dentro.
Leonardo suspira e faz um sinal para a recepcionista, que ainda estava
de pé, com aquele olhar preocupado de "devo chamar a segurança?".
— Eu estava a caminho quando a ocorrência de Calebe chegou — ele
diz, baixo. — Eu ia chegar atrasado para o casamento, mas já tinha percebido
a grande estupidez que havia feito.
— Mentiroso. — Estreito meus olhos, desconfiada.
— Não é mentira. — Ao lado dele, um pouco atrás, vejo uma
enfermeira baixinha e magra. Seu rosto fica vermelho ao perceber tantos
olhares fixos nela, esperando por maiores explicações. — Ele realmente ia
para o casamento, mas como médico, fez um juramento e não podia deixar
um paciente.
— E você é…?
— Arabella — Leonardo a apresenta. — E Arabella, esta é Maria
Flor.
Por algum motivo, os olhos dela brilham.
— Deu para perceber, pelo vestido de noiva — sussurra para
Leonardo, dando uma risadinha tímida.
Ele sorri para ela antes de me encarar.
— Tem algo que você precisa saber — diz com cautela.
— Ah Deus! — Cubro meu rosto com o buquê. — Calebe morreu.
— Eu já falei que ele está vivíssimo! — Leonardo se exaspera. — Eu
quero dizer que sinto muito por ter sumido.
Abaixo meus olhos.
— Pensei que me odiasse.
— Nem se eu me esforçasse muito, conseguiria uma proeza assim. —
Leonardo segura meu rosto com uma mão e me induz a olha-lo. — Eu fiquei
com medo de ter me apaixonado, confundi nossa amizade com algo mais, e
acabei estragando tudo. Quero que seja feliz e sei que ele é o único que pode
lhe dar isso. E eu vou ser muito grato se puder ter a sua amizade de volta.
Sinto um peso enorme desaparecer dos meus ombros.
— Veja. — Mostro para ele o meu buquê e aponto para um botão de
rosa branca, no qual coloquei a moeda que ele me deu semanas atrás. —
Nunca deixei de ser sua amiga.
A feição de Leonardo varia entre surpreso e emocionado. Ele joga os
braços em volta de mim e me aperta em um abraço carinhoso que faz uma
peça do meu coração retornar para o seu devido lugar.
— Obrigado, querida.
— Calebe… — digo, temerosa. — Então ele está mesmo vivo?
Leonardo se afasta, um tanto constrangido por sermos o centro das
atenções e diz:
— Sim, ele está bem. Apenas uma costela quebrada e algumas
escoriações. Vai precisar de repouso por algumas semanas e medicação para
a dor, mas não corre risco algum. Fizemos todos os exames de checagem, e
não foi encontrada nenhuma outra lesão. Ele teve sorte. Vamos levá-la até
ele.
Por "vamos", no plural, acho que se refere a ele e Arabella.
— Temos uma autorização! — Olho para trás e Miguel está correndo
enquanto chacoalha um papel no alto. Ele se enfia no meio da minha família
e chega até nós. — Tenho um amigo que é primo do dono do hospital. Fiz as
ligações quando estávamos a caminho, ele só precisou assinar.
Leonardo pega a folha, duvidando de sua veracidade.
— O chefe do departamento…
— Assinou também — Miguel assegura, sorridente. Ele aponta para
um local no final da folha. — Bem aqui, está vendo?
— Tudo bem — Leonardo revira os olhos e suspira. — Venham
comigo.
***
Calebe abre os olhos assim que entramos.
Está deitado em uma maca alta, com o peito todo enfaixado e um
lençol cobrindo suas pernas. Minha alma meio que sai do corpo. Mesmo
sabendo que ele está bem — e respirando! — ainda é chocante ver alguém
que a gente ama em um quarto hospitalar vestido de múmia.
— Girassol? — pergunta, sua voz soa rouca e quebradiça, como se
tivesse comido areia. — Girassol, é você?
— Sim, sou eu.
Entro em seu campo de visão, emocionada, porém não surpresa, que
tenha me reconhecido sem ao menos me ver. Ele geme baixinho para se
inclinar e me olhar dos pés à cabeça.
