BAKHTIN, M. - Marxismo e Filosofia Da Linguagem

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MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM

BAKHTIN, Mikhail

12ª Edição – 2006 - HUCITEC

9
PREFÁCIO

No livro publicado com a assinatura de V. N. Volochínov em


Leningrado, 1929-1930, em duas edições sucessivas sob o título de
Marksizm i filossófia iaziká (Marxismo e Filosofia da Linguagem),
tudo, desde a página de título, só pode surpreender.
Acabou-se descobrindo que o livro em questão e várias outras
obras publicadas no final dos anos vinte e começo dos anos trinta com
o nome de Volochínov – como, por exemplo, um volume sobre a
doutrina do freudismo (1927) e alguns ensaios sobre a linguagem na
vida e na poesia, assim como sobre a estrutura do enunciado – foram,
na verdade, escritos por Bakhtin (1895-1975), autor de obras
determinantes sobre a poética de Dostoievski e de Rabelais. Ao que
parece, Bakhtin recusava-se a fazer concessões à fraseologia da época
e a certos dogmas impostos aos autores. Os adeptos e discípulos do
pesquisador, particularmente Volochínov (nascido em 1895,
desaparecido pelo fim de 1930), com um pseudônimo
escrupulosamente observado e graças a alguns retoques obrigatórios
no texto e até no título, tentaram um compromisso que permitia
preservar o essencial do grande trabalho.
O que poderia surpreender igualmente aqueles leitores menos
avisados da história do obscurantismo que da história do pensamento
científico, é o completo desaparecimento do próprio nome desse
eminente pesquisador de toda a imprensa russa durante quase um
quarto de século (até 1963); quanto a seu livro sobre a filosofia da
linguagem, só o vemos mencionado nesse mesmo período em alguns
raros estudos lingüísticos do Ocidente. Recentemente, algumas
citações desse livro foram feitas em publicações soviéticas de tiragem
insignificante, como a coletânea dedicada ao 75o aniversário de
Bakhtin, cuja edição foi de apenas 1.500 exemplares (Tártu, 1973).
A obra em questão é reproduzida na série Janua Linguarum (Haia-
Paris, 1972) e traduzida para o inglês (Nova Iorque, 1973), mas esse
trabalho, como outras obras-primas do pensamento teórico
10
russo do mesmo período, permanece ainda quase inacessível aos
leitores do seu país natal.
Apesar de toda a singularidade da biografia do livro e de seu autor,
é pela novidade e originalidade de seu conteúdo que a obra mais
surpreende todo leitor de espírito aberto. Esse volume, cujo subtítulo
diz Os problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem, antecipa as atuais explorações realizadas no campo da
sociolingüística e, principalmente, consegue preceder as pesquisas
semióticas de hoje e fixar-lhes novas tarefas de grande envergadura.
A “dialética do signo”, e do signo verbal em particular, que é
estudada no livro conserva, ou melhor, adquire um grande valor
sugestivo à luz dos debates semióticos contemporâneos.
Dostoievski é o herói preferido de Bakhtin e a maneira como ele o
define caracteriza, ao mesmo tempo e da forma mais justa, sua própria
metodologia científica: “Nada lhe parece acabado; todo problema
permanece aberto, sem fornecer a mínima alusão a uma solução
definitiva”. Segundo Bakhtin, na estrutura da linguagem, todas as
noções substanciais formam um sistema inabalável, constituído de
pares indissolúveis e solidários: o reconhecimento e a compreensão, a
cognição e a troca, o diálogo e o monólogo, sejam eles enunciados ou
internos, a interlocução entre o destinador e o destinatário, todo signo
provido de significação e toda significação associada ao signo, a
identidade e a variabilidade, o universal e o particular, o social e o
individual, a coesão e a divisibilidade, a enunciação e o enunciado.
O que mais desperta a atenção e a criatividade do leitor é a parte
final do livro, onde o autor discute o papel fundamental e variado da
citação – patente ou latente – em nossos enunciados e interpreta os
diversos meios que servem para adaptar esses empréstimos
multiformes e contínuos ao contexto do discurso.

Roman Jakobson

11
INTRODUÇÃO

I. Bakhtin, o homem e seu duplo

M. M. Bakhtin nasceu em 1895, em Oriol, numa família da velha


nobreza arruinada, de um pai empregado de banco. Passou sua
infância em Oriol e a adolescência em Vílnius e Odessa. Estudou na
Universidade de Odessa, depois na de São Petersburgo, de onde saiu
diplomado em História e Filologia, em 1918. Em 1920, instalou-se em
Vitebsk, onde ocupou diversos cargos de ensino. Casou-se em 1920
com Helena Okolovitch, que foi sua fiel colaboradora durante meio
século. Bakhtin pertencia a um pequeno círculo de intelectuais e de
artistas entre os quais se encontravam Marc Chagall e o musicólogo
Sollertinsky, amigo íntimo de Chostakovitch. Também fazia parte
deste círculo um jovem professor do Conservatório de Música de
Vitebsk, V. N. Volochínov, e ainda P. N. Medviédiev, empregado de
uma casa editora. Os dois tornaram-se alunos, amigos devotados e
ardorosos admiradores de Bakhtin. Este círculo, conhecido sob o
nome de “círculo de Bakhtin”, foi um cadinho de idéias inovadoras,
numa época de muita criatividade, particularmente nos domínios da
arte e das ciências humanas. Ainda que contemporâneo dos
movimentos formalista e futurista, ele não participou de nenhum
deles.
Em 1923, atacado de osteomielite, Bakhtin retornou a Petrogrado.
Impossibilitado de trabalhar regularmente, deve ter passado por uma
situação material difícil. Seus discípulos e admiradores, Volochínov e
Medviédiev, seguiram-no a Petrogrado. Animados pelo desejo de vir
ajudar financeiramente a seu mestre e, ao mesmo tempo, divulgar suas
idéias, ofereceram seus nomes a fim de tornar possível a publicação
de suas primeiras obras. Freidizm (O Freudismo, Leningrado, 1927)
e Marxismo e Filosofia da Linguagem (Leningrado, 1929) saíram sob o
nome de Volochínov. Formalni métod v literaturoviédenie. Kritítcheskoie
vvdiénie v sotsiologuítcheskuiu poétiku (O Método Formalista
12
Aplicado à Crítica Literária. Introdução Crítica à Poética Sociológica)
que constituiu uma crítica aos formalistas, foi publicado em 1928,
também em Leningrado sob a assinatura de Medviédiev.1 Por que,
então Bakhtin não os publicou com seu próprio nome? Não há
dúvidas quanto à paternidade de suas obras. O conteúdo se inscreve
perfeitamente na linha de suas publicações assinadas e, além disso,
dispomos de testemunhos diretos. De qualquer modo, na época, o
segredo foi bem guardado, pois Borís Pasternak, em uma carta
endereçada a Medviédiev, manifestou seu entusiasmo e sua admiração
pela presumida obra deste último e confessa que jamais pudera
imaginar que em Medviédiev se ocultava “um tal filósofo”. Então, por
que esse jogo de testa-de-ferro? Segundo o professor V. V. Ivánov,
amigo e aluno de Bakhtin, haveria duas espécies de motivos: em
primeiro lugar, Bakhtin teria recusado as modificações impostas pelo
editor; de caráter intransigente, ele teria preferido não publicar do que
mudar uma vírgula; Volochínov e Medviédiev ter-se-iam, então,
proposto a endossar as modificações. A outra ordem de motivos seria
mais pessoal e ligada ao caráter de Bakhtin, ao seu gosto pela máscara
e pelo desdobramento e também, parece, à sua profunda modéstia
científica. Ele teria professado que um pensamento verdadeiramente
inovador não tem necessidade, para assegurar sua duração, de ser
assinado por seu autor. A este respeito, o professor Ivánov o compara
a Kierkegaard, que também se escondeu sob pseudônimos. De
qualquer forma, em 1929, no mesmo ano em que Volochínov assinava
Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin publicou, finalmente,
um primeiro livro com seu próprio nome Probliemi tvórtchestva
Dostoiesvskovo (Problemas da Obra de Dostoievski2). Ele dedicará o
resto de sua vida de pesquisador à análise estilística e literária.
Volochínov e Medviédiev desapareceram nos anos trinta.
Nesta época, Bakhtin vivia na fronteira da Sibéria e do Casa-
quistão, em Kustanai. Sempre ensinando, começou a compor
sua monografia sobre Rabelais. Em 1936, foi nomeado para o Insti-

1
Esta terceira obra foi reeditada em 1971, na revista Trudi po
znákovim sistiemam (Trabalhos sobre Sistemas de Signos),
Universidade de Tártu, 1971. As outras duas nunca mais foram
reimpressas. Mouton (Haia) publicou em 1972 um fac-símile da
edição de 1929 do Marxismo e a Filosofia da Linguagem.
2
Tradução francesa sob o título: Problèmes de la Poétique de
Dostoïevski, Lausanne, L’Âge d’Homme, 1970.
13
tuto Pedagógico de Saransk. Em 1937, instalou-se não muito longe
de Moscou, em Kímri, onde viveu uma vida apagada até
1945, ensinando no colégio local e participando dos trabalhos do
Instituto de Literatura da Academia de Ciências da U.R.S.S. Aí
defendeu sua tese sobre Rabelais em 1946. De 1945 a 1961, data de
sua aposentadoria, ensina de novo em Saransk, terminando sua
carreira na universidade desta cidade.
A partir de 1963, começou a gozar de uma certa notoriedade,
sobretudo após a reedição de sua obra sobre Dostoievski (1963) e de
sua tese sobre Rabelais: Tvórtchestvo François Rabelais i naródnaia
kultura sriednevekóvia i Renessansa (A Obra de François Rabelais e a
Cultura Popular da Idade Média e da Renascença), Moscou, 19653.
Em 1969, instalou-se em Moscou, onde publicou contribuições nas
revistas Vopróssi literaturi (Questões de Literatura) e Kontiekst
(Contexto). Morreu em Moscou, em 1975, após uma longa doença.

II. Marxismo e Filosofia da Linguagem

É difícil afirmar com exatidão quais as partes do texto que se


devem a Volochínov. Sempre segundo o professor Ivánov, que deve a
informação ao próprio Bakhtin, o título e certas partes do texto
ligadas à escolha deste título são de Volochínov. Não se poderia,
evidentemente, colocar em questão as convicções marxistas de
Bakhtin; o livro é marxista do começo ao fim. Todavia como sublinha
Jakobson em seu prefácio, o título não deixa de surpreender, pois o
conteúdo do livro é muito mais rico do que a capa deixa entrever.
Bakhtin expõe bem a necessidade de uma abordagem marxista da
filosofia da linguagem mas ele aborda, ao mesmo tempo, praticamente
todos os domínios das ciências humanas, por exemplo, a psicologia
cognitiva, a etnologia, a pedagogia das línguas, a comunicação, a
estilística, a crítica literária e coloca, de passagem, os fundamentos da
semiologia moderna. Aliás, ele possui de todos esses domínios uma
visão notavelmente unitária e muito avançada em relação a seu tempo.
Contudo, e nesse aspecto o subtítulo Tentativa de aplicação do
método sociológico em lingüística é muito revelador; trata-se,
principalmente, de um livro sobre as relações entre linguagem e

3
Tradução francesa sob o título: François Rabelais et la Culture
Populaire sous la Renaissance, Gallimard, 1970.
14
sociedade, colocado sob o signo da dialética do signo, enquanto efeito
das estruturas sociais.
Sendo o signo e a enunciação de natureza social, em que medida a
linguagem determina a consciência, a atividade mental; em que
medida a ideologia determina a linguagem? Tais são as questões que
constituem o fio condutor do livro. Bakhtin foi o primeiro a abordar
essas questões, que a humanidade se colocou muitas vezes antes dele,
numa perspectiva marxista. Portanto, é indispensável situar sua
reflexão em relação ao problema fundamental que foi suscitado pela
aplicação da análise marxista à língua – a língua é uma
superestrutura? – e conseqüentemente, em relação à controvérsia da
lingüística soviética em torno desta questão, controvérsia à qual Stálin
pôs fim em 1950 com A Propósito do Marxismo em Lingüística.4
Ao mesmo tempo, é preciso notar que, por sua crítica a Saussure –
o representante mais eminente do que Bakhtin chamou o objetivismo
abstrato – e aos excessos do estruturalismo nascente, ele antecede de
quase cinqüenta anos as orientações da lingüística moderna. Veremos
que os dois aspectos se confundem.
Bakhtin coloca, em primeiro lugar, a questão dos dados reais da
lingüística, da natureza real dos fatos da língua. A língua é, como para
Saussure, um fato social, cuja existência se funda nas necessidades da
comunicação. Mas, ao contrário da lingüística unificante de Saussure
e de seus herdeiros, que faz da língua um objeto abstrato ideal, que se
consagra a ela como sistema sincrônico homogêneo e rejeita suas
manifestações (a fala) individuais, Bakhtin, por sua vez, valoriza
justamente a fala, a enunciação, e afirma sua natureza social, não
individual: a fala está indissoluvelmente ligada às condições da
comunicação, que, por sua vez, estão sempre ligadas às estruturas
sociais.
Se a fala é o motor das transformações lingüísticas, ela
não concerne os indivíduos; com efeito, a palavra é a arena onde
se confrontam aos valores sociais contraditórios; os conflitos da
língua refletem os conflitos de classe no interior mesmo do
sistema: comunidade semiótica e classe social não se recobrem.
A comunicação verbal, inseparável das outras formas de comuni-
cação, implica conflitos, relações de dominação e de resis-
tência, adaptação ou resistência à hierarquia, utilização da língua
pela classe dominante para reforçar seu poder etc. Na medida em
que às diferenças de classe correspondem diferenças de registro

4
Tradução francesa das Editions de la Nouvelle Critique, 1950.
15
ou mesmo de sistema (assim, a língua sagrada dos padres, o
“terrorismo verbal” da classe culta etc.), esta relação fica ainda mais
evidente; mas Bakhtin se interessa, primeiramente, pelos conflitos no
interior de um mesmo sistema. Todo signo é ideológico; a ideologia é
um reflexo das estruturas sociais; assim, toda modificação da
ideologia encadeia uma modificação da língua. A evolução da língua
obedece a uma dinâmica positivamente conotada, ao contrário do que
afirma a concepção saussuriana. A variação é inerente à língua e
reflete variações sociais; se, efetivamente, a evolução, por um lado,
obedece a leis internas (reconstrução analógica, economia), ela é,
sobretudo, regida por leis externas, de natureza social. O signo
dialético, dinâmico, vivo, opõe-se ao “sinal” inerte que advém da
análise da língua como sistema sincrônico abstrato. É o que leva
Bakhtin a atacar a noção de sincronia. E o surpreendente, é que
Bakhtin não critica Saussure em nome da teoria marxista, largamente
proclamada; ele o critica no interior do seu próprio domínio, isto é,
encontra a falha no sistema de oposição língua/fala,
sincronia/diacronia.
No plano científico, objetivo, o sistema sincrônico é uma ficção;
com efeito, em nenhum momento o sistema está realmente em
equilíbrio, e isto todos os lingüistas admitem. Mas, para o locutor-
ouvinte ingênuo, usuário da língua, esta não é tampouco um sistema
estável e abstrato de sinais constantemente iguais a si mesmos e
isolados por procedimentos de análise distribucional. Ao contrário, a
forma lingüística é sempre percebida como um signo mutável. A
entonação expressiva, a modalidade apreciativa sem a qual não
haveria enunciação, o conteúdo ideológico, o relacionamento com
uma situação social determinada, afetam a significação. O valor novo
do signo, relativamente a um “tema” sempre novo, é a única realidade
para o locutor-ouvinte. Só a dialética pode resolver a contradição
aparente entre a unicidade e a pluralidade da significação. O
objetivismo abstrato favorece arbitrariamente a unicidade, a fim de
poder “prender a palavra em um dicionário”. O signo é, por natureza,
vivo e móvel, plurivalente; a classe dominante tem interesse em torná-
lo monovalente. Trata-se, justamente, de uma crítica ao
distribucionalismo “neutro”.
Segundo Bakhtin, a lingüística saussuriana (o objetivismo
abstrato), que pensa estar afastada dos procedimentos da filologia,
na realidade, apenas os perpetua. Daí a crítica implícita da noção
de corpus, prática reducionista que tende a “reificar” a lingua-
gem. Toda enunciação, fazendo parte de um processo de comu-
nicação ininterrupto, é um elemento do diálogo, no sentido amplo
16
do termo, englobando as produções escritas. O corpus transforma
as enunciações em monólogos. Nesse sentido, o procedimento
dos lingüistas é o mesmo que o dos filólogos. Donde.
a idéia sempre reiterada de que o corpus, fundamento da lingüística
descritiva e funcionalista, leva ao descritivismo abstrato e faz do
signo um sinal (análise distribucional, estabelecimento de classes de
contexto e de classes de unidade que fornecem, implicitamente, uma
norma, mesmo se o método se pretende “objetivo” e “não normativo”
pelo fato de se abster de evocar regras de caráter prescritivo). Os
imperativos pedagógicos não deixam de ter influência sobre a prática
do lingüista, na medida em que se procura transmitir um objeto-língua
tão homogêneo quanto possível.
Bakhtin coloca igualmente em evidência a inadequação de todos
os procedimentos de análise lingüística (fonéticos, morfológicos e
sintáticos) para dar conta da enunciação completa, seja ela uma
palavra, uma frase ou uma seqüência de frases. A enunciação,
compreendida como uma réplica do diálogo social, é a unidade de
base da língua, trata-se de discurso interior (diálogo consigo mesmo)
ou exterior. Ela é de natureza social, portanto ideológica. Ela não
existe fora de um contexto social, já que cada locutor tem um
“horizonte social”. Há sempre um interlocutor, ao menos potencial. O
locutor pensa e se exprime para um auditório social bem definido. “A
filosofia marxista da linguagem deve colocar como base de sua
doutrina a enunciação, como realidade da língua e como estrutura
sócio-ideológica.”
“O signo e a situação social estão indissoluvelmente ligados.” Ora,
todo signo é ideológico. Os sistemas semióticos servem para exprimir
a ideologia e são, portanto, modelados por ela. A palavra é o signo
ideológico por excelência; ela registra as menores variações das
relações sociais, mas isso não vale somente para os sistemas
ideológicos constituídos, já que a “ideologia do cotidiano”, que se
exprime na vida corrente, é o cadinho onde se formam e se renovam
as ideologias constituídas.
Se a língua é determinada pela ideologia, a consciência, portanto
o pensamento, a “atividade mental”, que são condicionados
pela linguagem, são modelados pela ideologia. Contudo, todas
estas relações são inter-relações recíprocas, orientadas, é verdade,
mas sem excluir uma contra-ação. O psiquismo e a ideologia estão
em “interação dialética constante”. Eles têm como terreno comum
o signo ideológico: “O signo ideológico vive graças à sua reali-
zação no psiquismo e, reciprocamente, a realização psíquica vive
do suporte ideológico”. A questão exige mais que um trata-
17
mento esquemático. Na verdade, a distinção essencial que Bakhtin
faz é entre “a atividade mental do eu” (não modelada
ideologicamente, próxima da reação fisiológica do animal,
característica do indivíduo pouco socializado) e a “atividade mental
do nós” (forma superior que implica a consciência de classe). “O
pensamento não existe fora de sua expressão potencial e, por
conseqüência, fora da orientação social desta expressão e do próprio
pensamento”.
Também não se pode tratar esquematicamente a questão da
língua como superestrutura. Nos anos 20, no momento em
que Bakhtin compõe sua obra, duas tendências se confrontam
em lingüística, o formalismo e o sociologismo dito “vulgar”,
o marrismo. Nicolau Marr leva a suas últimas conseqüências
a assimilação da língua a uma superestrutura: existência de línguas
de classe e de gramáticas de classe independentes e teoria da evo-
lução “por saltos”; é difícil confirmar essa teoria nos fatos: a
toda revolução na base deveria corresponder uma tão pronta evo-
lução da língua. Tal é, em todo caso, a imagem, sem
dúvida parcialmente deformada, que se pode fazer da teoria de Marr
a partir da controvérsia de 1950. Bakhtin, por sua vez, insiste sobre a
noção de processo ininterrupto. Para ele, a palavra veicula, de
maneira privilegiada, a ideologia; a ideologia é uma superestrutura, as
transformações sociais da base refletem-se na ideologia e, portanto, na
língua que as veicula. A palavra serve como “indicador” das
mudanças. Bakhtin não afirma jamais que a língua é uma
superestrutura no sentido estrito definido por Marr, o qual acarretará,
em 1950, a inapelável condenação stalinista: a base e as
superestruturas estão sempre em interação. Em compensação, ele
afirma claramente que a língua não é assimilável a um instrumento de
produção. Ora, é precisamente esta assimilação que será formulada
por Stálin, numa tentativa de dar uma imagem unificante, homogênea,
neutra da língua em relação à luta de classes, o que o leva,
paradoxalmente, a uma posição própria do objetvismo abstrato.
Sabemos sobre que motivações de política interna (a questão das
línguas nacionais na U.R.S.S.) repousava sua argumentação. Bakhtin
denuncia o perigo de toda sistematização ou formalização exagerada
das novas teorias: um sistema que estanca, perde sua vitalidade, seu
dinamismo dialético. A acusação poderia se dirigir tanto a Marr como
a Stálin. Bakhtin define a língua como expressão das relações e lutas
sociais, veiculando e sofrendo o efeito desta luta, servindo, ao mesmo
tempo, de instrumento e de material. Como sua obra permaneceu
18
desconhecida tanto do público soviético como do público ocidental,
só o confronto de posições extremas reteve a atenção.
Todos aqueles que tinham escrúpulos em considerar a língua
como uma superestrutura suspiraram aliviados em 1950, e pro-
curaram esquecer a relação da língua com as estruturas sociais
até uma época muito recente, com a emergência da sociolin-
güística como lingüística e não como variante periférica
ou meramente anedótica.5
Na terceira parte do livro, consagrada ao estudo da transmissão do
“discurso de outrem”, Bakhtin fez uma aplicação prática das teses
desenvolvidas nas duas primeiras. Dessa forma, busca demonstrar a
natureza social e não individual das variações estilísticas. Com efeito,
a maneira de integrar “o discurso de outrem” no contexto narrativo
reflete as tendências sociais da interação verbal numa época e num
grupo social dado. Apóia-se, para firmar sua tese, em citações
extraídas de Púchkin, Dostoievski, Zola, Thomas Mann, isto é, de
obras individuais que ele insere no contexto da época e, portanto, da
orientação social que aí se manifesta. Aborda, igualmente, o papel do
“narrador”, que toma o lugar do autor da narrativa, com as
interferências que isso implica. Esta é, certamente, uma de suas
contribuições mais originais. Não há para ele fronteira clara entre
gramática e estilística. O discurso indireto constitui um discurso
encaixado no interior do qual se manifesta uma interação dinâmica. A
passagem do estilo direto ao estilo indireto não se faz de maneira
mecânica (isto lhe dá a oportunidade de criticar os exercícios
escolares “estruturais”, crítica que permanece totalmente pertinente
hoje em dia). Essa passagem implica análise e reformulação completa,
acompanhadas de um deslocamento e/ou de um entrecruzamento dos
“acentos apreciativos” (modalidade).
A análise estilística, parte integrante da lingüística, aparece como a
preocupação essencial de Bakhtin. A lingüística – como, ao que

5
Ver a este respeito, na França, as posições de Cohen, Mounin,
Marcellesi, Gardin, Dubois, Calvet, Encrevé, etc. Eu citaria
simplesmente Marcel Cohen: É preciso ver em que medida a
linguagem, assim como a ciência, vai dar na superestrutura por
certos aspectos de seu emprego, ligando-se a instituições
propriamente ditas ou a elementos ideológicos”. (Matériaux
pour une Sociologie du Langage, Maspero, 1956).
19
parece, para Saussure6 – surge como o instrumento privilegiado e
indispensável para levar a bom termo os trabalhos de análise literária,
que ocuparão a maior parte de sua vida. Como Saussure, ele é, em
vários aspectos, um homem do século XIX, um homem de gabinete,
de cultura enciclopédica, um verdadeira “não-especialista”. É entre
pessoas assim, que freqüentemente, encontramos os melhores
especialistas de uma disciplina.
Bibliografia

V. V. Ivánov, “O Bakhtine i semiotike” (Bakhtin e a Semiótica”),


in Rossía (Rússia), 1, Nápoles, 1975; “Znatchénie idiéi Bakhtina o
znákie, viskazivánie i dialóguie dliá sovremiénnoi semiotiki” (A
Significação das Idéias de Bakhtin sobre o Signo, a Enunciação e o
Diálogo para a Semiótica Moderna), in Trúdi po znákovim sistiemam
(Trabalhos sobre Sistemas de Signos), Universidade de Tártu, 1973.
Ver também “Ótcheki po istorii semiotiki v SSSR” (Ensaios para uma
História da Semiótica na U.R.S.S.), Moscou, 1976.

Marina Yaguello

6
Ver L. J. Calvet, Pour et contre Saussure, Payot, 1976.
20
SUMÁRIO

NOTA DOS TRADUTORES 7


PREFÁCIO, Roman Kakobson 9
INTRODUÇÃO 11
PRÓLOGO 25

PRIMEIRA PARTE
A FILOSOFIA DA LINGUAGEM E SUA IMPORTÂNCIA
PARA O MARXISMO

Capítulo 1. Estudo das Ideologias e Filosofia da Linguagem. 31


A ciência das ideologias e a filosofia dalinguagem. O problema
do signo ideológico. O signo ideológico e a consciência. A
palavra como signo ideológico por excelência. A neutralidade
ideológica da palavra. A propriedade da palavra de ser um
signo interior. Conclusões
Capítulo 2. Relação entre as Infra-estrutura e as Superes-
truturas. 39
Por quê razão é inadmissível aplicar a categoria da causalidade
mecanicista à ciência da ideologia. A evolução da sociedade e a
da palavra. Expressão semiótica da psicologia social.
Dialetologia social. Formas da comunicação verbal e formas
dos signos. Tema do signo. Luta de classes e dialética do signo
Capítulo 3. Filosofia da Linguagem e Psicologia Objetiva. 48
Problema da descrição objetiva do psiquismo. Estudo da
psicologia cognitiva e interpretativa (Dilthey). Realidade
semiótica do psiquismo. Ponto de vista da psicologia
funcionalista. Psicologismo e antipsicologismo. Especificidade
do signo interior (discurso interior). Problema da introspecção.
Natureza sócio-econômica do psiquismo. Conclusões

SEGUNDA PARTE
PARA UMA FILOSOFIA MARXISTA DA LINGUAGEM
Capítulo 4. Duas Orientações do Pensamento Filosófico
Lingüístico. 69
Problema da realidade concreta da linguagem. Princípios
fundamentais da primeira orientação do pensamento filosó-
fico-lingüístico (o subjetivismo individualista) e seus
representantes. Princípios fundamentais da segunda orien-
21
tação do pensamento filosófico-lingüístico (objetivismo abstrato).
Raízes históricas da segunda orientação. Representantes
contemporâneos do objetivismo abstrato. Conclusões
Capítulo 5. Língua, Fala e Enunciação. 90
A língua, enquanto sistema de formas sujeitas a uma norma, é
objetiva? A língua como sistema de normas e o ponto de vista real
da consciência do locutor. Que realidade lingüística está na base
do sistema da língua? Problema da palavra estrangeira. Erros do
objetivismo abstrato. Conclusões
Capítulo 6. A Interação Verbal. 110
Teoria da expressão do subjetivismo individualista. Crítica da
teoria da expressão. Estrutura sociológica da atividade mental e de
sua expressão. Problema da ideologia na vida cotidiana. A fala
como base da evolução da língua. A enunciação completa e suas
formas
Capítulo 7. Tema e Significação na Língua. 128
Tema e significação. Problema da apreensão ativa. Apreciação e
significação. Dialética da significação
TERCEIRA PARTE
PARA UMA HISTÓRIA DAS FORMAS DA ENUNCIAÇÃO
NAS CONSTRUÇÕES SINTÁTICAS
Tentativa de Aplicação do Método Sociológico
aos Problemas Sintáticos
Capítulo 8. Teoria da Enunciação e Problemas Sintáticos. 139
Significação dos problemas sintáticos. Categorias sintáticas e
enunciações completas. Problema dos parágrafos. Problemas das
formas de transmissão do discurso de outrem
Capítulo 9. O “Discurso de Outrem” 144
Apresentação do problema. Determinação do discurso de outrem.
Problema da apreensão ativa do discurso vinculado ao problema
do diálogo. Dinâmica da inter-relação do contexto narrativo e do
discurso citado. O “estilo linear” em matéria de transmissão do
discurso de outrem em relação ao “estilo pictórico”
Capítulo 10. Discurso Indireto, Discurso Direto e suas variantes 155
Esquemas e variantes. Gramática e estilística. Caracteres gerais da
transmissão do discurso de outrem na língua russa. Esquema do
discurso indireto. Variante analisadora do conteúdo do discurso
indireto. Esquema do discurso direto. Discurso direto preparado.
Discurso direto esvaziado. Discurso direto antecipado, dissemi-
nado, oculto. Fenômeno da interferência verbal. Interrogações
retóricas e exclamações. Discurso direto de substituição. Discurso
indireto livre
22
Capítulo 11. Discurso Indireto Livre em Francês, Alemão e
Russo. 174
Discurso indireto livre em francês. Teoria de Tobler. Teoria de
Kalepky. Teoria de Bally. Crítica do objetivismo abstrato
hipostático de Bally. Bally e os vosslerianos. Discurso indireto
livre em alemão. Teoria de Eugen Lerch. Teoria de Lerch.
Teoria de Lorck sobre o papel da imaginação na língua. Teoria
de Gertraud Lerch. O discurso citado em francês antigo. Na
época do Renascimento. Discurso indireto livre em La Fontaine
e La Bruyère. Discurso indireto livre segundo Vossler.
Aparição do discurso indireto livre em alemão. Crítica do
subjetivismo hipostatizante dos vosslerianos

23
PRÓLOGO

Não existe, atualmente, uma única análise marxista no domínio da


filosofia da linguagem. Nem sequer há nos trabalhos marxistas
relativos a outras questões, próximas daquelas da linguagem, alguma
formulação, a respeito desta, que seja um pouco precisa e
desenvolvida. Portanto, a problemática de nosso trabalho, que
desbrava, de certa forma, um terreno ainda virgem, só pode,
evidentemente, situar-se num nível bastante modesto. Não se trata de
uma análise marxista sistemática e definitiva dos problemas básicos
da filosofia da linguagem. Tal análise só poderia resultar de um
trabalho coletivo de grande fôlego. De nossa parte, tivemos que nos
restringir à simples tarefa de esboçar as orientações de base que uma
reflexão aprofundada sobre a linguagem deveria seguir e os
procedimentos metodológicos a partir dos quais essa reflexão deve
estabelecer-se para abordar os problemas concretos da lingüística.
A atual inexistência, na literatura marxista, de uma descrição
definitiva e universalmente reconhecida da realidade específica dos
problemas ideológicos tornou nossa tarefa particularmente complexa.
Na maioria dos casos, esses problemas são percebidos como
manifestações da consciência, isto é, como fenômenos de natureza
psicológica. Uma tal concepção constituiu um grande obstáculo ao
estudo correto dos aspectos específicos dos fenômenos ideológicos,
os quais não podem, de forma alguma, ser reduzidos às
particularidades da consciência e do psiquismo. Por isso, o papel da
língua, como realidade material específica da criação ideológica, não
pôde ser justamente apreciado.
É preciso acrescentar a isso que categorias do tipo mecani-
cista implantaram-se solidamente em todos os domínios a respeito
dos quais os pais fundadores – Marx e Engels – pouco ou
nada disseram. Esses domínios, portanto, encontram-se, com respeito
ao essencial, no estádio do materialismo mecanicista pré-dialético.
Todos os domínios da ciência das ideologias acham-se, atualmente,
ainda dominados pela categoria da causalidade mecanicista. Além
24
disso, persiste ainda a concepção positivista do empirismo, que se
inclina diante do “fato”, entendido não dialeticamente, mas como algo
intangível e imutável. Praticamente, o espírito filosófico do marxismo
ainda não penetrou nesses domínios.
Por essas razões, foi-nos quase totalmente impossível encontrar
apoio em resultados precisos e positivos que tivessem sido obtidos
pelas outras ciências que se relacionam com a ideologia. Mesmo a
crítica literária, que, graças a Plekhánov, é, todavia, a mais
desenvolvida dessas ciências, nada pôde fornecer de útil a nossa
objeto de estudo.

Este livro apresenta-se, essencialmente, como um trabalho de


pesquisa, mas tentamos conferir-lhe uma forma acessível ao grande
público. Na primeira parte de nosso trabalho, tentamos mostrar a
importância dos problemas da filosofia da linguagem para o marxismo
em seu conjunto. Essa importância não tem sido, como dissemos,
suficientemente apreciada. E, no entanto, os problemas da filosofia da
linguagem situam-se no ponto de convergência de uma série de
domínios essenciais para a concepção marxista do mundo e de alguns
domínios que têm interessado muito, atualmente, nossa opinião
pública.
Convém acrescentar que, nesses últimos anos, os problemas
fundamentais da filosofia da linguagem adquiriram uma acuidade e
uma importância excepcionais. Pode-se dizer que a filosofia burguesa
contemporânea está se desenvolvendo sob o signo da palavra. E essa
nova orientação do pensamento filosófico do Ocidente está ainda só
nos seus primeiros passos. A “palavra” e sua situação no sistema são a
parada de uma luta inflamada somente comparável àquela que, na
Idade Média, opôs realistas, nominalistas e conceitualistas. Na
realidade, no realismo dos fenomenólogos e no conceitualismo dos
neokantianos, assistimos, numa certa medida, a um renascimento da
tradição das escolas filosóficas medievais.
Na lingüística propriamente dita, após a era positivista, marcada
pela recusa de qualquer teorização dos problemas científicos, a que se
adiciona uma hostilidade, por parte dos positivistas retardatários, em
relação aos problemas de visão do mundo, assiste-se a uma nítida
tomada de consciência dos fundamentos filosóficos dessa ciência e de
suas relações com os outros domínios do conhecimento. E isso serviu
para denunciar a crise que a lingüística atravessa, na sua incapacidade
de resolver seus problemas de modo satisfatório.
25
Indicar o lugar dos problemas da filosofia da linguagem dentro do
conjunto da visão marxista do mundo: este é o objetivo de nossa
primeira parte. É por isso que ela não contém demonstrações e não
propõe conclusões definitivas. Seu interesse está mais voltado para a
relação entre os problemas do que para a relação entre os fatos
estudados.
A segunda parte tenta resolver o problema fundamental da filo-
sofia da linguagem, ou seja, o problema da natureza real
dos fenômenos lingüísticos. Esse problema constitui o eixo em
torno do qual giram todas as questões essenciais do pensa-
mento filosófico-lingüístico contemporâneo. Problemas tão
fundamentais quanto o da evolução da língua, da interação verbal, da
compreensão, o problema da significação e muitos outros ainda estão
estreitamente vinculados a esse problema central. Evidentemente,
apenas esboçamos as principais vias que conduzem à sua resolução.
Toda uma série de questões permanece em suspenso. Toda uma série
de direções de pesquisa, indicadas no começo, permanece
inexplorada. Mas não poderia ser de outro modo num pequeno livro
que, pela primeira vez, tenta abordar esses problemas de um ponto de
vista marxista.
Na última parte de nosso trabalho, é realizado um estudo concreto
de uma questão de sintaxe. A idéia diretiva de toda nossa pesquisa, o
papel produtivo e a natureza social da enunciação, requer exemplos
concretos que a sustentem: é indispensável mostrar sua importância,
não só no plano geral da visão do mundo e para as questões básicas da
filosofia da linguagem, mas também para todas as questões da
lingüística, por mais particulares que sejam. Se essa idéia é realmente
justa e fecunda, ela deve poder ser aplicada em todos os níveis. Mas o
tema da terceira parte, a questão do discurso citado, tem ele mesmo
uma significação profunda que vai muito além do quadro da sintaxe.
Vários aspectos essenciais da criação literária, o discurso do herói (a
estruturação do herói de maneira geral), o “Skaz”*, a estilização, a
paródia, nada mais são do que refrações diversas do “discurso de
outrem”. É, portanto, indispensável compreender esse tipo de discurso
e as regras sociológicas que o regem para analisar de maneira fecunda
os aspectos da criação literária acima citados.

*
Narrativa em primeira pessoa, freqüentemente num estilo
popular. V. tradução francesa de La Poétique de Dostoïevski,
Paris, Seuil, 1970, p. 243. (N.T.).
26
A questão tratada na terceira parte não foi objeto de nenhum
estudo na literatura lingüística. Por exemplo, o discurso indireto
livre – que Púchkin já utilizava – não foi mencionado nem descrito
por ninguém. Também nunca foram estudadas as variantes muito
diferentes do discurso direto e do discurso indireto.
Portanto, a orientação de nosso trabalho vai do geral ao particular,
do abstrato ao concreto: das questões de filosofia geral às questões de
lingüística geral; a partir disso, abordamos, finalmente, uma questão
específica que diz respeito tanto à gramática (sintaxe) quanto à
estilística.

