Jean Claude Larchet O Inconsciente Espiritual

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O inconsciente

espiritual
JEAN-CLAUDE LARCHET

O inconsciente

espiritual

Tradução
Odila Aparecida de Queiroz, csj

Edições Loyola
Título original:
l'inconscient spirituel
© Les tditions du Cerf, 2005
29, boulevard La Tour-Maubourg
75340 Paris Cedex 07
ISBN 2-204-07787-9

Preparação: Maurício Balthazar Leal


Projeto Gráfico: Ronaldo Hideo lnoue
Capa: Maria Clara R. Oliveira
Revisão: Carlos Alberto Bárbaro

Edições Loyola
Rua 1822, 341 lpiranga
-

04216-000 São Paulo, SP


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ISBN 978-85-15-03688-2
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2009
Prefácio
7

1
Doenças psíquicas
e doenças espirituais
13

2
Os grandes princípios
da antropologia cristã
21

3
O problema da compatibil idade
dos fundamentos antropológicos:
o exemplo da psicanálise freudiana
31

4
O problema da compatibilidade dos
fundamentos teológicos e éticos:
o exemplo da psicologia analítica junguiana
47

5
Uma outra concepção do inconsciente:
o inconsciente espiritual
105

6
O inconsciente "teófilo"
111
7
O inconsciente "deífugo"
139

8
O inconsciente espiritual e a terapêutica
151

9
Duas práticas terapêuticas cristãs:
a confissão e a manifestação dos pensamentos
157

10
As fontes espirituais das doenças psíquicas
185

1 1
O recurso à terapêutica espiritual
exclui o uso da psicoterapia?
251
Prefácio
8 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

E
ste livro responde aos pedidos que me foram feitos de muitas
partes para desenvolver minha concepção das relações entre as
doenças mentais e as doenças espirituais, para tomar mais clara
a noção de "inconsciente espiritual", que eu havia evocado anterior­
mente, e para lançar as bases do que poderia ser uma psicoterapia
cristã que se inspira na rica experiência do "cuidado das almas'', ad­
quirida no decorrer dos séculos pela Tradição ortodoxa.
Em uma forma desenvolvida, ele inclui várias conferências e co­
municações apresentadas por ocasião de colóquios ou de congressos
internacionais.
No decorrer dos debates que acompanharam algumas dessas
reuniões, das quais participavam psicólogos, psiquiatras e psicotera­
peutas cristãos pertencentes a diversas "escolas", mas também teó­
logos e filósofos, pareceu que a utilização, por psicoterapeutas cris­
tãos para pacientes cristãos, de psicoterapias cujos fundamentos e
métodos estavam afastados dos princípios e práticas do cristianismo
permanecia problemática. Hoje, na Grécia, este assunto é objeto de
controvérsias e tensões muito importantes, e isto já há vários anos.
A oposição mais viva encontra-se-entre aqueles que pensam que as
psicoterapias têm um estatuto equivalente ao dos diferentes ramos
da medicina, constituindo portanto uma esfera autônoma em relação
à religião, e aqueles que consideram que a tradição ascética ortodoxa
e a prática da paternidade espiritual, tal como existe na Igreja ortodo­
xa, oferecem meios adequados para tratar "por acréscimo" as pertur­
bações psíquicas e tomam supérfluo todo recurso a psicoterapias.
As tensões e os debates são indiscutivelmente menos vivos no
mundo católico e no mundo protestante . Por um lado, as psicotera­
pias foram introduzidas já há várias décadas, e as discussões que tal
introdução suscitou não estão mais na ordem do dia. Além disso, a
integração da psicanálise foi favorecida pelo entusiasmo despertado
entre o próprio clero, nos anos 1960, pelas ciências humanas então
em voga. Por outro lado, o catolicismo e o protestantismo não pos­
suem uma tradição ascética elaborada e metódica e uma prática da
paternidade espiritual análogas às que existem no mundo ortodoxo
e que poderiam reivindicar uma função psicoterápica incluída em
PREFACIO 9

sua função espiritual. A isto podemos acrescentar as constatações


feitas pelos sociólogos de que a ausência da prática da confissão no
protestantismo e seu abandono ou sua passagem de uma forma pes­
soal a uma forma comunitária no catolicismo favoreceram, em certa
medida, o desenvolvimento da psicanálise e das psicoterapias em
suas zonas de influência.
No entanto, apesar desse estado de coisas, no Ocidente, no de­
correr do tempo e até hoje, diversas publicações não deixaram de se
interrogar sobre o problema da compatibilidade de algumas formas de
psicoterapia (particularmente da psicanálise e da psicologia analítica)
com os princípios (especialmente antropológicos) do cristianismo.
O que quer que resulte desse debate, é forçoso reconhecer que,
para suas implicações antropológicas, tanto no nível de seus funda­
mentos teóricos como no de suas aplicações práticas, as psicoterapias
levantam um problema particular para o cristianismo que as terapias
médicas, como a neurologia e a psiquiatria, não levantam, pois têm
um estatuto científico reconhecido e incontestável.
No mundo cristão, diversas psicoterapias foram adotadas como
métodos já estabelecidos, de alguma forma "prontos para ser empre­
gados". Estas psicoterapias tiveram seus defensores e seus detratores,
mas não houve esforço consequente para desenvolver uma psicotera­
pia cristã, ou ao menos uma psicoterapia que tivesse seus fundamentos
antropológicos e suas práticas terapêuticas situados, de maneira clara
e incontestável, na continuidade dos fundamentos do cristianismo.
Por ocasião de diferentes congressos recentes que reuniram psi­
coterapeutas cristãos, numerosas vozes se levantaram para solicitar
que sejam feitas pesquisas nesta direção.
Na qualidade de contribuições novas para a compreensão e o
tratamento de doenças psíquicas tais pesquisas só podem ser bem­
vindas, na medida em que, entre algumas centenas de psicoterapias
que apareceram e desenvolveram-se no decorrer do século XX, ne­
nhuma se impôs como mais apta do que as outras para curar as doen­
ças que pretendia tratar. A constatação feita por estudos recentes de
que no tratamento das doenças psíquicas "valem todas as terapias"
indica uma eficácia, mas também uma ineficácia, equivalentes em
10 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

relação a males dos quais a natureza profunda permanece misteriosa


em muitos aspectos e para os quais a explicação permanece geral­
mente hipotética, a tal ponto que, para diversas doenças mentais, he­
sitamos ainda hoje - e talvez mais ainda hoje, por causa dos progres­
sos da genética - entre causas totalmente heterogêneas: puramente
biológicas de um lado, puramente psíquicas e ambientais por outro.
Os estudos que dirijo, há vários anos, sobre as doenças espiri­
tuais e sobre a tradição terapêutica do Oriente cristão oferecem, sem
dúvida alguma, novas perspectivas para a compreensão e a terapêu­
tica das doenças psíquicas, na medida em que estas são, em certa
medida, relativas àquelas.
Sem pretender constituir um estudo sistemático e completo,
esta obra deseja indicar com exatidão tais relações e suscitar assim
novas pesquisas.
Ao longo deste livro, mantivemos claramente a distinção entre as
doenças psíquicas e as doenças espirituais, evitando assim um duplo
risco: por um lado, o de uma concepção bolchevista que reduz o psí­
quico ao espiritual, não concedendo em consequência nenhum lugar
à psicoterapia propriamente dita; por outro lado, o de uma confusão
do psíquico com o espiritual. Enquanto se encontra a primeira po­
sição frequentemente no mundo ortodoxo, a segunda é amplamente
difundida no mundo católico, onde as emissões de rádio e a literatura,
ambas religiosas, foram amplamente investidas, nestes últimos anos,
por um discurso psicologizante, com tendência a se substituir à espi­
ritualidade - os sociólogos falam a este respeito de um movimento
"psiritual" -, inspirando-se às vezes na Nova Era, baseando-se em
vários casos sobre esquemas simplistas e caracterizando-se quase
sempre por uma abordagem tão pouco rigorosa quanto superficial,
assim como por uma ausência de fundamentação na Tradição, apesar
da presença de algumas referências patrísticas tiradas de seu contex­
to e utilizadas como elemento ilusório1 •

1. Sobre esta corrente, ver o artigo de 1. FRANCK, "Psy" et "spi" font-ils bon mé­
nage?, Écritures 55 (2003) 6-9, e sobretudo o dossiê Psychologie et vie spirituelle. Dis­
tinguer pour unir, Christus 197 (2003). Devemos notar que esta corrente não se refere,
PREFACIO 11

Se bem que, ao afirmar que algumas doenças mentais estão liga­


das a algumas doenças espirituais e, consequentemente, que a cura
daquelas depende destas, queremos evitar o risco de instrumentali­
zar a espiritualidade (e a fortiori a vida sacramental, à qual ela está
indissoluvelmente ligada) , bem conscientes de que o fim desta não é
a cura psíquica do ser humano, mas sua cura espiritual em vista de
sua salvação e de sua deificação.
Mas é evidente que, em nossa perspectiva, a relação entre a
psicoterapia e a terapia espiritual suscita um problema delicado, do
mesmo modo que o lugar e a função do psicoterapeuta em relação ao
terapeuta espiritual. Esperamos ter contribuído também para eluci­
dar esta questão.
Devemos também elucidar com mais exatidão a noção de "in­
consciente espiritual" que desenvolvemos nesta obra. A concepção
aqui apresentada não é de modo nenhum calcada sobre as diferentes
teorias modernas do inconsciente. Por um lado, ela fundamenta-se
sobre elementos identificáveis na mais antiga literatura patrística. Por
outro, se apresenta uma analogia global com as concepções modernas
- papel do inconsciente na patologia, papel do "tomar-se conscien­
te" na terapêutica -, ela distingue-se delas muito claramente. Em
primeiro lugar, distinguimos duas formas de inconsciente presentes
no ser humano, mas de certo modo em conflito. Em segundo lugar, a
tomada de consciência desses dois inconscie!ltes parece-nos ser uma
condição necessária, mas não suficiente, para a cura espiritual e para
a cura psíquica ligada, de certo modo, a esta. Tudo o que dizemos
aqui deve ser ressituado em um contexto mais global que expusemos
antes em nossa Terapêutica das doenças espirituais. A cura espiri­
tual depende de um modo de vida ascético (entendido no sentido
amplo) e, indissociavelmente, da vida sacramental, esta concedida
pela Igreja. Se o esforço pessoal do ser humano e a ajuda dos outros
(em particular de um pai espiritual autêntico e experimentado) são
indispensáveis para a sua cura espiritual, esta só pode ser realizada

propriamente falando, à psicoterapia, mas à busca de um certo bem-estar interior, razão


pela qual ela encontrou um grande público.
12 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

pela graça. Em outras palavras, ela é sempre o fruto de uma sinergia


humano-divina da qual o Cristo é o mediador.

FONTES

- O capítulo 1 é o desenvolvimento de uma comunicação apre­


sentada no 10º Congresso da Federação Europeia das Associações
Médicas Católicas, ocorrido em Bratislava, Eslováquia, de 1 º a 4
de julho de 2004, com o tema "New Challenges for Medicine and
Health Care in Europe".
- Os capítulos 2 e 3 são as duas partes de uma comunicação
apresentada no colóquio científico internacional acontecido em Liva­
dia, Grécia, de 1 º a 5 de outubro de 2003, com o tema "Teologia cristã
ortodoxa e psicoterapia".
- O capítulo 4 é o desenvolvimento de uma comunicação apre­
sentada nas "Jornadas de psicologia" organizadas nos dias 27 e 28 de
agosto de 2004 pelo Departamento de Psicologia da Universidade
Católica de Buenos Aires, Argentina, com o tema "Psicologia e pen­
samento cristão".
- O capítulo 7 retoma e desenvolve o capítulo 12 (A dimensão
inconsciente das paixões) de meu livro O cristão diante da doença,
do sofrimento e da rrwrte, intitulado "A dimensão inconsciente das
paixões".
- Os capítulos 9, 10 e 11 são o desenvolvimento de duas confe­
rências apresentadas em 24 e 25 de outubro de 2003 em Tessalônica,
Grécia, a convite do Centro Helênico de Psicanálise e da revista T]
auvá.vTT]CJT].
Doenças psíquicas
e doenças espirituais
14 O INCONSCIENTE ESPIRITUAL

A
finalidade desta obra é mostrar como algumas doenças psí­
quicas têm sua fonte em algumas dessas doenças espirituais,
e portanto como a cura de tais doenças psíquicas depende, ao
menos parcialmente, de uma terapêutica espiritual.
Vários pontos precisam ser definidos, especialmente no que se
refere à natureza respectiva das doenças espirituais e das doenças
psíquicas.

1. As doenças psíquicas são distintas das doenças


espirituais, do mesmo modo que as doenças espirituais
são distintas das doenças psíquicas

As doenças psíquicas não se identificam com as doenças espirituais:


trata-se de doenças de natureza diferente, e convém manter a distin­
ção entre elas.
Essa distinção não significa que devamos conceber três domí­
nios independentes, situados um acima do outro: o plano corporal,
o plano psíquico e o plano espiritual. Tal concepção é válida para os
dois primeiros elementos, mas não para o terceiro, que, em seu sen­
tido mais geral, tem um significado relacional.
Se em um sentido particular o adjetivo "espiritual" significa o
que é relativo ao espírito ou intelecto do ser humano (o pneuma ou
nous1) e se, em um outro sentido particular, ele designa o que vem
do Espírito Santo ou é relativo a Ele, em seu sentido geral, que re­
temos aqui, ele qualifica de fato uma relação, positiva ou negativa,

1. Encontramos nos Padres da Igreja a tricotomia corpo, alma, espírito. Em sua


origem, a palavra espírito era designada, em grego, pela palavra pneu17Ul. Os riscos de
confusão com o Espírito levaram os Padres a preferir a palavra nous. Esta palavra designa
o espírito (com minúscula) ou o intelecto, isto é, a inteligência intuitiva do ser humano,
cuja finalidade primeira é contemplativa. Frequentemente, esta faculdade é apresentada
como a faculdade superior da alma, o que permite então reduzir a tricotomia (corpo-alma­
espírito) a uma dicotomia (corpo-alma). Sobre este assunto, ver nosso livro Thérapeutique
des 17Ulladies mentales, Paris, 1992, 25-42. No sentido restrito, as doenças espirituais são
doenças do espírito (nous). No sentido amplo, que encaramos aqui, não são somente doen­
ças do espírito ou do nous: elas afetam também as outras faculdades.
DoENÇAS PSfQUICAS E DOENÇAS ESPIRITUAIS 15

com Deus (o que significa, por exemplo, que a negação ou o esque­


cimento de Deus é uma atitude espiritual da mesma maneira que a
memória de Deus ou a fé em Deus) . A partir desse momento, o que
entendemos por doença espiritual, na atividade humana em geral e
no funcionamento das diferentes faculdades humanas em particular,
é uma perturbação da relação normal do ser humano com Deus; e
o que entendemos por cura espiritual é um restabelecimento dessa
relação normal com Deus.
As doenças psíquicas expressam uma disfunção da vida psíquica
do ser humano que pressupõe uma perturbação, geralmente acom­
panhada de sofrimento psíquico, de suas relações consigo mesmo,
com os outros e com a realidade exterior.
Ainda que todo fato de colocar em atividade uma faculdade psí­
quica tenha um significado espiritual em nome da relação com Deus,
positiva ou negativa, que ela pressupõe, a esfera psíquica tem uma
relativa autonomia em relação à esfera espiritual. Do mesmo modo,
a esfera corporal tem uma certa autonomia em relação à esfera espi­
ritual e à esfera psíquica.
Em razão da unidade do composto humano - alma-corpo - e
pelo fato de que o ser humano só existe em uma relação (positiva ou
negativa) com Deus, há entretanto uma ligação entre elas.

2. Um certo número de doenças psíquicas está diretamente


ligado a doenças espirituais, do mesmo modo que um certo
número de doenças psíquicas está ligado a doenças corporais

As doenças espirituais têm uma origem sui generis . Algumas doenças


físicas ou algumas doenças psíquicas certamente podem oferecer, às
vezes, um terreno favorável a seu desenvolvimento, mas não podem
ser sua causa.
No que se refere às doenças corporais, algumas podem ter uma
causa puramente física (o que é o caso mais geral). Outras podem ser
provocadas por doenças ou ao menos perturbações psíquicas (neste
último caso, falamos de doenças psicossomáticas). Outras ainda po-
16 O INCONSCIENTE ESPIRITUAL

dem ser engendradas por doenças espirituais (podemos pensar em


particular na gula ou na luxúria, mas também na ira e no temor, que
têm efeitos patogênicos evidentes sobre o organismo). Entretanto, a
maior parte das doenças corporais têm uma origem que corresponde
ou a uma disfunção do próprio corpo, ou a uma influência do meio
ambiente em relação à qual o organismo não possui os meios para se
defender (intoxicações, contaminações etc . ) .
As doenças psíquicas não são independentes, como as doenças
espirituais. Por outro lado, elas têm uma independência menor do
que as doenças corporais: as perturbações sui generis são mais raras
na esfera psíquica. As doenças psíquicas frequentemente são mais
provocadas ou por doenças corporais, ou por doenças espirituais, ou
por uma intervenção exterior de tipo demoníaco, ou pela conjugação
de vários destes fatores.

Devemos cuidar de não subavaliar (e, a fortiori, de negar) a etio­


logia corporal (biológica ou fisiológica) das doenças psíquicas, como
algumas psicoterapias são tentadas a fazê-lo. Algumas doenças psí­
quicas podem ter uma etiologia puramente somática, mesmo se elas
fazem intervir, quanto às suas formas de expressão, fatores psíquicos
e até mesmo espirituais. Por outro lado, algumas dimensões da do­
ença podem ser corporais, enquanto outras são psíquicas e espiri­
tuais. Pode ser útil e mesmo necessário associar ao tratamento psí­
quico (psicoterapia) e ao tratamento espiritual (terapêutica espiritual)
um tratamento medicamentoso que age na dimensão corporal. Por
exemplo, a ausência ou o excesso de vitalidade frequentemente estão
estreitamente ligados a fatores físicos, e a regulação da vitalidade por
uma terapêutica medicamentosa é às vezes a condição indispensável
para tomar o doente acessível ao discurso do terapeuta e permitir
que ele próprio participe de seu tratamento.

Do mesmo modo que é prejudicial à compreensão e à terapêu­


tica das doenças psíquicas subavaliar o fator corporal na etiologia de
algumas delas, é prejudicial subavaliar o fator espiritual. Este últi­
mo fator é posto de lado pela psiquiatria, em nome da ciência que,
DoENÇAS PSÍQUICAS E DOENÇAS ESPIRITUAIS 17

por razões epistemológicas, entende limitar-se a um quadro exclu­


sivamente naturalista. Infelizmente, é igualmente ignorado ou ne­
gado pela maioria das psicoterapias, que ora baseiam-se de fato em
fundamentos naturalistas, ora são opostas por princípio a referências
espirituais (especialmente porque encaram a vida psíquica como um
domínio totalmente autônomo), ora baseiam-se numa antropologia
abertamente materialista e ateia que a priori exclui tais referências.
De acordo com nossa concepção, a vida psíquica está estreita­
mente ligada à vida espiritual e tem pouca independência em rela­
ção a ela.
De modo geral, a vida psíquica não é muito dissociável da ques­
tão do sentido, isto é, ao mesmo tempo de sua orientação e de seu
conteúdo. Ela está estreitamente condicionada pelas relações que o
ser humano cultiva consigo mesmo e com os outros, assim como com
sua representação do mundo (o que se chama em alemão Weltan­
schauung), e estes por sua vez estão estreitamente dependentes da
relação (positiva ou negativa) que ele tem com Deus.
Já por estas razões, a vida psíquica não pode ser considerada um
simples jogo, mecânico, de forças em que simplesmente tratar-se-ia
de controlar o poder e a harmonia. E o psicoterapeuta não poderia
ser considerado para o domínio psíquico um equivalente do que é o
ortopedista ou o cardiologista para o domínio somático.
Como mostramos no capítulo que lembra os grandes princípios
da antropologia cristã, esta concebe a relação com Deus como aquela
que define o ser humano em sua natureza e em sua existência pes­
soal. Considera por isso que as diferentes faculdades humanas são
naturalmente orientadas para Deus e que seu exercício é "contra a
natureza" e anormal quando a pessoa o realiza em um outro sen­
tido. Por este exercício contra a natureza das faculdades humanas
formam-se as paixões, as quais constituem doenças espirituais que
devem ser propriamente distinguidas das doenças psíquicas: assim
como as paixões não são doenças psíquicas, tampouco as doenças psí­
quicas são paixões. Todavia, as doenças espirituais, mesmo definindo­
se enquanto tais por referência a Deus, não se referem a outra coisa
a não ser ao uso ou ao modo de exercício de nossas faculdades (razão,
18 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

poder desejante, poder agressivo, imaginação, memória etc. ) . Todo


modo de exercício contra a natureza de uma faculdade corresponde
a uma doença dessa faculdade, não somente de um ponto de vista
espiritual, mas ainda de um ponto de vista psicológico.
A desarmonia introduzida pelas paixões no exercício de nossas
faculdades é uma desarmonia não somente espiritual mas psíquica.
Isso significa que toda doença espiritual gera uma perturbação
psíquica correspondente.
Isso não significa que essa perturbação seja, por esse motivo,
descoberta ou assinalável no quadro da nosologia das doenças psí­
quicas que nossa sociedade tem como referência. Inversamente, as
doenças psíquicas repertoriadas por essa nosologia não são sempre
imediatamente identificáveis a doenças espirituais correspondentes.
As duas nosologias, ainda que repertoriando doenças correspon­
dentes a um funcionamento anormal das mesmas faculdades, são ex­
tremamente diferentes por suas origens e seus quadros culturais. A
capacidade de estabelecer uma ligação explícita entre as duas supõe
uma familiaridade com uma e com outra. É evidente que a rejeição
a priori, a ignorância ou o desconhecimento da patologia espiritual
tomam impossível o reconhecimento dos fatores espirituais patogê­
nicos na vida psíquica.
Mas outros fatores tomam incômodo o fato de colocar em rela­
ção esses dois tipos de doenças.
Há especialmente o fato de que as doenças espirituais podem
ter entre si um equilíbrio tal que, no plano psíquico, não deixem per­
ceber nenhuma perturbação identificável como doença psíquica do
ponto de vista da nosologia em vigor. Um dos maiores espirituais or­
todoxos do século XX nos dizia um dia: "O que em nossa sociedade é
considerado normalidade e saúde psíquica é apenas a soma de todas
as doenças espirituais contidas e mantidas em equilíbrio".
Freud notava que, em uma certa medida, todos os seres huma­
nos são neuróticos. Uma doença psíquica só é notada a partir do mo­
mento em que um certo ponto de desequilíbrio foi atingido, a partir
do momento em que um certo umbral de intensidade foi atravessado
por uma perturbação particular, e a partir do momento em que isso
constitui um incômodo para o indivíduo e para o seu meio social.
DoENÇAS PSIQUICAS E DOENÇAS ESPIRITUAIS 19

A patologia espiritual induz a uma patologia psíquica bem real,


frequentemente não identificada segundo os quadros da nosologia
clássica, mas que, ao contrário, é descoberta pelos Padres espirituais
experimentados e dotados de discernimento, que veem, como se fos­
se com uma lupa, uma realidade escondida à vista ordinária.
Em um grande número de casos, as doenças psíquicas "declara­
das" ou descobertas têm, no íntimo e como fontes, perturbações es­
pirituais proeminentes, às vezes isoladas, mas mais frequentemente
conjugadas, como veremos em um próximo capítulo.

3. Doença e culpabilidade

As doenças espirituais correspondem a paixões que os Padres qua­


lificam de "culpáveis". Afirmar que as doenças espirituais desempe­
nham um certo papel no nascimento, no desenvolvimento ou na sub­
sistência de algumas doenças psíquicas não significa no entanto que
aqueles que são atingidos por doenças psíquicas sejam mais culpados
ou mais pecadores do que os outros.
O ser humano decaído é necessariamente habitado pelas pai­
xões, se bem que elas se encontram em proporções diferentes nos di­
ferentes indivíduos. Como acabamos de ver, podemos dizer que cada
pessoa desenvolve uma patologia psíquica relativa à sua patologia es­
piritual. Mas na maioria dos seres humanos essa patologia psíquica é
equilibrada, de modo que não se manifesta na forma de perturbações
perceptíveis ou de doenças identificáveis.
As pessoas atingidas por doenças psíquicas são as que não con­
seguiram, por causa de circunstâncias pessoais, familiares ou sociais
particulares, manter tal equilíbrio e nas quais tal elemento patológico,
em vez de ser compensado, equilibrado ou abafado pelos outros ele­
mentos patológicos, tomou-se predominante ou, em todo caso, sufi­
cientemente poderoso para se manifestar como patológico e se tomar
patogênico. Podemos pois considerar que a responsabilidade "moral"
ou o estado de pecado é a priori idêntico no ser humano doente e no
ser humano decaído pretensamente sadio. Portanto, não se trata em
20 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

nenhum caso, de nosso ponto de vista, de culpabilizar aqueles que


são doentes psiquicamente. Podemos até mesmo considerar que eles
merecem uma compaixão suplementar, na medida em que foram ví­
timas de circunstâncias mais desfavoráveis e em que, pelo fato de seu
estado, experimentaram um sofrimento maior do que os outros seres
humanos. Em um certo número de casos, as doenças psíquicas podem
estar ligadas às faltas pessoais, e aquele que é atingido por elas pode
ser diretamente responsável; mas em muitos outros casos o doente
é uma vítima, mais frequentemente de seu meio ambiente e de suas
relações familiares.
Por isso, a terapêutica deve, por um lado, esforçar-se para atingir
todas as pessoas interessadas, na medida em que o doente permanece
em relação com elas, e por outro lado, e sobretudo, trazer ao doente
os meios de enfrentar essa relação por meios espirituais adequados.

4. A terapêutica espiritual não deve ser


confundida com uma terapêutica psíquica

Mesmo quando reconhecemos que algumas doenças psíquicas de­


pendem de uma terapêutica espiritual na medida em que elas depen­
dem de causas espirituais, não se trata para nós de afastar as terapêu­
ticas espirituais para fazer terapêuticas psíquicas (ou psicoterapias)
ou simples meios a serviço destas. A natureza e a finalidade das te­
rapêuticas espirituais devem ser absolutamente respeitadas, tanto
mais que nelas intervêm como fonte de cura a graça e seu vetor, os
sacramentos, o que significa que elas são indissociáveis do domínio
sobrenatural e do domínio da vida eclesial. Os dois domínios saem
dos limites de uma terapêutica "profana" e excluem uma instrumen­
talização em proveito de fins exteriores e inferiores.
Isto supõe que sejam bem delimitados os papéis dos diferentes
terapeutas capazes de intervir, e que sejam determinadas a natureza
e as modalidades de sua eventual colaboração.
Os grandes princípios da
antropologia cristã
22 0 INCONSCI ENTE ESPIRITUAL

O
s diferentes capítulos deste livro fazem referência, constan­
temente, à antropologia cristã tal como ela sobressai sobre­
tudo no ensinamento dos Padres gregos. Assim, é indispen­
sável lembrar seus princípios fundamentais1 •
A antropologia cristã tem uma característica essencial: não con­
cebe o ser humano independentemente de sua relação com Deus.
Esta relação com Deus caracteriza o ser humano ao mesmo tempo
em seu ser e em seu vir a ser.
A base da antropologia cristã é bíblica e reside na afirmação de
que o homem foi criado à imagem e à semelhança de Deus ( Gn 1,26) .
Esta afirmação, ainda que se encontre no livro do Gênesis e apareça
no contexto da criação do homem, não diz respeito somente ao pri­
meiro homem, mas aplica-se a todo ser humano. Portanto, refere-se
à natureza mesma do ser humano e é constitutiva de sua definição.
A imagem designa sobretudo a constituição natural do ser hu­
mano. O homem é a imagem de Deus em sua própria natureza, so­
bretudo pelas faculdades superiores que possui: seu intelecto (nous),
sua razão (logos), sua vontade (thelema, thelesis), sua faculdade de
escolha (proairesis ), seu poder de amar. Mas um certo número de co­
mentários patrísticos sublinha que o ser humano, na realidade, é um
ser à imagem de Deus pelo conjunto de suas faculdades.
Enquanto a imagem é dada de imediato ao ser humano, como
constitutiva de sua natureza, a semelhança deve ser adquirida pes­
soalmente por ele: consiste nas virtudes, nas disposições habituais ou
estados (exeis) espirituais que unem o ser humano a Deus e o tomam
semelhante a Ele. Podemos dizer que a imagem de Deus refere-se
mais particularmente ao ser (einai ) do homem, enquanto a seme­
lhança refere-se mais especificamente à sua maneira de ser (trapos
uparxeos ) , mais exatamente a seu estar-bem (eu einai), e inicialmente
ambas apresentam-se a ele como um dever-ser.
Entretanto, há uma relação estreita entre a imagem e a seme­
lhança.

1. Para uma exposição mais pormenorizada, ver o meu Thérapeutique des maladies
spirituelles, Paris, du Cerf, 42000.
OS GRANDES PRINCÍPIOS DA ANTROPOLOGIA CRISTÃ 23

Em primeiro lugar, a imagem é o que permite ao ser humano


realizar a semelhança: é sobre a base dos poderes (dunameis ) ou
faculdades constitutivas da imagem e por meio de sua energia (ener­
geia) que o ser humano poderá efetivar as virtudes pelas quais se
realizará a semelhança.
Em seguida, como sublinham alguns comentários patrísticos,
as virtudes já estão presentes em gérmen na própria natureza do
ser humano, e cada pessoa tem como tarefa fazê-las crescer em si
mesma. Assim, segundo o livro do Gênesis, Deus não diz "Criemos o
homem à nossa imagem, em vista de nossa semelhança", mas "à nos­
sa imagem e à nossa semelhança'', porque a semelhança já foi dada,
em uma certa medida, ao ser humano desde a sua criação: o ser
humano foi criado sendo orientado para a realização da semelhança
e começando já a realizá-la.
Enfim, na realização da semelhança a imagem realiza sua fi­
nalidade e encontra seu acabamento (sumplerosis) e sua perfeição
(pleroma) . Assim, um indivíduo dotado de inteligência, de vontade e
de livre-arbítrio, mas que não fosse moderado, casto, desinteressado,
meigo, humilde, bom etc., não seria uma pessoa realizada nem per­
feita (cf. Ef 4, 13) .
Se quisermos expressar tudo isso de uma outra maneira, podere­
mos dizer também, com muitos Padres, que o ser humano é destina­
do por natureza a se tomar deus por graça. Se bem que a deificação
do ser humano seja ela própria o fruto da graça, a natureza do ser hu­
mano, no entanto, é constituída de tal modo que ela possa se dispor
a receber essa graça e a realizar essa finalidade; ela é criada por Deus
sendo dinamicamente orientada para a realização dessa finalidade
que Deus lhe atribuiu.
O que significa que, no ser humano, todas as faculdades são fei­
tas para que ele possa, por elas, voltar-se para Deus e unir-se a Deus.
Assim, a inteligência em sua forma intuitiva (noos) e em sua forma
racional (logos) é feita para conhecer Deus; a faculdade desejante
(epithumia, epithumetikon) é feita para desejar Deus e amá-Lo; o
poder irascível ou ardor (thumos) é feito para combater o mal, afastar
as tentações e lançar mão do zelo de que necessita a vida espiritual; a
vontade é feita para se conformar com a vontade de Deus e realizar
24 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

Seus preceitos; a memória é feita para se lembrar de Deus; os senti­


dos e a imaginação são feitos para servir de base à contemplação . . .
Mas o que significa também que, natural e espontaneamente,
tais faculdades ou poderes (dunameis) são por sua atividade (ener­
geia) orientados para Deus.
As virtudes correspondem precisamente a essa orientação das
faculdades do ser humano para Deus. Por isso, a vida virtuosa é con­
siderada pelos Padres aquela "conforme à natureza" (kata phusin).

Os comentários patrísticos do livro do Gênesis, quando descre­


vem o estado paradisíaco, mostram-nos o primeiro homem, Adão
(que representa o homem tal como foi criado por Deus, em seu esta­
do original, natural e normal), inteiramente orientado para Deus em
todo o seu ser, por todos os seus poderes, ativando-se para Deus. N es­
se estado, o ser humano apesar disso não era plenamente realizado:
ele estava em um estado dinâmico de crescimento, e vários Padres o
comparam a uma criança, com o que isso comporta de fragilidade e
de inacabamento. Mas ao mesmo tempo esse estado de crescimento
era um estado normal e sadio, porque Adão levava um modo de exis­
tência orientado para Deus, em que todas as suas faculdades, com
toda a sua energia, exerciam-se para Deus, com a finalidade de que
realizasse a semelhança com Ele e estivesse, cada vez mais, pessoal e
conscientemente, unido a Ele.
De acordo com a fé cristã, esse processo de crescimento espi­
ritual não é somente o fruto da energia humana: ele resulta de uma
cooperação (sunergeia) da energia humana com a energia divina, na
qual Deus dá ao ser humano a possibilidade de participar e que cha­
mamos também de graça. Quanto mais o ser humano é puro, humil­
de e vive segundo as virtudes, tanto mais ele pode deixar entrar e
agir nele a graça ou a energia divina, e tanto mais essa graça substitui
sua própria energia, que não é abolida, mas voluntária e livremente
desativada. Se o ser humano que chegou ao final de seu processo de
crescimento espiritual pode ser divinizado, é precisamente pela ação
da energia divina nele, porque nem seu poder nem sua energia natu­
rais lhe permitem alcançar esse estado que está além de sua natureza,
mas que no entanto constitui uma realização de sua natureza, pois,
OS GRANDES PRINCÍPIOS DA ANTROPOLOGIA CRISTÃ 25

como vimos, os Padres ensinam que o fim último do ser humano, a


finalidade para a qual ele foi criado, é tomar-se deus por graça, reali­
zando sua natureza em um modo de existência sobrenatural.

O pecado ancestral veio introduzir perturbações nesse processo.


O pecado ancestral - confirmado e reforçado pelos pecados dos
descendentes de Adão e Eva - é caracterizado pelo fato de o ser
humano ter se desviado voluntariamente de Deus. Em vez de reco­
nhecer Deus como o princípio e o fim (arkhe kai telos) de sua exis­
tência, o ser humano pôs-se a ignorar Deus. Por um desvio e uma
perversão de suas faculdades de conhecimento, o ser humano substi­
tuiu o conhecimento de Deus e a contemplação das criaturas em Deus
pelo conhecimento das criaturas fora de Deus e somente em suas
aparências sensíveis. Por um desvio de sua faculdade desejante e de
seus sentimentos, o ser humano, em vez de desejar e de amar a Deus,
pôs-se a amar a si mesmo, fora de Deus, por uma atitude apaixonada
que os Padres chamam "amor egoísta a si" (filáucia2) e a amar as cria­
turas pelo prazer sensível que elas lhe davam neste amor egoísta a
si mesmo. Querendo o ser humano tomar-se deus sem Deus, fez de si
mesmo um ídolo e das criaturas outros tantos ídolos, relativizando o
Absoluto e absolutizando o relativo. Por um desvio de seu poder iras­
cível (thurrws), o ser humano, em vez de combater "o bom combate"
(lTm 6, 12) contra as forças do mal e as tentações e de manifestar seu
zelo para se unir cada vez mais a Deus, pôs-se a combater contra o
que se opunha à satisfação de seus desejos passionais e manifestou
sua agressividade contra o seu próximo, na ira, no ódio, nas rivalida­
des, na dominação. Do mesmo modo, o ser humano desviou sua von­
tade de realização da vontade de Deus para fazer sua "vontade pró­
pria'', a serviço de seus próprios desígnios mundanos e de seus desejos
passionais. A memória desviou-se da lembrança de Deus para se en­
cher das lembranças das coisas deste mundo. Em vez de fornecer ao
ser humano representações para a contemplação, a imaginação pôs-se

2. Filáucia, do grego philautía, amor-próprio; pelo latimjilaucia, amor-próprio, egoís­


mo. ( N . do T.)
26 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

a criar representações correspondentes a seus desejos passionais e a


inventar todas as formas do mal.
Em suma, todas as faculdades da natureza humana foram assim
desviadas de seu uso original, normal e sadio para um uso peIVerso,
contra a natureza (para phusin), insensato (para logon), anormal e
doentio. Assim, toda a natureza do ser humano pôs-se a existir e a
funcionar fora de si mesma, em um estado não somente de alteração
mas de alienação.
Do mesmo modo que o uso normal das faculdades do ser humano
constitui as virtudes, seu uso anormal constitui as paixões, cujo próprio
nome significa "doenças" e que os Padres unanimemente consideram
"doenças da alma", mas que é sem dúvida preferível chamar, em nos­
sos dias, de "doenças espirituais", para evitar confundi-las com doenças
psíquicas (se bem que elas possam ser a causa destas últimas).
No ser humano decaído as paixões são inumeráveis. A fim de faci­
litar seu reconhecimento e seu combate na vida espiritual, os Padres as
classificaram em geral; mas várias classificações foram propostas.
Em primeiro lugar, com uma finalidade de simplificação, a tradi­
ção ascética do Oriente cristão, depois de Evágrio Pôntico, enumerou
nove paixões principais ou "genéricas": 1) a gastrimargia (gastrimar­
gia), afeição apaixonada ao alimento; 2) a luxúria (porneia), afeição
apaixonada ao prazer sexual; 3) a filargíria (philarguria) e a pleonexia
(pleonexia ), afeição apaixonada ao dinheiro e às riquezas materiais; 4)
a tristeza (lupe); 5) a acédia (akedia); 6) a ira (orge), que representa
todas as formas patológicas de agressividade; 7) o temor (phobos),
que se estende do medo à angústia, passando pela inquietação e pela
ansiedade; 8) a vaidade (kenodoxia), falsa valorização de si diante de
si mesmo e dos outros; 9) o orgulho (uperephania), atitude diante da
qual é afirmada sua independência em relação a Deus e sua superio­
ridade em relação aos outros3.
Uma outra classificação, compatível com a precedente e a se­
guinte, consiste em classificar as paixões segundo sua relação com
as principais faculdades ou poderes (dunameis) da alma4• Assim, po-

3. Ver EvÁGRIO PÔNTICO, Tratado prático, 5.


4. Ver JOÃO CASSIANO, Conferências, XXIV, 15.
OS GRANDES PRINCIPIOS DA ANTROPOLOGIA CRISTÃ 27

demos distinguir: 1) as paixões que se referem ao poder desejante


(epithumia, epithumetikon) como a gastrimargia, a luxúria, a filargíria
e a pleonexia, o temor; 2) as paixões que se referem ao poder irascível
(thumos), como a ira (orge); 3) as paixões que se referem ao mesmo
tempo ao poder desejante e ao poder irascível, como a tristeza (lupe)
e a acédia (akedia); 4) as paixões que se referem ao poder racional
(logikon), como a vaidade (kenodoxia) e o orgulho (uperephania) .
Uma terceira classificação, proposta por São Máximo Confessor,
é particularmente interessante não somente do ponto de vista da pa­
tologia espiritual, mas da psicopatologia, e embora simples chega a
incluir a multidão das paixões.
Como todos os Padres, São Máximo considera que os três efeitos
do pecado ancestral são para a natureza humana a passibilidade, a
corruptibilidade e a mortalidade. A irrupção da passibilidade no ser
humano depois do pecado ancestral o levou a fazer a experiência do
prazer e da dor, que não existiam no estado paradisíaco.
O prazer e a dor exercem um poder muito forte no ser humano
decaído: ele é fortemente atraído pelo prazer, enquanto experimenta
uma viva repulsa diante da dor.
Destas duas tendências, a atração pelo prazer é fundamental:
o ser humano só foge da dor porque ela é um estado que o priva de
prazer e que é oposto a ele.
Essa atração pelo prazer explica-se pelo fato de que ele tornou­
se para o ser humano decaído um substituto do gozo espiritual que
ele experimentava, originalmente, em seu desejo de Deus e em sua
união com Ele, no amor e no conhecimento. Por isso a atração pelo
prazer aparece intimamente ligada à ignorância de Deus e ao amor
egoísta a si mesmo (filáucia) .
Segundo São Máximo, é da dupla tendência do ser humano a
buscar o prazer e a fugir da dor para satisfazer o amor egoísta a si mes­
mo (filáucia) que nascem todas as paixões ou doenças espirituais.
Apresentando uma longuíssima lista de paixões, ele as dividiu
assim em três categorias:
1) as paixões que decorrem da busca do prazer;
2) as paixões que decorrem da fuga da dor (ou da evitação do
desprazer);
28 O INCONSCIENTE ESPIRITUAL

3) as paixões que resultam da conjugação dessas duas tendên­


cias5.
A atração pelo prazer e a repulsa pela dor condicionam doravan­
te a consciência moral do ser humano decaído: para ele, é bem o que
lhe dá prazer, é mal o que lhe ocasiona dor.

A tradição patrística grega (à diferença da tradição latina proce­


dente de Santo Agostinho) considera que os descendentes de Adão
herdam efeitos de seu pecado na natureza (a passibilidade, a corrup­
tibilidade e a mortalidade), mas não de seu pecado e de sua culpa­
bilidade, que são pessoais. Portanto, em princípio, os seres humanos
herdam paixões não-culpáveis que afetam a natureza - a fome, a
sede, a fadiga, o temor, o prazer, a dor - e não as paixões culpáveis
que acabamos de evocar longamente. Entretanto, as paixões não­
culpáveis e a mortalidade constituem zonas de fragilidade com base
nas quais os demônios exercem uma pressão sobre o ser humano e
a partir dos quais ele é fortemente incitado a desenvolver paixões
culpáveis e a cometer pecados que são a expressão disso. De fato, do
mesmo modo que São Máximo Confessor sublinhou fortemente que
o ser humano é levado a desenvolver nele as paixões más por causa
de sua fortíssima atração pelo prazer e por sua vivíssima repulsa pela
dor, Teodoro de Mopsuéstia e São João Crisóstomo sublinham que o
medo suscitado pela morte incita igualmente o ser humano a desen-

5. "Procurando obter o prazer e evitar o sofrimento, o ser humano inventa formas


múltiplas e inumeráveis de paixões corruptoras. Por exemplo, se pelo prazer cultivarmos
o amor egoísta por nós mesmos, suscitamos em nós a gulodice, o orgulho, a vaidade, a
presunção, a avareza, a avidez, a tirania, a arrogância, a ostentação, a crueldade, o furor, o
sentimento de superioridade, a teimosia, o desprezo dos outros, a injúria, a impiedade, a
liberdade excessiva nos costumes, a prodigalidade, a devassidão, a frivolidade, a presunção,
a moleza, o insulto, o ultraje, a prolixidade, a tagarelice, a obscenidade e qualquer outro
vício deste gênero. Mas se o amor egoísta a si mesmo é ferido pelo sofrimento, então faz
nascer a ira, a inveja, o ódio, a hostilidade, o rancor, o ultraje, a maledicência, a calúnia, a
tristeza, o desespero, a aflição, a falsa acusação da Providência divina, a despreocupação,
a negligência, o desânimo, o abatimento, a pusilanimidade, a lamentação, a melancolia, a
amargura, a inveja e todos os outros vícios devidos à privação do prazer. A mistura sofri­
mento-prazer, que gera a má vontade e a maldade, faz nascer em nós a hipocrisia, a ironia,
a astúcia, a dissimulação, a adulação, a complacência e todos os outros vícios nascidos desta
mistura." (Questões a Talássios, Prólogo, PC 90, 2568-D)
OS GRANDES PRINCÍPIOS DA ANTROPOLOGIA CRISTÃ 29

volver nele as paixões, porque elas lhe dão a ilusão de viver intensa­
mente e de se manter em vida.
Podemos então dizer que todo ser humano, se não nasce pecador,
ao menos nasce com uma forte tendência ao pecado, à qual, na prática,
dá cedo ou tarde o seu assentimento. Por isso os Padres falam mui­
tas vezes do poder tirânico exercido sobre a humanidade decaída pela
morte, pelo diabo e pelo pecado, e dizem correlativamente que é, an­
tes de tudo, deste triplo poder que Cristo veio libertar a humanidade.

É necessário sublinhar que o pecado ancestral confirmado e per­


petuado pelos descendentes de Adão não modificou a natureza hu­
mana em profundidade. Os Padres insistem no fato de que o ser huma­
no permanece constituído à imagem de Deus. Podemos dizer que a
natureza permaneceu intacta em sua essência (ousia) ou no logos de
seu ser, e que ela só foi alterada no modo de sua existência (trapos tes
uparxeos), o que significa que o homem decaído guarda as mesmas
faculdades ou poderes (dunameis) do homem original saído das mãos
de Deus, mas que estes não se exercem mais da mesma maneira.
Por isso os Padres dizem que as paixões consistem em um mau
uso (parachresis), em um uso perverso ou contra a natureza (para
phusin) das diferentes faculdades do ser humano.
Esse mau uso é determinado pela atividade ou energia (ener­
geia) de que cada pessoa tem o domínio, mas em parte somente, pois
essa energia é orientada a priori em um mau sentido pelo estado de­
caído da natureza, e especialmente, como vimos, pela passibilidade e
pelas afeições que a marcam.
Essa situação é o contrário daquela que conhecia o ser humano
em seu estado original e paradisíaco, no qual, como vimos, esponta­
neamente sua energia era, se bem que ele disso dispôs livremente,
orientada para o bem e para Deus, em um sentido conforme à natu­
reza (kata phusin), o que já definia, "germinativamente'', um modo
de existência virtuoso.

A salvação trazida por Cristo aparece como uma cura da nature­


za (sabemos que em diversas línguas a palavra "salvação" tem a mesma
30 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

origem etimológica que a palavra "cura", e às vezes é até a mesma pa­


lavra que é utilizada para designar as duas).
Vários Padres notam que essa cura tomou a forma de uma re­
construção, fazendo passar a natureza de seu modo de existência
contra a natureza (para phusin) ao modo de existência conforme à
natureza (kata phusin) que era o da natureza original do ser humano.
Ao mesmo tempo, Cristo deu àqueles que estão unidos a Ele pelo
batismo a graça de não estarem mais submissos ao poder tirânico do
pecado, do diabo, da passibilidade e da morte. Correlativamente, ele
deu a cada pessoa, exercendo a energia de sua natureza em coope­
ração (sunergeia) com a energia ou a graça divina, a possibilidade de
poder levar esse modo de existência conforme à natureza e realizar a
semelhança com Deus, que corresponde à vocação espiritual do ser
humano e que dispõe a receber a energia divina que realiza a nature­
za além de si mesma, fazendo dele um deus pela graça.
Entretanto, o que Cristo realizou por Sua economia salvadora
na natureza humana que Ele assumiu - a graça da cura, da salvação
e da deificação que Ele trouxe a toda a humanidade - deve ser re­
cebido por todos e cada um nos sacramentos da Igreja e assimilado
na vida de ascese, que consiste primeiramente em um longo esforço
para se purificar das paixões e viver segundo as virtudes, o que se rea­
liza pela prática dos mandamentos divinos. É por esse caminho, que
é tanto mais difícil quanto são poderosas as afeições do ser humano
por si mesmo e pelo mundo, que o fiel pode passar do estado doen­
tio da natureza decaída à saúde do homem novo, do qual Cristo nos
apresenta o modelo perfeito em Si mesmo.
Para progredir neste caminho da ascese libertadora, o ser huma­
no não está sozinho: ele é guiado pelos santos padres espirituais que
chegaram ao fim e que conhecem todas as dificuldades do caminho,
e sobretudo ele dispõe da ajuda poderosa da graça, que lhe permite
ultrapassar os limites de suas próprias forças e mesmo sair das maio­
res dificuldades, porque o que é impossível ao ser humano é possível
a Deus (cf. Mt 19,26; Me 10,27) .
O problema da compatibilidade
dos fundamentos antropológicos:
o exemplo da psicanálise freudiana
32 O INCONSCI ENTE ESPIRITUAL

Introdução

S
e, como notamos anteriormente, a esfera psíquica dispõe de
pouca autonomia em relação à esfera espiritual, e se a relação
positiva ou negativa do ser humano com Deus é determinante
não somente quanto a seu estado de saúde e de doença espiritual,
mas ainda quanto a seu estado de saúde ou de doença psíquica, na
medida em que este é relativo àquele, então a questão dos funda­
mentos antropológicos da terapêutica psíquica - qualquer que seja
sua forma ou seu lugar em relação à terapêutica espiritual - toma-se
crucial. Só uma psicoterapia cujos fundamentos antropológicos estão
de acordo com os da antropologia cristã parece-nos, no quadro que
definimos, apta a desempenhar seu papel. Em compensação, uma
psicoterapia cujos princípios antropológicos divergissem dos princí­
pios do cristianismo teria, neste mesmo quadro, efeitos não somente
limitados mas prejudiciais.
Um psicoterapeuta cristão deve pois mostrar-se especialmente
atento ao método psicoterápico que ele utiliza, do mesmo modo que
um paciente cristão ao tipo de psicoterapia à qual recorre.
Aqui, seria inútil passar em revista os diferentes tipos de psico­
terapias, porque existem várias centenas e algumas são sérias e rei­
vindicam um estatuto científico, outras totalmente fantasistas; além
disso, em numerosos países o problema é que o exercício da profissão
de psicoterapeuta não é regulamentado e todos os tipos de práticas
permanecem imagináveis. O problema complica-se pelo fato de que
em muitos países, igualmente, não se encontram, como é geralmen­
te o caso na França, "escolas" bem delimitadas e identificáveis, mas
pelo fato de que um bom número de psicoterapeutas faz uma síntese
pessoal de elementos de origens diversas.
Por isso escolhemos tomar aqui, como primeiro exemplo, a psi­
canálise freudiana, porque ela é, entre as diferentes formas de psico­
terapia, ao mesmo tempo uma das mais sérias e das mais conhecidas.
Entretanto, ela não escapa às diferentes variantes; é a razão pela qual
mantemos o que lhes é comum : o pensamento fundador de Freud.
Este pensamento conheceu variações no decorrer do tempo e não
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS ANTROPOLóGICOS 33

ficou isento de incoerências; também privilegiamos as referências


às últimas obras do mestre, representativas do último estado de seu
pensamento. Coloca-se também o problema da diversidade das in­
terpretações desse pensamento; é a razão pela qual permanecemos
próximos dos próprios textos, fornecendo numerosas citações e refe­
rências facilmente verificáveis.

Com a aparição e o desenvolvimento da psicanálise freudiana,


rapidamente foi posto o problema de sua compatibilidade ou sua in­
compatibilidade com o cristianismo. Este problema já é antigo nos
países do noroeste da Europa e da América do Norte, onde a psica­
nálise conheceu muito cedo um desenvolvimento importante; mas
não recebeu solução definitiva, pois em nossos dias continua a ser
regularmente abordado. Esse problema é mais novo para os países de
tradição ortodoxa que, até as últimas décadas, viveram globalmente
à parte das correntes de pensamento ocidentais, e agora suscita de­
bates animados.
O problema coloca-se em um plano prático por causa sobretudo
das analogias evidentes entre a psicanálise e a confissão (exorrwloge­
sís). É fato notório que a psicanálise conheceu um desenvolvimen­
to mais rápido e mais importante nos países de tradição protestante
(Alemanha, países nórdicos, Inglaterra, Estados Unidos) do que nos
países de tradição católica, e um certo número de sociólogos expli­
cou esse fato pela ausência da confissão no protestantismo. Em um
contexto ortodoxo, o problema apresenta-se de maneira mais crucial
ainda, por causa do papel importante desempenhado pelo pai espiri­
tual e pela prática da "manifestação dos pensamentos" (exagoreusís),
cuja analogia com a psicanálise é maior ainda, pois se trata de uma
revelação muito fina e muito precisa das manifestações mais profun­
das da vida da alma, com uma visão terapêutica.
No momento, nossa finalidade não é examinar as semelhanças e
diferenças entre as duas práticas, mas antes encarar o problema da
compatibilidade da psicanálise freudiana e do cristianismo no plano
teórico de seus respectivos fundamentos antropológicos. Este é um
problema mais fundamental que o anterior, porque a psicanálise, con-
34 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

trariamente ao que pretendem alguns de seus partidários, não pode


ser considerada uma prática puramente empírica, que deveria ser
julgada somente enquanto tal e seria adaptável a qualquer contexto
antropológico. Trata-se sim de uma prática que decorre de uma certa
concepção não somente do funcionamento do psiquismo humano,
mas do ser humano na globalidade de seu ser e de seu vir a ser1•
Também não se trata de uma prática fundamentada em uma
concepção científica que, enquanto tal, seria neutra e por isso mesmo
compatível com qualquer filosofia ou religião na medida em que pro­
cede de um domínio independente. O estatuto puramente científico
reivindicado pelo freudismo nunca lhe foi reconhecido, e foi mais
como filósofo do que como médico que Freud passou à posteridade.
Colocar o problema da compatibilidade da psicanálise e do cris­
tianismo é, portanto, colocar o problema da compatibilidade de duas
antropologias, de duas concepções do ser humano.

1 Elementos análogos
.

Podemos notar na concepção freudiana um certo número de elemen­


tos análogos àqueles que apresentamos no primeiro capítulo.
Em primeiro lugar, podemos notar o papel desempenhado na pa­
tologia psíquica do ser humano por aquilo que Freud chama de "narci­
sismo", que podemos reaproximar da noção patrística de filáucia.
Por outro lado, sabemos a importância que têm na concepção freu­
diana as pulsões de vida (designadas globalmente com o nome de Eros)
e as pulsões de morte (designadas globalmente com o nome de Tâna­
tos ); grande parte da patologia psíquica resulta da incapacidade do ser
humano de gerenciar corretamente essas pulsões. Ora, podemos en-

1. S. FREUD diz em uma de suas conferências: "A psicanálise, em seus começos, foi
apenas um método terapêutico, mas eu gostaria que seu interesse não ficasse exclusiva­
mente nesta utilização, mas também [ ] nas conclusões que ela nos permite tirar acerca
. . .

daquilo que toca o ser humano de mais perto: seu próprio ser, enfim, nas relações que
ela descobre entre as formas variadas da atividade humana" (Nouvelles conférences sur la
psychanalyse, Paris, 1975, 206-207) .
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS ANTROPOLóGICOS 35

contrar uma analogia entre esses dois pólos pulsionais e as duas potên­
cias fundamentais que na antropologia dos Padres gregos são o poder
desejante (epithumia, epithumetikon) e o poder irascível (thumos),
cujo uso desviado suscita um certo número de doenças espirituais. Esta
última analogia vem do fato de que Freud e os Padres gregos têm,
neste ponto, uma fonte comum: a antropologia platônica2•
Em relação com estas duas noções, podemos notar que em
Freud, como na concepção patrística, a relação do ser humano com
o prazer e com a dor desempenha um papel fundamental. A busca
do prazer e a evitação do desprazer constituem na doutrina freudia­
na a base das atitudes e dos comportamentos do ser humano, não
somente em sua tenra infância, mas ao longo de toda a sua vida3•
Ora, vimos que os Padres reconhecem nessas duas tendências um
papel fundamental e que elas estão mesmo, de acordo com Máximo
Confessor, na base de todas as paixões ou doenças espirituais do ser
humano decaído.
No plano da dinâmica psíquica, também podemos constatar al­
gumas analogias.
Primeiramente, para Freud como para os Padres, há uma "eco­
nomia" da energia: a energia necessariamente deve ser investida em
algum lugar, e da natureza, do sentido e da medida de seu investi­
mento depende a boa ou a má saúde do ser humano.
Em segundo lugar, a vida interior do ser humano é habitada por
conflitos, e do fim de tais conflitos depende também a boa ou a má
saúde do ser humano.
Em terceiro lugar, o ser humano é chamado a um desenvolvi­
mento, no qual adquire progressivamente o domínio de si. Segundo
Freud, o ego, na parte de si mesmo constituída pelas faculdades su­
periores que são a consciência e a vontade, é chamado a dominar o id
(constituído, de um lado, por elementos recalcados e, por outro lado,
por pulsões sexuais e agressivas que se expressam, originalmente, de
maneira bruta desde a zona inconsciente do psiquismo)4• "Lá onde

· 2. Cf. ID., Essais de psychanalyse, Paris, 1975, 1 10.


3. Cf. ID., Le Malaise dans la culture, Paris, 1995, 18-19.
4. Cf. ID., Essais de psychanalyse, 193-194, 230.
36 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

estava o id'', escreve Freud, "o ego deve advir". Do mesmo modo, os
Padres consideram que, no ser humano, o espírito e a razão devem
dominar e governar a parte irracional da alma, sendo a temperança
(egkrateia) uma das virtudes genéricas (genikai aretai) que condicio­
nam a aquisição das outras virtudes.
Para Freud, o crescimento interior do ser humano implica
igualmente que este, abandonando seu narcisismo originário, de­
senvolva laços positivos com seus semelhantes, e esta forma superior
de afeição está na base de uma vida social harmoniosa5• Tal concep­
ção é análoga à concepção cristã segundo a qual o ser humano deve
substituir o amor egoísta a si (filáucia) pelo amor ao próximo e pelo
amor a Deus.

2. Diferenças

Parece-nos, no entanto, que as diferenças entre a antropologia cristã


e a antropologia freudiana e suas concepções da saúde, da doença
e da cura são mais importantes dos que as analogias, aliás bastante
gerais, que acabamos de constatar.
Poderíamos a priori recusar-nos a fazer a comparação, se consi­
derássemos que a saúde e as doenças de que se trata nos dois casos
não são da mesma natureza: saúde e doenças psíquicas (ou mentais)
no caso do freudismo, saúde e doenças espirituais no caso do cristia­
nismo. No entanto, se definimos o espiritual pela relação (positiva ou
negativa) com Deus, devemos considerar que, se o ser humano não
pode, de acordo com a antropologia cristã, se definir independente­
mente de sua relação com Deus, então o que depende da saúde e da
doença psíquicas, como tudo o que depende do modo de exercício
das faculdades humanas, depende também, ao menos em certa me­
dida, do domínio espiritual.
O que distingue radicalmente a antropologia freudiana da antro­
pologia cristã é que esta concebe o modo de existência do ser huma-

5. Ver ID., Le Malaise dans la culture, 49-58.


0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS ANTROPOLóGICOS 37

no pela relação com Deus, enquanto a antropologia freudiana o con­


cebe independentemente de Deus, e mesmo em certa medida em
oposição a Deus, na medida em que a relação do ser humano com
Deus é, segundo Freud, patológica6• A posição de Freud em relação
a Deus e à religião não é uma posição científica neutra, mas a de um
ateu militante e de um opositor convencido7• Freud reconhece a in­
fluência exercida sobre ele por Feuerbach, o pai do ateísmo e do
materialismo modemos8, que exerceu sobre Marx igualmente uma
influência importante. Do mesmo modo que Marx proclama que "a
religião é o ópio do povo", Freud afirma que "a ação das consolações
religiosas pode ser assimilada à ação de um narcótico"9• Deus é para
Freud apenas "um conceito vazio"10• Sua realidade e a realidade de
todo o mundo espiritual são apenas as de uma projeção psicológica11.
Por isso, toda religião é apenas uma ilusão12• Deus é uma invenção do
ser humano para responder à sua necessidade de se sentir seguro e
protegido em relação ao sentimento de desamparo (Hilfiosigkeit) que

6. Ver ID., L'avenir d'une illusion, Paris, 1932, 44-45, 49-50, 54; Actions compulsio­
nnelles et exercices religieux, in Psychose, névrose et peroersion, Paris, 1973, 133-142; Un
souvemir d'enfance de Léonard de Vinci, Paris, 1927, 177-178; Totem et tabou, Paris, 1951,
21 1-213; Moi"se et le nwnothéisme, Paris, 1948, 90; Carta de 2 de janeiro de 1910 a C. G.
Jung, in ID., Correspondance (1906-1914), Paris, 1992, 372.
7. Ver por exemplo ID., Nouvelles conférences sur la psychanalyse, 211-231 . Sobre a
atitude de Freud em relação à religião, ver em particular A. PLÉ, Freud et la religion, Paris,
1968. Sobre a atitude hostil de Freud em relação à religião, dispomos também do testemu­
nho direto de C. G. JUNG: "Em nossas numerosas conversas sobre este assunto, mais de
uma vez aconteceu-lhe de citar Voltaire: 'Esmagai o infame!'. [ . . ] Que a atitude de Freud
.

a respeito de toda religião tenha sido negativa é um dado histórico, independentemente do


fato de que ele próprio o tenha dito em seu tratado sobre este assunto" (Carta de 7 de maio
de 1956 a Andrew R. Eickhoff).
8. Cf. Carta de 7 de março de 1875 a E. Silberstein, in Lettres de jeunesse, Paris,
1990, 138: Feuerbach é, "de todos os filósofos, aquele que eu venero e admiro mais".
9. L'aavenir d'une illusion, 49-50.
10. Cf. Carta de 27 de março de 1875 a E. Silberstein, in Lettres de jeunesse, 149.
1 1 . Cf. Psychopathologie de la vie quotidienne, Paris, 1999, 276: "Eu penso que, por
uma boa parte, a concepção mitológica do mundo que anima até as religiões mais moder­
nas não é outra coisa a não ser uma psicologia projetada no mundo exterior".
12. Cf. L'avenir d'une illusion, 34: "Esta investigação não tem por propósito tomar
posição sobre o valor de verdade das doutrinas religiosas. Basta-nos tê-las reconhecido em
sua natureza psicológica como ilusões"; cf. também: "se nós nos voltamos para as doutrinas
religiosas, podemos dizer repetindo-nos: elas são todas ilusões" (32) .
38 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

ele experimenta13; para o homem adulto, Deus é um substituto do pai


biológico, mais poderoso que este14• Na realidade, a religião é pois
uma neurose coletiva15• Os rituais religiosos são análogos e compará­
veis aos rituais da neurose obsessiva16• As doutrinas religiosas são
comparáveis às ideias delirantes17.
Estabelecida sobre uma profissão de fé ateísta, a antropologia
freudiana é uma antropologia materialista. Em primeiro lugar, ela
se caracteriza pelo fato de que concebe o ser humano como essen­
cialmente um animal18• A vida psíquica do ser humano é fundamen­
talmente constituída por um jogo de forças biológicas.
Na base da concepção freudiana há a ideia de que a principal
forma da energia humana, a libido, é originariamente sexual, isto é,
está a serviço de pulsões sexuais e é orientada para uma finalidade
sexual19• A partir de uma evolução e de uma diferenciação desta ener-

13. Cf. Carta de 2 de janeiro de 1910 a C. G. Jung, in Correspondance (1906-1914),


372: "A última razão da necessidade de religião me tocou como sendo o desamparo (Hil­
flosigkeit) infantil''. Ver também L'avenir d'une illusion, 30-31; Nouvelles conférences sur
la psychanalyse, 221 .
1 4 . Cf. Un souvenir d'enfance de Léonard de Vinci, 177-178; L'avenir d 'une illusion,
30-31 .
1 5 . Cf. L'avenir d'une illusion, 44: " A religião seria a neurose d e constrangimento
universal da humanidade; como a da criança, ela teria saído do complexo de É dipo, da
relação com o pai"; "nós indicamos de maneira repetida (eu mesmo e especialmente Th.
Reik) até a que pormenores pode se prosseguir a analogia da religião com uma neurose
de constrangimento" (ibid., 45); ao psicólogo "impõe-se a concepção de que a religião é
comparável a uma neurose de infância, e ele é suficientemente otimista para supor que a
humanidade superará esta fase neurótica, como tantas crianças superam, ao crescer, sua
neurose que é similar" (ibid., 54); Moi'se et le monothéisme, 90: "Estou persuadido de que
os fenômenos religiosos são comparáveis aos fenômenos neuróticos individuais"; Nouvelles
conférences sur la psychanalyse, 222.
16. Cf. Totem et tabou, 46; Actions compulsionnelles et exercices religieux, in
Psychose, névrose et perversíon, 133- 142; ver em particular 141: "De acordo com estas
concordâncias e estas analogias, poder-se-ia arriscar a conceber a neurose obsessiva como
o pendente patológico da formação religiosa, caracterizando a neurose como uma religio­
sidade individual e a religião como uma neurose obsessiva''.
17. Cf. I:avenir d'une illusion, 32.
18. Cf. Une difficulté de la psychanalyse, in Essais de psychanalyse appliquée, Paris,
1952, 142- 143. Freud escreve particularmente: "O ser humano não é nada mais, nada
melhor do que o animal. [ . ] Suas conquistas exteriores não chegaram a apagar os teste­
. .

munhos desta equivalência que se manifestam tanto na conformação de seu corpo como
em suas disposições psíquicas''.
19. Cf. Essais de psychanalyse, 109-1 10.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS ANTROPOLóGICOS 39

gia sexual constituem-se as diferentes atividades humanas20, inclusive


as mais elevadas21• Assim, para Freud, a atividade religiosa ou espiri­
tual do ser humano, da mesma maneira que a atividade artística, cor­
responde a uma sublimação22 da energia sexual23• O amor que o ser
humano experimenta por seus pais, seus filhos, seus semelhantes e
mesmo o amor por Deus depende da libido e, portanto, tem uma na­
tureza sexual24; ele é somente "inibido quanto ao fim"25•
A concepção cristã é toda oposta: para ela, a energia sexual cor­
responde a um investimento na sexualidade, consecutivo ao pecado
ancestral26, de uma energia que era originalmente orientada para
Deus. A energia sexual corresponde pois a uma "falta de sublimação"

20. Em sua apresentação do pensamento de Freud, D. STAFFORD-CLARK escre­


ve: "No início de sua teoria, Freud reconhece que todas as pulsões instintuais são fun­
damentais na determinação do curso da vida individual. De muitas, a mais importante é
a pulsão instintual sexual, ou libido, presente desde os primeiros clarões da consciência
no bebê até o último sopro vacilante do adulto moribundo. Segundo Freud, toda a vida
depende do desenvolvimento libidinal [ . . . ] . A libido pode se comparar ao petróleo bruto,
que jorra das entranhas da terra, suscetível de ser refinado, transformado em inume­
ráveis produtos acabados, dando a toda atividade humana seu impulso e sua fonte de
energia essencial. Graças à maneira pela qual ela é canalizáda e desenvolvida, a libido
modela a estrutura da personalidade, assim como um rio modela a estrutura de suas
próprias margens, seguindo o seu curso do alto das montanhas até o mar" ( Ce que Freud
a vraiment dit, Verviers, 1973, 133).
21. Do mesmo modo, o ego se constitui por diferenciação do id. "O ego é apenas
uma parte do id tendo sofrido uma diferenciação particular" ( S . FREUD, Essais de psycha­
nalyse, 208).
22. Sobre a sublimação, ver lo., Trois essais sur la théorie de la sexualité, Paris, 1962,
156; Le Malaise dons la culture, 22, 40; Cinq leçons sur la psychanalyse, Paris, 1975, 64.
23. Em várias cartas ao pastor Pfister, Freud considera a "sublimação religiosa" a
forma mais cômoda da sublimação {cartas de 9 de fevereiro de 1909, de 5 de junho de
1910 e de 9 de outubro de 1918). Ver também I;homme aux loups, in Cinq leçons de
psychanalyses, 4 14-417.
24. Cf. S. FREUD, Essais de psychanalyse, 109-1 10: "Todas estas variedades de amor,
a psicanálise as considera de preferência, e de acordo com sua origem, como inclinações
sexuais". Ver também ibid., 1 15: "Nestas duas multidões convencionais ( Exército, Igreja),
cada indivíduo está ligado por laços libidinosos ao chefe {o Cristo, o comandante), de um
lado, e a todos os outros indivíduos que compõem a multidão, de outro lado"; Le Malaise
dons la culture, 45.
25. Cf. ibid.
26. Esta concepção foi desenvolvida sobretudo por São Gregório de Nissa e São
Máximo Confessor. Ver meu livro Maxime le Confesseur, médiateur entre l'Orient et
l'Occident, Paris, du Cerf, 1998, 80-81 .
40 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

da energia espiritual. A ascese, que visa a encontrar o estado normal


e perfeito da humanidade, opera uma "ressublimação" desta energia,
o que os esposos cristãos realizam espiritualmente na virtude da cas­
tidade (sophrosune) e o que os monges realizam de maneira maxima­
lista na abstinência, antecipando assim a vida do Reino dos céus em
que "não há mais nem homem nem mulher" ( Gl 3,28) .
O investimento do desejo na sexualidade, que Freud considera
originário e portanto natural e de alguma forma normativo, é de fato,
segundo uma perspectiva cristã, a expressão de um desvio antinatural
do desejo. Enquanto para Freud o amor ao próximo se constitui pela
retenção e pelo desvio de uma parte da energia sexual do ser humano
(libido)27, segundo a concepção cristã a energia sexual constitui-se
pela retenção e pelo desvio de uma parte do desejo e da energia cor­
respondentes originariamente e investidos normalmente em Deus.
No que se refere à agressividade, que ele considera igualmente
originária (as pulsões de morte coexistem desde a origem no id com as
pulsões de vida)28, Freud chega à conclusão de que o ser humano só
tem possibilidade de escolha entre dois usos dela: agredir e destruir os
outros para se preseivar (estando então a pulsão de morte aliada à pul­
são de vida) ou agredir-se e destruir a si mesmo29• Ele considera que a
pulsão de morte possa ser "moderada e domada, de algum modo ini­
bida quanto à finalidade [e] orientada para os objetos [para] propor­
cionar ao ego a satisfação de suas necessidades vitais e a dominação da
natureza"30, mas esta hipótese é evocada somente de passagem e não é
motivo para nenhum desenvolvimento de sua parte. Em todo caso, ele
não concebe um uso realmente positivo da pulsão de agressividade no
processo do desenvolvimento pessoal. A concepção da antropologia e
da ascética cristã é bem diferente, visto que aos olhos delas a agressi­
vidade contra o próximo e contra si (no sentido que Freud entende)
corresponde a um uso errado e peiverso do poder agressivo (thumos) .

