Breve Histórico Legislativo Das Ações Coletivas: Capítulo I

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 14

Capítulo I

Breve histórico
legislativo das ações coletivas

As ações coletivas iniciaram sua história moderna no sistema processual


brasileiro com a promulgação da Lei da Ação Popular (Lei 4717/1965),
que se tornou o primeiro instrumento sistemático voltado à tutela de
alguns interesses coletivos em juízo, em especial o patrimônio público.
Nesse momento, duas foram as grandes alterações ocorridas em âmbito
processual: a legitimação ativa e a coisa julgada. Isso porque, o artigo 1º
legitimou o cidadão a defender, em nome próprio, os direitos perten-
centes de toda a população, através da técnica chamada substituição
processual. Já o artigo 18 ampliou a qualidade da coisa julgada dando-
lhe efeito erga omnes. Se, porém, a ação fosse julgada improcedente
por deficiência (ou insuficiência) de provas, qualquer cidadão teria a
faculdade de propor novamente a ação, desde que fundada em nova
prova. Esta técnica foi reconhecida posteriormente com o nome de coi-
sa julgada secundum eventum probationis.
Outra lei importante no tocante às ações coletivas foi a Lei da Política
Nacional do Meio Ambiente (Lei 6938/1981), prevendo a responsabi-
lidade civil para as agentes poluidores do meio ambiente, e atribuindo
ao Ministério Público a legitimidade para postular ação em defesa da
natureza. O art. 14, § 1º expressamente reconheceu a legitimação do
Ministério Público para ajuizar a ação de responsabilidade civil por da-
nos ao meio ambiente.
A doutrina1, justamente em razão dessa evolução gradual, costuma
identificar as fases evolutivas em três momentos principais: 1. Primeira
fase ou “fase da absoluta predominância individualista da tutela jurí-
dica”, inaugurada com o Código Civil de 1916 que determinou o fim das
ações populares como ações coletivas no Brasil, relegando o direito de
ação apenas àqueles que possuíssem interesse próprio ou de sua família
e deixando as questões atinentes aos interesses das coletividades ao di-
reito penal e ao direito administrativo; 2. Segunda fase ou “fase da pro-

1. ALMEIDA, Gregório Assagra. Direito Material Coletivo: Superação da Summa Divisio Direito
Público e Direito Privado por uma nova Summa Divisio constitucionalizada. Belo Horizonte:
Del Rey, 2008, p. 422-428.

13
Hermes Zaneti Jr. e Leonardo de Medeiros Garcia

teção fragmentária dos direitos transindividuais” ou “fase da proteção


taxativa dos direitos massificados”, na qual passaram a serem tuteladas
algumas espécies de direitos coletivos, predominando a dimensão in-
dividualista dos direitos, de sua tutela e do processo civil, como regra.
Assim a tutela do patrimônio público (conceito ampliado em 1977 para
abranger o patrimônio imaterial, através da tutela de bens e direitos,
tais como, os de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turís-
tico) através da decretação de nulidade ou anulação dos atos lesivos,
por meio da ação popular (Constituições de 1934 e 1946, Lei 4.717/65),
responsabilidade civil por dano ambiental (art. 14, §1º da Lei 6.938/81,
“O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para pro-
por ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao
meio ambiente.”), meio ambiente, consumidor, bens e direitos de valor
artístico, histórico, estético, turístico ou paisagístico, tendo sido vetado,
à época, o inc. IV que ampliava a ação para “qualquer outro interesse
difuso”, só por isso a ACP nasceu manietada pela noção de fragmen-
tariedade e taxatividade.2; 3. Terceira fase ou “fase da tutela jurídica
integral, irrestrita, ampla” (também referida como “tutela jurídica co-
letiva holística”), iniciada com a CF/88 que reconheceu expressamente
os direitos e deveres coletivos como direitos fundamentais (Tít. II, Cap.
I), garantindo o acesso à justiça e a inafastabilidade da tutela coletiva
(art. 5º, XXXV da CF/88), e o devido processo legal também aos direi-
tos coletivos (art. 5º, LV da CF/88), ampliando a tutela para “outros os
direitos e interesses difusos e coletivos” e com isto superando a antiga
taxatividade material (art. 129, III), ao mesmo tempo que garante o prin-
cípio da legitimação adequada com o reconhecimento da legitimidade
concorrente e pluralista (art. 129, § 1º da CF/88). Como conquistas pro-

