Jean Claude Larchet O Inconsciente Espiritual
Jean Claude Larchet O Inconsciente Espiritual
Jean Claude Larchet O Inconsciente Espiritual
espiritual
JEAN-CLAUDE LARCHET
O inconsciente
espiritual
Tradução
Odila Aparecida de Queiroz, csj
Edições Loyola
Título original:
l'inconscient spirituel
© Les tditions du Cerf, 2005
29, boulevard La Tour-Maubourg
75340 Paris Cedex 07
ISBN 2-204-07787-9
Edições Loyola
Rua 1822, 341 lpiranga
-
ISBN 978-85-15-03688-2
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2009
Prefácio
7
1
Doenças psíquicas
e doenças espirituais
13
2
Os grandes princípios
da antropologia cristã
21
3
O problema da compatibil idade
dos fundamentos antropológicos:
o exemplo da psicanálise freudiana
31
4
O problema da compatibilidade dos
fundamentos teológicos e éticos:
o exemplo da psicologia analítica junguiana
47
5
Uma outra concepção do inconsciente:
o inconsciente espiritual
105
6
O inconsciente "teófilo"
111
7
O inconsciente "deífugo"
139
8
O inconsciente espiritual e a terapêutica
151
9
Duas práticas terapêuticas cristãs:
a confissão e a manifestação dos pensamentos
157
10
As fontes espirituais das doenças psíquicas
185
1 1
O recurso à terapêutica espiritual
exclui o uso da psicoterapia?
251
Prefácio
8 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
E
ste livro responde aos pedidos que me foram feitos de muitas
partes para desenvolver minha concepção das relações entre as
doenças mentais e as doenças espirituais, para tomar mais clara
a noção de "inconsciente espiritual", que eu havia evocado anterior
mente, e para lançar as bases do que poderia ser uma psicoterapia
cristã que se inspira na rica experiência do "cuidado das almas'', ad
quirida no decorrer dos séculos pela Tradição ortodoxa.
Em uma forma desenvolvida, ele inclui várias conferências e co
municações apresentadas por ocasião de colóquios ou de congressos
internacionais.
No decorrer dos debates que acompanharam algumas dessas
reuniões, das quais participavam psicólogos, psiquiatras e psicotera
peutas cristãos pertencentes a diversas "escolas", mas também teó
logos e filósofos, pareceu que a utilização, por psicoterapeutas cris
tãos para pacientes cristãos, de psicoterapias cujos fundamentos e
métodos estavam afastados dos princípios e práticas do cristianismo
permanecia problemática. Hoje, na Grécia, este assunto é objeto de
controvérsias e tensões muito importantes, e isto já há vários anos.
A oposição mais viva encontra-se-entre aqueles que pensam que as
psicoterapias têm um estatuto equivalente ao dos diferentes ramos
da medicina, constituindo portanto uma esfera autônoma em relação
à religião, e aqueles que consideram que a tradição ascética ortodoxa
e a prática da paternidade espiritual, tal como existe na Igreja ortodo
xa, oferecem meios adequados para tratar "por acréscimo" as pertur
bações psíquicas e tomam supérfluo todo recurso a psicoterapias.
As tensões e os debates são indiscutivelmente menos vivos no
mundo católico e no mundo protestante . Por um lado, as psicotera
pias foram introduzidas já há várias décadas, e as discussões que tal
introdução suscitou não estão mais na ordem do dia. Além disso, a
integração da psicanálise foi favorecida pelo entusiasmo despertado
entre o próprio clero, nos anos 1960, pelas ciências humanas então
em voga. Por outro lado, o catolicismo e o protestantismo não pos
suem uma tradição ascética elaborada e metódica e uma prática da
paternidade espiritual análogas às que existem no mundo ortodoxo
e que poderiam reivindicar uma função psicoterápica incluída em
PREFACIO 9
1. Sobre esta corrente, ver o artigo de 1. FRANCK, "Psy" et "spi" font-ils bon mé
nage?, Écritures 55 (2003) 6-9, e sobretudo o dossiê Psychologie et vie spirituelle. Dis
tinguer pour unir, Christus 197 (2003). Devemos notar que esta corrente não se refere,
PREFACIO 11
FONTES
A
finalidade desta obra é mostrar como algumas doenças psí
quicas têm sua fonte em algumas dessas doenças espirituais,
e portanto como a cura de tais doenças psíquicas depende, ao
menos parcialmente, de uma terapêutica espiritual.
Vários pontos precisam ser definidos, especialmente no que se
refere à natureza respectiva das doenças espirituais e das doenças
psíquicas.
3. Doença e culpabilidade
O
s diferentes capítulos deste livro fazem referência, constan
temente, à antropologia cristã tal como ela sobressai sobre
tudo no ensinamento dos Padres gregos. Assim, é indispen
sável lembrar seus princípios fundamentais1 •
A antropologia cristã tem uma característica essencial: não con
cebe o ser humano independentemente de sua relação com Deus.
Esta relação com Deus caracteriza o ser humano ao mesmo tempo
em seu ser e em seu vir a ser.
A base da antropologia cristã é bíblica e reside na afirmação de
que o homem foi criado à imagem e à semelhança de Deus ( Gn 1,26) .
Esta afirmação, ainda que se encontre no livro do Gênesis e apareça
no contexto da criação do homem, não diz respeito somente ao pri
meiro homem, mas aplica-se a todo ser humano. Portanto, refere-se
à natureza mesma do ser humano e é constitutiva de sua definição.
A imagem designa sobretudo a constituição natural do ser hu
mano. O homem é a imagem de Deus em sua própria natureza, so
bretudo pelas faculdades superiores que possui: seu intelecto (nous),
sua razão (logos), sua vontade (thelema, thelesis), sua faculdade de
escolha (proairesis ), seu poder de amar. Mas um certo número de co
mentários patrísticos sublinha que o ser humano, na realidade, é um
ser à imagem de Deus pelo conjunto de suas faculdades.
Enquanto a imagem é dada de imediato ao ser humano, como
constitutiva de sua natureza, a semelhança deve ser adquirida pes
soalmente por ele: consiste nas virtudes, nas disposições habituais ou
estados (exeis) espirituais que unem o ser humano a Deus e o tomam
semelhante a Ele. Podemos dizer que a imagem de Deus refere-se
mais particularmente ao ser (einai ) do homem, enquanto a seme
lhança refere-se mais especificamente à sua maneira de ser (trapos
uparxeos ) , mais exatamente a seu estar-bem (eu einai), e inicialmente
ambas apresentam-se a ele como um dever-ser.
Entretanto, há uma relação estreita entre a imagem e a seme
lhança.
1. Para uma exposição mais pormenorizada, ver o meu Thérapeutique des maladies
spirituelles, Paris, du Cerf, 42000.
OS GRANDES PRINCÍPIOS DA ANTROPOLOGIA CRISTÃ 23
volver nele as paixões, porque elas lhe dão a ilusão de viver intensa
mente e de se manter em vida.
Podemos então dizer que todo ser humano, se não nasce pecador,
ao menos nasce com uma forte tendência ao pecado, à qual, na prática,
dá cedo ou tarde o seu assentimento. Por isso os Padres falam mui
tas vezes do poder tirânico exercido sobre a humanidade decaída pela
morte, pelo diabo e pelo pecado, e dizem correlativamente que é, an
tes de tudo, deste triplo poder que Cristo veio libertar a humanidade.
Introdução
S
e, como notamos anteriormente, a esfera psíquica dispõe de
pouca autonomia em relação à esfera espiritual, e se a relação
positiva ou negativa do ser humano com Deus é determinante
não somente quanto a seu estado de saúde e de doença espiritual,
mas ainda quanto a seu estado de saúde ou de doença psíquica, na
medida em que este é relativo àquele, então a questão dos funda
mentos antropológicos da terapêutica psíquica - qualquer que seja
sua forma ou seu lugar em relação à terapêutica espiritual - toma-se
crucial. Só uma psicoterapia cujos fundamentos antropológicos estão
de acordo com os da antropologia cristã parece-nos, no quadro que
definimos, apta a desempenhar seu papel. Em compensação, uma
psicoterapia cujos princípios antropológicos divergissem dos princí
pios do cristianismo teria, neste mesmo quadro, efeitos não somente
limitados mas prejudiciais.
Um psicoterapeuta cristão deve pois mostrar-se especialmente
atento ao método psicoterápico que ele utiliza, do mesmo modo que
um paciente cristão ao tipo de psicoterapia à qual recorre.
Aqui, seria inútil passar em revista os diferentes tipos de psico
terapias, porque existem várias centenas e algumas são sérias e rei
vindicam um estatuto científico, outras totalmente fantasistas; além
disso, em numerosos países o problema é que o exercício da profissão
de psicoterapeuta não é regulamentado e todos os tipos de práticas
permanecem imagináveis. O problema complica-se pelo fato de que
em muitos países, igualmente, não se encontram, como é geralmen
te o caso na França, "escolas" bem delimitadas e identificáveis, mas
pelo fato de que um bom número de psicoterapeutas faz uma síntese
pessoal de elementos de origens diversas.
Por isso escolhemos tomar aqui, como primeiro exemplo, a psi
canálise freudiana, porque ela é, entre as diferentes formas de psico
terapia, ao mesmo tempo uma das mais sérias e das mais conhecidas.
Entretanto, ela não escapa às diferentes variantes; é a razão pela qual
mantemos o que lhes é comum : o pensamento fundador de Freud.
Este pensamento conheceu variações no decorrer do tempo e não
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS ANTROPOLóGICOS 33
1 Elementos análogos
.
1. S. FREUD diz em uma de suas conferências: "A psicanálise, em seus começos, foi
apenas um método terapêutico, mas eu gostaria que seu interesse não ficasse exclusiva
mente nesta utilização, mas também [ ] nas conclusões que ela nos permite tirar acerca
. . .
daquilo que toca o ser humano de mais perto: seu próprio ser, enfim, nas relações que
ela descobre entre as formas variadas da atividade humana" (Nouvelles conférences sur la
psychanalyse, Paris, 1975, 206-207) .