27. C f. S. FREUD, Le Malaise dans la culture, 50-57.


28. Cf. lo., Essais de psychanalyse, 55-77.
29. Cf. lo., Le Malaise dans la culture, 60-61 .
30. Cf. ibid., 64.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS ANTROPOLóGICOS 41

Este é, de fato, originariamente orientado para Deus enquanto serve


para combater tudo o que pode afastar o ser humano de Deus - as
tentações, os demônios, o pecado, as paixões -, e a ascese, em um
processo de conversão interior (metanoia), tem por função dar-lhe de
novo essa finalidade natural e normal.
De uma maneira geral, como vimos, a antropologia cristã tem
como princípio fundamental que a natureza humana é orientada para
Deus, e que a pessoa normal é aquela que acompanha, por sua vonta­
de e por seu livre-arbítrio, com todo o seu ser e em toda a sua existên­
cia, essa orientação de sua natureza para Deus. Para Freud, não há
finalidade geral da natureza humana para a qual ela deveria se orien­
tar e cuja realização permitiria sua completude31; não há concepção
normativa da natureza e da existência humanas. Freud constata so­
mente que os seres humanos, de fato, aspiram à felicidade, e que
para eles esta aspiração à felicidade tem duas faces: "de um lado, ela
quer que estejam ausentes a dor e o desprazer, por outro lado, que se­
jam vividos fortes sentimentos de prazer"32• Assim, o "ganho de pra­
zer" aparece como "o móbil de todas as atividades humanas"33• Para
Freud, isso significa que "é simplesmente o programa do princípio
de prazer que apresenta a finalidade da vida"34• É necessário tomar
claro que para Freud esse prazer para o qual o ser humano tende e
que constitui sua felicidade é de natureza sexual. Porque "o amor se­
xuado (genital) proporciona ao ser humano as mais fortes experiências
vividas de satisfação, ele lhe fornece, propriamente falando, o mode­
lo de toda felicidade"35• O problema que Freud vê a esse respeito é
que a busca a priori ilimitada do prazer encontra obstáculos da parte
do mundo exterior. A felicidade do ser humano e sua saúde psíquica
dependem então da maneira pela qual ele limita a expressão de suas

3 1 . Cf. ibid., 17: "A questão da finalidade da vida humana foi colocada um número
incalculável de vezes; ela ainda não encontrou resposta satisfatória; aliás, talvez ela não
admita nenhuma".
32. Ibid., 18.
33. Ibid., 37.
34. Ibid., 18.
35. lbid., 43-44.
42 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

exigências pulsionais - o "princípio de prazer" - diante do "prin­


cípio de realidade" que lhe opõem a natureza e a sociedade, de onde
lhe vêm numerosas causas de desprazer36• Assim, Freud considera
que a felicidade é a satisfação pulsional37, mas que, sendo impossível
uma satisfação ilimitada das pulsões, o ser humano deve contentar­
se com uma felicidade relativa. A partir deste instante, a felicidade,
na aceitação moderada em que ela é reconhecida como possível, "é
um problema de economia libidinal individual"38; "a felicidade é al­
guma coisa inteiramente subjetiva"39• Trata-se muito empiricamente
para cada um "de saber que quantidade de satisfação real pode es­
perar do mundo exterior e em que medida é suscetível de se tornar
independente dele"4º.
Neste ponto também podemos constatar uma diferença impor­
tante entre a concepção freudiana da felicidade - que é ao mesmo
tempo hedonista41 e individualista - e a concepção cristã. Para a
antropologia cristã, o prazer sensível no qual Freud vê o constituinte
fundamental da felicidade é apenas um substituto pobre e patoló­
gico da bem-aventurança, em vista da qual o ser humano foi criado
e da qual gozava parcialmente em se u estado paradisíaco. De fato,
os Padres ensinam que o prazer apareceu como uma consequência
do pecado ancestral, que ele não existia no paraíso e não existirá
mais no Reino dos céus. Marca da natureza decaída, o prazer fecha
o ser humano em seus limites e gera, pela atração que inspira, todas
as doenças espirituais e todos os seus efeitos patogênicos na vida
psíquica. A perseguição da felicidade através do prazer é uma das
ilusões mais fortes da humanidade decaída. A ascese cristã combate
o prazer com a finalidade de libertar o ser humano de sua domina-

36. Ibid., 18.


37. Ibid., 21.
38. Ibid., 27.
39. Ibid., 32.
40. Cf. ibid., 27.
4 1 . Ela apresenta certas analogias com o epicurismo. Nos dois casos, trata-se de uma
filosofia materialista em que a norma (a felicidade) é definida pelo fato (a tendência ao
prazer) e na qual se considera que alguns prazeres se acompanham de sofrimento; deve-se
renunciar a eles em proveito daqueles que não colocam em perigo nem a saúde do corpo,
nem a ataraxia da alma.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS ANTROPOLóGICOS 43

ção e de substituir a ele o que só é um ersatz: a alegria espiritual e a


bem-aventurança que o fiel conhecerá certamente em plenitude no
Reino dos céus, mas das quais ele pode receber os sinais já aqui, na
vida espiritual.
Enfim, Freud tem muitas dificuldades em propor um modelo
de saúde. Considera que "a saúde e a doença não diferem qualitati­
vamente, mas delimitam-se progressivamente de uma maneira em­
piricamente determinada42". Ele escreve: "Reconhecemos que era
impossível estabelecer cientificamente uma linha de demarcação en­
tre os estados normais e anormais. Assim, toda distinção, a despeito
de sua importância prática, só pode ter um valor relativo"43• Freud
reconhece que é "pelo estudo das perturbações" que ele "foi levado a
fazer uma ideia do psiquismo normal"44; em outras palavras, ele não
tem nenhuma concepção positiva da saúde.
A finalidade da psicanálise é menos curar o ser humano45 do que
lhe permitir, pela vitória sobre suas resistências e pela descoberta
de seus recalques, tomar consciência do que ele é em sua realidade
atual, com a finalidade de se aceitar melhor, tal como é, e de se con­
trolar mais para gozar mais da existência46, sendo libertado de suas
angústias e de suas inibições47• A diferença entre a saúde e a doença
é a de uma boa e de uma má gestão das mesmas pulsões48: "é consi­
derado correto", em outras palavras, sadio, "todo comportamento do
ego que satisfaz ao mesmo tempo as exigências do id, do superego e
da realidade, o que se produz quando o ego consegue conciliar essas
diferentes exigências"49; pouco importa a Freud a qualidade moral

42. S. FREUD, La Technique psychanalytique, Paris, 1975, 6.


43. lo., Abrégé de psychanalyse, Paris, 1950, 70-71. Sobre o caráter relativo da saú­
de psíquica, ver também ID., L'analyse avecfin et l'analyse sans fin, Paris, 1994.
44. lo., Abrégé de psychanalyse, 71.
45. No que diz respeito às possibilidades de cura oferecidas pela psicanálise, Freud
sempre se mostrou modesto. Ver em particular Nouvelles conférences sur la psychanalyse,
199-206.
46. lo., La technique psychanalytique, 6.
47. Ver ID., L'analyse avecfin et l'analyse sansfin, 27.
48. Ver lo., La vie sexuelle, Paris, 1973, 15.
49. lo., Abrégé de psychanalyse, 5.
44 0 I NCONSCIENTE ESPIRITUAL

ou espiritual de tais exigências e, portanto, a finalidade para a qual se


exercem as energias do ser humano, contanto que elas estejam em
equilíbrio. Desse equilíbrio Freud tem um modelo quase mecanicis­
ta, ligado à sua concepção materialista do ser humano.
Um partidário da concepção freudiana poderia ajudar a observar
aqui que Freud limita-se à realidade do ser humano decaído, e que
se alguém se limita a este quadro não está assim tão afastado da an­
tropologia cristã. Mas o problema é precisamente que Freud ignora
que se trata do ser humano decaído, e não considera nada aquém
nem além desse estado. Para ele, trata-se de permitir ao ser humano
assumir melhor esse estado pela tomada de consciência de sua rea­
lidade, mas de modo algum de ajudá-lo a se transformar em vista de
ter acesso a um outro modo de existência mais sadio.
Em compensação, a aquisição da saúde, na perspectiva cristã
que expusemos, supõe uma transformação interior que leva o ser
humano além de seu estado decaído, considerado profundamente
patológico e patogênico. Esta transformação consiste em uma res­
sublimação da energia das diferentes faculdades humanas em um
sentido espiritual (isto é, para Deus) . É esta a finalidade perseguida
pela vida ascética, em que esse movimento de ressublimação chama­
se globalmente "reparação"5º, "mudança radical de comportamento",
"conversão" (metanoia), e sua realização perfeita, que significa uma
união total e constante do ser humano com Deus, chama-se "santi­
dade". O santo constitui um modelo de saúde espiritual, mas igual­
mente um modelo de saúde psíquica que deve servir de norma ao
psicoterapeuta cristão, porque é somente na santidade que a nature­
za humana, em todos os seus componentes, encontra sua perfeição e
manifesta o exercício ideal de suas faculdades. Por isso também, uma
psicoterapia cristã, de resto distinta da terapêutica espiritual, deve
se situar em sua continuidade e ter como referência e como modelo
as práticas ascéticas, porque a saúde, tanto psíquica como espiritual,
é indissociável de um exercício das faculdades humanas conforme à
sua verdadeira finalidade natural.

50. Esta palavra é utilizada frequentemente por São Máximo Confessor.


0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS ANTROPOLóGICOS 45

Conclusão

As divergências importantes que constatamos entre a antropologia


freudiana e a antropologia cristã sem dúvida nenhuma tomam muito
problemáticos para um cristão tanto o exercício da psicanálise freu­
diana como o recurso a ela como terapia.
A lembrança dos grandes princípios da antropologia cristã deve­
ria, em compensação, incitar os psicoterapeutas cristãos a desenvol­
ver uma terapia plenamente respeitosa desses princípios.
O problema da compatibilidade
dos fundamentos teológicos e
éticos: o exemplo da psicologia
analítica junguiana
48 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

INTRODUÇÃO

N
a opinião da teologia e da antropologia cristãs, os elementos
mais problemáticos que encontramos nas posições de Freud
não se encontram em Carl Gustav Jung. Longe do ateísmo de
Freud e do julgamento negativo que ele faz do fenômeno religioso,
Jung manifestou ao longo de toda a sua vida um interesse profundo
pelas religiões tanto ocidentais como orientais, interesse que marca
uma grande parte de sua reflexão teórica e de sua prática terapêutica.
Como nota R. Hostie, "é realmente excepcional que um psicólogo
conceda à religião o papel preponderante que Jung lhe atribuiu"1•
A relação da obra de Jung com o cristianismo foi abundantemen­
te estudada2 e, em muitos casos, positivamente avaliada, tanto por
teólogos católicos3, dos quais alguns viram nela "uma muralha contra
o ateísmo freudiano"4, como por teólogos protestantes5• A simpatia
de Jung pelo fenômeno religioso em geral e pelo cristianismo em
particular e sua integração da dimensão espiritual do ser humano em
sua concepção e em sua prática da psicoterapia6 atraíram, de prefe­
rência à psicanálise freudiana, um certo número de pacientes, mas
também de psicoterapeutas cristãos preocupados em guardar uma
ligação entre os fundamentos teóricos de sua prática psicoterapêutica
e de sua fé cristã.

1. R. HOSTIE, Du mythe à la religion. La psychologie analytique de C. G. Jung,


Bruges, 1955, 101.
2. Ver entre outros escritos: H . Scuii.R, Religion und Seele in der Psychologie C. G.
Jung, Bem, 1946; M .-L. VON FRANZ, U. MANN, H.-W. HEIDLAND, C. G. Jung und die
Theologen, Stuttgart, 1971; G. WEHR, C. G. Jung und das Christentum, Olten/Fribourg­
en-Brisgau, 1975; B. KAEMPF, Réconciliation. Psychologie et religion selon Carl Gustav
Jung, Paris, 1991.
3. Como nota B. KAEMPF, Réconciliation . , 213.
. .

4. J. CHAZAUD, Préface, in R. HOSTIE, Psychologie analytique et religion, Paris,


2002, II.
5. Ver B. KAEMPF, Réconciliation . . , 217-219. O próprio livro de B. Kaempf entra
.

nesta categoria.
6. Um dos princípios de base de Jung é que "o problema da cura é um problema
religioso" ( Über die Beziehung der Psychotherapie zur Seelsorge, par. 523, in Gesammelte
Werke, Zürich/Stuttgart, 1963, t. 1 1 ; doravante citado na ed. fr.: Des rapports de la psycho­
thérapie et de la direction de conscience, in La guérison psychologique, Genêve, 1953, 291).
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E tTICOS 49

O exame do pensamento de Jung faz aparecer um certo núme­


ro de pontos de convergência com a antropologia cristã. Além do
mais, o caráter plástico de muitos dos conceitos junguianos presta-se,
frequentemente, a uma interpretação positiva deles no quadro do
pensamento cristão.
Mas veremos que além desses elementos de convergência apa­
recem pontos de divergência de grande importância, porque se refe­
rem aos próprios fundamentos da fé e da espiritualidade cristãs.

1 . PONTOS DE CONVERGtNCIA

Um primeiro ponto de convergência entre o pensamento de Jung e


a antropologia cristã tal como definida pelos Padres orientais é que a
saúde e as doenças psíquicas do ser humano são relativas ao sentido
que este dá a seu ser7•
Mais precisamente, para Jung como para a antropologia cristã,
a doença e a saúde psíquicas do ser humano definem-se, em grande
parte, em relação com o que define este sentido: sua atitude religio­
sa. "Cada um", escreve Jung, "em primeiro lugar, sofre com o que
ele perdeu, o que as religiões vivas têm dado em todo tempo a seus
adeptos, e ninguém está realmente curado enquanto não encontrou
sua atitude religiosa"8. A continuação lógica desta afirmação é que "o
problema da cura é um problema religioso"9•
Contrariamente a Freud, que vê na religião um fator patogêni­
co, Jung considera que na sociedade contemporânea é a ausência de
religião o que está na fonte de muitas perturbações mentais. "Para
mim é evidente", escreve Jung, "que a angústia'', que ocupa um lugar
essencial na maior parte das doenças psíquicas, "não é devida ao en­
sinamento da religião, mas antes à sua ausência"10•

7. Cf. C. G. JUNG, Des rapporls . . , par. 497, in La guérison psychologique, 278.


.

8. Ibid., par. 509, 282.


9. Ibid., par. 523, 291 .
1 0 . Carta d e 2 d e julho d e 1960 a o pastor Oscar Nisse.
50 0 INCONSCI ENTE ESPIRITUAL

Em toda a sua obra Jung sublinha o caráter estrutural dos símbo­


los cristãos para a vida psíquica11•
Em seus fundamentos, a antropologia de Jung parece de ime­
diato mais equilibrada que a de Freud, na medida em que rejeita a
absolutização freudiana da sexualidade, que faz desta o motor quase
exclusivo da vida psíquica, para dar de novo à sexualidade o lugar
relativo que ela ocupa entre os outros fatores da vida psíquica12•
Nesta perspectiva, Jung tem da libido uma concepção mais flexí­
vel do que Freud. Enquanto para este último a libido é de imediato
sexualmente determinada, para Jung trata-se de uma energia "plás­
tica", a priori neutra e indeterminada, suscetível de se investir em
objetos muito diferentes13•
Uma outra divergência entre Jung e Freud que aproxima a an­
tropologia junguiana da antropologia cristã oriental é que, enquanto
Freud considera que os oito primeiros anos da vida do ser humano
condicionam todo o seu futuro psicológico, Jung considera que as
dificuldades psicológicas encontradas por uma pessoa são sempre
- qualquer que possa ser a ligação delas com seu passado - um
problema atual que pode ser resolvido a partir de sua situação e de
seu estado psicológicos presentes14• Esta concepção está de acordo
com a concepção patrística, que considera que a pessoa pode sem­
pre obter a cura a partir de seu estado espiritual atual, e que ela tem,
em cada momento, pela colaboração (sunergeia) da graça com suas
próprias forças, a possibilidade de romper radicalmente com seu pas­
sado e realizar uma mudança completa, uma reviravolta total (meta­
noia) de seu modo de existência.

'
1 1 . Ele censura vigorosamente o protestantismo por tê-los eliminado progressiva­
mente. Ver, por exemplo, a Carta de 17 de março de 1951 a M. H .
1 2 . Ver C. G. JUNG, Der Gegensatz Freud-Jung, i n Gesammelte Werke, Olten/
Fribourg-in-Brisgau, 1969, t. 4; ed. fr. : L'opposition entre Freud et Jung, in La guérison
psychologique, 183.
13. Ver Psychologie et religion, par. 37, 43; Über die Psychologie des Unbewusstes,
par. 71, in Gesammelte Werke, Zurich/Stuttgart, 1964, t. 7; doravante citado na ed. fr. :
Psychologie de l'inconscient, Geneve, 81993, 91-92.
14. Ver Des rapports de la psychothérapie et de la directíon de conscience, par. 517,
in La guérison psychologíque, 286-287.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E ITICOS 51

A noção junguiana de inconsciente coletivo e a teoria dos arqué­


tipos que lhe está ligada15 podem parecer concordar com a ideia pa­
trística de que o homem possui, como uma marca no mais profundo
de seu ser, a imagem de Deus que o orienta dinamicamente para Ele.
Aliás, na antropologia junguiana, o conceito de imago Dei desempe­
nha um papel essencial.
A ideia de Jung segundo a qual a terapia da alma deve consistir
em sair dos limites do eu para aceder ao si mesmo, integrando à di­
mensão consciente da personalidade a sua dimensão inconsciente16,
pode parecer compatível com a antropologia patrística, se entende­
mos por isso que o ser humano é chamado a aceder a uma outra di­
mensão de si mesmo, da qual ele é espontaneamente inconsciente e
na qual poderá ultrapassar os limites atuais de sua natureza decaída:
a do "homem escondido do coração", a do "Reino dos céus escondi­
do dentro de si", que os Padres convidam a descobrir pelo adágio,
retomado do platonismo, "Conhece-te a ti mesmo" e que se revela
progressivamente através da vida ascética. Nessa perspectiva, a con­
cepção de Jung segundo a qual o eu consciente (isto é, definido pela
consciência primeira ou espontânea de si) corresponde somente a
uma parte limitada de nós mesmos, e segundo a qual também somos
chamados a realizar em nós "o homem total" ( que Jung chama de o
si mesmo) pela tomada de consciência complementar de uma parte
fundamental de nós mesmos que nos escapa à primeira vista, pode
ser apreciada positivamente quanto à sua intenção geral, tanto mais
que o si mesmo é considerado por Jung correspondente à imagem
de Deus no ser humano.

15. Ver particularmente Die Archetypen und das kollektive Unbewusste, in Gesam­
melte Werke, Olten/Fribourg-en-Brisgau, 1967, t. 9-1 .
1 6 . Ver Bewuj3sein, Unbewusstes und Individuation, i n Gesammelte Werke, Olten
et Fribourg-in-Brisgau, 1976, doravante citado na trad. fr. Conscience, inconscient et indi­
viduation, in La Guérison psychologique, 255-272; Das Gewissen, in Zivilisation im Über­
gang, in Gesammelte Werke, Olten/Fribourg-en-Brisgau, 1974, t. 10, 249-257.
52 O I NCONSCIENTE ESPIRITUAL

l i . PONTOS DE DIVERGtNCIA

O exame atento do pensamento de Jung manifesta, no entanto, que


ele tem uma concepção muito particular da teologia e da ética cristãs
e de suas relações com a vida psíquica e que, se utiliza em abundân­
cia conceitos cristãos e referências escriturísticas, dá a eles um sen­
tido novo que se revela pouco compatível com a fé cristã tradicional.
A obra de Jung suscitou assim numerosas críticas da parte de autores
cristãos de diversas confissões17•
Nós nos limitaremos a abordar antecipadamente alguns pontos
especialmente contestáveis do pensamento de Jung que o tomam,
em nossa opinião, incompatível com os princípios teológicos e an­
tropológicos que devem servir de referência a uma psicoterapia de
inspiração autenticamente cristã.
Ainda que o estudo da personalidade de Jung e de sua vida par­
ticular possa trazer elementos interessantes para a compreensão de
seu pensamento e de seus segundos planos psicológicos, religiosos e
políticos18, tomamos por base de nossa análise o pensamento de Jung
tal como ele próprio expressa em suas obras, fazendo numerosas re­
ferências a elas. Não tomamos o partido de estudar o pensamento de
Jung em sua evolução, mas o de considerá-lo tal como aparece no fim
de sua vida, no conjunto das obras que ele assumiu, depois de tê-las
revisado frequentemente em suas edições sucessivas.

17. Ver entre outros: J. GoLDBRUNNER, Individuation, Selhst.findung und Selhst­


entfaltung. Die Tiefenpsychologie von C. G. Jung, Fribourg-in-Brisgau, 1949; R. HOSTIE,
Du mythe à la religion. La psychologie analytique de C. G. Jung, Bruges, 1955; reed.:
Psychologie analytique et religion, Paris, 2002; H. L. PHILP, Jung and the Problem of Evil,
London, 1958; D. Cox, Jung and Saint Paul, New York, 1959; W. JOHNSON, The Searchfor
Transcendance, New York, 1974; E. PAVES I, Die Gottesvorstellung des C. G. Jung, Factum
( 1991) 30-34; Von der Trinitãt zur Quatemitãt. C. G. Jungs Theorie der Integration der
Gegensãtze in Gott, Factum ( 1995) 22-26. A correspondência de Jung que se refere à reli­
gião testemunha também numerosas críticas que lhe dirigiram seus correspondentes (ver
e. G. JUNG, Le Divin dans l'homme. Lettres sur les religions, Paris, 1999, passim).
18. Ver sobre este assunto a obra muito crítica de R. NoLL, Jung, le Christ aryen,
Paris, 1999.
o PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E tncos 53

1 . O relativismo rel igioso de Jung

Jung, filho de pastor, educado em um ambiente cristão, várias vezes


se declarou cristão19 e afirmou mesmo que fundamentava seu pen­
samento em conceitos cristãos20• No entanto, podemos facilmente
notar que em seu pensamento o cristianismo não tem nem mais nem
menos valor que as outras religiões, o que significa que os fundamen­
tos dogmáticos, antropológicos e espirituais da fé cristã encontram-se
nele relativizados no conceito muito geral do "religioso".
Jung afirma constantemente que só considera as religiões do
ponto de vista de sua expressão na psique21 humana e se recusa a
pronunciar-se sobre a questão de seu fundamento objetivo fora dela,
o que lhe valeu ser frequentemente considerado agnóstico.
Entretanto, podemos compreender a atitude de Jung por sua
preocupação de permanecer estritamente no método científico, ex­
cluindo que possamos recorrer, para explicar a natureza, a um prin­
cípio superior à natureza (é o que a epistemologia contemporânea
denomina "o postulado de objetividade"). Era tanto mais necessário
que Jung mantivesse esse princípio porque o meio no qual ele se de­
senvolvia era globalmente cienticista e se mostrava, em geral, suspei­
toso diante do fenômeno religioso, e porque Freud, desde seus pri­
meiros encontros, havia qualificado de "ocultistas" algumas de suas
teses, o que, em certa medida, desqualificava a posição de Jung.
Jung justificou também sua posição filosoficamente, referindo­
se frequentemente à teoria kantiana do conhecimento22, segundo a

19. Ver Carta de 2 de julho de 1960 ao pastor Oscar Nisse; Carta de 25 de outubro
de 1955 a Palmer A. Hilty. Em um texto de 1932, Jung afirma mais precisamente sua
pertença ao protestantismo e situa-se à "extrema esquerda no Parlamento do espírito pro­
testante" (Des rapports de la psychothérapie et de la direction de conscience, par. 537, in
La Guérison psychologique, 299).
20. Em uma carta datada de 21 de janeiro de 1960, publicada no jornal The Listener,
Jung escreve: "Eu me considero cristão, porque me fundamento em conceitos cristãos".
2 1 . Pela palavra "psique" Jung entende a consciência do eu + o inconsciente, este
último comportando o inconsciente individual e o inconsciente coletivo.
22. As referências explícitas à crítica kantiana do conhecimento são muito nume­
rosas na obra de Jung e dão testemunho da influência importante que ela exerceu sobre
sua posição.
54 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

qual não temos acesso à realidade em si, mas somente a fenômenos,


isto é, à realidade tal qual nos aparece relativamente em nossas es­
truturas psíquicas, perceptivas e cognitivas. De acordo com Jung,
supondo que Deus existe, não podemos ter acesso ao que ele é, mas
somente à sua expressão nas imagens ou nos símbolos que a psique
humana forma a seu respeito: "Encontramos inúmeras imagens de
Deus, mas o original permanece sem ser encontrado. Para mim, é
fora de dúvida que por trás de nossas imagens se esconde o original,
mas ele não nos é acessível. Não estaríamos nem mesmo em con­
dições de perceber este original, porque primeiramente seria ne­
cessário traduzi-lo em categorias psíquicas para que ele se tomasse
apenas perceptível"23.
Mas enquanto Kant afirma que quis "abolir o saber, a fim de ob­
ter um lugar para a crença"24, Jung mostra-se mais restritivo, afirman­
do que a própria crença, pelo fato de que Deus é impossível de ser
conhecido, não pode pretender nenhum fundamento objetivo: "Não
posso me permitir crer em qualquer coisa a propósito de coisas que
eu não conheço. Consideraria tal pretensão absurda e injustificada";
como consequência, "eu não confesso nenhuma crença"25•
Poderíamos pensar - e alguns o fizeram - que Jung adota uma
atitude semelhante à da teologia apofática desenvolvida pelos Padres
gregos, que se recusa a falar de Deus positivamente por respeito à
radical transcendência de Sua essência, segundo a qual Ele é impos­
sível de ser conhecido e inacessível. Entretanto, enquanto a teologia
apofática entre os Padres gregos é acompanhada pela teologia afir­
mativa, segundo a qual Deus é suscetível de ser conhecido em Suas
energias, as reflexões de Jung o conduzem ao relativismo.
De fato, para Jung, se do ponto de vista da psique há mesmo no
inconsciente coletivo um arquétipo comum de Deus, este se expressa
sob diferentes formas ou símbolos segundo os povos e as épocas, e

23. Jung und der religiOse Glaube, par. 1589, in Gesammelte Werke, Olten/Fribourg­
en-Brisgau, 1981, t. 18-2; ed. fr.: Jung et la croyance religieuse, in La vie symbolique, Paris,
1989, 161.
24. Critica da razão pura, Prefácio à segunda edição.
25. Carta de 10 de outubro de 1959 a G. Wittwer.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E ITICOS 55

suas diferentes expressões são, a seus olhos, equivalentes26• É assim


que Jung afirma: "Se eu dissesse 'Eu creio em tal ou tal Deus', seria
insignificante"27• Notando que seus modelos psicológicos de com­
preensão "são fortemente apoiados pelas representações coletivas
de todas as religiões", Jung acrescenta: "não posso ver por que uma
confissão deveria possuir a verdade, única e perfeita"28• "A fé'', diz ele
ainda no prolongamento desta última afirmação, "é extremamente
subjetiva, vocês perceberão isto no fato de que eu não creio absolu­
tamente que o cristianismo seja a única e a mais alta manifestação da
verdade. O budismo encerra ao menos outras tantas verdades e as
outras religiões também"29•
Não somente os diferentes símbolos de Deus têm uma verdade
equivalente, mas tal verdade é provisória, relativa à sua utilidade: "o
símbolo é verdadeiro" no sentido em que tem uma "validade tem­
porária, porque ele só vale para uma situação determinada. Mude a
situação, e a necessidade de uma nova verdade se faz sentir, por isso
a verdade é sempre relativa a uma situação determinada. Na medi­
da em que o símbolo constitui uma resposta verdadeira, e portanto
libertadora, a uma situação que lhe corresponde, ele é verdadeiro e
válido, mesmo 'absoluto'. Mas se a situação muda e o símbolo é sim­
plesmente perpetuado, ele é apenas um ídolo, cuja ação se limita a
empobrecer e a embrutecer"30•
De acordo com estes pressupostos, Jung vê na Trindade cristã
não a expressão de uma revelação nova trazida por Cristo, mas o sím­
bolo de um arquétipo que tem expressões simbólicas análogas e an­
teriores no pensamento babilônico, egípcio, platônico ou gnóstico31•

26. Esta concepção d á testemunho d e u m parentesco d o pensamento d e Jung com


o do teólogo protestante Schleiermacher ( 1 768-1834), especialmente com o último de seus
célebres Discursos sobre a religião, segundo o qual a pluralidade das religiões é necessária
e corresponde a formas determinadas pelas quais a religião infinita manifesta-se no finito.
27. Jung und der religiiise Glaube, par. 1589, in Gesammelte Werke, Olten/Fribourg-
en-Brisgau, 1981, t. 18-2; ed. fr. : Jung et la croyance religieuse, in La vie symbolique, 162.
28. Ibid., par. 1643, in La vie symbolique, 189.
29. Carta de 20 de junho de 1933 ao Dr. Paul Maag.
30. Carta de 10 de janeiro de 1929 ao Dr. Kurt Plachte.
3 1 . Ver Versuch einer psychologischen Deutung des Trinitiitsdogmas, in Gesam­
melte Werke, Zurich/Stuttgart, 1963, t. 1 1 , par. 172-193; doravante citado na ed. fr. : Essai
56 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

Assim, as três Pessoas divinas da Trindade cristã não fazem senão


"indica[r] a existência de um arquétipo ativo que não opera na su­
perfície e permite assim às tríades que se constituam"32• Se há na
Trindade cristã uma novidade, ela é apenas a de uma adaptação par­
ticular do arquétipo geral, ao qual ela corresponde, às necessidades
de uma época e à mentalidade de uma cultura particular; ela "traduz
apenas uma evolução progressiva do arquétipo na consciência ou ain­
da o acolhimento que lhe foi reservado no potencial conceitua! [da]
Antiguidade"33• Na ocorrência, a história do dogma da Trindade no
cristianismo "representa a emergência progressiva de um arquétipo
que ordenou as representações antropomórficas do pai, do filho e do
vivente em um esquema arquetípico"34.
Se há mesmo uma revelação, não se trata apenas de uma revela­
ção do inconsciente, porque "a revelação, em primeiríssimo lugar, é
uma abertura, uma descoberta das profundezas do inconsciente"35•
Esta revelação, mais precisamente, é a de um arquétipo que se impõe
pela força coercitiva da qual ele é portador (que Jung chama frequen­
temente de "numinosidade"). De fato, "o arquétipo é um elemento
invisível, uma disposição que entra em ação em um dado momento
da evolução do espírito humano, dispondo os dados da consciência
em figuras particulares, em outras palavras, ordenando as representa­
ções divinas em tríades e trindades. [ . . . ] Qualquer que seja o mo­
mento em que ele aparece, o arquétipo assume, para o inconsciente,
um aspecto coercitivo, e quando seu aspecto toma-se consciente ele
se caracteriza por seu aspecto numinoso"36• A crença de que o Espí­
rito S anto inspirou o dogma só faz refletir o fato de que "este provém
de um domínio exterior à consciência", a saber, o inconsciente cole-

d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, in Essais sur la symholique de


l'esprit, Paris, 1991, 150-166. Ver também a Carta de 10 de março de 1958 ao Rev. Dr.
H. L. Philp.
32. Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 209, 177.
33. Ibid., par. 210, 178.
34. Ibid, par. 224, 189.
35. Psychologie und Religion, par. 127, in Gesammelte Werke, Zurich/Stuttgart,
1963, t. 1 1 ; doravante citado na ed. fr.: Psychologie et religion, Paris, 1958, 148.
36. Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 222, 187.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E 8°1COS 57

tivo37• Os Padres que elaboraram o dogma da Trindade não o fizeram


consciente e voluntariamente, mas sob a influência da força incons­
ciente do arquétipo que, agindo em outras épocas e em outras civili­
zações, levou a outras expressões simbólicas de forma triádica38•
Do mesmo modo que para a Trindade, "a figura de Cristo, tal
como a fixou o dogma, é o resultado de um processo de condensação
a partir de várias fontes [pré-cristãs] . Uma dessas fontes é o antigo
homem-deus do Egito: Osíris-Hórus. Aí estava a transformação do
arquétipo inconsciente projetado até então sobre um ser divino, não
humano"39•
Por outro lado, Cristo é a expressão simbólica do arquétipo do
herói solar, e Jung o coloca, neste sentido, ao lado de heróis ou de
deuses tomados como símbolos equivalentes: Osíris, Tammuz, Átis­
Adônis, Mitra, Fênix40. Jung chega até mesmo a assimilar Cristo ao
Mana dos animistas41 ou ao Mercúrio do Panteão grego42• Em outra
ocasião, Jung explica que o Cristo é a personificação de um arquétipo
que corresponde à ideia do Anthropos, do homo maximus ou do Ho­
mem original - como "na Í ndia o Purusha e na China Chen-yen" -,
ou ainda à ideia do Messias espiritual, igualmente representado por
Mitra, Osíris, Dioniso ou o Buda43•
Quanto à sua economia de salvação, marcada por sua encarna­
ção, seus sofrimentos, sua morte e sua ressurreição, segundo Jung,
estes aspectos são também expressões de um arquétipo que tem
manifestações análogas e anteriores, por exemplo no hinduísmo, no
budismo ou no masdeísmo44• Assim, Jung afirma: "A vida do Cristo

37. Ibid, par. 222, 188. Jung anota em outro lugar: "Que a Bíblia tenha sido inspirada
pelo Verbo, eis para mim uma hipótese inverossímil" (Carta de 5 de maio de 1952 ao Prof.
Fritz Buri).
38. Cf. Essai d'interprétation psychologique du dngme de la Trínité, par. 207-210,
176-178; 222-224; 186-190.
39. Jung et la croyance religieuse, par. 1656, in La vie symholique, 194.
40. Symhole der Wandlung, par. 165, in Gesammelte Werke, t. 5, Genêve, 1952;
doravante citado na ed. fr.: Métamorphoses de l'âme et ses symhole, Genêve, 1953, 202.
4 1 . Ibid., par. 612, 646.
42. L'Esprít Mercure, in Essais sur la symholique de l'Esprít, 44.
43. Carta de lº de junho de 1956 a Hélêne Kiener.
44. Cf. Essais d'interprétation psychologique du dngme de la Trínité, par. 202, 173.
58 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

não é uma exceção, no sentido em que várias outras grandes figuras


da história realizaram mais ou menos o arquétipo da vida heroica,
com suas peripécias características"45• E ele anota em outra ocasião:
"O Buda pode ter tanta razão quanto Cristo, e realmente não vemos
muito como e por que deveríamos nos sentir salvos e libertos pela
morte de Cristo"46•
Mais tarde veremos de maneira mais pormenorizada que Jung
considera Cristo também um símbolo do Si mesmo ou do Self47•
Ora, o Si mesmo é suscetível de receber uma multidão de outros
símbolos equivalentes: "Não há a menor razão para que devamos,
ou não devamos, chamar o Si mesmo transcendente de 'Cristo', ou
'Buda', ou 'Purusha', ou 'Tao', ou 'Khider', ou 'Tifereth'. Todas estas
noções podem ser consideradas formulações daquilo que eu chamo
de o Si mesmo"48•
Em Cristo somente importa esta dimensão arquetípica, que nele
tomou a expressão que correspondia às necessidades de uma época
especial e à mentalidade de uma sociedade particular. "Ele se tornou
esta figura coletiva que o inconsciente contemporâneo esperava e por
isso é vão se perguntar quem ele era e como ele era na realidade. "49
Em outras palavras, para Jung, a realidade histórica de Cristo não
tem nem interesse nem importância, só contam sua dimensão e sua
função simbólicas50, ligadas às projeções arquetípicas de que sua per­
sonalidade humana foi revestida51 •

45. Psychologie et religion, par. 146, 1 75 .


46. Des rapports de la psychothérapie et de la direction de conscience, par. 518, in
La Guérison psychologique, 287. Ver também Carta de 29 de junho de 1955 ao pastor
William Lachat.
47. Jung conceituou o Si mesmo como aquele que representa o objeto do homem
inteiro, a saber, a realização da sua totalidade e da sua individualidade, com ou contra a
sua vontade. (N. da T. )
48. Jung et la croyance religieuse, par. 1672, in La vie symbolique, 201 . Ver também
Ma vie. Souvenirs, rêves et pensées, 320-322, em que Jung explica que os dois, Cristo e
Buda, são encarnações do Si mesmo.
49. Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 228, 192.
50. Ver über die Aufstehung, in Gesammelte Werke, t. 18-2, Olten/Fribourg-en­
Brisgau, 1981; ed. fr. : Sur la résurrection, in La vie symbolique, 151-156;Jung et la croyan­
ce religieuse, par. 1687, in La vie symbolique, 207.
5 1 . Ver Carta de 25 de outubro de 1955, a Palmer A. Hilty.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E ITICOS 59

Nesta concepção, vemos que a identidade da natureza do Deus


cristão e a identidade pessoal do Pai, do Filho e do Espírito San­
to, bem como a identidade divina e a realidade humana de Cristo,
encontram-se dissolvidas em arquétipos gerais e impessoais.
Isso significa que no quadro da teoria de Jung não é possível ao
ser humano nenhuma relação pessoal e concreta com um Deus iden­
tificável, que tenha uma realidade absoluta.
Vemos aqui que a concepção de Jung não pode concordar com
a fé cristã, mas que, em compensação, ela concorda com o "ateísmo"
do budismo ou com a fé do Vedanta hindu em uma divindade impes­
soal, da qual as divindades particulares do hinduísmo e das outras
religiões seriam manifestações relativas. Aliás, Jung reconhece ter se
inspirado nestas duas religiões. Ele escreve, por exemplo: "Escolhi
a palavra 'Si mesmo' para designar a totalidade do ser humano [ . . . ] .
Adotei esta expressão conforme a filosofia oriental, que há séculos
lida com estes problemas, que se colocam mesmo quando o estádio
da encarnação humana dos deuses foi superado. A filosofia dos Upa­
nishads corresponde a uma psicologia que há muito tempo reconhe­
ceu a relatividade dos deuses"52•
Jung submete à mesma relativização todos os outros pontos da
fé cristã, considerando que se trata apenas de símbolos ou de ima­
gens que se encontram nas outras religiões: "as imagens cristãs" "tais
como o Homem-Deus, a Cruz, o Nascimento virginal, [ . . . ] a Trin­
dade etc." "não pertencem somente ao cristianismo, [ . . . ] mas se en­
contram também com frequência nas religiões pagãs e, além disso,
podem reaparecer espontaneamente enquanto fenômenos psíquicos
com todas as espécies de variantes, do mesmo modo que no passado
longínquo elas saíram de visões, de sonhos ou de transes"53•
Para Jung, a escolha de um deus entre um grande número possí­
vel de deuses explica-se por razões de psicologia social, mas também
individual. No início, os deuses correspondem a "poderes e forças que
estão aí e que não temos necessidade de criar'', e correspondem a ar-

52. Psychologie et religion, par. 140, 164.


53. Ibid., par. 81, 93.
60 O INCONSCIENTE ESPIRITUAL

quétipos do inconsciente coletivo. "Tudo o que está em nosso poder",


precisa Jung, "é escolher o Senhor a que queremos servir, a fim de que
seu serviço nos proteja contra a dominação dos 'Outros' que nós não
elegemos", e portanto "é a nossa escolha que define 'Deus"'54•
Por trás destas considerações aparece um outro aspecto contes­
tável do pensamento de Jung: seu psicologismo.

2 . O psicologismo de Jung

Se Deus desempenha um papel central no pensamento de Jung,


este afirma de muitas maneiras o caráter puramente psicológico da
divindade da qual ele fala. Jung responde de antemão às acusações
de naturalismo e psicologismo refugiando-se atrás das considerações
metodológicas que já evocamos, alegando o fato de que, como cien­
tista, ele não deve pronunciar-se sobre a existência "metafísica" de
Deus, e que falar de Deus de outro modo que não seja a realidade
psíquica seria fazer teologia, o que o faria sair de sua qualidade de
psicólogo. Notamos igualmente que Jung refere-se à crítica kantiana
do conhecimento para afirmar que Deus em si, de qualquer modo,
é impossível de ser conhecido, a tal ponto que não podemos nem
mesmo nos pronunciar sobre a sua existência.
O conjunto de sua teoria é assim elaborado de tal modo que ele
possa viver sem uma tal existência.
Aliás, Jung considera que "para a compreensão das coisas reli­
giosas só existe hoje a via de acesso psicológico"55•
Porque "dizer alguma coisa sobre Deus é absolutamente impos­
sível", "todos os enunciados referem-se à psicologia da imagem de
Deus"56. "Quando digo "Deus", escreve Jung, "entendo por isso uma
imago divina antropomórfica e não me imagino ter dito alguma coisa
sobre o próprio Deus"57.

54. Ibid., par. 143-144, 173.


55. Ibid., par., 148, 177.
56. Carta de 8 de fevereiro de 1941, ao Dr. Joseph Goldbrunner.
57. Carta de 23 de abril de 1952, ao Prof. H. Haberlandt.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E ITICOS 61

Para Jung, Deus, no ser humano, é uma produção da energia psí­


quica, da libido ligada ao inconsciente coletivo. "De acordo com mi­
nha opinião", escreve ele, "é em geral a energia psíquica, a libido que
cria a imagem da divindade, utilizando modelos arquetípicos, e em
consequência o ser humano presta a honra divina à força ativa nele.
Assim, chegamos à conclusão [ . . . ] de que a imagem de deus seria
certamente um fenômeno real, mas em primeiro lugar subjetivo"58•
Jung retoma aliás a mesma explicação, indicando mais claramente
ainda que é a partir da realidade psicológica do inconsciente coletivo
que os seres humanos formam os seus deuses59•
Jung apresenta também Deus como uma ideia: "O que é Deus?
Uma ideia que em todos os países do mundo e sempre de novo se
impôs à humanidade de uma forma análoga"60• Mas, com mais fre­
quência, ele o apresenta como uma imagem: "Em primeiro lugar,
Deus é uma imagem mental dotada de uma numinosidade natural"61;
"tudo o que o ser humano se representa sob o nome de Deus é uma
imagem psíquica e não passa de uma imagem, mesmo se ele afirme
mil vezes que não é uma imagem"62•
Essa "imagem de Deus" formada no ser humano é assim defi­
nida por Jung: "A imagem de Deus é um complexo representativo
de natureza arquetípica [que devemos] considerar como o represen­
tante de uma certa soma de energia (libido) que aparece na forma
de projeção"63•
É a fé que faz dessa ideia ou dessa imagem, em outras pala­
vras, dessa entidade psíquica, uma realidade exterior ao psiquismo:
"A figura do deus é, em primeiro lugar, uma imagem psíquica, um
complexo representativo de natureza arquetípica que a fé identifica
a um ens metafísico"64.

58. Métarrwrphoses de l'âme et ses symboles, par. 129, 166. Cf. Carta de 25 de maio
de 1955, ao pastor Jakob Amstutz.
59. Psychologie de l'inconscient, par. 105, 121.
60. Métarrwrphoses de l'âme et ses symboles, par. 89, 123.
61. Carta de 16 de novembro de 1959, a Valentine Brooke.
62. Carta de 14 de maio de 1950, a M. Joseph Goldbrunner.
63. Métarrwrphoses de l'âme et ses symboles, par. 89, 123; cf. par. 95, 133.
64. Ibid., par. 95, 133.
62 0 I NCONSCIENTE ESPIRITUAL

Em outras palavras, Deus é relativo à psique humana. A repre­


sentação de Deus tem por origem a subjetividade do ser humano, e
não lhe devemos procurar nenhum fundamento objetivo: "Entendo
por relatividade de Deus a opinião segundo a qual Deus não exis­
te 'absolutamente', isto é, independentemente do indivíduo humano
nem fora de todo condicionamento humano: a opinião segundo a qual
ele depende em um certo sentido do ser humano e que há entre o ser
humano e Deus um relacionamento recíproco e inevitável, se bem
que podemos entender ou que o ser humano é uma função de Deus,
ou que Deus é uma função psicológica do ser humano. Para nossa
psicologia analítica, ciência que devemos conceber empiricamente
do ponto de vista humano, a imagem de Deus é a expressão simbó­
lica de um certo estado psicológico ou de uma função cujo caráter
é ultrapassar absolutamente a vontade consciente do sujeito e, em
seguida, impor, ou tomar possíveis, fatos e gestos inacessíveis ao es­
forço consciente. Esse impulso extremamente poderoso - quando a
função-Deus se manifesta em atos - ou esta inspiração que ultrapas­
sa o entendimento consciente provém de uma acumulação de energia
inconsciente, de libido, que anima imagens que o inconsciente cole­
tivo guarda sob forma de possibilidades latentes; entre elas a imago
de Deus, marca que, desde os tempos mais longínquos, é a expressão
coletiva das influências mais poderosas, mais absolutas que as con­
centrações inconscientes de libido exercem sobre o consciente. Para
nossa psicologia, que, enquanto ciência, deve se limitar ao empirismo
nos limites fixados ao nosso conhecimento, Deus não é nem mesmo
relativo: ele é uma função do inconsciente, a ativação da imago di­
vina por uma massa dissociada de libido. A concepção ortodoxa faz
de Deus um ser naturalmente absoluto, existente em si mesmo. Ela
traduz assim uma dissociação total do inconsciente, o que quer dizer
psicologicamente que não temos consciência de que o efeito divino
saiu de nosso próprio fundo. Em compensação, a concepção relativa
de Deus indica que reconhecemos, ao menos vagamente, que uma
porção não negligenciável do processo inconsciente era feita de con­
teúdos psicológicos. Essa concepção só pode aparecer naturalmente
se prestamos à alma uma atenção acima do ordinário, portanto distin-
O PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E ÉTICOS 63

guidos e retirados os conteúdos do inconsciente de suas projeções nos


objetos, para dotá-los de uma certa consciência que desvenda a sua
pertença e, em seguida, seu condicionamento subjetivo"65•
Se "a realidade psíquica 'Deus' é um tipo autônomo'', não é pois
enquanto ser independente ou expressão de um ser existente em si
e por si, mas enquanto "arquétipo coletivo'', "formação psíquica in­
consciente", independente somente do inconsciente individual e do
eu consciente66• E se Deus é transcendente é unicamente no sentido
em que o inconsciente coletivo que contém seu arquétipo e em que
o Si mesmo, que inclui este inconsciente coletivo, são transcendentes
ao inconsciente individual e ao eu consciente. Em outras palavras,
para Jung, a alteridade de existência e a transcendência de Deus em
relação ao ser humano são somente de natureza intrapsíquica, refe­
rindo-se apenas à relação de duas dimensões da psique humana67•
Para ele, a transcendência só tem sentido psicológico68 e só se expres­
sa pela numinosidade, isto é, pela capacidade que têm alguns arqué­
tipos de se impor por um efeito dinâmico, de modificar a consciência
e de produzir uma emoção característica. Assim escreve Jung: "Se
utilizamos a noção de um Deus, formulamos também simplesmente
um certo dado psicológico, a saber, a independência, a autonomia e o
caráter preponderante e soberano de alguns conteúdos psíquicos"69•
Enquanto arquétipo, Deus é "um ser psíquico que não devemos
confundir com o conceito de um deus metafísico"70• Assim, afirma
Jung, "seria um erro lamentável tomar minhas observações como
uma espécie de prova da existência de Deus . Elas provam apenas a
existência de uma imagem arquetípica da Divindade"71• Para Jung, o

65. Psychologische Typen; ed. fr.: Types psychologiques, Geneve, 1950, 246-247.
66. Métarrwrphoses de l'âme et ses symboles, par. 89, 123, nota 28.
67. É assim que, evocando uma "natureza divina" diferente .lo ego, Jung a assimi­
la a "um conteúdo proveniente da região do inconsciente que transcende o consciente"
(Psychologie et religion, par. 154, 185).
68. Cf. Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 2 10, 178.
69. Die Beziehung zwischen dem Ich und dem Unbewussten, par. 400, in Gesammel­
te Werke, Zurich/Stuttgart, 1964, t. 7; doravante citado na ed. fr. : Dialectique du rrwi et de
l'inconscient, Paris, 1964, 255.
70. Métarrwrphoses de l'âme et ses symboles, par. 89, 123, nota 28.
71. Psychologie et religion, par. 102, 1 13.
64 0 I NCONSCIENTE ESPIRITUAL

arquétipo não postula de modo nenhum a existência de um modelo


do qual ele seria o tipo, e encontramos a este respeito o agnosticismo
de Jung: "A existência do arquétipo não pretende nem colocar um
deus nem negar um"72• Como pretende muitas vezes Jung, tal agnos­
ticismo não está só ligado a razões de metodologia científica. Várias
vezes Jung demonstra considerar ingênua e própria a seres "primiti­
vos" a crença em uma existência de Deus diferente da psíquica: "Nos
seres que permaneceram na ingenuidade primitiva, esses dados não
foram naturalmente separados da consciência individual, porque os
deuses, os demônios etc. eram concebidos não como sendo projeções
psíquicas e constituindo, por este fato, conteúdos do inconsciente,
mas verdadeiramente realidades que valiam por si mesmas. Seu ca­
ráter projecional não havia sido reconhecido. Foi somente na época
chamada 'das Luzes' que perceberam que os deuses na realidade não
existiam e que eram apenas projeções"73•
Jung ultrapassa igualmente os limites de um simples agnosticis­
mo metodológico quando se permite considerar uma ilusão a teologia
que se refere a uma existência "metafísica de Deus": "Quando a teo­
logia pensa que cada vez que ela diz 'Deus' trata-se mesmo de Deus,
ela diviniza antropomorfismos, estruturas psíquicas e mitos"74•
O que vale para Deus em geral vale a fortiorí para as represen­
tações que as diferentes religiões se fazem de Deus. Para Jung, "as
diversas confissões são as formas codificadas e dogmatizadas de ex­
periências de origem religiosa" em que "os conteúdos da experiência
inicial foram santificados"75, experiências que para ele são de fato de
natureza psicológica, como vimos. "As principais imagens simbólicas
de uma religião'', escreve ele ainda, "são sempre a expressão da ati­
tude moral e mental que lhe é inerente"76• Ele escreve ainda mais
claramente em outra ocasião: "O recurso a deuses ou a demônios

72. Métanwrphoses de l'âme et ses symboles, par. 89, 123, nota 28.
73. Psychologie de l'inconscient, par. 150, 163-164. Ver também a Carta de 5 de ou­
tubro de 1945, ao padre Victor White: "Para o público cultivado e 'esclarecido', é da mais
alta importância compreender que a verdade religiosa é um conteúdo da alma."
74. Carta de 13 de junho de 1955, ao pastor Walter Benett.
75. Psychologie und Religion, par. 10, 20.
76. Ibid., par. 107, 1 19.
o PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E tr1cos 65

invisíveis constituiria uma formação mais adequada do inconsciente,


se bem que ela seja uma projeção antropomórfica. Como doravante
o desenvolvimento da consciência exige a retirada de todas as proje­
ções determinadas, nenhuma doutrina dos deuses poderia ser man­
tida atribuindo-lhes o sentido de uma existência não-psicológica. Se
o processo histórico de desespiritualização do universo - a retirada
das projeções - continuasse como pelo passado, tudo o que traz ex­
teriormente um caráter divino ou demoníaco deve voltar à alma, ao
interior do ser humano desconhecido [o inconsciente coletivo] de
onde aparentemente saiu"77•
As representações de Deus são variáveis de acordo com as socie­
dades e as épocas porque, segundo Jung, são expressões dos diversos
estados destas. Assim, o cristianismo é apenas a expressão de um es­
tado psíquico coletivo próprio de uma determinada sociedade, para
uma época determinada: "Se minha hipótese é exata, segundo a qual
cada religião é uma expressão espontânea de um determinado estado
psíquico geral, o cristianismo nos aparece como tendo sido a expres­
são e a fórmula de um estado psíquico que predominou no início de
nossa era, assim como durante a série dos séculos ulteriores. Mas
que uma determinada situação psíquica tenha predominado em uma
certa época não exclui a existência, em uma outra época, de outros
estados psíquicos. Estes outros estados também são capazes de uma
expressão religiosa"78.
Cada estado psíquico coletivo próprio de uma sociedade e de
uma época leva a um tipo particular de projeção. Entretanto, essa
projeção está de acordo com o inconsciente coletivo em seu conjunto
e corresponde também aos arquétipos gerais que ele contém.
No caso do cristianismo, segundo Jung, a Trindade é apenas uma
projeção psíquica de elementos antropomórficos - o pai, o filho, o
vivente - ordenados em tríade, sob a pressão de um arquétipo in­
consciente79. Jung considera que a projeção que leva à representação

77. Ibid., par. 141, 168-169.


78. Ibid., par. 160, 189.
79. Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 224, 189; cf.
par. 237, 198.
66 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

da Trindade pode ser também a das etapas do desenvolvimento do


indivíduo: o Pai representa então o estado de consciência em que
se é ainda criança, o Filho o estado em que se distingue do pai e do
habitus que ele representa para afirmar a sua autonomia, o Espírito
o estado em que a consciência atingiu seu nível de independência,
em que se está apto a se tomar pai80 e em que reconhecemos o in­
consciente81. Assim, a Trindade não tem nenhuma existência objetiva
diferente da psicológica: "O conceito de Trindade veio da aspiração
dos antigos teólogos cristãos a retirar Deus da esfera da experiência
psicológica para estabelecê-lo em uma existência absoluta"82.
Do mesmo modo, "Cristo designa psicologicamente o Si mesmo,
em outras palavras, representa a projeção desse arquétipo muito im­
portante e muito central"83. Em outras palavras, Cristo é um símbolo
ou uma imagem do Si mesmo84• Jung considera igualmente que os
atributos de Cristo e os principais acontecimentos de sua economia
de salvação são todos símbolos do Si mesmo: "Os atributos de Cristo
(consubstancialidade ao Pai, coeternidade, filiação divina, partenogê­
nese, crucifixão, Cordeiro imolado entre os opostos, Um partilhado
entre um grande número etc. 85) fazem reconhecer nele, de maneira
incontestável, uma encarnação do Si mesmo"86• De fato, de acordo
com Jung, tais atributos correspondem aos atributos do Si mesmo87,
e estes acontecimentos fases do processo de individuação, isto é, da
realização do Si mesmo.
A "realidade psicológica" de Cristo se manifesta nesta função de
sua imagem do Si mesmo, pois o Si mesmo é ele próprio uma realida­
de psicológica que inclui o eu consciente, o inconsciente individual e

80. Ibid., par. 269-272, 220-221 .


8 1 . Ibid., par. 273, 222.
82. Carta de 8 de abril de 1932, ao Dr. A. Vetter.
83. Métammphoses de l'âme et ses symholes, par. 576, 610.
84. Ibid.; Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 23 1,
194; par. 289, 235; AiOn, in Gesammelte Werke, t. 9-2, par. 70, Olten/Fribourg-en-Brisgau,
1976; doravante citado na ed. fr. : AiOn, Paris, 1997, 52. Ibid., par. 79, 59.
85. Jung acrescenta em outro lugar a ressurreição.
86. AiOn, par. 79, 59; cf. Essai d'ínterprétation psychologique du dogme de la Trinité,
par. 202, 173.
87. Ver abaixo a seção intitulada "A divinização junguiana do Si mesmo".
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E ÉTICOS 67

sobretudo o inconsciente coletivo. Jung diz assim que Cristo é "uma


imagem arquetípica, uma ideia arquetípica pertencente ao incons­
ciente coletivo e que se refere a um segundo plano desconhecido"88,
e anota em outra ocasião: "Cristo é, sem dúvida alguma, uma imagem
arquetípica e é, na realidade, tudo o que eu sei dele. Enquanto tal,
ele faz parte do fundamento coletivo da psique. Por isso eu o identi­
fico com o que chamo de Si mesmo"89•
A redução de Cristo e das diversas "ações" de sua economia de
salvação a uma realidade psicológica é claramente perceptível nesta
afirmação de Jung: "Podemos dizer, em vez de Deus, 'o inconsciente',
em vez de Cristo, 'o Si mesmo', em vez da encarnação, 'a integração
do inconsciente', em vez da crucifixão e do sacrifício na cruz, 'o es­
forço para fazer aceder a totalidade à consciência"'90• E Jung confessa
então: "Como Cristo nunca significou para mim mais do que eu podia
compreender dele, e como esta compreensão coincide com o saber
empírico que tenho do Si mesmo, devo reconhecer que é o Si mesmo
que tenho na cabeça quando me fixo na ideia de Cristo"91 • Jung con­
sidera que há uma correspondência estreita entre a vida de Cristo e
a vida inconsciente de cada um, na medida em que "a vida de Cristo
é arquetípica" pois "representa a própria vida do arquétipo": "como
este último é o pré-condicionamento inconsciente de toda vida hu­
mana, mediante a vida revelada de Cristo se expressa, em seu sentido
profundo, a vida secreta e inconsciente de cada um"92•
Quanto ao Espírito Santo, Jung vê nele uma produção intelectual
que completou em tríade, de uma maneira inesperada e paradoxal,
uma díade (Pai-Filho) cujo terceiro termo deveria ter sido, natural e
logicamente, a Mãe93• Aos olhos de Jung, que vê no Espírito Santo a
vida ou o sopro comum das duas outras Pessoas, este é "um concei-

88. Jung et la croyance religieuse, par. 1648, in La vie symbolique, 191.


89. Ibid., par. 1649, 192.
90. Ibid., par. 1664, 198.
91. lbid., par. 1669, 200.
92. Psychologie et religion, par. 147, 176.
93. Ver Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 235-238,
196-199.
68 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

to abstrato porque uma respiração comum às duas pessoas dotadas


de características diferentes não poderia ser uma evidência"94• Aqui
também trata-se de um conceito antropomórfico: "este conceito, nas­
cido no espírito humano, traz os traços de seu procriador humano"95•
O Espírito resulta do fato de que uma qualidade isolada, concebida
pela razão, foi hipostasiada e viu atribuída a ela uma existência con­
creta96. O fato de que um processo intelectual tenha sido posto em
ação para elaborar a concepção da Trindade cristã não impede que
tal processo tenha sido efetuado sob a pressão de elementos incons­
cientes: ''Visto que o pensamento trinitário não existe por si mesmo e
que suas forças de impulsão provêm de estados psíquicos coletivos e
impessoais, ele expressa uma necessidade da alma inconsciente que
ultrapassa as necessidades espirituais do indivíduo"97•
Do mesmo modo que as ações da economia de salvação de Cristo
correspondiam, segundo Jung, a certos arquétipos expressos sob ou­
tras formas nas outras religiões, os atos atribuídos ao Espírito Santo
resultam igualmente da projeção de certos arquétipos universais. Por
exemplo, a comunicação da graça aos apóstolos em forma de línguas
de fogo é a expressão de um arquétipo da energia que se encontra
igualmente expresso, na forma de uma força mágica, em todas as "re­
ligiões dinamistas" e corresponde, pois, a uma "ideia inscrita desde
tempos imemoráveis no cérebro humano"98•
Jung explica que é por uma necessidade de regulação psíqui­
ca em relação às forças ambivalentes do inconsciente coletivo que o
ser humano se forjou heróis, deuses e demônios. "A noção de Deus
responde a uma função psicológica absolutamente necessária, de na­
tureza irracional, que não tem nada de comum com a noção da exis­
tência de Deus."99

94. Ibid., par. 237, 198.


95. Ibid., par. 239, 199.
96. Ibid.; cf. parág. 241, 200.
97. Ibid., par. 242, 201 .
98. Ver Psychologie de l'inconscient, par. 108-109, 123-124.
99. Ibid., par. 1 10, 128.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E tTICOS 69

Jung sempre rejeitou, como dependendo de um contrassenso,


as acusações de psicologismo que lhe foram dirigidas de numerosas
maneiras. Mas é improvável que leitores tão diversos quanto aque­
les que fizeram esta crítica tenham podido se ouvir para se enganar
a tal ponto sobre o seu pensamento. Seu sistema de defesa, funda­
mentado em considerações metodológicas e na crítica kantiana do
conhecimento, segundo o qual ele não tem, enquanto psicólogo, que
se pronunciar sobre a existência "metafísica" de Deus (que aliás é
inacessível ao conhecimento humano), apresenta algumas brechas.
Primeiramente, Jung deixou-se levar, várias vezes seguidas, ao afir­
mar que a crença na existência metafísica de Deus dependia de uma
mentalidade ingênua e primitiva, e que, ao contrário, o ser humano
evoluído e inteligente sabe que ele só tem que se haver com imagens
e símbolos. Em segundo lugar, Jung apresenta uma história psicoló­
gica e sociológica da formação dos diversos conceitos de Deus que
mostra que Deus não é um dado revelado, mas o produto de uma
elaboração mental e social eminentemente relativa.

3 . A teologia junguiana

Desenvolvendo o seu pensamento em uma sociedade globalmente


cristã e dirigindo-se antes de tudo ao homem ocidental, Jung conce­
deu um lugar especial à teologia cristã. Embora se defenda frequen­
temente de ser um teólogo, ele desenvolveu entretanto, relativamente
ao cristianismo, teorias que são com toda evidência de ordem teoló­
gica. Tais teorias se referem a dois domínios fundamentais da teologia
cristã: a triadologia e a cristologia.

a. Da Tri ndade à Quatern idade

Uma das ideias mais estranhas de Jung é sua proposição de subs­


tituir a Trindade por uma Quatemidade.
A primeira justificativa que ele traz é uma série de considerações
que podemos qualificar de simbólicas:
70 O I NCONSCIENTE ESPIRITUAL

1) "A trindade não é um esquema ordenador natural mas


artificial"100, enquanto "a quatemidade é o esquema de ordem por
excelência"101 .
2) Ao contrário da trindade, "a quatemidade é um arquétipo por
assim dizer universal"1º2•
3) "A quatemidade é um símbolo da totalidade, enquanto a trin­
dade não o é."103
4) "O inconsciente se expressa de preferência em quatemida­
des."104
Por estas razões, "a quatemidade não é uma doutrina sobre a
qual se pode discutir, mas um dado de fato ao qual mesmo a dogmá­
tica cristã está subordinada"1º5•
A segunda justificativa é um argumento psicológico: a presen­
ça do mal como constituinte essencial do inconsciente. "Enquanto
o símbolo central do cristianismo é uma Trindade, a fórmula do in­
consciente é uma quatemidade. Por isso a fórmula cristã ortodoxa
não é inteiramente completa, visto que falta à Trindade o aspecto
dogmático do princípio do mal."106 Encontramos aqui o psicologismo
de Jung, que concebe as realidades teológicas a partir e em função
das realidades psicológicas.
A terceira justificativa consiste em uma série de argumentos re­
lativos à natureza do próprio mal, que Jung considera igualmente
ser de caráter psicológico, mas que poderíamos qualificar mais justa­
mente de metafísicos e de teológicos.
Jung parte de uma crítica da concepção cristã clássica - desen­
volvida por numerosos Padres da Igreja, como Gregório de Nissa,
Basílio de Cesaréia ou o Pseudo-Dionísio - do mal como privatio
bani (falta ou privação de bem ) . Contra esta concepção, Jung defen­
de a ideia de que o mal tem uma substância e uma realidade positiva

100. Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 246, 206.