2. Próximo, afirma Assagra: “Todavia, como os sistemas implantado inicialmente pela LACP
(1985) era o da taxatividade da tutela jurisdicional coletiva, pois o seu art. 1º arrolava
taxativamente quais direitos ou interesses transindividuais poderiam ser objeto material
da ação civil pública, a LACP (Lei n. 7.347/85) encontra-se inserida nessa segunda fase da
tutela jurídica coletiva fragmentária e taxativa” (op. cit., p. 425). A única observação rele-
vante que fazemos é que do projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional constava a
norma de encerramento “outros interesses difusos”, vetada pelo Presidente da República
José Sarney, com apoio do Min. da Justiça Fernando Lyra, sob o argumento de que a se-
gurança jurídica e as incertezas doutrinárias à respeito assim determinavam, sendo que,
nas próprias letras do veto “eventuais hipóteses rebeldes à previsão do legislador, mas
ditadas pela complexidade da vida social, merecerão a oportuna disciplinação legislativa.”
Confirma-se, assim, que a lei se insere no período ou fase da tutela fragmentada e taxativa,
mas discorda-se, dessarte, que tenha sido essa a vontade do legislador, à época, já imbuído
da missão constitucional de refundação da nossa democracia, como se verá.

14
Breve histórico legislativo das ações coletivas

cessuais a Constituição reconheceu a ACP e a legitimação do Ministério


Público, previu o mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX), o man-
dado de injunção (art. 5, LXXI, que poderá ser individual ou coletivo),
a ampliação do objeto da ação popular para abranger também o meio
ambiente e a moralidade administrativa como bens jurídicos tuteláveis,
a representação processual para as entidades associativas (art. 5º, XXI)
e a substituição processual para os sindicatos (art. 8º, III), a legitima-
ção processual aos índios, suas comunidades e organizações com inter-
venção obrigatória do Ministério Público em todos os atos do processo
(art. 232). As garantias não se restringem ao processo, mas também se
estendem ao direito material, como determinam vários dos incisos do
art. 5º, ressaltando-se o que prevê a tutela do direito fundamental dos
consumidores, inc. XXXII, inclusive com a edição de código, que veio a
ser a Lei 8.078/90, o art. 6º, que trata dos direitos sociais, progressi-
vamente ampliados por emendas constitucionais, como a que prevê o
direito fundamental à moradia (EC nº 26/2000), e ainda, exemplifica-
tivamente, os arts. 14/16, 196/200, 201/202, 203/204, 205/217, 225,
226/230 E 231/232. Várias leis seguiram essa orientação constitucional,
disciplinando e positivando direitos materiais e processuais coletivos.
Todavia, foi com o surgimento da Lei da Ação Civil Pública – LACP (Lei
7347/1985), que a tutela dos direitos coletivos passou a ser difundida
e ter sua importância reconhecida. Assim, a LACP incorporou ao orde-
namento jurídico institutos processuais coletivos como a extensão da
legitimidade ativa a vários órgãos, pessoas, entidades ou associações
(art. 5º); previu a possibilidade de instauração do inquérito civil pelo Mi-
nistério Público, destinado à colheita de elementos para a propositura
responsável da ação civil pública, funcionando também como importan-
te instrumento facilitador de conciliação extrajudicial. Porém, a LACP
restringiu a utilização da ACP, no art. 1º, à defesa do meio– ambiente
(inciso I), do consumidor (inciso II), dos bens e direitos de valor artístico,
estético, histórico, turístico e paisagístico (inciso III).3
A ação civil pública só veio a ser ampliada com a Constituição de 1988,
determinando, definitivamente, um direito fundamental ao processo
coletivo. Com efeito, o art. 129, III da CF previu a possibilidade da ACP

