O Noivo Ideal

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Copyright © 2021 LETTI OLIVER

O Noivo Ideal (Livro Único)

Capa e Diagramação:
Letti Oliver

Revisão e Betagem:
Natália Franco e Lais Prado

Todos os direitos reservados.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, lugares e acontecimentos descritos são


produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e
acontecimentos reais é mera coincidência. Este livro ou qualquer parte dele
não pode ser reproduzido ou usado de forma alguma sem autorização
expressa, por escrito, da autora, exceto pelo uso de citações breves em
resenhas ou avaliações críticas.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela lei n° 9.610/98 e


punido pelo artigo 184 do código penal.

1° Edição | Criado no Brasil.


Para todas as pessoas que, assim como eu, precisam de algumas risadas em
meio a tempos tão sombrios.
Existem apenas duas coisas na vida que Maria Flor não consegue entender: 1)
como um homem tem a coragem de trocar sua noiva por outra às vésperas do
casamento que estavam planejando há meses; e 2) o que leva uma mulher em
sã consciência a se inscrever no programa “O Noivo Ideal”, um famoso
reality show brasileiro no qual cinco caras competem pela mão de uma noiva
anônima.

Mas são essas as situações em que ela se encontra depois de uma traição, uma
noite de bebedeiras para afogar as mágoas, e um formulário preenchido por
impulso, e agora sua única opção é participar daquele programa estúpido na
esperança de, milagrosamente, conseguir um novo amor — e, de quebra, um
ótimo prêmio em dinheiro.

Agora... qual o maior problema em tudo isso?

Bem, o participante número cinco é, com certeza, um grande problema!

ATENÇÃO: Livro não recomendado para menores de 18 anos. Contém


cenas de sexo e linguajar inapropriado.
PRÓLOGO
EPISÓDIO 01
EPISÓDIO 02
EPISÓDIO 03
EPISÓDIO 04
EPISÓDIO 05
EPISÓDIO 06
EPISÓDIO 07
EPISÓDIO 08
EPISÓDIO 09
EPISÓDIO 10
EPISÓDIO 11
EPISÓDIO 12
EPISÓDIO 13
EPISÓDIO 14
EPISÓDIO 15
EPISÓDIO 16
EPISÓDIO 17
EPISÓDIO 18
EPISÓDIO 19
EPISÓDIO 20
EPISÓDIO 21
EPISÓDIO 22
EPISÓDIO 23
EPISÓDIO 24
EPISÓDIO 25
EPISÓDIO 26
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
“Atenção, mulheres em busca de um novo amor! Já estão abertas as
inscrições para a próxima temporada de O Noivo Ideal, e você não pode
perder a chance de se tornar a noiva mais cobiçada do Brasil! O programa
espera por você, que sonha em encontrar a sua alma gêmea e, de quebra,
ganhar um super prêmio que inclui: o valor de quinhentos mil reais em
dinheiro, uma mega cerimônia de casamento com tudo pago, e uma viagem
de lua-de-mel com destino à cidade mais romântica do mundo. Isso mesmo,
estamos falando de Paris! Uma noiva anônima, cinco pretendentes!
Inscreva-se agora mesmo para ter a chance de conhecer O Noivo Ideal para
a sua vida!”

MARIA FLOR

Que. Grande. Besteira.


Foram poucas as vezes na vida em que eu desejei nunca ter sido
alfabetizada.
Na primeira delas, a minha professora do jardim de infância, a tia
Dolores, uma senhora que, de acordo com a minha nada válida dedução
infantil, tinha pelo menos mil anos de idade naquela época (era o maior
número que eu conhecia aos seis anos), pediu para que todas as crianças

lessem os próprios nomes em voz alta. Como se não bastasse, ela ainda
exigiu que fizéssemos o ritual constrangedor de levantar e caminhar até a
frente da sala, um tipo de tortura que, na minha humilde opinião, desperta
nelas (as queridas professoras) uma inexplicável onda de prazer, já que não

podem nos punir de outras formas sem perderem os seus empregos.


Naquele primeiro dia letivo de um ano que seria incrível de acordo
com a tia Dolores, que não parava de repetir essa palavra (acho que tentando
convencer a si mesma disso), naquela segunda-feira nublada, descobri uma
coisa muito importante sobre maturidade. Ou, melhor dizendo, sobre o que a
falta de maturidade pode causar, sobretudo quando envolve a leitura do meu
nome, Maria Flor Pinto de Barros, dentro de uma sala de aula lotada com
trinta e cinco crianças — um trauma que se repetiu ano após ano até eu me

formar no ensino médio.


Outra vez em que eu gostaria de não ter o dom da leitura, foi no meu
aniversário de doze anos, quando recebi a minha primeira cartinha de amor!
Ela havia sido deixada dentro da minha mochila — ai meu Deus, ai meu
Deus — e tinha cheiro de chocolate. Estava sem remetente, mas ele (quem
quer que fosse) teve o trabalho de desenhar lindos corações com canetinha
vermelha no verso de um envelope cor de rosa — ai, meu Deeeus — e, no
topo da carta, escrito com letras garrafais impecáveis…
“PARA ANA JÚLIA”.

Pois é. Quem é Ana Júlia e por que, aos doze anos, ela já tinha muito
mais sorte no amor do que eu jamais tive ao longo dos meus recém
adquiridos vinte e sete?
Mas, voltando ao assunto das coisas que eu gostaria de nunca ter lido

na vida, eu poderia citar outros momentos ilustres, é claro, sobretudo depois


que inventaram a internet, mas nada, jamais, nunca e em hipótese alguma, vai
superar a sensação de desespero e vergonha alheia que me corroem sempre
que uma propaganda daquele programa de televisão ridículo aparece no meu
perfil do Facebook. E, como isso acontece com uma frequência assustadora,
tenho a sensação de estar constantemente revirando os olhos.
Eu me pergunto o que leva uma mulher com todas as funções
cerebrais em pleno funcionamento a se inscrever nesse tipo de coisa.

— Você não vai sair desse celular? — Alguém berra no meu ouvido,
e a voz soa familiar mesmo com o barulho constante da música eletrônica.
Levanto os olhos e encaro os dois rostos zangados de Alice, minha
irmã mais nova e a responsável por enfiar na minha cabeça que seria uma boa
ideia experimentar alguma coisa alcoólica, dizendo que eu me sentiria bem
melhor depois que bebesse um pouco. O problema é que, na cabeça dela, o
conceito de “melhor” envolve, ao que tudo indica, uma terrível vontade de
vomitar e chorar.
E morrer.

Não necessariamente nessa ordem.


— Terra para Maria Flor. — Ela sacode as mãos perto do meu nariz.
— Por favor, me diz que você não vai desmaiar por causa de um copo de
margarita!

Margarita? Então é assim que se chama aquela coisa? Pensei que


fosse, sei lá... morte!
— Eu não vou desmaiar — murmuro, sentindo a língua inchada no
céu da boca. Meu estômago faz o seu protesto diante da mentira e dá uma
cambalhota para reafirmar minha própria embriaguez. — Pelo menos, eu
espero que não.
— E nem vomitar. — A nota de esperança em sua voz não me passa
despercebida. Ela dá um passo discreto para trás. — Certo?

— Ah, mas aí você está pedindo demais…


Alice franze as sobrancelhas espessas e revira os olhos com elegância;
é a única pessoa no mundo capaz de fazer as duas coisas ao mesmo tempo e
continuar linda como uma atriz hollywoodiana, mas ela continuaria linda
mesmo depois de correr uma maratona de três dias no deserto do Saara. Hoje,
em especial, ela conseguiu a proeza de ficar duplamente bonita de um jeito
literal, porque eu tenho certeza de estar vendo a minha irmã em dobro.
Ela puxa uma cadeira e senta ao meu lado na pequena mesa circular
afastada do palco. A iluminação colorida da boate lança uma gradação

policrômica em sua pele negra, alcançando tons inéditos de vermelho,


amarelo, azul e verde. Seus cabelos de cachos perfeitos pulam sobre os
ombros quando cruza os braços, batendo os cílios compridos com
impaciência.

— Eu já sabia que você não era acostumada com bebidas, Maria Flor,
mas você é um desastre completo. Qual é a graça de afogar as mágoas em um
copo de margarita? Um copo!
— Faria alguma diferença se fossem dois? — resmungo, sentindo a
cabeça rodar.
Também não me parece muito coerente ela supor que afogar as
mágoas pode ser algo engraçado, ainda mais se tratando das minhas mágoas,
mas prefiro não contrariar a minha irmã com devaneios bêbados. Bem lá no

fundo, eu sei que ela só quer o meu bem.


Se não fosse por Alice, eu ainda estaria chorando em posição fetal no
chão do meu banheiro, abraçada a um pote de sorvete derretido, sem acreditar
que a minha vida perfeita encontrou mesmo o seu caminho para um fim
trágico.
Pode parecer melodramático demais, mas é assim que eu me sinto:
perdida em uma história de amor bem ruim, dentro de um sonho que deu
errado antes mesmo de começar. Como é possível sofrer tanto por conta de
algo que eu nunca tive de verdade? Por que há uma cratera tão grande no

meio do meu peito e, mesmo assim, esse buraco de apatia ser a única coisa
que me preenche?
Gostaria de entender em que momento as coisas começaram a dar
errado, e como eu pude ser tão cega a ponto de não perceber.

Foi quando ele me levou na Trilha das Laranjeiras, onde a gente


sempre acampava durante o verão, se ajoelhou na frente da árvore florida na
qual marcamos nossas iniciais há muitos anos, estendeu uma caixinha de
veludo na minha direção e disse, com o sorriso mais esperançoso e feliz de
todos os tempos (cretino!), que queria dormir e acordar ao meu lado pelo
resto da vida?
Ou será que foi bem antes, naquele dia doze de novembro calorento,
quando ele apareceu como um deus grego sem camisa, em toda a glória de

um abdômen perfeito, com olhos intensos e ligeiramente raivosos, e passou


um braço por cima do meu ombro fingindo ser meu namorado para que dois
idiotas parassem de me perturbar durante uma festa da faculdade?
Tudo deu errado desde o começo? Ou foi no meio?
Quando?
Quando?
— ...Flor? Maria Flor! Você está me escutando?
— Desculpa, eu estava…
— Pensando no Judas. — Alice despreza minha explicação com um

aceno. "Judas" é como ela apelidou meu ex-noivo depois que combinamos de
nunca mais mencionar o nome dele em vão. — Sua cara diz tudo. Aquele
babaca não vale o seu pensamento. Não merece nem respirar o mesmo
oxigênio que você respira. Ele te traiu, pelo amor de Deus! Pulou a cerca,

pediu seu autógrafo em um atestado de corna, decorou a sua cabeça com um


par de chifres tão grande que você precisa abaixar toda vez que passa por
uma porta, foi a Capitu do seu Bentinho, molhou o biscoito em outra padaria,
gratinou o canelone, agasalhou o croquete…
— Eu já entendi! — reclamo, interrompendo Alice antes que suas
analogias entre sexo e comidas fiquem ainda piores. — Sei muito bem da
minha posição, obrigada. E, só para constar, a Capitu não traiu o Bentinho.
— Isso é sério? Quer mesmo discutir Dom Casmurro agora?

— Você não devia estar dançando? — sugiro, mudando de assunto.


Quem precisa de margaritas para ficar tonta quando se tem uma irmã como a
minha? — Ou beijando na boca? Não é isso o que as pessoas fazem em
boates?
— Ótimo, que bom que você sabe. Isso facilita bastante o meu
trabalho de arrumar um cara para você. — Ela faz um movimento amplo com
o braço, indicando a área mais lotada da pista de dança. — Pode escolher,
tem de todos os tipos e sabores.
Estreito os olhos para o aglomerado de corpos se esfregando, mas não

consigo distinguir onde alguns deles começam e onde terminam. O excesso


de luzes faz meu cérebro rodar e não entendo o que ela espera de mim.
— Um cara? — murmuro, encarando Alice com o cenho franzido,
mas não tenho certeza se ela consegue me escutar por causa do barulho, então

repito mais alto: — Como assim um cara?


— Não conhece o manual universal de como superar términos de
namoro conturbados? A primeira regra diz claramente que a fila anda, a
catraca gira e quem sentir saudade vai pro final da fila.
Devagar, começo a entender onde ela pretende chegar com essa
história, e a ideia de beijar um desconhecido é tão atrativa para mim quanto a
de pular de um avião sem paraquedas. Inclino-me o mais perto possível da
minha irmã, que beberica um drinque de cor vermelha — em que momento

isso chegou, só Deus sabe.


— Alice, eu não vou ficar com outra pessoa de jeito nenhum, ficou
maluca?
Ela bate o copo sobre a mesa.
— E por que não? Você é linda, jovem, solteira, dona do próprio
negócio, solteira.
— Falou solteira duas vezes.
— Exato! — Alice grita com indignação, jogando os braços para o
alto.

— Alice, eu não consigo. Eu ainda…


Ainda o amo.
Não sou capaz de dizer as palavras em voz alta, mesmo sendo a mais
pura verdade. É vergonhoso, eu sei. Uma parte de mim quer

desesperadamente odiar o homem que me ensinou todos os prazeres do amor,


mas ele o fez com tanta maestria que a simples menção desse sentimento
evoca a lembrança dele em todos os meus sentidos.
O toque macio de suas digitais contra a minha pele. O sabor único e
inconfundível dos nossos lábios quando se encontravam. O timbre rouco da
sua voz sussurrando declarações no meu ouvido pouco antes de nós dois
sucumbirmos ao sono nos braços do outro. O perfume inebriante que, muitas
vezes, invadia o ambiente antes dele, anunciando sua chegada e fazendo meu

coração disparar de expectativa. E, o mais importante, aquele milissegundo


em que nossos olhares se encontravam, quando o mundo inteiro parava e todo
o universo fazia algum sentido.
— Ele está impregnado em mim — murmuro, sentindo o peso da
presença dele no meu organismo. O rosto da minha irmã esmorece assim que
a encaro no auge do meu desespero epifânico. — Dentro de mim, Alice. O
que eu faço?
De repente, eu me sinto nauseada. Não tem nada a ver com a
margarita, e sim com a minha burrice mesmo.

— Chama um exorcista?
— Preciso de um pouco disso. — Agarro o copo de Alice.
— Maria, eu não… — Ela tenta me alertar, mas viro todo o conteúdo
na minha boca. — Tarde demais.

O gosto não é horrível, só muito ruim. Sinto o líquido queimar a


minha garganta inteira e o arrependimento é quase instantâneo.
Pode trazer a ambulância porque eu enlouqueci de vez!
— Tem pimenta nessa coisa? — reclamo, tossindo o meu fígado, que
acaba de falecer.
— Pimenta, limão, tomate, vodca… — Ela dá alguns tapinhas nas
minhas costas, enquanto tenta esconder a risada. — Tem muita coisa, Maria
Flor. É uma Bloody Mary de ótima qualidade.

— Bloody Mary — gemo. — Isso é sério?


— Eu acho poético, combina com você. Maria, a sanguinária. Só falta
você ser um pouquinho mais sanguinária, mas ninguém é perfeito.
— Engraçadinha. — Abaixo os olhos para as minhas mãos. Em uma,
está o celular ainda ligado, na outra, o copo agora vazio. Solto os dois sobre a
mesa e suspiro profundamente. — Alice, obrigada por hoje, de verdade. Eu
sei que não estou sendo a melhor companhia do mundo, mas foi bom sair um
pouco de casa.
— Você é incrível, Flor. A melhor irmã mais velha que existe. —

Minha irmã segura meu braço e dá um leve apertão de apoio. — Quem


perdeu foi ele.
— Eu sei disso, é só que… — Engulo em seco, balançando a cabeça
para os lados, em busca das palavras certas. — Era pra gente se casar daqui a

uma semana. Dentro de sete dias, eu deveria estar vestida de noiva, dizendo
sim para o homem dos meus sonhos, e agora, aqui estou eu, enchendo a cara,
enquanto ele está…
— Plantando a mandioca — Alice completa com um olhar solidário
que me faz gargalhar.
Puxo minha irmã para um abraço, porque é a primeira vez que eu dou
uma risada sincera desde o fatídico dia. Ela retribui sem pensar duas vezes,
rindo também, e por alguns segundos eu até esqueço onde estamos.

— Ele é um idiota — decido assim que a gente se afasta, estimulada


por uma onda de coragem vinda não sei de onde, talvez da bebida. Com
certeza da bebida! — Maldito Judas! — grito, atraindo olhares de pessoas
próximas.
— Tá bom. É melhor a gente pedir um carro, porque daqui a pouco
você vai estar chamando gato de cachorro e poste de meu amor. — Alice
pega o meu celular para fazer a ligação, mas algo na tela chama a sua
atenção. — O Noivo Ideal? Era isso que você estava olhando antes de eu
chegar?

— É uma besteira — digo, espiando sobre seu ombro.


Lá está a propaganda que me faz — de novo — revirar os olhos. O
título do programa se pronuncia em dourado, e o grande destaque recai sobre
a silhueta de uma noiva na frente, com cinco silhuetas masculinas mais ao

fundo, em um cenário cheio de pétalas vermelhas com alguns holofotes nos


cantos. Não é nada bonito, mas tem o seu charme.
— Uma noiva anônima. Cinco pretendentes — ela lê, como se fosse
uma apresentadora, rindo da minha cara de nojo. — Venha conhecer O Noivo
Ideal para a sua vida. Eu adoro esse programa, você é muito ranzinza. Sabe o
que eu acho?
— Não, mas aposto que você está prestes a me dizer.
— Que devia se inscrever — diz com naturalidade e até um certo

orgulho de si mesma. — Nós duas deveríamos.


Olho para ela em busca de alguma coisa que ateste a sua sanidade.
Não encontro.
— Por que, exatamente, a gente faria isso?
— Porque… — Ela desdenha da minha pergunta, dando de ombros.
— Porque a gente pode. Não precisamos de um motivo, Maria Flor. Vamos,
vai ser divertido.
— Todo mundo sabe que esse tipo de programa é uma armação,
Alice, são atores.

— Mais um motivo para a gente se inscrever. — Os olhos da minha


irmã brilham de empolgação. — Se não é de verdade, qual o problema?
— E se for de verdade?
— Você acabou de dizer que não é!

— Tá, mas e se for?


— É só um formulário — diz, dedilhando a superfície da mesa com
suas unhas compridas. — Não é como se uma de nós duas fosse ser
realmente escolhida.
Ela tem um bom argumento.
Milhares de mulheres devem se inscrever todos os anos, atraídas pela
promessa do casamento perfeito, não faz sentido que uma de nós duas tenha a
sorte — ou o azar, no meu caso — de ser a garota premiada. Qual é a chance?

Uma em um milhão?
Há duas semanas, algo assim nunca passaria pela minha cabeça. Mas,
há duas semanas, eu tinha certeza de que meu noivo era completamente
apaixonado por mim.
— Tá bom.
— Eu sabia que você não ia… — Alice para no meio de sua fala,
arregalando os olhos. — Espera, o que você falou?
— Que tudo bem, vamos fazer isso. — Ouço minha própria voz e
sinto que há alguma coisa estranha no que estou dizendo.

Alice me analisa com cuidado, como se eu fosse um rato de


laboratório.
— Sério?
— O que pode dar errado? — questiono, mais para mim do que para

ela. — Eu duvido que vá ser escolhida, de qualquer forma. E, se por algum


milagre isso acontecer, o dinheiro vale a pena e… — De repente, tudo faz
sentido na minha cabeça. — Sabe o que eu preciso?
— Uma cama e uma boa noite de sono?
— Um noivo!
— Você está bêbada.
— Cinco noivos — continuo, sem dar importância à sua observação.
— E meio milhão de reais. Todo mundo precisa de meio milhão de reais. Eu

posso comprar um noivo com meio milhão de reais. Um noivo fiel.


— Você está bêbada, Maria Flor!
— Eu estou bêbada! — concordo. — Vamos fazer isso logo, antes
que eu fique sóbria e me arrependa.
Minha irmã abre um sorriso endiabrado que atravessa todo o seu rosto
e clica no link de inscrição. Sinto meu coração acelerando com uma euforia
diferente, como se eu fosse uma criança fazendo bagunça escondida dos pais.
O primeiro passo requer o envio de uma foto que mostre meu rosto
com nitidez, e, depois de quinze minutos, finalmente conseguimos encontrar

uma que me deixa satisfeita.


Eu me lembro quando foi tirada, embora não tenha sido um dia
especial. Na imagem, meu cabelo está volumoso e rebelde, típico de alguém
que acabou de acordar, emoldurando meu rosto e os ombros até desaparecer

cintura abaixo. Meus olhos castanho-escuros parecem fixos na lente da


máquina fotográfica, mas eu sei que estava olhando além, para a pessoa por
trás da câmera.
Linda e feliz são os adjetivos que me vêm à mente ao focar nos
detalhes: na maneira como a iluminação matutina venerava a minha pele
negra, tingindo-me com uma bonita coloração de oliva no campo; no tom
rosado das minhas bochechas por algo indecente que ele havia dito antes do
clique final; mas o protagonismo, a meu ver — um ver que pode não estar

funcionando muito bem — estava todo no sorriso brilhante.


Saber que foi tirada por ele só me deixa mais determinada. É o meu
momento de rebeldia, um protesto íntimo pelo abandono sofrido. Uma atitude
(talvez um pouco imatura) de mostrar que consigo seguir em frente, mesmo
com algo tão bobo.
Leio e releio o campo "preencha seu nome completo" depois de
enviar a foto. Meus dedos se movem sozinhos até formar "MARIA FLOR
PINTO DE BARROS" no formulário de inscrição do programa O Noivo
Ideal. E é nesse momento que eu tenho uma certeza distante de estar vivendo

mais uma daquelas situações únicas, em que seria ótimo nunca ter sido
alfabetizada.
Talvez, isso me impedisse de fazer a maior besteira da minha vida.
“Uma mulher com o coração partido nem sempre está em busca de alguém
que cole os cacos, senhoras e senhores. Às vezes, tudo o que ela precisa é de
meio milhão de reais, uma viagem para Paris e, de quebra, um cara gato que
seja muito bom em física!”

MARIA FLOR

Existe uma frase na família Pinto de Barros que meu pai ama repetir
sempre que estamos prestes a fazer uma besteira, e que já foi direcionada a
mim mais vezes do que me orgulho de contar: a luz no fim do túnel pode ser

um trem.
Meu pai não é uma pessoa otimista, mas ninguém pode acusá-lo de
estar errado.
Quando ele soube da minha viagem para a capital, eu já estava
preparada para ouvir essas palavras, então não foi nenhuma surpresa quando
ele me abraçou e as sussurrou no meu ouvido, com seu timbre severo de
quem entende da vida. O problema é que, dessa vez, por alguma razão, a
frase ficou impregnada na minha cabeça e não sai nem com poder de reza.

Tudo aconteceu de repente. A ligação chegou duas semanas depois da


pior ressaca da minha vida. No começo, eu não quis acreditar, pensei que
fosse um golpe e mandei o produtor enfiar os parabéns dele em um lugar
onde o sol não bate. Felizmente — ou não, depende do ponto de vista —

minha personalidade forte (palavras dele) era tudo o que o programa


precisava para a noiva da nova temporada, e o pobre homem ficou ainda mais
determinado em manter sua escolha (no caso, eu).
Deve ser a primeira vez na história do entretenimento que alguém tem
a chance de ganhar meio milhão de reais graças a um insulto.
Assim que a minha ficha caiu e eu enfim entendi que era verdade, que
eu estava mesmo sendo chamada para participar do circo de horrores
televisivo mais famoso do Brasil — popularmente conhecido como O Noivo

Ideal — fui correndo para a casa da minha irmã em busca de um péssimo


conselho, e ela disse exatamente o que eu precisava (e esperava) ouvir: que
eu deveria sim aceitar o convite porque seria uma experiência incrível, que
valia a pena só pelo dinheiro e que, talvez, isso me ajudasse a encontrar um
novo amor.
Mas, o que realmente me convenceu, foram as palavrinhas mágicas
que ela disse depois de tudo isso:
— Judas vai ver você na televisão!
Eu sei, eu sei! Não é uma razão madura, a vingança nunca é plena,

blá, blá blá, prato que se come frio… Mas, quem pode julgar uma mulher por
desejar secretamente uma massagenzinha no ego? Ainda mais uma mulher
traída dias antes do casamento?
Espero mesmo que ele me veja e perceba a mulher fantástica que

perdeu. Que estou muito bem, obrigada, e já segui em frente.


Argh, idiota!
Jogo-me na cama e encaro o teto branco do quarto de hotel. É um
lugar chique, com uma vista bonita da vida noturna de São Paulo. Já perdi a
conta de quantas fotos eu tirei do cenário nos últimos dias, em busca do
instante perfeito, da luz ideal, do clique inesquecível. Registrar esses
pequenos momentos é um vício do qual me orgulho muito, e fico aliviada por
saber que pelo menos isso não mudou.

Meu celular começa a vibrar sobre o colchão, e eu solto um gemido


ao perceber que se trata de uma chamada de vídeo. Hoje foi o primeiro dia
oficial de gravações e devem estar todos eufóricos para saber das novidades.
Eu só queria um banho quente, mas não posso ignorar uma ligação dos meus
pais ou eles vão achar que eu fui sequestrada, e a última coisa de que preciso
agora é daqueles dois enfiados em um avião.
— Oi… — atendo, e a algazarra do outro lado não me pega de
surpresa.
Minha família é…

— Cala a boca, ela atendeu! — Alice empurra nosso irmão mais


novo, Pedro, de treze anos, tirando-o do enquadramento da câmera. Ela está
usando vários modeladores coloridos na cabeça, que balançam perigosamente
com seus movimentos eufóricos. — E então? Como foi? Eu preciso dos

detalhes!
— Meu Deus, você está linda! — minha mãe grita, arrancando o
celular da mão de Alice antes que eu consiga responder. Por não ser a pessoa
mais familiarizada do mundo com tecnologias, ela não consegue filmar nada
além do próprio nariz enquanto cola o rosto na tela para me enxergar melhor.
— Parece uma celebridade. Olha querido, ela não está parecendo aquela
cantora famosa? Qual é mesmo o nome dela?
Por uma fração de segundo, meu pai aparece colocando os óculos no

rosto, reparo apenas que cortou a barba grisalha, mas continua usando o
mesmo pijama listrado que minha mãe odeia. Ele não tem tempo de falar
qualquer coisa, porque Pedro se enfia na frente.
— O que fizeram com o seu cabelo? — Meu irmão franze a
sobrancelha direita, girando o boné para trás. — O que é essa coisa na sua
cara?
— É maquiagem, seu idiota! — Alice dá um tapa na nuca dele e pega
o celular outra vez, tentando cumprir (sem sucesso) a difícil tarefa de manter
os quatro dentro da imagem. — Nunca vai arrumar uma namorada com essa

delicadeza toda — ironiza.


— Alice — nossa mãe diz — não fale assim com o seu irmão. Você é
mais velha do que ele, tem que dar o exemplo.
— Eu não preciso do exemplo de uma ogra grossa como ela — Pedro

revida e sai correndo.


O pandemônio só piora, não consigo enxergar direito o que acontece a
seguir, porque minha irmã joga o celular para alguém (provavelmente nossa
mãe, a julgar pela maneira como segura a câmera virada para o tapete da sala
de estar), e dispara atrás do nosso irmão, gritando algumas promessas sobre
enterrar o corpo dele no jardim dos fundos — não que a gente tenha um.
— Quantos anos vocês dois acham que têm? — Escuto o berro
estridente da minha mãe. — Se quebrarem alguma coisa eu quero ver quem é

que vai arrancar dinheiro do cu pra pagar!


— Rita! — É a vez do meu pai reclamar. Ele não gosta de palavrões,
mas minha mãe sempre conta que nasceu falando puta que pariu para o
médico.
Equilíbrio é tudo na nossa família.
Alguns minutos se passam enquanto gritam uns com os outros e,
eventualmente, voltam a aparecer na câmera, descabelados, ofegantes e
sorridentes, como se nada tivesse acontecido.
— E os noivos? — Alice pergunta, segurando o celular no alto. —

Quero saber dos noivos! Você já viu eles? São bonitos? Estão hospedados no
mesmo hotel que você?
Abro a boca para responder, mas minha mãe se antecipa.
— É claro que ela não os conheceu ainda. A noiva é anônima,

esqueceu? Só vão saber quem ela é no terceiro episódio. Mas devem ser tão
bonitos! No ano passado todos eles pareciam atores de cinema. Jovens,
musculosos, lindos de morrer. Daquele tipo que a gente só vê em filmes e faz
cosquinha no útero, sabem?
Meu pai solta um pigarro ao fundo, que é ignorado com louvor. Meu
irmão, mais inteligente, fica quieto.
— Sei lá, mãe… — Alice pondera, esticando mais o braço, de modo
que, finalmente, consigo ver todos eles juntos no meio da sala de estar. —

Vai que, na verdade, o programa só faz parecer que eles não se conhecem?
Eu pensei que, talvez, eles se vissem antes. Não é uma hipótese tão absurda
assim.
— Faz sentido — Pedro aquiesce, concordando com nossa irmã como
se os dois não tivessem tentado se matar há cinco minutos. Depois, ele se
empertiga, encarando a câmera com uma expressão contrariada. — E aí,
Maria Flor, não vai falar nada?
Resisto à tentação de gritar que "é isso o que eu estou tentando fazer,
seu projeto de gente recém saído das fraldas, mas vocês não calam a boca

um segundo" e respiro fundo, repetindo mentalmente que eu os amo (como


isso foi acontecer, é um mistério).
— Não, eu ainda não conheci os candidatos — explico calmamente e,
por um milagre, eles não me interrompem. — Isso só vai acontecer depois.

Por enquanto, tudo parece legítimo, sem armações. Isso na minha cara, Pedro
Henrique, foi feito para as gravações de abertura. Da próxima vez diga algo
mais educado, como "nossa, querida irmã, você está muito gata, como
sempre". Já sobre hoje, eles basicamente me filmaram sentada em um sofá
vermelho em formato de coração, muito brega por sinal, falando coisas sobre
a minha vida, carreira, família…
— Família? — Pedro se anima, arregalando os olhos verde-musgo
que se destacam em contraste com sua pele negra. Esse moleque vai dar um

trabalho quando crescer que só Jesus na causa. — Você falou da gente? Disse
o meu nome?
— Não, não, eu falei da família Oliveira, os nossos vizinhos.
— Ha, ha. Muito piadista você, Maria Flor. O que falou de mim?
— E de mim? — Alice também pergunta, com a mão no peito. — O
que você falou?
Dou uma boa olhada em cada membro da minha família antes de
responder.
Minha mãe, agora consigo ver, usa um avental cor-de-rosa todo

manchado com molho de tomate; ele forma uma combinação bastante atípica
com as argolas douradas em suas orelhas, as unhas impecavelmente feitas e o
batom vermelho-sangue. Ela sempre diz que as mulheres da família Barros
(sempre ocultando nosso nome do meio estrategicamente) devem estar

prontas a todo momento para qualquer situação, e leva muito a sério essa
filosofia.
Já o senhor Alberto, mesmo mantendo uma distância segura do
tumulto familiar, sentado em sua poltrona preferida enquanto finge assistir ao
jornal, continua atento na conversa — seu sorrisinho o entrega. Meu pai e eu
temos muito em comum, exceto pelo bom senso, pois nesse quesito ele me
ganha de longe. É um homem de aparência intimidadora, alto e com um
ótimo físico, levando em conta seus quase cinquenta e cinco anos, mas o

coração é igual ao de uma princesa.


Meus irmãos mais novos são cópias quase perfeitas um do outro, e a
personalidade dos dois não poderia ser mais igual, assim como a mentalidade
de quinta série.
— Vocês vão ter que assistir para descobrir — digo, com um sorriso
maquiavélico, ciente de que vão odiar a resposta. — Se eu contar tudo, não
vai ter graça nenhuma.
Como esperado, os três reclamam ao mesmo tempo. Dona Rita apela
para o seu discurso "eu sou sua mãe, você tem que me obedecer" enquanto

Alice dá início a uma extensa lista de adjetivos nada lisonjeiros a meu


respeito.
Eu fico rindo e, depois de uns cinco minutos de protestos, conto a eles
o possível sobre o programa. A verdade é que não aconteceu nada tão

impressionante ainda. Na maior parte do tempo, eu tive que interagir com


uma câmera e o diretor me deu instruções sobre como me sentar ou qual era a
pauta a ser respondida. Segundo ele, a voz do narrador vai preencher as
lacunas na edição final dos episódios.
Minha esperança é que as coisas fiquem mais emocionantes depois
que os pretendentes chegarem. Pergunto-me se vou gostar deles, se eles vão
gostar de mim, se em algum momento essa loucura vai fazer sentido e
quando eu vou me arrepender (e eu vou me arrepender com certeza). Passei

anos demais criticando as mulheres que participavam desse tipo de programa


para não ser atingida pela lei do carma.

***

— O que você disse? — Pisco repetidas vezes, assimilando as


palavras de Miguel Castro, o famoso apresentador e narrador do programa.
Nunca na vida eu sonhei um dia conhecer um cara tão famoso e
influente, então ainda é difícil conversar com ele sem parecer que tem um

sapo na minha garganta. Tudo bem que ele deve ter idade para ser o meu pai,
mas o homem é tão bonito que fica difícil lembrar dos vinte e tantos anos que
nos separam.
Quem nunca se imaginou sentando em um cara mais velho e gostoso

(e, de quebra, famoso) que atire a primeira pedra.


O estúdio está lotado de profissionais que agem por trás das câmeras:
cinegrafistas, maquiadores, um diretor e alguns editores, e a atenção de cada
um deles está focada única e exclusivamente em mim. Claro, eu sou a noiva e
protagonista da temporada, e me sinto particularmente linda no vestido
vermelho em que me enfiaram, e com o penteado complexo que fizeram na
minha cabeça, deixando meus cachos definidos e volumosos, mas o que estão
encarando agora é a expressão de horror tatuada no meu rosto.

Será que ouvi direito?


— Seu noivado — Miguel repete mais devagar, com um sorriso
perfeito de dentes muito brancos. Ele usa um terno cinza que é o suprassumo
da elegância e o conjunto "sorriso + terno + Miguel Castro" tinha que ser
interditado. Só acho! — Conte um pouco sobre como ele chegou ao fim.
— Como sabe do meu noivado? — pergunto, desconfiada. Nunca
mencionei o ocorrido em nenhuma das entrevistas que fizemos.
— Um passarinho me contou. Não precisa falar o nome dele, é claro,
mas é um grande acontecimento na vida de uma noiva. Foi por isso que você

decidiu procurar o seu noivo ideal? — Ele diz as duas últimas palavras com
um charme que moveria montanhas.
Engulo em seco, pensando em mil maneiras diferentes de escapar da
pergunta sem precisar fingir um desmaio.

Miguel cruza as pernas, apoia um braço no encosto do sofá e me


encara com as sobrancelhas arqueadas. Ele tem olhos pequenos de um bonito
tom cinzento, e seu cabelo grisalho é um bônus mais do que bem-vindo à sua
aparência madura. Algo me diz que ele já sabe a resposta (devem ter revirado
a minha vida do avesso), mas quer que eu diga mesmo assim. Não o culpo, é
o seu trabalho.
— Na verdade, mais ou menos — respondo, sincera, apertando as
mãos em cima do colo. — Eu e meu ex-noivo ficamos juntos por quase sete

anos. A gente se conheceu na faculdade até que… — Sinto o gosto amargo


na boca e faço uma careta. — Bem, ele me trocou pela secretária.
— Mentira! — Miguel exclama falsamente, com um sorriso cínico.
Ele sabe que eu sei que ele sabe, e isso me faz sorrir, mesmo se tratando de
um assunto sensível para mim. — E como você descobriu?
Lembro-me com riqueza de detalhes daquele dia, mas nem morta que
vou contar; não conseguiria também. Ele nunca deu qualquer indício de que
estava me traindo, então quando recebi sua mensagem avisando que tinha
ficado preso no trabalho por causa da chuva, nem passou pela minha cabeça

desconfiar de coisa alguma.


Dizem que o amor é cego, mas o meu é surdo, mudo, meio burro e
excessivamente azarado.
Não sei se foi coisa do destino, ou se meu timing é amaldiçoado, ou as

duas coisas, mas eu tive a brilhante ideia de buscar Judas no trabalho e, no


caminho, reconheci o carro dele naquele lugar.
Se eu fechar os olhos, consigo reproduzir a cena na minha mente
como se fosse ontem: ele usava uma típica blusa de academia, daquelas
regatas que fazem os músculos dos braços se destacarem ainda mais, seu
cabelo pingava sobre os ombros (provavelmente recém saído da banheira de
hidromassagem), e sorria sem imaginar que o carro ao lado do dele era meu,
um sorrisinho torto e safado que sempre foi sua marca registrada — e, até

então, uma das coisas que eu mais amava nele.


Houve um segundo de silêncio que pareceu durar anos e mais anos
quando olhou pela janela e, enfim, me reconheceu. Ali, em nosso encontro
silencioso de olhares, enquanto meu coração se despedaçava e todos os meus
sonhos morriam, enxerguei o desespero em seus olhos. Ele abriu a boca,
talvez para se explicar, talvez para se desculpar, eu nunca soube, pois as
palavras foram caladas pelo som do meu acelerador.
Foi a última vez que a gente se viu.
— Eu flagrei os dois saindo de um motel — resumo, tentando não

transparecer a minha vontade de gastar o réu primário.


Por essa, nem Miguel Castro esperava, pois ele tosse, engasgado com
a própria surpresa.
— Que filho da put…

— Corta! — o diretor grita, batendo a claquete e fazendo um sinal de


reprovação para Miguel, que gargalha ao se dar conta do que disse.
— Desculpa! Força do hábito. Vamos fazer de novo. — Pisca para
mim de um jeito cúmplice e se recompõe rapidamente, fazendo jus a sua
reputação profissional impecável. Assim que o diretor libera a gravação outra
vez, Miguel segue de onde paramos. — Que história triste, senhoras e
senhores! Será possível que um dos cinco pretendentes conseguirá colar o
coração partido da nossa noiva? O que você diz, Maria Flor, está ansiosa para

conhecê-los?
Eu poderia dar um beijo nele por mudar de assunto (eu poderia dar
um beijo nele, ponto).
Ultimamente tenho pensando muito em beijos, e outras coisas
também, que envolvem uma cama, quatro paredes e nenhuma roupa. Acho
que a falta de sexo faz isso com as pessoas e eu nunca percebi até ficar sem.
— Muito! Quer dizer, é por isso que estou aqui, certo? — E pelos
quinhentos mil reais. — Mas eu não iria tão longe dizendo que eles precisam
colar o meu coração ou coisa parecida. — Reflito um pouco, deixando de

lado minha experiência traumática. — Seria como admitir que estou em


busca de um substituto, e não é bem esse o caso. Espero que sejam únicos,
cada um à sua maneira, e se eu me apaixonar por algum deles, vai ser por
mérito próprio e não por causa de Jud… do meu ex-noivo.

Miguel sorri e fecha os olhos em duas fendas misteriosas,


tamborilando-os no estofado do sofá como se escondesse um segredo.
Apostaria minhas fichas que ele sabe de algo que não vai me deixar nem um
pouco contente, mas não pretende me contar pois faz parte do espetáculo.
— Isso é muito bom de ouvir, Maria Flor. Quer dizer que você mesma
já deu um jeito aí dentro — aponta para o meu peito — ou o tempo que curou
as suas feridas?
— Ah, não. O tempo não cura nada, o que cura é a força do ódio. —

Rio nervosamente. Lá se vai o meu juízo.


A equipe gargalha, e eu me faço de doida, fingindo que estava
brincando.
— Como nós sabemos — Miguel continua, cheio de charme,
dividindo sua atenção entre mim e as câmeras de acordo com as instruções do
diretor — os pretendentes são meticulosamente selecionados com base nas
suas principais características e preferências, afinal, queremos homens
compatíveis com a noiva e que sejam capazes de conquistar o seu doce amor.
Vamos ajudá-los um pouquinho agora. Diga, Maria Flor, o que um homem

precisa ter para conquistar você?


— O que eles precisam ter eu não sei, mas tenho certeza do que não
podem ter de jeito nenhum.
Miguel se inclina para frente, interessado.

— E isso seria…?
— Uma secretária, é claro.
Rimos juntos. Ele, achando graça, e eu, de desespero mesmo. Quando
penso em coisas ideais que um homem precisa para chamar a minha atenção,
a lista envolve todas as principais características daquele ser que estou
tentando arrancar da minha cabeça. E, como o objetivo é seguir em frente,
melhor não cutucar o vespeiro com a vara curta, afinal de contas, a carne é
fraca e a tentação está aí pra gente cair nela.

— Medo que um raio caia duas vezes no mesmo lugar? — Olho para
Miguel, piscando uma vez demoradamente, até entender que ainda está se
referindo ao meu comentário sobre a secretária.
— Bom, quem sou eu para desafiar as leis da física? Melhor não
arriscar.
— Justo. — Miguel aquiesce, satisfeito com a minha resposta. Com
um jogo de cintura notável e pra lá de galante (típico de artistas de televisão
lindos de morrer), ele acrescenta: — Até porquê, se quisermos desafiar
alguma lei da física neste programa, que seja a lei da atração, não é mesmo?

Eu quase falo que prefiro testar aquela sobre dois corpos ocuparem —
ou não — o mesmo espaço ao mesmo tempo, mas o diretor coloca um fim à
gravação com grito, salvando-me da vergonha nossa de cada dia.
Assim como no dia anterior, todo mundo bate palmas e agradece pelo

trabalho duro antes de se dispersarem.


— Está mesmo preparada para conhecer os seus pretendentes? —
Olho para o lado e vejo Miguel com uma expressão mais relaxada e um
sorriso menos pronunciado.
— Acho que estou evitando pensar muito nisso, para ser sincera.
Sabe, para não surtar antes da hora e tal. Mas o que eu falei antes é verdade.
Ele concorda, deixando claro que entendeu a que momento me refiro
(sobre eu querer conhecer cada um deles como são de verdade, e não em

comparação ao meu relacionamento anterior).


— Nessa etapa, geralmente as mulheres ficam inseguras, com medo
também. Já aconteceu de uma desistir e termos que encontrar uma substituta
às pressas para cumprir o prazo.
— Sério?
— Seríssimo, foi um transtorno para os produtores. Foi na segunda ou
terceira temporada, se não me engano. Aquela que lançou em junho, ao invés
de maio, sabe?
Balanço a cabeça como se lembrasse. Não vou falar para ele que

nunca assisti uma temporada completa e que meu conhecimento sobre o


programa se resume aos surtos de Alice.
— Garanto que ainda não senti vontade de fugir, então vocês podem
ficar tranquilos.

— Você é bem durona.


— Durona? — Cruzo os braços. — Você não deve ter lido o meu
contrato de rescisão, né? Eu teria que vender a minha alma para pagar a
multa.
Miguel solta uma risada sem graça e faz um sinal para sairmos do
cenário rumo aos camarins. Caminhamos lado a lado por alguns minutos, até
que ele resolve quebrar o silêncio.
— Esse cara… — Ele pigarreia. — Seu noivo.

— Ex-noivo.
— Isso, desculpe, seu ex-noivo. — Miguel parece meio… Nervoso?
Ansioso? Não sei. Mas acho estranho. — Ele sabe que está aqui?
— Não. — Olho para ele de esguelha, sem parar de andar. Meu
camarim está próximo e a assistente já me aguarda na porta. — Por que a
pergunta?
— Nada demais — responde depressa, sua voz soando meio fina. —
Boa sorte amanhã com os noivos.
— Eu vou precisar? — digo, tentando fazer graça, mas Miguel Castro

me lança outro olhar enigmático antes de seguir seu caminho, apressando os


passos.
Poucos metros depois, ele murmura de costas:
— Não tenha dúvidas. — Mas acho que não era para eu escutar essa

parte.
“Todo mundo conhece a suprema lei de Murphy: se alguma coisa pode dar
errado, ela certamente dará. E mais, dará errado da pior maneira, no pior
momento e de modo que cause o maior dano possível. Sendo assim, o que
vale mais a pena: esperar pelo melhor resultado e acabar se frustrando, ou
esperar pelo pior e, bem... receber o pior? Porque o pior, meus amigos, ele
certamente virá!”

JUDAS

— Obrigado mais uma vez pela ajuda, Beto.

— Boa sorte, filho.


Desligo o telefone após me despedir e solto um longo suspiro no meio
do quarto, sentindo como se todo o peso do mundo estivesse sobre os meus
ombros — mas deve ser só o peso da minha canalhice fazendo o trabalho de
não me deixar esquecer da minha própria miséria. Agora não tem mais volta.
Eu ferrei com tudo.
Tipo assim, ferrei com a porra toda de verdade.
E pior: a culpa é toda e exclusivamente minha. Não posso nem me dar
ao luxo de culpar outra pessoa para me sentir um pouco melhor. O único

idiota sou eu e mereço ser punido pelas escolhas que fiz e que causaram tanto
sofrimento à minha mulher. Mas a merda do arrependimento não diminui a
falta que Maria Flor me faz ou o quanto sua ausência está afetando a minha
mente e me deixando louco.

Louco ao ponto de achar que a gente ainda pode dar certo, que eu
consigo amolecer aquela pedra de gelo que ela carrega no lugar do coração. A
mulher da minha vida possui muitas virtudes, mas ser complacente não é uma
delas. Eu diria, inclusive, que seu principal charme é o temperamento do cão
que deixa qualquer pessoa choramingando com o rabo entre as pernas.
Aquela peste sempre me teve na palma das mãos e agora eu
simplesmente não tenho mais propósito algum além de correr atrás do
prejuízo. Eu correria a São Silvestre inteira se ela estivesse me esperando no

final, mas conhecendo Maria Flor como eu conheço, seria mais fácil ela me
enforcar com a faixa da linha de chegada do que me parabenizar pela vitória.
Eu soube, naquele milissegundo em que nossos olhares se cruzaram
quando tudo aconteceu, que a tinha perdido. Escutei seu coração se
despedaçando junto com o meu, o amor sendo consumido pelo pior tipo de
mágoa que existe: a traição. E soube também que seria impossível obter o seu
perdão com palavras vazias e explicações sem sentido.
Inferno! Eu jamais me perdoaria se estivesse em seu lugar, nunca
acreditaria em qualquer desculpa esfarrapada que fosse. Mas, por uma grande

ironia do destino, minha única chance de não perder a minha rosa cheia de
espinhos (para sempre), é tentando convencê-la das maiores desculpas
esfarrapadas contadas por cafajestes de todos os tempos: que aquela situação
"não era nada do que ela estava pensando" e que "eu posso explicar tudo".

Realmente, boa sorte para mim. Eu vou precisar.


“Um é pouco, dois é bom e três é demais… Mas cinco, senhoras e senhores,
é a perfeição! Se você não acredita em mim, pergunte para a nossa noiva,
tenho certeza de que ela tem uma opinião formada sobre esse número e,
especificamente, sobre o homem que ele representa."

MARIA FLOR

Viro-me para o espelho e sorrio. Não é um sorriso de admiração,


embora o vestido branco e virginal que a produção me mandou usar tenha
caído, ironicamente, muito bem em mim, nem um sorriso de alegria ou de

satisfação. É aquele sorriso meio torto, meio estranho, sem muitos dentes
aparecendo e que não faz jus à maquiagem delicada em meu rosto.
É um sorriso de desespero! Puro e sólido.
Sério, em que mundo da imaginação da Xuxa eu estava vivendo
quando achei que seria uma boa ideia participar desse programa? O dinheiro
é ótimo, a chance de viajar para outro país também, e a vergonha nacional
nem é algo tão ruim se levarmos em conta que as minhas redes sociais vão
lotar de seguidores (algo que pode ser muito benéfico para mostrar o meu

trabalho ao mundo e me destacar no ramo da fotografia). Mas tudo isso não


anula o fato de que eu precisarei me envolver com cinco homens.
Não um, nem dois e nem três, mas cinco!
Ao mesmo tempo.

— Você é uma idiota — digo para a mulher refletida no espelho. —


Uma idiota maravilhosa, linda, gostosa e, na maioria das vezes, inteligente.
Como foi acabar assim?
Suspiro, sentindo cansaço por antecipação. Ignorar o fato de que esse
momento chegaria foi uma burrice. Eu tinha que ter me preparado para
conhecê-los, feito uma meditação, consultado os astros, pedido conselho para
Deus, qualquer coisa, sobretudo porque um deles vai se tornar o meu marido.
Tipo, literalmente o cara com que eu vou passar o resto da vida — uma vida

bem curta se meu coração continuar batendo desse jeito.


Calço os sapatos, confiro o cabelo pela milésima vez, testo outro
sorriso — e falho — e, enfim, suspiro, sentando-me na poltrona do camarim
enquanto espero alguém me buscar.
Penso em ligar para a minha irmã, ou até para os meus pais, e
conversar um pouco, distrair a cabeça e tentar me acalmar, mas a vontade
passa tão rápido quanto veio. No dia que alguém da minha família conseguir
acalmar outro ser humano, com certeza as trombetas do apocalipse vão tocar
no céu.

Em situações assim, de completa crise existencial, só uma pessoa


saberia as palavras certas para me acalmar, mas eu não posso ligar para Judas
e dizer: "ei, sumido, vou me casar com um desconhecido já que o nosso
noivado acabou depois de você transar com a bonitona da sua secretária, mas

estou com medo de vomitar todo o meu café da manhã na cabeça do


apresentador famoso e gostaria de saber se você pode me dar algum conselho
sobre como resolver a situação".
Claro que não posso fazer uma sandice dessas! Seria o cúmulo, mas
um diabinho no meu ombro bem que gostaria de saber a resposta que ele me
daria.
Provavelmente alguma merda clichê sobre eu ser incrível e estar
acima de qualquer julgamento alheio, porque ele pode ser um cretino traidor,

mas é um cretino traidor que sabe muito bem como bajular uma mulher e
colocá-la no topo do mundo com algumas frases feitas e um sorriso matador
de neurônios (e de calcinhas).
E aqui estou eu pensando no embuste… de novo!
Parabéns, Maria Flor, o amor próprio mandou lembranças.
Fico de pé e começo a andar de um lado para o outro, destruindo o
trabalho da manicure que fez um milagre ao pintar os cotoquinhos de unhas
roídas das minhas mãos. Fazer o quê? É roer as unhas ou fugir correndo para
as colinas, já que o sofrimento é o meu pastor e a ansiedade não me faltará.

— Você consegue — digo para mim mesma, em voz alta, que é pra
ver se eu acredito. — Você vai lá, vai conhecer os seus pretendentes, analisar
cada um deles e fazer comentários inteligentes para a câmera. E, se tiver um
pouquinho de sorte, talvez até se apaixone à primeira vista! Olha só, que

maravilha, não precisa…


A porta se abre e eu engasgo, tossindo, morta de vergonha.
— Err… — É uma assistente do programa, baixinha e de óculos. Se
não me engano, o nome dela é Samanta ou Salete, ou Sa-alguma-coisa. Ela
inclina metade do corpo para dentro do meu camarim, espiando os cantos,
como se esperasse encontrar mais alguém junto comigo. — Você está pronta?
Dou um sorriso amarelo, anuindo com a cabeça, e a sigo porta afora.
— Eu não sou louca — sussurro para ela, tentando melhorar o clima

constrangedor. — Eu só estava… — Sendo louca. — Treinando a voz.


— Claro. — Ela também sorri, sem graça, mantendo uma distância
segura de mim enquanto caminhamos pelos corredores do estúdio
movimentado.
Apenas fecho a minha boca para não falar mais nenhuma besteira e
não a julgo por se manter longe, eu bem que gostaria de fazer o mesmo.
Agora, mais do que nunca!
***

Repasso na minha cabeça as instruções do diretor: cada participante


entrará sozinho no palco enquanto eu os observo atrás de um espelho falso,
ou seja, eles não me verão em momento algum; depois, um por um, se

apresentarão com um resumo breve de suas vidas, aspirações, sonhos, e o que


mais acharem pertinente contar; por último, serão vendados e levados até
mim, para que me vejam com as mãos, ou no português claro: para me
tocarem.
Já dizia aquele meme famoso: credo, que delícia… digo, que absurdo!
— Está se sentindo bem? — Miguel Castro pergunta. — Já vamos
começar.
Tinha até me esquecido de sua presença e, para esquecer um

homenzarrão de um metro e oitenta, vestido com blazer azul-marinho digno


da realeza, e com um físico que faz a gente sonhar acordada (sonhos para
maiores), já dá para saber que estou qualquer coisa, menos bem.
— Muito bem — respondo, mas a minha cara, que eu consigo ver em
uns quatro televisores diferentes, diz outra coisa.
Bem pronta para um ataque cardíaco.
— Vai dar tudo certo, parece pior do que é de verdade. Se passar mal,
é só acenar para um assistente, temos baldes à postos. — Ele tenta me
tranquilizar, mas logo se vê que não é bom nisso.

Felizmente, o programa não é ao vivo, então nós vamos direto ao


ponto após Miguel fazer uma breve e bem-humorada introdução. Assisto a
tudo meio amortecida, como se eu fosse espectadora e não protagonista,
sentada em minha confortável poltrona de coração.

Então, o grande momento chega após Miguel gritar um sonoro


“candidato número um” seguido de um floreio com as mãos, apontando para
o arco florido montado na entrada do cenário, semelhante aqueles portais de
casamento por onde os noivos passam a caminho do altar.
Prendo a respiração.
Um homem entra.
Agora, não tem mais volta.
E eu preciso de um balde.

***

Tá, ele é bonito, eu admito. Muito mais do que eu esperava. E, se os


outros quatro seguirem o mesmo padrão, talvez a gente precise se mudar para
um país onde a poligamia não seja considerada crime. Nada que um visto
permanente para o Gabão e uma pomada de assaduras não resolva.
Depois de sentar em uma espécie de balanço com muitos balões,
flores e véus amarrados nas cordas, ele encara o chão, esperando pelo sinal

do diretor para começar seu discurso. Claramente, não sabe que estou atrás
do espelho a poucos metros dele, já que não lançou nenhum olhar na minha
direção. Isso me deixa um pouco mais tranquila, como se eu tivesse uma
espécie de vantagem em relação a eles.

Deve ser estressante ser o primeiro e, analisando bem, dá para ver que
está nervoso: ele balança a perna direita incessantemente e parece não
encontrar lugar para as mãos, hora as pousando sobre o colo, hora nos
cabelos pretos e muito lisos. Ele tem um rosto anguloso, com traços asiáticos
mais do que charmosos e um olhar sério que faria qualquer cérebro feminino
(e alguns masculinos também) derreter. Sua camisa formal, com os primeiros
botões abertos e o princípio de um peitoral definido à vista, é um charme à
parte e muito bem-vindo para o meu entretenimento.

Muitas vezes questionei a integridade mental das mulheres que


participavam do programa, e agora já tenho a minha resposta: se eu estou
aqui, significa que minhas antecessoras eram tão malucas ou desesperadas
quanto. Mas é a primeira vez que me pergunto o que se passa na mente (e na
vida) de homens tão lindos e bem sucedidos, para que decidam se tornar o
noivo ideal de uma mulher que nunca viram antes por livre e espontânea
vontade.
Talvez sejam mesmo atores.
Uma campainha soa no estúdio, o diretor grita uma ordem que não

entendo e finalmente o homem se empertiga, erguendo o rosto.


— Meu nome é Leonardo Yoon — diz, sorrindo timidamente. Ele fala
muito bem o português, sua voz é intensa, mas o final de cada palavra tem
uma força que revela sua ascendência estrangeira. É um sotaque muito

atraente. — Tenho trinta anos e moro no Brasil há quinze. Minha mãe é


brasileira, mas meu pai nasceu na Coréia do Sul e os dois se conheceram
quando ela foi fazer um intercâmbio por lá. Eles se casaram apenas um mês
depois e estão juntos até hoje. Quando penso em um ideal de felicidade,
penso no amor dos meus pais. E esse tipo de amor, intenso, inesperado e
imediato, é o que eu espero encontrar.
— Uau! — Exclama Miguel, fazendo charme para a câmera. — Você
decorou tudo isso?

Leonardo solta uma risadinha descontraída. Miguel é bom mesmo em


deixar as pessoas à vontade.
— Preciso impressionar minha futura esposa, afinal, tenho quatro
concorrentes que não vão facilitar a minha vida.
Futura. Esposa.
Sinto um frio na espinha.
— Um homem otimista — Miguel comemora, incentivando o outro.
— E o que você faz da vida? Tem uma profissão?
— Entrei na faculdade de medicina aos dezoito anos, me formei aos

vinte e quatro e me especializei em cirurgia geral depois disso. Hoje em dia,


eu trabalho em um hospital da capital e faço alguns plantões nos finais de
semana em um pronto-socorro da cidade vizinha.
Quase pergunto em que momento ele vive, mas me lembro que não

posso entregar meu esconderijo ainda. Felizmente, Miguel segue a mesma


linha de raciocínio que eu e pergunta:
— E com uma rotina tão puxada, você acha que vai ter tempo para a
sua esposa?
Vejo a expressão de Leonardo mudar um pouco, mas não consigo
decifrar ao certo o que está sentindo. Ele parece triste, mas pode ser coisa da
minha cabeça.
— É realmente uma vida bem intensa. Meu último relacionamento

acabou justamente por causa das minhas ausências. — Ele faz uma careta
engraçada e murmura algo em coreano que não entendo. — Mas essa é a
magia do programa.
— Como assim? — Miguel questiona, ecoando novamente o que eu
gostaria de saber.
Leonardo dá de ombros e responde:
— Geralmente, quando nos apaixonamos por alguém do cotidiano, as
informações sobre as nossas vidas pessoais vêm com o tempo e nem sempre
são o que a gente esperava, mas, como o amor já existe, a gente se esforça

para fazer dar certo e, mesmo assim, muitas vezes não é o bastante. Mas aqui,
nós estamos nos expondo, colocando os detalhes na mesa antes mesmo dos
nossos corações. Ser escolhido significaria ter alguém ao meu lado que me
quer independente da minha profissão, que não vai precisar se esforçar e se

desgastar por causa disso. Gosto da ideia de que não importa quantas horas e
dias estaremos longe um do outro, e sim o que faremos de especial quando
estivermos juntos.
Caramba, ele é bom.
É um jeito bonito e romântico de dizer que ele quase nunca vai ter
tempo para mim? Sim. Que seu trabalho é esse e eu que lide com isso?
Também. Mas entendo o seu lado, e sei o quanto é importante dividir a vida
com alguém que compreende e apoia nossos sonhos, sobretudo um tão lindo

como salvar vidas.


— Não sei a nossa noiva, mas acho que eu já me apaixonei, senhoras
e senhores! — Miguel graceja, arrancando uma risada gostosa de Leonardo.
— E o que você espera de uma noiva?
— Quem sou eu para esperar qualquer coisa? Já terei muita sorte se
ela me aceitar depois dessa confissão.
Ele é muito fofo e é bom que tenha sido o primeiro, pois seu jeito
delicado de alguma forma acalmou todos os meus nervos.
— Então, vamos lá! — Miguel diz. — Hora de conhecer a nossa

noiva da temporada, Maria Flor!


Calma? Quem está calma? Eu que não!
— Com todo prazer — ele diz, animado, saindo daquele balanço
espalhafatoso.

Uma assistente se aproxima com a venda e Leonardo inclina o copo


para frente a fim de facilitar o processo. Ela amarra o tecido ao redor da
cabeça dele e faz uma série de testes para garantir que não está enxergando
nada. Depois, Miguel o conduz na minha direção, falando suas bobagens de
apresentador, enquanto eu dou graças a Deus por ele ser médico.
Se eu cair morta aqui no chão, talvez Leonardo possa me trazer de
volta com uma massagem cardíaca e uma — melhor ainda — respiração
boca-a-boca. Não é uma má ideia.

Miguel arrasta o espelho para o lado e eu me lembro de sorrir, afinal,


estamos sendo filmados. Leonardo dá alguns passinhos adiante e para bem na
minha frente, quase esbarrando nas minhas pernas. Como o sofá em que me
acomodaram é alto (agora entendo o motivo) a gente não fica em níveis de
alturas muito desiguais, e consigo ver seu rosto sem precisar inclinar o
pescoço em um ângulo desajeitado.
— Oi. — Ele sorri, e… nossa! Apenas, uau! Quer dizer, socorro! —
Então, estava aqui o tempo todo? Isso é um pouco constrangedor.
Ele umedece a boca com a língua e respira fundo. Fomos instruídos a

não conversar muita coisa já que haverá episódios específicos para isso, no
máximo um cumprimento para quebrar o gelo inicial. Também sei que as
impressões de cada um sobre este primeiro contato serão gravadas
individualmente, sem a minha presença, o que só me deixa mais nervosa.

— Acho que você pode colocar em mim agora. — Isso soou tão
errado, Maria Flor. — As mãos! — E VAI COLOCAR O QUE, Ô
DESGRAÇA? — No caso, as suas mãos. Pode colocar as suas mãos em mim,
no meu rosto… especificamente.
É melhor eu calar a boca e os meus pensamentos também, porque é
cada besteira…
— Com licença — ele sussurra, sem parar de sorrir, erguendo a mão
direita com cautela.

Por não ter muita noção de onde estou, ele avança devagar e eu o
ajudo, inclinando ao seu encontro. São os dedos precisos e gentis de um
cirurgião, suaves como uma brisa da primavera, mas firmes como um raio.
Ouso dizer que nenhum dos outros quatro rapazes conseguirá me ver tão bem
quanto ele e sua experiência manual. A imagem que Leonardo provavelmente
está criando de mim em sua cabeça, enquanto acaricia o côncavo dos meus
olhos, desliza para a ponta do meu nariz e segue até a linha do maxilar, deve
ser quase um retrato perfeito.
— Aleumdaun — sussurra em seu coreano sensual, puxando uma

respiração profunda que faz seu peito inchar. Não sei se isso é bom ou ruim,
mas sua mão recua, encerrando o contato.

***

Oi, Deus, sou eu de novo. Mesmo dia, mesma situação, outro cara.
Outro cara maravilhoso.
Maurício Reis é o seu nome, e já deu para perceber que é um
pouquinho mais esperto do que Leonardo: desde que chegou, já olhou de
esguelha para o espelho pelo menos três vezes. Sabe que estou aqui, ouvindo
cada patifaria que sai de seus lábios grossos moldados em um constante
sorriso orgulhoso. Ele é quatro anos mais novo do que eu e, sendo bem

honesta, nunca me envolvi com alguém tão jovem, mas tudo tem uma
primeira vez e eu teria várias com ele numa boa (a mais importante já se foi,
mas existem coisas melhores e menos dolorosas na fila).
Ele parece uma pessoa fácil de conversar, daquele tipo que fala
demais sobre tudo e todos sem nenhuma ressalva, e que preenche cada
segundo com sua voz nos livrando da obrigação de fazer perguntas ou
procurar um assunto em comum. É estranho porque isso me faz pensar que
ele se daria muito bem com a minha família. Consigo visualizá-lo à mesa em
um almoço de domingo, fazendo piadas e expondo nossas intimidades só

para me irritar.
Ele é simples de entender, um livro aberto, e ter tirado tantas
conclusões a seu respeito em tão pouco tempo só comprova isso.
— É claro que sim — responde, após Miguel perguntar a ele se

encara o programa como uma competição. — Eu sou competitivo, participo


de campeonatos de natação desde os cinco anos, então mesmo que os outros
caras não pensem assim, eu estou focado em levar o meu prêmio para casa.
— Faz uma pausa breve e, sem vergonha nenhuma na cara, acrescenta: — E
para a cama também.
Eu engasgo, tampando a boca com as mãos para não ser ouvida. Ele
não vale nada, é um fato. Me sinto objetificada e com tesão ao mesmo tempo.
É difícil essa vida de ser mulher, mas ter uma boceta com suas necessidades.

— Já deu para ver que é um homem que sabe o que quer e não se
abstém de dizer o que pensa. Não tem medo de assustar a noiva?
— Sexo faz parte de qualquer casamento. — Maurício acena com a
mão, desdenhando da pergunta. Depois, cruza seus braços, evidenciando os
bíceps de nadador profissional. — Ela, assim como todo mundo que está nos
assistindo, sabe que dentre os prêmios existe uma viagem de lua de mel à
Paris. Até onde eu sei, o que um casal faz na lua de mel é de conhecimento
universal.
Errado ele não está.

— Tirem as crianças da sala porque Maurício Reis não está para


brincadeira! É hora de nosso pretendente ousado conhecer sua esposa em
potencial. Está pronto?
Já sei qual será a resposta antes mesmo de ele dizer. É um clichê.

— Eu nasci pronto — declara, bem arrogante, com uma cara travessa


e egocêntrica típica de um jovem que sabe o efeito que causa nas mulheres
fracas de coração.
Não sei se quero bater nele ou colocar à prova toda a eficiência que
diz ter.
Depois de fazer todo o ritual de colocar a venda e se livrar do espelho,
finalmente tenho o privilégio de analisar Maurício Reis de perto. Ele para
com bastante confiança na minha frente e, mesmo vendado, sinto como se

tivesse uma consciência muito sólida de mim, pois inclina o rosto de maneira
precisa (e muito suspeita, diga-se de passagem) no ângulo do meu.
Ele não é tão alto, mas tem os ombros largos e rígidos de um nadador,
além da pele negra bronzeada de quem ama exibir o próprio corpo na piscina.
Usa uma roupa bem casual, composta por calça jeans apertada nas coxas — e
que coxas — e uma camiseta simples com a frase "I Want You" estampada
na frente. A mensagem subliminar me faz sorrir.
Diferente de Leonardo, Maurício não pede licença. Ele segura meu
queixo, quase como se soubesse da minha distração com a frase e quisesse se

aproveitar disso, e traça o desenho da minha boca de um lado até o outro,


mostrando seu lado predador.
Dou um segundinho para a Maria Flor depravada que habita em mim
aproveitar seu momento de glória. Maurício não é bruto em seu carinho

invasivo, mas a força com que segura meu queixo me faz sentir coisas em um
campo abandonado ao sul que eu preferiria não sentir na frente das câmeras.
Por seu sorrisinho cínico, tenho certeza de que consegue me ver muito bem
através de alguma fresta em sua venda, mas decido não entregá-lo para a
produção.
Ele vai aprender em breve que não sou um espólio de guerra, e que os
outros quatro participantes não são seus principais concorrentes. A única
pessoa que precisa vencer aqui sou eu e não está nos meus planos facilitar a

vida de ninguém.
Mordo seu polegar com força e ele puxa a mão de volta, resmungando
pela dor.
— Porra — reclama, mas consegue manter o sorriso para a alegria dos
produtores.
— E então, é o seu número? — Eu o alfineto para deixar bem claro
que não sou idiota e sei o que estava insinuando ao medir minha boca
daquela forma.
Não nasci ontem, amigão. Posso ser trouxa às vezes, mas não sou

santa.
Maurício, surpreendendo-me, já que eu esperava irritá-lo um
pouquinho, leva o polegar à própria boca e, no tom mais radiante e satisfeito
possível, diz:

— Totalmente.

***

Queria entender os critérios de seleção do programa, pois Bartolomeu


Leite, o candidato número três, de trinta e um anos e programador de
softwares, não tem absolutamente nada de compatível comigo — exceto,
talvez, pelo físico, mas não há mérito algum nisso, já que ele seria compatível

com qualquer mulher que tenha o mínimo de bom gosto.


Ele repetiu umas quatro vezes que seu maior sonho é ter uma família
grande com muitos filhos, enquanto eu sou aquela pessoa que reza todos os
meses para a nossa senhora da menstruação me trazer a benção na data certa,
porque, se atrasar um dia sequer, já entro em pânico, mesmo tomando todos
os cuidados contraceptivos religiosamente.
Miguel não se estende muito na conversa com ele, por se tratar de um
homem mais sério, com um ar maduro que é o extremo oposto de Maurício.
Acho que gosto dele, embora não tenha conseguido formar uma opinião

concreta só com suas respostas vagas e não quero escolher um marido


somente pela aparência, por mais que seus olhos verdes e o cabelo louro-
escuro formem um conjunto bem agradável de admirar.
Quando chega o momento de me tocar, ele o faz em completo

silêncio, mas é uma inspeção cuidadosa, demorada; passa os dedos com


lentidão pela linha da minha mandíbula, percorre o desenho dos meus ossos
até a protuberância das bochechas e circunda cada um dos meus olhos.
Depois, desliza o indicador ao longo do meu nariz e, chegando na ponta,
encerra nosso contato sem dizer uma palavra.
Isso é bom, concluo.
Não preciso que me aprovem, mesmo sendo o intuito do programa
com essa dinâmica, apenas que me conheçam. E Bartolomeu parece ter

entendido isso melhor do que todos nós.

***

Finalmente, Miguel anuncia a entrada do meu quarto pretendente.


Faltam apenas dois, Maria Flor, aguente firme, guerreira!
Ele vem caminhando com uma expressão que varia entre animação e
incredulidade, e me faz pensar em meus próprios sentimentos conflituosos
sobre estar aqui, escancarando minha vida amorosa ao país inteiro.

Fica bem evidente que é o mais alto dos homens até agora e, por
alguma razão, tenho a sensação de já ter visto seu rosto antes, mas isso é
impossível… eu acho. Ele tem um corpo atlético, típico de pessoas que
praticam exercícios há anos, provavelmente conhece vários esportes

diferentes e, considerando o diâmetro de seus braços, eu diria que deve ser


muito bom na maioria deles (se não em todos).
Mesmo usando um blazer preto por cima de uma camiseta branca, é
impossível não reparar na largura de suas costas e a distância entre um ombro
e outro, e imaginar como deve ser sua aparência sem tanto tecido
atrapalhando a alegria da mulher solteira de imaginação fértil. Ele faz um tipo
meio casual esportivo, ou um tradicional elegante, não sei a diferença entre os
dois. Mas é chique! Muito chique, e sexy também.

A essa altura da gravação, pensei que nada mais poderia me


surpreender, mas fui tombada de salto quinze porque não dá para fingir
costume sobre a beleza do número quatro.
As luzes do estúdio refletem em sua bonita pele negra de maneira
hipnótica, e meus olhos ficam presos nas sombras e ângulos de seu rosto
quadrado. Um cordão prateado e fino desaparece dentro da gola de sua
camisa, como um convite. Ele se parece com um guerreiro africano que
deixaria os soldados de Wakanda com inveja, desde o porte físico de muitos
músculos, até a postura confiante e despreocupada. Sua barba escura segue a

linha do maxilar, chamando atenção para o queixo robusto e o sorriso de


lábios fartos.
Se eu tivesse que sintetizá-lo em uma palavra superficial, seria
gostoso.

— Que merda — ele diz, puxando nosso apresentador para um


abraço. — Não acredito que to conhecendo o Miguel Castro. Tipo, eu sou
seu fã, cara. Isso é surreal demais.
Miguel solta um gemidinho doloroso ao ser apertado pelo mister
músculo.
— Obrigado. — Ele tosse, endireitando-se. — Nossa, se as coisas
saírem do controle, seus concorrentes estarão em maus lençóis, hein? Nunca
fiquei tão feliz por ser um mero apresentador — brinca, com uma mão

pousada sobre as costelas, referindo-se à força do sujeito.


O comentário de Miguel chama a minha atenção e faz minha mente
dar um giro de cento e oitenta graus. Não tem chance de esses cinco caírem
na porrada por minha causa, né? Tipo, deve existir uma cláusula no contrato
deles que impeça esse comportamento, tenho certeza… quase certeza. Tudo
bem, eu tenho esperança. Muita! Será que já aconteceu nas edições
anteriores? Droga, eu devia ter pesquisado um pouco mais sobre as polêmicas
passadas. Terei que perguntar para Alice mais tarde.
Foco, Maria Flor!

Miguel gargalha alto de algo que o outro disse enquanto eu estava


viajando na maionese. Ele já está bem acomodado, e muito destoante, no
balanço, segurando uma das cordas e encarando a câmera.
— Primeiramente — começa após receber um sinal positivo do

diretor — meu nome é João Guilherme Monteiro, tenho trinta anos, sou
empresário e fundador da Nutra, uma franquia especializada em produtos
naturais e alimentação saudável. Não quero soar arrogante nem nada assim,
mas acho que algumas pessoas já devem ter ouvido falar de mim por aí, ou
pelo menos das minhas lojas.
Ai. Meu. Deus.
Eu o conheço!
Quer dizer, não o conheço pessoalmente, mas sei quem ele é

principalmente por causa do meu ex-noivo. Judas é um entusiasta da Nutra e,


se não me engano, até fecharam algumas parcerias juntos já que há sempre
uma sessão nas academias de Judas dedicada apenas aos produtos de João
Guilherme Monteiro.
— Desculpe a indiscrição, mas eu tenho que perguntar: por que
alguém como você decidiu se inscrever para O Noivo Ideal? — Miguel, mais
uma vez, faz a pergunta que eu faria se estivesse em seu lugar. — Acho que
não digo apenas por mim, mas pelo pessoal de casa também. Deve ter uma
fila enorme de mulheres querendo uma chance com você, e todos nós

sabemos que dinheiro não é um problema, afinal de contas, a Nutra é mesmo


a maior franquia de produtos naturais do Brasil, a favorita dos atletas e das
influenciadoras digitais. Então, por quê?
João Guilherme abaixa os olhos, parecendo meio… tímido?

— Espero que isso não destrua todas as minhas chances de ganhar o


programa, mas preciso ser sincero com a… — Ele estrala os dedos em busca
do meu nome.
— Maria Flor — Miguel o ajuda.
— Isso, com a Maria Flor. Acontece que eu perdi uma aposta. —
Coloca as duas mãos na frente da boca, fechadas no formato de uma concha,
e grita para o alto: — Desculpe, querida. Mas essa é a verdade! Por favor,
não desista de mim.

Rio baixinho para não ser ouvida.


— Queremos saber essa história direito — Miguel, o anjo, pede.
— Você quer me foder? — João Guilherme pergunta, mas seu tom é
de brincadeira. — Não é uma história muito digna, sabe? Eu e uns amigos
estávamos apostando quem aguentava mais doses de tequila e fui o primeiro
a vomitar. Não foi o meu melhor momento. O perdedor tinha que se inscrever
no programa e aqui estou eu.
— Se serve de consolo, eu diria que você na verdade saiu ganhando
nessa brincadeira. Resta saber se vai conseguir ganhar o jogo de conquistar o

coração da nossa noiva. Está disposto a tentar?


— Eu pensei que não até o último segundo — responde com
sinceridade. — Depois, eu repensei: por que não? Talvez ela seja o amor da
minha vida, não custa nada tentar. Sempre achei essas atrações forçadas, sou

um cara meio antiquado e se me dissessem, há dois meses, que eu estaria


sentado em um balanço cheio de florezinhas igual a uma fada do campo, meu
amigo, eu daria uma boa risada.
É, João Guilherme, eu te entendo. O mundo não gira, ele capota.
— Isso quer dizer que agora você acha que tem chances de ser o
noivo ideal da Maria Flor?
— Cara — ele coça a nuca, pensa um pouco, com os lábios crispados,
antes de continuar — eu tô bem empolgado para saber como ela é, do que

gosta, e essas coisas. Disseram que somos escolhidos levando em


consideração nossos gostos, sonhos e tudo mais, então espero que a gente se
dê bem. Acho que estou otimista, sabe?
— Otimismo é tudo! — Miguel exclama, daquele jeito exagerado e
espalhafatoso, como se o mundo fosse bom. — Por isso, vamos aumentar a
sua carga de otimismo conhecendo a noiva.
Lá vem.
João Guilherme salta do balanço e ajuda a assistente com a venda.
Eles se aproximam e Miguel tira o espelho do caminho, deixando o meu

quarto pretendente a centímetros de mim. Há duas covinhas em suas


bochechas, que ficam mais profundas graças ao seu sorriso feliz. Ele está se
divertindo bastante, é visível, e curioso. Eu, em seu lugar, estaria surtando de
curiosidade.

Ainda bem que os vendados são eles e não o contrário.


— O que eu faço agora? — pergunta, virando a cabeça para os lados.
— Espero ela chegar e coloco a mão na cara dela?
— Essa é a ideia — respondo, achando graça do quão perdido ele
parece.
Ao ouvir minha voz, João Guilherme se sobressalta com a mão sobre
o peito.
— Puta merda, que susto! O coração vai bem. Já posso cancelar o

meu check-up do ano. Você estava se escondendo ou o quê?


— Atrás do espelho — confesso. — Em minha defesa, a ideia foi da
produção. Eles são meio sádicos e perversos.
— Pensei que fosse um programa de amor.
— Fomos enganados — sussurro. — É tortura medieval pura. Acho
que eles têm um calabouço em algum lugar, com direito a correntes, chicotes
e celas. Ratos e tochas também, que é para chocar o público.
— Tirando os ratos, não soa tão ruim — murmura de volta,
travessamente. — Cordas, correntes e chicotes. Todo mundo já ouviu essa

história antes.
Eu não queria, mas minha mente, que já não é das mais puras,
materializa a imagem na minha cabeça: nós dois em uma cela, um chicote na
minha mão, ele de joelhos… sim, porque eu me recuso a ser a sonsa que

apanha sozinha. Eu hein! O negócio é revezar. Direitos iguais estão na


constituição.
Não que eu seja adepta desse tipo de coisa, mas não posso negar que
nos livros parece ótimo. De qualquer forma, por precaução, fico quieta. Se eu
abrir a boca agora, vai ser para perguntar onde a gente assina o contrato.
— Okay, eu vou… — João Guilherme fica sem graça diante do meu
silêncio. Deve achar que me constrangeu, tadinho. — Tocar em você agora.
— Vai fundo.

Ele meio bufa, meio sorri, meio rosna.


— Estou tentando não fazer outra piada indecente, você não está
facilitando.
— Acredite, eu já fiz todas elas na minha mente. As boas, e as ruins,
em ordem alfabética.
Ele ri, balançando a cabeça negativamente, com as mãos apoiadas na
cintura.
— Você é bem ousada, Florzinha.
— Não, eu falo é muita merda quando fico nervosa. E penso o dobro

do que eu falo. É um lance psicólogo.


— Então, você está nervosa agora?
Não faz pergunta difícil.
— A gente não devia estar falando tanto, sabia? Mais ação, menos

conversa. Está fugindo do roteiro.


Concordando, João Guilherme se dá por vencido, levanta a mão para
vasculhar meu rosto e…
— Aaaai!
Enfia o dedo com tudo no meu olho!
Acho que fiquei cega! Meu Deus, não estou enxergando.
— Desculpa! Onde foi que eu acertei?
— Meu olho!