101. Ai'on, par. 38 1, 262.
102. Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 246, 206.
103. Carta de 26 de março de 1951, ao Prof. Adolf Keller.
104. Ibid.
105. Psychologie et religion, par. 103, 1 14.
106. Ibid.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E tTICOS 71

equivalentes às do bem. Segundo ele, o julgamento moral já é uma


prova disso, porque "não podemos fazer um julgamento a não ser
se seu oposto tem um conteúdo também real"107• Por outro lado, se
"diante de um ser há um não-ser, nunca há um bem existente diante
de um mal não existente, porque este último é uma contradictio in
adjecto"108• Se pretendemos que o mal é uma simples privatio boni,
então a oposição bem-mal não é mais possível1°9: "Como podemos
falar de 'bem' se não há 'mal'? De 'clareza' sem 'obscuridade'? De
'alto' sem 'baixo'? É fatal que se concedemos uma substância ao bem
devemos fazer a mesma coisa para o mal. Se o mal é sem substân­
cia, o bem permanece fantasmático, já que ele não tem nunca mais
que se defender contra um adversário real, mas somente contra uma
sombra, uma simples privatio boni"11º.
Jung vê uma confirmação de sua ideia no fato de que o mal tem
uma substância na existência, no poder e nos efeitos da ação reconhe­
cidos pelo cristianismo no Diabo.
Então, ele refere-se a teses gnósticas que, depois de introdu­
zi-las como uma referência histórica, faz manifestamente suas :
"Visto que ele é o adversário de Cristo, [o Diabo] deveria ocupar
uma posição equivalente e ser igualmente 'filho de Deus'. Isto con­
duziria diretamente a algumas concepções gnósticas, segundo as
quais o Diabo ou Satanael seria o primeiro filho de Deus, enquanto
Cristo seria o segundo. Como outra consequência lógica, teríamos
a supressão da fórmula trinitária, que seria substituída por uma
quaternidade"lll.
Jung justifica então por diversos argumentos essa introdução do
mal no próprio coração de Deus: "Querer outra coisa [que não seja o
bem] e querer o contrário [do bem] são as características do Diabo,
como a desobediência caracteriza o pecado original. Estão aí as con-

107. Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 246, 206; cf.
Ai'on, par. 97, 67-68.
108. Ibid., par. 246, 206.
109. Ibid.
1 10. Ibid. Cf. Ai'on, par. 98, 68-69; ]ung et la croyance religieuse, par. 1592-1593, in
La vie symbolique, 164-165; Carta de 30 de abril de 1952, ao padre Victor White.
1 1 1 . Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 249, 207.
72 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

dições da criação em geral: elas deviam estar inscritas no plano divino


e, consequentemente, pertencer ao domínio divino"112•
De todas estas reflexões, Jung conclui que a quarta pessoa que
convém acrescentar às três Pessoas da Trindade - o Pai, o Filho, o
Espírito Santo - para se chegar a uma Quatemidade é o Diabo ou
o próprio Satanás113•

b. A união do bem e do mal em Deus

Não contente de introduzir o mal em Deus pela substituição da


Trindade por uma Quatemidade da qual Satanás é a quarta hipósta­
se, Jung introduz o mal no próprio Pai. Referindo-se de novo a fon­
tes gnósticas, ele observa que "a especulação religiosa não ignora de
modo algum o duplo aspecto do Pai"114• O Pai contém nele uma coin­
cidentia ou um complexio oppositorum, isto é, uma união do bem e do
mal, que desabrocha em seu Filho e no adversário deste, o Diabo115•
"Javé tem duas mãos: a direita é o Cristo e a esquerda Satanás."116
Para provar a presença do mal no Pai, Jung evoca o papel de jus­
ticeiro e vingador que ele desempenha no Antigo Testamento, papel
fortemente sublinhado por alguns comentaristas judeus117•
Segundo Jung, o Livro de Jó nos revela especialmente que Deus
não é um ser inteira e unicamente bom, mas também um ser violen­
to, destruidor, em quem o bem e o mal estão unidos118• "O Deus do

1 12. Ibid., par. 252, 210.


1 13. Ver Psychologie et religion, par. 103-104, 1 14-115, e as outras referências dadas
na seção seguinte.
1 14. Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 259, 214.
1 15. Ibid. , par. 279, 226.
1 16. Carta de 27 de março de 1954 ao pastor W Lachat, par. 1537, in Gesammelte
Werke, t. 18-2, Olten/Fribourg-en-Brisgau, 1981; ed. fr. in La vie symbolique, 138. Ver
também Carta de 24 de novembro de 1953 ao padre Victor White; Carta de novembro de
1955 a Simon Doniger.
1 17. Ver AiOn, par. 105- 1 1 1 , 72-74; Jung et la croyance religieuse, par. 1593, in La
vie symbolique, 165-166.
1 18. Ver Antworl aufHiob, in Gesammelte Werke, t. 1 1 , Olten/Fribourg-en-Brisgau,
1963, 387-506; ed. fr. : Réponse à Job, Geneve, 1996.
0 PROBLEMA DA COMPATIBI LIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E �TICOS 73

Antigo Testamento é paradoxal, bom e demoníaco, justo e injusto119",


"moral e imoral"12º. Nos sofrimentos infligidos a Jó, "a divindade sim­
plesmente mostrou sua outra face a que chamamos o diabo"121• Ela o
mostrou também em todos os sofrimentos que a humanidade viveu
em toda a sua história e até os nossos dias, e que são, segundo Jung,
o fato de Deus. "O Deus vivo", diz Jung, "é um terror vivo"122, e a seu
respeito o qualificativo "'brutal' é fraquíssimo; 'bárbaro', 'violento',
'cruel', 'sanguinário', 'infernal', 'demoníaco' seriam mais justos"123•
Estes dois últimos qualificativos não têm nada de espantoso, visto que
a afirmação, várias vezes repetida por Jung e emprestada de um tex­
to gnóstico dos primeiros séculos (as Homilias pseudo-clernentinas),
segundo o qual Cristo e Satanás são as duas mãos de Deus, significa
clarissimamente que Deus age no mundo tanto por Satanás como por
Cristo, em outras palavras, que as ações diabólicas ou demoníacas
são, em última análise, atribuídas ao próprio Deus.
Jung rejeita assim não somente a definição de Deus como Sum­
mun bonum ( Bem supremo)124 mas ainda a fórmula cristã clássica:
"Todo bem vem de Deus e todo mal do ser humano"125 e todas as
afirmações patrísticas que vão neste sentido126 • Segundo ele, não é da
liberdade do ser humano, como pensam os Padres, que vem o mal
no mundo, mas sim de Deus. "Não podemos esperar", escreve Jung,
"que um universo perfeitamente bom saia das mãos de um criador
moralmente ambíguo"127•
Sem dúvida alguma, esta concepção foi inspirada a Jung pela
gnose, pela qual ele se mostrou durante toda a sua vida - a partir de

1 19. Carta de 27 de março de 1954 ao pastor W. Lachat, par. 1533, in Gesammelte


Werke, t. 18-2, Olten/Fribourg-en-Brisgau, 1981; ed. fr. in La vie symholique, 136.
120. Jung et la croyance religieuse, par. 1593, in La vie symholique, p. 166.
121. Métamorphoses de l'âme et ses symholes, par. 89, 122-123. Este tema é desen­
volvido na Réponse à Job.
122. Das Symholische Leben, par. 690, in Gesammelte Werke, t. 18-1, Olten/Fri-
bourg-en-Brisgau, 1981; ed. fr. in La vie symholique, 83.
123. Carta de 17 de fevereiro de 1954 ao reverendo Erastus Evans.
124. Ai'on, par. 80, 60; cf. par. 99-100, 69-70.
125. Ibid., par. 74, 56; par. 81, 61; par. 95, 67.
126. Ai'on, par. 81-91, 56-66.
127. Carta de 30 de abril de 1952 ao padre Victor White.
74 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

1916128 - muito fortemente influenciado129• Mas ela lhe é ditada tam­


bém por considerações psicológicas, em particular pela ideia de que
no Si mesmo, que é uma imago dei130 - sendo Deus inversamente
uma imagem do Si mesmo -, os contrários, especialmente o bem e
o mal, estão unidos. "A unidade primeira dos contrastes", escreve ele,
"se reconhece na unidade primeira de Satanás e de Javé"131.
O ser humano só pode aceder a Deus reconhecendo esta parte
satânica de Deus, que aliás Deus procura lhe revelar: "Ele não tem
dúvida de que Deus, para chegar até o ser humano, seja obrigado a
lhe mostrar Seu verdadeiro rosto, sem o qual o ser humano louvaria
por toda a eternidade a bondade e a justiça divinas, e, fazendo assim,
proibiria a Deus aceder até ele. Este verdadeiro rosto, ele só pode
mostrá-lo por Satanás"132•

e. Cristo

Um segundo ponto problemático da teologia de Jung refere-se a


Cristo, a propósito do qual ele desenvolve várias séries de considera­
ções cuja incompatibilidade com a fé cristã aparece imediatamente.
1 ) Primeiramente, em relação com a teoria muito particular da
Quaternidade, em que Satanás ocupa o lugar da quarta Pessoa, Cristo
não é mais o Filho único do Pai, mas o irmão de Satanás, sendo este
o primeiro Filho de Deus e Cristo o segundo133• Antes da encarnação

128. Data de publicação de Septem semwnes ad rrwrtuos. Este livro estranho, publi­
cado com o nome emprestado de Basílides de Alexandria, autor gnóstico da Antiguidade,
está ligado a uma crise interior de Jung que alguns comentaristas qualificam de psicótica e
próxima da esquizofrenia (ver P. J. STERN, C. G. Jung, Projhet des Unbewussten, Munich,
1979, 138; P. HoMANS, Jung in Context. Modemity and the Making of Psychology, Chica­
go, 1979, 87; B. KAEMPF, Réconciliation. Psychologie et religion selon Carl Gustav Jung,
123). Esta crise parece ter sido determinante na evolução do pensamento de Jung.
129. Sobre a dimensão gnóstica da obra de Jung, ver especialmente R. A. SEGAL,
The Gnostic Jung, Princeton ( N .J.), 1992.
130. Métarrwrphoses de l'âme et ses symboles, par. 612, 646.
131. Ibid., par. 576, 610.
132. Carta de 5 de janeiro de 1952 ao Dr. Erich Neumann.
133. cf. Ai'on, par. 103, 71. par. 1 13, 75.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E ITICOS 75

do Filho, os dois coexistiam em Deus e formavam nele uma coinci­


dentia oppositorum 134. Depois da encarnação, de algum modo eles
se objetivaram e separaram-se entre si separando-se do Pai13.5; então
tomaram-se adversários, mas como tais permanecem indissociáveis.
Cristo e Satanás "aparecem como opostos equivalentes"136, Cristo en­
carnando a parte luminosa de Deus e Satanás sua parte obscura.
Jung faz de Satanás o irmão de Cristo por uma outra razão de
ordem psicológica, que evocamos anteriormente: o fato de que no
Si mesmo (do qual Cristo e Satanás são projeções137) o bem e o mal
estão reunidos em uma coincidentia oppositorum. "Os contrastes
reunidos no arquétipo distribuíram-se em parte no luminoso Filho
de Deus e em parte no Diabo."138
Pela mesma razão, Cristo e o Anticristo estão extremamente
próximos139: "do mesmo modo que a sombra à luz, [o] 'mistério de
iniquidade' [do Anticristo] se prende inseparavelmente ao 'Sol de
justiça', assim como um irmão a um outro irmão"140. Do mesmo modo
que o bem e o mal, sendo relativos um ao outro, são indissociáveis, é
indispensável que Cristo, definido pela teologia cristã como inteira­
mente bom, tenha uma contrapartida ligada a ele: "é necessário pois
que nasça do outro lado um elemento mau, 'ctônico'141, a saber, o An­
ticristo"142. Assim, Jung confia a um de seus correspondentes: "Vocês
me imputaram a imagem tradicional, dogmática, familiar de Cristo.
Esta imagem não corresponde absolutamente à minha concepção

134. Ver carta de 27 de março de 1954 ao pastor W. Lachat, par. 1553-1556, in


Gesammelte Werke, t. 18-2, Olten/Fribourg-en-Brisgau, 1981; ed. fr. in La vie symholique,
139-147.
135. Cf. Carta de 24 de novembro de 1953 ao padre Victor White.
136. Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 258, 213.
137. Sobre Cristo como projeção do Si mesmo, ver Métamorphoses de l'âme et ses
symholes, par. 576, 610.
138. Ibid., par. 576, 610.
139. Ibid., par. 576, 610-6 1 1 .
140. Aiim, par. 78, 58.
141. Ctônico: expressão de Jung para indicar os aspectos mais profundos da psique
que ele chama de arquétipos. Para Jung a parte ctônica da alma é a que está aferrada à
natureza, onde aparece de modo mais claro seu vínculo com a terra. (N. da T. ).
142. Aiim, par. 1 16, 77.
76 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

pessoal de Cristo, porque me sinto atraído por uma concepção muito


mais sombria e mais rude do homem Jesus. É que a concepção dog­
mática e tradicional de Cristo é tão luminosa quanto ela pode sê-lo
- lumen de lumine e toda a matéria negra é rejeitada para o outro
-

lado do quadro"143•
2) Em segundo lugar, Jung relativiza a importância da realidade
histórica de Cristo144• Para ele, trata-se de um justo que teria per­
manecido para sempre anônimo145, ou de um jovem rabi que teria
permanecido para sempre desconhecido, se não tivesse sido feito o
objeto da projeção de um arquétipo coletivo e se não tivesse sido as­
sim carregado de símbolos. Somente importam estes símbolos e a fun­
ção psicológica de que Cristo foi investido, a saber, ser uma imagem
do Si mesmo: "Aqueles que escreveram os Evangelhos, assim como
Paulo, estavam preocupados em acumular as características milagro­
sas e os significados espirituais na cabeça do jovem rabi quase total­
mente desconhecido que, depois de uma carreira que talvez tivesse
durado apenas um ano, havia encontrado um fim prematuro. O que
eles fizeram dele nós o sabemos, mas não sabemos até que ponto esta
imagem corresponde à realidade histórica. Era ele o Logos e o Cristo
eternamente vivos, nós não o sabemos. De qualquer maneira, isso não
tem importância, considerando que a imagem do homem-Deus está
viva em cada um de nós e se encarnou (isto é, se projetou) no homem
Jesus, a fim de se manifestar em forma visível para que os humanos
possam reconhecer nele seu próprio horrw interior, seu Si mesmo"146•
Na mesma ordem de ideias, Jung manifesta também dúvidas so­
bre a realidade histórica do que constitui um dos pilares da fé cristã, a
ressurreição, vendo nela, à maneira de um certo número de teólogos
católicos e protestantes modemos147, apenas um símbolo e, portanto,

143. Carta de 17 de fevereiro de 1954 ao reverendo Erastus Evans.


144. Cf. Ai'on, par. 123, 82.
145. Jung et la croyance religieuse, par. 1669, in La vie symbolique, 200.
146. Über die Aufstehung, em Gesammelte Werke, par. 1570, t. 18-2, Olten et Fri­
bourg-en-Brisgau, 1981; doravante citado na ed. fr. : Sur la résurrection, in La vie symbo­
lique, 154- 155.
147. Pensamos especialmente em R. Bultmann e em seus discípulos (o que, por
outro lado, não exclui profundas divergências entre Bultmann e Jung).
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E ÉTICOS 77

um "acontecimento psicológico"148, cuja função é expressar o fato de


que "nossa totalidade psíquica [o Si mesmo] se estende além dos li­
mites do espaço e do tempo"149•
Cristo encontra-se portanto reduzido à realidade psicológica de
um tipo ou de um símbolo do Si mesmo150• Lembramos que para
Jung este símbolo é adaptado à época e à mentalidade da civilização
em que ele foi formado, e que outras épocas e outras civilizações for­
maram outros símbolos do Si mesmo, que Jung considera equivalen­
tes: Osíris, Tammuz, Átis-Adônis, Mitra, Fênix, Mercúrio ou Mana,
por exemplo. Em outras palavras, Cristo é apenas "o modelo cristão
do Si mesmo"151• Fora dele há outros modelos, não-cristãos, do Si
mesmo, também válidos porque igualmente significativos.
Mesmo vendo no Cristo um símbolo do Si mesmo, Jung con­
sidera no entanto que esse símbolo é imperfeito: de fato, Cristo é
sem pecado, ele é luz, ele é perfeito. Enquanto o Si mesmo é um
símbolo de totalidade152, que inclui pois o mal ao mesmo tempo em
que inclui o bem, "o símbolo de Cristo é privado da totalidade pois
não inclui o aspecto noturno das coisas, mas o rejeita expressamente
como adversário luciferiano"153• Cristo cortou a sombra de si mesmo,
e "o Anticristo é a contrapartida assim cortada"154• Isso significa que
o Anticristo corresponde a uma outra parte do Si mesmo que a parte
que representa o Cristo, a saber, a "sombra do Si mesmo, a metade
obscura da totalidade humana"155•
Jung considera mesmo que porque Cristo nasceu de uma virgem
e foi isento do pecado original sua encarnação é imperfeita156•

148. Ver Sur la résurrection, in La vie symholique, 151- 156.


149. Ibid., 155.
150. Métamorphoses de l'âme et ses symholes, par. 612, 646; Essai d'interprétation
psychologique du dogme de la Trinité, par. 231, 194; par. 289, 235: "o Cristo, que podemos
considerar psicologicamente um símbolo do Si mesmo"; Aion, par. 70, 52; par. 79, 59; par.
1 15, 76.
151. Jung et la croyance religieuse, par. 1657, in La vie symholique, 195.
152. Cf. Aüm, par. 123, 82.
153. Ibid., 74, 55.
154. Ibid., 74, 56.
155. Ibid., par. 76, 56-57.
156. Ver Antwort auf Hiob, par. 626 e 690, in Gesammelte Werke, t. 1 1 , Olten et
Fribourg-en-Brisgau, 1963, 387-506; tr. fr. Réponse à Job, 89-90 e 157-158.
78 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

As especulações de Jung chegam não somente a uma relativiza­


ção da pessoa e da economia de salvação de Cristo, mas a uma desna­
turalização e a uma despersonalização de Cristo157•
Herói mítico, Cristo não é nem realmente deus (Jung atribui
essa concepção a uma forma primitiva da fé cristã158) nem propria­
mente um homem159• Os traços de sua humanidade real, sua figura
histórica são sem importância; somente tem importância o que ele
expressa, simbolicamente, de um arquétipo universal e do Si mesmo
indeterminado160•

d. O Espírito Santo

Para Jung, o Espírito Santo não é propriamente falando uma Pes­


soa. Segundo ele, "a terceira pessoa da Trindade não possui nenhuma
qualificação de pessoa, ao contrário do Pai e do Filho. Em si, 'espírito'
não designa uma pessoa, mas designa qualitativamente uma substân­
cia de caráter pneumático"1 6 1• Para Jung, o Espírito, na origem, é uma
qualidade, um poder, uma atividade vital, um sopro (pneuma) atribuí­
dos ao Pai e ao Filho. E esta qualidade, isolada pelo espírito humano
(em outras palavras, este conceito), é que foi hipostasiada1 62•

4. A antropologia junguiana

a . A i magem de Deus

A noção de imagem de Deus, que na antropologia patrística de­


sempenha um papel central, em Jung toma um sentido bem diferente.

157. Ver Métamorphoses de l'ânw et ses symholes, par. 536, 572.


158. Ibid.
159. Ver ibid.: "Os paralelos deste gênero mostram quão pouco de pessoal humano
e quanto de geralmente mítico está contido na figura de Cristo".
160. Cf. AiOn, par. 123, 82.
161. Essai d'interprétation psychologique du dognw de la Trinité, par. 276, 225.
162. Ibid., par. 197, 169-170; par. 204, 174.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E trlCOS 79

Ele dá esta definição: "A imagem de Deus é um complexo re­


presentativo de natureza arquetípica [que devemos] considerar como
o representante de uma certa soma de energia (libido) que aparece
na forma de projeção"163• Vemos aqui que a imagem de Deus não é
uma realidade ontológica que seria, na natureza humana, a marca do
próprio Deus, que refletiria Suas qualidades e estruturaria e dinami­
zaria a natureza humana relativamente a Ele, mas uma realidade pu­
ramente psicológica que consistiria em uma representação de Deus,
isto é, em uma projeção arquetípica, cuja natureza profunda é uma
energia psíquica.
Por outro lado, Jung apresenta Deus ou Cristo como sendo ima­
gens do Si mesmo, enquanto esperávamos, em uma perspectiva cris­
tã, que ele concebesse o Si mesmo como uma imagem de Deus ou
de Cristo. Certamente, Jung não exclui inteiramente esta segunda
possibilidade, mas invoca para isso uma razão de caráter puramente
dialético164• Em seu pensamento, é a primeira possibilidade - a de
Deus ou de Cristo como imagem do Si mesmo - que é amplamente
predominante. Assim, em Aion ele escreve: "O Si mesmo é um sím­
bolo de Cristo ou Cristo é um símbolo do Si mesmo? No presente
estudo, fiz meu o segundo termo desta alternativa. Procuro mostrar
como a imagem tradicional de Cristo reúne nela as características
de um arquétipo, o do Si mesmo"165• A concepção de Jung inverte
assim muito claramente o princípio de base da antropologia patrís­
tica: não é o ser humano que é, propriamente falando, à imagem de
Deus, mas Deus que é à imagem do ser humano, mais exatamente
do que representa a totalidade dele: o Si mesmo. Essa inversão se
explica pelo psicologismo de Jung, que vê em Deus uma projeção da

163. Métamorphoses de l'âme et ses symboles, par. 123, cf. 133.


164. "Podemos considerar que o aspecto da imagem divina na Quatemidade é um
reflexo do Si mesmo, ou inversamente fazer do Si mesmo uma imagem de Deus no ser
humano. Psicologicamente, as duas atitudes são verdadeiras visto que o Si mesmo, que
não pode ser percebido subjetivamente a não ser como o isolamento mais extremo e mais
íntimo, tem necessidade, em um segundo plano, de uma universalidade sem a qual ele não
poderia absolutamente realizar o seu isolamento absoluto" (Essai d'interprétation psycho­
logique du dogme de la Trinité, par. 282, 230).
165. AiOn, par. 123, 82.
80 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

psique, mas também por seu relativismo religioso: reconhecer que


o Si mesmo é uma imagem de Cristo seria conceder um valor abso­
luto a Cristo e um valor relativo ao Si mesmo. Ora, a concepção de
Jung é inversa: é o Si mesmo que tem um valor absoluto, enquanto
Cristo é um símbolo ou uma imagem relativa do Si mesmo, podendo
este ser simbolizado de maneira tão válida quanto por diversos he­
róis ou deuses pertencentes a outras religiões, razão pela qual Jung
diz que "os símbolos do Si mesmo se recobrem com os símbolos da
divindade"166 em geral. Por isso, Jung confessa que dá "uma maior
importância à presença viva e imediata do arquétipo do que à ideia
do Cristo histórico"167• Por isso também, Jung considera Cristo um
símbolo imperfeito do Si mesmo, pois, se Cristo é perfeito, ele não é
total (não comportando em si nenhum mal), enquanto o Si mesmo,
enquanto inclui em si o mal, é total, mas não é perfeito ou, mais
exatamente, encontra sua perfeição na totalidade que é uma perfei­
ção de um outro jeito168• Por isso, Jung considera ainda que o acesso
ao Si mesmo no processo de individuação deve ser feito "retirando
as projeções de um Cristo exterior, histórico ou metafísico, [ . . ] não .

[podendo] o Si mesmo tomar-se real e consciente sem a retirada das


projeções exteriores".

b. O Si mesmo

1) A divinização junguiana do Si mesmo


No pensamento de Jung, a absolutização do Si mesmo corres­
ponde a uma divinização do Si mesmo.
Jung nota que no plano empírico (o único que nos pode ser aces­
sível) o Si mesmo e Deus não se distinguem: "No que se refere ao
Si mesmo", escreve ele, "eu poderia dizer que ele é um equivalente
de Deus. [ . . . ] Os dois arquétipos são expressos, no plano empírico,

166. Jung et la croyance religieuse, par. 1624, in La Vie symbolique, 177.


167. Ai"on, par. 123, 82.
168. lbid.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E ÉTICOS 81

por símbolos idênticos ou análogos, de tal modo que não é possível


distingui-los um do outro"169.
Por outro lado, Jung atribui ao Si mesmo um certo número de
qualidades divinas: inefabilidade essencial, transcendência, univer­
salidade, unicidade, imortalidade, eternidade, totalidade, perfei­
ção170. E ele nota que "poderíamos dizer do Si mesmo que ele é
'Deus em nós "'171 •
Em certos aspectos, o Si mesmo junguiano está bastante próxi­
mo do Si mesmo do hinduísmo, e Jung, aliás, não esconde ter tomado
emprestada dele esta noção172.
Mas ao mesmo tempo o Si mesmo permanece para Jung uma
realidade psíquica de ordem natural. Este naturalismo confina com
o materialismo, visto que Jung, como veremos, assimila os arquéti­
pos do inconsciente coletivo, que constituem a parte essencial do Si
mesmo, a instintos, a energias ou a traços deixados no cérebro por
experiências repetidas.
Que o Si mesmo, no pensamento de Jung, não seja uma mani­
festação ou uma expressão de Deus, mas que Deus seja antes uma
deificação do Si mesmo revela-se claramente nesta explicação: o sím­
bolo "ultrapassa o ser humano, por isso damos-lhe o nome de 'Deus',
porque ele expressa uma realidade espiritual (ou um fator) mais forte
do que o Eu (eu o chamo de Si mesmo)"173.
Este paradoxo - divinização de uma realidade natural - en­
contra sua solução no fato de que a religião de Jung é na realidade
uma espécie de panteísmo. Aliás, Jung nota de maneira muito carac­
terística que o Si mesmo "está no direito de reivindicar as exigências
mais contraditórias, o parentesco tanto com os animais como com os
deuses, com os minerais como com as estrelas"174.

169. Carta de 13 de janeiro de 1948 ao Dr. Gebhard Frei.


170. Ver AiOn, par. 79, 59; par. 1 15, 76-77; par. 123, 83.
171. Dialectique <ht moi et de l'inconscient, par. 399, 255.
172. Psychologie et religion, par. 140, 164.
173. Carta de 10 de janeiro de 1929 ao Dr. Kurt Plachte.
174. Dialectique du moí et de l'inconscient, par. 398, 254-255. Por outro lado, Jung
fala da natureza como de um "aspecto da divindade" (Carta de 25 de outubro de 1955 a
Palmer A. Hilty).
82 0 I NCONSCIENTE ESPIRITUAL

O panteísmo de Jung não existe sem relação com o de Hegel, visto


que o Si mesmo procura tomar consciência dele próprio por meio do
desenvolvimento histórico de suas diferentes expressões simbólicas. A
este respeito, a conclusão da célebre conferência de Estrasburgo é ca­
racterística: "Ao lado desta vida do espírito que se renova eternamente,
que, através de toda a história da humanidade, procura a sua finalidade
em caminhos confusos e muitas vezes incompreensíveis, os nomes e
as formas aos quais os seres humanos se esforçam para se agarrar re­
presentam pouca coisa, porque os seres nada mais são do que frutos e
folhas caducas no mesmo tronco da árvore etema"175•

2) A dupla dimensão ética do Si mesmo


Uma outra característica do Si mesmo chama a atenção. Para
Jung, o Si mesmo representa a totalidade do ser humano, que inclui o
eu consciente, o inconsciente individual e o inconsciente coletivo. O
inconsciente coletivo é a parte mais importante do Si mesmo, quan­
titativa e qualitativamente. Ele representa no ser humano, se assim
podemos dizer, a parte transcendente de si mesmo, que contém to­
dos os arquétipos. Para Jung, o Si mesmo "é uma unidade, mas dual,
feita de dois opostos, senão não seria uma totalidade"176• O Si mesmo
tem uma parte luminosa simbolizada para um cristão pelo Cristo,
mas também "uma metade obscura" simbolizada pelo Diabo ou pelo
Anticristo. Assim, a luz e a sombra estão "repartidas de uma maneira
igual na natureza humana" e "formam no Si mesmo uma unidade
paradoxal"177• Em outra ocasião, Jung diz que "não podemos qualifi­
car o conceito do Si mesmo de summum bonum, porque ele repre­
senta por definição uma unificação virtual de todos os opostos"178,
portanto do bem e do mal. Jung simboliza assim o Si mesmo por uma
cruz: sua barra vertical une o bom ao mau; sua barra horizontal, o
espiritual ao material179.

175. Des rapporls de la psychothérapie et de la direction de conscience, par. 538, in


La guérison psychologique, 300.
176. Carta de 10 de abril de 1954 ao padre Victor White.
177. Aion, par. 76, 56-57; cf. par. 1 17, 77.
178. Carta de 18 de junho de 1949 a Annin Kesser.
179. AiOn, par. 1 16, 77.
O PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E ÉTICOS 83

Isso quer dizer não somente que o bem e o mal coexistem no ser
humano, mas que essa coexistência é natural, normal e inevitável e,
portanto, definitiva.
Podemos constatar aqui uma analogia entre a constituição do Si
mesmo e a constituição de Deus tal como a concebe Jung, em que o
bem e o mal coexistem também natural, inevitável e eternamente.
Tal analogia não é fortuita: como vimos, Jung considera Deus
uma imagem ou uma projeção do Si mesmo. Por outro lado, ele afir­
ma muitas vezes que essa projeção que constitui a imagem de Deus
é de caráter antropomórfico (ele considera aliás que "toda imagem
de Deus é mais ou menos antropomórfica"180). Constatando a coexis­
tência do bem e do mal na realidade humana, estava na lógica de sua
teoria que Jung a atribuísse a Deus.
Jung considera que "nós ignoramos como os contrários se recon­
ciliam e se unem em Deus" e que "também não podemos compreen­
der como eles se unem no Si mesmo". No que se refere à proporção
do bem e do mal que aí se encontra, Jung pensa que "do ponto de
vista arquetípico a balança se inclina um pouco mais, mas muito fra­
camente, do lado positivo"181•

e. A sombra

A parte de mal que existe no Si mesmo existe no inconscien­


te coletivo, mas também no inconsciente individual182• Jung, que a
chama de "a sombra"183, a considera igualmente natural e inevitável:
"As tendências condenáveis fazem parte de nós como contribuições
ao nosso ser existente e corporal: elas formam a nossa 'sombra'. [ . . . ]
Como posso existir no mundo sem projetar uma sombra? Meu ser

180. Cf. ibid., par. 99, 69.


181. Carta de 14 de abril de 1952 ao padre Victor White.
182. Conscience, inconscient et individuation, in La guérison psychologique, 266-
267; Psychologie de l'inconscient, par. 103, 120.
183. Esta noção é mais frequentemente utilizada por Jung em um sentido restrito,
relativo ao inconsciente individual, mas ele a utiliza também em um sentido mais amplo
que se aplica à totalidade do Si mesmo.
84 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

obscuro faz parte também de minha integralidade, e quando eu tomo


consciência de minha sombra ele me faz lembrar que sou um ser
humano entre os outros e como os outros"184•

5 . A ética junguiana

a . Relatividade da mora l

Jung considera que "a moral constitui uma regulação instintiva


da atividade que já ordena a existência comunitária dos rebanhos".
Disso poderíamos concluir a universalidade da moral assim funda­
mentada na natureza. Entretanto, Jung não hesita em afirmar ime­
diatamente depois que "as leis da moral só têm validade no interior
de um determinado grupo humano" e que "para além das fronteiras
elas deixam de ser válidas"185•

b. Relatividade do bem e do mal

De suas especulações sobre o bem e o mal, Jung conclui "o valor


relativo do bem e o não-valor relativo do mal"186• Jung entende se
prender a um ponto de vista puramente psicológico. Ora, "a psicolo­
gia não sabe o que são o bem e o mal em si"187• O bem só se define
em relação ao mal e o mal em relação ao bem. A apreciação do que
é bem ou mal depende, pois, do julgamento que fazemos sobre o
outro termo, e tal julgamento pode variar segundo as circunstâncias
e os momentos. "Nos limites de nosso universo empírico", escreve
Jung, "o bem e o mal constituem as duas metades de um julgamento
lógico, como branco e preto, direito e esquerdo, alto e baixo etc. São

184. Einige Aspekte der nwdemen Psychotherapie, ed. fr. in La guérison psycholo-
gique, 37.
185. Psychologie de l'inconscient, par. 30, 59-60.
186. Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 258, 213.
187. Aion, par. 97, 67.
o PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E tncos 85

contrários equivalentes, que são naturalmente sempre relativos à si­


tuação daquele que faz o julgamento, quer se trate de uma pessoa ou
de uma lei. Nós não somos capazes de determinar empiricamente a
existência de um absoluto"188•
Jung refere-se a isso ao aprovar o ensinamento do filósofo gnós­
tico Carpócrates, segundo o qual "o bem e o mal são apenas maneiras
de ver do ser humano"189• E ele observa: "O que é virtude em um
pode ser considerado vício em outro, o que é bom para um, para o
outro é um veneno"190• Uma outra razão da relatividade do bem e do
mal é que "de um mal pode sair um bem e de um bem um mal"191•

e . Positividade do mal

Referindo-se à gnose e à alquimia (corrente esotérica que in­


fluenciou igualmente de maneira muito forte seu pensamento), Jung
reconhece no mal uma positividade: o mal serve ao bem e é mesmo
indispensável para a sua realização.
A consequência deste princípio é que o ser humano deve inte­
grar o mal em sua existência, e antes de tudo em sua consciência, e
que é dessa maneira que ele pode progredir interiormente. Negar e
reprimir o mal em si seria diminuir a personalidade. "Por um recal­
que", escreve Jung, "a personalidade não se enriquece absolutamen­
te; ao contrário, ela se empobrece e se afunda: o que, com a expe­
riência e com o conhecimento de hoje, aparece como deplorável ou
ao menos sem valor e desprovido de sentido poderá, num nível mais
elevado da experiência e do conhecimento, tomar-se uma fonte do
melhor; naturalmente, tudo depende do uso que cada um faz de seus
demônios familiares. Simplesmente, dizer deles que são destituídos
de sentido ou que eles se perdem é privar a personalidade da sombra
que lhe pertence. Mas à força de querer negar a sua parte obscura

188. Carta de 14 de abril de 1952 ao padre Victor White.


189. Psychologie et religion, par. 133, 154.
190. Jung et la croyance religieuse, par. 1594, in La vie symholique, 166.
191. Ibid., par. 1654, 194.
86 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

destruímos a forma de toda uma personalidade. Toda 'forma viva'


necessita de uma sombra densa para poder ser plástica. Sem sombra,
uma forma é apenas um fantasma ou uma miragem"192•

d. A i ntegração do ma l como condição


da saúde e do acesso à plen itude

A integração do mal deve se efetuar no quadro da terapêutica


das neuroses, porque ela aparece como uma condição desta. "Quan­
do um ser chega à neurose", escreve Jung, "invariavelmente temos
de nos haver com uma sombra consideravelmente intensificada. E se
queremos chegar à cura em um caso assim é indispensável ajudá-lo a
encontrar um caminho segundo o qual sua personalidade consciente
e sua sombra poderão viver juntas"193• Voltaremos a este ponto.
Mas esta assunção do mal deve se cumprir também, indepen­
dentemente da terapêutica das neuroses, no quadro mais geral da
realização de si.
O ser humano deve assumir especialmente, "hierarquizando-os
e integrando-os no meio de um conjunto cheio de sentidos"194, seus
instintos - em outras palavras, "seus impulsos animais" -, que es­
tão ligados a seu corpo e fazem parte da sombra, que é uma dimen­
são inalienável de si mesmo. A este respeito, Jung critica a ascética
cristã, que quer libertar o ser humano dessa dimensão instintiva: "É
compreensível que uma escola de psicologia que insiste nos lados
sombrios do ser humano [ . . . ] seja muito mal acolhida e mesmo cause
medo, porque ela obriga a um confronto com as profundezas inson­
dáveis deste problema. Um pressentimento obscuro nos adverte en­
tretanto de que, tendo um corpo, este corpo implacavelmente proje­
ta uma sombra (como todo corpo) e [ . . . ] , se não fizermos entrar este
lado negativo de nossa natureza no conjunto, não seremos completos:
se negarmos este corpo, não seremos mais seres de três dimensões,

192. Dialectique du moí et de l'inconscient, par. 400, 256.


193. Psychologie et religion, par. 132, 153-154.
194. Psychologie de l'inconscient, par. 88, 58.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E �TICOS 87

mas seres rebaixados e que perderam sua essência195• Ora, este corpo
é um animal, com uma alma de animal, isto é, ele é um sistema vivo
que obedece de maneira absoluta ao instinto. Aliar-se a esta sombra
é o mesmo que aceitar o instinto e aceitar também seus dinamismos
gigantescos, que ameaçam em segundo plano. Ora, é precisamente
disto que a moral ascética do cristianismo quer libertar o ser huma­
no, com o risco de perturbar, no mais profundo de si mesmo, a sua
natureza animal"196•
A integração do mal deve se realizar até o mais alto nível, no
quadro do processo de individuação. Como vimos, o Si mesmo é uma
totalidade que inclui o bem e o mal, e é nessa totalidade que consiste
a sua realização. A respeito dessa realização, Jung prefere falar de
completude (Vollstiindigkeit) em vez de perfeição (Vollkommenheit),
conceito bastante ligado à noção d e bem e que exclui o mal. " A pala­
vra 'integração' significa completar e não tomar perfeito."197
Segundo Jung, o ser humano tem por obrigação tender à com­
pletude, o que significa que ele "deve satisfazer a sua totalidade", e
por isso aceitar e assumir a parte do mal que está no Si mesmo. Em
outras palavras, o ser humano só pode chegar à "totalidade" de si mes­
mo, à plenitude, pela integração do mal. "O processo da individuação
começa com a tomada de consciência da sombra"198 e prossegue pela
aceitação e pela integração consciente da parte de mal que está no
Si mesmo, para realizar a conjunctio oppositorum que caracteriza
o Si mesmo199• A finalidade da individuação é boa para nós, diz Jung,
"porque ela nos liberta do conflito dos opostos que, de outro modo,
seria insolúvel"200•
Esta concepção condiz perfeitamente com a teologia de Jung, que,
como vimos, integra o mal no coração da divindade, e também com sua

195. Poderíamos estar plenamente de acordo com esta última afirmação de Jung se
para ele o corpo não significasse sobretudo os instintos.
196. Psychologie de l'inconscient, par. 35, 64.
197. Carta de 27 de dezembro de 1958, in A. TJOA, R. H . c . JANSSEN. Cf. Carta de
28 de março de 1955 ao padre Lucas Menz.
198. Essai d'interprétation psychologique du dogme de la Trinité, par. 292, 239.
199. Cf. AiOn, par. 124-126, 83-84.
200. Jung et la croyance religieuse, par. 1641, in La vie symbolique, 187.
88 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

concepção religiosa da vida, visto que, para ele, "a religião é uma relação
com o valor mais alto e mais forte, seja este positivo ou negativo"201•
Como já ressaltamos, esta concepção está fortemente influencia­
da pelo gnosticismo e pela alquimia, mas também pelas filosofias do
Extremo Oriente, em particular pelo hinduísmo. Em suas memórias,
Jung escreve: "Nas Í ndias, o que me preocupou antes de tudo foi a
questão da natureza psicológica do mal. Fiquei muito impressionado
pela maneira como este problema se integra na vida do espírito india­
no, e com isso adquiri uma concepção nova. [ . . ] Para um oriental, o
.

problema moral não parece ocupar o primeiro lugar como entre nós.
Para ele, o bem e o mal estão integrados na natureza e, em suma, são
apenas diferenças de grau de um único e mesmo fenômeno"2º2.

6. A teoria dos arquétipos

Uma grande parte do pensamento junguiano baseia-se na teoria dos


arquétipos, que no entanto permanece uma pura hipótese.
Poderíamos crer que, para Jung, os arquétipos, que têm na
maior parte uma significação religiosa e estão na fonte de todos os
símbolos religiosos, têm sua origem nas realidades transcendentes
que eles expressam. Em um de seus escritos, Jung observa: "Encon­
tramos inúmeras imagens de Deus, mas o original permanece sem
ser encontrado. Para mim, fora de dúvida, por trás de nossas imagens
se esconde o original, mas ele não nos é acessível"2º3•
Entretanto, podemos notar que Jung concebe os arquétipos de
acordo com um modelo biológico ou fisiológico. De fato, ele conside­
ra não somente que "os arquétipos todos têm uma vida própria que se
desenvolve de acordo com um modelo biológico"204, mas ainda que os
arquétipos formaram-se no decorrer da história da humanidade pela
repetição de experiências que deixaram marcas no cérebro humano205•

201 . Psychologie et religion, par. 137, 161.


202. Ma vie. Souvenirs, rêves et pensées, 3 16-317.
203. Jung et la croyance religieuse, in La vie symbolique, 161.
204. Ibid., par. 307, in La vie symbolique, 205.
205. Psychologie de l'inconscient, par. 109, 124.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E 8°1COS 89

"O arquétipo", escreve ele, "é uma espécie [ . . . ] de propensão a repro­


duzir sempre de novo as mesmas representações míticas ou imagens
análogas. De acordo com isso, parece que o que se inscreve e se ex­
pressa no inconsciente é exclusivamente a representação imaginativa
e subjetiva suscitada pelo fenômeno físico, ao qual ela corresponde e
faz eco. Portanto, poderíamos admitir que os arquétipos são consti­
tuídos pelas marcas das reações subjetivas, muitas vezes gravadas"206•
Por esta razão, "nada nos impede de admitir que alguns arquétipos
já existem nos animais, e que por conseguinte, os arquétipos têm sua
existência fundamentada nas próprias particularidades dos sistemas
vivos, que eles são pura e simplesmente uma expressão da vida, ma­
nifestação cuja existência e cuja forma escapam a todas as tentativas
de explicação"207• Mais adiante, Jung completa assim esta explicação:
"O inconsciente coletivo aparece como o resultado de experiências
precipitadas pela experiência humana desde eternidades, e ao mesmo
tempo como um a priori dessa experiência, uma imagem pré-formada
do mundo. No interior dessa imagem alguns traços tomaram um re­
levo particular no decorrer dos séculos; falo então de dominantes do
inconsciente coletivo ou arquétipos. São os valores reinantes, os deu­
ses, isto é, imagens de leis predominantes, princípios que decorrem
de meios regulares na sucessão das representações, dos quais a alma
humana renova incansavelmente a experiência"208• Se o inconscien­
te coletivo é idêntico em todos os seres humanos é porque ele está
inscrito no cérebro e porque todos têm um cérebro estruturado da
mesma maneira: "A uniformidade universal dos cérebros determina
a possibilidade universal de um funcionamento mental análogo. Este
funcionamento é precisamente a psique coletiva"209•
Esta concepção mecanicista e biologista, que se pode chegar
até a qualificar de materialista210, refere-se não somente aos deuses,

206. lbid., par. 109, 125.


207. lbid., 125-126.
208. Ibid. , par. 151, 165.
209. Dialectique du moi et de l'inconscient, par. 325, 64-65.
210. Esta censura é dirigida a Jung, por exemplo, por E. PAVESI, Die Gottesvors­
tellung des C. G. Jung, Factum ( 1991 ) 33. Em relação aos arquétipos, devemos notar que a
90 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

mas aos outros "valores", como os valores éticos. Se os arquétipos


correspondem às marcas deixadas pelas experiências humanas mais
variadas, isso significa que eles representam as marcas do bem, mas
também as do mal, o que supõe que "as imagens primordiais" for­
madas a partir deles "não contêm somente tudo o que há de mais
belo e de maior no interior do que a humanidade já pensou, sentiu
ou experimentou, mas também todas as piores infâmias e as piores
invenções de que os seres humanos puderam ser capazes"211• Esta
concepção está de acordo aqui com a teologia junguiana, que intro­
duz o mal no coração do divino e no coração do Si mesmo, e com a
ética junguiana, que considera o bem e o mal duas realidades igual­
mente substanciais e inseparáveis.

7. Incidências sobre a psicoterapia

a. O d iagnóstico fundamenta l das


perturbações psíqu icas: o confl ito i nterno

De uma maneira geral, Jung concebe as doenças mentais como


enfermidades que expressam um conflito interno: "A neurose é uma
desunião interior, uma discórdia intestina; tudo o que reforça essa
discórdia em nós mesmos agrava o mal, tudo o que a pacifica leva
para a saúde. O que instala essa discórdia é o pressentimento ou
mesmo o conhecimento de que haja dois seres no coração do mes­
mo indivíduo, dois seres que se comportam de maneira antitética,
um pouco como Fausto diz: 'Duas almas, ai! , moram em meu peito';

libido, que lhes é muito estreitamente associada, é concebida por Jung de acordo com um
modelo físico, de ordem quantitativa. Em suas memórias ele observa que concebeu esta
"como uma analogia psíquica da energia física, portanto como um conceito aproximativa­
mente quantitativo, e [que] é por isso [que ele recusou] toda determinação qualitativa da
libido", e acrescenta: "Em física também se fala de energia e de suas manifestações sob
forma de eletricidade, de luz, de calor etc. É exatamente a mesma coisa em psicologia.
Aqui também se trata, em primeiro lugar, de energia (isto é, de valor de intensidade, mais
ou menos)" (Ma vie, 242-243).
2 1 1 . Psychologie de l'inconscient, par. 1 10, 126.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E ÉTICOS 91

trata-se do ser humano sensual e do ser humano espiritual, do eu e


de sua sombra etc."212•
O conflito fundamental é o que opõe o eu consciente ao eu in­
consciente, o individual de um lado e o coletivo de outro.

b. O princípio de base da
terapêutica: a reconc i l iação

Para Jung, a terapêutica consiste essencialmente na harmoni­


zação e, antes disso, na reconciliação dos elementos psíquicos cons­
cientes e inconscientes que formam opostos e estão em conflito213.
Essa conciliação dos contrários corresponde aliás a uma ten­
dência natural do inconsciente que a terapêutica faz passar ao es­
tado consciente e controla pela vontade: "O declínio natural que
espontaneamente concilia os contrários foi para mim o modelo e
o fundamento de um método que, para o essencial, visa a suscitar
intencionalmente o que pela natureza se produz de maneira es­
pontânea e inconsciente, e a integrá-lo na consciência, a seu modo
conceitua!. De fato, a infelicidade de numerosos doentes consiste
na impossibilidade em que estão de encontrar meios ou caminhos
que lhes permitiriam assimilar os acontecimentos dos quais eles
são o teatro"214•
Trata-se, em primeiro lugar (depois de ter ultrapassado a iden­
tificação do eu com a persona que corresponde ao papel social do
indivíduo), de reconciliar o eu consciente com a sombra ( que per­
tence ao inconsciente individual, mas também, em um sentido mais
amplo, ao inconsciente coletivo) . A sombra consiste em cada um,
como vimos, no "homem primitivo e inferior, com sua avidez e suas

212. Des rapports de la psychothérapie et de la direction de conscience, par. 522, in


La guérison psychologique, 291 .
2 1 3 . B . KAEMPF considera ser o assunto dos opostos o tema por excelência d o pen­
samento junguiano (Réconciliation, 188), e é a razão pela qual ele intitulou Réconciliation
seu livro sobre o pensamento de Jung.
214. Psychologie de l'inconscient, par. 121, 144.
92 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

emoções", "suas exigências corporais" e suas tendências más de todo


· tipo. Trata-se de chegar à "aceitação dos lados sombrios da natureza
humana e, portanto, de aceitar com seu direito à existência o des­
razoável, o insensato, o mau"215• Neste processo, o "doente" deve
ser acompanhado pelo psicoterapeuta: Jung distingue aqui o seu
método e o de Freud, que "se limita a tornar consciente o mal e o
mundo das sombras'', "abre, pura e simplesmente, a guerra civil la­
tente até então" e para o resto deixa o próprio doente "ver como ele
sai dessa"216• Segundo Jung, não somente o reconhecimento, mas a
aceitação, a integração e a assunção da parte do mal que está nele
constituem para o ser humano que deseja chegar à cura (e além, a
uma plena realização de si mesmo) a única solução viável:

porque, de um lado, a opressão pura e simplesmente da sombra não


constitui mais um remédio do mesmo modo que a decapitação não des­
trói a enxaqueca; por outro lado, destruir a moral de um ser humano
também não seria de nenhuma ajuda, porque isso destruiria também
seu melhor eu, sem o qual a própria sombra não teria mais sentido. A
partir deste momento, a reconciliação desses contrários é um dos pro­
blemas mais importantes que existem. Assim é o caso de Carpócrates,
[ . . . ] filósofo neoplatônico, cuja escola [ . . . ] ensinava que o bem e o mal
são apenas duas maneiras de ver do ser humano e que, em compen­
sação, antes da morte, as almas deveriam viver todas as experiências
humanamente possíveis, até as mais extremas, se não quisessem recair
na prisão do corpo. Esta doutrina professava que a alma só pode, de al­
gum modo, libertar-se da escravidão no mundo somático do Demiurgo
pagando o resgate integral de todas as necessidades da vida [inclusive
até das piores] . [ . . . ] Em relação com a outra doutrina gnóstica, segundo
a qual não podemos ser libertados de nenhum pecado que não comete­
mos, reconhecemos aqui um problema da mais alta importância levan­
tado pelos filósofos neoplatônicos217•

215. Des rapports de la psychothérapie et de la direction de conscience, par. 528, in


La guérison psychologique, 293.
216. Ibid. , par. 531, 295."
217. Psychologie et religion, par. 133, 154-155.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E ÉTICOS 93

É neste sentido, tipicamente gnóstico, que Jung interpreta o ensi­


namento de Cristo que condena aquele que se encoleriza contra o seu
irmão (isto é, segundo Jung, a sombra ou a parte do mal em si mesmo)
e pede para se reconciliar e pôr-se de acordo com ele (cf. Mt 5,22) .
Jung considera que o que determina o valor de uma conduta
não é que ela seja boa ou má, mas que seja consciente ou não. Ele se
refere de novo a um ensinamento gnóstico: "Se você sabe o que faz,
você é feliz; mas se não sabe o que faz você é um condenado"218•
Jung reconhece que isso corresponde a um processo de con­
versão interior: "A transição da manhã à tarde da vida se faz por
uma espécie de transmutação dos valores. A necessidade se impõe
de reconhecer a validade, não mais de nossos antigos ideais, mas de
seus contrários, de perceber o erro naquilo que era até então nossa
convicção, de sentir a mentira naquilo que era a nossa verdade. [ . . . ]
Não se trata de visar a uma conversão radical, fazendo o contrário
de todo o estado de coisas anteriores, mas a uma conservação dos
valores antigos aos quais vem se acrescentar o levar em consideração
os seus contrários"219•

218. Ibid , par. 133, 156.


219. Psychologie de l'inconscient, par. 1 15-1 16, 134-135. Em seu estudo Jung, le
Christ aryen, Paris, 1999, 81-108, R. NOLL, professor de psicologia e de história das
ciências em Haivard, mostra que, sobre esta questão, Jung sofreu não somente a in­
fluência do gnosticismo e da corrente esotérica que se reportava à alquimia, mas ain­
da a influência de um personagem particularmente perturbado: Otto Gross, "médico
nietzschiano, psicanalista freudiano, anarquista, grande sacerdote da libertação sexual,
organizador de orgias, morfinomaníaco e heroinomaníaco alucinado", ao mesmo tempo
"brilhante, carismático e desequilibrado". Jung foi encarregado por Freud de psicana­
lisar Gross em uma época em que ele se encontrava em uma situação crítica. Mas Jung
confessa ter sido ele mesmo transformado por este relacionamento. "Em Gross", escreve
ele particularmente, "fiz a experiência de diversos lados de minha própria natureza, de
modo que ele me pareceu muitas vezes meu irmão gêmeo". Noll escreve a este respeito:
"Durante o relacionamento deles, Gross apresentou a Jung o fruto proibido. E depois
de uma reflexão atormentada este acaba por morder dentro. Sua concepção da natureza
do 'pecado' se transformou; 'fazer o mal' podia ter um efeito benéfico sobre a perso­
nalidade, libertando-nos do 'unívoco' e fazendo-nos reencontrar o contato com um ser
instintual edênico. Jung chega a acreditar que não ceder a uma pulsão sexual poderia
provocar a doença e mesmo a morte. E doravante ele não deixaria de impor aos outros e
de colocar em prática todas essas ideias" (98-99).
94 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

e . Rea l ização da terapêutica: a abertura


controlada ao inconsc iente coletivo

O confronto com a sombra é apenas a primeira etapa de um pro­


cesso pelo qual o ser humano se abre ao inconsciente coletivo e por aí
realiza o processo de individuação pelo qual ele realizará a totalidade
de si próprio que representa o Si mesmo.
Para Jung, pelas associações e pelos sonhos revelam-se os comple­
xos e os conflitos que habitam a psique e são responsáveis pelas neuro­
ses220, mas também os arquétipos que são os conteúdos dinâmicos do
inconsciente coletivo capazes de estruturar e de dar sentido ao que ele
vive interiormente221 . Ao contrário de Freud, Jung considera que o so­
nho é um puro produto da natureza e nos revela o inconsciente de uma
maneira direta, sem disfarce, sem ser a dissimulação de outra coisa222.
Não podemos entrar aqui nos pormenores da concepção junguia­
na da abertura ao inconsciente, exposta sobretudo na Psicologia do
inconsciente e na Dialética do eu e do inconsciente. Notemos simples­
mente que para Jung o confronto com o inconsciente é a priori cheio
de perigos. De fato, "o inconsciente tem dois aspectos: um bom, favo­
rável, benfazejo; o outro mau, prejudicial, desastroso"223 • O indivíduo
que se abre ao inconsciente corre o risco de ser engolido pelo " oceano"
que se engolfa em uma onda que arrebenta na brecha assim formada.
Ele corre especialmente o perigo seja de rejeitar o inconsciente, seja
de se sujeitar a ele sem espírito crítico224; neste último caso, corre o
risco de se identificar com os conteúdos do inconsciente coletivo e ser
então vítima daquilo que Jung denomina um fenômeno de "inflação",
de uma supervalorização e de uma desvalorização abusivas de si mes­
mo. A abertura ao inconsciente tem por finalidade fazer imergir o Si
mesmo, mas libertando-o da força sugestiva das imagens do incons-

220. Ver Psychologie et religion, par. 37, 43; Psychologie de l'inconscient, par. 21-26,
51-56.
221 . Psychologie et religion, par. 88, 102.
222. Ibid., par. 136, 160.
223. Carta de 27 de março de 1954 ao pastor W Lachat, par. 1538, in La vie sym­
bolique, 139.
224. Jung et la croyance religieuse, par. 212, in La vie symbolique, 160.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E tTICOS 95

ciente, que trazem o risco de alienar a personalidade225• Para ajudar o


indivíduo a enfrentar conteúdos do inconsciente que se apresentam
como ambivalentes e perigosos e em relação aos quais ele corre o risco
de perder suas referências e de perder a si mesmo, o psicoterapeuta
constitui uma ajuda indispensável.

d. A confiança na natureza e no i nconsc iente

Para Jung, de fato, o inconsciente não é perigoso para o ser hu­


mano a não ser que este se deixe seduzir e dominar por ele. Mas se, ao
contrário, ele chega a integrá-lo em toda consciência e a dominar os
conteúdos, constitui um guia precioso, capaz por suas próprias leis e
por seu próprio dinamismo de restabelecer no ser humano um equi­
líbrio perdido, tendo os arquétipos que ele contém um valor e uma
função estruturantes. "Considero", escreve Jung, "que uma perda de
equilíbrio pode ser algo salutar, visto que graças a ela o consciente
enfraquecido será substituído pela atividade automática e instrutiva
do inconsciente; este visará à reconstituição de um novo equilíbrio,
finalidade que ele é capaz de atingir conquanto o consciente esteja
em estado de assimilar os conteúdos produzidos pelo inconsciente,
isto é, de compreendê-los e de integrá-los"226• Esta concepção do in­
consciente, assimilado finalmente à manifestação de uma natureza
fundamentalmente boa (o mal, na totalidade desta natureza, vendo a
ele atribuída uma função positiva), encontra-se igualmente expressa
nesta outra passagem: "Se conseguimos estabelecer esta função, que
eu disse transcendente, a desunião com o si mesmo acaba e o indiví­
duo poderá beneficiar-se das contribuições favoráveis do inconscien­
te. Porque, desde que a dissociação entre os diversos elementos de si
mesmo acaba, o inconsciente concede - a experiência o prova abun­
dantemente - toda a ajuda e todos os impulsos que uma natureza
benevolente e pródiga pode conceder aos seres humanos. De fato, o
inconsciente contém possibilidades que são absolutamente inacessí-

225. Dialectique du nwi et de l'inconscient, par. 269, 1 17.


226. Ibid., par. 253, 92-93.
96 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

veis ao consciente, porque ele dispõe [ . . . ] da sabedoria conferida pela


experiência de inumeráveis milênios, sabedoria colocada e confiada
às suas estruturas arquetípicas. [ . . . ] Por isso, o inconsciente pode ser
para o ser humano um guia sem igual, com a única condição de que
saiba resistir às seduções"227•

e. A ausência de representação
exata da doença e da saúde

Jung produziu uma obra considerável sobre o lugar do religioso


na vida psíquica. Entretanto, suas aplicações no diagnóstico e na te­
rapêutica das doenças mentais permanecem muito imprecisas. Jung
não tem concepção exata nem da doença nem da saúde, e ele rei­
vindica e, aliás, cultiva essa imprecisão228• Assim, Jung não elaborou
uma teoria exata sobre a origem das doenças mentais em sua espe­
cificidade, nem sobre uma terapêutica adaptada a cada uma delas.
Ao lado das teorias de Freud, que visam à exatidão e à coerência, as
concepções de Jung permanecem vagas e gerais.
Na obra de Jung, ficamos impressionados com a ausência de nor­
mas precisas que permitam avaliar, ao mesmo tempo, a natureza e o

227. Psychologie de l'inconscient, par. 196-197, 198.


228. Ver Medizin und Psychotherapie, in Gesammelte Werke, t. 16, Olten/Fribourg­
en-Brisgau, 1958; ed. fr. : Médecine et psychothérapie, in La guérison psychologique, 17-
19. A propósito do diagnóstico, Jung escreve por exemplo: "O diagnóstico da doença é
uma coisa inteiramente secundária [ . . . ). No decorrer dos anos, tomei mesmo o hábito de
abstrair de todo diagnóstico específico das neuroses. [ . . . ] Tanto é importante e desejável
em medicina geral estabelecer um diagnóstico e dispor dele com toda segurança, como
também o psicoterapeuta tem a vantagem de abstrair o mais possível de um diagnóstico
específico. [ . . . ] Em geral, quanto menos o psicoterapeuta sabe de coisas de antemão, tanto
mais o tratamento tem chances de evoluir favoravelmente". E a propósito da terapêutica
ele observa: "Para as psiconeuroses, a única diretiva terapêutica que permanece válida é
que o tratamento deve ser um tratamento psíquico. Mas, quando se trata de tornar preciso
este tratamento, encontramos uma infinidade de métodos, regras, concepções e doutrinas,
e o que há de singular neste nosso domínio é que, em definitivo, qualquer que seja o
procedimento terapêutico ao qual apelamos, podemos chegar ao sucesso querido diante
de qualquer neurose. Por isso devemos constatar que, no domínio da psicoterapia, as dife­
rentes doutrinas que às vezes temos o prazer de ostentar tão ampla e pomposamente em
definitivo não possuem um alcance tão considerável".
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E trlCOS 97

grau da doença e orientar exatamente a terapêutica. Resumindo a con­


cepção de Jung, E. Perrot escreve: "Aos olhos de Jung, o alcance da
psicoterapia é tão variado quanto a natureza humana. Não podemos
lhe atribuir uma finalidade a priori. A evolução psicológica é essencial­
mente imprevisível. As intenções e os caminhos da natureza não são os
nossos; a disposição requerida a seu respeito é portanto uma atenção
vigilante aliada a uma total disponibilidade. Enquanto a terapêutica de
Freud limita-se a fazer vir à consciência os conteúdos pessoais incons­
cientes que, por terem sido esquecidos ou recalcados, perturbam a
vida consciente, Jung não se contenta em querer restabelecer uma vida
normal que fica para definir. Vendo no inconsciente uma energia pree­
xistente ao eu, ele não fixa limites a seu impulso em vista de sua atuali­
zação e acolhe todas as formas de realização possíveis, permanecendo
somente atento em salvaguardar o controle do eu consciente"229•
Quando ele desenvolve sua concepção da abertura ao inconscien­
te e preconiza acolher com discernimento seus conteúdos para poder
assumi-los com toda consciência e mestria, Jung não fornece nenhuma
norma precisa e permanece em generalidades. Para ele é suficiente
que os conflitos parem no coração da psique e que o ser humano tenha
chegado ao que ele considera ser a totalidade de si mesmo.
Este aspecto do pensamento e da prática de Jung pode parecer
muito sedutor, por seu caráter livre e aberto, mas também muito in­
suficiente em relação à necessidade de tratar patologias específicas e
dispor de um modelo preciso da saúde que possa ajudar os pacientes
a dirigir e a organizar o seu comportamento.
Finalmente, é uma revisão muito fraca que Jung apresenta dos
resultados de sua prática terapêutica: "Como médico, pude avaliar a
medida da profunda miséria e da dissociação do ser humano de hoje.
Ajudei inúmeras pessoas a se tomarem um pouco mais conscientes de
si mesmas e a reconhecerem que elas são formadas de componentes
diversos, luminosos e sombrios. É isso que entendemos por integração:
tomar-se expressamente consciente do que se era na origem"230•

229. E. PERROT, Jung (Carl Gustav), in Encyclopaedia Universalis, Paris, 1968, t. 9,


562.
230. Carta de 27 de dezembro de 1958.
98 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

Do mesmo modo que a psicanálise freudiana limita-se a aju­


dar o ser humano a tomar consciência, verbalizando-os, dos conteú­
dos de seu inconsciente, a psicologia analítica de Jung visa apenas
a permitir ao ser humano tomar consciência de sua parte obscura e
assumi-la. Não mais que Freud, Jung também não oferece uma ver­
dadeira terapia da alma que constituiria um ultrapassar ontológico
da doença e um acesso a uma saúde que corresponderia a uma mo­
dalidade superior de existência. Tanto para Jung como para Freud,
a cura consiste em estabelecer um equilíbrio relativo entre forças
conflituais, sendo a qualidade ética ou espiritual de tais forças, em
última análise, sem importância.