3. Posteriormente foram inseridos os incisos IV “a qualquer outro interesse difuso ou coletivo”


(Incluído pela Lei nº 8.078 de 1990); V “por infração da ordem econômica;” (Redação dada
pela Lei nº 12.529, de 2011); VI “à ordem urbanística.” (Incluído pela Medida provisória nº
2.180-35, de 2001)

15
Hermes Zaneti Jr. e Leonardo de Medeiros Garcia

para proteção “de outros interesses difusos e coletivos”4. Não bastas-


se, previu uma série de ações constitucionais para a tutela dos direitos
fundamentais coletivos materiais, tais como o mandado de segurança
coletivo, o mandado de injunção e a ação popular.
Finalmente, a promulgação do Código de Defesa do Consumidor – CDC,
em 1990, trouxe regras específicas e inovadoras para a tramitação dos
processos coletivos. Estabeleceu os conceitos de direitos difusos, coleti-
vos stricto sensu e individuais homogêneos, fato que não havia sido feito
por nenhuma outra legislação até então, procurando dirimir as dúvidas
com relação ao tema, inclusive em sede doutrinária, bem como alterou
profundamente a LACP, criando um microssistema de tutela coletiva e
inovando com institutos como o compromisso de ajustamento de con-
duta às exigências legais (TAC, art. 5º., § 6º da LACP) e a possibilidade de
litisconsórcio entre os Ministério Públicos (art. 5º, § 5º da LACP).
Sobre tais inovações introduzidas pelo CDC, destacamos:
a) a possibilidade de determinar a competência pelo domicílio do autor
consumidor (art. 101,I);
b) a vedação da denunciação à lide e um novo tipo de chamamento ao
processo (art. 88 e 101, II);
c) a possibilidade de o consumidor valer-se, na defesa dos seus direi-
tos, de qualquer ação cabível (art. 83);
d) a tutela específica em preferência à tutela do equivalente em dinhei-
ro (art. 84), note-se que à época ainda não existia o art. 461 do CPC
com a atual redação;
e) a extensão subjetiva da coisa julgada em exclusivo benefício das pre-
tensões individuais (art. 103);
f) regras de legitimação (art. 82) e de dispensa de honorários advocatí-
cios (art. 87) específicos para as ações coletivas e aperfeiçoadas em
relação aos sistemas anteriores;
g) regulamentação da litispendência entre a ação coletiva e a ação indi-
vidual (art. 104);
h) alteração e ampliação da tutela da Lei 7347/85 (LACP), harmonizan-
do-a com o sistema do CDC (arts. 109 até 117), criando o microssis-
tema do processo coletivo.

4. No concurso da Defensoria Pública/MA – 2011 – CESPE, foi considerada ERRADA a seguinte


afirmativa: “A ação civil pública, não prevista na CF, é garantida em preceito normativo
infralegal.”

16
Capítulo II
Microssistema Processual Coletivo

Os sistemas processuais do CDC e da LACP foram interligados, estabe-


lecendo-se, assim, um microssistema processual coletivo, sendo aplicá-
veis, reciprocamente, a um e ao outro, conforme os artigos 90 do CDC e
21 da LACP (este último introduzido pelo artigo 117 do CDC).5 Mas não
somente, também todas as demais leis que tratam dos direitos coleti-
vos materiais e estabelecem regras processuais passam a integrar este
microssistema, porque estas normas, unidas pelos princípios e lógica
jurídica comum, não-individualista, se interpenetram e subsidiam.
Assim, considerado um microssistema processual coletivo, o Título III
do CDC deve ser aplicado, no que for compatível, à ação popular, à ação
de improbidade administrativa, a ação civil pública e ao mandado de
segurança coletivo. Antônio Gidi, sobre o novo enfoque dado às ações
coletivas, disciplina que “a parte processual coletiva do CDC, fica sendo,
a partir da entrada em vigor do Código, o ordenamento processual civil
coletivo de caráter geral, devendo ser aplicado a todas as ações coleti-
vas em defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêne-
os. Seria, por assim dizer, um Código de Processo Civil Coletivo, como
ordenamento processual geral.”6
Interessante lembrar o quanto afirmado por Rodrigo Mazzei sobre o as-
sunto: o microssistema processual coletivo não comportaria somente o
Título III do CDC e a LACP. Assim, entende o jurista que “a concepção do
microssistema jurídico coletivo deve ser ampla, a fim de que o mesmo
seja composto não apenas do CDC e da LACP, mas de todos os corpos
legislativos inerentes ao direito coletivo, razão pela qual o diploma que
compõe o microssistema é apto a nutrir carência regulativa das demais
normas, pois, unidas, formam sistema especialíssimo.”7

5. Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. chegam, inclusive, a tratar o Título III do CDC como
um verdadeiro “Código Brasileiro de Processos Coletivos” e um “ordenamento processual
geral” para a tutela coletiva.
6. GIDI, Antônio. Coisa Julgada e Litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995,
p.77.
7. MAZZEI, Rodrigo. “A ação popular e o microssistema da tutela coletiva.”. In: Luiz Manoel
Gomes Júnior; Ronaldo Fenelon Santos Filho (Coords.) – Ação Popular – Aspectos relevantes

17
Hermes Zaneti Jr. e Leonardo de Medeiros Garcia

A jurisprudência recente do STJ também aponta nessa direção:


“A lei de improbidade administrativa, juntamente com a lei da ação
civil pública, da ação popular, do mandado de segurança coletivo,
do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e do
Adolescente e do Idoso, compõem um microssistema de tutela dos
interesses transindividuais e sob esse enfoque interdisciplinar, inter-
penetram-se e subsidiam-se.” (STJ, Resp 510.150/MA, Rel. Min. Luiz
Fux, DJ. 29.03.2004).
Já com relação à aplicação do CPC às ações coletivas, Rodrigo Mazzei
doutrina que “o CPC terá aplicação somente se não houver solução legal
nas regulações que estão disponíveis dentro do microssistema coletivo,
que, frise-se, é formado por um conjunto de diplomas especiais com o
mesmo escopo (tutela de massa)” Conclui seu entendimento expondo
que “o CPC será residual e não imediatamente subsidiário, pois, veri-
ficada a omissão no diploma coletivo especial, o intérprete, antes de
angariar solução na codificação processual, ressalta-se, de índole indi-
vidual, deverá buscar os ditames constantes dentro do microssistema
coletivo.”8Interessante o posicionamento exposto acima, com o qual
concordamos, pois o CPC foi criado e desenvolvido para a tutela dos di-
reitos individuais, ao passo que a utilização de regras processuais aos di-
reitos coletivos dependem de princípios e regras próprias, que possuem
a mesma ratio, ou seja, normas processuais inseridas em diplomas que
também disciplinam direitos coletivos.
Como exemplo da utilização do CPC de maneira apenas residual, esgo-
tada a análise das normas que compõem o microssistema coletivo, veja
decisão do STJ:
“ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. IMPROBIDADE ADMINISTRA-
TIVA. LITISCONSORTES. PRAZO EM DOBRO PARA APRESENTAÇÃO DE
DEFESA PRÉVIA. AUSÊNCIA DE PREVISÃO NA LIA. UTILIZAÇÃO DOS
INSTITUTOS E MECANISMOS DAS NORMAS QUE COMPÕEM O MI-
CROSSISTEMA DE TUTELA COLETIVA. ART. 191 DO CPC. APLICABILI-
DADE. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. 1. Os arts. 21 da Lei da
Ação Civil Pública e 90 do CDC, como normas de envio, possibilita-
ram o surgimento do denominado Microssistema ou Minissistema de

e controvertidos. São Paulo: RCS, 2006.


8. MAZZEI, Rodrigo. “A ação popular e o microssistema da tutela coletiva.”. In: Luiz Manoel
Gomes Júnior; Ronaldo Fenelon Santos Filho (Coords.) – Ação Popular – Aspectos relevantes
e controvertidos. São Paulo: RCS, 2006.