Ele se desespera, tentando segurar meu rosto com as mãos


desordenadas, mas só piora a situação, porque, além da dor (minha alma vai
para o céu e volta) tenho que desviar o nariz da sua mira também.
— Porra, me desculpa, desculpa mesmo. Eu não vi. Quer dizer, é
claro que não, eu estou vendado e agora você não está vendo nada também.
— A gente se atrapalha com as mãos. Esfrego meu olho machucado e
lacrimejante em meio à sua tentativa desastrosa de me ajudar mesmo sem
enxergar um palmo na frente da cara. — Médico! A gente precisa de um…
— Tudo bem, não é pra tanto. — Afasto-me dele, piscando

freneticamente, enquanto fecho o outro olho para conferir o estrago na minha


visão. — Eu só preciso de um segundo, já vai passar.
Vejo meio embaçado com o olho atingido, mas não é o fim do mundo.
— Tá doendo muito?

— Não, imagina — respondo sarcasticamente, querendo rir dessa


situação que beira ao ridículo. — Você acabou de carimbar a sua digital na
minha córnea, é claro que tá doendo!
Miguel Castro se aproxima, preocupado, e coloca uma mão no meu
ombro.
— Maria Flor, acha que dá para continuarmos? Ainda temos um
noivo da fila.
— Eu posso tirar essa merda? — João Guilherme reclama, apontando

para a venda. — Quero ajudar.


— Não, sinto muito — Miguel responde, clínico. Depois, volta-se
para mim. — Se quiser encerrar por hoje, nós vamos entender.
— Que exagero, foi um acidente. Já sofri coisa pior na vida. —
Seguro as mãos de João Guilherme, sentindo pena dele parado no meio de
nós sem poder fazer nada. — Vem, vamos de novo. Só que, dessa vez, deixa
que eu te ajudo, meu outro olho agradece.
Miguel sinaliza para a equipe de gravação que está tudo bem. Assim
que ele volta para sua posição distante de espectador, o grito do diretor ecoa

no estúdio e voltamos às filmagens.


Guio as duas mãos de João Guilherme até áreas seguras do meu rosto.
Suas palmas me amparam de ambos os lados suavemente, e sua hesitação me
faz sorrir. Está com medo de me machucar de novo. Ele é meio bruto, o toque

não é macio como o de Leonardo, mas áspero, aquela pele crua com alguns
calos de quem levanta muito peso.
Com os polegares, traça minhas maçãs do rosto, resvala brevemente
sobre meus lábios e sobe para as têmporas, circundando toda a minha face
com atenção. Ele faz caretas, franze as sobrancelhas e crispa os lábios, acho
que tentando montar uma imagem na mente.
Um tempo depois — mais longo do que o diretor havia determinado e
mais rápido do que eu gostaria — ele se afasta.

— Essa venda é uma droga — pondera, e lá estão as duas covinhas


outra vez. — Acho que é isso. Vou ter que me contentar com a minha
imaginação até nosso próximo encontro.
O capetinha no meu ombro me cutuca com o garfo, e eu o provoco,
dizendo:
— Ansiosa por isso, mas cuidado com esse dedo da próxima vez.
João Guilherme não demora mais do que dois segundos para captar o
duplo sentido da minha fala.
— Tá fazendo de propósito, né? — reclama, sorrindo com os dentes

bem apertados.
Na maior inocência (e cara de pau), respondo:
— O que você acha?

***

Assim que João Guilherme saiu do estúdio, trouxeram um médico


para me examinar, mesmo eu dizendo que estava tudo ótimo com a minha
visão. Ele pingou uma gotinha de colírio no meu olho, acho que só para
acalmar o diretor, e voltamos aos nossos lugares.
A pausa, porém, cortou a minha adrenalina e eu voltei ao surto “o que
eu tô fazendo da minha vida” de sempre.

É o último! Os quatro primeiros foram ótimos, então, a probabilidade


estatística sugere que o quinto não pode fugir desse padrão. Tenho que
confiar que a matemática não vai me abandonar justo agora.
Miguel anuncia sua entrada e eu encaro aquele grande e chamativo
arco enfeitado, contando cada segundo mentalmente. Vejo sua silhueta
através dos véus. Ele para logo na entrada antes de atravessá-los, e eu me
pego inclinando para frente, cheia de expectativa, medo e o princípio de uma
gastrite nervosa.
É um cara bem alto, tanto quanto João Guilherme, e corpulento

também. Mas preciso analisar mais de perto para ter certeza. Ele dá um passo,
cruza a linha do arco e o vejo por inteiro.
Arfo, confusa.
O que Judas está fazendo aqui?
“Atenção! Dizem que o amor e o ódio podem ser confundidos com grande
facilidade. Os sintomas de ambos incluem: palpitações no peito, mãos
geladas, sensação de desmaio e falta de ar. O autodiagnóstico pode custar a
sua vida (romântica). Ao persistirem os sintomas, um programa
casamenteiro deverá ser consultado.”

MARIA FLOR

— Meu nome é Calebe Ventura — ele diz com uma voz rouca e
grave que entra pelos meus ouvidos e se esparrama por todo o meu corpo

como uma toxina, enquanto eu continuo presa em um espaço-tempo paralelo,


tentando encontrar algum sentido na cena que se desenrola na frente dos
meus olhos, mas não consigo.
Pensei que ele não tivesse mais o poder de me afetar, porém, minhas
mãos trêmulas e geladas dizem o contrário.
Calebe continua o mesmo de sempre, exatamente como me lembrava.
Não que tenha se passado tanto tempo assim desde a nossa separação.
Pessoas apaixonadas têm a mania boba de guardar na memória cada minuto

do dia, das semanas e meses, por serem especiais demais (doce ilusão), mas
aquelas tentando se desapaixonar são diferentes. A gente prefere fechar os
olhos a enxergar os ponteiros do relógio, torcendo para que isso os faça
passar mais depressa.

Bom, aqui vai um spoiler sobre a vida: o tempo não cura, ele no
máximo faz a gente esquecer a dor, esperando o momento certo para enfiar o
dedo na ferida.
De todas as possibilidades imagináveis, em uma coisa eu estava
(ironicamente) certa: o quinto pretendente é tão lindo quanto os anteriores.
Fazer o quê? É a triste realidade, posso ser corna, mas não sou hipócrita.
Calebe é um homem bonito e ninguém pode negar.
Seu corpo alto e tonificado foge daquele estereótipo bombado que a

gente associa aos frequentadores de academias esportivas. Ele tem todos os


músculos nos lugares certos, em proporções perfeitas e muito atraentes, e seu
estilo meio desleixado, de quem gosta da simplicidade e vive de bem com o
mundo, com uma camisa xadrez vermelha e bermuda jeans, tem um charme
perigoso. Todo mundo cai na lábia do carinha descolado e gostoso que
aplaude o pôr-do-sol e faz amizade com os cachorros da rua.
Eu que o diga!
Saio do meu transe momentâneo e encaro meu ex-noivo com mais
atenção, sem acreditar que ele está mesmo entre os cinco candidatos a se

casarem comigo. O que essa cria de satanás está fazendo aqui? Ele não tem
como saber que sou a noiva — eu espero — e nem se o papa aparecesse
agora para abençoar nossa união, eu aceitaria me casar com ele. Então…
QUAL O SENTIDO?

É castigo? Será que estou sendo punida por todas as vezes em que me
imaginei cometendo um crime contra a virilidade dele?
O choque me deixa paralisada, sem reação. Fantasiei muitas vezes
como seria nosso reencontro, mas nunca, nem nos meus pesadelos mais
loucos, pensei que seria em um programa de televisão. Não sei o que fazer,
ou sentir. Não sei se quero chorar, ou gritar, ou sair correndo de volta para
casa como uma criança em busca do colo da mãe. Ou se quero apenas jogar
um microfone na cabeça dele como a boa barraqueira que habita em mim.

— Sou proprietário e fundador de uma rede de academias esportivas


que conta com mais de cinquenta unidades em todo o Brasil — diz, todo
orgulhoso, para Miguel Castro, fazendo uso de seu sorriso torto e dissimulado
para cativar a atenção do apresentador e do público que nos assistirá em
breve. — Mas meu lance mesmo é praticar ao ar livre, fazer trilha, curtir uma
praia nos feriados, acampar no verão. Eu gosto de estar em contato com a
natureza, é a minha paixão.
Eu não disse? O golpe tá aí, cai quem quer.
— E o que exatamente trouxe você até o programa, Calebe?

Traição, respondo mentalmente por ele, e sem vergonhice.


— Eu quero me casar — diz, dando de ombros e piscando
inocentemente seus olhos muito verdes que eu gostaria de arrancar com as
unhas agora.

Mentiroso filho da mãe!


— Bom, isso é um pouco óbvio — Miguel pontua, instigando Calebe.
— Eu sou bastante óbvio. Estou aqui porque pretendo me casar com a
noiva da temporada e provar que sou o homem da vida dela, que sou o noivo
ideal. Isso é tudo.
— Não é um pouco extremo? Você, obviamente, não parece ser do
tipo que tem problemas para se relacionar com uma mulher, ou várias.
Ah, com certeza ele não tem.

Calebe se remexe no balanço, parecendo desconfortável pela primeira


vez.
— Por incrível que pareça, não sou esse tipo de cara — responde, se
fazendo de bom moço. — Me inscrevi no programa depois de passar por uma
situação pessoal no meu último relacionamento que mudou a minha vida.
Acho que eu quero uma chance de fazer diferente.
Eu bufo.
Miguel Castro também.
Posso estar enganada, mas não acho que faça parte do roteiro o

apresentador bufar. Será que está irritado com Calebe? Ele não foi tão
insistente assim com os outros participantes. Não que eu esteja reclamando,
longe de mim. Ver Calebe encurralado me causa uma incrível sensação de
prazer.

— Um problema amoroso? E você gostaria de compartilhar com a


gente? Não sei a noiva, mas eu estou louco para ouvir essa história.
Miguel nem faz ideia do quão louca eu estou. Faço uma nota mental
para agradecê-lo mais tarde pelo mimo de ver a expressão atônita de Calebe.
Quero saber como ele pretende escapar dessa agora.
— Foi um mal-entendido. — Calebe olha para o chão, evitando as
câmeras.
O estúdio inteiro se cala, esperando por uma explicação mais

detalhada, uma revelação dramática e complexa que possa agregar ao


programa, afinal, todo mundo gosta de um passado sombrio sendo exposto na
televisão. Mas Calebe crispa os lábios e não se deixa levar pela insistência de
Miguel.
Ele sempre foi um homem de opinião forte, que consegue manter a
mente no lugar mesmo em situações complexas. Uma pena não poder dizer o
mesmo das calças.
— Mal-entendido? — Percebo tardiamente que as palavras vieram de
mim, junto com um riso sarcástico.

Empurro o espelho por conta própria, ignorando o protesto do diretor


e os resmungos da equipe. Sinto as emoções dançarem descalças na
superfície incandescente da minha pele, sem se importarem com as
queimaduras que isso causa nelas, e me deixo levar pelo ritmo furioso da

dança.
Pelo meu ritmo furioso.
Calebe olha diretamente para mim, formando uma conexão entre
nossos olhares, uma ponte muito longa que me lembra o quão distante
estamos um do outro e o quanto já fomos próximos. Ele salta do balanço, mas
não se aproxima, fica ali, parado, com as sobrancelhas caídas, mãos nos
bolsos, um véu de seriedade encobrindo suas verdadeiras emoções.
Não parece surpreso ao me ver, como eu fiquei ao vê-lo. Ele já sabia,

percebo mentalmente. Não sei como e muito menos porquê, mas Calebe
Ventura sabia que eu estaria aqui hoje. Nosso reencontro não é uma
coincidência, e essa certeza me deixa ainda mais enfurecida, se é que isso é
possível.
— Girassol… — Ele tenta dizer, mas eu o corto, fingindo que o
apelido não me atinge em cheio como uma bala perdida no meio do peito.
— Não me chame de Girassol! — Aponto o dedo indicador para ele.
— Você não tem mais esse direito. Nem de Girassol, nem de Lírio, nem de
Rosa, nem de flor alguma! — vocifero entredentes, referindo-me aos apelidos

carinhosos que ele usava para mim quando estávamos juntos. — O que você
está fazendo aqui, Calebe?
Ele inspira profundamente, seu pomo de Adão sobe e desce,
entregando o nervosismo que tenta esconder com afinco.

— Posso te perguntar o mesmo — responde, evasivo, em um tom de


voz novo para mim, mais sério, mais… triste? Não sei definir ao certo, mas
vou chamar de tom de Judas.
Mantenho-me firme no propósito de não surtar, e nem ceder aos
encantos de Calebe. É um martírio lidar com a batalha que se forma entre
meu corpo, mente e coração, pois cada um deles reage de uma forma
diferente à presença desse homem.
— O que eu faço não é da sua conta — digo, erguendo o queixo,

enfrentando-o com as lágrimas bem contidas nos olhos.


— Maria Flor — diz, hesitante — precisamos conversar.
— Não, não precisamos. Aliás, você deveria me agradecer pelo
direito de permanecer calado, porque qualquer coisa que disser eu terei o
prazer de interpretar da maneira mais exagerada, distorcida e errônea
possível, para usar contra você da pior forma no pior momento da sua vida,
então poupe o nosso tempo, Calebe.
Calebe passa as mãos na cabeça e murmura um xingamento baixo que
não consigo escutar. Frustrado, avança alguns poucos passos na minha

direção, mas para no meio do caminho assim que ergo a mão, indicando que
não o quero por perto.
O problema dele é ser tão perfeito na maioria das coisas.
— Entendo que esteja com raiva e que não queira ver a minha cara

nem pintada de ouro…


— Se entendesse mesmo, não estaria na minha frente agora.
— Mas — continua, ignorando minha fala — eu não podia ficar
parado vendo você jogar a sua vida… a nossa vida, no lixo, se casando com
um cara qualquer que não ama você.
— Não existe mais nossa vida, Calebe! — esbravejo, indignada com a
cara de pau dele. Engulo a dor que as palavras me causam e resisto à vontade
de chorar. — Existe eu, Maria Flor, com a minha vida, fazendo o que eu bem

entendo com ela, obrigada. E, caso não se lembre, quem jogou a nossa vida
no lixo, foi você quando achou que seria uma boa ideia acompanhar a sua
querida secretária ao motel mais próximo, sabe? Aquele na rua vai com Deus,
no bairro para a puta que pariu?
Calebe rola os olhos para trás, começando a se irritar com meu
deboche.
Não posso fazer nada, é o meu mecanismo de defesa. Alguns gritam,
outros choram, há aqueles que sabem conversar com calma, e os que partem
para a violência. Já eu, debocho! Melhor dar uma de maluca do que correr o

risco de cair na lábia dele. E Calebe Ventura tem uma lábia tão boa que às
vezes até ele acredita nas merdas que fala (e eu também).
— Aquilo foi um mal-entendido — repete.
— Claro, eu imagino. Faz todo sentido mesmo. Como foi? Ela falou

que queria uma linguiça e você achou que estavam indo ao açougue?
— Maria Flor! — reclama, como se tivesse o direito. Olha ao redor e
dá um sorriso sem graça. — Será que a gente pode conversar em um lugar
mais reservado?
— Tipo um cemitério? Enquanto você fala, eu vou cavando a sua
cova. Parece ótimo.
— Você é tão quinta série — resmunga, fazendo bico.
Tento manter a compostura diante de sua feição contrariada, mas não

consigo e acabo cedendo a um pequeno e rápido sorriso. Lembro-me da


época — dois meses atrás — em que a gente se amava e vivíamos implicando
um com o outro, fazendo brincadeiras imaturas que ninguém mais entendia,
como dois adolescentes bobos.
Sinto falta disso, mesmo não querendo, mesmo lutando para não
sentir.
Frustrado, Calebe desiste de argumentar comigo e recorre ao
apresentador, que nos assiste (assim como o resto da equipe) como se
estivéssemos em um ringue, alternando os olhares entre um e outro.

— Será que a gente pode continuar a gravação? — pede com um


arzinho arrogante que, eu sei, é para me alfinetar.
Agressão é crime mesmo?
— Ele não pode participar — intervenho antes que Miguel responda.

Aproximo-me dos dois e paro ao lado de Calebe estoicamente. E daí


se ele é cheiroso e seu perfume masculino com notas amadeiradas invade as
minhas narinas, trazendo um convite que me enche de saudade? Quem liga?
— Não posso? — Ele me desafia, arqueando as sobrancelhas. — E
por que não?
É, Maria Flor, responde essa agora, sua trouxa. Por que não?
— Por que você… — gaguejo, evitando contato visual. — É você,
oras! — Viro-me para Miguel e toda a equipe. — Ele é meu ex-noivo,

namoramos por muito tempo e nosso noivado acabou, como vocês já sabem,
depois que ele me traiu. Deve haver alguma regra contra a participação dele.
Não é justo com os outros pretendentes, Calebe já me conhece, seria uma
vantagem enorme. Além do mais, eu deveria ser uma noiva anônima para os
cinco, e ele já estragou a dinâmica.
— Eu não traí você.
Ignoro.
— Na verdade — Miguel diz — não é bem assim. Na segunda
temporada tivemos um participante que era apaixonado pela noiva desde o

jardim de infância, não se lembra?


Puts, agora fodeu!
— Ah, eu… — Engulo em seco, sentindo o suor acumular na minha
testa. — É claro, eu me lembro, nossa. Sim! Amei aquela temporada, minha

favorita. Muito romântico, amigos de infância, o famoso clichê que todo


mundo ama. Foi lindo, tipo, incrível mesmo.
— Pensei que você odiasse o programa — Calebe, o Judas, me
provoca.
— E eu pensei que você gostasse de estar vivo — rebato baixinho,
rosnando.
Felizmente, Miguel faz de conta que não está prestando atenção ao
nosso diálogo e consulta o diretor sobre alguma regra que impeça Calebe de

continuar no programa. Para a alegria deles (e meu martírio), ele responde


que, desde que fique claro que nenhum de nós dois sabia da participação do
outro, não tem problema.
Calebe sabia, mas não tenho como provar.
— Você pode desistir — Calebe sussurra, inclinando sobre o meu
ombro para que ninguém mais escute — se quiser.
Sua proximidade repentina faz meu corpo entrar em alerta, como se
existisse em mim um sensor especial que detecta apenas Calebe Ventura:
quanto mais perto, mais arrepiada e sensível minha pele se torna.

— Como se eu fosse! — vocifero entredentes, sem titubear. — Eu só


saio daqui com uma aliança no dedo, meio milhão no bolso, em um avião
direto para Paris junto com um marido.
Os olhos de Calebe brilham, vidrados nos meus, e sua expressão

pacífica se transmuta em uma máscara de pura rebeldia.


— Desde que seja comigo, por mim, tudo bem — declara com seu
maxilar trincado.
— Nem nos seus sonhos — sibilo, empinando o nariz.
Ele me troca por outra e ainda acha que pode aparecer do nada
exigindo coisas? Será que bateu a cabeça?
— É o suficiente. — Miguel bate palmas, roubando a atenção para si.
Vejo o diretor se afastando. Nem percebi que haviam finalizado a gravação.

Uma concordância geral corre entre os cameramans, maquiadores e


assistentes e todos começam a se dispersar ao mesmo tempo. — Podemos
dispensar a brincadeira, já temos material suficiente para preencher o
episódio. Além do mais, não faria sentido usar a venda, já que vocês se
conhecem muito bem, não é verdade? Agora, Maria Flor, pense bastante nos
seus pretendentes favoritos para a próxima etapa, gravaremos amanhã o
rankeamento.
Rankeamento?
Miguel troca um olhar estranho e demorado com Calebe, depois se

afasta para conversar com o diretor (e nos dar um pouco de privacidade,


apesar de eu não querer).
— A próxima etapa será um encontro com cada um de nós — Calebe
me lembra, fazendo meus olhos baterem na nuca.

Eu tinha esquecido. Por isso eles querem que eu os classifique com


base na minha primeira impressão de cada um, definindo-os como mais ou
menos favoritos, por ordem. Os encontros serão individuais, organizados
pelos pretendentes, para que possam me conhecer de verdade (exceto Calebe,
que está roubando no jogo e já fez bem mais do que me ver).
— Você vai ficar em último lugar — aviso sem olhar para ele.
Calebe ri.
— Eu sei.

— Quem você subornou para entrar no programa? — Cruzo os


braços, assistindo a movimentação do estúdio enquanto organizam os
equipamentos.
— Algumas pessoas — responde, sincero.
— E quem contou para você que eu estava aqui? — sondo, apesar de
ter um palpite bem claro na mente.
— Não posso entregar meus aliados, Copo-de-Leite.
Outra flor.
Viro-me, furiosa — e, se eu for só um pouquinho sincera comigo

mesma, com muita vontade de ouvir sua voz sussurrando o apelido no meu
ouvido.
— Não me…
Mas Calebe já está se afastando, e eu fico parada, olhando suas costas

largas até sumirem de vista.


Não me chame assim, idiota.
“No amor e na guerra, vale tudo. Mas cuidado para que as armas que você
empunha não sejam usadas contra você, afinal de contas, até mesmo um
chute na bunda empurra a pessoa para frente, não concordam?”

MARIA FLOR

Eu não sei o que é pior: ser traída pelo noivo, ou pelo próprio pai.
— Não acredito que o senhor contou para o Calebe. — Ando pelo
quarto com o celular na mão, em uma vídeo-chamada com Alberto de Barros,

meu pai, mais conhecido como Beto. — Você deveria me apoiar, ficar do
meu lado, não me jogar na boca do leão.
— E o que você queria que eu fizesse? Ele apareceu aqui igual um
louco quando ficou sabendo que tinha saído da cidade. Estava desesperado,
chorando, eu fiquei com pena.
— Com pena dele? Tinha que ter pena é de mim que sou sua filha!
— Vocês precisam conversar, Maria Flor. Ele me contou o que
aconteceu e…
— E o senhor acreditou nele? Pai, o Calebe tem aquela cara de

cachorro manso, mas é um lobo em pele de cordeiro.


Meu pai coça o cavanhaque.
— Querida, se eu não achasse que o Calebe merece uma chance de
pelo menos se explicar, eu seria o primeiro a escorraçar ele da minha casa.

Mas ele está se expondo em rede nacional, isso deve valer alguma coisa. Sei
que está magoada, e tem todo o direito de estar, mas se tem uma coisa que eu
aprendi com a idade, é que não vale a pena a gente se apegar ao orgulho
ferido quando o que está em jogo é a nossa felicidade.
— Eu estou feliz — digo teimosamente, não por ser a verdade, mas
porque eu desejo me sentir assim, preciso acreditar que estou bem sem ele
para que, eventualmente, isso se torne realidade. — Sei o que eu vi, não sou
idiota. O que o senhor ia pensar se flagrasse a mamãe na porta de um motel

com o senhor Alfredo da barbearia?


Sento-me no colchão do quarto e encaro meu pai, que me olha de
volta com uma expressão horrorizada muito parecida com a minha.
— O que tem o Alfredo? — brada.
— Nada, é um exemplo hipotético.
— Um exemplo hipotético bem específico, Maria Flor — resmunga de
cara fechada, franzindo as sobrancelhas grossas. — Por acaso, sabe de
alguma coisa? Porque, se ele estiver se engraçando para o lado da sua mãe,
eu vou…

— Conversar? — digo, utilizando as palavras dele contra ele mesmo.


— Dar uma chance? Ser uma pessoa civilizada que não se deixa abater pelo
orgulho ferido?
Meu pai me fuzila com os olhos, empurrando os óculos para cima

com uma carranca reprovadora. Ele rumina meu afronte, e eu seguro a risada.
— Tudo bem, você está certa. — Cede à contragosto. — É mais fácil
falar, do que fazer. Você tinha que ser tão cabeça dura?
— Tive a quem puxar. — Sorrio, orgulhosa. — Sei que o senhor
gosta do Calebe e sente falta dele, mas o que a gente tinha… — Engulo em
seco, a saliva desce asperamente pela minha garganta. — Acabou. Em breve
eu vou me casar e o senhor terá um novo genro, é melhor ir se acostumando
com a ideia.

— Bom, eu tentei. Sinto muito, está bem? Sou apenas um pai velho e
senil tentando ajudar a filha. É um crime tão grave assim? — Suspira,
dramatizando. Não me parece nem um pouco arrependido por ter entregado
meu paradeiro a Calebe, mas qualquer argumento que usemos depois de ele
recorrer aos termos “pai”, “velho” e “senil”, faz a gente parecer um monstro
sem coração, então eu me calo. — Agora é tarde, ele já está aí. E, se
conheço bem aquele rapaz, não vai desistir até resolver as coisas.
— Boa sorte para ele — pestanejo, disfarçando a fagulha de euforia
que acende no meu estômago. Meu pai está certo, Calebe não vai desistir tão

fácil. — Nada do que ele disser ou fizer, vai apagar aquilo que eu vi com os
meus próprios olhos. Se ele é mesmo tão inocente como anda dizendo, então
por que não me procurou antes? Por que não foi atrás de mim quando juntei
as malas e fui embora? Por que esperou tanto tempo?

O semblante sério do meu pai suaviza, embaixo do seu bigode


volumoso um sorriso aparece, e eu me sinto abraçada e repreendida ao
mesmo tempo, daquele jeito que só os pais conseguem fazer por estarem (na
grande maioria das vezes) certos.
— Para alguém que não quer conversar com ele, você tem muitas
perguntas — diz, certeiro, e eu nem tenho como me defender. — Apenas me
prometa que vai fazer o que for melhor para você.
A resposta — que deveria ser super simples — demora um pouco

para chegar, mas eu a forço para fora.


— Eu prometo.
Ele aquiesce, satisfeito, olha o relógio em seu pulso e diz:
— Preciso me preocupar com você fazendo alguma besteira
perigosa?
— Pai, pode não parecer, mas eu não sou uma criminosa.
— Conheço você há vinte e oito anos, Maria Flor. Conheço o seu
temperamento com a palma da minha mão e sei que, quando fica magoada, é
pior do que um cão raivoso.

— Prometo não ser presa. Na pior das hipóteses, me torno uma


foragida. — Meu pai sorri, mas seu olhar é de preocupação. Decido que é
melhor colocar um fim na conversa, antes que eu piore a situação. — Vou
dormir agora, amanhã tenho um encontro às seis. — Faço uma careta, não

consigo disfarçar o desgosto. Quem marca um encontro às seis horas da


manhã? — Por favor, tente resistir ao incrível charme do meu ex-noivo.
Ele resmunga, sem dizer explicitamente nem que sim, nem que não.
Mas nós dois sabemos a verdade: Calebe é seu favorito.
Quem foi que disse que os humilhados seriam exaltados? Estou
esperando.
— Só mais uma coisa — diz antes de desligarmos. — Garanta que
esse seu novo marido seja um bom parceiro de truco, é o mínimo. Eu não

aguento mais perder para a sua mãe e Alice. Desde que você terminou com o
Calebe, elas ficaram insuportáveis.
Na verdade, meu pai é um péssimo jogador, mas Calebe nunca teve
coragem de confessar, e por ser muito habilidoso, tinha sempre que ganhar
pelos dois.
— Pode deixar. — Sorrio. — Eu amo você.
— Também amo você, querida. Boa noite.
***

Pessoas que são felizes no período das cinco às nove da manhã me


irritam. E, por mais que eu não queira ficar irritada com Leonardo Yoon (o
homem é praticamente um monge, de tão educado e paciente) é mais forte do

que eu.
Como não sabia para onde eu seria levada, calcei um par de tênis
brancos com um vestido, e só por precaução joguei uma jaqueta jeans por
cima dos ombros. Pareceu muito apropriado para seja lá o que ele tinha em
mente de madrugada (convenhamos, o dia só começa das dez em diante), mas
agora, sentada à mesa de um restaurante requintado (e quase vazio, mas não
vou mencionar o horário de novo) vejo que minha escolha foi precipitada.
Leonardo não parece se incomodar, mesmo vestido com um terno de

risca cinza-escuro que lhe cai impecavelmente bem e enfatiza as nossas


diferenças. Inclusive, sua primeira impressão após me ver — com os olhos —
foi carregada de muitos elogios da parte dele. Sua beleza, contudo, não é o
bastante para ofuscar a maldita pergunta piscando na minha mente: o que
diabos estamos fazendo em um restaurante chique uma hora dessas? Minha
alma ainda está na cama.
— Eu quis ser um pouco mais original — diz, com os olhos no
cardápio.
— Está lendo a minha mente?

Ele sorri e ergue o olhar por um segundo.


— Está escrito na sua cara.
— Ah… — É tudo o que consigo formular. Não adianta me defender,
eu sou uma criatura vespertina.

Pego o cardápio para conferir as refeições e disfarçar o


constrangimento, e noto que todos os itens estão descritos em português e em
inglês (chique!). Não sinto fome de manhã, normalmente, tomo apenas uma
ou duas (ou dez) xícaras de café sem açúcar e sem leite, mas não quero
parecer uma ingrata mal-humorada e digo que vou querer o mesmo que ele
— panquecas e suco de laranja, para o desespero do meu estômago.
— Pensei que seria muito óbvio sairmos para jantar — Leonardo
explica assim que um garçom leva nossos pedidos. — E não sou criativo para

esse tipo de coisa. Geralmente, prefiro programas mais caseiros.


— Pois eu acho que você foi criativo até demais — digo, sem
conseguir conter minha falta de bom senso. Leonardo franze o cenho,
confuso, então eu acrescento: — A escolha do horário foi bem — horrorosa,
inapropriada, desumana — interessante.
— Café da manhã é a refeição mais importante do meu dia — conta,
abrindo um imenso sorriso que ofusca a minha visão. — Por isso me veio a
ideia de compartilhar com você.
Se eu não estivesse com tanto sono, acharia fofo. É visível seu esforço

para me agradar.
— E você toma café da manhã todos os dias às seis horas?
— Você não?
OLHA BEM PARA A MINHA CARA.

— Só quando vou trabalhar.


Ouço uma risadinha atrás de nós e me viro para olhar, mas há uma
imensa pilastra bloqueando a minha visão. Espero que a pessoa não esteja
escutando a conversa, já basta os dois cameramans posicionados nas mesas
vizinhas à nossa, segurando filmadoras maiores do que a minha cabeça.
— Como estou sempre no hospital, esses horários são normais para
mim.
Nunca pensei que eu diria isso, mas ainda bem que a minha nota no

vestibular não foi o bastante para me fazer entrar na faculdade de medicina.


Deus sabe o que faz.
— Você não sente sono? — pergunto por curiosidade.
— Já estou acostumado. — Ele cruza os braços sobre a mesa,
confortável com a conversa. — Mas, quando preciso fazer plantões seguidos,
é mais complicado, principalmente se tiver muitos pacientes para assistir.
Não existe sono melhor do que o sono de um médico depois de um plantão
duplo.
Ele fala do trabalho com tanta paixão que me faz sorrir.

— Admiro sua dedicação, sinto o mesmo pela fotografia. Pena que a


minha experiência com plantões, médicos e pacientes se resuma a uma
cirurgia de apendicite que precisei fazer há quatro anos e séries de televisão
famosas.

— Deixa eu adivinhar — ele diz em um timbre divertido — Grey's


Anatomy?
— Já assistiu Grey's Anatomy? — pergunto, empolgada.
— Sim, e já respondi essa pergunta um milhão de vezes. — O sorriso
dele se amplia ainda mais.
— Correndo o risco de fazer outra pergunta que você deve ouvir o
tempo todo… — Inclino-me para frente e sussurro: — É daquele jeito
mesmo?

Os olhos de Leonardo cintilam, ele deixa escapar uma risada rouca,


ligeiramente travessa.
— Mais ou menos, tem algumas situações absurdas que a gente não
vê acontecendo de maneira tão corriqueira. Sendo um pouco chato, eles
também não são muito cuidadosos em representar o tempo ou as taxas de
sucesso de alguns procedimentos cirúrgicos, mas são casos bem pontuais.
Alguns pós-operatórios são, no mínimo, incomuns, e tem coisas fantasiosas
demais também, que não aconteceriam em um dia normal. Mas, faz parte do
entretenimento, então a gente releva.

— Uau, agora eu fiquei curiosa. Sinto muito, mas vamos ter que
maratonar juntos todas as temporadas para você me falar as coisas que tem de
errado.
— São muitas temporadas — ele observa, mas tampouco se queixa.

— Se a gente se casar, vamos ter muito tempo para fazer isso —


argumento de volta.
Leonardo abre a boca para falar alguma coisa, mas o cliente atrás de
nós, aquele que não consigo ver por causa da pilastra, começa a tossir
incontrolavelmente, quebrando a atmosfera confortável e íntima que estava
começando a se formar entre nós.
— Será que ele está bem? — Leonardo sussurra, preocupado,
enquanto uma funcionária corre até a mesa do sujeito com um copo de água

equilibrado nas mãos.


— Quer dar uma olhada? — pergunto, igualmente baixo, porém
muito empolgada com a perspectiva de presenciar um salvamento ao vivo. —
O que o seu instinto de médico diz?
Leonardo tampa a boca com a palma da mão para não entregar sua
risada diante da minha animação.
— Que ele bebeu o café rápido demais, provavelmente.
— Droga — resmungo, fazendo-o ceder à uma gargalhada sonora. —
Já estava até procurando uma caneta para te ajudar a abrir uma passagem de

ar na garganta dele.
— Ah, seria um encontro inesquecível, porém muito injusto.
Dificilmente os outros participantes teriam alguma chance com você, depois
que me visse fazendo uma traqueostomia no chão de um restaurante.

Eu não sei nem falar esse nome.


— Muito injusto — pondero, afinal, seria mesmo impressionante, para
dizer o mínimo. — Mas, pense pelo lado positivo, você já tem uma vantagem
e tanto em relação aos outros. Imagina, que mulher não gostaria de se casar
com um médico e nunca mais se preocupar com acidentes pequenos, como
ficar engasgada com um espinho de peixe, ser picada por uma aranha, ou
sofrer uma queimadura no fogão?
— O que? — Ele gargalha, jogando a cabeça para trás. — Tudo isso

foi estranhamente específico, Maria Flor.


— É melhor não entrarmos no mérito do quanto eu sou azarada.
Leonardo sorri outra vez, recostando-se na cadeira. A ponta da sua
franja caindo sobre os olhos é particularmente charmosa.
— Mesmo eu sendo médico, você ainda teria que ser levada a um
hospital em todos esses casos — explica seriamente, olhando-me nos olhos.
— E, sendo sincero, quando nos casarmos, eu preferia que você não passasse
por nenhuma dessas coisas.
Perco momentaneamente a linha de raciocínio diante da sua afirmação

cheia de confiança (e um pouquinho de prepotência) ao declarar “quando nos


casarmos” ao invés de “se nos casarmos”. Leonardo não é tão inocente pelo
visto.
— Por que? — Minha voz é apenas um suspiro.

Uma de suas sobrancelhas se ergue, formando um arco confiante em


sua testa.
— Porque nenhum homem gosta de ver a sua mulher sofrendo.
Meu queixo vai para no chão, sinto o rubor subindo pelo meu
pescoço, formigando até as bochechas, e de repente eu não sei mais o que
dizer, ou fazer e muito menos pensar. Não é porque eu me comporto como
uma mulher muito bem resolvida e estou em um programa para arrumar um
marido, que eu saiba como reagir a um flerte tão inesperado.

Leonardo Yoon é bom com as palavras. Eu não estava errada quando


disse que qualquer mulher gostaria de se casar com ele.
Por sorte, nossos pedidos chegam e sou salva pelo gongo. Ao mesmo
tempo, ouço o cliente de trás se levantando e, ao olhar, só vejo as costas
largas de um homem alto se afastando. Como ele está vestindo uma blusa de
frio com capuz, não consigo enxergar seu rosto, mas algo em seu jeito de
andar me parece estranhamente familiar.
***

Encaro o espelho do banheiro feminino depois de lavar as mãos,


sentindo um grande alívio por, pelo menos aqui, não ser seguida por uma
daquelas câmeras. Cogito a ideia de ficar trancada em uma das cabines

sanitárias pelas próximas dez horas, fingindo uma dor de barriga, mas me
lembro que Leonardo é médico e a última coisa que eu preciso é dele
examinando a minha falsa caganeira.
Acabei não comendo nem metade da panqueca, o suco ficou
esquecido em cima da mesa, e eu ainda preciso de cafeína. O problema é que,
quando Leonardo me perguntou o porquê de eu não estar comendo, o espírito
da Pitty baixou em mim, me desconfigurou, e eu sofri uma pane no sistema:
ao invés de dizer a verdade, respondi que estava cheia.

Cheia? Cheia de burrice, só se for.


Resultado: ele agora pensa que eu sou uma mulher que come pouco
por medo de engordar, sendo que, em um horário convencional (que não
inclui o período da manhã), eu bateria tranquilamente um PF de pedreiro,
dois sanduíches e, de quebra, um milkshake extragrande de chocolate.
Só continuo minimamente em forma porque Calebe me obrigava a
praticar exercícios junto com ele. Desde que nos separamos, no entanto,
venho me entregando cada vez mais ao incrível mundo do sedentarismo.
Mas não vou pensar em Calebe agora. Não mesmo. De jeito nenhum!

Me recuso a deixar que ele estrague o meu primeiro encontro e vou fazer de
tudo para tirá-lo da minha mente. Leonardo é atencioso, romântico e
cuidadoso. Vejo que está se esforçando e não posso negar que seu jeito
inteligente derruba todas as minhas defesas. Só uma idiota perderia seu

tempo pensando em um traidor barato quando se tem um homem como


Leonardo do lado.
Decidida a ignorar a existência de Calebe até o fim do programa (e da
vida), caminho para fora do banheiro e…
Ah, vá a merda! Será que eu joguei pedra na cruz, foi?
Parado do lado de fora, cabisbaixo e com as costas apoiadas na
parede, está ninguém mais, ninguém menos, do que Calebe Ventura.
Ele não me percebe a princípio, perdido em algum pensamento que

não consigo decifrar. Seus olhos estão fixos em um ponto vazio do chão, e
sob a pouca iluminação do corredor, o tom de verde de suas íris, que eu
sempre associei à cor do oceano no horizonte, parece sombrio e tempestivo
demais.
É estranho, uma expressão que não combina com ele. Calebe é o
responsável por empunhar a espada que partiu o meu coração ao meio, mas
eu nunca vi um olhar tão vulnerável e perdido em seu rosto.
— Calebe. — Seu nome foge dos meus lábios de forma quase
inconsciente e ele se empertiga, despertando do transe.

As sombras se afastam de suas feições, e ele volta a ser o Calebe


inconveniente de sempre. Ele usa uma camiseta simples, estampada com
pequenas notas musicais nas mangas, calça de moletom e tênis, mas o que
chama a minha atenção é a blusa de frio amarrada em sua cintura: é idêntica

ao do cliente que estava tossindo mais cedo.


Era ele.
— Margarida — sussurra carinhosamente, mas se corrige assim que o
repreendo com os olhos: — Maria Flor, estava esperando por você.
— Está me seguindo? — pergunto retoricamente. — Isso é crime,
sabia?
Ele faz uma careta, ignorando minha fala, e estica o braço direito. Em
sua mão, há um copo térmico que faz meu organismo soltar foguetes contra a

minha vontade.
— Pra você.
— O que é isso? — indago por puro despeito, pois já sei a resposta.
— Veneno — ironiza, entortando o nariz. — É café, Maria Flor.
— E por que você acha que eu vou aceitar? — Teimo.
Calebe bufa e se aproxima.
— Estou te fazendo um favor, seja boazinha e me agradeça.
— Virou masoquista, Calebe? Tá parecendo que quer ganhar um
socão. — Apesar de dizer isso, eu pego o copo, afinal de contas, é café e não

se recusa um café quentinho, mesmo de Judas. — Não fique se achando.


Passo por ele, fingindo não me importar com o sorrisinho prepotente
que esboça assim que levo o copo fumegante à boca e gemo de satisfação.
Caminho de volta para o salão, sentindo a presença de Calebe no meu

encalço enquanto aprecio o sabor amargo da bebida — sem açúcar e sem


leite. O miserável é um gênio.
— Como vai explicar o copo? — Calebe pergunta no pé do meu
ouvido; meu corpo se arrepia da cabeça aos pés. Não tinha percebido que sua
proximidade era tanta.
— O que? — Dou um pulo, virando-me para ele.
— Como vai explicar para ele o copo? — Aponta para meu querido e
amado cafezinho. — Essa embalagem não é daqui, vai ser bem complicado

de explicar onde arrumou isso.


Olho para a mesa, vejo Leonardo de costas, aguardando meu retorno,
e faço toda a equação na minha cabeça: Calebe tem razão, não posso voltar
agora, e não consigo beber o café todo de uma vez, porque está quente
demais. Não acredito que caí em uma armadilha tão besta.
— Fez isso de caso pensado, não foi? — reclamo, esgueirando-me
para trás de uma coluna a fim de me esconder da equipe de filmagens.
— Se quiser, pode jogar fora — sugere.
— Ficou maluco? Que sacrilégio, Calebe. Você sabe que eu jamais

faria isso.
— Então, não me resta escolha a não ser te fazer companhia.
Assopro o café e tento beber o mais rápido possível. Calebe,
sorridente por seu planinho ter dado certo, também corre para se esconder das

vistas (e lentes) alheias, e acabamos ficando mais próximos do que seria


adequado para o bom funcionamento do meu coração (que, vamos concordar,
é diplomado na arte de ser feito de trouxa).
Evito olhar para cima, só por precaução.
Calebe é alto, sua sombra me engole inteira, e eu sei que, se levantar o
rosto, ficarei presa em sua existência opulenta, nos detalhes que, para mim,
fazem-no se destacar no meio de qualquer multidão, como a pintinha que ele
tem logo acima da sobrancelha esquerda ou as veias pronunciadas em seu

pescoço tonificado.
Continuo bebendo meu café, mas minha mente não para de trabalhar.
Se ele está se escondendo da produção, significa que não pode estar aqui. Se
for pego, talvez seja até expulso. Uma mulher esperta aproveitaria a chance
para se livrar dele, mas já sabemos que a minha esperteza só funciona até
certo ponto.
O ponto se chama Calebe, codinome Judas.
— Então, o que veio fazer aqui? — pergunto, notando que o silêncio
só me torna mais consciente dos centímetros que nos separam.

São pouquíssimos, se eu me inclinasse para frente, talvez…


— Eu estava me mordendo de ciúmes — confessa sem hesitar, com
os dentes trincados e o corpo tenso. Por pouco eu não me engasgo. — Não
pense que está sendo fácil para mim assistir um monte de caras babando por

você como se fosse um pedaço de carne sem poder fazer nada. Colocaram
nós cinco dentro do mesmo apartamento para gravar nossas conversas e tem
sido um inferno responder as perguntas deles sobre você.
— Então, eles sabem sobre nós dois?
— Ficaram sabendo, era inevitável depois do que aconteceu no
estúdio.
— E exatamente o que eles perguntaram a meu respeito?
Calebe emite um riso nasalado e sou atraída pelo som. Ao olhar para

cima (uma atitude desprovida de autopreservação) recebo o impacto de toda a


beleza grega pairando acima de mim. Fica difícil até de sentir o peso dos
meus chifres quando ele apoia o antebraço na pilastra, prendendo-me em um
cativeiro de músculos e testosterona.
Espero que alguém lá em cima me dê sabedoria para não cometer o
mesmo erro outra vez, porque se me der coragem, eu erro de novo só para ter
certeza de que é errado mesmo.
— Isso — Calebe rosna misteriosamente — eu não conto nem morto,
Margarida.

Aperto o copo — já vazio — com mais força e sustento o peso de ser


o centro de toda a sua atenção. Não o repreendo, dessa vez, por usar o nome
de uma flor para se referir a mim. Deixo-me levar pela ilusão e cego a minha
mente para a verdade, fantasiando que ainda somos um par romântico,

daqueles dignos de um filme da Netflix bem clichê, a caminho do final feliz.


O casal que sempre fomos antes de tudo: perfeitos um para o outro,
com corpos que se encaixavam como as peças de um quebra-cabeça, toques
que davam continuidade às nossas carícias em um ciclo constante de amor e
devoção, bocas que trocavam declarações mútuas e as selavam com beijos
cheios de paixão.
A gente era perfeito junto.
Era…

— O carma não falha — comento, usando toda a minha força de


vontade, e um pouquinho do meu estoque limitado de dignidade também,
para me afastar. Calebe abre passagem e eu volto a raciocinar com clareza
assim que coloco alguns metros entre nós. — Não é uma indireta, apenas um
fato. Se você queria que eu sentisse pena, veio ao lugar errado, Calebe.
— Já falei que eu não… — Ele não termina a frase, só suspira,
frustrado, bagunçando o cabelo. — Na verdade — diz, abrindo um sorriso
que não sei definir se é sincero ou não — o que eu queria mesmo dizer é que
ele é um cara legal.

Confusa, olho ao redor, buscando a pessoa a quem se refere.


— Leonardo? — pergunto, franzindo o cenho. O rumo da conversa
deixa um sabor amargo na minha boca, mas não tem nada a ver com o café.
— Sim, o que ele disse lá na mesa — Calebe diz, assumindo que

estava mesmo ouvindo a nossa conversa — é a mais pura verdade. Não sei
como viver sem você, Maria Flor, mas também não quero ser o causador do
seu sofrimento. Eu não aguento ver você sofrendo.
Nenhum homem gosta de ver sua mulher sofrendo, recordo-me.
— Por que está dizendo tudo isso do nada? — indago, cruzando os
braços na frente do corpo para disfarçar o meu tremor, que pode ser o
primeiro indício de uma recaída, ou a vontade de cometer uma agressão
contra ele. Os dois casos são péssimos.

Calebe se aproxima, seu caminhar é confiante, decidido. Para ao meu


lado e investiga meu rosto com um cuidado ímpar, enchendo-me de
pensamentos dúbios sobre as mágoas dentro de mim.
— Perguntou o que eu vim fazer aqui — responde. — No fim de
tudo, se eu ainda não conseguir você de volta, quero pelo menos ter certeza
de que não vai se casar com um babaca.
Calebe acha que preciso da aprovação dele?
— Um pouco contraditório, não acha? Querer que eu me case com
você, mas não com um babaca. Acho que não dá para fazer o primeiro, sem

fazer o segundo.
Ele desdenha da minha observação com um aceno.
— A regra não se aplica a mim.
— Quem disse?

— Eu disse, eu fiz as regras.


Não sei dizer se estamos brigando, ou nos provocando em uma
brincadeira perigosa de palavras, mas não vou permitir que saia ganhando de
novo.
— Ainda bem que regras foram feitas para serem quebradas.
— Desde quando você se tornou tão impertinente? — Estreita os
olhos, sua pele branca adquire uma coloração rosácea graças à irritação
crescente.

— A gente aprende uma coisinha ou outra depois de arar a terra com


os galhos que vão crescendo na cabeça. Devia experimentar uma hora, é
esclarecedor — eu o alfineto maldosamente.
Calebe me atira adagas com o olhar, agarra meu copo vazio, e marcha
para a saída sem se despedir, bufando, resmungando e batendo os pés.
Que perigo! Tenho que ser mais cuidadosa perto dele. Calebe tem
todas as vantagens por me conhecer mais do que qualquer outro (incluindo o
amor incondicional do meu pai) e, justamente por isso, preciso me empenhar
mais em dar chances aos outros competidores.

Depois de respirar fundo e forçar um sorriso dissimulado, volto para a


mesa decidida a perguntar para Leonardo se ele sabe o significado de
manilha e zap em uma rodada de truco.
“Cada um usa as cartas que tem para vencer o jogo, mas nem sempre todas
elas estarão sobre a mesa. Preste atenção nas cartas escondidas na manga
do seu inimigo, ou elas se tornarão um problema.”

LEONARDO

Ela odiou.
Está escrito na cara de Maria Flor que nosso encontro foi um
completo desastre e a culpa é toda minha por ter ideias estúpidas. Primeiro

lugar em medicina, vários artigos publicados, nota máxima em quase todas as


disciplinas, prêmios aos montes, uma carreira consolidada e promissora, tudo
isso para quê? Para planejar o pior encontro já visto pela humanidade.
Minhas habilidades românticas (ou a falta delas) tinham que ser estudadas.
Pensei que compartilhar meu momento favorito do dia com minha
possível-futura-noiva seria especial de alguma forma, mas pela expressão
sonolenta de Maria Flor e o fato de ela ter bocejado mais de quinze vezes
durante todo o café da manhã (eu contei), ficou bem clara a sua vontade de
ter acordado quatro horas mais tarde do que combinamos, no mínimo!

Fico imaginando o que ela vai dizer no meu discurso de eliminação,


se ficarei conhecido no Brasil como o médico sem noção que acha legal
encontros esquisitos ao amanhecer.
Desde quando tomar café da manhã com alguém é considerado um

encontro decente? Acho que nem meus avós são tão antiquados.
Olho de esguelha enquanto caminhamos lado a lado e a vejo distraída
com a paisagem, sorrindo para um grupo de crianças que brinca em um
parquinho bem precário do outro lado da rua. Dispensar o motorista e
acompanhá-la até onde está hospedada também foi ideia minha — mais uma
péssima ideia, claro, levando em conta a distância de duas horas entre o
restaurante e o hotel. O que há de errado comigo?
— Pena que eu não trouxe a minha câmera — ela comenta de repente,

parando de andar com os olhos brilhando para cena que se desenrola entre as
crianças. — Queria fazer algumas fotos desse lugar.
Encaro o cenário sem o mesmo encantamento. A maneira como ela
analisa o mundo é bem peculiar, há sempre um deslumbre raro no fundo de
suas íris amendoadas que me tiram o fôlego.
Ela é linda.
Mesmo que não estivéssemos participando de um programa
televisivo, Maria Flor teria minha total atenção se nos esbarrássemos por
acaso no meio da rua. Ela não é do tipo que passa despercebida, e a cada

segundo fica mais difícil prestar atenção em qualquer coisa que não seja a sua
beleza, o rosto muito delicado e charmoso, o sorriso cheio de uma travessura
contida e suas curvas divinamente desenhadas para a completa ruína dos
homens.

Analisando friamente, é difícil de acreditar na veracidade dos


sentimentos que tenho explorado desde que nos conhecemos, já que faz um
tempo ridiculamente curto, mas a pressão do reality show deixa nossas
emoções à beira do impossível. No fim das contas, é para isso que estou aqui:
apaixonar-me por ela — uma tarefa que não me parece tão difícil assim agora
que a conheço melhor. Ela é naturalmente apaixonante.
— Gosta de crianças? — sondo.
Ela estremece, balança a cabeça para os lados e dispara sem nenhum

limite:
— Já ouviu aquela frase de que pimenta no cu dos outros é refresco?
Troque pimenta por filhos e cu por conta bancária e o efeito será o mesmo.
Gosto muito de crianças. Crianças dos outros. Não penso em ter filhos em
um futuro próximo. — Torce o nariz e acrescenta: — Nem em um futuro
distante.
Coloco as mãos nos bolsos e me viro para ela, sentindo o riso fácil
fugir dos meus lábios. Maria Flor, além de bonita, é divertida, agradável,
autêntica... meu Deus, sua lista de qualidades é extensa demais.

— E o que você quer para o seu futuro?


Ela olha para os lados, flagrando nossos cinegrafistas bem atentos à
conversa. Bate a ponta do pé no chão, incomodada com nossa plateia
constante. Queria ter um pouco de privacidade para falar com ela sem as

lentes atentas da produção, perguntar se os rumores sobre a sua relação com


Calebe Ventura são verdadeiros, se ela ainda o ama...
— É uma boa pergunta — divaga, voltando a caminhar. O clima
ameno da manhã e a brisa outonal brincam com seus cachos, e preciso me
segurar para não fazer o mesmo. — Mas, infelizmente, não sei o que
responder.
— Todo mundo tem um sonho — insisto enquanto atravessamos uma
rua pouco movimentada. — Você não?

Maria Flor crispa os lábios e diminui o ritmo dos passos. Seu


semblante desbota para um tom pálido que me permite lê-la dos pés à cabeça,
e eu me arrependo da pergunta no mesmo instante. Nós ouvimos os rumores
sobre seu relacionamento anterior com Calebe Ventura, mas eu não tinha
certeza de que eram verdadeiros já que ele se recusou a nos contar.
O babaca a trocou por outra. O quão idiota um homem precisa ser
para magoar uma mulher incrível assim?
— Posso ser sincera? — diz após uma longa pausa.
— É tudo o que eu mais quero.

— Não quero ser dramática. Eu tenho uma vida perfeita, pais


amorosos que se importam comigo, irmãos com quem posso contar a
qualquer momento, mesmo que a gente tente se matar de vez em quando, e
uma profissão que amo de todo o coração. — O volume de sua voz despenca

a um sussurro e eu me aproximo dela para escutar direito. — Mas tenho essa


sensação de estar vivendo uma realidade paralela onde nada importa de
verdade e o que vier é lucro.
Encolhendo os ombros, Maria Flor força um sorriso tímido.
Ela ainda o ama, percebo.
Pelo timbre melancólico e seu olhar triste, é óbvio que ainda nutre
sentimentos profundos por Calebe. Participar deste programa deve ser uma
tentativa desesperada de seguir em frente. Se eu já não ia com a cara daquele

idiota antes, agora tenho motivos de sobra para odiá-lo.


— Tudo bem ir devagar e viver um dia de cada vez. — Estendo
minha mão para ela, que a segura com relutância, e beijo a pele morna de
seus dedos. Maria Flor entreabre os lábios, surpresa, mas não recusa o
carinho. Ainda bem. — E eu não acho que ter uma vida supostamente perfeita
tire o mérito das coisas que te machucam.
O arco de seus lábios se expande em um sorriso largo, e meu orgulho
transborda dentro do peito por ser o causador de sua felicidade momentânea.
— Você é muito bom com as palavras, doutor — brinca.

Arqueio minhas sobrancelhas, entregando-me à provocação. Posso me


acostumar com o apelido se ela sempre o disser nesse tom pirracento. Maria
Flor não percebe que continuamos de mãos dadas enquanto caminhamos, e
não serei eu o responsável por destruir um momento que estive alimentando

em pensamentos desde quando coloquei meus olhos nela.


— Se o que vier é lucro... — Aproveito-me da atmosfera amigável
para retornar ao assunto da sua confissão sem estragar o momento. — Quer
dizer que o seu noivo ideal será uma espécie de saldo extra? Sabe, ganhe
meio milhão de reais e leve de brinde um marido? — digo, fazendo graça
com as palavras.
Ela empina o nariz e debocha:
— Também não é pra tanto, né? Acho que podemos comparar com

um cheque especial: parece ótimo no começo, mas te fode em algum


momento.
Não resisto à oportunidade tão gratuita de provocá-la.
— Em que sentido? — pergunto, referindo-me à dualidade do verbo
foder.
Maria Flor franze as sobrancelhas, claramente confusa. Seguro-me
para não gargalhar enquanto a compreensão lhe alcança aos poucos, tingindo
suas maçãs do rosto com pinceladas de vermelho. Porém, ela se recompõe
mais rápido do que eu gostaria e não foge do meu comentário ousado —

muito pelo contrário.


— Em todos — responde sem rodeios, dando de ombros. — Os bons
e os ruins, afinal, é isso o que se espera de um casamento e a lua de mel vai
ser de graça. — Lembro-me de ouvir Maurício dizer algo parecido no

primeiro dia. — Quem não quer transar em Paris?


Uhmm, agora ela foi bem direta.
— Acha que deve ser diferente de transar em qualquer outro lugar do
mundo? — Minha voz fica involuntariamente mais rouca.
— Tá brincando? Já se imaginou transando em um quarto com vista
para a Torre Eiffel? Deve ser o suprassumo do sexo.
Específico… específico demais! Acabo imaginando a cena e, claro, é
ela quem aparece na imagem que se difunde na minha mente: um quarto

luxuoso de hotel, com janelas panorâmicas que ilustram a torre iluminada,


Maria Flor apoiada contra o vidro, ofegante, cansada, sem qualquer peça de
roupa para estragar a visão de sua pele suada e…
— E você? — ela indaga, interrompendo o fluxo de pensamentos
inoportunos (embora muito prazerosos) no momento certo. Eu não preciso de
uma ereção no meio da rua. — Aquilo que disse no primeiro dia, sobre querer
um amor igual ao dos seus pais, era verdade?
— Sim, se eu sentir por alguém um por cento do que eles sentem um
pelo outro, serei um homem de sorte.

Ao nosso redor, as ruas começam a se encher de pessoas apressadas a


caminho de seus trabalhos. Elas nos olham, curiosas, apontando dedos e
cochichando umas com as outras. Observo Maria Flor sempre que posso,
sobretudo quando está distraída, e a todo momento ela tem aquele olhar cheio

de admiração para coisas que nos passam despercebidas — um casal


abraçado na esquina, uma senhora passeando com seu cachorro, os pardais
enfileirados na rede elétrica...
Vê-la olhar o mundo o faz parecer um lugar incrível.
Uma pena que chamemos tanta atenção por causa da equipe que nos
acompanha, eu gostaria de estender esse encontro pelo maior número de
horas possíveis, mas o produtor sinaliza que nosso tempo está chegando ao
fim para que as gravações não sejam comprometidas por algum intrometido

de plantão.
— Acho bonito como fala deles. Meus pais também são um exemplo
para mim. — Maria Flor sorri e olha para cima, buscando a minha atenção.
— Mas não sei se posso contar com eles para conselhos amorosos.
— Como assim?
— Meu pai ainda não superou o fim do meu noivado — confessa,
espantando-me. Que tipo de pessoa é Calebe Ventura para ter o apoio do
sogro mesmo após trair sua filha? Estranho…
Prefiro não invadir o espaço de Maria Flor com perguntas sobre seu

relacionamento anterior, e, para dizer a verdade, não sei se quero saber


detalhes do que ela e Calebe viveram juntos.
— Aquele papo esquisito sobre truco no restaurante… — Recordo-me
de quando voltou para a mesa e começou um longo monólogo sobre

estratégias no jogo.
Encabulada, Maria Flor volta a sorrir de uma maneira perigosamente
formidável. Ela tem o seu lado forte e desbocado que são admiráveis, mas
esse outro, o lado meigo, me desmonta inteiro.
— Você me pegou — confirma minhas suspeitas. — Meu pai ama
jogar em família e preciso arrumar um genro à altura do anterior nesse
quesito.
Finjo não perceber seu elogio velado — e inconsciente — a Calebe.

— Prometo treinar com toda a minha força de vontade e inteligência.


— Ah! Pois saiba que a família Pinto de Barros agradece. — Ela sorri
e abaixa os olhos, diminuindo a velocidade de seu caminhar. Estamos quase
nos arrastando, de tão lentos. — Mas e seus pais? O que acharam do filho
deles estar participando de um Reality Show para conseguir uma esposa?
— Minha mãe é fã número um do programa, conhece todas as
temporadas de cor e acompanha até hoje os casais que ficaram juntos pelas
redes sociais, então você pode imaginar. Fez até promessa para eu ganhar. A
coitadinha já tinha desistido de ter esperanças sobre eu me casar e agora não

fala em outra coisa.


— Então ela é do tipo casamenteira.
— Você nem sabe o quanto. Já tentou me jogar para cima de todas as
filhas das amigas dela, e até para algumas amigas também. Já o meu pai é

mais tranquilo. Ele gosta de dar conselhos de “homem para homem”, seja lá o
que isso significa na cabeça dele. Quando eu contei que tinha conseguido
entrar no programa, ele falou que eu só precisava ter em mente uma coisa.
Faço suspense. Maria Flor aperta minha mão e pergunta, interessada,
a voz exalando expectativa:
— Que coisa?
— Que em um bom casamento, uma pessoa está sempre certa, e a
outra é o marido.

Consigo ser presenteado com sua gargalhada.


— Seu pai é um homem sábio! — diz em meio ao riso. — Espero
conhecê-lo um dia.
— Você vai — garanto. — Quando estiver no altar dizendo sim para
mim.
— Você é bem confiante, doutor — zomba, recorrendo ao título
sugestivo.
Não sei se é intencional ou não, mas funciona, eu me sinto atraído...
estimulado. Muitas mulheres já fetichizaram o fato de eu ser médico antes,

das formas mais ousadas possíveis! Lembro-me com riqueza de detalhes de


cada vez que me pediram para manter o jaleco durante o sexo, ou
simplesmente fantasiar uma consulta completa — do tipo que só vemos em
filmes pornográficos —, mas confesso que nunca foi uma questão para mim,

algo que me animasse de verdade, já que levo minha profissão muito à sério.
E agora, aqui estou eu, rendido pela maneira única com que Maria
Flor pronuncia um simples doutor no final de uma frase solta.
— É ruim ser confiante?
Faltam poucos metros para chegarmos à entrada do hotel, e por mais
devagar que a gente ande, nossa despedida é iminente. Continuamos de mãos
dadas e a textura macia de sua pele não é uma sensação que esquecerei tão
cedo, menos ainda uma que eu gostaria de me desfazer.

— Eu não acho que seja. Se não confiar em si mesmo, quem vai?


Apesar de tudo, isso ainda é uma competição e vocês precisam jogar bem
com as próprias cartas.
— Voltamos a falar sobre baralho? — Ela me dá um leve empurrão.
— Brincadeira, eu entendi. É bom saber que consegui acertar em alguma
coisa, já que o encontro foi uma droga. — Maria Flor arqueja, sua boca abre
em um círculo enorme, surpreendida. Impeço-a de se explicar e completo
antes dela: — Sejamos sinceros, esse encontro foi sim uma droga e eu peço
desculpas por isso. Passei tanto tempo abrindo e costurando pessoas, que

desaprendi a planejar encontros decentes.


— Não foi culpa sua. — Paramos de andar na escadaria que antecede
a entrada do prédio, meu estômago fica pesado e ela olha para nossas mãos
unidas, tão desmotivada quanto eu para desfazer o contato. — Eu odeio

acordar cedo. Sou uma criatura vespertina.


— Você poderia ter falado isso antes.
Pouco a pouco, sua palma escorrega ao longo da minha, nossos dedos
resvalam um no outro e uma eternidade se passa até nos soltarmos. Ela agarra
as laterais do vestido comprido e encara os tênis brancos.
Olhando-a assim, nervosa, imagino como seria se não estivéssemos
sendo filmados. Eu poderia simplesmente convidá-la para um almoço, e
talvez um filme mais tarde, emendaríamos um dia inteiro ao lado do outro e

quem sabe a noite também. Faz muito, muito tempo que não divido tantas
horas do meu tempo com alguém que não seja um paciente ou colega de
trabalho.
— Não quis te deixar magoado — explica, erguendo o rosto. Passeia
a ponta da língua pelos lábios de modo convidativo e minha visão turva se
prende às linhas que delimitam sua boca úmida. — Mas tudo bem, a cafeína
ajudou.
Chegou a hora.
A despedida.

Eu poderia beijá-la. Porra, eu deveria beijá-la! Não acredito que seria


rejeitado se tentasse, considerando a conexão que nos mantêm presos no
olhar um do outro. Só preciso me inclinar, segurar seu rosto com as mãos e
acabar com o curto espaço que nos separa.

Ao invés disso, como sou um idiota que tem ideias idiotas, eu digo:
— Não me lembro de termos pedido café.
Estranhamente, os olhos de Maria Flor quase saltam das órbitas e ela
recua alguns passos, tropeçando nos degraus.
— Olha só a hora. — Encara o próprio pulso, no qual não há relógio
algum. — É melhor eu entrar.
— Mas...
Não tenho a chance de protestar, ela corre até alcançar o último

degrau.
— Leonardo? — Maria Flor me chama lá de cima, ofegante pela
subida rápida, e, se eu estava gostando de ser chamado por ela de doutor,
nem se compara à sensação de ouvir meu nome sendo dito por sua voz
ansiosa. — Só mais uma coisa: o encontro, humm... o encontro não foi uma
droga completa — declara, pouco antes de sair correndo para dentro do
prédio.
“No escurinho do cinema tudo pode acontecer. Enquanto uns assistem o
filme, outros aproveitam para colocar a mão naquele lugar, e aquele lugar na
mão. A boa notícia é que as nossas câmeras não perdem nenhum detalhe,
mas é sempre bom lembrar que não somos os únicos de olho em tudo o que
acontece.”

MARIA FLOR

Eu e Calebe tínhamos um plano.


Modéstia à parte, era um ótimo plano.

É correto dizer, na verdade, que fazíamos muitos planos sobre


praticamente qualquer coisa, alguns pequenos e ordinários, outros grandes e
extraordinários. Nunca existiu limites para a nossa imaginação, e é por isso
que sua perda me doeu tanto: não perdi apenas o amor da minha vida, eu
perdi o meu melhor amigo.
Calebe esteve presente em todos os momentos mais marcantes da
minha vida adulta, como a minha formatura, a minha primeira premiação em
um concurso fotográfico, e o dia em que finalmente consegui passar na prova
de habilitação após ser reprovada nove vezes — ele também foi a única

pessoa que aceitou correr o risco de sentar no banco do passageiro mesmo


ciente de que eu estaria atrás do volante, dizendo que confiava em mim de
olhos fechados.
Tudo bem que eu bati o carro e decidi aposentar a carteira de

motorista logo em seguida, mas o que vale é a intenção.


Tínhamos muitas coisas em comum, e coisas completamente opostas
que ajustamos com o tempo. Eu odiava fazer trilhas e escalar montanhas, mas
descobri que, fazendo isso, teria oportunidades de tirar fotos incríveis de
lugares que eu jamais conheceria se não fosse por ele. E Calebe, que nunca
pensou em registrar suas aventuras, descobriu que poderia influenciar cada
vez mais pessoas a apreciarem as belezas do mundo ao compartilhá-las na
internet.

Foi assim que nosso plano perfeito nasceu. Depois que nos
casássemos, a gente planejava viajar para outros países e dividir todas as
nossas experiências em um perfil do Instagram que havíamos criado sobre
lifestyle e traveling. O perfil já estava dando ótimos resultados com nossas
postagens locais: somar o fato de Calebe ter um nome forte no mundo virtual
graças à sua rede de academias esportivas, com as minhas habilidades de
registro fotográfico e audiovisual, foi um alinhamento perfeito de sonhos.
Pensei que fosse obra do destino.
O destino me odeia e deve estar rindo de chorar agora.

— Está esperando alguém? — Maurício pergunta de repente,


fazendo-me dar um pulo na cadeira do cinema.
— O que? Não, claro que não. Por que a pergunta?
Ele ri baixinho.

— Você não para de olhar para trás.


— Impressão sua — digo, rindo de nervoso, louca para mudar de
assunto. — Esse filme é muito lindo...
Olho para o grande telão iluminado bem a tempo de ver um grupo de
zumbis devorando um velhinho que, se não me falha a memória, é o pai do
protagonista.
Mas puta merda hein, eu não dou uma dentro!
Tudo culpa daquela praga. Calebe deve estar aqui, em algum lugar.

— Lindo, sei. Então, você é aquele tipo de garota.


Ele enfia a mão no pote de pipoca que estamos dividindo e leva um
monte à boca.
— Que tipo? — pergunto enquanto ele mastiga prestando tanta
atenção no filme quanto eu, ou seja, nenhuma.
— O tipo durona — responde, olhando-me de esguelha. — Que não
tem medo de filmes de terror e essas coisas.
— Não tenho mesmo. Quando eu era mais nova, sempre aparecia
algum idiota que me convidava para assistir filmes assim, achando que eu

ficaria com medo e pularia no colo dele para ser consolada e... — Percebo
que Maurício se remexe na cadeira, todo desconfortável. — Foi isso o que
você fez e eu acho que vou calar a minha boca agora.
Encho a mão de pipoca e enfio tudo na boca. Contanto que eu

continue comendo, não corro o risco de falar merda.


— Não, tá tudo bem, você me pegou. Foi uma ideia estúpida mesmo.
— Olhando para frente, ele faz uma careta para outra cena sangrenta e
visceral. — Para falar a verdade, eu odeio filmes de terror. Os de zumbis não
são tão ruins, só muito nojentos. Mas filmes de casas mal-assombradas... —
Ele estremece — Assustadores.
— Você tem medo?
— Medo? Não, não. Eu tenho pavor — admite. — Eu choro...

— Chora?
— Igual uma criancinha.
Gargalho com a boca cheia de pipoca, o que rende uma cena nada
digna de milho saindo pelo meu nariz.
— Maurício! — repreendo-o, controlando o volume da risada. — Não
acredito.
— É sério. Teve uma vez que eu fui assistir Annabelle na casa de uma
amiga e eu gritei tanto que a mãe dela perguntou se eu preferia assistir Toy
Story.

— E o que você fez?


— Disse que sim, é óbvio. Ao infinito e além sem dó nem piedade.
Não dá, começo a gargalhar e tossir engasgada, recebendo vários
"shhh" e olhares irritados das pessoas ao nosso redor. Imaginar Maurício,

com seu porte truculento e jeito de conquistador barato, dando gritinhos


agudos por medo de um filme, é no mínimo hilário.
— Desculpa, não queria rir de você — digo, rindo mais.
— Dá para ver que não. — Maurício me dá um empurrãozinho com o
ombro. — Mas tudo bem, não me incomodo com isso.
— Todo mundo tem medo de alguma coisa besta — comento.
Nenhum de nós dois dá atenção ao filme. Comemos pipocas entre
uma conversa e outra em um clima muito amigável, confirmando a primeira

impressão que tive de Maurício no estúdio: ele é uma pessoa fácil de


conversar, alguém com quem eu construiria uma amizade sem dificuldades.
Espero que tenhamos a chance de manter contato mesmo que a gente não
venha a se casar.
Meus pais adorariam Maurício, tenho certeza. E Alice também,
ambos têm o mesmo jeito sincero e direto.
— E qual é o seu medo? — ele me pergunta.
Ajeito-me na cadeira e o encaro.
— Não vou contar, você vai rir.

— É o mínimo, já que você riu de mim também. Conta, vai, agora eu


fiquei curioso.
Analiso bem seu rosto para ver se planeja me sacanear, mas Maurício
esboça um olhar inocente, franzindo as sobrancelhas e decido lhe dar um voto

de confiança.
— Borboletas — confesso de uma vez, revirando os olhos.
— Borboletas? — repete, incrédulo, com os lábios crispados.
Diferente de mim, ele consegue segurar o riso. — Tem qualquer coisa de
muito irônico em alguém que se chama Maria Flor ter medo de borboletas.
— É o que todo mundo diz. Meu pai conta que, quando eu era
pequena, alguém me disse que as borboletas se alimentavam de flores e que,
depois disso, eu passei a ter medo delas, achando que iam me devorar. Não

sei se é verdade, mas só de pensar naquelas asinhas batendo e as perninhas…


— Faço uma careta, sacudindo o corpo de agonia ao imaginar o inseto.
— Quer dizer que se eu tivesse te levado para assistir As Borboletas
Assassinas, meu plano teria funcionado? — Maurício se vira de lado, apoia o
cotovelo no encosto da poltrona e me observa com seu jeito provocante.
Duvido que exista um filme com um nome assim (espero que não,
seria um desserviço para a humanidade), mas me deixo levar pela
brincadeira.
— Sem sombra de dúvidas!

— Droga, seria o plano perfeito — zomba. Ele olha ao redor,


conferindo o quanto estamos atrapalhando as pessoas que realmente querem
assistir o filme, depois sorri e, pegando-me desprevenida, desliza o dedo
indicador na minha têmpora, empurrando um cacho do meu cabelo para trás

da orelha. — E esse seu medo tem um nome?


— Motefobia — explico, abrindo-me mais. — Mas meu caso com
elas não é tão grave ao ponto de eu surtar ou coisa parecida, mas é um saco,
porque eu amo fotografar ao ar livre. Quando eu e Calebe… — Paro de falar
assim que ouço o nome dele saindo da minha boca. Eu tinha que estragar
tudo mesmo, parabéns, Maria Flor.
Maurício dá um sorriso sem graça.
— Então é verdade…

— Hm?
— Você e Calebe Ventura.
Um buraco, eu preciso de um buraco bem grande para pular dentro.
— Sim — murmuro, agradecendo mentalmente por estarmos em um
cinema e a baixa iluminação camuflar um pouquinho do meu
constrangimento.
— Estamos meio que morando juntos até o fim das gravações — ele
diz. Calebe já havia me contado, mas como ninguém sabe do nosso encontro
secreto no restaurante, fico em silêncio. — Mas ele não quis contar muita

coisa sobre você para nós, então eu tinha as minhas dúvidas. Agora que pude
te conhecer melhor, tudo faz sentido. No lugar dele, eu também não ia querer
compartilhar informações com o inimigo sobre uma mulher tão linda,
divertida, atraente e que tem medo de borboletinhas.

Seus elogios me fazem sorrir — e rir. Se alguém procurar por


“conquistador barato” no dicionário, vai encontrar uma foto de Maurício
Reis. Não me sinto atraída por ele como (ainda) acontece com Calebe, mas as
sensações de conforto e intimidade são as mesmas, quase familiares.
— Não acho que ele pense assim, que sou tudo isso, ou não teria feito
o que fez comigo. Só está com o ego ferido.
Maurício dedilha a própria coxa pensativamente, o balde de pipoca
(agora já quase vazio) ainda entre nós. A equipe de gravação teve que se

distribuir nos corredores entre os assentos do cinema, distantes o suficiente


para nos esquecermos da sua presença na maior parte do tempo. Ele se
debruça sobre o braço da poltrona, invadindo meu espaço, e aproxima o rosto
do meu.
Por um milissegundo, penso que vai me beijar e meu coração perde o
ritmo das batidas, como um trem oscilando sobre os trilhos, descarrilando, e
me assusto ao me dar conta de que não se trata de uma sensação positiva.
Não quero ser beijada, ainda não estou pronta e queria bater em mim mesma
por ser tão patética.

Maurício, porém, não me beija — suspiro, aliviada. Ele para a


centímetros de mim, segurando a lapela do microfone para atrapalhar a
gravação da própria voz, e sussurra:
— Na terceira fileira atrás de nós, quinta poltrona da esquerda para a

direita.
Calebe.
Sei que é ele antes mesmo de olhar, pois estive a sua procura desde
que chegamos. Depois da nossa última conversa, imaginei que daria um jeito
de aparecer em todos os meus encontros — para atrapalhar ou para me
confundir, é uma incógnita.
Ele está com um boné vermelho que me impede de distinguir seu
rosto com clareza, mas é Calebe sem sombra de dúvidas. Meu corpo

reconhece o peso do seu olhar e a intensidade da sua presença como uma


extensão de mim, um misto confuso de saudade e decepção. E cansaço. Estou
cansada de me esforçar para esquecê-lo sem nunca chegar ao resultado
esperado.
— Que tal uma pequena vingança? — Maurício propõe no meu
ouvido. — Ele não traiu você? É a sua chance de dar o troco, pode me usar se
quiser.
Considero a oferta, porque é uma oferta e tanto. Calebe não merece a
minha compaixão e eu seria hipócrita se dissesse que nunca fantasiei com a

ideia de revidar na mesma moeda o sofrimento que me causou. Olho por


olho, dente por dente, chifre por chifre, o que mais eu poderia desejar na
vida?
Nada, mas…

— Não posso fazer isso — digo, dando um sorriso que não alcança
meus olhos e nem a minha alma. Viro-me para frente e encaro o imenso telão,
sem de fato enxergá-lo. — Quando flagrei Calebe com outra mulher, doeu
tanto que eu achei que fosse morrer. Nunca tinha sentido nada parecido com
aquilo, então só podia significar que eu estava infartando. Era uma dor física,
palpável. Fiquei parada durante uma hora inteira dentro do meu carro,
olhando para o nada, esperando alguma coisa acontecer. Eu queria acordar, e
queria não acordar também. Foi a pior sensação da minha vida e… —

Respiro fundo e olho para Maurício de soslaio. — Pode parecer burrice, mas
não quero causar a mesma dor em outra pessoa, mesmo que a pessoa em
questão seja Calebe Ventura e eu esteja me contradizendo, já que sinto
vontade de bater nele a cada cinco segundos. Faz algum sentido? Acho que
não.
— Você tem razão, parece burrice mesmo, mas só um pouquinho. —
Maurício segura minha mão, entrelaçando os dedos nos meus. — Você é uma
pessoa boa e eu admiro isso.
— Boa… — desdenho, balançando a cabeça negativamente. — Acho

que você quis dizer trouxa.


— Quase a mesma coisa. — Ele sorri, olha por cima do banco, na
direção de Calebe (luto contra a vontade de fazer o mesmo) e faz uma
expressão esquisita que dispara um alerta de "lá vem a merda" na minha

cabeça. — Não posso dizer o mesmo de mim e é por isso que a gente não vai
dar certo.
— Como assim? Está desistindo de ser o meu noivo ideal, Maurício?
— pergunto em tom de humor, mas desconfiada da mudança repentina em
sua postura. — Me dando um fora?
— Não, mas você vai me dar um fora depois que eu fizer isso…
Não consigo reagir a tempo, só assimilo a fala de Maurício quando já
o tenho sobre mim, perto demais para que eu possa fugir. Seu rosto se

aproxima depressa, nossas respirações se misturam e o balde de pipoca


despenca no chão. Eu arfo, surpresa e chocada, impregnada com o perfume
masculino que se agiganta em minhas narinas.
Maurício sorri, satisfeito, com metade do corpo atravessado entre
nossos assentos. Encosta a testa na minha e a ponta do seu nariz resvala na
ponta do meu, em uma sequência de encaixes caóticos que parecem não se
fundir como deveriam.
— O que você tá fazendo? — indago. Ele não avança, mas tampouco
se afasta. — Ficou maluco de vez, Maurício?

— De nada — diz, sem se mover, sorrindo maliciosamente. Não


esclarece a minha pergunta, não precisa.
Maurício não quer me beijar. Seu objetivo é provocar Calebe — na
visão dele, e da produção também, deve parecer que estamos nos beijando. Já

consigo até imaginar a cena editada no programa, com uma trilha sonora
brega e a voz de Miguel Castro ao fundo, narrando detalhes de um beijo que
nunca existiu. Se pegarem um pedaço do filme, com os zumbis devorando
mais um figurante qualquer, vai ser melhor ainda: a analogia entre beijar e
matar ilustra bem os meus sentimentos.
Pressiono o peito de Maurício para trás, afastando-o de mim
discretamente. Ele não demonstra resistência e volta para seu lugar. Depois
lido com ele e digo minha opinião — nada amigável — sobre colocar em

prática essa ideia sem cabimento! Minha preocupação agora é apenas uma:
Calebe.
Procuro por ele com o olhar, meu coração batendo a mil por hora.
Agora que a merda está feita, não adianta fingir que não me importo com
seus efeitos colaterais. Será que ele viu? Será que se importou, ao menos um
pouco? Será que odiou? Ficou com ciúmes? Sentiu raiva? Decepção? Será
que seu coração parou de bater assim como aconteceu comigo?
Será?
Não sei, e não tenho como saber, pois não há mais ninguém na

poltrona onde ele estava sentado antes. Calebe não se encontra em nenhum
lugar do cinema.
“Qual é a semelhança entre uma pessoa apaixonada e um zumbi? Simples:
ambos querem comer alguém.”