8 . Reservas suplementares sobre a teoria junguiana

Nossa exposição fez aparecer amplamente, na teologia e na ética jun­


guianas, o que há de incompatível com a concepção cristã de Deus
e do ser humano. Nestes domínios, as concepções de Jung estão
fundamentadas em ideias gnósticas que os Padres combateram nos
primeiros séculos e cujas ressurgências, no decorrer dos séculos, em
diversas seitas e correntes esotéricas, suscitaram críticas bem conhe­
cidas por parte dos representantes da tradição cristã.
Nesta seção conclusiva, nós nos limitaremos a evocar alguns ou­
tros pontos do pensamento junguiano que se revelam problemáticos
a respeito do cristianismo em geral e de uma terapia de inspiração
cristã em particular.

a. A confusão do d ivino e do humano, do natura l


e d o sobrenatura l , d o espi ritua l e d o psíquico

Os pressupostos metodológicos (naturalistas) e filosóficos (kan­


tianos) de Jung estabelecem uma ruptura e uma separação (quase
esquizofrênica) entre o mundo psíquico, do qual Jung trata exclusiva­
mente, e a realidade metafísica (desconhecida e inacessível) da qual
ele é a expressão.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E �ICOS 99

O divino é confundido com o humano, pois é reduzido de facto


a arquétipos (ou a expressões simbólicas destes) que pertencem à
psique humana, mais exatamente ao inconsciente coletivo.
E vimos que, de uma maneira geral, Jung transfere aos arquéti­
pos do divino uma grande parte dos atributos que habitualmente são
relacionados com Deus.
De facto, o sobrenatural e o natural são confundidos em proveito
deste último: a transcendência de Deus reduz-se à transcendência dos
arquétipos e do inconsciente coletivo ao qual eles pertencem, em rela­
ção à consciência e ao inconsciente individuais231• Quanto à graça, ela é
apenas a expressão de uma força ligada ao dinamismo dos arquétipos.
Enfim, o espiritual e o psíquico são confundidos, sendo o espi­
ritual apenas uma dimensão do psíquico, aquela que se encontra em
relação com o inconsciente coletivo.
As relações entre Deus e o ser humano e, reciprocamente, entre
o ser humano e Deus (relações que constituem propriamente falando
o domínio da espiritualidade) reduzem-se de fato a relações entre a di­
mensão consciente da psique e sua dimensão inconsciente (coletiva) .
Para Jung, na realidade, a fé do ser humano limita-se à fé em sua
própria experiência interior232•

b. A ausência de relação com um Deus transcendente

Como Jung recusa-se a pronunciar-se sobre a existência de Deus


em si e considera a realidade religiosa de um ponto de vista puramen­
te psicológico, a dimensão religiosa do diagnóstico e da terapêutica
permanece também puramente psicológica e depende de uma rela­
ção do paciente consigo mesmo (mais precisamente da relação entre

231 . "A transcendência", escreve Jung, "é somente o que é para nós inconsciente"
(Carta de junho de 1957 ao Dr. Bemhard Lang) .
232. "Já que m e pergunta s e e u faço parte dos que creem", escreve ele a u m de
seus correspondentes, "sou obrigado a lhe responder: não". E acrescenta: "Claro, sou fiel
à minha experiência interior e tenho a pístís no sentido paulino" (Carta de 5 de janeiro
de 1952 ao Dr Erich Neumann), entendendo por pístís "a fidelidade (lealdade), a fé e a
confiança acerca de uma certa experiência de efeitos numinosos" (Psychologie et religion,
par. 9, 19).
1 00 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

duas dimensões de sua psique, seu eu consciente e seu Si mesmo,


que inclui o inconsciente individual e o inconsciente coletivo) e com
seu terapeuta, mas de maneira nenhuma da relação com um Deus
que teria uma natureza diferente dele e transcendente à sua.
O ser humano não pode contar com a ajuda de uma graça que
seria uma força transcendente, supranatural. Se para Jung há mesmo
uma experiência da graça, esta permanece uma experiência psico­
lógica que só põe em jogo o próprio ser humano. A força que o ser
humano pode receber para sustentá-lo, fazê-lo progredir e ajudá-lo a
se realizar não é uma graça sobrenatural que vem de Deus, mas uma
força natural presa ao arquétipo de Deus e que pertence ao caráter
"numinoso" desse arquétipo233 •
Saindo do inconsciente coletivo, que pertence ao domínio da
natureza, esta força permite ao ser humano ultrapassar os limites de
seu eu consciente e de seu inconsciente individual234, mas de modo
algum os limites de sua natureza decaída.
A deificação da qual os Padres gregos fazem o ideal e a finalida­
de da vida cristã consiste para Jung não em uma transformação do
ser humano pelo acesso a uma modalidade de existência divina, mas
limita-se a "carregar Deus em si"235, no sentido em que Jung entende,
isto é, abrir-se ao arquétipo de Deus e à energia deste arquétipo (a
libido), presentes na principal dimensão do Si mesmo, a do incons­
ciente coletivo, do qual o eu não estava imediatamente consciente.

e. A ausênc ia de relação com um Deus pessoa l

No quadro da teoria de Jung, a relação pessoal do ser humano com


um Deus pessoal toma-se impossível ou factícia, por quatro razões:

233. Jung explica que "a imagem psíquica de Deus [ . ] exerce uma ação poderosa
. .

na alma" e que "para a ciência isto não tem nada a ver com a existência de Deus, mas é
unicamente uma questão de fenomenologia das dominantes ditas psíquicas, sejam elas
denominadas Deus, Alá, Buda, Purusha, Zeus, Planeres, Zodíaco ou Sexualidade" (Carta
de 7 de abril de 1945 ao pastor Max Frischknecht).
234. Ver Métanwrphoses dR l'âme et ses symholes, par. 89, 123- 125.
235. Cf. ibid., par. 130, 167-168.
0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E tTICOS 1 01

1) Deus em si (isto é, em sua existência "metafísica") , segundo


Jung, é absolutamente impossível de ser conhecido e inacessível e,
portanto absolutamente indeterminado.
2) Deus só é acessível através dos arquétipos universais e dos
símbolos destes arquétipos que têm um valor relativo, o que dissolve
o Seu caráter e a Sua identidade pessoais.
3) Deus é de facto identificado com Sua imagem que é identifi­
cada com o Si mesmo, o qual representa a totalidade do ser humano
e é ele próprio indeterminado e tem uma natureza coletiva, portanto
impessoal.
4) Deus se encontra reduzido a uma noção psicológica e não é
reconhecido como uma realidade hipostática: "Quando falo do con­
ceito de Deus'', escreve Jung, "refiro-me apenas à sua psicologia e
não à sua hipóstase"236•
Martin Buber censurou legitimamente a psicologia da religião
de Jung por ser apenas uma religião da pura imanência psíquica, na
qual não é mais possível fazer a distinção entre o sujeito e o objeto
da experiência religiosa, a coincidência entre Deus e o Si mesmo tor­
nando impossível uma relação interpessoal entre um eu e um Tu237•

d. O papel secundário da relação com outrem

Notamos que Jung ignora também o que é igualmente um com­


ponente essencial do modo de existência cristão, indissociável da re­
lação com Deus: a relação com os outros que deve se realizar na
caridade. Enquanto a forma desta relação desempenha um papel
essencial na saúde e na doença (tanto psíquicas como espirituais) do
ser humano, Jung encara o processo terapêutico no quadro de uma
atitude estritamente individual238•

236. Carta de lº. de junho de 1933 ao Dr. Paul Maag.


237. Gottesfinstemis, Zurich, 1953.
238. Ver sobretudo Des rapports de la psychothérapie et de la direction de conscien­
ce, par. 525-526, in La guérison psychologique p. 293.
1 02 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

e. A rejeição da ascese cristã

Jung tem uma posição extremamente negativa diante da ascese


cristã, não somente do modo como ela pôde se manifestar no de­
correr da história em algumas formas desviantes (o que seria então
compreensível) , mas ainda assim como ela se manifesta desde os
primeiros séculos do cristianismo, no ensinamento dos Padres da
Igreja. Ele censura em particular o fato de querer extirpar o mal da
natureza humana em vez de assumi-lo, como ele próprio preconiza.
Longe de ver na ascese um modo de vida libertador, Jung conside­
ra, ao contrário, que ela só recalca o mal e perpetua os conflitos no
interior da psique.
Essa concepção de Jung fundamenta-se nos pressupostos teoló­
gicos e éticos de sua teoria, que ele tomou emprestado do gnosticis­
mo e das diversas correntes esotéricas (em particular da alquimia) ,
segundo os quais o mal tem uma substância, é indissociável do bem,
pertence de maneira inalienável à realidade humana, assim como à
realidade divina, e desempenha nelas um papel positivo do mesmo
modo como o bem.
Enfim, Jung apresenta a imitação de Cristo como corresponden­
te a uma primeira etapa da vida espiritual chamada a ser ultrapassa­
da. De fato, a seus olhos, Cristo não poderia ser um modelo tendo
um valor absoluto, visto que ele é perfeito mas não completo; ora,
para ele, como vimos, a completude (que se caracteriza pela inclusão
do mal) é preferível à perfeição, razão pela qual ele rejeita a san­
tidade como norma cristã de saúde espiritual e de realização de si
mesmo em Deus. Se o ser humano, no processo de individuação,
deve optar em primeiro lugar pelo bem, quando ele é confrontado
com sua sombra, e por isso imitar Cristo (que nesta etapa representa
o Si mesmo), ele deve visar, entretanto, em um nível mais elevado, a
ultrapassar o conflito com o mal e as trevas, integrando-as na unidade
do Espírito Santo, a qual corresponde à totalidade do Si mesmo e
"à união dos opostos divinos" que ele representa239• A vinda do Dia-

239. Carta de 24 de novembro de 1953 ao padre Victor White.


0 PROBLEMA DA COMPATIBILIDADE DOS FUNDAMENTOS TEOLóGICOS E ÉTICOS 1 03

bo vem assim completar a vinda de Cristo sem que isso implique,


entretanto, uma superação deste: "O símbolo crístico do Si mesmo
não é desvalorizado pelo adventus diaboli . Ao contrário: com isso,
ele se encontra completado. Realiza-se uma misteriosa metamorfose
dos dois aspectos"24º; "se eu constato que Cristo não é um símbolo
completo do Si mesmo, eu não o tomo mais completo desdenhan­
do-o. Preciso conservá-lo e acrescentar a obscuridade a esta lumen
de lumine, para dar uma forma ao símbolo da perfeita ambivalência
interior de Deus"241•
Evidentemente, estes princípios não estão somente muito afas­
tados do ensinamento e da prática da tradição cristã representada
pelos Padres, mas são incompatíveis com eles, como aliás o próprio
Jung frequentemente notou, mostrando-se crítico a respeito dos en­
sinamentos patrísticos242•

f. Os riscos de i l usão

Do mesmo modo que Freud, Jung ajuda o ser humano a assumir


os conteúdos de seu inconsciente pela tomada de consciência e pela
simbolização deles, e o ajuda a conviver pacificamente com a parte
sombria e má de si mesmo que caracteriza, de acordo com o cristia­
nismo, sua natureza decaída. Mas ele não o ajuda a superar essa na­
tureza decaída em uma real transformação de si. Para ele, é somente
na consciência que tem de si mesmo que o ser humano muda e se
toma um homem novo.
A ideia junguiana de que o ser humano encontra Deus e realiza a
si mesmo tomando consciência do Si ("a individuação", escreve Jung,
"é a vida em Deus243") é uma ilusão que corre o risco de afastar defi-

240. Ibid.
241 . Ibid.
242. Os únicos escritos patristicos que encontram graça aos olhos de Jung são os
escritos apócrifos de tendência gnóstica, como as Homilias pseudo-clernentinas ou os enun­
ciados das doutrinas gnósticas contidos nos escritos de Santo Ireneu de Lião.
243. Jung et la croyance religieuse, par. 248, in La vie symbolique, 176- 177.
1 04 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

nitivamente o ser humano do Deus verdadeiro, da verdadeira saúde


espiritual e da verdadeira realização de si mesmo. Jung foi a primeira
vítima dessa ilusão em sua tentativa de autodeificação244 •

244. Ver R. NOLL, Jung. le Christ aryen, Paris, 1999, 131-157.


U ma outra concepção
do inconsciente:
o inconsciente espiritual
1 06 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

1 A noção de inconsciente espiritual


.

N
os séculos XIX e XX, a noção de inconsciente psíquico foi ob­
jeto de teorias desenvolvidas e poderosamente estruturadas
(as de Freud, Jung, Adler . . . ), que podem levar a acreditar
que se trata de uma descoberta recente.
Na realidade, a existência de um inconsciente psíquico é um fato
conhecido desde a mais remota Antiguidade. Platão, por exemplo,
faz alusão a isso, pondo em relação o sonho com os desejos insatisfei­
tos ou a agressividade não expressa e apresentando uma concepção
que antecipa a do recalque1•
Podemos dizer que existe também um inconsciente corporal
que é constituído por tudo o que existe, age ou se produz em nosso
corpo mas não tem intensidade suficiente para que o percebamos e
dele tomemos uma consciência clara ( Leibniz chamava isso de "pe­
quenas percepções"2) .
Do mesmo modo existe um inconsciente espiritual.

Entretanto, não podemos dizer que ele se situa na "parte" ou na


"esfera" espiritual de nosso ser. Certamente, dizemos com frequên­
cia, no quadro da antropologia cristã, e seguindo uma passagem da
primeira epístola de São Paulo aos Tessalonicenses ( lTs 5,23), que
o ser humano é "tripartite", composto de três elementos: o corpo, a
alma (ou o psiquismo) e o espírito. E é verdade que o espírito (que os
Padres gregos chamam geralmente de noíls, palavra que traduzimos
habitualmente, mas impropriamente, por "intelecto") é a mais alta fa­
culdade do ser humano, a primeira a entrar em contato com Deus na
contemplação e na "visão de Deus", aquela pela qual, em primeiro lu­
gar, nós conhecemos, de uma maneira geral, as realidades espirituais.
Portanto, não podemos considerar que o espiritual constituiria no ser
humano uma esfera, um domínio ou um nível superposto ao do cor­
poral e do psíquico. Por isso um certo número de Padres permanece

1. Ver especialmente República IX, 57la-572b.


2. Ver especialmente Nouveaux essais sur l'entendement humain, Pref..
UMA OUTRA CONCEPÇÃO DO INCONSCIENTE 1 07

com uma concepção biparti.te do ser humano, considerando que ele é


composto de uma alma e de um corpo, e que o espírito (ou intelecto)
é apenas a faculdade mais elevada da alma ou seu "ponto alto".
O espiritual, mais do que uma "parte" do ser humano, é uma
dimensão dele.
Ele é de uma natureza radicalmente diferente da natureza do
corporal e do psíquico, e devemos tomar cuidado para não o confun­
dir com este último.
Entretanto, o espiritual não existe sem relação com o corporal e
o psíquico: de uma certa maneira, ele os engloba.
Pode-se definir o espiritual como o que em nós é constitutivo de
uma relação com Deus.
A partir daí, todo estado ou toda atividade de nosso psiquismo
ou de nosso corpo, quando considerados em relação a Deus - ou do
ponto de vista de nossa relação com Deus -, adquirem uma dimen­
são e uma qualidade espirituais.

Observaremos que esta relação pode ser:


a) positiva, mas também negativa (razão pela qual as paixões,
as disposições e os estados pelos quais nos separamos de Deus são
qualificados de "doenças espirituais");
b) subjetiva (é o caso de nossa orientação consciente e voluntária
em relação a Deus), mas também objetiva (por exemplo, nossa natu­
reza nos orienta para Deus, ou o batismo nos enxerta objetivamente
no corpo de Cristo, antes mesmo que tenhamos tomado consciência
e que sejamos pessoalmente determinados em relação a este fato).
Chamamos objetivo aqui o que não depende da pessoa e está inscrito
objetivamente em sua natureza; subjetivo o que depende da pessoa e
está na dependência de sua consciência e de sua vontade;
c) consciente, mas também inconsciente (é o que mostraremos
neste livro) .

O inconsciente espiritual é ignorado pela psicanálise freudiana,


que em seus fundamentos é ateia e materialista3. A psicanálise laca-

3. Ver, neste livro, o capítulo consagrado à psicanálise freudiana.


1 08 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

niana o entreviu em sua referência ao grande Outro, mas esta noção


permanece, entretanto, imprecisa e ambígua.
Em compensação, ele desempenha um papel importante na psi­
cologia analítica de C. G. Jung. Teórico importante do inconsciente,
ele também se interessou muito pelas relações da psicologia e da
religião, e desenvolveu uma teoria do inconsciente em que os sím­
bolos religiosos ocupam um lugar importante. Entretanto, como já
mostramos, Jung confunde o espiritual e o psicológico em proveito
deste último. Sua teoria é mais uma explicação do fenômeno religio­
so pela psicologia do que da psicologia pela espiritualidade. De fato,
com ele não deixamos o domínio da psicologia. Além do mais, Jung
tem uma concepção muito ampla da religião e da espiritualidade, e
sua doutrina desenvolveu-se em referência a um espiritualismo mais
próximo do gnosticismo e de diversas correntes esotéricas (como a
alquimia) do que do cristianismo ortodoxo.
A noção de inconsciente espiritual foi evocada principalmente
pela psicanálise existencial, cujos principais representantes foram
Igor Caruso, Wilfried Daim e Viktor Frank!. Viktor Frank! consagra
ao inconsciente espiritual um breve capítulo em seu livro O Deus
inconsciente4; mas no que se refere à espiritualidade ele fica em ge­
neralidades, o que sem dúvida lhe era imposto por seu projeto de
elaborar uma psicoterapia que fosse aplicável aos seres humanos
de todas as crenças. Sua tese principal é que toda neurose resulta
de uma perda do sentido da existência, e que a única terapêutica
adequada é a "logoterapia", que visa a encontrar o sentido perdido,
que reside em Deus. Quanto a Igor Caruso, ele considera que toda
neurose resulta de uma absolutização (e portanto de uma deifica­
ção) de valores relativos, e que a terapêutica consistirá pois em dar
de novo aos valores da existência sua justa dimensão5. Seu discípulo
Wilfried Daim retomou esta concepção. Segundo ele, o ser humano,
constituído por uma relação vital com o Absoluto, desencadeia em si

4. Edição original: Vienne, 1948; ed. fr. : Paris, 1975. Ver também La Psychothérapie
et son image de l'homme, Paris, 1970.
5. Ver Psychanalyse et synthese personnelle. Rapports entre l'analyse psychologique
et les valeurs existentielles, Paris, 1959; Psychanalyse pour la personne, Paris, 1962.
UMA OUTRA CONCEPÇÃO DO INCONSCIENTE 1 09

conflitos psíquicos cada vez que confere um caráter absoluto a seres


relativos e substitui por ídolos o único absoluto que é Deus6•
Como vemos, esses autores permanecem no quadro da psico­
patologia, isto é, da parte da psicologia que se interessa pela origem,
pela forma, pela evolução e pelo tratamento das doenças psíquicas.
Sua referência a Deus, ainda que se reivindique judaica no caso de
Frank! e cristã no caso de Daim e Caruso, permanece muito geral.

Podemos por isso dizer que o inconsciente espiritual é uma noção


que, no próprio quadro da espiritualidade cristã, não chegou até hoje
a ser objeto de nenhum estudo sistemático. Entretanto, as referên­
cias ou as alusões ao que podemos designar como um "inconsciente
espiritual" são suficientemente numerosas nas fontes tradicionais ( es­
pecialmente nos escritos patrísticos) para que possamos considerar
que há na espiritualidade cristã oriental uma concepção subjacente
do inconsciente espiritual e que ela pode servir para compreender
uma grande parte não somente da vida espiritual, mas ainda, por via
de consequência, da psicologia e do comportamento humanos que
lhe são relativos, inclusive naqueles que não entendem situar seu ser
e seu modo de existência em relação a Deus ou em relação a uma
espiritualidade definida.

2. As duas dimensões fundamentais do inconsciente espiritual

Notamos, anteriormente, que a relação do ser humano com Deus


pode ser positiva ou negativa.
A esta distinção correspondem duas dimensões do inconsciente
espiritual.
A dimensão positiva do inconsciente espiritual é constituída por
tudo o que no ser humano o liga, o une a Deus e o orienta para Ele,
sem que ele esteja consciente; por estas razões podemos qualificá-lo
de "inconsciente teófilo". Sua dimensão negativa é constituída por

6. Transvaluation de la psychanalyse. L'homme et I'Absolu, Paris, 1956.


110 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

tudo o que desprende, separa, afasta o ser humano de Deus e o orien­


ta em um sentido oposto a Ele, sem que ele esteja consciente; pode­
mos assim qualificá-lo de "inconsciente deífugo"
Essas duas dimensões referem-se de um lado à natureza (em
seus caracteres comuns a todos os seres humanos), de outro à pessoa
(à sua história e às suas experiências próprias, e ao modo de existên­
cia que ela deu à sua natureza) .
Essas duas dimensões do inconsciente espiritual moram juntas
em todos os seres humanos, segundo proporções variáveis, relativas a
cada um, no grau de consciência que ele tem de uma e de outra, mas
também na sua história pessoal pela parte de inconsciente relativa a
esta história.
No homem decaído que vive longe de Deus e de toda preocupa­
ção espiritual o inconsciente atinge o mais alto grau.
No cristão que leva uma vida espiritual, a vida ascética (no senti­
do amplo em que a entendemos) permite uma tomada de consciência
progressiva e, em consequência, uma redução do inconsciente espiri­
tual em suas duas dimensões. No asceta que atinge a impassibilidade,
a dimensão negativa do inconsciente espiritual desaparece, do mesmo
modo que sua dimensão positiva, em proveito de uma plena consciên­
cia do que ele é em sua relação com Deus.
As duas dimensões do inconsciente espiritual não devem ser
concebidas como realidades estáticas, mas como realidades dinâmi­
cas, não somente no sentido de que são suscetíveis de um aumento
ou de uma redução em relação à consciência que a pessoa tem, mas
igualmente no sentido de que têm uma atividade e um dinamismo
próprios quanto à sua forma e ao seu conteúdo.
Essa atividade tem uma influência sobre a vida espiritual da pes­
soa, mas também sobre sua vida psíquica, na medida em que esta é
relativa àquela.
O inconsciente "teófilo"
112 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

A
dimensão positiva do inconsciente espiritual que qualifica­
mos de "inconsciente teófilo" é constituída, como dissemos,
de diferentes elementos espirituais presentes na natureza do
ser humano que o ligam a Deus, o unem a Ele, o orientam para Ele.
Esses elementos, originalmente inconscientes, de acordo com certas
condições podem ser o objeto de uma tomada de consciência mais ou
menos ampla e mais ou menos profunda, mas podem ficar também
inconscientes para o indivíduo, definitivamente.

1 O logos da natureza
.

A dimensão positiva do inconsciente espiritual é constituída funda­


mentalmente, em cada ser humano, pelo logos de sua natureza1 .
O "logos da natureza" do ser humano é a definição da natureza
humana segundo o projeto divino, tal como Deus a concebeu e quis
antes dos séculos em Seu Desígnio, e portanto também como Ele a
realizou criando-a.
Portanto, é o que define fundamentalmente, caracteriza essen­
cialmente o ser humano ao sair das "mãos de Deus". É também a na­
tureza humana em sua qualidade de criação "boa'', em sua (relativa)
perfeição original.
Mas o logos da natureza define também sua finalidade, isto é, o
fim que Deus lhe determinou, fim já potencialmente ou idealmente
realizado segundo a ideia-vontade de Deus, que corresponde, pois,
para a natureza à norma de sua perfeição, a um ideal de realização
ou de acabamento de si mesma, da qual é portadora e para a qual
ela tende. Assim, "o logos da natureza é" ao mesmo tempo "uma lei
natural e divina"2•

1. A noção de logos de natureza, se bem que tenha uma origem antiga no pensa­
mento cristão, foi explicitada por São Máximo Confessor. Também é a este grande teólogo
bizantino que nos referiremos sobretudo nesta exposição. Para mais pormenores, ver nosso
estudo La divinisation de l'homme selon saint Maxime le Confesseur, Paris, 1996, 125 s.,
nossa Introdução a SAINT MAXIME LE CONFESSEUR, Questions à Thalassios, Paris/Sures­
nes, 1992, 10-12, 34-37, e nossa Introdução a SAINT MAXIME LE CONFESSEUR, Ambígua,
Paris/Suresnes, 1994, 28-41 .
2. Ver MÁXIMO CONFESSOR, Comentário do Pai-nosso, CCSG 23, 65-66.
0 INCONSCIENTE "TEÓFILO" 113

Segundo o projeto de Deus que precede os séculos, o ser huma­


no, por sua natureza, de acordo com o logos que a define, tem como
finalidade ser divinizado3.
Isso significa que o ser humano foi criado, em sua constituição
natural, com os poderes (ou faculdades ) que lhe permitem atingir
este fim4, que se realizará por graça. Esses poderes são naturalmente
orientados para este fim e tendem naturalmente para ele.
Essa orientação não é estática, mas dinâmica. Assim, de acordo
com São Máximo Confessor, o ser humano recebe com a existência o
movimento que deve encontrar o seu fim no repouso em Deus5• Ele
nota que, de uma maneira geral, somos movidos para o bem pelas
"sementes naturais"6, em outras palavras, pelas "tendências profun­
das de nossa natureza"7• Mais precisamente, ele considera "inerente
à natureza" "a subida [do ser humano] em direção ao seu próprio
princípio"ª. Por outro lado, ele evoca "o movimento [de cada ser cria­
do] em direção ao seu próprio fim" e observa que "aos seres criados
pertence serem movidos em direção a um fim sem começo", fim que
é Deus9• Podemos dizer que, para Máximo, "o próprio Deus é o fim
de todo movimento que pertence às criaturas"10 e que "o ser humano
é em si mesmo movimento para Deus"11• São Gregório Nazianzeno

3. Ver ID., Ambígpa a João, 7, PC 91, 1080BC.


4. Ver ibid., 10, PC 91, 1205C; ID., Questões a Talássios, 40, CCSG 7, 267. GREGÓ­
RIO DE NISSA, Discurso catequético, V, 5-6.
5. Ver MÁXIMO CONFESSOR, Ambígp.a a João, 15, PC 91, 1217A-1220A. A tríade
vinda da existência-movimento-repouso ocupa um lugar muito importante no pensamen­
to de Máximo Confessor.
6. Ver MÁXIMO CONFESSOR, Centúrias sobre a caridade, II, 32; cf. ibid., IV, 93. A
mesma noção - que faz pensar na teoria estóica dos logoi spermatikoi utilizada pelos pri­
meiros Padres (Cf. H. MEYER, Geschichte der Lehre von der Keimkriiften von der Stoa bis
zum Anfang der Patristik, Bonn, 1914; M. SPANNEUT, Le Stoi"cisme des feres de l'Église,
Paris, 1957, 316 s. - encontra-se também em Orígenes e Evágrio Pôntico (cf. M. VILLER,
Aux sources de la spiritualité de Saint Maxime. Les oeuvres d' Évagre le Pontique, Revue
d'ascétique et de mystique, 1 1 [1930] 180) .
7. Tradução de J. Pégon em sua edição das "Sources chrétiennes".
8. Ambígp.a a João, 7, PC 91, 1084A.
9. Ibid., 1073B.
10. P. SHERWOOD, St. Maximus the Confessor, London, 1955, 48.
1 1 . B. SARTORIUS, La Doctrine de la déification de l'homme selon les Peres grecs en
général et Grégoire Palamas en particulier, Geneve, 1965, 106.
114 O I NCONSCIENTE ESPIRITUAL

desenvolve uma concepção semelhante, evocando a alma humana


"que vem de Deus, que é divina, que participa da nobreza do céu e
que se apressa em encontrá-la"12, e descrevendo o ser humano que
acaba de ser criado por Deus como "um ser vivo [ . . . ] que está a cami­
nho em direção a um outro mundo" e que, "cúmulo do mistério, por
sua inclinação para Deus" tende a ser divinizado13•
Entre todas as faculdades do ser humano dinamicamente orien­
tadas para Deus, o intelecto (noüs) vem em primeiro lugar. Máximo
evoca o impulso natural do intelecto para Deus14 e observa que ele
tende, por esse impulso natural, a procurar Deus15, sublinhando tam­
bém a capacidade natural desta faculdade de gozar espiritualmente
de Deus no fim desse impulso16. De acordo com um modo que cor­
responde à sua natureza, a razão tem a mesma tendência17•
Em segundo lugar vem o desejo. Máximo Confessor observa que
temos "um desejo natural de Deus"18• E associando as faculdades de
conhecer e de desejar ele escreve: "Deus, que fundou com sabedoria
toda natureza e que, secretamente, inseriu em cada uma das essên­
cias racionais como faculdade primeira o conhecimento Dele mesmo,
deu-nos também, a nós humildes seres humanos, como Mestre gene­
roso, segundo a natureza, o desejo voltado para Ele19 e o amor [d'Ele],
tendo-lhe associado naturalmente o poder da razão, pela qual nos é
possível conhecer facilmente os modos da realização [desse] desejo e
de não deixar escapar por erro o que nos esforçamos para obter"2º.
Em terceiro lugar vem o poder irascível, que Máximo associa à
razão e ao desejo, para lhe reconhecer Deus como finalidade de seu

12. Discurso, II, 17, SC 247, 1 12.


13. Discurso, XXXVI II, 1 1 , SC 358, 126.22-24; cf. ibid., XLV, 7, PG 36, 632B.
14. MÁXIMO CONFESSOR, Questões a Talássios, 61, CCSG 22, 85.
15. Ibid., CCSG 22, 65.
16. Ibid., CCSG 22, 85.
17. lbid., CCSG 22, 65.
18. Ambígua a João, 48, PG 91, 1364B.
19. Cf. GREGÓRIO DE NISSA: "A Divindade é o Bem supremo a quem tendem todos
os seres possuídos pelo desejo do Bem. Por isso nosso espírito, sendo à imagem do Bem
perfeito, enquanto ele conseiva, tanto quanto ele está nele, a semelhança com o seu mode­
lo, se mantém ele próprio no Bem" (A criação do homem, XII, PG 44, 161C).
20. Ambígua a João, 48, PG 91, 1361AB.
0 INCONSCIENTE "TEÓFILO" 115

uso: "O fim da operação raciocinante da alma é o verdadeiro conhe­


cimento; o fim da operação desejante, o amor, o fim da operação iras­
cível, a paz [ . . . ] . Daí vem que, naturalmente, tenhamos a capacidade
de raciocinar para buscar Deus, que tomemos a faculdade desejante
(epithumia) para desejá-lo, só a Ele, e que o poder irascível (thurrws)
nos seja concedido, a fim de lutar por Ele só"21.
A estas faculdades principais que desempenham um papel es­
sencial na orientação dinâmica da natureza humana para Deus, é ne­
cessário acrescentar a vontade (thelema, thelesis ) , que depende, como
sublinhou Máximo, da essência ou da natureza22 e não da hipóstase.
Segundo Máximo, a vontade é "uma orientação geral da natureza ra­
cional comum para o bem conforme esta natureza, uma harmonia com
o que lhe dará seu ser acabado"23, isto é, Deus. "Enquanto natural", a
vontade humana não somente "não é contrária a Deus", mas "quando
ela é típica e movida nativamente [isto é, segundo a sua natureza] está
em sintonia [com Deus ]"24 e tende para Ele como Aquele em quem a
natureza encontrará sua realização. Podemos, pois, dizer que "a deifi­
cação [é] o fim supremo ao qual tende a vontade humana"25, do mesmo
modo que a deificação corresponde à "plena satisfação do desejo pro­
fundo do ser humano pelo retomo a seu princípio"26•
Sublinhando ao mesmo tempo o caráter natural do movimento
da natureza humana para Deus pelo qual ele tende a realizar seu
fim n'Ele, a encontrar n'Ele sua realização, considerando que os po­
deres do ser humano são, de uma maneira natural, dinamicamente

2 1 . Cartas, 3 1 , PC 91, 625AB. Cf. Questões a Talássios, 39, CCSC 7, 259; 49, CCSC
7, 355.
22. Cf. Opúsculos teológicos e polêmicos, 1, PC 91, 12CD; 16, 185D. Disputa com
Pirro, PC 91, 292BC.
23. M . DOUCET, Dispute de Maxime le Confesseur avec Pyrrhus, Montréal, 1972,
357.
24. Opúsculos teológicos e polêmicos, 20, PC 91, 236C.
25. V LoSSKY, Vision de Dieu, Paris, 1962, l lO. J. MEYENDORFF nota no mes­
mo sentido que "o movimento (energia ou vontade) natural do ser humano, instaurado
por Deus, é dirigido para a comunhão com Deus ou deificação" (Initiation à la théologie
byzantine, Paris, 1975, 53).
26. 1 . - H . DALMAIS, Un traité de théologie contemplative, Le "Commentaire du Pa­
ter" de saint Maxime !e Confesseur, Revue d'ascétique et de mystique, 29 ( 1953) 140.
116 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

orientados para Deus, evocando ao mesmo tempo uma participa­


ção natural dos seres criados para Deus pelo fato de que eles tiram
d'Ele seu ser, sua subsistência e seu movimento, e têm o seu logos
preestabelecido n'Ele27, São Máximo não ignora, neste nível mesmo,
o papel da graça divina. Há uma atividade (energeia) providencial
de Deus que sustenta, de algum modo, o movimento dos seres em
direção a Ele28, a operação de seus poderes para Ele e a realização
de seu logos n'Ele. São Máximo observa assim que "Deus, tendo rea­
lizado completamente [em] uma vez, do modo como só Ele conhe­
ce, os logoi primordiais dos [seres] criados e as essências universais
dos entes, opera [agora] ainda não somente a sua conservação no
ser, mas a produção em ato, o nascimento e a formação das partes
que estavam neles"29, isto é, a atualização de suas potencialidades .
Ele observa igualmente que o Espírito Santo "se derrama e m toda
parte em poder, de maneira providencial, promovendo em cada um
o logos segundo a natureza"30• E ele afirma que Deus é não somente
o princípio dos seres enquanto seu Criador, e seu fim enquanto Ele
os leva à sua perfeição, mas ainda o meio que faz o elo entre os dois
enquanto Providente31•
Portanto, se o ser humano é por natureza orientado para Deus,
tem n'Ele o seu fim e se eleva para Ele através de todas as suas facul­
dades, tendendo, em virtude de seu logos, a encontrar na união com
Ele e na deificação por Ele e n'Ele a realização de seu ser já definido
idealmente n'Ele segundo este logos, ele não é determinado por esta
natureza. E a graça, se ela o sustenta em seu movimento em direção
a seu fim, não o constrange de maneira nenhuma. A realização de seu
fim pelo ser humano não responde a um processo de necessidade e
há para ele um espaço próprio entre sua natureza e a graça divina,
que é o da disposição de seu querer e de seu livre-arbítrio, os quais
dependem de sua hipóstase.

27. Cf. Ambígua a João, 7, PG 91, lOBOB.


28. Cf. ibid., 10, PG 91, 1 133C.
29. Questões a Talássios, 2, CCSG 7, 51.
30. Ibid., 15, CCSG 7, 101.
31. Centútias sobre a teologia e a economia, 1 , 10.
0 INCONSCIENTE "TEÓFILO" 117

É aí que intervém, no pensamento de Máximo, em relação com


a de logos, a noção de tropos.
Enquanto o logos refere-se à essência ou à natureza, o tropos é
relativo à hipóstase ou à pessoa.
Enquanto o logos define a natureza, os poderes (ou faculdades)
desta e as atividades (ou operações) destes poderes, o tropos define a
maneira pela qual essa natureza existe e a maneira (ou o modo) pela
qual suas faculdades se exercem ou operam. Enquanto o logos é imu­
tável, o trapos varia segundo as pessoas32• Ele depende da disposição
da vontade (gnome )33 assim como da escolha (praairesis ) de cada um,
e as expressa em uma maneira de ser ou em um comportamento (é
o sentido elementar da palavra trapos) que toma seu sentido relati­
vamente ao logos; este, como vimos anteriormente, define a norma
daquilo que o ser humano é segundo a sua natureza verdadeira, tanto
quanto à constituição essencial desta quanto a seu fim ou à sua rea­
lização de acordo com a ideia-vontade de Deus. Para São Máximo,
é pelo modo de realização da operação natural que "é conhecida a
diferença daqueles que agem e das coisas que são efetuadas, a favor
ou contra a natureza"34, e que é segundo o trapos que "se é justo ou
injusto, mais ou menos, como isto ou como aquilo, segundo nos pren­
demos mais à natureza ou nos afastamos mais dela"35•

Assim, conforme a pessoa acompanha, pela disposição de sua


vontade e de seu livre arbítrio, o movimento de sua natureza em dire­
ção a seu fim (vivendo segundo as virtudes) ou, ao contrário, se afasta
dele e o contradiz (vivendo no pecado e nas paixões), ela tem um
modo de existência "segundo a natureza" ou "contra a natureza'', e
então faz a experiência do "estar bem" ou do "estar mal". São Máximo
escreve a respeito: "De todos os seres que existencialmente, por es­
sência, são e serão, ou se tomaram ou se tomarão, ou aparecem ou
aparecerão, os logoi preexistem e são, solidamente fundamentados,

32. Opúsculos teológicos e polêmicos, 10, PG 91, 136D-137B.


33. A disposição da vontade (gnome) deve ser bem distinguida da própria vontade
(thelema, thelesis). Enquanto esta depende da natureza, aquela depende da pessoa.
34. Opúsculos teológicos e polêmicos, 10, PG 91, 137A.
35. Ibid., 137AB.
1 18 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

em Deus; segundo estes [logoi] todos [os seres] são, se tomaram e


permanecerão sempre, aproximando-se por um movimento natural
de seus logoi [fixados] pelo projeto [divino] e tomando mais consistên­
cia em vista do ser, recebendo segundo a qualidade e a intensidade de
seu movimento e de sua inclinação livremente escolhidos, seja o estar
bem em razão de sua virtude e de sua reta orientação para o logos
segundo o qual eles são, seja o estar mal, por causa de sua malícia e de
seu movimento contrário ao logos segundo o qual eles são"36•
O estar bem e o estar mal não significam o bem-estar ou o mal-es­
tar no sentido em que entendemos estes termos hoje, se bem que isto
não exista sem relação com aquilo. O estar bem e o estar mal designam
certamente uma qualidade de vida, mas é de uma qualidade de vida
espiritual que se trata. O estar bem corresponde a um modo de exis­
tência conforme ao logos da natureza, mas ao mesmo tempo conforme
ao bem e conforme à vontade de Deus, três elementos que estão em
correspondência e em harmonia, tendo sido o logos da natureza defini­
do pela vontade boa de Deus. O estar mal corresponde, ao contrário,
a um modo de existência em desacordo com o logos da natureza, até
mesmo em oposição a ele (os Padres gregos utilizam frequentemente
a expressão "contra a natureza"), e igualmente em desacordo, até mes­
mo em oposição, com a vontade de Deus e com o bem. Corresponde,
pois, a uma desordem e a uma desarmonia que se traduzem pelas dife­
rentes doenças espirituais (as paixões) e por seus efeitos patológicos na
vida psíquica e corporal da pessoa que elas afetam.

Enquanto a pessoa leva um modo de existência que contradiz o


logos de sua natureza, este logos continua a existir nela e a orientar
dinamicamente sua natureza para Deus. Ele constitui um incons­
ciente espiritual que possui, de algum modo, sua vida e seu dinamis­
mo próprios, continuando a orientar a natureza para Deus, mesmo
quando um modo de existência contrário a Deus é levado pela pessoa
que vive no pecado, nas paixões e no esquecimento de Deus.

36. Ambíf!Jl a a João, 42, PG 91, 1329A. Ver também Opúsculos teológicos e polêmi­
cos, 1, PG 91, 28D-29A.
0 INCONSCIENTE "TEÓFILO" 1 19

Podemos dizer que o estar mal constitui um recalque ativo e


permanente das tendências da natureza por um modo de existência
contrário a essas tendências.
Produz-se então, no fundo do ser humano decaído, um conflito,
igualmente inconsciente, por um lado entre ao que a natureza aspira
profundamente e tende através de todas as suas faculdades, e, por
outro lado, a atividade que a pessoa dá a estas faculdades, fazendo
uso delas em um sentido contrário ao do logos da natureza.
Daí que o ser humano se torne assim inimigo de si mesmo, como
sublinharam vários Padres, inclusive São Máximo, alimentando pelo
pecado e pelo modo de vida que lhe está ligado um conflito entre o
que ele quer ser em sua natureza profunda e o que ele escolhe ser em
seu modo de existência decaído.

No ser humano que vive no pecado e nas paixões, o livre-arbítrio


contradiz e recalca em permanência a vontade de sua natureza. Esta
não pode se impor, porque ela depende do livre-arbítrio da pessoa
para que possa ou não se expressar e se realizar.

O logos da natureza se expressa, entretanto, por um lado, nas


tendências positivas e boas do ser humano, como por exemplo num
certo sentido do bem e do mal ou da justiça e da injustiça, no amor
experimentado por seus pais, por seus filhos ou por seu cônjuge, na
amizade, nos sentimentos de piedade e de compaixão, nas manifes­
tações de ajuda mútua ou de solidariedade, na busca da justiça e da
paz etc.37 Mas, mais frequentemente, essas tendências, não estando
mais ligadas conscientemente a seu princípio e a seu fim em Deus,
perdem sua qualidade espiritual.

O logos da natureza se expressa, por outro lado, de uma maneira


desviada nas atitudes, nos cultos e nos ritos pseudo-religiosos aos quais

37. Essas tendências positivas foram destacadas por alguns filósofos como caracte­
rísticas da natureza humana profunda ou original (Aristóteles, Rousseau . . . ), mas sabemos
que muitos outros filósofos consideraram ser predominantes as paixões que afetam os seres
humanos: egoísmo, avidez, busca do prazer sexual em todas as suas formas, agressividade,
orgulho, vontade de dominação e de exploração do outro . . .
1 20 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

se entregam, em graus diversos e de uma maneira muitas vezes incons­


ciente, todos os seres humanos, sem exceção. Poderíamos falar aqui de
um "retomo do recalcado", na medida em que a orientação dinâmica
para Deus, que caracteriza fundamentalmente o logos da natureza hu­
mana e é, portanto, ativa em todo ser humano, assim mesmo chega a se
expressar no nível consciente, mas em uma forma desviada, travestida,
deformada, faltando à sua finalidade verdadeira.
Podemos encontrar aqui uma explicação de Mircea Eliade para
estas constatações:

O homem a-religioso no estado puro é um fenômeno muito raro, mesmo


na mais dessacralizada das sociedades modernas. A maioria dos "sem-reli­
gião" ainda se comporta religiosamente, embora não esteja consciente do
fato. [ . ] O homem moderno que se sente e se pretende a-religioso car­
. .

rega ainda toda uma mitologia camuflada e numerosos ritualismos degra­


dados. [ . . ] A grande maioria dos "sem-religião" não está, propriamente
.

falando, livre dos comportamentos religiosos, das teologias e mitologias.


Estão às vezes entulhados por todo um amontoado mágico-religioso, mas
degradado até a caricatura e, por esta razão, dificilmente reconhecível.
O processo de dessacralização da existência humana atingiu muitas ve­
zes formas híbridas de baixa magia e de religiosidade simiesca. [ . ] Mas
. .

não é apenas nas "pequenas religiões" ou nos misticismos políticos que


se reencontram comportamentos religiosos camuflados ou degenerados:
pode-se reconhecê-los também em movimentos que se proclamam fran­
camente laicos, até mesmo antirreligiosos. Citamos, por exemplo, o nu­
dismo ou os movimentos a favor da liberdade sexual absoluta, ideologias
onde é possível decifrar os vestígios da "nostalgia do Paraíso'', o desejo
de restabelecer o estado edênico anterior à queda, quando o pecado não
existia e não havia rotura entre as beatitudes da carne e a consciência.
Além disso, é interessante constatar quantas encenações iniciáticas per­
sistem ainda em numerosas ações e gestos do homem a-religioso de nos­
sos dias. [ . . ] A iniciação está tão estreitamente ligada ao modo de ser
.

da existência humana, que um número considerável de gestos e ações


do homem moderno ainda repete quadros iniciáticos. Inúmeras vezes,
a "luta pela vida", as "provas" e as "dificuldades" que dificultam uma vo-
O I NCONSCIENTE •TEÓFILO" 1 21

cação ou carreira repetem de algum modo as práticas iniciáticas. [ . . . ]


Pois toda a existência humana se constitui por uma série de provas, pela
experiência reiterada da "morte" e da "ressureição". [ . . . ] Em suma, a
maioria dos homes "sem-religião" partilha ainda das pseudorreligiões e
mitologias degradadas. Isso, porém, não nos surpreende, pois [ . . . ] gran­
de parte de sua existência é alimentada por pulsões que lhe chegam do
mais profundo de seu ser, da zona que se chamou de incosnciente. [ . . . ]
De certo ponto de vista, quase se poderia dizer que, entre os modernos
que se proclamam a-religiosos, a religião e a mitologia estão "ocultas" nas
trevas de seu inconsciente. [ . . . ] De uma perspectiva Uudeo-] cristã, po­
der-se-ia dizer igualmente que a não-religião equivale a uma nova "que­
da" do homem: o homem a-religioso teria perdido a capacidade de viver
conscientemente a religião e, portanto, de compreendê-la e assumi-la;
mas, no mais profundo de seu ser, ele guarda ainda a recordação dela.38•

2. A imagem divina no ser humano

A díade logos-trupos, analisada sobretudo por São Máximo Confessor,


corresponde, nele e em muitos outros Padres gregos, a uma díade mais
conhecida: a imagem (eikon) e a semelhança (orrwiosis) de Deus.
Esta díade tem uma origem bíblica ( Gn 1,26) e a maior parte dos
Padres gregos a usou abundantemente39, concedendo-lhe um papel

38. O sagrado e o profano, São Paulo, Martins Fontes, 1992, 165-172. Nossa con­
cepção deste inconsciente religioso difere entretanto da concepção de Mircea Eliade, que
vê nisso, um pouco à maneira de Jung, uma espécie de inconsciente coletivo e arquetípico,
constituído preliminarmente pelos comportamentos do homo religiosus e de quem o ho­
mem arreligioso teria herdado (ver ibid., 170, 171).
39. Cf. A. STRUKER, Die Gottebenbiúllichkeit des Menschen in der christlichen Lite­
ratur der ersten zwei Jahrhunderte, Münster, 1913; E. PETERSON, I:immagine di Dio in S.
Ireneo, La scuola cattolica, 19 ( 1941 ) 3-1 1 ; A. MAYER, D as Gottesbild im Menschen nach
Clemens von Alexandrien, Roma, 1942; H. CROUZEL, Théologie de l'image de Dieu chez
Origene, Paris, 1956; R. BERNARD, L' image de Dieu d'apres saint Athanase, Paris, 1952,
H. MERKI, 'Oµoíwoiç 9Ec\J, Von der platonischen Angleichung an Gott zur Gottahnlichkeit
hei Gregor von Nyssa, Fribourg, 1952; R. LEYS, L'image de Dieu chez saint Grégoire de
Nysse, Bruxelles/Paris, 1951; W. J. BuRGHARDT, The Image of God in Man according to
Cyril of Alexandria, Baltimore, 1957; L. THUNBERG, Microcosm and Mediator, Lund,
1 22 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

essencial, de sorte que se tomou um dos elementos característicos


de sua antropologia e de sua doutrina espiritual40• Por isso pode ser
útil reformular, por meio destas categorias mais clássicas, o que mos­
tramos antes.
A imagem de Deus corresponde à essência ou à natureza do ser
humano tal como ele foi criado por Deus41• Ela é pois constituída
por atributos, faculdades ou qualidades que caracterizam fundamen­
talmente, essencialmente esta natureza. Elas lhe foram dadas natural­
mente pelo Criador42• São um reflexo de Sua própria essência: Máximo
as qualifica de "propriedades divinas" atribuídas à natureza humana43,
mais precisamente de "imagens (eikonismata) da essência de Deus"44•
O próprio termo imagem que significa ao mesmo tempo a similitude
com seu arquétipo e o que a distingue: ela possui realmente traços Da­
quele do qual é a imagem, mas é falada "entretanto de modo diferente
d'Ele, por sua natureza particular, senão não seria uma imagem, mas
uma identificação total"45• Estas qualidades fazem com que a criatura,
em uma certa medida, participe naturalmente de Deus46•
Referindo tais qualidades à natureza divina, muitos Padres consi­
deram que o arquétipo da imagem divina no ser humano é o Verbo47•
Máximo dá como razão que o Verbo é o Criador, e o Logos no qual
todos os logoi das criaturas tomam sua origem e encontram seu fim.

1965, 120- 133; W. VõLKER, Ma:ximus Confessor ols Meister des geistlichen Lebens, Wies­
baden, 1965, 47-69, 88- 102.
40. Cf. J. KIRCHMEYER, Crecque ( É glise),in Dictionnaire de spiritualité, 1967, Vl,
col. 812-822.
4 1 . Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Centúrias sobre a caridade, III, 25; Opúsculos teoló-
gicos e polêmicos, 1, scholie 2, PC 91, 378C.
42. Cf. ID., Questões e dificuldades, IIl/l, CCSC 10, 170.
43. Cf. ID., Centúrias sobre a caridade, III, 25.
44. Cf. ID., Questões e dificuldades, IIl/l, CCSC 10, 170. 10; cf. 13.
45. ID., Cartas, 6, PC 91, 4298.
46. Cf. ID., Centúrias sobre a caridade, III, 25; Cartas, 6, PC 91, 4298.
47. Ver por exemplo IRENEU DE LIÃO, Contra as heresias, V, 16, 2, SC 153, 216.
CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Protréptico, X, 98, 4, SC 2, 166. ÜRÍGENES, Homilias sobre
o Gênesis, l, 13, SC 7 bis, 60; Contra Celso, IV, 85, SC 136, 396. ATANÁSIO DE ALEXAN­
DRIA, Sobre a encarnação do Verbo, III, 3, SC 199, 270-272; Contra arianos, III, 10, PC
26, 334A; MÁXIMO CONFESSOR, Disputa com Pirro, PC 91, 324D; Questões a Talássios,
53, CCSC 7, 431 .
0 INCONSCIENTE •TEÓFILO" 1 23

Geralmente, os Padres consideram que é fundamentalmente


por sua alma intelectiva e racional que o ser humano é criado à ima­
gem de Deus48•
O ser humano é criado igualmente à imagem de Deus por sua
capacidade de autodeterminação49, que, como vimos, se identifica,
para Máximo, com a vontade natural50•
Entre as propriedades constitutivas da natureza do ser humano
que são participações naturais nas propriedades divinas e fazem dele
um ser à imagem de Deus figuram, pois, o fato de ser inteligente e
razoável51, assim como a independência (autodespoton)52 e a autode­
terminação (autexousion )53•
Algumas dessas propriedades constitutivas da imagem de Deus
referem-se ao começo, outras ao fim do ser humano. São Máximo
Confessor considera ser a imagem de Deus o logos do ser humano54, o
qual, como vimos, define as características essenciais do ser humano,
mas também o que ele é, ideal e potencialmente, segundo a vontade
de Deus, seu fim assim como a tendência a este fim. Figuram igual­
mente como componentes da imagem de Deus propriedades que da
mesma forma permitem ao ser humano realizar seu fim55• É assim que
Máximo une à imagem o movimento em direção ao ser56, a capaci-

48. Cf. CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromata, II, 19, GCS II, 169; Protréptico, X,
98, 4, SC 2, 166; ÜRÍGENES, Homilias sobre o Gênesis, l, 13, SC 7 bis, 62; Contra Celso,
VI, 63, SC 147, 336; ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, Sobre a encamação do Verbo, III, 3, SC
199, 272. GREGÓRIO DE NISSA, A criação do homem, XII, PC 44, 1610. GREGÓRIO NA­
ZIANZENO, Discurso, XXXVI II, 1 1 , SC 358, 124; CIRILO DE ALEXANDRIA, Contra os an­
tropomorfitas, PC 76, 1069-1072; MÁXIMO CONFESSOR, Mistagogia, VI, PC 91, 684CO;
Cartas, 6, PC 91, 429B; 23, PC 91, 6050; Questões a Talássios, 65, PC 90, 741B, CCSG
22, 259; Ambígua a João, 10, PC 91, 1204A; 42, PC 91, 1325A; Opúsculos teológicos e
polêmicos, 23c, PC 91, 268A.
49. Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Disputa com Pirro, PC 91, 304C; 324CO .
50. Ibid.
5 1 . Cf. lo., Ambígua a João, 7, PC 91, 1092B.
52. lo., Questões e dificuldodes, III/l, CCSG 10, 170.
53. Ibid., CCSG 10, 170.9.
54. MÁXIMO CONFESSOR, Opúsculos teológicos e polêmicos, l, scholie 2, PC 91,
37BC.
55. Ao menos pelo polo que depende dele, sendo o outro polo a graça divina, sem a
qual a realização deste fim não poderia ser completada.
56. Centúrias sobre a teologia e a economia, I, 1 1 .
1 24 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

dade de buscar Deus e de tender a Ele57• São Máximo tem, pois, uma
concepção da imagem de Deus no ser humano eminentemente dinâ­
mica. Para ele, mas também para outros Padres gregos58, a imagem é
um conjunto de capacidades que permitem ao ser humano realizar a
semelhança, e ela o orienta já dinamicamente para essa realização.
A semelhança, mesmo que não conheça solução de continui­
dade em relação à imagem, é de uma outra natureza. Enquanto a
imagem refere-se à natureza, a semelhança é relativa à hipóstase59•
Enquanto a imagem faz parte da constituição natural do ser humano
e lhe é dada de imediato pelo Criador, não supondo nenhuma in­
tervenção de sua parte, a semelhança no início só é potencial; ela
pede sua participação pessoal para ser realizada e é, neste sentido,
tributária de seu livre-arbítrio6Cl_ De acordo com São Máximo, en­
quanto a imagem depende do logos de sua natureza, a semelhança
depende de seu gênero de vida, em outras palavras do modo (tropas)
de sua existência61 . Esta concepção é também a de São Basílio, que,
para expressá-la, recorre às categorias aristotélicas do poder e do
ato: "Possuímos [a imagem] pela criação, adquirimos [a semelhança]
pela vontade. Na primeira estrutura nos é dado nascer à imagem de
Deus; pela vontade forma-se em nós o ser à semelhança de Deus.
O que depende da vontade, nossa natureza o possui em poder, mas
é pela ação que nós no-lo conseguimos. Se ao nos criar o Senhor
não tivesse tomado de antemão a precaução de dizer 'criemos' e 'à
semelhança', se Ele não nos tivesse gratificado com o poder de nos
tornar semelhantes a Ele, não seria por nosso próprio poder que te­
ríamos adquirido a semelhança com Deus. Mas eis que Ele nos criou
com poder capaz de nos assemelhar a Deus . Dando-nos o poder de

57. Cf. Lettres, 1, PC 91, 377B; Ambígua à Jean, 48, PC 91, 1361AB .
58. Sobretudo Clemente de Alexandria. Cf. H. CROUZEL, Théologie de l'image de
Dieu chez Origene, Paris, 1956, 67.
59. MÁXIMO CONFESSOR, Opúsculos teológicos e polêmicos, 1, scholie 2, PC 91,
37BC.
60. Que consiste, segundo São Máximo, na disposição de querer (gnôme) e na es­
colha (proairesis).
6 1 . Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Opúsculos teológicos e polêmicos, 1 , scholie 2, PC
91, 37BC.
0 INCONSCIENTE "TEÓFILO" 1 25

nos assemelhar a Deus, Ele permitiu que sejamos os artesãos da


semelhança com Deus, a fim de que volte para nós a recompensa de
nosso trabalho"62•
A semelhança é constituída pelas virtudes63•
Enquanto Deus possui por natureza as qualidades que corres­
pondem às virtudes, o ser humano é chamado a possuí-las pela parti­
cipação64. Cabe-lhe por disposição querer e por escolha adquiri-las65,
e isto fazendo-se pessoalmente o imitador de Deus66• Enquanto a
posse da imagem é imediata, a posse da semelhança é o fruto de
um vir a ser67, não pode ser adquirida senão no final68 de um esforço
ascético constante pelo qual o ser humano procura se conformar ao
Arquétipo divino69, e em consequência de um modo de vida habitual
conforme às virtudes que a constituem70• De fato, pela vida segundo
as virtudes, ligada à prática dos mandamentos divinos, o ser humano
se toma semelhante a Deus 71•

Entretanto, a semelhança não é o efeito somente do esforço hu­


mano: enquanto o ser humano é feito à imagem de Deus por nature­
za, é por graça que se toma semelhante a Ele72•

62. Homilias sobre a origem do homem, 1, 16.


63. Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Centúrias sobre a caridade, III, 25; Centúrias so­
bre a teologia e a economia, l, 13. DoROTEU DE GAZA, Instruções espirituais, XII, 134.
JOÃO DAMASCENO, Exposição exata da fé ortodoxa, II, 12. NICETAS STETATOS, Centú­
rias, III, 8; 1 1 .
64. MÁXIMO CONFESSOR, Centúrias sobre a caridade, Ili, 25.
65. Cf. lo., Questões e dificuldodes, IIlll, CCSG 10, 170; Centúrias sobre a carido­
de, III, 25; IV, 90. Comentário do Pai-nosso, PC 90, 889B, CCSG 23, 50. Ambígua a João,
42, PC 91, 13450.
66. Cf. lo., Centúrias sobre a caridade, IV, 90; Questões e dificuldades, IIlll, CCSG
10, 170. 16 s.; Questões a Talássios, 53, CCSG 7, 435.93.
67. Cf. ID., Centúrias sobre a caridade, III, 25.
68. Cf. lo., Questões e dificuldades, 11111 , CCSG 10, 170.
69. Cf. lo., Comentário do Pai-nosso, CCSG 23, 50.Cf. ÜRÍGENES, Tratado dos
princípios, III, 6, 1.
70. Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Centúrias sobre a caridade, III, 25. Ver também,
Centúrias sobre a teologia e a economia, l, 13; Cartas, l, PC 91, 265C.
71. Cf. lo., Místagogia, V, PC 91, 680A; Cartas, 1, PC 91, 365C, 380A; Ambígua a
João, 10, PC 91, 1 140B, 1205A; Questões a Talássios, 53, CCSG 7, 435.
72. Cf. lo., Centúrias sobre a caridade, III, 25.
1 26 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

As qualidades que constituem a semelhança, pelo fato de resul­


tarem de um vir a ser espiritual, por um lado, e de serem dadas gra­
ciosamente por Deus, por outro, podem pois parecer acrescentar-se
mais à natureza.
Entretanto, paradoxalmente, as virtudes podem ser consideradas
como sendo, de certa maneira, dadas no início ao ser humano, e mes­
mo como pertencentes, em certa medida, à sua natureza. Esta con­
cepção é expressa por muitos Padres, como Santo Antônio o Grande73,
São Gregório de Nissa74, São Doroteu de Gaza75, São Máximo Con­
fessor76, Santo Isaac o Sírio77, São João Damasceno78 e São Simeão,
o Novo Teólogo79. No entanto, ficou subentendido que essa posse
das virtudes, do ponto de vista da pessoa, é potencial: pertence-lhe
exercê-las efetivamente pela escolha de uma vida conforme a essas
virtudes, pela orientação constante de sua disposição de querer em
direção ao bem e por sua escolha permanente do bem. Em seu Diá­
logo com Pirro São Máximo Confessor explica que a ascese visa então,
sobretudo, a afastar o que impede a manifestação das virtudes, a qual
tende naturalmente a se efetuar. Em todos os pontos, essa explicação
é conforme à ideia maximiana de que, para a pessoa, se trata de levar
uma vida ou de ter um modo de existência simplesmente conforme
ao logos de sua natureza, para se situar no estar bem e se encaminhar
para o seu fim espiritual:

73. Cf. Cartas, I, 1 .


74. Cf. A criação do homem , I V, PC 44, 136CD: " O ser humano fo i feito à imagem
de Deus equivale a dizer: [Deus] tomou a natureza humana participante de todo bem.
[ . . . ] Portanto em nós estão toda sorte de bem, toda virtude, toda sabedoria, e tudo o que
podemos pensar de melhor".
75. Cf. Instruções espirituais, I, 1: "Deus fez o ser humano à Sua imagem, isto é,
enfeitado com toda virtude"; XII, 134: "Pela natureza, possuímos as virtudes, que nos fo­
ram dadas por Deus. Criando o ser humano, Deus as colocou nele"; "Deus nos deu pois as
virtudes com a natureza".
76. MÁXIMO CONFESSOR, Cartas, 3, PC 21, 409A; Disputa com Pirro, PC 91, 309C;
Centuries sur la charité, III, 27.
77. Cf. Discursos ascéticos, 83: "A virtude está naturalmente na alma".
78. Cf. Erposição exata do fé ortodoxa, II, 12: "Deus fez o ser humano ornado de
toda virtude e rico de todo bem"; III, 14: "As virtudes são naturais para o ser humano".
79. Cf. Capítulos teológicos, gnósticos e práticos, III, 90.
0 INCONSCIENTE "TEÓFILO" 1 27

"P. - Se não é da ascese que provém em nós o que é natural, mas da


criação, e se a virtude é natural, como acontece que seja por um esforço e
uma ascese que adquirimos as virtudes, por mais naturais que elas sejam?
M. - A ascese e os esforços que ela desencadeia, aqueles que amam a
virtude os conceberam unicamente para expulsar a sedução que a sen­
sação insinuou na alma, não para acrescentar as virtudes do exterior e de
maneira adventícia; porque elas estão em nós pela criação, como foi dito.
Daí vem que, uma vez a sedução perfeitamente expulsa, imediatamente
a alma deixa ver o esplendor da virtude conforme a natureza. Porque
quem não é insensato é sábio, quem não é covarde ou temerário é cora­
joso, quem não é desregrado é temperado, e quem não é injusto é justo.
Conforme a natureza, a razão é sabedoria, o poder de julgar é justiça,
a cólera é coragem, a cobiça é temperança. Portanto, quando tiramos
o que é contra a natureza, o que é segundo a natureza, e somente isto,
não deixa de aparecer; do mesmo modo igualmente para o ferro: quando
tiramos a ferrugem, o seu esplendor e o seu brilho aparecem"80•

Parece-nos pois que para Máximo as virtudes já estão todas pré­


formadas em nós e que as operações fazem apenas que apareçam81 .
Em outra ocasião, entretanto, ele apresenta as virtudes como original­
mente "sementes" (spermata)82, e evoca o ser humano que "cultivou
sinceramente pela escolha a semente natural do bem"83• Poderíamos
ver nisso uma expressão da ideia de que as virtudes estão de alguma
forma contidas potencialmente na natureza ou na imagem, e que a

80. MÁXIMO CONFESSOR, Disputa com Pirro, PC 91, 309B-312A. A ideia não é nova.
Cf. ISAÍAS DE CETA: "Aquele que quer chegar à conformidade com a natureza restringe
todas as suas vontades segundo a carne, até que ele seja estabelecido no estado natural" (As­
cetikon, II, 4). GREGÓRIO DE NISSA, Tratado da virgindade, XII, 2: "Esta volta da alma ao
estado que lhe é próprio e natural é um despojamento de todo elemento estrangeiro".
8 1 . M. DOUCET, La dispute de Maxime le Confesseur avec Pyrrhus, 731 .
82. Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Cartas, 3, P C 91, 409C. Em uma perspectiva próxi­
ma, as virtudes são consideradas sementes por EVÁGRIO P Ô NTICO (Centúrias gnósti­
cos, 1, 39) e GREGÓRIO NAZIANZENO (Discurso, II, 17).
83. MÁXIMO CONFESSOR, Ambígua a joão, 7, PC 91, 1081D. Cf. GREGÓRIO NA­
ZIANZENO, Discurso, II, 17: a virtude é "um bem que não é somente uma semente confia­
da à natureza, mas que é também o objeto de uma cultura que depende de nossa vontade e
dos movimentos que empurram nosso livre-arbítrio em uma ou outra direção".
1 28 0 I NCONSCIENTE ESPIRITUAL

pessoa, por seu livre esforço, as atualiza por analogia. Mas vimos que
as sementes devem ser menos entendidas como gérmens que caberia
ao ser humano fazer crescer do que como tendências profundas da na­
tureza definidas por seu logos, que deveria ter favorecida sua expressão
pela disposição do querer e pela escolha. Se no entanto, Máximo fala
de uma prática ativa da virtude84 e de um progresso na virtude, deve­
mos entender isso como a concordância efetiva da pessoa com a sua
natureza e como o progresso realizado nessa harmonização.
É claro que para Máximo não há solução de continuidade en­
tre a semelhança e a imagem85, encontrando-se aquela na finalidade
desta e, portanto, no prolongamento da natureza86• Por outro lado,
podemos conceber a imagem como o conjunto das capacidades que
permitem ao ser humano adquirir a semelhança e o fazem tender a
isso87• Esta concepção é comum à maior parte dos Padres gregos.

3. A tendência da natureza à sua realização


em Cristo, ou "a alma naturalmente cristã"

Um terceiro aspecto do inconsciente "teófilo" fará aparecer o caráter


não somente religioso mas propriamente cristão da concepção do in­
consciente que desenvolvemos.
Muitos Padres afirmam que é à própria imagem do Logos, do Ver­
bo de Deus, que Adão foi criado88, e que o próprio mistério da criação
do ser humano à imagem do Logos liga-se ao mistério da deificação do

84. Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Questões a Talássios, 55, CCSG 7, 497.