— Porra, Violeta, seu vestido é… — Espero por um elogio, tipo
"lindo" ou "maravilhoso", mas então ele diz: — Bem fácil de tirar,
exatamente como eu imaginei.
Tento fazer uma expressão irritada, mas estou tão feliz, tão aliviada,
que só consigo sorrir e sorrir sem parar.
— Seu cérebro parece ótimo.
— Quem mais está aí? — Ele tenta se sentar, mas sua expressão se
transforma em puro sofrimento e eu o empurro de volta para os travesseiros.
— Sossega que eu só aguento um susto por vez. Todos vieram, estão
nos gravando.
Aproveitando a deixa, meus pais se aproximam da cama.
— Está bem mesmo, filho? — Meu pai pergunta, todo sério.
— Senhor Beto — Calebe o chama, sério. — Sabe a luz no fim do
túnel? Ela também pode ser um SUV de duzentos e quarenta e nove cavalos
com tração nas quatro rodas.
Meu pai gargalha sonoramente e bate em sua grande barriga.
— Melhor do que um trem, filho. Melhor do que um trem!
Todos os outros vão se revezando com cumprimentos e piadinhas. Até
Alice se emociona ao ver que Calebe está bem. De alguma forma,
conseguimos nos amontoar no pequeno espaço, mas apenas um dos
cinegrafista consegue permanecer dentro do quarto.
— Sinto muito pelo nosso casamento — ele diz, segurando minha
mão.
— Vamos nos casar agora — digo, do nada, decidindo naquele
milissegundo que hoje eu só saio desse hospital casada! — Da primeira vez
que tentamos, você foi parar em um motel sem querer e a gente se separou,
da segunda, você vai e sofre um acidente. Sinto muito, não estou disposta a
arriscar uma terceira tentativa. Quem sabe o que virá a seguir? Apocalipse
zumbi? Invasão alienígena? Vamos casar, e vamos casar hoje!
— Não é que eu não queria, Margarida, mas eu não consigo nem me
sentar, e estou pelado.
— Não ligo que esteja pelado, mas, se quiser, posso tirar o meu
vestido para casarmos em pé de igualdade.
— Nem pense, Malmequer — ele reclama, irritado, porque sabe
muito bem que posso casar nua na frente do Brasil inteiro se me der na telha.
Volto-me para o juiz de paz, um senhorzinho encolhido no canto.
— Você pode nos casar agora? — pergunto.
Ele pisca, engolindo em seco.
— Aqui, no hospital?
— Sim, onde mais seria? Nem precisa ser a cerimônia completa, pula
direto para a parte do sim e das alianças que tá tudo certo.
— Maria Flor — Miguel se aproxima. — Tem certeza disso?
— Tão certa quanto dois mais dois é quatro — garanto, eufórica.
Calebe, todo sorrisos, se deixa levar pela minha animação.
— Certo. — Miguel faz um sinal para a câmera e se posiciona ao meu
lado. — Tenho que perguntar, faz parte do protocolo do programa — explica.
Não sei do que está falando até que ele faz uma pose engraçada e questiona:
— Maria Flor, Calebe Ventura é o seu noivo ideal?
Ah!
É verdade. Eu tinha que escolher o Calebe antes da etapa do
casamento. Lanço um pedido de desculpas a João Guilherme, que nem se
preocupa em responder, apenas pisca um olho charmoso.
Olho ao redor, para todas as pessoas que, de alguma forma, fizeram
parte da minha história com Calebe, sobretudo os outros quatro homens que
aprendi a gostar e querer bem, com seus jeitos e personalidades apaixonantes.
E olho para Calebe, ali, deitado, com seu sorriso torto e olhos verdes,
encarando-me com todo o amor do mundo como se eu fosse o centro do seu
universo.
Sorrio e beijo sua boca na frente de todos, sem me importar, pois sei
que nos apoiam e sei que todos que assistirem também nos apoiarão.
