Nuno Ramos Perder Tempo

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Ó

Nuno Ramos

Perder tempo, vontade, uma cena escura

Fragmento 1

É muito tarde e choveu na avenida vazia. Um armário antigo, com a porta entreaberta e
quebrada foi esquecido, inclinado, entre a rua e a calçada. Os corvos, ou urubus,
abocanham alguma coisa no fundo dessa avenida, cuja perspectiva, muito acentuada,
assusta. A luz de uma lua baça, que aparece depois da tempestade, começa a pratear a
cena. Dois gatos saem de trás do armário. Um homem baixinho encolhe-se no guarda-
chuva, agora que não faz mais sentido usá-lo. Seus passos, largos demais para seu
tamanho, assustam os gatos. A lua se abre. A luz amarela se apaga dentro do casario ao
fundo, que encerra a cena. Uma janela range. O homem baixinho desaparece na
perspectiva da rua escura. O chão é de paralelepípedo, mas há pedaços de asfalto
consertando os buracos entre as pedras. Alguma coisa grita, mulher ou bicho, ou geme
como um desgosto. Pequenos traços no chão, restos de poça, acentuam ainda mais a
perspectiva da rua. Agora uma mulher desce do casario e caminha até o armário,
tocando sua madeira com as mãos. Abre e fecha a porta quebrada, rangendo as
dobradiças, depois empurra o armário inteiro, testando sua firmeza. Olha para cima. A
prata da lua está tão forte que converte seu rosto numa efígie de moeda. Caminho no
sentido contrário, entrando pela rua funda onde o homem baixo passou dentro do
guarda-chuva. O armário range novamente. A mulher meio geme, meio ronca. Está de
pé, logo atrás de mim. Paro. Não me volto. Continuo. Então um sino toca à minha
esquerda. Vou contando as portas enquanto caminho. Outro homem passa por mim,
correndo desabalado, os braços estendidos à frente, como se anunciasse uma notícia
apocalíptica. A nuvem esconde a lua e a cena parece ainda mais triste agora, além de
mais escura. Uma janela range num prédio novo, de alumínio, mas logo continua o
telhado comum do casario, vizinho dele, que tem inscrições na fachada antiga. Sinto
medo e assobio. Uma mancha vermelha, gráfica, está suspensa no meio da rua e então
percebo um peixe enorme, solto no ar, que parece também um machado ou um revólver.
Começa a garoar. Uma mulher, como um boneco malfeito, corre atrás de duas crianças
com sua vassoura. Dois cachorros agora me seguem. Compro pão, que vou comendo em
pequenos bocados enquanto caminho. As migalhas vão caindo, como se eu alimentasse
pássaros. Ranjo os dentes. Som dos meus saltos. Já é tarde e agora há sulcos de madeira,
pintados com tinta escura, debaixo dos meus pés, como um assoalho disparatado. Quem
tocou a minha mão? Há uma luz constante que vem por trás da cena, do bloco do
casario, da torre da igreja, do quarteirão malassombrado. Suas árvores, feito enormes
canudos de tinta, puxam do solo toda a escuridão. Então transborda para mim o que
carregam dentro delas e sinto o gosto de nanquim em minha boca, e a borra de uma tinta
preta em meu pensamento. Uma figura sai de dentro de um bueiro, feita de uma luz
hachurada, e projeta-se no ar como um paraquedas invertido. Não há propriamente
queda, mas suspensão. Sou feito talvez da mesma matéria destes seres, de sua luz e seu
balão, mas não comungo ainda dessa tristeza plena sólida. Ainda pertenço a uma
esperança que já não há para eles, de que possa acordar e permanecer ativo, feito de
carne e de aplauso, de que possa me juntar à plateia e voltar. Mas sei que me deixaram
entrar, ainda que tudo amanhã vire fumaça e sonho mal lembrado, ainda que eu feche a
todos, como imagens, dentro de um livro, sei que me deixaram entrar, e que há um
convite nisso. Ninguém acena para mim porque nunca fariam isso – seria impensável e
despropositado um gesto, furtivo que seja, na solidez desta cena –, mas é em sua
indiferença que está o convite, na intimidade com que mal reparam em mim. E se sinto
medo é por hábito, e ao bêbado que corre agora desabalado tenho vontade de pedir
perdão, porque sei que não vou ficar. Deixo para trás a mancha vermelha, deixo para os
corvos o armário espatifado e a mulher sonora, cujos dentes agora rangem, e feito um
boneco de cera volta à minha mesa, fechando o livro como quem encerra a cena.

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