85. M. DoUCET, Dispute de Maxime le Confesseur avec Pyrrhus, 227.
86. Podemos dizer que, de uma maneira geral, para Máximo, a natureza é orde­
nada para o sobrenatural. Cf. H. U. VON BALTHASAR, KDsmische Liturgie, Einsiedeln,
196 1 , 598.
87. Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Comentário do Pai-nosso, CCSG 23, 50; Ambígua à
Jean, 7, PC 91, 1092B; Centuries sur la théologie et l'économie, 1, 13. Esta ideia se encontra
também em GREGÓRIO NAZIANZENO, Discurso, XXVIII, 17.
88. Ver por exemplo: IRENEU DE LIÃO, Contra as heresias, V, 16, 2. ÜRÍGENES,
Homilias sobre o Gênesis, 1 , 13. TERTULIANO, Da ressurreição, Vl, 3-5. ATANÁSIO DE
ALEXANDRIA, Sobre a encarnação do Verbo, 3; Contra os pagãos, 2; CIRILO DE ALEXAN­
DRIA, Explicação dos dogmas, IV, ed. Pusey, t. V, 558.
0 INCONSCIENTE "TEÓFILO" 1 29

ser humano no Verbo encarnado. Não há para o ser humano, desde a


sua criação, a não ser um fim normal: a semelhança com Cristo, norma
da realização de sua natureza, plena e claramente revelada na Encar­
nação de Jesus. O ser humano foi criado como ser "lógico" (logikos),
isto é, racional, mas mais fundamentalmente como u m ser cristológi­
co, significando logikos para os Padres conforme ao Logos, ao Verbo
de Deus89• E os Padres chegam mesmo a afirmar que o ser humano foi
criado não somente à imagem do Logos enquanto Deus, mas mesmo
à imagem do Logos encarnado, do Cristo Deus e homem, e que ele
tem por destino, desde a sua criação, por causa de sua própria natu­
reza, tender com todo o seu ser a se assimilar ativamente a Cristo90•
São Nicolau Cabasilas escreve assim: "A natureza humana foi criada
desde a origem em vista do Homem Novo, a inteligência e o desejo
do ser humano são criados para o Cristo: recebemos a inteligência
para conhecer o Cristo, o desejo para que sejamos atraídos para Ele
e a memória para carregá-lo em nós. E isto ainda mais que Ele serviu
de modelo à nossa criação. De fato, não foi o velho Adão o modelo
(paradeigma) do Novo, mas o Novo do antigo (cf. Rm 5,14) . Para nós,
que o reconhecemos como nosso ancestral, o primeiro Adão passa
como sendo o arquétipo da natureza humana; mas para Aquele que
tem diante dos olhos todos os seres, antes mesmo que eles existissem,
o ancestral é apenas a imitação do novo Adão. Ele foi criado à imagem
e semelhança deste último"91• Podemos pois dizer que "o ser huma­
no tende ao Cristo não somente por causa da divindade de Nosso
Senhor, mas também por causa desta outra natureza [a humana] que
Ele possui"92• São Gregório Palamas ensina no mesmo sentido: "Já a
própria formação do ser humano desde a origem, criado à imagem
de Deus, foi em vista do Cristo, a fim de que o ser humano possa, no
tempo preciso, compreender nele o Arquétipo"93•
Assim, Cristo revela-se, desde sempre, ser o princípio e o fim
( lCor 8,6; Ap 22, 13) da natureza humana, como afirma também São

89. Este ponto é sobretudo sublinhado por Santo Atanásio de Alexandria.


90. Cf. MACÁRIO DO EGITO, Homilias espirituais (Col. 111), XX, 1 ,2.
91. A vida em Cristo, VI, 91-93.
92. Ibid, 97.
93. Homilia sobre a Epifania.
1 30 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

Máximo Confessor, que escreve a propósito da união, na hipóstase do


Verbo, da natureza divina com a natureza humana: "Eis a finalidade
bem-aventurada em vista da qual todas as coisas foram constituídas. Eis
o projeto que Deus concebeu antes mesmo da criação dos seres"94•
Na Pessoa de Cristo expressam-se totalmente o princípio e o fim
da natureza do ser humano, aparecem claramente o seu ser autên­
tico e o seu verdadeiro destino. A imagem de Deus, obscurecida na
humanidade pelo pecado de Adão, é manifestada de novo n'Aquele
que é sem pecado, com bem mais magnificência que tinha em Adão
antes de sua falta: porque em Cristo a imagem de Deus revela-se em
sua perfeição acabada, totalmente atualizada pela realização total da
semelhança do ser humano com Deus, que se realiza em Sua Pessoa
pela união da natureza divina com a natureza humana. A imagem
e a semelhança de Deus no ser humano são manifestadas por seu
próprio Criador, o Logos de Deus feito carne, Ele próprio imagem
perfeita do Pai, tais como Ele as quis desde a origem, em sua realiza­
ção inteira e definitiva. Em Adão, só aparecia a imagem do modelo;
em Cristo o próprio Modelo se mostra; na Pessoa de Cristo, o Mo­
delo se une à imagem - sem se confundir com ela e também sem
ser separado dela - e a restaura e a leva à sua perfeição por essa
própria união. Santo Ireneu escreve a propósito dessa manifestação
fulgurante da imagem e da semelhança, dessa revelação do homem­
Deus no Deus-homem: "A verdade de tudo isso apareceu quando o
Verbo de Deus se fez homem, tomando-se semelhante ao homem
e tomando o homem semelhante a Ele, para que, pela semelhança
com o Filho, o homem se tome precioso aos olhos do Pai. De fato,
nos tempos anteriores, dizia-se mesmo que o ser humano havia sido
feito à imagem de Deus, mas isto não aparecia, porque o Verbo era
ainda invisível, Ele, à imagem de quem o ser humano foi feito: aliás, é
por esse motivo que a semelhança tinha se perdido facilmente. Mas,
quando o Verbo de Deus Se fez carne, Ele confirmou uma e outra;
Ele fez aparecer a imagem em toda a sua verdade, tomando-se Ele
próprio aquilo que era a Sua imagem, e restabeleceu a semelhança

94. Questões a Talássios, 60, PC 90, 621AB.


0 INCONSCIENTE "TEÓFILO" 1 31

de maneira estável, tornando o ser humano inteiramente semelhante


ao Pai invisível por meio do Verbo doravante visível"95•
Assim, em Cristo é revelado claramente ao ser humano o arqué­
tipo de sua verdadeira natureza, o modelo que, desde a sua criação
e por sua própria natureza, ele está destinado a realizar96, "sendo o
Cristo o único e o primeiro a ter realizado o homem autêntico e per­
feito quanto ao comportamento, quanto à vida e em todas as suas
relações", faz observar São Nicolau Cabasilas97•
Desabrochar o seu ser, realizar-se, viver em conformidade com a
sua natureza, mas também viver de maneira perfeita desde esse mo­
mento, consiste manifestamente para o ser humano em assemelhar-se
a Cristo, em se assimilar a Ele e em tornar-se deus n'Ele98• Somente
na união com Cristo o ser humano encontra a plenitude de seu ser, a
integridade e a integralidade de sua natureza, o sentido verdadeiro,
primeiro e último de seu destino, a perfeição de sua atividade e de sua
vida inteira. É só em Cristo que o ser humano pode ser ele mesmo,
pode ser plenamente homem e mulher e realizar sua natureza verda­
deira em todas as suas dimensões: "o Filho", diz São Máximo, "restitui
a natureza a ela mesma"99; e São Gregório Nazianzeno: "Pelo Cristo, a
integridade de nossa natureza é restaurada". Porque o ser humano
é por natureza, em sua origem, na estrutura de seu ser e de sua desti­
nação, um ser cristológico e teocêntrico, somente voltando-se para
Deus ele se toma verdadeiramente homem100; somente unindo-se to­
talmente ao Cristo ele pode ser homem real (ontos anthropos, segun­
do a expressão de São Gregório de Nissa) e, diremos nós, homem
normal (visto que normalmente homem) e se encontrar em um estado
de saúde total: "a assimilação ao Cristo, isto é, a saúde e a perfeição da
alma", escreve São Gregório Palamas101•

95. Contra as heresias, V, 16, 2.


96. "Ele é o arquétipo daquilo que somos", escreve São Gregório Nazianzeno.
97. A vida em Cristo, VI, 94.
98. Cf. SIMEÃO, O Novo TEÓLOGO, Tratadas éticos, IV, 586-592.
99. Commentaire du Notre fere, PG 90, 877D.
100. Cf. JoÃo CRISÓSTOMO, Homilias sobre 1 Coríntios IX, 4; Homilia sobre as
Calendas, 3.
101. Triades pour la défense des saints hésychastes, II, 1 , 42.
1 32 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

Se agora acrescentamos as considerações precedentes ao que dis­


semos sobre o logos do ser humano e sobre a imagem de Deus nele,
podemos dizer que todo ser humano - cristão ou não, fiel ou não -
tende por natureza, inconscientemente, ao Cristo como para o fim e a
realização de seu ser. Tertuliano expressou esse fato de uma maneira
particularmente forte dizendo que a alma é "naturalmente cristã"102•

4. A graça

Uma outra dimensão do inconsciente "teófilo" no ser humano consis­


te na graça divina da qual ele participa. Esta graça está presente em
diferentes graus e sob diferentes formas, se bem que se trata sempre
da mesma graça, divina em sua natureza e em sua origem.
Para São Máximo Confessor, a graça não deve ser considerada
somente algo a ser acrescentado ou superposto à natureza, assim
como o concebe a teologia medieval ocidental, que fala a propósito
dessa mesma natureza designando-a como "natureza pura"1º3. A pró­
pria natureza do ser humano e o simples fato de ser são um dom de
Deus104• Podemos dizer que há uma participação natural de todos os
seres em Deus só pelo fato de sua criação105• E há uma presença e uma
ação da graça no coração de sua própria natureza. Assim, Máximo
nota que, entre as coisas às quais podemos atribuir um logos de na­
tureza, algumas "são por graça implantadas (empephuken) nas cria­
turas como um poder inato (emphutos), proclamando fortemente que
Deus está em todos106".
Segundo São Máximo, todo ser, segundo seu logos, existe em
potência em Deus, antes dos séculos. Ele existe em ato, segundo esse
mesmo logos, no tempo em que Deus, segundo Sua sabedoria, julgou

102. Du ténwignage de l'âme.


103. Cf. M. DOUCET, Dispute de Maxime le Confesseur avec Pyrrhus, 227. H. U.
VON BALTHASAR, Kosmische Liturgie, 598.
104. Ver sobretudo Centuries sur la charité, III, 25.
105. Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Ambígua a João, 7, PG 91, 1080B.
106. ID., Centúrias sobre a teologia e a economia, 1, 49, PG 90, l lOlA. Ver o comen­
tário de H. U. VON BALTHASAR, Kosmische Liturgie, 598.
0 INCONSCIENTE "TEÓFILO" 1 33

oportuno criá-lo107• Uma vez criado segundo esse logos, é segundo


esse mesmo logos ainda que Deus, em Sua Providência, o consetva,
atualiza suas potencialidades (os seres dotados de razão e de livre­
arbítrio, contribuindo eles mesmos para esta atualização) e o conduz
a Ele108• Agindo como Providente, Deus age igualmente em perma­
nência em todos os seres enquanto Juiz, dispensando sabiamente a
cada um o poder natural que corresponde à sua essência própria109•
Em sua existência, os seres manifestam Deus por seus logoi, fi­
cando estes contidos no Logos, que está inversamente presente neles
e, por esse fato, como que encarnado na criação110• "Ele Se esconde
nos logoi dos seres visíveis, inefavelmente, e em uma medida parti­
cular em cada um deles [ ] , plenamente tudo em tudo, integral­
. . .

mente em cada um sem ser diminuído, invariável em sua variedade,


sempre semelhante a Si mesmo, simples e sem composição nos seres
compostos, sem começo nos seres que têm um começo, invisível nos
seres visíveis, intangível nos seres tangíveis."lll
A presença ativa de Deus nos logoi dos seres corresponde ao que
a teologia ortodoxa chama de energias divinas. Assim, São Máximo
Confessor obsetva que o intelecto, na multidão dos logoi que pode
perceber nos seres, se tiver as disposições requeridas, "contempla
as energias de Deus"112• De fato, explica ele, "em cada logos de cada
coisa particular, e semelhantemente em todos os logoi segundo os
quais todas as coisas existem, é Deus", que entretanto não é nenhum
dos seres e está acima de todos. "Toda energia divina significa Deus
todo inteiro indivisivelmente através dessa energia"; mas, tudo "sen­
do todo inteiro e comumente em todos e particularmente em cada

107. Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Ambígua a João, 7, PC 91, 10808, 1081A; 42, PC
91, 13288.
108. Cf. ibid., 7, PC 91, 1081C.
109. Cf. H. U. VON 8ALTHASAR, Kosmische Liturgíe, 131; L. THUNBERG, Mícro­
cosm and Medíator, Lund, 1965, 69-76.
l lO. Cf. MÁXIMO CONFESSOR, Ambígua a João, 10, PC 91, l l28D-l l33A; 22, PC
91, 1257A8; 33, PC 91, 1285CD.
lll. Cf. ibid., 33, PC 91, 1285CD.
l l2. Cf. ibid., 22, PC 91, 1247A. Isto significa que as energias estão presentes nos
logoí dos seres, mas não como alguns comentaristas o acreditaram, que estes próprios logoí
são as energias.
1 34 O INCONSCIENTE ESPIRITUAL

um dos seres, Deus o é sem parte nem partilha, não estando nem se­
parado diversamente nas diferenças infinitas dos seres nos quais Ele
está inerente, portanto nem contraído segundo a existência particular
de um só, nem contraindo as diferenças dos seres segundo a única
totalidade de todos, mas Ele é verdadeiramente tudo em todos, Ele
que não sai nunca de Sua própria e indivisível simplicidade"113•
As energias divinas, enquanto são comunicadas, dadas por Deus
às criaturas, são comumentemente chamadas de "graça".
Essas energias divinas que se manifestam em todos os seres da
criação em graus diversos estão presentes no ser humano em um
grau eminente, visto que ele ocupa a primeira fila entre as criatu­
ras e é a única das criaturas feita à imagem de Deus. Essas energias
divinas estão presentes no logos da natureza humana, mas também,
bem entendido, na imagem de Deus no ser humano que caracteriza
fundamentalmente esse logos, e igualmente nas virtudes que, como
vimos, estão presentes na natureza de uma certa forma.

5. O recalque do inconsciente "teófilo"

"Saídos de nossa natureza primeira, nós adquirimos uma morada de


trevas'', escreve Santo Antônio114• De fato, depois do pecado original,
o intelecto (nüUs) do ser humano ocultou-se e obscureceu-se: ele se
tornou, segundo a expressão de São Simeão, o Novo Teólogo, "a lâm­
pada apagada da alma"115• E o ser humano chegou até a ignorar nele
a existência dessa faculdade que lhe permite contemplar, conhecer
Deus e entrar em comunhão com Ele, porque ela foi desfigurada, in­
vestindo-se no conhecimento das "coisas deste mundo", concebidas
não mais segundo os seus logoi, mas segundo suas únicas aparências.
Cessando então de conhecer as realidades espirituais, tanto em si
mesmo como fora de si, ele se pôs a acreditar que elas não existiam,
assim como o cego que nega a existência da luz porque seus olhos não

1 13. Cf. ibid., 22, PC 91, 1257AB; cf. 35, 1289A.


1 14. Cartas, V, 1 .
1 15. Catequeses, XV, 70.
0 INCONSCIENTE "TEÓFILO" 1 35

a percebem e trata de mentirosos, iludidos e loucos aqueles que lhe


falam dela e lha descrevem 116•
Tendo o seu intelecto se tornado para ele inconsciente em sua
realidade e em sua função espirituais, tendo sua inteligência mergu­
lhado nas trevas e sua consciência obscurecido sob o efeito das pai­
xões117, o ser humano decaído se encontra, enquanto não é purificado
de seus pecados, liberto de suas paixões e esclarecido pela graça do
Espírito, na incapacidade de se conhecer adequadamente, e se mos­
tra, em primeiro lugar, inconsciente de sua verdadeira natureza, do
"ser humano escondido no fundo do coração"118 ( lPd 3,4) . No estado
decaído da humanidade, "muitos seres humanos", constata São João
Crisóstomo, "perdem até a consciência de sua natureza, caem no de­
lírio, desconhecem-se a si mesmos"119• Santo Isaac exclama: "Infeliz
de nós, porque não conhecemos nossas almas, ignoramos a outra vida
a que fomos chamados"120• E São Simeão, ao observar que, "obscu­
recidos como somos por nossas paixões", não sabemos o que somos
de fato121, escreve em outra ocasião que "nossos pecados se levantam
como um muro entre nós e Deus" e que "se nós não o destruirmos
ou não o atravessarmos [ . ] não saberemos nem mesmo que somos
. .

seres humanos"; pergunta ele: "enquanto a cerca ficar de pé e nos se­


parar da luz, como, na obscuridade em que vivemos, seremos capazes
de nos conhecer a nós mesmos? Como saberemos realmente o que
somos e de onde somos, para onde caminhamos e de onde viemos,
para onde somos conduzidos e quem somos?"122.
Em sua queda, o ser humano não perde a imagem de Deus que
define a estrutura fundamental de seu ser; todavia, esta se encontra

1 16. Cf. SIMEÃO, O Novo TEÓLOGO, Catequeses, XV, 41 s.


1 17. Cf. ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, Sobre a encarnação do Verbo, 32; SIMEÃO, 0
Novo TEÓLOGO, Tratados éticos, IX, 437 s. (eles têm "os ouvidos do coração obstruídos
e o olho da alma velado pelas paixões"); VI, 184-185; Catequeses, XXXI I I, 93; JoÃO CRI­
SÓSTOMO, Homilias sobre os demônios, 11, 4; CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Protréptico, X,
100, l; 105, l; XI, 1 14, 1.
1 18. Cf. MACÁRIO DO EGITO, Homilias espirituais (Cal. II) XI, 4.
1 19. Comentário sobre o salmo 9, 8.
120. Discursos ascéticos, 17.
121. Catequeses.XVII, 26 s.
122. Tratados teológicos, I, 253 s.
1 36 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

depois do pecado original recalcada e escondida. Por isso, o ser hu­


mano toma-se inconsciente de sua natureza deiforme assim como de
Deus presente nele por Sua imagem.
Do mesmo modo, o esboço da semelhança com Deus que se
encontra naturalmente nele pelas virtudes presentes em germe está
recalcado e escondido. Sendo as paixões constituídas pela perversão
do uso das faculdades do ser humano, cuja atividade conforme a sua
natureza constitui as virtudes, podemos dizer com Santo Isaac, o Sí­
rio, que "as paixões formam um muro diante das virtudes escondidas
da alma", e enquanto elas não caem "as virtudes escondidas dentro
da alma não se deixam ver"123• A alma humana, nota por sua vez Santo
Atanásio, mergulhou no esquecimento das coisas divinas124: "Desvia­
da do bem e esquecendo que ela é feita à imagem do Deus bom,
o poder que está nela não vê mais o Deus Verbo, à semelhança de
quem ela foi feita; saindo de si mesma, ela só pensa e só imagina
o nada. Porque ela escondeu no recôndito dos desejos corporais o
espelho que está nela, pelo qual só ela podia ver a imagem do Pai, e
portanto não vê mais aquilo em que deve pensar uma alma"125•
No entanto, Deus não deixa de estar presente no coração de
todo ser humano, mesmo se este o ignora, ou antes, recusa-se a re­
conhecê-Lo. "Na realidade, ninguém pode fugir de Deus", diz São
João Crisóstomo126• E podemos mesmo dizer, pelas razões que demos
anteriormente, que cada ser humano, no fundo de si mesmo, em seu
ser íntimo, tende a Deus e está, de uma certa maneira, unido a Ele,
mesmo se se recusa a reconhecê-Lo. Como vimos, Tertuliano pensa
que "a alma [é] naturalmente cristã"127• E Evágrio Pôntico chega até
mesmo a dizer que "a fé é um bem imanente que existe natural­
mente mesmo naqueles que ainda não creem em Deus"128• Deus, por

123. Discursos ascéticos, 68.


124. Contra os pagãos, 8. Ver igualmente Sobre a encarnação do Verbo, 1 1 .
125. Contra o s pagãos, 8 .
126. Homilias sobre a penitência, I I , 3 .
127. Apologética, XVII, 6 .
128. Tratado prático, 59. CLEMENTE D E ALEXANDRIA também escreve: " A fé é um
bem imanente" ( Stromata, Vil, 10). E ATANÁSIO DE ALEXANDRIA: "A fé nasce da disposi­
ção íntima da alma" (Vido de Antônio, 77).
0 INCONSCIENTE "TEÓFILO" 1 37

Sua presença ativa na própria natureza do ser humano, não cessa de


Se apresentar a ele em vista de ser reconhecido por ele, sem entre­
tanto jamais forçá-lo de alguma maneira. Mas o ser humano, pela
força de suas paixões, recalca os "empurrões" permanentes da graça
que se exercem no fundo de si mesmo, censura os apelos do Espí­
rito, resiste a Deus. Santo Agostinho, analisando as disposições de
sua alma antes que ela reconhecesse a Deus, expressa explicitamente
esse fenômeno: "Minha alma doente, que só podia encontrar a cura
na fé [ . . . ] , recusava-se a se curar. Ela resistia em Tuas mãos, ó Deus,
que preparaste o remédio da fé"129• Santo Ireneu expressa-se em um
sentido análogo: "Vãos e realmente infortunados são aqueles que não
querem ver coisas tão evidentes e tão claras, mas fogem da luz e da
verdade, tendo se cegado eles próprios do mesmo modo que o infeliz
É dipo"130• São Simeão, o Novo Teólogo, diz a mesma coisa: "Assim
como a áspide, nós tampamos os ouvidos, tornamo-nos semelhantes
a surdos e a mudos, à maneira dos mortos, cegos para os sentidos de
nossa alma"131 • "Nós que somos desfalecidos, mutilados e feridos, ne­
gligenciamos os meios de cura e nos engenhamos de todas as manei­
ras para não fazer nada", constata ele ainda132, sublinhando o aspecto
ativo do que devemos mesmo chamar o recalque de Deus e de Sua
graça pelo ser humano, sob a dominação dos efeitos mórbidos do
pecado original e de suas paixões .
Todas as atividades que o ser humano decaído empreende sob a
dominação de suas paixões são então muitas vezes colocadas por ele
à disposição desse recalque e dessa resistência e o ajudam a fugir de
Deus ou ao menos a permanecer afastado d'Ele, a escondê-Lo de si
mesmo, e por esse mesmo fato a fugir de si mesmo, a recusar-se a
reconhecer sua verdadeira natureza, assim como recusar as diversas
implicações de tal reconhecimento para a sua existência.
A consciência moral, "voz misteriosa mas clara e distinta que, das
profundezas de nossa natureza onde Deus a colocou, se eleva por si

129. Conferências, VI, 4.


130. Contra as heresias, V, 13, 2.
131. Catequeses, XXVIII, 220 s .
132. Tratados éticos, VII, 287 s .
1 38 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

mesma como um mestre doméstico para nos ensinar o bem e o mal"133,


do mesmo modo os seres humanos a recalcaram, "progressivamente a
enterraram e a pisaram por seus pecados"134• Entretanto, ela continua
a dar ao ser humano decaído algumas indicações135, mas está no poder
dele ou deixá-la se expressar "ou enterrá-la de novo"136• Então, neste
último caso, ela só pode dar informações confusas, como explica São
Doroteu de Gaza em termos que traduzem toda a força opressora
exercida pelas paixões nesta circunstância: "Se nossa consciência nos
diz para fazer tal coisa e nós a desprezamos, se ela fala de novo e
não fazemos o que ela diz, persistente em espezinhá-la, acabamos por
enterrá-la, e a carga que pesa sobre ela a impede doravante de nos fa­
lar claramente. Mas, como uma lâmpada cuja claridade é perturbada
por impurezas, ela começa a nos fazer ver as coisas mais confusamen­
te, por assim dizer mais obscuramente"137. A consciência moral acaba
por tomar-se inconsciente para o ser humano se suas manifestações
são permanentemente recalcadas. "Do mesmo modo", prossegue São
Doroteu, "que em uma água lodosa ninguém pode reconhecer o seu
rosto, chegamos progressivamente a não mais perceber a voz de nos­
sa consciência, a ponto de quase acreditar que não a temos mais No
entanto, não há ninguém que seja privado dela porque, como já dis­
semos, é alguma coisa de divino que não morre nunca; ela nos lembra
continuamente o dever, mas nós é que não a ouvimos mais, como
disse, por a termos desprezado e espezinhado"138•

133. JOÃO CRISÓSTOMO, Homilias sobre as estátuas, XII, 3; cf. 4; XIII, 3; DOROTEU
DE GAZA, Instruções espirituais, III, 40. BARSANUFO, Cartas, 158; ÜRÍGENES, Comentá­
rio sobre a Epístola aos Romanos, PG 14, 1081A.
134. DOROTEU DE GAZA, Instruções espirituais, loc. cit.
135. Cf. JOÃO CRISÓSTOMO, Homilias sobre as estátuas, XII, 3; cf. 4; XIII, 3; Do ­
ROTEU DE GAZA, Instruções espirituais, III, 40. BARSANUFO, Cartas, 158; ÜRÍGENES,
Comentário sobre a Epístola aos Romanos, PG, 14, 1081A.
136. DOROTEU DE GAZA, Instruções espirituais, loc. cit.
137. Ibid.
138. Ibid.
O inconsciente "deífugo"
1
1 40 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

nconsciente da dimensão espiritual positiva de seu ser, o ser huma­


no decaído o é correlativamente de seu estado de decadência e de
suas paixões - em outras palavras, de suas doenças espirituais - e
de bom número de fatores ligados a elas (como as pulsões ou os pen­
samentos maus) . Numerosos são os Padres que o sublinham.
São Macário nota o caráter inconsciente, para a maioria dos se­
res humanos, dos efeitos neles do pecado ancestral: "O pecado que
se introduziu [pela desobediência de Adão] e que corresponde a um
certo poder espiritual de Satanás e a uma realidade semeou todos os
males. Sem ser descoberto, ele age no homem interior e no seu espí­
rito, e introduz a guerra nos pensamentos. Mas o ser humano ignora
que ele age pela instigação de uma força estranha. Ele imagina que
tudo isso é natural e que se trata de suas próprias reflexões. [ . . . ] O
mundo está doente por causa de uma paixão má e não o sabe"1• São
Simeão, o Novo Teólogo, constata-o no mesmo sentido, assinalando
que as paixões são não somente o conteúdo deste inconsciente mas a
sua fonte: "Tal é o império que as paixões estabeleceram em nós, tais
são as trevas e a ignorância em que nos encontramos, que não senti­
mos em que estado nós estamos, que não sentimos que agimos mal"2.
"A luz do coração é tão obscurecida que não percebemos nem mes­
mo a que ponto a alma está ferida e despedaçada [ . . ]", observa um .

outro Padre3• A Eusébio, que lhe pergunta por que razão os seres hu­
manos cuidam das doenças de seu corpo mas não se preocupam com
as doenças de sua alma, João o Solitário responde que, sob o efeito do
pecado, "eles se tornam incapazes de ver e de ouvir, mas [são] pare­
cidos com mortos que não sentem nenhuma piedade por seu estado
interior"4• "Doentes que somos", constata São João Clímaco, "não po­
demos diagnosticar [as doenças espirituais que estão em nós] , ou por
causa de nossa fraqueza, ou porque elas estão muito profundamente
enraizadas"5. Santo Isaac, o Sírio, observa que "muitos doentes igno-

1. XV, 49.
2. Catequeses, III, 201 s.
3. Apotegmas, CSP V, 1 .
4. Diálogo sobre a alma e as paixões dos homens, ed. Hausherr, 5 1 .
5. A escado, XXVI, 147.
0 INCONSCIENTE "DEIFUGO" 1 41

ram que eles o são", que "a maior parte dos seres humanos que estão
doentes se proclamam com boa saúde"6• São João Crisóstomo nota
que "aquele que se entregou às paixões, meio adormecido por uma
espécie de embriaguez, não sabe nem mesmo que está doente"7• E
ele escreve em outra ocasião sem rodeios: "Não temos o sentimento
de todos esses males que nos acabrunham [ . . . ] . Por nossa insensibi­
lidade, não diferimos em nada desses alienados que dizem e fazem
mil coisas perigosas e vergonhosas, e que, longe de se enrubescer,
se vangloriam e se imaginam ser mais sadios de espírito que aqueles
que os cercam. Sim, o mesmo acontece conosco: fazemos tudo o que
fazem os doentes, e não sabemos que somos doentes"8•

O ser humano decaído, na medida em que não tem consciência


de seu estado doentio, negligencia deixar-se cuidar9 e afirma que não
tem necessidade da cura que lhe propõem10• Numerosos são aqueles
"incapazes de sentir suas paixões. E como eles não as sentem não
se empenham também em curá-las'', constata Santo Isaac11• Eles re­
sistem à medicina espiritual. "De fato, como aceitaria ser cuidado
aquele que não se deixa convencer de que vive doente ou ferido?",
pergunta São Simeão12• Ora, ficando inconsciente de seu estado, ele
só o agrava. "A pior das doenças é aquela que consome um paciente
sem que ele suspeite disso", observa São João Crisóstomo13, que aliás
observa no mesmo sentido que "ignorar a si mesmo é a pior das lou­
curas e dos frenesis"14•

Contudo, não basta ao ser humano tomar consciência de uma


maneira geral de sua natureza verdadeira e correlativamente de seu

6. Cartas, 4.
7. Homilias sobre a Epístola aos Romanos, XI, 5.
8. Tratado da compunção, I, 1 .
9. Cf. JoÃo CRISÓSTOMO, Homilias sobre a Epístola aos Romanos, XI, 5.
10. Cf. JoÃo CRISÓSTOMO, Apologia da vida monástica, III, 9; SIMEÃO, O Novo
TEÓLOGO, Catequeses, VII, 87-88.
1 1 . Discursos ascéticos, 30.
12. Catequeses, VII, 89.
13. Homilias sobre a penitência, VI, 1 .
1 4 . Comentário sobre o salmo 9,9.
1 42 O INCONSCIENTE ESPIRITUAL

estado de decadência para que seu ser escondido deixe ao mesmo


tempo de lhe ser inteiramente inconsciente. O próprio cristão que
recebeu pela fé e pelo Espírito Santo a possibilidade de se conhecer
não pode tomar totalmente consciência das paixões que possui a não
ser ao preço de um conjunto de condições que só muito raramente
são reunidas sem dificuldade. Mesmo para aquele que procura, o me­
lhor possível, tomar consciência de suas paixões e delas se libertar,
algumas dessas paixões podem permanecer escondidas durante lon­
gos períodos e outras só se mostrar em parte. São Macário sublinha
várias vezes que o mal herdado do pecado ancestral está muito pro­
fundamente enfiado e difundido no ser humano15• A atividade diabó­
lica exerce-se sobretudo no fundo do coração, e por esta razão de
maneira que não aparece: "A serpente, tua assassina, [se] esconde
abaixo mesmo do espírito e mais profundamente do que os pensa­
mentos, naquilo que chamam os aposentos e os recônditos da alma.
De fato, o coração é um abismo"16• Enquanto o ser humano não cum­
pre totalmente todos os mandamentos de Cristo, as paixões permane­
cem para ele total ou parcialmente inconscientes, porque, explica São
Simeão, ele conserva um véu colocado no coração (cf. 2Cor 3, 15- 16)
que o impede de se ver totalmente17• Evágrio, São João Cassiano e São
Máximo falam assim das "paixões escondidas na alma"18• João o Soli­
tário, dos "movimentos de nossa natureza escondida"19, dos "males
secretos"20 do "ser escondido" do homem21 ou ainda das "coisas escon­
didas nas profundezas da alma"22• São João Clímaco, da "obscuridade
interior invisível"23• São Gregório Magno evoca as paixões "escondi­
das nos mais secretos recônditos do coração"24• "Paixões numerosas

15. Cf. Homilias espirituais (Cal. II), XV, 21.


16. Ibid., XVII, 15.
17. Cf. Catequeses, XIV, 80 s.; Tratados éticos, 1, 12, 209 s.
18. Cf. EVÁGRIO, Centúrias gnósticos, VI, 52; JOÃO CASSIANO, Conferências, XIX, 12;
MÁXIMO CONFESSOR, Centúrias sobre a caridade, II, 31; III, 78; IV, 92.
19. Diálogo sobre a alma e as paixões dos homens, ed. Hausherr, 92.
20. Ibid., 50.
2 1 . Ibid.
22. Ibid., 9 1 .
23. A escada, XXVI, 6 .
24. Moralia, V, 46.
0 INCONSCIENTE "DEIFUGO" 1 43

estão escondidas nas almas, [que] nos escapam", observa ainda Evá­
grio25. São Máximo, Santo Talássio e Santo Hesíquio de Batas reto­
mam esta afirmação quase palavra por palavra26• São João Cassiano,
na mesma perspectiva, faz alusão às sementes das paixões que perse­
veram no secreto da alma e permanecem escondidas nos recônditos
profundos27• São Marcos, o Monge, nota que há na alma paixões que
são como as serpentes que se escondem nas casas28, e evoca as "pul­
sões escondidas que agem no fundo do [ser humano] "29• Ele ensina
que toda paixão, mesmo muito antiga, constitui para o ser humano que
não se purificou totalmente um conjunto de predisposições adorme­
cidas que se manifestarão no tempo propício30• É assim que ele fala
dos "maus pensamentos escondidos em nós"31, "pensamentos escon­
didos que contemos em nós"32, do "enxame das paixões escondidas
no interior"33, e entre elas põe como explicação, como vimos, o es­
quecimento, a negligência, a ignorância, "vícios mais funestos do que
os outros, que a maior parte dos seres humanos ignoram e dos quais
eles não conhecem nem mesmo a existência"34• O próprio São Paulo
evoca "os segredos [do] coração" ( l Cor 14,25) e as ações secretas dos
seres humanos" (Rm 3, 16) . E o Salmista dirige-se assim a Deus: "Seus
pecados, quem os conhece? Daqueles que estão escondidos em mim,
purifica-me" ( Sl 18, 13) .

As paixões - ou ao menos algumas delas - são evidentemente


mais ou menos inconscientes segundo o grau de consciência espiritual

25. Centúrias gnósticos, VI, 52.


26. MÁXIMO CONFESSOR: "Muitas paixões permanecem escondidas em nossa alma"
(Centúrias sobre a caridade, IV, 52). TALÁSSIOS: "As piores paixões estão escondidas nas
nossas almas" (Centúrias, III, 30). HESÍQUIO DE BATOS: "Numerosas paixões se escondem
nas nossas almas" (Capítulos sobre a vigilância, 72) .
27. Conferências, XXII, 3.
28. A lei espiritual, 179.
29. Ibid., 180.
30. Cf. A justificação pelas obras, 78; 100; 178.
31. Controvérsia com um advogado, 16.
32. Ibid.
33. A Nicolas, 4.
34. Ibid., 13; cf. 10.
1 44 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

que possuímos. Se elas são inteiramente escondidas ou ao menos só


aparecem em suas manifestações mais grosseiras ou extremas àqueles
que vivem afastados de Deus, elas revelam-se cada vez mais finamen­
te àqueles que se aproximam dele e praticam Seus mandamentos na
luz do Espírito. A esse respeito, há assim uma distância considerável
entre o pecador que é como um cego a seu respeito e aquele que
progride na ascese. Enquanto este as desaloja nos recônditos mais
escondidos de sua alma, aquele se crê isento delas desde que não
atinjam proporções extraordinárias em relação ao estado de decadên­
cia médio da humanidade ambiente. É assim que São Macário obser­
va: "Tanto tempo quanto um ser humano é retido nas coisas visíveis
deste mundo, cercado das diversas cadeias da terra, arrastado pelas
más paixões, ele não sabe nem mesmo que há um outro combate,
uma outra luta, uma outra guerra dentro dele. De fato, só quando um
ser humano levanta-se para combater e se libertar de todos os laços
visíveis deste mundo [ . . . ] e começa a permanecer com perseveran­
ça diante do Senhor, esvaziando-se deste mundo, só assim ele pode
conhecer o combate interior das paixões que se ergue nele, a guerra
interior e os pensamentos maus. Como dissemos, tão longo tempo
quanto alguém não luta, não renuncia ao mundo, não se desprende de
todo o seu coração da cobiça terrestre, não quer se unir inteiramente
e sem reserva ao Senhor, ele não conhece nem as astúcias secretas dos
espíritos de malícia, nem as más paixões escondidas nele. Mas ele é
estranho a si mesmo, não sabendo que traz em si as chagas das paixões
secretas"35• São João Cassiano, para nos fazer observar a diferença
de percepção entre o asceta e aquele que não vive o combate espi­
ritual, recorre a uma comparação esclarecedora: "Suponhamos que
dois homens penetram em uma casa espaçosa, atulhada de negócios,
de móveis, de diversos objetos; o primeiro goza de uma vista sadia e
penetrante, o segundo tem os olhos ofuscados por uma oftalmia. Este
último, impedido de ver tudo com o seu olhar obscurecido, afirma
que não há nada lá a não ser armários, camas, bancos, quartos, em
uma palavra, todas as coisas das quais o toque, mais do que a vista,

35. Homilias espirituais (Col. II) XXI, 4. Cf. 5.


0 INCONSCIENTE "DEIFUGO" 1 45

lhe revelou a existência. O outro, ao contrário, cujo olhar claro como


um traço de luz sondou os recantos mais escondidos, declara uma
multidão de pequenos objetos, que mal podem ser contados e que, se
fossem amontoados, igualariam ou talvez mesmo ultrapassariam por
seu número a grandeza de alguns móveis reconhecidos às apalpadelas
por seu companheiro. Assim são os santos. São eles os videntes, se
assim posso dizer. Em seu zelo pela perfeição, eles descobrem em si
mesmos, com uma rara penetração, e condenam sem piedade coisas
que o nosso olhar interior, obscurecido como é, não sabe perceber.
Onde, segundo o julgamento de nossa negligência, o pecado mais su­
til não manchou a brancura da consciência, eles se veem cobertos de
máculas". Ao contrário, "aqueles que cobrem os olhos de seu coração
com o véu espesso dos vícios e, segundo a palavra do Salvador, 'vendo
não veem, ouvindo não ouvem nem compreendem' (Mt 13, 13) , mal
percebem, na solidão de seu coração, os pecados graves e mortais:
como teriam eles o olhar puro que é preciso para discernir a aparição
insensível dos pensamentos? Ou os movimentos fugidios e escondi­
dos da concupiscência, que ferem a alma com uma ponta leve e sutil,
ou as distrações que os retêm cativos?"36• Notemos que, de todas as
paixões, é o orgulho que obnubila mais a consciência do ser humano e
o leva a ser inconsciente de suas doenças, tanto das menores ou mais
sutis como das mais importantes. "O orgulho", diz São João Clímaco,
"produz um total esquecimento dos pecados"37• "A maioria dos orgu­
lhosos'', constata ele ainda, "ignoram a si mesmos e acreditam ser im­
passivos; somente na hora da morte eles descobrem a sua pobreza"38•
Aliás, ao orgulho está ligado o que os Padres chamam de "mania de se
justificar", atitude pela qual o ser humano, em presença de seu peca­
do, recusa-se a reconhecê-lo como seu, recalca a consciência.

Nem sempre por não ser suficientemente desperto espiritual­


mente o ser humano é total ou parcialmente inconsciente das pai­
xões que o habitam . Frequentemente, como observa São Máximo

36. Conferências, XXIII, 6. Cf. 7.


37. A escada, XXII, 22.
38. Ibid., 29.
1 46 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

Confessor, as paixões estão em um estado de anergesia (anergesia)39,


em outras palavras, de inativação ou de sono. Tal estado pode durar
mais ou menos tempo e fazer o próprio espiritual acreditar que está
isento ou liberto desta ou daquela paixão, que faz algum tempo não
se manifestou ou até mesmo nunca se revelou. Assim, pode se esta­
belecer na alma um estado de paz na verdade ilusório.
De fato, ao lado do estado de paz autêntico que resulta da im­
passibilidade (estado que atinge o ser humano no cume da práxis,
quando ele está realmente liberto de toda paixão), pode existir, como
assinala Evágrio, um falso estado de paz que resulta da retirada dos
demônios40, sobrevindo quando eles estão seguros de possuir mes­
mo sua vítima, com um outro ponto de vista. É o caso por exemplo
quando a vaidade ou o orgulho vêm tomar na alma o lugar de todas
as outras paixões.
Pode acontecer também que o ser humano tenha a consciência
abafada pelas atividades mundanas múltiplas e febris às quais ele se
entrega, que suas paixões lhe sejam veladas por suas preocupações
cotidianas que o impedem de considerar seu estado41• "Graças a
seu corpo", nota neste contexto São Doroteu de Gaza, "a alma é
distraída e aliviada de suas paixões"42• Mas "que venha um de vocês
e que eu o feche em uma cela escura, que ele passe somente três
dias sem comer, sem beber, sem dormir, sem ver ninguém, sem sal­
modiar, sem rezar, sem nunca se lembrar de Deus, e ele verá o que
lhe farão as paixões"43•
Quando o ser humano renuncia à vida mundana para se compro­
meter profundamente com a vida espiritual, é normal igualmente que
paixões das quais ignorava a existência nele ou que lhe pareciam até
então pouco desenvolvidas despertem e revelem-se então com toda
a sua intensidade. "Não nos admiremos'', escreve São João Clímaco,
de nos ver mais sujeitos às paixões nos começos de nossa vida monás-

39. Centúrias sobre a caridade, II, 40.


40. Tratado prático, 57.
41. Não podemos deixar de pensar aqui no "divertimento" pascaliano.
42. Instruções espirituais, XII, 126.
43. Ibid., 122.
O INCONSCIENTE "DEIFUGO" 1 47

tica do que o estávamos quando vivíamos no mundo. [ . . . ] De fato, os


animais ferozes já estavam lá, escondidos, mas não se mostravam"44•
E Santo Talássio observa: "As piores paixões estão escondidas nas
almas. Mas aparecem quando as coisas são repelidas"45•
Com mais frequência são as tentações que revelam ao ser huma­
no a presença de paixões, das quais ele estava inconsciente. "Há mui­
tas paixões na alma que não conhecemos até que venha a tentação e
no-las revele", nota Evágrio46•
Muitas vezes também o ser humano permanece inconsciente de
suas paixões enquanto não se acha diante de circunstâncias suscetíveis
de despertá-las e fazê-las ressurgir. Assim, a ausência de pensamento
apaixonado na alma não é de modo algum o sinal se guro de que ela
está isenta da paixão correspondente, mas significa quando muito que
não está neste momento em presença de um objeto capaz de lembrar
sua manifestação. "Outra coisa", escreve São Máximo, "é se livrar dos
pensamentos, outra coisa é ser liberto das paixões. Frequentemen­
te, ficamos livres dos pensamentos pela ausência dos objetos pelos
quais temos uma paixão. Mas as paixões permanecem escondidas
na alma; quando reaparecem os objetos, elas se revelam"47• A expe­
riência daqueles que vivem no isolamento não deixa de ilustrar este
fato: no tempo de seu recolhimento eles podem acreditar que estão
libertos das paixões que se manifestam principalmente nas relações
com outrem; mas que eles saiam de sua solidão e elas aparecem de
novo, aliás frequentemente com mais intensidade que antes. "Todas
as paixões que tivermos levado ao deserto sem tê-las corrigido, nós
as sentiremos escondidas em nós, mas não suprimidas", escreve São
João Cassiano48• "Um homem'', prossegue ele, "acha que é paciente e
humilde enquanto não se relaciona com ninguém, mas assim que se
apresentar a ocasião de uma contrariedade ele voltará à sua primeira
natureza. Os defeitos escondidos reaparecem imediatamente e, as-

44. A escada, XXVI, 169.


45. Centúrias, III, 30.
46. Centúrias gnósticas, VI, 52.
47. Centúrias sobre a caridade, III, 78.
48. Instituições cenobíticas, VIII, 18.
1 48 0 INCONSCI ENTE ESPIRITUAL

sim como cavalos sem cabresto depois de um longo repouso, pulam


à vontade fora da estrebaria, com uma violência e uma ferocidade
que causam a perda do cocheiro. De fato, cessando todas as relações
humanas, nossos vícios se desenvolvem ainda em nós se não tiverem
sido purificados antes"49•

Este ensinamento de São João Cassiano evidencia o fato de que


a paixão, enquanto não tiver sido totalmente extirpada, não somente
subsiste na alma, mas nela se desenvolve sem que a pessoa tenha
consciência disso; tomando incremento, ela adquire uma força que
exerce uma pressão e a revelará com violência, assim que um objeto
que lhe seja conveniente lhe der a ocasião de se expressar, todavia
com a condição de que o ser humano esteja bastante desatento para
lhe deixar o caminho livre e não a dominar pela força da graça.
Em suas Conferências, São João Cassiano reafirma a subsistên­
cia50 e o reforço, ambos inconscientes, das paixões não destruídas ou
ao menos não combatidas, e às quais não é dada a ocasião de se ma­
nifestar: "Saibamos que se nós nos retiramos para o deserto ou para
algum lugar secreto, antes de ter curado nossos vícios, impedimos so­
mente seus efeitos, mas a paixão não é de modo nenhum apagada. A
raiz dos pecados permanece escondida em nosso coração enquanto
não a extirpamos; que digo? Ela ganha gradualmente". "[ É pois] o ato
do pecado [que] nos falta, não a má inclinação. Misturemo-nos alguns
dias à vida dos outros seres humanos: imediatamente essas paixões sai­
rão das cavernas de nossos sentidos. Provando que elas não nascem no
momento em que escapam impetuosamente, mas que se revelam, en­
fim, à luz depois de terem permanecido longo tempo escondidas"51.

Resulta do que precede que as reações apaixonadas do ser hu­


mano não são, como pensamos muito frequentemente, produzidas
pelas circunstâncias exteriores. Os acontecimentos (ou em geral os

49. Ibid.
50. Podemos reconhecê-la com alguns indícios. JOÃO CASSIANO apresenta alguns a
título de exemplos (Conferências, XIX 12).
,

5 1 . Conferências, XIX 12.


,
O INCONSCIENTE "DEIFUGO" 1 49

objetos) exteriores apenas dão às paixões escondidas a ocasião de se


revelar. "Cada um", ensina o apóstolo Tiago, "é tentado por sua pró­
pria cobiça" (Tg 1 , 14) . E São João Cassiano observa: "Jamais alguém,
provocado pelo vício de um outro, é constrangido a pecar se não pos­
sui em seu coração a matéria de suas faltas; e não devemos acreditar
que alguém seja seduzido subitamente quando, tendo visto a beleza
de uma mulher, caia no abismo de uma vergonhosa concupiscência,
mas, antes, que esta vista tenha sido ocasião de se produzir na su­
perfície uma doença que incubava secretamente"52• "É uma ilusão, é
um falso raciocínio", nota de seu lado São Doroteu de Gaza, "dizer
para alguém que está perturbado por uma palavra indelicada de um
irmão: 'Se este irmão não tivesse vindo me falar e me perturbar, eu
não teria pecado "' . De fato, este irmão "colocou nele a paixão? Sim­
plesmente ele lhe revelou a paixão que estava nele [ . ]. Assim este
. .

irmão [ ] achava que estava em paz, mas tinha em si uma paixão


. . .

que ignorava. Uma única palavra de seu irmão fez aparecer a podri­
dão escondida em seu coração"53• A propósito do mesmo exemplo,
São João Cassiano conclui de modo semelhante: "Se, vencidos pela
injúria, nós nos inflamamos de cólera, não devemos acreditar que a
ferida da afronta seja causa deste pecado; ela apenas manifesta uma
fraqueza escondida"54•

Enfim, devemos assinalar o caráter profundamente patogênico


das paixões inconscientes. As paixões que são reconhecidas afetam
gravemente a alma, mas o ser humano pode ao menos combatê-las
mais facilmente. As paixões escondidas (que se escondem, que nós
nos escondemos ou que nos escondem), entretanto, fazem ainda
mais mal ao ser humano e tomam a alma muito gravemente doente,
ensinam os Padres. Elas a minam, a atormentam, a destroem pouco a
pouco, de maneira secreta, mas tanto mais eficaz e poderosa quanto
lhes é deixada toda latitude para se desenvolverem e tomarem for­
ça. Os pensamentos escondidos "atormentam o coração", afirma São

52. Instituições cenobíticas, IX, 6.


53. Instruções espirituais, VII, 82.
54. Conferências, XVIII, 13.
1 50 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

João Cassiano55, e em sua segunda Conferência ele evoca as palavras


de Abba Théon sobre "a tirania dos pensamentos secretos [ . . . ] , sua
natureza e a cruel violência que eles exercem enquanto os deixamos
escondidos"56• Um outro Padre ensina no mesmo sentido: "Na me­
dida em que escondemos nossos pensamentos, eles se multiplicam
e tomam força [ . . . ] . E, como um verme na madeira, assim o mau
pensamento corrompe o coração"57•
É evidente, desde este momento, que uma das primeiras funções
da terapêutica posta em prática para curar o ser humano decaído de
suas paixões será fazer aparecê-las bem claramente, tomá-lo plena­
mente consciente delas.

55. Instituições cenobíticas, IV, 9.


56. Conferências, II, 1 1 .
57. Apotegmas, N 592/50.
o
o
O inconsciente espiritual
e a terapêutica
1 52 0 I NCONSCIENTE ESPIRITUAL

1 . O inconsciente espiritual e a patologia

O
s dois inconscientes que distinguimos não são patológicos e
nem patogênicos da mesma maneira. Entretanto, sua coexis­
tência é em si mesma, para o ser humano, uma fonte de dua­
lidades, contradições e conflitos. Cada ser humano experimenta em si
mesmo, de maneira mais ou menos aguda, mais ou menos dolorosa,
mais ou menos inquietante, essa dualidade contraditória de tendên­
cias. A literatura alimenta-se dela de maneira habitual, e sabemos que
ela mora em cada página da obra de Dostoiésvski. Pascal é também,
entre os filósofos e escritores, um dos que melhor perceberam esse
fenômeno, e tem a intuição justa de que sua origem reside na "dupla
natureza" da qual o ser humano é portador, sua natureza decaída e
sua natureza original que aquela deteriorou, mas não destruiu:

"Que quimera é pois o ser humano? Que novidade, que monstro, que
caos, que pessoa de contradição, que prodígio! Juiz de todas as coisas, im­
becil minhoca da terra; depositário do verdadeiro, escória de incerteza e
de erro; glória e rebotalho do universo. [ . . . J Conhece, pois, soberbo, que
paradoxo és a ti mesmo. Humilha-te, razão impotente; cala-te, natureza
imbecil; aprende que o ser humano ultrapassa infinitamente o ser huma­
no, e ouve de teu mestre tua condição verdadeira que ignoras. Escuta
Deus. Porque enfim, se o ser humano nunca tivesse sido corrompido,
ele gozaria em sua inocência da verdade e da felicidade com segurança; e
se o ser humano nunca tivesse sido corrompido não teria nenhuma ideia
nem da verdade, nem da bem-aventurança. Mas como somos infelizes,
e mais ainda se não houvesse grandeza em nossa condição, temos uma
ideia da felicidade e não podemos chegar até ela; sentimos uma imagem
da verdade e possuímos apenas a mentira; incapazes de ignorar absolu­
tamente e de saber certamente, tanto é manifesto que nós estivemos em
um grau de perfeição do qual, infelizmente, decaímos"1.

O inconsciente "teófilo" não é patogênico por si mesmo, isto é,


por seu conteúdo. Ele é patogênico somente enquanto inconsciente,

1. Pensées, ed. Brunschvicg, n. 434.


0 I NCONSCIENTE ESPIRITUAL E A TERAPtUTICA 1 53

enquanto seu conteúdo não é reconhecido e feito o objeto de um


recalque, e enquanto esse não-reconhecimento e esse recalque criam
para os seres humanos que eles afetam um déficit de ser, um vazio
que são imediatamente compensados por atitudes e estados de subs­
tituição propriamente patológicos e patogênicos.
A tendência natural do ser humano para Deus, por meio do mo­
vimento e de todas as faculdades de sua natureza, e a tendência à
realização de si na união com Deus e na deificação por Ele, n'Ele e
para Ele, porque são ignoradas e recalcadas, encontram-se desviadas
e pervertidas em um movimento e uma tendência para o "mundo" e o
eu e causam uma idolificação e um culto dos objetos e pseudovalores
deste mundo assim como do eu, nestes estados patológicos que são
a filáucia e as outras paixões. Dessa patologia espiritual resulta uma
patologia psíquica que apresentaremos em um próximo capítulo.

Quanto ao inconsciente "deífugo", ele é em si mesmo patológico


e patogênico, por seu conteúdo e por seus efeitos.
Em primeiro lugar, existe o fato de que o ser humano decaído é
espontaneamente inconsciente de suas doenças espirituais, e tal in­
consciência constitui o primeiro obstáculo para a cura: evidentemen­
te, é impossível tratar uma doença da qual não temos consciência.
Em segundo lugar, existe o fato de que o caráter inconsciente
dos pensamentos, pulsões, estados, disposições, atitudes e tendências
patológicos mantém e aumenta a força deles. Neste ponto, as análises
dos Padres estão em convergência com as da psicanálise moderna.

2. O inconsciente espiritual e a terapêutica

A terapêutica de doenças espirituais supõe da parte daquele que é


afetado uma tomada de consciência delas. A descrição minuciosa das
paixões feita pelos Padres não tem outra finalidade a não ser ajudar
em tal tomada de consciência. "Se em primeiro lugar não expusermos
as variadas formas de uma doença, se em primeiro lugar não inventa­
riarmos sua origem e suas causas, não poderemos aplicar aos doentes
1 54 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

o tratamento adaptado", diz São João Cassiano2, que observa ainda:


"As doenças nunca poderão ser curadas nem os remédios encontrados
para os aborrecimentos de saúde se, em primeiro lugar, não procurar­
mos em uma investigação minuciosa suas origens e suas causas"3.
Devemos notar que o estudo minucioso das causas e origens das
paixões tem por si mesmo um valor terapêutico. São João Cassiano re­
lata que alguns foram curados de suas doenças espirituais pelo simples
fato de terem escutado os Padres espirituais explicarem as diferentes
causas, formas e manifestações dessas doenças e apresentarem os re­
médios capazes de colocar um fim nelas. Ele escreve: "Os Antigos têm
o costume de expor isto em seus ensinamentos [ . . . ]. Nós reconhece­
ríamos muito frequentemente elementos em nós enquanto eles [nos]
faziam a exposição completa deles [ . . . ], e seríamos curados aprenden­
do, sem nada dizer, os remédios, ao mesmo tempo que as causas, das
paixões que nos minavam"4•
A terapêutica das doenças espirituais começa com a sua des­
crição, pois esta permite ao ser humano situar-se, conhecer e com­
preender os movimentos de sua alma, descobrir seu significado
profundo e já tomar distância do mal que o afeta, não ser mais de­
terminado cegamente por mecanismos que ele ignora, que o per­
turbam e o fazem sofrer. Não são somente as doenças aparentes e
facilmente reconhecidas que os Padres descrevem, mas igualmente
aquelas que, mesmo presentes no coração, permanecem escondi­
das àqueles cujo discernimento espiritual não está afinado, assim
como aquelas que só existem em germe mas podem desenvolver-se
se não tomamos cuidado5.
Essa descrição das doenças espirituais em sua natureza, suas
origens, seus mecanismos profundos e suas manifestações comuns
a todos os seres humanos, evidentemente, deve ser completada por
uma análise referente à forma, ao grau e à conjunção particulares
que elas tomam em cada pessoa. A este respeito, a confissão e a

2. Instituições cenobíticas, VII, 13.


3. Ibid., XII, 4.
4. Ibid., V, 13.
5. Ibid., XI, 17 (2).
0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL E A TERAP�UTICA 1 55

manifestação dos pensamentos, assim como os conselhos dados pelo


pai espiritual, nesta ocasião, desempenham mn papel fundamental
na tomada de consciência.
A tomada de consciência das doenças espirituais permite, se­
cundariamente, a tomada de consciência das fontes das doenças psí­
quicas que delas decorrem ou que lhes estão ligadas. O papel do te­
rapeuta aqui é ajudar o doente a ver como as perturbações psíquicas
enxertam-se em algumas doenças espirituais e como a terapêutica
destas permitiria cuidar daquelas.
O papel do terapeuta é ajudar igualmente o doente a perceber
que as doenças psíquicas e as doenças espirituais às quais estão ligadas
na realidade são fundamentadas em tendências da natureza que foram
pervertidas, desviadas, afastadas de sua finalidade original e normal e
se exercem contra a natureza. Correlativamente, cabe a ele fazer que
o doente tome consciência da orientação original e normal dessas ten­
dências que continuam a marcar sua natureza profunda e caracteriza o
que denominamos "inconsciente teófilo". Portanto, isso significa que,
no processo terapêutico, a conscientização do inconsciente "teófilo"
deve ir a par da conscientização do inconsciente "deífugo".
A terapêutica envolve aqui um processo semelhante ao que São
Paulo inicia em seu discurso aos atenienses: "Cidadãos atenienses!
Vejo que, sob todos os aspectos, sois os mais religiosos dos homens.
Pois, percorrendo a vossa cidade e observando os vossos monumen­
tos sagrados, encontrei até um altar com a inscrição: 'Ao Deus desco­
nhecido'. Ora bem, o que adorais sem conhecer, isto venho eu anun­
ciar-vos" (At 17,22-23) . A vida interior do ser humano e toda a sua
existência são como uma cidade cheia de edifícios construídos por
sua necessidade profunda de adorar a Deus; mas na falta de conhecer
ou de encontrar o verdadeiro Deus ele se voltou para falsos deuses . O
papel do terapeuta é então revelar ao ser humano o Nome de Deus,
ao qual ele tende por sua natureza profunda mas de quem é afastado
por sua natureza decaída.
Isso não causa problema para um pai espiritual que se dirige a
seu filho espiritual, mas é mais problemático quando se trata de um
psicoterapeuta que se dirige a um paciente. Um psicoterapeuta cris-
1 56 0 I NCONSCIENTE ESPIRITUAL

tão não pode se transformar em pregador e deve exercer sua função


no respeito absoluto pela liberdade daquele de quem cuida. Entre­
tanto, ele deve partilhar com seu paciente o que pensa ser a fonte de
suas perturbações e o meio de remediá-las. Indicar a alguém a dire­
ção certa não significa forçá-lo a tomar esse caminho. Por outro lado,
seria inconveniente não indicar a alguém que está perdido a direção
certa quando a conhecemos.

O papel do terapeuta não deve restringir-se a ajudar numa toma­


da de consciência do conteúdo do inconsciente deífugo e do incons­
ciente teófilo, mas deve estender-se a ajudar o doente a dominar e a
orientar tal conteúdo. Como já notamos e como veremos de maneira
mais pormenorizada em um próximo capítulo, do mesmo modo que
a doença consiste fundamentalmente em uma perversão do uso das
diferentes faculdades do ser humano, a cura reside em uma recons­
trução ou uma conversão dessas faculdades que permite encontrar
a sua função natural e normal, isto é, em conformidade com Deus.
Devemos saber que, se o terapeuta pode desempenhar até certo
ponto um papel de revelador e de guia, o êxito dessa conversão está
condicionado sobretudo pela vontade do doente e pelos esforços que
ele manifesta para realizá-la efetivamente no quadro de um modo
de vida ascético (no sentido amplo desse termo) , e correlativamente
pela ajuda da graça, a única que pode permitir ao ser humano ser li­
bertado da dominação e do pecado e de suas consequências e se unir
verdadeiramente a Deus.
o

Duas práticas terapêuticas cristãs:


a confissão e a manifestação dos
pensamentos
1 58 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

m relação à tomada de consciência do inconsciente espiritual em


. suas duas formas e, de maneira mais geral, no quadro da terapêuti­
!11..,.,,. ca de doenças psíquicas relativas a doenças espirituais, duas prá­
ticas - em uso sob uma forma específica na Igreja ortodoxa - de­
sempenham um papel particularmente importante: a confissão (exo­
rrwlogesis) e a manifestação dos pensamentos (exagoreusis ton logis­
rrwn ) , que apresentam com algumas psicoterapias - sobretudo a
psicanálise - algumas analogias, mas também algumas diferenças.

1 A confissão
.

A confissão (exorrwlogesis ) é um sacramento em que aquele que se


considera pecador, em um espírito de arrependimento que manifesta
seu pesar pelas faltas que cometeu e sua vontade de se emendar, faz a
confissão de seus pecados a Deus em presença do padre e recebe de
Deus, a quem o padre invoca o perdão, a absolvição desses pecados.
Ele recebe também do confessor conselhos espirituais apropriados a
seu estado e eventualmente uma epitimia1, cuja finalidade é ajudá­
lo a não mais recair nas mesmas faltas e a encontrar o caminho das
virtudes que havia deixado.

O que impressiona de imediato num exame da concepção e da


prática cristãs do sacramento da confissão é o caráter medicinal que
elas assumem. Não somente os Padres, mas ainda toda a tradição
da Igreja e os textos rituais e litúrgicos evocam em termos médicos
a forma e os efeitos desse sacramento, tão bem quanto a função do
padre que o confere2•
A confissão se revela constituir uma terapêutica eficaz de várias
maneiras e em vários níveis.
Em primeiro lugar, a confissão dos pecados é por si mesma liber­
tadora. Enquanto não é reconhecida e mesmo enquanto não é desven-

1. Exercício penitencial.
2. Ver nosso estudo Thérapeutique des ma/adies spirituelles, 4. ed. , Paris, 2000,
321-324.
DUAS PRATICAS TERAPtUTICAS CRISTÃS 1 59

dada a outrem, a falta se enraíza na alma, desenvolve-se e espalha-se


por contágio, atormentando e envenenando a vida interior, causando
em toda parte importantes devastações. Ela é para o ser humano uma
carga difícil de carregar sozinho, visto que seus efeitos se manifes­
tam frequentemente por perturbações que ele mal pode contornar e
mostra-se impotente em dominar. Ela é principalmente fonte de an­
siedade, até mesmo de angústia, sobretudo por causa do sentimento
de culpabilidade que geralmente a acompanha, mas também porque
suscita e sustenta a atividade dos demônios, que, aproveitando esse
terreno mórbido, semeiam a perturbação na alma por todos os meios.
Ela leva então frequentemente a pessoa a se desvalorizar, a ter uma
visão pessimista de seu ser e de sua existência; gera nela um estado de
abatimento e desânimo, e pode mesmo conduzi-la ao desespero.
Pelo encontro do padre mediante o sacramento, o penitente en­
contra a possibilidade de romper seu isolamento, de sair da solidão
mórbida que oferecia um terreno favorável ao desenvolvimento de
seus males. Falando-lhe do que o perturba, ele abre o abscesso que
o atormentava secretamente. O simples fato de ir até o outro, de ter
a coragem de se abrir a ele com toda a humildade e vencendo toda
vergonha, de se acusar sem piedade diante dele, ultrapassando todo
amor-próprio, já constitui um passo importante para sair do universo
mórbido da falta.
Por outro lado, expressar, formulando-os, os males que sofremos
possui um efeito libertador. A este respeito devemos lembrar as pala­
vras do Salmista: "Confessei a ti o meu pecado, e minha iniquidade não
te encobri; eu disse: 'Vou a Yahweh confessar a minha iniquidade!' E tu
absolveste a minha iniquidade, perdoaste o meu pecado" (SI 31,5) .
Confessando suas doenças espirituais, o penitente as faz sair de
si mesmo, as objetiva e se dessolidariza delas; rompe os laços que o
uniam a elas e o alienavam. Elas deixam de morar em seu mundo
interior e de parasitar sua alma para se tomar estranhas a ele. Por
este fato, a estratégia dos demônios se acha desconcertada: eles não
podem agir mais no segredo; sendo o reino das trevas, do qual eles
são os príncipes, bruscamente iluminado, seu poder se apaga porque
seus caminhos são revelados. Eles se veem expulsos da alma com o
pecado que os alimentava.
1 60 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

O alcance terapêutico da confissão é tanto maior quanto, em sua


forma tradicional - tal como a Igreja ortodoxa soube preservá-la -,
ela não consiste na enumeração seca e imutável de um catálogo de
pecados mais ou menos artificialmente constituído. De uma maneira
direta e viva, espontaneamente, o penitente confessa suas faltas e
suas deficiências, relatando suas circunstâncias ao confessor, a fim de
que este possa compreendê-lo melhor e lhe dar em seguida os con­
selhos mais adaptados à sua situação. Mas ele partilha igualmente ao
padre tudo o que o preocupa, expõe a ele, de maneira livre e natural,
todos os problemas, todas as dificuldades particulares que ele pode
encontrar na existência cotidiana, assinala-lhe o que o inquieta, o an­
gustia, o aborrece, revela-lhe suas preocupações, seus sofrimentos,
tenta expor-lhe do melhor modo possível seus estados de alma, con­
fia-lhe suas fraquezas, abre-lhe sua personalidade, manifesta diante
dele sua vida com todas as suas faltas e imperfeições.
Tal abertura é facilitada pela segurança que o penitente tem de
se beneficiar da misericórdia divina - o que lhe é lembrado pelo pa­
dre nas orações preliminares -, mas também pela atitude de escuta
que o confessor deve manifestar visivelmente e pela compaixão de que
deve dar provas. De fato, o confessor tem por dever mostrar-se muito
atento a tudo o que lhe é dito e, ao mesmo tempo, não fazer nenhum
julgamento daquele que se abre a ele. Deve deixar-lhe uma liberdade
absoluta quanto à maneira como ele se expressa e dar mostras a seu
respeito de uma grande mansidão e de uma grande paciência. Além
do mais, os santos confessores dão provas, na audição dos males que
lhes são revelados, de uma profunda compaixão, partilham realmente
as dificuldades e os sofrimentos daquele que eles ouvem e manifestam
invisivelmente o amor espiritual que experimentam por ele, como o
pai diante do filho pródigo, à imagem de Cristo ao lado do bom la­
drão. Esse amor, longe de ser opressor e invasor, possui a mansidão e a
discrição da graça consoladora e maternal do Paráclito e cobre de um
bálsamo reparador o coração ferido e partido pelo pecado.
Essa atitude do padre, feita de escuta paciente e humilde, que
não julga mas compreende, que é absoluta disponibilidade para o
outro imediatamente acolhido como irmão sofredor, que é feita tam­
bém de uma compaixão verdadeira, permite estabelecer na caridade
DUAS PRATICAS TERAP�UTICAS CRISTÃS 1 61

a relação mais profunda e mais estreita possível, realiza de imedia­


to o clima de confiança indispensável à eficácia da terapêutica posta
em prática e torna possível uma comunicação de grande qualidade,
que permite ao penitente não ter nenhum temor nem reticência para
abrir sua alma tão completamente quanto possível e receber, nas me­
lhores condições, os cuidados que convenham a seu estado.
Se o papel do confessor, em um primeiro tempo, é essencialmen­
te escutar, pode ser também, na ocasião, interrogar, ajudar a tornar
mais precisos alguns pontos ou esclarecer alguns pormenores, se isso
lhe parece necessário, para compreender melhor o penitente com o
intuito de cuidar mais dele. Em todo caso, o padre deve fazê-lo com
tato e discrição, em um espírito de caridade, atitudes pelas quais se
manifestará que sua intenção é puramente trazer ajuda àquele que
veio até ele. Deve evitar toda entrada em sua alma por efração, toda
irrupção em sua intimidade, toda vã curiosidade, respeitando de ma­
neira absoluta sua liberdade. Tal intervenção do padre pode parecer
necessária quando lhe parece que o penitente lhe esconde alguma
coisa, relata apenas de modo incompleto alguma falta ou estado pa­
tológico, mostra-se reticente ou hesitante em tal lugar. Aliás, a oração
que precede a confissão convida o penitente à não-omissão: "Não te­
nha vergonha, não tema e não me esconda nada, mas sem reticência
diga tudo o que cometeu para receber o perdão de Nosso Senhor
Jesus Cristo". No entanto, alguns pecados podem ter ficado incons­
cientes. Então, o confessor tem por tarefa perceber as atitudes apai­
xonadas ou os estados de alma que o penitente não quer ou não pode
ver em si mesmo e, em consequência, não confessa. De fato, algumas
paixões - o orgulho e a vanglória (kenodoxia) sobretudo -, do mes­
mo modo que a ação dos demônios, podem obnubilar a consciência.
Um confessor qualificado pode então conhecer o estado inconfessado
do penitente, indiretamente, com a observação de algumas de suas
palavras, de certas entonações de sua voz, de alguns de seus silêncios,
de algumas hesitações, mas também de algumas de suas atitudes ou
gestos, e referindo-se igualmente ao conhecimento que ele tem do
passado, da história, da personalidade da pessoa. Ele pode também
ter um conhecimento direto, lendo no coração do penitente, se rece­
beu de Deus, como é o caso de alguns santos confessores, o carisma
1 62 0 I NCONSCIENTE ESPIRITUAL

da cardiognose. Em todos os casos, o discernimento provado do con­


fessor, quaisquer que sejam seu grau e sua finura, aparece como uma
graça divina ligada a seu ministério e mais ou menos desenvolvida
segundo seu próprio nível de desenvolvimento espiritual. O confessor
não partilha sempre diretamente com o penitente esse conhecimento
que tem dele por esses caminhos, sobretudo nos casos em que assim
correria o risco de feri-lo. E é então, antes, no momento em que ele
lhe dará conselhos que poderá fazer alusão a isso ou ao menos le­
var isso em conta. É assim que o penitente poderá, para sua grande
surpresa, receber recomendações sem relação com o que disse ao se
confessar e sem ligação com o estado que ele acreditava ser o seu.
É sobretudo nesta etapa da confissão, em que o padre prodiga­
liza seus conselhos espirituais àquele que vem confessar suas faltas,
que a tradição vê no confessor um médico e em suas palavras um
remédio. De fato, trata-se então para o confessor de encarar e expor
a terapêutica a ser posta em prática para chegar ao fim das doenças
que lhe foram reveladas ou que ele mesmo percebeu.
Ele não tem por função dar um ensinamento geral, mas deter­
minar em primeiro lugar o que mais convém à pessoa que está a seu
lado, levando em conta sua personalidade própria, seu gênero de vida
e de atividade, suas possibilidades, suas dificuldades habituais etc. e
também o tipo de patologia que ela apresenta. É desejável a este res­
peito que o confessor conheça bem o penitente e possa seguir a evo­
lução de seu estado interior, a fim de poder corretamente julgar tanto
de sua situação particular como da evolução positiva ou negativa de
sua doença. Por esta razão, é aconselhável aos fiéis confessarem-se
sempre com o mesmo padre.
Entre o confessor e o penitente há uma relação pessoal que se
instaura não somente pelo fato de que não é anônima, pelas razões
que acabamos de apresentar, mas igualmente porque nesta etapa da
confissão um diálogo se estabelece. O penitente pode reagir ao que lhe
diz o padre, interrogá-lo, discutir para aprofundar alguns pontos, na
perspectiva de uma maior compreensão da situação e de uma melhor
estratégia terapêutica. Neste diálogo que se revela tanto mais profundo
e eficaz quanto mais se situa no mesmo clima de confiança, de simpli-
DUAS PRATICAS TERAPtUTICAS CRISTÃS 1 63

cidade e de caridade que aquele que presidia a confissão dos pecados,


o padre não aparece como um mestre que dá um ensinamento dog­
mático e abstrato, mas como um pai que, com o zelo, a sabedoria e
o amor que lhe vêm do Espírito, anima, exorta, consola, adverte com
severidade ou com toda doçura. Por seus propósitos - que a oração
acompanha e que por esta razão, e em razão também dos carismas
ligados à sua função pelo sacramento que a instituiu, possuem um va­
lor não especulativo, mas operativo -, à imagem de São João Batista,
ele prepara na alma do penitente a volta do Senhor, endireitando suas
veredas, aterrando toda ravina, rebaixando montanhas e colinas, retifi­
cando tudo o que o pecado tomou tortuoso (cf. Lc 3,4-5).
Durante a confissão, o penitente deve ser animado pelo arre­
pendimento. Essa atitude - feita ao mesmo tempo do desgosto de
antes ter se afastado de Deus e de uma firme vontade de se reformar
no futuro - o toma especialmente receptivo aos conselhos prodi­
galizados pelo padre com o intuito de sua cura. O prestígio que se
liga à função do confessor e, eventualmente, sua santidade pessoal
contribuem igualmente para tal receptividade.
As palavras pronunciadas pelo padre não são a partir de então
palavras ordinárias, tanto mais porque, além disso, são valorizadas
pelo fato de serem proferidas no quadro do tempo e do espaço ecle­
siais e porque o padre fala não em seu nome próprio, mas em nome
da Igreja, e revela a palavra e a graça terapêuticas de Deus sob a
inspiração do Espírito, o que confere a esses propósitos uma força e
uma eficácia particulares, sobretudo se o penitente se abre totalmen­
te a eles e manifesta uma firme vontade de se curar.
Diante do confessor, o penitente não está mais sozinho, perdi­
do, perturbado pelos efeitos de seus pecados: os conselhos do padre
lhe dão novamente as normas verídicas e seguras que lhe permitirão
ressituar-se e saber, sem medo de se enganar, o que deve fazer para
reencontrar e conservar a saúde que havia perdido. Esses conselhos
lhe permitem essencialmente encontrar um julgamento reto e uma
vida reta, conforme à vontade de Deus, lembram-lhe a finalidade
espiritual para a qual ele deve tender, a norma da perfeição à qual
todo cristão é chamado a se conformar, mas também lhe indicam os
caminhos que o ajudarão a chegar lá. Esses conselhos, essencialmente
1 64 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

práticos, lhe dirão, por exemplo, como lutar contra tal tendência mór­
bida que possui, como enfrentar tal impulso, como lutar contra tal
paixão, como chegar a praticar melhor tal virtude, como contornar
tal dificuldade que ele encontra regularmente em seu caminho ou
que é suscetível de chegar sob esta ou aquela circunstância.
A epitimia, exercício penitencial eventualmente dado pelo con­
fessor, tem o mesmo sentido terapêutico que seus conselhos. Paul
Evdokimov escreve a este respeito: ela "não é absolutamente um cas­
tigo [mas] um remédio, e o pai espiritual busca a relação orgânica en­
tre o doente e o meio terapêutico. A finalidade é colocar o penitente
nas condições em que ele não é mais solicitado pelo pecado"3.
No momento da absolvição, na oração do padre, são perdoados
por Cristo os pecados "voluntários e involuntários, conscientes e in­
conscientes, os do dia e da noite, os cometidos em espírito e em pen­
samento".
O momento da absolvição é necessário para uma cura verdadei­
ra e profunda: só a confissão dos pecados alivia certamente o doente,
mas o pecado, ainda que seja assim de alguma maneira exteriorizado
e objetivado, conserva ainda um certo poder, e é só a absolvição que,
destruindo-o pelo perdão divino, o coloca totalmente fora do estado
de prejudicar. Não basta dizer ao médico que estamos doentes e de
que males sofremos para sermos, só por este fato, curados de nossa
doença. E as palavras animadoras do médico e seus conselhos tam­
bém não bastam, mesmo se constituem um elemento importante da
terapêutica. Somente quando o mal em suas próprias raízes é destruí­
do pelos medicamentos a cura se realiza. A absolvição garante ao ser
humano que suas doenças passadas não subsistem, dá-lhe a garantia
do perdão divino para todas as suas faltas. O penitente conhece então
uma libertação interior, encontra a paz e a alegria espirituais.
O sacramento da penitência ajuda o ser humano liberto dos en­
traves do pecado a não ser mais determinado pelo mal passado e a
retomar a posse de si mesmo. Ele coloca à sua disposição todas as
forças que lhe tinham sido dadas por ocasião do batismo e da crisma,

3. L'Orthodoxíe, Neuchâtel, 1965, 291 .


DUAS PRATICAS TERAPtUTICAS CRISTÃS 1 65

renova-o em todo o seu ser, ajuda-o a ser de novo, em Deus, mestre


de seu destino e a retomar, como novidade de vida, o caminho que
o direciona para a plena saúde em Cristo e para a salvação. O sacra­
mento de penitência é, como o batismo mas em um outro grau, um
ritual de renovação, que dá a morte aos ressurgimentos do "velho ho­
mem" e faz de suas atitudes e de seus comportamentos errôneos e de
seus efeitos sobre a alma um passado ultrapassado, para que reviva,
plenamente, o homem novo do batismo.
Pela absolvição, o penitente encontra-se reconciliado e reunido
à Igreja de Cristo. O pecado o tinha separado do corpo de Cristo, da
graça, da comunhão dos santos, da comunidade eclesial. O sacramen­
to abole essas separações, essas rupturas patológicas da relação com
Deus e com os irmãos, e retira o penitente de seu isolamento mortal.
Então, ele pode encontrar a plena comunhão com o sacramento do
altar e com o "sacramento do irmão" e retomar o lugar que lhe con­
vém entre os filhos de Deus. Reencontrando a fonte da graça da qual
ele tinha se desviado, pode prosseguir no Espírito seu crescimento
espiritual, até a estatura de homem adulto em Cristo, arquétipo de
sua natureza, modelo e princípio de sua saúde e de sua santidade.