27
PRIMEIRA PARTE
A FILOSOFIA DA LINGUAGEM
E SUA IMPORTÂNCIA PARA O MARXISMO

28
CAPÍTULO 1
ESTUDO DAS IDEOLOGIAS
E FILOSOFIA DA LINGUAGEM

Os problemas da filosofia da linguagem adquiriram, recentemente,


uma atualidade e uma importância excepcionais para o marxismo. Na
maioria dos setores mais importantes de seu desenvolvimento
científico, o método marxista vai diretamente de encontro a esses
problemas e não pode avançar de maneira eficaz sem submetê-los a
um exame específico e encontrar-lhes uma solução.
Para começar, as bases de uma teoria marxista da criação
ideológica – as dos estudos sobre o conhecimento científico, a
literatura, a religião, a moral, etc. – estão estreitamente ligadas aos
problemas de filosofia da linguagem. Um produto ideológico faz parte
de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico,
instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário
destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é
exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo
situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é
um signo. Sem signos não existe ideologia. Um corpo físico vale por
si próprio: não significa nada e coincide inteiramente com sua própria
natureza. Neste caso, não se trata de ideologia.
No entanto, todo corpo físico pode ser percebido como símbolo: é
o caso, por exemplo, da simbolização do princípio de inércia e de
necessidade na natureza (determinismo) por um determinado objeto
único. E toda imagem artístico-simbólica ocasionada por um objeto
físico particular já é um produto ideológico. Converte-se, assim, em
signo o objeto físico, o qual, sem deixar de fazer parte da realidade
material, passa a refletir e a refratar, numa certa medida, uma outra
realidade.
O mesmo se dá com um instrumento de produção. Em si
mesmo, um instrumento não possui um sentido preciso, mas
apenas uma função: desempenhar este ou aquele papel na pro-
29
dução. E ele desempenha essa função sem refletir ou representar
alguma outra coisa. Todavia, um instrumento pode ser convertido em
signo ideológico: é o caso, por exemplo, da foice e do martelo como
emblema da União Soviética. A foice e o martelo possuem, aqui, um
sentido puramente ideológico. Todo instrumento de produção pode,
da mesma forma, se revestir de um sentido ideológico: os
instrumentos utilizados pelo homem pré-histórico eram cobertos de
representações simbólicas e de ornamentos, isto é, de signos. Nem por
isso o instrumento, assim tratado, torna-se ele próprio um signo.
Por outro lado, é possível dar ao instrumento uma forma artística,
que assegure uma adequação harmônica da forma à função na
produção. Nesse caso, produz-se uma espécie de aproximação
máxima, quase uma fusão, entre o signo e o instrumento. Mas mesmo
aqui ainda discernimos uma linha de demarcação conceitual: o
instrumento, enquanto tal, não se torna signo e o signo, enquanto tal,
não se torna instrumento de produção.
Qualquer produto de consumo pode, da mesma forma, ser
transformado em signo ideológico. O pão e o vinho, por exemplo,
tornam-se símbolos religiosos no sacramento cristão da comunhão.
Mas o produto de consumo enquanto tal não é, de maneira alguma,
um signo. Os produtos de consumo, assim como os instrumentos,
podem ser associados a signos ideológicos, mas essa associação não
apaga a linha de demarcação existente entre eles. O pão possui uma
forma particular que não é apenas justificável pela sua função de
produto de consumo; essa forma possui também um valor, mesmo que
primitivo, de signo ideológico (por exemplo o pão com a forma de
número oito ou de uma roseta).
Portanto, ao lado dos fenômenos naturais, do material tecnológico
e dos artigos de consumo, existe um universo particular, o universo de
signos.
Os signos também são objetos naturais, específicos, e, como
vimos, todo produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-
se signo e adquirir, assim, um sentido que ultrapasse suas próprias
particularidades. Um signo não existe apenas como parte de uma
realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer
essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista
específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação
ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom,
etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos:
são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra,
encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um
valor semiótico.
30
No domínio dos signos, isto é, na esfera ideológica, existem
diferenças profundas, pois este domínio é, ao mesmo tempo, o da
representação, do símbolo religioso, da fórmula científica e da forma
jurídica, etc. Cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio
modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria
maneira. Cada campo dispõe de sua própria função no conjunto da
vida social. É seu caráter semiótico que coloca todos os fenômenos
ideológicos sob a mesma definição geral.
Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da
realidade, mas também um fragmento material dessa realidade. Todo
fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação
material, seja como som, como massa física, como cor, como
movimento do corpo ou como outra coisa qualquer. Nesse sentido, a
realidade do signo é totalmente objetiva e, portanto, passível de um
estudo metodologicamente unitário e objetivo. Um signo é um
fenômeno do mundo exterior. O próprio signo e todos os seus efeitos
(todas as ações, reações e novos signos que ele gera no meio social
circundante) aparecem na experiência exterior. Este é um ponto de
suma importância. No entanto, por mais elementar e evidente que ele
possa parecer, o estudo das ideologias ainda não tirou todas as
conseqüências que dele decorrem.
A filosofia idealista e a visão psicologista da cultura situam a
ideologia na consciência1. Afirmam que a ideologia é um fato
de consciência e que o aspecto exterior do signo é simplesmente um
revestimento, um meio técnico de realização do efeito interior,
isto é, da compreensão. O idealismo e o psicologismo esquecem

1
Notemos que, sobre esse ponto, é possível detectar uma
mudança de perspectiva no neokantismo moderno. Estou
pensando no recente livro de Ernst Cassirer, Philosophie der
symbolischen Formen, vol. I, 1923. Embora continue se situando
no terreno da consciência, Cassirer considera que seu traço
dominante é a representação. Cada elemento de consciência
representa alguma coisa, é o suporte de uma função simbólica. O
todo existe nas suas partes, mas uma parte só é compreensível
no todo. Segundo Cassirer, a idéia é tão sensorial quanto a
matéria: no entanto, o aspecto sensorial introduzido aqui é o do
signo simbólico, é uma sensorialidade representativa.
31
que a própria compreensão não pode manifestar-se senão através
de um material semiótico (por exemplo, o discurso interior),
que o signo se opõe ao signo, que a própria consciência só pode
surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação material
em signos. Afinal, compreender um signo consiste em aproximar o
signo apreendido de outros signos já conhecidos; em outros termos, a
compreensão é uma resposta a um signo por meio de signos. E essa
cadeia de criatividade e de compreensão ideológicas, deslocando-se
de signo em signo para um novo signo, é única e contínua: de um elo
de natureza semiótica (e, portanto, também de natureza material)
passamos sem interrupção para um outro elo de natureza estritamente
idêntica. Em nenhum ponto a cadeia se quebra, em nenhum ponto ela
penetra a existência interior, de natureza não material e não
corporificada em signos.
Essa cadeia ideológica estende-se de consciência individual em
consciência individual, ligando umas às outras. Os signos só
emergem, decididamente, do processo de interação entre uma
consciência individual e uma outra. E a própria consciência individual
está repleta de signos. A consciência só se torna consciência quando
se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, conseqüentemente,
somente no processo de interação social.
Apesar de suas profundas diferenças metodológicas, a filosofia
idealista e o psicologismo em matéria de cultura cometem, ambos, o
mesmo erro fundamental. Situando a ideologia na consciência, eles
transformam o estudo das ideologias em estudo da consciência e de
suas leis: pouco importa que isso seja feito em termos transcendentais
ou em termos empírico-psicológicos. Esse erro não só é responsável
por uma confusão metodológica acerca da inter-relação entre
domínios diferentes do conhecimento, como também por uma
distorção radical da realidade estudada. A criação ideológica – ato
material e social – é introduzida à força no quadro da consciência
individual. Esta, por sua vez, é privada de qualquer suporte na
realidade. Torna-se tudo ou nada.
Para o idealismo ela tornou-se tudo: situada em algum lugar
acima da existência e determinando-a. De fato, na teoria idealista,
essa soberana do universo é a mera hipóstase de um vínculo
abstrato entre as formas e as categorias mais gerais da criação
ideológica.
Para o positivismo psicologista, ao contrário, a consciência se
reduz a nada: simples conglomerado de reações psicofisiológicas
fortuitas que, por milagre, resulta numa criação ideológica
significante e unificada.
32
A regularidade social objetiva da criação ideológica, quan-
do indevidamente interpretada como estando em conformidade com
as leis da consciência individual, deve, inevitavelmente, ser excluída
de seu verdadeiro lugar na existência e transportada quer para
a empíreo supra-existencial do transcendentalismo, quer para
os recônditos pré-sociais do organismo psicofisiológico, biológico.
No entanto, o ideológico enquanto tal não pode ser explicado em
termos de raízes supra ou infra-humanas. Seu verdadeiro lugar é o
material social particular de signos criados pelo homem. Sua
especificidade reside, precisamente, no fato de que ele se situa entre
indivíduos organizados, sendo o meio de sua comunicação.
Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual.
Ainda assim, trata-se de um terreno que não pode ser chamado de
“natural” no sentido usual da palavra2: não basta colocar face a face
dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam. É
fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente
organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim
um sistema de signos pode constituir-se. A consciência individual não
só nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser
explicada a partir do meio ideológico e social.
A consciência individual é um fato sócio-ideológico. Enquanto
esse fato e todas as suas conseqüências não forem devidamente
reconhecidas, não será possível construir nem uma psicologia objetiva
nem um estudo objetivo das ideologias.
É justamente o problema da consciência que criou as maiores
dificuldades e gerou a formidável confusão que encontramos em todas
as discussões relativas tanto à psicologia quanto ao estudo das
ideologias. De maneira geral, a consciência tornou-se o asylum
ignorantiae de todo edifício filosófico. Foi transformada em depósito
de todos os problemas não resolvidos, de todos os resíduos
objetivamente irredutíveis. Ao invés de se buscar uma definição
objetiva da consciência, esta foi usada para tornar subjetivas e fluidas
certas noções até então sólidas e objetivas.
A única definição objetiva possível da consciência é de ordem
sociológica. A consciência não pode derivar diretamente da natureza,
como tentaram e ainda tentam mostrar o materialismo mecanicista
ingênuo e a psicologia contemporânea (sob suas diferentes formas:

2
A sociedade, evidentemente, é também uma parte da natureza,
mas uma parte que é qualitativamente distinta e separada dela e
que possui seu próprio sistema de leis específicas.
33
biológica, behaviorista, etc.). A ideologia não pode derivar
da consciência, como pretendem o idealismo e o positivis-
mo psicologista. A consciência adquire forma e existência nos signos
criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais.
Os signos são o alimento da consciência individual, a maté-
ria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e suas
leis. A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da
interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a consciência
de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. A imagem, a
palavra, o gesto significante, etc. constituem seu único abrigo. Fora
desse material, há apenas o simples ato fisiológico, não esclarecido
pela consciência, desprovido do sentido que os signos lhe conferem.
Tudo o que dissemos acima conduz ao seguinte princípio
metodológico: o estudo das ideologias não depende em nada da
psicologia e não tem nenhuma necessidade dela. Como veremos, é
antes o contrário que é verdadeiro: a psicologia objetiva deve se
apoiar no estudo das ideologias. A realidade dos fenômenos
ideológicos é a realidade objetiva dos signos sociais. As leis dessa
realidade são as leis da comunicação semiótica e são diretamente
determinadas pelo conjunto das leis sociais e econômicas. A realidade
ideológica é uma superestrutura situada imediatamente acima da base
econômica. A consciência individual não é o arquiteto dessa
superestrutura ideológica, mas apenas um inquilino do edifício social
dos signos ideológicos.
Preliminarmente, portanto, separando os fenômenos ideológicos da
consciência individual nós os ligamos às condições e às formas da
comunicação social. A existência do signo nada mais é do que a
materialização dessa comunicação. É nisso que consiste a natureza de
todos os signos ideológicos.
Mas esse espaço semiótico e esse papel contínuo da comuni-
cação social como fator condicionante não aparecem em nenhum
lugar de maneira mais clara e completa do que na linguagem. A
palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da
palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta
nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido
gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação
social.
O valor exemplar, a representatividade da palavra como fenômeno
ideológico e a excepcional nitidez de sua estrutura semiótica já
deveriam nos fornecer razões suficientes para colocarmos a palavra
em primeiro plano no estudo das ideologias. É, precisamente, na
34
palavra que melhor se revelam as formas básicas, as formas
ideológicas gerais da comunicação semiótica.
Mas a palavra não é somente o signo mais puro, mais indica-
tivo; é também um signo neutro. Cada um dos demais sistemas
de signos é específico de algum campo particular da criação
ideológica. Cada domínio possui seu próprio material ideológico e
formula signos e símbolos que lhe são específicos e que não são
aplicáveis a outros domínios. O signo, então, é criado por uma função
ideológica precisa e permanece inseparável dela. A palavra, ao
contrário, é neutra em relação a qualquer função ideológica
específica. Pode preencher qualquer espécie de função ideológica:
estética, científica, moral, religiosa.
Além disso, existe uma parte muito importante da comunicação
ideológica que não pode ser vinculada a uma esfera ideológica
particular: trata-se da comunicação na vida cotidiana. Esse tipo de
comunicação é extraordinariamente rica e importante. Por um lado,
ela está diretamente vinculada aos processos de produção e, por outro
lado, diz respeito às esferas das diversas ideologias especializadas e
formalizadas. Trataremos, no próximo capítulo, com maior detalhe
desse domínio especial que é a ideologia do cotidiano. Por ora,
notemos apenas que o material privilegiado da comunicação na vida
cotidiana é a palavra. É justamente nesse domínio que a conversação
e suas formas discursivas se situam.
Há uma outra propriedade da palavra que é da maior importância e
que a torna o primeiro meio da consciência individual. Embora a
realidade da palavra, como a de qualquer signo, resulte do consenso
entre os indivíduos, uma palavra é, ao mesmo tempo, produzida pelos
próprios meios do organismo individual, sem nenhum recurso a uma
aparelhagem qualquer ou a alguma outra espécie de material
extracorporal. Isso determinou o papel da palavra como material
semiótico da vida interior, da consciência (discurso interior). Na
verdade, a consciência não poderia se desenvolver se não dispusesse
de um material flexível, veiculável pelo corpo. E a palavra constitui
exatamente esse tipo de material. A palavra é, por assim dizer,
utilizável como signo interior; pode funcionar como signo sem
expressão externa. Por isso, o problema da consciência individual
como problema da palavra interior, em geral constitui um dos
problemas fundamentais da filosofia da linguagem.
É claro que esse problema não pode ser abordado corretamente
se se recorre aos conceitos usuais de palavra e de língua tais
como foram definidos pela lingüística e pela filosofia da lingua-
gem não-sociológicas. É preciso fazer uma análise profunda e aguda
35
da palavra como signo social para compreender seu funciona-
mento como instrumento da consciência. É devido a esse pa-
pel excepcional de instrumento da consciência que a palavra funciona
como elemento essencial que acompanha toda criação ideológica,
seja ela qual for. A palavra acompanha e comenta todo ato ideoló-
gico. Os processos de compreensão de todos os fenômenos
ideológicos (um quadro, uma peça musical, um ritual ou um
comportamento humano) não podem operar sem a participação do
discurso interior. Todas as manifestações da criação ideológica –
todos os signos não-verbais – banham-se no discurso e não podem ser
nem totalmente isoladas nem totalmente separadas dele.
Isso não significa, obviamente, que a palavra possa suplantar
qualquer outro signo ideológico. Nenhum dos signos ideoló-
gicos específicos, fundamentais, é inteiramente substituível por
palavras. É impossível, em última análise, exprimir em palavras, de
modo adequado, uma composição musical ou uma representação
pictórica. Um ritual religioso não pode ser inteiramente substituído
por palavras. Nem sequer existe um substituto verbal realmente
adequado para o mais simples gesto humano. Negar isso conduz ao
racionalismo e ao simplismo mais grosseiros. Todavia, embora
nenhum desses signos ideológicos seja substituível por palavras, cada
um deles, ao mesmo tempo, se apóia nas palavras e é acompanhado
por elas, exatamente como no caso do canto e de seu
acompanhamento musical.
Nenhum signo cultural, quando compreendido e dotado de um
sentido, permanece isolado: torna-se parte da unidade da consciência
verbalmente constituída. A consciência tem o poder de abordá-lo
verbalmente. Assim, ondas crescentes de ecos e ressonâncias verbais,
como as ondulações concêntricas à superfície das águas, moldam, por
assim dizer, cada um dos signos ideológicos. Toda refração
ideológica do ser em processo de formação, seja qual for a natureza
de seu material significante, é acompanhado de uma refração
ideológica verbal, como fenômeno obrigatoriamente concomitante. A
palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os
atos de interpretação.
Todas as propriedades da palavra que acabamos de examinar – sua
pureza semiótica, sua neutralidade ideológica, sua implicação na
comunicação humana ordinária, sua possibilidade de interiorização e,
finalmente, sua presença obrigatória, como fenômeno acompanhante,
em todo ato consciente – todas essas propriedades fazem dela o objeto
fundamental do estudo das ideologias. As leis da refração ideológica
da existência em signos e em consciência, suas formas e seus
36
mecanismos, devem ser estudados, antes de mais nada, a partir desse
material que é a palavra. A única maneira de fazer com que o método
sociológico marxista dê conta de todas as profundidades e de todas as
sutilezas das estruturas ideológicas “imanentes” consiste em partir da
filosofia da linguagem concebida como filosofia do signo ideológico.
E essa base de partida deve ser traçada e elaborada pelo próprio
marxismo.

37
CAPÍTULO 2
A RELAÇÃO ENTRE A INFRA-ESTRUTURA
E AS SUPERESTRUTURAS

Um dos problemas fundamentais do marxismo, o das relações


entre a infra-estrutura e as superestruturas, acha-se intimamente
ligado, em muitos de seus principais aspectos, aos problemas da
filosofia da linguagem. O marxismo só tem pois a ganhar com a
resolução ou, pelo menos, com o tratamento, ainda que não muito
aprofundado, destas questões. Sempre que se coloca a questão de
saber como a infra-estrutura determina a ideologia, encontramos a
seguinte resposta que, embora justa, mostra-se por demais genérica e
por isso ambígua: “a causalidade”. Se for necessário entender por
causalidade a mecanicista, como tem sido entendida até hoje pela
corrente positivista da escola naturalista, então uma tal resposta se
revela radicalmente mentirosa e contraditória com os próprios
fundamentos do materialismo dialético.
A esfera de aplicação da categoria de causalidade mecanicista é
extremamente limitada; mesmo nas ciências naturais ela se reduz cada
vez mais à medida que o materialismo dialético alarga seu campo de
aplicação e aprofunda suas teses. Está fora de questão, a fortiori,
aplicar esta categoria inerte aos problemas fundamentais do
materialismo histórico ou a qualquer ciência das ideologias.
A explicitação de uma relação entre a infra-estrutura e
um fenômeno isolado qualquer, destacado de seu contexto ideoló-
gico completo e único, não apresenta nenhum valor cognitivo. Antes
de mais nada, é impossível estabelecer o sentido de uma
dada transformação ideológica no contexto da ideologia
correspondente, considerando que toda esfera ideológica se apre-
senta como um conjunto único e indivisível cujos elementos, sem
exceção, reagem a uma transformação da infra-estrutura. Eis porque
toda explicação deve ter em conta a diferença quantitativa entre as
esferas de influência recíproca e seguir passo a passo todas as etapas
da transformação. Apenas sob esta condição a análise desembo-
38
cará, não na convergência superficial de dois fenômenos fortuitos
e situados em planos diferentes, mas num processo de evolução social
realmente dialético, que procede da infra-estrutura e vai tomar forma nas
superestruturas.
Ignorar a especificidade do material semiótico-ideológico, é reduzir o
fenômeno ideológico, é tomar em consideração e explicar apenas seu
valor denotativo racional (por exemplo, o sentido diretamente
representativo de uma dada obra literária: Rúdin = “o homem
supérfluo”*,. componente este colocado então em relação com a infra-
estrutura (aqui, o empobrecimento da nobreza, donde o tema “homem
supérfluo” na literatura), ou então, ao contrário, é isolar apenas o
componente superficial, “técnico”, do fenômeno ideológico (exemplo: a
técnica arquitetônica, ou ainda a técnica dos colorantes químicos) e, neste
caso, este componente deduz-se diretamente do nível técnico da
produção.
Tanto um quanto outro método de dedução da ideologia a partir da
infra-estrutura passam à margem da substância do fenômeno ideológico.
Mesmo se a correspondência estabelecida for justa, mesmo se “o homem
supérfluo” tiver efetivamente aparecido na literatura em correlação com a
decadência econômica da nobreza, em primeiro lugar, disto não decorre
em absoluto que os reveses econômicos correspondentes engendrem por
um fenômeno de causalidade mecanicista “homens supérfluos” nas
páginas dos romances (a futilidade de uma tal suposição é absolutamente
evidente); em segundo lugar, esta correspondência não tem nenhum valor
cognitivo enquanto não se explicitarem o papel específico do “homem
supérfluo” na estrutura da obra romanesca e o papel específico do
romance no conjunto da vida social.
Não parece evidente que entre a transformação da estrutura econômi-
ca e o aparecimento do “homem supérfluo” no romance existe um
longo percurso que passa por uma série de esferas qualitati-
vamente diferenciadas, estando cada uma delas dotada de um con-
junto de regras específicas e de um caráter próprio? Não parece evi-

*
Título de um célebre romance de Turguiéniev, que constitui a
confissão de toda uma geração, a dos anos 1830, conhecida na
história russa pelo nome de “geração idealista” e marcada pela
sua incapacidade de agir. Dela podemos aproximar os
personagens “Oblómov” em Oblómov de I.A. Gontcharov,
“Deltov” em De quem é a Culpa? de A. I. Herzen e “Bazárov”
em Pais e Filhos de Turguiéniev. (N.d.T.f.).
39
dente que “o homem supérfluo” não surgiu no romance de for-
ma independente e sem qualquer ligação com os outros ele-
mentos constitutivos do romance? Bem ao contrário, o romance no seu
conjunto reestruturou-se como um todo único, orgânico, subme-
tido a suas próprias leis específicas. Portanto, reestruturam-se tam-
bém todos os outros elementos do romance; sua composição, seu
estilo. Mas esta reestruturação do romance completou-se também em
estreita ligação com as demais transformações no conjunto da
literatura.
O problema da relação recíproca entre a infra-estrutura e as
superestruturas, problema dos mais complexos e que exige, para sua
resolução fecunda, um volume enorme de materiais preliminares,
pode justamente ser esclarecido, em larga escala, pelo estudo do
material verbal.
De fato, a essência deste problema, naquilo que nos interessa,
liga-se à questão de saber como a realidade (a infra-estrutura)
determina o signo, como o signo reflete e refrata a realidade em
transformação.
As características da palavra enquanto signo ideológico, tais como
foram ressaltadas no primeiro capítulo, fazem dela um dos mais
adequados materiais para orientar o problema no plano dos princípios.
Não é tanto a pureza semiótica da palavra que nos interessa na relação
em questão, mas sua ubiqüidade social. Tanto é verdade que a palavra
penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas
relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros
fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As
palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e
servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É
portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de
todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas
despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram
caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A
palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações
quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir
uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de
engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de
registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das
mudanças sociais.
O que chamamos de psicologia do corpo social e que constitui,
segundo a teoria de Plekhánov e da maioria dos marxistas, uma
espécie de elo de ligação entre a estrutura sócio-política e a ideo-
logia no sentido estrito do termo (ciência, arte, etc.), reali-
40
za-se, materializa-se, sob a forma de interação verbal. Se conside-
rada fora deste processo real de comunicação e de interação ver-
bal (ou, mais genericamente, semiótica), a psicologia do corpo so-
cial se transforma num conceito metafísico ou mítico
(a “alma coletiva”, “o inconsciente coletivo”, “o espírito do povo”,
etc.).
A psicologia do corpo social não se situa em nenhum lugar
“interior” (na “alma” dos indivíduos em situação de comunicação);
ela é, pelo contrário, inteiramente exteriorizada: na palavra, no gesto,
no ato. Nada há nela de inexprimível, de interiorizado, tudo está na
superfície, tudo está na troca, tudo está no material, principalmente no
material verbal.
As relações de produção e a estrutura sócio-política que delas
diretamente deriva determinam todos os contatos verbais possíveis
entre indivíduos, todas as formas e os meios de comunicação verbal:
no trabalho, na vida política, na criação ideológica. Por sua vez, das
condições, formas e tipos da comunicação verbal derivam tanto as
formas como os temas dos atos de fala.
A psicologia do corpo social é justamente o meio ambiente inicial
dos atos de fala de toda espécie, e é neste elemento que se acham
submersas todas as formas e aspectos da criação ideológica
ininterrupta: as conversas de corredor, as trocas de opinião no teatro
e, no concerto, nas diferentes reuniões sociais, as trocas puramente
fortuitas, o modo de reação verbal face às realidades da vida e aos
acontecimentos do dia-a-dia, o discurso interior e a consciência auto-
referente, a regulamentação social, etc. A psicologia do corpo social
se manifesta essencialmente nos mais diversos aspectos da
“enunciação” sob a forma de diferentes modos de discurso, sejam eles
interiores ou exteriores. Este campo não foi objeto de nenhum estudo
até hoje. Todas estas manifestações verbais estão, por certo, ligadas
aos demais tipos de manifestação e de interação de natureza
semiótica, à mímica, à linguagem gestual, aos gestos condicionados,
etc.
Estas formas de interação verbal acham-se muito estreitamente
vinculadas às condições de uma situação social dada e reagem de
maneira muito sensível a todas as flutuações da atmosfera social.
Assim é que no seio desta psicologia do corpo social materializada na
palavra acumulam-se mudanças e deslocamentos quase imperceptíveis
que, mais tarde, encontram sua expressão nas produções ideológicas
acabadas.
Do que até agora foi dito podemos deduzir o seguinte: que a
psicologia do corpo social deve ser estudada de dois pontos de vista
41
diferentes: primeiramente, do ponto de vista do conteúdo, dos temas
que aí se encontram atualizados num dado momento do tempo; e, em
segundo lugar, do ponto de vista dos tipos e formas de discurso
através dos quais estes temas tomam forma, são comentados, se
realizam, são experimentados, são pensados, etc.
Até o presente, o estudo da psicologia do corpo social se limitava
ao primeiro ponto de vista, ou seja, à explicitação única da temática
nela contida. E mais, a própria questão de saber onde buscar
documentos objetivos, isto é, a expressão materializada da psicologia
do corpo social, nem mesmo se colocava com toda sua clareza. Aí
então os conceitos de “consciência”, “psiquismo” e “mundo interior”
desempenharam um papel deplorável, suprimindo a necessidade de
pesquisar as formas materiais precisas da expressão da psicologia do
corpo social.
No entanto, esta questão das formas concretas tem uma
significação imediata. Não se trata, é claro, nem das fontes de nosso
conhecimento da psicologia do corpo social numa ou noutra época
(por exemplo: memórias, cartas, obras literárias), nem das fontes de
nossa compreensão do “espírito da época”. Trata-se, muito
precisamente, das próprias formas de concretização deste espírito, isto
é, das formas da comunicação no contexto da vida e através de signos.
A tipologia destas formas é um dos problemas vitais para o marxismo.
Mais tarde, em conexão com o problema da enunciação e do
diálogo, abordaremos também o problema dos gêneros lingüísticos. A
este respeito faremos simplesmente a seguinte observação: cada época
e cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso na
comunicação sócio-ideológica. A cada grupo de formas pertencentes
ao mesmo gênero, isto é, a cada forma de discurso social, corresponde
um grupo de temas. Entre as formas de comunicação (por exemplo,
relações entre colaboradores num contexto puramente técnico), a
forma de enunciação (“respostas curtas” na “linguagem de negócios”)
e enfim o tema, existe uma unidade orgânica que nada poderia
destruir. Eis porque a classificação das formas de enunciação deve
apoiar-se sobre uma classificação das formas da comunicação
verbal. Estas últimas são inteiramente determinadas pelas relações de
produção e pela estrutura sócio-política. Uma análise mais minuciosa
revelaria a importância incomensurável do componente hierárquico
no processo de interação verbal, a influência poderosa que exerce a
organização hierarquizada das relações sociais sobre as formas de
enunciação. O respeito às regras da “etiqueta”, do “bem-falar” e as
demais formas de adaptação da enunciação à organização
42
hierarquizada da sociedade têm uma importância imensa no processo
de explicitação dos principais modos de comportamento1.
Todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre
indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de
interação. Razão pela qual as formas do signo são condicionadas
tanto pela organização social de tais indivíduos como pelas
condições em que a interação acontece. Uma modificação destas
formas ocasiona uma modificação do signo. É justamente uma das
tarefas da ciência das ideologias estudar esta evolução social do signo
lingüístico. Só esta abordagem pode dar uma expressão concreta ao
problema da mútua influência do signo e do ser; é apenas sob esta
condição que o processo de determinação causal do signo pelo ser
aparece como uma verdadeira passagem do ser ao signo, como um
processo de refração realmente dialético do ser no signo.
Para tanto, é indispensável observar as seguintes regras
metodológicas:

1. Não separar a ideologia da realidade material do signo


(colocando-a no campo da “consciência” ou em qualquer outra esfera
fugidia e indefinível).
2. Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação
social (entendendo-se que o signo faz parte de um sistema de
comunicação social organizada e que não tem existência fora deste
sistema, a não ser como objeto físico).
3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base
material (infra-estrutura).

Realizando-se no processo da relação social, todo signo


ideológico, e portanto também o signo lingüístico, vê-se marcado pelo
horizonte social de uma época e de um grupo social determinados.
Até agora tratamos da forma do signo enquanto determinado pelas
formas da interação social. Iremos agora abordar um outro aspecto, o
do conteúdo do signo e do índice de valor que afeta todo conteúdo.
A cada etapa do desenvolvimento da sociedade, encontram-se
grupos de objetos particulares e limitados que se tornam objeto da

1
O problema dos registros da língua familiar só
começou a chamar a atenção dos lingüistas e
filósofos bem recentemente.
43
atenção do corpo social e que, por causa disso, tomam um valor
particular. Só este grupo de objetos dará origem a signos,
–––––––––
Leo Spitzer, num artigo intitulado “Italienische Umgangsprache” (1922) foi
um dos primeiros a abordar este problema de forma séria, embora destituída
de critérios sociológicos. Ele será citado adiante, juntamente com seus
precursores e imitadores.
tornar-se-á um elemento da comunicação por signos. Como se pode
determinar este grupo de objetos “valorizados”?
Para que o objeto, pertencente a qualquer esfera da realidade,
entre no horizonte social do grupo e desencadeie uma reação
semiótico-ideológica, é indispensável que ele esteja ligado às
condições sócio-econômicas essenciais do referido grupo, que
concerne de alguma maneira às bases de sua existência material.
Evidentemente, o arbítrio individual não poderia desempenhar aqui
papel algum, já que o signo se cria entre indivíduos, no meio social; é
portanto indispensável que o objeto adquira uma significação
interindividual; somente então é que ele poderá ocasionar a formação
de um signo. Em outras palavras, não pode entrar no domínio da
ideologia, tomar forma e aí deitar raízes senão aquilo que adquiriu
um valor social.
É por isso que todos os índices de valor com caracterís-
ticas ideológicas, ainda que realizados pela voz dos indivíduos
(por exemplo, na palavra) ou, de modo mais geral, por um orga-
nismo individual, constituem índices sociais de valor, com pre-
tensões ao consenso social, e apenas em nome deste consenso
é que eles se exteriorizam no material ideológico.
Admitamos chamar a realidade que dá lugar à formação
de um signo de tema do signo. Cada signo constituído
possui seu tema. Assim, cada manifestação verbal tem seu
tema2.
O tema ideológico possui sempre um índice de valor social. Por
certo, todos estes índices sociais de valor dos temas ideológicos
chegam igualmente à consciência individual que, como sabemos, é
toda ideologia. Aí eles se tornam, de certa forma, índices individuais
de valor, na medida em que a consciência individual os absorve como
sendo seus, mas sua fonte não se encontra na consciência individual.

2
A relação do tema com a semântica das palavras individuais
que constituem a enunciação será retomada adiante, em seus
pormenores.
44
O índice de valor é por natureza interindividual. O grito do animal,
enquanto pura reação de um organismo individual à dor, é despido de
índice de valor. É um fenômeno puramente natural. O grito não
depende da atmosfera social, razão pela qual ele não recebe sequer o
esboço de uma formalização semiótica.
O tema e a forma do signo ideológico estão indissoluvelmente
ligados, e não podem, por certo, diferenciar-se a não ser
abstratamente. Tanto é verdade que, em última análise, são as mesmas
forças e as mesmas condições que dão vida a ambos. Afinal, são
as mesmas condições econômicas que associam um novo elemento da
realidade ao horizonte social, que o tornam socialmente pertinente, e
são as mesmas forças que criam as formas da comunicação ideológica
(cognitiva, artística, religiosa, etc.), as quais determinam, por sua vez,
as formas da expressão semiótica.
Assim, os temas e as formas da criação ideológica crescem juntos
e constituem no fundo as duas facetas de uma só e mesma coisa. Este
processo de integração da realidade na ideologia, o nascimento dos
temas e das formas, se tornam mais facilmente observáveis no plano
da palavra.
Este processo de transformação ideológica refletiu-se na língua,
em grande escala, no mundo e na história; é ele objeto de estudo da
paleontologia das significações lingüísticas, que põe em evidência a
integração de planos da realidade ainda não diferenciados no
horizonte social dos homens pré-históricos. Sucede o mesmo, em
escala mais reduzida, na época contemporânea, já que a palavra, como
sabemos, reflete sutilmente as mais imperceptíveis alterações da
existência social.

O ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também


se refrata. O que é que determina esta refração do ser no signo
ideológico? O confronto de interesses sociais nos limites de uma só e
mesma comunidade semiótica, ou seja: a luta de classes.
Classe social e comunidade semiótica não se confundem. Pelo
segundo termo entendemos a comunidade que utiliza um único e
mesmo código ideológico de comunicação. Assim, classes sociais
diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Conseqüentemente,
em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor
contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de
classes. Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço da
maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de
45
valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir. O signo, se
subtraído às tensões da luta social, se posto à margem da luta de
classes, irá infalivelmente debilitar-se, degenerará em alegoria, tornar-
se-á objeto de estudo dos filólogos e não será mais um instrumento
racional e vivo para a sociedade. A memória da história da
humanidade está cheia destes signos ideológicos defuntos, incapazes
de constituir uma arena para o confronto dos valores sociais vivos.
Somente na medida em que o filólogo e o historiador conservam a sua
memória é que subsistem ainda neles alguns lampejos de vida.
Mas aquilo mesmo que torna o signo ideológico vivo e dinâmico
faz dele um instrumento de refração e de deformação do ser. A classe
dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível
e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta
dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o signo
monovalente.
Na realidade, todo signo ideológico vivo tem, como Jano, duas
faces. Toda crítica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva não
pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras. Esta
dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas
épocas de crise social e de comoção revolucionária. Nas condições
habituais da vida social, esta contradição oculta em todo signo
ideológico não se mostra à descoberta porque, na ideologia dominante
estabelecida, o signo ideológico é sempre um pouco reacionário e
tenta, por assim dizer, estabilizar o estágio anterior da corrente
dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem como
sendo válida hoje em dia. Donde o caráter refratário e deformador do
signo ideológico nos limites da ideologia dominante.
É assim que se apresenta o problema da relação entre a infra-
estrutura e as superestruturas. Nós apenas tomamos em consideração
a concretização de alguns dos aspectos deste problema e tentamos
traçar o caminho que uma pesquisa fecunda neste terreno deve seguir.
Era essencial mostrar o lugar da filosofia da linguagem dentro desta
problemática. O estudo do signo lingüístico permite observar mais
facilmente e de forma mais profunda a continuidade do processo
dialético de evolução que vai da infra-estrutura às superestruturas. É
no terreno da filosofia da linguagem que se torna mais fácil extirpar
pela raiz a explicação pela causalidade mecanicista dos fenômenos
ideológicos.

46
CAPÍTULO 3
FILOSOFIA DA LINGUAGEM E PSICOLOGIA OBJETIVA

Uma das tarefas mais essenciais e urgentes do marxismo é


constituir uma psicologia verdadeiramente objetiva. No entanto, seus
fundamentos não devem ser nem fisiológicos nem biológicos, mas
SOCIOLÓGICOS. De fato, o marxismo encontra-se frente a uma
árdua tarefa: a procura de uma abordagem objetiva, porém refinada e
flexível, do psiquismo subjetivo consciente do homem, que, em geral,
é analisado pelos métodos de introspecção.
Nem a biologia nem a fisiologia estão em condições de resolver
esse problema. A consciência constitui um fato sócio-ideológico, não
acessível a métodos tomados de empréstimo à fisiologia ou às
ciências naturais. É impossível reduzir o funcionamento da
consciência a alguns processos que se desenvolvem no interior do
campo fechado de um organismo vivo. Os processos que, no
essencial, determinam o conteúdo do psiquismo, desenvolvem-se não
no organismo, mas fora dele, ainda que o organismo individual
participe deles. O psiquismo subjetivo do homem não constitui um
objeto de análise para as ciências naturais, como se se tratasse de uma
coisa ou de um processo natural. O psiquismo subjetivo é o objeto de
uma análise ideológica, de onde se depreende uma interpretação
sócio-ideológica. O fenômeno psíquico, uma vez compreendido e
interpretado, é explicável exclusivamente por fatores sociais, que
determinam a vida concreta de um dado indivíduo, nas condições do
meio social1.