MAURÍCIO

Não é fácil ser eu.


Melhor dizendo: não é fácil ser um cretino. Ao contrário do que as
pessoas pensam, ser um cretino dá muito trabalho.
Felizmente, existem algumas regras básicas a serem seguidas que nos

ajudam a peregrinar por esse árduo caminho da sem-vergonhice:


Regra número um: escute o seu pau! Quando a cabeça não pensa, o
corpo padece (sim, o ditado sempre foi sobre a cabeça de baixo, só
esqueceram de avisar).
Regra número dois: tenha um automóvel foda, trate ele como um
filho e infle seu próprio ego fingindo que todas as mulheres se importam com
a merda que você dirige. Spoiler: a maioria delas não se importa.
Regra número três: nunca se apaixone! Cada vez que um cretino se
apaixona, um goblin safado morre em algum lugar do mundo.

E pronto!
Parece fácil, eu sei, mas as consequências de seguir tais regras
demoram a aparecer. Ninguém consegue uma fama ruim da noite para o dia,
é preciso muita falta de caráter, erros intencionais e tapas na cara — tapas

literais, como todo bom cretino merece!


Hoje, contudo, eu deveria ter ganhado mais um belo e estalado tapa
que não aconteceu. Maria Flor tinha todos os motivos do mundo para me
agredir por causa daquele beijo falso no meio do cinema, eu já estava até
pronto para receber um tabefe bem dado no meio da fuça, mas ela apenas
ficou lá, sentada, triste, desolada, olhando para o espaço vazio deixado pelo
covarde Calebe Ventura.
Agora, estou sendo obrigado a engolir minha hipocrisia com ferro e

fogo, puto das calças com um cara por fazer exatamente o tipo de coisa que
tenho feito (e me orgulhado de fazer) a vida inteira: ser a porra de um cretino.
Não pensei que Calebe fosse embora. Meu plano era executar o papel
ordinário no qual sou bom e deixá-lo com ciúmes. Todo mundo sabe que um
homem com ciúmes, por mais orgulhoso que seja, não consegue esconder
seus sentimentos por muito tempo. Na minha cabeça, sua ida ao cinema era
um indício de que estava disposto a lutar por ela.
Mas não, ele nem se importou. Não se deu ao trabalho de, sei lá, ficar
irritado comigo! Ele não a ama? Será que toda aquela história sobre tê-la

traído é mesmo verdadeira? Fui idiota em dar a ele um voto de confiança?


E o que me deu para querer ajudar os dois do nada? Eu tinha que me
preocupar em conquistar Maria Flor. Ela é o prêmio, eu vim para vencer!
— Crise existencial do caralho! — Saio do meu carro, um Porsche

Taycan Turbo S novíssimo, apelidado carinhosamente de Mister Phelps, em


homenagem ao meu ídolo olímpico, e bato a porta sem o zelo que meu filho
merece. — Merda!
A parca iluminação do estacionamento do hotel onde fomos jogamos
destaca um ou outro carro de luxo entre as sombras, mas não há uma alma
viva em qualquer canto — motivo que me manteve sentado no banco do
motorista por mais de uma hora após o encontro com Maria Florzinha,
pensando e repensando em tudo o que aconteceu no cinema.

Subo direto para o apartamento, um tanto impaciente com coisas


mínimas, como a velocidade do elevador, ou ter que cumprimentar cada
pessoa que cruza o meu caminho com um sorriso simpático. Tudo só piora
quando chego ao meu destino e dou de cara com três dos quatro marmanjos
com quem estou sendo obrigado a conviver: Leonardo, João Guilherme e
Bartô.
— Olha quem chegou — João Guilherme diz, debruçando-se sobre o
balcão da cozinha conjugada. Está ridículo em um avental cor-de-rosa
pequeno demais para seu corpo malhado, sem camisa e de cueca branca. Uma

visão do inferno, meus olhos sangram. — Como foi? Você demorou.


Há câmeras em todos os cantos, acopladas nas paredes e no teto,
filmando-nos o tempo todo. Não temos um segundo de privacidade nem para
cagar em paz. Não há câmeras no banheiro, mas morar com os quatro já é

invasivo o bastante. O espaço não é grande, então meio que não temos saída
além de nos aturar; nossos contratos proíbem tentativas de morte (eu
pesquisei).
Ignoro a pergunta do mister universo, bato a porta e olho ao redor,
procurando pelo alvo da minha irritação.
— Onde está Calebe? — pergunto.
— Quem se importa? — Leonardo diz de seu canto favorito da sala,
uma poltrona da qual se apossou e onde passa a maior parte do tempo com

um livro em mãos. Ele me irrita, um engomadinho metido a sabe tudo.


— Preciso esclarecer umas coisinhas com ele — digo, falando alto
para ver se Calebe escuta caso esteja em um dos quartos lá dentro.
— Ele saiu já faz algum tempo. Você pretende explicar o que
aconteceu ou vai continuar latindo como um pinscher raivoso sem sair do
lugar? — João Guilherme caminha até a geladeira e pesca uma garrafinha de
cerveja, depois a deixa em cima da ilha de mármore. — Isso aqui deve
ajudar.
Olhando com mais calma, percebo que estão todos bebendo, até o

doutor certinho, então me aproximo, abro a garrafa gelada com a mão mesmo
e tomo um gole demorado que limpa o sabor de pipoca e manteiga da minha
boca. Sento-me em uma das banquetas giratórias perto do balcão, sentindo os
olhares deles sobre mim — menos o de Bartolomeu, que não se esforça para

ser amigável.
Cinco homens com personalidades diferentes e motivações ainda mais
distintas jogados em uma arena com janelas panorâmicas, o que pode dar
errado? Cada um de nós tem sua própria justificativa sobre participar do
programa.
Leonardo é o único que realmente se importa com o casamento à
longo prazo, ele fala sobre o amor com um brilho nos olhos que nunca vou
entender, e talvez por isso eu o despreze tanto. Inveja? Não, prefiro chamar

de dor de cotovelo.
João Guilherme é um caso à parte. Posso dizer com propriedade que
não é um cretino, mas está bem longe de ser um príncipe encantado. Para
mim, não passa de um playboy podre de rico que caiu de paraquedas no
reality show mais popular do momento e age como uma criança perdida na
Disney — uma espécie perigosa em seu habitat natural que consegue tudo o
que deseja.
Tenho que ficar de olho nele.
Mas Bartolomeu é um mistério. Ele me dá arrepios. Os produtores

engoliram seu discurso pronto de homem dos sonhos, que não deseja nada
além de uma linda esposa, dois filhos e um cachorro, mas eu não! Suas ações
dizem o contrário das palavras decoradas, tenho a constante sensação de que
ele odeia estar aqui.

Bebo de novo e encaro os três, que continuam esperando por


respostas.
Vamos lá... para quem tá na merda um peido a mais não faz diferença.
— Ele me viu beijando a Maria Flor — conto, e bebo.
— Ele viu o quê? — Leonardo pergunta, soltando seu livro. Pelo
menos não o jogou na minha testa. — Você a beijou?
— Mais ou menos... — Como eu vou explicar? Não a beijei, mas é
isso o que todos pensarão quando assistirem a cena. Não posso desmentir,

não quero também. Eles que se fodam. — Isso não vem ao caso, o importante
é que Calebe estava no cinema e eu só fiz isso para ver como ele reagiria.
— E como ele reagiu? — João Guilherme cruza os braços enormes.
Ele não é alguém com quem eu gostaria de cair na porrada, e olha que eu sou
forte pra caramba.
— Foda-se como ele reagiu — Leonardo se inclina para frente com
cara de poucos amigos. Espero que ele não tenha um bisturi escondido nas
calças. — Como ela reagiu?
— Ficou em choque. — Esfrego a ponte entre meus olhos, sentindo

uma dorzinha aguda no fundo da testa. — E triste também. Ela tentou


disfarçar, começou a rir e me chamar de idiota, babaca e metralhadora de
bosta, o que eu achei muito pertinente e criativo. Mas Calebe se levantou e
foi embora, sem se importar se ela estava sendo beijada por outro homem.

— E o que você queria que ele fizesse? — Leonardo revira os olhos.


— Um escândalo? Os dois não são mais um casal, ele não tem o direito de se
intrometer e Maria Flor merece alguém bem melhor, alguém que a valorize e
não a troque pelo primeiro par de peitos que encontrar.
— Tipo você? — debocho. Esse cara se acha. Leonardo cerra os
dentes, mas não rebate. — Eu sei lá que porra Calebe fez, mas acho que
Maria Flor ainda gosta dele.
— Que fofinho. — João Guilherme caçoa de mim, afinando a voz

como uma mocinha. — E aí, ao invés de roubar ela para você, preferiu gastar
seu tempo cutucando o orgulho do Calebe. Qual foi? Desistiu de competir?
Jogou a toalha, senhor primeiro lugar em tudo?
Jogo mais um tanto de cerveja para dentro da garganta. Concordo
com João, não faz sentido. Entrei no programa determinado a ganhar a
qualquer custo, fazer a minha fama e ainda comer uma boceta, mas bastou
algumas horinhas de conversa com Maria Flor e toda a minha determinação
foi por água abaixo.
Não que eu não queira mais comê-la. Porra, eu quero muito!

Inclusive, quando me debrucei sobre ela e nossos narizes se tocaram, por


muito pouco não liguei o foda-se e experimentei sua boca de um jeito que os
editores do programa precisariam censurar se quisessem mostrar em horário
nobre.

Mas eu sabia que seria rejeitado, que o único capaz de colocar um


sorriso especial em seu rosto naquele momento seria Calebe. Estava escrito
nos olhos dela! E eu quis ver esse sorriso, mesmo que fosse pelas mãos dele.
Puta que pariu, alguém me dê um soco na cara agora, por favor.
— Nem tudo é competição — digo, contradizendo-me para não
admitir a verdade. Minha vida é competir (e vencer), todo mundo sabe disso.
Encaro o rótulo da garrafa para não enfrentar seus olhares afetados e
maliciosos.

— Não vai dizer que se apaixonou por ela. — João Guilherme se


volta para o cooktop e só então eu percebo que está cozinhando alguma coisa.
Há uma panela borbulhante sobre o fogo, ele ergue a tampa para provar um
molho esverdeado e denso que não pretendo experimentar nesta vida.
— Claro que não — afirmo com a resposta na ponta da língua, o
coração acelerado.
Era só o que me faltava. Eu, apaixonado? Não, não mesmo. A gente
mal se conhece. Não há nada de errado em querer que uma garota bonita e
legal como Maria Flor seja feliz. A única coisa que me fez considerar o

casamento foi a certeza muito conveniente de que a noiva seria como eu:
alguém que só quer se divertir e viver experiências novas, que aceitaria o
divórcio sem pensar duas vezes assim que o prazo estipulado pelo programa
chegasse ao fim. Em outras palavras, uma cretina.

Como eu ia adivinhar que pessoas sérias participavam por livre e


espontânea vontade de um show como esse? A conta não bate! Mas eis que
Maria Flor aparece e me prova o contrário. Ela não é do tipo que faz os
homens quererem se distanciar dela. Eu, pelo menos, não me sinto compelido
a querer. E isso é um problema.
Um problemão.
— Não sei não. — João Guilherme mexe o caldo gosmento e olha
sobre o ombro para mim, depois desvia sua atenção para Leonardo. — O que

você acha, Leo? Ele parece um homem apaixonado para você?


Os cantos da boca de Leonardo levantam em um sorriso passivo-
agressivo enervante. Bobo é quem acha esse médico malandro um cara
bonzinho. Ele se encosta confortavelmente na poltrona, cruza as pernas e
brinca com sua garrafa de cerveja já vazia, jogando-a de uma mão à outra.
— Acho que Calebe é nosso principal concorrente, e se Maurício
continuar fazendo caridade, não vai fazer diferença o que ele sente ou deixa
de sentir.
— Vocês são idiotas — diz uma quarta voz masculina.

Tinha até me esquecido que Bartolomeu estava presente. O esquisitão


de olhos claros bebe tranquilamente sua cerveja, vestido com uma camiseta
cinza e amarrotada, que passaria despercebida se não fosse o pequeno
emblema de um jogador de polo bordado no lado direito de seu peito. Para

um simples e humilde programador, como tenta transparecer, ele se veste


muito bem.
— Quer compartilhar o porquê de sermos idiotas? — Leonardo pede,
fazendo um movimento amplo com a mão para incluir todos nós em seu
pedido.
— Enquanto perdem tempo discutindo sobre a paixonite aguda de
Maurício, já pararam para pensar que Calebe não está aqui?
— Como assim? — pergunto, desconfortável, sem entender nada.

— Se Maria Flor é mesmo tudo isso o que estão dizendo, o fato de


Calebe não reagir no cinema não significa que ele não vai reagir nunca. —
Bartolomeu fica de pé e aponta a garrafa na minha direção. — Talvez você
tenha atingido o seu propósito de aproximar os dois, o que faz de você
duplamente idiota, e triplamente se estiver mesmo se apaixonando.
— Não é o caso — garanto sem a mesma convicção de antes. — E
Calebe não arriscaria sua permanência no programa quebrando o contrato
assim. Não podemos ver Maria Flor fora das gravações.
Uma das sobrancelhas de Bartolomeu forma um arco arrogante em

sua testa.
— Será que não?
Repenso a hipótese e me coloco no lugar de Calebe. Não é uma
possibilidade tão absurda assim. Parece-me, aliás, bem plausível que tenha

ido atrás dela e que estejam juntos agora mesmo, o que faz de mim um idiota,
como Bartô disse.
Isso deveria me deixar satisfeito, era o que eu queria, certo?
Mas não me sinto nada além de patético. Acabo de sacrificar a minha
permanência no programa só para fazer uma moça bonita feliz. A
Organização Mundial dos Cretinos sentiria vergonha de mim — se ela
existisse.
— Ele está um passo à frente e eu serei chutado na primeira

eliminação — resmungo, concordando com Bartolomeu (a que ponto


chegamos). — Parabéns para mim.
— Você não vai ser eliminado — Bartô garante, convicto.
— Por que acha isso? — É João Guilherme quem pergunta.
Bartolomeu caminha rumo ao corredor que leva para nossos quartos
individuais. Ele coça a barba e toma o restante de sua cerveja em um gole
demorado.
— Porque eu serei — diz em um tom baixo e frio, de costas para nós,
antes de desaparecer dentro do próprio quarto.

Como eu disse... esquisitão.


— Precisava desse espetáculo todo só para nos chamar de idiotas? —
Leonardo questiona, encarando o espaço vazio na poltrona, deixado por
Bartolomeu. — Isso fez alguma merda de sentido para vocês?

— É o que nós somos. — João Guilherme vai outra vez até a


geladeira e saca mais duas garrafas. Joga uma para Leonardo e abre a outra
para si mesmo. — Um brinde aos idiotas apaixonados.
Eles erguem suas garrafas para brindar.
Quanto mais eu penso, pior fica a situação. Pensar em Maria Flor e
Calebe só me trouxe desgosto até agora, e a última coisa de que preciso é
tentar entender as expectativas de Bartolomeu Leite no programa mais
vergonhoso e confuso inventado pelo homem — só pode ter sido um homem,

as mulheres são inteligentes e espertas demais para inventarem algo tão


ridículo.
Discordo mentalmente da parte “idiotas apaixonados” já que,
evidentemente, não estou apaixonado. Continuo confiante de que fiz a coisa
certa, mesmo que imaginá-los juntos, fazendo coisas que eu gostaria de ter
feito com ela quando a vi pela primeira vez, não me agrade nem um pouco.
Ergo minha garrafa, unindo-me a eles, e digo:
— E a um goblin safado que continua vivo em algum lugar do
mundo.
“O palco pode ser lindo, mas é nos bastidores de um espetáculo que a
verdadeira magia acontece. Por isso eu sempre digo: o que as câmeras não
mostram, o coração sente em dobro.”

MARIA FLOR

Eu só queria um dia de paz, mas fui nascer brasileira e não é bem


assim que a coisa funciona para o nosso lado.
Depois de uma longa e calorosa discussão com Maurício, na qual ele

se recusou a pedir desculpas e eu me recusei a admitir que lá no fundinho


gostei um pouco de seu feito, chegamos ao consenso de que não valia a pena
continuarmos brigando por algo que não tinha mais volta. Calebe viu nosso
falso beijo, e daí? O que eu tenho a ver? Ele não me ama mesmo, então não
faz sentido ficar preocupada com seus sentimentos.
Tenho que trabalhar o desapego na minha cabeça.
Viro de um lado para o outro na cama, sem conseguir pregar os olhos.
Já passa das três da manhã e continuo revivendo a cena na minha mente,
tentando imaginar a expressão daquela praga ao me ver com Maurício. Se ele

foi embora, é porque não queria me assistir trocando carícias com outro, ou
porque não se importa?
Argh! Que ódio!!!
Sai da minha mente, inferno!

Sinto falta de conversar com alguém. Não estou acostumada a ficar


sozinha. O problema é que meus ouvintes sempre foram a minha família e
Calebe, e não posso recorrer a nenhum deles no momento.
Ouço três batidas na porta do quarto e me sento no colchão com a
coluna bem ereta. Aguço os ouvidos para escutar melhor. Não faz sentido que
alguém tenha resolvido me fazer uma visita bem no meio da madrugada.
Todas as luzes estão apagadas, mas meus olhos já se ajustaram à escuridão,
então me levanto sorrateiramente e caminho até a entrada do apartamento.

As batidas se repetem mais alto e vejo a sombra de uma pessoa pela


fresta iluminada embaixo da porta. Pode ser alguém da produção que veio me
avisar algo urgente, ou um funcionário do hotel, mas em ambos os casos eles
teriam me ligado. Se fosse algo grave, como um incêndio, haveria pessoas
gritando e alarmes soando.
Então, só resta uma opção plausível: um assassino em série.
Assassinos em série batem na porta?
Procuro ao redor alguma coisa para me defender. Fico em dúvida
entre uma luminária de mesa e a estatueta de um cavalo empinando as patas

dianteiras. Como o cavalo parece mais resistente, agarro-o pela base e o


empunho na altura da minha cabeça.
Sempre me perguntei por que personagens em filmes de suspense e
terror nunca acendem as luzes da casa quando alguma coisa estranha

acontece, ou por qual motivo tomam decisões estúpidas, como abrir uma
porta no meio da madrugada, ao invés de procurar ajuda, e a resposta —
agora sei — é bem simples: preguiça, curiosidade, uma dose de "isso nunca
vai acontecer comigo" com um pouco de "vou pagar para ver".
Espio pelo olho-mágico no centro da porta, mas não vejo ninguém do
outro lado. As luzes do corredor estão acesas e não há sinal de vida à vista.
— Quem é? — pergunto, colando o ouvido na porta, mas ninguém
responde.

Uma pessoa com o mínimo de sensatez acionaria a recepção do hotel,


ou a polícia. Como eu pulei a fila da noção antes de nascer e fiz hora extra na
da estupidez, abro a porta lentamente.
A princípio, vejo apenas o papel de parede marfim do corredor, as
portas fechadas dos demais quartos e os pendentes de teto iluminando todo o
caminho até os elevadores. Ao colocar a cabeça para fora, no entanto, vejo
uma figura encolhida ao lado da minha porta, com a cabeça baixa e uma
garrafa quase vazia entre as pernas.
— Calebe? — chamo, reconhecendo-o de imediato.

Ele ergue o rosto ao som da minha voz. Seus olhos preguiçosos abrem
e fecham várias vezes, como se tentassem descobrir se o que estão vendo é
real. Jogado no chão assim, claramente embriagado, vestido com uma jaqueta
preta cheia de bolsos, calça jeans rasgada e coturnos nos pés, Calebe é o

estereótipo perfeito de um badboy fracassado.


— Malmequer — diz, enrolando a língua.
Não perco tempo ralhando sobre o apelido. Ele não vai me dar
ouvidos, ainda mais alcoolizado, e Calebe só me chama de Malmequer
quando está realmente aborrecido. Não entendo muito de botânica, mas acho
bonitinho seu empenho em pesquisar sobre plantas só por minha causa,
mesmo que, nesse caso, seja para demonstrar seu desagrado.
— Se você quer tanto assim ser eliminado do programa, era melhor

nem ter entrado. — Cruzo os braços enquanto ele se levanta, escorando na


parede. — Quando a produção ficar sabendo que veio até aqui no meio da
noite, eles não vão ficar nem um pouco felizes. Deve estar descumprindo
umas dez cláusulas do seu contrato.
— Vinte e uma — admite, sorrindo molemente. — Se você não
contar, eu não conto.
— E o que te faz pensar que eu não vou contar?
— Não contou sobre antes. — Ele tem um bom argumento. — E eu
conheço você, sei que não vai desperdiçar a chance de me eliminar do

programa na frente das câmeras. — Mais um bom argumento. Não teria graça
nenhuma.
— E como descobriu onde eu estava hospedada? — pergunto,
redirecionando o rumo da conversa para não ter que concordar com ele.

Calebe abre a boca para responder, mas repensa, ergue o indicador,


semicerrando os olhos, e recorre à sua garrafa — que, agora percebo, é vodca
pura — para ganhar tempo. Ele ingere uma golada generosa, o que me deixa
preocupada, pois não é de beber assim.
— Já falei, eu tenho contatos, Malmequer. — Ele tenta parecer
charmoso e importante, empina o nariz, sorrindo de lado, mas sua fala
enrolada não ajuda no personagem. — Será que a gente pode conversar?
— Calebe, você está bêbado, mas não é burro. É claro que a gente não

pode conversar, ainda mais agora.


— Por que não agora? — insiste, com as sobrancelhas caídas.
— Sabe que horas são?
— Umas dez da noite? — chuta sem muita convicção.
Deus, dai-me paciência.
— Quase três e meia da madrugada, Calebe. A gente deveria estar
dormindo agora.
Ele sorri.
— É um convite?

Fico tentada a atirar a estátua na cabeça dele para ver se volta ao


normal.
— Além de beber, está usando drogas também? É melhor você ir
embora logo, antes que alguém nos veja.

— Não vai me deixar entrar?


— Ouviu o que eu acabei de dizer?
— Você está linda hoje, sabia? — Ou ele não está prestando atenção
no que eu digo, ou está se fazendo de doido. Calebe dá um passo à frente,
mas trança as pernas e se agarra ao batente da porta para não cair. — Você é
linda. Não só hoje, é claro, você é linda todos os dias. A mulher mais linda
que existe. Eu não mereço você.
— Finalmente, concordamos em alguma coisa. — Por pena, ajudo-o a

se equilibrar, segurando seu cotovelo com a mão livre. — Mas não vai me
comprar com elogios.
— Não é um elogio — balbucia, indignado. — É um fato. O fogo
queima, os pássaros voam, o mundo gira, você é linda, enfim, um fato,
ciência pura, matemática, biologia, química. Eu adoro química, nós temos
química.
Não consigo me segurar e acabo rindo, mas disfarço encenando uma
crise de tosse. Assim como eu, Calebe também não é muito forte quando se
trata de bebidas alcoólicas.

— E você não está falando coisa com coisa, Calebe. — Olho para a
garrafa balançando em sua mão, o líquido aparentemente pela metade. —
Quanto você bebeu?
— Eu estou bem — murmura, enrolando a língua. — Não estou

bêbado — acrescenta, o próprio bêbado.


— E eu sou o coelhinho da páscoa.
— Eu amo a páscoa — cantarola, para o meu desespero. Daqui a
pouco alguém vai aparecer para reclamar do barulho e estaremos muito
encrencados. — E amo você de coelhinha.
Imediatamente, minha mente viaja para o dia em que fiz uma surpresa
nada convencional para ele, envolvendo uma fantasia de látex (que
encomendei na internet e demorou três meses para chegar). Calebe quase

morreu do coração quando apareci em seu escritório na academia, tranquei a


porta com a chave e abri o sobretudo que estava usando para esconder a
roupa indecente por baixo.
A princípio, ele ficou desnorteado pelo fato de eu ter atravessado a
cidade inteira vestida como a própria garota propaganda da Playboy, com
direito a orelhinhas de coelho e rabinho de pompom, mas bastou uma
voltinha de corpo inteiro para ele perder a fala e se dedicar ao que realmente
importava. E se tem uma coisa em que Calebe é bom, essa coisa é a sua
dedicação na cama — ou na mesa do escritório, no banco do carro, na areia

da praia, na barraca de acampamento, no banheiro da balada, enfim,


criatividade não falta.
Sinto um leve tremor nas pernas quando me lembro dos detalhes
sórdidos. Minha sorte é que Calebe está bêbado demais para perceber a

mudança explícita em minha respiração, a maneira descarada que meu peito


sobe e desce intensamente e como meus olhos são atraídos por seus lábios
tentadores.
Culpo a natureza humana por todos os meus pensamentos falhos. A
falta de sexo deve estar me subindo à cabeça. Não tem nada a ver com Calebe
e todas as suas qualidades físicas (que conheço por experiência própria). É só
a minha necessidade orgânica falando mais alto. Só isso. Nada demais.
— Calebe, o que você quer de mim? — Pulo de volta ao ponto.

Quanto mais tempo passo perto de Calebe, mais intensas ficam as minhas
chances de cometer um grande e irreversível erro de percurso: mirar no adeus
e acertar o bem-vindo de volta. — Você me conhece. Às vezes, me conhece
mais do que Alice ou meus pais. Sabe melhor do que ninguém que não vou
voltar atrás na minha decisão.
— Sim, eu sei, mas sinto a sua falta. — Procuro por alguma nota de
arrogância em seu tom de voz, ou do seu ego inflamado, mas Calebe não se
parece com nada além de miserável e é um pouco deprimente vê-lo assim. —
Não só do que a gente tinha como namorados. Sinto falta das coisas

pequenas, das coisas bobas, como brigar pelo controle da televisão, ou da sua
escova de dentes amarela ao lado da minha escova azul. De escutar você
cantando Skank e Charlie Brown Jr. no chuveiro, e de cheirar o seu cabelo
antes de dormir.

— Calebe…
— Você não sente saudade, Maria Flor? — sussurra. — Nem um
pouquinho?
Sinto?
Eu sei a resposta, mas não quero dizer. Não posso dizer. Casais que se
separam como nós, não podem ser amigos, podem? Deve existir alguma regra
moral que impeça tamanha humilhação.
— Não sinto nada Calebe.

— Mentirosa — rebate, tropeçando para o meio do corredor. Com


bastante dificuldade, ele se agacha e coloca a garrafa no chão, olhando-me de
baixo com a sombra de um sorriso nascendo em seu rosto.
— O que vai fazer? — pergunto, intrigada.
— Uma serenata — responde, oscilando para o lado direito. — Para
você admitir que sente a minha falta também.
— Você não é nem louco.
Ele é louco, sim!
Calebe enche os pulmões e eu vejo toda a minha vida passando na

frente dos olhos. É hoje que eu tenho um piripaque. Ele arreganha a boca em
um grande círculo e começa a berrar como se não houvesse amanhã:
— Diz que é verdaaaaade, que tem saudaaaaade…
— Calebe! — protesto, exasperada. — Pelo amor de Deus!

— Que ainda você peeeeensa muito em miiiiim…


— Para com isso agora, Calebe. Vai acordar o prédio inteiro!
— Mas pra que viver mentindooooo…
— A música nem é assim!
— Diz que é verdaaaaade…
Meus olhos quase saltam das órbitas à medida que o volume de sua
voz fica mais e mais intenso. Não tem como o vozeirão desafinado de Calebe
passar despercebido, e não quero ser a pessoa a explicar porque tem um

homem embriagado, cantando Chitãozinho e Xororó no auge da madrugada,


bem na frente do meu quarto.
— Você quer que a gente seja expulso do hotel? Fica quieto, peste!
— Eu preciso do seu beeeeijo…
Avanço sobre ele e tento, sem sucesso, tapar sua boca. Mesmo
trabalhado no álcool, Calebe continua sendo muito mais forte do que eu,
então se protege sem nenhuma dificuldade, segurando minha mão. Nos
embolamos em um embate constrangedor enquanto ele segue gritando-
cantando-me-matando-de-vergonha.

— Calebe! — rosno, inclinada em cima dele. — Eu vou matar você.


A cena toda é vergonhosa em níveis surreais, e estar vestida com meu
conjunto de pijamas favorito, com estampa lilás de oncinha, não aumenta em
nada o meu glamour, muito pelo contrário.

— Chega de mentiraaaaa, de negar o meu desejooooo…


No final do corredor, ouço o barulho do elevador subindo e meu
desespero atinge seu limite. Alguém deve ter denunciado a barulheira. Ou eu
nocauteio Calebe agora e deixo o corpo para trás como se não tivesse nada a
ver comigo, ou eu dou um jeito de esconder nós dois. Como fiz uma
promessa ao meu pai de não ser presa, só me resta escolher a segunda opção.
— Tá bom, Calebe! Você venceu, satisfeito? Agora para de cantar,
tem alguém vindo. — Desvencilho-me dele e indico a porta aberta do meu

quarto. — Entra logo, antes que a gente seja pego no flagra.


Calebe nem se dá ao trabalho de pensar duas vezes e, parecendo uma
criança feliz que acabou de ganhar um doce, avança para dentro do meu
quarto, em uma pose bem engraçada a julgar por seu estado e falta de
coordenação.
Quando o elevador emite o apito, anunciando sua chegada ao destino,
agarro a garrafa depressa e me jogo para dentro do quarto também, fechando
a porta o mais depressa — e silenciosamente — possível. Acendo a luz e por
pouco não tropeço em Calebe, que encontrou um lugar confortável sobre o

tapete ao lado da minha cama. Se fosse um cachorro, estaria abanando o rabo


com as orelhas empinadas.
Ele fica bem diferente do homem confiante e cheio de si quando está
bêbado. E, indo um pouco mais longe em minha sinceridade, mesmo sem o

efeito do álcool, até hoje Calebe só mostrou esse seu lado frágil e fofo para
mim — que eu saiba, claro, talvez a secretária conheça também. Eu não
ficaria surpresa.
Odeio ser levada a pensar nela o tempo todo, nas coisas que sabe ou
não sobre Calebe em comparação a mim.
— Qual é a do cavalo? — Calebe pergunta, encostando-se na lateral
da minha cama. Ele dobra um joelho e apoia o braço sobre ele, mantendo a
outra perna esticada em uma pose confortável.

Olho para as minhas mãos ocupadas, respectivamente, pela arma


improvisada (a estatueta de cavalo) e a garrafa de Calebe.
— Pensei que pudesse ser alguém perigoso, achei melhor me
precaver. — Descarto as duas peças sobre a cômoda. — Se eu soubesse que
era você, teria procurado por algo mais letal.
Calebe emite um sorriso nasalado e dobra o pescoço para trás,
apoiando a cabeça no colchão.
— Estava com saudades desse seu jeitinho — ele faz uma pausa e
sorri — carinhoso.

— Aposto que sim — desdenho, mais por costume (já que ele agora
ocupa a última posição na minha pirâmide de pessoas confiáveis), do que
para machucar seus sentimentos.
— Maria Flor, não precisa duvidar de tudo o que eu digo. Faz parecer

que tudo o que nós vivemos foi uma mentira. Além do mais, eu nunca…
Lá vem ele negar de novo.
— Não! — Eu o interrompo. — Nós não vamos conversar sobre isso,
Calebe. Eu deixei você entrar porque sou idiota e tenho um coração mole,
mas está proibido de falar sobre nós dois ou o fim do nosso relacionamento.
E muito menos sobre a sua habilidade de pular a cerca.
— Mas eu realmente não…
— Eu tenho um cavalo ao alcance das mãos e não tenho medo de

usar! — Aponto para a estatueta com um olhar ameaçador.


Contrariado, ele bufa e aponta o indicador para o meu nariz, abrindo e
fechando a boca diversas vezes até desistir e se jogar no tapete, todo largado
como se fosse o dono do chão, ruminando a vontade evidente de se defender
do indefensável.
Calebe retira suas botas, resmungando balbucios bêbados e me
fulminando com o olhar vez ou outra. Assisto ao seu malabarismo para retirar
a jaqueta com a coordenação motora comprometida, e sinto minha boca secar
quando o tecido de couro desliza por seus enormes braços que tantas vezes já

me prenderam junto ao seu corpo como nenhum outro homem foi capaz,
daquele jeito que faz uma pessoa se sentir parte da outra em todos os sentidos
da palavra.
Que Calebe é lindo não é novidade para ninguém, mas que eu ainda o

deseje tanto é uma certeza vergonhosa que jamais admitirei em voz alta.
— O que você pensa que está fazendo? — pergunto assim que seus
dedos tocam a borda da camisa. — Não permiti que ficasse pelado.
Sem se importar com o meu protesto, e com uma clara expressão de
desafio no rosto bonito como o inferno, Calebe puxa a camiseta por cima da
cabeça e a descarta no chão ao seu lado.
Ótimo, era mesmo tudo o que eu precisava: um tanquinho à vista para
provocar o meu ascendente em putaria.

— Medo de não resistir, Malmequer? Devo me preocupar em ser


atacado por você no meio da noite?
Recompondo-me, respondo:
— Ah, sim. Realmente vai ser difícil resistir à vontade de asfixiar
você com o travesseiro, mas eu prometo tentar.
— Adoro suas respostas afiadas. — Ele sorri, a vontade de usar
mesmo o travesseiro se tornando cada vez mais real. — Só preciso dormir um
pouco, e você sabe que eu não gosto de dormir de roupas. Não se preocupe, a
menos que me peça pelo contrário, as calças vão ficar exatamente onde estão.

Além disso, não consigo dormir direito desde que você foi embora, então me
deixe pelo menos aproveitar o momento.
Eu diria um belo "problema seu" para Calebe se não estivesse
sofrendo do mesmo mal há semanas. Guardo para mim a verdade (parece que

ainda me resta um pouco de orgulho) e me aproximo da cama. Pego um


travesseiro e um cobertor e jogo em cima dele, que resmunga um
agradecimento e se acomoda mais confortavelmente em seu canto.
Calebe dormindo no chão do meu quarto de hotel é a prova perfeita de
que o mundo dá muitas voltas, piruetas e saltos mortais.
Apago a luz, decidida a encerrar a noite sem mais nenhuma surpresa.
Ficar olhando para o corpo seminu de Calebe também não é a maneira mais
inteligente de evitar surpresas. Quem sabe eu não acorde de manhã e perceba

que tudo não passou de um sonho esquisito?


Pulo por cima de Calebe e me deito na borda do colchão, olhando
para aquele espaço escuro do chão onde ele repousa. Enquanto minha visão
não se ajusta ao breu noturno, consigo distinguir apenas seus olhos verde-
escuros cheios de carinho e alívio, que também estão fixos nos meus.
É como se alguém tivesse apertado um botão e pausado o universo, e
nesse curto espaço de tempo eu não precisasse sentir raiva dele. Amanhã é
outro dia e tudo voltará ao normal, mas agora eu me permito aproveitar o
conforto de sua companhia sem me importar com o que isso faz de mim.

— Calebe, o que aconteceu de verdade? — Mesmo sussurrando,


minha voz soa alta no silêncio da madrugada.
Suas pálpebras se fecham e abrem lentamente, e quanto mais eu me
acostumo com a escuridão, mais eu consigo distinguir seus traços robustos.

— Eu vi vocês dois no cinema — diz após longos minutos. Ele dobra


os braços atrás da cabeça e solta um suspiro cansado. — Não ia aguentar ficar
lá no outro apartamento, ouvindo-o se gabar por ter beijado você. Ainda
tenho um coração e meu sangue não é frio o suficiente para ouvir calado.
Então, ele acha mesmo que eu e Maurício nos beijamos.
— Se não quer me ver fazendo esse tipo de coisa, devia parar de me
seguir nos encontros.
Calebe aquiesce.

— Já entendi isso.
— Então, não vai mais me seguir?
— Não, é muito arriscado. Eu posso acabar fazendo uma besteira. —
Ele estica o braço e desliza a ponta dos dedos por uma mecha do meu cabelo.
— Mas, se alguma coisa acontecer e você precisar de mim, é só desbloquear
o meu número e me ligar, que eu vou correndo.
Movimento a cabeça minimamente para os lados, negando, mas não
tenho certeza se ele consegue ver, já que não diz mais nada sobre o assunto.
Talvez, daqui alguns anos, quando eu estiver casada e apaixonada

pelo meu marido, a gente consiga reatar a nossa amizade. Gosto de ter Calebe
como amigo, de conversar com ele sobre qualquer coisa, ou de apenas
compartilhar o silêncio. Mas, hoje, com todas as mágoas que ainda carrego
em meu coração, não sei se conseguiria engolir o meu orgulho e pedir a sua

ajuda.
A mão de Calebe sobe, hesitante, até o meu rosto, e a cada centímetro
que vasculha, ele faz uma pausa, testando minhas permissões. Suas digitais
raspam na superfície da minha pele, mapeando as minhas bochechas e o
formato do meu maxilar até chegar aos lábios. Faz sua pausa, esperando que
rejeite seu carinho, mas não o faço.
Finjo que seu sentimento não é uma farsa e me deixo levar pela pausa.
Escuto sua respiração, o único som que paira no ambiente. Não

consigo fazer o mesmo, o oxigênio estagnado em meus pulmões. Sequer sou


capaz de me mover, presa pelos grilhões de seu toque e da minha fraqueza.
As chances de eu me arrepender amanhã são de duzentos e um por cento e,
mesmo assim, vejo-me sem coragem de repelir Calebe como ele merece.
Ele desliza o polegar na minha boca, traça o desenho dos meus lábios,
colocando mais pressão em cada movimento. É muito sutil, mas noto o
ressentimento e a tristeza através do contato. Sem que precise admitir, leio as
entrelinhas de suas intenções e pensamentos, sentindo tudo como parte de
mim. Calebe está revivendo aquilo que pensa ter visto no cinema.

— A gente não se beijou de verdade — confesso, sei lá porquê. Se


estamos presos em nossa trégua temporal, então que eu possa errar sem
medo. Ele está bêbado, com sorte, não vai se lembrar de nada quando
acordar.

Calebe leva a mão à própria boca e beija os dedos que acabaram de


tocar meus lábios, beijando-me indiretamente. Ele não duvida e nem faz
perguntas sobre a minha afirmação, como qualquer pessoa em sã consciência
faria, somente exala uma longa respiração, livrando-se de um peso que eu já
senti um dia.
— Obrigado por me contar — murmura com a voz sonolenta de quem
precisa dormir para curar a embriaguez, mas não sem antes dar sua cartada
final e marcar um ponto sobre o meu coração. — Margarida.
“A vida de um noivo não é fácil, principalmente quando ele precisa competir
com outros quatro sujeitos incríveis pela mão de sua amada. O problema é
que, no final, apenas um será escolhido e aos outros restarão apenas seus
corações partidos. Em casos assim, mais do que saber perder, é preciso
saber ganhar... custe o que custar.”

CALEBE

— Amarelo ou branco?
Maria Flor segura um vestido em cada mão e os coloca na frente do

corpo, alternando-os para que eu possa examiná-los. Encaro as duas peças


como se fossem criaturas malignas com quatro braços, três pernas e cinco
olhos cada, porque é exatamente isso o que representam para mim: o mal em
seu estado mais bruto. Já a vi usando os dois e sei o quanto fica linda e
gostosa em ambos; inclusive, o amarelo foi um presente que eu dei a ela no
nosso último aniversário de namoro, mas duvido que se lembre desse detalhe.
Nós dois sabemos que ela não representa a parte com boa memória para datas
comemorativas, principalmente as que dizem respeito à nossa relação.
E, considerando o que ela acha que eu fiz, mesmo que se lembrasse,

faria questão de esquecer só para me martirizar.


— Quer que eu escolha a roupa que você vai usar em um encontro
com outro homem? Maria Flor, você já foi menos cruel.
Ela não se dá ao trabalho de parecer minimamente envergonhada.

Volta-se para o espelho fixado na porta do armário embutido e me encara


através do reflexo.
— Já mandei você embora mais de dez vezes, Calebe. — Foram
dezenove vezes e contando. — Se vai ficar aqui, então pelo menos faça
alguma coisa útil e me ajude a ficar linda. Por sua culpa, não consegui dormir
direito e agora tenho que ir à próxima gravação parecendo a noiva cadáver
depois de curtir uma rave. Se me lembro bem, você mesmo disse que me
queria feliz e casada com um bom marido. Agora é hora de fazer a sua parte.

— Primeiro: você precisaria fazer um grande esforço para não ficar


linda. — Sentado em uma poltrona perto da janela, espreguiço-me e desvio
os olhos para o céu nublado só para não ver sua reação ao meu elogio. Seu
alto índice de rancor acumulado a impede de receber qualquer coisa que eu
diga de forma positiva, e isso me dói um pouco. — Segundo: pare de
distorcer as minhas palavras em benefício próprio, eu nunca disse isso.
Apenas falei que não quero ver você casada com um babaca, o que inclui
noventa e nove vírgula nove por cento da população masculina do mundo. E
terceiro: se faz tanta questão, eu escolho o branco.

— Obrigada. — Ela guarda o vestido branco no armário (como eu já


esperava) e ignora todo o resto do que eu disse (como eu também já
esperava). — Vou com o amarelo.
Escondo meu sorriso com a mão e a assisto andar de um lado para o

outro no quarto, com uma toalha branca enrolada na cabeça. Maria Flor está
atrasada, para variar. Estranho seria se não estivesse. Se dependesse de mim,
Bartolomeu morreria esperando. Ela escolhe um par de sapatos e os deixa
perto da cama, sobre o tapete no qual eu dormi, e depois desaparece dentro
do banheiro, levando consigo o vestido e um lenço. Minutos mais tarde, ouço
o barulho do secador de cabelo.
Estar em um mesmo cômodo que ela, sem poder abraçar seu corpo
curvilíneo ou sentir a maciez de seus lábios, é uma tortura. Ouvir o barulho

da água corrente enquanto Maria Flor tomava banho foi o pior de todos os
castigos — a imaginação fértil de um homem não passa de uma maldição.
Em outros tempos, já teríamos nos embolado entre os lençóis, trocando
carícias e segredos com palavras ininteligíveis, e eu só a deixaria partir
depois que seu prazer transbordasse e se fundisse com o meu.
Porra, eu preciso dela desesperadamente! Não tinha ideia de que a
saudade podia ser sentida em escala física até ser privado do toque da minha
mulher e condenado a uma vida de bolas roxas vinte e quatro horas por dia.
Cruzo as pernas. Calma, amigão. Estamos meio fodidos aqui.

— O que está fazendo? — Maria Flor surge em meio à minha


distração, flagrando meu show de contorcionismo na poltrona em busca de
uma posição confortável que esconda o volume nas minhas calças.
— Coçando o… — Pensa rápido, Calebe. — Tornozelo. Acho que

um pernilongo me picou.
Maria Flor me analisa com a testa franzida, desconfiada, tentando
encontrar um significado oculto em minhas palavras, mas se dá por vencida
ao me ver, de fato, coçando — fingindo coçar — o maldito tornozelo.
— Tá bom... O que você acha? — Ela gira sobre os pés descalços, a
saia amarela e rodada flutua ao seu redor, revelando muito das pernas
atraentes e perfeitas para o meu completo desespero. — Ficou bom o
suficiente para aparecer na televisão? A produção disse que eu poderia

escolher as roupas dos encontros para ficar mais natural.


— Maravilhosa — digo, "coçando o tornozelo" de novo. — O que
surpreende um total de zero pessoas. Você é sempre maravilhosa, Violeta, e
gostosa, muito gostosa. Tem certeza de que quer ir mesmo nesse encontro?
Ela revira os olhos, mas suas narinas frementes entregam a risadinha
involuntária que luta para conter.
— Voltei a ser uma flor normal de repente? — Sentando-se na cama,
alcança as sandálias e as coloca nos pés. Seu cabelo volumoso, agora
adornado com o lenço, pende sobre os ombros desnudos, e eu aperto as mãos

em punho para resistir à vontade de tocá-los. — Ontem era só Malmequer


pra cá, Malmequer pra lá…
— Eu estava bêbado — justifico-me. — Não me lembro de metade
das coisas que fiz e disse antes de acordar sem camisa e com uma britadeira

no cérebro, ao lado da sua cama, com você adormecida e exposta como a


própria fruta proibida do Éden. Além do mais, eu estava puto. Não sabia que
o beijo era falso até você me contar, então, nada mais natural do que ativar
meu modo ranzinza.
Maria flor bate os dois pés já calçados no chão, erguendo-se com
certa elegância, e me fulmina com o olhar.
— Ah, não se lembra de me chamar de Malmequer e fazer um show
na minha porta, mas lembra que eu contei a verdade sobre o beijo? Que

embriaguez mais conveniente, não?


Perco momentaneamente a linha de raciocínio ao correr os olhos por
sua pose, as duas mãos pousadas na cintura fina e a postura toda eriçada
graças aos saltos baixos. Tudo nela é perfeito, mas o decote coração,
evidenciando as linha sinuosas de seus seios, merecia um prêmio. Maria Flor
estala os dedos para chamar a minha atenção, e eu limpo a garganta antes de
responder:
— Bem, se isso te deixa mais feliz, eu me lembro do show... —
Fragmentos da minha performance durante a madrugada voltam à minha

mente, mas nada sobre como eu vim parar dentro do apartamento dela. —
Parcialmente. Lembro da parte vergonhosa.
A expressão de Maria Flor vacila e ela se rende a uma risada singela.
É quase como na noite anterior, um suspiro em meio ao caos, quando beijei

seus dedos e imaginei que era a boca dela na minha, que a distância entre nós
não passava de um pesadelo e que a ponte que nos ligou um dia ainda estava
erguida, unindo nossas almas. Porque, porra, essa mulher é a minha alma
gêmea e eu fodi com tudo indo até aquele motel.
— A parte vergonhosa é suficiente — garante, o sorriso ainda
presente.
Quero dizer a ela que senti saudades de fazer piadas e rir por besteiras
ao seu lado, mas eu sei que estragaria o clima. Por outro lado, ficar em

silêncio só encurtaria nosso tempo juntos.


— Então, sobre o programa, já tem alguém em mente para eliminar?
— sondo, tentando não deixar o assunto morrer.
— Quem você acha, Calebe?
Tá, não foi uma pergunta inteligente.
— Exceto eu, espertinha.
— Por enquanto, acho que o Maurício — responde sem titubear, para
a minha alegria. Maurício Reis já me irritou o suficiente com aquela merda de
beijo, seja falso ou não. Duvido que não tenha cogitado beijar Maria Flor, e

apostaria a minha perna direita de que sua imaginação foi ainda mais além.
— Ele é um cara legal e divertido, mas não sei, falta alguma coisa. Acho que
não está levando muito a sério essa coisa de casamento. Ainda preciso
conhecer o número três e o número quatro para tomar uma decisão.

— É assim que nos classifica, como números?


— Não exatamente, a minha contagem vai de Um a Judas. — Ela vai
até uma cômoda alta ao lado da cama e remexe uma caixinha lotada com
pulseiras e brincos. — Se quiser me ajudar na eliminação com alguns
conselhos sobre seus adversários, sou toda ouvidos.
— Não conte comigo para ajudar aqueles quatro. Eles me odeiam.
Leonardo acha que vocês estão destinados a ficarem juntos e se comporta
como se já tivesse ganhado o programa. Maurício é um maldito pervertido.

Bartolomeu parece uma alma penada esperando o juízo final, ele é esquisito.
E João Guilherme é o típico empresário rico que faz o que quer, a hora que
quer, do jeito que quer. Estou sofrendo na mão deles, sabia?
— Tenho dó, mas nem ligo — ela cantarola, chacoalhando um
conjunto de pulseiras amarelas recém colocadas no pulso.
— Doce igual uma pimenta malagueta.
— O que vai fazer agora? — pergunta, mudando o rumo da conversa.
Apoia-se no móvel atrás dela, com os braços para trás, e fixa seu olhar em um
ponto vazio do chão.

— Como assim?
— Não pode ficar no meu apartamento para sempre. — Balança a
perna direita suavemente, acho que para disfarçar o nervosismo. — Tenho
um encontro marcado para dez minutos atrás e já deve haver um carro da

produção esperando por mim lá embaixo. Não podemos sair juntos.


Levanto-me com cautela e arrisco alguns passos lentos, testando o
quanto da minha proximidade ela consegue suportar sem querer arrancar
minha cabeça com uma faca de pão. Por sorte, chego perto o suficiente para
sentir seu aroma fresco que tanto amo, um perfume único de flores do campo
na primavera.
— Posso esperar você sair — sugiro contra a vontade.
Ela bate os cílios, encarando-me de baixo com muita prudência. Sua

língua passeia pelos lábios e me vejo fazendo o mesmo, meu corpo pedindo
secretamente pelo dela, em abstinência da sensação de tê-la nos braços, de
marcar cada centímetro de sua pele com beijos vorazes e mergulhar no ponto
mais profundo de seu corpo.
Instintivamente, diminuo mais um passo entre nós, clamando por
migalhas.
— Tá bom — ela diz sem nunca se afastar ou desviar os olhos. — O
plano é o seguinte: você fica com a chave, descansa um pouco e pede alguma
coisa para comer.

— Preocupada comigo, Violeta?


Ela nega, orgulhosa.
— Só não quero me sentir culpada por você desmaiar no meio da rua
ou coisa parecida. Estou surpresa que tenha conseguido acordar antes das

duas da tarde. Mas espero não encontrar nenhum rastro do seu traseiro aqui
quando eu voltar. Você pode deixar a chave na recepção antes de sair.
Estremeço com o balde de água fria, mas não desisto.
— Fica — peço, chutando meu ego ferido para escanteio. — Por
favor, Violeta, fica e me escuta. Eu não traí você, eu nunca trocaria você por
outra mulher.
Maria Flor suspira.
— Calebe, eu vi você. Quantas vezes terei que repetir isso? Ninguém

me contou, eu vi com esses dois olhos que um dia a terra há de comer. Vi


vocês juntos, rindo, dentro do seu carro, saindo da porra de um motel. Eu não
sou burra e se alguma parte do que vivemos tiver significado alguma coisa
para você, então eu peço que não tente me colocar nesse papel.
— Eu sei o que parece — insisto, o desespero emergindo em meu
peito. — Mas se me deixar explicar...
— Você teve bastante tempo para se explicar, não acha?
Corro as mãos nos cabelos, desesperando-me. Eu posso não ter outra
oportunidade como essa, por mais que as chances de ela aceitar me ouvir

sejam quase nulas.


— Eu sabia que não acreditaria em mim — assumo. — Se fosse o
contrário, eu dificilmente acreditaria em você se me contasse o que estou
prestes a contar. Fiquei com medo e achei melhor te dar um pouco de espaço

para se acalmar.
— E o que te faz pensar que agora eu vou acreditar? O que mudou,
Calebe?
— Digamos que você entrar em um programa de televisão para se
casar com outro cara me fez colocar os riscos de ser rejeitado em perspectiva.
Um longo e silencioso minuto se passa enquanto ela reflete sobre o
assunto. Escuto meus batimentos cardíacos descompassados no ouvido,
minhas mãos suando frio, a ressaca esquecida no churrasco.

— Plausível. — Ela desvia de mim e senta na borda do colchão,


pousa as duas mãos sobre os joelhos e, com a postura bem ereta, diz: —
Nesse caso, pode começar.
Espera, ela acabou de dizer o que eu acho que disse?
— Você vai me ouvir? — pergunto por garantia. Vai que estou
imaginando coisas.
— Não era isso o que queria?
— Sim, claro. Quer dizer... Sim. Deus, sim! Só não pensei que fosse
aceitar. Não me preparei adequadamente. Você não estava atrasada para o seu

encontro?
— Precisa de mais tempo para formular uma mentira convincente o
bastante? — ironiza com o típico sorriso "eu estou certa e você está errado".
— Já estou atrasada, vinte minutos a mais ou a menos não vão fazer

diferença.
Engulo em seco e volto para minha poltrona, a uns bons metros dela.
Toda segurança é pouco. Seria ótimo poder trocar de roupas. Ter uma
conversa que pode definir o nosso futuro, vestido com minha camisa
amassada cheirando a álcool vencido, não me dá muita credibilidade.
Pigarreio discretamente e me endireito, agarro com força os braços da
poltrona e faço uma prece silenciosa em busca das palavras certas, mas devo
ter jogado o Santo Antônio na cruz porque quando abro a boca, tudo o que sai

dela são as mais erradas possíveis.


— Minha secretária…
Maria Flor pestaneja e me interrompe:
— Zinha.
— O que?
— Secretariazinha — explica, sorrindo igual ao Pennywise. — É
assim que eu nomeio coisas que me irritam profundamente.
Despertadorzinho, camarãozinho, borboletazinha, secretariazinha,
traidorzinho.

Finjo não escutar a insinuação sarcástica direcionada a mim no final


da frase.
— Minha secretariazinha... — Contorço o rosto em uma careta. —
Isso não soa muito bem sendo dito por mim. Me faz parecer culpado e eu

literalmente só disse duas palavras.


Ela tamborila os dedos no colchão.
— Tente trocar o “minha” também. O pronome possessivo não está
ajudando. Diga “aquela secretariazinha”, de preferência com um tom de
desprezo.
Respiro fundo, ressuscito a minha paciência do além, e recomeço:
— A secretária da academia, que se chama Ana Júlia...
— Ela se chama Ana Júlia? — Maria Flor corta-me de novo,

gesticulando com os braços. — Deus, eu sabia que era Ana-alguma-coisa,


mas Ana Júlia? Eu devo ter feito um grande mal a alguma Ana Júlia
importante na minha vida passada.
— Qual o problema com o nome dela ser Ana Júlia? — pergunto,
apertando as pálpebras.
— Meu primeiro amor também me trocou por uma Ana Júlia.
Lembra? O garoto da cartinha?
Ah, sim…
Eu me lembro muito bem.

Quem me contou o caso foi Alice, sua irmã pentelha, quando eu e


Maria Flor estávamos no início do nosso namoro. Minha querida cunhada
disse que alguém havia enviado uma declaração anônima e estranha para
minha linda e amada namorada, só esqueceu de mencionar (propositalmente,

é claro) que isso aconteceu quando ela tinha dez anos, e eu passei quase um
mês inteiro com medo de que algum perseguidor a estivesse vigiando.
Quando criei coragem para perguntar — me segurei o máximo possível para
não parecer um namorado possessivo e ciumento demais — Maria Flor teve
uma crise de riso e me contou a verdade.
Ela e sua família têm um jeitinho bem peculiar de me deixar louco.
— Foi uma carta anônima, Maria Flor, não conta. E ele não trocou
você por ela, apenas errou as mochilas e colocou a declaração na sua por

engano. Como você pode ter amado alguém que nem conhecia tão depressa?
— Sim, foi o amor mais rápido da história, durou o tempo de eu abrir
a carta, ler a mensagem, amassar o papel e jogar no lixo. Ainda assim, foi um
amor. Não despreze o meu amor de quinze segundos, foi horrível e eu era
uma criança.
Descrente, encaro minha mulher e me pergunto se eu teria me
apaixonado tanto se soubesse que era doida varrida. E, bem, a quem estou
tentando enganar? A resposta é óbvia: claro que sim. É exatamente isso o que
mais amo nela, as divagações sem sentido, as interrupções intermináveis e

sua capacidade de amar em quinze segundos.


Calmamente, apoio os cotovelos nos joelhos e me inclino para frente.
— Você vai me deixar explicar, ou não?
Ela se recompõe.

— Sim, desculpe. Pode continuar.


— Certo. Onde estávamos? Ah, sim… A secretariazinha da academia
cujo nome não deve ser mencionado, estava de folga naquele dia.
— E você decidiu fazer o mesmo e tirar uma folga junto com ela.
— Eu desisto! — Jogo as mãos para o alto. — Desse jeito eu só vou
terminar de me explicar daqui cem anos!
Maria Flor torce os lábios. Guardar a língua dentro da boca é uma
habilidade que não faz parte de seu repertório. Eu sabia dos riscos quando

decidi lutar por ela. Só me resta continuar tentando na esperança de narrar


tudo antes de me tornar o próximo Matusalém.
— Como eu ia dizendo de novo — prossigo — ela estava de folga. Eu
fiquei preso na academia por causa da chuva e aproveitei para adiantar
algumas pendências, documentos, pagamentos, enfim, essas coisas
burocráticas. Nosso casamento estava se aproximando e eu queria deixar tudo
pronto no trabalho para aproveitar nossas férias o máximo possível. — Faço
uma pausa para dar a ela a chance de fazer outro comentário ácido, mas
Maria Flor somente me encara com o semblante desconfiado sem dizer nada.

— De repente, recebi uma ligação estranha no telefone do escritório.


Agora é a hora de tentar ser convincente. Ela tem que acreditar em
mim.
— Eu sei que parece mentira, mas a ligação era da secretária dizendo

que tinha esquecido a carteira na academia e precisava dela urgentemente.


Ela parecia muito desesperada, estava falando baixo e rápido, tudo me
pareceu muito suspeito. Como a chuva tinha diminuído, eu disse que estava
de saída e poderia levar para ela se quisesse.
Maria Flor fica de pé, suas expressões são indecifráveis. Ela caminha
pelo quarto de um lado a outro sem dizer uma palavra — o que não é um bom
sinal.
— Margarida, tente entender — imploro, levantando-me também.

Prefiro respeitar seu espaço e não me aproximar por enquanto, mas é difícil.
Não poder confortar sua agonia com um abraço me machuca por dentro. —
Eu não queria que tudo acabasse assim. Se arrependimento matasse, eu
estaria morto e enterrado.
Parando de súbito, ela encara o teto e balbucia algo que não consigo
entender, mas meu palpite é que se trate de uma maldição para mim. Deve
estar desejando que minhas bolas caiam ou que eu nunca mais consiga ter
uma ereção de respeito. Em seguida, olha-me com a cabeça em negação.
— Quer que eu acredite que você foi parar em um motel sem querer

com a sua secretária, e que nada aconteceu entre vocês dois? Calebe, eu não
tenho tempo para isso.
Ela pega a bolsa que estava sobre a cama e se adianta em direção à
saída. Eu corro para alcançá-la, seguro sua mão suavemente e a viro para

mim. Maria Flor se deixa levar pela minha condução e encosta na porta
levianamente, favorecendo-me com a bela visão de seu peito ofegante.
— Meu Lírio, eu soube que era um motel assim que recebi a
mensagem com o endereço. Mas eu não podia recusar logo após oferecer
ajuda.
— Claro. — Ela sorri sem alegria, a expressão escarnecida,
aproximando o rosto do meu com seu poder de sedução cruel. — Santo
Calebe, o bom. Tão bom que foi entregar a carteira da secretariazinha em

mãos, no quarto de motel dela, e aproveitou para ajudá-la com o banho. Você
tinha que ser canonizado.
— O quê? Não! Tive que entrar para entregar a carteira porque ela
não conseguiria sair sem pagar e…
— Já chega — pede, firme tal qual uma flor congelada. Não posso
queixar-me de seus olhos frígidos sendo eu o único responsável por nos atirar
no inverno. — Você tinha razão, eu não acredito. É a mentira mais deslavada
que alguém já me contou na vida.
— Não é mentira! — Seguro seu rosto com as duas mãos, desespero

líquido fluindo por minhas veias. — Eu sei muito bem que não parece, mas é
verdade, Girassol, por favor, acredite em mim. Não aconteceu nada entre nós,
só foi um terrível, terrível, terrível mal entendido.
Não sei dizer qual de nós se movimenta primeiro, mas em algum

momento nossas testas se encontram, os narizes se encaixam e a promessa de


um beijo paira no roçar de nossos lábios. Sinto seus seios espremidos contra
o meu peito, o corpo pequeno perfeitamente amparado pela minha
enormidade, e o oxigênio sendo compartilhado por nós dois na distância
quase inexistente entre a minha boca e a dela.
— Calebe… — Suspira, desenhando meu nome com dor e
necessidade.
— Eu amo você, Maria Flor — sussurro, ofegando, precisando,

clamando freneticamente. — Sou bom em muitas coisas, sei administrar o


meu trabalho e como fazer dinheiro com ele, consigo colocar em prática e
fazer funcionar qualquer projeto a longo prazo que você ou qualquer pessoa
me propuser, gosto de pensar que sou um cara bom, honesto e perseverante.
E sou péssimo em um milhão de outras coisas, sou um cantor de serenata
horrível e sei que meu ego precisa ser estudado, como você mesma diz. Mas
dentre todas as coisas boas e ruins que eu sei fazer, amar você é o meu
melhor talento. Como faço para acreditar em mim? Me peça qualquer coisa...
Mal termino de falar e minha voz é calada com um beijo. De novo,

sou incapaz de definir a quem pertence a iniciativa, talvez a ambos. Perco-me


dentro de sua boca, reencontrando a maciez dos lábios que tanto me fizeram
falta. Não consigo ser amável e calmo, estou sedento dela, faminto, desejoso,
e Maria Flor tampouco demonstra o contrário.

Beijamo-nos como dois desesperados, nossas línguas explorando uma


à outra, reencontrando as profundezas de sentimentos que estiveram
silenciados pela distância. Seu sabor é alimento para o meu desejo, não tento
mais disfarçar o volume doloroso estourando dentro do meu jeans apertado, e
a deixo senti-lo na base de sua barriga.
As mãos inquietas de Maria Flor vagueiam para a borda da minha
camisa e, quando suas unhas raspam na pele contraída do meu abdômen,
rosno de êxtase e prazer em sua boca. Tento, sem o sucesso esperado,

memorizar cada parte de seu corpo que meus dedos exploram, do pescoço às
clavículas, dos seios redondos e suaves à cintura sinuosa que se encaixa
perfeitamente em minhas palmas, dos quadris trêmulos à bunda gostosa
demais para minha saúde.
Eu a aperto, puxo-a para mim tanto quanto possível, e recebo a devida
recompensa a cada gemido que ela deixa escapar em meus lábios.
Nunca, nem em meus sonhos mais eróticos, cheguei perto de imaginar
como seria a sensação de tê-la outra vez. É a porcaria mais deliciosa e
indescritível que já experimentei, e quase faz valer a pena os dias, minutos e

segundos que estivemos longe.


Quase.
Conduzo seus braços para cima e ela prontamente os coloca ao redor
do meu pescoço, depois, com um impulso, ergo-a do chão e me encaixo entre

suas coxas, incentivando-a a se equilibrar com as pernas em minha cintura.


Vou ao delírio no momento em que nossos quadris roçam um no outro, meu
membro duro como uma maldita rocha pulsando naquele fino e insignificante
pedaço de pano que esconde o lugar que mais desejo possuir.
Como se lesse meus pensamentos, ela rebola e se contorce,
massageando minha ereção dolorosamente. Nossas bocas continuam
trabalhando sem descanso e não tenho como processar o que está
acontecendo na mesma velocidade das nossas ações.

Ela interrompe nossa sequência louca de beijos por um segundo para


retirar minha camisa e a jogar para longe, sem rumo, e tão logo eu fico
desnudo voltamos a nos beijar, insaciáveis, descontrolados, cobiçosos.
Amasso a carne de suas coxas, esfregando nossas intimidades para que sinta
o mesmo tesão insano que me deixa desnorteado. Como resposta ao estímulo,
minha florzinha crava suas unhas em minhas costas e ofega alto.
E é nesse instante que duas batidas irrompem pelo quarto.
— Maria Flor? — uma voz masculina chama do outro lado da porta.
— Você está aí dentro? Somos da produção.

Ela abre a boca, em choque, mas deixa escapar um gemido quando a


seguro com força, cessando abruptamente nossos movimentos.
— Está se sentindo bem? — insiste o pobre coitado cuja alma eu
mandaria para o inferno de bom grado.

— Merda... — Maria Flor sussurra, arregalando os olhos. — Merda,


merda, merda. Calebe, o que foi que eu fiz? O que a gente fez?
Coloco-a com cuidado no chão.
— Se pegou como se não houvesse amanhã — digo, falando baixo.
— Isso foi um erro! — diz, exasperada. Passa as mãos sobre a saia do
vestido para disfarçar os amarrotados (não funciona). — Não podia ter
acontecido.
— Maria Flor...

— Precisamos saber se está aí dentro, Maria Flor — diz outra voz,


dessa vez feminina. Ótimo, todos os empata-fodas do mundo trabalham na
produção, só pode! — Talvez seja melhor arrombar?
— Não! — Maria Flor grita, desnorteada, andando pelo quarto. —
Quer dizer, sim, eu estou aqui, está tudo bem. Não precisam arrombar a
porta.
— Certeza?
— Absoluta!
Ela corre para perto de mim e pergunta:

— Como eu estou?
Analiso-a dos pés à cabeça, desarrumada, ofegante e corada.
— Como alguém que estava prestes a ser muito bem fodida há dois
minutos.

— Estou falando sério, Calebe!


— Eu também! — Exaspero-me. — Você vai se encontrar com
Bartolomeu mesmo depois disso?
— Precisa se esconder. — Ela faz de conta que não me ouve. — Sua
camisa... — Roda pelo quarto até encontrar minha roupa no chão, perto da
cama, depois a atira na minha direção e me empurra para dentro do banheiro.
— Aqui, anda Calebe! Deixa de ser emocionado, homem. Foi só uma
recaída, um deslize, acontece nas melhores famílias. Não nos deixeis cair em

tentação, mas às vezes deixeis. Só que não vai se repetir e eu não acredito na
sua história com a zinha.
Ela só pode estar brincando.
— Então, vai fingir que não sentiu o mesmo que eu? Que isso não
significou nada?
Maria Flor tenta fechar a porta do banheiro, mas eu a seguro e, como
sou muito mais forte, ela rapidamente desiste de lutar.
Seus lábios estão inchados e lindos, o cabelo, todo bagunçado, e a
pele em suas clavículas ainda não voltou ao tom natural graças ao rubor da

excitação. Ela abre e fecha a boca inúmeras vezes, e só o fato de não negar as
minhas perguntas de imediato já me deixa mais do que satisfeito.
— Odiar você é cansativo, Calebe — declara quando reencontra a
própria voz, e seu tom aflito me faz recuar. Já a pressionei além do que

devia. — Não me dê mais motivos para isso.


Maria Flor bate a porta do banheiro. Segundos depois, escuto o
burburinho distante dos funcionários do programa conversando com ela, a
porta principal também faz um barulho alto ao ser fechada e fico quieto em
meu esconderijo improvisado até todos os sons externos desaparecerem,
indicando que minha rosa espinhenta se foi.
“É de conhecimento universal que um bom casamento precisa de uma base
resistente para enfrentar as adversidades de uma vida a dois. É como dizem:
a confiança edifica o amor... e tudo mais. Só que a fofoca, senhoras e
senhores, alimenta a alma! Ninguém tem o poder de adivinhar cem por cento
do que se passa na mente da pessoa ao lado, é verdade, mas as tentativas,
bem, elas nunca acabam.”

MARIA FLOR

Existem muitos tipos diferentes de pessoas burras no mundo: aquelas

que são só um pouquinho desprovidas de inteligência e não merecem ser


julgadas por isso, e também as que excedem os limites da normalidade
humana porque se recusam a enxergar um palmo na frente dos olhos — e
tudo bem julgar essas, são facilmente encontradas na política, por exemplo.
Existem pessoas que se fazem de idiotas, mas na verdade são as mais
espertas porque conseguem viver na paz do isolamento já que todo mundo as
evita, e aquelas que são idiotas de fato, mas se acham as espertalhonas do
rolê.
Existem as que são burras por serem estúpidas, ignorantes e sem

noção, e as que são simplesmente trouxas demais (uma variante bastante


comum inclusive).
Mas eu… Eu estou de parabéns! Atualizei todas as definições de
burrice com muito sucesso. Se alguém procurar pelo significado de "burra"

no dicionário, encontrará uma foto minha colada na frente. E não será uma
foto bonita! Vai ser uma daquelas três por quatro toda cagada.
Ainda não acredito que beijei Calebe.
Que nós quase… quase…
Meu Deus, a gente quase transou! Se não fossem os cinegrafistas do
programa, eu estaria no auge de uma recaída orgástica. E pior, sem nenhum
peso na consciência já que a vergonha na cara eu perdi faz tempo!
Em minha defesa, Calebe é um homem que beira ao irresistível, e

posso afirmar com toda a propriedade de alguém que já experimentou cada


uma de suas habilidades de sedução, que ele sabe como fazer o dever de casa
direitinho — minhas pernas bambas que o digam!
Mas não é porque Calebe possui um corpo super sentável, um beijo
matador de neurônios e uma pós-graduação em preliminares sexuais, que eu
posso usar isso para justificar as minhas fraquezas — independentemente do
quão tentador seja. Eu me deixei levar pelo momento e acabei sendo
arrastada por uma enxurrada de sentimentos nostálgicos que só me
confirmaram aquilo que eu já sabia: ainda gosto de Calebe Judas Ventura.

Como se não bastasse ser corna!


Até parece que vou acreditar naquela história barata sobre sua ida ao
motel para ajudar a pobre e inocente secretária. Em que planeta isso soa
acreditável? Pobre de mim, que fui traída e nem tenho o benefício de uma

confissão para poder odiar aquele safado com propriedade. O que ele pensa
que eu sou? Idiota?
— Eu gostaria de saber que tipo de crime a batata frita cometeu para
merecer tanto ódio.
Olho em direção a voz e me deparo com um homem bem vestido que
me observa de cima. Não o reconheço à princípio. Não é todo dia que
estranhos cheirando a notas de cem conversam comigo sobre a intensidade
com que destruo a minha comida. Mas basta um segundo olhar mais atento e

eu percebo de quem se trata.


— Deixe-me adivinhar — ele diz em tom formal, bem diferente da
vez que nos encontramos no estúdio. — Colocaram um tempero extra que
leva o nome do seu ex-noivo, e agora você está descontando as suas
frustrações na sua refeição enquanto imagina o rosto dele em cada palitinho
de batata.
Não sei o que me deixa mais surpresa: sua suposição estranhamente
específica, ou ele ter acertado em cheio.
— Bartolomeu, eu…

Ele ergue a mão.


— Só Bartô, por favor. — Puxando uma cadeira, senta-se de frente
para mim. — Eu me sinto um aposentado quando me chamam pelo nome
completo.

Paro de picar as minhas batatas-fritas como se fossem miniaturas de


Calebe e limpo minhas mãos engorduradas em um guardanapo de papel.
Bartolomeu não me poupa de seu sorriso presunçoso por me flagrar
em um momento particular de fúria. Agora que está mais próximo, noto que
existe um certo desleixo na maneira como se comporta, além dos cabelos
penteados de qualquer jeito (apesar de charmosos, fazem-no parecer menos
requintado) e da camisa vermelho-escuro cujos primeiros dois botões não
foram fechados adequadamente, imagino que de propósito.

Ele parece… diferente.


— Pensei que tivesse ido embora — digo, determinada a ignorar sua
associação astuta entre Calebe e a destruição que se tornou o meu almoço.
Quanto menos eu pensar em Calebe, menores serão as chances de
arruinar outro encontro por causa dele.
— Só porque você se atrasou… — Bartolomeu averigua o relógio em
seu pulso e eu me afundo na cadeira. — Uma hora e quarenta e dois minutos
para chegar?
— Eu tive uma noite complicada e acabei perdendo a hora —

justifico-me, o que não é uma mentira. Além de acordar tarde por não ter
dormido direito, e do meu deslize com Calebe, ainda tive o azar de ficar presa
em um engarrafamento.
O lado bom é que pude refazer toda a minha maquiagem para não

parecer uma mulher tão sexualmente frustrada. Arrepender-me de cair nos


encantos de Calebe não anula o tesão que ele despertou em mim, e por uma
ironia do destino, o maldito nasceu com um dom natural de trazer à tona os
meus pontos fracos mais devassos.
— Uma noite complicada — Bartolomeu repete a minha fala, com o
sorrisinho de lado intacto em seu rosto. — Não tem problema, eu ainda
estava passeando pelo shopping quando recebi a mensagem do produtor
avisando que vocês haviam chegado. — Ele vira o rosto para os lados,

vasculhando a praça de alimentação lotada. — Falando nisso, a equipe de


gravações não deveria estar com você?
— Eles acabaram de voltar para o carro. Disseram para avisar caso
você aparecesse. Acho que cansaram de esperar, ainda mais com todo aquele
equipamento pesado, e não tínhamos certeza se você estava por perto ou não.
Como eu disse, pensamos que já tinha ido embora.
— Devemos chamá-los? — questiona, apoiando-se na mesa com os
cotovelos. Algo em seu semblante deixa claro que prefere fazer o contrário
do que sua pergunta sugere.

— A não ser que você tenha um plano melhor em mente… — Deixo


a possibilidade no ar, não querendo me comprometer. Já quebrei regras
demais para um dia, é melhor não abusar da boa vontade do universo que
ainda não me deixou ser pega pelos produtores.

O rosto de Bartolomeu se ilumina inteiro, intrigando-me. Ele é um


homem misterioso, e eu não acho que se trate de um adjetivo muito vantajoso
aos olhos da comunidade masculina. Homens gostam de se gabar de outras
coisas, a maioria envolvendo seus atributos físicos e aptidões sexuais — e,
verdade seja dita, quase sempre baseadas em exageros e mentiras descaradas.
Mas, a meu ver, ser misterioso é uma grande vantagem.
Ele me instiga a querer descobrir mais sobre os seus segredos,
entender melhor quem de fato é o homem na minha frente. Basicamente,

mexe com a Maria Fofoqueira que habita em mim. Sem contar que é uma
ótima distração para a minha mente, que insiste em pensar em Calebe e seu
ótimo lábio.
Lábio? Eu quis dizer lábia!
No outro dia, quando tivemos nosso primeiro contato, Bartolomeu
disse muitas coisas sobre planos futuros envolvendo família e filhos. Pareceu-
me um homem sério com sonhos concretos e tradicionais que em nada
combinavam com os meus sonhos e planos — um detalhe curioso,
considerando que os pretendentes são escolhidos com base em algum

algoritmo de combinação que não entendo. Tudo o que eu descobri sobre ele
naquele dia envolvia as nossas diferenças. Mas agora, ele parece outra
pessoa.
Mais sagaz, cauteloso, esperto.

Alguém que talvez combine comigo mais do que...


Chega de pensar em Calebe!
— Eu tenho muitos planos em mente, Maria Flor.
— Por exemplo?
— Por exemplo — diz, levantando-se. Estende a mão para mim e faz
um sinal com os dedos, chamando-me para acompanhá-lo. — Fazermos o
nosso próprio encontro, sem ninguém para incomodar. Acho que temos
algum tempo antes que percebam o nosso sumiço e decidam nos procurar.

Hum… Outro quebrador de regras.


Não parece má ideia. Desaparecer e não me preocupar com o
programa é o que mais desejo no momento. Mas o que Bartolomeu tem a
ganhar me propondo algo assim?
Pensando bem, Calebe disse que Bartolomeu é suspeito. Eu devia ter
perguntado mais sobre isso. Suspeito como? Suspeito do tipo que toma banho
de chinelos, ou do tipo psicopata que esconde corpos no porta-malas do
carro?
— Não vamos para longe, se é com isso que está preocupada. —

Acertou de novo, miserável. — E não seremos pegos. Eu disse ao diretor que


demoraria a voltar.
Observo-o cautelosamente. É moda agora todos os homens pensarem
que podem me passar para trás? Eu sou trouxa, mas nem tanto.

— Se você já falou com a produção, então sabia que não estavam


comigo. Mentiu para eles, e mentiu para mim também quando perguntou por
eles. O que está tramando?
Bartolomeu recolhe a mão e a enfia no bolso da calça. Rugas
aparecem em sua testa franzida e seu semblante amigável fica inquieto.
— Fui descoberto. Erro meu. Não vou negar, eu já estava planejando
ficar sozinho com você em algum momento do nosso encontro, mas não
pensei que seria tão fácil. Seu atraso foi muito conveniente. Eu vi quando eles

se afastaram e aproveitei para me aproximar. Mais alguma pergunta?


Claro, por acaso você guarda corpos no porta-malas?
Não posso perguntar isso.
— Por que você quer ficar sozinho comigo?
Um grupo de crianças pequenas passa correndo ao redor da nossa
mesa e Bartolomeu as observa até se afastarem. As lojas estão cheias, e há
cada vez menos espaços vazios na praça à medida que as pessoas se
amontoam para almoçarem.
— Venha comigo e eu conto — propõe com toda a naturalidade do

mundo.
Ah, pronto.
Até parece que eu, Maria Flor, a esperta, vou cair em uma chantagem
dessas.

Não mesmo!
Diga que não, Maria Flor. Você consegue.
São só três letrinhas. Não se deixe levar pela curiosidade! Eu não
preciso disso, ainda tenho uma vida inteira pela frente. Já me basta ter
colocado Calebe para dentro do meu quarto, não posso cometer outro erro
equivocado por causa de um homem bonito — um homem muito bonito.
Eu consigo segurar o meu espírito aventureiro por um dia. Eu
consigo…

Eu consigo…
Eu con…
Continuo sendo burra mesmo!
Ele não sabe que a ansiedade é o mal do século?
— Para onde vamos? — sondo, fingindo-me de precavida.
Meu Deus, como eu sou fraca! Meu anjo da guarda merece um salário
extra e férias estendidas por dificultar tanto o seu trabalho.
— Para o nosso encontro — ele garante o óbvio, todo felizinho.
Calebe não mentiu, Bartolomeu é mesmo suspeito, mas ele tem o seu charme.

É bonito, muito gostoso, com certeza tem dinheiro e possui uma aura
enigmática que mexe com as minhas entranhas. — Não vai se arrepender, eu
prometo.

***

É oficial: eu perdi o controle da minha vida, se é que algum dia eu o


tive.
Bartolomeu não é muito falante, mas é um observador nato e ótimo
em convencer as pessoas — vulgo eu — em benefício próprio. Seus olhos de
águia não deixam escapar nenhum detalhe, sempre atentos aos nossos
arredores.