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS ANTROPOLóGICOS 35
contrar uma analogia entre esses dois pólos pulsionais e as duas potên
cias fundamentais que na antropologia dos Padres gregos são o poder
desejante (epithumia, epithumetikon) e o poder irascível (thumos),
cujo uso desviado suscita um certo número de doenças espirituais. Esta
última analogia vem do fato de que Freud e os Padres gregos têm,
neste ponto, uma fonte comum: a antropologia platônica2•
Em relação com estas duas noções, podemos notar que em
Freud, como na concepção patrística, a relação do ser humano com
o prazer e com a dor desempenha um papel fundamental. A busca
do prazer e a evitação do desprazer constituem na doutrina freudia
na a base das atitudes e dos comportamentos do ser humano, não
somente em sua tenra infância, mas ao longo de toda a sua vida3•
Ora, vimos que os Padres reconhecem nessas duas tendências um
papel fundamental e que elas estão mesmo, de acordo com Máximo
Confessor, na base de todas as paixões ou doenças espirituais do ser
humano decaído.
No plano da dinâmica psíquica, também podemos constatar al
gumas analogias.
Primeiramente, para Freud como para os Padres, há uma "eco
nomia" da energia: a energia necessariamente deve ser investida em
algum lugar, e da natureza, do sentido e da medida de seu investi
mento depende a boa ou a má saúde do ser humano.
Em segundo lugar, a vida interior do ser humano é habitada por
conflitos, e do fim de tais conflitos depende também a boa ou a má
saúde do ser humano.
Em terceiro lugar, o ser humano é chamado a um desenvolvi
mento, no qual adquire progressivamente o domínio de si. Segundo
Freud, o ego, na parte de si mesmo constituída pelas faculdades su
periores que são a consciência e a vontade, é chamado a dominar o id
(constituído, de um lado, por elementos recalcados e, por outro lado,
por pulsões sexuais e agressivas que se expressam, originalmente, de
maneira bruta desde a zona inconsciente do psiquismo)4• "Lá onde
estava o id'', escreve Freud, "o ego deve advir". Do mesmo modo, os
Padres consideram que, no ser humano, o espírito e a razão devem
dominar e governar a parte irracional da alma, sendo a temperança
(egkrateia) uma das virtudes genéricas (genikai aretai) que condicio
nam a aquisição das outras virtudes.
Para Freud, o crescimento interior do ser humano implica
igualmente que este, abandonando seu narcisismo originário, de
senvolva laços positivos com seus semelhantes, e esta forma superior
de afeição está na base de uma vida social harmoniosa5• Tal concep
ção é análoga à concepção cristã segundo a qual o ser humano deve
substituir o amor egoísta a si (filáucia) pelo amor ao próximo e pelo
amor a Deus.
2. Diferenças
6. Ver ID., L'avenir d'une illusion, Paris, 1932, 44-45, 49-50, 54; Actions compulsio
nnelles et exercices religieux, in Psychose, névrose et peroersion, Paris, 1973, 133-142; Un
souvemir d'enfance de Léonard de Vinci, Paris, 1927, 177-178; Totem et tabou, Paris, 1951,
21 1-213; Moi"se et le nwnothéisme, Paris, 1948, 90; Carta de 2 de janeiro de 1910 a C. G.
Jung, in ID., Correspondance (1906-1914), Paris, 1992, 372.
7. Ver por exemplo ID., Nouvelles conférences sur la psychanalyse, 211-231 . Sobre a
atitude de Freud em relação à religião, ver em particular A. PLÉ, Freud et la religion, Paris,
1968. Sobre a atitude hostil de Freud em relação à religião, dispomos também do testemu
nho direto de C. G. JUNG: "Em nossas numerosas conversas sobre este assunto, mais de
uma vez aconteceu-lhe de citar Voltaire: 'Esmagai o infame!'. [ . . ] Que a atitude de Freud
.
munhos desta equivalência que se manifestam tanto na conformação de seu corpo como
em suas disposições psíquicas''.
19. Cf. Essais de psychanalyse, 109-1 10.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS ANTROPOLóGICOS 39
3 1 . Cf. ibid., 17: "A questão da finalidade da vida humana foi colocada um número
incalculável de vezes; ela ainda não encontrou resposta satisfatória; aliás, talvez ela não
admita nenhuma".
32. Ibid., 18.
33. Ibid., 37.
34. Ibid., 18.
35. lbid., 43-44.
42 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
Conclusão
INTRODUÇÃO
N
a opinião da teologia e da antropologia cristãs, os elementos
mais problemáticos que encontramos nas posições de Freud
não se encontram em Carl Gustav Jung. Longe do ateísmo de
Freud e do julgamento negativo que ele faz do fenômeno religioso,
Jung manifestou ao longo de toda a sua vida um interesse profundo
pelas religiões tanto ocidentais como orientais, interesse que marca
uma grande parte de sua reflexão teórica e de sua prática terapêutica.
Como nota R. Hostie, "é realmente excepcional que um psicólogo
conceda à religião o papel preponderante que Jung lhe atribuiu"1•
A relação da obra de Jung com o cristianismo foi abundantemen
te estudada2 e, em muitos casos, positivamente avaliada, tanto por
teólogos católicos3, dos quais alguns viram nela "uma muralha contra
o ateísmo freudiano"4, como por teólogos protestantes5• A simpatia
de Jung pelo fenômeno religioso em geral e pelo cristianismo em
particular e sua integração da dimensão espiritual do ser humano em
sua concepção e em sua prática da psicoterapia6 atraíram, de prefe
rência à psicanálise freudiana, um certo número de pacientes, mas
também de psicoterapeutas cristãos preocupados em guardar uma
ligação entre os fundamentos teóricos de sua prática psicoterapêutica
e de sua fé cristã.
nesta categoria.
6. Um dos princípios de base de Jung é que "o problema da cura é um problema
religioso" ( Über die Beziehung der Psychotherapie zur Seelsorge, par. 523, in Gesammelte
Werke, Zürich/Stuttgart, 1963, t. 1 1 ; doravante citado na ed. fr.: Des rapports de la psycho
thérapie et de la direction de conscience, in La guérison psychologique, Genêve, 1953, 291).
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E tTICOS 49
1 . PONTOS DE CONVERGtNCIA
'
1 1 . Ele censura vigorosamente o protestantismo por tê-los eliminado progressiva
mente. Ver, por exemplo, a Carta de 17 de março de 1951 a M. H .
1 2 . Ver C. G. JUNG, Der Gegensatz Freud-Jung, i n Gesammelte Werke, Olten/
Fribourg-in-Brisgau, 1969, t. 4; ed. fr. : L'opposition entre Freud et Jung, in La guérison
psychologique, 183.
13. Ver Psychologie et religion, par. 37, 43; Über die Psychologie des Unbewusstes,
par. 71, in Gesammelte Werke, Zurich/Stuttgart, 1964, t. 7; doravante citado na ed. fr. :
Psychologie de l'inconscient, Geneve, 81993, 91-92.
14. Ver Des rapports de la psychothérapie et de la directíon de conscience, par. 517,
in La guérison psychologíque, 286-287.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E ITICOS 51
15. Ver particularmente Die Archetypen und das kollektive Unbewusste, in Gesam
melte Werke, Olten/Fribourg-en-Brisgau, 1967, t. 9-1 .
1 6 . Ver Bewuj3sein, Unbewusstes und Individuation, i n Gesammelte Werke, Olten
et Fribourg-in-Brisgau, 1976, doravante citado na trad. fr. Conscience, inconscient et indi
viduation, in La Guérison psychologique, 255-272; Das Gewissen, in Zivilisation im Über
gang, in Gesammelte Werke, Olten/Fribourg-en-Brisgau, 1974, t. 10, 249-257.
52 O I NCONSCIENTE ESPIRITUAL
l i . PONTOS DE DIVERGtNCIA
19. Ver Carta de 2 de julho de 1960 ao pastor Oscar Nisse; Carta de 25 de outubro
de 1955 a Palmer A. Hilty. Em um texto de 1932, Jung afirma mais precisamente sua
pertença ao protestantismo e situa-se à "extrema esquerda no Parlamento do espírito pro
testante" (Des rapports de la psychothérapie et de la direction de conscience, par. 537, in
La Guérison psychologique, 299).
20. Em uma carta datada de 21 de janeiro de 1960, publicada no jornal The Listener,
Jung escreve: "Eu me considero cristão, porque me fundamento em conceitos cristãos".
2 1 . Pela palavra "psique" Jung entende a consciência do eu + o inconsciente, este
último comportando o inconsciente individual e o inconsciente coletivo.
22. As referências explícitas à crítica kantiana do conhecimento são muito nume
rosas na obra de Jung e dão testemunho da influência importante que ela exerceu sobre
sua posição.
54 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
23. Jung und der religiOse Glaube, par. 1589, in Gesammelte Werke, Olten/Fribourg
en-Brisgau, 1981, t. 18-2; ed. fr.: Jung et la croyance religieuse, in La vie symbolique, Paris,
1989, 161.
24. Critica da razão pura, Prefácio à segunda edição.
25. Carta de 10 de outubro de 1959 a G. Wittwer.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E ITICOS 55
37. Ibid, par. 222, 188. Jung anota em outro lugar: "Que a Bíblia tenha sido inspirada
pelo Verbo, eis para mim uma hipótese inverossímil" (Carta de 5 de maio de 1952 ao Prof.
Fritz Buri).
38. Cf. Essai d'interprétation psychologique du dngme de la Trínité, par. 207-210,
176-178; 222-224; 186-190.
39. Jung et la croyance religieuse, par. 1656, in La vie symholique, 194.
40. Symhole der Wandlung, par. 165, in Gesammelte Werke, t. 5, Genêve, 1952;
doravante citado na ed. fr.: Métamorphoses de l'âme et ses symhole, Genêve, 1953, 202.
4 1 . Ibid., par. 612, 646.
42. L'Esprít Mercure, in Essais sur la symholique de l'Esprít, 44.
43. Carta de lº de junho de 1956 a Hélêne Kiener.
44. Cf. Essais d'interprétation psychologique du dngme de la Trínité, par. 202, 173.
58 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
2 . O psicologismo de Jung
58. Métarrwrphoses de l'âme et ses symboles, par. 129, 166. Cf. Carta de 25 de maio
de 1955, ao pastor Jakob Amstutz.