1
Um esboço popular dos modernos problemas da psicologia
encontra-se em nosso livro Freidizm (kritítcheskoie ótcherk)
[Freudismo (Esboço Crítico)], Moscou-Leningrado, 1927, Ver
cap. 2: Duas Orientações da Psicologia Contemporânea.
47
O primeiro e principal problema que se coloca, a partir dessa ótica,
é o da apreensão objetiva da “vivência interior”. É indispensável
integrar a “vivência interior” na unidade da vivência exterior objetiva.
Que tipo de realidade pertence ao psiquismo subjetivo? A
realidade do psiquismo interior é a do signo. Sem material semiótico,
não se pode falar em psiquismo. Pode-se falar de processos
fisiológicos, de processos do sistema nervoso, mas não de processo do
psiquismo subjetivo, uma vez que ele é um traço particular do ser,
radicalmente diferente, tanto dos processos fisiológicos que se
desenrolam no organismo, quanto da realidade exterior ao organismo,
realidade à qual o psiquismo reage e que ele reflete, de uma maneira
ou de outra. Por natureza, o psiquismo subjetivo localiza-se no limite
do organismo e do mundo exterior, vamos dizer, na fronteira dessas
duas esferas da realidade. É nessa região limítrofe que se dá o
encontro entre o organismo e o mundo exterior, mas este encontro não
é físico: o organismo e o mundo encontram-se no signo. A atividade
psíquica constitui a expressão semiótica do contato entre o organismo
e o meio exterior. Eis porque o psiquismo interior não deve ser
analisado como uma coisa; ele não pode ser compreendido e
analisado senão como um signo.
A idéia de uma psicologia de análise e de interpretação é muito
antiga e sua história é muito instrutiva. É sintomático que, nos últimos
tempos, em ligação com as exigências metodológicas das ciências
humanas, isto é, das ciências que se ocupam das ideologias, ele tenha
sido objeto de argumentações mais profundas. Um dos seus
defensores mais ardentes e bem fundamentados foi Wihelm Dilthey.
Para ele a atividade psíquica não se define em termos de existência,
como se diria para uma coisa, mas em termos de significação. Se
perdermos de vista esta significação, se tentarmos alcançar a realidade
pura da atividade mental, na realidade, encontramo-nos segundo
Dilthey, diante de um processo fisiológico do organismo, perdemos
de vista a atividade mental.
Da mesma maneira que, se nós perdemos de vista a significação da
palavra, perdemos a própria palavra, que fica, assim, reduzida à sua
realidade física, acompanhada do processo fisiológico de sua
produção. O que faz da palavra uma palavra é sua significação.
O que faz da atividade psíquica uma atividade psíquica é, da
mesma forma, sua significação. Se abstrairmos a significação,
perdemos, ao mesmo tempo, a própria substância da vida psíquica
interior. É por isso que o objetivo da psicologia não poderia ser
explicar os fenômenos psíquicos pela causalidade, como se fossem
análogos aos processos físicos ou fisiológicos. Assim, a tarefa da
48
psicologia consiste em descrever com discernimento, dissecar e
explicar a vida psíquica como se se tratasse de um documento
submetido à análise do filólogo. Segundo Dilthey, somente uma
psicologia descritiva e explicativa deste tipo pode servir de base às
ciências humanas ou às “ciências do espírito”, como eles as chama2.
As idéias de Dilthey revelaram-se muito fecundas e continuam a
ter, em nossos dias, numerosos adeptos entre os pesquisadores em
ciências humanas. Pode-se dizer que a quase totalidade dos eruditos
alemães contemporâneos que se ocupam da filosofia estão, alguns
mais, outros menos, sob a influência das idéias de W. Dilthey3.
A teoria de Wilhelm Dilthey formou-se sobre um terreno idealista
e seus seguidores permaneceram neste terreno. A idéia de uma
psicologia de análise e de interpretação está estreitamente ligada às
premissas idealistas do pensamento, e a muitos aparece como uma
idéia especificamente idealista. Realmente, a partir da forma pela qual
a psicologia interpretativa foi criada e se desenvolveu até o presente,
ela é idealista, e, portanto, inaceitável para o materialismo dialético.
Mas, o mais inaceitável é a primazia metodológica da psicologia
sobre a ideologia. Segundo a visão de Dilthey e dos outros
representantes da psicologia interpretativa, ela deve ser a base de
todas as ciências humanas.
A ideologia é explicada em termos da psicologia – como a sua
expressão e materialização – e não o inverso. É verdade que se diz
haver entre o psiquismo e a ideologia uma proximidade, um
denominador comum, a significação, que os distingue do resto da
realidade, mas afirma-se que é a psicologia, não a ideologia, que dá o
tom dessa aproximação.
Por sua vez, nas idéias de Dilthey e outros, não se leva em conta o
caráter social do signo. E finalmente, e isto constitui o proton
pseudos, a primeira mentira de toda sua concepção, não se
compreende o vínculo indispensável entre o signo e a significação.
Não se percebe a natureza específica do signo.

2
Ver, a este propósito, o artigo em língua russa de Frischeizen-
Keller em Logos, 1912-1913, vol. 1 e 2.
3
Sobre a influência de Dilthey, enquanto iniciador dessa
corrente, ver Oskar Wahlzehl, Wilhelm Hundolf, Emil
Ehrmattinger e outros. Citaremos apenas os representantes mais
significativos das ciências humanas, na Alemanha
contemporânea.
49
Na verdade, a relação entre atividade mental e palavra, em
Dilthey, não passa de uma analogia, destinada a esclarecer uma idéia
e, além disso, só muito raramente a encontramos em sua obra. Ele está
muito distante de extrair desta comparação as conclusões que se
impõem.
Por outro lado, não é o psiquismo que ele explica com a ajuda do
signo, mas ao contrário, como bom idealista, é o signo que ele explica
através do psiquismo. O signo só se torna signo, em Dilthey, na
medida em que serve para expressar a vida interior. Esta última
confere ao signo uma significação que lhe é inerente. Aqui, a
construção de Dilthey encarna uma tendência comum ao conjunto da
corrente idealista, que consiste em privar de todo sentido, de toda
significação, o mundo material em benefício de um “espírito” fora do
tempo e do espaço.
Se a atividade mental tem uma significação, se ela não é apenas
uma realidade isolada – em relação a esse aspecto Dilthey tem razão –
então, obrigatoriamente, a atividade mental deve manifestar-se no
terreno semiótico. Tanto isso é verdade que a significação só pode
pertencer ao signo – sem o que, ela se torna uma ficção. A
significação constitui a expressão da relação do signo, como realidade
isolada, com uma outra realidade, por ela substituível, representável,
simbolizável. A significação é a função do signo; eis porque é
impossível representar a significação (enquanto propriedade
puramente relacional, funcional) à parte do signo, como algo
independente, particular. Isso é tão exeqüível como considerar a
significação da palavra cavalo como sendo o cavalo particular que
tenho diante dos meus olhos. Se assim fosse, seria possível, tendo
comido uma maçã, dizer que se comeu não uma maçã, mas a
significação da palavra maçã. O signo é uma unidade material
discreta, mas a significação não é uma coisa e não pode ser isolada do
signo como se fosse uma realidade independente, tendo uma
existência à parte do signo. É por isso que, se a atividade mental tem
um sentido, se ela pode ser compreendida e explicada, ela deve ser
analisada por intermédio do signo real e tangível.
É preciso insistir sobre o fato de que não somente a atividade mental é
expressa exteriormente com a ajuda do signo (assim como nos
expressamos para os outros por palavras, mímica ou qualquer outro meio)
mas, ainda, que para o próprio indivíduo, ela só existe sob a forma de
signos. Fora deste material semiótico, a atividade interior, enquanto tal,
não existe. Nesse sentido, toda atividade mental é exprimível, isto é,
constitui uma expressão potencial. Todo pensamento, toda emoção todo
50
movimento voluntário são exprimíveis. A função expressiva não pode ser
separada da atividade mental sem que se altere a própria natureza desta4.
Assim, não existe um abismo entre a atividade psíquica interior e
sua expressão, não há ruptura qualitativa de uma esfera da realidade à
outra. A passagem da atividade mental interior à sua expressão
exterior ocorre no quadro de um mesmo domínio qualitativo, e se
apresenta como uma mudança quantitativa. É verdade que,
correntemente, no curso do processo de expressão exterior, opera-se a
passagem de um código a um outro (por exemplo: código
mímico/código lingüístico), mas o conjunto do processo não escapa
do quadro da expressão semiótica.
O que constitui o material semiótico do psiquismo? Todo gesto ou
processo do organismo: a respiração, a circulação do sangue, os
movimentos do corpo, a articulação, o discurso interior, a mímica, a
reação aos estímulos exteriores (por exemplo, a luz), resumindo, tudo
que ocorre no organismo pode tornar-se material para a expressão
da atividade psíquica, posto que tudo pode adquirir um valor
semiótico, tudo pode tornar-se expressivo.
É verdade que nem todos estes elementos têm igual valor. Para
um psiquismo relativamente desenvolvido, diferenciado, um ma-
terial semiótico refinado e flexível é indispensável e, por sua
vez, é preciso que esse material se preste a uma formalização e a
uma diferenciação no meio social, no processo de expressão ex-
terior. É por isso que a palavra (o discurso interior) se revela
como o material semiótico privilegiado do psiquismo. É verdade
que o discurso interior se entrecruza com uma massa de
outras reações gestuais com valor semiótico. Mas a palavra
se apresenta como o fundamento, a base da vida interior. A exclu-
são da palavra reduziria o psiquismo a quase nada, enquanto
que a exclusão de todos os outros movimentos expressivos a
diminuiriam muito pouco.
Se não nos voltássemos para a função semiótica do dis-
curso interior e para todos os outros movimentos expressivos
que formam o psiquismo, nós estaríamos diante de um pro-
cesso fisiológico puro, desenvolvendo-se nos limites do orga-

4
A idéia de valor expressivo de todas as manifestações da
consciência não é estranha ao neokantismo. Ao lado dos
trabalhos
51
nismo individual. Para o fisiólogo, tal abstração é legítima e mesmo
––––––––––––
já citados de Cassirer sobre o caráter expressivo da consciência (a
consciência enquanto movimento expressivo), pode-se citar o sistema
formulado por Herman Cohen, na terceira parte de Aesthetik des reinen
Gefühls. Contudo, a idéia tal como está ali apresentada não permite
conclusões corretas. A essência da consciência permanece, apesar de tudo,
para além dos limites da existência.
indispensável; só interessa a ele o processo fisiológico e seu
mecanismo.
Contudo, mesmo para o fisiólogo, como para o biólogo, é
importante levar em conta a função semiótica expressiva (e, portanto,
a função social) dos processos fisiológicos correspondentes. Sem isso,
ele não compreenderá seu papel biológico no conjunto do
funcionamento do organismo. Nesse ponto, mesmo o biólogo não
pode excluir o ponto de vista do sociólogo; ele precisa considerar que
o organismo humano não pertence a um meio natural abstrato, mas
faz parte integrante de um meio social específico. Porém, uma vez
considerada a função semiótica dos processos fisiológicos
correspondentes, o fisiólogo centra-se na observação de seus
mecanismos puramente fisiológicos (por exemplo, o mecanismo dos
reflexos condicionados) e ele abstrai completamente suas
significações ideológicas mutáveis, que se subordinam a leis sócio-
históricas. Em suma, o conteúdo do psiquismo não lhes interessa.
Ora, é justamente o conteúdo do psiquismo tomado em sua relação
com o organismo individual que constitui o objeto da psicologia. Uma
ciência digna desta denominação não tem e não pode ter outro objeto.
Alguns afirmam que o conteúdo do psiquismo não é o objeto da
psicologia; este objeto seria somente a função deste conteúdo no
psiquismo individual. Este é o ponto de vista da chamada psicologia
“funcionaista”5. Segundo a doutrina dessa escola, a atividade mental
contém duas facetas. Primeiramente, há o conteúdo da atividade
mental. Sua natureza não é psíquica. O que está em jogo é ou um
fenômeno físico em que a experiência se focaliza (por exemplo, um
objeto da percepção), ou um conteúdo cognitivo com seu próprio

5
Os representantes mais significativos da psicologia
funcionalista são Stumpf e Meineng. A psicologia funcionalista
foi fundada por Franz Brentano. Na atualidade, ela constitui,
incontestavelmente, a principal corrente da reflexão psicológica
na Alemanha, ainda que não seja na sua forma mais clássica.
52
sistema de leis, ou ainda uma apreciação ética, etc... Esse aspecto
objetivo, orientado, da atividade interior é uma propriedade da
natureza, da cultura, ou da história e, conseqüentemente, é da
competência das disciplinas científicas correspondentes e não da
psicologia.
A outra faceta da atividade mental é a função de qualquer
conteúdo objetivo dentro do sistema fechado da vida psíquica
individual. Desta maneira, o objeto da psicologia é a atividade mental
efetivada ou em vias de efetivar-se a propósito de todo con-
teúdo extrapsíquico. Em outras palavras, o objeto da psicologia
funcionalista não é o quê? mas o como? da atividade mental. Assim,
por exemplo, o conteúdo de um processo de pensamento qualquer, o
seu quê?, não é psíquico e depende da competência do lógico, do
teórico do conhecimento (“gnosiólogo”) ou do matemático (se se trata
do pensamento matemático). O psicólogo mesmo só estuda o como?
dos processos de pensamento com seus vários conteúdos objetivos
(lógicos, matemáticos e outros) nas condições de um dado psiquismo
subjetivo.
Não nos ocuparemos aqui das divergências, por vezes substanciais,
existentes entre os adeptos desta escola ou de tendências próximas,
acerca do entendimento da função psíquica. Para a tarefa que nos
fixamos, uma exposição dos princípios de base é o suficiente. Ela nos
permitirá esclarecer nossa concepção do psiquismo e em que a
resolução do problema da psicologia é importante para a filosofia do
signo, a filosofia da linguagem.
A psicologia funcionalista formou-se e desenvolveu-se, também,
sobre as bases do idealismo. Mas, em alguns de seus aspectos, ela se
mostra diametralmente oposta à psicologia interpretativa de Dilthey.
De fato, se Dilthey se esforça por levar, de alguma forma, o
psiquismo e a ideologia a um denominador comum, a significação, a
psicologia funcionalista, ao contrário, tenta traçar uma fronteira de
princípio, das mais rígidas, entre o psiquismo e a ideologia, e isto no
interior mesmo do psiquismo. Tudo o que é significante encontra-se,
no final das contas, excluído do campo psíquico, na medida em que
tudo que é psíquico encontra-se subordinado ao funcionamento puro e
simples de conteúdos objetivos isolados, formando uma espécie de
constelação individual denominada “alma individual”. Se é preciso
falar aqui de primazia, é certo que, na psicologia funcionalista, ao
contrário da psicologia interpretativa, é a ideologia que tem a
primazia sobre o psiquismo.
Pode-se perguntar, agora, qual é a natureza da função psí-
quica? Seu tipo de existência? Não encontramos a resposta
53
clara e satisfatória a essa questão junto aos adeptos da psico-
logia funcionalista. Nesse ponto, falta-lhes clareza, não se encon-
tra unidade, nem acordo. Mas há um ponto sobre o qual eles
são unânimes: a função psíquica não pode ser assimilada
a um processo fisiológico qualquer. Assim sendo, a compo-
nente psicológica é nitidamente demarcada em relação à compo-
nente fisiológica. Mas, saber que tipo de entidade é essa – a psíquica
– é algo que permanece obscuro, assim como o problema da realidade
dos fenômenos ideológicos.
A única instância em que os funcionalistas fornecem uma res-
posta clara é quando a atividade mental se exerce sobre objetos
naturais: à função psíquica opõe-se, aqui, um ser natural, físico: uma
árvore, a terra, uma pedra, etc... Mas qual forma pode tomar o ser
ideológico frente à função psíquica? A forma de um conceito lógico,
de um valor ético, de uma obra de arte, etc.?
A maior parte dos representantes da psicologia funcionalista se
atém a perspectivas idealistas, essencialmente kantianas, acerca desse
problema6. Ao lado do psiquismo individual e da consciência
subjetiva individual, eles reservam um lugar à “consciência global”, à
“consciência transcendental”, ao “sujeito puramente gnosiológico”,
etc... É neste contexto transcendental que eles localizam o fenômeno
ideológico, por oposição à função psíquica individual7.
Assim, o problema da realidade ideológica fica sem solução nos
quadros da psicologia funcionalista. Decorre dessa falta de
compreensão do signo ideológico e da natureza específica de sua
existência que os próprios problemas do psiquismo permanecem
insolúveis. Eles não serão resolvidos enquanto não se resolva o
problema da ideologia. Estas duas questões estão indissoluvelmente
ligadas. As histórias da psicologia e das ciências ligadas à ideologia (a
lógica, a teoria do conhecimento, a estética, as ciências humanas,
etc...) são as de uma luta incessante, de uma delimitação recíproca de
fronteiras e de uma mútua absorção.

6
Atualmente, encontram-se, ao lado dos funcionalistas, e
repartindo o mesmo terreno, os fenomenólogos cujos princípios
filosóficos gerais devem muito a Franz Brentano.
7
Como os fenomenólogos, eles conferem às noções ideológicas
um estatuto ontológico, postulando a existência de uma esfera
autônoma do ser ideal.
54
Tudo se passa como se houvesse uma alternância periódica entre o
psicologismo espontaneísta, absorvendo todas as ciências de
orientação ideológica, e um antipsicologismo agudo, esvaziando o
psiquismo de seu conteúdo e conduzindo-o a um lugar vazio,
puramente formal (como na psicologia funcionalista), ou ainda a um
simples fisiologismo. Nesse ínterim, a ideologia, privada pelo
antipsicologismo de seu lugar habitual no ser (isto é, no psiquismo),
não encontra seu lugar em parte alguma e se vê obrigada a emigrar da
realidade para as alturas transcendentais.
No começo do século XX, tivemos uma vaga poderosa (em-
bora não a primeira da história, longe disso) de antipsicologismo.
No curso dos dois primeiros decênios do século, pudemos assis-
tir a eventos filosóficos e metodológicos da mais alta impor-
tância: os trabalhos fundamentais de Husserl8, principal representante
do antipsicologismo contemporâneo; os trabalhos de seus discípulos,
os “intencionalistas” (fenomenólogos), a guinada brutalmente
antipsicológica dos defensores contemporâneos do neokantismo das
escolas de Marburg e Freiburg9, a exclusão do psicologismo de todos
os domínios do conhecimento, inclusive da própria psicologia (!).
Atualmente, a vaga de antipsicologismo está em vias de refluir e
uma nova onda, aparentemente muito poderosa, de psicologismo se
prepara para substituí-la. A variedade de psicologismo em moda
denomina-se Filosofia Existencial. Sob esta etiqueta, o psicologismo
mais desenfreado retoma, aceleradamente, todas as posições que teve
de abandonar há pouco tempo nas esferas da filosofia e das ciências

8
Ver o vol. I de Logische Untersuchungen (“Investigações
Lógicas”) (tradução russa de 1910) que constitui, por assim
dizer, a bíblia do antipsicologismo contemporâneo, assim como
seu artigo “A Filosofia como Ciência do Rigor” in Logos, 1911,
1912, vol. 1.
9
Ver, por exemplo, o artigo muito instrutivo de Rickert,
principal representante da escola de Freiburg, “Duas Abordagens
sobre a Teoria do Conhecimento”, na compilação Idéias Novas
em Filosofia, no 7, 1913. Nesta publicação, Rickert, sob a
influência de Husserl, traduz na linguagem do antipsicologismo
sua concepção originalmente psicologista, acerca da teoria do
conhecimento. Esse artigo esclarece as relações do neokantismo
com o movimento antipsicologista.
55
ligadas à ideologia10. Esta vaga de psicologismo não traz consigo
nenhuma definição nova da realidade psíquica. O psicologismo mais
recente, ao contrário da vaga anterior (segunda metade do século
XIX), de natureza positivo-empirista (o representante mais típico é
Wundt), tende a comentar o ser interior, a “esfera da atividade
mental”, de maneira metafísica.
Desse modo, a alternância do psicologismo e do antipsico-
logismo não desembocou numa síntese dialética. A filosofia burgue-
sa, até o presente, não soube solucionar de maneira apropriada nem o
problema da psicologia nem o da ideologia.
Os dois problemas devem ser tratados conjuntamente. Nós
afirmamos que uma só e mesma chave nos dá o acesso objetivo às
duas esferas. Esta chave é a filosofia do signo, a filosofia da palavra,
enquanto signo ideológico por excelência. O signo ideológico é o
território comum, tanto do psiquismo quanto da ideologia; é um
território concreto, sociológico e significante. É sobre este território
que se deve operar a delimitação das fronteiras entre a psicologia e a
ideologia. O psiquismo não deve ser uma réplica do universo, e este
não deve servir como simples indicação cênica acompanhando o
monólogo psíquico.
Mas, se a realidade do psiquismo é uma realidade semiótica, como
delimitar a fronteira entre o psiquismo subjetivo individual e a
ideologia em sentido estrito, já que esta se apresenta, igualmente,
como uma realidade semiótica? De momento, apenas indicamos um

10
Encontramos um panorama completo da filosofia existencial,
panorama, é verdade, tendencioso e algo ultrapassado, no livro
de Rickert, A Filosofia Existencial (“Academia”, 1921). O livro
de Spranger, Lebensformen, exerceu uma influência enorme
sobre as ciências humanas. Hoje em dia, todos os representantes
mais importantes da crítica literária e da lingüística alemãs
encontram-se, de uma forma ou de outra, sob a influência da
filosofia existencial. Citaremos Ehrmattinger (Das Dichterische
Kunstwerk, 1921), Hundolf (seus livros sobre Goethe e sobre
Georg, 1916-1925), Hefele (Das Wesen der Dichtung, 1923),
Wahlzehl (“Gehalt und Form”... in Dichteris che Kunstwerk,
1923), Vossler e os vosslerianos, etc. Mais adiante teremos algo
a dizer sobre alguns destes estudiosos.
56
território comum. É indispensável, agora, traçar, no interior deste
território, uma fronteira adequada.
O fundo deste problema remete à determinação da natureza
do signo interior (nos limites do corpo), que é acessível, em
sua realidade imediata, à introspecção. Do ponto de vista do con-
teúdo ideológico propriamente dito, não seria possível estabe-
lecer uma fronteira entre o psíquico e o ideológico. Todo con-
teúdo ideológico, sem exceção, qualquer que seja o código pelo qual
ele é veiculado, pode ser compreendido e, em conseqüência,
psiquicamente assimilado, isto é, ele pode ser produzido por
intermédio do signo interior.
Por outro lado, todo fenômeno ideológico, ao longo do processo de
sua criação, passa pelo psiquismo, como por uma instância
obrigatória. Repetindo: todo signo ideológico exterior, qualquer que
seja sua natureza, banha-se nos signos interiores, na consciência. Ele
nasce deste oceano de signos interiores e aí continua a viver, pois a
vida do signo exterior é constituída por um processo sempre renovado
de compreensão, de emoção, de assimilação, isto é, por uma
integração reiterada no contexto interior.
É por esse motivo que, do ponto de vista do conteúdo, não há
fronteira a priori entre o psiquismo e a ideologia. Há apenas uma
diferença de grau: no estágio do desenvolvimento interior, o
elemento ideológico, ainda não exteriorizado sob a forma de mate-
rial ideológico, é apenas um elemento confuso. Ele não
pode aperfeiçoar-se, diferenciar-se, afirmar-se a não ser no processo
de expressão ideológica. A intenção vale sempre menos do que a
realização (mesmo falha). O pensamento que só existe no contexto
de minha consciência e não é reforçado no contexto da ciência,
como sistema ideológico coerente, é apenas um pensamento obscuro
e inacabado. Mas, no contexto de minha consciência, esse pensa-
mento pouco a pouco toma forma, apoiando-se no sistema ideo-
lógico, pois ele próprio foi engendrado pelos signos ideológicos que
assimilei anteriormente. Uma vez mais, não há aqui diferença
qualitativa. Os processos cognitivos provenientes de livros e do
discurso dos outros e os que se desenvolvem em minha mente
pertencem à mesma esfera da realidade, e as diferenças que existem,
apesar de tudo, entre a mente e os livros não dizem respeito ao
conteúdo do processo cognitivo.
O que complica mais o problema da delimitação do psíquico e do
ideológico é o conceito do “individual”. Aceita-se, geralmente, uma
correlação entre o “individual” e o “social”. De onde se extrai a
conclusão de que o psiquismo é individual e a ideologia social.
57
Esta concepção revela-se radicalmente falsa. “Social” está
em correlação com “natural”: não se trata aí do indivíduo en-
quanto pessoa, mas do indivíduo biológico natural. O indi-
víduo enquanto detentor dos conteúdos de sua consciência, en-
quanto autor dos seus pensamentos, enquanto persona-
lidade responsável por seus pensamentos e por seus dese-
jos, apresenta-se como um fenômeno puramente sócio-ideoló-
gico. Esta é a razão porque o conteúdo do psiquismo “individual”
é, por natureza, tão social quanto a ideologia e, por sua vez, a pró-
pria etapa em que o indivíduo se conscientiza de sua individualidade
e dos direitos que lhe pertencem é ideológica, histórica, e
internamente condicionada por fatores sociológicos11. Todo signo é
social por natureza, tanto o exterior quanto o interior.
Para evitar os mal-entendidos, convém sempre estabelecer uma
distinção rígida entre o conceito de indivíduo natural isolado, não
associado ao mundo social, tal como o conhece e estuda o biólogo, e o
conceito de individualidade, que já se apresenta como uma
superestrutura ideológica semiótica, que se coloca acima do indivíduo
natural e é, por conseqüência, social.
Estas duas acepções da palavra individualidade (o indi-
víduo natural e a personalidade) são habitualmente confundidas, o que
faz com que se contaste geralmente, na reflexão da maior parte dos
filósofos e psicólogos, um quaternio terminorum: ora se considera
uma acepção, ora ela é substituída pela outra.
Se o conteúdo do psiquismo individual é tão social quanto a
ideologia, por outro lado, as manifestações ideológicas são tão
individuais (no sentido ideológico deste termo) quanto psíquicas.
Todo produto da ideologia leva consigo o selo de individualidade do
seu ou dos seus criadores, mas este próprio selo é tão social quanto
todas as outras particularidades e signos distintivos das manifestações
ideológicas. Assim, todo signo, inclusive o da individualidade, é
social.
O que constitui a diferença entre o signo interior e o signo exterior,
entre o psíquico e o ideológico? A significação realizada por meio do
movimento interior é dirigida ao próprio organismo, a um indivíduo

11
Na última parte deste trabalho veremos que os direitos do
autor sobre seu próprio discurso são relativos e marcados
ideologicamente, e que a língua demora muito tempo para
elaborar formas próprias para exprimir claramente os aspectos
individuais do discurso.
58
dado, e determina-se, antes de tudo, no contexto de sua
individualidade. Neste ponto, as afirmações dos representantes da
escola funcionalista contêm uma parcela de verdade. Não se pode
deixar de distinguir a natureza específica do psiquismo da natureza
dos sistemas ideológicos. Mas o caráter específico da entidade
psíquica é inteiramente compatível com uma concepção ideológico-
sociológica do psiquismo.
De fato, como já dissemos, todo pensamento de caráter cogni-
tivo materializa-se em minha consciência, em meu psiquismo,
apoiando-se no sistema ideológico de conhecimento que lhe
for apropriado. Nesse sentido, meu pensamento, desde a origem,
pertence ao sistema ideológico e é subordinado a suas leis. Mas, ao
mesmo tempo, ele também pertence a um outro sistema único, e
igualmente possuidor de suas próprias leis específicas, o sistema do
meu psiquismo. O caráter único desse sistema não é determinado
somente pela unicidade de meu organismo biológico, mas pela
totalidade das condições vitais e sociais em que esse organismo se
encontra colocado. Desse modo, o psicólogo adotará, para estudar
meu pensamento, uma abordagem orientada para essa unicidade
orgânica de minha individualidade e para essas condições específicas
de minha existência. O ideólogo, ao contrário, não se interessará por
esse pensamento a não ser que ele esteja inscrito de maneira objetiva
no sistema do conhecimento.
O sistema do psiquismo, determinado por fatores orgânicos e
biográficos, no sentido amplo do termo, não reflete, de maneira
alguma, somente o ponto de vista da psicologia. É certo que neste
último caso trata-se de uma unidade real, como é real a totalidade das
condições que determinam a vida do indivíduo. Quanto mais
estreitamente ligado à unicidade do sistema psíquico o signo interior
estiver e quanto mais fortemente determinado pelo componente biológico
e biográfico, mais ele se distanciará de uma expressão ideológica bem
definida. Em compensação, na medida em que é realizado e formalizado
ideologicamente, ele liberta-se, por assim dizer, do contexto psíquico que
o paralisa.
É isso que determina a diferença entre os processos de compreensão
do signo interior (isto é, da atividade mental) e do signo exterior,
puramente ideológico. No primeiro caso, compreender significa
relacionar um signo interior qualquer com a unicidade dos outros signos
interiores, isto é, apreendê-lo no contexto de um certo psiquismo. No
segundo caso, trata-se de apreender um dado signo no contexto
ideológico correspondente. É verdade que, mesmo no primeiro caso, é
indispensável levar em consideração o significado puramente ideológico
59
desta atividade mental: sem compreender o conteúdo semântico puro e
simples de um pensamento, o psicólogo não pode determinar-lhe um
lugar no contexto do psiquismo em questão. Se ele abstrai o conteúdo
semântico desse pensamento, ele não lidará mais com um pensamento,
com signos, mas com um simples processo fisiológico de realização de
um certo pensamento, de um certo signo, no organismo. Por essa razão, a
psicologia cognitiva deve apoiar-se em uma teoria do conhecimento e na
lógica, enquanto que a psicologia, em seu conjunto, deve apoiar-se na
ciência das ideologias, e não o contrário. É preciso dizer que toda
expressão semiótica exterior, por exemplo, a enunciação, pode assumir
duas orientações: ou em direção ao sujeito, ou, a partir dele, em direção à
ideologia. No primeiro caso, a enunciação tem por objetivo traduzir
em signos exteriores os signos interiores, e exigir do interlocutor que
ele os relacione a um contexto interior, o que constitui um ato
de compreensão puramente psicológico. No outro caso, o que se re-
quer é uma compreensão ideológica, objetiva e concreta, da enun-
ciação12. É assim que delimitamos o psíquico e o ideológi-

co13. Como se oferecem à nossa observação, ao nosso estudo


o psiquismo, os signos interiores? Em sua forma pura, o signo
interior, isto é, a atividade mental, é acessível apenas à introspecção.
Pode-
mos perguntar-nos se ela ameaça a unicidade da experiência exte-
rior objetiva. Isso não acontece se a natureza do psiquismo

12
As enunciações do primeiro tipo podem ser de duas espécies: podem
servir para informar a respeito do vivido (Eu estou alegre) ou então
para exprimi-lo diretamente (Hurra!). Há ainda a possibilidade de varia-
ções intermediárias (Estou tão alegre! – com uma entoação expri-
mindo grande alegria). A distinção entre esses diferentes aspectos é muito
importante para o psicólogo e para o ideólogo. No primeiro caso,
não há expressão direta da impressão vivida e, conseqüentemente, não
há realização do signo interior. Temos aqui um resultado da auto-obser-
vação (por assim dizer, a tradução do signo em signo). No segundo caso, a

auto-observação que se exerce sobre a experiência interior abre um caminho para


o exterior e torna-se objeto da observação exterior (é verdade que, nesse caso,
opera-se uma mudança de forma). No terceiro caso, intermediário, o resultado da
auto-observação adquire a coloração do signo interior abrindo caminho para o
exterior.
13
Expusemos nossa concepção do conteúdo do psiquismo e da ideologia em
Freidizm; cf. o capítulo “Conteúdo do Psiquismo como Ideologia”.
60
e da própria introspecção for corretamente compreendida14.
Na realidade, o objeto da introspecção é o signo interior que
pode também, por sua natureza, ser signo exterior. O discurso inte-
rior pode, igualmente, ser exteriorizado. Durante o processo de
auto-explicitação, o resultado da introspecção deve, obrigatoria-
mente, exprimir-se sob uma forma exterior, ou, em todo
caso, aproximar-se o máximo possível do estado de expres-
são exterior. A introspecção, enquanto tal, segue uma orientação
que vai do signo interior ao signo exterior. Por isso, a própria
introspecção é dotada de um caráter expressivo. Ela constitui, para o
indivíduo, a compreensão de seu próprio signo interior. É isso que a
distingue da observação de um objeto ou de qualquer processo físico.
A atividade mental não é visível nem pode ser percebida diretamente,
mas, em compensação, é compreensível. O que significa que, durante
o processo de auto-observação, a atividade mental é recolocada no
contexto de outros signos compreensíveis. O signo deve ser
esclarecido por outros signos.
A introspecção constitui um ato de compreensão e, por
isso, efetua-se, inevitavelmente, com uma certa tendência ideo-
lógica. Desse modo, ela serve os interesses da psicologia quando
apreende uma certa atividade mental no contexto dos outros
signos interiores e de maneira a favorecer a unicidade da
vida psíquica. Nesse caso, a introspecção esclarece os signos
interiores com a ajuda do sistema cognitivo dos signos psicológicos;
ela esclarece e diferencia a atividade mental, e tende, assim, a forne-
cer uma explicação psicológica satisfatória dessa atividade. É des-
se tipo a tarefa que se designa à cobaia que participa de uma
experiência psicológica. As declarações da cobaia constituem
uma explicação psicológica, ou ao menos um esboço de expli-
cação.
Mas a introspecção pode, também, ser orientada diferentemente e
tender para uma auto-objetivação ética, de costumes. Nesse caso, o
signo interior é integrado num sistema de apreciações e normas éticas,
é compreendido e explicado sob esse ângulo.
A introspecção, como os processos cognitivos, pode tomar outros
caminhos. Mas, sempre em todas as condições, a introspecção se
esforça por explicitar ativamente o signo interior, para levá-lo a um
maior grau de clareza semiótica. O processo atinge seus limites assim
que o objeto da instrospecção torna-se perfeitamente compreensível,

14
Esta ameaça se realizaria se a realidade do psiquismo fosse uma realidade de
coisa e não uma realidade semiótica.
61
assim que ele se torna, igualmente, objeto da observação exterior, de
caráter ideológico (sob uma forma semiótica).
Desta maneira, a introspecção, enquanto conceito ideológico,
está integrada na unicidade da experiência objetiva. É preciso
acrescentar, ainda, o que segue: na análise de um caso concreto, é
impossível traçar uma fronteira precisa entre os signos interiores e
exteriores, entre a introspecção e a observação exterior, que fornece
um comentário ininterrupto, tanto semiótico quanto concreto a
respeito dos signos interiores, na medida em que eles são
decodificados.
O comentário concreto ocorre sempre. A compreensão de cada
signo, interior ou exterior, efetua-se em ligação estreita com a
situação em que ele toma forma. Esta situação, mesmo no caso da
introspecção, apresenta-se como a totalidade dos fatos que constituem
a experiência exterior, que acompanha e esclarece todo signo interior.
Essa situação é sempre uma situação social.
A orientação da atividade mental no interior da alma
(a introspecção) não pode ser separada da realidade de sua orienta-
ção numa situação social dada. E é por essa razão que um
aprofundamento da introspecção só é possível quando constantemente
vinculado a um aprofundamento da compreensão da orientação social.
Abstrair essa orientação levaria ao enfraquecimento completo da
atividade mental, como acontece quando se abstrai sua natureza
semiótica. Nós veremos mais adiante, de maneira detalhada, que o
signo e a situação social em que se insere estão indissoluvelmente
ligados. O signo não pode ser separado da situação social sem ver
alterada sua natureza semiótica.
O problema do signo interior constitui um dos problemas essen-
ciais da filosofia da linguagem, pois o signo interior por excelência
é a palavra, o discurso interior. O problema do discurso interior, como
todos os problemas examinados neste capítulo, é de natureza
filosófica. Ele se encontra no cruzamento dos caminhos da psicologia
e das ciências ligadas à ideologia. Metodologicamente, ele só pode ser
resolvido no terreno da filosofia da linguagem enquanto filosofia do
signo. Como definir a palavra no seu papel de signo interior? Sob que
forma se realiza o discurso interior? Quais são seus laços com a
situação social? Como ele se relaciona com a enunciação? Que
métodos empregar para descobrir, ou para captar durante o vôo, por
assim dizer, o discurso interior? Somente uma elaborada filosofia da
linguagem pode responder a essas questões.
Tomemos, por exemplo, a segunda questão: sob que formas se
realiza o discurso interior? De imediato, pode-se dizer que nenhuma
62
das categorias elaboradas pela lingüística para analisar as formas da
língua exteriorizada, da fala (lexicologia, gramática, fonética), é
aplicável ao discurso interior e, supondo que fossem, elas deveriam
ser radicalmente redefinidas.
Uma análise mais aprofundada revelaria que as formas mínimas
do discurso interior são constituídas por monólogos completos,
análogos a parágrafos, ou então por enunciações completas. Mas
elas assemelham-se ainda mais às réplicas de um diálogo. Não
é por acaso que os pensadores da Antiguidade já concebiam o dis-
curso interior como um diálogo interior. Essas unidades pres-
tam-se muito pouco a uma análise sob a forma de consti-
tuintes gramaticais (a rigor, em certos casos, isso é possível, mas
com grandes precauções) e não existe entre elas, assim como entre
as réplicas de um diálogo, laços gramaticais; são laços de uma
outra ordem que as regem. Essas unidades do discurso interior,
que poderiam ser chamadas impressões globais de enunciações15,
estão ligadas uma à outra, e sucedem-se uma à outra, não segundo
as regras da lógica ou da gramática, mas segundo leis de convergên-
cia apreciativa (emocional), de concatenação de diálogos,
etc... e numa estreita dependência das condições históricas da situação
social e de todo o curso pragmático da existência16. Somente a