Assim que me endireito, sem jamais soltar sua mão, eu começo a
dizer palavras que ecoam do meu coração:
— Eu tenho um estoque infinito de azar. Sou do tipo que complica
coisas simples e demora a admitir os próprios erros. Eu sei que sou uma
pessoa difícil e briguenta. Teimosia é o meu nome do meio. Mas eu tive sorte
em uma coisa, na mais importante de todas. — Viro o rosto para Calebe. —
No amor.
Respiro profundamente antes de continuar, organizando meus
sentimentos e pensamentos.
— Quando decidi participar do programa, meu coração estava partido.
E uma pessoa de coração partido faz quase qualquer coisa para juntar os
cacos e colá-los novamente. Eu sofri uma vez por amor e achei que não fosse
sobreviver. É assim que funciona. Dói quando é importante, se não doesse
perder, não seria amor.
Minha irmã solta um soluço e Maurício a abraça de lado,
confortando-a.
— Mas, como eu disse, tive muita sorte, porque estava sofrendo em
vão. E tive muita sorte porque um homem incrível me amava o bastante para
lutar por mim.
Busco Leonardo com o meu olhar e sou preenchida por aquela
felicidade que me faltava mais cedo, que estava me perturbando. Ao seu lado,
tímida em um canto, prestando atenção em tudo com deslumbre, está a
enfermeira.
— Todo mundo quer ser amado — digo. — E merecemos um amor
que nos aceite do jeito que somos, com nossos sonhos, nossas rotinas e
nossos planos. Porque o amor, sozinho, é só uma pequena fração de
felicidade, nós amamos pessoas, mas amamos as pequenas coisas do dia a dia
que nos fazem bem e que podemos compartilhar uns com os outros, como
dividir um café da manhã ou contar como foi o nosso dia de trabalho.
Leonardo sorri em um silêncio contemplativo enquanto me volto para
Bartolomeu.
— Eu tenho tanta sorte, porque posso amar sem medo enquanto ainda
vivemos em um mundo horrível onde o amor de muitos é julgado,
questionado e invalidado. Um privilégio quase injusto, eu diria. Mas, sabem
de uma coisa? Um cara de poucas palavras uma vez me disse que não tem
problema a gente ter esperanças de ficar ao lado de quem a gente ama. Na
época eu disse que tinha medo de me machucar, mas se não lutarmos pelo
nosso amor, quem lutará?
Bartolomeu e Gael dão as mãos, sorrindo um para o outro, e sinto o
aperto de Calebe também se intensificar, um lembrete de que está ao meu
lado (não que ele conseguisse sair dali no momento, de qualquer forma).
Olho, dessa vez, para Maurício, e não consigo segurar uma risada
baixa.
— Depois de tudo isso, é engraçado pensar que existem aqueles que
fogem do amor alegando não precisarem de algo assim, como se nunca amar
ninguém fosse uma conquista. Uma medalha de ouro. Bem, eu entendo esse
pensamento. O amor é assustador pra caramba e a gente nem sempre acha
que merece. Mas merecemos. Todo mundo merece.
Quase inconscientemente, Maurício olha de esguelha para minha irmã
e a aperta um pouco mais forte, fazendo-me sorrir ainda mais, se é que isso é
possível.
Depois, encaro João Guilherme, seu rosto bonito, as duas covinhas em
seu sorriso autêntico que já me é familiar.
— E também merecem uma segunda chance — emendo. — Segundas
chances não existem para replicar a primeira, elas existem para que possamos
seguir em frente. Amores que deram errado e não têm mais conserto não
representam todos os amores do mundo. Em geral, o amor é uma coisa boa, a
gente só tem que acreditar que ele cabe em nossas vidas.
João Guilherme olha para baixo e pousa a mão no próprio peito, onde
eu sei que está aquele anel de família.
Elevo minha voz:
— Enfim, eu tive sorte. Por que amo e sou amada, mas sou
eternamente grata a cada um de vocês — faço um movimento amplo com os
braços — que me ensinaram um pouquinho mais sobre o amor, para que eu
pudesse enxergá-lo bem debaixo do meu nariz.
Risadinhas se fazem ouvir pelo quarto.
— Amo você, minha Orquídea — Calebe sussurra em apoio, beijando
a minha mão.