18
Microssistema Processual Coletivo

proteção dos interesses ou direitos coletivos amplo senso, no qual se


comunicam outras normas, como o Estatuto do Idoso e o da Criança
e do Adolescente, a Lei da Ação Popular, a Lei de Improbidade Admi-
nistrativa e outras que visam tutelar direitos dessa natureza, de forma
que os instrumentos e institutos podem ser utilizados para “propiciar
sua adequada e efetiva tutela” (art. 83 do CDC). 2. A Lei de Improbi-
dade Administrativa estabelece prazo de 15 dias para a apresentação
de defesa prévia, sem, contudo, prever a hipótese de existência de
litisconsortes. Assim, tendo em vista a ausência de norma específica
e existindo litisconsortes com patronos diferentes, deve ser aplicada
a regra do art. 191 do CPC, contando-se o prazo para apresentação
de defesa prévia em dobro, sob pena de violação aos princípios do
devido processo legal e da ampla defesa. 3. Recurso especial não co-
nhecido.” (STJ, REsp 1221254/RJ, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima,
Primeira Turma, julgado em 05/06/2012, DJe 13/06/2012)
Recentemente, um caso julgado pelo STJ ilustra bem a ideia do micros-
sistema. O Ministério Público ajuizou ACP visando reparar o patrimônio
público. A ACP foi extinta com resolução do mérito em virtude do re-
conhecimento da prescrição com a condenação do ente público à R$
5.000,00 de honorários advocatícios. Como o valor da condenação foi
inferior a 60 salários mínimos, o TJSP não reconheceu da remessa ne-
cessária em virtude do art. 475, §2º do CPC. O Ministério Público recor-
reu do acórdão alegando que embora na Lei da Ação Civil Pública não
haja regramento específico sobre a remessa necessária, na Lei da Ação
Popular há (art. 19) e nesta lei não há nenhum requisito que limite a
remessa necessária. Isto porque a primeira parte do dispositivo legal
em tela disciplina que “A sentença que concluir pela carência ou pela
improcedência da ação está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não pro-
duzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal”. Assim, como
há no microssistema uma lei que regula o procedimento da remessa
necessária, não poderia ser utilizado o CPC, uma vez que este possui
caráter individualista.
Assim, o STJ, acolhendo os argumentos do MP, entendeu que embora
o art. 19 refira-se imediatamente à ação popular, tem seu âmbito de
aplicação estendido às ações civis públicas diante do microssistema pro-
cessual da tutela coletiva, de maneira que as sentenças de improcedên-
cia devem se sujeitar indistintamente à remessa necessária. Importante
notar que tal regra decorre da presença forte do interesse público pri-
mário nas ações coletivas, como um dos elementos caracterizadores do
modelo brasileiro de processo coletivo.

19
Hermes Zaneti Jr. e Leonardo de Medeiros Garcia

Segue informativo publicado sobre o julgamento:


Informativo nº 0395 AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REMESSA NECESSÁRIA.
Na ausência de dispositivo sobre remessa oficial na Lei da Ação Civil
Pública (Lei n. 7.347/1985), busca-se norma de integração dentro do
microssistema da tutela coletiva, aplicando-se, por analogia, o art. 19
da Lei n. 4.717/1965. Embora essa lei refira-se à ação popular, tem
sua aplicação nas ações civis públicas, devido a serem assemelhadas
as funções a que se destinam (a proteção do patrimônio público e do
microssistema processual da tutela coletiva), de maneira que as sen-
tenças de improcedência devem sujeitar-se indistintamente à remessa
necessária. De tal sorte, a sentença de improcedência, quando pro-
posta a ação pelo ente de Direito Público lesado, reclama incidência
do art. 475 do CPC, sujeitando-se ao duplo grau obrigatório de juris-
dição. Ocorre o mesmo quando a ação for proposta pelo Ministério
Público ou pelas associações, incidindo, dessa feita, a regra do art. 19
da Lei da Ação Popular, uma vez que, por agirem os legitimados em
defesa do patrimônio público, é possível entender que a sentença, na
hipótese, foi proferida contra a União, estado ou município, mesmo
que tais entes tenham contestado o pedido inicial. Com esse enten-
dimento, a Turma deu provimento ao recurso do Ministério Público,
concluindo ser indispensável o reexame da sentença que concluir pela
improcedência ou carência da ação civil pública de reparação de da-
nos ao erário, independentemente do valor dado à causa ou mesmo
da condenação. REsp 1.108.542-SC, Rel. Min. Castro Meira, julgado
em 19/5/2009.