59. Psychologie de l'inconscient, par. 105, 121.
60. Métarrwrphoses de l'âme et ses symboles, par. 89, 123.
61. Carta de 16 de novembro de 1959, a Valentine Brooke.
62. Carta de 14 de maio de 1950, a M. Joseph Goldbrunner.
63. Métarrwrphoses de l'âme et ses symboles, par. 89, 123; cf. par. 95, 133.
64. Ibid., par. 95, 133.
62 0 I NCONSCIENTE ESPIRITUAL
65. Psychologische Typen; ed. fr.: Types psychologiques, Geneve, 1950, 246-247.
66. Métarrwrphoses de l'âme et ses symboles, par. 89, 123, nota 28.
67. É assim que, evocando uma "natureza divina" diferente .lo ego, Jung a assimi
la a "um conteúdo proveniente da região do inconsciente que transcende o consciente"
(Psychologie et religion, par. 154, 185).
68. Cf. Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 2 10, 178.
69. Die Beziehung zwischen dem Ich und dem Unbewussten, par. 400, in Gesammel
te Werke, Zurich/Stuttgart, 1964, t. 7; doravante citado na ed. fr. : Dialectique du rrwi et de
l'inconscient, Paris, 1964, 255.
70. Métarrwrphoses de l'âme et ses symboles, par. 89, 123, nota 28.
71. Psychologie et religion, par. 102, 1 13.
64 0 I NCONSCIENTE ESPIRITUAL
72. Métanwrphoses de l'âme et ses symboles, par. 89, 123, nota 28.
73. Psychologie de l'inconscient, par. 150, 163-164. Ver também a Carta de 5 de ou
tubro de 1945, ao padre Victor White: "Para o público cultivado e 'esclarecido', é da mais
alta importância compreender que a verdade religiosa é um conteúdo da alma."
74. Carta de 13 de junho de 1955, ao pastor Walter Benett.
75. Psychologie und Religion, par. 10, 20.
76. Ibid., par. 107, 1 19.
o PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E tr1cos 65
3 . A teologia junguiana
107. Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 246, 206; cf.
Ai'on, par. 97, 67-68.
108. Ibid., par. 246, 206.
109. Ibid.
1 10. Ibid. Cf. Ai'on, par. 98, 68-69; ]ung et la croyance religieuse, par. 1592-1593, in
La vie symbolique, 164-165; Carta de 30 de abril de 1952, ao padre Victor White.
1 1 1 . Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 249, 207.
72 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
e. Cristo
128. Data de publicação de Septem semwnes ad rrwrtuos. Este livro estranho, publi
cado com o nome emprestado de Basílides de Alexandria, autor gnóstico da Antiguidade,
está ligado a uma crise interior de Jung que alguns comentaristas qualificam de psicótica e
próxima da esquizofrenia (ver P. J. STERN, C. G. Jung, Projhet des Unbewussten, Munich,
1979, 138; P. HoMANS, Jung in Context. Modemity and the Making of Psychology, Chica
go, 1979, 87; B. KAEMPF, Réconciliation. Psychologie et religion selon Carl Gustav Jung,
123). Esta crise parece ter sido determinante na evolução do pensamento de Jung.
129. Sobre a dimensão gnóstica da obra de Jung, ver especialmente R. A. SEGAL,
The Gnostic Jung, Princeton ( N .J.), 1992.
130. Métarrwrphoses de l'âme et ses symboles, par. 612, 646.
131. Ibid., par. 576, 610.
132. Carta de 5 de janeiro de 1952 ao Dr. Erich Neumann.
133. cf. Ai'on, par. 103, 71. par. 1 13, 75.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E ITICOS 75
lado do quadro"143•
2) Em segundo lugar, Jung relativiza a importância da realidade
histórica de Cristo144• Para ele, trata-se de um justo que teria per
manecido para sempre anônimo145, ou de um jovem rabi que teria
permanecido para sempre desconhecido, se não tivesse sido feito o
objeto da projeção de um arquétipo coletivo e se não tivesse sido as
sim carregado de símbolos. Somente importam estes símbolos e a fun
ção psicológica de que Cristo foi investido, a saber, ser uma imagem
do Si mesmo: "Aqueles que escreveram os Evangelhos, assim como
Paulo, estavam preocupados em acumular as características milagro
sas e os significados espirituais na cabeça do jovem rabi quase total
mente desconhecido que, depois de uma carreira que talvez tivesse
durado apenas um ano, havia encontrado um fim prematuro. O que
eles fizeram dele nós o sabemos, mas não sabemos até que ponto esta
imagem corresponde à realidade histórica. Era ele o Logos e o Cristo
eternamente vivos, nós não o sabemos. De qualquer maneira, isso não
tem importância, considerando que a imagem do homem-Deus está
viva em cada um de nós e se encarnou (isto é, se projetou) no homem
Jesus, a fim de se manifestar em forma visível para que os humanos
possam reconhecer nele seu próprio horrw interior, seu Si mesmo"146•
Na mesma ordem de ideias, Jung manifesta também dúvidas so
bre a realidade histórica do que constitui um dos pilares da fé cristã, a
ressurreição, vendo nela, à maneira de um certo número de teólogos
católicos e protestantes modemos147, apenas um símbolo e, portanto,
d. O Espírito Santo
4. A antropologia junguiana
a . A i magem de Deus
b. O Si mesmo
Isso quer dizer não somente que o bem e o mal coexistem no ser
humano, mas que essa coexistência é natural, normal e inevitável e,
portanto, definitiva.
Podemos constatar aqui uma analogia entre a constituição do Si
mesmo e a constituição de Deus tal como a concebe Jung, em que o
bem e o mal coexistem também natural, inevitável e eternamente.
Tal analogia não é fortuita: como vimos, Jung considera Deus
uma imagem ou uma projeção do Si mesmo. Por outro lado, ele afir
ma muitas vezes que essa projeção que constitui a imagem de Deus
é de caráter antropomórfico (ele considera aliás que "toda imagem
de Deus é mais ou menos antropomórfica"180). Constatando a coexis
tência do bem e do mal na realidade humana, estava na lógica de sua
teoria que Jung a atribuísse a Deus.
Jung considera que "nós ignoramos como os contrários se recon
ciliam e se unem em Deus" e que "também não podemos compreen
der como eles se unem no Si mesmo". No que se refere à proporção
do bem e do mal que aí se encontra, Jung pensa que "do ponto de
vista arquetípico a balança se inclina um pouco mais, mas muito fra
camente, do lado positivo"181•
e. A sombra
5 . A ética junguiana
a . Relatividade da mora l
184. Einige Aspekte der nwdemen Psychotherapie, ed. fr. in La guérison psycholo-
gique, 37.
185. Psychologie de l'inconscient, par. 30, 59-60.
186. Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 258, 213.
187. Aion, par. 97, 67.
o PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E tncos 85
e . Positividade do mal
mas seres rebaixados e que perderam sua essência195• Ora, este corpo
é um animal, com uma alma de animal, isto é, ele é um sistema vivo
que obedece de maneira absoluta ao instinto. Aliar-se a esta sombra
é o mesmo que aceitar o instinto e aceitar também seus dinamismos
gigantescos, que ameaçam em segundo plano. Ora, é precisamente
disto que a moral ascética do cristianismo quer libertar o ser huma
no, com o risco de perturbar, no mais profundo de si mesmo, a sua
natureza animal"196•
A integração do mal deve se realizar até o mais alto nível, no
quadro do processo de individuação. Como vimos, o Si mesmo é uma
totalidade que inclui o bem e o mal, e é nessa totalidade que consiste
a sua realização. A respeito dessa realização, Jung prefere falar de
completude (Vollstiindigkeit) em vez de perfeição (Vollkommenheit),
conceito bastante ligado à noção d e bem e que exclui o mal. " A pala
vra 'integração' significa completar e não tomar perfeito."197
Segundo Jung, o ser humano tem por obrigação tender à com
pletude, o que significa que ele "deve satisfazer a sua totalidade", e
por isso aceitar e assumir a parte do mal que está no Si mesmo. Em
outras palavras, o ser humano só pode chegar à "totalidade" de si mes
mo, à plenitude, pela integração do mal. "O processo da individuação
começa com a tomada de consciência da sombra"198 e prossegue pela
aceitação e pela integração consciente da parte de mal que está no
Si mesmo, para realizar a conjunctio oppositorum que caracteriza
o Si mesmo199• A finalidade da individuação é boa para nós, diz Jung,
"porque ela nos liberta do conflito dos opostos que, de outro modo,
seria insolúvel"200•
Esta concepção condiz perfeitamente com a teologia de Jung, que,
como vimos, integra o mal no coração da divindade, e também com sua
195. Poderíamos estar plenamente de acordo com esta última afirmação de Jung se
para ele o corpo não significasse sobretudo os instintos.
196. Psychologie de l'inconscient, par. 35, 64.
197. Carta de 27 de dezembro de 1958, in A. TJOA, R. H . c . JANSSEN. Cf. Carta de
28 de março de 1955 ao padre Lucas Menz.
198. Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 292, 239.
199. Cf. AiOn, par. 124-126, 83-84.
200. Jung et la croyance religieuse, par. 1641, in La vie symbolique, 187.
88 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
concepção religiosa da vida, visto que, para ele, "a religião é uma relação
com o valor mais alto e mais forte, seja este positivo ou negativo"201•
Como já ressaltamos, esta concepção está fortemente influencia
da pelo gnosticismo e pela alquimia, mas também pelas filosofias do
Extremo Oriente, em particular pelo hinduísmo. Em suas memórias,
Jung escreve: "Nas Í ndias, o que me preocupou antes de tudo foi a
questão da natureza psicológica do mal. Fiquei muito impressionado
pela maneira como este problema se integra na vida do espírito india
no, e com isso adquiri uma concepção nova. [ . . ] Para um oriental, o
.
problema moral não parece ocupar o primeiro lugar como entre nós.
Para ele, o bem e o mal estão integrados na natureza e, em suma, são
apenas diferenças de grau de um único e mesmo fenômeno"2º2.
libido, que lhes é muito estreitamente associada, é concebida por Jung de acordo com um
modelo físico, de ordem quantitativa. Em suas memórias ele observa que concebeu esta
"como uma analogia psíquica da energia física, portanto como um conceito aproximativa
mente quantitativo, e [que] é por isso [que ele recusou] toda determinação qualitativa da
libido", e acrescenta: "Em física também se fala de energia e de suas manifestações sob
forma de eletricidade, de luz, de calor etc. É exatamente a mesma coisa em psicologia.
Aqui também se trata, em primeiro lugar, de energia (isto é, de valor de intensidade, mais
ou menos)" (Ma vie, 242-243).