Nos primeiros dez minutos do nosso passeio sigiloso, no qual


deixamos o shopping para trás e seguimos pelas ruas centrais da capital,
tentei de todas as formas arrancar dele alguma informação sobre seus planos,
mas acabei me rendendo ao silêncio junto com ele depois de falhar
miseravelmente. Não estou acostumada com pessoas silenciosas e reservadas.
Privacidade é um conceito abstrato na minha família e eu quase não me
lembro como era a vida antes de Calebe, que nunca se cansa da própria voz.
Mas a quietude de Bartolomeu não me incomoda. Quanto mais o
tempo passa, mais eu me sinto desprendida da realidade, como se sua

companhia me amparasse. Seu autocontrole e a força de sua presença são tão


grandes que tranquilizam a minha personalidade desregrada.
Ele não tem a serenidade de Leonardo ou o atrevimento de Maurício,
mas a confiança que deposita em cada um de seus trejeitos o coloca no

mesmo patamar de intimidade que os dois. Ou, talvez, eu esteja ficando mais
louca e vendo coisa onde não tem, analisando mais do que deveria e criando
teorias da conspiração sem cabimento sobre homens que não conheço.
Acho que Calebe me deixou neurótica.
— Não precisa ficar tão tensa, não vamos demorar para voltar — ele
diz, indicando o caminho rumo a um edifício luxuoso não muito distante, e
confirmando que existe mesmo um destino final.
— Você está bem calmo para alguém que pode ser expulso do

programa por sequestrar a noiva.


— Que eu me lembre, você aceitou me acompanhar por conta própria,
então não se configura como um sequestro. Você é, no mínimo, uma
cúmplice de fuga.
— Não é o que eu direi se formos pegos — resmungo quase de
brincadeira.
As ruas estão lotadas e há muitas pessoas entrando e saindo de lojas e
restaurantes. Aproximo-me de Bartolomeu para não o perder de vista e
percebo que ele faz o mesmo, mas com o adicional de passar o braço sobre

meus ombros. Não me afasto e nem recuso seu toque, também não perco meu
tempo tentando entender que bicho me mordeu para jogar minha sorte toda
de uma vez ao vento, no mesmo dia.
Ao me encostar em seu corpo, sinto melhor as protuberâncias dos

músculos escondidos por baixo da camisa. Bartolomeu é mais forte do que


parece à primeira vista, o típico magro sarado que nunca decepciona.
— Encontrou alguma coisa do seu agrado? — pergunta com um
timbre bem-humorado, fazendo-me perceber que estou apalpando seu peitoral
em público.
Recolho a mão depressa.
— Tinha um inseto na sua roupa — minto, o rosto em chamas.
Sinto a vibração do seu riso contra a minha bochecha e me deixo

conduzir para dentro do prédio elegante. Pergunto-me se ele mora aqui. Há


um alerta distante ecoando no fundo do meu cérebro sobre a possibilidade (e
riscos) de ficar sozinha com Bartolomeu, mas como cativeiros normalmente
não ficam em apartamentos de luxo, faço o que qualquer pessoa normal não
faria: ignoro e sigo em frente.
Ainda bem que Calebe não me seguiu desta vez. Consigo imaginá-lo
tendo um ataque dos nervos e me perguntando se não tenho amor à minha
vida por me arriscar assim, sozinha com um desconhecido pra lá de suspeito.
— Já pode dizer onde estamos ou ainda não posso saber? — pergunto

assim que entramos no elevador.


Bartolomeu pressiona o botão do último andar com a mão livre e saca
um molho de chaves do bolso, girando-o no dedo indicador com agilidade ao
mesmo tempo em que começamos a subir. Abraçados neste espaço apertado e

vazio, parecemos um casal de verdade, e a nossa imagem no reflexo do


espelho que reveste um lado inteiro do elevador, não é nada ruim.
— Minha casa. — É tudo o que diz.
— Você é sempre tão comunicativo assim? — ironizo, sorrindo. Já
esperava por uma resposta econômica. Ele é previsível nesse quesito. —
Meus ouvidos estão doendo.
Bartolomeu inclina o rosto para baixo e nossos olhares se encontram
— o dele, noto com uma admiração renovada, em um tom azul-esverdeado

hipnotizante que não se compara a nada que eu já tenha visto antes. Ele me
devolve o sorriso, respondendo minha provocação com um silencioso carinho
no ombro.
Finalmente chegamos no ponto mais alto do prédio e não é preciso ser
um gênio para entender que Bartolomeu é mais do que ele diz ser. Entro
timidamente em seu apartamento, fingindo costume sobre a grandeza do
lugar, e Bartolomeu me solta para fechar a porta atrás de nós. Parece um
cenário de novela, com grandes janelas panorâmicas e móveis
monocromáticos. Ele tem um lustre no meio da sala de estar! Se existe coisa

mais chique, eu desconheço.


— Não precisa ficar parada, pode se sentar onde quiser. Vou buscar
alguma coisa para bebermos. O que você prefere? Um suco, refrigerante, ou
alguma coisa mais forte, como um vinho ou licor?

— Nada de álcool. Vamos evitar catástrofes naturais a esta altura do


campeonato. Eu estou bem, mas se tiver um café, eu aceito.
— Café? — Em um tom cético, ele parece achar graça do meu
pedido.
— Eu sei. — Reviro os olhos, rindo da minha falta de sensatez. —
Você está pensando: quem bebe café depois de uma rodada de fritas no meio
da tarde? Sim, eu mesma. A cafeína acalma os meus nervos.
— O que eu estava pensando de verdade — diz, afastando-se — é que

você se parece com uma pessoa que eu conheço, só isso.


— Ah, é? Quem?
Bartolomeu, para variar, não responde. Ele desaparece por um
corredor e eu continuo parada por alguns minutos, com medo de esbarrar em
alguma coisa ou sujar o sofá extremamente branco. Assim como ele, seu lar
também é quieto e ordeiro, sem qualquer barulho externo da cidade grande, e
eu meio que me sinto deslocada.
Sento-me com cuidado em uma poltrona perto das janelas. Não muito
depois, Bartolomeu reaparece com um conjunto de xícaras e bule

equilibrados sobre uma bandeja, coloca tudo em uma mesinha próxima e me


entrega uma xícara fumegante.
O olho por cima da minha bebida enquanto a assopro.
— Por acaso, você não colocou nada aqui dentro, colocou? —

questiono, meio de brincadeira, meio falando sério. — Porque, se sim, eu


serei obrigada a chutar você.
— Acha que eu contaria se tivesse colocado? — Ele se afasta,
balançando a cabeça negativamente. — Mas sinto decepcionar, eu não sou
um criminoso.
— Um criminoso jamais se assumiria criminoso também — observo.
Bartolomeu abre a boca para retrucar, mas ela se transforma em um
sorriso.

— Você tem razão.


— Eu sei que tenho, mas ainda assim vou correr o risco.
Seus olhos desafiadores nunca me abandonam enquanto bebo minha
xícara de café, divertindo-se com nosso jogo de brincadeiras e provocações.
Quem diria que o taciturno Bartolomeu teria um senso de humor tão peculiar.
Após o segundo gole, aceito que estou sendo louca em desconfiar dele
só por causa das impressões de Calebe, que nem moral tem para julgar
alguém.
— Então — digo, tomando a dianteira da conversa — correndo um

grande risco de ser ignorada novamente, por que me trouxe aqui, Bartô?
Fiquei sabendo que vocês, os noivos, foram acomodados em um apartamento
do programa, então você não deveria voltar para casa no meio da temporada.
— Nem me lembre. — Ele estremece, afastando-se até uma poltrona

distante. — Está sendo a pior experiência da minha vida. É tipo uma


república masculina, mas sem a parte divertida das festas e do sexo. Sobre
voltar para casa, eles não têm como saber o que fazemos fora do apartamento.
Temos só que passar a noite e cumprir uma determinada carga de horas lá
dentro, e somos informados sempre que precisam de algum material
específico, mas estamos livres para seguir com nossas vidas pelo restante do
tempo.
— Que oportuno para você que mora na cidade. — Cruzo as pernas,

acomodando-me mais confortavelmente. — E que tipo de material específico


seria esse?
— Tipo conversamos uns com os outros sobre o nosso suposto futuro
com você, mas de um jeito natural. Eles mandam cerveja e a gente finge que
se suporta. É uma droga.
Tento imaginar os cinco reunidos e comportados em uma sala, mas
ela logo se transforma em uma arena com direito a espadas e leões — algo
bem mais próximo da realidade do que a primeira opção.
— Deve ser interessante — digo, minha voz soando esganiçada. —

Calebe disse que conversavam sobre mim, mas não pensei que fossem
obrigados a falar. Analisando agora, me parece uma situação bem estranha e
desconfortável.
— Para ele, com certeza. — Bartolomeu estica o braço e pega um

copo da bandeja que certamente não contém cafeína. Não o havia notado
ainda. — Já que continua apaixonado por você e se comporta como um
cachorro protegendo o osso sempre que falamos qualquer coisa mais ousada a
seu respeito.
Ele bebe devagar, com charme. Emoldurado pelo belíssimo cenário
dispendioso que é sua residência, ocorre-me que Bartolomeu combina com
ambiente como se fosse parte dele. Sua afirmação, no entanto, não é nada
agradável de escutar.

— Ele é um pouco impulsivo — ouço-me dizer, e não gosto de como


parece uma defesa. Não tenho motivos para proteger Calebe da inimizade
alheia.
— Maurício contou sobre o que aconteceu no cinema. Seguir você
nos encontros não foi uma ideia inteligente. Já fizeram as pazes?
— Claro que não, ele é um… — Fecho a minha boca. Por que diabos
estou prestando contas à Bartolomeu? Se eu contar a verdade, estarei
confirmando que eu e Calebe não só nos encontramos ontem, como passamos
a noite juntos.

— Calebe não voltou para casa — ele diz, lendo através dos meus
pensamentos —, e coincidentemente não apareceu para bisbilhotar o nosso
encontro, como fez com os dois primeiros. Como foi, vocês dormiram
juntos?

Devolvo a xícara para a bandeja.


— Foi para isso que me chamou? Conseguir informações contra
mim? Vai me chantagear?
— Eu já disse que não sou um criminoso.
— E está cada vez mais difícil de acreditar. Por que não vai direto ao
ponto? Se não tem nada a dizer, é melhor eu ir embora.
— Você pode ir se quiser — ele me provoca, olhando em direção à
saída. — Não vou te impedir.

Já vi essa cena antes, em um filme. Assim que a mocinha saía


correndo, era puxada pelo tornozelo e dava de cara com o chão. Não sei se
vale a pena correr o risco de ficar sem os dentes. Ou, sei lá, sem a vida!
— Mas — continua, ante o meu torpor, bebendo tranquilamente de
seu copo —, seria um desperdício. Tenho um favor para te pedir, mas antes,
preciso que conheça alguém. É mais fácil mostrar do que explicar.
Sinto minha boca secar.
Acho que consigo lidar com Bartolomeu sozinha, mas duas pessoas é
impossível. Aquelas aulas de defesa pessoal que Calebe insistia tanto para

que eu fizesse, e que eu sempre recusei por pura teimosia e preguiça, cairiam
muito bem agora.
— Quanto mais você fala, mais suspeito você parece. — Decido ser
franca, despejando tudo em um único fôlego. — Não me leve a mal, mas

estamos sozinhos. Você me abordou às escondidas e me convenceu a


acompanhar você rumo a um destino desconhecido…
— O que faz de você uma pessoa ingênua, influenciável e sem
nenhum instinto de autopreservação — ele completa, interrompendo-me.
— Agora — prossigo, sem lhe dar os devidos créditos por estar certo
— fica falando em códigos como se fosse a esfinge do deserto. E ainda
decidiu, unilateralmente, me apresentar a um estranho que pode muito bem
ser o cara que vai desovar o meu corpo em uma viela. Então é melhor você

abrir o bico de uma vez ou nós teremos sérios problemas.


Levanto-me, pronta para sair correndo se necessário. Bartolomeu,
porém, joga a cabeça para trás e gargalha como se não houvesse amanhã.
— Você é interessante, Maria Flor. Realmente interessante. — Ele
abandona seu copo já vazio sobre a mesa, inclina-se para frente e une as mãos
em uma pose inocente, controlando o riso. — Se faz tanta questão, vou dizer
o que desejo de você. Em troca… — Ele também fica de pé e olha no fundo
dos meus olhos, construindo uma espécie de conexão entre nós. Seguro o
meu fôlego, com medo de perder alguma coisa de sua fala. — Tem que

confiar em mim.
— Confiar em você? — Agora é minha vez de gargalhar. Eu admito:
estou gostando da maneira como ele está lidando com as minhas neuras. —
Não confio nem em mim que sou doida, Bartô. Eu posso, no máximo, tentar

acreditar em você e parar com as teorias da conspiração um pouco. — Decido


pegar mais leve com ele e, para descontrair, acrescento: — Mentir também é
uma opção, se quiser, posso dizer que confio cem por cento em você e a
gente continua a partir daqui.
— Não precisa. — Ele volta a sorrir. O clima se abranda. — Você só
não pode contar a ninguém o que eu vou te pedir.
— Se demorar mais um pouco eu juro que vou morrer de curiosidade.
Literalmente, tipo, cair mortinha no chão.

Bartolomeu respira fundo.


— No final de todos os encontros — diz seriamente, sua voz
despencando para uma escala densa e grave — preciso que me elimine do
programa.
“Em caso de emergência, ligue para... a pessoa que você mais odeia.”

MARIA FLOR

Procuro no teto, nos cantos das paredes e entre os vasos de plantas,


mas não encontro nenhuma câmera. Pensei, a princípio, que se tratasse de
uma pegadinha da produção, mas Bartolomeu não demonstra nenhum sinal
de estar blefando.
— Não posso, já tenho alguém em mente para eliminar — digo

sucintamente.
— Quem? Calebe? — Bartolomeu bufa, soltando um riso nasal
incrédulo. — Maria Flor, pare de se enganar. Você sabe que não quer
eliminá-lo agora.
— Claro que eu quero — protesto, e tenho que admitir, minha voz
não soa nem um pouco convincente, então acrescento, colocando mais
ênfase: — Me livrar de Calebe é a minha prioridade. Sinto muito, não posso
eliminar você agora. — Cruzo os braços sob o peito. — Afinal, por que quer
ser eliminado? Por acaso também se inscreveu em um momento de surto

alcoólico e se arrependeu? Aquela história pronta de homem de família era


mentira?
— É complicado — ele se esquiva, apertando os olhos.
— Não posso dispensá-lo ainda. Não pense que é pessoal, mas deixar

Calebe na competição seria o mesmo que pular de um avião sem paraquedas.


É um caso de vida ou morte, preciso colocar a maior distância possível entre
nós dois o quanto antes.
— Morte de quem? Sua ou dele?
— Da minha dignidade. — Resgato minha xícara, enchendo-a com o
café do bule, e me coloco a caminhar pela grande sala de estar. — Uma
questão de honra. Descobri que não sou tão forte quanto gostaria — confesso.
— E para encontrar um novo amor eu preciso que o meu velho amor pare de

aparecer na minha frente tentando me convencer de que ele não é um canalha,


porque as chances de eu acabar acreditando são bem altas.
— E por que você não quer acreditar?
Bartolomeu me acompanha com os olhos, e eu procuro não o encarar
demais, fingindo um interesse repentino em uma pintura geométrica
pendurada na parede. O jeito como me observa é intimidador, quase
indiscreto. Íntimo. Ele é um homem provocante, enigmático, envolvente, e
não sei até que ponto essas suas características são intencionais. Ele pode ser
bom demais para ser verdade, ou o meu futuro marido. Tudo é possível.

— Porque ele é um canalha — digo, seguindo minha cruzada até


outro quadro estranho com a mesma escala de preto, branco e cinza. Estou
cansada de repetir o tempo todo como o caráter de Calebe é questionável. —
E eu decidi seguir em frente. Eu e Calebe já tivemos a nossa chance, e não

deu certo.
— Qual parte não deu certo?
Olho para trás, cética. Ele não sabe ou está se fazendo de sonso?
— A parte da fidelidade?
— Tirando essa parte. — Bartolomeu torce o nariz, desdenhando da
seriedade do meu problema. — O que mais não deu certo na relação de
vocês?
Quem ele pensa que é? Um psicólogo?

Queria ter uma resposta na ponta da língua, mas não é o caso.


Havia algumas coisas em que eu e Calebe discordávamos às vezes:
ele dizia que filmes dos anos sessenta eram pré-históricos demais para o seu
gosto "refinado do século vinte e um", mas nunca recusou uma sessão de O
Bebê de Rosemary ao meu lado; ele tinha uma mania irritante de sempre dizer
"eu avisei" quando eu fazia alguma besteira da qual já havia me alertado
antes, mas era o primeiro a buscar uma solução. Calebe gostava de ser o meu
herói, mas não hesitava em se transformar no pior vilão se fosse para me
defender, mesmo sabendo que eu era capaz de fazer isso sozinha.

A verdade é que a gente dava certo demais, até nas coisas em que não
deveríamos, e agora eu não sei se estou gostando de dar certo sem ninguém.
Sem ele.
— Não importa — digo, e dessa vez não há hesitação em minha voz.

— Tenho que me concentrar no programa e a presença de Calebe é um


estorvo.
— E tudo bem para você se casar com alguém que não ama?
Paro na entrada do corredor pelo qual ele passou antes e vejo ao
menos quatro portas, além de uma bifurcação no fim. Como alguém consegue
viver sozinho em um apartamento desse tamanho? Parece tão solitário.
— Eu me apaixonei uma vez, posso me apaixonar de novo, por outra
pessoa. — Termino minha exploração e volto para perto dele, sentindo-me

repentinamente cansada. — Talvez, por você.


Ele ri, negando, mas não me passa despercebido a maneira como seu
olhar percorre meu rosto e se fixa na minha boca enquanto a levo até a xícara.
— Duvido muito — sussurra.
— Por que não? — retruco no mesmo tom, mas Bartolomeu crispa os
lábios, deixando claro que não pretende responder, então retorno ao assunto
principal, assumindo que seja o motivo de sua recusa. — Eu sei que Calebe
anda dizendo por aí que não me traiu, mas é mentira. Uma mentira bem ruim,
se quer saber.

Encaro o líquido preto dentro da xícara e percebo a sombra de


Bartolomeu sobre mim, incentivando-me. Seu reflexo tremula na superfície
lisa do café.
— Mas, antes de Calebe, eu pensava no amor como um grande

exagero da humanidade, um surto coletivo milenar. Não parece um


sentimento perverso? Fazer a gente se apegar tanto a outra pessoa a ponto de
esquecermos como é ser feliz sem ela?
— Não culpe o amor — ele me repreende, mas seu tom é gentil. O
calor de seu polegar desliza em minha maçã do rosto. — Nós é que somos
perversos demais para um sentimento tão puro.
Suas palavras dançam dentro de mim e se espalham pelo meu corpo a
caminho do coração. Eu me sinto uma pessoa perversa. E amargurada. E um

pouco rancorosa. Culpar o amor torna tudo mais leve.


— Talvez você tenha razão — concordo, sentindo uma euforia súbita.
— Talvez o amor não seja o problema, mas se eu nunca tivesse amado, não
sentiria tanta falta de amar, não pensaria tanto em diferentes maneiras de
odiar Calebe, e nem teria me inscrito em um programa de televisão estúpido
depois de me embebedar em uma boate. E sabe o que mais? Eu não estaria
tão desesperada para me apaixonar por outro homem, qualquer um, seja ele
médico, nadador, empresário, ou um cara bonito e misterioso que fala em
códigos e que pode muito bem ser um assassino em série ou um vendedor de

órgãos.
Bartolomeu retira a xícara das minhas mãos e a descarta sobre a mesa.
Em seguida, segura meu queixo, induzindo-me a olhar para ele. Sua
capacidade de manter a compostura mesmo após o meu arroubo de histeria é

admirável.
— Vendedor de órgãos? — pergunta, a voz trêmula entregando sua
vontade de rir. Seus dedos parecem brasa contra a pele do meu rosto e eu
demoro alguns segundos para encontrar as palavras certas.
— Eu tenho uma imaginação fértil — defendo-me com sinceridade.
— E você não está se ajudando com toda essa conversa sentimental. Eu já
disse, não vou te eliminar do programa independente do que disser. Qual é o
problema de vocês? Todo mundo de repente decidiu ficar do lado do Calebe?

Primeiro o Maurício, agora você.


— Maurício só está deslumbrado. — Bartolomeu faz uma careta.
Acho que ele não é muito fã do número dois. — O pobrezinho nunca se
apaixonou e não sabe como reagir, então acabou entrando em negação... —
Ele se curva na minha direção, nivelando nossos olhares, e sussurra
perigosamente perto: — Exatamente como você.
Não sei que tipo de magia maligna Bartolomeu pratica, mas eu me
sinto uma garotinha ingênua perto dele. Um cordeiro pronto para enfeitar a
ceia de um lobo faminto. Mas sua fome não é meramente carnal, ele quer

entrar na minha mente, convencer-me de que não possui olhos, orelhas e


dentes grandes demais.
— Não estou em negação — reclamo, obrigando as minhas pernas a
me levarem para longe de seu toque.

Deixo o conforto dos dedos mornos de Bartolomeu e caminho para


trás do sofá, por garantia. Ele, percebendo minha tática de colocar um
obstáculo entre nós, se rende ao sorriso que estivera contendo.
— Agora está em negação da negação.
Talvez eu esteja, mas não vou admitir nem morta.
— Você é irritante, alguém já te disse isso?
— Na verdade, sim. — O sorriso se torna ainda maior. — Uma
pessoa.

— Seu comparsa?
Ele franze os lábios, rindo baixinho.
— Algo do tipo.
Apoio-me no encosto do sofá e estreito os olhos para ele, procurando
alguma pista em seu semblante que denuncie seus pensamentos secretos.
— Está tentando me enrolar — concluo.
— Tentando ganhar tempo — ele me corrige. Grande diferença! — É
um crime tão terrível assim querer passar alguns minutos a mais ao seu lado,
longe daqueles urubus da produção? Você não está cansada de fingir estar

bem a todo momento? Porque eu, definitivamente, estou.


Ele inspira, enchendo o peito ao limite, e quando expira, pela primeira
vez, eu vejo um pedacinho de seus sentimentos verdadeiros: agonia, mágoa,
talvez um pouco de indignação. Parece-me um espelho, pois eu sei que, com

grande frequência, também os transpareço em mim.


E também os suprimo para que ninguém perceba.
— Do que você está fugindo, Bartolomeu? — pergunto, lendo nas
entrelinhas de suas palavras.
Seu rosto foge da minha vista, os olhos pairando em um ponto vazio
do chão. Aguardo, ansiosa, por sua resposta, mas o que escuto é uma melodia
que vai ficando mais e mais alta: o toque de um celular. Não reconheço a
música, mas Bartolomeu sim, pois caminha até a mesa de centro e pega o

aparelho.
— Preciso atender — diz após conferir o nome escrito na tela. — Não
vou demorar. Pode andar por aí se quiser. — Ele começa a se afastar rumo a
outro cômodo, mas para no meio do caminho, segurando o celular contra o
peito, e diz: — Você é uma mulher muito interessante, Maria Flor.
— Já disse isso antes, o que significa?
— Eu gosto de pessoas interessantes.
Sem me dar chance de resposta, ele atende a ligação e se afasta,
caminhando pelo corredor até eu perdê-lo de vista.

***

Cinco minutos se passam e nem sinal de Bartolomeu. Já atingi o auge

da curiosidade há muito tempo e não aguento mais ficar parada. Quanto mais
o tempo passa, mais neuras eu crio na minha mente a respeito dele. É
humanamente impossível resistir à oportunidade de andar por aí, como ele
mesmo sugeriu. E se o meu objetivo é ocupar a mente para não pensar no
beijo de Judas, uma espiadinha de nada será muito bem-vinda.
Quem sou eu para recusar uma oferta feita de bom grado?
Aguço os ouvidos enquanto atravesso o corredor até chegar na
bifurcação. De um lado, vejo que o caminho finda em uma cozinha, do outro,

vários cômodos aparentemente fechados. Sigo pela segunda opção. Passo por
um banheiro e paro na frente de uma porta entreaberta. Não escuto nenhum
murmúrio que indique a presença de Bartolomeu lá dentro, então empurro a
madeira devagar, revelando um escritório residencial.
Ótimo! Se existe alguma pista sobre ele em algum lugar, com certeza
estará em seu escritório.
Pé ante pé, entro no cômodo, sentindo a adrenalina pulsar nos
ouvidos. Não sei ao certo o que espero encontrar, mas consigo pensar em mil
possibilidades distintas, uma mais absurda que a outra, desde notas fiscais

superfaturadas a mensagens secretas com mafiosos russos (não que eu saiba


alguma palavra em russo para identificar tais notas), ou qualquer coisa que
explique o comportamento de Bartolomeu.
Porém, ao colocar um pé dentro do cômodo e me dar conta do que há

lá dentro, ocorre-me que teria sido mais inteligente permanecer quietinha no


meu canto. Não foi John Lennon quem disse uma vez que a ignorância é uma
espécie de bênção?
Bem, John Lennon sabia das coisas. Cara esperto.
Empilhados em uma estante rústica, vejo inúmeros potes de vidro em
formatos e tamanhos diferentes. Até aí, tudo normal, se não estivessem
cheios de líquidos com coisas que se parecem órgãos e animais mortos
boiando dentro deles.

Eu tinha que ser tão curiosa?


A curiosidade matou o gato. Nesse caso, matou a gata…
metaforicamente. Morrer de medo também é um tipo de morte.
E eu achando que estava doida. O homem guarda órgãos em potes no
escritório!
Só pode ser brincadeira. Esse tipo de coisa só acontece comigo? Será
que eu nasci com um ímã para pessoas problemáticas? Mais importante: o
que caralhos eu faço agora? Grito? Choro? Chamo a polícia? Converso com
Deus?

Todas as opções parecem ótimas.


— Fique calma — resmungo, andando de um lado para o outro. —
Deve haver uma razão plausível que explique por que um programador de
softwares guarda coisas gosmentas em conserva dentro de seu apartamento

milionário.
Tipo... tipo o que? Ninguém coleciona pedaços de coisas mortas
dentro de potes. Pelo menos, ninguém que bata bem da cabeça.
Não. Não faz sentido.
É melhor eu ir embora.
Mas estou sozinha, e ele disse que há alguém a caminho. Ninguém
sabe onde ou com quem eu estou. Se eu tentar fugir, pode ser pior. Preciso de
reforços.

Meus pais? Não, eles não podem fazer nada para me ajudar, estando
tão longe.
A produção? Não sei se vale a pena arriscar meu leve desvio
contratual. Se eu for morta por um colecionador de rins em conserva, é mais
fácil negociar com ele de uma vez, já que não terei dinheiro para pagar a
multa do programa de qualquer forma.
As pessoas vivem com apenas um rim, todo mundo sabe disso.
Foco, Maria Flor.
Certo, e que tal a polícia? Parece a opção mais... sem noção que

existe! E se for coisa da minha cabeça? E se eu estiver exagerando? Seria


uma cena e tanto: eu, ao lado de um Bartolomeu rico e confuso, explicando
para os policias que meu senso de julgamento foi comprometido graças a
visitinha noturna do homem que eu mais odeio no mundo, e que,

imbecilmente, quase deixei que me comesse de pé contra a porta do meu


quarto de hotel.
Só pode ser o efeito de Calebe na minha cabeça.
Paro por um minuto e calo todos os pensamentos, assumindo o
controle.
Basta conversar com Bartolomeu como uma pessoa normal e
civilizada. É isso o que eu vou fazer! Diálogo, diálogo e diálogo. Ele é um
homem bom, educado, não fará nada contra mim se eu for sincera, e tenho

certeza de que vai me explicar a existência de sua coleção macabra.


Determinada — ou me achando determinada —, dou a volta até o
corredor, tendo a certeza de fechar a porta com as supostas evidências não-
criminais de Bartolomeu, e faço o caminho até a sala, de onde eu nunca
deveria ter saído.
Bartolomeu ainda não voltou.
O silêncio torna a me incomodar em menos de dois minutos. Testo a
porta de saída: fechada. Olho pela janela: alta demais para pular. Encaro a
mim mesma em um espelho moderno: doida.

Por precaução, e para acalmar meus nervos, pesco o meu celular da


bolsa e digito uma mensagem, anexando a minha localização antes de enviar.
“Preciso que me encontre nesse endereço, urgente.”

***

Estou esvaziando mais uma xícara de café quando Bartolomeu


retorna. Não sobrou o suficiente para encher a xícara depois de eu ter bebido
o conteúdo inteiro do bule enquanto esperava por ele.
— Você gosta mesmo de café — diz solenemente, o celular já não
mais a vista em suas mãos. — Quer que eu prepare mais um pouco?
Tenho que agir com naturalidade.

— Não! — respondo, soltando uma risada histérica. Bartolomeu


franze o cenho. — Não precisa, já passei do limite com a cafeína por hoje,
uma gota a mais e eu sou capaz de ter alucinações com coisas boiando em...
potes. — Que desastre. Gargalho de novo e continuo tagarelando: — Na
verdade, talvez mais café seja bom. Existe uma música que eu gosto muito,
ela diz que “café não costuma falhar”, já ouviu?
Do que diabos eu estou falando?
— A fé — Bartolomeu diz, do nada. Não pensei que fosse um homem
religioso.

— Amém?
— Não — ele ri, exasperando-se. — Sobre a música, o certo é “a fé
não costuma falhar”, e não “café”.
Pisco uma vez, processando a informação. Faz mais sentido na versão

dele.
— Eu cantei errado a minha vida toda?
— Maria Flor. — Ele dá alguns passos hesitantes até a poltrona mais
próxima e me olha com desconfiança. — Você está bem?
Respiro fundo. É agora ou nunca.
Diálogo, repito em minha mente, como um mantra, seja franca.
— Eu já sei de tudo, Bartolomeu.
Ele fica subitamente tenso, os ombros rígidos, sua máscara de

serenidade e equilibro sucumbindo em preocupação. Abaixando a cabeça em


um aceno receoso, Bartolomeu evita o meu olhar e se joga na poltrona atrás
dele.
— Como... — Suas palavras falham, ele emite um pigarro e, ao voltar
a falar, sua voz soa mais profunda e rouca. — Como você descobriu?
Sento-me diante dele, feliz por manter a xícara em minhas mãos e
poder distraí-las da vontade iminente de tocar o rosto dele como fez comigo
mais cedo. Pelo menos, ele não negou sobre a existência daquelas coisas, é
um bom começo.

— Foi por acaso, quando você saiu para atender a ligação. Não tive
intenção de bisbilhotar, sinto muito. — Abaixo os olhos, com receito de
encará-lo por tempo demais e enxergar algo que traga todas as minhas
dúvidas sobre ele de volta.

— Eu queria ter contado antes, mas tive medo de como você reagiria.
— Faz sentido você ter medo, não é uma coisa... — Busco pela
palavra menos dramática possível. — Normal, se é que me entende. Eu
mesma fiquei bem assustada, e confusa, e posso ter tido um leve e rápido
debate interno sobre a possibilidade de fugir e nunca mais olhar na sua cara,
mas escolhi isso. — Aponto de mim para ele duas vezes, bastante orgulhosa
da decisão tomada. — O diálogo.
Bartolomeu deixa transparecer um novo sentimento em seus olhos,

cujo verde intenso de um campo primaveril se converte em um estranho e


fantasmagórico verde-musgo. É decepção, pura e sólida.
Repasso minhas últimas palavras na mente, em busca do que posso ter
dito ou sugerido de errado, mas Bartolomeu se pronuncia antes que eu
encontre.
— Então é isso o que você pensa? — pergunta, magoado.
— Eu só quero entender. — Devolvo minha xícara para a mesa ao
lado da poltrona e o encaro, esperando que meu olhar demonstre a
complacência que desejo transmitir a ele. — Você faz isso por diversão? —

Amargor cobre a minha língua.


— Não! — Ele se endireita, horrorizado, um certo repúdio
espiralando entre nós. — É claro que não, isso é sobre quem eu sou. Pensei
que você fosse entender, pensei que você... — Ele se cala, ficando de pé. Não

consegue mais me encarar diretamente. — Acho que me enganei a seu


respeito. Por um momento cheguei a acreditar que você seria alguém por
quem eu poderia me apaixonar se as nossas circunstâncias fossem diferentes.
Alguém admirável.
Imito Bartolomeu e me levanto, sem entender nada, depois enfio-me
na frente dele, parando-o com um simples toque em seu peito. O coração sob
minha palma bate descontroladamente, a um ritmo assustador, e um conflito
se instala dentro de mim.

— Não é que eu ache você uma pessoa ruim por causa disso. —
Bartolomeu rosna e tenta se afastar, mas o impeço, segurando firme em sua
camisa. — Só fui pega de surpresa. Eu sei que muitas pessoas têm gostos
exóticos, mas aquelas coisas no seu escritório vão além da compreensão.
Desculpe ter pensado que você era um criminoso. Bom, você não é um
criminoso, né? Espero que não, é claro, mas o que você esperava? Já ouvi
falar de pessoas que colecionam carros, figurinhas e até armas, mas...
— Maria Flor, do que você está falando?
Bartolomeu para de lutar contra mim. Ao invés disso, entrelaça meus

dedos aos dele e se aproxima ainda mais, apenas as mãos unidas entre nós
impedem nossos corpos de se tocarem, mas não impedem que eu sinta sua
respiração roçando em minha pele. Seu olhar percorre meu rosto, a síntese da
incompreensão pesando em seus olhos.

— As coisas no seu escritório — digo, igualmente confusa, e também


abobalhada com a beleza de seus ângulos masculinos tão próximos. — Os
potes. Não é disso que estamos falando?
Bartolomeu me olha, e olha, e olha. Devolvo seu olhar, assistindo
cada pequena linha de sua expressão tensa se suavizar, enquanto alguma peça
parece se encaixar em sua cabeça. Os cantos de seus lábios se curvam,
formando um sorriso sincero e aliviado que ilumina seu rosto inteiro e a sua
própria existência.

— Definitivamente não — declara, começando a rir de algo que não


compreendo.
Seu riso leve me alivia, porém.
Como se antecipando a minha próxima pergunta, sobre o que mais
Bartolomeu tem a revelar sobre si mesmo que o preocupa tanto, o longo e
penetrante som do interfone reverbera pelo apartamento inteiro. Bartolomeu
dá um pulo para trás, soltando-me, e corre os olhos por toda a sala até pousá-
los sobre a porta.
Ele ergue o indicador para mim, pedindo um minuto a mais de

paciência — e, presumo eu, de silêncio — e vai atender seu visitante,


resmungando alguma coisa sobre a pessoa do outro lado sempre se esquecer
das chaves. Depois de destrancar a fechadura e girar a maçaneta para baixo, a
porta se abre devagar.

E há um homem parado no corredor.


Correção: há um homem absurdamente lindo parado na frente da
porta. É, talvez, um dos homens mais bonitos que eu já tive o prazer de olhar
na vida, com exceção daquele ator que faz o super-homem nos cinemas e
de… bem, Judas — odiá-lo não faz de mim uma hipócrita, e muito menos
cega. Meus pretendentes a noivos não ficam atrás, também.
Inclusive, a visão dele ao lado de Bartolomeu merecia ser registrada.
Eu o faria, se tivesse minha câmera em mãos, e seria uma de minhas fotos

mais memoráveis.
O estranho entra no apartamento, troca um sorriso com Bartolomeu.
Os dois se contrastam e se complementam ao mesmo tempo, de um jeito
natural, como o dia e a noite, a lua e o sol, a luz e as sombras. Ambos têm a
mesma altura, mas o homem possui olhos e cabelos pretos, a pele branca
como porcelana, um semblante acolhedor, caloroso e aberto que não existe no
meu candidato número três.
— Olá — ele diz para mim, a voz suave como veludo. — Você deve
ser a Maria Flor.

— Sim, e você é?
Quem responde é Bartolomeu, que dá um passo à frente.
— Maria Flor, este é Gael, meu… — Eles voltam a trocar um olhar,
e eu sei a resposta antes mesmo que ele conclua sua frase. Eu sei, pois

naquele breve segundo, naquela troca que poderia ser insignificante para
muitos, a muralha de Bartolomeu desaba e todos os seus sentimentos ficam
expostos, revelando o mais profundo de todos, aquele que eu jurei sentir por
Calebe um dia. — Ele é meu namorado.
“Ah, o amor! Como pode um sentimento tão puro, bonito e cobiçado, ser tão
complicado e dar tanto trabalho?”

BARTOLOMEU

Alívio.
Nunca me senti tão aliviado em toda a minha vida. Por um momento,
pensei que o repúdio de Maria Flor fosse por causa do meu relacionamento
com Gael, que ela compartilhasse a mesma opinião que a minha família — e

uma parcela lamentavelmente grande da sociedade — sobre nós dois, e me


surpreendi ao perceber que me importo com a opinião dela, com seus
sentimentos sobre mim, com qualquer coisa que tenha a oferecer, seja
positivo ou não.
Felizmente, tudo não passou de um mal-entendido catastrófico.
O mais irônico é que eu jurei não me envolver emocionalmente com
ninguém do programa, decidindo, ingenuamente, que todas as minhas
escolhas seriam apenas um meio para um fim, mas, na primeira oportunidade,
ao vê-la furiosa na praça de alimentação do shopping depois de supostamente

passar a noite com Calebe Ventura, não consegui ignorar a fagulha de


curiosidade que se acendeu dentro de mim.
Eu quis saber o que havia de tão interessante nela para cativar seus
pretendentes um por um, como coelhos em uma armadilha. Quis entender

como era possível que todos os seus sentimentos estivessem expostos,


boiando na superfície poluída de olhares mundanos. E, logo em seguida,
surpreendendo a mim mesmo, eu quis proteger aqueles sentimentos e me
afogar neles ao mesmo tempo, porque, mesmo havendo tristeza,
arrependimento e dor, havia também muita força, paixão e poder —
qualidades que me faltam.
Não tenho dúvidas de que eu poderia me apaixonar por Maria Flor se
meu coração já não pertencesse a outra pessoa, assim como o dela, que ama

Calebe, mas se recusa a admitir por conta da suposta traição.


— Então, nada disso é humano? — ela insiste, parada na frente da
estante do escritório, lendo os rótulos dos potes pela terceira vez.
— Não, é claro que não — Gael responde, mordendo o lábio para não
gargalhar. — Como eu disse, sou um pesquisador, precisei de uma aprovação
do comitê de ética da universidade em que trabalho para armazenar essas
amostras em casa. Estamos investigando diferentes técnicas de conservação
de material orgânico e como essas técnicas afetam a genética original dos
tecidos... — Ele se interrompe ao perceber que está explicando além do

necessário, como sempre. Essa é uma das coisas que mais amo nele: falar
quando me faltam palavras. — Enfim, não importa. Pode ficar tranquila, não
somos traficantes de órgãos, e nem psicopatas com manias estranhas. — Ele
aponta para mim travessamente: — Aliás, o Bartolomeu tem umas manias

estranhas, mas garanto que nunca matou ninguém.


— Eu sou tão ridícula — ela lamenta, escondendo o rosto com as
duas mãos. — Sinto muito por ter desconfiado de você, Bartô. Minha cabeça
não está funcionando muito bem ultimamente. Não que ela normalmente
funcione, mas acho que bati um recorde! — De repente, Maria Flor ofega,
deixa os braços caírem, e me procura com os olhos arregalados: — Aquilo
que eu disse mais cedo, sobre não entender e não achar normal, eu jamais
pensaria aquilo a respeito de vocês, foi um mal...

— Um mal-entendido — digo por ela, tranquilizando-a com um


sorriso discreto. É melhor assim, não estou acostumado a compartilhar meus
sentimentos e não quero que ela fique se sentindo ainda pior por cicatrizes
que são apenas minhas. — Já entendi, não precisa se desculpar.
— Não, é sério! — Maria Flor vem até mim e segura minhas mãos
com firmeza. — Eu sinto muito se fiz você ficar triste, mesmo que por um
segundo.
Ela é boa, penso diante de seus olhos amendoados que brilham,
cheios de expectativa, pelo meu perdão, mesmo que ela não tenha feito nada

de errado. Pelo menos eu não estava enganado em meu julgamento sobre ela:
Maria Flor é uma pessoa que vale a pena. Faz muito sentido que Calebe a
queira de volta, que Leonardo esteja obcecado e que Maurício tenha se
apavorado com o sentimento platônico que ela desperta em todos a sua volta.

Instintivamente, pouso a mão aberta em sua cabeça e lhe faço um


carinho tenro. Duvido que ela tenha plena noção de si mesma e de como nos
afeta com sua autenticidade.
— Eu já disse que está tudo bem — garanto, resoluto. — Ainda bem
que tudo se esclareceu no fim.
— Quase tudo. — Ela olha para Gael, e sua pele, uma seda marrom-
oliva que nos convida à contemplação, adquire um leve rubor, quase
imperceptível às sombras do escritório abarrotado, um efeito recorrente à

beleza dele. Gael também nota, pois sorri amplamente assim que ela desvia a
atenção de volta para mim. — Se você já tem um namorado, por que se
inscreveu no programa? Entendo o seu pedido sobre ser eliminado, mas qual
o sentido de ter entrado para começo de conversa?
Encosto-me na mesa, um móvel pesado e antigo que Gael adora, e
organizo minha explicação na mente. Eu a treinei várias vezes nos últimos
dias, mas agora que é chegada a hora, sinto-me inseguro e tolo.
— Ele foi pressionado pela família — Gael conta, livrando-me do
fardo, fazendo parecer fácil. Ele cruza o curto espaço até mim e se acomoda

ao meu lado. É seu jeito “estou aqui por você” que sempre me acalma. As
sobrancelhas de Maria Flor tremem, formando dois arcos. — Eles não
aceitam que o herdeiro bonitão, inteligente e bem-sucedido, goste de beijar
rapazes também, então, tiveram a brilhante ideia de inscreverem ele no

programa.
— Eu só fiquei sabendo no dia em que fui selecionado.
— E por que não negou?
— Ele não podia — Gael, outra vez, assume a dianteira das
explicações. Ele sabe como é difícil para mim, e o amo duas vezes mais por
isso. — Eles disseram que, se ele não participasse, seria removido da
diretoria da empresa.
— Pensei que você fosse um programador de software. Você mentiu?

— Mais ou menos. Atualmente, eu gerencio o departamento de


tecnologia de informação da empresa, mas sou um membro do quadro de
executivos também. É uma empresa de segurança tecnológica. Porém, meu
objetivo sempre foi chegar à cadeira presidencial um dia. Trabalhei a minha
vida inteira para ser digno do cargo que pertenceu ao meu avô, e agora ao
meu pai, mas ele decidiu deliberadamente que a minha sexualidade me torna
um candidato inapto porque é um velho teimoso e retrógrado.
Passeio ao redor da palavra preconceituoso, mas não a verbalizo,
tanto por vergonha de admitir um defeito tão desumano do meu próprio pai,

como para me proteger da dor que ela me causa.


— Desculpe — Maria Flor deixa um tapinha fatídico no meu ombro
—, mas seu pai é um belo cretino.
— Concordo! — Gael se junta a ela, erguendo a mão. — Ele conhece

os pontos fracos do filho e usou isso para chantageá-lo. Eu disse para o Bartô
recusar, que era loucura participar do programa, fiquei puto no começo e até
brigamos, mas acabei me rendendo quando ele disse que tinha um plano.
— Participar do programa não significa vencer o programa — ela
deduz, pousando o indicador nos lábios, em uma típica pose pensativa.
— Correto — digo. — O acordo com o meu pai era de que eu
participasse do programa em troca de continuar com o meu cargo na
diretoria, ele não podia exigir que eu ganhasse, uma vez que a decisão final

depende da noiva.
— E se a noiva, no caso eu, escolher outro noivo, a culpa não será sua
— ela completa o raciocínio, os olhos iluminados. Seus pés se movem
lentamente pela sala, enquanto sua mente vagueia para outros cenários da
nossa conversa. — Mas, ele já devia saber que existia a possibilidade de você
não ser o escolhido da noiva, qual o sentido de insistir na sua participação
mesmo assim?
— Ele está desesperado. — Gael revira os olhos. — O último
relacionamento do Bartolomeu, antes de mim, foi com uma mulher.

Provavelmente, se ele passar para a próxima fase, o meu querido sogro vai
aparecer com mais alguma exigência estranha, como seguir com o casamento,
na esperança de que Bartô se apaixone pela esposa e esqueça de mim.
Maria Flor solta um suspiro colérico e me olha diretamente.

— Por isso você precisa ser eliminado o quanto antes.


— Exato.
— Preciso me sentar. — Ela tropeça até a cadeira estofada perto de
nós, ao lado das estantes, sem se importar mais com os conteúdos exóticos
dentro dos potes. Depois de se acomodar, aperta a ponte entre seus olhos e
murmura: — Isso é loucura, eu tenho que pensar um pouco. Não estava
preparada, eu… quer dizer, se eu não eliminar o Calebe agora… mas, se eu
não eliminar você… Deus, o que vamos fazer?

— Quem é Calebe? — Gael indaga, coçando a nuca.


— O ex- noivo — eu o lembro, já havia lhe contado a história dos
dois antes.
— Aquele que a traiu? — Seu rosto se retorce em desgosto.
— O próprio — Maria Flor confirma, não demonstrando qualquer
surpresa por Gael já saber do caso. — Enviado do inferno para me atazanar,
meu carma de dez gerações. Eu pretendia me livrar dele assim que a fase de
encontros terminasse, mas agora vocês jogaram uma bomba bem no meio da
minha cara.

— Sinto muito — digo.


— Sente mesmo? — ela pergunta, sorrindo, os olhos julgadores sobre
mim.
— Sente nada — Gael se pronuncia, lançando-me um olhar lateral

sarcástico. — Ele vai dizer qualquer coisa, desde que você aceite o nosso
pedido.
— De que lado você está? — questiono, com falsa indignação na voz.
— Você não é condescendente, Bartolomeu, então é melhor sermos
sinceros. Estamos literalmente pedindo que ela pise no próprio orgulho e
mantenha o homem que a traumatizou no programa, para garantir a nossa
felicidade. Isso não é pequeno, é grande. — Gael, totalmente certo em sua
consideração (ele tem um dom natural e irritante de estar certo sempre), vai

até Maria Flor e se abaixa. — Aposto que ele trouxe você até o nosso
apartamento sem explicar nada com nada, fez vários comentários enigmáticos
sobre ter um pedido superimportante, e ficou enrolando até eu chegar, como
se não fosse nada suspeito.
— Foi exatamente assim — ela afirma, abrindo a boca, admirada com
o acerto de Gael. — Por isso eu fiquei tão desconfiada de tudo.
— Ele tem o péssimo hábito de presumir que as pessoas vão entender
seu vocabulário econômico, como se soubéssemos ler mentes.
— Eu não sou econômico.

— Você é sim — Maria Flor diz, abrindo um sorriso grande, cheio de


divertimento às minhas custas.
Como isso se tornou um complô contra mim de repente?
Prefiro não estender a conversa — sendo econômico —, e Gael sorri

ao me ver cruzando os braços, quase como se, ironicamente, soubesse o que


estou pensando.
— Apenas… — Ele volta a prestar atenção em Maria Flor. Toca seu
joelho com cuidado, cativando-a com seu timbre baixo. — Pense sobre o
nosso pedido. Se existir qualquer chance, por menor que seja, de você manter
Calebe no programa, seria um grande alívio para nós.
— Nós não temos tempo… — reclamo, mas Gael me interrompe.
— Ainda faltam dois encontros além do seu, não? — Ele se levanta

sem fazer muito alarde, mas seu olhar para mim é incisivo. — Ela tem tempo
para pensar a respeito. Nós vamos ser pacientes, não vamos?
Não respondo, recuso-me! Ele sabe que preciso ser eliminado, que é a
nossa única chance, que não se trata apenas do meu cargo na empresa, mas
do nosso futuro também. Eu entendo sua preocupação com os sentimentos de
Maria Flor, é algo que compartilhamos, mas posso não ter outra chance de
conseguir a garantia dela de que vai nos ajudar.
Nós não temos tempo há muito tempo.
O ar fica pesado, espelhando meus ressentimentos ansiosos. Eu e Gael

nos entreolhamos, batalhamos em silêncio, cada um com seu ponto de vista


materializado em micro expressões que já aprendemos a ler um no outro.
Sinto a culpa se esgueirar pelas minhas entranhas, porque Gael é um homem
bom, o melhor de todos, e se não fosse por mim, pela família que tenho, por

meus sonhos ambiciosos…


O som do interfone cala o rumo tomado pela minha mente, e nós três
nos sobressaltamos com o barulho repentino.
— Estamos esperando mais alguém? — Gael pisca, saindo de seu
próprio transe.
— Não que eu saiba — afirmo, e de fato não faço ideia, mesmo que a
interrupção tenha sido muito bem-vinda. — Alguém da produção? Como
conseguiram passar pela portaria?

— Será que fomos descobertos? — Maria Flor se desespera, os olhos


castanhos saltando das órbitas.
— Deixem comigo, eu vou conferir — Gael se prontifica. É uma boa
ideia, já que ninguém o conhece. — E vocês dois… — Ele aponta para nós.
— Conversem.
Gael sai do escritório, seus passos continuam ressoando pelo corredor,
e em poucos segundos desaparecem por causa da distância.
— Ele é uma boa pessoa — Maria Flor diz pensativamente,
encarando a porta.

— Sim, ele é.
— E muito bonito também.
— Não posso discordar.
— Estou com inveja.

Sorrio, achando graça em sua sinceridade.


— Uma inveja do bem? — pergunto.
— Tá brincando? Eu sou uma mulher traída, azeda e amargurada, que
talvez nunca encontre o amor verdadeiro outra vez, é claro que é uma inveja
do mal, você vai precisar de um banho de sal grosso mais tarde para tirar o
meu mau-olhado.
Gargalho alto, mas tampo a boca com a mão ao me lembrar que temos
visitantes. Posso acabar nos entregando se forem os produtores. No entanto,

antes que Maria Flor diga mais alguma de suas frases espirituosas, escutamos
vozes exaltadas vindas da sala de entrada.
Uma discussão?
Minha risada morre.
O coração salta uma batida.
Gael?
— Essa voz… — Maria Flor murmura para si mesma, seu semblante
confuso se transforma em câmera lenta, assumindo uma expressão de
espanto. Vincos suaves surgem em sua testa franzida e ela ofega alto. — Puta

merda, eu me esqueci!
Ela corre para fora do escritório e eu me lembro que preciso mover as
pernas também.
Que porra está acontecendo agora?

Meio cego, meio perturbado, meio fora de sintonia, eu consigo chegar


na sala e a cena que vejo me faz paralisar. Não de pavor ou medo, como era
de se esperar, mas se trata simplesmente de uma imagem absurda demais para
ser verdade. Maria Flor, parada na minha frente, parece tão (ou mais)
descrente que eu.
Calebe Ventura está na minha sala, enroscado com meu namorado em
uma espécie de briga sem socos ou chutes, eles se seguram e se empurram e
se chacoalham mutuamente pelas roupas, girando na frente da porta. Não

entendo muito de lutas, odeio me meter em confusão, mas tenho certeza de


que o primeiro a se soltar, ganhará um belo soco na cara.
A questão é: por que raios estão brigando?
— Onde ela está? — Calebe vocifera, e tudo faz sentido de repente.
Maria Flor o chamou.
Calebe é mais forte, provavelmente mais experiente em confrontos
corporais. Dou um passo à frente, pronto para salvar Gael de ser assassinado,
mas o impensável acontece.
— Calebe! — Maria Flor grita em tom reprovador. — Para com isso!

Ao som da voz de sua amada, Calebe se distrai e solta Gael, que não
perde a chance e deixa o braço voar para cima, acertando Calebe no meio do
olho esquerdo. Ele se desequilibra e cai para trás de um jeito nada glorioso,
batendo a bunda no chão, as pernas dobradas em ângulos opostos.

Quase sinto pena da queda humilhante, mas estou chocado demais


para reagir.
O mais surpreendente, contudo, é a reação de Calebe. Mesmo com a
dignidade em frangalhos e um olho lacrimejante, ele ignora o golpe, ignora
Gael, ignora sua posição vexaminosa no piso da sala de estar e nem presta
atenção na minha presença.
Ele só tem olhos para ela, e para ela somente.
— Que bom que está bem, Girassol.

***

Calebe segura um pedaço de bife congelado contra o rosto, jogando


morro abaixo todas as suas chances de manter alguma hombridade intacta.
Maria Flor não para de rir.
Gael também não.
Eu me seguro bem.
Depois do choque inicial, Maria Flor nos explicou que havia chamado

Calebe em um momento de surto, desespero e estupidez, em suas palavras


exatas, e que a ideia pareceu melhor do que ligar para a polícia — o que eu
concordo. Seria bem mais problemático explicar a confusão para policiais
irritados, do que lidar com Calebe e seu olho roxo.

Quando trouxe Maria Flor para o meu apartamento, pensei em vários


desfechos diferentes para a conversa que teríamos, mas nenhum deles
envolvia uma reunião com Gael, Maria Flor e Calebe ao redor da minha mesa
de jantar.
Gael assume o delicado papel de explicar para Calebe toda a situação.
Eu não queria que mais uma pessoa envolvida com o programa ficasse
sabendo a verdade sobre a minha participação na temporada, mas Gael
insistiu muito, dizendo que era o mínimo que podíamos fazer depois do soco.

Ele tem um senso de responsabilidade exagerado.


Calebe escuta tudo atentamente, fazendo comentários pontuais para
Maria Flor, sobre como ela "precisa ser mais cuidadosa", e "não confiar
cegamente em qualquer homem gostoso e rico que aparece", o que me deixa
bastante envaidecido. Parte de mim concorda com ele, mas prefiro ficar
calado e deixar que os dois se resolvam sozinhos.
— Então, vocês são um casal? — ele questiona quando Gael termina,
apontando para nós dois com desconfiança.
— Isso — eu e Gael dizemos juntos.

— E moram nesse apartamento?


— Exato.
— E querem que a Maria Flor elimine o Bartolomeu do programa?
— Não prestou atenção em nada do que Gael disse? — Maria Flor

reclama, sentada na cadeira ao lado dele.


Os dois têm uma intimidade estranha e visivelmente profunda, que
não conseguem conter ou disfarçar mesmo enquanto trocam insultos e
palavras ríspidas. Maria Flor não saiu de perto dele desde que chegou, e foi a
primeira a sugerir que colocasse gelo no rosto machucado. Bom, não
tínhamos gelo, então teve que ser um saco de carne congelada mesmo.
— Prestei, só é difícil demais de acreditar. — Ele sorri de ladeiro,
mostrando um canino ousado. Pelo visto, nada abala o orgulho de Calebe. —

Porque significaria que você não vai mais me eliminar de primeira, e eu não
quero ter esperanças vazias.
— Eu não disse que aceitaria o pedido — ela afirma, e eu me seguro
para não dar apoio à Calebe, já que preciso ser eliminado custe o que custar.
— Nós dois sabemos que você vai aceitar. — Ele apoia o braço livre
no encosto da cadeira dela, e o movimento é tão natural, como se treinado ao
longo de muitos anos, que Maria Flor nem parece notar ou se incomodar. —
Você vai teimar e espernear até o último minuto, vai tentar buscar soluções
alternativas que não envolvam a eliminação dele, e vai perder horas de sono

me culpando por dificultar tanto a sua vida. Mas, no final, você vai ajudar os
dois, porque seu coração mole é uma das suas melhores qualidades.
Maria Flor nos olha de soslaio, remexendo-se na cadeira,
constrangida. Ele deve ter acertado em cheio para deixá-la tão desconfortável.

— Eu devo ter batido a cabeça — ela resmunga manhosamente —


para achar que seria uma boa ideia chamar justo você para me salvar.
— Eu achei que você estivesse morta, sua ingrata — Calebe reclama.
— Quase morri do coração. Paguei três vezes o valor da corrida para que o
taxista dirigisse mais depressa, e subornei um casal de idosos que me
ajudaram a passar pela portaria.
— E ganhou um socão, parabéns.
Os dois têm a mesma idade mental, só pode.

— Você me distraiu, Malmequer. — Calebe força um sorriso irritado,


trincando os dentes. — Eu não teria perdido se você não tivesse me chamado
bem na hora.
Maria Flor desdenha com um aceno, mas não discorda. Nesse ponto,
fico feliz que ela o tenha distraído, pois imaginar Gael sendo ferido me deixa
zonzo e nervoso. Ela saca um celular e o aponta para Calebe de repente.
— O que está fazendo? — ele pergunta, os olhos se estreitando.
— Tirando uma foto, preciso registrar para a posteridade.
— Nem a pau! — Ele solta a carne sobre a mesa e tenta alcançar o

celular dela, que gargalha, esquivando-se de suas mãos.


— Meu pai nunca vai me perdoar se eu não mandar isso no grupo da
família.
— Não vai acontecer, Margarida.

— Deixa de ser ranzinza. — Ela coloca os braços para trás,


escondendo o celular nas costas, e pisca seus olhões atraentes de modo
suplicante e fingido. — É só uma foto.
— Eu levei um soco, um pouco de empatia seria bom, sabia?
— Oh, coitadinho — diz cinicamente, fazendo um beicinho. — Está
doendo?
— Sim.
— Que bom. Você vai morrer?

— Não.
— Então quem precisa de empatia sou eu, Calebe. Vai logo!
— Você fala da boca pra fora, Violeta, eu sei que não consegue viver
sem mim — ele diz, todo convencido. As afrontas dela não o afetam. Maria
Flor arma o celular outra vez, e para a minha completa surpresa, Calebe se
rende e pega a carne de novo, pousando-a sobre o olho inchado. Ele faz até
uma pose! — Além disso, eu sou bonito demais para morrer jovem.
— Ora, ora, o que tem de bonito, tem de modesto — ela ironiza,
tirando a bendita foto. Em seguida, guarda o celular sem disfarçar a satisfação

por tê-la conseguido.


— Então você confirma que ainda me acha bonito? — Calebe a
provoca, assertivo, a voz condensada e maliciosa.
Maria Flor não esboça o mesmo autocontrole de Calebe, seus

pensamentos quase se solidificam entre os dois. É evidente, pela maneira


como os olhos dela procuram pela boca dele, que ela o acha bem mais que
bonito, e é evidente também que ele adora saber disso. Existe uma faísca
crepitando em seus olhares e gestos, um sentimento adormecido que poderia
incendiar uma cidade inteira se deixassem.
Não entendo. Não os entendo.
Eles são burros, teimosos ou simplesmente gostam de sofrer ficando
longe um do outro?

— A beleza é superestimada — ela se defende, sem negar o óbvio, e


desvia os olhos para o lado.
Calebe deixa o sorriso ganhar vida em seu rosto enquanto ela não está
olhando, satisfeito com a resposta por alguma razão.
— Vocês estão brigando ou flertando? — Gael pergunta, espelhando
meus pensamentos.
Eles se voltam para nós sincronicamente, sobressaltados, evidente que
só agora lembrando da nossa presença.
— Flertando — Calebe diz, convicto.

— Brigando — Maria Flor o corrige em um timbre esganiçado. A


julgar pela maneira como o perfura com os olhos, suponho que esteja
ponderando se ele merece ou não outro soco. — Mas não importa, ele já está
de partida. Pode ir, Calebe, encontre o seu caminho para a luz.

— Não se despeça de mim como se eu estivesse morto! — Calebe


suspira e se levanta, deixando a compressa improvisada em cima da mesa.
Ele apoia a mão na cabeça de Maria Flor e faz um carinho familiar, de novo,
como se fosse inato e automático. Ela não reclama, na realidade, parece nem
perceber direito. — Mas você está certa, agora que eu já sei que está bem,
vou embora. Preciso aparecer no apartamento do programa antes que meu
sumiço se torne um problema.
É verdade, pensando bem, ele passou a noite fora, provavelmente com

ela. Os dois estavam juntos de manhã, antes do nosso encontro, e ele deve ter
vindo direto do hotel onde ela está hospedada. Esses dois parecem um buraco
sem fim. Observá-los é enervante.
Maria Flor arrasta a cadeira e fica de pé, olhando para mim.
— Nós dois também deveríamos voltar para o nosso, você sabe,
encontro e tudo mais.
Calebe afasta sua mão, seu rosto tornando-se sombrio. Ele não
consegue disfarçar o ciúme, e eu não o julgo, até o admiro um pouco por
continuar tentando, mesmo que se machuque no processo. Não deve ser fácil

assistir a pessoa que você ama saindo com um potencial pretendente. E ele a
ama. Não tenho dúvidas, é evidente na maneira como seu olhar inflama sobre
ela, como seus ombros relaxam sempre que Maria Flor sorri, no estremecer
de seus dedos ao tocar a pele dela e o timbre de sua voz ao pronunciar os

apelidos de flores.
A única coisa que não entendendo é: se ele a ama tanto quanto
transparece, por qual motivo faria algo tão desprezível como traí-la com outra
mulher? Desejo, apenas? Um momento de surto?
A menos que não tenha traído.
— Vou acompanhar o Calebe até a porta — digo para Maria Flor, que
me olha sem entender. — Espere aqui com o Gael um pouco, depois nós
voltamos para o shopping.

Para a minha satisfação, ela não se opõe e volta a se sentar, lendo as


entrelinhas de que desejo conversar com ele a sós.
Calebe se despede de Gael amigavelmente, cobrando dele outro
encontro para compensar o soco — que Gael aceita com bastante entusiasmo.
Pelo que conheço do meu namorado, ele deve estar bem arrependido. Em
seguida, Calebe se inclina sobre Maria Flor e sussurra em algo em seu ouvido
que a deixa encabulada e sem palavras.
— Vamos? — diz para mim, e eu o guio de volta para a sala de
entrada.

Para evitar que sejamos ouvidos, fico em silêncio até chegarmos na


saída. Assim que abro a porta, Calebe se adianta e pergunta, utilizando um
timbre mais desafetuoso do que antes:
— Você gosta dela?

Vamos testar uma coisa.


— Se eu disser que sim? — Mal termino de responder e sombras
perigosas voltam a tomar seu rosto. Ele range os dentes, os olhos agressivos e
saltados, deixando clara a sua intenção de me enterrar em uma floresta no
meio do nada. — Ah, então você é capaz de fazer uma cara tão assustadora
assim? — Exponho minha satisfação com um sorriso. — Relaxa, não estou
apaixonado por ela, eu amo o Gael, amo mais do que deve ser saudável amar
outra pessoa. Mas não vou negar, se não fosse por ele, eu provavelmente

lutaria por ela sem hesitar.


Calebe crispa os lábios e crava seu olhar em mim, ruminando minhas
palavras, pesando o quanto minha resposta merece ou não uma retaliação.
— Ele é um cara legal, os dois se parecem — diz após alguns
segundos, relaxando os músculos.
— Também acho. — Olho para trás, confirmando que não fomos
seguidos por aqueles dois curiosos. — Por que você não prova? — Calebe
finge que não entendeu, então insisto: — Se é verdade que você não a traiu,
deve existir uma maneira de provar.

— Já ouviu a história toda? — Ele ri com desgosto. — Não é tão


simples. Eu posso trazer a mulher com quem eu estava para confirmar a
minha versão dos fatos, mas eu duvido que adiantaria alguma coisa. Tenho
medo de piorar as coisas, de ser mais odiado.

Realmente, pelo que fiquei sabendo, é uma história difícil de ser


contestada. Mas, odiado? De onde ele tirou essa ideia?
— Deve existir mais alguma coisa — eu o incentivo.
— Por que está me ajudando? — pergunta, hesitante. Ele caminha
para fora do apartamento e aguarda pela minha resposta.
— Eu… — gaguejo, sentindo-me patético. — Não se engane, minhas
intenções são egoístas. Se você conseguir provar que não fez nada de errado,
ela não vai ter motivos para me manter no programa por mais tempo. —

Apoio-me no arco da porta e evito o seu olhar. Tenho que ser sincero. — Eu
não sei o que fazer, acho que estou esperando um milagre, ou simplesmente
jogando a solução dos meus problemas nas costas de vocês dois. Reconheço a
sua determinação, Calebe, você está correndo atrás do seu amor, já eu… —
Suspiro, cansado, os ombros pesados com meus dilemas e medos. — Eu
preferi ceder à pressão da minha família e entrar em um programa
casamenteiro, ao invés de lutar pelo cara que eu amo.
— Mas você está lutando — Calebe diz, irredutível. Não é da boca
para fora, ele tem certeza do que está falando e eu fico sem reação. — Você

está lutando — repete ante o meu silêncio e choque. — Lutar nem sempre
significa derrotar um inimigo, aguentar firme e sobreviver também fazem
parte da luta. Não diminua o seu mérito. Você ficaria feliz se Gael abrisse
mão dos sonhos dele para ficar com você? — Balanço a cabeça, negando. —

Viu só? Tenho certeza de que ele pensa o mesmo.


Ele está certo.
Parte de mim sempre soube, mas ouvir de outra pessoa é bom. A
sensação de que eu deveria fazer mais por nós dois constantemente me deixa
sem sono, cansado e sobrecarregado, mas contanto que eu não desista, ficará
tudo bem, certo?
— Obrigado — digo, atordoado. Não estou acostumado a falar
demais, e menos ainda a me abrir com estranhos. Ele aquiesce e se vira para

partir. — Calebe? — chamo. Ele para e olha para trás. — Você está lutando
bem também.
— Vou pensar sobre as provas para Maria Flor. — É a sua resposta.
— Boa sorte.
Observo as costas de Calebe se afastando, e me ocorre que gosto dele
também, assim como gosto de Maria Flor. São boas pessoas, merecem a
felicidade, e me sinto contente por tê-los conhecido, mesmo em uma
circunstância tão adversa.
Encaro o espaço vazio do corredor deixado pela partida de Calebe.

Ele foi embora e me deixou com várias coisas para pensar.


Ouço cochichos atrás de mim.
— Ele já foi — aviso.
Ao me virar, deparo-me com Maria Flor e Gael parados lado a lado.

Ela já está com sua bolsa no ombro, pronta para voltarmos ao encontro.
Será que ouviram a nossa conversa?
— Ele não pode provar justamente porque não é verdade. — Maria
Flor responde ao meu questionamento interno.
Droga.
— Vocês estavam bisbilhotando? Ouviram tudo? — sondo.
— Só o final — Gael garante, para o meu alívio. Seria muito
constrangedor.

Menos mal.
— E se for verdade? — digo para Maria Flor, voltando ao ponto
principal.
— Não é! — Ela avança para a porta, mas me coloco
estrategicamente no caminho, atrasando sua fuga.
— Mas e se for? — insisto. — Tudo bem jogar fora a sua chance de
estar com quem você ama? Não tem problema ter esperanças, Maria Flor. Sei
que estou sendo intrometido, passando do ponto, mas não consigo evitar. É
frustrante que possam amar livremente e estejam desperdiçando essa chance.

— Desculpe — Maria Flor diz em timbre choroso. Ela desvia de mim


e se apressa para fora. — Eu não quero me machucar de novo, não quero
criar esperanças se for para sentir aquela dor outra vez.
Ela está sofrendo.

Queria o poder de confortá-la, ter as palavras certas para acalmar seu


coração, mas não sou a pessoa que ela precisa agora.
— E quando foi que parou de doer? — pergunto, caridoso, a voz
baixa para causar o menor dano possível.
— Vou esperar por você lá embaixo. — Ela estremece e me ignora,
fugindo a passos rápidos para o elevador.
Sinto os braços de Gael envolverem minha cintura, seu corpo, maior
do que o meu, acalmando-me de imediato.

— Tenha paciência, amor. Ela precisa de um tempo para pensar —


pede, o rosto encaixado perfeitamente na curva no meu pescoço.
— É, eu acho que sim — murmuro, contrariado. — É melhor eu ir,
temos um encontro para gravar.
— Ela é divertida — ele diz, fazendo soar mais como uma
reclamação, do que um elogio. É fofo. — E inteligente, e muito, muito bonita
também.
— O que foi, está com ciúmes? — eu o provoco.
— Você é irritante, eu já disse isso? — resmunga no meu ouvido.

— Sim. — Viro-me para ele, em busca de seus lábios. — Várias


vezes.
“Quanto maior for o sonho, mais alta será a queda, mas não vale a pena
deixar que o medo te impeça de cair, afinal de contas, o chão é o limite.”

MARIA FLOR

Sinto o cheiro dele na minha pele, o odor inconfundível de sexo e


alguma coisa rudimentar, marcante, sem rastros de notas suaves ou
adocicadas; ele é denso, profundo, cheio de personalidade e selvageria. Uma
fragrância única que eu quase consigo experimentar em meus outros sentidos

além do olfato, e que me empurra de uma só vez para o incrível mundo da


excitação.
Sua presença é mágica, delirante. Ele sabe os efeitos que me causa e
não demonstra qualquer piedade enquanto as pontas de seus dedos percorrem
a extensão das minhas pernas, venerando meu corpo com a dedicação de um
servo, como se esquecer um mísero centímetro fosse um grande sacrilégio.
Estremeço quando sua barba roça a parte interna das minhas coxas, as
mãos amassando a minha carne, mantendo-me no lugar, exposta, aberta, uma
refeição ao dispor do seu prazer. Meus quadris se movem impacientemente

ao encontro de sua boca, clamando por mais. Mais velocidade, mais


intensidade, mais dele dentro de mim.
Mas ele não me atende, claro que não. Sou o seu parque de diversões
no momento, e explorar todos os brinquedos faz parte do seu passatempo

favorito.
Ele inspira aquele ponto inchado e sedento do meu corpo, o hálito
morno me levando ao delírio. Uma de suas mãos enormes segue seu caminho
para cima, transita pela minha cintura, marcando-me com sua pegada brusca
e dominante até chegar a um dos meus seios. No momento em que o envolve
inteiro com os dedos longos, sua língua cobre a pele úmida e sensível da
minha intimidade sem nenhum pudor.
Eu grito de surpresa e tesão, estremecendo, mas ele não para, não

vacila, focado no propósito de me quebrar em tempo recorde para a satisfação


do próprio ego inflado, uma batalha que estou disposta a perder com muita
alegria, obrigada.
Não sei qual estímulo me deixa mais insana, se a massagem nos seios,
ou o trabalho de sua boca, que me suga, lambe e mordisca em um ritmo
tortuoso. Ele aumenta a intensidade gradativamente, depositando mais força a
cada vez que rebolo em seu rosto. Sinto a ponta de seu indicador se unir aos
movimentos constantes de seus lábios, projetando-se para dentro de mim
devagar, sem encontrar nenhuma resistência — estou mais do que pronta para

recebê-lo por inteiro.


Ele grunhe ao deslizar o dedo, satisfeito ao constatar minha
receptividade, e eu respondo com palavras ininteligíveis que traduzem o
desejo incontrolável que só cresce dentro de mim, gemidos profundos e

desconexos que o estimulam a continuar. Um novo dedo se une ao primeiro,


alargando-me, e apenas uma consciência longínqua me alerta para a
iminência do meu orgasmo.
Ah, isso é bom, é tão bom.
Um pensamento estranho surge em meio à névoa de prazer que
rodopia na minha mente: de que há alguma coisa errada acontecendo, mas eu
empurro o pensamento para longe, incapaz de me desapegar da sensação
incrível que se alastra por todo o meu corpo.

Nada mais importa além de nós dois. Finalmente estamos juntos outra
vez, estou completa de novo e não preciso mais lidar com um futuro em que
a gente não exista mais, um futuro no qual eu me obrigo a me casar e ser
tocada por outros homens na esperança de um dia esquecer aquele que amo.
Olho para baixo e vejo minhas mãos afundadas em seus cabelos
desgrenhados, puxando e empurrando seu rosto no ritmo determinado pelo
vaivém dos dedos que me empalam. Estou no limite, ele sabe o que deve
fazer para me levar ao êxtase, é um especialista quando se trata de mim, mas
no momento em que as ondas delirantes do ápice começam a se amontoar no

meu ventre, ele se afasta, erguendo a cabeça para me encarar.


Contorço-me em oposição à sua pausa abrupta, sentindo-me
desamparada de repente. Seus olhos me avaliam, aquele verde profundo
repleto de promessas obscenas. Só mais um pouquinho, peço em meu olhar,

mas ele não atende ao meu pedido silencioso.


Deve estar se divertindo.
— Calebe… — sussurro, quase implorando.
Não é do meu feitio implorar, mas não é hora de me curvar ao
orgulho. Não quando o tenho finalmente no meio das minhas pernas depois
de tanto tempo.
O safado abre o maior sorriso do mundo, como se soubesse
exatamente o que estou pensando, e empurra os dedos com força dentro de

mim, alcançando uma profundidade que me faz gritar. Ele repete o


movimento uma, duas, três vezes, cavando a minha libido para fora. Porém,
outra vez, segundos antes de eu atingir o clímax, ele para maldosamente,
gargalhando quando o perfuro com os olhos, ofegante demais para articular
os insultos que passam pela minha cabeça.
Completamente despido, ele fica de joelhos e me olha de cima, como
se fosse um rei contemplando seu território. Não… como um rei venerando a
sua rainha. É assim que me sinto ao seu lado: linda, desejada, poderosa.
Calebe traz à tona o que existe de mais impressionante em mim.

Eu o devoro com os olhos, começando pelos ombros — eu realmente


amo como eles são largos e fortes — e os inúmeros vincos em seu abdômen.
Quase não consigo engolir um gemido ao ver o profundo triângulo que
aponta para a sua virilha, abrindo caminho em direção ao membro rígido que

pende sobre mim.


Ele o segura pela base, expondo a longa extensão para o meu
entretenimento. E que belo entretenimento. Calebe é um homem que pode se
vangloriar se quiser: sim, ele teve a boa sorte de nascer com um enorme e
pesado pau, com um emaranhado de veias que o torna bonito de se olhar e
uma circunferência intimidadora, mas, acima de todas as vantagens naturais,
ele sabe como fazer uso do que a natureza lhe deu de bom grado.
E tudo o que eu mais quero no momento é que o use em mim.

No entanto, paralelo ao desejo e paixão que sentimos um pelo outro,


ainda tenho a impressão de que que alguma coisa está mesmo errada. Mas, o
que seria? Sinto minhas mãos e pernas formigando, o coração batendo em
ritmo acelerado, e minha respiração se escondendo dentro dos pulmões. Sinto
medo, e saudade, e tristeza. Por que eu me sinto assim, se ele está bem aqui,
na minha frente, junto comigo?
Calebe se inclina na minha direção, quase cobrindo meu corpo com o
dele. Ergo meus braços, tentando tocar seu rosto, puxá-lo para mim. Quero
que ele sinta o quanto o amo e que preciso dele ao meu lado para sempre,

mas assim que o tenho perto o bastante para sentir sua respiração se misturar
com a minha, Calebe sussurra:
— Aqui está a prova, Margarida.
Abro os olhos, desnorteada, a claridade fere a minha visão e eu me

encolho no banco do… carro? Eu estou em um carro? Tento obrigar minha


alma a voltar para o corpo enquanto os últimos resquícios do sonho se
esvaem.
— Ah, você finalmente acordou?
Ao meu lado, sentado no banco do motorista, João Guilherme sorri
para mim, duas covinhas características se formam em suas bochechas, mas
ele rapidamente volta a prestar atenção na estrada.
Estrada! Deus do céu, agora eu me lembro.

Estou no meu encontro com João Guilherme. Ou melhor: adormeci no


meio do meu encontro com João Guilherme.
— Desculpe, acho que peguei no sono sem querer. — Esfrego os
olhos e me endireito no assento. Do lado de fora, percebo que estamos no
interior de uma propriedade rural, com muito verde em todos as direções.
— Não tem problema, eu disse que seria uma viagem relativamente
longa, e você parecia estar tendo um sonho muito bom, então achei melhor
não te acordar.
Se por "bom" ele quer dizer um sonho erótico com Calebe Ventura,

no meio de um encontro com outro homem, então sim, pode-se dizer que era
um sonho bom.
Acho que é oficial: eu finalmente cheguei no fundo do poço. Na
verdade, suspeito que nem o fundo do poço queira chegar tão fundo.

— Por acaso — digo, tentando soar descontraída — eu não falei nada


estranho, falei?
— Você ficou gemendo alguma coisa, mas não consegui entender o
que era.
Gemendo, claro.
— Já estamos chegando? — Mudo de assunto. Meu corpo traidor
continua quente, afetado pelas sensações realistas causadas pelo Calebe da
minha mente sonolenta.

Desde o incidente no apartamento de Bartolomeu, uma semana atrás,


Calebe não deu mais sinal de vida. Eu deveria aproveitar sua ausência para
focar em outras coisas, como nos meus pretendentes, nas gravações que não
param e, quem sabe, no meu futuro, mas aqui estou, sonhando com os dedos
dele dentro de mim.
— Quase. — Ele aponta para a frente, onde é possível distinguir a
silhueta de um casarão não muito longe. — O carro da produção está logo
atrás.
Olho pelo retrovisor e vejo o veículo grande nos seguindo. Quase me

esqueci que teríamos companhia. Eles instalaram uma pequena câmera dentro
do carro — a qual eu também já havia esquecido — para filmar nossa
interação durante o trajeto. Aposto que ficarão decepcionados quando
descobrirem que eu hibernei como uma marmota no inverno em menos de

dez minutos de viagem.


Não posso fazer nada, não tenho dormido direito desde o último
encontro, quando Bartolomeu me fez aquele pedido inusitado, e por mais que
eu tente pensar em alternativas para resolver a situação sem manter Calebe no
programa, tudo o que consegui foram crises de enxaqueca e ansiedade. A
parte boa é que nossa fuga do shopping nunca foi descoberta, já que voltamos
na maior cara de pau e filmamos o episódio do encontro como se nada tivesse
acontecido.

As gravações se tornaram mais frequentes também. Tive que contar


as minhas impressões sobre os primeiros encontros para uma câmera (e sorrir
até minhas bochechas doerem, como se eu estivesse feliz) e responder a
várias perguntas pessoais sobre o meu passado nada interessante.
Estou cansada, estressada e irritada, o combo da desgraça completo.
Como vou sobreviver a uma tarde inteira com João Guilherme sem
pular do telhado?
— Não deve ser fácil — ele diz, chamando a minha atenção. Olho
para ele, deixando claro em minha expressão que não entendi. — O telhado

— explica, mostrando mais dos dentes muito brancos em seu sorriso matador.
— Você pode tentar pular, é claro, mas eu duvido que consiga subir no
telhado, para começar. Mas, se a ideia é se livrar de mim, eu acho que a
varanda do segundo andar pode ser o suficiente.

— Está lendo a minha mente?


— Não — ele ri pelas narinas, girando o volante para a esquerda.
Faltam poucos metros para chegarmos nos limites do casarão, que é maior do
que parecia visto à distância. — Você falou em voz alta.
Encolho-me no banco, querendo desaparecer, evaporar, ser abduzida
por alienígenas do mal e dissecada até a morte, qualquer coisa. O encontro
nem começou direito e já estou estragando tudo.
— Se eu pular do carro, qual é a chance de eu bater a cabeça e perder

a memória? — Tento camuflar a vergonha com meu humor nada saudável.