→ Aplicação em concursos
• TJ-CE - Juiz de Direito Substituto-CE/2012 – CESPE
O sistema de proteção dos interesses individuais homogêneos, coletivos e
difusos integra um conjunto de leis, entre as quais se destacam o CDC (Lei
n.º 8.078/1990), a lei que dispõe sobre a ação popular (Lei n.º 4.717/1965)
e a que dispõe sobre a ação civil pública (Lei n.º 7.347/1985). Consideran-
do essas normas e o entendimento do STJ, assinale a opção correta.
B) Por aplicação analógica de norma prevista na Lei da Ação Popular, as sen-
tenças de improcedência de ação civil pública sujeitam-se indistintamente
ao reexame necessário.
Resposta: A afirmativa está correta.

Interessante exemplo da intercambiaridade entre os diplomas que tu-


telam direitos coletivos é citado por Fredie Didier Jr e Hermes Zaneti Jr
ao apontar as três situações capazes de demonstrar a unidade de tra-

20
Microssistema Processual Coletivo

tamento, aplicando conjuntamente a Lei de Ação Civil Pública (LACP), o


Código de Defesa do Consumidor (CDC) e a Lei de Ação Popular (LAP):
“a) efeitos em que apelação é recebida nos processos coletivos (art.
14 da LACP)
b) conceito de direitos coletivos lato sensu (direitos difusos, coletivos
stricto sensu e individuais homogêneos – art. 81 do CDC)
c) possibilidade de execução por desconto em folha de pagamento
(art. 14, § 3º da LAP)”9
Finalmente, insta salientar que estão em fase de elaboração reformas
ao Código de Defesa do Consumidor, inclusive no que tange aos Proces-
sos Coletivos10, o qual irá alterar, por consequência, muitas normas do
microssistema dos processos coletivos no Brasil. Esta discussão já fora
veiculada através de projeto de lei no Congresso Nacional, arquivado
pela Comissão de Constituição e Justiça. Não obstante, os avanços do
debate teórico ensejador dos anteprojetos poderão ter reflexos na prá-
tica independentemente de sua aprovação.

9. DIDIER, Fredie. ZANETI, Hermes. Curso de Direito Processual Civil – Processo Coletivo.
Salvador: Jus Podivm. 2007. p. 53.
10. As alterações propostas por um Código Brasileiro de Processos Coletivos estão tempora-
riamente suspensas. Para maior análise dos projetos de Código de Processos Coletivos,
verificar DIDIER, Fredie. ZANETI, Hermes. Curso de Direito Processual Civil – Processo
Coletivo. Salvador: Jus Podivm. 2007.

21
Capítulo III
Princípios do Processo Coletivo

Com base nas lições de Grégorio Assagra de Almeida11, Fredie Didier Jr e


Hermes Zaneti Jr, destacamos os seguintes princípios coletivos:
1. Princípio do interesse jurisdicional no conhecimento do mérito do pro-
cesso coletivo.
O juiz deve buscar facilitar o acesso à Justiça, superando vícios processu-
ais, pois as ações coletivas são ações de natureza social. Sob a luz desse
princípio, deve o Judiciário flexibilizar os requisitos de admissibilidade
processual para enfrentar o mérito do processo coletivo e, assim, legiti-
mar a sua função social, que é pacificar com justiça, na busca da efetiva-
ção dos valores democráticos. Exemplo desse princípio ocorre quando
o juiz, ao invés de extinguir a ação coletiva por ilegitimidade da parte
autora, publica editais convidando outros legitimados para assumirem
o pólo ativo da ação.
2. Princípio da máxima prioridade da tutela jurisdicional coletiva.
Reconhecendo que “sempre existirá interesse social na tutela coletiva”,
o princípio em foco determina a prioridade de tratamento de feitos des-
tinados a tal espécie de tutela. Isso se justifica, inclusive, pela aplicação
da regra principiológica de que o interesse social geralmente prepon-
dera sobre o individual. A prioridade se justifica, pois, no julgamento
dos conflitos coletivos se possibilita dirimir, em um único processo e em
uma única decisão, uma série de litígios repetitivos, grandes conflitos
coletivos ou vários conflitos individuais entrelaçados pela homogenei-
dade de fato ou de direito que justifique, seja por força de economia
processual, seja para evitar decisões conflitantes, a tutela jurisdicional
coletiva. Mesmo uma ação coletiva “pura”, ou seja, a tutela dos direitos
essencialmente coletivos (direitos difusos e coletivos em sentido estri-