2 1 1 . Psychologie de l'inconscient, par. 1 10, 126.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E ÉTICOS 91
b. O princípio de base da
terapêutica: a reconc i l iação
220. Ver Psychologie et religion, par. 37, 43; Psychologie de l'inconscient, par. 21-26,
51-56.
221 . Psychologie et religion, par. 88, 102.
222. Ibid., par. 136, 160.
223. Carta de 27 de março de 1954 ao pastor W Lachat, par. 1538, in La vie sym
bolique, 139.
224. Jung et la croyance religieuse, par. 212, in La vie symbolique, 160.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E tTICOS 95
e. A ausência de representação
exata da doença e da saúde
231 . "A transcendência", escreve Jung, "é somente o que é para nós inconsciente"
(Carta de junho de 1957 ao Dr. Bemhard Lang) .
232. "Já que m e pergunta s e e u faço parte dos que creem", escreve ele a u m de
seus correspondentes, "sou obrigado a lhe responder: não". E acrescenta: "Claro, sou fiel
à minha experiência interior e tenho a pístís no sentido paulino" (Carta de 5 de janeiro
de 1952 ao Dr Erich Neumann), entendendo por pístís "a fidelidade (lealdade), a fé e a
confiança acerca de uma certa experiência de efeitos numinosos" (Psychologie et religion,
par. 9, 19).
1 00 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
233. Jung explica que "a imagem psíquica de Deus [ . ] exerce uma ação poderosa
. .
na alma" e que "para a ciência isto não tem nada a ver com a existência de Deus, mas é
unicamente uma questão de fenomenologia das dominantes ditas psíquicas, sejam elas
denominadas Deus, Alá, Buda, Purusha, Zeus, Planeres, Zodíaco ou Sexualidade" (Carta
de 7 de abril de 1945 ao pastor Max Frischknecht).
234. Ver Métanwrphoses dR l'âme et ses symholes, par. 89, 123- 125.
235. Cf. ibid., par. 130, 167-168.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E tTICOS 1 01
f. Os riscos de i l usão
240. Ibid.
241 . Ibid.
242. Os únicos escritos patristicos que encontram graça aos olhos de Jung são os
escritos apócrifos de tendência gnóstica, como as Homilias pseudo-clernentinas ou os enun
ciados das doutrinas gnósticas contidos nos escritos de Santo Ireneu de Lião.
243. Jung et la croyance religieuse, par. 248, in La vie symbolique, 176- 177.
1 04 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
N
os séculos XIX e XX, a noção de inconsciente psíquico foi ob
jeto de teorias desenvolvidas e poderosamente estruturadas
(as de Freud, Jung, Adler . . . ), que podem levar a acreditar
que se trata de uma descoberta recente.
Na realidade, a existência de um inconsciente psíquico é um fato
conhecido desde a mais remota Antiguidade. Platão, por exemplo,
faz alusão a isso, pondo em relação o sonho com os desejos insatisfei
tos ou a agressividade não expressa e apresentando uma concepção
que antecipa a do recalque1•
Podemos dizer que existe também um inconsciente corporal
que é constituído por tudo o que existe, age ou se produz em nosso
corpo mas não tem intensidade suficiente para que o percebamos e
dele tomemos uma consciência clara ( Leibniz chamava isso de "pe
quenas percepções"2) .
Do mesmo modo existe um inconsciente espiritual.
4. Edição original: Vienne, 1948; ed. fr. : Paris, 1975. Ver também La Psychothérapie
et son image de l'homme, Paris, 1970.
5. Ver Psychanalyse et synthese personnelle. Rapports entre l'analyse psychologique
et les valeurs existentielles, Paris, 1959; Psychanalyse pour la personne, Paris, 1962.
UMA OUTRA CONCEPÇÃO DO INCONSCIENTE 1 09
A
dimensão positiva do inconsciente espiritual que qualifica
mos de "inconsciente teófilo" é constituída, como dissemos,
de diferentes elementos espirituais presentes na natureza do
ser humano que o ligam a Deus, o unem a Ele, o orientam para Ele.
Esses elementos, originalmente inconscientes, de acordo com certas
condições podem ser o objeto de uma tomada de consciência mais ou
menos ampla e mais ou menos profunda, mas podem ficar também
inconscientes para o indivíduo, definitivamente.
1 O logos da natureza
.
1. A noção de logos de natureza, se bem que tenha uma origem antiga no pensa
mento cristão, foi explicitada por São Máximo Confessor. Também é a este grande teólogo
bizantino que nos referiremos sobretudo nesta exposição. Para mais pormenores, ver nosso
estudo La divinisation de l'homme selon saint Maxime le Confesseur, Paris, 1996, 125 s.,
nossa Introdução a SAINT MAXIME LE CONFESSEUR, Questions à Thalassios, Paris/Sures
nes, 1992, 10-12, 34-37, e nossa Introdução a SAINT MAXIME LE CONFESSEUR, Ambígua,
Paris/Suresnes, 1994, 28-41 .
2. Ver MÁXIMO CONFESSOR, Comentário do Pai-nosso, CCSG 23, 65-66.
0 INCONSCIENTE "TEÓFILO" 113
2 1 . Cartas, 3 1 , PC 91, 625AB. Cf. Questões a Talássios, 39, CCSC 7, 259; 49, CCSC
7, 355.
22. Cf. Opúsculos teológicos e polêmicos, 1, PC 91, 12CD; 16, 185D. Disputa com
Pirro, PC 91, 292BC.
23. M . DOUCET, Dispute de Maxime le Confesseur avec Pyrrhus, Montréal, 1972,
357.
24. Opúsculos teológicos e polêmicos, 20, PC 91, 236C.
25. V LoSSKY, Vision de Dieu, Paris, 1962, l lO. J. MEYENDORFF nota no mes
mo sentido que "o movimento (energia ou vontade) natural do ser humano, instaurado
por Deus, é dirigido para a comunhão com Deus ou deificação" (Initiation à la théologie
byzantine, Paris, 1975, 53).
26. 1 . - H . DALMAIS, Un traité de théologie contemplative, Le "Commentaire du Pa
ter" de saint Maxime !e Confesseur, Revue d'ascétique et de mystique, 29 ( 1953) 140.
116 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
36. Ambíf!Jl a a João, 42, PG 91, 1329A. Ver também Opúsculos teológicos e polêmi
cos, 1, PG 91, 28D-29A.
0 INCONSCIENTE "TEÓFILO" 1 19
37. Essas tendências positivas foram destacadas por alguns filósofos como caracte
rísticas da natureza humana profunda ou original (Aristóteles, Rousseau . . . ), mas sabemos
que muitos outros filósofos consideraram ser predominantes as paixões que afetam os seres
humanos: egoísmo, avidez, busca do prazer sexual em todas as suas formas, agressividade,
orgulho, vontade de dominação e de exploração do outro . . .
1 20 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
38. O sagrado e o profano, São Paulo, Martins Fontes, 1992, 165-172. Nossa con
cepção deste inconsciente religioso difere entretanto da concepção de Mircea Eliade, que
vê nisso, um pouco à maneira de Jung, uma espécie de inconsciente coletivo e arquetípico,
constituído preliminarmente pelos comportamentos do homo religiosus e de quem o ho
mem arreligioso teria herdado (ver ibid., 170, 171).
39. Cf. A. STRUKER, Die Gottebenbiúllichkeit des Menschen in der christlichen Lite
ratur der ersten zwei Jahrhunderte, Münster, 1913; E. PETERSON, I:immagine di Dio in S.
Ireneo, La scuola cattolica, 19 ( 1941 ) 3-1 1 ; A. MAYER, D as Gottesbild im Menschen nach
Clemens von Alexandrien, Roma, 1942; H. CROUZEL, Théologie de l'image de Dieu chez
Origene, Paris, 1956; R. BERNARD, L' image de Dieu d'apres saint Athanase, Paris, 1952,
H. MERKI, 'Oµoíwoiç 9Ec\J, Von der platonischen Angleichung an Gott zur Gottahnlichkeit
hei Gregor von Nyssa, Fribourg, 1952; R. LEYS, L'image de Dieu chez saint Grégoire de
Nysse, Bruxelles/Paris, 1951; W. J. BuRGHARDT, The Image of God in Man according to
Cyril of Alexandria, Baltimore, 1957; L. THUNBERG, Microcosm and Mediator, Lund,
1 22 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
1965, 120- 133; W. VõLKER, Ma:ximus Confessor ols Meister des geistlichen Lebens, Wies
baden, 1965, 47-69, 88- 102.
40. Cf. J. KIRCHMEYER, Crecque ( É glise),in Dictionnaire de spiritualité, 1967, Vl,
col. 812-822.
4 1 . Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Centúrias sobre a caridade, III, 25; Opúsculos teoló-
gicos e polêmicos, 1, scholie 2, PC 91, 378C.
42. Cf. ID., Questões e dificuldades, IIl/l, CCSC 10, 170.
43. Cf. ID., Centúrias sobre a caridade, III, 25.
44. Cf. ID., Questões e dificuldades, IIl/l, CCSC 10, 170. 10; cf. 13.
45. ID., Cartas, 6, PC 91, 4298.
46. Cf. ID., Centúrias sobre a caridade, III, 25; Cartas, 6, PC 91, 4298.
47. Ver por exemplo IRENEU DE LIÃO, Contra as heresias, V, 16, 2, SC 153, 216.
CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Protréptico, X, 98, 4, SC 2, 166. ÜRÍGENES, Homilias sobre
o Gênesis, l, 13, SC 7 bis, 60; Contra Celso, IV, 85, SC 136, 396. ATANÁSIO DE ALEXAN
DRIA, Sobre a encarnação do Verbo, III, 3, SC 199, 270-272; Contra arianos, III, 10, PC
26, 334A; MÁXIMO CONFESSOR, Disputa com Pirro, PC 91, 324D; Questões a Talássios,
53, CCSC 7, 431 .