João Guilherme gargalha e manobra o carro por uma alameda, cujas
árvores de topos altos despejam sombras sobre nós, quase bloqueando por
completo o sol do meio-dia.
— Não estamos rápidos o bastante, então, a menos que queira quebrar
um braço ou uma perna, eu sugiro que espere sentadinha até estacionarmos.
— Desculpe. — Suspirando com o olhar perdido na paisagem, eu me
esforço para corrigir a gafe. — Não foi minha intenção ser rude. Os últimos
dias foram intensos e eu queria um pouco de paz. Não tenho nada contra você

ou o nosso encontro em particular, só estou sendo uma companhia péssima


em um dia péssimo.
— Que sorte a minha.
Eu o olho, curiosa.

— Sorte?
Os olhos de João Guilherme brilham, como se eu tivesse caído em
uma armadilha.
— Seria muito fácil conquistar você em um dia normal. Pelo menos
agora eu terei que me esforçar um pouco.
Só não lhe dou um soco porque não quero causar um acidente.
— Pois você está muito enganado se pensa que eu sou uma mulher
fácil de ser conquistada. — Empino o nariz e o enfrento.

— Não disse que era — garante com simplicidade, piscando um olho


para mim. — A questão é que eu tenho essa coisa de ser irresistível e
perfeito. Um fardo pesado que carrego desde o meu nascimento. Não há nada
a ser feito, então, sinto muito se você sentir um desejo incontrolável de
arrancar as minhas roupas.
— Não sei dizer se está brincando comigo ou sendo um babaca, ou
brincando de ser um babaca, mas, obrigada pelo aviso. Vou tentar resistir ao
seu incrível charme e manter suas roupas no lugar. — Apesar do tom de
zombaria, no fundo, bem lá no fundo mesmo, há um pouquinho de verdade

em minha declaração.
— Que pena. — O carro perde velocidade até parar. João Guilherme
se desprende do cinto de segurança, apoia o braço musculoso no volante e
vira para mim. — Minha intenção não era fazê-la resistir, e sim que se

rendesse de vez ao inevitável.


— Não pretendo me render.
João Guilherme dá um impulso repentino e se curva sobre mim no
espaço apertado do carro. Eu me afundo no banco, mas não tenho para onde
fugir — por que eu deveria fugir? Se eu continuar me distraindo com as
aparições de Calebe nos meus sonhos, vou acabar sem marido, sem dinheiro,
sem dignidade, e sexualmente frustrada pelo resto da vida.
Ele estica o braço na minha frente e pousa a mão na janela ao meu

lado, seus traços corpulentos evidenciados pela blusa de mangas compridas


que abraça sua pele. Não consigo me mexer sem que nossos corpos se
toquem em algum ponto, e até respirar coloca em risco a distância efêmera
que nos separa.
— Quer apostar? — ele me desafia, encarando a minha boca como se
fosse o último copo de água no meio do deserto. — Eu aposto que, até o final
do nosso encontro, um de nós ficará sem as roupas.
Tenho um vislumbre do meu sonho com Calebe, seu corpo
totalmente despido prestes a se fundir com o meu, e me sinto encorajada a

exterminar essas memórias inconscientes que minha mente insiste em


preservar.
— E o que acontece se você ganhar? — pergunto, baixo como se
confessando um pecado.

João Guilherme não pensa por mais que dois segundos antes de
responder:
— Você terá que me dar um beijo. — Ele reflete um pouco, sorrindo
perigosamente, e acrescenta: — Um beijo de língua.
Quase questiono a falta de lógica em sua proposta, já que,
comumente, um de nós ficar pelado pressupõe que ao menos tenhamos nos
beijado antes, mas não ouso mostrar a ele minhas preferências ingênuas. Eu
sei que ele não precisa me beijar para fazer qualquer coisa com meu corpo

nu.
— E se eu ganhar?
— Você terá direito a um pedido — propõe, parecendo bastante feliz
com a proposta. — E eu serei o seu gênio da lâmpada.
— E eu poderei pedir qualquer coisa? — Tomada pela adrenalina, eu
ouso desafiá-lo e deixo a ponta do meu nariz raspar em sua bochecha.
João Guilherme vibra, tensionando a mandíbula.
— Qualquer coisa que esteja ao meu alcance — sussurra, inebriado,
olhos nos meus. — O que me diz?

Eu aceito.
“Nunca subestime os seus inimigos. Quem come quieto, almoça e janta.”

JOÃO GUILHERME

Valeu a pena me comportar como um idiota metido que só pensa em


sexo: Maria Flor parou de olhar para o nada com uma expressão triste e
passou a se concentrar nas minhas investidas, mais precisamente em como
repeli-las. Ela estava falando sério quando disse que não era uma mulher fácil
de ser conquistada. E eu estava falando sério sobre fazê-la se render.

Achei melhor não contar que, enquanto dormia, ela resmungou o


nome de Calebe algumas vezes, e nem que liguei o rádio por um tempo para
que os microfones não captassem seus resmungos — gemidos, altos e claros.
Ela caminha na minha frente, distraída, fazendo comentários pontuais
sobre a falta de personalidade da minha casa, e preciso fazer um grande
esforço para não me perder em seu caminhar, nos quadris balançando na saia
longa e leve que se molda ao contorno redondo de seu belo traseiro. As
covinhas em suas costas também não me ajudam a manter a concentração, e
tudo só piora quando ela vira de frente para mim e o decote volumoso da

blusa minúscula me salta aos olhos, junto com a barriga chapada e exposta.
A mulher é uma escultura em forma de gente.
— Está me ouvindo? — pergunta, inclinando a cabeça para o lado de
um jeito quase inocente. Com as mãos para trás, ela caminha de costas no

longo corredor de madeira.


— Sim — minto — e concordo com tudo o que disse. — Tratando-se
das mulheres, é a resposta mais inteligente sempre.
Maria Flor mostra mais dos dentes, como um gato assistindo um rato
preso à ratoeira. É um sorriso irônico.
— Concorda que a sua casa parece um mausoléu?
Paro de andar e a encaro, o oxigênio estagnado em meu peito.
— Como assim?

Será que ela sabe?


— Parece que ninguém vem aqui há meses — explica com
naturalidade, olhando para os lados. Eu relaxo na hora. — Um casarão antigo
abandonado no meio do nada? É um prato cheio para fantasmas. Deve ter um
demônio selado no seu porão, ou um espírito atormentado que vaga pelos
corredores às três da manhã.
— Isso explicaria os barulhos de correntes que eu ouço no meio da
noite de vez em quando. — Entro na brincadeira. — E as batidas nas paredes,
não podemos esquecer delas.

— Clássico — Maria Flor concorda e volta a caminhar direito,


olhando para frente. — O Maurício ia adorar.
Lembro-me que os dois foram assistir a um filme de terror, ele deve
gostar de coisas assustadoras, mas não quero conversar sobre meus

adversários.
— Não tenho o costume de trazer mulheres para a minha casa —
conto. Viramos no final do corredor e chegamos à cozinha. — Pelo menos,
não para esta casa.
— Já entendi tudo, senhor eu-tenho-muitas-casas. — Maria Flor vai
até a ilha no centro e se acomoda em um banco alto. Dois cinegrafistas
entram logo atrás de nós, silenciosos como sombras, e se posicionam nos
cantos. Fingimos que eles não existem. — Conheço o tipo, sou quase uma

especialista, já li muitos livros com caras como você, que consideram a casa
como um refúgio masculino sagrado e estranho que não deve ser
contaminado com mulheres aleatórias e sexo selvagem.
— O que? — Não aguento e começo a rir. — Que tipo de livro você
anda lendo? — pergunto retoricamente, bem ciente de quais livros se tratam.
Já li alguns deles. — Não é nada disso, só não tenho tempo para viajar todos
os dias. Essa casa fica muito longe da cidade, é mais prático ficar no meu
apartamento no centro, ou ir para um motel quando é o caso. Além do mais,
homens assim não existem, a gente gosta de sexo seja onde for,

principalmente sexo selvagem com mulheres aleatórias.


— Shiu! — Ela tapa os ouvidos e faz uma careta. — Não estrague os
meus sonhos com mocinhos literários.
Dou a volta na cozinha, coletando ingredientes dos armários e da

geladeira para colocar dentro da cesta que levaremos ao nosso piquenique —


é claro que a ideia não foi minha, veio da pessoa mais improvável. Não sou
um sujeito criativo para encontros, ou melhor dizendo, não vou a encontros
há muito tempo, não sei nem por onde começar. Quando quero espairecer
com uma boa e velha foda, só preciso discar algum número aleatório da
minha agenda.
Marcar algo minimamente romântico é uma novidade para mim. Uma
novidade bem-vinda.

Calebe me aconselhou sobre o encontro ao ar livre quando me ouviu


reclamando com Maurício sobre a minha inexperiência. Imaginei que se
tratasse de um ardil para me prejudicar, mas quando olhei em seus olhos e o
questionei sobre a sua verdadeira intenção ao me ajudar, ele deu de ombros e
exalou com pesar.
— Estou preocupado — confessou, sua voz sempre energética e cheia
de determinação expressando cansaço. — Eu a conheço, sei que deve estar
surtando com a eliminação e com o nosso… — Ele fez uma pausa, jamais
completando aquela frase, embora eu tivesse as minhas suspeitas.

Os dois estiveram juntos, às escondidas, e mesmo Maria Flor


alegando que o odiava, algo havia acontecido entre eles.
— E você quer que eu a ajude a relaxar? — Torci o nariz, percebendo
a arrogância do seu pedido. O maldito não me via como uma ameaça.

— Quero que você não se torne mais um problema para ela resolver
até a primeira eliminação — disse com um pouco mais de rispidez, como se
aquela decisão lhe custasse um grande esforço.
— Ei, isso não é justo! — Maurício interviu. — Na minha vez, não
teve dicas.
— Não confio em você. — Calebe se recostou na poltrona da sala
onde estávamos e colocou os braços atrás da cabeça.
E ele confiava em mim?

Maurício proferiu um xingamento e nos ignorou, entediado como


sempre.
— Já conseguiu suas provas? — perguntei, observando seu rosto.
Todos nós ficamos sabendo, por meio de Bartolomeu, que ele estava atrás das
supostas evidências que comprovariam sua inocência e lhe garantiriam um
espaço na cama de Maria Flor para sempre.
Calebe e eu já nos encontramos antes do programa, trocamos algumas
palavras em eventos e tínhamos negócios em comum. Mas eu não podia dizer
que o conhecia de verdade. De repente, senti vontade de pressioná-lo e

descobrir o que mais ele tinha a oferecer por trás da postura de homem
arrependido.
— Não. — Ele me encarou. — Por que a pergunta?
— Só estou curioso. Olhando de fora, é difícil de entender porque um

cara como você, que pode ter tudo o que quiser, está se esforçando tanto por
uma mulher que te odeia.
— Ela não me odeia — disse, desviando o olhar para o chão. Nem ele
acreditava naquela merda que estava dizendo. — Ela acha que me odeia, é
diferente.
— Bom, ela tem motivos — provoquei.
— Ela acha que tem — Calebe vociferou, começando a se irritar.
— Culpado até que se prove o contrário — pressionei mais. Calebe

deixou os olhos brilharem, a raiva reprimida por um fio. — O que foi?


Perdeu a vontade de me dar dicas agora?
Soltei um riso forçado e o desafiei com meus olhos. Eu queria não
saber o motivo por trás da minha rispidez, mas eu sabia. E naquele instante,
Calebe era, para mim, a personificação exata de tudo o que eu mais odiava:
traidores.
Mas ele não se deixou levar pelas minhas acusações veladas. Com um
autocontrole da peste — precisei lhe dar créditos por não voar em cima de
mim — ele começou a listar:

— Maria Flor não é uma mulher difícil de agradar. Ela gosta de coisas
doces e um cenário bonito. Se arrumar uma câmera para que possa se distrair,
será como colocar um brinquedo novo nas mãos de uma criança.
Calebe sorriu ao descrevê-la, e por um breve momento eu senti inveja

daquele nível de amor, um que transformava suas feições à simples menção


da pessoa amada, que abrandava os sentimentos negativos, fossem eles de
raiva, medo ou ciúmes, e trazia algum sentido para a vida.
Era caloroso.
Quase não me lembrava da sensação.
Mas, então, aquele semblante amável se transfigurou, traços duros e
até perversos ganhando espaço em seu rosto. Calebe ergueu-se acima de
mim, os olhos cerrados em fendas.

— Pode aproveitar o seu tempo com a minha mulher, faça ela sorrir e
gaste seus olhos com a beleza dela, mas não pense que estou dando a minha
maldita bênção para fazer o que quiser.
Seu aviso flutuou até mim enquanto ele se esgueirava para outro
cômodo do nosso apartamento. Pelo visto, ele não me achava tão inofensivo
assim, talvez só estivesse disfarçando muito bem.
Depois de muito ruminar suas dicas, cheguei à conclusão de que um
piquenique em meu humilde quintal de trinta hectares seria o suficiente. Se
eu estava me aproveitando da situação para voltar para casa? Provavelmente.

— Você vive aqui sozinho? — Maria Flor me assiste colocar uma


infinidade de coisas em cima da mesa, a lembrança sendo expurgada para o
limbo da minha mente.
— Sim.

— Seus pais?
— Não tive pai, minha mãe me criou sozinha e acabou falecendo há
alguns anos.
— Sinto muito.
— Já faz tempo. — Dou de ombros para mostrar que está tudo bem.
— Na época foi doloroso, só tínhamos um ao outro. Com o passar dos anos
foi ficando mais fácil. A gente meio que se acostuma.
— Irmãos?

— Nada de irmãos, avós, tios ou parentes distantes. — Passo o


resumo completo. — Pensei que já tivesse pesquisado sobre nós no Google,
florzinha. Tenho minha própria página na Wikipédia, sabia?
Ela arqueia as sobrancelhas delicadas e bem feitas, parecendo
surpresa, um divertimento travesso cruzando seu olhar.
— Não pensei nisso, mas obrigada pela sugestão. — Sinto sua
atenção enquanto executo minha tarefa. — Você pesquisou sobre mim?
Lanço um olhar para a equipe, que tenta fazer parte da decoração para
que fiquemos mais à vontade. Eles não são muito bons nisso.

— Você sabe que nós, os noivos, não podemos ver a sua aparência
antes dos nossos encontros — lembro-a sugestivamente. — Investigar suas
redes sociais, como o seu Instagram pessoal, seria contra as regras.
Sim, digo através de um olhar solene, eu pesquisei sobre você, e, sim,

eu vi todas as suas fotos com Calebe, incluindo aquelas que eu preferia não
ter visto.
Ouço seu gemido frustrado, seguido por um silêncio tenso. Continuo
executando a minha tarefa, lendo os rótulos das embalagens — cerejas
frescas, queijo provolone, salame, peito de peru, torradas integrais — até que
seu sussurro preenche a cozinha.
— Que bom. — Ela morde o lábio inferior, envergonhada. — Porque
ainda tem coisas lá que preciso excluir. — Em outras palavras, ela quer dizer

que aquelas fotos não significam mais nada. Não que ela me deva satisfações,
de qualquer modo. — Pensei que ficaria tudo bem fazer isso só quando o
programa fosse ao ar, não imaginava que Calebe seria um dos noivos e nem
que tudo ficaria tão confuso.
— Você se arrepende? — pergunto de maneira vaga, organizando os
produtos dentro de uma enorme cesta feita com palha trançada.
— De ter entrado no programa?
Paro de me mover e a encaro, não querendo perder nenhuma de suas
reações à questão. Estou curioso para saber se aqueles sentimentos que vi

demonstrados por Calebe, de pertencimento, saudade e paixão, ainda existem


para ela também. Se vamos fazer isso — competir pela mão dela —, eu quero
saber em que tipo de batalha estou me enfiando, e se vale a pena sacar as
minhas armas.

— A vinda dele fez você se arrepender?


Maria Flor nega, balançando a cabeça.
— Teria sido pior se eu não tivesse vindo — diz com o vigor
renovado. — Sabe aqueles vídeos que viralizam na internet, de mulheres
descontroladas destruindo os carros dos maridos com um pé de cabra?
Faltava isso aqui para eu me tornar uma delas. — Ela junta o polegar ao
indicador, mostrando o espaço de meio centímetro entre eles.
Sorrio ao imaginar a cena.

— Você queria se sentir melhor — atesto, identificando-me com o


sentimento.
— Sim, eu precisava fazer alguma coisa além de esperar. Estava a
ponto de enlouquecer conforme as semanas passavam. E, quando fiquei
sabendo que tinha sido escolhida, eu fingi que era um sinal divino. Se nada
der certo e eu continuar me sentindo um lixo, coloco a culpa em Deus e vou
para o plano B.
Gargalho, espalhando fatias de pão sobre a bancada para recheá-las
com um pouco de tudo o que achar pela frente.

— Qual seria o seu plano B?


— Primeiro, pedir ao meu pai para devolver o presente que dei a ele
antes de viajar.
— Como assim? O que era?

Maria Flor abre um imenso sorriso insolente e explica:


— Um conjunto novinho de pés de cabra feitos com aço especial em
cinco tamanhos diferentes.
Dessa vez, Maria Flor me acompanha na risada, mas faço uma nota
mental de manter meus carros longe dela, caso nos tornemos marido e
mulher, assim como facas de cozinha, pás, chaves de fenda e qualquer coisa
que lembre vagamente uma arma branca, só por precaução.
De repente, ela pula de seu banco alto e para ao meu lado, seu

perfume floral ondulando como uma cortina sedutora invisível.


— Com todo respeito. — Ela averigua minhas habilidades culinárias
de perto. — Você quer me matar? O que exatamente são essas coisas?
Eu a imito e também analiso minhas criações em busca de defeitos.
Parece bem óbvio para mim.
— Sanduíches de mortadela com coisas gostosas que encontrei por aí.
— João Guilherme — chama, séria, os olhos presos aos meus. —
Junte suas mãos e feche os olhos. — Faço como ela manda. — Agora, peça
perdão ao porco que morreu em vão para ser desperdiçado nesse experimento

químico altamente mortal que você apelidou de sanduíche.


Sinto uma careta tomar conta do meu rosto e a dispenso.
— Todo mundo elogia a minha comida — defendo-me — e tenho
certeza de que você vai gostar depois que der uma mordida.

— Todo mundo, quem? — pergunta, desconfiada, olhando ao redor


como se procurasse por pessoas dispostas. A equipe de gravação desvia os
olhos para o teto.
— Meus... — Penso a respeito antes de responder. — Funcionários.
— Você paga o salário deles, não conta. — Ela segura minha mão e
me conduz para o banco do qual acabara de sair. — Você não é dono de uma
rede de produtos alimentícios? Essa coisa fitness, natural e tudo mais? Como
foi que ficou tão rico?

— Eu sou um empresário — explico. — Um homem de negócios,


apenas investi no que o mercado precisava. Tenho pessoas qualificadas
cuidado da fabricação dos meus produtos.
— Isso explica muita coisa — diz, rindo. — Você fica sentadinho
aqui e não encosta em nada, eu vou preparar sanduíches de verdade para nós
dois.
Enquanto se afasta, perambulando pela cozinha sempre vazia do lugar
que um dia eu chamei de lar, apenas obedeço e espero, observando. Por
instinto, minha mão busca o pequeno anel pendurado em meu pescoço, um

hábito que adquiri com o passar dos anos e que costuma me confortar.
Faz muito, muito tempo desde quando tive companhia em casa pela
última vez, e não tenho lembranças de alguém cozinhando para mim em um
passado próximo (se é que montar sanduíches se enquadra na prática de

cozinhar), e eu gosto da sensação. Ela age com tanta naturalidade e


determinação, mesmo para uma tarefa tão simples, que não ouso contestar.
Eu já havia gostado de sua personalidade quando estava vendado e
trocamos meia dúzia de palavras, agora estou somente comprovando aquilo
que já imaginava: ela é mais do que um rostinho bonito. E é bom saber que
sou o responsável por colocar um pouco de cor em seu rosto.
A voz de Calebe me atinge, ecos da conversa que tivemos.
Pode aproveitar o seu tempo com a minha mulher...

Maria Flor cantarola baixinho, fazendo caras e bocas para os


sanduíches já montados antes de jogá-los no lixo. Quase solto outra risada,
mas não quero chamar sua atenção. Observá-la tem algo de prazeroso que
não sei explicar.
...faça ela sorrir...
Ela abre a sacola de pães e organiza as fatias uma ao lado da outra, a
boca curvada para cima em um sorriso divertido que não se desfaz. É um belo
sorriso em uma bela boca, que abre muitas portas para a imaginação,
sobretudo depois da aposta que fizemos — era para ser uma brincadeira, mas

agora já não tenho certeza se quero apenas brincar. Beijá-la soa como uma
possibilidade tentadora demais para ser desperdiçada.
...e gaste seus olhos com a beleza dela...
Não consigo parar de olhar, merda!

...mas não pense que estou dando a minha maldita bênção para fazer
o que quiser.
“Nada melhor do que um bom mergulho para refrescar ideias calorentas,
mas não esqueça do seu equipamento de segurança: um noivo ideal.”

MARIA FLOR

Suruba.
Quem inventou? Os gregos?
Com certeza os gregos, eles adoravam uma bagunça e eram bem
espertos. Bobos somos nós, que em pleno século vinte e um, ainda não

aprendemos que compartilhar é uma demonstração de amor ao próximo.


Em um mundo perfeito, eu poderia ter cinco maridos e nenhum
estresse com escolhas tradicionais. Por que escolher um, se eu posso ter um
rodízio? Se organizar direitinho, todo mundo fica feliz. Seria bem mais fácil
conviver com a minha decisão.
Mas, em um mundo perfeito, eu não teria pregas — as quais estou
satisfeita em manter em seus devidos lugares.
Sendo assim, só restam duas outras opções para o meu futuro: me
tornar uma freira ou encarar a realidade.

E a realidade é que, observando João Guilherme com os imensos


braços à mostra em sua camisa branca de mangas curtas, sentado sobre a
grama verde de seu estúpido jardim de gente rica, enquanto o Sol banha sua
pele negra com um brilho reluzente, não tenho dúvidas de que eu seria uma

péssima freira.
— O que foi? Já é a quinta vez que você suspira nos últimos cinco
minutos.
Eu nem percebi que estava suspirando, ou babando. Recomponho-me
e paro de encarar seu corpo como se tivesse uma imensa placa escrita "sente
aqui" apontando para o seu colo.
Inferno, qual é o meu problema? Quando eu me tornei uma
ninfomaníaca?

Eu estava indo bem com a minha abstinência sexual até…


Até o beijo de Judas.
Agora eu sou uma cadela no cio. Ótimo!
— Apenas admirando a paisagem. Sua casa é incrível, mas eu gosto
mais dela assim, vista pelo lado de fora. Seu paisagista fez um ótimo
trabalho. — Fico feliz por encontrar uma resposta convincente sem precisar
mentir.
O cenário ao redor do casarão parece o palco de um romance de época
se ignorarmos as câmeras. Palmeiras altas margeiam todo o caminho da

entrada até a planície baixa na qual estamos. Há uma pérgola à direita,


encoberta pela vegetação, e eu posso facilmente imaginar um jantar sendo
servido abaixo das vigas. No horizonte, sua propriedade se estende até uma
depressão, e além, depois de toda a beleza natural, é possível apreciar a

plenitude de um grande lago.


Existem coisas que garantem o título de "podre de rico" a certas
pessoas, ter um lago é uma delas.
— Tenho um presente para você.
Curiosa, deixo de lado a modéstia e nem disfarço o interesse súbito.
Ele foi o primeiro a ser esperto e me paparicar com algo. Número Quatro
merece pontos a mais.
— Acha que pode me comprar com coisas caras? — Ergo uma

sobrancelha e me divirto com a hesitação que surge em seus olhos. —


Porque, se sim, saiba que está absolutamente certo.
— Era só isso o tempo todo? — Ele retira uma caixa embrulhada da
cesta. — Meus colegas ficarão desapontados quando souberem.
— Quando souberem que sou uma interesseira?
— Que bastava gastar algumas centenas de reais para fazê-la sorrir
assim.
Ele disse centenas?
— Por um presente que custa centenas, eu posso até gargalhar —

asseguro, rindo de expectativa — ou latir, o que você preferir.


João Guilherme joga a cabeça para trás e seu peito treme com a risada
alta.
— Cuidado com essas ofertas, querida. Eu posso acabar tendo ideias.

Sinto o estômago dar voltas com seu aviso. Havia quase me esquecido
que ele é um mestre na arte das insinuações indecentes.
Fico de boca fechada, com medo de dizer algo estúpido, como au au.
Vendo que me deixou sem palavras, João Guilherme estica a mão e me
entrega a caixa de tamanho médio. É relativamente pesada. Eu a chacoalho
perto do ouvido, mas o som abafado não me dá pistas do que pode haver lá
dentro.
Sem fazer cerimônia, arranco o embrulho colorido e abro a caixa.

— Isso é… — Arquejo, surpresa, arregalando os olhos. — Isso é


mesmo uma…
— Polaroid — ele diz, confirmando o que meus olhos veem. — Eu
pensei em comprar uma câmera profissional, mas não entendo nada de
fotografia e acabaria comprando algo inútil. Também supus que, sendo você
uma fotógrafa, já deve ter câmeras profissionais o bastante. Achei que seria
legal ter algo mais prático para registrar os bons momentos.
Seguro a câmera com cuidado, apreciando o design preto-fosco do
material e a abertura para a impressão das fotos instantâneas.

— Eu amei — suspiro, mais emocionada que uma pessoa normal. —


Quem precisa de um Rolex? — Ouço-o dar risada e olho para ele, animada.
— Podemos testar? Agora?
— Claro, por que não?

Solto um gritinho esfuziante e preparo a câmera, tirando minhas


dúvidas de uso no manual. Depois de tudo pronto, olho ao redor em busca de
inspiração e motivação, meu lado profissional aflorando.
O lago, a casa, o pergolado cheio de vinhas e flores, e as palmeiras,
tudo se destaca, ganhando vida, como se as cores quentes tivessem sido
saturadas pelo calor da tarde. Mas não estou em busca de obviedade. Eu
quero as silhuetas escuras dos pássaros com suas asas abertas contra o azul-
anil do céu limpo. Quero a janela de madeira que balança sutilmente no ritmo

da brisa, lembrando-nos que a esquecemos aberta. Quero um momento, um


detalhe, uma lembrança.
Instintivamente, posiciono a câmera, apagando tudo da minha mente e
me concentrando apenas no clique perfeito. Pressiono o botão, ouço o
barulho e o zunido mecânico da foto sendo impressa. Em segundos, eu a
tenho em mãos, agitando para revelar a imagem.
Assim que confiro a foto pronta, meu peito parece inchar de orgulho.
Fazer o quê? Eu sou boa no que faço.
— Uau — João Guilherme diz, olhando por cima do meu ombro. —

Como você fez a minha chaminé antiga se parecer com uma obra de arte?
Olhamos ao mesmo tempo para o topo de seu telhado, e depois para o
retrato quadrado entre meus dedos, uma fração congelada do tempo que
nunca mais se repetirá, o momento exato em que uma andorinha pousava nos

tijolos da chaminé.
— O segredo está nos detalhes — explico vagamente. Não dá para
resumir anos de estudo, profissionalização e experiência de campo, em uma
conversa. — Quer tentar?
— Não, não, vou acabar fotografando o meu próprio nariz. Não sou
bom como você.
— É para os bons momentos, você mesmo disse. — Coloco a câmera
nas mãos dele. — Vamos, tente, faça do seu jeito.

— Eu já falei para tomar cuidado com as coisas que você fala. — Ele
me puxa pelo braço, como uma boneca de pano, manobrando-me em cima
dele. Rindo e sem entender nada, esbarro em uma garrafa de chá gelado,
fazendo uma bagunça na toalha xadrez. Nenhum de nós se importa. — Tudo
bem, vamos do meu jeito, então.
Com a mão pousada em minha cintura, João Guilherme limita meus
movimentos e possibilidades de fuga, mesmo não fazendo parte dos meus
planos tentar escapar — ainda. Ele acomoda minhas pernas dobradas em
cima de suas coxas, meio sentada em seu colo. Apoio a cabeça em seu

ombro, imaginando se tratar de uma pose decente para um bom registro.


Quase parecemos um casal. Estremeço. Isso é bom, não é?
Sorrio para a lente da câmera e o sinto me apertar mais forte pouco
antes do disparo. Ele pega a fotografia com a ponta dos dedos e coloca na

frente da boca, soprando-a com um olhar penetrante em mim.


— Nada mal — digo, fingindo não me impressionar com a sua
ousadia.
Tudo o que eu queria era ter coragem de apertar meus seios em seu
braço, levá-lo ao limite como uma garota safada e desinibida faria, e lhe dar
um beijo de tremer as pernas (minhas pernas, não as dele). Mas a verdade
triste e cruel da minha vida é que eu sou uma farsa. Uma coisa é pensar
indecências envolvendo orgias gregas, outra completamente diferente é

colocar em prática tudo o que se passa no cabaré da minha cabeça.


— Olhe, não ficou ruim. — Ele mostra sua arte já revelada.
Tecnicamente falando, não é mesmo uma foto perfeita, mas ele
conseguiu enquadrar nós dois, o casarão e uma parte do céu. Uma foto
casual, do tipo que se tira com quem a gente gosta para colar no espelho do
guarda-roupa.
Eu costumava ter várias assim com Calebe. Estremeço de novo. Que
merda?
— Ficou ótima — digo, sentindo uma leve pontada de culpa.

Espera aí! Eu disse culpa? Que doideira é essa? Não posso me sentir
culpada toda vez que um homem me despertar sentimentos bons.
— Eu sei como se sente — João Guilherme diz no meu ouvido. — Há
cinco anos, encontrei minha namorada na cama com cara, bem ali, naquele

quarto. — Erguendo o dedo, ele aponta para uma janela do segundo andar,
onde sei que fica o maior dos quartos.
— Tá bom — debocho. — Até parece.
— É verdade! — insiste, beliscando a minha cintura. — Ela me
trocou pelo jardineiro. Eu estava trabalhando duro para expandir os negócios
e quase não tinha tempo para ficar em casa. Existe uma expressão para isso:
quem não dá assistência, abre a concorrência.
— Oh. — É a coisa mais inteligente que consigo dizer.

Quase pergunto quem seria doida de trocar um homem como ele por
qualquer outro, mas aí eu me lembro que também me achava a última Coca-
Cola do deserto e veja só onde eu estou.
— É por isso que eu não venho para casa com frequência.
E por isso não costuma trazer mulheres com ele.
— O anel era dela? — Aponto para sua corrente com o queixo e o
sinto ficar tenso ao meu lado. — Não precisa contar se não quiser.
Ele fica em silêncio por pelo que parece um mês inteiro antes de
responder.

— Ela o jogou daquela sacada. — João Guilherme indica o parapeito


rústico de madeira. — Demorei uma semana para encontrá-lo. É uma relíquia
de família, caso contrário, eu nem teria me dado ao trabalho de procurar.
Eu procuraria pelo simples fato de ser um diamante do tamanho de

uma bola de golfe.


Olho para o alto e imagino uma mulher aos berros na sacada, atirando
a preciosa relíquia de João Guilherme para o imenso tapete de grama abaixo,
sem nenhuma consideração pelos sentimentos que seriam feridos com sua
atitude egoísta, e decido que não gosto mais tanto assim da casa ou do jardim.
Até o lago perde o seu encanto.
— Por que não se mudou? Com tantas lembranças dolorosas, é o que
eu faria.

Continuamos abraçados, sua mão acomodada na lateral do meu corpo.


Convenço-me de que estamos seguindo o roteiro, que faz parte do show, e
que, depois do fiasco de dormir no carro, eu preciso oferecer algo à produção.
Nossa posição é íntima, parecemos futuros amantes, mas o teor da nossa
conversa não poderia ser mais amigável.
João Guilherme sorri.
— Vender uma propriedade inteira só para não pensar na minha ex-
mulher de quatro, transando com outro homem em cima da minha cama? —
Ele bufa, cético. — Extremo demais. Troquei a cama e me mudei para outro

quarto.
— É o que eu faria. — Deixo minha cabeça pender para o lado,
deitando-me em seu ombro. — Por causa do lance de sentir que preciso fazer
alguma coisa para não pirar, entende? Primeiro, eu pensaria em colocar fogo

em tudo, numa vibe meio Daenerys Targaryen montada no dragão, depois eu


teria um momento de lucidez e contrataria um ótimo corretor de imóveis.
Olho para cima, precisamente, para as covinhas em suas bochechas.
Perto demais.
— Vamos fazer um acordo?
— Outro? — Arqueio a sobrancelha.
— Sou um homem de negócios, gosto de desafios. — Ele não está
mentindo, pois foi graças a uma aposta de bar que acabou se inscrevendo no

programa. — E um acordo é bem diferente de uma aposta.


Reflito por meio segundo. O que eu tenho a perder? Pois é, nada.
— Estou escutando.
— Case-se comigo, e eu vendo a casa.
Abro a boca, arqueando as duas sobrancelhas. Ele acabou de me pedir
em casamento da maneira menos romântica possível?
— Que deprimente, Guilherme. — Sou obrigada a rir. — Pelo menos
enfrente seus próprios traumas como um homem.
— Ei! — Ele se rebela, dando-me outro beliscão, dessa vez, mais

perto da minha bunda. — Somos um time.


— O time dos cornos depressivos que não fazem sexo e se recusam a
procurar um terapeuta?
— Eu faço sexo — ele protesta, ofendidinho. — Um monte de sexo.

Sexo não é um problema. — Com uma cara e um corpo desses, não duvido
do que ele diz. — Espera, você não fez sexo com ninguém desde o Calebe?
Preciso costurar a minha boca.
Ou cortar a língua
Logo agora que tinha conseguido ficar cinco minutos sem pensar em
Calebe.
— Cala a boca — murmuro.
— É sério?

— Cala a boca — repito, odiando a risadinha traidora que ameaça


escapar de mim.
— Eu me voluntario! — Ele ergue o braço como se fosse a própria
Katniss Everdeen antes dos Jogos Vorazes.
— Cala a boca. — Dou um cutucão em sua costela. Lá está, meu
sorriso bobo. — Você é um idiota.
— Qual é? Pode me usar. — João Guilherme, sem nenhum esforço,
termina de me colocar em seu colo, com uma perna a cada lado de seus
quadris.

Opa! Isso sim é perto demais.


Não me sinto desconfortável com a posição íntima, é gostoso deixar a
inibição de lado e aproveitar a leveza de sua companhia, mas nem de longe
João Guilherme consegue despertar em mim o mesmo desejo insano que

Calebe.
— Eu estou falando sério. Superar um término sozinha demora muito
mais e é bem mais doloroso, digo por experiência própria. Às vezes, é melhor
arrancar o band-aid de uma vez, ao invés de sofrer aos poucos.
— Não estou atrás de sexo. Não preciso de sexo. Sexo é sup… — Ele
aperta a minha bunda com as duas mãos. Não havia reparado no tamanho dos
seus dedos até agora, mas eles envolvem praticamente toda a circunferência
da minha carne. — Superestimado — ofego. — Primitivo. — Pisco uma vez,

sentindo a boca secar. Estamos em público! — E deixa as pessoas burras.


— Amor deixa as pessoas burras. — Seus lábios estão a centímetros
dos meus. — Orgasmos deixam as pessoas felizes. Você não quer ser feliz,
Maria Flor?
Eu quero um orgasmo. Estou montada em um homem bonito, rico,
divertido e gostoso que pode me proporcionar isso, que ficaria feliz em enfiar
a mão por baixo do da minha saia e me estimular até eu gozar em seus
dedos. Pior, bastaria me esfregar em seu colo, no volume crescente abaixo de
mim, transando a seco, não levaria mais do que um minuto.

Porém, só de me imaginar indo tão longe, sinto vontade de vomitar.


E chorar.
Sim, eu quero um orgasmo, quero o êxtase momentâneo, a explosão
de cores e o suor escorrendo pela minha testa, mas também sei o que eu não

quero: deixar que João Guilherme siga em frente e dê o que meu corpo
deseja, mesmo eu sabendo que imaginarei outras mãos em meu corpo, outros
dedos dentro de mim, e outro colo enquanto cavalgo nele.
Não sou tão filha da puta assim.
— Desculpe — digo, o gosto amargo escorrendo pela minha garganta.
Minha mente e corpo entram em conflito e eu me atrapalho, sem saber como
agir, o que fazer, para onde ir. — Eu não…
— Tudo bem. — Dou graças a Deus quando João Guilherme

compreende a minha situação e para imediatamente com seus avanços. Ele


me ajuda a sair de cima dele e me sentar ao seu lado. — Eu que peço
desculpas por passar dos limites.
— Você não passou — garanto depressa. Aperto os olhos, cada
pedaço do meu rosto queimando de vergonha. — Eu passei.
João Guilherme não tem culpa. O problema sou eu. Eu sou a garota
confusa que beijou Calebe/Judas sem nenhuma dificuldade e mal consegue
dormir uma noite inteira sem fantasiar com ele. Eu sou a maluca que se finge
de durona e bem resolvida, mas não consegue seguir adiante quando se trata

de um homem decente.
Camisa de força, por favor!
Ocupo-me com a comida, jogando um pouco de cada coisa na boca
para mantê-la cheia. Quanto menos eu falar, melhor. Dez minutos mais tarde,

para a minha alegria, João Guilherme assume a tarefa de fingir que nada
aconteceu.
— Se nos casarmos, eu vendo a casa — propõe outra vez, mas soa
mais como uma afirmação.
Respiro aliviada e sorrio. João Guilherme é um candidato forte, temos
muito em comum. Eu só tenho que continuar tentando. Entrego-lhe um copo
de plástico com suco de laranja e brindamos como dois sócios firmando um
contrato importante.

***

A água bate na altura dos meus joelhos.


De quem foi a ideia de entrar no lago? Minha, é claro. Se eu já me
arrependi? Assim que me lembrei da aposta — tirar nossas roupas está fora
de cogitação, já que não definimos contextos e ficar seminua para nadar tem
o mesmo peso de ficar seminua para qualquer outra coisa.
Nossos urubus (cinegrafistas) tiveram que nos acompanhar com todo

aquele equipamento de gravação, mas não disseram nada além de uma


advertência para tomarmos cuidado com os microfones escondidos embaixo
das nossas roupas.
Agarro a barra da minha saia, embolado acima das coxas, e caminho

na margem do lago, sem coragem para ir mais longe mesmo João Guilherme
me falando que não há perigo.
— Não sei nadar — explico, olhando para trás, onde ele me espera em
terra firme, seco e seguro. — É ridículo, eu sei, mas nunca tive oportunidade
de aprender durante a infância.
— Não sabe nadar? — pergunta, incrédulo, como se eu tivesse
confessado que chutei um cão.
— E só aprendi a andar de bicicleta aos vinte e dois.

Calebe me ensinou.
Okay, não vou contar isso.
— Não sei assobiar — diz, posicionando-se perto da margem. — Eu
cuspo, é nojento.
Ele pega uma pedrinha do chão e a arremessa com força. A pedra
quica três vezes antes de afundar, formando pequenas ondas na superfície.
— Não precisa contar algo constrangedor só porque eu contei
primeiro. — Trocamos sorrisos cúmplices.
Está quase na hora de irmos embora. De todos os meus encontros,

este foi o mais longo e divertido. Parte de mim não quer voltar.
— É o justo. Você conta algo constrangedor, eu conto outro em troca.
— Sendo assim, está me devendo. Contei duas coisas — observo,
triunfante.

Ele pisca um olho, pensa por um momento e diz:


— Quando eu tinha dez anos, sonhava em ter uma cabra. Minha mãe
nunca deixou, obviamente, mas eu continuei pedindo uma em todos os natais
até completar quinze anos.
— Desistiu da sua cabra?
— Era um sonho bobo — conclui, procurando por mais pedras no
chão.
Dou mais dois passos adiante, testando a profundidade.

— Já fugi de casa — confesso, gostando da nossa estranha


brincadeira. — Enchi minha mochila com salgadinhos, chocolates e um
casaco, peguei dois ônibus até o terminal rodoviário e liguei chorando para o
meu pai me buscar.
— Por que fez isso?
— Eu só queria viver a experiência. Estava numa fase rebelde, com
medo de não viver grandes aventuras. Fiquei um ano de castigo, mas ganhei
uma boa história para contar.
Seu sorriso fica mais largo quando me procura com os olhos.

— Vai continuar contando coisas pessoais para arrancar informações


de mim?
— Talvez. — Empino o nariz, chutando a terra fofa no fundo da água.
— Sua vez agora.

— Vejamos. — Ele olha para o céu. — Adoro o meu trabalho, sou um


ótimo investidor e não me arrependo da carreira que escolhi para seguir, mas,
às vezes, sinto que estou empacado, que não há nada novo esperando por
mim. Eu… — Encolhendo os ombros, João Guilherme, com toda a sua
corpulência, parece-se com um menino. — Eu comecei a escrever uma vez.
Um livro, no caso. Um livro bobo de romance. Romances são o meu guilty
pleasure. Tenho uma biblioteca no meu apartamento onde passo a maior
parte do meu tempo. — Seus olhos brilham mais do que o reflexo dos raios

solares sobre a água. Sua animação me contagia. — O que foi? Acha que
homens não podem ler romance?
— Muito pelo contrário. — Sou obrigada a revirar os olhos. — Acho
que você acaba de garantir sua vaga na grande final. — Nós dois rimos ao
mesmo tempo. — Por que não terminou o seu livro?
Ele dá de ombros.
— É meio difícil escrever um livro de romance quando se perde a
vontade de amar. E, como eu disse, era um capricho, uma bobagem.
Tudo bem, não esperava por isso. Eu o analiso. Nada em sua voz

reflete o peso de sua declaração, como se não passasse de uma frase que já
foi repetida muitas vezes — suponho que o tenha feito para si mesmo ao
longo dos últimos cinco anos. Não trouxe a câmera comigo, precavendo-me
de derrubar meu presente recém ganhado na água, mas, olhando-o de pé na

margem seca do lago, com os pés descalços e sujos, mãos nos bolsos, sei que
conseguiria captar o que ele tenta esconder se pudesse fotografa-lo.
A solidão.
— Não é bobagem — digo, segurando-me para não ir até ele e fazer
algo do qual me arrependeria mais tarde. — Há coisas que eu quero fazer
também, como pular de paraquedas, plantar uma árvore em uma área de
reflorestamento, e dirigir uma limusine, sendo que eu nem sei dirigir. Nada
disso é bobagem. — Depois de uma pausa, acrescento com fervor: — Vários

pequenos sonhos valem tanto quanto um sonho grande.


Outra pedra dispara sobre a água. Quatro pulos antes de afundar.
Não sei se prestou atenção no que eu disse, mas ele fica sério. Em
silêncio, João Guilherme assiste os círculos se expandindo. Eu os sinto
tocarem a pele nua das minhas coxas, trazendo seu olhar até mim. A forma
como seus olhos sobem lentamente pelo meu corpo, atento a todos os meus
detalhes, me causam arrepios que em nada têm a ver com a temperatura do
lago.
— Já sabe quem vai eliminar? — pergunta, o tom rouco.

Será que sei? Sei quem eu deveria eliminar (Calebe), e quem eu


preciso eliminar (Bartolomeu). Mas e quem eu quero eliminar?
— Não precisa se preocupar. — Volto-me para ele, ficando
completamente de costas para o centro do lago. — Você foi muito bem neste

encontro. Gosto de espaços abertos, de sentir a grama sob os pés e o Sol da


tarde no rosto. A câmera foi a cereja no bolo. Parece até que você já me
conhecia.
Algo cruza o rosto de João Guilherme, como um incômodo. Abaixa-
se antes que eu consiga decifrar, pega uma terceira pedra e a arremessa,
fazendo-a pular impressionantes cinco vezes.
— Quer tentar? — oferece, pegando mais algumas pedrinhas.
Não me passa despercebida sua mudança nada sutil de assunto.

— Claro.
Ele entra no lago, encharcando as calças. Seu reflexo tremula na
minha direção à medida que se aproxima até parar ao meu lado. Pego a pedra
que ele me entrega, testo seu peso, fecho-a em meu punho e jogo o braço para
frente com toda a minha força. Ela voa no ar, cai como uma bomba e afunda
de uma só vez.
João Guilherme explode em uma gargalhada, o timbre calmo e sereno
retornando.
— Tente curvar o pulso e jogar em linha reta, para que a pedra

deslize. O segredo não está na força, mas no ângulo correto, precisa afastar
mais os joelhos e controlar a sua respiração. — É oficial: ou ele consegue
fazer tudo o que diz parecer meio pornográfico, ou eu é que tenho a mente
poluída demais. — Aqui, pegue outra.

Repito o processo, aplicando suas instruções em minha tentativa.


Afasto as pernas, curvo meu pulso, jogo em linha reta e…
A pedra afunda. Nem uma quicadinha.
Só para se exibir, ele joga a última pedra disponível, que
graciosamente pula sem parar vários metros à frente. Conto seis pulinhos. Eu
a nomeio Daiane dos Santos.
— Convencido.
Ouço seu riso se propagar. Enquanto me viro na direção do som, sei

exatamente o que encontrarei: covinhas, dentes retos e perfeitos nos lábios


carnudos, mais uma chance para "arrancar o band-aid" se eu quiser. No
entanto, contrariando minhas expectativas, eu a vejo, pairando atrás dele
silenciosamente, como se estivesse só esperando eu vê-la para engolir nossas
almas.
Uma borboleta.
Grande, imensa, monstruosa e horripilante borboleta.
Tudo acontece rápido demais. Em um minuto, João Guilherme está
abrindo a boca para falar alguma coisa, no instante seguinte, recuo sem rumo,

berrando, meu pé não encontra o fundo do lago e escuto o "splash" do meu


corpo caindo na água.
Eu vou morrer?
É como naquelas piadas de "qual caminho você escolhe", de um lado,

está o fundo escuro e mortal de um lago, do outro, o ser mais maligno que
existe (uma borboleta). Eu teria escolhido o fundo do lago mesmo.
Engulo um bocado de água enquanto me debato em uma tentativa
humilhante de nadar. Felizmente, não fico submersa por tempo o suficiente
para me afogar. Braços fortes me envolvem e sou puxada para cima.
Tossindo, tremendo e chorando, agarro o pescoço de João Guilherme
e me encolho.
— Porra, você está bem? — Escuto a preocupação em sua voz.

— Onde ela está? — pergunto, aterrorizada e ofegante, olhando para


todos os lados. — Para onde ela foi?
— Ela, quem?
— A borboleta! — grito. — Ela estava bem atrás de você e agora…
— Ele faz menção de me afastar da segurança de seu colo e eu me desespero
mais, fincando as unhas em seus ombros. — Não ouse me soltar, João
Guilherme. Ela pode estar por perto! Por favor, por favor.
Em resposta, João Guilherme me pressiona contra o peito e começa a
caminhar determinado rumo à terra seca. Ele não me interroga, não me

repreende e nem caçoa do meu medo (não o julgaria se fizesse), somente me


carrega como uma princesa. Ao sairmos da água, ele se direciona para o
casarão e não para nem quando a equipe de filmagens corre para oferecer
ajuda.

No meio do caminho, ouço-o sussurrar:


— Não vou soltar você.

***

A pior parte foi explicar que eu quase me afoguei, fiquei ensopada,


causei a perda total de dois microfones profissionais e acabei com o encontro
de vez, tudo por causa do meu pânico de borboletas.

Depois que me acalmei, tive que lidar com a vergonha. Não estava
preparada para ver o lado protetor de João Guilherme, mas de todas as
versões que me mostrou no dia de hoje, aquela foi a mais surpreendente,
porque ele se tornou alguém que eu espero ter na minha vida, independente
das condições. O problema é que os encontros deveriam me trazer respostas,
e eu não poderia estar mais confusa.
Sou um desastre ambulante descendo desgovernadamente uma ladeira
esburacada.
Sento-me perto da janela, onde há incidência de luz, na esperança que

minhas roupas sequem antes de irmos embora. O carro de João Guilherme


vale mais do que a minha dignidade e eu não quero ser a responsável por
arruinar seu estofado caríssimo.
A porta se abre, e João Guilherme, que havia me deixado para cuidar

do nosso retorno, entra no quarto. Está seco e novinho em folha, com um


conjunto casual de bermuda e camiseta. Olho para a janela e me lembro que
estamos no segundo andar, ele mencionou qualquer coisa antes sobre ser alto
o suficiente.
— Nem pense em pular — avisa de brincadeira, seguindo o rumo dos
meus pensamentos. Ele me entrega um embrulho de roupas secas. — São
minhas, mas devem servir se der um nó apertado na calça. É melhor se trocar
para não acabar resfriada. O dia está quente, mas a água do lago é fria como

gelo.
— Obrigada por me salvar — digo, de novo. Perdi a conta de quantas
vezes agradeci e me desculpei com ele.
— Agradeça trocando de roupas — insiste. — Se estiver doente no
seu encontro com Calebe, ele vai arrancar o meu couro.
Sinto meu coração dar um solavanco.
Meu último encontro é com Calebe. Será a primeira vez que nos
veremos depois do beijo e não sei como me sinto com relação a isso.
Por falar em beijo…

— Se eu vestir suas roupas, vou perder a aposta? — pergunto a João


Guilherme. — Tecnicamente, terei que tirar as minhas roupas para colocar as
suas.
Ele sorri e afasta uma mecha molhada da frente dos meus olhos.

— O encontro acabou, não podemos mais gravar, você ganhou.


Mesmo gostando da ideia de ganhar um beijo seu, mesmo gostando muito —
enfatiza — vou me contentar com a bela visão de você vestida com minhas
roupas. É o clichê erótico de qualquer homem.
Dessa vez, sou eu a sorrir.
Tenho a impressão de que João Guilherme é mais esperto do que
deixa transparecer. Ele já esteve na minha posição e sabe que nunca vou
admitir em voz alta que Calebe possui uma grande parte de mim. Que a

expectativa pelo meu próximo encontro é tão intensa que sinto dificuldades
para respirar só de pensar em revê-lo, e que odeio a parte de mim que precisa
odiar Calebe.
Temos muito em comum.
Sem dizer mais nada, ele começa a se afastar a caminho da porta, com
ombros cabisbaixos e a mão presa naquele anel em uma mania inconsciente.
Antes de sair, eu o chamo.
— Se eu ganhei, tenho direito a um pedido, certo? Ainda não sei o
que pedir. Então, vou guardar este pedido para usar no futuro.

Ele aquiesce, sorrindo.


— Pode pedir o que quiser, quando quiser — responde. — Estarei
esperando.
“Já dizia Rita Lee: sexo é imaginação, fantasia, amor é prosa, sexo é poesia.
Em outras palavras: PEGA FOGO, CABARÉ!”

CALEBE

Não sou do tipo que sai por aí socando os outros sem motivo. Eu tive
a boa sorte de nascer com uma estatura bem acima da média, e graças aos
meus treinos, tenho um porte físico que faz as pessoas pensarem duas vezes
antes de se meterem comigo. Se me perguntarem se eu sei como nocautear

um adversário, responderei que sim, mas só por causa das aulas de boxe, jiu-
jitsu e, às vezes, karatê, que pratico por esporte. Então, repetindo, nunca fui
um cara violento, mas tenho pensado cada vez mais em como seria a
sensação de fechar meu punho na cara de alguns dos meus colegas de
apartamento.
— Está fazendo de novo. — Bartolomeu entra no escritório com uma
xícara fumegante em mãos. O cheiro doce de camomila preenche o ambiente.
— A cara de psicopata, Calebe. Aquela que combina com você, mas que não
é saudável, lembra? Já conversamos sobre isso.

— Olha só quem está falante hoje — digo no auge da minha irritação.


— Não tem mais o que fazer?
— Na verdade, não. — Ele puxa uma cadeira e se senta, bisbilhotando
os documentos esparramados sobre a mesa. — Prefiro ficar de olho em você

para garantir que não estrague tudo. Meu futuro depende disso. Além do
mais, somos amigos.
— O que te faz pensar que somos amigos?
— Sou o único aqui que não quer comer a sua mulher.
Aperto a mandíbula. Não tenho tanta certeza de que Bartolomeu
estaria fora da fila se já não fosse comprometido, mas é verdade, não tenho
mais ninguém com quem contar e preciso de aliados.
— Tanto faz — digo entredentes. — Não preciso de babá.

— Claro que não — murmura em tom de deboche. Repenso


seriamente sobre querer ou não dar um soco nele. — Conseguiu as provas?
Olho para a bagunça à nossa frente: algumas fitas de vídeo, conversas
de WhatsApp impressas, um histórico de chamadas telefônicas (o qual
precisei gastar uma grana alta para conseguir). Tudo parece bem convincente.
— Quase. — Recosto-me na cadeira e encaro a câmera fixada no
canto da parede. Quase mostro o dedo do meio, mas seria infantil demais até
para mim. — Preciso de só mais uma coisa, mas conseguirei em breve.
Eu espero.

— Tem que se apressar, gravaremos a eliminação na semana que


vem. — Bartolomeu retira o celular do bolso, verifica a tela e franze o cenho.
— Não está atrasado para o seu encontro?
— Ainda falta uma hora. — Esfrego meus olhos, ciente de que a

exaustão das noites sem dormir direito estão cobrando seu preço.
— Ansioso? — ele pergunta.
Culpo o cansaço pela confissão irritadiça que escapa da minha boca.
— Puto. — Inclino-me para frente e jogo o material dentro de um
envelope. — Cansado de ser o cara bonzinho que todo mundo olha como se
fosse uma aberração, um traidor de merda.
— Está pensando em desistir? — Seu timbre é cauteloso.
— Claro que não — praticamente rosno. — Eu a amo, porra! Respiro

aquela mulher. Ela me tem em uma maldita coleira. — Aponto para a porta
que ele deixou aberta. — Mas, no final daquele corredor, existem três
babacas que se acham muito melhores do que eu, fantasiando com ela,
levando-a em encontros e tentando roubá-la de mim. E sabe a pior parte?
Talvez eles consigam.
— Isso se chama ciúmes, Calebe. Está se mordendo de ciúmes.
Rio sem humor, não preciso que me digam o óbvio.
João Guilherme voltou estranho depois do encontro deles, não
conversou com ninguém sobre o que aconteceu entre os dois, e cada vez que

me lembro que eu o ajudei a planejar o encontro perfeito, sinto vontade de


morrer. Talvez seja melhor assim, não sei do que eu seria capaz se
descobrisse que ele a tocou.
Apoio os cotovelos sobre a madeira da mesa e enfio os dedos nos fios

bagunçados do meu cabelo. Ainda sinto o gosto dela na minha boca, o sabor
de sua língua quando nos beijamos, meu corpo continua quente e faminto,
babando para ter só mais um pedacinho dela. Estou sofrendo com o pior caso
de ereção contínua da história, tenho o direito de sentir um pouquinho de
ciúmes, merda!
— Aos olhos de todos, eu sou o vilão. Sou aquele cara que partiu o
coração da mocinha, o canalha que a trocou por uma gostosa qualquer, e que
comete todo tipo de atrocidades para impedi-la de seguir em frente. — Solto

um riso histérico. — Sabe o que acontece com os vilões? Eles morrem


sozinhos.
Bartolomeu desdenha de mim com um revirar clássico de olhos.
— Algumas pessoas adoram os vilões.
— Não quero que algumas pessoas me adorem. — Balanço a cabeça
em negativa. Ele não entende. — O mundo inteiro pode me odiar, contanto
que pelo menos ela ainda me ame.
— Então, por que está se preocupando? — Ele se levanta e me
oferece um aceno condescendente com a mão livre. — Já que não faz

diferença, continue sendo o vilão que todos esperam e guarde para ela o
verdadeiro Calebe.
Reflito por alguns segundos, deixando a raiva esvair lentamente.
Saboreio seu conselho. Não sou uma pessoa ruim, eu faço doações de sangue

a cada seis meses, ajudo financeiramente abrigos locais que salvam animais
de rua, e organizo eventos beneficentes duas vezes ao ano, também sou
educado com a maioria das pessoas, ajudo velhinhas a atravessar a rua e toda
a merda que se espera de alguém bom, mas não preciso provar nada disso a
ninguém.
Se já estou condenado pelo crime de ser um vilão, por que não fazer
proveito da minha condenação? Quando esperam o pior da gente, os limites
meio que perdem o sentido.

— Você até que diz umas coisas legais quando se dá ao trabalho de


conversar como gente ao invés de resmungar, rosnar e bufar.
— Ele sabe elogiar, estou em choque — Bartô ironiza, escondendo
um sorriso por trás da cortina de fumaça ao levar a xícara de chá aos lábios,
antes de se virar e ir embora.
Eu sabia no que estava me metendo quando decidi lutar por ela, sabia
que seria doloroso e continuei mesmo assim. É uma merda que existam
concorrentes tão bons no meu caminho, mas não posso me deixar levar pelo
ciúme justo agora que vamos nos reencontrar e a terei toda só para mim.

A noite inteira, decido, uma nova ideia ganhando forma na minha


cabeça. Nosso encontro já está planejado há dias, desde quando descobri o
quão necessitada Maria Flor se encontra, o quanto seu corpo precisa de ser
saciado, mas posso tornar as coisas ainda mais excitantes para nós dois ao

invés de simples provocações. Sorrio enquanto me levanto, sentindo-me


revigorado. Analisando friamente, apenas um vilão faria algo tão arriscado,
mas acho que posso acabar me acostumando com o papel.

***

Atrasada, como todo o sempre. Olho para cima e decido que não é
uma boa ideia subir até o apartamento dela. Não confio em mim mesmo para

manter a compostura caso ela me dê a liberdade de provar sua boca como da


última vez. Estou no meu limite, nós dois estamos, é melhor não jogarmos
gasolina na fogueira antes da hora.
Depois de vestir uma camisa preta de botões por baixo de um blazer
cinza que comprei especialmente para a ocasião, e de passar instruções a
Bartolomeu sobre o que ele deve fazer mais tarde, finalmente pude deixar
minha desconfortável e temporária residência para esperar pela detentora do
meu tormento sem ser incomodado por ninguém.
E aqui estou eu, esperando.

Esperando a mais de uma hora.


Sinto a vibração do meu celular e o resgato do meu bolso. O nome na
tela acelera o meu pulso: Maria Flor. Uma mensagem.
"Que tipo de roupa devo vestir?"

Ótimo, maravilha, ela ainda nem escolheu a roupa que vai usar. Por
que eu ainda me surpreendo?
"Apenas fique gostosa", digito em resposta, acrescentando vários
emojis de fogo e coração na frente, pois sei que ela odeia.
Outra mensagem chega em segundos: "Surpresa! Eu nasci gostosa."
Disfarço meu sorriso, coçando a ponta do meu nariz quando vejo a
equipe de gravação me encarando. Em tese, eu e Maria Flor não deveríamos
manter contato, mas nem morto deixarei de falar com ela justo agora que

desbloqueou o meu número — graças ao seu surto paranoico no encontro


com Bartolomeu.
Escrevo com agilidade: "Então se vista como veio ao mundo", mas,
antes de enviar, lembro-me que Maria Flor não é uma mulher que deve ser
desafiada levianamente. Por mais que eu queira muito vê-la pelada, não
preciso que outras cinquenta pessoas tenham o mesmo privilégio. Apago a
mensagem e tento de novo: "Você trouxe o Abaixo ao Patriarcado?"
Ela me responde com um emoji mostrando o dedo do meio, seguido
pela frase "pode apostar que sim". Eu devo gostar muito de ser maltratado.

Vinte minutos depois, Maria Flor desce. Sei que ela chegou muito
antes de erguer meus olhos, pois todos ao meu redor respiram fundo,
prendendo suas respirações, incluindo os transeuntes anônimos e curiosos
que pararam para espiar o que estava acontecendo para reunir tantas câmeras

em um só lugar.
Apelidei seu vestido de Abaixo ao Patriarcado por um bom motivo:
vestida com ele, ela tem o poder de colocar todos os homens aos seus pés.
O negócio não passa de um minúsculo pedaço de pano vermelho que
mal cobre sua bunda. Cada vez que ela rebola, descendo os degraus do hotel,
o tecido sobe, expondo quilômetros de pernas. Um centímetro a mais e eu
conseguiria ver a sua calcinha. Sinto o pau inchar dentro das calças e apoio-
me no teto do carro para não cair de joelhos.

Acima da cintura, as alças finas do vestido parecem frágeis demais


para suportar o peso de seus seios, que ameaçam saltar para fora do decote. A
noite está quente, mas a brisa morna acaricia sua pele exposta e revela a
nudez por baixo da roupa, os bicos duros e visíveis na textura acetinada do
tecido.
Por muito pouco eu não gozo agora mesmo, em público, só olhando
para ela.
— Espero não ter feito você esperar demais — diz, dissimulada,
parando na minha frente, seus peitos me cumprimentam antes dela.

— Maria Flor — experimento seu nome, rouco, bêbado de tesão e


duro como uma rocha, incapaz de encontrar uma flor que faça justiça à sua
beleza. Ofereço minha mão e uma onda de choque percorre meu corpo
quando ela a aceita. — Eu esperaria a vida inteira para ver você assim.

***

Orgulho e satisfação preenchem meu peito enquanto caminhamos


lado a lado, entrando na galeria. Maria Flor não é um prêmio ou uma
conquista para ser exibida, mas os olhares invejosos que recebo de alguns
homens quando percebem minha mão pousada possessivamente em sua
cintura, fazem massagens no meu ego.

Sim, ela está comigo, meus olhos dizem para os babacas


engravatados, mantenha distância.
Conversamos pouco durante o trajeto, barrados pela companhia
constante da produção. Todos pensam que é a primeira vez que nos
encontramos em semanas, ninguém sabe sobre o nosso beijo-quase-sexo e
nem desconfiam que eu dormi em seu quarto depois de uma bebedeira.
Temos que manter a discrição.
— Da carne ao êxtase: uma incursão artística pelo prazer — ela lê em
voz alta, correndo os olhos pelo título escrito em um grande painel digital. —

Me trouxe para uma exposição fotográfica?


A transformação em seu rosto é visível. Ela se empertiga ao meu lado,
sorrindo amplamente, os olhos dilatados de animação. Conhecer Maria Flor,
suas manias e preferências, é a minha grande vantagem e estou usando com

sabedoria — tudo bem que ela vai querer me assassinar daqui a pouco.
Pouso a mão em sua lombar, conduzindo-a para dentro do primeiro
grande salão branco e bem iluminado. De acordo com as minhas pesquisas, a
galeria é despretensiosa, mas requintada, cinco ou seis espaços montados
para acolher um número mediano de visitantes selecionados, com corredores
largos entre cada estação que servem de abrigo para obras menos renomadas.
— Sabia que ia gostar — sussurro em seu ouvido. — Eu tinha que
superar João Guilherme e sua câmera fotográfica.

— Como sabe sobre a câmera? — sussurra de volta. — Ele contou?


Porque fui eu que dei a porra da ideia a ele para agradar você.
Não quero estragar o clima conversando sobre o seu encontro
anterior. Eu nem deveria ter citado o nome dele. Não consigo falar sobre a
mulher que amo sozinha com outros caras que têm segundas, terceiras e
quartas intenções com ela sem começar a bater no peito e gritar “uga-uga”
como um verdadeiro homem das cavernas.
— Veja. — Aponto para a primeira fotografia, um retângulo de
quinze centímetros por dez bastante comum. — Sabe o que é isso?

Ela dá um passo à frente, olhando mais de perto. A imagem, impressa


em preto e branco, não faz muito sentido à princípio. A placa de metal,
parafusada logo abaixo da obra, contém o seu título escrito em inglês, e é ele
que Maria Flor sussurra em seu transe artístico.

— "In Your Mouth". — Inconscientemente, ela morde a própria boca,


refletindo. — Parecem…
— Lábios — digo por ela. Posiciono-me às suas costas, colando
nossos corpos. Sinto sua respiração se tornar pesada e inconstante. —
Inchados e úmidos — prossigo, surrando. — Cheios.
Maria Flor não pisca ao perguntar, igualmente baixo:
— Cheios do quê?
Sou obrigado a rir.

— Você sabe, Margarida.


— São fotos eróticas — murmura. Seu ombro e pescoço ganham um
tom a mais de vermelho, evidenciado pela claridade ofuscante do ambiente.
— Acredito que o termo correto seja Nu Artístico — zombo,
caminhando até outra foto, alguns metros à frente, sem jamais me
desvencilhar dela.
— É explícito — reclama, olhando para os lados, temendo ser vista,
mas ninguém olha para nós ou se importa com a nossa presença. Exceto,
claro, os cinegrafistas que são pagos para não demonstrarem emoções ou

terem opiniões próprias. — Quase pornográfico.


— O que você vê aqui? — pergunto, minhas mãos em seus quadris.
Ela balança a cabeça, negando. — Diga para mim, não sou um artista como
você, me ensine — peço.

— Você é um cínico — vocifera, rangendo os dentes em um falso


sorriso. — Da pior espécie.
— Olhe atentamente. — Roço os dedos em seus braços, subindo
devagar, e insisto: — O que a foto representa, Violeta?
— Sei o que está fazendo — avisa.
— Sabe?
Sabe que estou testando todos os seus limites na esperança de que
volte a me desejar intensa e descontroladamente enquanto enlouqueço no

processo?
Claro que ela sabe.
— Não vai funcionar — diz, taxativa, encarando a fotografia. Ela
recua, roça a bunda na minha virilha enrijecida, na altura perfeita graças aos
saltos, entrando no meu joguinho sórdido. — É uma gota — analisa com a
voz meiga. — Uma gota densa e melada sobre a panturrilha de uma mulher
nua.
— Humm. — Ela está certa, consigo visualizar com exatidão. É sexy
pra caralho. — Está escorrendo.

Maria Flor avança, comigo em seu encalço. Para diante de uma foto
emoldurada ao lado da porta. Ao apontar para o canto direito da imagem, sua
mão treme, e tudo em mim se contorce de necessidade e devoção. Eu adoro
como ela é toda gostosa e cheia de si, mas tem um lado tímido também contra

o qual está lutando agora, só para me colocar no meu lugar.


— Sua vez. — Olhando-me de esguelha, bate os cílios e pergunta: —
Consegue ver?
É difícil ver qualquer coisa além dela, mas faço um esforço para
desviar os olhos até a fotografia, também em preto e branco.
— Parecem dedos. — Espio o título da obra, "Punishment", que me
ajuda na interpretação. Sinto meu sangue escoar para baixo. — É a marca de
um tapa. — Na bunda.

— Uhum. — Maria Flor prende o lábio inferior entre os dentes e puxa


uma longa respiração, os olhos desfocados.
— Você gosta. — Não é uma pergunta. Eu simplesmente sei que ela
gosta. Quando foi a última vez que a marquei?
Ah, sim, naquela vez, no chuveiro. Eu tinha acabado de chegar da
academia e ela invadiu o meu banho, totalmente despida. Minha garganta
range com o grunhido que deixo escapar, lembrando-me do som estalado do
tapa contra água e pele. Será que ela se lembra?
De minha posição privilegiada, vejo como seu peito sobe e desce

rápido demais, as mãos se contorcendo na frente do corpo.


Sim, ela se lembra.
Toco seu cotovelo, calor e agonia se propagando para ambos. Ela se
arrepia, eu também, e de algum jeito nos movemos para o corredor — como

não a empurro contra a parede e reclamo sua boca é um mistério que não sei
responder.
Passamos por um conjunto de fotos literais que compõem um projeto
chamado "Everywhere". Na primeira delas, há um pé com os dedos se
alongando, na segunda, uma mão agarrada a lençóis brancos e, na última, a
curva de costas femininas arqueadas. O prazer manifestado em todas as partes
do corpo, como o nome sugere. Não é erótico apenas, mas íntimo demais,
quase proibido.

Maria Flor se aproxima mais de mim, provavelmente sem nem


perceber, pela primeira vez procurando o meu toque. Não ouso tecer
comentários, com medo de emitir algum som impróprio que a afaste.
A consciência das câmeras nos seguindo é uma certeza que mantenho
em segundo plano, assim como os demais visitantes na galeria. Concentro-me
nela, em suas reações a cada fotografia ousada.
Vemos corpos, vemos mãos, toques, sensações. Vemos intimidade e
também ousadia. Sedução, paixão, brutalidade. Cada imagem traduz
momentos que todos nós desejamos, e eu que definitivamente desejo com a

mulher ao meu lado e mais ninguém. Passeamos pelo salão inteiro, quietos, o
rubor carimbado em suas bochechas.
Rumo ao terceiro espaço, recebemos taças e champagnes de um
garçom uniformizado.

— Para uma melhor experiência — explica, fazendo uma reverência.


Eu agradeço e, sem cerimônia, jogo metade do líquido dentro da
garganta. Que se dane a experiência, eu estava precisando de algo para
desbloquear as palavras e resfriar o meu organismo em erupção. Não sou
muito forte para bebidas, mas tolero alguns copos.
— Como descobriu essa exposição? — Maria Flor me pergunta,
reencontrando a própria voz também. Ela não bebe, mas segura a taça com
força.

— Internet — conto. Não tenho motivos para mentir. — Eu fiquei em


dúvida entre McDonald's ou uma galeria de arte para o nosso encontro, então
fui pesquisar e me surpreendi com a quantidade de galerias que existem nesta
cidade. Achar uma que estivesse expondo um acervo tão conveniente foi
pura sorte, não pude resistir.
— Eu teria gostado de comer um lanche.
— Eu sei. — Sorrio. — Você tem o paladar de uma criança. — Paro
de andar e a coloco de frente para uma fotografia que tem, no mínimo, dois
metros quadrados. — Mas eu estava com fome de outra coisa. — Com a taça,

aponto o retrato. — Sua vez.


Maria Flor me estuda por um momento antes de ceder. Quase ouço as
engrenagens em seu cérebro trabalhando, mas, de repente, faz uma careta,
torcendo a boca. Okay, não era essa a reação que eu esperava.

— Isso se parece com… — A frase fica incompleta.


O que está havendo?
Na fotografia gigante, dois corpos se entrelaçam. Uma mulher esbelta
montada sobre um homem forte, cujas duas mãos seguram com firmeza a
carne de seu traseiro. Ambos estão nus, as peles brilhantes de suor e os rostos
ocultos no pescoço um do outro, abraçados. Não há dúvidas de que ele está
enterrado dentro dela.
— O que foi? — questiono, confuso.

— Nada — responde rápido demais, a voz muito aguda. — Nadinha.


— E agora está mentindo para mim.
— Não estou! — Seu riso exagerado a entrega. — É sério.
— Conheço você de trás pra frente. O que não está me contando?
— Olha aquela foto, que linda! — Ela evita meu olhar inquisitório e
marcha para outro lado da sala, fugindo na cara dura.
Bebo o último gole do meu espumante e entrego minha taça vazia a
um funcionário, com os olhos pregados no casal da foto. O que ela viu neles
para ficar toda esquisita? Por que não quer me contar? E por que eu sinto que

não vou gostar nada, nada, quando descobrir?


Estou curioso? Sim.
Eu quero insistir no assunto? Absurdamente.
Devo fazer isso agora e estragar os meus planos? Não.

Deixo o assunto de lado por enquanto e vou atrás dela, que também já
se livrou de sua bebida intocada. Minhas mãos a buscam no mesmo instante e
Maria Flor não se surpreende quando a abraço por trás, capturando toda sua
pequenez com o meu corpo, como se meu toque lhe fosse natural.
— Descreva — peço, referindo-me a nova fotografia: o busto de uma
mulher deitada de perfil. — Ainda é sua vez.
Sinto-a encolher, espiando sobre os ombros em direção aos
funcionários do programa. Acho que os odeio. Melhor dizendo: eu os odeio, e

gostaria que sumissem.


— Eu…
— Esqueça eles — eu a incentivo. — Imagine que estamos sozinhos.
Não há com o que se preocupar. Eu estou aqui.
— Você estar aqui é o que me preocupa.
Justo.
— Profundo — traduzo o nome da obra, que originalmente se chama
"Deep", resvalando minha boca na pele de sua têmpora.
— Acho q-que — gagueja — não tenho certeza.

— Tente — insisto. Cheiro seus cabelos perfumados, néctar da flor


mais doce se infiltra nos meus pulmões.
— Um orgasmo — arqueja. — Acho que ela acabou de ter um
orgasmo.

E eu acho que você precisa de um urgente.


— Errado. — Permito que sinta minha rigidez. — Ela acabou de ser
penetrada. Veja como abre a boca, o grito mudo e delicioso da invasão.
— Como você sabe? — diz com insolência, tentando lutar contra as
sensações que minha voz desperta nela.
— Porque, é o que você faz quando entro em você — respondo, tão
baixo que nem os microfones conseguirão captar todas as minhas palavras.
— E, depois de fechar os olhos e tremer, você geme baixinho.

— Calebe — clama, repreensiva. — Você não presta. Tem que parar


agora.
— Parar? — Afundo meus dedos em suas costelas. — Parar com o
quê?
— Isso! — ralha, parando minhas mãos. Fogo e rubor tornando-a uma
contradição aos meus olhos. — Me seduzir.
— Por quê? Está funcionando?
— Porque? — vocifera. Vira-se com rebeldia e sou obrigado a soltá-
la. — Primeiro: estamos em público e eu prometi ao meu pai que não seria

presa. Se continuar, vou responder por atentado ao pudor e assassinato. Você,


por outro lado, não vai responder a nada, já que estará morto.
— Contanto que a parte do atentado ao pudor aconteça antes da
minha morte, por mim, tudo bem.

Ela não aguenta e começa a rir contra a vontade. Fecha os olhos,


praguejando a si mesma, conta de um a dez baixinho, e volta a brigar comigo:
— Quieto, Calebe, nada de gracinhas. Eu esqueço que você é
detestável quando faz gracinhas e esse negócio aí com a boca.
— Está falando do meu sorriso?
— É, tipo isso.
Sorrio ainda mais.
— Não consigo controlar quando estou perto de você — flerto, dou

um passo à frente, ela recua. Como espera que eu não sorria com seu
comportamento arisco? É adorável.
— Segundo — continua, retomando sua listagem sobre… Sobre o que
era mesmo? Ah, sim, os motivos pelos quais devo parar de seduzi-la. Há-há.
— O Noivo Ideal é um programa de família, acha mesmo que vão mostrar
isso na televisão? — Maria Flor aponta o retrato atrás de mim, a silhueta de
duas línguas se tocando.
— Você me subestima, Girassol. É claro que consultei o diretor antes
de comprar os ingressos. Na verdade, somos obrigados a reportar tudo à

produção, para o caso de precisarem de autorização dos lugares para as


filmagens, ou você acha que o Maurício simplesmente levou você ao cinema,
junto com uma equipe carregando câmeras profissionais, sem que ninguém
achasse estranho? — Pela cara que ela faz, acertei na mosca. — Eles

provavelmente vão editar tudo, esconder as fotos polêmicas, e voilà, crianças


na sala outra vez.
Ela titubeia, mas não se rende. Empina o nariz arrebitado e perfeito, e
diz:
— E terceiro...
— Ainda tem mais? — implico.
Seu sorrisinho ameaça retornar, assim como o desejo de me
machucar.

— E terceiro — repete. Cruza os braços abaixo dos montes


chamativos que são os seus seios e lá se vai o meu raciocínio se concentrar no
lugar errado do meu corpo. De novo. — Eu tenho autocontrole. Muito. Sou,
tipo assim, a rainha do autocontrole. Eu praticamente o inventei. E também
sou uma profissional, sei lidar com fotos. Não vai conseguir… seja lá o que
pretende conseguir aqui.
Ah, Violeta, você não faz ideia.
— Tudo o que eu quero é passar um tempo ao seu lado. — Minha voz
se converte em tédio mal lapidado. — Todo esse papinho de me odiar está

começando a ficar repetitivo. — Laço sua cintura com apenas um braço. Pega
de surpresa, Maria Flor não tem tempo de escapar. — Principalmente quando
seu corpo me diz o contrário.
Seus olhos incendeiam com ferocidade e desejo.

— Meu corpo teria a mesma reação se fosse qualquer outro no seu


lugar.
Mentirosa do caralho! Eu a amo mesmo?
Merda… amo.
— Qualquer outro? — rosno. Só a ideia me faz enxergar vermelho.
Sinto seu olhar queimando minha boca, em parte brincando de me
provocar — eu sei — e em parte porque o beijo daquele dia não foi o
suficiente — para nenhum de nós.

— Até um desconhecido — garante com impertinência, apertando


seus peitos e o corpo todo contra mim.
Reúno toda a minha força de vontade e bom senso para não descer a
mão pelas suas costas e estapear sua linda bunda tal como uma das obras que
vimos exposta na parede.
— Eis o que faremos então — digo. — Durante a próxima hora,
vamos circular pela galeria, conversar como um casal simplório e enfadonho,
e sorrir um para o outro até que tenhamos produzido material suficiente para
ser usado na edição "livre para todos os públicos" do programa. — Um leve

apertão antes de soltá-la e sorrir. — Depois, vamos testar essa sua teoria.
Eu sou como qualquer outro? Porra nenhuma!
Maria Flor estreita os olhos marrom-escuros, tentando juntar as peças
e decifrar o significado por trás das minhas palavras e intenções.

— O que está planejando, Calebe? — pergunta.


Com um olhar divertido, deixo claro que não pretendo responder e
ofereço meu braço cordialmente, que ela aceita apenas vários segundos
depois por pura falta de opção.
“A pior mentira é aquela que contamos para nós mesmos: o cérebro pode até
acreditar, mas o coração sempre saberá a verdade, afinal, na arte da
enganação, ele é o mestre.”

MARIA FLOR

Rainha do autocontrole? Sério? Eu?


Não existe autocontrole no universo que impeça meu útero de sentar,
rolar e pular como um cãozinho treinado a cada mínimo som que Calebe

emite. A única coisa que eu ando controlando bem é a minha habilidade de


fazer merda.
Pessoas morrem de abstinência sexual? Porque eu vou morrer se não
sair de perto dele logo. Literalmente. Falecer. Bater as botas. Partir dessa para
melhor. Abotoar o paletó. Deslizar no tobogã de fogo direto para os braços do
capeta — qual é! Sou realista, não tenho nenhuma chance de andar no
trenzinho do paraíso.
Estamos chegando, falta pouco, fique calma, meu cérebro diz ao
restante do meu corpo à medida que o carro avança no limite da velocidade

permitida. Ele está com pressa, seja para se livrar de mim ou por qualquer
outro motivo que desconheço. Sou orgulhosa demais para perguntar, além, é
claro, de também sentir o mesmo: quanto antes nos distanciarmos, melhor.
Então, que seja!