2. A manifestação dos pensamentos

Do ponto de vista que nos cabe, da terapêutica das doenças psíqui­


cas ligadas às doenças espirituais, a confissão tem várias vantagens.
Por um lado, pela absolvição dos pecados, ajuda a tratar de maneira
radical o sentimento de culpabilidade (fundamentado ou não) e a
angústia que dele decorre, ligados a um certo número de doenças
psíquicas: os pecados são destruídos e o ser humano adquire a cer­
teza de seu perdão por Deus. Por outro lado, o ser humano recebe
por meio da confissão, porque ela é um sacramento, uma graça que o
ajuda a combater a volta desses mesmos pecados.
Entretanto, desse mesmo ponto de vista, essa prática apresenta
limites. Primeiramente, por se tratar de um sacramento, não podemos
instrumentalizá-lo e usá-lo como um simples meio psicoterápico. Em
segundo lugar, o caráter relativamente curto e espaçado das confissões
1 66 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

geralmente não permite um acompanhamento muito exato do esta­


do e da evolução do doente. Em terceiro lugar, nem todas as pertur­
bações psíquicas são pecados ou manifestações de pecados pessoais,
portanto não obrigam, necessariamente, a uma confissão, se bem que
algumas delas obriguem a uma terapêutica espiritual, considerando
sua conexão com doenças espirituais.

A manifestação dos pensamentos (exagoreusis ton logismon) é


portanto chamada a desempenhar, ao lado da confissão, um papel
complementar.
Essa prática remonta aos primeiros séculos do cristianismo4• Ela
está sempre em vigor na Igreja ortodoxa, ainda que seu uso limite-se
frequentemente aos meios monásticos e aos leigos que levam uma
vida espiritual mais profunda.
A manifestação dos pensamentos presta-se a ser reaproximada
da confissão, mas no entanto distingue-se dela notavelmente.
Primeiramente, enquanto a confissão é um sacramento, a mani­
festação dos pensamentos não o é. Por isso, ela não se dirige necessa­
riamente a um padre, mas a um pai espiritual que pode ser um padre,
mas também um simples monge, cujas qualificações espirituais, e so­
mente elas, autorizam a função. E se muitas vezes é ao mesmo ho­
mem que temos como pai espiritual e que é padre que manifestamos
nossos pensamentos e que confessamos, por vezes é a duas pessoas
diferentes que recorremos para estas duas práticas bem distintas5.
Em segundo lugar, enquanto a confissão consiste em confessar os
pecados a Deus em presença do padre - o qual, como diz o formulá­
rio ortodoxo da confissão, é apenas uma testemunha - e em receber a
absolvição, a manifestação dos pensamentos consiste em comunicar
os pensamentos, que não são necessariamente pecados, ao próprio

4. O melhor estudo sobre as origens e a natureza desta prática tradicional é o do


padre 1. HAUSHERR, Direction spirituelle en Orient autrefois, Roma, 1955.
5. Em princípio seria preciso distinguir o confessor e o padre espiritual. De fato,
os dois são muitas vezes confundidos. Na Grécia, a função de confessor é atribuída pelo
bispo somente a alguns padres, que trazem depois disso o nome de pneumatikoi (pais es­
pirituais) . Por outro lado, a maior parte dos fiéis não têm outro pai espiritual além de seu
confessor, que na ocasião das confissões lhes dá conselhos para a sua vida espiritual.
DUAS PRATICAS TERAP�UTICAS CRISTÃS 1 67

pai espiritual, em vista de lhe dar a conhecer o estado interior, com a


finalidade de receber conselhos apropriados para progredir no cami­
nho da cura espiritual e da salvação.

Os pensamentos que se trata de manifestar ao pai espiritual são


pensamentos atuais. Não quaisquer pensamentos, mas os que se re­
petem ou que têm na alma uma certa subsistência6• De fato, são tais
pensamentos que poderão dar ao pai espiritual indicações significa­
tivas sobre o estado, as tensões, os impulsos, as disposições e as ten­
dências interiores de seu filho espiritual, as sugestões às quais ele é
submisso, seja pelo fato de sua própria cobiça7, seja pelo fato da ação
direta dos demônios. Os pensamentos dessa natureza são igualmente
reveladores dos pontos fracos da alma, de suas zonas frágeis que os
demônios tomam com muito gosto como pontos de ataque, de suas
regiões convalescentes em que existe um risco de recaída, ou mais
comumente de suas partes ainda doentes.
Entretanto, em um sentido mais amplo, a exagoreusis consiste
em comunicar todo pensamento perturbador, todo estado que não é
comum, toda dúvida, tudo o que pode inquietar ou preocupar. Por
ela também podemos dar a conhecer alguns pormenores de nosso
modo de vida para nos dar a certeza de seu valor, levando em conta
sua incidência na vida espiritual.

As modalidades práticas da manifestação dos pensamentos são


variadas. Alguns recomendam praticá-la ao menos a cada dia, outros
a recorrer a ela a cada hora8• Ela pode acontecer também mais fre­
quentemente, e mesmo um número indefinido de vezes no decorrer
de um mesmo dia9• A frequência pode também ser menor e de fato
não deve depender a não ser dos próprios pensamentos e das possibi­
lidades materiais de entrar em contato com o pai espiritual. Na falta
de poder contatar o pai espiritual imediatamente, é recomendado

6. Cf. JoÃo DE GAZA, Cartas, 165; BARSANUFO, Cartas, 215.


7. Cf. Tiago 1 , 14; BARSANUFO, Cartas, 256. Apotegmas, série alfabética, Sisoes, 45.
8. Cf. SIMEÃO, o Novo TEÓLOGO, Catequeses, XXVI, 299-303.
9. Cf. Vida dos Padres, V, 5, 13, PL 73, 876C-D.
1 68 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

anotar por escrito os pensamentos, à medida que eles se manifes­


tem10, determinando o momento e as circunstâncias de sua aparição,
a fim de poder relatá-los em seguida com toda a precisão requerida.
Essa prática supõe evidentemente uma atenção e uma vigilância
de todos os instantes a respeito dos estados e dos movimentos da alma.
O que importa antes de tudo é aplicar a regra da não-omissão:
nada esconder, esforçar-se para nada esquecer, enganar, deformar ou
fantasiar, mas falar com toda a liberdade, sem nenhuma vergonha,
sem nenhum temor11• De fato, quando se trata de manifestar os pen­
samentos, devemos vencer numerosas resistências interiores devidas
sobretudo ao orgulho12, à vaidade13 e, fundamentando-se sobre estas
duas paixões, ao medo de ser julgado ou censurado14• É necessário
vencer igualmente as sugestões dos demônios que se obstinam a im­
pedir esta prática15, que eles temem particularmente, pois ela tem
por efeito frustrar suas maquinações16• Geralmente, é tentando fazer
acreditar em sua inutilidade que eles se opõem a isso17•

Convém particularmente sublinhar o valor terapêutico e profilá­


tico dessa prática, que no quadro da medicina espiritual assume uma
importância de primeiro plano.
A manifestação dos pensamentos leva a receber do pai espiritual
indicações sobre o significado e o valor espirituais do que lhe é reve­
lado, assim como conselhos sobre a atitude que convém adotar. Im­
passível e dotado de discernimento, o pai espiritual autêntico é capaz
de emitir sobre o que lhe foi comunicado um julgamento objetivo;
iluminado pelo Espírito, é da mesma forma capaz de dar o conselho

10. Cf. JoÃo CLÍMACO, A escada, IV, 43.


1 1 . Cf. JOÃO CASSIANO, Conferências, II, 1 1 ; Instituições cenobíticas, IV, 9; ABBA
ISAÍAS, Asceticon, IV, 3; DOROTEU DE GAZA, Instruções espirituais, V, 61; JOÃO DE GAZA,
Cartas, 375; SIMEÃO, O N o vo TEÓLOGO, Hinos, IV, 27-28.
12. Cf. Apotegmas, 592150.
13. Cf. AMMONAS, Instruções, IV, 24.
14. Cf. JOÃO CASSIANO, Conferências, II, 12; 13.
15. Cf. Apotegmas, 509-510. JoÃo CLÍMACO, A escada, IV, 75.
16. Cf. DOROTEU DE GAZA, Instruções espirituais, V, 64; 65; 66.
17. Cf. Apotegmas, 509-510.
DUAS PRATICAS TERAP�UTICAS CRISTÃS 1 69

que convém. Por exemplo, pode dizer qual é a natureza de tal pensa­
mento, o que ele esconde, que continuação ele é suscetível de ter, se
é indiferente ou mau, e como então deve ser enfrentado e como lutar
contra ele. Tal ideia, tal inspiração que leva a empreender tal ação,
vêm elas dos demônios ou podemos ver nelas uma inspiração boa
e então devemos lhes dar uma continuação? Tal representação que
aparece várias vezes, tal desejo nascido no coração em tal circuns­
tância, tal movimento da alma são inocentes, conformes à vontade
divina, indiferentes, maus?18 Consultando o pai espiritual podemos
obter uma resposta certa a estas questões, que ajudará a escapar aos
inconvenientes da dúvida, aos erros e às ilusões do próprio julgamen­
to, às ciladas da vontade própria, assim como às astúcias e às ciladas
dos demônios e aos graves desvarios que disso podem resultar19•
De uma maneira geral, a manifestação dos pensamentos ajuda a
evitar os pecados gerados pelos pensamentos escondidos20•
Ajuda também a impedir o reforço das paixões existentes ou a
constituição de novas paixões que se produzem quando damos livre
curso à sua repetição.
Enfim, ajuda a evitar que subsistam na alma pensamentos que
a atormentem e a destruam, e tenham em todo caso, sobre a vida
interior, múltiplos efeitos patológicos precisamente porque ficariam
escondidos. Os pensamentos não-manifestos de fato continuam a vi­
ver na alma, muitas vezes secreta e imperceptivelmente, ancoram-se
nela, ali se desenvolvem e a envenenam pouco a pouco. Acabam por
colocá-la em um estado de escravidão, do qual será tanto mais difícil
para a pessoa de sair quanto mais tempo tiver ficado sem reagir e
quanto mais tiver tardado a manifestá-los21• Um antigo assim resume
tudo isto: "Se você é perseguido por pensamentos impuros, não os

18. Encontraremos numerosos exemplos de manifestação dos pensamentos e de in­


terrogação do pai espiritual na correspondência de Santo Barsanufo e de São João de Gaza.
19. Cf. Apotegmas, série alfabética, Antoine 37; ibid., Poemen 103; Primeira vida
de Pacômio, 96; JOÃO CASSIANO, Conferências, II, 10; DOROTEU DE GAZA, Instruções
espirituais, V, 62; 63; 64; TEODORO EsTUDITA, Grandes catequeses, ed. Papadopoulos­
Kerameus, 533; ANTÔNIO ESTUDITA, apud 1. HAUSHERR, Direction spirituelle en Orient
autrefois, 159.
20. Ver TEODORO ESTUDITA, Pequenas catequeses, ed. Auvray, 464.
21. Cf. JOÃO CASSIANO, Conferências, II, 1 1 .
1 70 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

esconda, mas diga-o imediatamente ao seu pai espiritual [ . . . ] . Porque


na medida em que escondemos nossos pensamentos eles se multipli­
cam e adquirem força. [ . . ] E, como um verme na madeira, assim o
.

mau pensamento corrompe o coração"22•


Os Padres insistem no fato de que aquele que não manifesta
seus pensamentos fica doente, ou cultiva as doenças que já existiam
nele23, ou transforma doenças benignas ou agudas para o estado de
doenças graves ou crônicas24•
Portanto, a manifestação dos pensamentos é o único meio pelo
qual o ser humano pode se proteger contra as doenças que o es­
preitam, mas também ser curado das doenças que ele já contraiu.
A advertência dos Padres a este respeito é unânime. "Aquele que se
abstém de falar de seus pensamentos permanece sem remédio", nota
São João de Gaza25• São João Cassiano diz a mesma coisa: quando
"recalcamos nossos maus pensamentos e nos envergonhamos de dar
a conhecê-los aos Anciãos [ . . . ] nós nos colocamos fora do estado de
obter o remédio para eles"26• Inversamente, "aquele que não teme re­
velar seus pensamentos diante de seus Pais os expulsa para longe de
si", ensina Santo Ammonas27• E São João Clímaco observa: "Nossas
chagas sendo expostas [ . . . ] não se agravarão, mas ao contrário serão
curadas"28• De fato, diz um outro Padre, "do mesmo modo que uma
serpente que sai de seu covil foge correndo imediatamente, assim
o mau pensamento, logo que é manifestado, se dissipa. [ . . . ] Quem
manifesta seus pensamentos é rapidamente curado"29•

22. Apotegmas, 5921'50. Cf. TEODORO ESTUDITA, Grandes catequeses, ed. Papado-
poulos-Kerameus, 623.
23. Ver por exemplo, JOÃO CLÍMACO , A escada, IV, 51.
24. Cf. Primeira vida de Pacômio, 96.
25. Cartas, 320.
26. Conferências, II, 12.
27. Instruções espirituais, 1Y, 24.
28. A escada, 1Y, 12.
29. Apotegmas, 592!'50. Ver também o Typikon do mosteiro de Santa Maria Evergé­
tis em Constantinopla, que proclama: "Agora é o tempo da manifestação dos pensamentos
e da medicação das doenças de sua alma. [ . . ] Declare claramente [suas doenças] a fim [ . . . ]
.

de ficar com a saúde perfeita da alma (Typikon de l'Evergétis, cap. 7, apud 1. HAUSHERR,
Direction spirituelle en Orient autrefois, 226).
DUAS PRATICAS TERAP�UTICAS CRISTÃS 1 71

De um lado, a cura é devida ao fato da própria manifestação.


Aquele que acaba de manifestar seus pensamentos sente-se liberto
da opressão, da escuridão que eles provocavam nele, acha-se livre da
inquietude, do temor, das tribulações interiores, até mesmo da an­
gústia e do desespero que a eles estavam ligados, experimenta um
sentimento de alívio e paz, sente-se leve e alegre30• Os Padres insistem
especialmente no estado de despreocupação espiritual (amerimnia)
que ocasiona a prática habitual da exagoreusis31•
De algum modo, estes efeitos imediatos da manifestação dos
pensamentos não devem fazer esquecer que uma grande parte de
sua eficácia terapêutica é devida aos conselhos do pai espiritual sus­
citados por ela. Graças às indicações que lhe são dadas por seu filho
espiritual, o pai está na posição de conhecer exatamente o estado
interior deste, de dar um diagnóstico preciso e de determinar o tra­
tamento conveniente. Sem isso, o ser humano não teria nenhuma
chance de se curar32•
Em particular, graças a uma manifestação frequente e seguida
dos pensamentos é que o pai espiritual poderá realizar o tratamento,
muitas vezes longo, que chegará à cura de todas as doenças da alma,
porque então conhecerá precisa e globalmente o estado, as tendências
e a evolução do doente33•
Assim, vai-se para o pai espiritual, a quem os pensamentos serão
manifestados, como para um médico34•
No quadro da exagoreusis, o pai espiritual exerce sua função de
terapeuta oferecendo uma escuta atenta e benevolente, consolando
e exortando aquele que a ele se confiou, tomando sobre si as dificul-

30. Ver ANTÔNIO ESTUDITA, apud 1. HAUSHERR, Direction spirituelle en Orient


autrefois, 159.
31. Ver DOROTEU DE GAZA, Instruções espirituais, I, 25; V, 66; 68.
32. Cf. ANTÔNIO ESTUDITA, apud 1 . HAUSHERR, Direction spirituelle en Orient
autrefois, 159.
33. Cf. JOÃO CASSIANO, Instituições cenobíticas, VI, 3.
34. Ver por exemplo Apophtegmes, 509-510; JOÃO CASSIANO, Conferências, II, 13;
BASÍLIO DE CESARÉIA, Grandes regras, 26; JOÃO CLÍMACO, A escada, IV, 68; BARSANUFO
DE GAZA, Cartas, 215; Typikon dJJ monastere du Prodrome, cap. 13, Byzantion, 12 (1937)
50; Typike Diataxis do mosteiro da santíssima Mãe de Deus de Machaera, apud I. HAU­
SHERR, Direction spirituelle en Orient autrefois, 219.
1 72 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

dades que seu filho espiritual acaba de lhe revelar e também rezando
por ele. Este papel de intercessor do pai espiritual, no quadro da
manifestação dos pensamentos, muitas vezes é sublinhado pelos Pa­
dres, que atribuem então a eficácia terapêutica dessa prática a uma
intervenção da graça divina em resposta às suas orações35•
No entanto, isso supõe que aquele que manifesta seus pen­
samentos tenha para com o pai espiritual, e através dele para com
Deus, as disposições requeridas; que ele o faça sobretudo com fé e
compunção, e de todo o seu coração36•
Para que a manifestação dos pensamentos constitua uma tera­
pêutica eficaz é indispensável que aquele que consulta tenha uma
total confiança naquele a quem se dirige37• Portanto, deve no início
escolhê-lo com muito cuidado, mas depois disso é indispensável que
aplique escrupulosamente os tratamentos que ele lhe propuser38. É
precisamente a confiança que, além de favorecer a confissão dos pen­
samentos, dando a certeza de que não será julgado nem condenado
por aquele que escuta, permite aplicar o tratamento que ele pre­
coniza, sem hesitação e sem manifestar dúvida quanto ao seu valor,
quaisquer que sejam suas aparências.
É importante também que a manifestação dos pensamentos seja
sempre feita ao mesmo pai espiritual e que se permaneça fiel a ele39•
Os Padres alertam contra todo desejo de mudança, porque esse dese­
jo dá testemunho de uma reticência nociva, corresponde quase sem­
pre a uma sugestão demoníaca40, e traz o risco de conduzir ao agrava­
mento dos males41• Manifestar seus pensamentos sempre ao mesmo
pai ajuda a garantir a continuidade e o acompanhamento requerido
pelo tratamento. Dessa maneira, o pai espiritual pode conhecer bem
aquele que lhe abre o coração, saber quais são seus pontos fortes e

35. Ver por exemplo Apotegmas, n. 509-510; BARSANUFO, Cartas, 215.


36. Cf. Apotegmas, n. 509-510.
37. Apotegmas, série alfabética, Poemen 80.
38. Ver o apotegma relatado em P. EVERGÉTINOS, Synagogé, Constantinopla, 1861,
68, col. 1 .
39. Cf. SIMEÃO ESTUDITA, apud 1 . HAUSHERR, lntroduction, i n Vie de Syméon le
Nouveau Théologien, XLIX-L.
40. lbid., L.
41. Ibid.
DUAS PRATICAS TERAP�UTICAS CRISTÃS 1 73

seus pontos fracos, suas dificuldades próprias, suas tendências pro­


fundas, seu tipo de evolução etc. e assim fazer um diagnóstico e de­
terminar uma terapêutica fundamentada no conhecimento global da
personalidade de seu filho espiritual.
A manifestação dos pensamentos não é um fim em si. Sua eficá­
cia terapêutica não repousa somente, repetimos, no procedimento
considerado em si mesmo, e não é preciso esperar apenas efeitos
imediatos. A manifestação dos pensamentos não poderia por si só
curar o ser humano. Só manifestados simplesmente, os pensamentos
não perderiam todo o seu poder patogênico. Os pensamentos que
surgem várias vezes sempre podem se apresentar de novo. Por isso,
o que importa mais frequentemente é o destino deles. Manifestar os
próprios pensamentos ajuda sobretudo a interrogar o pai espiritual
(os textos ascéticos fazem aparecer com frequência a equivalência
destas duas expressões) para conhecer sua natureza exata e sobretu­
do para obter conselhos sobre a maneira de combatê-los. Feito isto,
resta assumir esse combate; mas com a iluminação e a ajuda do pai
espiritual a quem se abriu completamente a alma o combate é mais
fácil e seus efeitos são mais seguros.

3 . Analogias e diferenças em relação à psicanálise

a. Ana logias

Aqueles que são familiarizados com a psicanálise - temos sobre­


tudo em vista aqui a psicanálise freudiana e suas formas derivadas -
podem perceber um certo número de elementos comuns entre a psi­
canálise, de um lado, e a confissão e a manifestação dos pensamentos,
por outro.
São bem conhecidos dos historiadores da psicanálise que ela se
desenvolveu primeiramente nos países onde dominava o protestan­
tismo, isto é, onde a confissão não existia. É uma indicação de que a
confissão preenchia, em certa medida, a função da psicanálise e de
que, inversamente, a psicanálise ocupou por um lado um lugar deixa­
do vazio pela ausência de confissão.
1 74 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

O princípio fundamental de todas as psicoterapias, inclusive da


psicanálise, é que o simples fato de que o doente possa expressar seus
males em presença de alguém que o escute atentamente ajuda a uma
melhora de seu estado. Ora, é evidente que a confissão e a manifes­
tação dos pensamentos desempenham este papel.
Nos dois domínios, reconhecemos o caráter nefasto do isola­
mento, da volta sobre si mesmo, e o caráter benevolente de um rela­
cionamento regular no qual, com toda a confiança, aquele que sofre
pode falar de seus males.
Nos dois domínios, as condições da confiança são preenchidas,
pois o psicoterapeuta e o pai espiritual fazem ambos questão, deon­
tologicamente, de não desvendar para outras pessoas o que lhes foi
dito (segredo médico; segredo da confissão).
Primeiramente a escuta atenta, em seguida o diálogo fazem parte
das condições de exercício das duas funções (ainda que o diálogo esteja
mais ou menos presente de acordo com os tipos de psicoterapia) .
A ausência de julgamento da parte do terapeuta é requerida incon­
dicionalmente e facilita ao doente a confissão de fatos que lhe parecem
moral ou espiritualmente condenáveis, vergonhosos ou repreensíveis.
Nos dois domínios, ainda que não concebamos o inconsciente
da mesma maneira, reconhecemos o caráter patogênico dos pensa­
mentos "escondidos" ou "inconscientes" quando eles estão ligados a
situações difíceis ou traumatizantes ou acompanham-se de sentimen­
tos repreensíveis e de um sentimento de culpabilidade (independen­
temente da questão de saber se ele é ou não justificado) .
D e u m lado e de outro, é oferecida a possibilidade de s e abrir,
com pormenores e livremente, falando de todas as preocupações, in­
quietações, obsessões, dificuldades, dos conflitos internos e externos,
sofrimentos etc. E é feita a recomendação para nada omitir e para
nada esconder.
Nos dois domínios, apesar de uma concepção diferente do in­
consciente, reconhecemos o caráter libertador da tomada de cons­
ciência e da "confissão" dos pensamentos escondidos ou inconscien­
tes, desde que se trate de pensamentos patogênicos, e a melhoria do
estado interior que resulta do simples fato de ter podido formular em
presença de outrem o que era sentido.
DUAS PRATICAS TERAP�UTICAS CRISTÃS 1 75

b. Diferenças

Entretanto, ao lado destas analogias, existem diferenças impor­


tantes entre a confissão e a manifestação dos pensamentos, de um lado,
e a psicanálise e as outras formas de psicoterapia, de outro. Estas dife­
renças têm por objeto ao mesmo tempo o conteúdo e a forma.

No que se refere ao conteúdo dessas diferentes práticas, é ne­


cessário notar primeiramente que a confissão refere-se aos pecados
ou às faltas, que são reconhecidos diante de Deus na presença do
padre e dos quais se trata de obter o perdão. Esses pecados ou essas
faltas referem-se aos mandamentos divinos que definem as normas
do bom comportamento. No quadro do arrependimento, o sentimen­
to de culpabilidade daquele que se confessa desempenha um papel
importante e positivo, permitindo a absolvição que em seguida o fará
superá-lo e colocar fim a ele.
Para a psicanálise freudiana e a maioria das outras psicotera­
pias, o pecado e a falta não têm fundamento objetivo. Só existem
em virtude do sentimento de culpabilidade, puramente subjetivo, e
geralmente este é considerado patológico e, portanto, dotado de uma
função puramente negativa. A psicanálise e as psicoterapias não vi­
sam absolutamente ao reconhecimento de faltas como tais e não per­
mitem sua abolição pelo perdão por meio do arrependimento; elas
visam somente à redução do sentimento de culpabilidade, qualquer
que seja sua natureza (isto é, seja ele justificado ou não), frequente­
mente negando a própria realidade da falta ou do pecado42•

No que se refere à situação no tempo da fonte das doenças, po­


demos notar uma diferença importante.
A teoria freudiana considera que a maioria das doenças psíqui­
cas tem suas fontes na tenra infância (entre o nascimento e os oito
anos de idade) . A psicanálise freudiana concentra-se pois na reminis-

42. Este ponto de vista foi fortemente expressado em duas obras célebres de A.
HESNARD: L'Univers rrwrbide de la faute, Paris, 1949, e Esquisse d'une rrwrale sans obli­
gation ni sanction, Paris, 1884.
1 76 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

cência de acontecimentos antigos e dá pouca importância aos acon­


tecimentos recentes.
Em compensação, os pecados confessados na confissão corres­
pondem às faltas cometidas desde a confissão anterior, enquanto os
pensamentos manifestados são pensamentos atuais ou relativamente
recentes ( ainda que a manifestação de pensamentos antigos ou a evo­
cação de situações antigas não sejam excluídas) . De fato, a concepção
cristã considera que o ser humano deve ser tratado com base em seu
estado atual43• Pode ser porque o passado, para ele, se é influente,
não é determinante: pelo batismo, o cristão recebe uma vida nova em
que, com a ajuda da graça, pode escapar espiritualmente de todos os
determinismos deste mundo, inclusive os de seu próprio passado.

Uma outra diferença é que a psicanálise - e isto é verdade para as


diversas escolas psicanalíticas - implica uma reminiscência pormeno­
rizada do passado. Essa reminiscência tem a forma bruta de um relato
que inclui tudo o que foi vivido, sem proceder a nenhuma triagem.
No que se refere tanto à confissão como à manifestação dos pen­
samentos, os Padres proscrevem geralmente a evocação pormenori­
zada do passado por causa dos inconvenientes, até mesmo dos perigos
que ela representa, sobretudo se se trata de pecados, de atos imorais
ou de acontecimentos traumatizantes. Um dos perigos é reproduzir
pela memória os pecados cometidos, ou dar de novo vida e força aos
acontecimentos traumatizantes que foram vividos44• São Marcos, o
Monge, escreve a este respeito: "É prejudicial [ . ] rememorar com
. .

pormenores seus pecados passados; porque, se eles geram tristeza,


afastam da esperança; se, ao contrário, sua representação deixa sem
desgosto, eles levam à antiga mácula"45• E ele observa: "Quando,
graças à renúncia de si mesmo, o espírito se prende unicamente à

43. A psicanálise junguiana partilha esta concepção, a despeito do caráter arcaico


que ela reconhece aos arquétipos que constituem o inconsciente coletivo.
44. Este perigo se verifica na psicanálise, em que a dificuldade de assumir alguns
fatos rememorados pode agravar consideravelmente o estado do doente e onde a "ab­
reação" às vezes assume um caráter dramático, podendo chegar ao suicídio.
45. Dos que pensam estarjustificadns pelas obras, 139.
DUAS PRATICAS TERAP�UTICAS CRISTÃS 1 77

esperança, então o inimigo, sob pretexto de confissão, lhe põe diante


dos olhos uma imagem dos antigos pecados, em vista de reacender
as paixões esquecidas pela graça de Deus e de prejudicá-lo sorratei­
ramente. Porque, mesmo se o espírito é então luminoso e cheio de
aversão pelas paixões, necessariamente ele se tomará tenebroso, uma
vez de novo implicado nas ações passadas. Se sua alma é tumultuada
e amiga do prazer, ele não pode deixar de deter-se com complacência
nas sugestões, de modo que semelhante lembrança será de fato uma
predisposição ao pecado antes de ser uma confissão"46•

A este respeito há uma diferença fundamental entre a concepção


cristã e a concepção freudiana: para a concepção freudiana, trata-se
para o doente de poder reconhecer, pela tomada de consciência de si
mesmo, o que ele é até em sua dimensão primeiramente inconscien­
te, e se assumir tal como é na totalidade de seu ser.
De um ponto de vista cristão, isso equivale a assumir o homem
antigo, na medida em que o inconsciente, tal como o concebe a psi­
canálise (que ignora o que chamamos de "inconsciente teófilo"), é
essencialmente constituído pelos aspectos negativos da personalida­
de psíquica. A terapêutica espiritual, ao contrário, tem por finalida­
de fazer morrer esse homem antigo para que viva o homem novo, e
abolir o "inconsciente deífugo" para que o "inconsciente teófilo" seja
libertado e assumido conscientemente pela pessoa. A confissão e a
manifestação dos pensamentos, se visam também ao reconhecimen­
to do aspecto negativo de si mesmo, não são para se aceitar melhor
(como se isso fizesse parte do verdadeiro eu) , mas para recusar mais
em si o que não é conforme ao ideal cristão e também o que não é
conforme ao que somos profundamente, em sua realidade espiritual
verdadeira. Então, o arrependimento desempenha um papel funda­
mental para ajudar o doente a tomar distância em relação a tudo o
que é mau em sua vida passada e presente e em seu ser atual, mais
geralmente para tomar distância em relação a seu "eu decaído".

46. Ibid., 140.


1 78 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

Na psicanálise, o papel do terapeuta é essencialmente escutar


e prestar-se à transferência operada pelo doente sobre sua pessoa.
De algum modo, o doente cura a si mesmo pela simples tomada de
consciência dos elementos recalcados e pela libertação, por meio
da transferência, dos afetos ligados a esses elementos. Freud afirma
muito claramente que "o traço mais característico do método [psica­
nalítico] , aquele que o distingue de todos os outros procedimentos,
descobre-se no fato de que sua eficácia terapêutica não repousa em
uma ordem sugerida pelo médico"47•
Na confissão, o reconhecimento das próprias faltas, das próprias
paixões ou das próprias tendências más certamente permite ao doen­
te dar provas de arrependimento, que desempenha um papel impor­
tante na terapêutica. Mas a finalidade da confissão é obter o perdão
pelos pecados passados, e é esse próprio perdão que constitui o ele­
mento essencial da terapêutica.
Quanto à manifestação dos pensamentos, sua finalidade é sobre­
tudo fornecer ao pai espiritual as informações que lhe permitirão dar
ao doente os conselhos adequados. A confissão dá igualmente con­
selhos por ocasião da confissão, mas no quadro da manifestação dos
pensamentos estes são mais precisos, mais ligados a cada momento
da existência. Tanto em um como no outro caso os conselhos do pai
espiritual ajudam o doente a participar de sua cura, mas seguindo
uma direção precisa e um método indicado. O pai espiritual se dis­
tingue nisto do psicanalista freudiano, que deve não somente evitar
dar conselhos48 mas excluir toda diretividade49• E ele se mostra mais
diretivo do que a maioria dos psicoterapeutas que admitem um papel
de conselheiro. Além do mais, seus conselhos são mais exigentes e,
sem dúvida alguma, mais eficazes na medida em que a obediência
dos filhos espirituais a seu pai espiritual é requerida e afirmada de
imediato como uma virtude fundamental.
Ao contrário do psicanalista freudiano, que deve tomar por re­
gra "abster-se de toda crítica formulada a respeito do inconscien-

47. Ver S. FREUD, La technique psychanalytique, Paris, 1975, 2.


48. Ver ibid., 138.
49. Freud rejeita tal diretividade qualificando-a de "orgulho educativo" (ibid., 70) .
DUAS PRATICAS TERAPtUTICAS CRISTÃS 1 79

te e de seus derivados"5º, o pai espiritual não hesita em fazer um


julgamento sobre o estado interior, as tendências, as atitudes e os
comportamentos de seu filho espiritual, o que não chega a julgar o
filho, mas visa a ajudá-lo a ver mais claro.
Ao contrário também do psicanalista, que não procura edificar
o doente e evita propor-lhe ideais51, o pai espiritual lhe dá normas
que o ajudam a se situar. Essas normas são inspiradas não somen­
te pela concepção cristã do ser humano e da existência, mas pelos
quadros da ascética clássica, definida pela Tradição, referindo-se
sobretudo à natureza das paixões (o que o ajuda a perceber melhor
nele os elementos patogênicos) e das virtudes (o que lhe fornece
normas de bom comportamento) . O pai espiritual lhe dá também,
muitas vezes, um método preciso para combater e progredir. A
eficácia da terapêutica depende, em grande parte, da aplicação de
seus conselhos .
O estatuto do pai espiritual o autoriza também a intervir conso­
lando, animando, exortando, acautelando, enquanto o psicoterapeuta
é ordinariamente mais reservado, quando não se abstém de toda in­
tervenção verbal52•

De uma maneira geral, o relacionamento com o pai espiritual


é mais seguido do que o relacionamento com o psicoterapeuta. O
relacionamento entre o pai espiritual e seus filhos espirituais é mais
frequente e possui mesmo, por meio da oração, um caráter perma­
nente, enquanto o relacionamento com o psicoterapeuta limita-se às
sessões e à sua duração.
O relacionamento com o pai espiritual é igualmente mais pro­
fundo do que o relacionamento com o psicoterapeuta. Na psicanálise
(e na maior parte das psicoterapias) uma atitude de neutralidade (o

50. Ibid., 71.


51. Ver ibid., 138.
52. É bastante frequente que os psicanalistas (freudianos) permaneçam totalmente
mudos em suas relações com seus analisados. Um psiquiatra nos dizia que durante os cinco
anos de sua análise didática seu psicanalista nunca lhe havia dito outras palavras a não ser
"Bom dia" e "Até logo".
1 80 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

mais possível benevolente) é exigida do psicoterapeuta, mas todo en­


gajamento afetivo por parte dele é proscrito53•
O pai espiritual vai além dessa atitude de neutralidade benevo­
lente. Ele deve ter uma atitude de amor e compaixão, que evita en­
tretanto, por sua natureza espiritual (trata-se de uma forma de amor
ao próximo), os possíveis desvios de um engajamento afetivo de cará­
ter psicológico (desejo e sentimentos) .
Esta virtude e as outras virtudes cristãs que possui u m verdadei­
ro pai espiritual - especialmente a paciência, a mansidão e a humil­
dade - desempenham um papel muito importante na terapêutica,
em particular porque favorecem o relacionamento com o doente.
A paciência é de grande importância. Por um lado, as doenças
psíquicas e as doenças espirituais exigem geralmente um tratamento
longo, em que os progressos são lentos e as mesmas perturbações
e dificuldades repetem-se durante um longo período e com grande
frequência. Por outro lado, as relações constantes com pessoas atingi­
das por doenças psíquicas são geralmente difíceis por razões variadas
(como recusa de comunicação, hiperatividade, agressividade etc.).
A mansidão, que é uma forma de caridade e consiste em ausên­
cia de agressividade, é igualmente de grande importância para favo­
recer o relacionamento com o doente, assim como o acompanhamen­
to desse relacionamento. Muitas doenças são marcadas ao mesmo
tempo por uma tendência à agressividade (que constitui muitas vezes
um meio de proteção) e pelo medo da agressividade de outrem. É
importante que o terapeuta seja capaz de não responder à agressivi­
dade do doente e possa, por outro lado, dar-lhe segurança evitando a
seu respeito toda forma de agressividade.
A humildade do pai espiritual também desempenha, por vários
motivos, um papel fundamental no relacionamento terapêutico. O
orgulho constitui uma das principais doenças espirituais e entra na
composição de um certo número de doenças psíquicas, sob a for-

53. Freud recomenda a seus colegas terem por modelo o cirurgião, que "deixa de
lado toda reação afetiva e até toda simpatia humana" e preconiza "a frieza dos sentimentos"
(La technique psychanalytique, 65 e 66).
DUAS PRATICAS TERAP�UTICAS CRISTÃS 1 81

ma do que as psicoterapias chamam de "narcisismo" ou "hipertrofia


do eu". O orgulho do terapeuta provocaria um reforço dessas ten­
dências; sua humildade, ao contrário, contribui para enfraquecê-las.
Contribui também para favorecer um relacionamento aprofundado
que reduz o girar em torno de si do doente, diminuindo seu temor
de se confiar, dando-lhe novamente confiança em si. Muitas per­
turbações psíquicas resultam do sentimento, justificado ou não, de
ser desprezado, ou dominado, ou até mesmo sufocado ou esmagado
pelos outros, sobretudo por alguns próximos (por exemplo, o cará­
ter sufocante das atitudes parentais frequentemente foi questionado
como uma das fontes do autismo e da esquizofrenia) . A humildade,
unida à caridade, ajuda a reduzir esse sentimento experimentado
pelo doente e a lhe dar novamente seu valor, sua importância e sua
autonomia. Devemos lembrar aqui que o verdadeiro pai espiritual,
ao mesmo tempo em que se mostra diretivo, respeita plenamente
a personalidade e a liberdade de seus filhos espirituais, e age de tal
maneira que eles adquirem cada vez mais autonomia, de modo que
sua intervenção seja cada vez mais reduzida. O verdadeiro pai espi­
ritual tem por ideal esta palavra de São João Batista: "É necessário
que ele cresça e que eu diminua" (Jo 3,30) .
Enfim, a caridade desempenha um papel essencial para favore­
cer um relacionamento aprofundado, acompanhado e profundo, mas
também tem por si mesma uma grande eficácia terapêutica. O senti­
mento de não ser amado está na fonte de muitas doenças psíquicas e
é um componente de quase todas. O amor desinteressado, profundo
e constante, do qual o verdadeiro pai espiritual dá provas, ajuda a
abolir progressivamente esse sentimento, e ao mesmo tempo reduz
o sentimento de desvalorização que o doente experimenta e a perda
de estima de si mesmo que resulta disso (e que é, por exemplo, um
componente das depressões) .
As virtudes do pai espiritual desempenham igualmente um papel
importante na terapêutica por causa de seu valor exemplar como nor­
mas de atitudes e comportamentos ideais. Os Padres consideram que
o verdadeiro pai espiritual, para exercer sua função, deve ele mesmo
ter encontrado a saúde espiritual, em outras palavras, ter atingido a
1 82 O INCONSCIENTE ESPIRITUAL

impassibilidade (apatheia)54, sem o que ele corre o risco de ser ape­


nas "um cego guiando outros cegos" (Mt 15, 14; cf. Lc 6,39) e agravar
as doenças daqueles que ele trata em vez de curá-las55.
Tais virtudes e tal perfeição interior não são exigidas do psicana­
lista, ao qual Freud pede somente para ter feito ele próprio psicaná­
lise56, sobretudo a fim de conhecer seus próprios complexos57, vencer
suas próprias resistências quanto ao reconhecimento do inconsciente
e dominar a contratransferência (resposta aos sentimentos de afeição
e à agressividade da análise)58. Mas não exige dele a plena saúde. "É
incontestável", escreve ele, "que os analistas não atingiram comple­
tamente, em sua personalidade, o grau de normalidade psíquica ao
qual querem fazer ter acesso seus pacientes"59.
Em seu relacionamento com seus filhos espirituais, o pai espiri­
tual tem sempre uma forte presença pessoal, que, por causa de sua
caridade e de sua humildade, não tem entretanto nada de sufocante
e mostra-se plenamente respeitosa da liberdade de outrem. Sem que
o pai espiritual se erija em modelo, de fato ele serve de modelo a seus
filhos espirituais ensinando-os tanto por suas atitudes e seus compor­
tamentos como por suas palavras.
O psicanalista rejeita essa função de exemplaridade60. Ao contrá­
rio, ele cultiva uma certa forma de ausência pessoal61, de modo a ser
como uma tela vazia que permite a seus pacientes se projetarem e
efetuarem a "transferência", que desempenha um papel essencial na
terapêutica psicanalítica. "Para o analisado", escreve Freud, "o mé-

54. Ver Apotegmas, n. 630, Antoine; AMMONAS, Cartas, IV, 2; EvÁGRIO, Antirético,
Cenodoxia, 9; GREGÓRIO NAZIANZENO, Discursos, II, 13; 78; BASÍLIO DE CESARÉIA, Ho­
milias sobre a origem do homem, I, 19; JOÃO CASSIANO, Instituições cenobíticas, VIII, 5;
NILO, Ü ASCETA, Da prática monástica, 23, PC 79, 749C-752A; JOÃO CLÍMACO, A escada,
IV, 6; XXVI, 1 1 ; Carta ao pastor, 9, 15, 21, 49, 57, 97; ISAAC, O SÍRIO, Discursos ascéticos,
21; 56; SIMEÃO, O Novo TEÓLOGO, Tratados éticos, VI, 258 s.; Capítulos teológicos, gnós­
ticos e práticos, I, 48; 49.
55. Cf. EVÁGRIO, Trataado do oração, 25; ISAAC, O SÍRIO, Discursos ascéticos, 58.
56. Ver La technique psychanalytique, 27, 67.
57. Ver ibid, 67.
58. Ver ibid, 27.
59. L'Analyse avec fin et l'Analyse sans fin, Paris, 1994, 57.
60. Ver La technique psychanalytique, 138; &sais de psychanalyse, Paris, 1986, 223.
6 1 . Voir La technique psychanalytique, 68.
DUAS PRATICAS TERAP�UTICAS CRISTÃS 1 83

dico deve permanecer impenetrável e, à maneira de um espelho, só


fazer refletir o que lhe é mostrado"62•

Há uma última diferença. A psicanálise e as outras psicoterapias


situam-se num plano exclusivamente natural, enquanto a terapêutica
espiritual situa-se também num plano sobrenatural, isto é, fazendo
intervir a graça divina. Esse componente "sobrenatural" da terapêu­
tica espiritual lhe dá não somente uma dimensão suplementar mas
uma eficácia maior.
A confissão possui duas imensas vantagens. Em primeiro lugar,
o pecador que se arrepende possui a segurança da misericórdia di­
vina e do perdão de seus pecados. A absolvição, efeito da graça in­
vocada pelo confessor, ajuda na destruição objetiva dos pecados que
foram cometidos. Ela desempenha um papel realmente libertador
em relação ao pecado, mas também em relação ao sentimento de
culpabilidade a ele ligado e em relação ao passado, que não é mais
sofrido como um peso e um determinismo implacável. Como diz o
formulário do sacramento, a absolvição opera imediatamente uma
cura, assim como uma renovação que faz que o penitente possa reco­
meçar com novas bases.
Os carismas (dons do Espírito Santo) que os melhores pais es­
pirituais possuem têm uma grande eficácia na terapêutica, tanto das
doenças espirituais como das doenças psíquicas que delas resultam.
O caráter inspirado de suas palavras dá a elas uma eficácia que
ultrapassa a das palavras ordinárias. Nos Apotegmas, vemos com fre­
quência pessoas que visitam Padres renomados por sua santidade per­
guntar-lhes: "Padre, diga-nos uma palavra de salvação", e vemos fre­
quentemente que algumas palavras - às vezes uma simples frase -
têm mais efeito do que um longo discurso, porque a palavra dos santos
é impregnada da força do Espírito. Isso se verifica ainda em nossos
dias: os relatos que se referem aos grandes pais espirituais de nossa
época contêm numerosos exemplos do caráter decisivo que alguns de
seus propósitos desempenharam na reestruturação do ser e na mu­
dança do modo de existência daqueles que os ouviram.

62. Ibid, 69.


1 84 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

Os carismas de discernimento e cardiognose (leitura dos co­


rações e conhecimento das dimensões escondidas da vida interior)
ajudam igualmente os pais espirituais que os possuem a ir mais lon­
ge do que os psicoterapeutas leigos no conhecimento das causas das
doenças, no acompanhamento de sua evolução e na busca de meios
terapêuticos adequados, descobrindo diretamente no inconsciente
não somente as doenças escondidas, mas os recursos de que a pessoa
dispõe para se livrar delas e libertar sua personalidade verdadeira
orientada para Deus63•
Enfim, devemos sublinhar o papel desempenhado pela oração do
pai espiritual, tanto mais eficaz quanto maior for sua santidade, assim
como a oração do doente para obter a cura. A oração invoca a força
sobrenatural da graça divina para obter a cura, e é comum que a cura
ou uma melhora notável do estado do doente sejam assim obtidas.

Conclusão

As práticas da confissão e da manifestação dos pensamentos pare­


cem-nos oferecer possibilidades mais extensas do que as das psicote­
rapias clássicas. Entretanto, devemos lembrar, uma vez mais, que sua
visão não é primeiramente psicoterápica, mas que elas têm um efeito
psicoterápico "por acréscimo", isto é, que elas podem contribuir para
uma terapia das doenças psíquicas por meio da terapia das doenças
espirituais, na medida em que aquelas estão ligadas a estas.
É necessário lembrar também que elas não constituem métodos
fechados e auto-suficientes: elas se integram em uma terapêutica es­
piritual global, cujas duas dimensões fundamentais e complementa­
res são a vida ascética pessoal e a vida sacramental, ambas ocupando
um lugar na vida eclesial.

63. Um dos maiores padres espirituais do século XX, o padre Paíssios, que vivia
como eremita no monte Athos, dizia um dia a um de seus visitantes, psicólogo clínico de
profissão: ''Vocês conhecem as almas por intermédio do saber que vocês adquiriram na
universidade e nos livros; eu vejo diretamente seu conteúdo''.
(J
As fontes espirituais
das doenças psíquicas
1 86 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

hegou a hora de mostrar mais concretamente como algumas

C doenças psíquicas podem ter sua fonte em algumas doenças


espirituais, e como a cura das doenças psíquicas pode ser en­
carada a partir da terapêutica das doenças espirituais.
Para abordar este assunto, um método possível seria examinar
sucessivamente as diferentes doenças psíquicas referidas e apresen­
tar as fontes espirituais de cada uma delas. No entanto, este método
tem dois inconvenientes. Por um lado, a classificação das doenças psí­
quicas está submetida a condições e a variações históricas e culturais
e é, por esta razão, sempre contestável. Por outro lado, encontram-se
fontes espirituais idênticas nas diversas doenças psíquicas; o que va­
ria são suas proporções e sua conjunção. Parece pois mais judicioso
apresentar as principais fontes espirituais das doenças psíquicas, com
o risco de indicar com exatidão em que doenças (tais como elas são
geralmente identificadas na nomenclatura atualmente mais corrente)
cada uma delas intervém mais especialmente.

1 Falsa culpabilidade
.

O sentimento de culpabilidade aparece em diferentes doenças psíqui­


cas e seu papel patogênico tem sido notado com muita frequência. A
este respeito, a moral e a religião por vezes têm sido denunciadas como
estando na fonte de tal sentimento1, pela importância que elas conce­
dem à falta ou ao pecado, e a libertação da moral e da religião às vezes
foi exaltada como meio terapêutico2• Entretanto, esse caráter patogê­
nico é devido menos ao próprio sentimento de culpabilidade do que ao
caráter patológico do que podemos chamar de "falsa culpabilidade".
A falsa culpabilidade pode tomar diferentes formas.
Pode tratar-se de um sentimento de culpabilidade excessivo, isto
é, correspondente a uma falta ou a um pecado real, mas despropor-

1. Ver entre outros A. HESNARD, UUnivers rrwrbide de la faute, Paris, 1949; P. So­
LIGNAC, La Névrose chrétienne, Paris, 1990.
2. Ver A. HESNARD, Esquisse d'une rrwrale sans obligation ni sanction, Paris, 1884.
/AS FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PS(QUICAS 1 87

cionado em relação a eles. Muitas vezes, esse sentimento é acompa­


nhado de um remorso que mina a vida interior da pessoa e de um
forte sentimento de desvalorização de si mesma. Nós o encontramos
frequentemente nas depressões.
Pode também tratar-se de um sentimento de culpabilidade em
relação a uma falta ou a um pecado imaginário.
Este último caso encontra-se em uma forma extrema na melan­
colia, em que o sentimento de culpabilidade está fundamentado em
uma ideia delirante e vem acompanhado de uma vontade de autopu­
nição, podendo chegar até à automutilação e ao suicídio3.
Por causa de sua relação com as noções de falta e de pecado, a
falsa culpabilidade corresponde bem a uma patologia espiritual, que
depende de uma terapêutica espiritual.
A terapêutica consiste em ajudar o doente a encontrar um sentido
exato da falta e do pecado, proporcionado a seu estado real. Por outro
lado, consiste em integrar seu sentimento de culpabilidade, na medida
em que ele está fundamentado em uma atitude penitencial de pesar e
de contrição, e permitir a essa atitude encontrar seu fim no perdão e na
absolvição dos pecados. Assim, na terapêutica, o sacramento da confis­
são é levado a desempenhar um papel fundamental (entendido que ele
não deve ser concebido como meio de uma terapêutica psíquica, mas
como meio de uma terapêutica espiritual, cujo fim primeiro é restaurar
o relacionamento do ser humano com Deus) .
Podemos considerar que essa terapêutica s ó é eficaz n o caso
de estados neuróticos, enquanto no caso da melancolia o falso sen­
timento de culpabilidade baseia-se numa ideia delirante que resiste
a toda forma de argumentação exterior. Entretanto, estamos con­
vencidos, com base em observações múltiplas, de que o psicótico
em geral parece inacessível ao discurso de outrem, mas não o é na
realidade, e que ele é sobretudo sensível a atitudes e a palavras tran-

3. Conheci assim um doente que se identificava com Adão e se considerava culpado


pelo pecado original e responsável, como consequência, por todas as desgraças da huma­
nidade; ele se punia por tentativas de suicídio cujas formas eram atrozes e nas quais ele
atribuía a finalidade de fazê-lo sofrer ao máximo antes de lhe provocar a morte.
1 88 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

quilizadoras e consoladoras, ligadas a um autêntico sentimento de


compaixão por parte do terapeuta.

2. Falso temor e falsa inquietação

O medo está no centro das doenças psíquicas que chamamos comu­


mente de "neuroses fóbicas". Ele toma a forma de um temor, acom­
panhado de angústia, experimentado diante de alguns objetos ou em
algumas situações. Podemos classificá-lo de "falso temor", porque o
temor sentido é excessivo, desproporcionado em relação ao objeto
ao qual se relaciona e às vezes mesmo injustificado. Aliás, o temor é
menos suscitado pelo próprio objeto do que pelo caráter de periculo­
sidade que a pessoa lhe atribui por sua imaginação.
A angústia está presente na maior parte das doenças psíquicas e
é um componente importante de todas as neuroses. De fato, ela cor­
responde ao que podemos chamar, de um ponto de vista espiritual,
de "falsa inquietação", porque consiste em se inquietar sem razão e
sem motivo ou por coisas sem valor verdadeiro.
O medo e a angústia são formas da paixão de temor, que faz
parte das oito paixões principais ou genéricas e é, por este motivo,
frequentemente descrita pelos Padres4• A paixão de temor tal como
eles a concebem comporta o medo, o susto, o pavor, de um lado, e a
ansiedade, a angústia e a aflição, por outro.
Para compreender bem o caráter patológico do temor em todas
as suas formas e também como deve ser encarada sua terapêutica, é
necessário lembrar que ela pode também assumir uma forma normal
e virtuosa, da qual o temor patológico e apaixonado é uma perversão.
Em suas diferentes formas, o temor é provocado pela ideia ou
pelo sentimento de que poderíamos perder, de maneira eminente,
aquilo a que estamos fundamentalmente apegados. De acordo com a
natureza e o objeto desse apego, o temor assume uma forma normal
ou uma forma patológica.

4. Ver nossa Thérapeutique des ma/adies spirituelles, 4. ed., Paris, 2000, 229-240.
}.S FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSIQUICAS 1 89

1) A própria forma normal do temor pode assumir duas formas.


a) Sua primeira forma é uma força que une o ser humano a seu
próprio ser e faz que ele tenha medo de se perder a si próprio, corpo
e alma. Por esse temor, em suas manifestações mais elementares, ele
se afeiçoa à vida, à existência e receia tudo o que poderia corrompê­
las e arruiná-las, experimenta uma repulsão a respeito do não-ser,
como explica São Máximo Confessor, que sublinha que esta tendên­
cia pertence à própria natureza do ser humano. Poderíamos dizer
que esse temor corresponde ao instinto de conservação, ao instinto
de vida, à tendência inata que tem o ser humano a perseverar no ser
e a perpetuar sua existência. Ela se manifesta em particular como te­
mor da morte, que é uma tendência natural, pois o Criador nos deu a
vida para que nós a conservemos, e a corrupção e a morte constituem
fenômenos antinaturais introduzidos pelo pecado.
b) Sua segunda forma é o "temor de Deus'', que em seu grau
mais elevado é o temor de ser separado de Deus. Esta segunda forma
de temor encontra-se naturalmente ligada à anterior: o ser humano
unido ao seu ser e à sua vida e tendo medo de perdê-los, se ele co­
nhece sua verdadeira natureza, só pode ter medo de ser separado de
Deus, que é seu princípio e seu fim, sua fonte e seu sentido. Mais
ainda do que a vida biológica, é a vida em Deus que o ser huma­
no tem medo de perder, consciente de sua realidade fundamental e
verdadeira. É assim que no ser humano espiritual o temor da morte
encontra-se eclipsado pelo temor de Deus, pelo temor de tudo o que
pode separá-lo de Deus, isto é, do pecado e do Maligno que dão
a morte à alma (cf. Mt 10,28; Lc 12,5) , a única morte realmente a
temer, pois ela tira definitivamente toda vida, enquanto a morte bio­
lógica separa apenas temporariamente a alma do corpo e destrói só a
forma terrestre e corrompida da existência.
2) A forma patológica do temor que os Padres consideram uma
paixão má manifesta-se também como uma repulsão que o ser hu­
mano experimenta diante do que pode corromper e destruir seu ser.
Entretanto, não se trata mais então de seu ser segundo Deus, mas de
seu ser decaído ao qual ele está ligado pela filáucia (amor esgoísta de
si mesmo) . Ela é também temor da morte, mas não mais pela mesma
1 90 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

razão precedente. São Máximo Confessor a classifica entre as paixões


devidas à privação de prazer, e considera que ela vem, como elas, do
fato de a filáucia se encontrar ferida por um sofrimento da alma e do
corpo: o ser humano teme perder - e teme o que pode lhe fazer
perder - um objeto sensível cuja posse (real ou imaginariamente an­
tecipada) lhe dá um certo gozo sensível. A ideia ou o sentimento dessa
perda possível gera em sua alma um estado de mal-estar e de pertur­
bação do qual ele sente os efeitos igualmente no nível do corpo.
Em todos os casos, o temor-paixão revela um apego a este mun­
do: aos bens deste mundo e a seu gozo sensível, e também a esta
vida enquanto concebida como algo que deve servir para atingir essa
espécie de gozo. Desde agora, podemos ligar a essa forma de temor
todo medo da morte que não seria, como no quadro do temor natural
e normal, o temor de perder a vida reconhecida como um bem dado
por Deus e que deve servir para se unir a Ele, mas como a perda
dos prazeres sensíveis que a vida permite gozar neste mundo. Essa
relação essencial da paixões de temor à vida segundo o mundo, à vida
concebida e vivida "de maneira carnal", é frequentemente destacada
no ensinamento dos Padres.
Enquanto o primeiro tipo de temor é conforme à natureza, o
segundo tipo de temor, que é uma paixão má, é contra a natureza.
Ele provém do fato de que o ser humano desviou a dupla finalidade
natural e normal do temor que o ligava a seu ser verdadeiro e a Deus,
para fazê-lo se tomar temor de perder seu ser "decaído'', de ser sepa­
rado do mundo sensível, de perder a vida apaixonada e o prazer a ela
ligado (se bem que isso, o mais das vezes, não seja consciente) . Em
vez de temer o que ameaça seu ser espiritual, o ser humano põe-se a
temer tudo o que coloca em perigo sua existência sensível e os gozos
que ele usufrui dela.
A paixão de temor revela uma relação patológica do ser humano
com Deus. Temendo perder algum bem deste mundo e algum prazer
sensível, em vez de ter medo de perder a Deus e assim perder-se a
si mesmo, o ser humano afasta-se de Deus, a fonte de sua vida, o
princípio e o fim de seu ser, o sentido de sua existência, e coloca o
centro de suas preocupações na realidade sensível que se toma para
ele o Absoluto.
Af. FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSfQUICAS 1 91

Deus, no temor, não é somente esquecido como princípio e fim


do ser e da vida, como sentido e centro da existência: ele é igualmen­
te negado, ignorado, recusado na ação providencial e na proteção
benevolente que exerce em relação a cada ser.
O temor revela a ilusão que o ser humano tem de ser entregue
a si mesmo, de não poder ou não dever contar a não ser com suas
próprias forças, de ser privado da ajuda de Deus. O ensinamento do
próprio Cristo vem denunciar essa ilusão, lembrando ao ser humano
que Deus cuida dele em permanência (cf. Mt 10,29-3 1; Lc 12,6-7) .
O temor também é o sinal de uma falta de fé na Providência divina
(cf. Me 4,36-40) .
Além disso, o temor traduz uma falta de fé nos bens espirituais.
Porque se o ser humano estivesse apegado a eles seria somente a eles
que temeria perder. De fato, esses bens são os únicos a ter para o ser
humano um valor absoluto e uma importância vital. O ser humano
que confia em Deus, tomando-se participante da Ressurreição de
Cristo e da vida divina, não precisa mais temer nenhum dano, nem
em sua alma nem em seu corpo, nem mesmo o da morte, que mata
provisoriamente o corpo mas não pode fazer nada mais (Mt 10,28;
Lc 12,4) . Aquele que se une a Deus encontra n'Ele a totalidade dos
bens e não teme ser despojado de nenhum bem sensível.
Temer não é somente não ter fé nos bens espirituais, os únicos
reais: é ao mesmo tempo conceder uma fé vã aos bens sensíveis, cuja
realidade é ilusória (cf. Mt 6, 19; Lc 12,33) . O ser humano, cedo ou
tarde, por causa de seu caráter passageiro ou pelo fato de sua pró­
pria morte, os perde, assim como o prazer ligado à sua posse, prazer
que, aliás, é bem pouca coisa em vista do gozo dos bens do Reino.
Porque o ser humano decaído se engana sobre a verdadeira realida­
de dos objetos e dos prazeres sensíveis aos quais se apega, ele pode
ser tomado pelo temor: se conhecesse a natureza disso, sua perda
lhe seria indiferente.