15
O termo foi emprestado de Gompertz
(Weltanschauungslehre). Parece que o primeiro a utilizá-lo foi
Otto Weinninger. A impressão total é uma impressão ainda não
isolada do objeto total e que, de qualquer modo, oferece uma
impressão do todo, que precede e lança os fundamentos da
cognição clara do objeto. Por exemplo, algumas vezes nos
vemos na impossibilidade de lembrar uma palavra ou um nome,
ainda que os tenhamos “na ponta da língua”, o que significa que
nós já temos uma “impressão global” deles, mas que eles não
podem se esboçar numa representação concreta e diferenciada.
As impressões globais, segundo Gompertz, desempenham um
grande papel nos processos cognitivos. Elas constituem
equivalentes psíquicos das formas do todo e lhe conferem sua
unicidade.
16
A distinção corrente entre os diferentes tipos de discurso
interior-visual, auditivo e motor – não é relevante para nossas
63
explicitação das formas que as enunciações completas tomam e, em
particular, as formas do discurso dialogado, pode esclarecer as formas
do discurso interior e a lógica particular do itinerário que elas seguem
na vida interior.
É preciso deixar claro que todos os problemas do discurso interior
que mencionamos estão fora dos limites de nossa pesquisa.
Atualmente, ainda é impossível tratá-los de maneira satisfatória.
Antes de tudo, seria preciso reunir um imenso corpus de dados e
esclarecer outros problemas elementares e fundamentais da filosofia
da linguagem, em particular os problemas da enunciação. Nós
pensamos que é dessa maneira que se pode resolver o problema da
delimitação de fronteiras entre o psíquico e o ideológico, sobre o
território único que os engloba, o do signo ideológico.
Essa abordagem nos permite, igualmente, eliminar, de maneira
dialética, a contradição entre o psicologismo e o antipsicologismo. O
antipsicologismo tem razão em recusar a dedução do ideológico a
partir do psiquismo. Ao contrário, é o psíquico que deve ser deduzido
da ideologia. A psicologia deve apoiar-se na ciência das ideologias.
Originariamente, a palavra deve ter nascido e se desenvolvido no
curso do processo de socialização dos indivíduos, para ser, em
seguida, integrada ao organismo individual e tornar-se fala interior.
Contudo, o psicologismo também tem razão: não há signo exterior
sem signo interior. O signo exterior, incapaz de penetrar no contexto
dos signos interiores, isto é, incapaz de ser compreendido e
experimentado, cessa de ser um signo, transforma-se em uma coisa
física.
O signo ideológico tem vida na medida em que ele se realiza no
psiquismo e, reciprocamente, a realização psíquica vive do suporte
ideológico. A atividade psíquica é uma passagem do interior para o
exterior; para o signo ideológico, o processo é inverso. O psíquico
goza de extraterritorialidade em relação ao organismo. É o social
infiltrado no organismo do indivíduo. E tudo que é ideológico é
extraterritorial no domínio sócio-econômico, pois o signo ideológico,
situado fora do organismo, deve penetrar no mundo interior para
realizar sua natureza semiótica.
Desta maneira, existe entre o psiquismo e a ideologia uma
interação dialética indissolúvel: o psiquismo se oblitera, se destrói

considerações aqui. No quadro de cada um desses tipos, o


discurso se desenrola sob a forma de impressões globais, visuais,
auditivas e motoras.
64
para se tornar ideologia e vice-versa. O signo interior deve libertar-se
de sua absorção pelo contexto psíquico (biológico e biográfico), ele
deve parar de ser experimentado subjetivamente para se tornar signo
ideológico. O signo ideológico deve integrar-se no domínio dos
signos interiores subjetivos, deve ressoar tonalidades subjetivas para
permanecer um signo vivo e evitar o estatuto honorífico de uma
incompreensível relíquia de museu.
Essa interação dialética dos signos interior e exterior, do psiquis-
mo e da ideologia, muitas vezes atraiu a atenção dos pensa-
dores; contudo, ela não foi compreendida de maneira corre-
ta até o presente, nem descrita de maneira adequada. Sua aná-
lise mais profunda e interessante foi feita há algum tempo pelo fale-
cido filósofo e sociólogo Georges Simmel. Ele viu essa intera-
ção sob um aspecto que é característico de todo pensamento burguês
contemporâneo, isto é, como uma “tragédia cultural”, ou
mais exatamente, como uma tragédia da faculdade criadora da
personalidade subjetiva. Segundo ele, a personalidade criadora se
autodestrói, assim como sua subjetividade e seu caráter pessoal,
no produto objetivo que ela própria cria. O nascimento de um
valor cultural objetivo custa a morte da alma subjetiva. Não
entraremos, aqui, no detalhe da análise que Simmel faz desse
problema, análise que contém várias observações justas e
interessantes17. Nós assinalaremos apenas o defeito principal de sua
concepção. Para ele, entre o psiquismo e a ideologia existe um fosso
intransponível. Ele não admite um signo que, remetendo à realidade,
seja comum ao psiquismo e à ideologia. Ainda mais, mesmo sendo
sociólogo, ele subestima a natureza totalmente social tanto da
realidade psíquica quanto da realidade ideológica. E, contudo, uma e
outra realidades se apresentam como refrações de um único e mesmo
ser sócio-econômico. O resultado é que a contradição dialética viva

17
Pode-se encontrar em tradução russa duas publicações de Simmel, consagradas
a esta questão: “A Tragédia Cultural” em Logos, 1911-1912, vols. 2 e 3 e “Os
Conflitos da Cultura Contemporânea” em Elementos do Conhecimento, 1923.
Petrogrado, publicado sob a forma de volume separado com um prefácio do
professor Sviatlovski. Seu último livro, tratando da mesma questão do ponto de
vista da filosofia existencial, intitula-se Lebensanschauung, 1919. Esta idéia
constitui o leitmotiv da Vida de Goethe, do mesmo Simmel e, em parte de seus
trabalhos sobre Nietzsche, Schopenhauer, Rembrandt e Michelangelo. Ele coloca
na base de sua tipologia das individualidades criadoras os diferentes modos de
solucionar este conflito entre a alma e sua objetivação criadora através das
produções culturais.
65
entre o psiquismo e o ser torna-se, para Simmel, uma antinomia
estática, inerte, uma “tragédia”; e ele luta em vão para superar esta
antinomia inevitável, recorrendo a uma dinâmica do processo
existencial impregnado de metafísica.
Somente o recurso ao monismo materialista pode trazer uma
solução dialética a todas as contradições dessa ordem. De outro modo,
seríamos obrigados ou a ignorar as contradições, a fechar os olhos, ou
a transformá-las em antinomias sem saída, em impasses trágicos18. Em
suma, em toda enunciação, por mais insignificante que seja, renova-se
sem cessar essa síntese dialética viva entre o psíquico e o ideológico,
entre a vida interior e a vida exterior. Em todo ato de fala, a atividade
mental subjetiva se dissolve no fato objetivo da enunciação realizada,
enquanto que a palavra enunciada se subjetiva no ato de
descodificação que deve, cedo ou tarde, provocar uma codificação em
forma de réplica. Sabemos que cada palavra se apresenta como uma
arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de
orientação contraditória. A palavra revela-se, no momento de sua
expressão, como o produto da interação viva das forças sociais.
É assim que o psiquismo e a ideologia se impregnam mutuamente
no processo único e objetivo das relações sociais.

18
Na literatura filosófica russa, os problemas de objetivação do
psiquismo subjetivo, através das produções ideológicas e da
condições e conflitos que daí resultam, são tratados
particularmente por Fiódor Stióppun (ver seus trabalhos em
Logos, 1911-1912, vol. 2-4). Ele também vê esses sob um
prisma trágico e mesmo místico. Não consegue colocá-los no
plano da realidade material objetiva, que é, contudo, o único
onde eles poderiam encontrar uma resolução fecunda e
sadiamente dialética.
66
SEGUNDA PARTE
PARA UMA FILOSOFIA MARXISTA
DA LINGUAGEM

67
CAPÍTULO 4
DAS ORIENTAÇÕES
DO PENSAMENTO FILOSÓFICO-LINGÜÍSTICO

No que consiste o objeto da filosofia da linguagem? Onde


podemos encontrar tal objeto? Qual é a sua natureza concreta? Que
metodologia adotar para estudá-lo? Na parte introdutória de nosso
estudo, estas questões concretas não foram abordadas. Nós falamos da
filosofia da linguagem, da palavra. Mas o que é a linguagem? O que é
a palavra? Não se trata, evidentemente, de formular perfeitas
definições destes conceitos de base. Uma tal formulação só poderia
mesmo ser realizada no fim e não no início de nossa pesquisa
(supondo-se que uma definição científica possa alguma vez ser
considerada como perfeita). No início de nosso itinerário, convém
propor, ao invés de definições, diretrizes metodológicas: é
indispensável, antes de mais nada, conquistar o objeto real de nossa
pesquisa, é indispensável isolá-lo de seu contexto e delimitar
previamente suas fronteiras.
No início do trabalho heurístico, não é tanto a inteligência
que procura, construindo fórmulas e definições, mas os olhos e as
mãos, esforçando-se por captar a natureza real do objeto; acontece
que, em nosso caso, os olhos e as mãos se encontram numa posição
difícil: os olhos nada vêem, as mãos nada podem tocar, é o ouvido
que, aparentemente mais bem situado, tem a pretensão de escutar a
palavra, de ouvir a linguagem. E, com efeito, as seduções do
empirismo fonético superficial são muito fortes na lingüística. O
estudo da face sonora do signo lingüístico nela ocupa um lugar
proporcionalmente exagerado. Tal estudo muitas vezes determina o
tom nessa disciplina e, na maioria dos casos, é feito sem nenhum
vínculo com a natureza real da linguagem enquanto código

68
ideológico1. O problema da explicitação do objeto real da filosofia
da linguagem está longe de ser resolvido. Toda vez que procuramos
delimitar o objeto de pesquisa, remetê-lo a um complexo objetivo,
material, compacto, bem definido e observável, nós perdemos a própria
essência do objeto estudado, sua natureza semiótica e ideológica. Se
isolarmos o som enquanto fenômeno puramente acústico, perderemos a
linguagem como objeto específico. O som concerne totalmente à
competência dos físicos. Se ligarmos o processo fisiológico da produção
do som ao processo de percepção sonora, nem por isso estaremos nos
aproximando de nosso objetivo. Se associarmos a atividade mental (os
signos interiores) do locutor e do ouvinte, estaremos em presença de dois
processos psicofísicos ocorrendo em dois sujeitos psicofisiologicamente
diferentes e de um único complexo sonoro físico realizando-se na
natureza segundo as leis da física. A linguagem, como objeto específico,
ainda não a teremos encontrado. E contudo, já lançamos mão de três
esferas da realidade: física, fisiológica e psicológica, do que resultou, até
que de modo satisfatório, um conjunto complexo de numerosos
elementos. Mas este complexo é privado de alma, seus diferentes
elementos estão alinhados ao invés de estarem unidos por um conjunto de
regras internas que lhe atribuiria vida e faria dele justamente um fato
lingüístico.
O que mais deve ser acrescentado a este conjunto já tão complexo?
É preciso, fundamentalmente, inseri-lo num complexo mais amplo
e que o engloba, ou seja: na esfera única da relação social organi-
zada. Assim como, para observar o processo de combustão, con-
vém colocar o corpo no meio atmosférico, da mesma forma,
para observar o fenômeno da linguagem, é preciso situar os sujeitos –
emissor e receptor do som –, bem como o próprio som, no
meio social. Com efeito, é indispensável que o locutor e o ouvinte
pertençam à mesma comunidade lingüística, a uma sociedade
claramente organizada. E mais, é indispensável que estes
dois indivíduos estejam integrados na unicidade da situação
social imediata, quer dizer, que tenham uma relação de pessoa para

1
Isto diz respeito sobretudo à fonética experimental, que não
estuda
de fato os sons da língua, mas sim os sons produzidos pelos
órgãos da fonação e captados pelo ouvido, independentemente
de
69
pessoa sobre um terreno bem definido. É apenas sobre este terreno
preciso que a troca lingüística se torna possível; um terreno de acordo
ocasional não se presta a isso, mesmo que haja comunhão de espírito.
Portanto, a unicidade do meio social e a do contexto social imediato
são condições absolutamente indispensáveis para que o complexo
––––––––––––––––––––––––––
seu lugar no sistema da língua e na construção das enunciações. Por outro
lado, a ciência fonética tenta a custo reunir, com vistas a seu estudo, imensos
corpora de dados sem no entanto se valer de uma metodologia de
classificação.
físico-psíquico-fisiológico que definimos possa ser vinculado à
língua, à fala, possa tornar-se um fato de linguagem. Dois organismos
biológicos, postos em presença num meio puramente natural, não
produzirão um ato de fala.
Mas, como resultado desta análise, o objeto de nossa pesquisa, ao
invés de ver-se reduzido como seria desejável, viu-se
consideravelmente ampliado e tornado ainda mais complexo. Com
efeito, o meio social organizado, no qual inserimos nosso complexo
físico-psíquico-fisiológico, e a situação de troca social mais imediata
apresentam por si só complicações extraordinárias, comportam
relações de diversas naturezas e de múltiplas facetas, e, dentre estas
relações, nem todas são necessárias à compreensão dos fatos
lingüísticos, nem todas são elementos constitutivos da linguagem. Em
suma, o conjunto deste complicado sistema de fenômenos e de
relações, de processos, etc., necessita uma redução a um denominador
comum. Todas as suas linhas devem reunir-se num centro único: o
passe de mágica que constitui o processo lingüístico.
Na parte precedente expusemos o problema da linguagem, ou seja,
pusemos em evidência o problema enquanto tal e as dificuldades que
ele encerra. Que soluções a filosofia da linguagem e a lingüística
geral já trouxeram para este problema? Que marcos já colocaram no
caminho de sua resolução, que nos possam orientar? Não temos aqui a
intenção de fazer um histórico completo da filosofia da linguagem e
da lingüística geral, nem mesmo de apresentar sua situação atual.
Limitar-nos-emos a uma análise geral das linhas mestras do
pensamento filosófico e lingüístico dos tempos atuais2.

2
Não existem atualmente obras especializadas em história da filosofia da
linguagem. Encontram-se pesquisas fundamentais apenas no que diz respeito à
filosofia da linguagem e à lingüística na antigüidade, como por exemplo
Steindahl, Gerschichte der Sprachwissenschaft bei den Griechen und Römern,
70
Na filosofia da linguagem e nas divisões metodológicas
correspondentes da lingüística geral, encontramo-nos em presença de
duas orientações principais no que concerne à resolução de nosso
problema, que consiste em isolar e delimitar a linguagem como
objeto de estudo específico. Isto acarreta, por suposto, uma distinção
radical entre estas duas orientações para todas as demais questões que
se colocam em lingüística. Chamaremos a primeira orientação de
“subjetivismo idealista” e a segunda de “objetivismo abstrato”3.
A primeira tendência interessa-se pelo ato da fala, de criação
individual, como fundamento da língua (no sentido de toda atividade
de linguagem sem exceção). O psiquismo individual constitui a fonte
da língua. As leis da criação lingüística – sendo a língua uma
evolução ininterrupta, uma criação contínua – são as leis da
psicologia individual, e são elas que devem ser estudadas pelo
lingüista e pelo filósofo da linguagem. Esclarecer o fenômeno
lingüístico significa reduzi-lo a um ato significativo (por vezes mesmo
racional) de criação individual. O restante da tarefa do lingüista não
tem senão um caráter preliminar, construtivo, descritivo,

1890. No que concerne à história européia, só se encontram monografias de


diferentes filósofos e lingüistas (sobre Humboldt, Wundt, Marty, etc.).
Voltaremos a tratar disso mais tarde. O único esboço atual relativamente sério de
história da filosofia da linguagem e da lingüística acha-se no livro de Ernst
Cassirer, A Filosofia das Formas Simbólicas, I, A Linguagem, cap. 1o, “O
Problema da Linguagem na História da Filosofia”. Em língua russa,
encontraremos um esboço breve mais sério da situação atual da lingüística e da
filosofia da linguagem no artigo de R. Schor, “Krizis sovremiénnoi lingvistiki”
(A Crise da Lingüística Contemporânea), in Iafetítcheski sbórnik (Coletânea
Jafética) V, 1927, p. 32-71). M. N. Peterson, por sua vez, num artigo intitulado
“Iazík kak sotsialnoie iavliénie” (A Língua como Manifestação Social), in

Utchiónie zapíski Instituta iaziká i literaturi (Anais Científicos do Instituto de


Língua e Literatura), 1927, Moscou, p. 3-21, dá uma visão de conjunto,
apesar de muito incompleta, dos trabalhos lingüísticos que comportam uma
abordagem sociológica. Não citaremos trabalhos sobre a história da
lingüística.
3
Os dois termos, como quase sempre ocorre com este tipo de
denominação, estão longe de recobrir todo o conteúdo e a
complexidade das orientações definidas. Veremos que a
denominação da primeira orientação é particularmente
inadequada. Mas não conseguimos encontrar uma melhor.
71
classificatório, e limita-se simplesmente a preparar a explicação
exaustiva do fato lingüístico como proveniente de um ato de criação
individual, ou então a servir a finalidades práticas de aquisição de
uma língua dada. A língua é, deste ponto de vista, análoga às outras
manifestações ideológicas, em particular às do domínio da arte e da
estética.
As posições fundamentais da primeira tendência, quanto à língua,
podem ser sintetizadas nas quatro seguintes proposições:
1. A língua é uma atividade, um processo criativo ininterrupto de
construção (“energia”), que se materializa sob a forma de atos
individuais de fala.
2. As leis da criação lingüística são essencialmente as leis da
psicologia individual.
3. A criação lingüística é uma criação significativa, análoga à
criação artística.
4. A língua, enquanto produto acabado (“ergon”), enquanto
sistema estável (léxico, gramática, fonética), apresenta-se como um
depósito inerte, tal como a lava fria da criação lingüística,
abstratamente construída pelos lingüistas com vistas à sua aquisição
prática como instrumento pronto para ser usado.
Wilhelm Humboldt foi um dos mais notórios representantes desta
primeira tendência4; foi quem estabeleceu seus fundamentos. A
influência do poderoso pensamento humboldtiano ultrapassa em
muito os limites da tendência que acabamos de descrever. Pode-se
dizer que toda a lingüística após ele, e até nossos dias, encontra-se sob
sua influência determinante. O pensamento humboldtiano não se
encaixa integralmente no quadro das quatro proposições enunciadas,
ele é mais amplo, mais complexo e apresenta mais contradições; razão
pela qual Humboldt pôde tornar-se o iniciador de diferentes correntes
profundamente divergentes entre si. Contudo, o núcleo fundamental
das idéias humboldtianas constitui a expressão mais forte e mais
profunda das tendências essenciais da primeira escola que acabamos
de definir5. Na literatura lingüística russa, o representante mais
próximo desta escola é A. A. Potebniá e seu grupo de discípulos6.

4
Hamann e Herder o precederam nesta direção.
5
Humboldt expôs suas idéias sobre a filosofia da linguagem em “Ueber die
Verschiedeheiten des Menschlichen Sprachbaues”, in Vorstudie zur
Einleitungozum Kawiwerk, gesam. Schriften (Akademie-Ausgabe) Bd. VI. Há
uma grande quantidade de trabalhos sobre Humboldt. Citaremos o Wilhelm von
Humboldt de R. Heim e, entre as obras mais recentes, o livro de Spranger com o
mesmo título (Berlim, 1909). Sobre Humboldt e sua influência sobre a lingüística
72
Os adeptos mais tardios da primeira tendência não atingiram, estes,
a profundidade das idéias e a síntese filosófica de Humboldt. Esta
escola de pensamento viu-se consideravelmente enfraquecida,
particularmente pelo fato de sua assimilação a um modo de
pensamento positivista e superficialmente empirista. Em Steintahl já
não se encontra mais a amplitude de Humboldt. Em compensação
percebe-se um grande esforço de precisão e de sistematização
metodológica. Também para Steintahl, o psiquismo individual
constitui a fonte da língua, enquanto que as leis do desenvolvimento
lingüístico são leis psicológicas7.
No psicologismo empirista de Wundt e discípulos, não se
encontram mais os fundamentos da primeira escola a não ser sob
forma bastante atenuada. A doutrina de Wundt resume-se no seguinte:
todos os fatos de língua, sem exceção, prestam-se a uma explicação
fundada na psicologia individual sobre uma base voluntarista8. É
verdade que Wundt, assim como Steintahl, considere a língua como
uma emanação da “psicologia dos povos” (Völker psychologie) ou

russa, citemos: B. Engelhardt, A. N. Vesselovsky (Petrograd, 1922). Recentemente


foi editado um estudo muito bom e lingüística russa, citemos: B. Engelhardt, A.
N. Vesselovski (Petro-interessante de G. Spätt: Vnútrennai forma slóva (etiúdi i
variatsii na tiému Gumboldta) [A Linguagem Interior (Estudos e Variações sobre
o Tema de Humboldt)]. O autor tenta encontrar as raízes profundas do
pensamento humboldtiano camufladas nas interpretações tradicionais (há várias
tradições de interpretação de Humboldt). A concepção de Spätt, muito subjetiva,
mostra uma vez mais como o pensamento de Humboldt é complexo e cheio de
contradições; ele se presta a variantes muito livres.
6
Sua principal obra filosófica é Misl i iazík (Pensamento e Linguagem),
(Cracóvia, 1905), reeditado pela Academia de Ciências da Ucrânia. Os discípulos
de Potebniá que constituem a escola de Kharkov, publicaram, em intervalos
irregulares, uma revista intitulada Vopróssi teorii i psikhológuii tvórtchestva
(Problemas da Teoria e da Psicologia da Criação), onde encontramos as obras
póstumas do próprio Potebniá e artigos de seus alunos a seu respeito. A
principal obra de Potebniá expõe as idéias de Humboldt.
7
Na base da concepção de Steintahl está a teoria psicológica de
Herbart, que tenta elaborar todos os dados do psiquismo humano
a partir dos elementos dotados de uma representação e
vinculados por laços associativos.
8
O voluntarismo postula o livre-arbítrio na base do psiquismo.
73
“psicologia étnica”9. Entretanto, a psicologia wundtiana dos povos é
constituída pela soma dos psiquismos separados dos indivíduos. Para
ele, apenas estes últimos têm acesso à realidade na sua totalidade.
Toda as suas explicações dos fatos de língua, de mitologia e de
religião se ligam a explicações puramente psicológicas. Wundt não
reconhece a existência de um conjunto de leis específicas, puramente
sociológicas, inerentes a todo signo ideológico e não redutíveis a
algumas leis psicológicas individuais.
Atualmente, a primeira tendência da filosofia da linguagem,
tendo rejeitado as vias do positivismo, está a caminho de desa-
brochar novamente e de alargar a visão destes problemas na escola
de Vossler. Esta última, conhecida por Idealistiche Neuphilologie,
constitui incontestavelmente uma das orientações mais fecundas do
pensamento filosófico-lingüístico contemporâneo. A contribuição
positiva, original, de seus discípulos à lingüística (em romanística e
germanística) é também muito importante. Basta lembrar, ao lado do
próprio Vossler, discípulos tais como Leo Spitzer, Lorek, Lerch, etc.
Iremos citar cada um deles em várias oportunidades.
O conjunto da concepção lingüístico-filosófica de Vossler e de sua
escola pode ser resumido corretamente pela apresentação que fizemos
das quatro proposições fundamentais da primeira escola. O que
caracteriza primordialmente a escola de Vossler, é “a negação
categórica e de princípio do positivismo lingüístico, que não
consegue ver mais além das formas lingüísticas (em particular as
fonéticas, as que são positivas) e do ato psicofisiológico que as
engendra”10. Donde o aparecimento em primeiro plano do

9
O termo “psicologia étnica” foi proposto por G. Spätt para
substituir o termo calcado no alemão Völker Psychologie, ou
seja, psicologia dos povos. Esta última expressão, de fato, não é
satisfatória e a expressão proposta por Spätt parece-nos bem
melhor. Ver. G. Spätt, Vvdiénie v etnítcheskuiu psikhológuiu
(Introdução à Psicologia Étnica), edições da Academia Estatal
de Artes e Ciências, Moscou, 1927. Encontramos neste livro
uma crítica de base do pensamento de Wundt, mas a construção
proposta como alternativa por Spätt tampouco é aceitável.
10
O primeiro livro de Vossler, no qual ele expõe os
fundamentos de sua filosofia, Positivismus und Idealismus in
74
componente ideológico significante da língua. O motor principal da
criação é o “gosto lingüístico”, variedade particular do gosto artístico.
O gosto lingüístico é justamente esta verdade lingüística absoluta que
dá vida à língua e que o lingüista se esforça por descobrir em cada
fato de língua, a fim de dar-lhe uma explicação adequada.
“Só pode ter pretensões a um caráter científico”, diz Vossler, “uma
história da língua que examine toda a hierarquia causal pragmática
com a única finalidade de aí descobrir uma ordem estética, a fim de
que o pensamento lingüístico, a verdade lingüística, o gosto
lingüístico ou, como diz Humboldt, a forma interior da língua através
de suas transformações condicionadas por fatores físicos, psíquicos,
políticos, econômicos e culturais em geral, tornem-se claros e
compreensíveis”11.
Assim é que, para Vossler, os fatores que determinam de uma
forma ou de outra os fatos de língua (físicos, políticos, econômicos,
etc.) não possuem significação direta para o lingüista; só importa para
este o sentido artístico de um dado fato de língua. Eis a concepção
que ele tem da língua, uma concepção puramente estética. “A própria
idéia de língua”, diz ele, “é por essência uma idéia poética; a verdade
da língua é de natureza artística, é o Belo dotado de Sentido12”.
Compreende-se que não é um sistema lingüístico acabado,
no sentido da totalidade dos traços fônicos, gramaticais e outros,
mas sim o ato de criação individual da fala (Sprache als Rede) que
será para Vossler o fenômeno essencial, a realidade essencial da
língua. Segue-se que, em todo ato de fala, o importante, do ponto de
vista da evolução da língua, não são as formas gramaticais estáveis,
efetivas e comuns a todas as demais enunciações da língua em
questão, mas sim a realização estilística e a modificação das formas
abstratas da língua, de caráter individual e que dizem respeito apenas
a esta enunciação.
Só essa individualização estilística da língua na enunciação
concreta é histórica e realmente produtiva. É nela que tem lugar a
evolução da língua, logo dissimulada pela formalização gramatical.
Todo fato gramatical foi, a princípio, fato estilístico. É a isto que se
liga a idéia vossleriana da primazia do estilístico sobre o

der Sprachwissenchaft, Heidelberg, 1904, é consagrado à crítica


do positivismo em lingüística.
11
“Grammatika i istoria iaziká” (Gramática e História da
Língua) In Logos, vol. 1, 1910, p. 170.
12
Ibid., p. 167.
75
gramatical13. A maior parte das pesquisas lingüísticas inspiradas na
doutrina de Vossler se situa na fronteira entre a lingüística (no sentido
estrito) e a estilística. Em toda forma lingüística, os vosslerianos se
empenham com afinco em descobrir raízes ideológicas significantes14.
Entre os representantes contemporâneos da primeira orientação da
filosofia da linguagem, convém citar ainda o filósofo e crítico literário
Benedetto Croce, em razão de sua grande influência sobre o
pensamento filosófico lingüístico e sobre a crítica literária na
Europa. As idéias de Benedetto Croce são, em muitos aspectos,
próximas às de Vossler. Para ele, também, a língua constitui um
fenômeno estético. A base, o termo-chave de sua concepção da língua
é a palavra “expressão”. Toda expressão é, em princípio, de natureza
artística. Daí a lingüística, como ciência da expressão por excelência,

13
Nós voltaremos mais tarde à crítica desta idéia.
14
Os principais trabalhos filosófico-lingüísticos de Vossler
surgidos depois do livro citado estão reunidos na coletânea
Philosophie der Sprache (1920). Trata-se da última publicação
de Vossler. Ela dá uma idéia completa de suas concepções em
filosofia e em lingüística geral. Entre os trabalhos lingüísticos
característicos do método vossleriano, citemos Frankreichs
Kultur im Spiegel seiner Sprachentwicklung, 1913. O leitor
encontrará uma bibliografia completa de Vossler, até 1922, na
coletânea Idealistiche Neuphilologie (Festschrift für Karl
Vossler) que lhe é consagrada (1922). Em língua russa, podem-
se ler dois artigos sobre ele: o artigo já citado e também
“Otnochénie istorii iazikóv k istorii literaturi” (A Relação entre
a História das Línguas e a História da Literatura) in Logos,
1912-1913, vol. I-II. Os dois artigos dão uma idéia das bases da
teoria de Vossler. As posições de Vossler e de seus discípulos
nunca foram discutidas na literatura lingüística russa. Delas
encontramos apenas uma menção no artigo de Jirmunsky sobre a
crítica literária contemporânea na Alemanha. (Poética, volume
III, 1927, “Academia”). R. Schor, no esboço por nós citado, só
menciona Vossler no prefácio. Mais adiante iremos falar dos
trabalhos dos seguidores de Vossler, que apresentam um
interesse filosófico e metodológico.
76
coincidir com a estética. Segue-se que, para Croce, o ato de fala
individual constitui igualmente o fenômeno de base da língua15.

Passemos à definição da segunda orientação do pensa-


mento filosófico-lingüístico. Segundo esta tendência, o centro
organizador de todos os fatos da língua, o que faz dela o objeto
de uma ciência bem definida, situa-se, ao contrário, no sis-
tema lingüístico, a saber o sistema das formas fonéticas, gramaticais
e lexicais da língua. Enquanto que, para a primeira orientação,
a língua constitui um fluxo ininterrupto de atos de fala, onde
nada permanece estável, nada conserva sua identidade, para a segunda
orientação a língua é um arco-íris imóvel que domina este fluxo.
Cada enunciação, cada ato de criação individual é único e
não reiterável, mas em cada enunciação encontram-se elementos
idênticos aos de outras enunciações no seio de um determinado
grupo de locutores. São justamente estes traços idênticos que
são assim normativos para todas as enunciações – traços foné-
ticos, gramaticais e lexicais –, que garantem a unicidade de uma
dada língua e sua compreensão por todos os locutores de uma
mesma comunidade.
Se tomarmos um som qualquer da língua, por exemplo o fone-
ma /a/ na palavra ráduga (arco-íris), o som produzido pelo aparelho
articulatório fisiológico do organismo individual
é um som individual e único, próprio de cada sujeito falante. Quan-
tas forem as pessoas a pronunciar a palavra ráduga, quantos serão
os “a” particulares desta palavra (ainda que o ouvido não queira
nem possa captar esta particularidade). O som fisiológico (ou seja,
o som produzido pelo aparelho fisiológico individual) é, no final
das contas, tão único quanto é única a impressão digital de
um indivíduo dado, tão único como a composição química individual
do sangue de cada pessoa (embora a ciência não seja ainda capaz de
definir fórmulas individuais do sangue).

15
Pode-se encontrar em russo a primeira parte de A Estética de
Benedetto Croce, “A Estética Como Ciência da Expressão e
Como Elemento de Lingüística Geral”, Moscou, 1920. Aí já se
encontram as considerações gerais de Croce sobre a língua e a
lingüística.
77
Entretanto, será que estas particularidades individuais do som /a/,
condicionadas, digamos pela forma única da língua (órgão), do palato
e dos dentes dos sujeitos falantes (admitamos que possamos
igualmente captar e fixar todas estas particularidades), são essenciais
do ponto de vista da língua? Evidente que elas não apresentam
qualquer interesse. O que é essencial é a identidade normativa deste
som em todas as instâncias em que se pronuncia a palavra ráduga. E
esta identidade normativa constitui justamente (posto que não existe
identidade de fato) a unicidade do sistema fonético* da língua (neste
quadro sincrônico) e garante a compreensão da palavra por todos os
membros da comunidade lingüística. Este fonema /a/ identificado por
referência a uma norma constitui portanto um fato de língua, um
objeto científico da lingüística.
Isto se estende legitimamente a todos os outros elementos
da língua. Em toda parte encontraremos a mesma identi-
dade normativa das formas lingüísticas (por exemplo, os esque-
mas sintáticos) ao lado da realização única e não reiterável
da aplicação individual de uma forma dada no ato de fala única.
O primeiro fato é parte integrante do sistema da língua, o segundo
se refere aos processos individuais da fala, condicionados (do
ponto de vista da língua como sistema) por fatores contin-
gentes, fisiológicos e subjetivo-psicológicos, dos quais não pode-
mos inteirar-nos com precisão.
É claro que o sistema lingüístico, no sentido acima definido,
é completamente independente de todo ato de criação individual,
de toda intenção ou desígnio. Do ponto de vista da segunda
orientação, não se poderia falar de uma criação refletida da língua
pelo sujeito falante16. A língua opõe-se ao indivíduo enquanto
norma indestrutível, peremptória, que o indivíduo só pode aceitar
como tal. No caso em que o indivíduo não integrasse nenhuma
forma lingüística enquanto norma peremptória, esta forma deixa-

*
O termo “fonologia” ainda não é usado. Lembremos que esta
obra é anterior aos trabalhos do Círculo Fonológico de Praga
(N.d.T.fr.).
16
Entretanto, como veremos, no terreno do racionalismo tal qual
o descrevemos, os fundamentos da segunda orientação do
pensamento filosófico-lingüístico são inteiramente compatíveis
com a idéia de uma língua universal racional artificialmente
criada.
78
ria então de existir para ele como forma da língua para tornar-se
simples potencial de seu aparelho psicofísico individual. O indi-
víduo recebe da comunidade lingüística um sistema já constituído, e
qualquer mudança no interior deste sistema ultrapassa os limites de
sua consciência individual. O ato individual de emissão de todo e
qualquer som só se torna ato lingüístico na medida em que se ligue a
um sistema lingüístico imutável (num determinado momento de sua
história) e peremptório para o indivíduo.
Quais são, pois, as leis que governam este sistema interno da
língua? Elas são puramente imanentes e específicas, irredutíveis a leis
ideológicas, artísticas ou a quaisquer outras. Todas as formas da
língua, consideradas num momento preciso (ou seja, do ponto de vista
sincrônico) são indispensáveis umas às outras, completam-se
mutuamente, e fazem da língua um sistema estruturado que obedece a
leis lingüísticas específicas. Estas leis lingüísticas específicas, à
diferença das leis ideológicas – que se referem a processos cognitivos,
à criação artísticas, etc. – não podem depender da consciência
individual. Um tal sistema, o indivíduo tem que tomá-lo e assimilá-lo
no seu conjunto, tal como ele é. Não há lugar, aqui, para quaisquer
distinções ideológicas, de caráter apreciativo: é pior, é melhor, belo
ou repugnante, etc. Na verdade só existe um critério lingüístico: está
certo ou errado; além do mais, por correção lingüística deve-se
entender apenas a conformidade a uma dada norma do sistema
normativo da língua. Não se poderia, por conseguinte, falar em “gosto
lingüístico” nem em verdade lingüística. Do ponto de vista do
indivíduo, as leis lingüísticas são arbitrárias, isto é, privadas de uma
justificação natural ou ideológica (por exemplo, artístico). Assim,
entre a face fonética da palavra e seu sentido, não há nem uma
conexão natural nem uma correspondência de natureza artística. Se a
língua, como conjunto de formas, é independente de todo impulso
criador e de toda ação individual, segue-se ser ela o produto de uma
criação coletiva, um fenômeno social e, portanto, como toda
instituição social, normativa para cada indivíduo.
Entretanto, o sistema lingüístico, único e sincronicamente
imutável, transforma-se, evolui no processo de evolução histórica de
uma determinada comunidade lingüística, posto que a identidade
normativa do fonema, tal qual nós a estabelecemos, é diferente nas
diferentes épocas da evolução de uma língua. Em poucas palavras, a
língua tem sua história. Como podemos pensar esta história do ponto
de vista da segunda orientação?
Para esta segunda orientação do pensamento filosófico-lingüístico,
o fato mais significativo é o fosso que separa a história do sis-
79
tema lingüístico em questão da abordagem não histórica, sincrô-nica.
A argumentação fundamental da segunda orientação faz
deste fosso dialético, um fosso intransponível. Entre a lógica que
governa o sistema de formas lingüísticas num determinado momento
da história e a lógica (ou antes, a ausência de lógica) da evolução
histórica destas formas, nada pode haver de comum. São duas lógicas
diferentes. Ou melhor, se nós reconhecemos uma como sendo lógica,
então a outra deve ser definida como alógica, isto é, como a negação
pura e simples da lógica estabelecida.
Na verdade, as formas que constituem o sistema lingüístico são
mutuamente dependentes e completam-se como elementos de uma só
e mesma fórmula matemática. A mudança de um dos elementos do
sistema cria um novo sistema, assim como a mudança de um dos
elementos da fórmula cria uma nova fórmula. A relação e as regras
que governam as ligações entre os elementos de uma dada fórmula
não se estendem, nem poderiam se estender, para a relação entre o
sistema ou a fórmula em questão e um outro sistema ou outra fórmula
que a eles se seguissem.
Podemos utilizar aqui uma analogia grosseira, mas que exprime
entretanto com suficiente exatidão as relações que a segunda orientação
do pensamento filosófico-lingüístico mantém com a história da língua.
Comparemos o sistema da língua com a fórmula de resolução do binômio
de Newton. Esta fórmula é regida por regras bem estritas, que
subordinam todos os elementos e os tornam imutáveis. Suponhamos que
um aluno, utilizando esta fórmula, se engane – que, por exemplo, ele
confunda os sinais de mais e menos ou os expoentes. Disto resultaria uma
nova fórmula com suas regras internas (esta fórmula, por certo, não mais
convém à resolução do binômio de Newton, mas isto não tem importância
para efeitos de nossa analogia). Entre a primeira e a segunda fórmulas, já
não existe mais relação matemática, análoga à que rege as relações
internas de cada fórmula.
Na língua, as coisas se passam do mesmo modo. As relações
sistemáticas que existem entre duas formas lingüísticas no sistema
(em sincronia), nada têm de comum com as relações que unem
qualquer destas formas à sua imagem transformada no estágio
posterior da evolução histórica da língua. O germânico de antes
do século XVI conjugava: ich was – wir waren. O alemão
contemporâneo conjuga: ich war – wir waren; ich was transformou-se
pois em ich war. Entre as formas ich was – wir waren e ich war – wir
waren existe uma ligação lingüística sistemática, os termos
se completam mutuamente. Eles se ligam e são complemen-
tares, particularmente como formas do singular e plural da primeira
80
pessoa na conjugação de um único e mesmo verbo. Entre ich
war – wir waren de um lado e ich was (séculos XV e XVI) –
ich war (contemporâneo) de outro, existe uma relação diferente, que
nada tem de comum com a primeira. A forma ich war formou-se por
analogia a wir waren. No lugar de ich was, nós (indivíduos separados)
viemos a criar ich war17 sob influência de wir waren. O fenômeno
tornou-se fenômeno de massa, e o resultado foi que de um erro
individual originou-se uma norma lingüística.
Desta maneira, entre as duas relações:
1o) ich was – wir waren (no quadro sincrônico, digamos, do século
XV) ou então ich war – wir waren (no quadro sincrônico do século
XIX) e
2o) ich was – ich war
|____________|
wir waren (na qualidade de fator determinante da nova forma
analógica), existem diferenças bem profundas no plano dos
princípios. A primeira relação, sincrônica, é regida por
combinações lingüísticas sistemáticas entre elementos
interdependentes e complementares. Esta relação opõe-se ao
indivíduo, na sua qualidade de norma peremptória. A segunda
relação (histórica ou diacrônica) está submetida às suas próprias
leis particulares, mais precisamente, às leis do erro analógico.
A lógica da história da língua é a lógica dos erros individuais
ou dos desvios. A passagem de ich was a ich war se efetua fora
do campo da consciência individual. A passagem é involuntária e
passa desapercebida, e esta é a condição de sua realização. A cada
época só pode corresponder uma única norma lingüística: ou ich was
ou ich war. Fora da norma só há lugar para a transgressão, mas não
para uma outra norma, contraditória (razão pela qual não poderia
existir “tragédia” lingüística). Se a transgressão não é percebida como
tal e, por isso mesmo, não é corrigida, e se existe um terreno favorável
para a generalização do erro (no caso considerado, este terreno
favorável é a analogia), então este desvio torna-se a nova
norma lingüística.
Assim, entre a lógica da língua, como sistema de formas e a lógica
da sua evolução histórica, não há nenhum vínculo, nada de comum.
As duas esferas são regidas por leis completamente diferentes, por
fatores heterogêneos. O que torna a língua significante e coerente no
quadro sincrônico é excluído e inútil no quadro diacrônico. O

17
Os ingleses utilizam ainda I was.
81
presente da língua e sua história não se entendem entre si, são ambos
incapazes de se entenderem.
Assinalamos a divergência bem profunda que existe, justamente
sob este aspecto, entre a primeira e a segunda orientação da filosofia
da linguagem. Para a primeira orientação, a essência da língua está
precisamente na sua história. A lógica da língua não é absolutamente
a da repetição de formas identificadas a uma norma, mas sim uma
renovação constante, a individualização das formas em enunciações
estilisticamente únicas e não reiteráveis. A realidade da língua
constitui também sua evolução. Entre um momento particular da vida
de uma língua e sua história se estabelece uma comunhão total. As
mesmas motivações ideológicas reinam numa e noutra parte. Como
diria Vossler, “o gosto lingüístico cria a unicidade da língua num
momento dado. Ele cria e garante da mesma maneira a unicidade da
evolução histórica da língua”. A passagem de uma forma histórica a
outra se efetua, essencialmente, nos limites da consciência individual,
posto que também, como sabemos, toda forma gramatical foi na
origem, para Vossler, uma forma estilística livre.
A diferença entre as duas orientações fica muito bem ilustrada pela
seguinte: as formas normativas, responsáveis pelo imobilismo do
sistema lingüístico (ergon), não eram, para a primeira orientação,
senão resíduos deteriorados da evolução lingüística, da verdadeira
substância da língua, tornada viva pelo ato de criação individual e
único. Para a segunda orientação, é justamente este sistema de formas
normativas que se torna a substância da língua. A refração e a
variação de caráter individual e criador das formas lingüísticas não
constituem mais que detritos da vida da língua (mais exatamente, do
imobilismo fenomenal desta), harmônicos inúteis e intangíveis do tom
fundamentalmente estável das formas lingüísticas. Nós podemos
sintetizar o essencial das considerações da segunda orientação nas
seguintes proposições:
1. A língua é um sistema estável, imutável, de formas lingüísticas
submetidas a uma norma fornecida tal qual à consciência individual e
peremptória para esta.
2. As leis da língua são essencialmente leis lingüísticas
específicas, que estabelecem ligações entre os signos lingüísticos no
interior de um sistema fechado. Estas leis são objetivas relativamente
a toda consciência subjetiva.
3. As ligações lingüísticas específicas nada têm a ver com valores
ideológicos (artísticos, cognitivos ou outros). Não se encontra, na
base dos fatos lingüísticos, nenhum motor ideológico. Entre a palavra
82
e seu sentido não existe vínculo natural e compreensível para a
consciência, nem vínculo artístico.
4. Os atos individuais de fala constituem, do ponto de vista da
língua; simples refrações ou variações fortuitas ou mesmo
deformações das formas normativas. Mas são justamente estes atos
individuais de fala que explicam a mudança histórica das formas da
língua; enquanto tal, a mudança é, do ponto de vista do sistema,
irracional e mesmo desprovida de sentido. Entre o sistema da língua e
sua história não existe nem vínculo nem afinidade de motivos. Eles
são estranhos entre si.
O leitor terá notado que as quatro proposições que resumem a
segunda orientação do pensamento filosófico-lingüístico constituem a
antítese das quatro proposições correspondentes da primeira
orientação.