— Então sim — eu digo, cheia desse sentimento que transborda de
mim para o mundo inteiro. Literalmente. — Eu amo Calebe Ventura, e ele é o
mesmo que nunca mais se vissem. Eu sei que a frase representa a eternidade,
a ideia de que a distância, o tempo ou as circunstâncias não importam. Que
alguns amores nunca acabam, mas se eternizam nas nossas lembranças.
Mas, que os adoradores e críticos do cinema não me ouçam, eu acho
um pouco triste. Lindo, é claro, porém muito triste.
Agora que finalmente tenho o amor em sua completude, a mísera
ideia de me despedir de Calebe para qualquer coisa já me deixa desolada.
Ergo minha câmera — não a profissional, mas aquela que ganhei de
presente de João Guilherme meses atrás — e coloco minha mão à frente da
especial.
— Então a culpa é minha?
Dou de ombros e descarto a foto sobre uma almofada, mais
interessada no meu marido.
fosse a primeira vez. Seus beijos são suaves e curtos, mas suas mãos me
agarram com ganância.
Sinto-o crescer abaixo de mim, movimento meus quadris, e Calebe
exibe um sorriso silencioso de aprovação contra a minha clavícula. Quando
estou prestes a me livrar do roupão, meu celular começa a tocar do outro lado
do quarto.
— Deixe — diz, concentrado em desbravar minhas pernas em busca
de um encaixe mais forte.
— Não posso. — Minha voz é um lamento. — Deve ser a Alice, ela
— Quem está aí? — sondo. Já sei a resposta, mas quero ouvir da boca
dela pelo prazer de expor os dois ao ridículo.
— Maurício veio almoçar.
Faço uma rápida conta matemática na minha mente e digo:
Ele ajeita os travesseiros sobre a cama e liga a televisão no volume baixo. Por
sorte, conseguimos sintonizar na emissora brasileira, já que o hotel possui um
serviço de TV bem completo, para atender hóspedes de todos os lugares do
mundo.
— Quer dizer que vocês agora visitam as casas dos pais um do outro,
declaram seus sentimentos a quem quiser escutar e não ficam com mais
ninguém. — Arqueio uma sobrancelha para minha irmã. — Maurício já sabe
que estão namorando, Alice?
Minha irmã sorri como uma harpia.
— Ele vai saber em algum momento. Agora, chega de conversa,
faltam dez minutos, a novela está acabando e o programa começa logo a
seguir.
Sou obrigada a rir. Ela fisgou Maurício de jeito, mas também foi
Paris?
Encerro a ligação dando risada. Eu sou doida, mas minha irmã é mil
vezes mais.
Calebe já está deitado com os braços atrás da cabeça, o abdômen
flexionado e as pernas abertas. Aquele volume protuberante continua o
mesmo de quando desmontei dele para atender Alice. É um provocador filho
da mãe!
— Quem falta nos atrapalhar? — pergunta e, com um timing perfeito,
recebo uma mensagem no celular que continua em minha mão. É uma foto
que me faz sorrir. — O que foi?
Subo na cama e rastejo até ele. Deito-me em seu ombro e mostro a
mensagem.
É uma selfie de Leonardo e Arabella. Estão abraçados e, por um
milagre, nenhum dos dois está vestido com roupas hospitalares. Ela é bem
menor do que ele, com seu rosto delicado de porcelana e os cabelos dourados
como raios solares. Já nos encontramos algumas vezes e acabamos nos
tornando amigas, já que ela é uma grande fã do programa e queria saber todos
com o pai está melhorando aos poucos desde que ele e Gael oficializaram o
casamento. O velho teve que engolir os dois de qualquer jeito já que a
diretoria votou a favor da promoção de Bartô. Depois de tudo o que o velho
fez eles passarem para ficarem juntos, eu acho muito bem feito!
— Já sei o que vai acontecer. — Passo uma perna por cima dele e me
sento, completamente nua. — Eu estava lá, lembra?
Contraio-me contra sua pélvis, rebolando lentamente. Calebe passa a
língua sobre os lábios, inebriado, e segura meus quadris. Meus cabelos estão
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