0 INCONSCIENTE •TEÓFILO" 1 23
48. Cf. CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromata, II, 19, GCS II, 169; Protréptico, X,
98, 4, SC 2, 166; ÜRÍGENES, Homilias sobre o Gênesis, l, 13, SC 7 bis, 62; Contra Celso,
VI, 63, SC 147, 336; ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, Sobre a encamação do Verbo, III, 3, SC
199, 272. GREGÓRIO DE NISSA, A criação do homem, XII, PC 44, 1610. GREGÓRIO NA
ZIANZENO, Discurso, XXXVI II, 1 1 , SC 358, 124; CIRILO DE ALEXANDRIA, Contra os an
tropomorfitas, PC 76, 1069-1072; MÁXIMO CONFESSOR, Mistagogia, VI, PC 91, 684CO;
Cartas, 6, PC 91, 429B; 23, PC 91, 6050; Questões a Talássios, 65, PC 90, 741B, CCSG
22, 259; Ambígua a João, 10, PC 91, 1204A; 42, PC 91, 1325A; Opúsculos teológicos e
polêmicos, 23c, PC 91, 268A.
49. Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Disputa com Pirro, PC 91, 304C; 324CO .
50. Ibid.
5 1 . Cf. lo., Ambígua a João, 7, PC 91, 1092B.
52. lo., Questões e dificuldodes, III/l, CCSG 10, 170.
53. Ibid., CCSG 10, 170.9.
54. MÁXIMO CONFESSOR, Opúsculos teológicos e polêmicos, l, scholie 2, PC 91,
37BC.
55. Ao menos pelo polo que depende dele, sendo o outro polo a graça divina, sem a
qual a realização deste fim não poderia ser completada.
56. Centúrias sobre a teologia e a economia, I, 1 1 .
1 24 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
dade de buscar Deus e de tender a Ele57• São Máximo tem, pois, uma
concepção da imagem de Deus no ser humano eminentemente dinâ
mica. Para ele, mas também para outros Padres gregos58, a imagem é
um conjunto de capacidades que permitem ao ser humano realizar a
semelhança, e ela o orienta já dinamicamente para essa realização.
A semelhança, mesmo que não conheça solução de continui
dade em relação à imagem, é de uma outra natureza. Enquanto a
imagem refere-se à natureza, a semelhança é relativa à hipóstase59•
Enquanto a imagem faz parte da constituição natural do ser humano
e lhe é dada de imediato pelo Criador, não supondo nenhuma in
tervenção de sua parte, a semelhança no início só é potencial; ela
pede sua participação pessoal para ser realizada e é, neste sentido,
tributária de seu livre-arbítrio6Cl_ De acordo com São Máximo, en
quanto a imagem depende do logos de sua natureza, a semelhança
depende de seu gênero de vida, em outras palavras do modo (tropas)
de sua existência61 . Esta concepção é também a de São Basílio, que,
para expressá-la, recorre às categorias aristotélicas do poder e do
ato: "Possuímos [a imagem] pela criação, adquirimos [a semelhança]
pela vontade. Na primeira estrutura nos é dado nascer à imagem de
Deus; pela vontade forma-se em nós o ser à semelhança de Deus.
O que depende da vontade, nossa natureza o possui em poder, mas
é pela ação que nós no-lo conseguimos. Se ao nos criar o Senhor
não tivesse tomado de antemão a precaução de dizer 'criemos' e 'à
semelhança', se Ele não nos tivesse gratificado com o poder de nos
tornar semelhantes a Ele, não seria por nosso próprio poder que te
ríamos adquirido a semelhança com Deus. Mas eis que Ele nos criou
com poder capaz de nos assemelhar a Deus . Dando-nos o poder de
57. Cf. Lettres, 1, PC 91, 377B; Ambígua à Jean, 48, PC 91, 1361AB .
58. Sobretudo Clemente de Alexandria. Cf. H. CROUZEL, Théologie de l'image de
Dieu chez Origene, Paris, 1956, 67.
59. MÁXIMO CONFESSOR, Opúsculos teológicos e polêmicos, 1, scholie 2, PC 91,
37BC.
60. Que consiste, segundo São Máximo, na disposição de querer (gnôme) e na es
colha (proairesis).
6 1 . Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Opúsculos teológicos e polêmicos, 1 , scholie 2, PC
91, 37BC.
0 INCONSCIENTE "TEÓFILO" 1 25
80. MÁXIMO CONFESSOR, Disputa com Pirro, PC 91, 309B-312A. A ideia não é nova.
Cf. ISAÍAS DE CETA: "Aquele que quer chegar à conformidade com a natureza restringe
todas as suas vontades segundo a carne, até que ele seja estabelecido no estado natural" (As
cetikon, II, 4). GREGÓRIO DE NISSA, Tratado da virgindade, XII, 2: "Esta volta da alma ao
estado que lhe é próprio e natural é um despojamento de todo elemento estrangeiro".
8 1 . M. DOUCET, La dispute de Maxime le Confesseur avec Pyrrhus, 731 .
82. Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Cartas, 3, P C 91, 409C. Em uma perspectiva próxi
ma, as virtudes são consideradas sementes por EVÁGRIO P Ô NTICO (Centúrias gnósti
cos, 1, 39) e GREGÓRIO NAZIANZENO (Discurso, II, 17).
83. MÁXIMO CONFESSOR, Ambígua a joão, 7, PC 91, 1081D. Cf. GREGÓRIO NA
ZIANZENO, Discurso, II, 17: a virtude é "um bem que não é somente uma semente confia
da à natureza, mas que é também o objeto de uma cultura que depende de nossa vontade e
dos movimentos que empurram nosso livre-arbítrio em uma ou outra direção".
1 28 0 I NCONSCIENTE ESPIRITUAL
pessoa, por seu livre esforço, as atualiza por analogia. Mas vimos que
as sementes devem ser menos entendidas como gérmens que caberia
ao ser humano fazer crescer do que como tendências profundas da na
tureza definidas por seu logos, que deveria ter favorecida sua expressão
pela disposição do querer e pela escolha. Se no entanto, Máximo fala
de uma prática ativa da virtude84 e de um progresso na virtude, deve
mos entender isso como a concordância efetiva da pessoa com a sua
natureza e como o progresso realizado nessa harmonização.
É claro que para Máximo não há solução de continuidade en
tre a semelhança e a imagem85, encontrando-se aquela na finalidade
desta e, portanto, no prolongamento da natureza86• Por outro lado,
podemos conceber a imagem como o conjunto das capacidades que
permitem ao ser humano adquirir a semelhança e o fazem tender a
isso87• Esta concepção é comum à maior parte dos Padres gregos.
4. A graça
107. Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Ambígua a João, 7, PC 91, 10808, 1081A; 42, PC
91, 13288.
108. Cf. ibid., 7, PC 91, 1081C.
109. Cf. H. U. VON 8ALTHASAR, Kosmische Liturgíe, 131; L. THUNBERG, Mícro
cosm and Medíator, Lund, 1965, 69-76.
l lO. Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Ambígua a João, 10, PC 91, l l28D-l l33A; 22, PC
91, 1257A8; 33, PC 91, 1285CD.
lll. Cf. ibid., 33, PC 91, 1285CD.
l l2. Cf. ibid., 22, PC 91, 1247A. Isto significa que as energias estão presentes nos
logoí dos seres, mas não como alguns comentaristas o acreditaram, que estes próprios logoí
são as energias.
1 34 O INCONSCIENTE ESPIRITUAL
um dos seres, Deus o é sem parte nem partilha, não estando nem se
parado diversamente nas diferenças infinitas dos seres nos quais Ele
está inerente, portanto nem contraído segundo a existência particular
de um só, nem contraindo as diferenças dos seres segundo a única
totalidade de todos, mas Ele é verdadeiramente tudo em todos, Ele
que não sai nunca de Sua própria e indivisível simplicidade"113•
As energias divinas, enquanto são comunicadas, dadas por Deus
às criaturas, são comumentemente chamadas de "graça".
Essas energias divinas que se manifestam em todos os seres da
criação em graus diversos estão presentes no ser humano em um
grau eminente, visto que ele ocupa a primeira fila entre as criatu
ras e é a única das criaturas feita à imagem de Deus. Essas energias
divinas estão presentes no logos da natureza humana, mas também,
bem entendido, na imagem de Deus no ser humano que caracteriza
fundamentalmente esse logos, e igualmente nas virtudes que, como
vimos, estão presentes na natureza de uma certa forma.
133. JOÃO CRISÓSTOMO, Homilias sobre as estátuas, XII, 3; cf. 4; XIII, 3; DOROTEU
DE GAZA, Instruções espirituais, III, 40. BARSANUFO, Cartas, 158; ÜRÍGENES, Comentá
rio sobre a Epístola aos Romanos, PG 14, 1081A.
134. DOROTEU DE GAZA, Instruções espirituais, loc. cit.
135. Cf. JOÃO CRISÓSTOMO, Homilias sobre as estátuas, XII, 3; cf. 4; XIII, 3; Do
ROTEU DE GAZA, Instruções espirituais, III, 40. BARSANUFO, Cartas, 158; ÜRÍGENES,
Comentário sobre a Epístola aos Romanos, PG, 14, 1081A.
136. DOROTEU DE GAZA, Instruções espirituais, loc. cit.
137. Ibid.
138. Ibid.
O inconsciente "deífugo"
1
1 40 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
outro Padre3• A Eusébio, que lhe pergunta por que razão os seres hu
manos cuidam das doenças de seu corpo mas não se preocupam com
as doenças de sua alma, João o Solitário responde que, sob o efeito do
pecado, "eles se tornam incapazes de ver e de ouvir, mas [são] pare
cidos com mortos que não sentem nenhuma piedade por seu estado
interior"4• "Doentes que somos", constata São João Clímaco, "não po
demos diagnosticar [as doenças espirituais que estão em nós] , ou por
causa de nossa fraqueza, ou porque elas estão muito profundamente
enraizadas"5. Santo Isaac, o Sírio, observa que "muitos doentes igno-
1. XV, 49.
2. Catequeses, III, 201 s.
3. Apotegmas, CSP V, 1 .
4. Diálogo sobre a alma e as paixões dos homens, ed. Hausherr, 5 1 .
5. A escado, XXVI, 147.
0 INCONSCIENTE "DEIFUGO" 1 41
ram que eles o são", que "a maior parte dos seres humanos que estão
doentes se proclamam com boa saúde"6• São João Crisóstomo nota
que "aquele que se entregou às paixões, meio adormecido por uma
espécie de embriaguez, não sabe nem mesmo que está doente"7• E
ele escreve em outra ocasião sem rodeios: "Não temos o sentimento
de todos esses males que nos acabrunham [ . . . ] . Por nossa insensibi
lidade, não diferimos em nada desses alienados que dizem e fazem
mil coisas perigosas e vergonhosas, e que, longe de se enrubescer,
se vangloriam e se imaginam ser mais sadios de espírito que aqueles
que os cercam. Sim, o mesmo acontece conosco: fazemos tudo o que
fazem os doentes, e não sabemos que somos doentes"8•
6. Cartas, 4.
7. Homilias sobre a Epístola aos Romanos, XI, 5.
8. Tratado da compunção, I, 1 .
9. Cf. JoÃo CRISÓSTOMO, Homilias sobre a Epístola aos Romanos, XI, 5.
10. Cf. JoÃo CRISÓSTOMO, Apologia da vida monástica, III, 9; SIMEÃO, O Novo
TEÓLOGO, Catequeses, VII, 87-88.