11. Para uma abordagem mais completa desses princípios, conferir a obra de Gregório Assagra
de Almeida: Direito Processual Coletivo Brasileiro: um novo ramo do direito processual
(princípios, regras interpretativas e problemática da sua interpretação e aplicação). São
Paulo: Saraiva, 2003.

23
Hermes Zaneti Jr. e Leonardo de Medeiros Garcia

to) irá, através do transporte in utlibus, beneficiar os titulares de direitos


individuais.
Isso não importa, no entanto, deixar de reconhecer a dignidade dos di-
reitos individuais e a preferência destes no modelo de processo coletivo
brasileiro. Alguns exemplos podem esclarecer o ponto. A coisa julgada
não prejudicará aos titulares de direitos individuais quando a ação co-
letiva for julgada improcedente, evitando-se apenas o novo processo
coletivo, art. 103 do CDC. Ao titular de direito individual será sempre
possível optar por uma ação individual, nos termos do art. 104 do CDC,
excluindo-se da ação coletiva. Entre as execuções individuais e as co-
letivas preponderam as primeiras, como forma de atender também a
este princípio, art. 99 do CDC, inclusive sendo sustadas as execuções nas
ações coletivas enquanto pendente recursos nos processos individuais.
Isto se explica porque as gerações de direitos fundamentais (dimensões)
se somam e não se subtraem, sendo constitucionalmente inadmissível
um bloqueio total do direito individual de ação por força das tutelas
coletivas.
3. Princípio da disponibilidade motivada da ação coletiva.12
Havendo interesse em desistir da ação, os motivos deverão estar pre-
sentes e fundamentados. O princípio determina a análise dos motivos
da desistência da ação pelos legitimados ativos. Se for considerada in-
fundada, caberá ao Ministério Público assumir a titularidade do feito
quando a ação houver sido originariamente proposta por quaisquer dos
legitimados concorrentes (art. 5º, §3º, LACP). Se, porém, a desistência
houver sido levada a efeito pelo MP, segundo opinião de Gregório de
Assagra, caberá ao magistrado aplicar analogicamente a regra do art.
28, do Código de Processo Penal:13
“Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a de-
núncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer
peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as
razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação

12. Fredie Didier e Hermes Zaneti denominam esse princípio de “Princípio da indisponibilida-
de (temperada) da demanda coletiva cognitiva e princípio da continuidade da demanda
coletiva.
13. Também no sentido da aplicabilidade do art. 28 do CPP, caso o juiz não concorde com a
desistência da ACP pelo MP, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery. In “Código
de Processo Civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor”, pág. 1533.

24
Princípios do Processo Coletivo

ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro ór-


gão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de
arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.”

Contudo, como registra o próprio autor, há opiniões discordantes, en-


tendendo pela aplicação da regra inserta no art. 9º, da LACP, que dispõe:
“Art. 9º. Se o órgão do Ministério Público, esgotadas todas as diligên-
cias, se convencer da inexistência de fundamento para a propositura
da ação civil, promoverá o arquivamento dos autos do inquérito civil
ou das peças informativas, fazendo-as fundamentadamente.
§1º Os autos do inquérito civil ou das peças de informação arquivadas
serão remetidos, sob pena de se incorrer em falta grave, no prazo de
3 (três) dias, ao Conselho Superior do Ministério Público”.