Muito estranhamente, Calebe fez o que eu pedi e se comportou pelo


resto do encontro na galeria. Nada de toques pretensiosos, insinuações com
duplo sentido e sorrisinhos sem-vergonha.
E o que eu fiz? Fiquei frustrada.
Repetindo: eu fiquei frustrada por Judas ter acatado meu pedido e
parado de dizer coisas indecentes no meu ouvido a respeito da eroticidade
presente nas fotografias, de me apertar em seus braços para mostrar a
opulência maciça entre suas pernas, e lançar olhares famintos na minha

direção como se fosse arrancar as minhas roupas a qualquer momento.


O problema é que Calebe não precisa executar uma ação para
provocar sensações em mim. Sua simples existência basta.
Ouço sua risada baixa e rouca, meu pescoço gira na direção do som
de modo involuntário, e eu só percebo o movimento responsivo e óbvio
quando é tarde demais para disfarçar.
— O que foi? — pergunto. Do lado de fora, reconheço as ruas e
prédios com muito alívio. Faltam apenas duas esquinas para alcançarmos o
hotel.

Estamos chegando, falta pouco, fique calma.


— A exposição foi tão ruim assim? — diz sem tirar os olhos da
direção. — Pela sua cara — explica — parece que vai vomitar.
Eu quero vomitar, mas não por causa da exposição. O culpado tem

nome, sobrenome e um cadastro de pessoa física mais importante que o meu.


— Não foi ruim. — A verdade vem fácil, surpreendendo até a mim.
— Apesar de tudo — apesar de você, Calebe Ventura — foi uma ótima
exposição, profissionalmente falando.
— Profissionalmente — repete, rindo. Preparo-me para uma indireta
irritante, mas Calebe assente, aprovador. — Que bom.
E só.
Calebe veste sua máscara de noivo respeitoso e educado, que não

combina com ele, e não abre mais a boca. Eu, ao invés de agradecer por seu
silêncio, já que sempre brigamos quando ele decide agir como… bem, como
ele mesmo, sinto uma repentina vontade de gritar, tanto comigo, por ser uma
fraca que sente atração por homens desleais, como com ele, por me deixar tão
confusa (e ser desleal).
Eu jurava que ele tinha um plano. Parte de mim estava ansiosa para
que tivesse. O que eu esperava? Que Calebe se oferecesse para passar a noite
comigo? Não seria contra as regras do programa, eu sei. Eu e os noivos não
podemos nos ver ou tocar antes dos encontros, mas durante, ou depois, nas

demais etapas da competição, nós podemos fazer sexo se quisermos — e se


não nos importarmos que o Brasil inteiro saiba. Não podem nos filmar
transando, claro, não estamos gravando um filme pornô, mas temos que
informar as nossas intenções aos cinegrafistas, uma humilhação que não

pretendo passar nesta vida.


No meu piquenique com João Guilherme, se eu o tivesse encorajado
(e me encorajado) ao invés de ficar sonhando com Calebe, suponho que
teríamos acabado em um dos vários quartos de sua casa. Até imagino a cena
passando na televisão: nós dois entrando no quarto e fechando a porta,
deixando muito para a imaginação do público. Deus me livre.
Meu pai vai assistir!
Mas esse não é o ponto. O ponto é: se Calebe tivesse um plano que

envolvesse nossos corpos nus se esfregando um no outro, eu o dispensaria.


Não posso ir tão longe em um programa que será assistido por milhares de
pessoas. Portanto, não faz diferença. Por que estou me estressando?
Droga, minha cabeça vai explodir!
Cinco minutos depois, o carro perde velocidade e estamos na frente
do meu hotel. Assim como na pequena viagem que eu e João Guilherme
fizemos juntos, há câmeras no interior do carro de Calebe, e, agora que
paramos, membros da equipe já estão a postos do lado de fora, esperando
para registrar minha saída. Simples assim, o encontro que começou com fogo

e mistério, chega ao fim mais apagado que uma fogueira na chuva. Por minha
causa.
Era o que eu queria, não era? Bem feito para mim.
Sinto um toque no meu ombro e salto para fora da minha mente, só

então percebendo que todos esses sentimentos de raiva, frustração e saudade


se transformaram em uma leve e inoportuna dor de cabeça.
— Algum problema? — Calebe pergunta, tranquilo, seu indicador faz
um círculo casto na minha pele. Os pelos do meu corpo se curvam ao calor
do dedo.
No interior do carro, que tem o seu cheiro impregnado no
revestimento de couro, suspiro e encosto a cabeça no descanso do banco.
— Quer que eu faça uma lista? — Rispidez incontida goteja da minha

língua. Não me reconheço mais, agindo por impulso, sempre na defensiva,


armada até os dentes. Que merda, desde quando eu me tornei uma vaca? —
Desculpe, eu só… — Balanço a cabeça em negativa. Não encontro as
palavras, pois não sei como explicar o que estou sentindo sem dizer algo
comprometedor do qual me arrependerei em seguida.
Calebe sorri sem esboçar alegria, o brilho da boca curvada não
alcança seus olhos. Vejo algo diferente cruzar o seu rosto, uma emoção nova
e densa, mas que desaparece rápido, um segundo ou dois, e não consigo
decifrar a tempo.

— É melhor você descer — sugere abruptamente, afastando sua mão


de mim. Aquele ponto desamparado do meu ombro reclama, frio e solitário.
— Tenho um compromisso agora.
— São onze da noite — digo, tola, conferindo as horas no painel

iluminado com luzes de neon, só para ter certeza.


Onze e cinquenta e cinco.
— E? — Ele arqueia uma sobrancelha insolente, dizendo, sem
precisar de palavras, que não é da minha conta.
Eu estava certa: ele tem planos. Só que eu não faço parte deles.
Calebe não me deve satisfações. O que ele faz ou deixa de fazer sei lá
com quem durante a madrugada não me diz respeito. Ele já dormiu fora
quando apareceu bêbado no meu quarto e conseguiu sair ileso das

advertências dos produtores, o que o impede de fazer isso sempre?


Nada.
Mesmo assim, não consigo deixar de sentir o diabinho do ciúme
espetando a minha bunda com um tridente.
— Babaca.
Desço do carro e bato a porta com força. Ele grita alguma coisa sobre
eu não ter geladeira em casa, mas nem me dou ao trabalho de prestar atenção.
Sem olhar para trás, ergo o meu dedo do meio e subo os degraus até a
entrada, tendo a certeza de que sua última visão de mim seja do meu traseiro

absurdamente sexy rebolando para longe dele.


Xingo Calebe de coisas ainda piores enquanto atravesso o saguão do
hotel, meus saltos clicando no mármore. De novo, eu abaixei minhas defesas,
e de novo, ele me lembrou do porquê as mantenho levantadas.

Atrapalho-me com os botões do elevador. Quando as portas estão se


fechando, tenho um vislumbre das pobres almas responsáveis por registrar
meus encontros e tenho o bom senso de me despedir com um aceno culposo.
O tempo que eu demoro para subir todos os andares e caminhar pelo
corredor até a porta do meu quarto parece durar uma eternidade. Antes de
inserir a chave na porta, contudo, sinto um arrepio, uma leve brisa no meu
ouvido.
— Vem comigo.

Engasgo com o grito que fica preso na garganta, minha alma sai do
corpo e só não caio de joelhos porque reconheço a presença taciturna da
silhueta corpulenta atrás de mim.
Seu cheiro, seu calor, a cadência grossa de sua voz.
— Calebe! — Deixo as chaves caírem no chão e giro sobre os saltos a
tempo de ver os braços dele me prendendo contra a porta. — Você quer me
matar do coração? O que você… — Acima de mim, como uma gaiola de
músculos, Calebe me afoga em seus espetaculares olhos verdes. — Como
chegou aqui tão rápido?

— Elevador de carga — rosna, ofegante. Toda a calma e educação de


antes desapareceram. Ele parece selvagem, desesperado, como se a linha
sobre a qual estava se equilibrando antes tivesse se rompido. — Vem comigo.
— Você não tinha um compromisso? — Consigo dizer. — O que

aconteceu? Sua foda da noite deixou você na mão?


— Você é o meu compromisso. — A madeira atrás de mim range
com nosso peso. Calebe se inclina, a distância de milímetros fazendo pouco
para impedir seu calor de lamber cada centímetro de pele exposta no meu
microvestido. — E a minha foda da noite.
O choque me impede de perguntar se ele está usando drogas. O joelho
que ele empurra para o centro das minhas pernas é um indício de que talvez
eu esteja usando drogas.

— Calebe — murmuro, torcendo para soar como uma reprimenda, e


não como um convite.
— Eu avisei, não avisei? Vamos testar a sua teoria. — Ele enxerga
através da minha confusão e acrescenta: — De que poderia ser qualquer outro
no meu lugar. — A ponta de seu nariz se encontra com o meu, a promessa
muda que antecede intenções mais íntimas.
No corredor do meu hotel, onde qualquer um pode nos ver, não me
reconheço quando gemo:
— Se formos pegos…

Jura, Maria Flor? É essa a sua preocupação? Ser pega? Não a sua,
assim, quem sabe, DIGNIDADE?
— Já cuidei de tudo — garante. Sua respiração é de alguém que
correu uma maratona. — Por que você acha que eu disse aquilo no carro, na

frente das câmeras?


Coloco meu cérebro para funcionar, tarefa difícil quando se está
praticamente montada na perna de um homem como Calebe.
— Você queria que pensassem que estava indo se encontrar com outra
mulher — percebo. — É o seu álibi, para passar a noite fora.
Ele sorri com uma faísca de orgulho crepitando em seus dentes
brancos e retos.
— Com quem?

— Comigo. — Sorrio de volta.


— Humm, boa garota. — Sua mão encontra minha cintura, um leve
aperto me torna consciente de seu anseio. — Eu precisava fazer parecer que
era outra pessoa para justificar meu sumiço. E eu sabia que você não me
convidaria para passar a noite no seu apartamento para o mundo inteiro ver.
— Uma pausa, um suspiro, um piscar demorado, e ele acrescenta: —
Também não seria justo submetê-la a tanto.
Uh, fofo, porém…
— Se você não voltar, os outros podem pensar que estamos juntos.

Os outros noivos.
Abaixo os olhos, com vergonha de encarar Calebe, sentindo-me, pela
primeira vez na vida, um pouco piranha por ter homens — no plural — para
me preocupar. O programa só vai ao ar daqui várias semanas. Eles não terão

como saber se Calebe está ou não comigo.


— Eu bem que gostaria disso. — Seu tom de voz é a epítome das
idealizações assassinas. — Bartolomeu vai me acobertar com a história de
que estou curtindo em alguma espelunca. Combinei tudo com ele antes de
sair. Mais alguma dúvida?
— Mas assim vão pensar que…
— Que eu sou um galinha? — zomba, rindo com desdém. — Um
desgraçado? Traidor? Eles já pensam isso, Malmequer. Estou pouco me

fodendo. — Ele encosta a boca no meu ouvido e sussurra: — Hoje à noite, eu


serei o vilão. Agora, temos que ir, antes que alguém nos veja.
Ir? Ir para onde?
Minha voz e mente não se conectam. A negação que deveria vir com
facilidade se perde em meio aos meus desejos secretos. Meu corpo e coração
tampouco encontram alguma sintonia.
— Não é uma boa ideia — reluto, sem realmente negar. — É uma
loucura completa.
— Sim. — Calebe aspira meu cheiro, seu nariz percorrendo a pele do

meu pescoço à clavícula. — Você tem dez segundos para decidir, Margarida.
Nove, oito…
— Não podemos — choramingo, meu corpo pulsando de tesão,
dominado, faminto.

— ...sete, seis… — Seus dentes rangem. — É só dizer sim.


Sua perna faz pressão para cima, mesmo com os saltos, fico na ponta
nos pés, inebriada com a fricção que estoura todas as minhas terminações
nervosas.
— Eu não posso. — Contradizendo-me, meus quadris se movimentam
para frente e para trás, muito lentamente, torturante. — Não com você.
— Mas você quer. — Sua boca roça na minha. — Você me quer.
— Calebe. — Eu vou morrer.

— Cinco, quatro… — Faz uma pausa a cada número de sua


contagem. — Vem comigo — pede pela terceira vez.
— Merda, merda, merda.
— Três, dois…
— Sim. — Um ruído contínuo se estende para o fundo da minha
mente e me dou conta do que acabo de dizer.
Calebe procura meus olhos, confusão e dúvida nublando suas pupilas
dilatadas, como se não acreditasse na minha resposta — tudo bem, nem eu
acredito. Porém, quando espero pelo arrependimento para que eu possa me

corrigir, ele não aparece.

***

A vida é feita de escolhas? Besteira! A minha vida é feita de erros.


Deve haver uma explicação científica, tipo um neurônio da estupidez que se
multiplicou no meu cérebro quando eu era criança, sobre a minha evidente
compleição às circunstâncias mais desajustadas e incorretas possíveis.
Entrar no elevador de carga de mãos dadas com Calebe? Um erro. Me
esgueirar pelas sombras do estacionamento para fora do hotel junto com ele?
Outro erro. Atravessar a rua até o prédio vizinho, onde Calebe já havia
reservado uma suíte de luxo para nós? Um grande erro.

Errar é o meu lance.


Mas, assim que ele abre a porta do quarto e olha para mim, indicando
que devo entrar primeiro, decido que não posso simplesmente cometer um
erro dessa magnitude sem fazer uma escolha. Uma escolha lógica, consciente
e madura, e não um "sim" dito por impulso no meio de um amasso. O
problema é que eu não faço escolhas. Sou a garota que erra.
— Preciso de um conselho. — Devolvo seu olhar. — Do conselho de
um amigo. E você costumava ser o meu melhor amigo, um que dava bons
conselhos, tipo: "nunca aceite bebidas de estranhos, você é louca?", ou então

"sempre compartilhe a sua corrida do Uber com alguém de confiança, foda-


se se o motorista parecia bonzinho", sabe? Esse tipo de conselho.
Calebe cruza os braços sobre seu enorme peitoral.
— Conselhos óbvios para qualquer pessoa que tenha senso de

preservação.
— Não me interrompa — reclamo.
Ele sorri.
— Certo.
— E não me toque. — Ergo a mão e recuo um passo quando ele faz
menção de se aproximar. Calebe obedece na mesma hora. Se ele me tocar,
meu surto de consciência vai por água abaixo. — Preciso que faça isso por
mim agora, seja meu amigo e me dê um bom conselho. Não como Calebe,

meu ex-noivo, nem como Calebe, meu candidato a noivo, ou Calebe, o cara
que me traiu, mas como Calebe, meu amigo, aquele em quem eu costumava
confiar, que completava as minhas falas e entendia o meu coração.
Calebe nem vacila. Amo isso nele: que me conheça ao ponto de não
se surpreender com minhas crises existenciais fora de hora.
— Estou ouvindo.
Tomo fôlego antes de começar.
— Tem esse cara que me levou para sair…
— Eu já o odeio — Calebe diz, fazendo graça. Eu o repreenderia se

não soubesse que está amenizando o clima para me deixar confortável.


— Ele merece ser odiado — continuo, quase sem conseguir esconder
um sorriso. — Já tivemos um lance.
— Ah, um "lance"? — Seu esforço para não revirar os olhos acaba lhe

rendendo um par de sobrancelhas franzidas particularmente charmosas.


Dou de ombros com falsa ingenuidade.
— Quando nos separamos, eu saí muito machucada da nossa relação.
Ele me machucou.
— Que babaca. — Ele se finge de indignado, com uma mão pousada
sobre o peito, e eu acho engraçado de uma maneira trágica. — Se quiser,
posso dar uma surra nele.
Imagino Calebe dando um soco em si mesmo e chego a conclusão de

que existem certos extremos do ridículo que não precisamos cruzar.


— Agora, ele está rastejando atrás de mim como um cão arrependido
e moribundo que comeu a cadela da vizinha com pedigree e a engravidou
com cinco crias vira-latas.
— A vizinha tem pedigree? — Os cantos de sua boca tremem, seus
olhos estreitados zombam de mim.
— A cadela! — Dou um leve tapa em seu ombro. — Você não está
prestando atenção?
Calebe ri.

— Sua mente está anos luz à frente da minha, Violeta. Acho que não
consigo acompanhar a genialidade da sua analogia. A vizinha é importante
para a história? Qual era a raça da cadela? O que vai acontecer com os
filhotes? — Ele arregala os olhos teatralmente. — São muitas perguntas!

— Não existe uma vizinha e nem uma cadela, meu Deus, você é tão
bobo. — Tento parecer brava, mas sou traída pela minha própria risada. —
Estou dizendo que ele cometeu um erro colossal e acha que pode se redimir
só porque tem um rosto bonito que fica ainda mais bonito quando está no
meio das minhas pernas.
Calebe solta um som que pode ser tanto um gemido como um
engasgo.
— Uau, fomos de zero a cem em um segundo? Agora você tem a

minha atenção. — Seu olhar desce pela linha invisível que separa a minha
cabeça do restante do corpo, demorando-se nos meus seios antes de vagar
mais para o sul. — Retiro o que eu disse. — Diversão e lascívia tomam conta
do seu sorriso. — Você sempre tem a minha atenção.
Como se fosse um toque suave, sinto o seu olhar, literal, sólido, um
deslizar de dedos invisíveis explorando a pele vulnerável do meu corpo. A
familiar tensão se acumula na base da minha barriga e respiro fundo três
vezes antes de voltar a falar.
— Então me ajude. Me dê um conselho.

— Ainda não entendi qual é a sua dúvida para aconselhar.


Solto um sorriso discreto e evito olhar para sua boca.
— Acontece que esse cara me convidou para passar a noite com ele.
Bom, ele não disse com essas palavras, mas sou uma mulher madura de vinte

e sete anos e sei o que significa acompanhar um homem até o seu quarto, no
meio da noite, após um encontro safado que deixou nós dois morrendo de
tesão.
— Faça a pergunta, Copo-de-leite.
Ele se abaixa para encontrar meus olhos, parecendo tanto ansioso
como preocupado.
— Se a gente transar, ele ganha? — Assim que eu vomito as palavras,
sinto vontade de engoli-las de volta.

Calebe mantém a expressão neutra com muito louvor.


— Como assim?
— Eu não quero parecer fraca. — Quando digo isso, percebo que ele
fica atento e silencioso. — Principalmente na sua frente… na frente dele —
corrijo-me pelo bem da conversa. É mais fácil falar sobre Calebe, com o
próprio Calebe, fingindo não se tratar da mesma pessoa. — Então, se a gente
transar, ele ganha? — repito a pergunta, mais alto. — Eu perco?
Dessa vez, quando Calebe se aproxima, eu deixo. Ele fica olhando
para mim por vários e pesados segundos, ergue a mão com pouca confiança

— nada típico dele — e ampara meu rosto. Não é um toque indecente, mas é
íntimo, e eu sinto sua proximidade em todos os pontos cegos do meu corpo,
lugares que já foram foco de sua atenção e desejo várias vezes: o vale entre
meus seios, o côncavo da minha barriga logo acima do umbigo, a parte

interna das minhas coxas e as duas covinhas em minha lombar.


— Amo a maneira como você faz o meu coração sangrar — diz,
segurando a mão acima do peito. — Associar uma transa comigo com a sua
derrota deve ser a coisa mais horrível que já ouvi de uma mulher. Meu pau
está ofendido.
Por instinto, como se atraída pela palavra, lanço um olhar para a sua
barguilha e o volume tentando se libertar não parece nada ofendido.
— Não estou falando de você, lembra? — Ergo o rosto da área

perigosa e sorrio. — É desse outro cara bonito que por um acaso se chama
Calebe. Agora, chega de papo furado e me diga logo o que fazer.
A expressão de Calebe suaviza, sua mão escorre ao longo do meu
ombro até o cotovelo.
— Eu acho que — ele diz em tom baixo — enquanto perde tempo se
preocupando com besteiras sobre ganhar ou perder, está se esquecendo do
mais importante.
— E o que seria?
— O que você quer. — Calebe invade o meu espaço pessoal,

colocando uma mão na minha cintura e a outra em meu pescoço. — Quando


deixamos de fazer o que a gente mais deseja, por medo de fracassar ou
cometer erros, por medo de perder, não estamos perdendo de todo modo? —
Ele encosta a testa na minha, sua voz cálida soando como um cântico atraente

para a minha boca. — O que você quer, Margarida?


E é quando eu percebo: já fiz a minha escolha.
— Quero que você me beije, Calebe.
Minha declaração parece abrir uma porta em sua mente, um disparo
que autoriza o início de uma maratona. Quando sua boca cobre a minha, eu
gemo de pura satisfação. O encontro de nossas línguas acontece um instante
depois, as duas se reverenciando com ganância e familiaridade.
Aos tropeços, caminhamos para dentro do quarto sem desconectar o

beijo ardente e necessitado. Ouço a porta de fechar — ele deve tê-la chutado
com o calcanhar — e a segurança da privacidade arranca de nós os últimos
resquícios de contenção. Somos eu e ele agora, de olhos fechados para o
mundo.
Abraço Calebe, segurando-me em seus ombros para me equilibrar.
Enfio os dedos em seus cabelos macios e os puxo com força e selvageria,
arrancando dele um grunhido de aprovação. Suas mãos estão em toda parte,
desesperadas para sentir o máximo de mim, e de algum jeito ele consegue
chegar aos meus seios espremidos contra os músculos definidos de seu tórax.

Por cima do vestido, ele aperta o monte arredondado com a técnica de um


mestre da arte do amor — do sexo.
Calebe segura minha bunda e me empurra na direção de seu corpo,
amassando com vontade nossos quadris. Sua rigidez faz meu centro pulsar,

reconhecendo a extensão aprisionada, antecipando a sua invasão.


Quando meus pulmões queimam e fica impossível continuar beijando
Calebe sem morrer por falta de oxigênio, jogo minha cabeça para trás,
respirando com força.
— Adoro esse vestido — diz, ofegando no meu pescoço.
Sinto as alças sendo empurradas para os lados, o sopro gelado da
liberdade quando meu decote cede para baixo é expurgado pela quentura de
sua boca. Ele toma meu mamilo, chupando, lambendo, mordendo, enquanto o

outro seio carente recebe tratamento especial de sua mão habilidosa.


— Calebe, eu preciso de você. — Busco por uma fricção mais
significativa, esfregando-me em sua ereção.
Ele se afasta do meu seio e quase imediatamente me sinto vazia.
— Querida, desse jeito eu não vou durar. — Olhando-me de cima a
baixo, faz o impensável e começa a se ajoelhar. — Primeiro, vamos honrar a
sua roupa sagrada.
Abaixo ao patriarcado.
— Gosto desse plano — murmuro, deixando que ele assuma a

liderança.
Enquanto se abaixa, seus dedos encontram um caminho fácil por
baixo do vestido curto e agarram as laterais da minha calcinha, levando-a
junto com ele para o chão. Arquejo alto quando a exposição da minha nudez

o faz rugir.
Estremeço assim que ele toca meus tornozelos e sobe com lentidão.
Eu devo estar mesmo desesperada para gemer com um toque tão casto.
Sorrindo em aprovação, Calebe mapeia minhas panturrilhas e a imagem de
um dos quadros que vimos na galeria me vêm à mente, aquele em que havia
uma gota de sêmen escorrendo pelas pernas de uma mulher, e me sinto
inflamada pela expectativa de reproduzir a cena com ele, de tê-lo em todo o
meu corpo até que seja impossível arrancar seu cheiro de mim.

— Segure-se.
Mal tenho tempo de processar sua instrução. No momento em que
agarro seus cabelos, ele ergue meu joelho por trás e acomoda minha perna em
seu ombro livre. O vestido, que nunca conseguiu esconder muita coisa, recua
na altura da minha cintura, a liberdade da minha pele se curvando ao prazer.
Calebe me mantém firme, pousa a mão aberta em minha bunda para
que eu não caia e nem saia da posição. Beijos são depositados na parte
interna da minha coxa e eu paro de respirar assim que sua boca paira sobre a
minha intimidade. Um único olhar de aviso antecede o encontro de seus

lábios com a pele sensível. Sua língua desliza devagar, provando, testando,
saboreando o banquete que eu lhe ofereço com as intenções mais puras.
Puramente depravadas.
Um gemido involuntário foge da minha garganta, o estímulo que

faltava para Calebe enfim me devorar. O toque suave de sua língua se


transforma em uma sequência de chupadas urgentes que me fazem ver
estrelas.
— Calebe — clamo, sabendo que não preciso dizer mais nada além de
seu nome para que ele saiba o que eu quero.
Seus dedos pairam na entrada pulsante do meu corpo, espalhando e
brincando com a umidade antes de me invadir, abrindo-me, estocando dois
dedos com força. A pressão me faz gritar, jogo a cabeça para trás, delirando,

e rebolo em seu rosto, dançando no ritmo de sua língua e de suas estocadas.


— Não sabe o quanto eu sonhei com isso, Violeta. — Calebe me fode
com os dedos, sua voz resmungada em meio ao seu trabalho voraz me
empurra para a beira do precipício. — O quanto é bom sentir o seu gosto
outra vez.
Resmungo um pedido para que ele não pare, e recebo uma risada
sarcástica em resposta. Consigo sentir seu braço ao meu redor, um pilar de
sustentação para meu corpo flácido de tesão. Meus gemidos se tornam cada
vez mais agudos e trêmulos à medida que ele me suga e lambe e morde, os

dedos em um vai-e-vem perfeito de golpes profundos.


Abro a boca para dizer que estou prestes a gozar, mas o orgasmo
atravessa minhas palavras em uma explosão que varre meus sentidos. Calebe
bebe do meu corpo enquanto tremo e grito sem parar, chorando em seus

lábios gananciosos até minhas pernas fraquejarem e ele ser obrigado a se


levantar para me salvar da queda.
Ele me abraça enquanto recupero minhas forças e, com um
movimento rápido, ergue-me em seus braços.
— Isso foi… uau! — digo, sorrindo, meio bêbada.
— Espero que "uau" signifique "o melhor orgasmo da sua vida", ou
terei que rever minhas habilidades. — Calebe me carrega até um sofá de
veludo e me acomoda sobre ele com cuidado, depois se afasta alguns passos

para me admirar.
Seu olhar faminto me deixa consciente da minha aparência arruinada.
Sinto-me obscena sob sua perspectiva, com os seios inchados à mostra, as
pernas levemente abertas em um ângulo revelador e uma camada de suor
fazendo minha pele brilhar.
— Significa — respondo, afastando os joelhos — mas gosto de
pensar que o próximo será ainda melhor.
— Ah, não tenha dúvidas. — Calebe engole em seco quando lhe
ofereço um pequeno show: agarro meu seio e deslizo a outra mão até o centro

das minhas pernas, sobre o monte inchado e sensível. — Porra, você é


perfeita, sabia? — diz, embevecido, os olhos desfocados. — Nem acredito
que finalmente tenho você só para mim, longe daqueles abutres e os quatro
idiotas.

— Não precisa ficar todo territorial. — Remexo os quadris,


estimulando-me sob seu escrutínio. — Nenhum deles chegou tão longe.
Os olhos de Calebe brilham.
— E o quão perto eles chegaram?
Estudo seu rosto em busca de um sinal que revele suas intenções com
uma pergunta tão perigosa. Recuso-me a estragar o clima justo agora. Não
quero parar de jeito nenhum! Mas Calebe não demonstra estar chateado ou
com raiva, muito pelo contrário, seu olhar penetrante me provoca em um

desafio secreto.
Ele quer jogar comigo.
— Leonardo foi um cavalheiro. — Faço um beicinho inocente. —
Ele só beijou a minha mão, nada demais.
— Essa mão? — Calebe vem até mim e segura meu pulso no alto. Seu
timbre rouco é a personificação da maldade velada. Habilmente, retira o cinto
e abre sua calça, livrando seu membro em agonia da cueca apertada. Ele salta
diante de mim, tão longo e grosso quanto eu me lembrava, com o
emaranhado de veias cobrindo sua extensão da base até a ponta. —

Precisamos lavá-la então.


Sorrindo, ele arqueia uma sobrancelha.
É claro que eu obedeço. Depois de ter sonhos eróticos com seu pau,
poder segurá-lo é o meu momento de glória.

Fecho os dedos ao redor de sua circunferência larga, amparando o


peso. Quase mando as preliminares para o espaço, tamanha minha vontade de
senti-lo duro dentro de mim, no entanto, assim que Calebe geme, revirando
os olhos, todo rendido com apenas um toque, eu só quero ver mais de sua
expressão vulnerável.
Começo devagar, indo e vindo do começo ao fim, lavando minha mão
com a lubrificação que goteja da ponta volumosa. Calebe respira fundo,
encarando-me de cima com a fisionomia envolta em névoa e deleite, como se

eu fosse uma miragem. Mas, já que miragens não tocam punheta, trato de
lembrá-lo que sou real e espremo sua carne rígida.
Calebe geme, rangendo os dentes.
— Mais rápido, Malmequer, você está me matando assim, porra.
Rio baixinho com a eufórica onda de orgulho que me acomete e
atendo ao seu pedido, subindo e descendo, apertando e tremendo. Calebe toca
meu rosto, nossos olhos turvos se agarram em um abraço íntimo, dominante,
erótico. Ele fode minha mente com o olhar enquanto eu o fodo com a mão, os
dois entregues à paixão quente e incontrolável que sentimos um pelo outro.

Calebe move os quadris em busca da fricção e do ritmo que ele


precisa, dizendo palavras chulas que me deixam à beira de outro orgasmo.
Gosto de como a gente se parece agora, que esteja todo vestido, com apenas o
pau para fora, e, ainda assim, completamente sexual. Gosto como olha para

meus seios, que os admire e fantasie com eles em sua boca — Calebe saliva
enquanto os encara —, e gosto, principalmente, que masturbá-lo me deixe tão
molhada quanto ser chupada por ele.
Percebo que está a ponto de explodir pelo modo como seu abdômen
retesa por baixo de sua camisa. O serzinho infernal que habita no meu ombro
sussurra uma ideia boa demais para ser ignorada — e a desculpa perfeita para
realizar uma vontade exclusivamente minha.
— Lembra que o Maurício quase me beijou? — pergunto, piscando

docemente. — Acho que preciso lavar a boca também.


A última coisa que vejo antes de envolvê-lo com os lábios é o
semblante abismado de Calebe. Avanço profundamente até senti-lo no início
da minha garganta, para depois voltar chupando forte.
— Filha da puta. — Ele se dobra ao meio, a voz reduzida a um
grunhido.
Fecho os olhos e começo a chupar com vontade, soltando sons de
prazer engasgados enquanto ele parece crescer ainda mais sobre a minha
língua. É tudo muito rápido, muito intenso, totalmente intuitivo. Ele responde

aos meus movimentos com barulhos roucos e gemidos, delira quando o


removo inteiro e lambo desde a base até a ponta, raspando a ponta dos dentes
nas veias saltadas.
— Não precisa se segurar — aviso, sorrindo como a boa degenerada

que sou.
Deus, eu não valho nada.
Calebe balança a cabeça, fulmina-me com os olhos verdes inflamados
e descontrolados — porque eu o estou levando à loucura, e amo isso.
Atendendo às minhas expectativas, ele agarra meu rabo-de-cavalo,
arruinando meu penteado à lá Ariana Grande, e se encosta na minha boca.
— Chupa mais — manda, espelhando minha malícia. — Com mais
força.

Gemo lamuriosamente e o engulo o máximo possível, mas já não


estou mais no controle. Calebe solta meu cabelo e segura minha cabeça com
as duas mãos, mantendo-me parada enquanto estoca com cuidado, sem nunca
entrar por inteiro, consciente do próprio tamanho.
Sinto que vou entrar em erupção. Não consigo pensar com clareza,
sucumbindo ao prazer absoluto que ele desperta em mim. Minhas mãos se
movimentam por conta própria até o espaço em chamas abaixo do meu
ventre, encontro a umidade que esvai do meu corpo, encharcando todo o sofá,
e me toco com o mesmo desespero de Calebe ao foder minha boca.

Um frenesi de sensações paira ao nosso redor junto com os sons dos


gemidos e gritos que entoamos, dos seus quadris se movendo para frente e
para trás, e de meus dedos em busca de alívio para a sobrecarga de emoções
explodindo no meu corpo, mente e coração.

Sua respiração entrecortada fica mais urgente, o móvel abaixo de mim


range, balançando com a brusquidão de nossas investidas.
Calebe olha para baixo.
Eu olho para cima.
E alguma coisa acontece.
Aquele algo mais que diferencia nossa transa de uma experiência
qualquer e a coloca em um patamar raro e especial.
— Vou gozar, Margarida… — avisa, tremendo. — Vem comigo. —

Ele tenta sair da minha boca. Tenta. Até parece que vou soltar agora. Não
nadei tanto para morrer na praia. Sugo uma última vez, longo e forte,
incentivando-o a seguir em frente. Mostrando que o quero. — Merda…
Quando o líquido morno enche minha boca, meu clímax explode e
flutuamos juntos para um mundo suspenso e isolado em que me permito amá-
lo com todo o meu ser.
Calebe se afasta por um segundo antes de se abaixar e me puxar para
um abraço.
— Eu… — Eu amo você? Não posso dizer isso. O que estou

pensando? — Isso foi melhor do que uau.


Ele solta uma risada gostosa e sem fôlego contra o meu pescoço, e se
joga ao meu lado no sofá. Nos ajeitamos, comigo debruçada em seu peito, e
seu braço ao redor do meu ombro, sem nos preocuparmos com as vestes

todas desgrenhadas, meus peitos de fora ou seu amigo inflexível ao alcance


perigoso das minhas mãos.
Daqui um minutinho ou dois.
— In Your Mouth. — Sorri, contemplativo, referindo-se a um dos
quadros que vimos antes. Ele desliza o polegar sobre a minha boca. — Você
é maluca, sabia?
— Eu me esforço.
— Deu para perceber. — Seu rosto esboça uma linha suave de

preocupação. — Está se sentindo bem? Machuquei você?


— Se tivesse machucado — digo, brincando de desabotoar sua camisa
— eu não teria achado ruim.
Um botão, dois botões…
— Estou falando sério, Maria Flor. — Ele levanta meu queixo,
intransigente, e repete: — Machuquei você?
Não é a primeira vez que nos deixamos levar pela selvageria do sexo,
e Calebe nunca ultrapassou um extremo comigo — ele jamais me machucaria
nem se tentasse — então demoro a entender de onde vem sua angústia: é a

primeira vez desde a nossa separação.


— Não, claro que não — garanto, sorrindo. — Eu adorei tudo,
Calebe.
Ele respira, aliviado.

Volto para os botões.


— Quer ajuda com isso?
— Isso, o quê? Deixar você nu?
Consigo chegar ao quarto botão, mas os demais requerem que eu
retire o seu amigo da frente. Sem a adrenalina do sexo, parece meio
constrangedor.
— Talvez se você puder segurar…
Calebe olha para baixo e gargalha.

— Acabou de bater uma para mim e está com vergonha de levantar o


meu pau? Você é mais corajosa do que isso.
E lá está o tom de provocação que eu sou orgulhosa demais para
deixar passar.
— Você é uma peste.
— E você adora. — Ele aponta para o quinto botão. — Vamos, você
consegue.
Estalo a língua e me ajoelho, empurro seu membro — duro e
recuperado do gozo recente, minha nossa — e termino de abrir sua camisa.

— Impressionante — zomba.
— Sua vez, espertão. — Viro-me de costas e jogo meu cabelo por
cima do ombro, exibindo o zíper do meu vestido. Sei muito bem o que ele
está vendo: minha bunda. E sei também que é um golpe baixo (não sinto pena

nenhuma, ele quem começou).


— Quem é a peste aqui? — reclama, mas cumpre sua missão.
Fico de pé para remover o vestido e o deixo cair no chão, chutando-o
de lado. Mantenho as sandálias, porque sei que ele gosta, dou uma voltinha e
desfilo sensualmente até a cama, ciente de seu olhar acompanhando cada
passo meu.
Seu olhar, que me excita.
Seu olhar, que me faz sentir a mulher mais sexy do mundo.

Seu olhar, que às vezes é tão intenso que faz minhas pernas
bambearem, meu coração falhar e o oxigênio ser roubado dos meus pulmões.
— Você não vem? — ofego.
Não preciso chamar duas vezes. Enquanto me deito no colchão,
tremendo de antecipação, ele se levanta. No caminho, remove as demais
peças de roupa e as joga para os lados, deixando sapatos, calça e cueca
espalhados pelo quarto todo. Calebe fica bonito de qualquer jeito: vestido
com terno e gravata, com roupas de academia ou uma bermuda casual. Mas
Calebe pelado é uma coisa inexplicável.

Eu poderia passar horas traçando os desenhos dos seus músculos com


a minha língua se não estivesse com tanta pressa de sentir seu corpo em cima
e embaixo do meu. Dentro e fora — de preferência, várias vezes, em
sincronia.

O colchão afunda com o peso do seu corpo quando ele sobe e rasteja
até mim. Apoio-me no cotovelo, à espera de seu primeiro movimento,
abrindo mais as pernas para que me tome de uma vez e sacie a monstra
faminta que resolveu se instalar no meu útero desde que ele me deixou.
Desde que eu o deixei.
Tanto faz.
Mas Calebe não move um músculo. O cretino fica lá, de joelhos,
parado, olhando.

— Calebe. — chamo com um sorriso impaciente. — Perdeu alguma


coisa, querido? Não está esquecendo de nada?
Suas sobrancelhas grossas se unem quando ele franze o cenho.
— Talvez, gostaria de me recordar?
Falso! Canalha! Gostoso!
— Eu vou matar você, Calebe — ameaço. Ele nem me tocou ainda e
estou ofegando. — Juro que se não me comer agora, vou começar a chorar, e
depois eu vou matar você.
— Você vai chorar. — Segurando sua ereção, Calebe sorri. — Mas

não será por falta de ser fodida.


— Promessas, promessas. — Jogo a cabeça para trás e o provoco,
rebolando os quadris no alto. — Menos palavras, mais ação.
Escuto sua risadinha maldosa e cogito enfiar meu salto em suas bolas,

mas eu gosto de suas bolas, seria um desperdício e tanto.


Calebe se abaixa sobre mim, sua silhueta, em contraste com o lustre
aceso do teto, o faz parecer ainda maior, mais poderoso. E é assustador o
quanto eu gosto disso: dele, de qualquer jeito, fazendo qualquer coisa…
comigo.
Não se trata apenas de sexo.
Mas de sexo com Calebe.
— Tão desesperada essa minha Orquídea.

Orquídea, eu amo quando me chama assim, especificamente. Gosto


de todos os apelidos florais, porém, alguns são mais especiais que outros.
Orquídea para os dias raros, era o que ele costumava dizer, já que são flores
que florescem poucas vezes ao ano.
Calebe beija meu queixo primeiro, um roçar tímido que enche meu
coração daquele sentimento que começa com a letra A. Em seguida, desce até
o meu pescoço, onde mais um beijo é deixado. O terceiro acontece na minha
clavícula, mas, quando sinto seus lábios no meu seio, esqueço qual número
vem depois do três.

Arqueio minhas costas para facilitar seu acesso, sinto o sangue


martelar na minha garganta, em todas as ramificações do meu sistema
circulatório. Tudo por baixo da minha pele é pressa, embora seus beijos e
toques sejam calmos e planejados.

Devagar, tão mortalmente devagar, Calebe sobe até a minha boca. O


beijo se inicia com um selinho, sua língua só chega depois, raspando por fora,
experimentando minha receptividade antes de entrar. Não fecho meus olhos,
hipnotizada com o encaixe perfeito dos nossos narizes, em como seus cílios
tremem, revelando que está se contendo para aproveitar cada milissegundo.
— Preciso de você — sussurro de repente. Coloco os braços ao redor
de seu pescoço, louca com o fato de seu pau estar batendo sobre a minha
barriga e não dentro de mim. — Agora.

Não preciso recorrer a novas ameaças. Calebe aquiesce em silêncio,


em transe, flexiona seu torso e se apoia em apenas um braço. Ele crava os
olhos em meu rosto, colocando o braço livre entre nós. Sinto quando se
posiciona na minha entrada e afasto minhas pernas sem pudor.
Isso! É agora…
— Você ainda está tomando suas pílulas?
MAS NÃO É POSSÍVEL.
— Eu sou devota à Nossa Senhora do Anticoncepcional, Calebe! —
grito, exasperada. — Por fav…

Ele entra, calando-me.


A invasão deliciosa nem se compara a de seus dedos. É infinitamente
melhor. Abro a boca e fecho meus olhos, anestesiada com o arrebatamento de
sua extensão me esticando centímetro a centímetro. Estremeço, fincando as

unhas em seus ombros, e liberto o gemido baixo que ecoa de um ponto


secreto da minha alma.
— Um dia — Calebe diz com a voz grave — eu quero uma foto dessa
expressão.
Uma foto, como a da galeria.
Calebe se move, retira quase tudo e entra novamente. Os sons de sua
respiração inconstante são abafados pelos meus gemidos e o baque surdo dos
nossos quadris. Nossas bocas se encontram no meio do frenesi e nos beijamos

loucamente, lambemos, chupamos, mordemos.


— Isso é bom — declaro, ensandecida de prazer, enquanto ele beija
meu pescoço. — É tão bom, Calebe, não pare por nada no mundo.
Sua resposta não passa de um grunhido. Calebe dobra minhas pernas
para cima, e assiste a si mesmo entrando e saindo de mim. Seguro meus
seios, massageando a ambos, e me contorço embaixo dele, oferecendo o
máximo de prazer visual que consigo pensar.
De repente, Calebe se curva e minhas pernas vão parar em seus
ombros, impossivelmente abertas, fazendo-me gritar ao senti-lo tão mais

fundo do que antes.


Ele mete com força, crava os dentes no meu ombro e, apesar da dor
pungente, curvo-me para sua marcação. Quando eu me olhar no espelho pela
manhã, quero encontrar vestígios dele em todo o meu corpo para ter certeza

de que tudo não passou de um sonho.


— Leonardo beijou sua mão — diz próximo ao meu ouvido.
Suor escorre de nossos corpos e o cheiro de sexo preenche todo o
quarto.
— Já cuidamos disso.
Dentro. Fora. Dentro. Fora.
— Maurício beijou sua boca. — Sua voz é uma melodia travessa.
— Quase beijou — corrijo. — Já cuidamos disso também.

— E João Guilherme? Nada aconteceu no encontro de vocês?


Do que ele está falando?
Não consigo pensar direito com seu pau expurgando meus sentidos
para a quase inconsciência.
— Nós… — Tento me lembrar. Nossos corpos colidem em um ritmo
fora do comum, fazendo com que a cama saia do lugar. É selvagem, bruto,
delicioso. — Fomos ao lago.
— E o que fizeram de errado?
De errado?

— Não consigo — choramingo com os olhos apertados. — Não me


lembro.
Calebe desacelera, mas não para.
— Pense mais um pouco.

Gemo baixinho — de frustração.


Ele quer brincar, tudo bem.
Recapitulo meu encontro com João Guilherme, começando pelo
sonho que tive com Calebe, depois o piquenique e… ah, teve aquilo.
— Eu posso ter montado nele, talvez.
Calebe para.
— O quê? — diz, enraivecido.
Abro meus olhos e encontro sua expressão de choque, indignação e

dor.
— Por cima da roupa — explico ao me dar conta de como minha
sentença soou errada. Pouso a mão em seu peito e comprimo minhas paredes
ao redor de seu pau, que pulsa de volta. — Não durou mais do que alguns
segundos e eu pensei em você o tempo todo, em como queria que fosse você,
o seu colo, seu corpo…
Sei que estou me entregando demais, mais do que deveria, mas não
quero mentir.
Calebe tenta, sem sucesso, conter um sorriso. Ele gosta de ter seu ego

amaciado, afinal.
— O quadro, na galeria — ele se recorda, voltando a se movimentar.
— Por isso você ficou toda estranha.
Sorrio, mordendo o lábio.

— O que vai fazer a respeito?


Com uma manobra digna do Cirque du Soleil, Calebe nos gira e me
coloca por cima — sem me quebrar ao meio e sem sair do meu interior,
impressionante. Trinco a mandíbula para não gritar quando me encaixo até a
base, sentada, com seu membro rijo desaparecido por completo, esticando-me
a um limite doloroso.
Ele cruza os braços atrás da cabeça, despreocupado.
— Me cavalgue até gozar montada em mim, com meu pau bem assim,

te empalando fundo.
Que ordinário!
Adeus, restinho de sanidade.
Despida de pudor e modéstia, faço movimentos circulares sobre a
pélvis de Calebe, sentindo-me uma extensão de seu corpo: para cada som que
emite, outros dois escapam de mim em deleite, cada olhar cobiçoso que ele
exprime traduz um pedido diferente, que eu atendo sem que palavras sejam
usadas no processo.
Calebe pragueja quando acelero, rebolando loucamente. Suas mãos

voam para a minha bunda, ajudando-me a manter a cadência acelerada


enquanto meus seios entumecidos pulam na frente de seu rosto. Ele não tarda
em capturá-los com os dentes, chupando em seguida, uma bagunça ordenada
de mãos e bocas em todos os lugares.

Não fazemos sentido algum, movidos por um instinto primitivo e


familiar que não precisa ser explicado.
Lágrimas de emoção e prazer e intensidade se acumulam nos meus
olhos. Cada célula do meu organismo vibra, precipitando a chegada
devastadora do meu clímax.
— Olhe para mim, Girassol — pede, sentindo o mesmo que eu. —
Deixe-me ver.
Meu orgasmo convida o de Calebe, que golpeia para cima em uma

última estocada violenta. Eu tremo e choro, gemendo seu nome por uma
eternidade enquanto nossos espasmos se prolongam em suor e arquejos.
Quando ele me beija, abraçado a mim como se nossas vidas
dependessem disso, eu fecho meus olhos e o abraço de volta. Dentro da nossa
bolha momentânea onde tudo é perfeito, permito-me sentir a verdade que
venho escondendo até de mim mesma.
Eu ainda amo Calebe.
Nunca deixei de amar.
E estou ferrada.
“Palavras, depois de soltas, não podem ser engolidas. Alimentar-se do
silêncio é sempre a melhor opção.”

CALEBE

Estou pagando meus pecados de todas as vidas graças a ela, que ainda
vai me deixar louco.
Louco mesmo, no sentido literal da palavra, com direito a camisa de
força e tudo.

— O que está fazendo? — pergunto, confuso, ao sair do banheiro,


com a cabeça e corpo dormentes pela falta de descanso apropriado, enquanto
ela pula em uma perna só pelo quarto. — Está vestida. Por que está vestida?
— Estou atrasada — diz, desesperada. Já não passamos por isso uma
vez? — Muito atrasada, Calebe! Sabe que horas são? Eu tenho gravação
daqui a pouco, no estúdio, e não posso chegar lá cheirando a sexo, ou vestida
assim.
Como eu já suspeitava, nem passou pela mente dela desistir do
programa. Nossa noite foi incrível, talvez uma das melhores de nossas vidas.

Só de lembrar dela em cima de mim, depois embaixo, de lado, no sofá, na


cama, no chuveiro… Porra, é melhor não lembrar. Mas agora voltamos a ser
Calebe e Maria Flor, dois participantes de um reality show que pode tirá-la de
mim para sempre.

Dou uma conferida em sua roupa amarrotada, o Abaixo ao


Patriarcado já viu dias melhores, mas não importa, continua gostosa e linda,
principalmente com os cabelos soltos e bagunçados, os cachos rebeldes
caindo pelos ombros magros, e alguns elementos extras que não faziam parte
de seu figurino na noite anterior: uma marca circular em sua clavícula, o tom
roxo-avermelhado bem evidente em sua pele, outra entre as coxas e no
contorno de seus seios; e sei que, se procurar direito, por baixo do tecido
vermelho, encontrarei muitas outras.

— Nós deveríamos conversar — sugiro. Não por mim, eu estou muito


bem com o que fizemos, mas Maria Flor tem o hábito de se martirizar e criar
coisas onde não existem.
Não quero me arrepender do que fizemos caso ela decida me afastar
de novo.
— Você viu a minha calcinha? — Ela me ignora. — Não consigo
encontrar em lugar nenhum.
E está sem calcinha. Ótimo!
— Não a vejo desde quando a tirei de você.

— Estou falando sério, Calebe! — ralha, abaixando-se de quatro para


olhar embaixo da cama… sem calcinha.
Não consigo não olhar.
— Você não precisa da calcinha — digo, sofrendo com a visão de seu

traseiro empinado. — Sou a favor da abolição do uso das calcinhas,


principalmente as bege de vovó, e as amarelas.
— Não posso voltar para o meu hotel pelada, Calebe. — Ela aponta
para o pé descalço e entendo seus pulinhos. — Só consegui achar uma
sandália. Estou parecendo o saci-pererê de um filme pornô barato. — Seu
dedo sobe em riste. — Não ria!
— Não estou rindo. — Só prestes a gargalhar.
— Sua boca está tremendo.

Algo no canto do quarto chama a minha atenção: o par desaparecido


de sua sandália. Não faço ideia de como chegou lá, ou em que momento a
tiramos de seu pé, já que gosto muito quando mantém os saltos, mas
aproveito a deixa para escapar de sua ira e busco o calçado.
— Pronto. — Entrego a ela, que se senta na borda da cama, e calça
com rapidez. — Maria Flor… — Tento mais uma vez, mas sou cortado.
— Alguns casais conseguem continuar juntos — diz, inquieta, em seu
tom frenético. Confesso que não era o que eu esperava dela. Que fosse gritar
e me odiar? Sim. Fugir e fingir que nada aconteceu? Com certeza. Realmente

conversar comigo? Jamais. — Depois de, você sabe, um dos dois cometer
adultério.
Com cautela, eu me aproximo, não gostando nem um pouco do que
está insinuando.

— O que isso tem a ver com a gente? — Encho meus pulmões e a


encaro.
— Talvez se… você sabe… — Maria Flor bufa, parecendo irritada
consigo mesma. Ela se ergue em um pulo e para na minha frente. — Não
estou falando que consigo fazer isso agora, nem daqui uma semana ou um
mês. Mas as pessoas perdoam umas às outras o tempo todo. Perdoar é uma
coisa boa. — Ela crispa os lábios. — Em teoria, quando não estamos sendo
trouxas… e talvez eu esteja sendo trouxa de novo… — Seus olhos se fecham

com força e Maria Flor encosta a testa no meu peito. — Não sei o que estou
dizendo.
Mas eu sei muito bem. Escuto a pulsação do meu sangue no ouvido e
contenho o impulso protetor de abraçá-la. Se a tocar agora, é bem provável
que eu aceite qualquer merda que me ofereça.
— Que talvez a gente ainda possa ficar juntos — digo, sintetizando
suas palavras. — No futuro, algum dia, quando você se sentir pronta para me
perdoar, apesar da minha… — Não consigo nem dizer sem sentir meu peito
rasgando. — Traição?

Suas duas mãos ficam pousadas em meu peito e Maria Flor afasta o
rosto para me olhar.
— Isso. — É alívio que escuto em sua voz? — Obrigada por entender.
— Entender? — Sorrio sem humor, sentindo uma onda de náusea e

mágoa tomar conta dos meus sentimentos. Quanto mais a encaro, mais eu
quero tê-la perto de mim, independente de seus termos serem quase injustos,
humilhantes. — É melhor você ir agora.
Obrigo meus pés a se moverem para longe dela, uma tarefa quase
impossível levando em conta que meu corpo reage à sua proximidade como
um servo. Passar a noite inteira ao seu lado só agravou minha dependência.
— O quê? — pergunta, confusa, piscando diversas vezes como se
não acreditasse no que seus olhos enxergam.

— Eu disse — repito, lenta e dolorosamente — que é melhor você ir


agora.
— Está me expulsando? — Ela se empertiga, assumindo uma postura
defensiva e machucada.
— Só acho melhor não conversarmos agora — digo com sinceridade.
— Eu esperava muitas coisas da noite anterior, mas não o seu generoso
perdão. — Capto o sarcasmo em minha própria voz, mas é tarde para me
conter. — Esperava fazer amor com você durante toda a manhã. Esperava
conversar sobre o que ainda sentimos um pelo outro e como isso afeta o

programa. Esperava qualquer coisa, Malmequer, até o seu ódio! Mas o seu
perdão… — Nego com a cabeça. — Não preciso dele.
Eu errei em permitir que um mal-entendido nos separasse, e errei ao
demorar tanto para me explicar. Porra, errei em não correr atrás dela antes!

Mas traí-la não é um erro para o qual eu precise de perdão.


Maria Flor recua um passo inconsciente enquanto digere minhas
palavras.
— Não pode fazer isso. Não tente inverter os nossos papéis como se
eu estivesse errada em não confiar em você.
— Você não está errada, quantas vezes terei que repetir? — Com os
nervos sucumbindo ao desespero, procuro me acalmar. Por que ela tem que
ser tão complicada? Não quero dizer nada que possa magoá-la. — Vamos

deixar as coisas como estão, okay? Não quero estragar a ótima noite que
tivemos com uma discussão. Foi a primeira vez em semanas que
conseguimos ficar juntos sem brigar.
Maria Flor não abaixa a guarda. Ela parece feroz, revoltada e
perigosa. E, mesmo que eu seja o alvo de sua raiva no momento, não a acho
menos do que magnífica.
— Eu estava tentando fazer as pazes, Calebe — diz entredentes. —
Eu coloquei o meu orgulho de lado e ofereci uma solução!
Meu lado racional entende que ela não está errada, que sua oferta foi

sincera, mas meu lado emocional não consegue se segurar.


— Não adianta colocar o seu orgulho de lado para pisar em cima do
meu!
— Oh, estamos em um duelo de egos agora? — Maria Flor ri com

desdém.
— Quer saber? Você disse que é cansativo me odiar, mas experimente
amar você para descobrir o que é cansaço de verdade! — Arrependo-me de
cada palavra assim que elas saem da minha boca e como soam erradas. —
Não, não foi isso que eu quis dizer. — Fecho meus olhos, querendo voltar
dez segundos no tempo.
Merda! Não era para ser assim. Como as coisas se descontrolaram
tanto?

Olho para Maria Flor, paralisada no lugar, olhando para mim com um
semblante devastador.
— É melhor eu ir — ela diz, engolindo em seco e desviando o rosto
para a saída.
Aquiesço, ciente de que nada do que dissermos pode consertar a
situação agora que o estrago está feito.
No fim das contas, meu plano de me fingir de vilão deu certo, mas da
pior maneira possível: aquela em que eu de fato me transformo em um.
— Foi o que eu disse.
“Quando um não quer, dois não brigam.”

MARIA FLOR

Não me lembro de ter chorado.


Eu sei que chorei quando Calebe e eu nos separamos, porque ninguém
perde uma parte da própria existência sem derramar uma lágrima sequer. E
ele era uma parte de mim, quase tão importante quanto um braço ou uma
perna. Então, eu sei que chorei, mas, mesmo tentando desesperadamente, não

consigo me lembrar.
Foi logo após a descoberta, ou eu segurei as lágrimas por algumas
horas? Eu as deixei cair durante o banho, ou meu travesseiro ficou molhado
por vários dias? Será que eu chorei o tempo todo?
Em que momento eu parei de chorar?
Não me lembro.
É um pouco decepcionante, admito, porque agora não tenho como
comparar aquelas lágrimas dolorosas com as atuais, que ameaçam escapar
dos meus olhos enquanto Calebe entra no estúdio vestido com um terno

grafite-escuro idêntico ao que ele usaria no dia do nosso casamento.


Ele está lindo, exatamente como eu imaginei que ficaria em meus
sonhos bobos de noiva apaixonada: o cabelo penteado para trás, uma gravata
escura que contrasta com o tom do paletó, e um cravo elegante preso em sua

lapela esquerda. A única diferença é que não estamos em uma cerimônia de


casamento.
É um funeral.
Eu sou o caixão carregando o cadáver do nosso amor.
Uau, eu estou na fossa mesmo.
Calebe mantém a cabeça baixa, mãos enfiadas nos bolsos da calça,
sem olhar para mim. A noite que passamos juntos poderia ser um delírio
perdido no tempo, uma fantasia criada pela minha cabeça, mas o meu corpo

prova o contrário. Ainda carrego as marcas de todo o sexo quente e


descontrolado que fizemos, e mesmo me considerando uma pervertida bem
promissora, não sou tão criativa para imaginar tudo aquilo.
Sinto uma pontada no peito que faz meu sorriso vacilar e paro de
olhar para ele antes que alguém suspeite dos meus sentimentos em
frangalhos.
Ele foi bem claro ao dizer que me amar é cansativo. E o pior? Eu sei
que está certo.
Tenho sido uma megera com ele por semanas. Afastado, repudiado e

humilhado. O que eu esperava? Que ele fosse continuar se arrastando aos


meus pés para sempre?
Eu ainda o amo, e daí? Não muda nada! Nem sei porquê fiquei toda
emotiva propondo besteiras como perdoá-lo. Nós transamos, foi bom e

ponto. Eu não tinha nada que abrir a minha boca imensa e estragar tudo.
Admito que, dessa vez, nós dois passamos do limite.
Os noivos entram um atrás do outro, em uma fila indiana comportada.
Eles foram instruídos por alguém da equipe, suponho, e seguem direto para
os seus lugares: cinco cadeiras decoradas com rosas vermelhas, organizadas
em um semicírculo no meio do palco, como objetos em uma vitrine feita
especialmente para mim.
É a primeira vez que os vejo reunidos, e meu coração começa a dar

sinais de que pode não aguentar a pressão. Nenhuma novidade a respeito de


suas aparências: são homens fisicamente maravilhosos, fortes, atraentes, e
tudo o que há de bom. Eles marcam presença sem esforços, mas os ternos
lhes garantem um charme a mais. Sinto-me no Olimpo, rodeada por deuses
gregos da modernidade.
Eu ficaria satisfeita se me fosse dada a opção de olhar para eles pelo
resto da vida, sem a parte do casamento e suas implicações.
— Senhoras e senhores! — Miguel Castro diz. Não sei por que ele se
apresenta dessa forma, já que não estamos em um programa ao vivo. —

Finalmente chegamos ao grande dia. A primeira eliminação acontece agora e


um dos nossos noivinhos será chutado do altar. Maria Flor! — Ele se volta na
minha direção com um floreio exagerado. — Como você está se sentindo
hoje?

Morta por dentro.


O suco da depressão.
Valendo menos que nota de três.
— Ansiosa — limito-me a dizer, com um sorriso falso. Já gravei
depoimentos e mais depoimentos sobre os encontros, não acho necessário
esmiuçar o tema ainda mais.
O sorriso de Miguel vacila diante da minha resposta curta.
— Ansiosa para se livrar de um deles? — insiste, cheio de simpatia

profissional.
Como não vou conseguir escapar da questão, respiro fundo e
respondo:
— Nervosa é a palavra certa. — Cruzo as mãos em cima do colo,
sentindo o olhar de Calebe. Não o procuro ainda, seria um tiro no pé.
— Mas, já fez a sua escolha, certo?
— Eu… — Pisco, sentindo a garganta se fechar. Eu achei que tivesse
feito. Por algumas horas, tive certeza de que Calebe não era mais uma opção.
Agora…

Percebendo minha cara de incerteza, Miguel se agita e diz:


— Vamos ouvir nossos noivos primeiro! Todo mundo tem direito às
últimas palavras.
Últimas palavras? Que pertinente.

Miguel caminha até os meninos. Todos eles estão me encarando com


semblantes preocupados. Não sei se por medo da minha escolha, ou por
terem percebido que estou agindo de modo estranho. Não o meu estranho
normal, mas um estranho deprimente e trevoso.
— Seguindo os números dos candidatos, começaremos por você,
Leonardo! Acha que pode ser o primeiro eliminado? Tem algo a dizer sobre a
nossa noiva?
Leonardo se empertiga com confiança. Acho que os demais o

subestimam por ser sempre pacífico e romântico, mas se esquecem da força e


determinação necessárias para se tornar um cirurgião.
— Descobri que o truco é um jogo incrivelmente complexo. Preciso
de mais tempo para entender como funciona — diz, sorrindo, orgulhoso de
sua jogada inteligente.
A referência ao nosso encontro e a conversa atípica sobre baralho me
fazem sorrir. Leonardo é cuidadoso, pensa em todos os detalhes. Ainda bem
que foi o primeiro.
— Seja lá o que isso significa — Miguel diz — conseguiu arrancar

um sorriso da noiva, muito bem!


— Posso ensinar se quiser — Calebe se intromete com aquele
sorrisinho debochado característico dele.
Leonardo o ignora laconicamente.

— Muito bem… — Miguel, perdido nas várias camadas da conversa,


reassume o controle. — Agora, é a vez do nosso beijoqueiro! Ele mesmo,
Maurício. Diga, como se sente sendo o único a ter beijado a Maria Flor?
Tá de sacanagem?
— Bem eu…
Ele tem o bom senso de me encarar. Como já aceitei o triste fato de
que todos pensarão o mesmo — que o beijo foi real —, dou de ombros e
entrego meu futuro à própria sorte. Agora sei como os violinistas do Titanic

se sentiram.
— É Maurício — Calebe volta a falar. — Conte o que achou do
beijo.
Alguém coloque uma focinheira nesse homem, por favor!
Maurício lança um olhar cauteloso a ele, como se temesse sofrer um
ataque ali mesmo. Considerando que Calebe o encara com os olhos pingando
lava vulcânica, entendo sua preocupação.
— Na verdade… — Maurício se recompõe e escolhe a pior rota de
fuga do mundo: — Odiei, ela nem beija bem.

— O quê!? — pergunto, ultrajada.


Foi ciúmes foi ideia dele!
Todos os noivos se entreolham, estagnados, sem saber como agir. Já
Calebe, esconde a boca com a mão, gargalhando, como se não fosse culpa

dele todo o caos instaurado. Minha piedade de mais cedo evapora.


— Veja bem — Maurício continua. — Não usamos a língua, talvez
seja o caso de tentarmos de novo. O que acha, Florzinha? — Ele é mais
perspicaz do que aparenta.
Calebe para de rir.
Bem feito!
— Nada disso — Miguel interfere, poupando-me da humilhação de
responder. Limpa o suor de sua testa, com os olhos vidrados. Acho que ele

esperava pessoas mais civilizadas em seu show, coitado. — É hora de


ouvirmos o nosso terceiro candidato! Bartolomeu, quer dizer alguma coisa?
Ele nega.
— Nada que ela já não saiba. — Bartolomeu afunda em sua cadeira.
Sinto vontade de me levantar, ir até Bartô e lhe dar um abraço. Tenho
que deixar essa briga com Calebe de lado e me lembrar que há coisas muito
maiores acontecendo. Já que não consigo ser sincera a respeito dos meus
próprios sentimentos, ou resolver meus problemas sem criar outros dez, então
que ao menos eu possa solucionar o problema de outro alguém.

— Okay, então… — Desconcertado, Miguel suplica com os olhos


para João Guilherme. — Número quatro? Acha que pode ser o eliminado de
hoje?
João Guilherme olha para seus companheiros antes de responder.

— Acho que todos concordam quando eu digo que ela é


surpreendente, muito diferente do que eu estava esperando. A gente se deu
muito bem, então não acho que vou para casa. Mas tenho algo a dizer, sim.
Não é uma coisa que eu admita com frequência, mas já que estamos aqui para
nos expor ao ridículo, vamos lá! — Antes de continuar, ele foca em mim. —
Gostei da sua companhia. Às vezes, eu me sinto um pouco sozinho, acho que
todo mundo passa por isso. Mas, durante o nosso encontro, eu senti como se
fôssemos amigos de longa data. Dizem que o primeiro estágio do amor, é a

amizade, então, acho que começamos bem e isso é tudo.


Como não estou em meu momento mais glorioso para falar (não
quero correr o risco de falar bosta), sorrio e aceno. Olho em seu pescoço e me
pergunto se aquela correntinha com o anel está escondida por baixo do terno.
João Guilherme é sincero, gosto disso nele, sua confissão me envolve como
um abraço.
Miguel vai ao êxtase ao receber pelo menos uma resposta plausível e
volta a sorrir alegremente.
— Por último, mas não menos importante, o candidato número cinco,

Calebe Ventura! Está com medo de ser eliminado?


— Muito — ele responde. — Todo mundo já sabe que sou o alvo
mais óbvio. Mas, também tenho algo a dizer. Minhas últimas palavras.
— Claro! Estamos ansiosos, não é, Maria Flor?

Não.
Nem um pouco.
— Sim.
Calebe fica de pé — o único que se prontificou. As câmeras se
dividem entre ele e eu, e me sinto exposta e desconfortável. No momento em
que começa a falar, entretanto, sua voz bloqueia tudo, roubando minha
atenção.
— Correr atrás do que é importante para nós, às vezes é cansativo,

principalmente quando a gente acha que não está chegando em lugar nenhum.
Mas ninguém conquista nada sem esforço, e, muitas vezes, o valor daquilo
que almejamos pode ser medido pelo nível do nosso cansaço. — Calebe não
olha para Miguel, ou para as câmeras. Só existe eu em seu olhar. — O seu
valor é inestimável, e eu sempre soube que não seria fácil por isso, mas eu sei
também que vale a pena. Você vale a pena.
É um pedido de desculpas, percebo, com o coração socando meu
peito.
Está usando sua única chance para consertar aquilo que quebramos

após uma noite que foi especial para ambos.


— Acabou de chamar a noiva de cansativa? — Miguel bufa,
visivelmente aliviado em se livrar dos noivos e seus depoimentos bizarros. —
Enfim, vamos ao que interessa de verdade…

Miguel continua com sua apresentação padrão, mas minha mente já


viajou para Nárnia. Calebe me encara com súplicas nos olhos, Bartolomeu
também, Maurício é o retrato da discórdia e João Guilherme não poderia estar
mais de boa, já Leonardo me oferece aquele olhar reconfortante, como se
quisesse me acalmar.
Quando percebo, Miguel está me encarando, no aguardo de um nome.
Da minha escolha. Do meu eliminado.
Respiro fundo. Sei o que tenho que fazer.

Já sabia desde o início.


— Eu vou eliminar…

***

Sinto-me como a Dona Flor, só que com cinco maridos ao invés de


dois.
Quatro, corrijo-me.
Encaro meu reflexo no espelho do camarim e a Noiva Cadáver me

encara de volta. Estou usando outro vestido virginal. Meu figurinista não tem
muita noção de personalidade, mas deve ser coisa do programa, para brincar
com o conceito de noiva pura.
Por mim, eu o jogaria no fogo — do inferno — com muito bom

grado.
A porta se abre e eu me viro, pensando se tratar de alguém da
produção, mas sou pega de surpresa por Calebe, que tranca a porta depois de
entrar.
— O que veio fazer aqui? — pergunto na defensiva.
Já não me sinto mais possessa de raiva, ou triste e devastada. Tá, eu
admito, sua declaração no meio do programa me derreteu e meu estoque de
panos para passar quando se trata de Calebe parece não ter um fim.

— Pensei que fosse me eliminar. — Ele afrouxa sua gravata e se


aproxima.
— Você já sabia que eu acabaria escolhendo o Bartolomeu. — Encaro
o chão. — Desde aquele dia na casa dele.
Ouço sua risada suave.
— Mas tive minhas dúvidas depois…
— Eu estou tentando — digo por cima dele. Falar sobre a nossa
discussão não vai nos levar a lugar nenhum. — Entender você, seguir em
frente sobre aquele dia. Uma parte de mim deseja até acreditar em você.

Só… não é tão simples.


— Ei, olhe para mim. — Calebe segura meu rosto, olhando no fundo
dos meus olhos. Sua voz é mansa e carinhosa. — Eu sei, Margarida. Como eu
disse, a culpa não é sua. Se tem alguém que não tem culpa de nada, esse

alguém é você. E não vou te pressionar a voltar para mim e fingir que nada
aconteceu. Eu só não quero perder isso. — Ele deposita um selinho na minha
boca, que não rejeito. — Não depois do que fizemos, de tudo o que sentimos.
— A gente sempre acaba brigando — digo, encarando sua boca e
desejando beijá-lo. — Como se estivéssemos em uma guerra sem fim.
Calebe me solta e puxa seu lenço do bolso de seu paletó, o tecido
branco se desdobra.
— Esta é a nossa Bandeira Branca da Paz, me dê a sua mão. —

Levanto meu braço e Calebe começa a amarrar aquele pano ao redor do meu
pulso. — Sabia que existe uma Convenção que regulamenta o uso da
bandeira?
— Isso é um lenço. — Sorrio, só de implicância.
— Bandeira — insiste, dando mais um nó. — Se chama Convenção
de Genebra. Ao levantar uma bandeira branca no meio da guerra, um exército
está desistindo da batalha, ou pedindo uma trégua. Essa é a nossa trégua.
É um jeito bobo de resolver nossa briga, mas também é fofo.
— E o que acontece se um de nós dois não respeitar a trégua? Ou se

você estiver usando a desculpa da bandeira para me enganar?


— Usar a bandeira branca indevidamente é considerado um crime de
guerra! — declara, em tom ofendido, como se existisse uma polícia especial
que fosse puni-lo por quebrar nosso acordo metafórico.

Olho para meu pulso quando ele termina seu trabalho, o lenço branco
todo embolado e frouxo, e acabo sorrindo.
— Desculpe por ter sido insensível naquele dia. — Até eu me
surpreendo comigo mesma. Mas, se Calebe está sendo maduro, eu também
consigo.
Não custa nada tentar.
— Já passou. — Ele me abraça e beija minha testa. — Quero apenas
que não me descarte, que me considere como um dos seus candidatos e que

possamos descobrir, juntos, como resolver a nossa situação. Acha que


consegue?
Considerar Calebe como um candidato?
Reflito a respeito, vasculhando como me sinto com relação a isso.
Passei tanto tempo me convencendo de que o odiava que agora parece
estranho ficar em paz. Mas eu quero fazer isso. Quero estar com ele um
pouco mais.
Quero tentar.
— Tudo bem — decido.

— Ótimo! — Ele vibra e me pega no colo de repente.


— Calebe! — Agarro-me em seus ombros quando ele rodopia e me
leva em direção ao sofá. — O que está fazendo?
— Temos tempo — diz com um sorriso malandro. — Ninguém virá

atrás de você pela próxima meia hora. E a porta está fechada.


Entendo onde pretende chegar.
— Disse para eu tratar você como um dos meus candidatos — reflito
em voz alta. — Mas eu não transo com os outros.
Sorrindo, Calebe me coloca sentada no sofá e se inclina sobre mim,
parando a centímetros da minha boca.
— Não faz ideia de como é bom ouvir isso, Margarida — declara com
fogo queimando por trás de seus olhos. — Nesse caso, me considere um

candidato com privilégios. O único. — É a última coisa que ele diz antes de
me beijar, selando nosso acordo de paz.
“Família: conjunto de pessoas que se amam. Sinônimo: hospício.”

MARIA FLOR

Daqui muitos e muitos anos, quando perguntarem como a terceira


guerra mundial teve início, as pessoas contarão que foi em um programa de
TV brasileiro. É bem a cara da minha família desencadear a quase extinção
do planeta, mas eu acho que os produtores não tinham conhecimento dos
riscos quando tiveram a brilhante ideia de reunir minha família em um jantar

com meus pretendentes a noivo.


Rever meus pais foi incrível a princípio, obviamente, mas existe um
grande buraco entre matar a saudade dos meus familiares, e assisti-los
interagir com os meus noivos.
Depois de quase uma hora de perguntas sobre o que fazem da vida,
quantas mulheres já namoraram e se fizeram testes para DST’s antes de
entrarem no programa — Leonardo explicou que este era um requisito
obrigatório na admissão deles —, meu pai finalmente relaxou e passou a
conversar com eles como uma pessoa normal.

Quase normal. Não se pode esperar muito dos Pinto de Barros.


Minha mãe parece estar no paraíso. Ela literalmente disse isso, que
estava se sentindo no “paraíso das picas”, e que eu era uma garota de sorte, já
que todos os meus noivos pareciam ter saído de um “pornô gourmet”, seja lá

o que isso significa. Prefiro não pensar na minha mãe assistindo pornôs de
qualquer tipo.
Pedro Henrique logo se propôs a fazer aquilo que ele faz de melhor:
ser uma criança pré-adolescente fofa? Não, não. Explanar todos os meus
defeitos e histórias constrangedoras de família, como a vez em que eu me
vesti de mamãe noel sexy durante o natal porque queria fazer uma surpresa a
Calebe, mas entrei no quarto errado e me sentei em cima do tio Tom, um
primo do meu pai que estava passando as férias com a gente.

Mas a minha irmã…


— Não se preocupe, eu tenho um plano — Alice sussurra, sentada à
minha direita na mesa de jantar, com Pedro Fofoqueiro ao seu lado.
Meus pais ocupam as pontas da mesa e os noivos foram colocados
lado a lado na lateral, logo à minha frente.
— Seu último plano é o culpado de estarmos aqui, Alice — eu a
lembro, falando baixo, pois aposto que Calebe está tentando escutar. — Não
sei se quero ser cúmplice de outra ideia infalível que vai me foder. Nós
somos tipo o Pink e o Cérebro tentando conquistar o mundo com planos que

nunca dão certo.


— Vai dar certo. Escute só! — Alice se inclina mais perto. — Eu vou
dar em cima deles para você.
Preciso de alguns segundos para digerir a informação.

— O quê?
— Teste de fidelidade — prossegue, animada — para sabermos se são
fiéis. Papai se recusa a eliminar o Judas, Pedro também o idolatra, mamãe o
considera um filho e já não acredita mais que ele te traiu de verdade, então eu
sou a sua única esperança. Quero garantir que você tenha uma opção não-
adúltera entre seus três finalistas.
Encaro minha irmã, seu belíssimo rosto de princesa, os cílios longos e
escuros. Quem a julga pela aparência, pensa que se trata de uma dama da alta

sociedade, com seus sorrisos fáceis e a voz de veludo. Ninguém imagina que
por trás de toda a fachada encantadora, existe uma mente ardilosa, quase
criminosa.
— Eu não sabia que falava dois idiomas, Alice. — Sorrio para ela,
disfarçando quando uma câmera dá um zoom bem na minha cara.
— Eu não falo. — Ela une as sobrancelhas, sem entender.
— Fala português e muita merda! — ralho. — Tá maluca, cacete? O
que eles vão pensar de você? E se um deles retribuir?
Alice desdenha de mim com a mão.

— Ah, eu sou uma vaca, Maria Flor, é bom que saibam logo, caso
entrem para a família. Veja o Judas, ele pode ser o que for, mas não me
subestima. Não ligo para o que pensam de mim. — Alice me olha de
esguelha. — Mas, se um deles retribuir, você vai ficar triste? Não está

apaixonada pelos quatro, está? Isso sequer é possível?


Paixão é uma palavra forte. Gosto muito deles. Fisicamente falando,
sinto-me atraída por todos, mas, quando os comparo com Calebe, a coisa
muda da água para o vinho. Só ele me deixa zonza com seu olhar, só ele
consegue tirar o meu sono e causar uma erupção dentro do meu corpo.
Quando penso em paixão, penso em Calebe Ventura.
— Acho que não — respondo com sinceridade. — Mas não significa
que aprovo essa sua ideia de jerico.

Alice pega sua taça de vinho e bate contra o meu copo de água, em
um brinde profano que faz um calafrio percorrer minha espinha.
— Deixa comigo, Blood Mary, sei o que estou fazendo.

***

Temos meia hora de descanso antes da sobremesa, então eu fiz aquilo


que achei mais inteligente: fugi para as colinas.
No caso, as colinas são os corredores secretos dos bastidores.

Pensei em me trancar no meu camarim, mas seria facilmente


encontrada por alguém da produção, ou pior, pela minha família.
Os quatro devem julgar meus noivos e escolher um para ser
eliminado. No começo, eu amei a proposta, já que não precisaria me estressar

com outra decisão difícil, agora eu não tenho tanta certeza.


Saber que não vão eliminar Calebe me deixa mais tranquila do que eu
deveria ficar, mas e se escolherem alguém que não merece sair ainda? Tipo o
Leonardo. Ele ama estar aqui… Ou João Guilherme, que eu espero conhecer
mais… Ou Maurício, que é um canalha, mas me diverte muito durante as
gravações?
— Não queria que nenhum deles fosse embora — digo para mim
mesma, mas uma voz do além me responde.

— Não está pensando em se casar com nós quatro, está, Margarida?


— Voz do além, vulgo Calebe. — Posso até pensar em compartilhar você na
cama uma vez se for uma fantasia extremamente indispensável que você
queira realizar, desde que eu esteja junto, mas dividir o seu amor não está nos
meus planos.
Olho para trás e o vejo se aproximando, pulando os cabos elétricos e
restos de tecidos no chão. Não sei bem onde estamos, mas deve ser em algum
lugar atrás do palco, já que a decoração do cenário é composta por estes
mesmo panos cor-de-rosa e brancos cintilantes.

Todos os quatro receberam roupas que combinam com meu vestido


de tule azul-bebê, então Calebe está usando uma calça branca junto com uma
camisa pólo da mesma cor que meu figurino. A combinação de tons claros
fica bem nele, destaca seus olhos e camufla sua personalidade indecente —

só até ele abrir a boca e despejar todas essas sacanagens.


— Tem ciúme do meu amor, mas não do meu corpo? — provoco.
— Tenho ciúmes de você inteira, Malmequer. — Calebe confere os
arredores e me puxa pela cintura ao constatar que é seguro. — Mas, como o
seu prazer é o meu prazer, estou disposto a abrir minha mente para satisfazê-
la. Além do mais, conheço essa sua cabecinha sem-vergonha e sei que já deve
ter pensado nisso algumas vezes.
— Quem, eu? Imagina. Sou uma mulher bela, recatada e do lar.

Sorrindo, Calebe me conduz até a parede e pressiona nossos corpos.


— Acho que você quis dizer: bela, depravada e que gosta de dar, né?
— Dá no mesmo. — Agarro seus ombros assim que sua boca
encontra a minha em um beijo faminto. Terei que voltar ao camarim para
retocar a maquiagem, um sacrifício que vale o esforço.
Como meus saltos hoje são ridículos de tão altos, ele nem precisa me
erguer em seu colo, eu mesma levanto uma perna e uso seu quadril de apoio.
— Temos tempo — ele diz naquele timbre rouco que brinca com a
minha libido. — Se quiser, posso chamar um deles até aqui. Qual você quer?

— Você não está falando sério — ofego, dando risada contra a sua
boca.
Sua mão escorrega até minha coxa e me aperta por baixo da saia
volumosa.

— Não — admite, rindo também. — Mas podemos brincar com a


imaginação.
— Quer que eu imagine outro par de mãos no meu corpo? —
pergunto, sussurrando em tom sensual. — Enquanto você me beija?
— Se é o que você quer — ele diz, encaixado entre as minhas pernas,
mas seu timbre já não tem mais a mesma força de vontade.
Eu não quero, mas continuo só pelo prazer de vê-lo se atropelar nas
próprias ideias malucas. Calebe deve ser um pouco masoquista, só pode.