1 1 . Discursos ascéticos, 30.
12. Catequeses, VII, 89.
13. Homilias sobre a penitência, VI, 1 .
1 4 . Comentário sobre o salmo 9,9.
1 42 O INCONSCIENTE ESPIRITUAL
estão escondidas nas almas, [que] nos escapam", observa ainda Evá
grio25. São Máximo, Santo Talássio e Santo Hesíquio de Batas reto
mam esta afirmação quase palavra por palavra26• São João Cassiano,
na mesma perspectiva, faz alusão às sementes das paixões que perse
veram no secreto da alma e permanecem escondidas nos recônditos
profundos27• São Marcos, o Monge, nota que há na alma paixões que
são como as serpentes que se escondem nas casas28, e evoca as "pul
sões escondidas que agem no fundo do [ser humano] "29• Ele ensina
que toda paixão, mesmo muito antiga, constitui para o ser humano que
não se purificou totalmente um conjunto de predisposições adorme
cidas que se manifestarão no tempo propício30• É assim que ele fala
dos "maus pensamentos escondidos em nós"31, "pensamentos escon
didos que contemos em nós"32, do "enxame das paixões escondidas
no interior"33, e entre elas põe como explicação, como vimos, o es
quecimento, a negligência, a ignorância, "vícios mais funestos do que
os outros, que a maior parte dos seres humanos ignoram e dos quais
eles não conhecem nem mesmo a existência"34• O próprio São Paulo
evoca "os segredos [do] coração" ( l Cor 14,25) e as ações secretas dos
seres humanos" (Rm 3, 16) . E o Salmista dirige-se assim a Deus: "Seus
pecados, quem os conhece? Daqueles que estão escondidos em mim,
purifica-me" ( Sl 18, 13) .
49. Ibid.
50. Podemos reconhecê-la com alguns indícios. JOÃO CASSIANO apresenta alguns a
título de exemplos (Conferências, XIX 12).
,
que ignorava. Uma única palavra de seu irmão fez aparecer a podri
dão escondida em seu coração"53• A propósito do mesmo exemplo,
São João Cassiano conclui de modo semelhante: "Se, vencidos pela
injúria, nós nos inflamamos de cólera, não devemos acreditar que a
ferida da afronta seja causa deste pecado; ela apenas manifesta uma
fraqueza escondida"54•
O
s dois inconscientes que distinguimos não são patológicos e
nem patogênicos da mesma maneira. Entretanto, sua coexis
tência é em si mesma, para o ser humano, uma fonte de dua
lidades, contradições e conflitos. Cada ser humano experimenta em si
mesmo, de maneira mais ou menos aguda, mais ou menos dolorosa,
mais ou menos inquietante, essa dualidade contraditória de tendên
cias. A literatura alimenta-se dela de maneira habitual, e sabemos que
ela mora em cada página da obra de Dostoiésvski. Pascal é também,
entre os filósofos e escritores, um dos que melhor perceberam esse
fenômeno, e tem a intuição justa de que sua origem reside na "dupla
natureza" da qual o ser humano é portador, sua natureza decaída e
sua natureza original que aquela deteriorou, mas não destruiu:
"Que quimera é pois o ser humano? Que novidade, que monstro, que
caos, que pessoa de contradição, que prodígio! Juiz de todas as coisas, im
becil minhoca da terra; depositário do verdadeiro, escória de incerteza e
de erro; glória e rebotalho do universo. [ . . . J Conhece, pois, soberbo, que
paradoxo és a ti mesmo. Humilha-te, razão impotente; cala-te, natureza
imbecil; aprende que o ser humano ultrapassa infinitamente o ser huma
no, e ouve de teu mestre tua condição verdadeira que ignoras. Escuta
Deus. Porque enfim, se o ser humano nunca tivesse sido corrompido,
ele gozaria em sua inocência da verdade e da felicidade com segurança; e
se o ser humano nunca tivesse sido corrompido não teria nenhuma ideia
nem da verdade, nem da bem-aventurança. Mas como somos infelizes,
e mais ainda se não houvesse grandeza em nossa condição, temos uma
ideia da felicidade e não podemos chegar até ela; sentimos uma imagem
da verdade e possuímos apenas a mentira; incapazes de ignorar absolu
tamente e de saber certamente, tanto é manifesto que nós estivemos em
um grau de perfeição do qual, infelizmente, decaímos"1.
1 A confissão
.
1. Exercício penitencial.
2. Ver nosso estudo Thérapeutique des ma/adies spirituelles, 4. ed. , Paris, 2000,
321-324.
DUAS PRATICAS TERAPtUTICAS CRISTÃS 1 59
práticos, lhe dirão, por exemplo, como lutar contra tal tendência mór
bida que possui, como enfrentar tal impulso, como lutar contra tal
paixão, como chegar a praticar melhor tal virtude, como contornar
tal dificuldade que ele encontra regularmente em seu caminho ou
que é suscetível de chegar sob esta ou aquela circunstância.
A epitimia, exercício penitencial eventualmente dado pelo con
fessor, tem o mesmo sentido terapêutico que seus conselhos. Paul
Evdokimov escreve a este respeito: ela "não é absolutamente um cas
tigo [mas] um remédio, e o pai espiritual busca a relação orgânica en
tre o doente e o meio terapêutico. A finalidade é colocar o penitente
nas condições em que ele não é mais solicitado pelo pecado"3.
No momento da absolvição, na oração do padre, são perdoados
por Cristo os pecados "voluntários e involuntários, conscientes e in
conscientes, os do dia e da noite, os cometidos em espírito e em pen
samento".
O momento da absolvição é necessário para uma cura verdadei
ra e profunda: só a confissão dos pecados alivia certamente o doente,
mas o pecado, ainda que seja assim de alguma maneira exteriorizado
e objetivado, conserva ainda um certo poder, e é só a absolvição que,
destruindo-o pelo perdão divino, o coloca totalmente fora do estado
de prejudicar. Não basta dizer ao médico que estamos doentes e de
que males sofremos para sermos, só por este fato, curados de nossa
doença. E as palavras animadoras do médico e seus conselhos tam
bém não bastam, mesmo se constituem um elemento importante da
terapêutica. Somente quando o mal em suas próprias raízes é destruí
do pelos medicamentos a cura se realiza. A absolvição garante ao ser
humano que suas doenças passadas não subsistem, dá-lhe a garantia
do perdão divino para todas as suas faltas. O penitente conhece então
uma libertação interior, encontra a paz e a alegria espirituais.
O sacramento da penitência ajuda o ser humano liberto dos en
traves do pecado a não ser mais determinado pelo mal passado e a
retomar a posse de si mesmo. Ele coloca à sua disposição todas as
forças que lhe tinham sido dadas por ocasião do batismo e da crisma,
que convém. Por exemplo, pode dizer qual é a natureza de tal pensa
mento, o que ele esconde, que continuação ele é suscetível de ter, se
é indiferente ou mau, e como então deve ser enfrentado e como lutar
contra ele. Tal ideia, tal inspiração que leva a empreender tal ação,
vêm elas dos demônios ou podemos ver nelas uma inspiração boa
e então devemos lhes dar uma continuação? Tal representação que
aparece várias vezes, tal desejo nascido no coração em tal circuns
tância, tal movimento da alma são inocentes, conformes à vontade
divina, indiferentes, maus?18 Consultando o pai espiritual podemos
obter uma resposta certa a estas questões, que ajudará a escapar aos
inconvenientes da dúvida, aos erros e às ilusões do próprio julgamen
to, às ciladas da vontade própria, assim como às astúcias e às ciladas
dos demônios e aos graves desvarios que disso podem resultar19•
De uma maneira geral, a manifestação dos pensamentos ajuda a
evitar os pecados gerados pelos pensamentos escondidos20•
Ajuda também a impedir o reforço das paixões existentes ou a
constituição de novas paixões que se produzem quando damos livre
curso à sua repetição.
Enfim, ajuda a evitar que subsistam na alma pensamentos que
a atormentem e a destruam, e tenham em todo caso, sobre a vida
interior, múltiplos efeitos patológicos precisamente porque ficariam
escondidos. Os pensamentos não-manifestos de fato continuam a vi
ver na alma, muitas vezes secreta e imperceptivelmente, ancoram-se
nela, ali se desenvolvem e a envenenam pouco a pouco. Acabam por
colocá-la em um estado de escravidão, do qual será tanto mais difícil
para a pessoa de sair quanto mais tempo tiver ficado sem reagir e
quanto mais tiver tardado a manifestá-los21• Um antigo assim resume
tudo isto: "Se você é perseguido por pensamentos impuros, não os
22. Apotegmas, 5921'50. Cf. TEODORO ESTUDITA, Grandes catequeses, ed. Papado-
poulos-Kerameus, 623.
23. Ver por exemplo, JOÃO CLÍMACO , A escada, IV, 51.
24. Cf. Primeira vida de Pacômio, 96.
25. Cartas, 320.
26. Conferências, II, 12.
27. Instruções espirituais, 1Y, 24.
28. A escada, 1Y, 12.
29. Apotegmas, 592!'50. Ver também o Typikon do mosteiro de Santa Maria Evergé
tis em Constantinopla, que proclama: "Agora é o tempo da manifestação dos pensamentos
e da medicação das doenças de sua alma. [ . . ] Declare claramente [suas doenças] a fim [ . . . ]
.
de ficar com a saúde perfeita da alma (Typikon de l'Evergétis, cap. 7, apud 1. HAUSHERR,
Direction spirituelle en Orient autrefois, 226).