O traçado histórico da segunda orientação é bem mais difícil de ser


feito. Aí não encontramos, no início de nossa era, representante ou
teórico cuja estatura possa se comparar à de Humboldt. É preciso
procurar as raízes desta orientação no racionalismo dos séculos XVII
e XVIII. Tais raízes mergulham no solo fértil do cartesianismo18. Foi
Leibniz quem exprimiu, pela primeira vez, estas idéias de forma clara,
na sua teoria da gramática universal.
A idéia de uma língua convencional, arbitrária, é caracterís-
tica de toda corrente racionalista, bem como o paralelo estabele-
cido entre o código lingüístico e o código matemático. Ao espí-
rito orientado para a matemática, dos racionalistas, o que interessa
não é a relação do signo com a realidade por ele refletida ou
com o indivíduo que o engendra, mas a relação de signo para signo
no interior de um sistema fechado, e não obstante aceito e inte-
grado. Em outras palavras, só lhes interessa a lógica interna
do próprio sistema de signos; este é considerado, assim como

18
Não resta qualquer dúvida de que um elo interno une em
profundidade a segunda orientação ao pensamento cartesiano e à
visão geral do mundo do neoclassicismo com seu culto da forma
fixa, racional e imutável. O próprio Descartes não publicou nada
sobre a filosofia da linguagem, mas encontramos na sua
correspondência observações características. Ver a este respeito
o capítulo já citado no livro de Cassirer.
83
na lógica, independentemente por completo das significa-
ções ideológicas que a ele se ligam. Os racionalistas também
se inclinam a levar em conta o ponto de vista do receptor, mas nunca
o do locutor enquanto sujeito que exprime sua vida interior, já que
o signo matemático é menos passível do que qualquer outro de ser
interpretado como a expressão do psiquismo individual; ora, o signo
matemático era, para os racionalistas, o signo por excelência, o
modelo semiótico, inclusive para a língua. São precisamente estas
idéias que se acham claramente expressas no conceito leibniziano da
gramática universal19.
Convém aqui assinalar que a primazia do ponto de vista do receptor
sobre o do locutor é uma constante da segunda orientação. Por isso
mesmo, em função do terreno escolhido por esta última, o problema da
expressão não é nunca abordado nem, por conseguinte, o da evolução do
pensamento e do psiquismo subjetivo tal como ele transpira através da
palavra (o que é uma das principais preocupações da primeira
orientação).
A idéia da língua como sistema de signos arbitrários e
convencionais, essencialmente racionais, foi elaborada de forma
simplificada já no século XVIII pelos filósofos do Século das Luzes.
As idéias que constituem o objetivismo abstrato vieram à luz
primeiramente na França e ainda encontram aí seu terreno preferido20.
Sem nos determos nas etapas intermediárias do desenvolvimento
destas idéias, passaremos imediatamente para a caracterização desta
segunda orientação na época contemporânea. A chamada escola de
Genebra, com Ferdinand de Saussure, mostra-se como a mais
brilhante expressão do objetivismo abstrato em nosso tempo. Os
representantes desta escola, particularmente Charles Bally, estão entre
os maiores lingüistas contemporâneos. Saussure deu a todas as idéias
da segunda orientação uma clareza e uma precisão admiráveis. Suas
formulações dos conceitos de base da lingüística tornaram-se
clássicas. E mais, ele levou todas suas reflexões a seu termo, dotando
assim os traços essenciais do objetivismo abstrato de uma limpidez e

19
Podemos familiarizar-nos com estas considerações de Leibniz
lendo a obra fundamental de Cassirer, Leibniz System in seinem
Wiessenschaftlichen Grundlagen, Marburg, 1902.
20
É interessante notar que ao contrário da primeira, a segunda
orientação desenvolveu-se e continua a desenvolver-se na
Alemanha.
84
de um rigor excepcionais. A pouca audiência que a escola de Vossler
tem na Rússia corresponde inversamente à popularidade e influência
de que a de Saussure aí goza. Podemos dizer que a maioria dos
representantes de nosso pensamento lingüístico se acha sob a influência
determinante de Sausurre e de seus discípulos, Bally e Sechehaye21
Nós nos deteremos um pouco mais longamente nas concepções de
Sausurre, dada a imensa importância de seus fundamentos teóricos
para toda a segunda orientação e para a lingüística russa. Mas, aí
também, limitar-nos-emos às posições filosófico-lingüísticas de
base22.
Sausurre parte do princípio de uma tríplice distinção: le langage,
la langue (como sistema de formas) e o ato da enunciação individual,
la parole. A língua (la langue) e a fala (la parole) são os elementos
constitutivos da linguagem, compreendida como a totalidade (sem
exceção) de todas as manifestações – físicas, fisiológicas e psíquicas

21
O livro de R. Schor, Iazík i óbchtchestvo (Linguagem e
Sociedade), Moscou, 1926, situa-se no espírito da escola de
Gene-
bra. Schor nele faz uma viva apologia das idéias fundamentais

De Saussure, como também no artigo já citado “A Crise da


Lingüística Contemporânea”. Vinogradov se situa também como
um êmulo da escola de Genebra. Duas escolas lingüísticas
russas, a escola de Fortunátov e a de Kazan (Kruchevski e
Baudouin de Courtenay), que constituem uma expressão
brilhante do formalismo em lingüística, inserem-se
perfeitamente no quadro da segunda orientação tal como a
esboçamos.
22
A obra teórica fundamental de Saussure, publicada depois de
sua morte por seus discípulos, intitula-se Curso de Lingüística
Geral (1916). Nós a citaremos aqui na edição de 1922. É de
causar admiração o fato de que este livro, tendo em conta sua
enorme influência, nunca tenha sido traduzido para o russo.
Podemos encontrar uma breve apresentação das idéias de
Saussure no artigo já indicado de Schor e no artigo de Peterson,
“Óbchtchaia lingvistika (Lingüística Geral), in Petchát i
revoliútsia (Imprensa e Revolução), 1923, vol. 6.
85
– que entram em jogo na comunicação lingüística. A linguagem não
pode ser, segundo Saussure, o objeto da lingüística. Considerada em
si mesma, falta-lhe unidade interna e leis independentes, autônomas.
Ela é compósita, heterogênea. É difícil não se perder em sua
composição contraditória. É impossível, se permanecermos no terreno
da linguagem, fazer uma descrição dos fatos da língua. A linguagem
não pode ser o ponto de partida de uma análise lingüística.
Qual é, pois, o caminho metodológico correto que Saussure nos
propõe para explicitar o objeto específico da lingüística? A ele a
palavra:

“Não há, no nosso entender, senão uma solução para todas estas
dificuldades [trata-se das contradições internas da “linguagem” como
ponto de partida de sua análise]: é preciso, antes de tudo, instalar-se
no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as demais
manifestações da linguagem. Com efeito, em meio a tantas
dualidades, só a língua parece suscetível de uma definição autô-
noma e fornece um ponto de apoio satisfatório para o espírito.” (F. de
Saussure, Cours de linguistique générale, p. 24; itálicos de
Saussure).*

Qual é pois, segundo Saussure, a distinção de princípio entre


língua e linguagem?

“Tomada como um todo, a linguagem é multiforne e heteróclita;


participando de diversos domínios, tanto do físico, quanto do
filosófico e do psíquico, ela pertence ainda ao domínio individual e ao
domínio social; ela não se deixa classificar em nenhuma categoria dos
fatos humanos, porque não se sabe como isolar sua unidade.

*
Todas as citações francesas do livro estão em francês no texto
original. Lembremos que iazík, em russo, designa a linguagem, a
língua e a língua – enquanto órgão –, e que rietch, em russo,
designa a fala, a língua, a linguagem, o discurso. Traduziu-se
iazík ora por “linguagem”, como no título, ora por “língua”.
Entretanto, para suprimir a ambigüidade, Bakhtin forjou um
substantivo composto: iazík-rietch (a linguagem) que ele opôs a
iazík kak sistiema form (A Língua como sistema de formas) e a
viskazivánie (a enunciação do ato de fala). (N.d.T.fr.).
86
A língua, ao contrário, é um todo em si mesma e um princípio de
classificação. A partir do momento em que lhe atribuímos o maior
destaque entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem
natural num conjunto que não se presta a nenhuma outra
classificação” (Op. cit., p. 25).

Assim, para Saussure, é indispensável partir da língua como


sistema de formas cuja identidade se refira a uma norma e esclarecer
todos os fatos de linguagem como referência a suas formas estáveis e
autônomas (auto-regulamentadas).
Tendo distinguido a língua da linguagem, no sentido da totalidade
absoluta das manifestações lingüísticas, Saussure vai em seguida
distinguir a língua dos atos individuais de enunciação, isto é, da fala:

“Separando-se a língua da fala, separa-se ao mesmo tempo: em


primeiro lugar, o que é social do que é individual; em segundo lugar,
o que é essencial do que é acessório e relativamente acidental.
A língua não é função do sujeito falante, ela é um produto que o
indivíduo registra passivamente; ela não supõe nunca premeditação e
a reflexão aí só intervém para a atividade de classificação de que nos
ocuparemos.
A fala é, ao contrário, um ato individual de vontade e de
inteligência no interior do qual convém distinguir: primeiramente, as
combinações pelas quais o sujeito falante utiliza o código da língua
para exprimir seu pensamento pessoal; em segundo lugar, o
mecanismo psicofísico que lhe permite exteriorizar estas
combinações”. (Op. cit., p. 30).
A fala, tal como Saussure a entende, não poderia ser objeto da
lingüística23. Na fala, os elementos que concernem à lingüística são
constituídos apenas pelas formas normativas da língua que aí se
manifestam. Todo o resto é “acessório e acidental”.

23
Saussure, na verdade, admite a possibilidade de uma outra
lingüística, a da fala, mas ele não diz em que poderia ela
consistir. Eis o que ele escreve a respeito: “Há que se escolher
entre dois caminhos impossíveis de serem seguidos ao mesmo
tempo; eles devem ser trilhados separadamente. Pode-se a rigor
conservar o nome de lingüística da fala. Mas não se deverá
confundi-la com a lingüística propriamente dita, aquela em que a
língua é o único objeto”. (Op. cit., p. 39).
87
Destaquemos esta tese fundamental de Saussure: a língua se opõe
à fala como o social ao individual. A fala é, assim, absolutamente
individual. Nisto consiste, como veremos, o proton pseudos de
Saussure e de toda tendência do objetivismo abstrato. O ato individual
de fala-enunciação, rechaçado decisivamente para os confins da
lingüística, aí encontra todavia um lugar como fator indispensável da
história da língua24. Esta última, de acordo com o espírito de toda a
segunda orientação, opõe-se rigorosamente à língua como sistema
sincrônico, para Saussure. Na história da língua, a fala, com seu
caráter individual e acidental, é soberana; razão pela qual é regida por
leis completamente diferentes das que regem o sistema da língua.
“Assim é que o ‘fenômeno’ sincrônico nada tem de comum com o
diacrônico.” (p. 129).
“A lingüística sincrônica irá se ocupar das relações lógicas e
psicológicas que unem termos coexistentes e formadores de um
sistema, tal como eles são percebidos pela mesma consciência
coletiva.
A lingüística diacrônica estudará, ao contrário, as relações que
unem termos sucessivos não percebidos por uma mesma consciência,
e que se substituem uns aos outros, sem formar sistema entre si.” (Op.
cit., p. 140; itálicos de Saussure).
Estas idéias de Sausurre sobre a história são bem características do
espírito racionalista que reina até hoje na segunda orientação do
pensamento filosófico-lingüístico e para o qual a história é um
domínio irracional que corrompe a pureza lógica do sistema
lingüístico.
Saussure e sua escola não estão sozinhos no pináculo do
objetivismo abstrato contemporâneo. Ao lado deles, nós vemos
ascender uma outra escola, a escola sociológica de Durkheim. Nela
encontramos uma figura de lingüista como a de Meillet. Nós não nos
deteremos numa descrição de suas concepções25. Elas se inserem
perfeitamente no quadro dos fundamentos já apresentados da segunda
orientação. Também para Meillet não é a qualidade de processo, mas
a de sistema estável de normas lingüísticas, que faz da língua um

24
Saussure diz: Tudo o que é diacrônico na língua, só o é
através da fala. É na fala que se encontra o germe de todas as
mudanças. (Op. cit., p. 138).
25
M. N. Peterson expõe as idéias de Meillet relacionando-as com os fundamentos
do método sociológico de Durkheim no artigo já citado, “A Língua Como
Manifestação Social”. Ver a bibliografia aí contida.
88
fenômeno social. O fato de opor-se a língua do exterior à consciência
individual, e mais o seu caráter coercitivo constituem para ele os
traços sociais fundamentais da língua.
Não iremos discorrer sobre as inúmeras escolas e tendências da
lingüística que não entram no quadro das duas orientações aqui
definidas. Falaremos um pouco, entretanto, a respeito dos
neogramáticos, cujo movimento constitui uma das mais importantes
manifestações da lingüística na segunda metade do século XIX.
Por algumas de suas posições, os neogramáticos mostram um certo
parentesco com a segunda orientação, da qual eles realçam o
componente menor – o fisiológico. O indivíduo criador da língua é
essencialmente para eles um ser fisiológico. Por outro lado, no terreno
psicofisiológico, os neogramáticos tentaram construir leis lingüísticas
calcadas nas ciências naturais, ou seja, leis imutáveis, completamente
privadas do livre arbítrio dos indivíduos locutores. Donde a idéia
neogramática das leis fonéticas (Lautgesetze26).
Em lingüística, como em toda ciência específica, existem
essencialmente duas maneiras de se livrar do penoso trabalho que
uma reflexão filosófica séria, fundada sobre princípios, exige. A
primeira consiste em erigir, logo de saída, todos os princípios em
axiomas (academicismo eclético); a outra consiste em descartar todos
os princípios e proclamar o fato (factum) como fundamento e critério
último de todo ato cognitivo (positivismo acadêmico). O efeito
filosófico que resulta destes dois procedimentos para se livrar da
filosofia é o mesmo, já que, no segundo caso, podem caber no saco
onde se lê “Fato” todos os princípios possíveis e imagináveis. A
escolha de uma modalidade ou de outra depende inteiramente do
temperamento do pesquisador: os ecléticos são mais relaxados, os
positivistas mais exigentes.
Encontram-se em lingüística numerosas produções e mesmo
escolas inteiras (escolas no sentido de estudo científico-técnico) que
se dispensam da tarefa de seguir uma orientação filosófico-lingüística.
Mas elas não entram, evidentemente, no quadro de nossa
apresentação. Existem, por fim, alguns lingüistas e filósofos não
mencionados aqui, como Otto Dietrich e Anton Marty, e que

26
Os principais trabalhos da tendência neogramática são Osthoff, Das
physiologische und psychologische Moment in der sprachlichen Formenbildung,
Berlim, 1879; Brugmann e Delbrück, Grundriss der vergleichenden Grammatik
der indogermanischen Sprachen (cinco volumes, 1886). O programa dos
neogramáticos está exposto no prefácio do livro de Osthoff e Brugmann,
Morphologische Untersuchungen, Leipzig, 1878.
89
citaremos adiante quando analisarmos os problemas da interação
lingüística e da significação.
Colocamos no início do capítulo o problema da explicitação e da
delimitação da língua como objeto específico de pesquisa. Tentamos
descobrir as balizas já colocadas no caminho da resolução deste
problema pelas tendências do pensamento filosófico-lingüístico que
nos precederam. Por fim, achamo-nos diante de duas categorias de
sinalizações colocadas em direções diametralmente opostas. De um
lado, as teses do subjetivismo individualista e, de outro, as antíteses
do objetivismo abstrato. Mas o que é que se revela como o verdadeiro
núcleo da realidade lingüística? O ato individual da fala – a
enunciação – ou o sistema da língua? E qual é, pois, o modo de
existência da realidade lingüística? Evolução criadora ininterrupta ou
imutabilidade de normas idênticas a si mesmas?

90
CAPÍTULO 5
LÍNGUA, FALA E ENUNCIAÇÃO

No capítulo precedente, tentamos representar de maneira


totalmente objetiva as duas orientações do pensamento filosófico-
lingüístico. Agora, devemos submetê-las a uma análise crítica em
profundidade. Isso feito, estaremos em condições de responder à
questão colocada no fim do Capítulo 4. Comecemos pela crítica da
segunda orientação, a do objetivismo abstrato.
Coloquemo-nos, primeiro, a seguinte questão: em que medida um
sistema de normas imutáveis – isto é, um sistema de língua, segundo
os representantes da segunda orientação – conforma-se à realidade?
Evidentemente, nenhum dos representantes do objetivismo abstrato
confere ao sistema lingüístico um caráter de realidade material eterna.
Esse sistema exprime-se, efetivamente, em coisas materiais, em
signos, mas, enquanto sistema de formas normativas, sua realidade
repousa na sua qualidade de norma social. Os representantes dessa
orientação acentuam constantemente que o sistema lingüístico
constitui um fato objetivo externo à consciência individual e
independente desta – e isto representa uma de suas posições
fundamentais. E, no entanto, é só para a consciência individual, e do
ponto de vista dela, que a língua se apresenta como sistema de normas
rígidas e imutáveis. Na verdade, se fizermos abstração da consciência
individual subjetiva e lançarmos sobre a língua um olhar
verdadeiramente objetivo, um olhar, digamos, oblíquo, ou melhor, de
cima, não encontraremos nenhum indício de um sistema de normas
imutáveis. Pelo contrário, depararemos com a evolução ininterrupta
das normas da língua. De um ponto de vista realmente objetivo,
percebendo a língua de um modo completamente diferente daquele
como ela apareceria para um certo indivíduo, num dado momento do
tempo, a língua apresenta-se como uma corrente evolutiva
ininterrupta. Para o observador que enfoca a língua de cima, o lapso
91
de tempo em cujos limites é possível construir um sistema sincrônico
não passa de uma ficção.
Assim, de um ponto de vista objetivo, o sistema sincrônico não
corresponde a nenhum momento efetivo do processo de evolução da
língua. E, na verdade, para o historiador da língua que adota um ponto
de vista diacrônico, o sistema sincrônico não constitui uma realidade;
ele apenas serve de escala convencional para registrar os desvios que
se produzem a cada momento no tempo. O sistema sincrônico da
língua só existe do ponto de vista da consciência subjetiva do locutor
de uma dada comunidade lingüística num dado momento da história.
Objetivamente, esse sistema não existe em nenhum verdadeiro
momento da história. Podemos admitir que no momento em que César
escrevia suas obras, a língua latina constituía para ele um sistema
imutável e incontestável de normas fixas; mas, para o historiador da
língua latina, naquele mesmo momento em que César escrevia,
produzia-se um processo contínuo de transformação lingüística –
mesmo se o historiador não for capaz de registrar essas
transformações.
Todo sistema de normas sociais encontra-se numa posição aná-
loga; somente existe relacionado à consciência subjetiva dos
indivíduos que participam da coletividade regida por essas normas.
São assim os sistemas de normas morais, jurídicas, estéticas
(tais normas realmente existem), etc. Certamente, essas normas
variam. Diferem pelo grau de coerção que exercem, pela extensão
de sua escala social, pelo grau de significação social, que é função
de sua relação mais ou menos próxima com a infra-estrutura, etc.
Mas, enquanto normas, a natureza de sua existência permanece a
mesma;
só existem relativamente à consciência subjetiva dos indivíduos
de uma dada comunidade. Segue-se, então, que essa relação entre
a consciência subjetiva e a língua como sistema objetivo de normas
incontestáveis seja desprovida de qualquer objetividade? Não,
evidentemente. Compreendida corretamente, essa relação pode
ser considerada um fato objetivo. Dizer que a língua, como sistema
de normas imutáveis e incontestáveis, possui uma existência objetiva
é cometer um grave erro. Mas exprime-se uma relação perfeitamente
objetiva quando se diz que a língua constitui, relativamente
à consciência individual, um sistema de normas imutáveis, que este
é o modo de existência da língua para todo membro de
uma comunidade lingüística dada. Se o próprio fato está correta-
mente estabelecido, se é realmente verdade que a língua se apresenta
para a consciência do locutor como um sistema de normas fixas
92
e imutáveis, é uma outra questão que, por enquanto, será deixada
em aberto. Em todo caso, nosso alvo é poder estabelecer uma certa
relação objetiva.
Qual a posição dos partidários do objetivismo abstrato com relação
a esse ponto? Afirmam eles que a língua é um sistema de normas fixas
objetivas e incontestáveis ou percebem que este é apenas o modo de
existência da língua para a consciência subjetiva dos locutores de uma
dada comunidade? A melhor resposta a essa questão é a seguinte: a
maioria dos partidários do objetivismo abstrato tende a afirmar a
realidade e a objetividade imediatas da língua como sistema de
formas normativas. Para esses representantes da segunda orientação, o
objetivismo abstrato torna-se simplesmente hipostático. Outros
representantes da mesma orientação (Meillet, por exemplo) são mais
críticos e percebem a natureza abstrata e convencional do sistema
lingüístico. No entanto, nenhum dos objetivistas abstratos chegou a
compreender de maneira clara e precisa o funcionamento intrínseco
da língua como sistema objetivo. Na maioria dos casos, eles oscilam
entre as duas acepções que a palavra “objetivo” possui quando
aplicada ao sistema lingüístico: a acepção, por assim dizer, entre
aspas (expressando o ponto de vista da consciência subjetiva do
locutor) e a acepção sem aspas (objetivo no sentido próprio). Até
Saussure procede dessa maneira. Ele não resolve a questão
claramente.
Devemos, agora, perguntar-nos se a língua existe realmente para a
consciência subjetiva do locutor unicamente como sistema objetivo de
formas normativas e intocáveis. O objetivismo abstrato captou
corretamente o ponto de vista da consciência subjetiva do locutor? É
realmente este o modo de existência da língua na consciência
lingüística subjetiva? A essa questão somos obrigados a responder
pela negativa. A consciência subjetiva do locutor não se utiliza da
língua como de um sistema de formas normativas. Tal sistema é uma
mera abstração, produzida com dificuldade por procedimentos
cognitivos bem determinados. O sistema lingüístico é o produto de
uma reflexão sobre a língua, reflexão que não procede da consciência
do locutor nativo e que não serve aos propósitos imediatos da
comunicação.
Na realidade, o locutor serve-se da língua para suas necessidades
enunciativas concretas (para o locutor, a construção da língua está
orientada no sentido da enunciação da fala). Trata-se, para ele, de
utilizar as formas normativas (admitamos, por enquanto, a
legitimidade destas) num dado contexto concreto. Para ele, o centro
de gravidade da língua não reside na conformidade à norma da forma
93
utilizada, mas na nova significação que essa forma adquire
no contexto. O que importa não é o aspecto da forma lingüística
que, em qualquer caso em que esta é utilizada, permanece sempre
idêntico. Não; para o locutor o que importa é aquilo que permite
que a forma lingüística figure num dado contexto, aquilo que a torna
um signo adequado às condições de uma situação concreta dada. Para
o locutor, a forma lingüística não tem importância enquanto sinal
estável e sempre igual a si mesmo, mas somente enquanto signo
sempre variável e flexível. Este é o ponto de vista do locutor.
Mas o locutor também deve levar em consideração o ponto de
vista do receptor. Seria aqui que a norma lingüística entraria em jogo?
Não, também não é exatamente assim. É impossível reduzir-se o ato
de descodificação ao reconhecimento de uma forma lingüística
utilizada pelo locutor como forma familiar, conhecida – modo como
reconhecemos, por exemplo, um sinal ao qual não estamos
suficientemente habituados ou uma forma de uma língua que
conhecemos mal. Não; o essencial na tarefa de descodificação não
consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num
contexto concreto preciso, compreender sua significação numa
enunciação particular. Em suma, trata-se de perceber seu caráter de
novidade e não somente sua conformidade à norma. Em outros
termos, o receptor, pertencente à mesma comunidade lingüística,
também considera a forma lingüística utilizada como um signo
variável e flexível e não como um sinal imutável e sempre idêntico a
si mesmo.
O processo de descodificação (compreensão) não deve,
em nenhum caso, ser confundido com o processo de identifi-
cação. Trata-se de dois processos profundamente distintos. O signo
é descodificado; só o sinal é identificado. O sinal é uma entidade
de conteúdo imutável; ele não pode substituir, nem refletir,
nem refratar nada; constitui apenas um instrumento técnico
para designar este ou aquele objeto (preciso e imutável) ou este
ou aquele acontecimento (igualmente preciso e imutável)1. O sinal

1
Karl Bühler, no seu artigo “Vom Wesem der Syntax” (in
Festschrift für Karl Vossler, p. 61-69), estabelece distinções
interessantes e astuciosas entre, de um lado, o sinal e suas
combinações (no domínio marítimo, por exemplo) e, de outro, a
forma lingüística e suas combinações, em conexão com os
problemas de sintaxe.
94
não pertence ao domínio da ideologia; ele faz parte do mundo dos
objetos técnicos, dos instrumentos de produção no sentido amplo
do termo. Mais distantes ainda da ideologia estão os sinais com
os quais trabalha a reflexologia. Esses sinais, considerados em relação
ao organismo que os recebe, isto é, ao organismo sobre o qual
eles incidem, nada têm a ver com as técnicas de produção. Nesse
caso, não são mais sinais, mas estímulos de uma espécie particular.
Só se tornam instrumentos de produção nas mãos do experimentador.
Somente um concurso infeliz de circunstâncias e as inextirpáveis
práticas da reflexão mecanicista puderam induzir certos pesquisadores
a fazer desses “sinais”, praticamente, a chave da compreensão da
linguagem e do psiquismo humano (do discurso interior).
Enquanto uma forma lingüística for apenas um sinal e for
percebida pelo receptor somente como tal, ela não terá para
ele nenhum valor lingüístico. A pura “sinalidade” não existe, mesmo
nas primeiras fases da aquisição da linguagem. Até mesmo ali,
a forma é orientada pelo contexto, já constitui um signo, embora
o componente de “sinalidade” e de identificação que lhe é corre-
lata seja real. Assim, o elemento que torna a forma lingüística
um signo não é sua identidade como sinal, mas sua mobilidade
específica; da mesma forma que aquilo que constitui a descodificação
da forma lingüística não é o reconhecimento do sinal, mas
a compreensão da palavra no seu sentido particular, isto é, a
apreensão da orientação que é conferida à palavra por um contexto e
uma situação precisos, uma orientação no sentido da evolução
e não do imobilismo2.
Disso não se conclui que o componente de “sinalidade” e seu
correlato, a identificação, não existam na língua. Existem, mas não
como constituintes da língua como tal. O componente de “sinalidade”
é dialeticamente deslocado, absorvido pela nova qualidade do signo
(isto é, da língua como tal). Na língua materna, isto é, precisamente
para os membros de uma comunidade lingüística dada, o sinal e o
reconhecimento estão dialeticamente apagados. No processo de
assimilação de uma língua estrangeira, sente-se a “sinalidade” e o
reconhecimento, que não foram ainda dominados: a língua ainda não
se tornou língua. A assimilação ideal de uma língua dá-se quando o

2
Veremos mais adiante que é justamente a compreensão no sentido próprio, a
compreensão da evolução, que se acha na base da resposta, isto é, da interação
verbal. É impossível delimitar de modo estrito o ato de compreensão e a resposta.
Todo ato de compreensão é uma resposta, na medida em que ele introduz o
objeto da compreensão num novo contexto – o contexto potencial da resposta.
95
sinal é completamente absorvido pelo signo e o reconhecimento pela
compreensão3.
Assim, na prática viva da língua, a consciência lingüística do locutor e
do receptor nada tem a ver com um sistema abstrato de formas
normativas, mas apenas com a linguagem no sentido de conjunto dos
contextos possíveis de uso de cada forma particular. Para o falante nativo,
a palavra não se apresenta como um item de dicionário, mas como parte
das mais diversas enunciações dos locutores A, B ou C de sua
comunidade e das múltiplas enunciações de sua própria prática
lingüística. Para que se passe a perceber a palavra como uma forma fixa
pertencente ao sistema lexical de uma língua dada – como uma palavra de
dicionário –, é preciso que se adote uma orientação particular e
específica. É por isso que os membros de uma comunidade lingüística,
normalmente, não percebem nunca o caráter coercitivo das normas
lingüísticas. A significação normativa da forma lingüística só se deixa
perceber nos momentos de conflito, momentos raríssimos e não
característicos do uso da língua (para o homem contemporâneo, eles estão
quase exclusivamente associados à expressão escrita).
Cumpre ainda acrescentar aqui uma observação extremamente
importante: a consciência lingüística dos sujeitos falantes não tem o
que fazer com a forma lingüística enquanto tal, nem com a própria
língua como tal.
De fato, a forma lingüística, como acabamos de mostrar, sempre se
apresenta aos locutores no contexto de enunciações precisas, o que
implica sempre um contexto ideológico preciso. Na realidade, não são
palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou
mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou
desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo
ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que
compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que
despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida.
O critério de correção só se aplica à enunciação em situa-
ções anormais ou particulares (por exemplo, no estudo de uma língua
–––––––––––––––––––––––––

3
O ponto de vista que defendemos, embora careça de uma sustentação teóri-
ca, constitui, na prática, a base de todos os métodos eficazes de ensino de lín-
guas vivas estrangeiras. O essencial desses métodos é familiarizar o aprendiz
com cada forma da língua inserida num contexto e numa situação concre-
tas. Assim, uma palavra nova só é introduzida mediante uma série de

96
contextos em que ela figure. O que faz com que o fator de reconhecimento da
palavra normativa seja, logo de início, associado e dialeticamente integrado
aos fatores de mutabilidade contextual, de diferença e de novidade. A palavra
isolada de seu contexto, inscrita num caderno e apreendida por associação
com seu equivalente russo, torna-se, por assim dizer, sinal, torna-se uma coisa
única e, no processo de compreensão, o fator de reconhecimento adquire um
peso muito forte. Em suma, um método eficaz e correto de ensino prático
exige que a forma seja assimilada não no sistema abstrato da língua, isto é,
como uma forma sempre idêntica a si mesma, mas na estrutura concreta da
enunciação, como um signo flexível e variável.
estrangeira). Em condições normais, o critério de correção lingüística
cede lugar ao critério puramente ideológico: importa-nos menos a
correção da enunciação do que seu valor de verdade ou de mentira,
seu caráter poético ou vulgar, etc.4 . A língua, no seu uso prático, é
inseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida. Para se
separar abstratamente a língua de seu conteúdo ideológico ou
vivencial, é preciso elaborar procedimentos particulares não
condicionados pelas motivações da consciência do locutor.
Se, à maneira de alguns representantes da segunda orientação,
fizermos dessa separação abstrata um princípio, se concedermos um
estatuto separado à forma lingüística vazia de ideologia, só
encontraremos sinais e não mais signos da linguagem. A separação da
língua de seu conteúdo ideológico constitui um dos erros mais
grosseiros do objetivismo abstrato.
Assim, a língua, para a consciência dos indivíduos que a falam, de
maneira alguma se apresenta como um sistema de formas normativas.
O sistema lingüístico tal como é construído pelo objetivismo abstrato
não é diretamente acessível à consciência do sujeito falante, definido
por sua prática viva de comunicação social.
No que consiste, então, esse sistema? É claro, desde o começo, que
esse sistema resulta de uma análise abstrata, que ele se compõe de
elementos abstratamente isolados das unidades reais da cadeia verbal,
das enunciações. Todo procedimento abstrato, para se legitimar, deve
ser justificado por um propósito teórico e prático preciso. Uma
abstração pode ser fecunda ou estéril, útil para certos fins e
determinadas tarefas e não para outras.