— O que acha de me escutar gemendo — proponho em seu ouvido —


o nome de um deles?
Calebe fica sério e começa a negar.
— Eu não…
— Hmm — eu o corto, rebolando devagar e lutando contra uma
gargalhada. — Mais forte, João Guilherme.
Sua cara é impagável.
— Acho que não gosto dessa brincadeira tanto assim — reclama com
um rosnado de irritação.

Não aguento mais e começo a rir alto.


— Eu avisei! — Mordo meu lábio e passo as unhas por seu tórax.
Mesmo por cima da camisa, consigo sentir todas as linhas de seu peito
robusto. — Gosto mais da ideia de ter você só para mim.

Ele volta a relaxar, seus olhos envoltos em desejo. As lufadas de


nossas respirações se misturam, antecipando o beijo iminente antes de nos
perdermos na boca um do outro. Sua língua predomina, ditando a
intensidade, o ritmo, a força de nossas vontades.
Agarro a frente de sua camisa com força e Calebe afunda sua mão na
minha nuca, segurando os fios encaracolados que estão soltos, livres de
qualquer penteado. Ele puxa minha cabeça para trás, expondo mais ainda a
minha boca para um beijo mais intenso. Tento, sem sucesso, recuperar o

fôlego entre um movimento e outro, mas não encontro brechas. Ele continua
me beijando e eu continuo retribuindo.
Sua ereção é um pulsar rígido que faz meu interior se contrair,
chorando para senti-lo aqui e agora. As mãos de Calebe pressionam minha
bunda, moendo com ganância até alcançar a linha tênue entre a dor e o
prazer.
Meus pulmões ardem, meu corpo inteiro vibra com o conflito sobre
encerrar o beijo ou morrer por falta de ar. Escolha difícil! Calebe, felizmente,
cede primeiro e se afasta. Ao contrário de mim, que estou ofegante como uma

asmática, ele abre um sorriso incólume.


— Tire a calcinha, Margarida — pede com os olhos faiscando. —
Ainda temos dez minutos. Consigo fazer você gozar em menos que cinco.
Transar com Calebe no meio do estúdio com toda a minha família do

outro lado? QUE IDEIA GENIAL.


Quais são as chances de dar merda?
Quinhentos por cento?
Retiro minha calcinha depressa e a entrego a Calebe, que enfia no
bolso. Coloco as mãos na parede e me curvo de costas, empinando a bunda
sem nenhum decoro. Escuto o barulho de seu cinto sendo aberto, depois a
calça, o roçar de sua roupa sendo abaixada para liberar sua longa rigidez.
— Anda logo Calebe! — clamo, arquejante, tanto pela expectativa de

sua invasão, quanto pelo medo de sermos pegos. — Rapidinhas se chamam


rapidinhas, porque são rápidas!
Mas, como o homem é um demônio, ele solta uma risadinha e me
provoca com os dedos, conferindo o quão pronta estou para recebê-lo. Calebe
rosna ao constatar que estou pronta há uns dez anos, mais molhada que as
Cataratas do Niágara.
— Sempre mandona.
Só não o xingo porque engasgo para não gemer alto demais quando
sinto sua ponta dilatada me alargando pouco a pouco, unindo-me àquela

longa circunferência maciça que lava a minha mente de quaisquer


pensamentos coerentes. Ele se aprofunda por inteiro. Projeto meus quadris
para cima, enlouquecida com o preenchimento absoluto.
Calebe se retira e volta a estocar, usando suas mãos para me segurar e

estimular o movimento sincrônico de nossos corpos.


Solto gemidos erráticos, torcendo para soarem baixos e não como
gritos estrangulados. Calebe enrosca os dedos entre a bagunça de fios
castanhos e puxa meu couro cabeludo para trás, envergando minha coluna e
intensificando o ritmo de suas estocadas.
Habilmente, ele se abaixa e enfia a mão livre no meio das minhas
pernas, estimulando-me com os dedos em busca do meu orgasmo
instantâneo. Escuto o som grave de sua respiração enquanto ele bate dentro

de mim sem parar, dedicando-se às suas múltiplas tarefas, e começo a tremer.


Perco-me em sua mão, gozando longamente. Calebe solta meu cabelo
e cobre minha boca para calar o grito que mal consigo engolir. Mas, assim
que ele arremete com força, mais duas ou três vezes, e se derrama dentro de
mim, consigo escutar até o ranger de seus dentes.

***
Calebe já havia antecipado todo o rolê e sacou um lenço de seu bolso,

com o qual pude me limpar. Todo o processo de parecermos minimamente


apresentáveis não demora mais do que dois minutos.
— A propósito, você sabe por qual motivo Alice colocaria o pé em
mim por baixo da mesa? — ele pergunta, esperando enquanto visto a minha

calcinha.
— Como assim, ela te chutou?
— Acho que… — Calebe hesita, parecendo desconfortável. —
Tentou passar o pé descalço no meu pau, isso é possível?
Quase caio para frente.
Antes que eu consiga explicar o plano mirabolante da minha irmã,
ouvimos murmúrios bem próximos de onde estamos.
— Aí! — É uma voz feminina.

Eu e Calebe nos encaramos, horrorizados.


— Será que fomos vistos? — sussurro.
— Vamos descobrir.
Calebe avança, seguindo os barulhos. Viramos na curva final do
corredor, um lugar com muitos panos saindo pelas paredes de madeira.
Parecem divisórias enormes que vão do teto ao chão.
Mas o que me faz estagnar, chocada, é a visão desconcertante de
Alice e…
— Maurício? — Calebe pergunta, igualmente chocado.

O problema não é estarem juntos, mas a posição em que se


encontram: Maurício está apoiado no painel, de costas, com minha irmã de
joelhos na frente dele, o rosto colado em sua virilha.
— Meu cabelo está preso! — Alice grita. Se ela pode falar tão

claramente, é sinal de que sua boca não está… enfim. — Me ajudem.


Chego mais perto, resignada, analisando a cena do crime.
— Como seu cabelo ficou preso no zíper da calça dele, Alice?
Calebe solta uma risada.
— Violeta, não seja ingênua.
Ah, certo.
Minha irmã olha para Calebe, depois para mim.
— Vocês dois… — diz, estreitando os olhos. — Eram vocês dois

transando ali atrás? Você está transando com Judas, Maria Flor?
— Não está em posição de me julgar, não acha? — pestanejo. Não
estou brava com ela por ter chupado um dos meus candidatos a noivo,
Maurício já não é minha primeira opção faz tempo (até ele sabe disso), mas
não deixa de ser esquisitíssimo.
Alice faz uma careta, mas não rebate meu argumento.
— Podemos apenas cortar? — Maurício sugere, na maior paz.
— Se cortar o meu cabelo eu corto o seu pau fora, Maurício. Com os
dentes!

— Eu ajudo. — Calebe vai até os dois estuda suas opções, nem um


pouco feliz de aproximar suas mãos daquele lugar.
— Não precisamos da sua ajuda, prefiro cortar o cabelo — Alice
teima. Se eu sou difícil, ela é impossível.

— Vai cortar o seu pé também? Já que ficou tentando me acariciar


por baixo da mesa? — Calebe nem se importa com as implicâncias de Alice e
começa a remover os fios.
Minha irmã arregala os olhos.
— Eu pensei que fosse o Leonardo.
— E por que caralhos você queria provocar o Leonardo por baixo da
mesa? — Maurício questiona, seu tom é de puro ultraje.
— Longa história — digo, aflita. — Só andem logo com isso.

O peso de Maurício, somado ao de Calebe e Alice, que apoia as mãos


atrás dele, fazem o painel de madeira sacudir. Pressinto o perigo e decido
alertá-los, mas o pior acontece e aquele grande bloco cai para trás, levando os
três juntos em uma queda caótica.
Mauricio desaba no chão com as pernas abertas e minha irmã acaba
sendo puxada no processo, caindo de quatro com a bunda de fora. Calebe
tropeça e cambaleia mais à frente, estatelando-se de joelhos em um
amontoado de tecidos cor-de-rosa e brancos.
Perto da mesa de jantar.

O painel era parte do cenário do programa.


Vejo meus pais se levantando em choque, assim como Leonardo e
Guilherme. Todos param ao processar a cena bizarra e as câmeras se voltam
na nossa direção.

Alice, pleníssima, jogada no chão com a cara enfiada nas pernas de


Maurício, apenas diz:
— Pai e mãe, acho que já tenho alguém em mente para eliminarmos.
“Mais vale um pássaro voando do que três na mão.”

MARIA FLOR

Dia 1:
O carma é uma vadia.
A maioria das pessoas já ouviu essa frase pelo menos uma vez na
vida. O carma é uma vadia daquelas bem gostosas que voltam para desgraçar
tudo ao nosso redor no pior momento possível, quando a gente menos espera,

só porque conhecem todas as nossas fraquezas, defeitos e erros.


Eu gostaria de saber se compartilhar o mesmo teto que meus três
pretendentes restantes — dentre eles, um com quem tenho transado
deliberadamente — é a minha vadia gostosa batendo à porta. Se estou
pagando por algum pecado e tenho mesmo que suportar a humilhação em
silêncio graças à lei do retorno, se cometi algum crime tão bárbaro que
mereça uma punição igualmente cruel.
Mas, por enquanto, minha única certeza é a de que, se o meu carma
sendo pago é uma etapa inédita do programa que me obriga a morar com

Calebe, João Guilherme e Leonardo ao mesmo tempo, durante cinco dias, e


eliminar um deles ao final do quinto dia, então sim… o carma é mesmo uma
vadia.
— E aqui — Leonardo diz, sorridente, apontando para o interior do

cômodo — é o seu quarto.


— Mas pode usar a minha cama sempre que quiser — Calebe oferece,
espiando por cima do meu ombro para enxergar dentro do meu quarto.
Ele encosta o ombro no meu ao passar por mim e se colocar próximo
a Leonardo. Não sei se vou me acostumar com essa coisa de ter um quarto ao
lado do deles. Eu e Calebe estaremos a menos de dez passos de distância um
do outro, todos os dias, todas as noites, o tempo todo.
— Tem que ser um idiota em tempo integral? — A voz calma de

Leonardo contrasta com seus punhos fechados.


— Ficou nervoso porque ofereci minha cama antes de você?
Parecem crianças.
— O que estão fazendo? — João Guilherme aparece pelo corredor
com minhas duas malas penduradas nas mãos como se cada uma não pesasse
vinte quilos.
— Mijando no poste — resmungo, sorrindo, feliz com a interrupção
certeira. — Obrigada pela ajuda, se puder colocar ao lado da cama.
— Seu desejo é uma ordem, Florzinha. — Ele pisca um olho para

mim e entra no quarto. Um minuto depois, reaparece de mãos vazias. — Ela


tem uma cama de casal, acreditam nisso?
— Vocês ainda não tinham visto o meu quarto?
— Estava fechado — Leonardo responde. Suas roupas indicam que

chegou do trabalho há pouco tempo, ou que está prestes a ir trabalhar, a calça


impecavelmente branca fica muito bem nele. — Só ficamos sabendo da sua
vinda ontem a noite. Fomos levados ao estúdio para o anúncio oficial.
— Uma chatice. — Guilherme faz uma cara de desgosto.
— O que me lembra — Calebe se intromete — que precisamos contar
a ela.
— Calebe — Leonardo o adverte, arregalando os olhos.
Minha curiosidade dá sinal de vida na mesma hora.

— Contar o quê? — pergunto, interessada.


— É melhor não — João Guilherme diz, unindo-se à advertência de
Leonardo com um olhar repreensivo.
— É melhor sim! — Enfio-me no meio dos três. — O que estão
escondendo?
Tenho que inclinar o pescoço para encarar o trio de grandalhões —
uma ideia absolutamente ruim. Eles me flanqueiam com toda aquela
corpulência de bíceps e tríceps bem definidos e rostos quadrados lindos de
doer. O excesso de beleza masculina não costuma combinar bem com o bom

desempenho do meu cérebro.


— Existe mais um quarto — Calebe diz em tom casual — no final do
corredor, que nunca foi aberto.
Leonardo suspira, contrariado, e abre passagem, guiando-nos até uma

porta vermelha de madeira mais à frente.


— Também não sabíamos qual era o objetivo deste cômodo até
ontem. — Ele engole em seco, encara o chão, constrangido.
Sinto que não devo perguntar. As expressões de Leonardo e
Guilherme me dizem para não perguntar — Calebe não conta, ele gosta é da
bagunça e do caos. Até a porta vermelha vibrante parece me dizer para ficar
quietinha no meu canto. Sigo os sinais? Óbvio que não. Lá vou eu fazer uso
de minha língua grande, curiosa e incontrolável.

— E para o quê serve?


Os três se entreolham em busca de quem será o responsável pela
árdua tarefa de me responder. Pelo sorriso endemoniado de Calebe, aposto
que só não se prontifica para irritar os outros dois.
João Guilherme pigarreia e dá um passo à frente.
— Caso queira ter relações sexuais, não há câmeras lá dentro.
Eu pisco, atordoada.
— Muito engraçado. — Solto uma risada descrente.
— Não é brincadeira. — Apesar disso, os cantos de seus lábios se

curvam no que considero um sorriso ansioso. — Nos anos anteriores não


existia um quarto assim, mas este ano estão mudando várias coisas, como
você já sabe. Disseram que a ideia é moderna. Então, se quiser fazer sexo,
basta entrar lá dentro.

Modernidade para mim é um robô que aspira o pó da minha casa, não


um abatedouro de noivos.
— Tipo, com você? — Que pergunta é essa, Maria Flor?
João Guilherme abre a boca, mas quem responde é Leonardo, para
minha surpresa.
— Com qualquer um de nós.
— Ou com todos nós juntos — Calebe emenda, rindo e sendo o
imoral provocador de sempre. — O que foi? Vão fingir que também não

pensaram em um ménage?
— Tecnicamente, qualquer coisa acima de três pessoas é uma suruba.
— Os três me encaram com cautela. Preciso aprender a filtrar as coisas que
penso antes de falar. — Não que eu esteja interessada nem nada assim.
Não estou!
Já brinquei várias vezes comigo mesma sobre ficar com mais de um
deles e me livrar do estresse de eliminá-los. Mas existe um abismo entre
brincar e praticar. Eu sou uma criatura monogâmica demais para algo tão
radical.

Fantasiar com uma orgia? Okay.


Protagonizar uma? Nem fodendo.
João Guilherme tosse e aponta para trás com o polegar.
— Precisa de mais alguma coisa?

— Não — digo com a voz esganiçada como uma gralha. — Aliás,


preciso arrumar minhas coisas, então eu vou voltar para o meu quarto agora.
Saio dali quase correndo e atravesso o batente para a segurança do
meu quarto. Ao espiar para trás, encontro o olhar de Calebe, cujo peito em
espasmos deixa claro que está rindo de mim.
Seus lábios se movem, formando uma palavra inaudível.
— Safada.
Faço um gesto obsceno, mostrando meu dedo do meio, e bato a porta

com força.
Vai ser uma longa semana.

***

Dia 2:
Estou acostumada à dinâmica de compartilhar uma casa com muitas
pessoas: a falta de privacidade, o som constante de conversas vindas
geralmente da sala ou da cozinha, o compromisso não verbalizado de dar

bom dia ao acordar e boa noite antes de dormir.


Não havia percebido que estava me sentindo tão sozinha até me
mudar para o apartamento dos meninos. De certa forma, eles me lembram da
minha família, da bagunça aconchegante e íntima e dos assuntos aleatórios.

Muito aleatórios.
— O que acham de Quarto Vermelho da Dor? — João Guilherme
estica o braço, sem levantar da poltrona, e pega mais uma fatia da pizza
tamanho gigante que compramos para a janta. Duas, pois eles comem como
leões.
Como não há nada de interessante para fazer no apartamento, só nos
resta comer e fazer vários nadas juntos pela segunda noite consecutiva.
Estamos reunidos na sala mesmo — eu, Calebe e João Guilherme —

já que a cozinha é pequena demais para acomodar todos nós. Nem consigo
imaginar como faziam para caber aqui dentro quando eram cinco ao invés de
três. Leonardo ainda não chegou do trabalho.
Acho interessante que continuem mantendo o máximo de suas rotinas,
diferentes de outros programas de reality show em que o confinamento é
absoluto. Mas faz sentido, já que a proposta do programa envolve uma
escolha que nos impactará na vida real.
— Muito batido — digo, refletindo a respeito. — Já foi usado antes
em uma obra literária famosa.

— Eu sei. — Sempre esqueço que João Guilherme gosta de ler, mas


não imaginava que livros eróticos estavam em seu repertório.
— Precisamos de algo mais original. — Encaro o teto, pensativa, com
as pernas cruzadas sobre o sofá e um prato equilibrado nas mãos.

— Vamos apenas chamar de Quarto do Sexo — Calebe sugere. — É


prático e autoexplicativo.
— Isso é o oposto de original — reclamo.
— Como não vai ser usado mesmo, talvez seja melhor algo como
Quarto do Desperdício. — João Guilherme brinca de esticar o queijo
derretido de sua pizza a cada mordida. — Quarto dos Que Não Foram — diz
com a boca cheia.
— Quarto dos Sonhos Impossíveis — Calebe experimenta, falando

alto.
Os dois já perderam o controle.
Ouço o barulho de chaves e da porta sendo aberta. Leonardo entra e
fico feliz que não esteja de plantão outra vez. Ele saiu ontem, pouco depois
da minha chegada, e só voltou agora porque emendou seu turno em outro
hospital.
— Boa noite, doutor. Está com fome? — Aponto para as duas caixas
de pizza abertas sobre a mesa de centro. — Tem de Calabresa e de Frango
com Catupiry.

— Boa noite, querida. — Ao passar por mim, ele deixa um beijo na


minha testa e caminha para a única poltrona restante na sala, ao lado de João
Guilherme. — Jantei no hospital, mas obrigado. O que estão fazendo?
— Escolhendo nomes para o quarto no final do corredor — Calebe

responde. Ele se levanta e busca uma garrafa de cerveja na geladeira,


entregando-a para Leonardo como se já estivessem acostumados com a
rotina.
— E por que fariam isso? — Leonardo abre a garrafa enquanto tira
sua gravata, abrindo os primeiros botões da camisa.
Ele não parece cansado, mas faz um som de prazer e alívio quando dá
o primeiro gole.
— Tédio — João Guilherme pega outro pedaço. Já é o quinto? Sexto?

Eu parei no terceiro, quase explodindo. — Tem alguma sugestão?


— Uma sugestão boa, por favor — digo, alfinetando Calebe e
Guilherme com o meu tom. — Até agora só conseguimos pensar em nomes
péssimos.
— Não ouvi você dando nenhum palpite, Malmequer.
Dispenso um olhar breve a Calebe, mas trato de desviar bem rápido.
Como ele ocupa um sofá inteiro sozinho, pôde se deitar confortavelmente
após entregar aquela cerveja para Leonardo, e a visão de Calebe deitado com
suas roupas casuais de dormir é quase um crime.

— Sou a jurada — defendo-me, como se fosse um título de verdade.


— Se pensarmos bem… — Leonardo indica o corredor com o queixo.
— Não é irônico um quarto planejado para noivos transarem antes do
casamento?

— Então… — João Guilherme apoia os cotovelos nos joelhos,


estudando a linha de raciocínio de Leonardo. — Quarto do Pecado?
— Clichê — Calebe diz, rindo, e eu concordo. — Tem que ser mais
marcante, vai aparecer na televisão.
Até parece que estamos escolhendo o nome de um filho.
— Gosto do conceito de ser brega. — João Guilherme é o mais
compenetrado na missão. — Sabe quando o bebê já nasce com sessenta anos
só porque alguém disse para os pais que chamar o filho de Epaminondas era

uma boa escolha? E aí, depois que a criança cresce, sempre rola aquele
segundinho de constrangimento quando ela se apresenta a alguém? Pensem
comigo: se o nome se popularizar, os participantes dos próximas temporadas
terão que chamar o quarto assim.
— Um nome engraçado. — Calebe ecoa o que todos estamos
pensando. — E broxante!
Tenho que rir, porque adoro a ideia.
— Quarto da Fornicação — João Guilherme ri engasgado com o
pitaco de Leonardo, que dá de ombros, rindo também. — É, ao mesmo

tempo, constrangedor e inteligente.


— Eu gosto. — Calebe ergue sua cerveja com os olhos brilhando de
diversão. — Combina com o lance do não fornicarás e tudo mais.
— Sendo assim — eu digo, batendo palmas para chamar atenção de

todos, e faço uma reverência com a cabeça para a porta vermelha. — Eu o


nomeio: o Quarto da Fornicação, jamais usado, mas para sempre lembrado.
Nós quatro explodimos em gargalhadas.

***

Dia 3:
Seis e quarenta e dois da manhã, vejo no relógio sobre a cabeceira.

Por que caralhos meus olhos estão abertos às seis e quarenta e dois da
manhã? Será que algum barulho me despertou? Parece tão silencioso lá fora.
Fecho os olhos e tento voltar a dormir, mas continuo intrigada com
meu despertar repentino. Eu nunca acordo sem um alarme. Nunca! Resolvo
conferir por via das dúvidas e jogo as cobertas para o lado, saindo do
conforto da minha cama.
— Volto logo — digo para o espaço aconchegante e agora vazio no
colchão.
Na ponta dos pés, abro uma fresta na porta do meu quarto e espio o

corredor. Ao não ver ninguém, como já era de se esperar no meio da


madrugada, começo a voltar de fininho, mas é quando eu escuto um som
baixo vindo da cozinha.
Saio silenciosamente e atravesso o corredor, ao chegar na sala,

encontro Leonardo de costas, atrás do balcão na cozinha conjugada,


preparando alguma coisa no fogão que cheira como o paraíso.
Sorrio, lembrando-me do nosso encontro, e me aproximo, pesando
meus passos para que ele me perceba sem parecer que o estou espionando de
propósito. Ele olha por cima do ombro e abre um sorriso imenso.
— Bom dia, dormiu bem?
— Levando em conta que fomos dormir às duas da madrugada e eu
acordei às seis sem o mundo estar acabando, acho que sim. — Sento sobre

uma das banquetas altas e me debruço sobre o mármore do balcão enquanto


ele dá risada. — O que está fazendo? Tem um cheiro muito bom.
— Panquecas, tem bastante se quiser. Preparei um pouco de café
também.
— Ah, eu com certeza quero! — Ele pega um prato e coloca duas
panquecas perfeitas, joga um fio de mel em cima e entrega para mim. Quando
vai buscar a garrafa térmica, reparo em suas roupas. — Não vai trabalhar
hoje?
— É minha folga.

— E acordou para cozinhar às seis da manhã na sua folga por que…?


— Não consigo evitar. — Ele me entrega a xícara fumegante e eu
gemo com o aroma terroso. Quase faz valer a pena ter acordado. —
Aproveitei para me exercitar no parque com o Calebe.

— Calebe está acordado? — Olho para trás, como se ele fosse


aparecer agora que foi mencionado, mas nem sinal dele.
— Foi tomar banho. — Ele dá a volta no balcão e vem se sentar ao
meu lado, mas para no meio do caminho, olhando para mim de um jeito
estranho.
Sigo seu olhar e me dou conta do óbvio: saí do meu quarto achando
que não encontraria ninguém, então não me troquei. Continuo vestida com
meu pijama de seda lilás, um short curto com renda nas barras e uma blusa

que não esconde muito dos meus seios.


Bom, pelo menos não é uma camisola.
Leonardo engole em seco. Como é um cavalheiro, muito diferente de
Calebe, puxa um dos bancos e se concentra em suas panquecas, sem tecer
comentários. Nem precisa, sua expressão inquieta diz tudo.
— Vocês têm gravação no estúdio hoje? — puxo um assunto qualquer
para quebrar a tensão.
— Vamos escolher vestidos para você — conta, sorrindo. Ruguinhas
aparecem no canto de seus olhos sempre que ele faz isso e acho

particularmente fofo. — Aceito sugestões, inclusive.


— Qualquer coisa que não envolva uma saia de princesa, ou mangas
bufantes. — Penso a respeito e acrescento: — Quero me sentir confortável,
então nada que me atrapalhe a dançar durante a festa.

— O que fez com o vestido que usaria na cerimônia com Calebe? —


Deixo meu garfo cair sobre o prato e Leonardo se sobressalta. — Desculpe,
não precisa responder, foi uma pergunta estúpida.
— Não, tudo bem, só não estava esperando. — Suspiro, não é nada
demais. Estranhamente, não me sinto mais tão triste ou incomodada quando
mencionam meu noivado com Calebe. — Eu vendi pela metade do preço para
uma uma amiga da minha irmã que trabalha como atriz independente, ela
disse que tingiria de preto para uma fantasia. Achei pertinente.

Leonardo ri alto.
— Aposto que Alice adorou.
— A ideia foi dela, é claro. Eu teria vendido de qualquer jeito, mas,
segundo minha doce irmã, um vestido de noiva proveniente de um casamento
que deu errado é como um bastão amaldiçoado, e eu estaria arruinando o
futuro de um casal feliz. — Rindo, termino de comer e giro no banco, ficando
de frente para Leonardo enquanto ele faz sua refeição. — Mas era um bom
vestido, corte grego com bastante renda. Pode acrescentar à lista de modelos
a serem evitados.

Não quero usar nada parecido.


— Anotado. — Ele sorri.
Vinte minutos mais tarde, depois de muita conversa jogada fora e
risadas, despeço-me de Leonardo e volto para o meu quarto. No meio do

caminho, entretanto, ao passar na frente do banheiro, alguém agarra meu


braço e me puxa.
— Flertando com o médico, Malmequer?
— Calebe! — Por instinto, olho para o alto, mesmo sabendo que não
há câmeras no banheiro. — Endoidou, foi?
O vapor do chuveiro recém-desligado espirala ao nosso redor, e
percebo, talvez um pouco tarde demais, que a única coisa que o diabo está
vestindo é uma toalha ao redor da cintura.

Lá vem a tentação testando minha paz de espírito de novo.


— Endoidei. — Ele me prensa contra a parede e me deixa sentir sua
loucura ereta lá embaixo. — Se tenho que te ver balançando essa bundinha
vestida assim e flertando com os outros, mereço pelo menos um beijo de bom
dia.
Eu estaria mentindo se dissesse que também não estou subindo pelas
paredes. Temos nos contido por causa das câmeras e dos meninos, mas estar
na mesma casa que Calebe e não poder tocá-lo ou beijá-lo está me matando.
Não perco tempo esclarecendo a questão do flerte. Eu sei que ele só

quer uma desculpa para ser inconsequente, e como eu desejo o mesmo,


deixo-me levar pela fantasia do seu ciúme.
Fico na ponta dos pés e o puxo para mim. Calebe se curva em busca
da minha boca e o resto acontece como uma bomba sendo acionada, a

contagem regressiva soando alto nos meus ouvidos. Temos poucos segundos,
então fazemos valer cada um deles com um beijo urgente.
Sua língua me invade, cobiçosa. Gotas de seu cabelo molhado pingam
sobre meu rosto e sua mão se infiltra por baixo da minha blusa, apanhando
meu seio inteiro em uma massagem deliciosa. Uso todo o meu autocontrole
para não gemer à medida que o beijo fica mais molhado, mais intenso e mais
urgente.
Quando estou a ponto de jogar o bom senso pelos ares e arrancar

minhas roupas, Calebe se afasta.


— Melhor você ir — ofega — tenho que cuidar disso. — Ele aponta
para a barraca que se formou em sua toalha. — A não ser que queira…
— Estou indo!
Fujo correndo para não correr o risco de aceitar, e sou acompanhada
pelo som gostoso de sua risada por todo o caminho até o meu quarto.
***

Dia 4:
Bartolomeu e Maurício chegaram pouco antes do meio-dia para um
episódio especial de socialização entre os eliminados, os finalistas e eu, em
um suposto dia comum. Não sei onde fica a parte do comum nisso, mas sigo

desempenhando meu papel de noiva e repetindo que, se nada der certo, pelo
menos estarei rica.
Dois cinegrafistas foram enviados para registrar tomadas melhores da
nossa pequena reunião familiar — se é que podemos chamar assim. Como
Leonardo ajustou seus horários para estar em casa durante o almoço,
somamos um total incrível de oito pessoas. Se antes eu já achava o
apartamento pequeno demais, agora é impossível dar um passo para o lado
sem esbarrar em alguém.

— Onde estão Calebe e Guilherme? — Bartolomeu pergunta, olhando


ao redor. Não sobrou muito espaço vazio para se ver.
— Acabei de passar na frente do escritório e estavam lá dentro
conversando. — É Leonardo quem responde com uma pilha de pratos nos
braços. Não faço ideia de como conseguiram enfiar uma mesa giratória no
espaço estreito entre a cozinha e a sala para acomodar todo mundo. —
Devem estar se escondendo para escapar do serviço.
Estranho. Decido conferir o que estão aprontando. Caso estejam
apenas se escondendo para fugirem do serviço, que consiste basicamente em

lavar pratos e organizar toda a comida enviada pela produção, darei um belo
sermão neles sobre não me chamarem para me esconder junto.
Entretanto, ao dar um passo rumo ao corredor, Maurício aparece na
minha frente com uma expressão ansiosa.

— Preciso de um favor da Flor mais linda desse mundo — diz,


sorrindo como o gato da Alice no País das Maravilhas.
— A resposta é não. — Tento desviar dele, mas Maurício se move ao
mesmo tempo, bloqueando a passagem.
— Você nem sabe o que vou dizer! — protesta, sorrindo daquele jeito
canalha bajulador.
— Pela sua cara, já sei que é problema. — Dou um passo para o lado,
ele também. — E minha resposta continua a mesma.

— Preciso que fale com a sua irmã, ela não atende as minhas ligações
há uma semana. — Certo, ele consegue a minha atenção.
— Você e Alice continuam se falando? — Ergo as sobrancelhas em
uma expressão julgadora. Na real, não me importo que os dois se envolvam,
só não esperava.
Maurício tem a decência de titubear antes de responder:
— Algo do tipo, nos encontramos algumas vezes, mas ela sumiu de
repente, não me responde, não me atende, ignora minhas mensagens no
Instagram. — Uau, ele até mesmo a procurou nas redes sociais.

— Quer um conselho? — Ele aquiesce com esperança nos olhos. —


Minha irmã é do tipo que come o coração dos homens no café da manhã.
Então, não se apegue demais.
— Não estou me apegando! — Por algum motivo, ele parece

ofendido. — Nunca me apego.


— Ótimo, então vocês se merecem, porque ela também não. — Pulo
para o outro lado. Ele é mais rápido e coloca o braço na minha frente. —
Maurício! — reclamo, rangendo os dentes.
— Pode, pelo menos, falar para ela me ligar? — insiste, e sua carinha
treinada de cachorro molhado até me deixa com um pouco de pena. — Por
favor?
— Tudo bem! — rendo-me, revirando os olhos. — Mas não posso

prometer que ela vai obedecer só porque eu pedi.


— Peça com jeitinho, okay?
Maurício sai da minha frente com um grande sorriso, como uma
criança que acabou de receber um doce. Pobre alma.
— Não se apegue! — repito, séria, passando por ele, que torce o nariz
como se meu aviso fosse um insulto.
Vou direto para o escritório. Nem sei o que me deixou tão curiosa
sobre essa escapadinha dos João Guilherme e Calebe. Nossa convivência, no
geral, não é ruim, os meninos se dão bem na medida do possível, mesmo se

provocando o tempo todo. Mas, quando se trata dos dois, especificamente,


todo cuidado é pouco.
Ao me aproximar da porta, ouço suas vozes mais altas que o normal.
— Não é da sua conta — reconheço a voz de Calebe. — Vou mostrar

quando eu achar que devo, se eu achar que devo.


Do que estão falando?
— Não faz sentido nenhum esconder isso aqui dentro. — O tom de
João Guilherme não se assemelha a nada que eu já tenha ouvido dele antes.
Está puto e revoltado, sibilando para não ser ouvido. — Aliás, não faz sentido
esconder!
Escuto o barulho de passos, um som estrondoso de gaveta batendo —
em uma das estantes, suponho. Um longo silêncio se passa e eu pouso a mão

na porta, tentada a abrir, com medo de ser descoberta. Um minuto depois,


Calebe volta a falar, soando mais calmo.
— Acha que eu não sei? Acha que estou aqui por diversão? Acha que
eu não queria que isso bastasse? — Calebe gargalha, o som é amargo aos
meus ouvidos. — Você não sabe de nada.
A porta se abre com um solavanco e eu pulo para trás, surpreendida.
Não achei que estivesse tão perto da saída. Calebe pestaneja, reconhecendo-
me, e sua feição muda em um piscar de olhos, indo de algo revoltado, para
amedrontado. Atrás dele, avisto João Guilherme, igualmente surpreso.

— Estava ouvindo atrás da porta? — Calebe pergunta, estreitando os


olhos, genuinamente preocupado.
Encarno minha atriz interior e visto uma máscara de indiferença.
— Não eu só… — Indico a cozinha com a mão. — Vim chamar

vocês dois para almoçar.


Ele estuda meu rosto com seus olhos de águia, tentando enxergar
através da mentira. Não ouvi muita coisa, nada que faça sentido, mas,
tratando-se de Calebe, sei que enxerga todas as engrenagens do meu cérebro
trabalhando para enganá-lo.
Seja lá o que tenha acontecido para fazê-los discutir, Calebe decide
que vale mais a pena fingir que acredita em mim, do que estender o assunto e
ter que se explicar. Com um suspiro, ele sorri e volta para a cozinha, seguido

por João Guilherme, que aproveita a deixa para escapar do meu olhar
intrigado.

***

Dia 5:
Encaro a urna.
Ela foi deixada pela manhã. Quando acordamos, ou melhor, quando
fomos acordados, nos deparamos com uma caixa no meio da sala, sobre uma

espécie de pedestal. Além dela, havia várias pessoas com câmeras nos
ombros, outras carregando refletores e microfones, mas a grande surpresa foi
a presença de Miguel Castro dentre eles, todo bonitão e cheio daquele seu
carisma de apresentador.

De acordo com as instruções deixadas por Miguel, devo colocar o


nome do eliminado dentro da urna até o final do dia, e amanhã gravaremos a
revelação no estúdio. O problema é que eu não faço a menor ideia de quem
eu quero eliminar.
Os cincos dias que passamos juntos deveriam me ajudar na escolha,
mas só serviram para nos aproximarmos ainda mais. Gosto deles, de todos os
três, cada um à sua maneira. E, contra todas as expectativas, eu amo Calebe.
Dentro do meu coração, a escolha já foi feita. Ainda assim, eu sinto uma

espécie de medo cuja origem não sei bem como nomear.


Calebe nunca mais me pediu para desistir do programa. Nunca mais
conversamos sobre a traição, que pode nunca ter existido. Ele entregou nas
minhas mãos a escolha do nosso futuro. Sou a detentora de todo esse poder e
tenho medo de usá-lo da maneira errada. Quer dizer… Calebe é o meu
escolhido, então por quê ainda não consegui escrever o nome de Leonardo ou
João Guilherme de uma vez e colocar dentro da maldita urna?
Não sinto nada pelos dois além de carinho e amizade. Experiências
como a que estamos vivendo só acontecem uma vez na vida, é natural que

tenhamos nos aproximado. Quando paro para pensar em tudo o que passei
nas últimas semanas — com todos os cinco — e em toda a loucura, sei que,
independente de qualquer coisa, ainda os quero em minha vida.
— Sabe que, se encarar demais, ela não vai criar asas e sair voando

pela janela, né? — Leonardo aparece acima de mim. Estava tão concentrada
em meu próprio mundinho de conflitos internos que não o ouvi se
aproximando.
Olho para ele, achando alguma coisa estranha, até entender que são
suas roupas. Estou acostumada a vê-lo com o branco de sempre, e não com
bermuda e camisa sem mangas. Seus braços são mais definidos do que
parecem por baixo das costumeiras vestes formais.
— Tenho esperanças em telecinese — digo após minha inspeção

descarada.
— E para fazer telecinese, você precisa estar deitada no chão?
— O tapete é confortável. — Passo as mãos sobre a textura felpuda.
Não conto que tenho mania de deitar no chão e encarar o teto quando quero
pensar. — Tem espaço, se quiser.
Ele entende a minha deixa de que não quero falar sobre a urna.
— Tem espaço no chão? — Ergue as sobrancelhas, achando graça.
— No tapete. — Chego para o lado para reforçar minha oferta.
Leonardo pensa a respeito e decide que se sentar é bom o bastante. Ele apoia

o braço em um joelho e deixa a outra perna esticada. — Me conte alguma


coisa interessante — peço.
Conte qualquer coisa que me distraia da urna à nossa frente.
Ele enfia a mão no bolso, retira uma moeda de um real e me entrega.

É antiga, diferente daquela com as laterais douradas que estamos


acostumados.
— A última vez que vi uma dessas, eu devia ter uns sete anos. Onde
conseguiu?
— Retirei do estômago de um paciente hoje. Um menino que
encontrou a coleção de moedas antigas do pai e pensou que fossem doces. —
Ele fala de um jeito corriqueiro, como se fizesse isso todos os dias. Ao me
ver fazendo cara de nojo, solta uma risada. — Está limpo, não se preocupe.

— E você pode ficar com isso?


— Mais ou menos. Como os pais não quiseram, ela seria descartada
de qualquer forma. Mesmo sendo um item de coleção, eles disseram que não
queriam nada que os lembrassem do susto.
— Deve ter sido horrível para eles. — Só de imaginar algo assim
acontecendo com um filho meu, fico com menos vontade ainda de ter filhos
um dia. — Por que você quis ficar com ela? É tipo uma mania de médico?
— Pensei que você fosse gostar, por causa dessas séries que assiste.
— Leonardo sorri com timidez.

Sinto algo dentro de mim dar um pulo.


— Trouxe para mim?
— É estranho? — pergunta, encarando a moeda como se a quisesse de
volta. — Agora parece mil vezes mais estranho do que na hora em que tive a

ideia.
— É estranho pra caramba! — digo, rindo, porque é verdade. — Até
meio mórbido. Porém, como eu sou estranha, e não adianta negar, admito que
gostei. Sim, já vi coisas do tipo nas minhas séries com médicos bonitões, mas
nem se compara a ganhar isso de um médico bonitão de verdade.
— Bom saber que a minha aparência foi o grande diferencial do
presente.
Sei que estamos brincando, mas sinto uma necessidade repentina de

me explicar.
— Você é bonitão, mas o que me deixou feliz mesmo, foi saber que
pensou em mim. Que, em pouco tempo, já me conhece bem o suficiente para
saber que sou esse tipo de pessoa que não acha estranho ganhar presentes…
inusitados, digamos assim. — Guardo a moeda no bolso do meu short e olho
para ele. — Então, obrigada.
Como Leonardo está sentado, e eu, deitada, vejo com nitidez seu rosto
iluminado, não pela luz das lâmpadas, mas por uma emoção sincera que parte
de algum lugar em seu coração.

— Também fiquei feliz quando me dei conta de que estava ansioso


para compartilhar com você algo do meu trabalho. Nunca fiz isso antes. —
Ele me dá um sorriso torto, inspira fundo, como se quisesse dizer mais
alguma coisa, mas expira, desistindo. Por fim, fica de pé. — Melhor eu voltar

para o quarto antes que Calebe ou João Guilherme venham atrás de mim. Nós
três combinamos de dar a você um pouco de privacidade para não se sentir
pressionada. Eu só queria ter certeza de que estava bem.
Ah, é mesmo, a urna. Eu me esqueci totalmente dela durante
preciosos minutos de felicidade. Olho para o cubo com desdém e constato,
em minha infinita falta sorte, que ele continua ali, intacto, esperando por
mim. Nenhum milagre divino a fez desaparecer e nem explodir. Gemo de
frustração ao mesmo tempo que Leonardo sorri e começa a se distanciar.

— Bem, boa noite, querida.


Ele não vê, mas retribuo seu sorriso. Acho fofo que não tenha tentado
sondar minha escolha e nem me dissuadir.
— Boa noite, Leo.
Ao desaparecer pelo corredor, escuto o som da porta do quarto deles
se abrindo, as vozes de Calebe e João Guilherme reclamando de sua demora,
e o completo silêncio assim que a porta volta a ser fechada.
Mas suas palavras continuam comigo por muito, muito tempo.
Ele sente falta de ter alguém, de conversar sobre o seu dia-a-dia. Está

sempre se esforçando ao máximo para estar presente. O programa não é


apenas uma experiência para ele, um jogo ou uma competição. Leonardo se
importa de verdade e leva a sério a questão do casamento.
E eu me importo com ele.

Levanto-me e caminho até a urna. Ela é simples, branca, estampada


com o título do programa nas quatro laterais, com uma fenda de vinte
centímetros na parte de cima. Há um envelope cor-de-rosa ao lado dela, no
pedestal, junto com uma folha em branco e uma caneta preta, a qual eu pego.
Já sei o que tenho que fazer.
Escrevo o nome no papel, coloco dentro do envelope e o enfio na
urna.
“Nem tudo o que os olhos veem, o coração enxerga da mesma forma.”

MARIA FLOR

Eliminar Leonardo foi a coisa mais difícil que fiz desde o início do
programa. Escrever o nome dele em um papel e colocar dentro de uma urna?
Ele merecia bem mais do que isso. Eu sei que não sou a responsável pelas
regras do jogo, mas queria ter feito mais por ele, dito mais coisas, passado
mais tempo ao seu lado. Será que teria feito alguma diferença?

Quando Leonardo foi embora na manhã seguinte, após gravarmos no


estúdio, ele se despediu de mim com um sorriso e disse respostas prontas
para Miguel, do tipo “foi muito bom” e “obrigado pela oportunidade”. E eu
segurei o meu choro porque era a única coisa que eu podia fazer por ele.
A última coisa.
Os corredores do apartamento estão mais silenciosos desde a sua
partida, os quartos, mais vazios, a cozinha, menos aconchegante. Não se
parece com um lar, o que é estranho, já que, dentre todos, Leonardo era o que
passava menos tempo em casa. Para alguém que teme tanto a própria

ausência, ele sabe como se tornar inesquecível.


— Não queria ter que te dizer isso. — João Guilherme se inclina atrás
da minha poltrona, dá um beijo de surpresa no meu rosto e caminha até o
sofá, jogando-se nas almofadas, todo esparramado, sua perna esquerda

pendendo para fora. — Mas, tem uma nuvem agourenta em cima da sua
cabeça. Talvez seja o caso de chamar um padre.
Estupidamente, olho para cima — onde não há nuvem alguma, é claro
— e depois para ele. João Guilherme está vestido com seu habitual figurino
caseiro, que consiste em bermuda, chinelos e um torso com vários gominhos
para quem quiser ver. Percebo que ele acabou de sair do banho, pois trouxe
consigo o cheiro do sabonete de lavanda e do desodorante masculino.
— Estava tentando falar com o Leonardo. — Mostro o meu celular

com várias chamadas não atendidas. — Já faz uma semana…


Uma semana desde que ele se foi.
Quando tive que remover Bartolomeu do programa, foi fácil, não
doeu. Eu estava amparada por uma justificativa, estava apenas atendendo ao
pedido dele, ao seu maior desejo. Na vez de Maurício, a escolha não estava
nas minhas mãos, qualquer culpa não me pertencia.
Mas Leonardo foi minha primeira decisão — a primeira
exclusivamente minha. Apesar de não o amar, não como amo Calebe, ainda
quero manter sua amizade.

Ele não parece querer o mesmo.


— Ele deve estar ocupado no hospital. — João Guilherme palpita.
Nós dois sabemos que não é o caso, mas sorrio em agradecimento por sua
tentativa de me tranquilizar. — Onde está o seu cachorrinho?

— Calebe? — Seguro a risada. Não sei o que é pior: João Guilherme


se referir a Calebe como meu cachorrinho, ou eu imediatamente supor que
esteja se referindo a ele. Torço para não demonstrar toda a minha saudade
precoce e respondo: — Saiu, disse que tinha algo urgente para resolver.
— Então, somos só nós dois. Devemos usar o Quarto da Fornicação?
Arregalo os olhos como se tivesse recebido a carga de três mil volts
de um desfibrilador hospitalar — que, ora, ora, ao invés de fazer o meu
coração voltar a vida, simplesmente acaba com qualquer resquício de

batimento cardíaco dentro do meu peito.


João Guilherme gargalha e joga uma almofada com estampa de
girassóis bem na minha cara.
— Precisa aprender a controlar as suas expressões faciais, querida.
Estou só brincando, não ameaçando você de morte.
Tento não parecer tão aliviada, mas não sei se consigo, pois João
Guilherme bufa e emite resmungos ininteligíveis.
Ficamos em silêncio, os minutos se prolongam, mas não aquele
silêncio constrangedor de “oh, meu Deus, estamos sem assunto, vamos falar

sobre o tempo”, é um silêncio bom e confortável que não precisa ser


preenchido com conversas forçadas.
Tento ligar para Leonardo de novo. Não sei o que pretendo falar caso
ele me atenda — pedir desculpas e explicar meus motivos são ótimas opções.

Encosto o celular no ouvido, escutando as chamadas longas e compassadas


do outro lado.
João Guilherme me observa com sua visão periférica, à espera de algo
em meu semblante que revele o andamento da ligação. Ele brinca com o anel
brilhante pendurado em seu pescoço, uma espécie de mania inconsciente que
surge sempre que fica ansioso.
Tuuu... tuuu... tuuu...
— Eu desisto! — Jogo o celular sobre a mesa de centro e me deito,

com as pernas dobradas em cima do braço da poltrona e a cabeça meio torta


no outro braço.
— Por que ele? — João Guilherme pergunta. Do meu ângulo
invertido, não tenho muita visão de seu rosto, mas ele deve ter do meu, pois
nota minha confusão e repete, explicando melhor seu questionamento: — Por
que você o eliminou?
Deixo a verdade fluir.
— Eu não o mereço. — Ele faz aquele som de respiração profunda
que antecede um protesto vigoroso, mas continuo falando antes que ele

consiga dizer alguma coisa. — Não estou me inferiorizando nem nada assim.
Eu sei que sou um bom partido.
— Você é um ótimo partido. — Não sei como, mas escuto o seu
sorriso, e acabo sorrindo também.

— E sou bonita — emendo, só para ouvir sua concordância, que


chega em seguida.
— Muito bonita.
— A questão é que, dentre todos nós, ele é o único que entrou no
programa com intenções nobres.
Bartolomeu nunca quis estar aqui, ele foi obrigado e se agarrou à
chance de ser eliminado assim que a oportunidade surgiu.
Maurício não se importa com nada, só queria viver uma aventura,

divertir-se, e mesmo não havendo nada de errado em desfrutar de todas as


experiências que a vida oferece, ele não queria um casamento real.
João Guilherme deu um tiro no escuro, apostou com o destino e
torceu para que desse certo, para que a noiva, seja ela quem fosse, se
revelasse o grande amor de sua vida e apagasse os traços do seu passado que
ainda não se curaram completamente.
Calebe só está aqui por minha causa. Ponto final.
E eu... eu sou a pior de todos. Entrei no programa movida por um
surto alcoólico, porque estava machucada e queria provar para Calebe que ele

não tinha conseguido destruir meu coração. Eu fui egoísta e insensível.


Leonardo merecia mais.
— Só não era justo — digo sem mais detalhes, deixando claro em
meu tom de voz que não pretendo falar mais sobre o assunto.

João Guilherme se levanta e vem até mim. De pé ao meu lado, tenho


um panorama privilegiado de seu corpo hedonista visto de baixo para cima.
Sua bermuda de malha não esconde muita coisa, e eu me sento depressa para
não encarar demais. Por sorte, ele se abaixa, dobra os joelhos e cruza os
braços sobre o meu colo.
— Você fez o que era certo. No dia do casamento, Leonardo vai
aparecer, e aí vocês poderão conversar. Falta pouco para acabar, precisa se
concentrar nisso, na sua escolha final, no casamento. — Ele desvia os olhos

por um momento, antes de me encarar, determinado. — O que está


preocupando você de verdade?
São tantas coisas.
Toco seu rosto com cuidado.
— Você é a minha escolha segura, sabia?
— Sou? — As covinhas em suas bochechas aparecem assim que ele
sorri. — E o que isso significa?
— Acho que Calebe não me traiu. — Mordo o lábio. É a primeira vez
que admito. — Voltamos a nos aproximar, mas nunca mais conversamos

sobre o assunto. É estranho falar sobre isso com você? Porque, se for, eu
posso calar a boca.
— Continue — pede, incentivando-me com um sorriso. — Eu quero
saber.

— Quer saber por que estou tentando falar com Leonardo há mais de
duas horas? Porque assim eu posso ocupar minha mente com outra coisa que
não seja o casamento. Porque eu sei qual nome eu quero chamar no altar, mas
tenho medo de não conseguir, e não quero pensar sobre isso. Porque eu acho
que Calebe não me traiu, e acho que talvez eu goste tanto dele que nem me
importo mais com isso. Mas, mesmo assim, de vez em quando, a dúvida
aparece e eu sinto como se meu coração estivesse sendo devorado por larvas.
E eu não sei se consigo viver assim pelo resto da vida. Isso acabaria com nós

dois, acabaria com ele de novo. — Meneio a cabeça para os lados. — Então,
é isso, você é a minha escolha segura porque nós somos iguais e talvez seja
melhor assim.
João Guilherme agarra minhas duas mãos e não faz nada por um
longo momento. Eu espero, apreensiva, repassando na minha mente tudo o
que eu acabo de dizer.
— Calebe sabe — diz, finalmente. — Ele sabe que você tem medo.
Mas, eu não sou a sua escolha segura, sou a sua desculpa para fugir. Acredite
quando eu digo que não ligo de ser o que você precisar que eu seja, mas

quero que faça isso conscientemente, e não assim, enganando a si mesma.


— Não estou me enganando — defendo-me. — E muito menos
fugindo.
Ele ergue uma sobrancelha duvidosa.

— Não mesmo? — Rindo, João Guilherme se levanta e me puxa junto


com ele. — Você fugiu quando encontrou o seu noivo com outra, usou o
programa para fugir dos seus sentimentos, arrumou desculpas para todas as
explicações que Calebe tentou dar, e me manteve aqui, não por sermos iguais,
mas porque você tem medo de se machucar ainda mais.
Não estava preparada para um tapa de verdades jogadas na minha cara
sem dó e nem piedade.
A traição de Calebe (ou o que quer que tenha acontecido naquele dia)

levou uma parte de mim, doeu como o inferno e era preferível fugir daquele
sofrimento do que me afundar nele ainda mais. Gosto de Calebe, gosto de sua
companhia, do seu cheiro, da sua voz quando me chama pelo nome de
alguma flor e de como meu corpo sempre sabe quando ele está no mesmo
ambiente que eu antes mesmo dos nossos olhos se encontrarem. Eu o amo.
Mas existe um limite para o quanto eu consigo suportar daquela dor
novamente.
— Está me dizendo para escolher o Calebe ao invés de você? —
pergunto, dando de ombros, como se nada daquilo fosse importante.

— Estou dizendo que nós não somos iguais.


— Já falou isso, mas não consigo entender.
Sua cabeça pende para frente, sua testa pousa em meu ombro e eu
fecho os olhos, procurando por borboletas no estômago ou uma fagulha na

base da minha barriga como acontece quando Calebe me toca, mas não
encontro nada.
— Você acha que somos iguais e que entendo você por causa do que
eu te contei sobre isso. — Ele se afasta e balança a corrente, o anel escorrega
sobre os grumos de prata. — Mas tem uma coisa que você não sabe, vem
comigo.
Deixo-me guiar até o escritório. Quando a porta se abre, João
Guilherme me solta e caminha até a mesa. Parada no meio do cômodo, eu o

assisto abrir e fechar gavetas, procurando por alguma coisa. Não demora
muito e ele exclama ao conferir os armários ao lado das prateleiras, de onde
retira um grande envelope de papel.
— O que é isso? — pergunto assim que ele me entrega aquilo. Sinto o
peso de seu conteúdo antes de abrir e espalhar tudo sobre a mesa.
— São provas. — Ele desliza uma das folhas até mim. — Veja por si
mesma. São provas de que Calebe não traiu você.
É… o que?
Relutante, pinço a primeira folha com os dedos trêmulos, como se ela

fosse se transformar em um bicho de sete cabeças e comer a minha orelha. É


um histórico de chamadas recebidas pelo telefone da academia. A data se
refere ao dia em que tudo aconteceu e uma única ligação se destaca com um
círculo de caneta azul. Pelos meus cálculos, foi realizada cerca de trinta

minutos antes do meu flagra, o tempo quase exato da academia até o motel.
Passo para outras folhas, um arquivo de vinte ou trinta páginas
contendo conversas e mais conversas enfadonhas entre Calebe e um contato
salvo como “AJ - Secretária”, que presumo se tratar de Ana Júlia, a
secretariazinha, nas quais eles conversam sobre coisas como “fiz a
encomenda do novo equipamento na semana passada”, ou “você tem uma
reunião marcada com o gerente da imobiliária ao meio-dia”, tudo
estritamente ligado ao trabalho — leio linha por linha.

Há também imagens impressas de câmeras de segurança da academia


que mostram o horário de saída de Calebe, e ele coincide com o horário da
ligação.
De fato, não posso negar: tudo bate com a versão dele dos fatos. Os
horários, as mensagens, a ligação...
— De onde veio tudo isso? — Afasto-me da mesa e João Guilherme
corre ao meu encontro. Se minha expressão estiver revelando como eu me
sinto agora, ele deve saber que estou prestes a desmaiar (ou morrer, as duas
opções são válidas).

— Calebe — responde, a voz cheia de cautela. — Eu as encontrei sem


querer há alguns dias e ele me contou que estava tentando provar que nunca
existiu traição alguma. Não sei por que ficou enrolando tanto para mostrá-las
a você.

— Talvez sejam falsas — teimo. — Qualquer um consegue forjar


uma conversa de WhatsApp hoje em dia. Aposto que foram feitas no Paint.
— Está explicado — João Guilherme segura meus ombros e perfura
meus olhos com os seus. — Você é teimosa e orgulhosa. Linda, mas teimosa
como uma mula! Uma mula bonitinha com um nariz encantador,
principalmente assim, encarando a minha jugular como se planejasse me dar
uma mordida fatal a qualquer momento. E Calebe sabe disso, o filho da puta
decorou toda a Enciclopédia de Como Lidar Com a Maria Flor, e sabe que

você precisa de mais do que alguns papéis para ser convencida.


João Guilherme me deixa sem argumentos, pois é verdade: Calebe
sempre sabe tudo a meu respeito, se uma enciclopédia sobre mim existisse,
ele não precisaria ler, porque teria sido o escritor dela para começo de
conversa.
Inclino a cabeça e olho para os documentos que zombam de mim.
— Não é só isso — ouço-me dizer. Sinto que meu coração vai se
rasgar. — Se forem reais, significa que tudo o que eu fiz foi em vão. Todas as
vezes que briguei com ele e disse que o odiava. Se Calebe nunca mentiu para

mim, se ele nunca mentiu...


Puxo o ar com força, tremendo. Não quero chorar, mas as lágrimas
são inevitáveis e sinto uma ou outra escorrendo pelo meu rosto. João
Guilherme coloca os braços ao redor dos meus ombros em um abraço

carinhoso.
— Shhh — diz, embalando-me. — Ligue para ele, Florzinha. Calebe
não queria que eu contasse, mas eu não podia ficar sentado esperando. Nós
não somos iguais, você ainda tem uma chance.
Eu ainda tenho uma chance.
Aos poucos, vou me acalmando externamente, já que é impossível
controlar o tornado dentro de mim.
Eu ainda tenho uma chance.

— Calebe — sussurro. Deve ser a cena mais estranha que os


telespectadores verão no reality show: a noiva chamando por um homem
enquanto está nos braços de outro, porém, é um pouco tarde para me
preocupar com os julgamentos do público. Já fiz coisa bem pior. — Preciso
dele.
— Aqui, pegue. — Ele me solta ao perceber que não estou mais
surtando e me oferece o próprio celular. — Ligue, ele virá correndo.
***

Existe uma regra — estou cansada dessa merda — de que podemos


fazer ligações desde que a conversa seja gravada, ou feita no viva-voz.
Quando estava tentando entrar em contato com Leonardo, eu havia

autorizado a gravação, mas ao ligar para Calebe, simplesmente coloco no


viva-voz pela praticidade.
João Guilherme olha de mim para o celular, balança a perna esquerda
nervosamente. Estamos sentados nas duas cadeiras de canto do escritório,
mas, para ele, elas se parecem mais com cadeiras infantis, pequenas demais
para seu corpo super-forte-super-grande.
— Alô?
Eu pisco.

João Guilherme também.


Franzimos o cenho ao mesmo tempo.
É uma voz de mulher?
— Alô? Tem alguém aí?
É definitivamente a voz de uma mulher!
— Quem é você? — Uma nota de irritação se eleva no meu tom.
— Ana Júlia — responde, a própria, como se atender ao celular de
Calebe fosse tão natural quanto a luz do dia.
Pergunto-me se é possível que eu tenha errado o número e ligado, por

uma grande ironia do destino, para outra Ana Júlia aleatória que não faz ideia
de quem eu ou Calebe sejamos, mas não: sei o número de Calebe de cor, já o
digitei vezes demais nos últimos anos para errar justo agora. A tela do
celular, mostrando todos os nove números, também não me deixa mentir.

É o telefone de Calebe.
Quem falou que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar?
Atônita, sinto quando meu dedo ganha vida própria e desliza sobre a
tela, encerrando a ligação na cara dela.
— O que você está fazendo? — João Guilherme abre os braços,
indignado, sem entender nada da minha reação.
— Era ela. — Não consigo tirar os olhos do celular, o objeto
ritualístico responsável pela invocação do meu pior pesadelo. — Ana Júlia é

a mulher do motel. Os dois estão juntos. Agora, nesse exato momento, em


algum lugar.
Sinto um déjà vu e sou transportada para a lembrança de quando meu
mundo desmoronou, naquele carro, no meio da chuva. Meu peito queima
com a sensação de perda que flui através do meu coração.
— O que? Tem certeza?
— Absoluta!
— Pode ser uma coincidência?
— Eles devem ter se esbarrado sem querer dentro de outro motel. —

Sinto a garganta áspera quando tento forçar uma risada.


Não chore, não chore, não chore.
— Maria Flor…
João Guilherme é cortado por Pharrell Williams, cantando o refrão de

Happy. Exatamente o que eu precisava: uma música sobre a felicidade.


Alguém no céu me odeia.
Só entendo que se trata do celular de João Guilherme quando ele o
atende, para o terror da minha existência, e Ana Júlia ressurge das cinzas
como uma fênix.
— Eu me confundi e atendi ao telefone errado — explica, falando
rápido. — Nossos celulares são iguais e eu atendi sem querer. Eu sinto
muito! Você deve ser a Maria Flor, certo? Nós precisamos conversar, mas eu

acho melhor fazermos isso pessoalmente. — Ela não me espera responder e


continua falando em uma torrente: — Se puder nos encontrar agora, estou
mandando uma mensagem com o endereço. Até daqui a pouco. — Em
seguida, ela desliga.
Tanto eu quanto João Guilherme ficamos sem reação. A parte do meu
cérebro responsável por demonstrar emoções não responde. Estou
entorpecida.
Calebe sabe? Concordou com isso? Ele espera que eu converse com
ela de forma civilizada? Não me sinto nada cível no momento. Fui educada

por uma mãe que sabe falar o alfabeto de A a Z só usando palavrões como
exemplo. Meu repertório é extenso.
E se eles quiserem apenas assumir o relacionamento?
Por favor, que não seja isso!

— O que você quer fazer, querida?


Cavar um buraco, entrar dentro e jogar terra por cima.
— Nada.
Ele ri de mim com um arzinho debochado que chama a minha
atenção.
— O que foi? — Cruzo os braços.
— Está fugindo — ele diz. — De novo.
Abro a boca, pronta para me defender de sua tese, mas não encontro

argumentos convincentes. Estou fugindo, sou uma covarde. Calebe veio atrás
de mim, aceitou se expor nacionalmente só para me conquistar outra vez e
conseguiu suportar o sofrimento de me ver com outros homens, escolhendo-
os para ocupar o lugar que um dia foi dele. Calebe foi atrás de provas para me
convencer de sua inocência. Ele está lutando.
E o que eu fiz?
Fugi.
— Guilherme. — Agradeço por minha voz não falhar. — Você pode
dirigir?

Ele sorri.
— Mas é claro, Florzinha.

***

A parte mais difícil foi esperar pela equipe. Como a noiva da


temporada, não tenho o privilégio de ir e vir sempre que eu quiser como os
meninos, então foi preciso montar uma verdadeira força tarefa a base de
ameaças para sairmos de casa em tempo hábil.
Uma hora e meia mais tarde, chegamos ao local indicado por Ana
Júlia: um pub ao estilo irlandês chamado George’s. Segundo João Guilherme,
é um ótimo ponto de encontro para quem gosta de música ao vivo (Calebe

adora música ao vivo), e, assim que nos aproximamos da enorme porta


rústica na entrada, é possível ouvir o som pulsante da bateria e baixo
entoando um rock clássico.
Entro sem delongas já que os produtores conseguiram autorização
para filmar lá dentro enquanto ainda estávamos no caminho. João Guilherme
deixa uma mão protetora na base das minhas costas, suave o suficiente para
passar uma mensagem de que continua ao meu lado.
— Está vendo eles? — pergunto.
Ele nega.

— Aqui dentro tem muitos ambientes, teremos que circular um


pouco.
A decoração interna do bar é agradável, com muitos quadros e
bandeiras, móveis de madeira escura e iluminação indireta, confortável aos

olhos, mas um problema quando se quer enxergar nitidamente os rostos dos


clientes nos cantos. O cheiro predominante de cerveja e verniz combina com
a estética, como se fosse intencional.
Passamos por um grande salão com mesas de bilhar no centro, mas
nem sinal de Calebe. Seguimos até outra área onde há mais clientes
amontoados. Um telão na parede oposta exibe um jogo de basquete entre dois
times estrangeiros, de novo, nada de Calebe e muito menos Ana Júlia.
Começo a ficar preocupada. Será que foram embora?

Mas, assim que pisamos no terceiro ambiente, uma sala menor no piso
superior onde a banda se apresenta sobre um palco intimista e aconchegante,
eu o sinto.
Primeiro, vem o formigamento nas minhas pernas, ele sobe devagar,
fazendo cócegas dentro da minha pele, em seguida, meu coração se perde em
compassos arrítmicos, como se outra sintonia interferisse em meus
batimentos. Por último, meus olhos são atraídos por um magnetismo
irresistível que faz os meus arredores desaparecerem e nada mais existir além
de mim e aquela presença.

A presença de Calebe.
Quando o encaro, ele já está olhando para mim. Por um segundo,
somos apenas um homem e uma mulher consumidos pela atração instantânea
de nossos corações e corpos. Lembro-me que foi assim desde a primeira vez

que nos vimos. Mas não dura muito, a compreensão de ser pego no flagra o
atinge e o rosto de Calebe torna-se lívido.
Surpresa, idiota!
Vejo a mulher ao lado dele, com os cotovelos apoiados sobre a mesa,
falando qualquer porcaria sem perceber que Calebe não está ouvindo nada de
sua tagarelice.
— Aquela é a Ana Júlia? — João Guilherme pergunta, visivelmente
surpreso.

Deu um leve tapa em seu peito com o dorso da mão.


— Tente não babar muito.
— Eu pensei que ela fosse um pouco mais... um pouco menos...
Rolo os olhos para cima e começo a caminhar até a mesa deles. Ana
Júlia pode ter — supostamente — roubado o meu noivo, mas talvez ela
conseguisse me roubar se eu gostasse de mulheres. Seus cabelos castanhos
caem como seda sobre os ombros e sua pele tem aquele bronze atraente de
quem sabe como tirar proveito do Sol. Posso não gostar dela, mas não sou
cega.

Ela é linda. Paciência!


— Calebe tem bom gosto, grande coisa.
A mão de João Guilherme escorrega de sua posição até a curva da
minha cintura enquanto nos esgueiramos através das mesas. Sorrindo, ele diz

no meu ouvido:
— Concordo, olhe só para você.
— Obrigada. — Retribuí seu sorriso. — E obrigada por vir. Por favor,
não me deixe fazer nada estranho.
Calebe se levanta a duas mesas de distância, já recuperado do susto.
Ele exibe um maxilar tenso, seu olhar cauteloso vaga para João Guilherme, e
depois para mim, como se tentasse resolver uma equação complicada. Ao
deslizar os olhos até a mão na minha cintura, ele abre um imenso sorriso nada

amigável.
Sorrio de volta, mostrando todos os meus dentes da maneira mais
"também quero atacar você" que consigo.
— Nada estranho, tipo o quê? Jogar uma garrafa de Black Cab Stout
na cabeça dele? Eu gostaria de ver isso.
— Nada estranho que envolva garrafas de nenhum tipo sendo jogadas
em seres humanos ou paredes. Nem copos, ou pratos. — Faço uma careta. —
Ou cadeiras.
Paramos bem diante de Calebe. Está vestido casualmente, com o

combo calça jeans e uma camisa de botões que deve ser branca, mas parece
meio cinza, meio amarela, graças à luz focal refletida sobre a mesa.
Empurro a avalanche de tristeza e decepção para longe e me
concentro em Calebe, meu Calebe, o homem que sempre tenta me fazer

sorrir, que conhece o meu corpo e como satisfazer meus desejos, que é amado
pelos meus pais como um membro da família. Não vim até aqui para provar a
mim mesma que ele não presta, eu vim porque eu quero que sejamos verdade
no meio de coincidências que parecem mentira.
— O que estão fazendo aqui? — ele pergunta, seu tom de voz neutra
não revela nada.
Ana Júlia se levanta, reconhecimento estampado em seu rosto
tranquilo, e assume a dianteira da situação, dizendo:

— Eu a chamei. — Pousa as mãos nos quadris quando Calebe a


encara, horrorizado e confuso. — Não me olhe assim, ela precisa saber.
Oh, não.
— E eu acabei de falar que faríamos isso depois do casamento. — Ele
aponta para os quatro membros da equipe que nos flanqueiam com câmeras e
microfones. Eles se encolhem, amedrontados, mas não recuam. — Sem
platéia.
Sinto meu estômago dar um nó em si mesmo. Garras seguram o meu
coração, arranhando a superfície exposta.

— Depois do casamento pode ser tarde demais! — Ela bate a mão


sobre a mesa e não se deixa intimidar pela feição zangada de Calebe. — Não
me importo de fazer isso na frente das câmeras. Estão ouvindo?! — Ana Júlia
berra para a equipe com um sorriso mordaz. — Filmem à vontade.

— Não! — Calebe grita de volta.


— O que acham de nos sentarmos um pouco? — João Guilherme me
solta e ergue os braços na frente do corpo, tentando apaziguar os ânimos. —
Quanto mais vocês falam, mais suspeitos vocês parecem.
Ana Júlia puxa sua cadeira com brusquidão e se acomoda nela com as
pernas cruzadas, pega uma garrafa fechada e abre a tampa com os dentes
antes de beber um gole generoso. João Guilherme olha para ela com um
misto de assombro e gratidão — eu também.

Os dois se apresentam brevemente e aguardam por Calebe e eu.


Percebo que sou a única que ainda não disse uma palavra, mas
também não sei por onde começar. Minha mente fértil tende a pensar sempre
no pior cenário, não tenho certeza se aguento me sentar entre eles e ouvir em
silêncio enquanto fazem juras de amor eterno ao som de uma banda amadora
cantando Babe, I’m Gonna Leave You.
Led Zeppelin que os perdoe!
Ergo meu braço e mostro o pulso à Calebe, no qual amarrei o seu
lenço antes de sair. Confesso que não sabia o que estava planejando quando

decidi trazê-lo comigo, mas agora eu entendo.


— Estou usando a Bandeira Branca da Paz — digo, pouco confiante,
repetindo as informações que ele mesmo me disse quando me presenteou
com o lenço: — De acordo com as regras, significa que você não pode me

ferir durante uma trégua. — Reviro os olhos. — Não pode ferir o meu
coração e tudo mais.
Se ele disser que não pode cumprir com os tratados de Genebra, então
eu posso virar as costas e ir embora.
— Estranho. — Calebe segura minha mão e a gira de um lado para o
outro.
— O que é estranho?
— Você, agindo toda diplomática. — Ele se aproxima para analisar o

lenço mais de perto. — Não vai gritar e me chamar de Judas?


— Posso gritar se quiser. — Sorrio falsamente. — E Judas já deixou
de ser uma ofensa no seu caso.
— Então você está dizendo que vai se sentar ali, quietinha e
comportada, e ouvir tudo o que temos a dizer? — Calebe me estuda por entre
as fendas de seus olhos duvidosos.
Quietinha e comportada talvez seja demais, mas, pelo menos, João
Guilherme não precisará se preocupar com garrafas, copos, pratos e
cadeiras… se tudo correr bem.

— Sim, acha que não consigo? — Eu daria risada, se não estivesse


falando de mim mesma. — Ou está com medo?
— Claro que estou com medo. — Pegando-me de surpresa, Calebe
entrelaça nossos dedos e deixa uma carícia íntima sobre a minha mão com o

seu polegar. — Já perdi você uma vez, não quero correr o risco de perder
novamente. Se for para piorar as coisas entre nós e diminuir as minhas
chances de estar ao seu lado no altar daqui alguns dias, prefiro jogar você
sobre o meu ombro e arrastá-la de volta para o apartamento.
Ah! Isso explica o que Ana Júlia falou sobre Calebe querer esperar
pelo casamento. Por um momento, pensei que estivessem se referindo ao
casamento deles.
Mas Calebe nem imagina que é a minha primeira opção, que não

suporto a ideia de tê-lo magoado com minhas inseguranças, ou que não tenho
coragem de dizer que também sinto medo de perdê-lo para não precisar
admitir que ele sempre foi meu.
— A Bandeira Branca da Paz serve para os dois lados. — Não vou
machucar você, deixo nas entrelinhas, dando-lhe com sorriso sincero. —
Vamos logo com isso.
Calebe exala, aliviado, faz um sinal positivo com a cabeça e
desconecta nossas mãos para se juntar a João Guilherme e Ana Júlia. Meus
dedos protestam de saudade, mas não o chamo de volta, como gostaria de

fazer. Puxo uma cadeira para mim e me acomodo ao lado dele.


João Guilherme serve copos para todos (menos para Ana Júlia, que
ainda não terminou sua garrafa). Deixo o meu copo de enfeite sobre a mesa.
Já que não consigo beber como uma pessoa normal, espero que o poder do

álcool me ajude por osmose.


— Antes de começarem, talvez seja bom você saber — digo para
Calebe — que João Guilherme me mostrou os documentos que estavam
escondidos no escritório.
A mão de Calebe paira no ar com o copo suspenso a caminho de sua
boca. Ao falar, seu timbre soa como o corte de uma lâmina.
— Não acha que anda mexendo muito com coisas que não são suas?
João Guilherme não se curva e responde no mesmo tom manso e

intimidador:
— É isso o que acontece quando você não cuida das suas coisas
direito.
Eles não estão falando dos documentos.
— Na verdade — Ana Júlia intervém, evitando o banho de sangue
verbal dos dois — é uma coisa boa, vai nos poupar tempo! — Focando em
mim, ela diz: — É o seguinte, a culpa foi minha. Eu sabia que o motel não
era uma boa ideia, mas estava desesperada, entende? Eu estava sem transar há
dois anos! Sabe como é isso? Ficar tanto tempo sem fazer sexo que começa a

se sentir virgem outra vez?


Os olhos de Cabele quase saltam das órbitas quando ele se joga para
frente, tentando fazê-la parar de falar.
— Eu não sei como isso me faz parecer inocente — protesta, por

pouco não derrubando nossos copos.


— Acho melhor vocês dois começarem explicando por que estão aqui
— João Guilherme sugere — juntos, em um bar suspeito, no meio da noite.
Não encontro minha voz para concordar. Escolhi acreditar em Calebe,
mas puta merda, está sendo mais difícil do que imaginei.
— Quando eu estava juntando aqueles documentos, entrei em contato
com a Júlia e pedi a ela que conversasse com você, Girassol. — Calebe passa
as mãos na cabeça, bagunçando os fios para todos os lados. Sinto um pouco

de pena de seu desespero. — Pensei que, se ouvisse o lado dela da história,


junto com as provas, seria mais fácil.
— Só que hoje ele me chamou aqui para dizer que não queria que nós
duas nos encontrássemos antes da grande final, o episódio do casamento. —
Ana Júlia solta uma risada exasperada. — Não é uma estupidez?
— Sim — eu e João Guilherme dizemos ao mesmo tempo, abafando o
“não” de Calebe.
— Já ouviu dizer que não devemos mexer em time que está
ganhando? — Calebe aponta para mim. — Ela finalmente parou de me odiar,

só queria garantir que estivéssemos casados antes de reviver o assunto.


— Estupidez. — Ana Júlia desfaz da explicação de Calebe,
balançando sua garrafa já quase vazia, e prossegue: — Como expliquei antes,
atendi o telefone dele sem querer, veja… — Ela mostra um celular idêntico

ao de Calebe. — São iguais, mas, quando percebi que era você, fiquei
desesperada.
— Atendeu o meu celular? — Rugas surgem na testa franzida de
Calebe.
— Foi por engano, eu já disse, tá legal? — Ela deixa a garrafa de
lado. — Se eu não a tivesse chamado, acabaríamos envolvidos em outro mal
entendido. Deveria me agradecer por salvar a sua pele.
Levando em conta que eu já estava quase chorando quando desliguei

a ligação, faz bastante sentido.


— Eu agradeceria se esclarecesse de uma vez que nós não transamos
— Calebe pontua, impaciente.
— Nós nunca transamos! — A voz de Ana Júlia sobe algumas
escalas. — Eu não transo. Não escutou o que eu disse? Meu hímen já nasceu
de novo!!! — ela grita, fazendo-se ouvir acima do som da banda.
João Guilherme se engasga com a bebida e eu o chuto por baixo da
mesa.
— Ei! — reclama, esfregando a canela.

Sinalizo para Ana Júlia com a cabeça e o recrimino com um olhar


expressivo. João Guilherme expira, emburrado, mas se desculpa com um
aceno.
Sinto um toque urgente em meu joelho que monopoliza a minha

atenção de imediato. Confiro se ninguém está olhando e deslizo minha mão


de encontro à dele. Calebe é capaz de manter o rosto ilegível, mas seus dedos
gelados e escorregadios me revelam sua necessidade de me ter por perto.
Quero que ele saiba que sinto o mesmo, que não precisa mais ter
medo. Que eu o escolho. Quando me viro para Ana Júlia, não permito que
minha voz vacile ou soe hesitante ao dizer:
— Eu me arrependo por ter demorado tanto tempo para acreditar nele.
— Aperto sua mão de leve: eu acredito em você, não vou a lugar nenhum.

Ele me devolve o gesto: obrigado, também não vou a lugar nenhum. — Mas
Calebe me contou o que aconteceu e a história toda parecia suspeita demais,
até um pouco cômica.
— Minha vida sexual é cômica — ela lamenta, chorosa, empunhando
a garrafa como uma espada. — Eu sou uma piada. É claro que você não
acreditou! Só uma idiota acreditaria que o namorado foi ao motel para levar a
carteira a uma pobre coitada que não tinha como sair sem pagar a conta do
quarto. Mas, acredite, é a mais pura e trágica verdade.
— Você ficou presa no motel? — João Guilherme verbaliza o mesmo

que estou pensando. — Sozinha?


Ana Júlia suspira e abaixa a cabeça.
— Ela marcou um encontro por um aplicativo de celular. — Calebe
destila toda sua reprovação à atitude de Ana Júlia em seu tom de voz.

— O quê? — João Guilherme se remexe na cadeira, preocupado.


— Que perigo — sussurro, repassando em minha mente todas as
coisas terríveis que poderiam ter acontecido com ela.
— Disse a mulher que decidiu se casar com um desconhecido em um
programa de televisão — Calebe me censura sarcasticamente. — Quer saber?
Vocês duas podem dar as mãos.
Ana Júlia solta uma breve risada.
— Não aconteceu nada. E por nada, eu quero dizer nada de sexo. —

Ela bebe os últimos goles de sua garrafa-espada. Se fosse eu, já estaria caindo
de bêbada. — Pode não parecer, mas sou uma paqueradora inexperiente. Faz
dois anos e meio que me divorciei, e fiquei muito tempo sozinha nos meses
seguintes. Agora que decidi voltar a viver, toda vez que tento transar com
alguém, uma tragédia acontece.
— Aconteceu uma tragédia? — João Guilherme se empertiga, seus
ombros largos parecem tensos sob a camiseta justa.
— Eu estava de folga naquele dia — ela conta. Lembro-me de Calebe
ter mencionado o mesmo. — E era a primeira vez que eu tentava ficar com

um homem desde o meu divórcio. Eu sei que essas coisas são perigosas, mas,
como disse, estava desesperada. Chegando lá, no entanto, tudo começou a dar
errado. Primeiro, descobri que ele era vinte centímetros mais baixo, dez anos
mais velho e não se chamava Lucas.

— E você não foi embora? — pergunto, em choque. Nem eu sou


tão… tá, deixa pra lá.
— Vocês têm que entender que eu estava…
— Desesperada! — João Guilherme ralha. — Já entendemos.
— Já ouviram aquele ditado: quando a vida te der limões, faça uma
limonada? Foi o que eu pensei. Depois de olhar bem, percebi que o Lucas-
Que-Não-Era-Lucas nem era tão ruim.
— Você não sabe o nome dele até hoje?

— Ela não sabe — Calebe, que já deve ter ouvido a história antes,
responde com aspereza ao questionamento de João Guilherme, cuja feição
também não é das melhores.
— Ele me disse para chamá-lo de Baratão. — Se João Guilherme voar
no pescoço dela, eu não vou impedir. — Mas, depois que eu tirei as roupas e
liguei a banheira de hidromassagem, Baratão recebeu uma ligação — ela faz
uma pausa dramática — da mãe dele.
— Ele atendeu uma ligação enquanto estavam transando? — Sou
obrigada a rir.

E eu achando que a minha vida sexual era uma merda (antes de


reencontrar Calebe). Quase não suportei algumas semanas de celibato, quem
dirá dois anos.
— Quem me dera! Ainda nem tínhamos chegado perto de transar. —

Ana Júlia ri da própria desgraça. — Ele começou a chorar dizendo "mamãe,


mamãe, eu estou chegando", vestiu as calças e foi embora. No fim das contas,
a banheira transbordou, pois eu esqueci que estava enchendo. Liguei na
recepção para pedir um rodo e a funcionária me disse para tomar cuidado
com fetiches estranhos e que nenhum cu é tão profundo assim. Só lembrei
que tinha esquecido a minha carteira na academia no dia anterior, quando
tentei ir embora e percebi que não tinha dinheiro para pagar pelo quarto. Um
quarto que eu nem cheguei a usar!