A terapêutica espiritual da paixão de temor aparece como um


meio eficaz de curar as fobias e a angústia que são formas derivadas
dessa paixão.
1 92 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

Essa terapêutica passa pela retificação, pelo doente, com a ajuda


do terapeuta, de sua hierarquia de valores, pelo desenvolvimento de
sua fé e de sua esperança em Deus, pelo aumento da confiança em
Sua Providência.
O temor e os estados que podem estar ligados a ele, como o
medo, a inquietação, a ansiedade, a angústia, a aflição, como estão
fundamentalmente ligados a um apego aos bens sensíveis, só podem
ser curados se o ser humano desprender-se deste mundo, colocando
toda a sua preocupação em Deus, tendo a firme esperança de que,
em Sua Providência, Ele proverá a todas as suas necessidades. É isso
o que ensina o próprio Cristo: "Por isso não andeis preocupados, di­
zendo: Que iremos comer? que iremos beber? que iremos vestir?
De fato, são os pagãos que estão à procura de tudo isso: o vosso Pai
celeste sabe que tendes necessidade de todas estas coisas. Buscai, em
primeiro lugar, o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas
vos serão acrescentadas. Não vos preocupeis, portanto, com o dia de
amanhã" (Mt 6,31-34) .
Como vimos, a primeira fonte do temor é a falta de fé. O temor
se encontra, portanto, abolido no coração do ser humano na medida
de sua fé em Deus. Aquele que crê firmemente em Deus e em sua
Providência está certo de receber d'Ele, em todas as circunstâncias,
ajuda e proteção, e desde este momento não tem mais a temer nem
circunstâncias, nem nenhum adversário, nem a própria morte ( cf. SI
3,25-26; 22,4; 26, 1 .3; Hb 13,5-6) .
Não é a fé em si mesma que liberta o ser humano do temor, mas
Deus que, em resposta a esta fé, lhe traz Sua ajuda e Seu socorro.
Essa ajuda, na fé que Deus pode conceder-lhe, e na esperança
que Ele lhe trará, o ser humano deve pedi-la pela oração. Devemos
notar que é a "oração do coração"5, que é contra o temor e todas
as paixões próximas dele (inquietação, medo, ansiedade, angústia), o
remédio mais eficaz. De fato, ela ajuda o ser humano a estar unido
a Deus em permanência e a beneficiar-se constantemente de Seu

5. Sobre esta forma muito particular de oração, cujo uso é corrente na Igreja orto­
doxa, ver ibid., 384-395.
.AS FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 1 93

socorro; desde este momento mais nenhuma causa de temor pode


surpreendê-lo. O desaparecimento do temor e das atitudes patológi­
cas a ele ligadas decorre aqui da presença constante da força divina
no ser humano, graças à própria oração permanente.
A terapêutica do temor supõe correlativamente a renúncia do ser
humano à sua própria vontade e uma atitude de humildade. De fato,
o temor está ligado ao orgulho, e enquanto o ser humano põe sua con­
fiança em suas próprias forças está sujeito a essa paixão. Para poder
vencê-la pela força do próprio Deus, para receber essa força e guardá­
la, o ser humano deve renunciar a si mesmo, reconhecer sua própria
impotência, senão a energia divina não poderá encontrar lugar nele.
É igualmente pelo amor que o ser humano pode vencer o temor,
pois o amor exclui o temor, segundo a palavra do apóstolo São João:
"Não há temor no amor; ao contrário, o perfeito amor lança fora o
temor" ( lJo 4,18) . Isto se aplica ao amor ao próximo: aquele que ama
seu irmão não conhece mais o temor a seu respeito. Mas este ensina­
mento refere-se mais fundamentalmente ao amor a Deus, que exclui
todas as formas de temor mundano, e sobretudo o medo da morte
que está frequentemente em sua origem. No amor a Deus, o ser hu­
mano recebe "a força da confiança" vitoriosa de todo temor. Ele está
unido Àquele a quem todas as coisas estão submetidas e nada pode
lhe fazer mal. Pelo amor, o ser humano vive doravante na intimidade
de Deus, afastado de todas as coisas deste mundo, exteriores ou in­
teriores, que podem suscitar o temor, e goza de bens espirituais que
não lhe podem ser tirados.
Correlativamente, o doente deve trabalhar, com a ajuda de seu
terapeuta, para converter seu temor-paixão em temor virtuoso.
De fato, anteriormente vimos que existe um temor virtuoso que
Deus deu ao ser humano como um meio de salvação, e que por isso
os Padres chamam de "temor salutar'', "salutar ansiedade" e outras
expressões semelhantes. Esse temor constitui o que a tradição ascéti­
ca chama de "temor de Deus".
O temor-virtude e o temor-paixão fundamentam-se na mesma
tendência natural do ser humano a temer. O temor-paixão corresponde
de fato a um desvio contra a natureza, a uma perversão patológica do
1 94 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

temor-virtude que é para o ser humano natural e normal: o temor se


aplicou a este mundo em vez de se aplicar ao relacionamento com
Deus, como queria sua própria natureza.
A terapêutica do temor patológico deve pois se fazer por uma con­
versão, por uma volta para Deus da tendência que está em sua base.
Os dois temores, porque se fundamentam na mesma tendência,
são exclusivos um do outro. Enquanto o temor paixão excluía o temor
de Deus, este, quando o ser humano o adquire, exclui aquele. À me­
dida que o temor de Deus cresce no ser humano, ele reduz o temor­
paixão, tomando o seu lugar. É assim que o Sirácida constata: "O que
teme ao Senhor nada receia, nem se aterroriza" (Sr 34, 14) .
No que se refere às condições de aquisição do temor de Deus
(que, lembremos, é fundamentalmente o temor de ser separado de
Deus) , reenviamos ao estudo que já consagramos a este assunto6•

3. Absolutização do relativo

A absolutização do relativo é um componente essencial da maior


parte das doenças psíquicas. Seu papel patogênico foi evidenciado,
em um plano psicológico, pelos psicanalistas Igor Caruso7 e Wilfried
Daim8, ambos se referindo, em sua compreensão da psicopatologia, a

6. Ibid., 670-673.
7. Psychanalyse et synthese personnelle, Paris, 1959, espec. 57-73.
8. Transvaluation de la psychanalyse. I.:Homme et l'Absolu, Paris, 1956, espec.
134- 149. Wilfried DAIM anota: "Se o Absoluto não é percebido como absoluto, mas como
relativo, e se, ao contrário, algo relativo é percebido como absoluto, um conflito funda­
mental nasce no ser humano. A partir desse momento, esse relativo erigido como absoluto
não é Deus, mas um ídolo. Este nasce da deificação de um relativo e vai junto com um
destronamento de Deus, que, em relação a ele, foi privado de seu caráter divino e, con­
sequentemente, tomado relativo. Tendo Deus sido transformado em relativo e o ídolo
erigido em absoluto, sobrevém um conflito com a realidade, acompanhado necessaria­
mente de consequências funestas. [ . . . ] Se uma porção do mundo é extraída da realidade
e elevada ao nível de ídolo, isto é, erigida em absoluto, inteivém uma desfiguração e um
desequilíbrio da óptica, referindo-se tanto às coisas quanto ao próprio indivíduo. Em suas
relações recíprocas, o ser humano e o mundo são desiquilibrados, a ordem estabelecida é
destruída. Fazendo assim, o próprio ídolo é monstruosamente superestimado, e Deus, em
uma mesma medida, subestimado. Conhecimentos desequilibrados geram também atos
AS FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 1 95

valores religiosos de inspiração cristã. Infelizmente, esses psicanalis­


tas ficaram em considerações muito gerais e, no plano da terapêutica,
não souberam tirar dessa intuição justa todas as suas consequências.
Alhures, mostramos como o processo do pecado tinha consistido
para o ser humano em ignorar Deus e em desviar suas faculdades de
conhecimento, sua faculdade desejante e todo o seu poder de amor,
mas também todas as suas outras faculdades, para o seu eu conside­
rado independentemente de Deus, assim como para as coisas deste
mundo consideradas não mais em seu relacionamento com Deus,
mas somente em suas aparências sensíveis, em vista de delas gozar9•
Assim, a ignorância de Deus chegou à filáucia (ou amor egoísta a si) e
esta, por seu turno, deu origem a todas as paixões que são igualmente
formas de apego a si mesmo e a este mundo. Perdendo o sentido do
Absoluto, o ser humano fez assim para ele um ídolo de si mesmo,
endeusando-se sem Deus e fora de Deus, e fez para ele ídolos das
coisas limitadas deste mundo. Este processo de idolificação foi muito
bem descrito pelos Padres, especialmente por Santo Atanásio de Ale­
xandria e São Máximo Confessor.
Se considerarmos todas as doenças psíquicas, poderemos cons­
tatar que todas elas levam ao extremo, ainda que em relação a um
objeto particular, este processo de absolutização do relativo ou de
idolificação de um objeto limitado.
Evocaremos em seguida o caráter patogênico da hipertrofia do
eu que se encontra em várias neuroses (especialmente a neurose his­
térica) e em várias psicoses (especialmente a psicose paranoica) .
Quanto à absolutização de objetos, de situações ou de represen­
tações particulares, ela se encontra no centro das neuroses fóbicas e
da neurose obsessiva.
Ela também se encontra de certo modo nas psicoses, visto que
todo delírio é uma interpretação geral da realidade por intermédio
de um aspecto muito limitado dessa mesma realidade.

desequilibrados. Estes não são conformes à sua natureza, não são adequados à situação e
passam ao lado de seus objetos. Disso resulta um conflito com a realidade, que constitui a
verdadeira razão da neurose e talvez também da psicose" ( 135-136).
9. Ver nossa Thérapeutique des maladies spirituelles, 49-128.
1 96 O INCONSCIENTE ESPIRITUAL

Como viram bem Igor Caruso e Wilfried Daim, a terapêutica


passa por um restabelecimento da hierarquia dos valores. A tera­
pêutica espiritual consiste em um desabamento de perspectiva, em
uma conversão das faculdades de conhecimento, do poder desejante
e agressivo e de todas as outras faculdades para Deus, que deve se
tomar o centro de referência absoluto. Os objetos absolutizados e
idolificados podem encontrar assim seu lugar e seu valor relativo.
Este desabamento de perspectiva, este restabelecimento da hie­
rarquia dos valores só pode se fundamentar em um reforço da fé
no Deus do doente e, correlativamente, em um enfraquecimento de
seus modos de apego ao mundo, em outras palavras, de suas paixões.
Portanto, não se trata de um processo puramente intelectual, mas
antes de um processo ascético10 global. Esta integração da terapêu­
tica na vida ascética a toma mais eficaz diante dos delírios que, nas
psicoses, estão na base da idolificação e são inacessíveis a um discurso
puramente racional.

4. Pseudo-rituais

A presença de pseudo-rituais encontra-se em diversas doenças psí­


quicas, mas ocupa um lugar central na neurose obsessiva.
Freud constatou a analogia entre os rituais neuróticos e os rituais
religiosos. O que o inclina a ver na religião um fenômeno neurótico11•
Ao contrário, pensamos que os rituais neuróticos são falsificações pa­
tológicas e substitutos de rituais religiosos autênticos e sadios. Isso
não significa necessariamente que o doente tenha estado em primei­
ro lugar conscientemente na posse destes rituais religiosos, e que ele
os tenha pervertido em seguida. O ritualismo em geral (que encon­
tramos em todos os seres humanos sob formas variadas e em graus

10. No sentido amplo que damos a este termo.


1 1 . Cf. Totem et tabou, Paris, 1951, 46; Actions compulsionnelles et exercices reli­
gieux, in Psychose, névrose et peroersion, Paris, 1973, 133- 142; especialmente: "Segundo
estas concordâncias e estas analogias, poderíamos nos arriscar a conceber a neurose obses­
siva como o pendente patológico da formação religiosa, a caracterizar a neurose como uma
religiosidade individual e a religião como uma neurose obsessiva" ( 141).
AS FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSfQUICAS 1 97

diversos) tem por base a religiosidade inconsciente do ser humano,


constitutiva do que chamamos de inconsciente "teófilo". Os rituais
neuróticos, que são formas agudas e aberrantes de ritualismo, podem
se fundamentar na intuição inconsciente de que um ritual seria eficaz
para remediar o sofrimento sentido, e resultar da tentativa desajeita­
da para inventar um ritual na falta de ter um à disposição.
Freud sublinhou que os rituais que aparecem na neurose obses­
siva são meios de conjurar a angústia. Mas, na verdade, é preciso re­
montar além da angústia, àquilo que a causa, a saber, um sentimento
de vergonha inconfessado ou um sentimento de culpabilidade, justi­
ficado ou não. Muitos rituais são rituais de purificação ou de expiação
tomando uma forma simbólica, e aparecem assim como desvios e
deformações de rituais penitenciais autênticos, aos quais eles se subs­
tituíram de alguma forma.
Fundamentalmente, o papel do terapeuta é descobrir a que fal­
ta ou pseudofalta está ligado esse sentimento de vergonha ou de cul­
pabilidade. Em primeiro lugar, seu papel é ajudar o doente a tomar
consciência disso, o que pode já reduzir a patologia; mas lá onde a
psicanálise limita-se a favorecer uma "conscientização" e uma verbali­
zação, sem se pronunciar sobre a qualidade moral do que fundamenta
esse sentimento, a terapêutica espiritual pode ir mais longe, ajudando
o doente a encontrar para ele uma solução12, quer na penitência e no
perdão sacramental, no caso de uma falta verdadeira, quer numa reti­
ficação da apreciação relativa ao ato, ao pensamento ou ao sentimento
considerados errôneos, quando não se trata de uma falta verdadeira.
Mas a conversão do ritual de pseudo-ritual patológico em ritual
autêntico e sadio pode constituir, paralelamente, uma terapêutica
preciosa. Assim, o terapeuta pode ajudar o doente a transformar pro­
gressivamente as palavras ou as fórmulas que repete compulsivamente
em palavras e fórmulas de orações, ligando-as eventualmente a uma
atitude penitencial em relação à falta sentida. Essa atitude penitencial
possui uma eficácia não somente em relação a uma falta conscien­
te, mas ainda em relação a uma falta inconsciente. Do mesmo modo

12. É preciso lembrar que na Igreja ortodoxa numerosas orações pedem a Deus o
perdão dos pecados conscientes e inconscientes.
1 98 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

podemos ajudar o doente a transformar progressivamente seus atos


compulsivos em gestos de oração (sinais-da-cruz, jaculatórias . . . ) . Em
outras palavras, trata-se de converter a atitude patológica em atitude
normal, de mudar os pseudo-rituais para lhes dar de novo a forma de
rituais autênticos e eficazes, dos quais eles eram apenas o desvio e a
caricatura patológica e impotente.
O fato de que os pseudo-rituais se imponham frequentemente
de maneira brusca e sejam incoercíveis não constitui um verdadeiro
obstáculo a esta terapêutica. Em um primeiro tempo, é necessário
ensinar ao doente a seguir um pseudo-ritual, que se impôs a ele por
um ritual autêntico. É necessário ensinar-lhe igualmente a descobrir
a vinda do pseudo-ritual, a fim de bloqueá-lo antes de sua expressão
pela substituição de um ritual autêntico. Há aí uma disciplina mental
e um hábito a adquirir progressivamente.

Na mesma rubrica, devemos dizer uma palavra sobre o que de­


nominamos os TOC (troubles obsessíonnels compulsífs: transtorno
obsessivo compulsivo), que parecem estar, há alguns anos, particu­
larmente disseminados. Estes TOC estão presentes especialmente
no que chamamos de síndrome de Gilles de la Tourette, e às vezes
tomam a forma de gestos e falatórios obcenos (copropraxia e copro­
lalia) , até mesmo de blasfêmias.
Hoje é comumente admitido que a síndrome de Gilles de la
Tourette tem uma origem orgânica, que se manifesta antes de tudo
por uma agitação nervosa desordenada. Entretanto, podemos nos
perguntar por que os TOC, quando são organizados, tomam a forma
de gestos ou de propósitos simples. Há aí um envolvimento moral e
espiritual evidente.
De um ponto de vista espiritual, poderíamos ser tentados a ver
aí o fruto de uma intervenção demoníaca, sob pretexto de que os
blasfemadores e os propósitos obscenos são habituais nos fenômenos
de possessão; mas a este respeito é necessário dar provas de uma
extrema prudência.
De fato, parece que, na maioria dos casos, temos que nos haver
com uma perda de controle moral, tanto quanto com uma perda de
controle físico e psíquico.
AS FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 1 99

No entanto, uma reeducação é possível, e os procedimentos que


indicamos anteriormente a propósito dos rituais das neuroses obses­
sivas podem ser aplicados com sucesso em muitos casos.
Aqui, podemos amplamente nos inspirar na terapêutica espiri­
tual das blasfêmias, que são manifestações bastante comuns em cer­
tas etapas da vida espiritual e que, sem se integrar a um sintoma
psicologicamente patológico, são entretanto assimiláveis a manifes­
tações compulsivas indesejáveis que são, para aquele que é a vítima,
uma fonte de sofrimento e de angústia.

5. Agressividade perversa

A agressividade - que pode tomar a forma de agressividade contra si


mesmo ou contra outrem - é um componente de numerosas doen­
ças psíquicas.
A agressividade contra si pode chegar a tomar formas extrema­
mente graves, como a automutilação e o suicídio. Frequentemente
está ligada a uma vontade de autopunição e depende, então, de duas
atitudes patogênicas abordadas também neste capítulo: a falsa culpa­
bilidade e a desvalorização de si mesmo.
A agressividade contra outrem está pouco ligada à atitude efetiva
de outrem e decorre essencialmente de um defeito da representa­
ção de si no relacionamento com outrem que corresponde ou a uma
supervalorização do eu, ou a uma desvalorização patológica do eu e
a uma necessidade de se proteger dos outros, estabelecendo uma
distância em relação a eles.
Em sua análise da agressividade patológica - na qual reagrupam
todas as formas sob a paixão chamada "cólera" (orge) , os Padres
-

constatam que ela nasce no ser humano quando ele fica afligido por
não poder atingir um prazer que busca, mas igual e principalmente
quando ele se encontra, se sente ou teme ser privado de um prazer
de que gozava, e "no momento pois em que o amor egoísta a si (filau­
cia) se encontra ferido pelo sofrimento"13• Ela se volta então contra

13. MÁXIMO CONFESSOR, Questões a Talássios, Prólogo.


200 0 I NCONSCIENTE ESPIRITUAL

aquele que é ou parece ser a causa da frustração, ou que ao menos a


ameaça, ou parece ameaçá-la.
Estando o prazer ligado ao desejo, é o desejo de bens sensíveis e
o apego a eles que estão, segundo os Padres, no fundamento primor­
dial da agressividade patológica.
O amor às coisas sensíveis e aos prazeres correlativos manifesta­
se de maneira diversificada nas paixões. De acordo com a concepção
ascética clássica, há três categorias de paixões ou três gêneros prin­
cipais de apego à realidade sensível que podem constituir para o ser
humano pretextos para a agressividade, se ele se encontra privado do
prazer que eles lhe dão ou ameaçado de perdê-lo ou ainda impedido
de atingi-lo: o apego ao alimento (paixão de gastrimargia); o apego ao
dinheiro, às riquezas e mais geralmente aos objetos materiais (pai­
xões de filargiria e de pleonexia) ; o apego a si mesmo (paixões de
vaidade e de orgulho) .
Entre estas fontes, a vaidade e o orgulho constituem a mais fun­
damental. Quando o ser humano se acha ferido em seu amor-próprio
(filáucia), quando se sente humilhado, ofendido, desconsiderado (so­
bretudo em relação à imagem vaidosa que ele tem de si mesmo e que
espera que os outros lhe devolvam) , ele recai nas diferentes formas
de agressividade. O que parece ser a causa exterior da agressividade
a motivá-la verdadeiramente de fato é apenas o revelador ou o cata­
lisador de uma agressividade que procede diretamente da própria
pessoa, de seu orgulho fundamental. Uma prova a contrario é que o
humilde permanece pacífico e manso no momento mesmo em que
é agredido com violência. Por meio da cólera, da raiva, do desejo de
vingança e das diversas formas de agressividade, o ser humano pro­
cura então restabelecer diante de quem o ofendeu e humilhou, ao
mesmo tempo em que diante de si, a imagem de si mesmo à qual se
apegou e que sente depreciada.
O desapego em relação ao seu eu decaído e a aquisição da hu­
mildade aparecem assim como terapêuticas espirituais fundamentais
da agressividade patológica.
Mas a terapêutica da agressividade supõe também um trabalho
de conversão da atividade (ou energia) do poder agressivo ou irascí­
vel (thumos) do qual ela procede.
As FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 201

A este respeito, é necessário lembrar que o poder irascível foi


dado por Deus ao ser humano no momento de sua criação e que faz
parte de sua própria natureza. Ele devia ter por função, de acordo
com o projeto do Criador, permitir ao ser humano lutar contra as
tentações e o Tentador, e evitar o pecado e o mal: assim estavam
definidos, desde a origem, sua finalidade natural e seu uso normal.
Depois do pecado ancestral ele conservava esta função, mas devia
permitir igualmente ao ser humano lutar contra as disposições ao mal
estabelecidas nele, a saber, as paixões, e conduzir "o bom combate",
isto é, o combate que deve levá-lo à pureza interior, à prática das vir­
tudes e à união com Deus. Mas o ser humano, ao pecar, desviou seu
poder irascível dessa finalidade, e, em vez de utilizar essa faculdade
para combater o Maligno e as diversas formas do mal nele, ele a virou
contra o seu próximo. Às vezes mesmo, em vez de utilizá-la para com­
bater e para mortificar seu eu decaído, ele a utilizou para combater e
para destruir seu eu verdadeiro e espiritual. Nos dois casos, fez deste
poder um uso contra a natureza. É esse uso contra a natureza do po­
der irascível que constitui a agressividade patológica, com as formas
diversas que conhecemos dela.
A terapêutica da agressividade consiste pois, fundamentalmen­
te, em desviar a atividade do poder irascível de seus maus investi­
mentos, quer se trate do próximo ou do eu verdadeiro (aquele que é
definido pela imagem e pela semelhança de Deus) , para voltá-la para
as tentações, os maus pensamentos, as paixões e todas as formas do
mal em si, ou ainda para o eu decaído (aquele que é constituído pela
separação de Deus, pela concentração em si mesmo e pelo apego a
este mundo pelas paixões) .
Essa conversão do poder irascível é u m dos princípios de base da
vida ascética e só pode encontrar seu valor e seu sentido no quadro
global dela.

6. Investimento perverso do desejo

Muitas doenças psíquicas comportam, no primeiro plano de seus sin­


tomas, uma patologia do desejo, a tal ponto que as neuroses puderam
202 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

ser consideradas "doenças do desejo". Pode se tratar de um enfraque­


cimento ou, ao contrário, de uma exaltação ou exacerbação, ou ainda
de uma perversão do desejo. Não foi à toa que Freud e Jung puseram
a libido - ainda que tivessem dela diferentes concepções - no centro
de sua compreensão da patologia psíquica. Na antropologia dos Padres
gregos, o poder desejante (epithumia, epithumetikon, epithumetike
dunamis) aparece, com a razão (logos) e o poder irascível (thumos),
como uma das três principais faculdades humanas. Do mau investi­
mento deste último depende, como mostramos em outra ocasião, uma
grande paite da patologia espiritual14• E parece-nos que uma parte im­
portante da patologia psíquica depende dele igualmente.
Lembremos que, de acordo com a antropologia cristã elaborada
pelos Padres, o ser humano foi criado para se unir a Deus. A facul­
dade desejante foi colocada em sua natureza para que ele pudesse
desejar a Deus, tender e se elevar para Ele, unir-se a Ele. Aí está para
ele o uso normal dessa faculdade, conforme a natureza dela, e que
contribui para constituir sua saúde.
A todo desejo está ligado um prazer; da orientação natural de
seu desejo para Deus o ser humano recebe um gozo espiritual. Este
"prazer (edone) divino e bem-aventurado" constitui para o ser hu­
mano a alegria mais alta - a que Cristo chama "a alegria perfeita"
(Jo 15, 1 1) -, uma alegria que ele não poderia atingir de nenhuma
outra maneira, visto que todo objeto fora de Deus, sendo finito, não
poderia trazer senão um gozo parcial e limitado.
Fazendo a história espiritual do ser humano, os Padres notam
que, em seu estado original, que a seus olhos constitui para o ser
humano o estado normal, ele orientava para Deus seu poder de amar
inteiramente e só recebia Dele todo prazer, toda alegria, toda felici­
dade. Certamente, ele podia gozar das próprias realidades sensíveis
(cf. Gn 2, 16), mas devia gozar espiritualmente, isto é, em Deus, por
meio de suas "razões" espirituais, em outras palavras, de seus logoi.
Pelo pecado, o ser humano desviou-se dessa obrigação que não
somente o unia a Deus, mas devia lhe permitir unir a Ele também toda

14. Thérapeutique des ma/adies spirituelles, 65-86.


As FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSIQUICAS 203

a criação nele. Assim, ele peiverteu sua própria natureza. Sobretudo,


pôs-se a considerar e a desejar as criaturas, e a querer gozar delas em si
mesmas, e para ele próprio, egoisticamente, isto é, fora de Deus.
Deixando de desejar e de amar a Deus, o ser humano interessa­
se então por um amor "carnal" por si mesmo (que os Padres chamam
de filáucia) , assim como pela realidade sensível, tirando doravante de
si mesmo e dessa realidade, principalmente através de seus sentidos
e portanto de seu corpo, todo gozo e todo prazer.
Esse desvio do desejo inato de Deus, essa inversão do poder
desejante do ser humano que o desvia de Deus, para quem ele es­
tava naturalmente orientado, para voltá-lo "contra a natureza" (para
phusin) ou "contra a razão" (para logon), para a realidade sensível
considerada em si mesma constitui uma peiversão, uma "desnatura­
lização" ou uma doença dessa faculdade, que afetam toda a natureza
do ser humano decaído.
As múltiplas formas de desejo pelas quais o ser humano decaído
busca diversas maneiras de obter o prazer sensível, ao qual doravante
ele dedica a sua existência, mas também os meios que ele coloca em
prática, psicológica e fisicamente, para afastar a dor tanto física como
psíquica que aí se prende inevitavelmente, constituem as paixões,
que são igualmente doenças espirituais.

Os desejos espirituais, que convergem no desejo de Deus, e os


desejos sensíveis, "carnais", não constituem, como poderíamos crer à
primeira vista, duas espécies de desejos diferentes em sua fonte: o ser
humano dispõe em seu ser de um poder único de desejo (epithumia,
epithumetikon, epithumetike dunamis) .
No ser humano que pode ser definido como normal (Adão antes
de seu pecado, o santo, homem restaurado em Cristo) , essa facul­
dade desejante, conforme a sua natureza, encontra-se inteiramente
voltada para Deus, "objeto" natural e normal do desejo humano.
Os desejos sensíveis que aparecem no ser humano decaído e
pecador não são outra coisa, em sua natureza profunda, a não ser
este mesmo desejo que, desviado de sua finalidade divina normal, se
orientou contra a natureza e reinvestiu na realidade sensível, dividin­
do-se na multiplicidade dessa realidade.
204 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

Todos os desejos do ser humano decaído aparecem assim cons­


tituídos pela decadência e pelo reinvestimento patológicos do desejo
natural e originário de Deus, por seu desvio contra a natureza, por
sua perversão; eles são seus sucedâneos.
Assim, investindo seu desejo em um domínio, o ser humano, por
este fato mesmo, o desvia automaticamente do outro. A partir deste
momento, quanto mais o ser humano deseja e ama os objetos sensí­
veis, menos ele deseja e ama a Deus. Inversamente, aquele que de­
seja e ama a Deus verdadeiramente não poderia desejar nenhum ob­
jeto sensível nem experimentar desejos apaixonados, porque investiu
em Deus e nas realidades espirituais todo o poder de seu desejo.
O fato de o desejo, desviado de um dos dois domínios (espiritual
ou sensível/carnal) onde ele se investia, encontrar-se necessariamen­
te reinvestido no domínio oposto explica-se pelo fato de o ser huma­
no não poder parar de desejar; portanto, se ele retira seu desejo do
objeto sobre o qual ele o tinha até então, imediatamente experimenta
a necessidade de lhe dar um outro.
Desviando seu desejo de Deus, que é seu fim próprio, natural,
normal, para orientá-lo para si mesmo e para os seres sensíveis e de­
les gozar fora de Deus, o ser humano muda indevidamente seu uso,
não o dirige mais conformemente à sua natureza, age contra a natu­
reza, de uma maneira literalmente insensata.
O desejo "desviado" do ser humano o faz viver em um mundo
pelo avesso, onde os valores são transtornados, onde as coisas perde­
ram sua ordem autêntica e suas verdadeiras proporções. Tanto mais
que, perdendo o sentido do verdadeiro Deus, ele chega, na orienta­
ção nova de seu desejo e na descoberta de novos gozos, a absolutizar
os desejos e os prazeres sensíveis, e através deles seus objetos, que
ele coloca assim no lugar de Deus. O ser humano faz então das rea­
lidades sensíveis uma multidão de falsos deuses, de ídolos para ele.
Encontramos aqui o processo patológico e patogênico de "idolifica­
ção" que evocamos anteriormente.
Em suas relações com as criaturas, o ser humano não tem mais
Deus em vista, mas seu próprio prazer, e não tem mais por norma a
não ser seus próprios desejos sensíveis. Não considera nem trata mais
f'.S FONTES ESPIRllUAIS DAS DOENÇAS PSIQUICAS 205

os seres relativamente às suas "razões espirituais" (logoi), mas rela­


tivamente ao grau de seu desejo a seu respeito, e é pela intensidade
do prazer que pode tirar deles que define sua importância e mede
seu valor. O mundo toma-se assim para o ser humano uma projeção
fantasmática de seus desejos, e as criaturas, meios de satisfazer suas
paixões, instrumentos de seu gozo sensível. As relações do ser huma­
no com todos os seres da criação e com seus próprios semelhantes
encontram-se assim totalmente pervertidas visto que estes, perdendo
a seus olhos seu valor espiritual, encontram-se reduzidos a objetos de
gozo dados em alimento a suas múltiplas paixões. As relações entre
os seres humanos tomam-se assim, no fundo, relações de objetos a
objetos entregues aos caprichos dos desejos e dos prazeres sensíveis.
Movido por seu desejo pervertido, o ser humano engana-se
constantemente na definição e na procura de seu bem, e do bem em
geral. No estado de queda, é o prazer que se torna o critério do bem.
O ser humano pode assim designar e buscar como um bem o que lhe
é agradável pela única razão de que isso lhe é agradável, mesmo que
lhe seja objetivamente prejudicial, e fugir como um mal do que lhe
é objetivamente um bem, somente pela razão de que isso lhe causa,
no plano de sua sensibilidade, um desprazer. Bem e mal são assim
definidos subjetivamente, a partir do desejo sensível e em função do
prazer buscado, e o ser humano realiza constantemente uma confu­
são entre o que lhe aparece ser o bem, relativamente a seu desejo
decaído, e o bem real e verdadeiro.
Sob o império dessa ilusão, o ser humano move-se em um mun­
do de aparências, não vendo e não considerando nada mais do que a
realidade sensível, a única que lhe designa seu desejo decaído, e crê
que não existe bem fora dela. Essa redução da realidade a uma parte
de si mesmo e a visão falsa que dela resulta aparecem igualmente
como um estado delirante instituído pela degradação do desejo, tan­
to mais que o ser humano, desejando os seres de acordo com sua
aparência sensível e fora de Deus, e pretendendo gozar deles em si
mesmos, deseja e goza de um fantasma, apega-se a alguma coisa que
não tem existência real.
Tendo desviado seu poder desejante de Deus para voltá-lo para
as realidades sensíveis, com o intuito de encontrar nelas um prazer
206 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

mais acessível e imediato, o ser humano vê sua esperança de gozo


profundamente decepcionada. A dor aparece assim como inevitavel­
mente ligada à experiência do prazer sensível.
Não é somente da dor física que o ser humano faz aqui a experiên­
cia, mas também e sobretudo de um sofrimento moral e psíquico que
toma a forma da tristeza e, em suas formas extremas, da depressão.
A tristeza que o ser humano experimenta vem do fato de que
o objeto do desejo e o prazer obtido estão em desproporção com
a natureza da faculdade desejante e com o gozo ao qual ela é des­
tinada. Vimos que o desejo do ser humano foi criado em vista de
Deus. Do mesmo modo, como vimos, o ser humano tinha por natu­
reza uma capacidade de gozar proporcionada aos bens divinos que
lhe foram prometidos. Tendo desviado de Deus seu poder de desejo
para orientá-lo para os objetos sensíveis, ele não oferece mais a esse
poder a não ser objetos finitos, parciais, limitados, relativos. Entre­
tanto, continuando a desejar o infinito e o absoluto, visto que pela
queda sua faculdade desejante não mudou de natureza, mas somente
de orientação, e permanece proporcional a seu objeto divino, original
e normal, o ser humano inevitavelmente está votado à insatisfação.
Nenhuma realidade deste mundo, necessariamente finita, está apta
a responder ao desejo infinito de infinito que está nele. Ao desejo de
gozo infinito que subsiste no ser humano, pertencente à sua própria
natureza, não respondem mais senão prazeres limitados e fugidios
que, apenas consumidos, deixam nele um vazio doloroso. Podemos
nos lembrar aqui da palavra de Cristo à samaritana: "Se alguém bebe
dessa água terá ainda sede" (Jo 4, 13) .
Decepcionado, depois da satisfação de cada um de seus desejos
sensíveis, continuando a sentir no mais profundo de si mesmo a falta
de alguma coisa, uma inadequação entre a realidade atingida e suas
aspirações fundamentais ( que ele sente sem conhecer entretanto seu
sentido verdadeiro) , o ser humano decaído corre de objeto em objeto,
esgota uma depois da outra as diferentes esferas deste mundo, sem
nunca encontrar para a sua busca o termo definitivo. Ele vive assim
em um estado de frustração permanente, de insatisfação ontológica
perpétua. Mesmo se a satisfação de algum desejo lhe dá, de vez em
As FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSIQUICAS 207

quando, por um instante, a ilusão de ter encontrado o que ele busca­


va, o objeto de desejo que ele tomava por um absoluto acaba por se
revelar a ele em seus limites e em seu caráter relativo - e descobre
todo o vazio que o separa do absoluto verdadeiro. Então, a tristeza se
faz mais intensa em seu coração, expressão de sua inquietação diante
desse vazio que ele sente, manifestação da frustração profunda que
ele experimenta.
Esse processo é vivido por todos os seres humanos em graus
diversos, mas nós o encontramos de uma maneira aguda em diversas
doenças psíquicas, nas quais alguns de seus elementos são exacerba­
dos: absolutização do desejo particular ou de seu objeto, fixação em
certas formas de prazer, sentimento de frustração ligado à insatisfa­
ção (este último fator particularmente presente nas depressões) .
A terapêutica espiritual está apta a desempenhar um papel im­
portante na cura, ajudando o doente a tomar consciência do caráter
relativo de seu desejo e do prazer ao qual ele se prende. Mais funda­
mentalmente, ela deve ajudar o doente a tomar consciência, de um
lado, do caráter "perverso" de seu desejo em seu estado decaído e,
de outro, do sentido original e verdadeiro desse desejo que corres­
ponde à sua natureza profunda, tal como ela subsiste no que chama­
mos de inconsciente "teófilo". A terapêutica deve então em seguida
ajudar o doente a converter seu desejo, a dirigi-lo no sentido oposto,
a reorientá-lo para o que São Gregório de Nissa denomina "a fina­
lidade divina".
Mas aqui ainda esse processo de conversão deve integrar-se a
uma ascese global que visa a reduzir as paixões, formas de investi­
mento patológico do desejo, e a colocar em prática as virtudes, for­
mas de afeição a Deus pelo desejo reinvestido n'Ele.

7. Supervalorização do eu

Um certo número de doenças psíquicas admite entre suas causas


uma supervalorização do eu. Esse estado espiritual patogênico de­
sempenha um papel importante especialmente na neurose histérica
208 O INCONSCIENTE ESPIRITUAL

e na psicose paranoica, mas muitas vezes o encontramos também na


esquizofrenia e em outras doenças psíquicas.
Ele pode incidir sobre certos aspectos do eu e ir a par com um
sentimento de desvalorização que a pessoa experimenta em relação a
outros aspectos de seu eu, ou ser a "compensação" de um sentimento
de desvalorização do eu que é mais profundo. Do sentimento de des­
valorização do eu falaremos na seção seguinte.
Na base da supervalorização do eu encontram-se três doenças
espirituais: a filáucia, a vaidade e o orgulho.

1 . A filáucia pode ser considerada a mãe de todas as paixões, isto


é, a fonte de todas as outras doenças espirituais15•
Há entretanto uma forma de filáucia virtuosa que pertence ao
estado espiritual normal do ser humano, recomendada por Cristo no
quadro do primeiro mandamento: "Amarás o teu próximo corrw a
ti mesrrw" (Mt 19, 19; 22,39; Lc 10,27) . Ela consiste em amar a si
mesmo como criatura à imagem de Deus chamada a realizar a seme­
lhança com Ele, e portanto a se amar em Deus e a amar a Deus em
si mesma. A filáucia-paixão é uma perversão dessa filáucia virtuosa
e consiste ao contrário no amor-próprio no sentido primeiro e não
edulcorado deste termo, isto é, no amor egoísta a si, no amor do eu
decaído, desviado de Deus e voltado para o mundo considerado em
suas aparências sensíveis, levando desde este momento uma vida car­
nal e não mais espiritual.

2. A kenodoxia, normalmente denominada "vanglória" ou "vai­


dade", consiste, em sua forma mais comum, em se mostrar orgulhoso
e em se gloriar de bens que se possui ou se acredita possuir, e em
desejar ser visto, considerado, admirado, estimado, honrado, louvado
pelos outros seres humanos.
Os bens dos quais o vaidoso se mostra orgulhoso, neste nível,
têm por característica comum ser terrestres, "carnais"; são uma con­
sideração e uma glória humanas que o vaidoso espera de sua posse.

15. Ver ibid., 151-157.


AS FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSIQUICAS 209

Assim, o vaidoso pode se gloriar e desejar a admiração de ou�


trem por dons que a natureza lhe outorgou como a beleza (real ou
suposta) de seu corpo ou de sua voz por exemplo, mas também por
seu porte, sua imponência e tudo o que contribui para lhe dar uma
bela aparência. Ele pode também se gloriar e esperar a consideração
por sua habilidade manual ou sua perícia neste ou naquele domínio.
A vaidade leva igualmente aquele que ela afeta a se elevar e a querer
ser admirado por sua situação social, suas riquezas, pelos bens mate­
riais que ele pôde adquirir ou ainda por seu poder.
Em um plano mais sutil, porque se situa menos no domínio da
aparência e da materialidade que os anteriores, se bem que seja qua­
se também tão difundido, a vaidade consiste, para aquele que é o su­
jeito disto, em se mostrar orgulhoso de suas qualidades intelectuais,
morais ou espirituais, e em buscar por isso a atenção, a admiração e
os louvores de outrem.
Como de todas as paixões, o ser humano tira da vaidade um cer­
to prazer que o prende fortemente a ela, e pela obtenção desse pra­
zer ele está pronto a fazer tudo e, paradoxalmente, a tudo sofrer. Por
causa desse prazer, muitas vezes poderoso, que cultiva sua filáucia, o
ser humano entrega-se à vaidade.
O caráter patológico da vaidade, como o de todas as outras paixões,
está essencialmente no fato de que ela é constituída pela perversão de
uma atitude natural e normal, pelo desvio de seu exercício "segundo a
natureza", conforme sua finalidade essencial, para um exercício "con­
tra a natureza". Foi dado por Deus à natureza do ser humano tender
à glória: mas é a glória divina que ele estava destinado a obter por sua
união a Deus, não a glória humana que a paixão busca, e que a tradi­
ção chama, segundo a expressão de São Paulo, de "glória segundo a
carne" (2Cor 1 1 , 18). Essa distinção entre os dois tipos de glória, a que
vem de Deus e a que vem dos homens, encontra-se em muitos textos
em que se trata da vaidade. Encontramo-la explicitada no evangelho
segundo São João (Jo 12,43); São Paulo refere-se a ela implicitamente
quando diz se gloriar em Jesus Cristo, precavendo-se contra o perigo
que teria em se gloriar fora de Deus (Fl 3,3: Gl 6,14). A glória que o
ser humano recebe de Deus por participação em Sua glória na união
21 0 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

com Cristo é a única que "merece verdadeiramente esse nome"16• É a


única a ser real, verdadeira, absoluta, eterna. Por outro lado, é a única
que corresponde à finalidade da natureza humana e que está na medi­
da da grandeza que Deus quis conferir ao ser humano.
Tendo se desviado de Deus por seu pecado, o ser humano, nesse
mesmo instante, deixou de tender a esta glória à qual sua natureza o
destina. Continuando por natureza a ser desejoso da glória, é então
no mundo sensível, para o qual ele se voltou, que ele procura satis­
fazer essa tendência nele presente. E é na glória mundana "segundo
a carne" que ele encontra sucedâneos da glória celeste e espiritual
que perdeu de vista. A busca da glória mundana aparece assim como
a maneira pela qual o ser humano compensa miseravelmente nele
a ausência da glória celeste. A vaidade aparece portanto constituída
por uma perversão, por um desvio patológico da tendência natural
do ser humano à glorificação, e também por um comportamento pa­
tológico de substituição consecutivo a uma frustração ontológica. O
fato de que se trata, aqui ainda, de uma mesma tendência orienta­
da em dois sentidos opostos, e não de duas tendências de essências
diferentes que podem coexistir independentemente uma da outra,
deduz-se claramente das múltiplas afirmações dos Padres quanto ao
fato de que a busca da glória celeste e a da vã glória são antagonistas
e exclusivas uma da outra, traduzindo-se o desenvolvimento de uma
por um enfraquecimento da outra.
A vaidade mergulha o ser humano na ilusão e no delírio: aí está
um de seus efeitos patológicos fundamentais, que justifica ser ela
frequentemente qualificada de "loucura" pelos Padres. Esse delírio
pode conhecer graus diversos, indo de formas inofensivas a formas
graves (indo até à identificação com uma segunda personalidade) ,
passando por formas "médias" (como a mitomania) .
De um ponto de vista espiritual, a vaidade revela que o ser huma­
no não tem suficiente fé em Deus, como indica esta censura de Cristo:
"Como podereis crer, vós que recebeis glória uns dos outros, mas não
procurais a glória que vem do Deus único?" (Jo 5,44) . Ao contrário, ela

16. ÜRÍGENES, Tratado do oração, 19.


As FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSIQUICAS 211

traduz um apego ao mundo: aquele que ela toca passa a ter fé nos seres
humanos, dos quais ele espera atenção, estima, admiração, louvores, e
em tudo o que é suscetível de suscitar neles essas atitudes a seu respei­
to. Eis por que os Padres qualificam o vaidoso de idólatra.
Na origem da vaidade há a ignorância. De fato, o vaidoso ignora
o valor verdadeiro das coisas das quais ele tira glória, assim como
dessa própria glória. Ele lhes confere uma realidade e uma importân­
cia das quais na verdade elas são desprovidas. Ele age como se elas
tivessem um valor absoluto e durável, quando são eminentemente
frágeis, provisórias. Ignora que só a glória divina é perfeita e eterna,
e que os motivos espirituais de glorificação em Deus são os únicos
autenticamente reais. A etimologia da palavra kenodoxia indica seu
caráter vão, fútil, frágil, fugaz, superficial (kenos significa literalmen­
te "vazio", "sem fundamento"), assim como o caráter do mundo cuja
figura passa ( l Cor 7,3 1 ) , onde ele busca o que o alimenta e que os
Padres, seguindo o profeta Isaías, comparam à flor da erva (Is 40,6- 7)
ou ainda a um sonho sem duração nem consistência.
Assim, a vaidade parece incluir uma visão delirante da realidade,
visto que, sob a sua influência, o ser humano deixa de conceder rea­
lidade, valor e importância àquilo que os tem para conferi-los ao que
é deles desprovido; sua visão do mundo é transtornada, invertida; seu
espírito erra na apreciação que ele dá das coisas. Essa percepção de­
lirante da realidade sob o efeito da vaidade aparece frequentemente
na realidade mais cotidiana e sob formas muitas vezes grosseiras.
Na forma mais "sutil" da vaidade, que consiste em valorizar diante
de si e diante dos outros as próprias qualidades intelectuais, morais
ou espirituais, o ser humano manifesta igualmente um conhecimento
delirante, sobretudo de si mesmo. De fato, por ela ele se atribui quali­
dades e virtudes que não possui, e não vê os defeitos e as paixões que
na realidade estão nele. Mas se ilude igualmente quando se gloria das
qualidades ou virtudes que possui verdadeiramente. De fato, ele se
considera a fonte e o proprietário dessas virtudes, enquanto de fato
elas são um dom de Deus e, fundamentalmente, só pertencem a Ele.
A vaidade destina aquele que ela habita a toda espécie de males.
Aqueles que agem a fim de ser glorificados pelos seres humanos já
21 2 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

receberam sua recompensa, diz Cristo ( Mt 6,2), que faz esta adver­
tência: "Ai de vós quando todos vos bendisserem" ( Lc 6,26).
Essa paixão destrói a paz interior agitando a alma de muitas ma­
neiras.
Primeiramente, ela faz que o ser humano fique preocupado em
obter a admiração e os louvores que deseja. Enche assim sua alma
de uma preocupação constante e o leva a uma agitação muitas ve­
zes febril e ansiosa. Essa preocupação se vê multiplicada quando não
chega a se satisfazer. Acontece assim frequentemente de o vaidoso
não somente não receber de outrem a atenção e a admiração gozadas
antecipadamente, mas ainda encontrar o resultado contrário. Em vez
dos louvores esperados, ele não suscita mais do que a indiferença;
pior ainda, atrai o ódio, provoca a inveja e o ciúme, faz nascer críti­
cas e sarcasmos, especialmente quando sua vaidade manifesta-se em
suas palavras ou transparece em suas atitudes. Tal situação não pode
deixar de gerar tristeza e angústia no ser humano, porque, de um
lado, se encontra frustrado do prazer esperado pela paixão, por outro
deve enfrentar a agressividade de seu meio ambiente, sofre com a
perda de relações harmoniosas com este meio e deve se preocupar
com a busca mais difícil de outros meios de se valorizar para substi­
tuir aqueles que fracassaram.
Sob o domínio da vaidade, o ser humano perde sua autonomia
e aliena-se não somente da própria paixão, mas de todos aqueles de
quem ela tem necessidade para se alimentar. Como toda outra pai­
xão, ela submete o ser humano a seus desejos carnais específicos e
ao prazer que lhe está ligado, mas também toma o ser humano de­
pendente do olhar e da consideração de outrem e escravo daqueles a
quem ele procura agradar porque espera seus louvores.
A vaidade tem por outro efeito perigoso e temível mergulhar o
ser humano em um mundo de fantasmas . De fato, sob sua inspiração,
o ser humano imagina ter todo tipo de qualidades, virtudes, méritos,
bens etc., representa-se a si mesmo em situações ou estados que lhe
valem considerações e louvores. Isso tem por primeira consequên­
cia patológica desprender o ser humano da realidade que ele vive,
desviar sua atenção do que o cerca, diminuir sua atividade em suas
f'.S FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 21 3

funções mais essenciais e paralisar seu dinamismo vital até colocar


sua alma em um estado de entorpecimento. Se cultivado e desenvol­
vido, este processo de fantasmação pode estar na origem de acessos
delirantes e mesmo de alucinações.

3. O orgulho (uperephania) comporta duas formas. Uma se ma­


nifesta particularmente nas relações do ser humano com seus seme­
lhantes; a outra refere-se mais à relação do ser humano com Deus.
a. A primeira forma de orgulho consiste para o ser humano em
se acreditar superior aos outros seres humanos ou ao menos a este
ou aquele entre eles, mas também em procurar essa superioridade
se ele já não pensa possuí-la. Em todos os casos o orgulho consiste
em se elevar seja sem motivo particular, seja por causa de qualidades
físicas, intelectuais ou espirituais reais ou supostas, de posição social,
de riquezas, de poder etc. Nesta elevação, o orgulhoso estima-se e
admira a si mesmo, felicita-se e louva-se interiormente. Encontra­
mos essas atitudes na vaidade, mas nesta última paixão o ser humano
espera mais os louvores dos outros, enquanto no orgulho ele se os
atribui mais a si mesmo, se bem que os dois processos estejam em
ação tanto em uma como na outra paixão.
Elevando-se, o orgulhoso correlativamente rebaixa o seu próxi­
mo. Ele o olha do alto, o despreza e chega a não fazer nenhum caso
dele, como se não fosse nada, atitudes que constituem um outro tra­
ço fundamental dessa primeira forma do orgulho.
O orgulho arrasta o ser humano a se medir com seu próximo e,
antes de afirmar sua superioridade em relação a ele, a afirmar o que
o distingue dele, a se acreditar diferente dele fundamentalmente. O
arquétipo dessa atitude nos é apresentado no Evangelho do fariseu,
por exemplo, que diz: "Eu não sou como o resto dos homens [ . ] , . .

nem como este publicano" ( Lc 18, 1 1 ) . Por orgulho, o ser humano


experimenta a necessidade de se comparar, de estabelecer hierar­
quias, antes de concluir por sua superioridade, absoluta ou relativa,
neste ou naquele domínio, até mesmo em todos aqueles que ele se
representa. Por isso, ele é levado sobretudo a julgar desfavoravel­
mente seu próximo e a criticar quase sistematicamente a maneira
deste de pensar e viver.
21 4 0 I NCONSCIENTE ESPIRITUAL

Essa forma de orgulho traduz-se em um certo número de atitu­


des que contribuem também para defini-la. O orgulhoso "ostenta o
que ele tem e se esforça em parecer mais do que ele é na realidade"17•
Nesta ocasião como em outras, ele se mostra arrogante, envaidecido
e contente consigo mesmo, cheio de segurança e de confiança em si
mesmo. A isto muitas vezes se acrescenta a pretensão de saber tudo
e a segurança quase constante de ter razão, de onde procedem a ma­
nia de se justificar assim como o espírito de contradição (igualmente
característicos dessa paixão), mas também a vontade de ensinar e de
comandar. O orgulho toma aquele que ele atinge cego a seus próprios
defeitos, faz-lhe recusar a priori toda crítica e odiar toda censura e
toda repreensão, e lhe toma intolerável ser comandado e dever se sub­
meter a quem quer que seja. Essa paixão se revela também em uma
certa agressividade: às vezes, a ironia é sua expressão, mas também o
azedume nas respostas às perguntas de outrem, o silêncio guardado
em certas circunstâncias, uma animosidade geral, o desejo de ultrajar
o próximo e a facilidade de fazê-lo. Essa agressividade se manifesta
regularmente em resposta às menores críticas dirigidas por outrem.
b. Enquanto a primeira forma de orgulho eleva o ser humano
diante de seus semelhantes, a segunda forma o eleva diante de Deus,
o ergue contra Ele. O orgulho apresenta-se então como uma nega­
ção ou uma recusa de Deus, que às vezes podem tomar para o ser
humano a forma de uma revolta aberta, mas se manifestam mais fre­
quentemente de maneira mais notável como "uma recusa do socorro
divino e a presunçosa confiança em suas próprias forças"18• O orgu­
lhoso recusa-se a considerar que Deus é o autor de sua natureza, o
princípio e o fim de seu ser, e também a fonte de todas as qualidades
e de todos os bens que ele possui, para atribuí-los a si mesmo.
Se essa segunda forma de orgulho ameaça particularmente os
espirituais, não teríamos razão em acreditar que ela poupa os ou­
tros seres humanos. Se frequentemente ela se faz notar menos nes­
tes é porque ela se acha difundida em todo o seu ser e consiste de

17. BASfLIO DE CESARÉIA, Pequenas regras, 55.


18. JoÃo CLÍMACO, A escada santa, XXII, 2.
AS FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 21 5

fato na manutenção de seu estado de separação de Deus. Viver fora


de Deus, levar uma existência totalmente autônoma, independente
d'Ele e se afirmar como o único princípio e fim de sua existência
é uma manifestação desse orgulho fundamental. Todo ser humano,
enquanto vive fora de Deus, O ignora ou O esquece mesmo que seja
por pouco tempo, O nega implicitamente e toma o Seu lugar, dando
assim provas do orgulho que o povoa. Podemos dizer que o ser hu­
mano se revela orgulhoso em algum grau enquanto ele permanece
em um estado de separação relativa de Deus .
As duas formas de orgulho, mesmo sendo muito diferentes, não
são por essa razão separadas e independentes. Elas são como as duas
faces do orgulho e estão sempre presentes, juntas no ser humano
decaído, se bem que uma possa em tal caso parecer tomar mais lugar
do que a outra. Se é verdade que a primeira forma ergue o ser huma­
no contra os seus semelhantes enquanto a segunda o ergue contra
Deus, de fato cada uma ergue o ser humano ao mesmo tempo con­
tra Deus e contra o seu próximo, porque é evidente que a atitude do
ser humano a respeito dos outros seres humanos, no fundo, é relativa
à sua atitude diante de Deus, e inversamente. Por outro lado, é claro
que a primeira forma de orgulho tem sua origem e seu fundamento na
segunda. Com efeito, se o ser humano se eleva e se estima ou admira
a si mesmo, é porque ele não reconhece que as qualidades, as virtudes
e todos os bens que ele pode possuir e acredita ter por si mesmo lhe
vêm de fato de Deus. Se ele rebaixa outrem, em parte é pela mesma
razão: desprezar os outros porque não souberam agir bem, por exem­
plo, volta a atribuir as boas ações às forças humanas em vez de referi­
las a Deus. Acreditar-se superior a outrem, procurar ultrapassá-lo,
colocar-se no cume ou se tomar como centro em todas as circunstân­
cias, atribuir-se todas as qualidades e virtudes ou ao menos algumas
num grau eminente equivale, por outro lado, para o orgulhoso a se
autodeifica1; a fazer de si um pequeno deus e, assim, tomar o lugar do
único verdadeiro Deus que é o absoluto verdadeiro, o cume e o cen­
tro, o princípio e o fim, o sentido e o valor de todas as coisas, a fonte e
o fundamento de todo bem, de toda qualidade ou virtude, o princípio
de toda perfeição. Porque fp: de si mesmo um absoluto, o orgulhoso
21 6 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

não admite rival, não sofre comparação que o ponha em desvanta­


gem, duvida de tudo o que pode contradizer a estima que ele tem por
si mesmo. Também por essa razão e para afirmar bem diante de si
mesmo e diante de outrem a superioridade que se atribui, ele critica
implacável e sistematicamente o seu próximo, o despreza e o rebaixa.
É diante de tudo o que é suscetível a seus olhos de questionar tal
superioridade que ele se mostra áspero e agressivo, querendo a todo
preço proteger a imagem vantajosa que possui e quer dar de si mes­
mo. Se ele despreza o seu próximo e o rebaixa, é ainda porque nega
a Deus, colocando-se em seu lugar, e assim nega a imagem de Deus
em seus semelhantes, que faz de cada um deles um filho de Deus em
potência e lhe confere por participação a dignidade e a superioridade
do próprio Deus. Porque deixa de venerar o seu próximo como ser à
imagem de Deus, e portanto de venerar Deus nele, ele é levado a não
fazer nenhum caso dele como se ele nada fosse. Porque o orgulhoso
tem fé em suas próprias forças em vez de colocar sua confiança na
graça divina e de reconhecer que sem ela ele nada pode, e porque,
por outro lado, ele afirma sua absoluta autonomia, recusando-se a ver
em Deus seu princípio e seu fim, ele se mostra cheio de arrogância e
auto-suficiente. Substituindo e opondo sua vontade própria à de Deus
e fazendo dela um absoluto, compreendemos que ele pretende co­
mandar, e ele próprio recusa-se a obedecer ou a se submeter a quem
quer que seja. É ainda porque não reconhece em Cristo o arquétipo
de sua natureza que toma a si mesmo por norma e referência em tudo,
mede tudo por si mesmo, pretende julgar tudo e tudo saber, acha-se
sábio, quer ter razão, tem a pretensão de ensinar e não suporta ser
contestado. De uma maneira geral, porque o orgulhoso está vazio de
Deus, ele está pleno de si mesmo.
O orgulho passa aos olhos dos Padres por uma grave doença e
até mesmo por uma forma de loucura.
A que se deve o caráter patológico do orgulho? Como para a
vaidade, podemos ver nele o resultado de uma perversão de uma ten­
dência fundamental da natureza humana. O ser humano foi criado
para se elevar para Deus e, finalmente, se unir a ele na plenitude do
amor e do conhecimento. O ser humano estava destinado a realizar
As FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSIQUICAS 21 7

essa elevação de si mesmo para Deus, em Deus, pela realização da


semelhança com Deus com base nas virtudes que tinham sido co­
locadas em germe em sua natureza e pela apropriação progressiva
da graça dada pelo Espírito Santo. É na sinergia de seus próprios
esforços e da graça divina, em outras palavras, em colaboração ou
em cooperação com Deus, que o ser humano estava destinado a se
elevar. Essa elevação de si mesmo deveria se realizar em união com
seu semelhante. Ora, o ser humano perverteu essa tendência natural
se auto-elevando, se auto-endeusando, querendo se tomar, segundo
a promessa da Serpente, "um deus'', por si mesmo e sem Deus, so­
mente por suas forças e sem a graça. Afirmando-se e elevando-se a si
mesmo sem Deus, ele se afirmou e se elevou contra Deus. Por outro
lado, em vez de se afirmar e de se elevar para Deus em comunhão
com seu semelhante, o ser humano se afirmou e se elevou contra ele,
dividindo assim sua única natureza humana.
Ainda podemos notar, no fundamento do orgulho, uma outra per­
versão, relativa à precedente. A atitude normal do ser humano, fazen­
do ou constatando nele algum bem, é referi-lo a Deus, ver nisso um
dom e render graças ao Doador, ao princípio e ao fim deste bem
como de todo bem. O próprio Cristo nos dá o exemplo dessa atitude
normal dizendo a um homem que o chama de "bom Mestre": "Por
que me chamas bom? Ninguém é bom, senão só Deus" (Me 10, 17-18).
O orgulhoso perverte essa atitude: ele relaciona o bem a si mesmo,
faz dele seu princípio e seu fim, e dá graças a si mesmo.
O caráter patológico do orgulho deve-se ainda a outros carac­
teres. Na base de todas as formas dessa paixão, notam os Padres, há
uma ignorância. Em primeiro lugar, tal ignorância é evidentemente
a ignorância de Deus. "O princípio do orgulho é o afastar-se do Se­
nhor", lemos no Eclesiástico (Eclo 10, 12). Essa ignorância primeira
gera no orgulhoso uma percepção delirante da realidade.
Primeiramente, essa paixão dá ao ser humano um conhecimento
delirante de si mesmo. De fato, o orgulhoso se eleva, se afirma su­
perior, crê por ele próprio ser alguma coisa ou alguém e ter esta ou
aquela qualidade, enquanto fora de Deus o ser humano "é apenas
barro" e tem apenas "bens" eminentemente frágeis, provisórios, des­
tinados ao desaparecimento, fundamentalmente irreais.
21 8 0 INCONSCI ENTE ESPIRITUAL

Esse delírio do orgulhoso no conhecimento que ele tem de si


mesmo aparece com evidência quando ele se atribui qualidades que
não possui de fato e quando se revela aos olhos de todos uma distân­
cia gritante entre o que ele pensa de si mesmo e a realidade.
Mas mesmo quando o ser humano se eleva por qualidades que
ele possui realmente ele delira, atribuindo-as a si mesmo quando elas
lhe vêm de Deus e ele só as possui por participação em Suas per­
feições. "Que é que possuis'', pergunta São Paulo, "que não tenhas
recebido? E, se recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como
se não o tivesses recebido?" ( l Cor 4,7) . Quando ele faz alguma coisa
de bem, o ser humano de algum modo é apenas um intermediário, e
não tem, por este fato, que conceber sua elevação. Isto não é verda­
de somente pelas boas ações que ele pode realizar, mas igualmente
por toda disposição boa, por toda qualidade ou virtude que pode ter,
porque, como mostramos, elas lhe foram conferidas por seu Cria­
dor e é somente pela graça divina que elas podem se desenvolver.
Atribuindo-as a si mesmo, o orgulhoso agrava seu delírio, visto que
ele se toma de fato, implicitamente, por Deus.
Para o ser humano, o conhecimento verdadeiro de si mesmo
consiste em saber que ele nada é por si mesmo, independentemente
de Deus. O orgulhoso que, de todas as maneiras que acabamos de
apresentar, pensa ser por si mesmo alguma coisa e concebe sua eleva­
ção dá provas da mais total ignorância de si mesmo. A este propósito,
podemos chegar até a dizer que o orgulhoso delira ou, em todo caso,
como diz o próprio São Paulo, se ilude: "Se alguém pensa ser alguma
coisa, não sendo nada, engana a si mesmo" ( Gl 6,3). Ignorando o que
ele é e percebendo de maneira delirante sua própria realidade, o or­
gulhoso só poderá ter um conhecimento falso dos outros seres.
Em primeiro lugar, o orgulhoso desconhece o próximo. Tivemos
a ocasião de dizer mais acima que se ele rebaixa o próximo e o despre­
za é porque ignora sua grandeza e sua dignidade de criatura à imagem
de Deus, e não o reconhece como seu irmão em Cristo. Suas relações
com o próximo se encontram, por este fato, perturbadas de múltiplas
maneiras. Sobretudo, em vez de elevar seu irmão em Deus, ao contrá­
rio, ele se eleva por ele, o reduz a ser apenas um meio de sua própria
glorificação ou um espelho que lhe reflete não a imagem de Deus, mas
N5 FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 21 9

sua própria imagem, ao menos a imagem que ele se faz de si mesmo


e espera que lhe enviem novamente. Por outro lado, em vez de viver
com o outro como um próximo em Deus, de considerá-lo n'Ele como
um semelhante e um irmão, o orgulhoso procura se distinguir deles,
afirmar sua própria singularidade e sua superioridade em um modo
de relação que toma a forma da oposição. Cada ser humano, é verda­
de, é único, é uma pessoa distinta das outras, isto é, tem uma maneira
própria de realizar a natureza humana e de manifestar a imagem di­
vina, e é chamado a desenvolver carismas próprios; há assim entre os
seres humanos diferenças, alguns manifestam mais qualidades e dons
que outros. Entretanto, essas diferenças encontram em Deus sua uni­
dade fundamental ( l Cor 12,4-6. 1 1 ) . No quadro de relações sadias,
a unicidade de cada pessoa se afirma em relação com a das outras,
sob a forma não de uma oposição, mas de uma complementaridade,
em vista da utilidade comum ( lCor 12,7), na unidade da comunidade
humana cujo arquétipo é a Igreja, corpo de Cristo. Cada membro
tem sua função, sua utilidade, sua importância, e não pode pretender
ficar sem os outros ( lCor 12,2 1 ) . Ninguém é desprezível e de menos
valor ou dignidade, e aqueles que têm menos qualidades ou dons são
os mais honráveis ( lCor 12,22-25). O orgulhoso, em vez de utilizar
seus carismas próprios para ajudar os membros do corpo que são me­
nos bem providos, e entrar assim com eles em um relacionamento
unitivo de complementaridade vivido em Deus, com um sentimento
de humildade e de fraternidade, desvia esses dons dessa finalidade
normal para utilizá-los egoisticamente em afirmar sua singularidade
em oposição a seu próximo e se colocar no ápice de uma hierarquia
na qual ele reduz os outros a ser os degraus inferiores desvalorizados.
As diferenças e mesmo as desigualdades, em vez de ser abolidas em
Deus na unidade do corpo, são ao contrário sublinhadas. O próximo
toma-se um rival. O orgulho revela-se aqui separador e divisor, pro­
fundamente perturbador das relações entre os seres humanos e, em
consequência, fonte de males inumeráveis.
Tomando-se incapaz pelo orgulho de se voltar para Deus e de
se abrir realmente ao próximo, o ser humano volta-se para si mesmo,
fecha-se no universo restrito desse seu eu que ele exalta. Em todas as
220 0 I NCONSCIENTE ESPIRITUAL

suas reações, permanece prisioneiro de si mesmo. O orgulho aparece


então como algo que constitui uma negação da caridade, e por isso
como algo que institui a destruição de todas as relações harmoniosas
que a caridade permite, tanto com Deus como, n'Ele, consigo mesmo
e com o próximo. O orgulhoso perverteu a capacidade de amor que
Deus deu ao ser humano para que ele se unisse a Ele, desviando-a de
sua finalidade normal para voltá-la para si mesmo. O orgulhoso ama o
seu eu e não ama nada mais senão ele próprio. Vemos que o orgulho
se assimila aqui à filáucia.
O orgulho é para a alma uma fonte permanente de sofrimento.
O orgulhoso pode sofrer com a distância entre o que ele crê ou quer
ser e o que sente ser realmente. Pode sofrer também por ver amea­
çadas ou desmentidas a imagem vantajosa que ele tem ou quer dar de
si mesmo e a superioridade que ele afirma em relação a outrem. Ele
se mostra também perpetuamente insatisfeito na elevação que busca,
porque nunca pode atingir o cume e sua pretensão não conhece fim.
O orgulho destrói assim a paz interior e mergulha o ser humano
em um estado de perturbação permanente. Isto tanto mais que o ser
humano, diante de seus semelhantes, atinge quase sempre um efeito
contrário daquele que esperava: em vez da consideração, colhe mais
frequentemente desprezo e sarcasmo.
O temor que o orgulhoso tem de ver contestada e malvista a ima­
gem vantajosa que tem de si mesmo pode além disso tomá-lo des­
confiado, suscetível, sensitivo, e fazer nascer e desenvolver-se nele
o sentimento de que é perseguido, e perturbar dessa outra maneira
suas relações com seu próximo. Essa suscetibilidade o arrasta, além
do mais, a se mostrar agressivo, em compensação, diante daqueles
que o criticam ou que ele suspeita que o fazem. Esses traços ma­
nifestam-se muito claramente na psicose paranoica, mas aparecem
também no caráter paranoico que constitui seu terreno.
O orgulho é não somente uma fonte frequente de conflitos com
outrem, mas ainda a causa que os cultiva e impede de harmonizar
novamente as relações perturbadas. O orgulho, quando não impede
aquele que ele domina de reconhecer seus erros em si mesmo, o
impede de confessá-los publicamente e de pedir perdão àquele que
foi lesado. Essa atitude manifesta-se, aliás, tanto em relação a Deus
AS FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 221

como em relação ao próximo: sublinham os Padres que o orgulho


leva o ser humano a não ver seus pecados, a esquecê-los, e portanto
a guardá-los, e assim perpetua o estado de separação de Deus. Em
compensação, o orgulhoso não esquece as ofensas dos outros contra
ele e alimenta em seu coração um rancor que espalha em sua alma
uma perturbação dolorosa e nociva.

A terapêutica da filáucia consiste essencialmente em sua conver­


são em caridade, a qual consiste no amor autêntico a si, no amor ao
próximo e no amor a Deus, estando os três profundamente ligados
e envolvendo-se mutuamente. Nós examinamos, em outra circuns­
tância, as condições de aquisição da caridade nestas três formas e
reenviamos a esta exposição19• A forma menos conhecida de cari­
dade é, sem dúvida, a que se exerce a respeito de si mesmo, e que
São Máximo Confessor chama de "bela filáucia". Falaremos disso na
seção seguinte, onde ela será mais diretamente implicada.
No que se refere à terapêutica da vaidade, porque esta é busca
da glória humana, mundana, terrestre, o ser humano que quer vencê­
la deve antes de tudo reconhecer a vaidade de tal glória, sobretudo
tomando consciência da inconsistência de seus fundamentos e do
nada dos fins que ela persegue.
Porque a vaidade é busca de consideração, de renome, de honra,
de glória, convém renunciar a tudo o que pode ser fonte ou oca­
sião disso. Porque a vaidade é desejo de ser notado, aquele que quer
combatê-la deve evitar tudo o que pode singularizá-lo em suas pala­
vras, seus atos e seus comportamentos. Aquele que quer ficar livre da
vaidade deve, ao contrário, fazer tudo para se tomar ou para perma­
necer ignorado dos seres humanos.
Diante dos outros seres humanos cuja vaidade espera admiração
e louvor, aquele que quer vencer a vaidade deve não somente escon­
der suas qualidades eventuais (intelectuais, morais ou espirituais),
mas ainda não esconder suas faltas aos outros.
De uma maneira geral, e aí está um remédio fundamental con­
tra a vaidade, o ser humano deve aceitar o desprezo e a humilhação.