4
Por isso, como veremos, não podemos concordar com Vossler
quanto à existência de um “gosto lingüístico” específico e
determinado, que não se confunda a cada momento com um
“gosto” ideológico particular (artístico, cognitivo, ético, etc.).
97
Quais são, então, as metas da análise lingüística abstrata que conduz
ao sistema sincrônico da língua? E de que ponto de vista esse sistema se
revela produtivo e necessário? Na base dos métodos de reflexão
lingüística que levam à postulação da língua como sistema de formas
normativas, estão os procedimentos práticos e teóricos elaborados para o
estudo das línguas mortas, que se conservaram em documentos escritos.
É preciso salientar com insistência que essa abordagem filológica foi
determinante para o pensamento lingüístico do mundo europeu. Esse
pensamento nasceu e nutriu-se dos cadáveres dessas línguas escritas.
Quase todas as abordagens fundamentais e as práticas desse pensamento
foram elaboradas no processo de ressurreição desses cadáveres. O filo-
logismo é um traço inevitável de toda a lingüística européia,
condicionada pelas vicissitudes históricas que presidiram ao seu
nascimento e seu desenvolvimento. Por mais que voltemos os olhos
ao passado para traçar a história das categorias e dos métodos
lingüísticos, sempre encontraremos filólogos. Os alexandrinos eram
filólogos, assim como os romanos e os gregos (Aristóteles é um
exemplo típico). Também a Índia possuía seus filólogos.
Podemos dizer que a lingüística surgiu quando e onde surgiram
exigências filológicas. Os imperativos da filologia engendraram a
lingüística, acalentaram-na e deixaram dentro de suas fraldas a flauta
da filologia. Essa flauta tem por função despertar os mortos. Mas essa
flauta carece da potência necessária para dominar a fala viva, com sua
evolução permanente.
Nicolau Marr salienta muito corretamente essa essência filológica
do pensamento lingüístico indo-europeu:
“A lingüística indo-européia, dispondo já há muito tempo de um
objeto de investigação estabelecido e completamente formado – a
saber, as línguas indo-européias das épocas históricas – e, além do
mais, tirando todas as suas conclusões das formas petrificadas das
línguas escritas – favorecendo, entre estas, as línguas mortas – foi,
com toda evidência, incapaz de descrever o processo de aparição da
linguagem em geral e a origem das diferentes formas que ela
adquire.”5
Ou ainda:
“O que gera os maiores obstáculos (ao estudo da linguagem
primitiva) não é a dificuldade das pesquisas enquanto tal, nem a

5
N. Marr, Po etapam iafetícheskoi teórit (As Etapas da Teoria
Jafética), 1926, p. 269.
98
insuficiência de dados sólidos; é nosso modo de pensamento
científico, forjado por uma visão do mundo tradicionalmente
filológica e pela história da cultura; esse pensamento não foi nutrido
por uma concepção etnolingüística da fala viva, por suas formas que
ela adquire.”6
Essas palavras de N. Marr parecem-nos justas não apenas
no que tange aos estudos indo-europeus, que forneceram o tom a
toda a lingüística contemporânea, mas também no que respeita
à lingüística toda, tal como a conhecemos pela história. Em toda par-
te, a lingüística é filha da filologia. Submetida aos imperativos
desta, a lingüística sempre se apoiou em enunciações constitutivas de
monólogos fechados, por exemplo, em inscrições em monumentos
antigos, considerando-as como a realidade mais imediata. A
lingüística elaborou seus métodos e categorias trabalhando com
monólogos mortos, ou melhor, com um corpus de enunciações desse
tipo, cujo único ponto comum, é o uso da mesma língua.
E, no entanto, a enunciação monológica já é uma abstração,
embora seja uma abstração do tipo “natural”. Toda enunciação
monológica, inclusive uma inscrição num monumento, constitui um
elemento inalienável da comunicação verbal. Toda enunciação,
mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma
coisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos
de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma
polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão,
antecipa-as. Cada inscrição constitui uma parte inalienável da ciência
ou da literatura ou da vida política. Uma inscrição, como toda
enunciação monológica, é produzida para ser compreendida, é
orientada para uma leitura no contexto da vida científica ou da
realidade literária do momento, isto é, no contexto do processo
ideológico do qual ela é parte integrante.
O filólogo-lingüista desvincula-a dessa esfera real, apreende-a
como um todo isolado que se basta a si mesmo, e não lhe aplica uma
compreensão ideológica ativa, e sim, ao contrário, uma compreensão
totalmente passiva, que não comporta nem o esboço de uma resposta,
como seria exigido por qualquer espécie autêntica de compreensão. O
filólogo contenta-se em tomar essa inscrição isolada como um
documento de linguagem e em compará-la com outras inscrições no
quadro geral de uma língua dada. É nesse processo de comparação e

6
Ibid., p. 94.
99
de mútua correlação das enunciações de uma dada língua que os
métodos e as categorias do pensamento lingüístico se constituíram.
Uma língua morta apresenta-se claramente como uma lín-
gua estrangeira para o lingüista que a estuda. Por isso é impos-
sível afirmar que o sistema das categorias lingüísticas constitui
o produto da reflexão epistemológica do locutor de uma língua dada.
Não se trata de uma reflexão sobre a percepção que o locutor nativo
tem de sua própria língua; trata-se, antes, da reflexão de
uma consciência que luta para abrir caminho no mundo misterioso de
uma língua estrangeira.
A compreensão inevitavelmente passiva do filólogo-lingüista
projeta-se sobre a própria inscrição, sobre o objeto do estudo lingüís-
tico, como se essa inscrição tivesse sido concebida, desde a origem,
para ser apreendida dessa maneira, como se ela tivesse sido escrita
para os filólogos. Disso resulta uma teoria completamente falsa da
compreensão, que está na base não só dos métodos de interpretação
lingüística dos textos, mas também de toda a semasiologia européia.
Toda a sua posição em relação ao sentido e ao tema da palavra está
impregnada dessa falsa concepção da compreensão como ato passivo
– compreensão da palavra que exclui de antemão e por princípio
qualquer réplica ativa.
Veremos mais adiante que esse tipo de compreensão, que exclui de
antemão qualquer resposta, nada tem a ver com a compreensão da
linguagem. Essa última confunde-se com uma tomada de posição
ativa a propósito do que é dito e compreendido. A compreensão
passiva caracteriza-se justamente por uma nítida percepção do
componente normativo do signo lingüístico, isto é, pela percepção do
signo como objeto-sinal: correlativamente, o reconhecimento
predomina sobre a compreensão.
Assim é a língua morta-escrita-estrangeira que serve de base à
concepção da língua que emana da reflexão lingüística. A enunciação
isolada-fechada-monológica, desvinculada de seu contexto lingüístico
e real, à qual se opõe, não uma resposta potencial ativa, mas a
compreensão passiva do filólogo: este é o “dado” último e o ponto de
partida da reflexão lingüística.

Originada no processo de aquisição de uma língua estrangeira num


propósito de investigação científica, a reflexão lingüística serviu
também a outros propósitos, não mais de pesquisa, mas de ensino; não
se trata mais de decifrar uma língua, mas, uma vez essa língua
decifrada, de ensiná-la. As inscrições extraídas de documentos
100
heurísticos transformam-se em exemplos escolares, em clássicos da
língua.
O segundo problema fundamental da lingüística: criar o
instrumental indispensável para a aquisição da língua decifrada,
codificar essa língua no propósito de adaptá-la às necessidades da
transmissão escolar, marcou profundamente o pensamento lingüístico.
A fonética, a gramática, o léxico, essas três divisões do sistema da
língua, os três centros organizadores das categorias lingüísticas,
formaram-se em função das duas tarefas atribuídas à lingüística: uma
heurística e a outra pedagógica.
O que é um filólogo? Independentemente das diferenças pro-
fundas, de ordem cultural e histórica, que separam os sacer-
dotes hindus dos lingüistas contemporâneos, o filólogo, sempre e
em toda parte, é o adivinho que tenta decifrar o “mistério” de letras
e de palavras estrangeiras e o mestre que transmite aquilo que
decifrou ou herdou da tradição. Os sacerdotes foram sempre e em
toda parte os primeiros filólogos e os primeiros lingüistas. A história
não conhece nenhum povo cujas escrituras sagradas ou tradições não
tenham sido numa certa medida redigidas numa língua estrangeira e
incompreensível para o profano. Decifrar o mistério das escrituras
sagradas foi justamente a tarefa dos sacerdotes-lingüistas.
É também sobre esse terreno que, desde os tempos mais remotos, a
filosofia da linguagem se desenvolveu: o ensino védico da palavra, o
ensino dos logos dos antigos pensadores gregos e a filosofia bíblica
da palavra.
Para compreender esses filosofemas, convém não perder de vista o
fato de que eles são filosofemas de palavras estrangeiras.
Suponhamos um povo que só disponha de sua língua materna, um
povo para o qual a palavra só possa ser a da língua nativa e que não
esteja exposto à palavra estrangeira, críptica: esse povo jamais teria
criado tais filosofemas7. Trata-se de um fato surpreendente: desde a
mais remota antiguidade até nossos dias, a filosofia da palavra e a

7
Na religião védica, a palavra sagrada, no uso que dela faz o
iniciado, o sacerdote consagrado, torna-se soberano do Ser, dos
deuses e dos homens. O sacerdote onisciente define-se aqui
como aquele que dispõe da palavra – e é nisso que repousa seu
poder. A doutrina correspondente já se encontra no Rig Veda. O
filosofema do logos na Grécia antiga e a doutrina alexandrina do
logos são universalmente conhecidos.
101
reflexão lingüística fundamentam-se, especificamente, na apreensão
da palavra estrangeira e nos problemas que a língua estrangeira
apresenta para a consciência: a saber, o deciframento e a transmissão
do que foi decifrado. Na sua reflexão sobre a linguagem, o sacerdote
védico e o lingüista-filólogo contemporâneo deixam-se fascinar e
subjugar por um único e idêntico fenômeno: o da palavra estrangeira
críptica.
A palavra da língua nativa é percebida de modo total-
mente diverso; ela não é habitualmente percebida como uma pala-
vra carregada de todas aquelas categorias que ela engendrou
na reflexão lingüística e que engendrava na reflexão filosófico-
religiosa da antiguidade. A palavra nativa é percebida como um
irmão, como uma roupa familiar, ou melhor, como a atmosfera na
qual habitualmente se vive e se respira. Ela não apresenta nenhum
misté-
rio. Só pode apresentar algum, na boca de um estrangeiro, dupla-
mente estrangeiro por sua posição hierárquica e se trata, por exemplo,
de um chefe ou de um sacerdote; mas, nesse, a palavra muda
de natureza, transforma-se exteriormente ou desprende-se de seu uso
cotidiano (torna-se tabu na vida ordinária ou então arcaíza-se) – isto
se a palavra em questão já não for, desde a origem, uma palavra
estrangeira na boca de algum chefe-conquistador. É somente nessas
condições que a “Palavra” nasce: incipit philosophia, incipit
philologia.
O fato de que a lingüística e a filologia estejam voltadas para a
palavra estrangeira não é produto do acaso ou de uma escolha
arbitrária da parte dessas duas ciências. Não, essa orientação reflete o
imenso papel histórico que a palavra estrangeira desempenhou no
processo de formação de todas as civilizações da história. Esse papel
foi conferido à palavra estrangeira em todas as esferas da criação
ideológica, desde a estrutura sócio-política até o código de boas
maneiras. A palavra estrangeira foi, efetivamente, o veículo da
civilização, da cultura, da religião, da organização política (os
sumérios em relação aos semitas babilônicos; os jaféticos em relação
aos helenos; Roma, o cristianismo, em relação aos eslavos do leste,
etc.). Esse grandioso papel organizador da palavra estrangeira –
palavra que transporta consigo forças e estruturas estrangeiras e que
algumas vezes é encontrada por um jovem povo conquistador no
território invadido de uma cultura antiga e poderosa (cultura que,
então, escraviza, por assim dizer, do seu túmulo, a consciência
ideológica do povo invasor) – fez com que, na consciência histórica
dos povos, a palavra estrangeira se fundisse com a idéia de poder, de
102
força, de santidade, de verdade, e obrigou a reflexão lingüística a
voltar-se de maneira privilegiada para seu estudo.
E, no entanto, a filosofia da linguagem e a lingüística até hoje
ainda não se conscientizaram do imenso papel ideológico da palavra
estrangeira. A lingüística continua escravizada por ela. Representa,
por assim dizer, a última onda trazida pelas águas outrora criativas e
vivas da palavra estrangeira, a última peripécia de sua carreira
ditatorial e geradora de cultura.
Esta é a razão pela qual a lingüística, ela própria produto da
palavra estrangeira, está ainda longe de alcançar uma compreensão
correta do papel dessa palavra na história da língua e da consciência
lingüística. Pelo contrário, os estudos indo-europeus elaboraram
categorias de análise da história da língua que excluem
completamente qualquer apreciação correta desse papel. Entretanto,
esse papel, como vimos, é imenso.
A idéia do “cruzamento” de línguas (da interferência lingüís-
tica) como fator essencial da evolução das línguas foi avançada
com toda clareza por Nicolau Marr. Ele também reconheceu esse
fator como fundamental para a resolução do problema da origem da
linguagem:

“A interferência em geral, como fator que provoca a aparição de


formas e de tipos lingüísticos diferentes, é a fonte da formação de
novas espécies: isso é observado e apontado em todas as línguas
jaféticas e esse é um dos resultados mais bem sucedidos da lingüística
jafética (...) O fato é que não existe nenhuma língua onomatopaica
primitiva, comum a todos os povos e, como veremos, tal língua jamais
existiu nem poderia ter existido. A língua é uma criação da sociedade,
oriunda da intercomunicação entre os povos provocada por
imperativos econômicos; constitui um subproduto da comunicação
social, que implica sempre populações numerosas.”8

No seu artigo intitulado “Sobre a Origem da Linguagem”, ele diz o


seguinte:

“Em suma, a concepção que a assim chamada cultura nacional possui


dessa ou daquela língua, como língua nativa, de massa, de toda a
população, é anticientífica e irrealista. Por enquanto, a idéia de uma
língua nacional comum a todas as castas, a todas as classes é uma ficção.
Ou melhor: assim como a estratificação da sociedade durante as primeiras

8
N. Marr, Po etapam iafetítcheskoi teórii (As Etapas da Teoria Jafética), p. 268.
103
fases de desenvolvimento procede das tribos, isto é, na realidade, de
formações tribais – que nem por isso são simples – por via de
cruzamento, assim também as línguas tribais concretas, e a fortiori, as
línguas nacionais, representam tipos cruzados de línguas – cruzamentos
constituídos de elementos simples cuja associação está na base de
qualquer língua. A análise paleontológica da linguagem humana não vai
além da definição desses elementos tribais; mas a teoria jafética ajusta
esses elementos de maneira tão direta e decisiva que a questão da origem
da linguagem fica reduzida à questão do surgimento desses elementos,
que nada mais são do que as denominações tribais.”9

Os problemas da significação da palavra e da origem da lingua-


gem fogem do quadro de nossa pesquisa. Não examinaremos
aqui a teoria da palavra estrangeira dos antigos10 e limitar-nos-emos a
esboçar as categorias provenientes da palavra estrangeira que
serviram de base ao objetivismo abstrato; resumiremos assim o
exposto acima e completaremos essa exposição por uma série de
pontos essenciais:
1. Nas formas lingüísticas, o fator normativo e estável prevalece
sobre o caráter mutável.
2. O abstrato prevalece sobre o concreto.
3. O sistemático abstrato prevalece sobre a verdade histórica.
4. As formas dos elementos prevalecem sobre as do conjunto.
5. A reificação do elemento lingüístico isolado substitui a
dinâmica da fala.
6. Univocidade da palavra mais do que polisemia e plurivalência
vivas.
7. Representação da linguagem como um produto acabado, que se
transmite de geração a geração.
8. Incapacidade de compreender o processo gerativo interno da
língua.
Consideremos brevemente cada uma dessas particularidades da
reflexão dominada pela palavra estrangeira.
9
Ibid., p. 315-316.
10
Assim, a percepção que o homem pré-histórico tem do caráter
má-
gico da palavra é fortemente marcada pela palavra estran-
104
1. A primeira dispensa qualquer explicação. Já mostramos que a
compreensão que o indivíduo tem de sua língua não está orientada
para a identificação de elementos normativos do discurso, mas para a
apreciação de sua nova qualidade contextual. A construção de um
sistema de formas submetidas a uma norma é uma etapa indispensável
e importante no processo de deciframento e de transmissão de uma
língua estrangeira.
2. O segundo ponto fica também bastante claro à luz do que já
expusemos. A enunciação monológica fechada constitui, de fato, uma
abstração. A concretização da palavra só é possível com a inclusão
dessa palavra no contexto histórico real de sua realização primitiva.
Na enunciação monológica isolada, os fios que ligam a palavra a toda
a evolução histórica concreta foram cortados.
3. O formalismo e o sistematismo constituem os traços típicos
de toda reflexão que se exerce sobre um objeto acabado, por assim
dizer, estagnado. Essa última particularidade manifesta-se
de diferentes maneiras. De modo característico, é o pensamento alheio
que é habitualmente, se não exclusivamente, sistematizado.
–––––––––––––––––––––––––––
geira. Estamos pensando aqui na totalidade dos fenômenos com ela
relacionados.
Os criadores – iniciadores de novas correntes ideológicas – nunca
sentem necessidade de formalizar sistematicamente. A sistemati-
zação aparece quando nos sentimos sob a dominação de
um pensamento autoritário aceito como tal. É preciso que a época
de criatividade acabe; só aí é que então começa a sistematização-
formalização; é o trabalho dos herdeiros e dos epígonos domi-
nados pela palavra alheia que parou de ressoar. A orientação
da corrente em evolução nunca pode ser formalizada e sistemati-
zada. Esta é a razão pela qual o pensamento gramatical formalista
e sistematizante desenvolveu-se com toda plenitude e vigor no campo
das línguas mortas e, ainda, somente nos casos em que essas lín-
guas perderam, até certo ponto, sua influência e seu caráter autori-
tário sagrado. A reflexão lingüística de caráter formal-sistemático
foi inevitavelmente coagida a adotar em relação às línguas vivas
uma posição conservadora e acadêmica, isto é, a tratar a língua
viva como se fosse algo acabado, o que implica uma atitude hostil
em relação a todas as inovações lingüísticas. A reflexão lingüística
de caráter formal-sistemático é incompatível com uma aborda-
gem histórica e viva da língua. Do ponto de vista do sistema, a

105
história apresenta-se sempre como uma série de destruições
devidas ao acaso.
4. A lingüística, como vimos, está voltada para o estudo da
enunciação monológica isolada. Estudam-se documentos históricos
em relação aos quais o filólogo adota uma atitude de compreensão
passiva. Assim, todo o trabalho desenvolve-se nos limites de uma
dada enunciação. Os próprios limites da enunciação como uma
entidade total são pouco percebidos. O trabalho de pesquisa reduz-se
ao estudo das relações imanentes no interior do terreno da
enunciação. Todos os problemas daquilo que se poderia chamar de
“política externa” da enunciação ficam excluídos do campo da
observação. Conseqüentemente, todas as relações que ultrapassam os
limites da enunciação monológica constituem um todo que é ignorado
pela reflexão lingüística. Esta, na verdade, não ousa ir além dos
elementos constitutivos da enunciação monológica. Seu alcance
máximo é a frase complexa (o período). A estrutura da enunciação
completa é algo cujo estudo a lingüística deixa para outras
disciplinas: a retórica e a poética. Ela própria é incapaz de abordar as
formas de composição do todo. Eis porque, de maneira geral, não há
relação nem transição progressiva alguma entre as formas dos
elementos constituintes da enunciação e as formas do todo no qual ela
se insere. Existe um abismo entre a sintaxe e os problemas de
composição do discurso. Isso é totalmente inevitável, pois as formas que
constituem uma enunciação
completa só podem ser percebidas e compreendidas quando
relacionadas com outras enunciações completas pertencentes a um
único e mesmo domínio ideólogico. Assim, as formas de uma
enunciação literária, de uma obra literária, só podem ser apreendidas
na unicidade da vida literária, em conexão permanente com outras
espécies de formas literárias. Se encerrarmos a obra literária na
unicidade da língua como sistema, se a estudarmos como um
monumento lingüístico, destruiremos o acesso a suas formas como
formas da literatura como um todo. Existe um abismo entre as duas
abordagens: a que refere a obra ao sistema lingüístico e aquela que a
refere à unicidade concreta da vida literária. Esse abismo é
intransponível sobre a base do objetivismo abstrato.
5. A forma lingüística somente constitui um elemento
abstratamente isolado do todo dinâmico da fala, da enunciação. Bem
entendido, essa abstração revela-se legítima quando serve a
determinados objetivos lingüísticos. Entretanto, o objetivismo
abstrato dota a forma lingüística de uma substância própria, torna-a
um elemento realmente isolável, capaz de assumir uma existência
106
histórica separada, independente11. Isso é perfeitamente
compreensível já que se nega ao sistema, como um todo, o direito ao
desenvolvimento histórico. A enunciação como um todo não existe
para a lingüística. Conseqüentemente, apenas subsistem os elementos
do sistema, isto é, as formas lingüísticas isoladas. Somente elas
podem suportar o choque da história.
Assim, a história da língua torna-se a história das formas lingüísticas
separadas (fonética, morfologia, etc.) que se desenvolvem
independentemente do sistema como um todo e sem qualquer referência à
enunciação concreta12. A propósito da história da língua tal como a
concebe o objetivismo abstrato, Vossler, com razão, diz o seguinte:
“Pode-se comparar grosseiramente a história da língua, tal como a
concebe a gramática histórica, com a história do vestuário: essa última
não é um reflexo da concepção de mundo ou do gosto de uma época;
ela fornece-nos listas cronológicas e geograficamente ordenadas de
botões, alfinetes, chapéus e fitas. Em gramática histórica, esses botões
e essas cifras chamam-se, por exemplo, /e/ aberto e fechado, /t/ surdo
ou /d/ sonoro etc.”13

6. O sentido da palavra é totalmente determinado por seu contexto.


De fato, há tantas significações possíveis quantos contextos

11
Não se deve esquecer que o objetivismo abstrato em sua nova
versão reflete a posição da palavra estrangeira no estágio em que
ela já perdeu, numa larga medida, seu caráter autoritário e sua
força produtiva. Além disso, a especificidade da apreensão da
palavra estrangeira é atenuada no objetivismo abstrato devido ao
fato de que todas as categorias fundamentais do pensamento
dessa escola foram estendidas às línguas vivas e nativas. Com
efeito, a lingüística estuda as línguas vivas como se fossem
mortas e a língua nativa como se fosse estrangeira. Essa é a
razão pela qual o sistema construído pelo objetivismo abstrato
difere dos filosofemas da palavra estrangeira elaborados pelos
antigos.
12
A enunciação constitui apenas o meio neutro no qual se opera
a transformação das formas da língua.
13
Cf. o artigo de Vossler já citado “Gramática e História da
Língua”, p. 170.
107
possíveis14. No entanto, nem por isso a palavra deixa de ser una. Ela
não se desagrega em tantas palavras quantos forem os contextos nos
quais ela pode se inserir. Evidentemente, essa unicidade da palavra
não é somente assegurada pela unicidade de sua composição fonética;
há também uma unicidade inerente a todas as suas significações.
Como conciliar a polissemia da palavra com sua unicidade? É assim
que podemos formular, de modo grosseiro e elementar, o problema
fundamental da semântica. Esse problema só pode ser resolvido pela
dialética. Que procedimentos são empregados pelo objetivismo
abstrato? Ele salienta o fator de unicidade da palavra em detrimento
da pluralidade de suas significações. Essa pluralidade é percebida
como análoga a harmônicos ocasionais de um único e mesmo
significado estável e firme. A atitude do lingüista é diametralmente
oposta à atitude da viva compreensão que caracteriza os falantes
empenhados num processo de comunicação verbal. Quando o
filólogo-lingüista alinha os contextos possíveis de uma palavra dada,
ele acentua o fator de conformidade à norma: o que lhe importa é
extrair desses contextos dispostos lado a lado uma determinação
descontextualizada, para poder encerrar a palavra num dicionário.
Esse processo de isolamento da palavra, de estabilização de
sua significação fora de todo contexto, é reforçado ainda mais
pela justaposição de línguas, isto é, pela procura da palavra para-
lela numa língua diferente. A pesquisa lingüística constrói
a significação a partir do ponto de convergência de pelo menos duas
línguas. Esse trabalho do lingüista torna-se ainda mais complicado
pelo fato de que ele cria a ficção de um recorte único da realidade,
que se reflete na língua. É o objeto único, sempre idêntico a si
próprio,
que garante a unicidade do sentido. A ficção da palavra como
decalque da realidade ajuda ainda mais a congelar sua significação.
Sobre essa base, a associação dialética de unicidade e de pluralidade
torna-se impossível.
Mencionaremos ainda um outro erro grave de objetivismo
abstrato: para seus adeptos, os diferentes contextos em que aparece
uma palavra qualquer estão num único e mesmo plano. Esses
contextos dão origem a uma série de enunciações fechadas que têm
significado próprio e apontam todas para uma mesma direção. Na
realidade, as coisas são bem diferentes: os contextos possíveis de uma

14
Não nos preocuparemos, por enquanto, em distinguir a
significação e o tema. Essa distinção será o objeto do Cap. 7.
108
única e mesma palavra são freqüentemente opostos. As réplicas de um
diálogo são um exemplo clássico disso. Ali, uma única e mesma
palavra pode figurar em dois contextos mutuamente conflitantes. É
evidente que o diálogo constitui um caso particularmente evidente e
ostensivo de contextos diversamente orientados. Pode-se, no entanto,
dizer que toda enunciação efetiva, seja qual for a sua forma, contém
sempre, com maior ou menor nitidez, a indicação de um acordo ou de
um desacordo com alguma coisa. Os contextos não estão
simplesmente justapostos, como se fossem indiferentes uns aos
outros; encontram-se numa situação de interação e de conflito tenso e
ininterrupto. A mudança do acento avaliativo da palavra em função do
contexto é totalmente ignorada pela lingüística e não encontra
nenhuma repercussão na sua doutrina da unicidade da significação.
Embora os acentos avaliativos sejam privados de substância, é a
pluralidade de acentos que dá vida à palavra. O problema de
pluriacentuação deve ser estreitamente relacionado com o da
polissemia. Só assim é que ambos os problemas poderão ser
resolvidos. Ora, é impossível estabelecer essa vinculação a partir dos
princípios do objetivismo abstrato. A lingüística se desembaraça dos
acentos avaliativos ao mesmo tempo que da enunciação, da fala15.
7. Para o objetivismo abstrato, a língua, como produto acabado,
transmite-se de geração a geração. Evidentemente, é de um ângulo
metafórico que os adeptos da segunda orientação entendem essa
transmissão da língua como herança de um objeto: mas essa
comparação não constitui para eles apenas uma metáfora.
Configurando o sistema da língua e tratando as línguas vivas como se
fossem mortas e estrangeiras, o objetivismo abstrato coloca a língua
fora do fluxo da comunicação verbal. Esse fluxo avança
continuamente, enquanto a língua, como uma bola, pula de geração
para geração.
Entretanto, a língua é inseparável desse fluxo e avança junta-
mente com ele. Na verdade, a língua não se transmite; ela
dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo.
Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada;
eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, so-
mente quando mergulham nessa corrente é que sua cons-
ciência desperta e começa a operar. É apenas no processo de aqui-
sição de uma língua estrangeira que a consciência já consti-

15
As posições aqui expressas serão fundamentadas no Capítulo
7.
109
tuída – graças à língua materna – se confronta com uma língua
toda pronta, que só lhe resta assimilar. Os sujeitos não “adquirem”
sua língua materna; é nela e por meio dela que ocorre o primeiro
despertar da consciência16.
8. O objetivismo abstrato, como vimos, não sabe ligar a exis-
tência da língua na sua abstrata dimensão sincrônica com
sua evolução. Para a consciência do locutor, a língua existe
como sistema de formas sujeitas a normas; e só para o historiador
é que ela existe como processo evolutivo. O que exclui a possibili-
dade de associação ativa da consciência do locutor com o pro-
cesso de evolução histórica. Torna-se, assim, impossível a con-
junção dialética entre necessidade e liberdade e até, por assim dizer,
a responsabilidade lingüística. Assenta-se, aqui, o reino de
uma concepção puramente mecanicista da necessidade no domínio
da língua. Não há dúvida de que esse traço do objetivismo
abstrato está ligado à irresponsável fixação dessa escola nas
línguas mortas.
Só nos resta tirar as conclusões de nossa análise crítica do
objetivismo abstrato. O problema que colocamos no começo do
quarto capítulo, o da realidade dos fenômenos lingüísticos como
objeto de estudo específico e único, é solucionado de maneira
incorreta. A língua, como sistema de formas que remetem a uma
norma, não passa de uma abstração, que só pode ser demonstrada no
plano teórico e prático do ponto de vista do deciframento de uma
língua morta e do seu ensino. Esse sistema não pode servir de base
para a compreensão e explicação dos fatos lingüísticos enquanto fatos
vivos e em evolução. Ao contrário, ele nos distancia da realidade
evolutiva e viva da língua e de suas funções sociais, embora os
adeptos do objetivismo abstrato tenham pretensões quanto à
significação sociológica de seus pontos de vista. Na base dos
fundamentos teóricos do objetivismo abstrato,
estão as premissas de uma visão do mundo racionalista e mecanicista,
as menos favoráveis a uma concepção correta da história; ora, a
língua é um fenômeno puramente histórico.
Seriam os princípios fundamentais da primeira orientação, a do
subjetivismo individualista, os corretos? Não teria o subjetivismo

16
O processo pelo qual a criança assimila sua língua materna é
um processo de integração progressiva da criança na
comunicação verbal. À medida que essa integração se realiza,
sua consciência é formada e adquire seu conteúdo.
110
individualista conseguido tocar de perto a verdadeira natureza da
linguagem? Ou a verdade estaria no meio-termo, entre as teses do
subjetivismo individualista e as antíteses do objetivismo abstrato,
constituindo um compromisso entre as duas orientações?
Acreditamos que aqui como em qualquer lugar a verdade não se
encontra exatamente no meio, num compromisso entre a tese e a
antítese; a verdade encontra-se além, mais longe, manifesta uma
idêntica recusa tanto da tese como da antítese, e constitui uma síntese
dialética. As teses da primeira orientação, como veremos no capítulo
seguinte, não resistem à crítica mais do que as da segunda.
Queremos, agora, chamar a atenção para o seguinte: ao considerar
que só o sistema lingüístico pode dar conta dos fatos da língua, o
objetivo abstrato rejeita a enunciação, o ato de fala, como sendo
individual. Como dissemos, é esse o proton pseudos, a “primeira
mentira”, do objetivismo abstrato. O subjetivismo individualista, ao
contrário, só leva em consideração a fala. Mas ele também considera
o ato de fala como individual e é por isso que tenta explicá-lo a partir
das condições da vida psíquica individual do sujeito falante. E esse é
o seu proton pseudos.
Na realidade, o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, a
enunciação, não pode de forma alguma ser considerado como
individual no sentido estrito do termo; não pode ser explicado a partir
das condições psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação é de
natureza social. Cabe-nos firmar essa tese no próximo capítulo.

111
CAPÍTULO 6
A INTERAÇÃO VERBAL

A segunda orientação do pensamento filosófico-lingüístico liga-se,


como vimos, ao Racionalismo e ao Neoclassicismo. A primeira
orientação – a do subjetivismo individualista – está ligada ao
Romantismo. O Romantismo foi, em grande medida, uma reação
contra a palavra estrangeira e o domínio que ela exerceu sobre as
categorias do pensamento. Mais particularmente, o Romantismo foi
uma reação contra a última reincidência do poder cultural da palavra
estrangeira: as épocas do Renascimento e do Classicismo. Os
românticos foram os primeiros filólogos da língua materna, os
primeiros a tentar reorganizar totalmente a reflexão lingüística sobre a
base da atividade mental em língua materna, considerada como meio
de desenvolvimento da consciência e do pensamento. É verdade,
contudo, que os românticos permaneceram filólogos no sentido estrito
do termo. Estava além de suas forças, com certeza, reestruturar uma
maneira de pensar sobre a língua que se formara e mantivera durante
séculos. Não obstante, foram introduzidas naquela reflexão novas
categorias, e elas é que deram à primeira orientação suas
características específicas. É sintomático que mesmo os
representantes recentes do subjetivismo individualista sejam
especialistas em línguas modernas, principalmente românicas
(Vossler, Leo Spitzer, Lorck e outros).
Entretanto, o subjetivismo individualista apóia-se também sobre a
enunciação monológica como ponto de partida da sua reflexão sobre a
língua. É verdade que seus representantes não abordaram a
enunciação monológica do ponto de vista do filólogo de compreensão
passiva, mas sim de dentro, do ponto de vista da pessoa que fala,
exprimindo-se.
Como se apresenta a enunciação monológica do ponto de vista
do subjetivismo individualista? Vimos que ela se apresenta como um
ato puramente individual, como uma expressão da consciência
112
individual, de seus desejos, suas intenções, seus impulsos criadores,
seus gostos, etc. A categoria da expressão é aquela categoria geral, de
nível superior, que engloba o ato de fala, a enunciação.
Mas o que é afinal a expressão? Sua mais simples e mais grosseira
definição é: tudo aquilo que, tendo se formado e determinado de
alguma maneira no psiquismo do indivíduo, exterioriza-se
objetivamente para outrem com a ajuda de algum código de signos
exteriores.
A expressão comporta, portanto, duas facetas: o conteúdo
(interior) e sua objetivação exterior para outrem (ou também para si
mesmo). Toda teoria da expressão, por mais refinadas e complexas
que sejam as formas que ela pode assumir, deve levar em conta,
inevitavelmente, essas duas facetas: todo o ato expressivo move-se
entre elas. Conseqüentemente, a teoria da expressão deve admitir que
o conteúdo a exprimir pode constituir-se fora da expressão, que ele
começa a existir sob uma certa forma, para passar em seguida a uma
outra. Pois, se não fosse assim, se o conteúdo a exprimir existisse
desde a origem sob a forma de expressão, se houvesse entre o
conteúdo e a expressão uma passagem quantitativa (no sentido de um
esclarecimento, de uma diferenciação, etc.), então toda a teoria da
expressão cairia por terra. A teoria da expressão supõe
inevitavelmente um certo dualismo entre o que é interior e o que é
exterior, com primazia explícita do conteúdo interior, já que todo ato
de objetivação (expressão) procede do interior para o exterior. Suas
fontes são interiores. Não é por acaso que a teoria do subjetivismo
individualista, como todas as teorias da expressão, só se pôde
desenvolver sobre um terreno idealista e espiritualista. Tudo que é
essencial é interior, o que é exterior só se torna essencial a título de
receptáculo do conteúdo interior, de meio de expressão do espírito.
É verdade que, exteriorizando-se, o conteúdo interior muda de
aspecto, pois é obrigado a apropriar-se do material exterior, que
dispõe de suas próprias regras, estranhas ao pensamento interior. No
curso do processo de dominar o material, de submetê-lo, de
transformá-lo em meio obediente, da expressão, o conteúdo da
atividade verbal a exprimir muda de natureza e é forçado a um certo
compromisso. Por isso o idealismo, que deu origem a todas as teorias
da expressão, engendrou igualmente teorias que rejeitam
completamente a expressão, considerada como deformação da pureza

113
do pensamento interior1. Em todo caso, todas as forças
criadoras e organizadoras da expressão estão no interior. O exterior
constitui apenas o material passivo do que está no interior.
Basicamente, a expressão se constrói no interior; sua exteriorização
não é senão a sua tradução. Disso resulta que a compreensão, o
comentário e a explicação do fato ideológico devem dirigir-se para o
interior, isto é, fazer o caminho inverso do da expressão: procedendo
da objetivação exterior, a explicação deve infiltrar-se até as suas
raízes formadoras internas. Essa é a concepção da expressão no
subjetivismo individualista.
A teoria da expressão que serve de fundamento à primeira
orientação do pensamento filosófico-lingüístico é radicalmente falsa.
O conteúdo a exprimir e sua objetivação externa são criados, como
vimos, a partir de um único e mesmo material, pois não existe
atividade mental sem expressão semiótica. Conseqüentemente, é
preciso eliminar de saída o princípio de uma distinção qualitativa
entre o conteúdo interior e a expressão exterior. Além disso, o centro
organizador e formador não se situa no interior, mas no exterior. Não
é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a
expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina
sua orientação.
Qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação considerado,
ele será determinado pelas condições reais da enunciação em questão,
isto é, antes de tudo pela situação social mais imediata.
Com efeito, a enunciação é o produto da interação de dois
indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um
interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio
do grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirige-se a um
interlocutor: ela é função da pessoa desse interlocutor: variará se se
tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for
inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor
por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.). Não
pode haver interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum com
tal interlocutor, nem no sentido próprio nem no figurado. Se algumas
vezes temos a pretensão de pensar e de exprimir-nos urbi et orbi, na
realidade é claro que vemos “a cidade e o mundo” através do prisma

1
“O pensamento expresso pela palavra é uma mentira”
(Tiutchev). “Oh, se pelo menos alguém pudesse exprimir a alma
sem palavras!” (Fiet). Essas duas declarações são típicas do
romantismo idealista.
114
do meio social concreto que nos engloba. Na maior parte dos casos, é
preciso supor além disso um certo horizonte social definido e
estabelecido que determina a criação ideológica do grupo social e da
época a que pertencemos, um horizonte contemporâneo da nossa
literatura, da nossa ciência, da nossa moral, do nosso direito.
O mundo interior e a reflexão de cada indivíduo têm um
auditório social próprio bem estabelecido, em cuja atmosfera se
constroem suas deduções interiores, suas motivações, apreciações,
etc. Quanto mais aculturado for o indivíduo, mais o auditório em
questão se aproximará do auditório médio da criação ideológica, mas
em todo caso o interlocutor ideal não pode ultrapassar as fronteiras de
uma classe e de uma época bem definidas.
Essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma
importância muito grande. Na realidade, toda palavra comporta duas
faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém,
como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente
o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de
expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me
em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à
coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e
os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra
apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do
locutor e do interlocutor.
Mas como se define o locutor? Com efeito, se a palavra não
lhe pertence totalmente, uma vez que ela se situa numa espécie de
zona fronteiriça, cabe-lhe contudo uma boa metade. Em um
determinado momento, o locutor é incontestavelmente o único dono
da palavra, que é então sua propriedade inalienável. É o instante do
ato fisiológico de materialização da palavra. Mas a categoria da
propriedade não é aplicável a esse ato, na medida em que ele é
puramente fisiológico.
Se, ao contrário, considerarmos, não o ato físico de materialização
do som, mas a materialização da palavra como signo, então a questão
da propriedade tornar-se-á bem mais complexa. Deixando de lado o
fato de que a palavra, como signo, é extraído pelo locutor de um
estoque social de signos disponíveis, a própria realização deste signo
social na enunciação concreta é inteiramente determinada pelas
relações sociais. A individualização estilística da enunciação de que
falam os vosslerianos, constitui justamente este reflexo da inter-
relação social, em cujo contexto se constrói uma determinada
enunciação. A situação social mais imediata e o meio social mais
115
amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu
próprio interior, a estrutura da enunciação.
Na verdade, qualquer que seja a enunciação considerada, mesmo
que não se trate de uma informação factual (a comunicação, no
sentido estrito), mas da expressão verbal de uma necessidade
qualquer, por exemplo a fome, é certo que ela, na sua totalidade, é
socialmente dirigida. Antes de mais nada, ela é determinada da
maneira mais imediata pelos participantes do ato de fala, explícitos
ou implícitos, em ligação com uma situação bem precisa; a situação
dá forma à enunciação, impondo-lhe esta ressonância em vez daquela,
por exemplo a exigência ou a solicitação, a afirmação de direitos ou a
prece pedindo graça, um estilo rebuscado ou simples, a segurança ou
a timidez, etc. A situação e os participantes mais imediatos
determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciação. Os estratos
mais profundos da sua estrutura são determinados pelas pressões
sociais mais substanciais e duráveis a que está submetido o locutor.
Se tomamos a enunciação no estágio inicial de seu
desenvolvimento, “na alma”, não se mudará a essência das coisas, já
que a estrutura da atividade mental é tão social como a da sua
objetivação exterior. O grau de consciência, de clareza, de
acabamento formal da atividade mental é diretamente proporcional ao
seu grau de orientação social.
Na verdade, a simples tomada de consciência, mesmo confusa, de
uma sensação qualquer, digamos a fome, pode dispensar uma
expressão exterior mas não dispensa uma expressão ideológica; tanto
isso é verdade que toda tomada de consciência implica discurso
interior, entoação interior e estilo interior, ainda que rudimentares. A
tomada de consciência da fome pode ser acompanhada de deprecação,
de raiva, de lamento ou de indignação. Enumeramos aqui apenas os
matizes mais grosseiros e mais marcados da entoação interior; na
realidade, a atividade mental pode ser marcada por entoações sutis e
complexas. A expressão exterior, na maior parte dos casos, apenas
prolonga e esclarece a orientação tomada pelo discurso interior, e as
entoações que ele contém.
De que maneira será marcada a sensação interior da fome?
Isso depende ao mesmo tempo da situação imediata em que se situa
a percepção, e da situação social da pessoa faminta, em geral.
Com efeito, essas são as condições que determinam o contexto
apreciativo, o ângulo social em que será recebida a sensação da
fome. O contexto social imediato determina quais serão os ouvintes
possíveis, amigos ou inimigos para os quais serão orientadas
a consciência e a sensação da fome: as imprecações serão lan-
116
çadas contra a natureza ingrata, contra si mesmo, a sociedade,
um grupo social determinado, um certo indivíduo? Claro, é preciso
distinguir graus na consciência, na clareza e na diferenciação
dessa orientação social da experiência mental. Mas é certo que sem
uma orientação social de caráter apreciativo não há atividade mental.
Mesmo os gritos de um recém-nascido são orientados para a mãe.
Pode-se descrever a fome, acrescentando-se um apelo à revolta,
à agitação; nesse caso a atividade mental será estruturada em
função de um apelo potencial, a fim de provocar a agitação; a tomada
de consciência pode tomar a forma do protesto, etc.
Na relação com um ouvinte potencial (e algumas vezes
distintamente percebido), podem-se distinguir dois pólos, dois limites,
dentro dos quais se realiza a tomada de consciência e a elaboração
ideológica. A atividade mental oscila de um a outro. Por convenção,
chamemos esses dois pólos atividade mental do eu e atividade mental
do nós.
Na verdade, a atividade mental do eu tende para a auto-eliminação;
à medida que se aproxima do seu limite, perde a sua modelagem
ideológica e conseqüentemente seu grau de consciência,
aproximando-se assim da reação fisiológica do animal. A atividade
mental dilapida então o seu potencial, seu esboço de orientação social
e
perde portanto sua representação verbal. Atividades mentais isoladas,
ou mesmo seqüências inteiras podem tender para o pólo do
eu, prejudicando assim sua clareza e sua modelagem ideológica,
e dando provas de que a consciência foi incapaz de enraizar-se
socialmente2.
A atividade mental do nós não é uma atividade de caráter
primitivo, gregário: é uma atividade diferenciada. Melhor ainda, a
diferenciação ideológica, o crescimento do grau de consciência são
diretamente proporcionais à firmeza e à estabilidade da orientação
social. Quanto mais forte, mais bem organizada e diferenciada for a
coletividade no interior da qual o indivíduo se orienta, mais distinto e
complexo será o seu mundo interior.
A atividade mental do nós permite diferentes graus e diferentes
tipos de modelagem ideológica.