Com o devido respeito a tais opiniões, entendemos que a regra aplicável


deve ser a do art. 9º, da LACP, uma vez que, juntamente com o CDC,
em aplicação integrada, formam o microssistema processual coletivo.
Nesse sentido, doutrina Hugo Nigro Mazzilli14 que “não há razão para a
analogia com o art. 28 do CPP, já que o art. 9º e § § da LACP se prestam
à solução analógica do problema dentro do mesmo sistema da ação civil
pública.”
Uma terceira corrente advoga a extinção do processo sem resolução
do mérito, utilizando-se do art. 267, III e VIII do CPC. Tal solução traz
o benefício de evitar a formação da coisa julgada material, sem existir
prejuízo ou necessidade de controle da extinção do processo pelo Con-
selho Superior dos Ministérios Públicos Estaduais ou pelas Câmaras de
Coordenação e Revisão do MPF. Assim, a ausência de análise permitirá
novo ajuizamento da ACP pelo próprio MP.Já no caso de decisão dos ór-
gãos superiores haveria vinculação e, consequentemente, não poderia
ser reproposta a ação. Mas é corrente minoritária.
4. Princípio da presunção da legitimidade “ad causam” ativa pela afirma-
ção de direito coletivo.
De acordo com tal princípio, basta a afirmação de direito coletivo para
que se presuma a legitimidade ad causam. O Poder Judiciário, ao aferir a
legitimidade ativa do legitimado coletivo, não deve analisar a titularida-

14. MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos interesses difusos em juízo. 19a ed. São Paulo: RT,
p.355.

25
Hermes Zaneti Jr. e Leonardo de Medeiros Garcia

de do direito ou interesse coletivo. Com relação ao Ministério Público, a


aplicação do princípio decorre da própria Constituição, pois os arts. 127,
caput, e 129, inciso III, atribuem legitimidade coletiva institucional, bas-
tando se tratar de direito social ou individual homogêneo indisponível
para, naturalmente, restar configurada a legitimidade do parquet.
O interesse processual que importa conferir para assegurar as condições
da ação não é o do co-legitimado (substituto processual), mas o do gru-
po de substituídos (pessoas indeterminadas, grupo, categoria ou classe
de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação
jurídica-base, titulares de direitos individuais abstrata e genericamente
considerados).
Esta legitimidade e interesse do substituto decorre, portanto, ope legis,
ou seja, da lei.
5. Princípio da não-taxatividade da ação coletiva.
Pelo princípio da não-taxatividade da ação coletiva, não se pode limitar
as hipóteses de cabimento de ação coletiva. Esse princípio está inserto
no art. 129, III, da CF “outros interesses difusos e coletivos”, bem como
nos arts. 5º, XXXV, da CF “a lei não excluirá da apreciação do Poder Ju-
diciário lesão ou ameaça a direito” e 1º, IV, da LACP “qualquer outro
interesse difuso ou coletivo”. Assim, qualquer direito coletivo poderá ser
objeto de ação coletiva. Portanto, limitações levadas a efeito tanto pela
jurisprudência como pela legislação infraconstitucional são inconstitu-
cionais.
6. Princípio do máximo benefício da tutela jurisdicional coletiva.
Por tal princípio, busca-se o aproveitamento máximo da prestação ju-
risdicional coletiva, a fim de se evitar novas demandas, principalmen-
te as individuais que possuem a mesma causa de pedir. Assim, devem
ser extraídos todos os resultados positivos possíveis da certeza jurídica
emergente do julgamento procedente do pedido formulado em sede de
uma ação coletiva. É o que se observa do sistema da extensão in utilibus
da coisa julgada coletiva prevista no art. 103, § 3º, do CDC, em que fica
garantido ao titular do direito individual, em caso de procedência da
demanda coletiva, utilizar a sentença coletiva no seu processo individual
(transporte in utilibus).
7. Princípio do ativismo judicial ou da máxima efetividade do processo
coletivo

26

Você também pode gostar