19. Ver nossa Thérapeutique des maladies spirituelles, 729-760.


222 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

Essa aceitação tem uma função libertadora; ela cura o ser humano
da vaidade quando busca a glória mundana, a admiração ou mesmo
a estima dos outros.
Mas a vaidade é também uma paixão pela qual o ser humano
se estima, se admira, honra a si mesmo e se glorifica a seus próprios
olhos . Para combatê-la neste nível, o ser humano deve ignorar pri­
meiramente suas eventuais qualidades e esconder a seus próprios
olhos o que ele tem de bom nele e o que fez de bem.
Observamos que a glória que vem dos seres humanos e a glória
que vem de Deus são antagonistas e mutuamente exclusivas. Se o ser
humano deve renunciar a toda glória humana é a fim de ter acesso à
glória divina, à qual sua natureza o destina. Enquanto ele permanece
apegado à glória terrestre não pode de modo algum saborear a glória
celeste. Eis por que a humilhação é o caminho obrigatório, a condição
indispensável para participar da glória divina. Como vimos, o ser hu­
mano tende por natureza à glória, mas a glória que vem de Deus é a
única que lhe convém verdadeiramente. Assim, ele deve se glorificar
exclusivamente em Deus, conforme a palavra do Apóstolo: "Nós nos
gloriamos em Cristo Jesus e não confiamos na carne" (Fl 3,3), e segun­
do a promessa de Deus: "Eu glorificarei aqueles que me glorificam"
( l Rs 2,30). Sua busca pela "glória segundo a carne" (2Cor 1 1 , 18) deve
ser substituída pela busca da "glória que vem só de Deus" (Jo 5,44).
Quanto mais o ser humano tende à glória divina, tanto mais ele
se desinteressa pela glória que vem dos homens. Eis por que o amor
a Deus e à Sua glória aparece como um meio de libertar a alma da
vaidade.
A este respeito, devemos notar o papel essencial que desem­
penha a oração, que permite ao ser humano desprender-se deste
mundo que a vaidade tem por objeto e apegar-se a Deus, e que lhe
permite também glorificar a Deus, reconhecendo que é a Ele "que
pertencem toda glória, honra e adoração''.
A terapêutica do orgulho apresenta um certo número de pontos
comuns com a terapêutica da vaidade.
Porque o orgulho consiste em geral em uma elevação de si mes­
mo em relação aos outros e em relação a Deus, o ser humano só pode
f'.S FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 223

se curar dele esforçando-se em todas as circunstâncias para evitar se


elevar, destruindo a disposição habitual da paixão por uma desabi­
tuação progressiva da atitude que a caracteriza, o que implica que
dê provas de uma vigilância interior constante.
Nesta tarefa ele será ajudado pela consideração da vaidade e do
nada das coisas sobre as quais, na paixão, ele fundamenta sua supe­
rioridade: instabilidade de todas as coisas humanas, fugacidade das
riquezas, do poder, fraqueza e fragilidade do próprio ser humano
submetido neste mundo à doença, ao envelhecimento e à morte, e
que sem Deus é apenas "terra e cinzas, sombra e fumaça"2º.
Como vimos, o orgulho se traduz por diferentes atitudes: con­
fiança excessiva em si, auto-satisfação, arrogância, segurança, preten­
são de saber, confiança no próprio julgamento, certeza de ter razão,
mania de se justificar, espírito de contradição, vontade de ensinar, de
comandar, recusa de se submeter. Esforçando-se em adotar atitudes
contrárias o ser humano poderá, neste plano, combater o orgulho:
ódio da vontade própria, desconfiança do próprio julgamento, re­
núncia à autojustificação, desaprovação de si, recusa de contradizer,
recusa de ensinar e de comandar, atitudes que se encontram todas
concluídas na obediência ao pai espiritual.
Para evitar a primeira forma de orgulho, que consiste em se con­
siderar superior aos outros, ou ao menos a outros, e em desprezá-los,
o ser humano deve aplicar-se antes de tudo a observar neles em que
lhe são superiores, a recusar-se a ver seus defeitos e a valorizar suas
qualidades. É neste sentido sobretudo que São Máximo diz que "a
caridade suprime o orgulho"21• O ser humano deve chegar até mesmo
(sem cair em uma desvalorização patológica de si) a se considerar
inferior a todos.
A lembrança de seus pecados contribui para tirar o sentimento
de sua superioridade, revelando-lhe sua miséria espiritual. Seu orgu­
lho se encontra tanto mais reduzido quanto mais esta consciência se
acompanha de contrição.

20. Cf. JoÃo CRISÓSTOMO, Homilias sobre os Atos, XXX, 3; Himilias sobre 2 Tessa­
lonicenses 1, 2 ; Homilias sobre Oséias IV,4; Comentário sobre João XXXIII,3.
21. Centúrias sobre a caridade, IV, 61.
224 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

A aceitação das humilhações, sob diversas formas, ajuda igual­


mente a cura da paixão.
Na medida em que o orgulho consiste em conceber elevação
pelas qualidades naturais possuídas (de qualquer natureza que se­
jam), o remédio está no reconhecimento de que todo bem procede
de Deus. A este respeito, convém meditar nesta palavra do Apóstolo:
"Quem é que te distingue? Que é que possuis que não tenhas rece­
bido? E , se recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se
não o tivesses recebido?" ( lCor 4,7) .
A oração, especialmente s e é permanente, constitui u m remédio
fundamental para o orgulho, na medida em que o ser humano, quan­
do reza, pede ajuda, socorro e proteção de Deus e, por conseguinte,
não pode não ter consciência de que o que obtém em resposta à sua
oração vem de Deus como um dom e não é atribuível a suas próprias
forças nem a seus próprios méritos. A oração de ação de graças ajuda
igualmente a vencer a paixão na medida em que, por ela, o ser huma­
no, se a pratica com um coração partido e contrito e não à maneira
do fariseu, reconhece imediatamente Deus, e não ele próprio, como
o princípio e o fim dos bens que ele possui, e então não se considera
senão o indigno depositário deles. Mas, bem entendido, o papel da
oração é também pedir a ajuda de Deus para a cura dessa própria
paixão de orgulho, que, mais do que as outras paixões, pode escapar
totalmente da ação terapêutica dos homens .
A maior parte dos meios de curar a vaidade e o orgulho apre­
sentados acima são também meios de adquirir a humildade (tapei­
nophrosune), que constitui na verdade o principal remédio para a
vaidade e o orgulho, pois é a virtude que lhes é oposta e chamada a
se substituir a eles.
Em outra ocasião demos uma descrição dessa virtude e os meios
de adquiri-la22• Reenviamos a esta descrição, lembrando que a humil­
dade desempenha um papel considerável na cura das doenças espi­
rituais do ser humano e, consequentemente, nas doenças psíquicas
ligadas a essas doenças espirituais.

22. Thérapeutlque des maladies spirituelles, 692-709.


Af, FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSIQUICAS 225

8. Desvalorização patológica do eu

A desvalorização patológica de si mesmo encontra-se em muitas doen­


ças psíquicas. Ela ocupa um lugar essencial na depressão e na melan­
colia. Além disso, é necessário observar que muitos problemas relacio­
nais presentes na maioria das neuroses estão ligados a ela.
Vários Padres afirmam que, paradoxalmente, a desvalorização
patológica de si tem sua fonte na filáucia. Porque o ser humano só
tem realidade verdadeira em Deus (na medida em que foi criado à
imagem de Deus e destinado por sua natureza a adquirir a semelhan­
ça com Ele), amando-se, na filáucia, independentemente de Deus,
ele não pode amar-se verdadeiramente, porque ama nele um outro
diferente de si, um eu que não é ele próprio e, de certa maneira,
odeia assim indiretamente o que ele é realmente.
Como sublinhou São Máximo Confessor, a filáucia procede da ig­
norância de Deus e da ignorância de si. A filáucia está ligada a uma
representação falsa, fantasmática, ilusória que o ser humano tem de si
mesmo. E muito frequentemente é em relação a uma falsa representa­
ção de seu verdadeiro eu que o ser humano se sente desvalorizado.
É encontrando o conhecimento do que ele é realmente, toman­
do consciência da relação profunda e íntima de seu ser com Deus em
sua origem e seu fim - relação que está, como vimos, já presente
em sua própria natureza, mas que é para ele, de imediato, inconscien­
te - que o ser humano pode encontrar uma representação valoriza­
dora de si mesmo.
Entretanto, essa tomada de consciência não é suficiente. Só na
conversão da filáucia-paixão em filáucia-virtude o ser humano pode
encontrar o amor autêntico a si, cuja desvalorização patológica de si
constitui o defeito ou a ausência.
A filáucia-virtude, que São Máximo Confessor chama de "bela
filáucia'', é uma forma da caridade. De fato, se a caridade é primeira­
mente o amor a Deus e em segundo lugar o amor ao próximo, ela é
amor ao próximo "como a si mesmo", segundo o próprio ensinamen­
to de Cristo: "Amarás o teu próximo corrw a ti mesrrw" ( Mt 22,39;
Me 12,31; Lc 10,27) . A caridade inclui pois o amor a si: philautia. No
226 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

próprio quadro do cristianismo, o esquecemos muito frequentemen­


te ou recusamos vê-lo, por medo de confundir esse amor espiritual
com o amor egoísta a si. Por isso precisamos lembrar que essa filáucia
virtuosa não tem nada a ver com a filáucia que é a mãe de todas as
paixões; ela é mesmo sua antítese. Porque, enquanto a filáucia-paixão
consiste em se amar segundo a carne, e por si mesmo, narcisicamen­
te, fora de Deus, a "filáucia espiritual" consiste ao contrário em se
amar espiritualmente, em Deus e em vista de Deus, naquilo que se é
profundamente atualmente, isto é, como pessoa criada à imagem de
Deus, e naquilo que se é chamado a se tomar: pessoa à semelhança
de Deus, filho de Deus por adoção e deus por graça. Portanto, ela
consiste também em se amar por causa do amor total e indefectível
que Deus tem pela pessoa que se é, única e insubstituível, tendo a
Seus olhos um valor absoluto, inalienável e eterno.
O amor espiritual a si ou filáucia virtuosa aparece aqui subordi­
nado ao primeiro mandamento, que é amar a Deus, pois amar a si
mesmo espiritualmente equivale a se amar em Deus e para Deus.
Amor a Deus e filáucia virtuosa envolvem-se aliás reciprocamen­
te: amar-se em sua realidade espiritual de imagem de Deus e de pes­
soa amada por Deus conduz a amar a Deus. Inversamente, como diz
Santo Antônio o Grande, "quem ama a Deus ama a si mesmo"2.3.
Enquanto a filáucia-paixão é apego do ser humano à sua indivi­
dualidade, a um eu voltado para si mesmo, opaco e que exclui Deus,
por isso privado de toda realidade e de toda vida verdadeiras, a fi­
láucia virtuosa, ao contrário, é plena abertura a Deus, total transpa­
rência às Suas energias. Enquanto na primeira forma de amor a si o
ser humano, sem se dar conta, de fato é "amante de si mesmo contra
si mesmo", segundo a expressão de São Máximo Confessor, na fi­
láucia espiritual ele se ama verdadeiramente, em sua realidade mais
profunda e mais essencial, que tem em Deus seu fundamento, seu
princípio e seu fim. Enquanto a filáucia-paixão aliena o ser humano,
a filáucia virtuosa o ajuda, em Deus, a se encontrar a si mesmo, em
sua realidade espiritual autêntica.

23. Cartas, IV, 9. Cf. NICOLAU CABASILAS, A vida em Cristo, VII, 66.
AS FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSIQUICAS 227

Enquanto a filáucia-paixão leva o ser humano, em virtude de uma


atitude e de um comportamento egoístas, a relações perturbadas com
seu próximo, podendo chegar até o ódio, a filáucia-virtude é uma das
chaves do amor ao próximo, como indica o mandamento formulado
por Cristo: "Amarás o teu próximo como a ti mesmo" ( Mt 22,39; Me
12,31; Lc 10,27) . Somente na medida em que o ser humano se ama
verdadeiramente, naquilo que ele é fundamentalmente, em Deus e
por Deus, ele pode amar seu irmão espiritualmente, sem que este
amor seja maculado por algum elemento apaixonado ou carnal; ele
pode amá-lo em sua natureza verdadeira de pessoa criada também à
imagem de Deus e também chamada a assemelhar-se a Ele; ele pode,
pois, amá-lo como alguém que partilha a mesma natureza e como um
outro filho, por adoção, do mesmo Pai, como um irmão em Cristo.
Assim, Santo Antônio, o Grande, escreve: "Quem sabe amar a si mes­
mo ama também os outros"24• Reciprocamente, o amor espiritual a si
supõe o amor ao próximo: para se amar verdadeiramente a si mesmo
é preciso amar o seu irmão, sublinha São João Crisóstomo25•

9. Relação patológica com o corpo

Diversas doenças psíquicas são acompanhadas de uma relação pato­


lógica com o corpo.
Pode tratar-se de uma erotização do corpo ou da utilização do
corpo como meio de atrair a atenção e a afeição, como na neurose
histérica. Pode tratar-se também de uma detestação e de uma re­
jeição do corpo, como na anorexia (na qual a pessoa pode também
utilizar o corpo como meio de atrair a atenção e a afeição). Pode
ainda tratar-se de uma má integração do corpo à pessoa, podendo o
corpo, nos casos extremos, ser percebido como um objeto exterior e
estranho, como na esquizofrenia.
Poderíamos acrescentar a isso diversas perturbações da rela­
ção com o corpo que, sem se integrar a doenças psíquicas definidas,

24. Cartas, IY, 7.


25. Homilias sobre Timóteo VII,1 .
228 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

têm no entanto um caráter patológico. Tais perturbações desenvol­


veram-se consideravelmente na sociedade moderna e traduzem-se
pelo recurso a atividades e a tratamentos diversos que têm por fi­
nalidade conformar o corpo a um ideal de juventude ou de beleza.
Frequentemente elas têm como pano de fundo o medo da exclusão,
da velhice e da morte.
Quer se trate de uma erotização do corpo ou de uma detestação
e de uma rejeição dele, encontramos na base de todas essas atitudes
um apego excessivo e patológico ao corpo que depende, espiritual­
mente, da paixão de filáucia. Essa afirmação é paradoxal no caso em
que o corpo parece detestado, rejeitado até mesmo recusado, mas
a rejeição do corpo é também uma marca da importância que lhe
é concedida, se bem que esta importância seja falsamente avaliada,
com o corpo tendo a ele atribuído um valor negativo.
É pela tomada de consciência de que o corpo é uma dimensão
da pessoa e por este motivo não só merece respeito, mas deve ser
objeto do amor espiritual autêntico, que a pessoa deve a si mesma em
sua integralidade, que o ser humano pode se curar de suas relações
de apego, tanto positivas como negativas, a seu corpo. Aqui ainda, a
filáucia-paixão deve ser convertida em filáucia-virtude.
Se o ser humano ama realmente a si mesmo em sua realidade
espiritual, em Deus, ele não pode mais tratar seu corpo como um ins­
trumento de atração (no caso da erotização), e portanto como um
objeto, nem detestar e rejeitar seu corpo como um objeto vil ou es­
tranho a si mesmo.
A ascese corporal (principalmente o jejum, secundariamente as
vigílias e o trabalho cansativo) pode ajudar o ser humano a manter
seu espírito nos limites do corpo e a reintegrar seu próprio corpo em
si mesmo. Do mesmo modo, as formas de oração acompanhadas de
gestos corporais (sinais-da-cruz, prostração) ou que envolvem uma
participação permanente do corpo e uma união estreita deste com
a alma e o espírito (como a oração do coração) podem ajudar o ser
humano a reencontrar a unidade fundamental de sua alma e de seu
corpo e o sentido do valor do corpo, em virtude do papel espiritual
que ele é chamado a desempenhar em colaboração estreita com a
alma e o espírito.
N5 FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 229

Ao mesmo tempo, convém dar novamente ao doente um co­


nhecimento justo do valor positivo que o cristianismo reconhece no
corpo. Porque, infelizmente, algumas formas desviantes de espiri­
tualidade, sobretudo no Ocidente, desenvolveram nas mentalidades
um desprezo e uma rejeição do corpo que, consciente ou incons­
cientemente, inspiram ou confirmam a atitude negativa que algu­
mas pessoas têm em relação a seu próprio corpo. Devemos lembrar
que o cristianismo é uma religião da Encarnação, que acredita que o
Filho de Deus, tomando-se homem, tomou um corpo e não somen­
te uma alma e um espírito, com a finalidade não somente de salvar
o corpo, ao mesmo tempo que a alma, mas de deificá-los e tomá-los
assim, na pessoa, indissociavelmente participantes dos bens divinos
prometidos aos fiéis. O fato de que, na comunhão, os fiéis recebam
por seu corpo o próprio corpo de Cristo é a expressão mais concreta
e mais alta dessa verdade da fé cristã. A comunhão eucarística, além
de todas as suas virtudes espirituais, pode contribuir assim para dar
ao ser humano o sentido do valor sagrado de seu corpo, tomado
receptáculo do Verbo encarnado e, segundo a palavra de São Paulo,
templo do Espírito Santo26•

1 O. Perturbação da relação com outrem

As perturbações da relação com outrem são um sintoma comum na


maior parte das neuroses e, por razões diferentes, na maior parte das
psicoses.
Elas podem consistir em "dificuldades relacionais" e tomar a for­
ma de inibições (fuga dos outros, dificuldades em estabelecer contato
e em entrar em relação com eles), relações conflituais (nas quais a
agressividade está presente sob diferentes formas ) .

26. Sobre o lugar do corpo n o cristianismo e n a espiritualidade ortodoxa, ver nossos


estudos: Ceei est nwn corps. Le sens chrétien du corps selon les Peres de l' É glise, Geneve,
1996; Ce corps qui naus est cher, in Le Chrétien devant la maladie, la souffrance et la nwrt,
Paris, 2002, 23-29; Le corps dans la spiritualité orthodoxe, in P. WELLS (éd. ), Le corps et le
christianisme, Cléon d'Andran/Aix-em-Provence, 2003, 23-37.
230 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

Podem também tomar a forma de uma familiaridade excessiva,


em que o respeito ao outro e o pudor diante dele são abolidos.
Elas podem ainda tomar a forma de relações artificiais e "tea­
tralizadas" (refugiando-se o indivíduo atrás de um papel ou de um
personagem, utilizando uma linguagem formal como uma barreira
colocada entre ele e outrem), impedindo o estabelecimento de re­
lações interpessoais. Na neurose histérica, esta teatralização vem
acompanhada de uma erotização das atitudes e do discurso.
Esta terceira forma de perturbação encontra a primeira na me­
dida em que ela testemunha também, à sua maneira, dificuldades
relacionais.
Essas perturbações da relação com outrem têm um fundamen­
to espiritual no plano psicológico. Elas se apóiam na conjugação de
vários fatores: em primeiro lugar, uma representação errada que a
pessoa tem de si mesma e uma maneira errada de se assumir; em
segundo lugar, uma representação errada que ela tem do outro. Es­
tes dois fatores estão ligados a um terceiro: as diversas paixões que
falseiam a relação consigo mesmo e com o outro.
O primeiro fator põe em jogo um conhecimento errado de si e
uma atitude errada diante de si mesmo. É assim que a supervaloriza­
ção de si e a desvalorização de si, que analisamos anteriormente, de­
sempenham, tanto uma como a outra, um papel determinante como
fonte de perturbação das relações com outrem. Nos dois casos, o re­
médio fundamental é a terapêutica da filáucia, que é a fonte comum
dessas duas atitudes. A humildade aparece como o remédio principal
da supervalorização de si mesmo, enquanto a filáucia-virtude, o amor
autêntico a si em sua dimensão espiritual, aparece como o remédio
principal da desvalorização de si mesmo. No entanto, a humildade
desempenha também um papel terapêutico em relação à desvaloriza­
ção de si: ela ajuda a pessoa a se assumir naquilo que pode lhe pare.:
cer insuficiente ou medíocre em sua personalidade e que ela procura
esconder aos outros na fuga, no desempenho de um papel ou nas
outras diversas barreiras que ela coloca entre si e eles.
O segundo fator põe em jogo um conhecimento errado do ou­
tro e uma atitude errada em relação a ele. O outro, por falta de ser
As FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSfQUICAS 231

percebido em sua realidade espiritual profunda de criatura à imagem


de Deus e de pessoa chamada a realizar a semelhança com Deus, a
ser salva e deificada, é percebido na dimensão superficial (porque
desconectada dessa realidade espiritual) de suas aparências físicas e
psicológicas.
O terceiro fator de perturbação da relação com outrem é consti­
tuído pelas diversas paixões.
Em razão das paixões de orgulho e de vaidade, mas também de
temor, o outro é muitas vezes visto como um rival, um adversário ou
mesmo um inimigo, real ou potencial, de quem convém desconfiar,
em relação ao qual devemos tomar distância ou, então, que deve­
mos mesmo atacar preventivamente para melhor nos proteger dele.
A terapêutica passa aqui ainda pela humildade (que ajuda a curar do
orgulho e da vaidade), mas também pela confiança em Deus (que
ajuda a evitar o temor) e antes de tudo pela caridade, que desenvolve
a priori uma atitude positiva a respeito do outro, reconhecido em
seu valor espiritual essencial, mas também aceito em sua diferença e
desculpado em suas fraquezas. O amor contribui também para banir
o temor, segundo a palavra de São Paulo.
A agressividade patológica (designada pela ascética clássica como
paixão de "ira") constitui também, em uma forma original ou deriva­
da, um fator importante de perturbação das relações com outrem,
e sua terapêutica constitui portanto um elemento essencial da tera­
pêutica espiritual posta em prática diante dessa última. Já abordamos
anteriormente este assunto e não voltaremos a ele aqui.
Como Freud sublinhou (sem dúvida excessivamente) , os fatores
sexuais desempenham um papel importante na perturbação das re­
lações com outrem. Entre os fatores espirituais que constituem uma
fonte de perturbação das relações com outrem convém mencionar
a paixão de luxúria (porneia), que engloba, para os Padres, todas as
formas de paixões sexuais.
Lembremos que o amor verdadeiro, fundamentado espiritual­
mente, é abertura ao outro e livre dom de si. Cada uma das duas pes­
soas que ele une se dá à outra e a recebe em troca. Nesta comunhão,
cada uma se enriquece e se desabrocha em toda a extensão de seu
232 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

ser e até a infinidade divina, na medida em que, como deve, o amor


é alimentado pela graça e encontra a sua finalidade no Reino. Ao
contrário, a luxúria é uma atitude filáutica, revela um amor egoísta a
si. Ela volta para si mesmo aquele que ela possui e o fecha totalmente
ao outro. Impede todo intercâmbio, visto que, com sua influência, o
apaixonado só tem em vista seu interesse próprio, não dá nada ao ou­
tro e quer unicamente receber dele, reduzindo além disso o que ele
quer receber somente ao que responde ao seu desejo apaixonado. O
que obtém, ele o considera mais o resultado de seu próprio desejo do
que o dom do outro: o apaixonado se dá a si mesmo ao outro; o outro
é para ele apenas um simples intermediário entre si e si mesmo. A
luxúria aprisiona assim o ser humano em seu eu decaído, mais exata
e restritivamente no mundo confinado e fechado de sua sexualidade
carnal, de seus instintos e de seus fantasmas, e o fecha totalmente aos
mundos infinitos do amor e do espírito.
A luxúria é muitas vezes o desejo e o gozo de uma representação
imaginária do outro. Então, este não existe como pessoa ou como
próximo, mas como objeto fantasmático, concebido por projeção dos
desejos do apaixonado. Tal visão do outro não pode deixar de ter uma
incidência sobre a maneira com a qual o apaixonado poderá conside­
rar, na realidade, os seres concretos que correspondem à sua paixão.
Haverá, inevitavelmente, uma superposição do imaginário sobre o
real, produzindo uma visão deste modificada por aquele.
Mas a visão do outro na realidade não é somente falseada por meio
de um imaginário que teria precedido essa visão. Quando a paixão se
exerce em uma relação direta com uma pessoa concreta e presente, ela
realiza uma redução desta última. Na luxúria, o outro não é encontrado
como uma pessoa, não é percebido em sua dimensão espiritual, em sua
realidade fundamental de criatura à imagem de Deus: ele se encontra
reduzido ao que, em sua aparência externa, é suscetível de responder
ao desejo de gozo do apaixonado, toma-se para ele um simples instru­
mento de prazer, um objeto. Mesmo em alguns casos sua interioridade
é negada assim como toda a dimensão de seu ser que transcende o
plano sexual, sobretudo a dimensão da consciência, da afetividade su­
perior e da vontade. Por outro lado, o apaixonado ignora a liberdade
AS FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSIQUICAS 233

do outro, na medida em que ele só tem em vista a satisfação de seu


próprio desejo, que se apresenta a ele com mais frequência como uma
necessidade absoluta que ignora o desejo do outro. Em consequência
de tudo isso, o outro não é mais reconhecido, nem respeitado em sua
alteridade nem no caráter único de sua realidade pessoal, os quais só
podem se revelar na expressão de sua liberdade e na manifestação das
esferas superiores de seu ser; porque, reduzidos pela luxúria à dimen­
são genérica e animal de uma sexualidade carnal, os seres humanos
tomam-se praticamente intermutáveis como objetos.
Acontece assim que sob o efeito da luxúria o ser humano vê o
próximo como ele não é e não o vê como ele é. Em outras palavras,
ele adquire uma visão delirante daqueles que sua paixão o faz en­
contrar. A partir deste instante, todas as suas relações com eles se
encontram completamente pervertidas.
Alhures, mostramos com pormenores27 como a terapêutica da lu­
xúria se realiza pela aquisição da continência (egkrateia), isto é, pela
capacidade de dominar e de reprimir os desejos e as pulsões sexuais
incompatíveis com as exigências da ética espiritual, e pela castidade
(sophrosune), que consiste em uma atitude de desprendimento e de
pureza interior diante da sexualidade, esta por sua vez recolocada em
seu único quadro legítimo, segundo a ética cristã: o do amor conjugal.
Convém insistir em particular no fato de que a terapêutica da
luxúria - depois de uma "conscientização" dos investimentos per­
versos do desejo em um estado decaído do ser humano e daquilo
para o qual tende em sua realidade espiritual profunda - consiste
fundamentalmente em uma conversão do desejo, de tal modo que
o amor espiritual tome o lugar do amor carnal (isto é, apaixonado),
segundo a célebre observação de São João Clímaco: "É casto aquele
que bane o eras sensual pelo eras divino e apaga o fogo da terra pelo
fogo do céu"28•
A castidade (virtude oposta à paixão de luxúria) ajuda não somen­
te a libertar a sexualidade de todas as suas formas perversas e a lhe dar

27. Thérapeutique des ma/adies spirituelles, 573-589.


28. A escada santa, XV, 2.
234 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

seu verdadeiro lugar na vida do casal, ressituando-a no contexto espiri­


tual que deve ser o seu, mas ainda a dessexualizar as relações humanas,
a eliminar todos os fatores de ordem sexual que, psicologicamente, se
interpõem entre ele e outrem, e que falseiam a relação, quer sejam da
ordem do desejo ou do temor, da atração ou da repulsão.

1 1 A tristeza e a acédia
.

A tristeza e a acédia são duas paixões ou doenças espirituais que fo­


ram longamente analisadas e cuja terapêutica espiritual foi muito
cuidadosamente elaborada pela ascética clássica. A hoje chamada
depressão é amplamente tributária dessas duas doenças espirituais e
depende pois, em numerosos casos, de tal terapêutica.
A. A tristeza (lupe) aparece como um estado da alma constituído,
além do que a própria palavra pode indicar, de desânimo, astenia, peso
e dor psíquicos, abatimento, aflição, opressão, depressão, acompanha­
do mais frequentemente de ansiedade ou até mesmo de angústia.
Esse estado pode ter causas múltiplas, mas é sempre constituído
por uma reação patológica da faculdade irascível (thurrws) e/ou da
faculdade desejante da alma (epithumia, epithumetikon, epithumeike
dunamis), aparecendo no primeiro caso como uma continuação da
ira (orge) e no segundo como a continuação de uma frustração dos
desejos. Pode igualmente ser produzido na alma por uma ação direta
dos demônios, ou ainda nascer aí sem motivo aparente.
Examinemos com pormenores estas diferentes etiologias.
1) Os Padres notaram que geralmente a tristeza é constituída
pela insatisfação de um desejo carnal ou pela decepção de alguma
coisa que se espera. Estando o prazer ligado ao desejo, podemos ain­
da dizer, seguindo Evágrio Pôntico, que "a tristeza é a frustração de
um prazer presente ou esperado".
Enquanto ela é o resultado da frustração de um desejo carnal
(no sentido amplo deste termo, que se opõe a "espiritual") e do pra­
zer que nele se prende, a tristeza revela um apego daquele que ela
afeta aos bens sensíveis, aos valores deste mundo.
AS FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 235

Muitas vezes, também vemos a tristeza provocada pela perda de


um bem sensível ou por alguma pena sofrida neste mesmo plano.
A tristeza pode também ser suscitada pela vontade não satisfeita
de algum bem material, intelectual, moral ou espiritual possuído por
outrem.
Da mesma maneira, ela pode ter por causa uma decepção na
busca das honras, e está pois, neste caso, ligada à vaidade ou à van­
glória.
Notemos entretanto que a tristeza pode não ser provocada pela
frustração de um desejo particular, incidindo sobre um objeto bem
determinado: ela pode estar ligada a uma insatisfação geral, a um
sentimento de frustração global, incidindo sobre toda a existência e
revelando que os desejos profundos e fundamentais da pessoa (dos
quais esta nem sempre conhece claramente o verdadeiro significado)
não estão satisfeitos. Geralmente, é quando ela tem este tipo de cau­
sa que acontece, no plano psicológico, o que é comumente designado
pela palavra "depressão".
2) Os Padres observam que, em segundo lugar, a tristeza pode
vir da ira, especialmente da vingança não satisfeita. Se às vezes ela
resulta do sentimento de que a ira foi excessiva ou desproporcionada
ao que a motivou, ela vem frequentemente da impressão de que,
ao contrário, não foi suficiente no fato de que não manifestou com
bastante vigor o que se experimentava ou não provocou naquele ou
naqueles a quem se dirigia a reação que se gozava antecipadamente.
A tristeza pode ser igualmente produzida por uma ofensa.
Em quase todos esses casos esta paixão revela um apego a si
mesmo e encontra-se ligada à vaidade e ao orgulho, como aliás a ira
que ela segue. Ela manifesta uma reação do eu frustrado em seu
desejo de afirmação de si mesmo e reduzido a menos do que ele se
considera. A raiva, à qual se prende muitas vezes a tristeza, aliás é o
ressentimento do orgulho ferido, e a ira, fonte da mesma paixão, ex­
pressa frequentemente uma vontade de reafirmação, de elevação, de
segurança do eu diante de si mesmo e de outrem. A tristeza aparece
então como a expressão do sentimento de fracasso ou de impotência
que o eu experimenta nessa tentativa de reabilitação de si mesmo.
236 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

3) Pode acontecer que a causa da tristeza permaneça desconhe­


cida e que esta pareça pois sem motivação. "Acontece'', nota São João
Cassiano, "que estejamos repletos de uma angústia súbita e sem cau­
sa; nós nos sentimos acabrunhados por uma tristeza para a qual não
se encontra absolutamente motivo". O limite toma-se então pouco
preciso entre esta espécie de tristeza e a paixão da acédia que logo
examinaremos.
4) Os Padres observam igualmente que os demônios desempe­
nham um papel importante no nascimento, no desenvolvimento e na
perpetuação de todas as formas de tristeza. A irrupção de tal senti­
mento na alma é, aliás, um dos efeitos mais imediatos da ação diabó­
lica. E podemos dizer inversamente que todo estado de tristeza na
alma é, em todas as circunstâncias, o sinal de uma ação demoníaca,
cuja intensidade pode ser variável.
Embora acontecimentos exteriores possam suscitar e motivar a
tristeza, é necessário sublinhar que, na verdade, não é nestes aconte­
cimentos que ela tem sua fonte: eles são a ocasião, não a causa, que
está unicamente na própria alma do ser humano, mais precisamente
na atitude que ele adota diante dos acontecimentos exteriores, assim
como diante de si mesmo.
Mesmo quando são os demônios que suscitam ou sustentam es­
tados de tristeza, eles só podem fazê-lo porque encontram na alma
um terreno favorável e beneficiam-se de uma certa participação (mais
ou menos consciente) da vontade do ser humano. Frequentemente,
a tristeza preexiste à intervenção demoníaca, e esta não faz senão
aproveitar-se da situação para desenvolver a paixão.

A paixão de tristeza pode tomar a forma extrema do desespero


(apognosis). Esta é uma de suas manifestações particularmente graves.
Segundo os Padres, o diabo desempenha um papel particular­
mente importante no nascimento do desespero, e pode provocar na
alma, por intermédio desse estado, consequências catastróficas. De
fato, nesse estado o ser humano fundamentalmente desespera de
Deus e, em consequência, se corta d'Ele. Por isso deixa o campo
livre à ação demoníaca e entrega-se à morte espiritual. O próprio São
Paulo nota que "a tristeza do mundo produz a morte" (2Cor 7,10) .
AS FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSIQUICAS 237

Fonte de morte espiritual, o desespero pode também levar o ser


humano a dar a morte ao seu corpo: incitando-o a não esperar mais
nada da vida, ele imprime em sua alma ideias de suicídio e o leva a
realizá-las.

Os efeitos patológicos da tristeza são importantes e perigosos.


Além de produzir quase inevitavelmente o desespero e suas gra­
ves consequências, se a deixamos se desenvolver essa paixão produz,
desde as suas primeiras manifestações, atitudes apaixonadas como
o azedume, a maldade, o rancor, a amargura, a raiva, a impaciência.
Por isso, ela perturba gravemente as relações do ser humano com o
seu próximo.
Como todas as outras paixões, ela enche a alma de obscuridade,
cegando a inteligência e reduzindo consideravelmente sua capacida­
de de discernimento. Um de seus efeitos específicos é tomar a alma
pesada. Aliás, ela produz no ser humano inteiro um estado de astenia
e tibieza, toma-o pusilânime e paralisa sua atividade.

B . A acédia (akedia) é vizinha da tristeza, a tal ponto que a tra­


dição ascética, da qual São Gregório Magno é o inspirador no Oci­
dente, reúne estas duas paixões em uma só. Entretanto, a tradição
ascética oriental as distingue, com toda a razão.
O termo grego akedia é retomado em latim com a forma acedia
e em português com a forma "acédia": de fato, é difícil dar a esta pa­
lavra uma tradução ao mesmo tempo simples e completa; as palavras
"preguiça" ou "tédio", pelas quais ela é com frequência traduzida,
expressam apenas uma parte da realidade complexa que ela designa.
A acédia corresponde certamente a um certo estado de pregui­
ça e a um estado de tédio, mas também de repugnância, de aversão,
de cansaço e igualmente de abatimento, de desânimo, de languidez, de
torpor, de indolência, de letargia, de sonolência, de peso, tanto do cor­
po como da alma, podendo mesmo impelir o ser humano ao sono sem
que ele esteja realmente cansado.
Há na acédia uma insatisfação vaga e geral. No momento em
que está sob o domínio dessa paixão, o ser humano não tem mais
238 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

gosto para nada, acha todas as coisas enfadonhas e insípidas, não es­
pera mais nada de nada. Como os precedentes, este sintoma no plano
psíquico é característico da depressão.
Um outro traço da acédia, ligado aos anteriores na medida em
que procura inconscientemente compensá-los, é que o ser humano
atingido por ela toma-se psíquica e fisicamente instável. Suas facul­
dades tomam-se inconstantes; seu espírito, incapaz de se fixar, vai de
um objeto a outro. Sobretudo quando está sozinho, não suporta mais
permanecer no lugar em que se encontra: a paixão o leva a sair de lá,
a se deslocar, a ir a um ou diversos outros lugares. Às vezes, ele põe­
se a andar errante e a vagabundear. De uma maneira geral, procura
a todo custo contatos com outrem. Esses contatos não são objetiva­
mente indispensáveis, mas, levado pela paixão, ele sente necessidade
deles e encontra "bons" pretextos para justificá-los. Assim, estabelece
e cultiva relações muitas vezes fúteis que alimenta com vãos discur­
sos, nos quais manifesta geralmente uma vã curiosidade.
Pode acontecer que a acédia inspire àquele que ela atinge uma
aversão intensa e permanente pelo lugar onde reside, que lhe dê mo­
tivos para estar descontente, o leve a acreditar que estaria melhor
em outro lugar. Então, ele é levado a desejar outros lugares onde
poderia encontrar mais facilmente aquilo de que tem necessidade. A
acédia pode também levá-lo a fugir de suas atividades - sobretudo
de seu trabalho, com o qual ela o toma insatisfeito - e, então, o leva
a procurar outros, fazendo-o acreditar que serão mais interessantes e
o tomarão mais feliz . . .
No entanto, devemos notar que, em alguns casos, a acédia não
gera tais fatores compensatórios, mas vem acompanhada por uma
volta total sobre si mesmo, por uma aversão a qualquer deslocamento
e pela recusa de todo contato com o exterior - neste caso os fatores
de inércia e inapetência levam a melhor.
Quaisquer que sejam, estes estados que se ligam à acédia vêm
acompanhados de inquietação e ansiedade, que são, além da repug­
nância, caracteres fundamentais dessa paixão.
O que distingue essencialmente a acédia da tristeza é que nada
de exato a motiva, que "o espírito é perturbado sem razão", como diz
Af, FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 239

São João Cassiano. Mas que ela não tenha motivo não significa que
não tenha causa. De acordo com os Padres, a etiologia demoníaca é
preponderante no caso. No entanto, para poder agir, ela supõe um
terreno favorável. O fato de estar ligada ao prazer e sob o domínio da
tristeza constitui um fato particularmente notável.
O principal efeito patológico da acédia é um obscurecimento ge­
ral da alma (fator que já encontramos na tristeza) : ela toma o espírito
obscuro e o cega, e cobre de trevas toda a alma. A inteligência perde
então toda capacidade de discernimento e de conhecimento objetivo
da realidade.
Os Padres constatam ainda que a acédia, que constitui um "re­
laxamento da alma" e um "deixar-se levar do espírito", gera o vazio
na alma, leva o ser humano a uma negligência generalizada e o toma
covarde. Unida à tristeza, ela a aumenta, e pode então facilmente
conduzir ao desespero. Tem como outras consequências notórias tor­
nar irritável aquele que ela atinge.

A terapêutica espiritual da tristeza varia segundo suas diferentes


causas.
1) A primeira causa possível da tristeza é a frustração de um pra­
zer presente ou esperado e portanto, mais fundamentalmente, a perda
de um bem sensível, a frustração de um desejo carnal ou a decepção de
uma esperança carnal. No caso de tal etiologia a terapêutica da tristeza
implica essencialmente a renúncia aos desejos e aos prazeres "carnais",
e correlativamente o desapego de todos os "bens" sensíveis, chegando
até o desprezo deles. Tendo toda paixão em seu fundamento um desejo
carnal na busca do prazer sensível, não precisamos dizer que a tera­
pêutica da tristeza é relativa à terapêutica das outras paixões.
O ser humano submetido à carne é ávido não somente de bens
materiais, mas ainda de honras e de glória humana, e nós observa­
mos, ao analisar a paixão da tristeza, o laço estreito que ela mantém
com a paixão de vaidade, a decepção na busca das honras e da gló­
ria neste mundo, sendo uma causa frequente de tristeza tanto para
aqueles que já os possuem mas desejam maiores como para aqueles
que aspiram a sair do anonimato. Neste caso, a terapêutica da tristeza
240 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

implica o desprezo a essa glória e a essas honras mundanas, ou me­


lhor, uma total indiferença a seu respeito, quer sejamos beneficiados,
quer sejamos privados delas.
2) Uma segunda causa essencial da tristeza é a ira, seja ela a con­
tinuidade ou a consequência de uma ofensa sofrida, tomando então
frequentemente a forma da raiva.
Em todo caso, convém perdoar o ofensor, abandonar toda raiva
contra ele e, ao contrário, dar provas a seu respeito de benevolência
e de caridade.
Antes de acusar o ofensor, aquele que foi ofendido deve acusar a
si mesmo, seja porque se reconhece digno da ofensa por causa de seu
estado de pecado, seja porque reconhece tê-la provocado por uma
palavra, uma atitude ou um gesto inconvenientes diante do outro.
3) Vimos que ao lado das formas de tristeza das quais é possível
determinar a causa com precisão existe uma tristeza "sem motivação",
que pode aparecer na alma sem razão aparente. Neste caso, não é pos­
sível encarar um remédio específico, e é uma terapêutica de caráter
geral que convém realizar, aliás a mesma que completa as terapêuticas
definidas pelas formas de tristeza anteriormente consideradas.
É importante que o ser humano sob o domínio da tristeza não
se volte sobre si mesmo, o que favoreceria o desenvolvimento dessa
doença, mas se abra sobre seu estado e manifeste seus pensamentos
a espirituais experimentados e converse sobre isso com eles. Assim,
poderá ser liberto destes pensamentos e ouvir palavras consoladoras
que constituirão para ele uma ajuda insubstituível.
É preciso sublinhar também o papel da oração, que, em todas
as suas formas, constitui, segundo os Padres, o principal remédio
para a tristeza, qualquer que seja sua origem. Se a salmodia se revela,
segundo a experiência dos antigos, um modo de oração particular­
mente eficaz contra a tristeza que vem diretamente dos demônios, a
oração do coração, praticada com vigilância e atenção, aparece como
o remédio por excelência de todas as formas de tristeza.

No que se refere à acédia, vimos que ela tem por particulari­


dade atribuir as culpas a todas as faculdades. da alma e abalar quase
As FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 241

todas as paixões. Esta particularidade necessita de uma terapêutica


espiritual multiforme.
A terapêutica supõe primeiramente que a doença tenha sido di­
vulgada e descoberta como tal, porque essa paixão tem por caracte­
rística estar sem motivação e, em consequência, ser muitas vezes in­
consciente e incompreensível, tanto mais que um de seus principais
efeitos é, como vimos, cegar o espírito e tomar obscura toda a alma.
Por isso São João Cassiano escreve ainda que aquele que quer com­
bater como é necessário "deve se apressar em extirpar esta doença do
segredo de sua alma".
Quando a acédia manifesta-se na forma de uma tendência à le­
targia, convém resistir-lhe esforçando-se para não ceder ao entorpe­
cimento ou ao sono. Em todos os casos, nota São João Cassiano, "a
experiência prova que não escapamos à tentação da acédia fugindo,
mas que é preciso superá-la resistindo-lhe".
Entretanto, a resistência à paixão nunca dá fruto imediatamente.
A vitória sobre a acédia supõe quase sempre um combate longo e
assíduo. Também a terapêutica exige antes de tudo que demos pro­
vas de paciência e de perseverança. A virtude da paciência aparece
mesmo como um dos principais remédios para esta paixão.
A esperança aparece como um outro remédio fundamental que
deve estar associado à paciência. A esperança a ser posta em práti­
ca é não somente a de ser, a mais ou menos longo prazo, liberto da
paixão e de obter o repouso, mas ainda a dos bens futuros que, nota
São João Clímaco, constitui o "julgamento" dessa paixão e a "aniquila
completamente".
Um terceiro remédio essencial é constituído pelo arrependi­
mento, pelo luto (penthos) e pela compunção (katanuxis)29•
O temor de Deus30constitui igualmente um antídoto poderoso con­
tra essa paixão; "nada é tão eficaz'', afirma mesmo São João Clímaco.
Entre os remédios prescritos pelos Padres, devemos citar ainda
o trabalho manual (São João Cassiano em particular consagra a ele

29. Sobre estas disposições espirituais, ver nossa Thérapeutique des maladies spiri­
tuelles, 352-368.
30. Sobre o sentido desta disposição espiritual, ver ibid. , 659-676.
242 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

longas exposições e elogia seus benefícios). De fato, ele pode ajudar


o ser humano a evitar o tédio, a instabilidade, o torpor e a sonolência
que são, por um lado, constitutivos dessa paixão. Ele pode contribuir
para estabelecer ou para manter a assiduidade, a continuidade de
presença, de esforço e de atenção que supõe a vida espiritual e que a
acédia procura romper. Sobretudo, ele se opõe diretamente ao ócio,
que é uma das formas principais que pode tomar a acédia e fonte de
males inumeráveis.
Enfim, a oração constitui o mais fundamental de todos os re­
médios para a acédia, porque o ser humano não pode ser totalmente
liberto dessa paixão a não ser pela graça de Deus, e só pode receber
essa graça pedindo-a pela oração. Sem este último remédio, todos os
outros têm uma eficácia apenas parcial; e é dele, ao contrário, que
tiram toda a sua força. Por isso, o combate à paixão, a resistência que
se lhe opõe, a paciência demonstrada, a esperança manifestada, o
luto e as lágrimas, a memória da morte, o trabalho manual devem ser
acompanhados pela oração, que os fundamenta em Deus e faz que
eles não sejam mais meios simplesmente humanos.

Se a ligação dos estados depressivos com a tristeza e a acédia


é frequente, entretanto ele não deve ser concebido de maneira ex­
clusiva e estreita. Porque, por um lado, esses estados podem estar
ligados a fatores espirituais que excedem o quadro das paixões de
tristeza e de acédia e, por outro, a depressão pode ter causas corpo­
rais ou somáticas.
Um desses outros fatores espirituais que intervêm nas depres­
sões é o do sentido que o ser humano dá à sua existência. No domínio
da psicoterapia, esse fato foi particularmente sublinhado pela corren­
te qualificada de "psicanálise existencial".
Um outro fator importante é a natureza do apego que o ser hu­
mano manifesta a respeito de si mesmo, dos outros e das realidades
deste mundo.
Um terceiro fator é a natureza da relação do ser humano com
outrem.
Um quarto fator é o valor que o ser humano pensa ter a seus
próprios olhos e aos olhos dos outros.
f'.S FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSIQUICAS 243

Um quinto fator está ligado à consciência que o ser humano tem


de sua culpabilidade.
Sobre estes diferentes pontos, a análise que os Padres desenvol­
veram pode nos ajudar a aprofundar nossa compreensão, e o modo
de vida espiritual que eles preconizam pode trazer um certo núme­
ro de soluções que podem ajudar, se não a cura, ao menos a melhora
ou a prevenção de um certo número de estados depressivos.
De fato, em uma vida cristã autêntica, é dado ao ser humano co­
nhecer e viver o verdadeiro sentido de sua vida, um sentido que não
é ilusório, que não pode enganá-lo, nem decepcioná-lo, nem levá-lo
à morte, porque lhe é dado por Aquele que é o Logos (em outras
palavras, a razão de ser no duplo sentido de princípio e de fim - e
portanto de sentido - de todas as coisas), por Aquele que disse: "Eu
sou o Caminho, a Verdade, a Vida" (Jo 14,6) .
A vida espiritual ajuda também o ser humano, pelo combate
contra as paixões, a ser liberto de todos os apegos falsos, ilusórios
e patogênicos, quer seja a si mesmo, aos outros ou às coisas deste
mundo, e pela prática da virtude permite-lhe substituí-los por um
amor a Deus, por um amor a si mesmo e a seu próximo em Deus, e
por um amor às realidades espirituais, que não podem decepcioná-lo
nem lhe ser tiradas.
Justamente pelo amor, e pelas outras virtudes que ele com­
preende e que nele se unem, ele pode estabelecer relações sadias
com outrem, isentas de ansiedade, de sentimento de insegurança ou
de agressividade.
Por este amor e pela oração ele pode adquirir a certeza de que
Deus o ama, quaisquer que sejam sua situação ou seu estado, que aos
olhos de Deus ele é insubstituível e tem um valor absoluto, e que este
valor que tem aos olhos de Deus é mais importante do que o que pode
ter aos olhos dos outros e a seus próprios olhos.
A humildade e a penitência ajudam-no a se situar e a se atribuir
seu lugar e sua responsabilidade, a evitar toda superavaliação de si
mesmo, mas também todo falso sentimento de culpabilidade. Aliás,
o sacramento da confissão permite-lhe obter o perdão de Deus e a
certeza de ser purificado de seus pecados, reencontrar a paz interior
e empreender um novo começo.
244 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

Enfim, convém sublinhar o papel positivo da fé e da esperança,


que o ajudam a evitar o terrível desespero que leva à morte e, mesmo
nas situações mais difíceis, a ficar ligado à vida que o Criador lhe
deu, a cultivar a confiança em Deus e a esperar a salvação que Cristo,
aceitando Ele próprio sofrer na carne, veio trazer a todos os seres
humanos sem exceção.
Estas considerações, entre outras possíveis, mostram que a solu­
ção para os estados depressivos que envolvem causas espirituais não
reside somente na cura da tristeza ou da acédia, mas em uma terapia
espiritual global que exige a luta contra todas as paixões (as quais estão
todas ligadas) e envolve correlativamente a prática de todas as virtudes.
Constatamos uma vez mais que a cura dessa ou daquela doença psíqui­
ca, ligada a essa ou àquela doença espiritual, não pode ser o fruto de
uma terapêutica parcial e fragmentada, mas é tributária do conjunto da
vida "ascética", que é ela própria indissociável da vida eclesial.

1 2 . Falsa representação da realidade

Todas as doenças psíquicas têm em sua fonte uma falsa representa­


ção da realidade, quer se trate de si mesmo, dos outros ou do mundo
ao redor.
Essa falsa representação da realidade encontra suas formas mais
extremas nos delírios que encontramos nas psicoses. Nestas formas,
as causas orgânicas muitas vezes desempenham um papel determi­
nante (da mesma maneira, por exemplo, que os delírios que acom­
panham a febre ou a ação do álcool ou das drogas); elas dependem
pois de uma terapêutica medicamentosa. Todavia, o conteúdo desses
delírios - assim como o dos sonhos - depende em grande parte
da visão do mundo que tem o indivíduo, de seus desejos, de seus te­
mores e de seu estado afetivo. Um dos problemas encontrados pelo
terapeuta é que os delírios têm uma força e um domínio sobre o
doente que os tomam, na maior parte dos casos, resistentes a toda
retificação por uma reflexão e um discurso racionais. A terapêutica
medicamentosa constitui então um adjuvante não somente útil, mas
Af. FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSIOUICAS 245

indispensável: reduzindo a força destes delírios, ela pode tomar o


doente acessível ao discurso do terapeuta e a uma reflexão pessoal
correlativa, permitindo-lhe retificar progressivamente sua visão do
mundo e sua representação da realidade.
Há poucos psicoterapeutas que levaram em conta como fator
constitutivo de um grande número de doenças psíquicas essa falsa
representação da realidade (concebida como falsa Weltanschauung,
falsa visão do mundo e da existência) e que consideraram que a retifi­
cação dessa representação devia constituir um elemento importante
da terapêutica. Entre eles destaca-se Viktor Frankl e sua logoterapia,
que coloca o problema do sentido (logos ) da existência no centro da
compreensão das doenças psíquicas e de sua terapêutica. No entan­
to, a concepção de Frankl, ainda que considere de maneira justa que
a relação do ser humano com Deus é determinante quanto ao sentido
correto ou não que o ser humano dá à sua existência e aos efeitos
positivos ou negativos que dela resultam para a sua saúde mental,
permanece geral demais, por falta de se relacionar com uma antro­
pologia religiosa determinada.
Mostramos em outra ocasião que, no quadro do cristianismo, os
Padres definiram com precisão as causas e os efeitos da patologia do
conhecimento, assim como a maneira de remediá-la31•
Essa patologia é bastante complexa. Por um lado, a ignorância
de Deus aparece como a fonte de todos os males, principalmente de
todas as paixões, com a filáucia à sua frente. Por outro lado, as paixões
contribuem, com uma grande parte, para falsear o conhecimento do
ser humano, e é somente na terapêutica das paixões, que leva à apa­
theia ou impassibilidade32, que o ser humano pode encontrar um co­
nhecimento perfeitamente justo.
Na patologia psíquica, encontramos estes dois aspectos: por um
lado, uma representação falsa da realidade está na fonte de um certo
número de perturbações psíquicas; mas, por outro, a patologia psí­
quica falseia o conhecimento do indivíduo. Se o trabalho terapêutico

3 1 . Ver ibid., 9-65, 761-815.


32. Sobre o sentido cristão desta noção, ver ibid., 713-728.
246 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

deve consistir em agir sobre a representação da realidade que tem


o doente, não pode se tratar de um processo puramente intelectual:
esse trabalho deve se acompanhar de uma ação sobre as diversas per­
turbações suscetíveis de influenciar o conhecimento.
Isso significa que, na medida em que podemos ligar a patologia
mental a uma patologia espiritual, a terapêutica a colocar em ação de­
verá consistir em ajudar o doente a encontrar um conhecimento justo
da realidade por um recentramento em Deus de sua representação
do mundo. Isso permitirá uma redução da maior parte dos fatores
patogênicos que analisamos anteriormente - a falsa culpabilidade, o
falso temor e a falsa inquietação, a absolutização do relativo, a agres­
sividade perversa, os maus investimentos do desejo, a supervaloriza­
ção e a desvalorização patológicas do eu, as perturbações do relacio­
namento com outrem - todas atitudes estreitamente ligadas a um
falso conhecimento de seu objeto.
Mas não é menos verdade que uma redução das doenças espi­
rituais que estão na fonte das perturbações mentais ajudará numa
retificação do conhecimento falso e no acesso a um conhecimento
não-delirante.

1 3 . Falta de amor

Todas as considerações precedentes poderiam deixar supor que a te­


rapêutica de doenças mentais ligadas a doenças espirituais depende
unicamente da terapêutica das doenças espirituais pelas quais é atin­
gido aquele que é doente psiquicamente. Seria esquecer que, como
notamos no capítulo 1, aqueles que são atingidos por doenças psíqui­
cas o são muitas vezes por causa de doenças espirituais de membros
de seu meio social, das quais sofreram, em razão de sua fragilidade
(principalmente durante o período da infância), os efeitos negativos.
Uma causa frequente de perturbações psíquicas é a falta de
amor da qual uma pessoa foi vítima por parte de seus próximos, em
particular dos pais.
É impossível à terapêutica espiritual, assim como às psicotera­
pias, dar novamente à pessoa doente o amor que lhe faltou, sobre-
As FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSÍQUICAS 247

tudo quando essa carência é antiga. O desengajamento afetivo do


psicoterapeuta, que, como vimos, geralmente faz parte das condi­
ções de exercício de sua profissão, exclui toda manifestação pessoal
de amor. Não acontece o mesmo com o terapeuta espiritual, que, se
é um pai espiritual, pode manifestar a seu paciente, que é desde esse
momento seu filho espiritual, um amor paternal que, ainda que se
situe na ordem de uma paternidade simbólica, pertencendo a uma
outra ordem que a da paternidade biológica, não tem por isso menos
força. O amor espiritual que põe em jogo esta relação, fazendo inter­
vir uma afetividade purificada e transfigurada, tanto da parte do "pai"
como do "filho" espiritual, possui um poder reparador e reconstrutor
superior a todas as formas de amor psicológico, e conhecemos casos
em que não somente a cura espiritual, mas a cura de doenças psíqui­
cas graves foi o fruto de tal relação.
O amor de um verdadeiro pai espiritual por seu filho espiritual é
isento de toda paixão, e portanto de todo egoísmo, de toda possessivi­
dade e de todo espírito de dominação. Por isso é um amor libertador
que não encerra o ser humano em um relacionamento fechado, mas
tem por finalidade abri-lo para a relação com o outro e sobretudo
para a relação com Deus. O amor do pai espiritual por seu filho es­
piritual quer ser, ao mesmo tempo, uma expressão e um símbolo do
amor infinitamente maior e infinitamente mais profundo de Deus
por ele, e deve finalmente sempre desaparecer diante deste amor.
Exigindo ao mesmo tempo um perfeito respeito aos pais (cf. Mt
15,4-5; Me 7,10; 10, 19; Lc 10,20), o cristianismo relativiza o relacio­
namento com eles em relação ao relacionamento com Deus (cf. Mt
10,37; 19,29; Me 10,29; Lc 14,26). Cristo afirma: "Aquele que ama
pai ou mãe mais do que a mim não é digno de mim. E aquele que ama
filho ou filha mais do que a mim não é digno de mim" ( Mt 10,37); e
mais radicalmente ainda: "Se alguém vem a mim e não odeia seu pró­
prio pai e mãe, [ . . . ], não pode ser meu discípulo" ( Lc 14,26). Isso não
justifica de modo algum a ausência de amor, mas dá mais valor e peso
ao amor de Deus do que ao amor dos pais. "E todo aquele que tiver
deixado [ . . . ] pai, mãe [ . . . ] por causa de meu nome receberá muito
mais e herdará a vida eterna" ( Mt 19,29; cf. Me 10,29-30).
248 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

O amor de Deus, do qual o amor do pai espiritual pode ser o reve­


lador e o mediador, pode cumular todas as falhas afetivas do ser huma­
no, inclusive as mais antigas e as mais profundas, por pouco que o ser
humano se coloque nas condições de crer neste amor e de senti-lo.
O ser humano pode se curar de muitas perturbações resultan­
tes de carências afetivas e encontrar o sentido de seu próprio valor
pela certeza, experimentada na fé, depois na experiência interior,
de que Deus lhe concede, como a cada pessoa - e qualquer que
seja seu estado de dignidade ou de indignidade -, um amor abso­
luto, total, incondicional, sem reserva, eterno, um amor que, porque
é divino, é infinitamente mais vasto e mais profundo do que qualquer
amor humano.
Para se tomar adulto espiritualmente, o ser humano deve se
educar através da hierarquia de todos os graus da paternidade e da
filiação: biológica, espiritual-humana, espiritual-divina. Contraria­
mente ao que afirma Freud, não é Deus que é um substituto do pai
biológico a um certo grau de desenvolvimento e para enfrentar um
sentimento de falta de ajuda ou de desamparo (Hflflosigkeit), mas o
pai biológico é que constitui um substituto do pai espiritual, depois
o pai espiritual um substituto do Pai divino, até que o ser humano
tenha aprendido, através destas etapas, a encontrar seu verdadeiro
Pai, o Pai de sua verdadeira natureza e de sua vida eterna, não com
a finalidade de ficar seguro, mas de encontrar a plena satisfação para
a sua necessidade de ser amado e para a sua necessidade de amar, na
gratuidade do amor autêntico que Deus nos ensinou "amando-nos
primeiro" (cf. lJo 4, 10) .

1 4. Pseudo-amor

Uma outra causa espiritual das doenças psíquicas que tem sua fon­
te nos parentes próximos do doente (o pai e/ou a mãe), pela qual
ele próprio não tem nenhuma responsabilidade, mas da qual sofre
os efeitos patogênicos, é o que podemos chamar de "pseudo-amor".
Não se trata, como anteriormente, de uma ausência de amor, mas de
As FONTES ESPIRITUAIS DAS DOENÇAS PSIQUICAS 249

um "amor" opressor, sufocante, porque não respeita a liberdade da­


quele a quem se dirige, mas quer, "por seu bem", lhe impor a vontade
daquele que "ama".
Tal forma de amor foi questionada no autismo e na esquizofre­
nia33 de uma maneira que, sem dúvida, foi exagerada e, de maneira
sistemática e muitas vezes injusta, tem culpabilizado os pais34• En­
tretanto, com frequência podemos notar sua presença na fonte de
diversas psicoses e neuroses. Como notamos anteriormente, mui­
tas doenças psíquicas são o resultado de uma carência afetiva, e o
pseudo-amor deve ser contado entre as fontes de carências afetivas,
visto que ele priva aquele a quem se dirige de um amor verdadeiro,
substituindo-se a ele.
O pseudo-amor é, na realidade, uma forma de uma doença espi­
ritual da qual já falamos muito, a saber, a filáucia ou o amor egoísta a
si. De fato, aquele que ama com essa forma de amor não ama o outro
por ele mesmo, respeitando plenamente sua diferença e sua liberda­
de, mas por si mesmo, isto é, em relação à sua vontade própria e a
seus próprios desejos diante do outro. Fazendo assim, sufoca o outro,
impede-o de ser ele mesmo e de agir por si mesmo; de algum modo,
transforma o outro em objeto. A doença toma-se assim ou um refúgio
(uma "fortaleza", para retomar a expressão de B . Bettelheim) ou uma
forma selvagem de expressão de si por vias indiretas.
A terapêutica espiritual deve então ser dupla. Por um lado, na
medida do possível, ela deve dirigir-se ao meio que o cerca, que deve
aprender a distinguir o verdadeiro e o falso amor e a aprender a amar
verdadeiramente (de fato é a aprendizagem da caridade, que é amor
desinteressado ao outro por ele mesmo). Por outro lado, deve se di­
rigir ao doente, permitindo-lhe encontrar o amor que lhe falta. As
considerações que desenvolvemos na seção precedente poderiam ser
retomadas aqui.

33. Especialmente por Bruno Bettelheim.


34. Tanto mais que é provável que o autismo e a esquizofrenia, em um certo número
de casos, tenham causas orgânicas.
O recurso à terapêutica espiritual
exclui o uso da psicoterapia?
252 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

'

A
guisa de conclusão e à luz das reflexões precedentes, gostaría-
mos de trazer alguns elementos de resposta a esta questão: a
terapêutica espiritual e a psicoterapia são exclusivas uma da
outra ou complementares?
Antes de tudo, é preciso ter bem em mente que os dois tipos de
prática não têm o mesmo objeto nem a mesma finalidade: a terapêutica
espiritual visa a cuidar e a curar as doenças espirituais; as psicoterapias
visam a cuidar e a curar as doenças psíquicas.
Todavia, o problema de suas relações se coloca na medida em que,
como mostramos antes, a vida psíquica é amplamente dependente da
vida espiritual, e na medida em que um grande número de doenças
psíquicas está ligado a doenças espirituais, dependendo portanto a
cura daquelas da cura destas.
Um pai espiritual autêntico, experiente, dotado de discernimento
e carisma, é, em princípio, capaz de cuidar eficazmente das doenças
psíquicas que têm por origem doenças espirituais, por meio do trata­
mento destas doenças espirituais.
Entretanto, várias observações devem ser feitas:
1) A terapêutica das doenças espirituais tem por finalidade a saú­
de espiritual e a salvação do ser humano1 e não pode ser utilizada como
simples meio de tratar doenças psíquicas.
2) A terapêutica das doenças espirituais não é somente dependen­
te da relação com o pai espiritual, mas integra-se a todo um contexto
de vida ascética (no sentido amplo) e eclesial.
3) Esta última observação implica que, no quadro da vida espiri­
tual, o doente deve participar de sua própria cura por um certo modo
de vida ascética e eclesial e pelo esforço para aplicar os conselhos de
seu pai espiritual.

A realidade nos leva a fazer algumas reservas em relação a estes


princípios, quanto ao papel que são suscetíveis de desempenhar a

1 . Sobre a relação da saúde espiritual e da salvação, ver nossa obra Le Chrétien de­
vant la maladie, la souffrance et la rrwrt, Paris, 2002, cap. 15 (Salut et guérison), 249-278.
0 RECURSO A TERAPWTICA ESPIRITUAL EXCLUI O USO DA PSICOTERAPIA? 253

terapêutica espiritual e o pai espiritual para o tratamento das doen­


ças psíquicas:
1 ) Os pais espirituais dotados de discernimento e carisma, dis­
pondo de todas as qualidades que descrevemos anteriormente, são
bastante raros em nossos dias. Considerar que só eles seriam capazes
de tratar as doenças psíquicas limitaria as possibilidades efetivas de
tratamento e de cura.
2) Como a terapêutica espiritual supõe como condição mínima a
fé e, além disso, a participação ativa do paciente em seu próprio trata­
mento, por um modo de vida espiritual adequado, ela não é aplicável
imediatamente e de facto:
a) aos doentes não-cristãos;
b) aos doentes cujas perturbações psíquicas são tão graves que
lhes impedem o domínio de seu comportamento.
Em nossa opinião, estas reservas legitimam o recurso a psicotera­
peutas (sendo evidentemente este recurso igualmente legítimo para
as perturbações menos numerosas de origem puramente psíquica) .
Mas a utilização da psicoterapia, de nosso ponto de vista, exige algu­
mas condições e é marcada por alguns limites:
1 ) Deve ser excluído o recurso a psicoterapias cujos fundamentos
antropológicos e éticos são incompatíveis com a antropologia e a ética
cristãs, por causa de suas incidências negativas no plano espiritual.
2) É não somente desejável mas necessário que os psicoterapeu­
tas reconheçam a implicação de fatores espirituais na origem de um
grande número de doenças psíquicas.
3) Esse reconhecimento deve alimentar e orientar a sua prática,
mesmo a respeito de doentes não-cristãos ou sem religião.
Entretanto, eles têm o dever de respeitar de maneira absoluta a
liberdade do doente. Mas têm igualmente o dever de não esconder
do doente a dimensão espiritual que lhes pareceria poder explicar
suas perturbações e poder contribuir para remediá-las.
4) Diante dos doentes cristãos, o psicoterapeuta não deve se trans­
formar em terapeuta espiritual nem confundir seu papel com o de um
pai espiritual. Mas ele pode se inspirar até certo ponto nos princípios
da terapêutica espiritual e, em todo caso, exercer seu próprio trabalho
em conformidade com esses princípios.
254 0 INCONSCIENTE ESPIRITUAL

O psicoterapeuta deve estar em condições de encaminhar a um


pai espiritual qualificado aqueles doentes cujo estado pode ser me­
lhorado pela terapêutica espiritual e que estão preparados para se
comprometer com ela.
Este livro foi composto nas famílias tipográficas
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e im presso em papel Offset 75g!m2

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