2
Sobre a possibilidade de uma série de experiências sexuais
humanas escaparem ao contexto social, com perda concomitante
da verbalização da experiência, ver Freidizm, Op. cit. p. 135-
136.
117
Suponhamos que o homem faminto tome consciência da sua fome
no meio de uma multidão heteróclita de pessoas igualmente famintas,
cuja situação se deve ao acaso (desafortunados, mendigos, etc.). A
atividade mental desse indivíduo isolado, sem classe, terá uma
coloração específica e tenderá para formas ideológicas determinadas,
cuja gama pode ser bastante extensa: a resignação, a vergonha, o
sentimento de dependência e muitas outras tonalidades tingirão a sua
atividade mental. As formas ideológicas correspondentes, isto é, o
resultado dessa atividade mental, serão, conforme o caso, ou o
protesto individualista do mendigo, ou a resignação mística do
penitente.
Suponhamos agora que o faminto pertença a uma coletividade
onde a fome não se deve ao acaso, onde ela é uma realidade coletiva,
mas onde entretanto não existe vínculo material sólido entre os
famintos, de forma que cada um deles passa fome isoladamente. É
essa, freqüentemente, a situação dos camponeses. A coletividade (o
“mir”*) sente a fome, mas os seus membros estão materialmente
isolados, não estão ligados por uma economia comum, cada um
suporta a fome no pequeno mundo fechado de sua própria exploração.
Em tais condições, predominará uma consciência da fome feita de
resignação, mas desprovida de sentimento de vergonha ou de
humilhação: cada um diz a si próprio: “Já que todos sofrem em
silêncio, eu também o farei”. É sobre um tal terreno que se
desenvolvem os sistemas filosóficos e religiosos fundados sobre o
fatalismo e a resignação na adversidade (os primeiros cristãos, os
tolstoianos, etc.).
De maneira completamente diferente será experimentada a fome
pelos membros de uma coletividade unida por vínculos materiais
objetivos (batalhão de soldados, operários reunidos no interior da
usina, trabalhadores numa grande propriedade agrícola de tipo
capitalista, enfim toda uma classe social desde que nela tenha
amadurecido a noção de “classe para si”). Nesse caso, dominarão na
atividade mental as tonalidades do protesto ativo e seguro de si
mesmo; não haverá lugar para uma mentalidade resignada e submissa.
É aí que se encontra o terreno mais favorável para um desenvolvimento
nítido e ideologicamente bem formado da atividade mental3.

*
Organismo de propriedade coletiva rural antes da revolução de
1917. (N.d.T.fr.)
3
Dados interessantes sobre a expressão da fome podem ser
encontrados nas obras de um célebre lingüista contemporâneo,
118
Todos os tipos de atividade mental que examinamos, com suas
inflexões principais, geram modelos e formas de enunciações
correspondentes. Em todos os casos, a situação social determina que
modelo, que metáfora, que forma de enunciação servirá para exprimir
a fome a partir das direções inflexivas da experiência.
É preciso classificar à parte a atividade mental para si. Ela
distingue-se claramente da atividade mental do eu que definimos
acima. A atividade mental individualista é perfeitamente diferencia-
da e definida. O individualismo é uma forma ideológica particular da
atividade mental do nós da classe burguesa (encontra-se um tipo
análogo na classe feudal aristocrática). A atividade mental de tipo
individualista caracteriza-se por uma orientação social sólida e
afirmada. Não é do interior, do mais profundo da personalidade que se
tira a confiança individualista em si, a consciência do próprio valor,
mas do exterior; trata-se da explicitação ideológica do meu status
social, da defesa pela lei e por toda a estrutura da sociedade de um
bastião objetivo, a minha posição econômica individual. A
personalidade individual é tão socialmente estruturada como a
atividade mental de tipo coletivista: a explicitação ideológica de uma
situação econômica complexa e estável projeta-se na alma individual.
Mas a contradição interna que está inscrita nesse tipo de atividade
mental do nós, assim como na estrutura social correspondente, cedo
ou tarde destruirá sua modelagem ideológica.
Encontra-se uma estrutura análoga na atividade mental para si
isolada (“a capacidade e a força de sentir-se no seu direito enquanto
indivíduo isolado”, atitude cultivada em particular por Romain
Rolland, e em parte igualmente por Tolstói). O orgulho que esta
posição solitária implica apóia-se igualmente sobre o “nós”. Essa
variante da atividade mental do nós é característica da intelligentsia
ocidental contemporânea. As palavras de Tolstói, afirmando que
existe um pensamento para si e um pensamento para o público,
implicam uma confrontação entre duas concepções de público. Esse
“para si” tolstoiano, na realidade, apenas indica uma concepção social

membro da escola de Vossler, Leo Spitzer: Italienische


Kriegsgefangenenbriefe e Die Umschreibungen des Begriffes
Hunger. O problema fundamental exposto é a adaptação flexível
da palavra e da representação às condições de uma situação
excepcional. Falta ao autor, contudo, uma abordagem
sociológica genuína.
119
do ouvinte que lhe é própria. O pensamento não existe fora de sua
expressão potencial e conseqüentemente fora da orientação social
dessa expressão e o próprio pensamento.
Assim, a personalidade que se exprime, apreendida, por
assim dizer, do interior, revela-se um produto total da inter-relação
social. A atividade mental do sujeito constitui, da mesma forma que a
expressão exterior, um território social. Em conseqüência, todo o
itinerário que leva da atividade mental (o “conteúdo a exprimir”) à
sua objetivação externa (a “enunciação”) situa-se completamente em
território social. Quando a atividade mental se realiza sob a forma de
uma enunciação, a orientação social à qual ela se submete adquire
maior complexidade graças à exigência de adaptação ao contexto
social imediato do ato de fala, e, acima de tudo, aos interlocutores
concretos.
Tudo isso lança uma nova luz sobre o problema da consciência
e da ideologia. Fora de sua objetivação, de sua realização num
material determinado (o gesto, a palavra, o grito), a consciência
é uma ficção. Não é senão uma construção ideológica incorreta,
criada sem considerar os dados concretos da expressão social. Mas,
enquanto expressão material estruturada (através da palavra, do signo,
do desenho, da pintura, do som musical, etc.), a consciência constitui
um fato objetivo e uma força social imensa. É preciso notar que essa
consciência não se situa acima do ser e não pode determinar a sua
constituição, uma vez que ela é, ela mesma, uma parte do ser, uma das
suas forças; e é por isso que a consciência tem uma existência real e
representa um papel na arena do ser. Enquanto a consciência
permanece fechada na cabeça do ser consciente, com uma expressão
embrionária sob a forma de discurso interior, o seu estado é apenas de
esboço, o seu raio de ação ainda limitado. Mas assim que passou por
todas as etapas da objetivação social, que entrou no poderoso sistema
da ciência, da arte, da moral e do direito, a consciência torna-se uma
força real, capaz mesmo de exercer em retorno uma ação sobre as
bases econômicas da vida social. Certo, essa força materializa-se em
organizações sociais determinadas, reforça-se por uma expressão
ideológica sólida (a ciência, a arte, etc.) mas, mesmo sob a forma
original confusa do pensamento que acaba de nascer, pode-se já falar
de fato social e não de ato individual interior.
A atividade mental tende desde a origem para uma expres-
são externa plenamente realizada. Mas pode acontecer também que
ela seja bloqueada, freada: nesse último caso, a atividade
mental desemboca numa expressão inibida (não nos ocuparemos
aqui do problema muito complexo das causas e condições
120
do bloqueio). Uma vez materializada, a expressão exerce um
efeito reversivo sobre a atividade mental: ela põe-se então a estru-
turar a vida interior, a dar-lhe uma expressão ainda mais definida
e mais estável.
Essa ação reversiva da expressão bem formada sobre a ativi-
dade mental (isto é, a expressão interior) tem uma importância
enorme, que deve ser sempre considerada. Pode-se dizer que não
é tanto a expressão que se adapta ao nosso mundo interior, mas
o nosso mundo interior que se adapta às possibilidades de
nossa expressão, aos seus caminhos e orientações possíveis.
Chamaremos a totalidade da atividade mental centrada sobre a vida
cotidiana, assim como a expressão que a ela se liga, ideologia do
cotidiano, para distingui-la dos sistemas ideológicos constituídos, tais
como a arte, a moral, o direito, etc. A ideologia do cotidiano constitui
o domínio da palavra interior e exterior desordenada e não fixada num
sistema, que acompanha cada um dos nossos atos ou gestos e cada
um dos nossos estados de consciência. Considerando a natureza
sociológica da estrutura da expressão e da atividade mental, podemos
dizer que a ideologia do cotidiano corresponde, no essencial, àquilo
que se designa, na literatura marxista, sob o nome de “psicologia
social”. Nesse contexto particular, preferimos evitar o termo
“psicologia”, pois importa-nos apenas o conteúdo do psiquismo e da
consciência; ora, esse conteúdo é totalmente ideológico, sendo
determinado por fatores não individuais e orgânicos (biológicos,
fisiológicos), mas puramente sociológicos. O fator individual-
orgânico não é pertinente para a compreensão das forças criadoras e
vivas essenciais do conteúdo da consciência.
Os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência,
da arte e da religião cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano,
exercem por sua vez sobre esta, em retorno, uma forte influência e
dão assim normalmente o tom a essa ideologia. Mas, ao mesmo
tempo, esses produtos ideológicos constituídos conservam
constantemente um elo orgânico vivo com a ideologia do cotidiano;
alimentam-se de sua seiva, pois, fora dela, morrem, assim como
morrem, por exemplo, a obra literária acabada ou a idéia cognitiva se
não são submetidas a uma avaliação crítica viva. Ora, essa avaliação
crítica, que é a única razão de ser de toda produção ideológica, opera-
se na língua da ideologia do cotidiano. Esta coloca a obra numa
situação social determinada. A obra estabelece assim vínculos com o
conteúdo total da consciência dos indivíduos receptores e só é
apreendida no contexto dessa consciência que lhe é contemporânea. A
obra é interpretada no espírito desse conteúdo da consciência (dos
121
indivíduos receptores) e recebe dela uma nova luz. É nisso que reside
a vida da obra ideológica. Em cada época de sua existência histórica,
a obra é levada a estabelecer contatos estreitos com a ideologia
cambiante do cotidiano, a impregnar-se dela, a alimentar-se da seiva
nova secretada. É apenas na medida em que a obra é capaz de
estabelecer um tal vínculo orgânico e ininterrupto com a ideologia do
cotidiano de uma determinada época, que ela é capaz de viver nesta
época (é claro, nos limites de um grupo social determinado). Rompido
esse vínculo, ela cessa de existir, pois deixa de ser apreendida como
ideologicamente significante.
Na ideologia do cotidiano, é preciso distinguir vários níveis,
determinados pela escala social que serve para medir a atividade
mental e a expressão, e pelas forças sociais em relação às quais eles
devem diretamente orientar-se.
O horizonte no qual esta ou aquela atividade mental ou expressão
se materializa pode ser, como vimos, mais ou menos amplo. O
pequeno mundo da atividade mental pode ser limitado e confuso,
sua orientação social pode ser acidental, pouco durável e pertinente
apenas no quadro da reunião fortuita e por tempo limitado de algumas
pessoas. É claro, mesmo essas atividades mentais ocasionais têm uma
coloração sociológica e ideológica, mas situam-se já na fronteira do
normal e do patológico. A atividade mental fortuita permanece
isolada da vida espiritual dos indivíduos. Ela não é capaz de
consolidar-se e de encontrar uma expressão completa e diferenciada.
Pois, se ela não é dotada de um auditório social determinado, sobre
que bases poderia diferenciar-se e tomar uma forma acabada? A
fixação de uma atividade mental como essa é ainda mais impossível
por escrito, e a fortiori sob forma impressa. A atividade mental
nascida de uma situação fortuita não tem a menor chance de adquirir
uma força e uma ação duráveis no plano social.
Esse tipo de atividade mental constitui o nível inferior, aquele que
desliza e muda mais rapidamente na ideologia do cotidiano.
Conseqüentemente, colocaremos nesse nível todas as atividades
mentais e pensamentos confusos e informes que se acendem e apagam
na nossa alma, assim como as palavras fortuitas ou inúteis. Estamos
diante de abortos da orientação social, incapazes de viver,
comparáveis a romances sem heróis ou a representações sem
espectadores. São privados de toda lógica ou unicidade. É
extremamente difícil perceber nesses farrapos ideológicos leis
sociológicas. No nível inferior da ideologia do cotidiano, só se
apreendem regras estatísticas: é apenas a partir de uma grande massa
de produtos dessa ordem que se podem descobrir as grandes linhas de
122
uma ordem sócio-econômica. Claro, na prática, é impossível descobrir
as premissas sócio-econômicas de uma atividade mental ou de uma
expressão isoladas.
Os níveis superiores da ideologia do cotidiano que estão
em contato direto com os sistemas ideológicos, são substanciais e
têm um caráter de responsabilidade e de criatividade. São mais mó-
veis e sensíveis que as ideologias constituídas. São capazes
de repercutir as mudanças da infra-estrutura sócio-econômica
mais rápida e mais distintamente. Aí justamente é que se acumu-
lam as energias criadoras com cujo auxílio se efetuam as revisões
parciais ou totais dos sistemas ideológicos. Logo que aparecem, as
novas forças sociais encontram sua primeira expressão e sua
elaboração ideológica nesses níveis superiores da ideologia do
cotidiano, antes que consigam invadir a arena da ideologia oficial
constituída. É claro, no decorrer da luta, no curso do processo de
infiltração progressiva nas instituições ideológicas (a imprensa, a
literatura, a ciência), essas novas correntes da ideologia do
cotidiano, por mais revolucionárias que sejam, submetem-se à
influência dos sistemas ideológicos estabelecidos, e assimilam
parcialmente as formas, práticas e abordagens ideológicas neles
acumulados.
O que se chama habitualmente “individualidade criadora” constitui
a expressão do núcleo central sólido e durável da orientação social do
indivíduo. Aí situaremos principalmente os estratos superiores, mais
bem formados, do discurso interior (ideologia do cotidiano), onde
cada representação e inflexão passou pelo estágio da expressão, de
alguma forma sofreu a prova da expressão externa. Aí situaremos
igualmente as palavras, as entoações e os movimentos interiores que
passaram com sucesso pela prova da expressão externa numa escala
social mais ou menos ampla e adquiriram, por assim dizer, um grande
polimento e lustro social, pelo efeito das reações e réplicas, pela
rejeição ou apoio do auditório social.
Certamente, nos níveis inferiores da ideologia do cotidiano, o fator
biográfico e biológico tem um papel importante, mas à medida que a
enunciação se integra no sistema ideológico, decresce a importância
desse fator. Conseqüentemente, se as explicações de caráter biológico
e biográfico têm algum valor nos níveis superiores, o seu papel é
extremamente modesto. Aqui o método sociológico objetivo tem total
primazia.
Assim, a teoria da expressão subjacente ao subjeti-
vismo individualista deve ser completamente rejeitada. O
centro organizador de toda enunciação, de toda expressão, não
123
é interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve
o indivíduo. Só o grito inarticulado de um animal procede do inte-
rior, do aparelho fisiológico do indivíduo isolado. É uma
reação fisiológica pura e não ideologicamente marcada.
Pelo contrário, a enunciação humana mais primitiva, ainda
que realizada por um organismo individual, é, do ponto de vista do
seu conteúdo, de sua significação, organizada fora do indivíduo
pelas condições extra-orgânicas do meio social. A enun-
ciação enquanto tal é um puro produto da interação social, quer
se trate de um ato de fala determinado pela situação imediata ou
pelo contexto mais amplo que constitui o conjunto das condi-
ções de vida de uma determinada comunidade lingüística.
A enunciação individual (a “parole”), contrariamente à teoria
do objetivismo abstrato, não é de maneira alguma um fato indivi-
dual que, pela sua individualidade, não se presta à análise socio-
lógica. Com efeito, se assim fosse, nem a soma desses atos
individuais, nem as características abstratas comuns a todos esses
atos individuais (as “formas normativamente idênticas”) poderiam
gerar um produto social.
O subjetivismo individualista tem razão em sustentar que as
enunciações isoladas constituem a substância real da língua e que a
elas está reservada a função criativa na língua. Mas está errado
quando ignora e é incapaz de compreender a natureza social da
enunciação e quando tenta deduzir esta última do mundo interior do
locutor, enquanto expressão desse mundo interior. A estrutura da
enunciação e da atividade mental a exprimir são de natureza social. A
elaboração estilística da enunciação é de natureza sociológica e a
própria cadeia verbal, à qual se reduz em última análise a realidade da
língua, é social. Cada elo dessa cadeia é social, assim como toda a
dinâmica da sua evolução.
O subjetivismo individualista tem toda a razão quando diz que não
se pode isolar uma forma lingüística do seu conteúdo ideológico.
Toda palavra é ideológica e toda utilização da língua está ligada à
evolução ideológica. Está errado quando diz que esse conteúdo
ideológico pode igualmente ser deduzido das condições do psiquismo
individual.
O subjetivismo individualista está errado em tomar, da mesma
maneira que o objetivismo abstrato, a enunciação monológica
como seu ponto de partida básico. É verdade que alguns vosslerianos
começaram a abordar o problema do diálogo, o que os leva a
uma compreensão mais justa da interação verbal. Citaremos
por exemplo o livro de Leo Spitzer, Italienische Umgangsprache,
124
onde se encontra uma tentativa de análise das formas de italiano
utilizado na conversação, em estreita ligação com as condições de
utilização e sobretudo com a situação social do interlocutor4.
O método de Leo Spitzer, contudo, é psicológico-descritivo. Ele não
tira de sua análise nenhuma conclusão sociológica coerente.
A enunciação monológica permanece a base da realidade lingüística
para os vosslerianos.
Otto Dietrich colocou com grande clareza o problema da interação
verbal5. Toma como ponto de partida a crítica da teoria de
enunciação como meio de expressão. Para ele, a função central da
linguagem não é a expressão, mas a comunicação. Isso o leva a
considerar o papel do ouvinte. O par locutor-ouvinte constitui, para
Dietrich, a condição necessária da linguagem. Contudo, ele partilha
essencialmente as premissas psicológicas do subjetivismo
individualista. Além disso, as pesquisas de Dietrich são desprovidas
de qualquer base sociológica bem definida.
Agora estamos em condições de responder às questões que
colocamos no início do quarto capítulo. A verdadeira substância da
língua não é constituída por um sistema abstrato de formas
lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato
psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da
interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações.
A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.
O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão
uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação
verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido
amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de
pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de
qualquer tipo que seja.

4
A esse respeito, a própria construção do livro é sintomática.
Ele divide-se em quatro partes, cujos títulos são: “I. Formas de
Introdução do Diálogo. II. Locutor e Interlocutor: a) Cortesia
Para com o Parceiro; b) Economia e Desperdício da Expressão;
c) Imbricação de Fala e Réplica. III. Locutor e Situação. IV. Fim
do Diálogo”. Hermann Wunderlich precedeu Spitzer na direção
do estudo da língua da conversação corrente nas condições reais
da comunicação. Cf. seu livro: Unsere Umgangsprache (1894).
5
Ver Die Probleme der Sprachpsychologie, 1914.
125
O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um
elemento da comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas
sob a forma de diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido de
maneira ativa, para ser estudado a fundo, comentado e criticado no
quadro do discurso interior, sem contar as reações impressas,
institucionalizadas, que se encontram nas diferentes esferas da
comunicação verbal (críticas, resenhas, que exercem influência sobre
os trabalhos posteriores, etc.). Além disso, o ato de fala sob a forma
de livro é sempre orientado em função das intervenções anteriores na
mesma esfera de atividade, tanto as do próprio autor como as de
outros autores: ele decorre portanto da situação particular de um
problema científico ou de um estilo de produção literária. Assim, o
discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão
ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta,
confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio,
etc.
Qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja,
constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal
ininterrupta (concernente à vida cotidiana, à literatura, ao
conhecimento, à política, etc.). Mas essa comunicação verbal
ininterrupta constitui, por sua vez, apenas um momento na evolução
contínua, em todas as direções, de um grupo social determinado.
Um importante problema decorre daí: o estudo das relações entre a
interação concreta e a situação extralingüística – não só a situa-
ção imediata, mas também, através dela, o contexto social mais
amplo. Essas relações tomam formas diversas, e os diversos
elementos
da situação recebem, em ligação com uma ou outra forma,
uma significação diferente (assim, os elos que se estabelecem com
os diferentes elementos de uma situação de comunicação artís-
tica diferem dos de uma comunicação científica). A comuni-
cação verbal não poderá jamais ser compreendida e explicada fora
desse vínculo com a situação concreta. A comunicação verbal
entrelaça-se inextricavelmente aos outros tipos de comunicação e
cresce com eles sobre o terreno comum da situação de produção. Não
se pode, evidentemente, isolar a comunicação verbal dessa
comunicação global em perpétua evolução. Graças a esse vínculo
concreto com a situação, a comunicação verbal é sempre
acompanhada por atos sociais de caráter não verbal (gestos do
trabalho, atos simbólicos de um ritual, cerimônias, etc.), dos quais ela
é muitas vezes apenas o complemento, desempenhando um papel
meramente auxiliar.
126
A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal
concreta, não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua
nem no psiquismo individual dos falantes.
Disso decorre que a ordem metodológica para o estudo da língua
deve ser o seguinte:
1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as
condições concretas em que se realiza.
2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados,
em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos,
isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que
se prestam a uma determinação pela interação verbal.
3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação
lingüística habitual.
É nessa mesma ordem que se desenvolve a evolução real da língua:
as relações sociais evoluem (em função das infra-estruturas), depois a
comunicação e a interação verbais evoluem no quadro das relações
sociais, as formas dos atos de fala evoluem em conseqüência da
interação verbal, e o processo de evolução reflete-se, enfim, na
mudança das formas da língua.
De tudo o que dissemos, decorre que o problema das formas da
enunciação considerada como um todo adquire uma enorme
importância. Já indicamos que o que falta à lingüística, contempo-
rânea é uma abordagem da enunciação em si. Sua análise não
ultrapassa a segmentação em constituintes imediatos. E, no entanto, as
unidades reais da cadeia verbal são as enunciações. Mas, justamente,
para estudar as formas dessas unidades, convém não separá-las do
curso histórico das enunciações. Enquanto um todo, a enunciação só
se realiza no curso da comunicação verbal, pois o todo é determinado
pelos seus limites, que se configuram pelos pontos de contato de uma
determinada enunciação com o meio extraverbal e verbal (isto é, as
outras enunciações).
A primeira palavra e a última, o começo e o fim de uma
enunciação permitem-nos já colocar o problema do todo. O processo
da fala, compreendida no sentido amplo como processo de atividade
de linguagem tanto exterior como interior, é ininterrupto, não tem
começo nem fim. A enunciação realizada é como uma ilha emergindo
de um oceano sem limites, o discurso interior. As dimensões e as
formas dessa ilha são determinadas pela situação da enunciação e por
seu auditório. A situação e o auditório obrigam o discurso interior a
realizar-se em uma expressão exterior definida, que se insere
diretamente no contexto não verbalizado da vida corrente, e nele se
amplia pela ação, pelo gesto ou pela resposta verbal dos outros
127
participantes na situação de enunciação. Uma questão completa, a
exclamação, a ordem, o pedido são enunciações completas típicas da
vida corrente. Todas (particularmente as ordens, os pedidos) exigem
um complemento extraverbal assim como um início não verbal. Esses
tipos de discursos menores da vida cotidiana são modelados pela
fricção da palavra contra o meio extraverbal e contra a palavra do
outro.
Assim, a forma da ordem é determinada pelos obstáculos que ela
pode encontrar, o grau de submissão do receptor, etc. A modelagem
das enunciações responde aqui a particularidades fortuitas e não
reiteráveis das situações da vida corrente. Só se pode falar de
fórmulas específicas, de estereótipos no discurso da vida cotidiana
quando existem formas de vida em comum relativamente
regularizadas, reforçadas pelo uso e pelas circunstâncias. Assim,
encontram-se tipos particulares de fórmulas estereotipadas servindo
às necessidades da conversa de salão, fútil e que não cria nenhuma
obrigação, em que todos os participantes são familiares uns aos outros
e onde a diferença principal é entre homens e mulheres. Encontram-se
elaboradas formas particulares de palavras-alusões, de subentendidos,
de reminiscências de pequenos incidentes sem nenhuma importância,
etc. Um outro tipo de fórmula elabora-se na conversa entre marido e
mulher, entre irmão e irmã. Pessoas inteiramente estranhas umas às outras
e reunidas por acaso (numa fila, numa entidade qualquer) começam,
constroem e terminam suas declarações e suas réplicas de maneira
completamente diferente. Encontram-se ainda outros tipos nos serões
no campo, nas quermesses populares na cidade, na conversa dos
operários à hora do almoço,
etc. Toda situação inscrita duravelmente nos costumes possui
um auditório organizado de uma certa maneira e conseqüentemente
um certo repertório de pequenas fórmulas correntes. A fórmula
estereotipada adapta-se, em qualquer lugar, ao canal de interação
social que lhe é reservado, refletindo ideologicamente o tipo,
a estrutura, os objetivos e a composição social do grupo. As fórmulas
da vida corrente fazem parte do meio social, são elementos da
festa, dos lazeres, das relações que se travam no hotel, nas fábricas,
etc. Elas coincidem com esse meio, são por ele delimitadas e
determinadas em todos os aspectos. Assim, encontram-se diferentes
formas de construção de enunciações nos lugares de produção de
trabalho e nos meios de comércio. No que se refere às formas da
comunicação ideológica no sentido preciso do termo – as formas das
declarações políticas, atos políticos, leis, decretos, manifestos, etc.; e
as formas das enunciações poéticas, tratados científicos, etc. – todas
128
elas foram objeto de pesquisas especializadas em retórica e poética.
Mas, como vimos, essas pesquisas estiveram completamente
divorciadas, de um lado, do problema da linguagem, e do outro, do
problema da comunicação social6. Uma análise fecunda das formas do
conjunto de enunciações como unidades reais na cadeia verbal só é
possível de uma perspectiva que encare a enunciação individual como
um fenômeno puramente sociológico. A filosofia marxista
da linguagem deve justamente colocar como base de sua doutrina
a enunciação como realidade da linguagem e como estrutura
sócio-ideológica.
Após ter mostrado a estrutura sociológica da enunciação, voltemos
agora às duas orientações do pensamento filosófico-lingüístico para
tirar conclusões definitivas. A lingüística moscovita R. Schor, que
pertence à segunda orientação do pensamento filosófico-lingüístico
(objetivismo abstrato), termina com as seguintes palavras um breve
esboço da situação da lingüística contemporânea:

“A língua não é uma coisa (ergon), mas antes uma atividade


natural e congênita do homem (energeia)”, proclamava a investi-
gação lingüística romântica do século XIX. É algo completamente
diferente que diz a lingüística teórica contemporânea: “A língua não é
uma atividade individual (energeia), mas um legado histórico-cultural
da humanidade (ergon).”7

Essa conclusão espanta-nos por sua parcialidade e seu apriorismo.


No plano dos fatos, ela é completamente falsa. Com efeito, a escola
de Vossler liga-se igualmente à lingüística teórica contemporânea,
sendo na Alemanha atual um dos movimentos mais fortes do
pensamento lingüístico. É inadmissível reduzir a lingüística a apenas
uma das suas orientações. No plano da teoria, é preciso refutar tanto a
tese quanto a antítese apresentadas por Schor. Com efeito, nem uma
nem outra dão conta da verdadeira natureza da língua.

6
Sobre o tópico da disjunção de uma obra de arte literária das
condições da comunicação artística e a resultante inércia da
obra, ver nosso estudo, “Slóvo v jízni i slóvo v poézii” (A
Palavra na Vida e a Palavra na Poesia), Zvesdá (Estrela), Editora
do Estado, 6 (1926) (N.d.T.a.m.).
7
Artigo já citado de Schor, “Krizis sovremiénnoi lingvistiki” (A
Crise da Lingüística Contemporânea), p. 71.
129
Vamos tentar formular nosso próprio ponto de vista com as
seguintes proposições:
1. A língua como sistema estável de formas normativamente
idênticas é apenas uma abstração científica que só pode servir a
certos fins teóricos e práticos particulares. Essa abstração não dá
conta de maneira adequada da realidade concreta da língua.
2. A língua constitui um processo de evolução ininterrupto, que se
realiza através da interação verbal social dos locutores.
3. As leis da evolução lingüística não são de maneira alguma as
leis da psicologia individual, mas também não podem ser divorciadas
da atividade dos falantes. As leis da evolução lingüística são
essencialmente leis sociológicas.
4. A criatividade da língua não coincide com a criatividade
artística nem com qualquer outra forma de criatividade ideológica
específica. Mas, ao mesmo tempo, a criatividade da língua não pode
ser compreendida independentemente dos conteúdos e valores
ideológicos que a ela se ligam. A evolução da língua, como toda
evolução histórica, pode ser percebida como uma necessidade cega de
tipo mecanicista, mas também pode tornar-se “uma necessidade de
funcionamento livre”, uma vez que alcançou a posição de uma
necessidade consciente e desejada.
5. A estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social. A
enunciação como tal só se torna efetiva entre falantes. O ato de fala
individual (no sentido estrito do termo “individual”) é uma
contradictio in adjecto.

130
CAPÍTULO 7
TEMA E SIGNIFICAÇÃO NA LÍNGUA

O problema da significação é um dos mais difíceis da lingüística.


As tentativas de resolução desse problema têm revelado o estreito
solilóquio da ciência lingüística com particular clareza. Com efeito, a
teoria que se apóia sobre uma compreensão passiva não nos dá os
meios de abordar os fundamentos e as características essenciais da
significação lingüística. Dentro dos limites da nossa investigação,
limitar-nos-emos a um exame muito breve e superficial dessa questão.
Procuraremos simplesmente traçar as grandes linhas de uma
investigação produtiva nesse campo.
Um sentido definido e único, uma significação unitária, é uma
propriedade que pertence a cada enunciação como um todo. Vamos
chamar o sentido da enunciação completa o seu tema1. O tema deve
ser único. Caso contrário, não teríamos nenhuma base para definir a
enunciação. O tema da enunciação é na verdade, assim como a
própria enunciação, individual e não reiterável. Ele se apresenta como
a expressão de uma situação histórica concreta que deu origem à
enunciação. A enunciação: “Que horas são?” tem um sentido
diferente cada vez que é usada e também, conseqüentemente, na nossa
terminologia, um outro tema, que depende da situação histórica
concreta (histórica, numa escala microscópica) em que é pronunciada
e da qual constitui na verdade um elemento.