Nós três fazemos o impossível para não dar risada, mas quando Ana
Júlia gargalha, ninguém mais consegue evitar. A história é tão surreal que
parece mentira.
— Por isso eu precisei entrar no motel — Calebe acrescenta depois
de se recompor, ainda com lágrimas nos olhos. Ele não havia me explicado a
dinâmica de como acabou lá dentro. — Ela não tinha como sair.
— Afinal, o que aconteceu com a mãe do tal Baratão? — João
Guilherme pergunta, interessado na conclusão da história.
— Não sei, nunca mais falei com ele. — Ana Júlia dá de ombros,

coloca os cotovelos sobre a mesa e apoia o queixo nas mãos fechadas. Seu
cabelo castanho-dourado cria um efeito degradê na superfície da madeira, um
raro jogo de luzes que eu ficaria feliz em registrar algum dia. — Tentei sair
com mais alguns caras depois, mas foram encontros tão desastrosos quanto o

primeiro.
Pobre Ana, compadeço-me de sua dor.
— Talvez seja o caso de desistir desses encontros. Aplicativos são
perigosos. — João Guilherme a olha com uma expressão de cautela, não
querendo ser intrometido, mas não conseguindo ficar quieto também.
— Era justamente o que eu estava falando para ela antes de vocês
chegarem — Calebe o apoia.
Ana Júlia os ignora estoicamente. Eles estão certos em se

preocuparem, mas é divertido ver que ela não se deixa acovardar.


Acho que gosto dela.
— Maria Flor — Ana diz, sorrindo — me desculpe por causar
problemas a todos vocês. Tanto naquele dia, quanto hoje.
É, eu gosto dela.
— Eu agradeço pela sua sinceridade. E também peço desculpas por
envolver você com o programa. E por chamá-la de zinha tantas vezes.
— O quê?
— Nem tente entender — Calebe aconselha.

— O importante é que agora tudo foi esclarecido — João Guilherme


bate palmas e serve outra rodada de cerveja para ele e Ana Júlia (no copo). —
Não que existisse algum outro final possível. Estamos falando da final mais
previsível de todos os programas.

— Quer dizer que ela o escolheria mesmo se eu não tivesse contado?


Se eu soubesse, teria poupado alguns detalhes.
Enquanto os dois estão distraídos conversando sobre Ana Júlia e a
exposição de sua vida não-sexual, Calebe se curva sobre mim e diz baixinho:
— Você me escolheria — afirma, convencido.
Sempre.
Sorrio para Calebe e percebo que aquele último resquício de medo
que havia em seu olhar, finalmente se foi. Não há mais nada entre nós que

possa macular o nosso futuro.


— Eu lhe devo um senhor pedido de desculpas, não devo?
Eu quase ferrei com tudo.
— Pode apostar que sim — Calebe insinua diabolicamente,
mostrando o canino em seu sorriso torto. Estou ferrada em suas mãos. —
Ainda bem que temos muitos anos pela frente para você me pagar,
Margarida.
Por baixo da mesa, nossas mãos não se desgrudam. Faço-lhe uma
massagem suave em resposta e seus olhos brilham de malícia com o

significado do meu gesto: não vejo a hora de começar o pagamento.


“O que é melhor: um final feliz, ou um começo inesquecível? Poucas pessoas
podem se gabar de ter ambos...”

MARIA FLOR

Não me considero uma pessoa supersticiosa. Evito passar embaixo de


escadas, quebrar espelhos e abrir guarda-chuvas dentro de casa, não por
acreditar que tais superstições podem me trazer azar (mais do que já tenho),
mas por pura precaução.

O seguro morreu de velho.


— Você está pirando à toa, Copo-de-leite. Eu só quero ver o seu
vestido, estou curioso, ansioso e morto de saudades. — Escuto o som do
trânsito movimentado do outro lado da linha. Ele disse que ficou preso em
um engarrafamento a caminho do estúdio, junto com algumas pessoas da
produção, mas que conseguiria chegar dentro do horário.
— Não estou pirando! — reclamo, mais alterada que o necessário. —
Talvez, sendo excessivamente precavida, mas não quero que nada estrague o
nosso casamento. E, se eu tiver que me esconder de você até estarmos lado a

lado no altar, é exatamente o que farei. A outra opção é a gente fugir para se
casar em uma cidade pequena onde ninguém possa nos atrapalhar.
— Gosto da segunda opção.
— Calebe Ventura eu juro que estou procurando uma tesoura para

picotar o meu vestido de noiva agora mesmo! — Corro os olhos pelo


camarim, mas retiraram todos os objetos cortantes de perto (não é a primeira
vez que tenho um surto).
O filho da mãe gargalha no meu ouvido.
— Estou com saudades — diz, manhoso como um cachorro pedinte.
— Saudades de você, do seu beijo e do seu corpo. Tenha piedade de um
pobre homem que sofre de tesão constante pela mulher que ama e me deixe
vê-la em seu vestido branco. — Ele sabe que é um sem-vergonha persuasivo,

e faz bom uso de sua lábia.


— Você não me engana, Calebe. Quer saber se o vestido é fácil de
tirar.
— Ou se é justo demais para erguer a barra até a cintura. Adoraria
foder você vestida com ele. — O safado nem se dá ao trabalho de negar.
Prefiro não pensar nas pessoas que estão no carro junto com ele, ouvindo a
nossa conversa.
Como a rainha da hipocrisia que sou, testo a elasticidade do vestido e
constato, com muita alegria, que Calebe não terá dificuldades para executar o

seu plano.
Esfrego as pernas, mantendo a biscate depravada que vive dentro de
mim sob controle. Já está mais do que provado que eu e Calebe não
conseguimos manter uma conversa normal sem que ela acabe se tornando

sobre sexo.
— Depois que eu tiver uma aliança no dedo e o meu nome estiver ao
lado do seu em uma certidão de casamento, podemos testar todas as suas
fantasias sexuais envolvendo minhas roupas, Calebe. — Até porque, espero
fazer o mesmo com ele vestido de terno e gravata. — Mas, agora, concentre-
se em chegar ao nosso casamento.
— Todas, todas? — Seu tom é de puro desejo. Parece que toquei no
ponto fraco da fera. — Porque eu posso ser bem criativo.

Minha bunda ainda está dolorida graças ao que ele chama de


"criatividade", e eu sei que estou correndo um grande risco dando à ele tanto
poder, mas, mesmo assim, sem um pingo de vergonha na cara ou medo de
não conseguir andar por um semana inteira, respondo:
— Todas.
— Mas que caralho, Maria Flor! — Calebe geme, rosna e chora, tudo
ao mesmo tempo. — Você é uma safada. Se seu plano era me convencer a
acelerar o processo, saiba que agora estou mais do que disposto a roubar
você da cerimônia e pular direto para a lua de mel.

— Não estou reclamando — eu o incentivo. Vai que cola…


— É mesmo? — questiona. — E quanto ao seu prêmio de meio
milhão? Tudo bem abrir mão dele a essa altura do campeonato?
Ah…

É verdade…
O dinheiro.
Droga. Transar com Calebe é sempre incrível, mas transar com ele
tendo meio milhão de reais na minha conta bancária, deve ser melhor ainda.
Acho que eu posso aguentar.
— Nos vemos no altar. — Reviro os olhos, ciente de que ele não pode
ver meu gesto de rebeldia.
— Boa garota — diz, vitorioso. — Agora, tenho que desligar. Chame

a sua irmã para te fazer companhia. — Para me ajudar a não surtar, ele quer
dizer. — Ainda hoje estaremos casados e eu me certificarei de arrancar esse
vestido do seu corpo com as minhas próprias mãos.
— Promete?
— Prometo, meu Lírio. — Sinto a vibração risonha e feliz no timbre
do meu apelido. — Agora, tenho que desligar, estamos entrando em um
túnel.
***

A porta se abre com um baque alto. Alice entra no camarim


parecendo uma princesa do crepúsculo com seu vestido de dama-de-honra
azul marinho.

— Disseram que você estava tendo um ataque dos nervos.


— Está atrasada. Eu tive um ataque dos nervos há meia hora, quando
tentei arrancar o meu vestido e fugir com Calebe para casarmos em um
cartório corrupto de alguma cidade pequena no interior. Onde você se enfiou?
— Encontrei Maurício no caminho e ele disse que precisava de ajuda
com algo urgente em seu camarim.
— Alice, irmã surtada ganha de ereção, sabia? — Vou até o espelho e
confiro a maquiagem pela centésima vez. — Vocês estão namorando, ou o

quê?
— Ele é um cretino. — Ela desdenha dele com um jogar de ombros
elegante. — Cretinos não namoram.
— Você é uma cretina.
— Obrigada. — Não foi um elogio. Alice segura minhas mãos. —
Você está linda, Maria Flor. Não arranque o seu vestido, seria um desperdício
de beleza e você merece mais do que um cartório corrupto no interior. Nem
faz sentido que seja um lugar corrupto, para de ser louca.
— Sei lá! Depois de tudo o que a gente passou, tenho medo que

aconteça mais alguma coisa que nos impeça de casar. Você sabe como
funciona: o trem no fim do túnel e blá, blá, blá, Lei de Murphy, o pão que
sempre cai com a manteiga para baixo. Quero estar mentalmente preparada
para o pior.

— Você é mesmo filha do nosso pai, nunca vi mais pessimista. — Ela


me vira para o espelho e me abraça por trás, com o queixo pousado sobre
meu ombro. — Olhe para você, vestida de noiva, pronta para se casar com
Jud... Calebe, o homem da sua vida. Sim, vocês passaram por altos e baixos,
mais baixos do que altos, mas é assim que acontece nas melhores histórias de
amor. Não precisa ter medo do seu “e viveram felizes para sempre” maninha,
porque vocês merecem um final feliz.
Esvazio a minha mente e me atenho às palavras da minha irmã.

Depois de horas e mais horas nas mãos das maquiadoras e figurinistas


da produção, estou pronta para caminhar até o altar e dizer sim para Calebe.
Sinto-me bonita com o vestido de flores brancas que abraça todas as minhas
curvas e a coroa de cristais translúcidos. Estava tão nervosa que não parei
para admirar a magia do momento.
Nós vamos nos casar.
— Final feliz? — pergunto, por garantia.
— Final feliz — Alice repete, cantarolando.
Giro sobre os calcanhares e a abraço.

— Amo você, amo demais. Obrigada por me apoiar tanto. Se não


tivesse me levado àquela boate e me incentivado a fazer a inscrição, eu e
Calebe talvez não estivéssemos juntos agora.
— Claro que estariam. — Ela se afasta e segura meus ombros. —

Calebe é doido por você a ponto de entrar em um programa de exposição a


nível internacional, ele teria dado um jeito mesmo sem as câmeras e os
concorrentes, mas qual seria a graça?
Rimos ao mesmo tempo. Bom saber que a entretenho com minha
caótica história de amor. Alice desfila até a bancada na qual dispuseram uma
infinidade de doces e petiscos de casamento — até então, intocados, já que
não tive coragem de arriscar um show de vômito no tapete vermelho — e
começa a se banquetear sem medo.

Pego meu celular e confiro se alguma das inúmeras mensagens que


enviei foram respondidas.
— O que foi agora? — Alice nota a minha decepção.
— Fui avisada que Leonardo não vai participar da cerimônia. —
Ouço a tristeza em minha própria voz. — Acho que ele me odeia. Quando
aceitei participar do programa, esqueci que precisaria quebrar o coração de
quatro pessoas com a minha escolha final.
— Bartolomeu e Maurício estão muito bem com a sua decisão. João
Guilherme já sabe que Calebe é o seu favorito, ele vai ficar bem. Pelas

minhas contas, apenas um coração foi quebrado. Um é melhor que quatro,


fique feliz.
Alice, como sempre, sendo pragmática.
— Eu não imaginava que me apegaria a eles tão rápido. — Seguro o

celular contra o peito. — Eu não os amo como amo Calebe, mas me importo
com todos os cinco igualmente, sempre serão parte desse capítulo da minha
vida e quero que sejam felizes. Quem disse que não podemos ser amigos só
porque eu os rejeitei?
— Dê um tempo a ele — Alice me aconselha, mastigando um
camafeu de nozes. — Talvez seja hoje, amanhã, ou daqui um mês, mas
Leonardo vai superar e perceber que vale mais a pena ter você como amiga,
do que não a ter de maneira alguma. E, se mesmo assim ele insistir nessa

besteira de manter distância, há sempre a possibilidade de enviarmos um


carro de som para o hospital onde ele trabalha. Ninguém resiste à devastadora
humilhação de um carro de som gritando seu nome no volume máximo.
A ideia não é tão ruim. Leonardo morreria do coração, mas ele sabe
que eu tenho um parafuso faltando na cabeça.
Várias risadas e muitos docinhos depois, Alice decide ir embora,
dizendo que esqueceu uma coisa importantíssima no camarim de Maurício —
uma desculpa esfarrapada para vê-lo de novo.
— Você precisa ser estudada. Não quer se comprometer, mas vive se

enroscando com o Maurício pelos cantos. O que ele tem de tão interessante,
afinal de contas?
— Além de um Porsche? — Alice busca uma garrafa de água no
frigobar do meu camarim e a estende para mim. — Aqui, segure. — Faço

como ela manda. — Agora, tente encostar o seu dedo médio no polegar.
— Não consigo. — Faltam, no mínimo, dois centímetros para a minha
mão se fechar ao redor do plástico.
— Pois é.
— O que isso deveria... Ah! — Solto a garrafa no chão, tentando
arrancar do meu cérebro a imagem do largo pau de Maurício. — Ah, meu
Deus Alice. Vá embora logo!

***

Encontro João Guilherme a caminho da cerimônia. Pela sua


determinação ao andar até mim, sei que não se trata de uma coincidência.
As duas assistentes que me acompanham se afastam para nos dar um
pouco de privacidade, uma parte da história que o público não verá na
televisão: a certeza da minha escolha sendo murmurada nos bastidores muito
antes do episódio final. Todos sabem que o meu escolhido é Calebe, e não
disfarçam o olhar de pena sempre que João Guilherme aparece.

Seguro meu buquê misto com força, sentindo minha determinação


esvair novamente. Será por isso que Leonardo preferiu se afastar? Não quero
que João Guilherme faça o mesmo. Eu não suportaria perder a afeição de
mais um deles.

Prefiro encarar seus sapatos, com medo do que encontrarei em seus


olhos.
— Uau! — Ouço sua risada. — Você está espetacular.
Levanto meu rosto, pouco me importando com o vestido. Minha
sanidade como noiva já foi com Deus há muito tempo.
— João Guilherme eu…
— Não ouse se desculpar. — Ele encosta o dedo indicador na minha
boca. — Nunca peça desculpas por escolher a sua felicidade. Não foi por isso

que vim, Maria Flor.


— E por que veio então?
Ele estende a mão e eu a seguro sem pestanejar. Sinto o impulso que
faz meus pés dançarem no chão e rodopio sem sair do lugar, quase
derrubando minhas flores no chão. João Guilherme confere meu visual dos
pés à cabeça, o sorriso ampliado de aprovação.
— Para ver você vestida de noiva antes do Calebe, é claro. É o
mínimo que mereço. Ele vai ficar puto quando souber. — Vai mesmo. Será
divertido quando ele descobrir. — E para te agradecer.

— Agradecer? — pergunto, tonta pelo giro. — De onde eu venho as


pessoas não agradecem por um pé na bunda.
A risada dele faz carícias no meu coração.
— Não é isso. Fiquei pensando no que disse. — Do bolso de seu

paletó, ele puxa a fotografia que tiramos juntos em sua casa há algumas
semanas. — Sobre o medo de nunca mais encontrar um lugar no mundo para
se encaixar. Eu… — A voz dele embarga, mas as lágrimas que se acumulam
em seus olhos nunca chegam a cair. — Eu decidi vender a casa. Você estava
certa, é um mausoléu.
João Guilherme me entrega a fotografia. O velho casarão compõe o
cenário ao fundo, como a lembrança preciosa de um tesouro. Eu e ele
estamos abraçados, iluminados pela luz solar da área externa, e todas aquelas

sensações de aconchego e intimidade voltam a nos envolver.


Naquele dia, eu quis João Guilherme na minha vida. O sentimento
não mudou.
— O que vai fazer agora?
— Voltei a trabalhar naquele manuscrito, comprei um caiaque que eu
ainda não sei usar e adotei uma bebê cabra chamada Carlota. — Impactada,
luto para controlar a vontade de chorar que me assola. Ele percebe e segura
meu rosto com a mão, sua palma morna me dizendo que tudo ficará bem, e
sussurra: — Vários pequenos sonhos…

— Valem tanto quanto um sonho grande — completo, feliz, triste,


agradecida, mas, acima de tudo, aliviada. Jogo meus braços ao seu redor,
pendurando-me em seus ombros, as plantas farfalhando no buquê. Ele me
segura pela cintura em um abraço fraterno cheio das emoções que

construímos juntos e sem as quais já não quero viver. — Tenho direito a um


pedido — lembro.
— Vai usar o seu pedido agora?
— Você prometeu, fez um juramento — decreto, minha cabeça
descansando em seu peito. — Não pode voltar atrás.
— Sou um homem de palavra.
— Eu quero… — Afasto-me e pouso minhas mãos sobre o seu
coração, sentindo o bradar ritmado de suas batidas. — Eu quero que seja meu

amigo para sempre.


Ele franze o cenho.
— Mas…
— Para sempre é para sempre! — teimo, obstinada. — Para sempre é
pelo resto das nossas vidas. Mesmo que me odeie e não queira me ver por
algum tempo, tem que continuar sendo meu amigo, compartilhando a sua
vida comigo e aparecendo no meu aniversário para dizer que eu pareço mais
jovem a cada ano.
— Tudo bem, tudo bem. — Ele me acalma, rindo. — Mas você

poderia pedir qualquer outra coisa, por que isso?


— Disse que se sentia sozinho — confesso. — Você precisa de uma
amiga e eu preciso de você.
João Guilherme balança a cabeça para os lados, como se não

acreditasse no que acaba de ouvir. Uma emoção alegre irradia por todo o seu
rosto e se transforma no sorriso mais brilhante e sincero que já vi tomar conta
de seus lábios.
— Calebe é um filho da puta de sorte — diz, beijando minha testa
antes de se afastar. — Me deixe dar um soco nele qualquer dia.
— Contanto que não bata com muita força — peço, brincando. — É
um belo rosto e eu gosto dele inteiro.
Gosto muito.

João Guilherme torce o nariz.


— É melhor eu ir na frente e me preparar para o fora mais histórico da
minha vida. Tenho que, pelo menos, fingir surpresa, ou os telespectadores
ficarão desapontados.
— Você pretende chorar?
Ele dá um peteleco na minha cabeça. No meu rápido piscar de olhos,
um reflexo involuntário causado pelo golpe, João Guilherme se vira de
costas.
— Não na sua frente, sua boba. — Com as mãos enfiadas nos bolsos,

ele vai embora.


E eu deixo.

***

Nada como um casamento para atacar a gastrite. Abençoado seja o


bom senso que me impediu de comer aqueles docinhos. Eu e meu estômago
vivemos uma relação de amor e ódio que não deve ser desafiada.
Eu sabia que seria um momento grandioso, mas, por não ter assistido
às temporadas anteriores, meus parâmetros se provaram baixos demais.
Construíram o cenário de um verdadeiro casamento real em um espaço
externo da emissora. Flores, luminárias e véus se distribuem por um extenso

gramado verde, e o tapete de pétalas pelo qual caminharei rumo a minha


felicidade parece se alongar por quilômetros.
As cadeiras dos convidados foram decoradas com ornamentos
dourados e rosas brancas e vermelhas. Não consigo avistar meus pais no meio
da multidão — nem me lembro de conhecer tanta gente assim, devem ter
arrumado alguns figurantes para dar volume. Sei que há convidados tanto de
Calebe como de João Guilherme, mas tampouco sei como distingui-los
dentro do meu frenesi de emoções.
Estou parada sobre um palco chamativo, com luzes enormes

apontadas na minha direção, em destaque. Estudei o protocolo do episódio


várias vezes, já que não é o tipo de cena que pode ser regravada e não quero
estragar tudo com a minha estupidez crônica.
Antes de seguir para o altar, terei que chamar o nome do meu

escolhido e, como mágica, ele aparecerá por detrás das cortinas para dar
início ao cortejo. Acho cruel e arriscado que submetam as famílias dos dois
finalistas a participarem da cerimônia até o último segundo, mas é obvio que
se trata de uma estratégia para estimular possíveis barracos, afinal, haja o que
houver, vale de tudo pelo entretenimento e o show não pode parar.
Deixo a calmaria fluir pelo meu corpo, contemplando a realização do
meu sonho. Só agora me permito acreditar: eu vou me casar com Calebe.
Eu vou me casar com Calebe.

— Preparada? — Olho para o meu lado esquerdo e encontro Miguel


Castro com um sorriso de orelha a orelha, vestido com trajes à rigor: smoking
e gravata borboleta e toda a sua gloriosa beleza. — Ou eu devo chamar uma
ambulância?
Sua chegada é um sinal de que estamos prestes a começar.
— Estou pronta, mas se puderem deixar uma ambulância a postos,
não é má ideia. — Damos sorrisos cúmplices. Ele sabe como me sinto, já
conduziu o programa diversas vezes com todo tipo de noiva. — Estou feliz
— digo, mais para mim, do que para Miguel. — Achei que nunca mais

conseguiria sentir esse nível de felicidade, e muito menos que seria Calebe o
causador dela.
Miguel concorda, balançando a cabeça. Observamos as pessoas
andando de um lado a outro, cuidando dos preparativos finais. O diretor passa

conferindo a posição das câmeras e faz um sinal de positivo para nós.


Falta pouco.
— Então, é ele — Miguel afirma, referindo-se à escolha que
anunciarei na frente das câmeras daqui a pouco.
— Sim — confirmo, mesmo que não tenha feito uma pergunta.
— Tenho que confessar uma coisa — Miguel diz, encarando o
horizonte. Não digo nada, aguardo em silêncio. — A vinda de Calebe para o
programa não foi uma coincidência.

— É óbvio que não. — Faço o mesmo que ele e fixo meu olhar à
frente. — Calebe veio atrás de mim porque meu pai contou onde me
encontrar.
— Saber o seu paradeiro e entrar no programa são coisas diferentes.
Ele não se inscreveu, então, para participar, precisaria da ajuda de alguém
muito importante envolvido com a produção.
Uma luz acende na minha cabeça. Sei onde ele pretende chegar.
— E você foi o cara que o colocou para dentro — deduzo, entendendo
tudo. — Desde o começo, você sabia! Por isso me desejou boa sorte naquele

dia, antes de eu conhecer os noivos.


Miguel encolhe os ombros, culpado.
— Calebe me procurou dias antes das gravações começarem e
explicou a situação, mas eu juro que não sabia sobre a suspeita de traição. Ele

escondeu essa parte, acho que por medo de eu recusar. Por isso fiquei tão
nervoso quando você contou a sua versão dos fatos. Uma versão equivocada,
graças a Deus.
Lembro mesmo de ter percebido uma certa tensão entre os dois.
— E como Calebe conhecia você para pedir um favor tão
complicado?
— Frequento uma de suas academias há mais de dois anos — explica.
— Já nos encontramos algumas vezes e treinamos juntos também.

Acho que preciso me inteirar sobre a verdadeira fortuna do meu


futuro marido. Tenho consciência de que sua rede de academias cresceu
muito nos últimos anos e que seu nome vem aparecendo com certa frequência
na mídia, mas, não que ele já tinha chegado ao patamar de conhecer
celebridades.
— Calebe é... — Sinto um sorriso brotar no meu coração e ser
copiado pelos meus lábios. — Impossível.
— Acho que a palavra certa seria persistente. — Miguel solta uma
risadinha pelas narinas.

— Teimoso — sugiro, enchendo-me de paixão. — Ele salvou o nosso


amor. Lutou por nós, contrariando as poucas chances de vitória. Quando
penso que um grande mal-entendido poderia ter me privado disso tudo —
faço um movimento amplo com o braço — sinto vontade de chorar. Então,

obrigada por quebrar as regras e ajudar o Calebe. E não se preocupe, não


contaremos a ninguém, mesmo porque nós fizemos bem pior.
Estremeço só de imaginar todas as nossas intercorrências sendo
expostas. O programa teria que ser censurado.
— Nem vou perguntar — ele murmura, rindo.
O sinal que indica para ficarmos a postos em nossos lugares ecoa dos
alto-falantes. Miguel deixa um aperto amistoso em meu ombro, que transmite
seus votos de felicidade melhor do que palavras seriam capazes, e se

posiciona, concentrado nas inúmeras câmeras que nos cercam.


Respiro fundo.
O nervosismo e o medo desaparecem, perdem o sentido e dão lugar à
incontestável certeza de que a minha felicidade está a um passo de distância.
É agora.
É o nosso final feliz.
O diretor ergue a mão para dar o sinal.
Prendo a respiração, o nome de Calebe formigando na ponta da minha
língua.

Meu escolhido.
Meu amor...
— Esperem!
Ah, puta que pariu.

Aperto os olhos com força. Eu sabia que ia dar alguma merda, afinal,
é o meu casamento. Maria Flor Pinto de Barros não tem um segundo de paz.
Olho para Miguel, o responsável pelo grito. Ele segura um celular na
mão e encara a tela com olhos arregalados, o rosto lívido, balbuciando
palavras ininteligíveis.
Não deve ser nada importante, digo a mim mesma, tentando manter a
calma, mas, não nasci tão equilibrada assim para permanecer inabalável
frente a um possível desastre matrimonial — só pode ser um, resta saber a

gravidade do desastre para que eu possa escolher entre desmaiar, vomitar ou


assassinar alguém.
O telefone do diretor também toca, a expressão que ele assume ao
conferir do que se trata o contato é tão terrível quanto a de Miguel. Em
seguida, o mesmo acontece com outros membros da equipe, câmeras e
assistentes, um após o outro, como um vírus se espalhando lentamente e para
o qual eu não estou vacinada. Eles murmuram uns com os outros e se viram
para me encarar com olhares penosos.
Meu sangue se transforma em pânico e começo a ficar preocupada. Já

vi algo parecido nos filmes, pouco antes de o mundo passar por um


apocalipse zumbi.
É uma boa hora para rezar?
Então, Deus, pode dar uma maneirada aí de cima? Eu preciso de

férias.
Alguns convidados, ao longe, começam a se levantar de seus lugares e
o som ensurdecedor de suas vozes se elevando é o suficiente para que meu
corpo comece a tremer. Dentre eles, identifico meus pais e irmãos, seguidos
por Bartolomeu, Gael e até João Guilherme.
— O que foi? — digo, estranhando como minha língua parece
inchada dentro da boca. — Por que estão me olhando assim? O que
aconteceu?

Miguel solta um grunhido e acaba com o curto espaço entre nós com
dois passos largos, segurando meus braços como se temesse minha queda.
— Eu sinto muito, Maria Flor — Miguel lamenta. Não gosto do som.
Não gosto que ele lamente. Casamentos não são para lamentações. — É o
Calebe... — Ele hesita, aperta-me com mais força. — Parece que ele se
envolveu em acidente, dentro de um túnel, a caminho do estúdio.
— O que?
Acidente? Túnel? Do que ele está falando? O que aconteceu com a
invasão zumbi?

Não pode ser. Começo a rir. Não pode ter acontecido algo com
Calebe. Não o meu Calebe. Ele... ele prometeu...
Espero que Miguel desminta, que todos comecem a gargalhar,
dizendo que se trata de uma pegadinha de péssimo gosto. Espero que Calebe

apareça com seu sorriso idiota dizendo que a ideia de me dar um susto foi
dele — é algo que Calebe faria.
Porque Calebe é um idiota.
O idiota que eu amo.
Mas nada disso acontece.
Os semblantes de pena continuam se multiplicando ao redor e meu
riso frouxo vai minguando até se extinguir.
Ele não ousaria fazer algo estúpido como morrer bem no dia do nosso

casamento, certo? Porque, se for o caso, eu mesma o trarei de volta só para


matá-lo de novo com minhas próprias mãos! Não pode ser tarde para nós. O
destino não pode ter um humor tão perverso. Histórias complicadas de amor
existem para que finais felizes as compensem, e o meu final feliz só faz
sentido se for ao lado de Calebe.
“Existem aqueles que procuram pelo amor, e aqueles que o evitam mesmo
sabendo exatamente onde encontrá-lo. Ambos correm um grande risco: o
primeiro pode acabar se esquecendo de olhar nos lugares mais óbvios, como
embaixo do próprio nariz; e o segundo talvez não se atente ao tempo e só o
busque quando já for tarde demais.”

LEONARDO

Patético.
Eu sou patético.

Confiro as horas no relógio do meu consultório de novo, mas só se


passaram cinco minutos desde minha última olhada. Dizem que o tempo cura
todas as feridas e que só precisamos esperar que ele passe, eu só não sabia
que ele passava por cima da gente como um rolo compressor em velocidade
reduzida.
Será que a cerimônia já começou? Maria Flor já disse sim para Calebe
no altar? Eles viverão felizes para sempre?
Duas batidas na porta me tiram dos devaneios e eu resmungo um
“entre” sem convicção. Uma fresta educada precede a entrada de Arabella,

que eu reconheço por trás da máscara e touca graças aos seus enormes e
muito brilhantes olhos azuis.
Arabella é uma boa enfermeira, muito prestativa aos pacientes e
comprometida com o trabalho. Coincidentemente, temos pegado vários

plantões juntos desde que foi admitida no hospital, há cinco meses. Não nos
falamos com frequência, já que ela parece excessivamente tímida perto de
pessoas que não estejam doentes ou morrendo, mas eu sempre a vejo pelos
corredores, cuidando de algum enfermo ou conferindo seus relatórios.
— Algum problema? — pergunto assim que ela coloca metade do
corpo dentro da minha sala, segurando uma prancheta com força contra o
peito.
— A senhora Marta, do quarto trezentos e quatro — explica em tom

de desculpas.
— Deixe-me adivinhar — digo, levantando-me da cadeira. Ajeito
meu jaleco enquanto me aproximo da porta. — Está reclamando de dor nas
costas de novo e disse que só vai aceitar a medicação se for aplicada por
mim.
Arabella relaxa visivelmente os ombros e confirma com a cabeça.
Que tipo de expressão assustadora eu devo estar fazendo para deixá-la tão
apreensiva?
— Sinto muito — diz, espiando-me com a cabeça baixa.

— Eu não me importo. — Tento soar amigável, ou, pelo menos,


simpático. No entanto, Arabella franze as sobrancelhas loiras e me encara
com desconfiança, sem dizer mais nada.
Ela abre passagem e me deixa ir na frente, seguindo-me para fora da

pequena sala. Caminhamos pelo corredor do hospital, nossos passos ecoando


no vazio silencioso da noite. Sinto sua proximidade dois ou três passos atrás
de mim e diminuo a velocidade para que ela me alcance, até estarmos lado a
lado.
— Está se sentindo bem? — ela indaga, a voz baixa e vacilante.
— Sim — minto, achando estranho. — Por que a pergunta?
— Por nada.
Sua resposta não me convence.

— Tem certeza? — insisto, olhando-a de lado. Nunca reparei, mas


Arabella é bem pequena em comparação a mim, então preciso me inclinar um
pouco para vasculhar seu rosto.
— É só que… — Ela se cala, receosa. Eu a incentivo com o olhar. —
Bem, eu fiquei sabendo que você pretendia tirar alguns dias de férias a partir
da próxima semana, o que é ótimo, todo mundo precisa de uma pausa,
embora eu, particularmente, nunca saiba o que fazer nos meus dias de folga.
Mas, enfim, de repente o seu nome apareceu na escala de hoje e eu reparei
que você parece estar um pouco… — Arabella comprime os lábios, hesitante,

como se buscasse a palavra certa. — Ansioso, talvez?


É a primeira vez que a ouço falar mais do que dez palavras em uma
frase — comigo, pelo menos. Sua voz, dita em alto e bom som, não é aguda,
possui uma rouquidão polida que, provavelmente, é um dos motivos por eu

sempre achá-la baixa demais. Ela é gostosa de escutar, mesmo abafada pela
máscara.
— Por acaso você anda me espionando, Arabella? — brinco, tentando
fugir da resposta, já que, sim, eu me sinto ansioso, mas não posso explicar o
motivo da minha ansiedade sem parecer, bem… patético.
Ela arqueja, arregalando os olhos.
— Não! — exclama, esganiçada, chacoalhando a cabeça em meio a
um riso exagerado. — É claro que não. Por que eu faria uma coisa dessas?

Nós nem nos conhecemos direito, não somos amigos, e não é como se eu
tivesse sentimentos por você nem nada assim. Só sentimentos profissionais,
sabe? Sentimentos respeitosos de uma enfermeira normal pelo médico de
plantão.
Uau, foram muitas palavras agora.
A única faixa de pele exposta em seu rosto fica subitamente rosada, as
orelhas, bem coradas, e ela olha para trás, como se buscasse uma rota de fuga
segura. Acho que a deixei constrangida. É quase uma menina, sete ou oito
anos mais jovem do que eu, recém-formada e pouco acostumada com as

políticas internas do hospital.


Não me conhece o suficiente para confiar no meu caráter. Preciso ser
mais cuidadoso para não deixá-la desconfortável, ou posso acabar parecendo
um tirano.

— Você está certa. — Finjo que não notei a sua reação encabulada e
continuo caminhando para manter a conversa natural. — Aconteceu uma
coisa recentemente que afetou a minha vida e, por consequência, o meu
trabalho. Peço desculpas antecipadas caso eu precise de mais ajuda que o
normal.
— Fico feliz em ajudar, é o meu trabalho.
Oito palavras, parece que voltamos à estaca zero.
O silêncio se instaura em nosso trajeto. E, enquanto caminhamos sem

pressa, sua pergunta sobre como estou me sentindo volta para assombrar
minha mente.
Estou bem longe de estar bem.
Imaginei que o plantão me ajudaria a não pensar tanto no casamento
de Maria Flor e Calebe — é impossível que ela escolha João Guilherme — e
funcionou um pouco, já que os pacientes e as rondas me mantêm ocupado.
Porém, não pensar não significa não sentir, e sentir é tudo o que tenho feito
desde o começo.
A pressão das gravações constantes, somada à expectativa de um

amor inesperado, me fez sonhar alto demais. Eu fechei os olhos para os sinais
e ousei cobiçar um amor que não me pertencia. O amor de Maria Flor nunca
foi meu.
O que sentíamos, o que eu senti, não era amor, e, por um lado, é bom

saber disso, pois nunca havia sentido nada tão forte por ninguém antes, então,
se o amor é ainda mais grandioso e avassalador, não vejo a hora de senti-lo
de verdade pela pessoa certa.
Eu não estou bem, mas ficarei eventualmente.
— Sabe guardar segredo? — pergunto, optando pelas escadas ao
invés do elevador. Arabella me acompanha sem questionar nosso trajeto.
— Sim. — Ela se apoia no corrimão enquanto subimos. — Eu acho.
— Já ouviu falar daquele programa chamado O Noivo Ideal?

Espio sua reação à pergunta, esperando que ria ou esboce algum


estranhamento, mas ela aquiesce, mais atenta aos degraus do que a mim.
— Sim — diz —, já me inscrevi duas vezes.
Tropeço pouco antes de chegarmos a um patamar e por muito pouco
não despenco escada abaixo. Agarro-me ao corrimão e apoio minha mão livre
no chão, evitando um acidente catastrófico. Arabella, ao se dar conta do
perigo iminente, solta um gritinho, levando as duas mãos ao rosto, e sua pasta
acaba caindo, junto com todos os papéis.
— Você se inscreveu duas vezes? — Endireito-me e a encaro, sem

acreditar que seja verdade. Talvez esteja brincando com a minha cara.
Arabella puxa sua máscara para baixo. Há uma linha avermelhada na
curva do seu nariz, deixada pelos elásticos. Sua boca, a qual eu não me
lembro de ter visto antes, é volumosa, possui um tom rosado natural e se

destaca com protagonismo em seu rosto de poucos ângulos.


— Por que a surpresa? — questiona, abaixando-se para recolher a
bagunça.
Saio do meu torpor e também me abaixo. De frente um para o outro,
nossos olhares se nivelam, e eu não consigo disfarçar o choque causado por
sua confissão.
— Você é… — Torço o nariz involuntariamente. — Jovem.
Os cantos de sua boca se curvam para cima.

— Não me chame de jovem como se fosse um insulto, doutor.


Onze palavras.
— Desculpe. — Seu sorriso me faz sorrir. — É que eu não esperava.
— Tudo bem, estou acostumada. — Entrego para ela a última folha,
sem querer, nossos dedos se encostam. Ela puxa a mão depressa e se levanta.
— Obrigada.
— Como assim? — Ergo-me da embaraçosa posição de cócoras e a
fito, cada vez mais intrigado. — Não sou o primeiro a achar você jovem
demais para um programa casamenteiro?

O sorriso de Arabella fica maior, como se minha pergunta a


divertisse. Ela volta a subir os degraus e eu a acompanho.
— Não ria — pede.
— Não vou rir — prometo, afinal de contas, espero que ela também

não ria quando eu contar a verdade.


— Sou uma grande fã do programa desde a adolescência e comecei a
me inscrever assim que me formei na faculdade. — Arabella vira o rosto e
me encara, a espera de uma risada que não vem. Curiosamente, não vejo
motivos para rir dela, acho a explicação bem fofa e me perco contando suas
palavras.
Foram dezenove? Ou umas vinte?
Eu tenho que parar com isso.

— Quer dizer que você se inscreveu esse ano também? — Chegamos


ao final da escadaria e viramos à esquerda, rumo ao quarto da paciente.
— Sim, mas não fui chamada. — Seu rosto esmorece. — Eu vi em
um site de fofocas que as gravações começaram há algumas semanas, mas
não sei se é verdade.
— É verdade — digo no modo automático.
Arabella arqueia as sobrancelhas, os olhos, que mais se parecem com
safiras lapidadas, me esquadrinham. Ela não estava exagerando quando se
referiu a si mesma como uma grande fã do programa. O assunto a cativa e eu

me sinto oprimido pela incisividade presente em sua expressão.


— Como sabe? — indaga, firme, curiosa.
Por onde eu começo?
Felizmente, somos interrompidos pelo bradar da paciente e chegamos

à porta do quarto, onde é possível escutar suas exigências sobre querer


atendimento especial do “médico bonito de plantão” e coisas do tipo. Acho
graça, pois se trata de uma senhora bastante simpática no auge de seus oitenta
e poucos anos que acaba de passar pela sua terceira cirurgia.
— Vamos cuidar disso primeiro. Depois, vou lhe contar aquele
segredo que mencionei. — Não espero que Arabella tenha a chance de tecer
comentários e entro no quarto, aliviado com os minutos a mais que terei para
formular uma explicação decente.

***

Eu não sou um homem paciente.


Quer dizer, médicos, no geral, não são pessoas pacientes.
Aprendemos que cada segundo conta e pode custar a vida de alguém, então,
com o passar dos anos, nos tornamos prisioneiros do tempo. Comemos
depressa, dormimos o mínimo necessário e nunca sabemos o que fazer nas
férias.

Acho que é por isso que nossas letras se transformam em garranchos


em algum momento das nossas carreiras: não faz sentido perdermos
milésimos de segundos preciosos escrevendo palavras legíveis se podemos
simplesmente rabiscar com a caneta.

Mas, contrariando a minha natureza, eu espero por Arabella, que


continua em silêncio, pensativa, com os braços cruzados e olhos congelados
em um ponto qualquer do chão, depois do meu longo monólogo sobre as
minhas últimas semanas como participante do seu reality show favorito: O
Noivo Ideal.
Não sei o que eu gostaria que ela dissesse, mas espero que pelo menos
diga alguma coisa, seja positiva ou não — o que faz de mim, além de
patético, um covarde.

Como se não bastasse fugir, recusando-me a aparecer no casamento,


estou agora despejando minhas frustrações em cima de uma mulher gentil
que não tem nada a ver comigo, como se ela pudesse me oferecer alguma
palavra de conforto ou um conselho milagroso sobre o que fazer da minha
vida agora.
Depois de ajudar com a medicação da senhora Marta, voltamos para
as escadas, onde as chances de sermos interrompidos são baixas.
Arabella, apoiada no corrimão, com as mãos para trás e de frente para
mim, tem uma feição ilegível. Sem a máscara e a touca, ela mostra ainda

mais a pouca idade. Seu rosto é redondo, com sobrancelhas grossas e um


nariz pequeno. O cabelo, preso firmemente em um coque, apresenta uma
bonita coloração dourada, uma sugestão vindoura de como deve ficar linda
quando os fios se libertam do penteado.

— Então — ela diz, finalmente — deixe-me ver se entendi bem. Você


era um dos candidatos da próxima temporada de O Noivo Ideal, mas foi
eliminado porque a noiva já tem alguém que ama, e agora não sabe o que
fazer, pois tinha apostado todas as suas esperanças no programa para arrumar
uma esposa, é isso?
— Colocando assim, eu me sinto meio ridículo. — Pouso a mão
direita na minha nuca para disfarçar o meu constrangimento. Tenho que me
acostumar. Em breve, todos no hospital me verão na TV. — Mas, sim, é

basicamente isso.
— E hoje está sendo gravado o último episódio, com a escolha final
da noiva e o casamento?
— Exato.
— É uma pegadinha? — Ela me encara entre as fendas de seus olhos
estreitos e desconfiados.
— Estou dizendo a verdade e nada mais que a verdade — juro, rindo
de mim mesmo pelo nível de ridículo que cheguei. — Pareceu uma boa ideia
na época e eu estava bem confiante de que seria escolhido.

Ela se aproxima e para bem na minha frente, como se tentasse


enxergar dentro de mim. Seus cílios são curtos e há sardinhas quase
imperceptíveis em suas bochechas rosadas, que estão tensas graças a sua
falha tentativa de me intimidar. Seu rosto é amável demais para colocar medo

em mim ou em qualquer ser humano.


— Lamento — declara ante a minha impassividade — ainda não
consigo acreditar.
— Por que a surpresa? — Provoco-a com a mesma indagação que
usou contra mim mais cedo.
— Porque você é…
— Velho?
Arabella revira os olhos, mas sua boca treme, segurando um sorriso.

— Sabia que ofende todas as pessoas na casa dos trinta anos quando
se chama de velho?
— Não é uma questão de idade — explico. — Eu tenho uma alma
idosa viciada em trabalho que gosta de acordar cedo, assistir ao jornal das
nove, ficar em casa nas folgas de sexta-feira e que tem um ódio particular por
vizinhos que escutam música alta nas manhãs de domingo.
— Eu quis dizer maduro — ela aponta, solícita, ignorando minha lista
de gostos incomuns. — Um profissional bem sucedido e financeiramente
estável, educado, bonito e responsável. Você é o combo completo.

Nas entrelinhas de suas palavras, fica implícito que, por "combo


completo", ela se refere ao meu potencial desempenho com as mulheres e
como marido de alguém.
— Eu sei o que está pensando. — Dou a volta em Arabella e apoio as

mãos nas barras do corrimão, de costas para ela. — É o que a maioria das
pessoas pensa: quem rejeitaria um cirurgião? Mas isso é besteira. Meu
relacionamento mais longo durou quatro meses e eu já tinha perdido as
esperanças de me casar, até escutar o anúncio sobre a abertura das inscrições
para O Noivo Ideal no rádio do meu carro, às cinco da manhã, quando estava
a caminho do hospital. Então, sim, eu sou maduro, bem sucedido, educado e
responsável, mas nada disso foi o bastante para evitar que eu me sentisse
patético!

Aperto os punhos ao redor do metal gelado e puxo o ar com força


para recuperar o fôlego. Quase rezo para que Arabella ateste a minha
insanidade e vá embora, mas a vejo se apoiar ao meu lado com minha visão
periférica.
— Por que você não está lá também? No casamento, quero dizer.
Todos os participantes são convidados.
Agradeço mentalmente pela mudança de assunto. É seu jeito generoso
de dizer que acredita em mim agora.
— Não sei explicar. Acho que não tive coragem, quis me proteger,

fiquei com medo de doer demais e acabar estragando o momento dela com a
minha — engulo o amargor — inveja.
Relaxo as mãos do aperto e me endireito. Arabella me acalenta com
um sorriso piedoso.

— A Noiva, Maria Flor, certo? — pergunta. Aquiesço em resposta.


— Acha que ela deveria ter escolhido você ao invés do outro homem? Você a
faria mais feliz que ele?
— Ninguém faria Maria Flor mais feliz do que Calebe. — Quase rio
da possibilidade. — Ela fez a escolha certa.
— Então, diga a ela. — Arabella coloca a mão em meu ombro e eu
viro o rosto para o lado, fitando-a direto nos olhos. Ela faz parecer tão…
simples. — Diga que você torce pela felicidade dos dois. Eu não conheço ela

ou Calebe, mas acho que conheço você um pouco. E tenho certeza que, se a
Maria Flor teve a chance de conhecê-lo, vai querer a sua amizade. Ela vai
querer que você sorria, que fique bem, que seja feliz e a apoie, e se você não
estiver lá quando ela disser sim para o homem que ama…
Maria Flor vai se sentir triste.
Porra, que merda eu estou fazendo aqui?
— Eu preciso… — Ofego, impactado. — Preciso ir.
— Vá logo.
Sinto seu leve empurrão de incentivo e começo a me mover, descendo

os degraus. Tenho que comunicar minha saída do plantão para que arrumem
um substituto, depois dirigir o mais depressa possível para o estúdio, e torcer
que Calebe e Maria Flor ainda não tenham se casado.
Abro a porta, o corredor do hospital se mostrando em toda a mesmice

de piso branco e portas cinzentas. Mas paro antes de atravessar e olho para
trás. Arabella, no alto da escadaria, me assiste partir com os olhos inundados
de expectativa, como se houvesse algo inacabado a ser dito.
— Obrigado, Arabella.
Ela umedece os lábios fartos com a língua e enche os pulmões em
uma respiração profunda. A adrenalina faz meu coração agredir a caixa
torácica e eu me vejo ansioso por seja lá o que mais ela tem a dizer.
Como nunca conversamos assim antes?

— Leonardo — meu nome ressoa em sua rouquidão feminina. —


Você não é patético, talvez só não esteja procurando no lugar certo.
Talvez, eu estivesse cego.
Se Calebe e Maria Flor nunca tivessem se separado, e Arabella fosse
escolhida como a noiva da temporada, a história teria sido diferente?
Eu… nós…
— Doutor Leonardo! — O grito vem de outra enfermeira. Seu alarde
indica problemas sérios. Ela passa às pressas rumo aos elevadores enquanto
continua falando: — Acidente de trânsito. Dois veículos se chocaram dentro

de um túnel. Estão a caminho. A ambulância deve chegar a qualquer


momento, estão esperando pelo senhor na emergência.
Merda.
Merda, merda, merda.

Não posso ignorar um paciente que precisa de mim, eu fiz um


juramento. Sou um médico antes de qualquer coisa e não penso duas vezes
antes de seguir na mesma direção que a mulher.
Sei que Arabella me acompanha sem olhar para ela. Sinto sua
presença determinada logo atrás, mesmo que não a tenham solicitado. Está
indo por mim, para ter certeza de que ficarei bem caso precise abrir mão de ir
ao casamento.
Chegamos na sala da emergência junto com os paramédicos que

empurram uma maca sobre a qual há um homem desacordado.


Um homem desacordado vestido com um terno de casamento.
Congelo — algo que nunca aconteceu antes, nem em meus tempos de
estudante — e me dou dez segundos para respirar antes de tentar entender.
— Doutor? — Arabella sussurra, confusa com minha reação.
— Este paciente não pode morrer em hipótese alguma.
— Você o conhece?
Aquiesço.
— Este é Calebe Ventura.

Que porra está acontecendo?


“... e viveram felizes para sempre”

MARIA FLOR

Estava bom demais para ser verdade, nem me casei ainda e já vou
ficar viúva.
Todo mundo veio para o hospital.
E por “todo mundo” eu quero dizer TODO MUNDO: meus pais, que
quase tiveram uma síncope quando ficaram sabendo que Calebe havia se
acidentado; meus irmãos, é claro; assim como João Guilherme, Maurício, e
até Bartolomeu com Gael; todos os cinegrafistas do programa também
vieram, acompanhados pelo diretor, Miguel Castro e até o Juiz de Paz!
Resumindo, uma pequena horda.
— Calebe Ventura — digo na recepção, batendo a mão em cima do
balcão. A pobre da recepcionista arregala os olhos ao me ver vestida de
noiva, com a torcida do Flamengo inteira atrás de mim. — Se ele não estiver
morto, avise que vou matá-lo!
— Desculpe — a mulher se levanta. — Mas vocês não podem filmar
aqui. Isso é um hospital, temos pacientes…
— Meu noivo é um paciente! — brigo, tentada a enfiar meu buquê em
seu nariz. — Ele sofreu um acidente de carro. Seu nome é Calebe Ventura!
Calebe. C-A-L-E…
— O que está acontecendo aqui? — Alguém pergunta. Só reconheço
a voz quando giro sobre os saltos e o encaro.
Ver Leonardo depois de tantos dias tentando falar com ele é um baque
imenso que, somado ao meu pico de estresse causado pela possível morte do
meu futuro marido, faz meus olhos lacrimejarem. Ele está vestido com uma
espécie de uniforme verde que não favorece sua beleza nem um pouco, há um
crachá de identificação pregado na roupa, com sua foto e nome, e seu cabelo
preto está escondido por baixo de uma touca azulada.
Marcho até ele com passos firmes e aponto o dedo para o seu nariz.
— Tem noção do quanto eu sofri na sua eliminação? — A esta altura,
nem me importo mais em manter a voz baixa. — De como foi difícil para
mim? De quantas vezes tentei ligar e fui ignorada? Esperei você aparecer no
casamento, dizendo que estava tudo bem, mas você não apareceu, e agora
Calebe está morto!
— Uma coisa não tem nada a ver com a outra, Maria Flor — Minha
irmã coloca a mão no meu ombro, tentando me acalmar.
— Calebe não está morto — Leonardo diz, naquele tom doce e
eloquente tão característico de sua personalidade. — Eu posso levá-la até ele,
mas o resto vai ter que esperar na sala de espera.
Ele olha por cima do meu ombro e faz uma expressão reprovadora
para o número de gente. Mas não deixo passar sua tentativa de sair impune.
— Por que não me ligou de volta? Por que não me atendeu e nem
retornou as minhas ligações? — questiono, sentindo meus ossos tremendo
por dentro.
Leonardo suspira e faz um sinal para a recepcionista, que ainda estava
de pé, com aquele olhar preocupado de "devo chamar a segurança?".
— Eu estava a caminho quando a ocorrência de Calebe chegou — ele
diz, baixo. — Eu ia chegar atrasado para o casamento, mas já tinha percebido
a grande estupidez que havia feito.
— Mentiroso. — Estreito meus olhos, desconfiada.
— Não é mentira. — Ao lado dele, um pouco atrás, vejo uma
enfermeira baixinha e magra. Seu rosto fica vermelho ao perceber tantos
olhares fixos nela, esperando por maiores explicações. — Ele realmente ia
para o casamento, mas como médico, fez um juramento e não podia deixar
um paciente.
— E você é…?
— Arabella — Leonardo a apresenta. — E Arabella, esta é Maria
Flor.
Por algum motivo, os olhos dela brilham.
— Deu para perceber, pelo vestido de noiva — sussurra para
Leonardo, dando uma risadinha tímida.
Ele sorri para ela antes de me encarar.
— Tem algo que você precisa saber — diz com cautela.
— Ah Deus! — Cubro meu rosto com o buquê. — Calebe morreu.
— Eu já falei que ele está vivíssimo! — Leonardo se exaspera. — Eu
quero dizer que sinto muito por ter sumido.
Abaixo meus olhos.
— Pensei que me odiasse.
— Nem se eu me esforçasse muito, conseguiria uma proeza assim. —
Leonardo segura meu rosto com uma mão e me induz a olha-lo. — Eu fiquei
com medo de ter me apaixonado, confundi nossa amizade com algo mais, e
acabei estragando tudo. Quero que seja feliz e sei que ele é o único que pode
lhe dar isso. E eu vou ser muito grato se puder ter a sua amizade de volta.
Sinto um peso enorme desaparecer dos meus ombros.
— Veja. — Mostro para ele o meu buquê e aponto para um botão de
rosa branca, no qual coloquei a moeda que ele me deu semanas atrás. —
Nunca deixei de ser sua amiga.
A feição de Leonardo varia entre surpreso e emocionado. Ele joga os
braços em volta de mim e me aperta em um abraço carinhoso que faz uma
peça do meu coração retornar para o seu devido lugar.
— Obrigado, querida.
— Calebe… — digo, temerosa. — Então ele está mesmo vivo?
Leonardo se afasta, um tanto constrangido por sermos o centro das
atenções e diz:
— Sim, ele está bem. Apenas uma costela quebrada e algumas
escoriações. Vai precisar de repouso por algumas semanas e medicação para
a dor, mas não corre risco algum. Fizemos todos os exames de checagem, e
não foi encontrada nenhuma outra lesão. Ele teve sorte. Vamos levá-la até
ele.
Por "vamos", no plural, acho que se refere a ele e Arabella.
— Temos uma autorização! — Olho para trás e Miguel está correndo
enquanto chacoalha um papel no alto. Ele se enfia no meio da minha família
e chega até nós. — Tenho um amigo que é primo do dono do hospital. Fiz as
ligações quando estávamos a caminho, ele só precisou assinar.
Leonardo pega a folha, duvidando de sua veracidade.
— O chefe do departamento…
— Assinou também — Miguel assegura, sorridente. Ele aponta para
um local no final da folha. — Bem aqui, está vendo?
— Tudo bem — Leonardo revira os olhos e suspira. — Venham
comigo.

***
Calebe abre os olhos assim que entramos.
Está deitado em uma maca alta, com o peito todo enfaixado e um
lençol cobrindo suas pernas. Minha alma meio que sai do corpo. Mesmo
sabendo que ele está bem — e respirando! — ainda é chocante ver alguém
que a gente ama em um quarto hospitalar vestido de múmia.
— Girassol? — pergunta, sua voz soa rouca e quebradiça, como se
tivesse comido areia. — Girassol, é você?
— Sim, sou eu.
Entro em seu campo de visão, emocionada, porém não surpresa, que
tenha me reconhecido sem ao menos me ver. Ele geme baixinho para se
inclinar e me olhar dos pés à cabeça.
— Porra, Violeta, seu vestido é… — Espero por um elogio, tipo
"lindo" ou "maravilhoso", mas então ele diz: — Bem fácil de tirar,
exatamente como eu imaginei.
Tento fazer uma expressão irritada, mas estou tão feliz, tão aliviada,
que só consigo sorrir e sorrir sem parar.
— Seu cérebro parece ótimo.
— Quem mais está aí? — Ele tenta se sentar, mas sua expressão se
transforma em puro sofrimento e eu o empurro de volta para os travesseiros.
— Sossega que eu só aguento um susto por vez. Todos vieram, estão
nos gravando.
Aproveitando a deixa, meus pais se aproximam da cama.
— Está bem mesmo, filho? — Meu pai pergunta, todo sério.
— Senhor Beto — Calebe o chama, sério. — Sabe a luz no fim do
túnel? Ela também pode ser um SUV de duzentos e quarenta e nove cavalos
com tração nas quatro rodas.
Meu pai gargalha sonoramente e bate em sua grande barriga.
— Melhor do que um trem, filho. Melhor do que um trem!
Todos os outros vão se revezando com cumprimentos e piadinhas. Até
Alice se emociona ao ver que Calebe está bem. De alguma forma,
conseguimos nos amontoar no pequeno espaço, mas apenas um dos
cinegrafista consegue permanecer dentro do quarto.
— Sinto muito pelo nosso casamento — ele diz, segurando minha
mão.
— Vamos nos casar agora — digo, do nada, decidindo naquele
milissegundo que hoje eu só saio desse hospital casada! — Da primeira vez
que tentamos, você foi parar em um motel sem querer e a gente se separou,
da segunda, você vai e sofre um acidente. Sinto muito, não estou disposta a
arriscar uma terceira tentativa. Quem sabe o que virá a seguir? Apocalipse
zumbi? Invasão alienígena? Vamos casar, e vamos casar hoje!
— Não é que eu não queria, Margarida, mas eu não consigo nem me
sentar, e estou pelado.
— Não ligo que esteja pelado, mas, se quiser, posso tirar o meu
vestido para casarmos em pé de igualdade.
— Nem pense, Malmequer — ele reclama, irritado, porque sabe
muito bem que posso casar nua na frente do Brasil inteiro se me der na telha.
Volto-me para o juiz de paz, um senhorzinho encolhido no canto.
— Você pode nos casar agora? — pergunto.
Ele pisca, engolindo em seco.
— Aqui, no hospital?
— Sim, onde mais seria? Nem precisa ser a cerimônia completa, pula
direto para a parte do sim e das alianças que tá tudo certo.
— Maria Flor — Miguel se aproxima. — Tem certeza disso?
— Tão certa quanto dois mais dois é quatro — garanto, eufórica.
Calebe, todo sorrisos, se deixa levar pela minha animação.
— Certo. — Miguel faz um sinal para a câmera e se posiciona ao meu
lado. — Tenho que perguntar, faz parte do protocolo do programa — explica.
Não sei do que está falando até que ele faz uma pose engraçada e questiona:
— Maria Flor, Calebe Ventura é o seu noivo ideal?
Ah!
É verdade. Eu tinha que escolher o Calebe antes da etapa do
casamento. Lanço um pedido de desculpas a João Guilherme, que nem se
preocupa em responder, apenas pisca um olho charmoso.
Olho ao redor, para todas as pessoas que, de alguma forma, fizeram
parte da minha história com Calebe, sobretudo os outros quatro homens que
aprendi a gostar e querer bem, com seus jeitos e personalidades apaixonantes.
E olho para Calebe, ali, deitado, com seu sorriso torto e olhos verdes,
encarando-me com todo o amor do mundo como se eu fosse o centro do seu
universo.
Sorrio e beijo sua boca na frente de todos, sem me importar, pois sei
que nos apoiam e sei que todos que assistirem também nos apoiarão.
Assim que me endireito, sem jamais soltar sua mão, eu começo a
dizer palavras que ecoam do meu coração:
— Eu tenho um estoque infinito de azar. Sou do tipo que complica
coisas simples e demora a admitir os próprios erros. Eu sei que sou uma
pessoa difícil e briguenta. Teimosia é o meu nome do meio. Mas eu tive sorte
em uma coisa, na mais importante de todas. — Viro o rosto para Calebe. —
No amor.
Respiro profundamente antes de continuar, organizando meus
sentimentos e pensamentos.
— Quando decidi participar do programa, meu coração estava partido.
E uma pessoa de coração partido faz quase qualquer coisa para juntar os
cacos e colá-los novamente. Eu sofri uma vez por amor e achei que não fosse
sobreviver. É assim que funciona. Dói quando é importante, se não doesse
perder, não seria amor.
Minha irmã solta um soluço e Maurício a abraça de lado,
confortando-a.
— Mas, como eu disse, tive muita sorte, porque estava sofrendo em
vão. E tive muita sorte porque um homem incrível me amava o bastante para
lutar por mim.
Busco Leonardo com o meu olhar e sou preenchida por aquela
felicidade que me faltava mais cedo, que estava me perturbando. Ao seu lado,
tímida em um canto, prestando atenção em tudo com deslumbre, está a
enfermeira.
— Todo mundo quer ser amado — digo. — E merecemos um amor
que nos aceite do jeito que somos, com nossos sonhos, nossas rotinas e
nossos planos. Porque o amor, sozinho, é só uma pequena fração de
felicidade, nós amamos pessoas, mas amamos as pequenas coisas do dia a dia
que nos fazem bem e que podemos compartilhar uns com os outros, como
dividir um café da manhã ou contar como foi o nosso dia de trabalho.
Leonardo sorri em um silêncio contemplativo enquanto me volto para
Bartolomeu.
— Eu tenho tanta sorte, porque posso amar sem medo enquanto ainda
vivemos em um mundo horrível onde o amor de muitos é julgado,
questionado e invalidado. Um privilégio quase injusto, eu diria. Mas, sabem
de uma coisa? Um cara de poucas palavras uma vez me disse que não tem
problema a gente ter esperanças de ficar ao lado de quem a gente ama. Na
época eu disse que tinha medo de me machucar, mas se não lutarmos pelo
nosso amor, quem lutará?
Bartolomeu e Gael dão as mãos, sorrindo um para o outro, e sinto o
aperto de Calebe também se intensificar, um lembrete de que está ao meu
lado (não que ele conseguisse sair dali no momento, de qualquer forma).
Olho, dessa vez, para Maurício, e não consigo segurar uma risada
baixa.
— Depois de tudo isso, é engraçado pensar que existem aqueles que
fogem do amor alegando não precisarem de algo assim, como se nunca amar
ninguém fosse uma conquista. Uma medalha de ouro. Bem, eu entendo esse
pensamento. O amor é assustador pra caramba e a gente nem sempre acha
que merece. Mas merecemos. Todo mundo merece.
Quase inconscientemente, Maurício olha de esguelha para minha irmã
e a aperta um pouco mais forte, fazendo-me sorrir ainda mais, se é que isso é
possível.
Depois, encaro João Guilherme, seu rosto bonito, as duas covinhas em
seu sorriso autêntico que já me é familiar.
— E também merecem uma segunda chance — emendo. — Segundas
chances não existem para replicar a primeira, elas existem para que possamos
seguir em frente. Amores que deram errado e não têm mais conserto não
representam todos os amores do mundo. Em geral, o amor é uma coisa boa, a
gente só tem que acreditar que ele cabe em nossas vidas.
João Guilherme olha para baixo e pousa a mão no próprio peito, onde
eu sei que está aquele anel de família.
Elevo minha voz:
— Enfim, eu tive sorte. Por que amo e sou amada, mas sou
eternamente grata a cada um de vocês — faço um movimento amplo com os
braços — que me ensinaram um pouquinho mais sobre o amor, para que eu
pudesse enxergá-lo bem debaixo do meu nariz.
Risadinhas se fazem ouvir pelo quarto.
— Amo você, minha Orquídea — Calebe sussurra em apoio, beijando
a minha mão.
— Então sim — eu digo, cheia desse sentimento que transborda de
mim para o mundo inteiro. Literalmente. — Eu amo Calebe Ventura, e ele é o

meu Noivo Ideal.


MARIA FLOR

Nós sempre teremos Paris, penso enquanto contemplo a esplêndida


vista da cidade luz através das janelas panorâmicas.
Trata-se de uma fala icônica dita pelo personagem Rick Blaine no
final do famoso filme Casablanca, quando ele se despede de sua amada ao
perceber que não poderiam ficar juntos, querendo dizer que aquela Paris onde
se amaram sempre existiria, que o amor sempre existiria, mesmo separados,

mesmo que nunca mais se vissem. Eu sei que a frase representa a eternidade,
a ideia de que a distância, o tempo ou as circunstâncias não importam. Que
alguns amores nunca acabam, mas se eternizam nas nossas lembranças.
Mas, que os adoradores e críticos do cinema não me ouçam, eu acho
um pouco triste. Lindo, é claro, porém muito triste.
Agora que finalmente tenho o amor em sua completude, a mísera
ideia de me despedir de Calebe para qualquer coisa já me deixa desolada.
Ergo minha câmera — não a profissional, mas aquela que ganhei de
presente de João Guilherme meses atrás — e coloco minha mão à frente da

lente, com a aliança de ouro em destaque e parte da rua de pedrinhas


assimétricas aparecendo ao fundo.
Faz quatro meses desde que nos casamos. O programa bancou os dez
dias da nossa lua de mel previstos no contrato, mas, como tivemos que

cumprir os compromissos de gravação para um episódio especial mostrando


nossa viagem, decidimos voltar assim que Calebe se organizasse no trabalho,
sem todo o estresse de câmeras em nosso encalço.
Não pretendemos ficar muito tempo. Agora que podemos colocar em
prática nossos planos de conhecer o mundo, sinto-me eufórica para estar
sempre em movimento. Mas tivemos que reajustar um pouco nossas
expectativas com relação ao nosso futuro, tanto por conta das academias,
como pelos meus novos objetivos — que envolvem uma exposição na mesma

galeria onde Calebe me levou durante o programa.


— Outra foto da aliança? — Calebe olha por cima do meu ombro.
Oh, droga. Realmente! Eu já devo ter o quê? Cinquenta fotos da
minha mão? Tenho que me controlar.
— Eu pretendia tirar uma foto da rua, mas comecei a pensar em você
e, quando dei por mim, já tinha tirado.
Calebe abre um grande sorriso e senta junto comigo no recamier
abaixo da janela. Ele está vestido com nada mais, nada menos, do que uma
cueca boxer de cor preta que favorece bastante seu corpo — aquela parte, em

especial.
— Então a culpa é minha?
Dou de ombros e descarto a foto sobre uma almofada, mais
interessada no meu marido.

— Onde você se enfiou? — Não perco tempo e me sento em seu colo,


vibrando com o brilho que acende em seus olhos ao perceber o que estou
usando por baixo do roupão: nada.
— Estava falando com o João Guilherme pelo celular. Ele queria
saber quando estaríamos de volta ao Brasil. Reclamou que deixei Ana Júlia
tomando conta da minha agenda e agora ela não tem tempo para se encontrar
com ele durante a semana.
— Ela não ia se mudar para o apartamento dele? — pergunto, curiosa.

Os dois nos surpreenderam quando assumiram o namoro três meses


depois do meu casamento com Calebe, já com planos de morarem juntos e
tudo.
João Guilherme me contou que mantiveram contato depois daquele
encontro inusitado no bar, quando se conheceram, e acabaram se tornando
amigos, mas só vieram a se envolver várias semanas mais tarde. Pelo que
fiquei sabendo, foi ele quem tomou a iniciativa quando descobriu que ela
estava tentando contratar um garoto de programa para resolver seu
probleminha trágico com sexo casual.

— Carlota não deixou — Calebe diz, colocando as mãos na minha


cintura.
— A cabra não deixou ela se mudar?
Sinto um arrepio quando seu polegar resvala em meu seio.

— A cabra não gosta dela. Estão trabalhando em uma aproximação


entre as duas. — Eu pensava que era azarada até conhecer Ana Júlia e sua
falta de sorte épica. — Os dois vão dar um jeito, não se preocupe. O
importante é que estão juntos e se gostam de verdade. Agora, chega de falar
deles.
Calebe beija meu pescoço e todos os assuntos se tornam
insignificantes. Meu corpo responde ao dele e me curvo para facilitar seu
acesso. Com a boca, ele toma seu tempo, explorando minha pele como se

fosse a primeira vez. Seus beijos são suaves e curtos, mas suas mãos me
agarram com ganância.
Sinto-o crescer abaixo de mim, movimento meus quadris, e Calebe
exibe um sorriso silencioso de aprovação contra a minha clavícula. Quando
estou prestes a me livrar do roupão, meu celular começa a tocar do outro lado
do quarto.
— Deixe — diz, concentrado em desbravar minhas pernas em busca
de um encaixe mais forte.
— Não posso. — Minha voz é um lamento. — Deve ser a Alice, ela

disse que ligaria antes do programa começar, só por garantia.


Calebe suspira.
— Ela acha que perderíamos a estreia?
— Caso não se lembre, estamos no meio da madrugada. — Dou um

selinho nele. — Cinco horas de diferença é bastante coisa.


Contrariado, Calebe me ajuda a sair de cima dele e tenho um
vislumbre de sua rigidez que quase me faz desistir de atender minha irmã,
mas o toque insistente para e recomeça, provando a determinação de Alice.
Vou até o meu celular e, ao ver que se trata de uma chamada de vídeo,
fecho o meu roupão antes de atender. A voz da minha irmã explode antes de
a imagem aparecer.
— Estão acordados? Já vai começar! Por que demorou tanto? Não

vai me dizer que estavam transando.


Calebe grita para ser ouvido:
— Estaríamos se não fosse por você!
— Que bom que eu pude estragar a sua felicidade — ela responde de
volta. Alguns hábitos nunca mudam. Alice e Calebe ainda agem como se
odiassem um ao outro, mas no fundo eu sei que eles se gostam.
Vejo uma silhueta masculina familiar passando ao fundo do vídeo e
sei que não se trata do nosso irmão, a menos que Pedro tenha descoberto
como crescer um metro desde que saímos do Brasil, sem falar nos músculos.

— Quem está aí? — sondo. Já sei a resposta, mas quero ouvir da boca
dela pelo prazer de expor os dois ao ridículo.
— Maurício veio almoçar.
Faço uma rápida conta matemática na minha mente e digo:

— Almoçar? São quase dez horas da noite aí no Brasil, Alice.


— Ele veio almoçar e ficou para a janta, acontece. — Ela joga o
cabelo por cima do ombro e sorri de modo travesso. — Combinamos de
assistir ao programa juntos.
De repente, Maurício invade o espaço da câmera, jogando um braço
ao redor dos ombros da minha irmã e puxando-a para perto dele, de modo
que ambos apareçam na tela.
— Oi, Florzinha, como estão as coisas? Já se arrependeu de ter

escolhido aquele idiota como marido?


Exponho um grande sorriso de zombaria.
— Só quando ele deixa a toalha molhada em cima da cama. Mas ele
compensa essa pequena falha sempre que aparece sem a toalha.
Maurício faz uma careta de nojo e Alice gargalha ao seu lado.
— Muita informação — resmunga.
— Está animado para se ver na televisão? — pergunto a Maurício.
Calebe passeia pelo quarto enquanto eu converso com eles,
distraindo-me o tempo todo com seu corpo sarado e aquela cueca apertada.

Ele ajeita os travesseiros sobre a cama e liga a televisão no volume baixo. Por
sorte, conseguimos sintonizar na emissora brasileira, já que o hotel possui um
serviço de TV bem completo, para atender hóspedes de todos os lugares do
mundo.

— Claro que está animado — Alice responde no lugar dele. — É um


exibido. Desde que anunciaram os participantes, ele começou a andar a pé
só para ser reconhecido na rua, acredita?
— Ela só está com ciúmes. — Ele a beija no rosto e Alice sorri.
Ouvimos a voz do meu pai ecoando em um ponto distante da ligação,
chamando por Maurício. — Tenho que ir, nos falamos depois.
Sorrio para ele, que sai do enquadramento da câmera, indo
provavelmente para a sala onde todos já devem estar reunidos.

— Quer dizer que vocês agora visitam as casas dos pais um do outro,
declaram seus sentimentos a quem quiser escutar e não ficam com mais
ninguém. — Arqueio uma sobrancelha para minha irmã. — Maurício já sabe
que estão namorando, Alice?
Minha irmã sorri como uma harpia.
— Ele vai saber em algum momento. Agora, chega de conversa,
faltam dez minutos, a novela está acabando e o programa começa logo a
seguir.
Sou obrigada a rir. Ela fisgou Maurício de jeito, mas também foi

fisgada no processo. Dois cretinos de carteirinha completamente rendidos um


pelo outro.
— Tudo bem, mande um beijo a todos e diga que estou com saudades.
— Você está em Paris, Maria Flor! Quem sente saudades dos pais em

Paris?
Encerro a ligação dando risada. Eu sou doida, mas minha irmã é mil
vezes mais.
Calebe já está deitado com os braços atrás da cabeça, o abdômen
flexionado e as pernas abertas. Aquele volume protuberante continua o
mesmo de quando desmontei dele para atender Alice. É um provocador filho
da mãe!
— Quem falta nos atrapalhar? — pergunta e, com um timing perfeito,

recebo uma mensagem no celular que continua em minha mão. É uma foto
que me faz sorrir. — O que foi?
Subo na cama e rastejo até ele. Deito-me em seu ombro e mostro a
mensagem.
É uma selfie de Leonardo e Arabella. Estão abraçados e, por um
milagre, nenhum dos dois está vestido com roupas hospitalares. Ela é bem
menor do que ele, com seu rosto delicado de porcelana e os cabelos dourados
como raios solares. Já nos encontramos algumas vezes e acabamos nos
tornando amigas, já que ela é uma grande fã do programa e queria saber todos

os detalhes da minha participação.


"Já estamos prontos!", diz sua mensagem.
Abro a câmera do Whatsapp e tiro uma foto de mim e Calebe
abraçados na cama.

"Tudo certo por aqui também", respondo.


De tudo o que aconteceu depois do casamento, a melhor notícia de
todas foi o namoro de Leonardo e Arabella. Gosto de pensar que os dois
estavam destinados, assim como Calebe e eu. Ambos trabalham no mesmo
hospital, e ela é fanática pelo programa. Leonardo às vezes brinca, dizendo
que tem medo de ela acabar se inscrevendo só pela experiência, e que ele
teria que dar uma de Calebe para resgatá-la (o que, na minha opinião, a deixa
mais tentada a fazer isso).

— Calebe, já pode colocar suas mãos em mim agora — informo,


jogando o celular sobre o colchão, ao ver que ele ainda não tomou a iniciativa
de continuar de onde paramos.
— Não — diz, em tom emburrado. — Bartolomeu ainda não ligou e
nem mandou mensagem, vamos só esperar para não sermos interrompidos de
novo.
— Ele não vai. — Coloco minha mão em seu peito e deposito um
beijo modesto em sua mandíbula quadrada. — Bartolomeu está muito
ocupado agora que foi promovido a vice-presidente. Parece que a relação dele

com o pai está melhorando aos poucos desde que ele e Gael oficializaram o
casamento. O velho teve que engolir os dois de qualquer jeito já que a
diretoria votou a favor da promoção de Bartô. Depois de tudo o que o velho
fez eles passarem para ficarem juntos, eu acho muito bem feito!

— Caramba, não sabia que ele tinha sido promovido. Me lembre de


comemorarmos juntos quando a gente voltar.
É um alívio que tenhamos todos nos tornado amigos tão próximos,
que nenhum ressentimento tenha superado o carinho que temos uns com os
outros. Os cinco me mudaram de maneiras diferentes e sou grata por tê-los
conhecido. Se pudesse voltar no tempo, apesar de tudo, dos meus erros e
inseguranças, de como eu e Calebe quase nos matamos no processo, eu não
mudaria nada.

O que importa na vida não são os caminhos que percorremos, mas as


pessoas que nos ajudam durante a caminhada e permanecem em nossos
corações mesmo depois de cruzarmos a linha de chegada.
— Tudo bem, agora, você pode me tocar? — peço, já retirando meu
roupão.
Os olhos de Calebe ficam turvos enquanto assiste o tecido de algodão
deslizar pelo meu corpo e se amontoar no colchão.
— O programa vai começar, Margarida — avisa, mas não parece
compelido a me impedir.

— Já sei o que vai acontecer. — Passo uma perna por cima dele e me
sento, completamente nua. — Eu estava lá, lembra?
Contraio-me contra sua pélvis, rebolando lentamente. Calebe passa a
língua sobre os lábios, inebriado, e segura meus quadris. Meus cabelos estão

soltos e armados, uma nuvem de cachos escorrendo pelas minhas costas e


braços.
— Você é linda. — Sua voz é quase penosa, como se os seus
sentimentos fossem tão grandes e fortes que doessem. — Linda demais.
Calebe troca de posição comigo, deitando-me na cama e se
posicionando sobre mim. Ele beija a minha barriga primeiro, as costelas,
depois sobe e prova meus seios, um de cada vez, com suas mãos agarradas às
minhas de cada lado do meu corpo.

Vejo de relance a abertura do programa sendo exibida na televisão,


mas nem passa pela minha mente parar com o que estamos fazendo. Calebe
se livra de sua última peça de roupa e me cobre com o seu corpo um instante
depois.
A voz de Miguel Castro preenche o nosso quarto, dizendo as mesmas
primeiras palavras que eu ouvi dele no palco do estúdio quando tudo
começou:
— Uma mulher com o coração partido nem sempre está em busca de
alguém que cole os cacos…

Rimos juntos enquanto nos beijamos e rolamos sobre os lençóis. Eu o


aperto com força, registrando todos os pontos dos nossos corpos que se
encaixam perfeitamente: pernas entrelaçadas, braços em sintonia, bocas e
línguas presas em uma dança eterna. Às vezes, é difícil de acreditar que ele

seja real, que nós sejamos reais juntos.


— Amo você, minha Orquídea — Calebe diz, como se lesse os meus
pensamentos.
Encaro suas pupilas expandidas sobre o verde esmeraldino de suas íris
e me afogo na emoção crescente dentro do meu coração.
— Também amo você — sussurro com todo o meu ser, sorrindo no
ápice da minha felicidade. — Amo você, meu noivo ideal.
Assim que nos unimos e somos transportados para aquele lugar

secreto de nossos corpos e corações, entrego-me a todas as versões ideais de


Calebe.
Meu amigo ideal.
Meu namorado ideal.
Meu noivo ideal.
Meu marido ideal.
Meu amor ideal.
FIM!
Chego ao fim de mais um livro com uma sensação inestimável
sensação de dever cumprido.
O Noivo Ideal esteve comigo ao longo dos últimos meses e, por causa
dele, tive pessoas ainda mais especiais ao meu lado que de uma forma ou de
outra se tornaram parte desta história junto comigo.
Agradeço ao meu marido, Rodolfo, pelo apoio de todos os dias. Por
estar presente quando eu não posso estar e ser o meu amor ideal. Agradeço a
Clara e Luiz Felipe, minhas maiores motivações.
Agradeço com todo o meu amor, a Nathalia e Lais, hoje, minhas duas
mãos direitas. Esse livro não existiria sem vocês, meninas. O Noivo é uma
conquista nossa. Obrigada por acreditaram tanto em mim.
Um agradecimento às minhas amigas autoras, Sara Fidelis, Cássia
Carducci, Clyra Alves e Natalia Saj, por simplesmente existirem.
Agradeço às minhas parceiras literárias, que foram tão importantes
para mim no decorrer do ano de 2021 e também aos vários IGs que se
dedicam ao lindo trabalho de produzir conteúdo literário no cenário nacional,
e que me apoiam sempre. Em especial:

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@contandoeuconto @lendocomlu @pipocaliteraria_ @cafepipocaechocolate
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@leiturasdacarla @dica_sdelivros @jornal__literario @estantedabe

E agradeço principalmente às minhas LEITORAS, que estão sempre


comigo e esperam ansiosamente por cada uma das minhas histórias. Vocês
são tudo! #AMOFORTE
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