DUAS PRATICAS TERAP�UTICAS CRISTÃS 1 71
dades que seu filho espiritual acaba de lhe revelar e também rezando
por ele. Este papel de intercessor do pai espiritual, no quadro da
manifestação dos pensamentos, muitas vezes é sublinhado pelos Pa
dres, que atribuem então a eficácia terapêutica dessa prática a uma
intervenção da graça divina em resposta às suas orações35•
No entanto, isso supõe que aquele que manifesta seus pen
samentos tenha para com o pai espiritual, e através dele para com
Deus, as disposições requeridas; que ele o faça sobretudo com fé e
compunção, e de todo o seu coração36•
Para que a manifestação dos pensamentos constitua uma tera
pêutica eficaz é indispensável que aquele que consulta tenha uma
total confiança naquele a quem se dirige37• Portanto, deve no início
escolhê-lo com muito cuidado, mas depois disso é indispensável que
aplique escrupulosamente os tratamentos que ele lhe propuser38. É
precisamente a confiança que, além de favorecer a confissão dos pen
samentos, dando a certeza de que não será julgado nem condenado
por aquele que escuta, permite aplicar o tratamento que ele pre
coniza, sem hesitação e sem manifestar dúvida quanto ao seu valor,
quaisquer que sejam suas aparências.
É importante também que a manifestação dos pensamentos seja
sempre feita ao mesmo pai espiritual e que se permaneça fiel a ele39•
Os Padres alertam contra todo desejo de mudança, porque esse dese
jo dá testemunho de uma reticência nociva, corresponde quase sem
pre a uma sugestão demoníaca40, e traz o risco de conduzir ao agrava
mento dos males41• Manifestar seus pensamentos sempre ao mesmo
pai ajuda a garantir a continuidade e o acompanhamento requerido
pelo tratamento. Dessa maneira, o pai espiritual pode conhecer bem
aquele que lhe abre o coração, saber quais são seus pontos fortes e
a. Ana logias
b. Diferenças
42. Este ponto de vista foi fortemente expressado em duas obras célebres de A.
HESNARD: L'Univers rrwrbide de la faute, Paris, 1949, e Esquisse d'une rrwrale sans obli
gation ni sanction, Paris, 1884.
1 76 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
53. Freud recomenda a seus colegas terem por modelo o cirurgião, que "deixa de
lado toda reação afetiva e até toda simpatia humana" e preconiza "a frieza dos sentimentos"
(La technique psychanalytique, 65 e 66).
DUAS PRATICAS TERAP�UTICAS CRISTÃS 1 81
54. Ver Apotegmas, n. 630, Antoine; AMMONAS, Cartas, IV, 2; EvÁGRIO, Antirético,
Cenodoxia, 9; GREGÓRIO NAZIANZENO, Discursos, II, 13; 78; BASÍLIO DE CESARÉIA, Ho
milias sobre a origem do homem, I, 19; JOÃO CASSIANO, Instituições cenobíticas, VIII, 5;
NILO, Ü ASCETA, Da prática monástica, 23, PC 79, 749C-752A; JOÃO CLÍMACO, A escada,
IV, 6; XXVI, 1 1 ; Carta ao pastor, 9, 15, 21, 49, 57, 97; ISAAC, O SÍRIO, Discursos ascéticos,
21; 56; SIMEÃO, O Novo TEÓLOGO, Tratados éticos, VI, 258 s.; Capítulos teológicos, gnós
ticos e práticos, I, 48; 49.
55. Cf. EVÁGRIO, Trataado do oração, 25; ISAAC, O SÍRIO, Discursos ascéticos, 58.
56. Ver La technique psychanalytique, 27, 67.
57. Ver ibid, 67.
58. Ver ibid, 27.
59. L'Analyse avec fin et l'Analyse sans fin, Paris, 1994, 57.
60. Ver La technique psychanalytique, 138; &sais de psychanalyse, Paris, 1986, 223.
6 1 . Voir La technique psychanalytique, 68.
DUAS PRATICAS TERAP�UTICAS CRISTÃS 1 83
Conclusão
63. Um dos maiores padres espirituais do século XX, o padre Paíssios, que vivia
como eremita no monte Athos, dizia um dia a um de seus visitantes, psicólogo clínico de
profissão: ''Vocês conhecem as almas por intermédio do saber que vocês adquiriram na
universidade e nos livros; eu vejo diretamente seu conteúdo''.
(J
As fontes espirituais
das doenças psíquicas
1 86 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
1 Falsa culpabilidade
.
1. Ver entre outros A. HESNARD, UUnivers rrwrbide de la faute, Paris, 1949; P. So
LIGNAC, La Névrose chrétienne, Paris, 1990.
2. Ver A. HESNARD, Esquisse d'une rrwrale sans obligation ni sanction, Paris, 1884.
/AS FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PS(QUICAS 1 87
4. Ver nossa Thérapeutique des ma/adies spirituelles, 4. ed., Paris, 2000, 229-240.
}.S FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSIQUICAS 1 89
5. Sobre esta forma muito particular de oração, cujo uso é corrente na Igreja orto
doxa, ver ibid., 384-395.
.AS FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 1 93
3. Absolutização do relativo
6. Ibid., 670-673.
7. Psychanalyse et synthese personnelle, Paris, 1959, espec. 57-73.
8. Transvaluation de la psychanalyse. I.:Homme et l'Absolu, Paris, 1956, espec.
134- 149. Wilfried DAIM anota: "Se o Absoluto não é percebido como absoluto, mas como
relativo, e se, ao contrário, algo relativo é percebido como absoluto, um conflito funda
mental nasce no ser humano. A partir desse momento, esse relativo erigido como absoluto
não é Deus, mas um ídolo. Este nasce da deificação de um relativo e vai junto com um
destronamento de Deus, que, em relação a ele, foi privado de seu caráter divino e, con
sequentemente, tomado relativo. Tendo Deus sido transformado em relativo e o ídolo
erigido em absoluto, sobrevém um conflito com a realidade, acompanhado necessaria
mente de consequências funestas. [ . . . ] Se uma porção do mundo é extraída da realidade
e elevada ao nível de ídolo, isto é, erigida em absoluto, inteivém uma desfiguração e um
desequilíbrio da óptica, referindo-se tanto às coisas quanto ao próprio indivíduo. Em suas
relações recíprocas, o ser humano e o mundo são desiquilibrados, a ordem estabelecida é
destruída. Fazendo assim, o próprio ídolo é monstruosamente superestimado, e Deus, em
uma mesma medida, subestimado. Conhecimentos desequilibrados geram também atos
AS FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 1 95
desequilibrados. Estes não são conformes à sua natureza, não são adequados à situação e
passam ao lado de seus objetos. Disso resulta um conflito com a realidade, que constitui a
verdadeira razão da neurose e talvez também da psicose" ( 135-136).
9. Ver nossa Thérapeutique des maladies spirituelles, 49-128.
1 96 O INCONSCIENTE ESPIRITUAL
4. Pseudo-rituais
12. É preciso lembrar que na Igreja ortodoxa numerosas orações pedem a Deus o
perdão dos pecados conscientes e inconscientes.
1 98 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
5. Agressividade perversa
constatam que ela nasce no ser humano quando ele fica afligido por
não poder atingir um prazer que busca, mas igual e principalmente
quando ele se encontra, se sente ou teme ser privado de um prazer
de que gozava, e "no momento pois em que o amor egoísta a si (filau
cia) se encontra ferido pelo sofrimento"13• Ela se volta então contra
7. Supervalorização do eu
traduz um apego ao mundo: aquele que ela toca passa a ter fé nos seres
humanos, dos quais ele espera atenção, estima, admiração, louvores, e
em tudo o que é suscetível de suscitar neles essas atitudes a seu respei
to. Eis por que os Padres qualificam o vaidoso de idólatra.
Na origem da vaidade há a ignorância. De fato, o vaidoso ignora
o valor verdadeiro das coisas das quais ele tira glória, assim como
dessa própria glória. Ele lhes confere uma realidade e uma importân
cia das quais na verdade elas são desprovidas. Ele age como se elas
tivessem um valor absoluto e durável, quando são eminentemente
frágeis, provisórias. Ignora que só a glória divina é perfeita e eterna,
e que os motivos espirituais de glorificação em Deus são os únicos
autenticamente reais. A etimologia da palavra kenodoxia indica seu
caráter vão, fútil, frágil, fugaz, superficial (kenos significa literalmen
te "vazio", "sem fundamento"), assim como o caráter do mundo cuja
figura passa ( l Cor 7,3 1 ) , onde ele busca o que o alimenta e que os
Padres, seguindo o profeta Isaías, comparam à flor da erva (Is 40,6- 7)
ou ainda a um sonho sem duração nem consistência.
Assim, a vaidade parece incluir uma visão delirante da realidade,
visto que, sob a sua influência, o ser humano deixa de conceder rea
lidade, valor e importância àquilo que os tem para conferi-los ao que
é deles desprovido; sua visão do mundo é transtornada, invertida; seu
espírito erra na apreciação que ele dá das coisas. Essa percepção de
lirante da realidade sob o efeito da vaidade aparece frequentemente
na realidade mais cotidiana e sob formas muitas vezes grosseiras.
Na forma mais "sutil" da vaidade, que consiste em valorizar diante
de si e diante dos outros as próprias qualidades intelectuais, morais
ou espirituais, o ser humano manifesta igualmente um conhecimento
delirante, sobretudo de si mesmo. De fato, por ela ele se atribui quali
dades e virtudes que não possui, e não vê os defeitos e as paixões que
na realidade estão nele. Mas se ilude igualmente quando se gloria das
qualidades ou virtudes que possui verdadeiramente. De fato, ele se
considera a fonte e o proprietário dessas virtudes, enquanto de fato
elas são um dom de Deus e, fundamentalmente, só pertencem a Ele.
A vaidade destina aquele que ela habita a toda espécie de males.
Aqueles que agem a fim de ser glorificados pelos seres humanos já
21 2 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
receberam sua recompensa, diz Cristo ( Mt 6,2), que faz esta adver
tência: "Ai de vós quando todos vos bendisserem" ( Lc 6,26).
Essa paixão destrói a paz interior agitando a alma de muitas ma
neiras.
Primeiramente, ela faz que o ser humano fique preocupado em
obter a admiração e os louvores que deseja. Enche assim sua alma
de uma preocupação constante e o leva a uma agitação muitas ve
zes febril e ansiosa. Essa preocupação se vê multiplicada quando não
chega a se satisfazer. Acontece assim frequentemente de o vaidoso
não somente não receber de outrem a atenção e a admiração gozadas
antecipadamente, mas ainda encontrar o resultado contrário. Em vez
dos louvores esperados, ele não suscita mais do que a indiferença;
pior ainda, atrai o ódio, provoca a inveja e o ciúme, faz nascer críti
cas e sarcasmos, especialmente quando sua vaidade manifesta-se em
suas palavras ou transparece em suas atitudes. Tal situação não pode
deixar de gerar tristeza e angústia no ser humano, porque, de um
lado, se encontra frustrado do prazer esperado pela paixão, por outro
deve enfrentar a agressividade de seu meio ambiente, sofre com a
perda de relações harmoniosas com este meio e deve se preocupar
com a busca mais difícil de outros meios de se valorizar para substi
tuir aqueles que fracassaram.
Sob o domínio da vaidade, o ser humano perde sua autonomia
e aliena-se não somente da própria paixão, mas de todos aqueles de
quem ela tem necessidade para se alimentar. Como toda outra pai
xão, ela submete o ser humano a seus desejos carnais específicos e
ao prazer que lhe está ligado, mas também toma o ser humano de
pendente do olhar e da consideração de outrem e escravo daqueles a
quem ele procura agradar porque espera seus louvores.
A vaidade tem por outro efeito perigoso e temível mergulhar o
ser humano em um mundo de fantasmas . De fato, sob sua inspiração,
o ser humano imagina ter todo tipo de qualidades, virtudes, méritos,
bens etc., representa-se a si mesmo em situações ou estados que lhe
valem considerações e louvores. Isso tem por primeira consequên
cia patológica desprender o ser humano da realidade que ele vive,
desviar sua atenção do que o cerca, diminuir sua atividade em suas
f'.S FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 21 3
Essa aceitação tem uma função libertadora; ela cura o ser humano
da vaidade quando busca a glória mundana, a admiração ou mesmo
a estima dos outros.
Mas a vaidade é também uma paixão pela qual o ser humano
se estima, se admira, honra a si mesmo e se glorifica a seus próprios
olhos . Para combatê-la neste nível, o ser humano deve ignorar pri
meiramente suas eventuais qualidades e esconder a seus próprios
olhos o que ele tem de bom nele e o que fez de bem.
Observamos que a glória que vem dos seres humanos e a glória
que vem de Deus são antagonistas e mutuamente exclusivas. Se o ser
humano deve renunciar a toda glória humana é a fim de ter acesso à
glória divina, à qual sua natureza o destina. Enquanto ele permanece
apegado à glória terrestre não pode de modo algum saborear a glória
celeste. Eis por que a humilhação é o caminho obrigatório, a condição
indispensável para participar da glória divina. Como vimos, o ser hu
mano tende por natureza à glória, mas a glória que vem de Deus é a
única que lhe convém verdadeiramente. Assim, ele deve se glorificar
exclusivamente em Deus, conforme a palavra do Apóstolo: "Nós nos
gloriamos em Cristo Jesus e não confiamos na carne" (Fl 3,3), e segun
do a promessa de Deus: "Eu glorificarei aqueles que me glorificam"
( l Rs 2,30). Sua busca pela "glória segundo a carne" (2Cor 1 1 , 18) deve
ser substituída pela busca da "glória que vem só de Deus" (Jo 5,44).
Quanto mais o ser humano tende à glória divina, tanto mais ele
se desinteressa pela glória que vem dos homens. Eis por que o amor
a Deus e à Sua glória aparece como um meio de libertar a alma da
vaidade.
A este respeito, devemos notar o papel essencial que desem
penha a oração, que permite ao ser humano desprender-se deste
mundo que a vaidade tem por objeto e apegar-se a Deus, e que lhe
permite também glorificar a Deus, reconhecendo que é a Ele "que
pertencem toda glória, honra e adoração''.
A terapêutica do orgulho apresenta um certo número de pontos
comuns com a terapêutica da vaidade.
Porque o orgulho consiste em geral em uma elevação de si mes
mo em relação aos outros e em relação a Deus, o ser humano só pode
f'.S FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 223
20. Cf. JoÃo CRISÓSTOMO, Homilias sobre os Atos, XXX, 3; Himilias sobre 2 Tessa
lonicenses 1, 2 ; Homilias sobre Oséias IV,4; Comentário sobre João XXXIII,3.
21. Centúrias sobre a caridade, IV, 61.
224 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
8. Desvalorização patológica do eu
23. Cartas, IV, 9. Cf. NICOLAU CABASILAS, A vida em Cristo, VII, 66.
AS FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSIQUICAS 227
1 1 A tristeza e a acédia
.
gosto para nada, acha todas as coisas enfadonhas e insípidas, não es
pera mais nada de nada. Como os precedentes, este sintoma no plano
psíquico é característico da depressão.
Um outro traço da acédia, ligado aos anteriores na medida em
que procura inconscientemente compensá-los, é que o ser humano
atingido por ela toma-se psíquica e fisicamente instável. Suas facul
dades tomam-se inconstantes; seu espírito, incapaz de se fixar, vai de
um objeto a outro. Sobretudo quando está sozinho, não suporta mais
permanecer no lugar em que se encontra: a paixão o leva a sair de lá,
a se deslocar, a ir a um ou diversos outros lugares. Às vezes, ele põe
se a andar errante e a vagabundear. De uma maneira geral, procura
a todo custo contatos com outrem. Esses contatos não são objetiva
mente indispensáveis, mas, levado pela paixão, ele sente necessidade
deles e encontra "bons" pretextos para justificá-los. Assim, estabelece
e cultiva relações muitas vezes fúteis que alimenta com vãos discur
sos, nos quais manifesta geralmente uma vã curiosidade.
Pode acontecer que a acédia inspire àquele que ela atinge uma
aversão intensa e permanente pelo lugar onde reside, que lhe dê mo
tivos para estar descontente, o leve a acreditar que estaria melhor
em outro lugar. Então, ele é levado a desejar outros lugares onde
poderia encontrar mais facilmente aquilo de que tem necessidade. A
acédia pode também levá-lo a fugir de suas atividades - sobretudo
de seu trabalho, com o qual ela o toma insatisfeito - e, então, o leva
a procurar outros, fazendo-o acreditar que serão mais interessantes e
o tomarão mais feliz . . .
No entanto, devemos notar que, em alguns casos, a acédia não
gera tais fatores compensatórios, mas vem acompanhada por uma
volta total sobre si mesmo, por uma aversão a qualquer deslocamento
e pela recusa de todo contato com o exterior - neste caso os fatores
de inércia e inapetência levam a melhor.
Quaisquer que sejam, estes estados que se ligam à acédia vêm
acompanhados de inquietação e ansiedade, que são, além da repug
nância, caracteres fundamentais dessa paixão.
O que distingue essencialmente a acédia da tristeza é que nada
de exato a motiva, que "o espírito é perturbado sem razão", como diz
Af, FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 239
São João Cassiano. Mas que ela não tenha motivo não significa que
não tenha causa. De acordo com os Padres, a etiologia demoníaca é
preponderante no caso. No entanto, para poder agir, ela supõe um
terreno favorável. O fato de estar ligada ao prazer e sob o domínio da
tristeza constitui um fato particularmente notável.
O principal efeito patológico da acédia é um obscurecimento ge
ral da alma (fator que já encontramos na tristeza) : ela toma o espírito
obscuro e o cega, e cobre de trevas toda a alma. A inteligência perde
então toda capacidade de discernimento e de conhecimento objetivo
da realidade.
Os Padres constatam ainda que a acédia, que constitui um "re
laxamento da alma" e um "deixar-se levar do espírito", gera o vazio
na alma, leva o ser humano a uma negligência generalizada e o toma
covarde. Unida à tristeza, ela a aumenta, e pode então facilmente
conduzir ao desespero. Tem como outras consequências notórias tor
nar irritável aquele que ela atinge.
29. Sobre estas disposições espirituais, ver nossa Thérapeutique des maladies spiri
tuelles, 352-368.
30. Sobre o sentido desta disposição espiritual, ver ibid. , 659-676.
242 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL
1 3 . Falta de amor
1 4. Pseudo-amor
Uma outra causa espiritual das doenças psíquicas que tem sua fon
te nos parentes próximos do doente (o pai e/ou a mãe), pela qual
ele próprio não tem nenhuma responsabilidade, mas da qual sofre
os efeitos patogênicos, é o que podemos chamar de "pseudo-amor".
Não se trata, como anteriormente, de uma ausência de amor, mas de
As FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSIQUICAS 249
'
A
guisa de conclusão e à luz das reflexões precedentes, gostaría-
mos de trazer alguns elementos de resposta a esta questão: a
terapêutica espiritual e a psicoterapia são exclusivas uma da
outra ou complementares?
Antes de tudo, é preciso ter bem em mente que os dois tipos de
prática não têm o mesmo objeto nem a mesma finalidade: a terapêutica
espiritual visa a cuidar e a curar as doenças espirituais; as psicoterapias
visam a cuidar e a curar as doenças psíquicas.
Todavia, o problema de suas relações se coloca na medida em que,
como mostramos antes, a vida psíquica é amplamente dependente da
vida espiritual, e na medida em que um grande número de doenças
psíquicas está ligado a doenças espirituais, dependendo portanto a
cura daquelas da cura destas.
Um pai espiritual autêntico, experiente, dotado de discernimento
e carisma, é, em princípio, capaz de cuidar eficazmente das doenças
psíquicas que têm por origem doenças espirituais, por meio do trata
mento destas doenças espirituais.
Entretanto, várias observações devem ser feitas:
1) A terapêutica das doenças espirituais tem por finalidade a saú
de espiritual e a salvação do ser humano1 e não pode ser utilizada como
simples meio de tratar doenças psíquicas.
2) A terapêutica das doenças espirituais não é somente dependen
te da relação com o pai espiritual, mas integra-se a todo um contexto
de vida ascética (no sentido amplo) e eclesial.
3) Esta última observação implica que, no quadro da vida espiri
tual, o doente deve participar de sua própria cura por um certo modo
de vida ascética e eclesial e pelo esforço para aplicar os conselhos de
seu pai espiritual.
1 . Sobre a relação da saúde espiritual e da salvação, ver nossa obra Le Chrétien de
vant la maladie, la souffrance et la rrwrt, Paris, 2002, cap. 15 (Salut et guérison), 249-278.
0 RECURSO A TERAPWTICA ESPIRITUAL EXCLUI O USO DA PSICOTERAPIA? 253
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