1
Esse termo é, naturalmente, sujeito a dúvidas. Para nós, o
termo “tema” cobre igualmente sua realização; é por isso que ele
não deve ser confundido com o tema de uma obra de arte. O
conceito de “unidade temática” é o que estaria mais próximo do
nosso.
131
Conclui-se que o tema da enunciação é determinado não só
pelas formas lingüísticas que entram na composição (as palavras, as
formas morfológicas ou sintáticas, os sons, as entoações), mas
igualmente pelos elementos não verbais da situação. Se perdermos
de vista os elementos da situação, estaremos tão pouco aptos
a compreender a enunciação como se perdêssemos suas palavras
mais importantes. O tema da enunciação é concreto, tão con-
creto como o instante histórico ao qual ela pertence. Somente
a enunciação tomada em toda a sua amplitude concreta, como
fenômeno histórico, possui um tema. Isto é o que se entende por
tema da enunciação.
Entretanto, se nos limitássemos ao caráter não reiterável
e historicamente único de cada enunciação concreta, estaríamos
sendo medíocres dialéticos. Além do tema, ou, mais exatamente,
no interior dele, a enunciação é igualmente dotada de uma
significação. Por significação, diferentemente do tema, entendemos
os elementos da enunciação que são reiteráveis e idênticos cada
vez que são repetidos. Naturalmente, esses elementos são abstratos:
fundados sobre uma convenção, eles não têm existência concreta
independente, o que não os impede de formar uma parte inalienável,
indispensável, da enunciação. O tema da enunciação é na essência
irredutível a análise. A significação da enunciação, ao contrário, pode
ser analisada em um conjunto de significações ligadas aos elementos
lingüísticos que a compõem. O tema da enunciação: “Que horas
são?”, tomado em ligação indissolúvel com a situação histórica
concreta, não pode ser segmentado. A significação da enunciação:
“Que horas são?” é idêntica em todas as instâncias históricas em que é
pronunciada; ela se compõe das significações de todas as palavras que
fazem parte dela, das formas de suas relações morfológicas e
sintáticas, da entoação interrogativa, etc.
O tema é um sistema de signos dinâmico e complexo, que pro-
cura adaptar-se adequadamente às condições de um dado momento
da evolução. O tema é uma reação da consciência em devir ao ser
em devir. A significação é um aparato técnico para a realização
do tema. Bem entendido, é impossível traçar uma fronteira me-
cânica absoluta entre a significação e o tema. Não há tema
sem significação, e vice-versa. Além disso, é impossível designar
a significação de uma palavra isolada (por exemplo, no processo
de ensinar uma língua estrangeira) sem fazer dela o elemento
de um tema, isto é, sem construir uma enunciação, um “exem-
plo”. Por outro lado, o tema deve apoiar-se sobre uma certa
estabilidade da significação; caso contrário, ele perderia seu elo com
132
o que precede e o que segue, ou seja, ele perderia, em suma, o
seu sentido.
O estudo das línguas dos povos primitivos e a paleontologia
contemporânea das significações levam-nos a uma conclusão acerca
da chamada “complexidade” do pensamento primitivo. O homem pré-
histórico usava uma mesma e única palavra para designar
manifestações muito diversas, que, do nosso ponto de vista, não
apresentam nenhum elo entre si. Além disso, uma mesma e única
palavra podia designar conceitos diametralmente opostos: o alto e o
baixo, a terra e o céu, o bem e o mal, etc.
“É suficiente dizer”, diz Nicolau Marr, “que a paleontologia
lingüística contemporânea nos dá a possibilidade de aceder, graças às
suas investigações, às épocas em que as tribos só tinham à sua
disposição uma única palavra para cobrir todas as significações de
que a humanidade tinha consciência.”2
Mas, perguntar-se-á, será que uma palavra onisignificante é
realmente uma palavra? Sim, é precisamente uma palavra. Diremos
ainda mais que, se um complexo sonoro qualquer comportasse uma
única significação inerte e imutável, então esse complexo não seria
uma palavra, não seria um signo, mas apenas um sinal3. A
multiplicidade das significações é o índice que faz de uma palavra
uma palavra. Em relação à palavra onisignificante de que falava
Marr, podemos dizer o seguinte: tal palavra, de fato, não tem
praticamente significado: é um tema puro. Sua significação é
inseparável da situação concreta em que se realiza. Sua significação é
diferente a cada vez, de acordo com a situação. Dessa maneira, o tema
absorve, dissolve em si a significação, não lhe deixando a
possibilidade de estabilizar-se e consolidar-se. Mas, à medida que a
linguagem se desenvolveu, que o seu estoque de complexos sonoros
aumentou, as significações começaram a estabilizar-se segundo as

2
As Etapas da Teoria “Jafética”, loc. cit., p. 278.
3
Deduz-se daqui, claramente, que mesmo a palavra da época
mais recuada da humanidade, de que fala Marr, não se
assemelha em nada ao sinal (ao qual alguns investigadores
procuram reduzir a linguagem). Afinal, um sinal que significasse
tudo seria muito pouco capaz de desempenhar a função de sinal.
A capacidade de um sinal adaptar-se às condições mutáveis de
uma situação é muito pequena. Na verdade, mudança num sinal
significa substituição de um sinal por outro.
133
linhas que eram básicas e mais freqüentes na vida da comunidade para
a utilização temática dessa ou daquela palavra.
O tema, como dissemos, é um atributo apenas da enuncia-
ção completa; ele pode pertencer a uma palavra isolada somente
se essa palavra opera como uma enunciação global. Assim,
por exemplo, a palavra onisignificante de Marr sempre opera como
uma enunciação completa (e não tem significações fixas precisa-
mente por isso). Por outro lado, a significação pertence a um elemento
ou conjunto de elementos na sua relação com o todo. É claro que se
abstrairmos por completo essa relação com o todo, (isto é, com a
enunciação), perderemos a significação. É por isso que não se pode
traçar uma fronteira clara entre o tema e a significação.
A maneira mais correta de formular a inter-relação do tema e
da significação é a seguinte: o tema constitui o estágio superior
real da capacidade lingüística de significar. De fato, apenas o
tema significa de maneira determinada. A significação é o estágio
inferior da capacidade de significar. A significação não quer dizer
nada em si mesma, ela é apenas um potencial, uma possibilidade de
significar no interior de um tema concreto. A investigação da
significação de um ou outro elemento lingüístico pode, segundo a
definição que demos, orientar-se para duas direções: para o estágio
superior, o tema; nesse caso, tratar-se-ia da investigação da
significação contextual de uma dada palavra nas condições de uma
enunciação concreta. Ou então ela pode tender para o estágio inferior,
o da significação: nesse caso, será a investigação da significação da
palavra no sistema da língua, ou em outros termos a investigação da
palavra dicionarizada.
Para constituir uma ciência sólida da significação, é impor-
tante distinguir bem entre o tema e a significação e compreender bem
a sua inter-relação. Até o momento ninguém compreendeu a
importância dessa conduta. Tais distinções como as que se
estabelecem entre o sentido usual e ocasional de uma palavra, entre o
seu sentido central e os laterais, entre denotação e conotação, etc., são
fundamentalmente insatisfatórias. A tendência básica subjacente a
todas essas discriminações – de atribuir maior valor ao aspecto
central, usual da significação, pressupondo que esse aspecto
realmente existe e é estável – é completamente falaciosa. Além disso,
ela deixaria o tema inexplicado, uma vez que ele de maneira nenhuma
poderia ser reduzido à condição de significação ocasional ou lateral
das palavras.
A distinção entre tema e significação adquire particular clareza
em conexão com o problema da compreensão, que abordaremos
134
brevemente aqui. Já tivemos a ocasião de mencionar o modo
de compreensão passiva, próprio dos filólogos, que exclui a priori
qualquer resposta. Qualquer tipo genuíno de compreensão deve
ser ativo deve conter já o germe de uma resposta. Só a compreensão
ativa nos permite apreender o tema, pois a evolução não pode
ser apreendida senão com a ajuda de um outro processo evolu-
tivo. Compreender a enunciação de outrem significa orientar-
se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto
correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em
processo de compreender, fazemos corresponder uma série de
palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais numerosas e
substanciais forem, mais profunda e real é a nossa compreensão.
Assim, cada um dos elementos significativos isoláveis de
uma enunciação e a enunciação toda são transferidos nas nossas
mentes para um outro contexto, ativo e responsivo. A compreensão
é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como
uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor
a palavra do locutor uma contrapalavra. Só na compreensão de
uma língua estrangeira é que se procura encontrar para cada pala-
vra uma palavra equivalente na própria língua. É por isso que não
tem sentido dizer que a significação pertence a uma palavra enquanto
tal. Na verdade, a significação pertence a uma palavra enquanto
traço de união entre os interlocutores, isto é, ela só se realiza no
processo de compreensão ativa e responsiva. A significação não está
na palavra nem na alma do falante, assim como também não está na
alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do
receptor produzido através do material de um determinado complexo
sonoro. É como uma faísca elétrica que só se produz quando há
contato dos dois pólos opostos. Aqueles que ignoram o tema (que só é
acessível a um ato de compreensão ativa e responsiva) e que,
procurando definir o sentido de uma palavra, atingem o seu valor
inferior, sempre estável e idêntico a si mesmo, é como se quisessem
acender uma lâmpada depois de terem cortado a corrente. Só a
corrente da comunicação verbal fornece à palavra a luz da sua
significação.
Passemos agora ao problema da inter-relação entre a apreciação e
a significação, cujo papel é muito importante na ciência das
significações. Toda palavra usada na fala real possui não apenas tema
e significação no sentido objetivo, de conteúdo, desses termos, mas
também um acento de valor ou apreciativo, isto é, quando um
conteúdo objetivo é expresso (dito ou escrito) pela fala viva, ele é
135
sempre acompanhado por um acento apreciativo determinado. Sem
acento apreciativo, não há palavra.
Em que consiste esse acento e qual é a sua relação com a face
objetiva da significação? O nível mais óbvio, que é ao mesmo tempo
o mais superficial da apreciação social contida na palavra, é
transmitido através da entoação expressiva. Na maioria dos casos, a
entoação
é determinada pela situação imediata e freqüentemente por
suas circunstâncias mais efêmeras. Eis aqui um caso clássico
de utilização da entoação no discurso familiar: No Diário de um
Escritor, Dostoievski conta1:

“Certa vez, num domingo, já perto da noite, eu tive ocasião de


caminhar ao lado de um grupo de seis operários embriagados, e
subitamente me dei conta de que é possível exprimir qualquer
pensamento, qualquer sensação, e mesmo raciocínios profundos,
através de um só e único substantivo, por mais simples que seja
[Dostoievski está pensando aqui numa palavrinha censurada de largo
uso]. Eis o que aconteceu. Primeiro, um desses homens pronuncia
com clareza e energia esse substantivo para exprimir, a respeito de
alguma coisa que tinha sido dita antes, a sua contestação mais
desdenhosa. Um outro lhe responde repetindo o mesmo substantivo,
mas com um tom e uma significação completamente diferentes, para
contrariar a negação do primeiro. O terceiro começa bruscamente a
irritar-se com o primeiro, intervém brutalmente e com paixão na
conversa e lança-lhe o mesmo substantivo, que toma agora o sentido
de uma injúria. Nesse momento, o segundo intervém novamente para
injuriar o terceiro que o ofendera. ‘O quê há, cara? quem tá pensando
que é? a gente tá conversando tranqüilo e aí vem você e começa a
bronquear!’ Só que esse pensamento, ele o exprime pela mesma
palavrinha mágica de antes, que designa de maneira tão simples um
certo objeto; ao mesmo tempo, ele levanta o braço e bate no ombro do
companheiro. Mas eis que o quarto, o mais jovem do grupo, que se
calara até então e que aparentemente acabara de encontrar a solução
do problema que estava na origem da disputa, exclama com um tom
entusiasmado, levantando a mão: ... ‘Eureka!’ ‘Achei, achei!’ é isso
que vocês pensam? Não, nada de ‘Eureka’, nada de ‘Achei’. Ele
simplesmente repete o mesmo substantivo banido do dicionário, uma

1
Pólnoie sobránie sotchiniénii F. M. Dostoievskovo (Obras
Completas de F. M. Dostoievski), 1906, tomo 9, p. 274-275.
136
única palavra, mas com um tom de exclamação arrebatada, com
êxtase, aparentemente excessivo, pois o sexto homem, o mais
carrancudo e mais velho dos seis, olha-o de lado e arrasa num instante
o entusiasmo do jovem, repetindo com uma imponente voz de baixo e
num tom rabugento... sempre a mesma palavra, interdita na presença
de damas para significar claramente: ‘Não vale a pena arrebentar a
garganta, já compreendemos!’ Assim, sem pronunciar uma única
outra palavra, eles repetiram seis vezes seguidas sua palavra preferida,
um depois do outro, e se fizeram compreender perfeitamente.”
As seis “falas” dos operários são todas diferentes, apesar do fato
de todas consistirem de uma mesma e única palavra. Essa palavra, de
fato, só constitui um suporte da entoação. A conversa é conduzida por
meio de entoações que exprimem as apreciações dos interlocutores.
Essas apreciações, assim como as entoações correspondentes, são
inteiramente determinadas pela situação social imediata em cujo
quadro se desenvolve a conversa; é por isso que elas não têm
necessidade de um suporte concreto. No registro familiar, a entoação
às vezes não tem nada a ver com o conteúdo do discurso. O material
entoativo acumulado interiormente encontra muitas vezes uma saída
em construções lingüísticas que não são absolutamente adaptadas à
entoação em questão. Mais ainda, a entoação não se integra no
conteúdo intelectual, objetivo, da construção. Quando exprimimos os
nossos sentimentos, damos muitas vezes a uma palavra que veio à
mente por acaso uma entoação expressiva e profunda. Ora,
freqüentemente, trata-se de uma interjeição ou de uma locução vazias
de sentido. Quase todas as pessoas têm as suas interjeições e locuções
favoritas; pode-se utilizar correntemente uma palavra de carga
semântica muito grande para resolver de forma puramente entoativa
situações ou crises da vida cotidiana, sejam elas menores ou graves.
Encontram-se, servindo de válvulas de segurança entoativa,
expressões como: “pois é, pois é”, “sei, sei”, “é, é”, “pois não, pois
não”, etc. A reduplicação habitual dessas palavrinhas, isto é, o
alongamento artificial da representação sonora com o fim de dar à
entoação acumulada uma escapatória, é muito característica. Pode-se,
é claro, pronunciar a mesma palavrinha favorita com uma infinidade
de entoações diferentes, conforme as diferentes situações ou
disposições que podem ocorrer na vida.
Em todos esses casos, o tema, que é uma propriedade de
cada enunciação (cada uma das enunciações dos seis operários
tinha um tema próprio), realiza-se completa e exclusivamente atra-
vés da entoação expressiva, sem ajuda da significação das palavras
ou da articulação gramatical. Os acentos apreciativos dessa ordem e
137
as entoações correspondentes não podem ultrapassar os limites
estreitos da situação imediata e de um pequeno círculo social íntimo.
Podemos qualificá-los como auxiliares marginais das significações
lingüísticas.
Entretanto, nem todos os julgamentos de valor são como esses.
Em qualquer enunciação, por maior que seja amplitude do seu
espectro semântico e da audiência social de que goza, uma enorme
importância pertence à apreciação. É verdade que a entoação não
traduz adequadamente o valor apreciativo; esse serve antes de
mais nada para orientar a escolha e a distribuição dos elementos
mais carregados de sentido da enunciação. Não se pode construir
uma enunciação sem modalidade apreciativa. Toda enun-
ciação compreende antes de mais nada uma orientação apreciativa.
É por isso que, na enunciação viva, cada elemento contém ao mes-
mo tempo um sentido e uma apreciação. Apenas os elementos
abstratos considerados no sistema da língua e não na estrutura da
enunciação se apresentam destituídos de qualquer valor apreciativo.
Por causa da construção de um sistema lingüístico abstrato, os
lingüistas chegaram a separar o apreciativo do significativo, e a
considerar o apreciativo como um elemento marginal da significação,
como a expressão de uma relação individual entre o locutor e o objeto
do seu discurso4.
Um lingüista russo, G. Spätt, fala da apreciação como de um valor
conotativo da palavra. Ele procura estabelecer uma distinção entre a
significação objetiva (denotativa) e a conotação apreciativa, que ele
coloca em esferas diferentes da realidade. Esse tipo de demarcação
entre o denotativo e o apreciativo parece-nos completamente
ilegítimo; ela se fundamenta sobre o fato de que as funções mais
profundas da apreciação não são perceptíveis na superfície do
discurso. E, no entanto, a significação objetiva forma-se graças à
apreciação; ela indica que uma determinada significação objetiva
entrou no horizonte dos interlocutores – tanto no horizonte imediato
como no horizonte social mais amplo de um dado grupo social. Além
disso, é à apreciação que se deve o papel criativo nas mudanças de
significação. A mudança de significação é sempre, no final das
contas, uma reavaliação: o deslocamento de uma palavra determinada

4
É assim que Anton Marty define a apreciação, depois de ter
efetuado a análise mais sutil e detalhada das significações das
palavras. V. A. Marty, Untersuchungen zur Grundlegung der
allgemeinen Grammatik und Sprachphilosophie, Halle, 1908.
138
de um contexto apreciativo para outro. A palavra ou é elevada a um
nível superior, ou abaixada a um inferior. Isolar a significação da
apreciação inevitavelmente destitui a primeira de seu lugar na
evolução social viva (onde ela está sempre entrelaçada com a
apreciação) e torna-a um objeto ontológico, transforma-a num ser
ideal, divorciado da evolução histórica.
É justamente para compreender a evolução histórica do tema e
das significações que o compõem que é indispensável levar em
conta a apreciação social. A evolução semântica na língua é sempre
ligada à evolução do horizonte apreciativo de um dado grupo
social e a evolução do horizonte apreciativo – no sentido da totalidade
de tudo que tem sentido e importância aos olhos de um determinado
grupo – é inteiramente determinada pela expansão da infra-estrutura
econômica. À medida que a base econômica se expande, ela promove
uma real expansão no escopo de existência que é acessível,
compreensível e vital para o homem. O criador de gado pré-histórico
não tinha preocupações, não havia muita coisa que realmente o
tocasse. O homem do fim da era capitalista está diretamente
relacionado com todas as coisas, seus interesses atingem os cantos
mais remotos da terra e mesmo as mais distantes estrelas. Esse
alargamento do horizonte apreciativo efetua-se de maneira dialética.
Os novos aspectos da existência, que foram integrados no círculo do
interesse social, que se tornaram objetos da fala e da emoção humana,
não coexistem pacificamente com os elementos que se integraram à
existência antes deles; pelo contrário, entram em luta com eles,
submetem-nos a uma reavaliação, fazem-nos mudar de lugar no
interior da unidade do horizonte apreciativo. Essa evolução dialética
reflete-se na evolução semântica. Uma nova significação se descobre
na antiga e através da antiga, mas a fim de entrar em contradição com
ela e de reconstruí-la.
O resultado é uma luta incessante dos acentos em cada área
semântica da existência. Não há nada na composição do sentido que
possa colocar-se acima da evolução, que seja independente do
alargamento dialético do horizonte social. A sociedade em
transformação alarga-se para integrar o ser em transformação. Nada
pode permanecer estável nesse processo. É por isso que a
significação, elemento abstrato igual a si mesmo, é absorvida pelo
tema, e dilacerada por suas contradições vivas, para retornar enfim
sob a forma de uma nova significação com uma estabilidade e uma
identidade igualmente provisórias.

139
TERCEIRA PARTE
PARA UMA HISTÓRIA DAS FORMAS DA
ENUNCIAÇÃO
NAS CONSTRUÇÕES SINTÁTICAS
Tentativa de aplicação do método sociológico
aos problemas sintáticos

140
CAPÍTULO 8
TEORIA DA ENUNCIAÇÃO E PROBLEMAS SINTÁTICOS

Não há abordagem fecunda dos problemas sintáticos que se


fundamente sobre os princípios e métodos tradicionais da lingüística,
particularmente os do objetivismo abstrato, onde tais métodos e
princípios encontraram sua expressão mais clara e conseqüente. As
categorias de base do pensamento lingüístico contemporâneo, que
foram elaboradas principalmente a partir da lingüística comparada das
línguas indo-européias, são de ponta a ponta fonéticas e morfológicas.
Esse pensamento, que se nutriu de fonética e de morfologia, só é
capaz de ver os outros fenômenos da língua através das lentes das
formas fonéticas e morfológicas. Ele procura ver os problemas de
sintaxe da mesma maneira, o que leva a fazer deles problemas de
morfologia1. Por isso, a sintaxe encontra-se em má situação, fato que
a maior parte dos pesquisadores das línguas indo-européias reconhece
de boa vontade. Compreende-se perfeitamente isso se se recordam as
características fundamentais da apreensão das línguas mortas,
governada originariamente pelos fins de deciframento dessas línguas
e de seu ensino2.

1
Essa tendência oculta de tratar a sintaxe como a morfologia
tem como conseqüência que a reflexão escolástica reina na
sintaxe mais do que em qualquer outra parte da lingüística.
2
É preciso acrescentar a isso os fins particulares da lingüística
comparada: o estabelecimento do parentesco das línguas e de
sua hierarquia genética. Tais fins reforçam ainda mais o lugar
privilegiado da fonética na reflexão lingüística. Infelizmente,
não pudemos, no âmbito deste trabalho, tocar nos problemas da
lingüística comparada, apesar da sua enorme importância para a
filosofia da linguagem e o lugar que ela ocupa na investigação
lingüística contemporânea. Trata-se de um problema muito
141
Entretanto, os problemas de sintaxe são da maior importância
para a compreensão da língua e de sua evolução, considerando-se
que, de todas as formas da língua, as formas sintáticas são as que
mais se aproximam das formas concretas da enunciação, dos atos de
fala. Todas as análises sintáticas do discurso constituem análises do
corpo vivo da enunciação; portanto, é ainda mais difícil trazê-las a um
sistema abstrato da língua. As formas sintáticas são mais concretas
que as formas morfológicas ou fonéticas e são mais estreitamente
ligadas às condições reais da fala. É por isso que, na nossa reflexão
sobre os fatos vivos da língua, demos justamente prioridade às formas
sintáticas sobre as formas morfológicas ou fonéticas. Mas, como
também já deixamos claro, um estudo fecundo das formas sintáticas
só é possível no quadro da elaboração de uma teoria da enunciação.
Enquanto a enunciação como um todo permanecer terra incógnita
para o lingüista, está fora de questão falar de uma compreensão real,
concreta, não escolástica das formas sintáticas. Já dissemos que a
enunciação completa ocupa uma posição bem pobre na lingüística.
Pode-se mesmo dizer que o pensamento lingüístico perdeu, sem
esperança de reavê-la, a percepção da fala como um todo.
O lingüista sente-se mais à vontade quando opera no centro de
uma unidade frasal. Quanto mais ele se aproxima das fronteiras
do discurso, da enunciação completa, menos segura é a sua posição.
Nenhuma das categorias lingüísticas convém à determinação do
todo. Com efeito, as categorias lingüísticas, tais como são, só
são aplicáveis no interior do território da enunciação. Assim,
as categorias morfológicas só têm sentido no interior da enun-
ciação; elas deixam de ser úteis quando se trata de definir o todo. O
mesmo se dá com as categorias sintáticas, por exemplo a oração: a
categoria oração é meramente uma definição da oração como uma
unidade dentro de uma enunciação, mas de nenhuma maneira como
entidade global.
Para convencer-se da “elementaridade” fundamental de todas
as categorias lingüísticas, basta tomar a enunciação com-
pleta (relativamente falando, aliás, já que toda enunciação faz parte
do processo verbal) constituída por uma única palavra. Se apli-
carmos todas as categorias usadas pelos lingüistas a essa palavra,
fica evidente que essas categorias definem a palavra exclusi-
vamente em termos de um elemento potencial da fala e que nenhuma

complexo, e, para tratá-lo, ainda que superficialmente, seria


preciso alargar consideravelmente o âmbito deste livro.
142
engloba a enunciação completa. O elemento suplementar que
faz dessa palavra uma enunciação completa permanece inacessível
a todas as categorizações ou determinações lingüísticas, quaisquer
que sejam. A expansão dessa palavra até uma oração completa com
todos os seus constituintes (de acordo com a prescrição: “não
afirmado, mas subentendido”) sempre nos dará apenas uma oração, e
de maneira nenhuma uma enunciação. Não importa que categoria
lingüística tentássemos aplicar a essa oração, jamais encontraríamos
aquilo que justamente a converte em uma enunciação completa. Dessa
maneira, se ficarmos nos limites das categorias gramaticais efetivas
da lingüística contemporânea, jamais poremos a mão sobre a
inacessível enunciação completa. As categorias da língua puxam-nos
obstinadamente da enunciação e de sua estrutura para o sistema
abstrato da língua.
Na verdade, essa falha da definição lingüística aplica-se não
apenas à enunciação como um todo, mas até mesmo às unidades
dentro de uma enunciação monológica com alguma pretensão a serem
consideradas unidades completas. Isso acontece com os parágrafos,
que podem ser separados uns dos outros por alíneas. A composição
sintática dos parágrafos é extremamente variada. Eles podem conter
desde uma única palavra até um grande número de orações complexas.
Dizer que um parágrafo deve conter a expressão de um pensamento
completo não leva a nada. O que é preciso, afinal, é uma definição do
ponto de vista da linguagem, e em nenhuma circunstância pode a noção
de “pensamento completo” ser considerada como uma definição
lingüística. Se é verdade, como acreditamos, que as definições
lingüísticas não podem ser completamente divorciadas das definições
ideológicas, também elas não podem ser usadas para substituir uma à
outra.
Penetrando mais fundo na essência lingüística dos parágrafos,
convencer-nos-emos de que, em certos aspectos essenciais, eles são
análogos às réplicas de um diálogo. Trata-se, de qualquer forma, de
diálogos viciados trabalhados no corpo de uma enunciação
monológica. Na base da divisão do discurso em partes, denominadas
parágrafos na sua forma escrita, encontra-se o ajustamento às reações
previstas do ouvinte ou do leitor. Quanto mais fraco o ajustamento ao
ouvinte e a consideração das suas reações, menos organizado, no que
diz respeito aos parágrafos, será o discurso.
Os tipos clássicos de parágrafo são: pergunta e resposta (o autor
faz as perguntas e dá as respostas); suplementação; antecipação de

143
possíveis objeções; exposição de aparentes incoerências ou
contradições no próprio discurso, etc.3.
É particularmente comum tomar como objeto de discussão o
próprio discurso ou parte dele (por exemplo, o parágrafo precedente).
Nesse caso, a atenção do falante transfere-se do objeto do discurso
para o próprio discurso (reflexão sobre o próprio discurso). Essa
mudança de pólo de interesse do discurso é condicionada pela atenção
do ouvinte. Se o discurso ignorasse totalmente o destinatário (um tipo
impossível de discurso, é claro), a possibilidade de decompô-lo em
constituintes seria próxima de zero.
Naturalmente, não nos ocupamos aqui de certos tipos especiais de
divisão condicionados pelos objetivos e fins particulares de domínios
ideológicos específicos – por exemplo, a divisão estrófica do discurso
em verso ou as análises puramente lógicas do tipo:
premissas/conclusões; tese/antítese, etc.
Apenas o estudo das formas da comunicação verbal e das
formas correspondentes da enunciação completa pode lançar luz
sobre o sistema dos parágrafos e todos os problemas aná-
logos. Enquanto a lingüística orientar suas pesquisas para
a enunciação monológica isolada, ela permanecerá incapaz de abor-
dar essas questões em profundidade. A elucidação dos problemas
mais elementares da sintaxe só é possível, também, sobre a base
da comunicação verbal. Todas as categorias básicas da lingüís-
tica deveriam ser cuidadosamente reexaminadas nesse sentido.
O interesse recentemente manifestado em sintaxe pela entoação e
as tentativas correlatas de renovar a determinação das unidades
sintáticas por meio da consideração mais sutil e diferenciada da
entoação parecem-nos pouco fecundos. Só se tornarão produtivos se
forem combinados com uma compreensão adequada das bases da
comunicação verbal.

3
Apenas esboçamos aqui o problema dos parágrafos. Nossas
afirmações podem parecer dogmáticas, uma vez que as
apresentamos sem prova e não as sustentamos com materiais ad
hoc. Além disso simplificamos o problema. Nos textos escritos,
a alínea que assinala os parágrafos permite decompor o discurso
monológico de diversas maneiras. Mencionamos aqui apenas um
desses tipos – uma forma de divisão que leva decisivamente em
conta o destinatário e sua ativa compreensão.
144
Os capítulos seguintes do nosso estudo são precisa-
mente consagrados a um problema específico de sintaxe. Algu-
mas vezes é extremamente importante expor um fenômeno bem
conhecido e aparentemente bem estudado a uma luz nova,
reformulando-o como problema, isto é, iluminando novos aspectos
dele através de uma série de questões bem orientadas. Isso é
particularmente útil nos domínios em que a pesquisa desaba sob o
peso de uma massa de descrições e de classificações meticulosas e
detalhadas, mas destituídas de qualquer orientação. Uma
problematização renovada pode colocar em evidência um caso
aparentemente limitado e de interesse secundário como um fenômeno
cuja importância é fundamental para todo o campo de estudo. Pode-se
assim, graças a um problema bem colocado, trazer à luz um potencial
metodológico oculto.
Acreditamos que um fenômeno assim altamente produtivo,
“nodal” mesmo, é o do discurso citado, isto é, os esquemas
lingüísticos (discurso direto, discurso indireto, discurso indireto
livre), as modificações desses esquemas e as variantes dessas
modificações que encontramos na língua, e que servem para a
transmissão das enunciações de outrem e para a integração dessas
enunciações, enquanto enunciações de outrem, num contexto
monológico coerente. O interesse metodológico excepcional que
apresentam esses fatos ainda não foi apreciado na sua justa medida.
Ninguém foi capaz de discernir nessa questão de sintaxe à primeira
vista secundária os problemas de enorme significação que ela coloca
para a lingüística4; e foi justamente a orientação sociológica que
tomou o interesse científico pela língua, que permitiu descobrir toda a
significação metodológica e o aspecto revelador desses fatos.
Dotar de uma orientação sociológica o fenômeno de transmissão
da palavra de outrem, tal é o problema a que nos vamos consagrar
agora. Através desses problema, tentaremos traçar os caminhos do
método sociológico em lingüística. Não temos a pretensão de fazer
grandes deduções positivas de caráter histórico. Os materiais que
recolhemos são suficientes para expor o problema e mostrar até que
ponto é indispensável orientá-lo sociologicamente; mas eles estão
longe de ser suficientes para tirar generalizações históricas de grande

4
Pechkovski, por exemplo, só dedica quatro páginas à questão
na sua Sintaxe. Ver A. M. Pechkovski, Rússki sintaksis v
naútchnom osvechtchénie (A Sintaxe Russa à Luz da Ciência),
2a ed., Moscou, 1920, p. 465-468 (3a ed., p. 552-555).
145
porte. Tais generalizações, quando ocorrem, são de caráter meramente
provisório e hipotético.

146
CAPÍTULO 9
O “DISCURSO DE OUTREM”

O discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na


enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso,
uma enunciação sobre a enunciação.
Aquilo de que nós falamos é apenas o conteúdo do discurso, o
tema de nossas palavras. Um exemplo de um tema que é apenas um
tema seria, por exemplo, “a natureza”, o “homem”, “a oração
subordinada” (um dos temas da sintaxe). Mas o discurso de outrem
constitui mais do que o tema do discurso; ele pode entrar no discurso
e na sua construção sintática, por assim dizer, “em pessoa”, como uma
unidade integral da construção. Assim, o discurso citado conserva sua
autonomia estrutural e semântica sem nem por isso alterar a trama
lingüística do contexto que o integrou.
Ainda mais, a enunciação citada tratada apenas como um tema do
discurso, só pode ser caracterizada superficialmente. Para penetrar
completamente no seu conteúdo, é indispensável integrá-lo na
construção do discurso. Se nos limitarmos ao tratamento do discurso
citado em termos temáticos, poderemos responder às questões
“Como” e “De que falava Fulano?”, mas “O que dizia ele?” só pode
ser descoberto através da transmissão das suas palavras, mesmo que
só sob a forma de discurso indireto.
Entretanto, quando passa a unidade estrutural do discurso
narrativo, no qual se integra por si, a enunciação citada passa a
constituir ao mesmo tempo um tema do discurso narrativo. Faz parte
integrante de sua unicidade temática, na qualidade de enunciação
citada, uma enunciação com seu próprio tema: o tema autônomo
então torna-se o tema de um tema.
O discurso citado é visto pelo falante como a enunciação de uma
outra pessoa, completamente independente na origem, dotada de uma
construção completa, e situada fora do contexto narrativo. É a partir
dessa existência autônoma que o discurso de outrem passa para o
147
contexto narrativo, conservando o seu conteúdo e ao menos
rudimentos da sua integridade lingüística e da sua autonomia
estrutural primitivas. A enunciação do narrador, tendo integrado na
sua composição uma outra enunciação, elabora regras sintáticas,
estilísticas e composicionais para assimilá-la parcialmente, para
associá-la à sua própria unidade sintática, estilística e composicional,
embora conservando, pelo menos sob uma forma rudimentar, a
autonomia primitiva do discurso de outrem, sem o que ele não poderia
ser completamente apreendido.
Nas línguas modernas, certas variantes do discurso indireto, em
particular o discurso indireto livre, têm uma tendência inerente a
transferir a enunciação citada do domínio da construção lingüística ao
plano temático, de conteúdo. Entretanto, mesmo assim, a diluição da
palavra citada no contexto narrativo não se efetua, e não poderia
efetuar-se, completamente: não somente o conteúdo semântico mas
também a estrutura da enunciação citada permanecem relativamente
estáveis, de tal forma que a substância do discurso do outro
permanece palpável, como um todo auto-suficiente. Manifesta-se
assim, nas formas de transmissão do discurso de outrem, uma relação
ativa de uma enunciação a outra, e isso não no plano temático, mas
através de construções estáveis da própria língua.
Esse fenômeno da reação da palavra à palavra é,
contudo, radicalmente diferente do que se passa no diálogo. Aí,
as réplicas são gramaticalmente separadas e não são integradas num
contexto único. Com efeito, não existem formas sintáticas com a
função de construir a unidade do diálogo. Se o diálogo se apresenta
no contexto do discurso narrativo, estamos simplesmente diante de
um caso de discurso direto, isto é, uma das variantes do fenômeno de
que estamos tratando.
O problema do diálogo começa a chamar cada vez mais a atenção
dos lingüistas e, algumas vezes, torna-se mesmo o centro das
preocupações em lingüística1. Isso é perfeitamente compreensível,

1
Na literatura lingüística russa, só se encontra um estudo
consagrado ao problema do diálogo: L. P. Iakubinski “O
dialoguítcheskoi rietchi” (Sobre o Discurso Dialogado), in
Rússkaia rietch (A Fala Russa), Petrogrado, 1923. No livro de
V. Vinogradov, Poézia Ánni Akhmátovoi (A Poesia de Ana
Akhmátova), Leningrado, 1925 (ver o capítulo “Os Gestos do
Diálogo”) encontram-se observações interessantes de cárater
148
pois, como sabemos, a unidade real da língua que é realizada na fala
(Sprache als Rede) não é a enunciação monológica indivi-
dual e isolada, mas a interação de pelo menos duas enunciações, isto
é, o diálogo. O estudo fecundo do diálogo pressupõe, entretanto, uma
investigação mais profunda das formas usadas na citação do discurso,
uma vez que essas formas refletem tendências básicas e constantes da
recepção ativa do discurso de outrem, e é essa recepção, afinal, que é
fundamental também para o diálogo.
Como, na realidade, apreendemos o discurso de outrem? Como o
receptor experimenta a enunciação de outrem na sua consciência, que
se exprime por meio do discurso interior? Como é o discurso
ativamente absorvido pela consciência e qual a influência que ele tem
sobre a orientação das palavras que o receptor pronunciará em
seguida? Encontramos justamente nas formas do discurso citado um
documento objetivo que esclarece esse problema. Esse documento,
quando sabemos lê-lo, dá-nos indicações, não sobre os processos
subjetivo-psicológicos passageiros e fortuitos que se passam na
“alma” do receptor, mas sobre as tendências sociais estáveis
características da apreensão ativa do discurso de outrem que se
manifestam nas formas da língua. O mecanismo desse processo não se
situa na alma individual, mas na sociedade, que escolhe e
gramaticaliza – isto é, associa às estruturas gramaticais da língua –
apenas os elementos da apreensão ativa, apreciativa, da enunciação de
outrem que são socialmente pertinentes e constantes e que, por
conseqüência, têm seu fundamento na existência econômica de uma
comunidade lingüística dada.
Naturalmente, há diferenças essenciais entre a recepção ativa da
enunciação de outrem e sua transmissão no interior de um contexto. É
conveniente levar isso em conta. Toda transmissão, particularmente
sob forma escrita, tem seu fim específico: narrativa, processos legais,
polêmica científica, etc. Além disso, a transmissão leva em conta uma
terceira pessoa – a pessoa a quem estão sendo transmitidas as
enunciações citadas. Essa orientação para uma terceira pessoa é de
primordial importância: ela reforça a influência das forças sociais
organizadas sobre o modo de apreensão do discurso. Numa situação
real de diálogo, quando respondemos a um interlocutor,

semilingüístico e semi-estilístico. Os lingüistas alemães da


escola de Vossler trabalham ativamente na atualidade sobre o
diálogo; ver, especialmente, Gertraud Lerch, “Die uneigentliche
direkte Rede”, Festschrift für Karl Vossler (1922).
149
habitualmente não retomamos no nosso discurso as próprias palavras
que ele pronunciou. Só o fazemos em casos excepcionais: para
afirmar que compreendemos corretamente, para apanhar o
interlocutor com suas próprias palavras, etc. É preciso levar em conta
todas essas características da situação de transmissão. Mas isso não altera
em nada a essência do problema. As condições de transmissão e suas
finalidades apenas contribuem para a realização daquilo que já está
inscrito nas tendências da apreensão ativa, no quadro do discurso interior;
ora essas
últimas só podem desenvolver-se, por sua vez, dentro dos limites
das formas existentes numa determinada língua para transmitir
o discurso.
Estamos bem longe, é claro, de afirmar que as formas sintáticas –
por exemplo as do discurso direto ou indireto – exprimem de maneira
direta e imediata as tendências e as formas da apreensão ativa e
apreciativa da enunciação de outrem. É evidente que o processo não
se realiza diretamente sob a forma de discurso direto ou indireto.
Essas formas são apenas esquemas padronizados para citar o discurso.
Mas esses esquemas e suas variantes só podem ter surgido e tomado
forma de acordo com as tendências dominantes da apreensão do
discurso de outrem; além disso, na medida em que esses esquemas
assumiram uma forma e uma função na língua, eles exercem uma
influência reguladora, estimulante ou inibidora, sobre o
desenvolvimento das tendências da apreensão apreciativa, cujo campo
de ação é justamente definido por essas formas.
A língua não é o reflexo das hesitações subjetivo-psicológicas,
mas das relações sociais estáveis dos falantes. Conforme a lín-
gua, conforme a época ou os grupos sociais, conforme o contexto
apresente tal ou qual objetivo específico, vê-se dominar ora
uma forma ora outra, ora uma variante ora outra. O que isso atesta
é a relativa força ou fraqueza daquelas tendências na interorien-
tação social de uma comunidade de falantes, das quais as pró-
prias formas lingüísticas são cristalizações estabilizadas e antigas.
Se, em certas condições bem determinadas, uma forma qualquer
se encontra relegada a segundo plano (por exemplo, certas variantes
do discurso indireto no romance russo contemporâneo, que
são justamente de tipo racionalista dogmático), isso testemunha
então a favor do fato de que as tendências dominantes da
compreensão e da apreciação da enunciação de outrem têm
dificuldade
em manifestar-se sob essas formas, pois estas últimas as freiam,
não lhes deixando campo suficiente.
150
Toda a essência da apreensão apreciativa da enunciação de
outrem, tudo o que pode ser ideologicamente significativo tem
sua expressão no discurso interior. Aquele que apreende a enun-
ciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas
ao contrário um ser cheio de palavras interiores. Toda a sua ativi-
dade mental, o que se pode chamar o “fundo perceptivo”,
é mediatizado para ele pelo discurso interior e é por aí que se opera a
junção com o discurso apreendido do exterior. A palavra vai à
palavra. É no quadro do discurso interior que se efetua a apreensão da
enunciação de outrem, sua compreensão e sua apreciação, isto é,
a orientação ativa do falante. Esse processo efetua-se em dois planos:
de um lado, a enunciação de outrem é recolocada no contexto de
comentário efetivo (que se confunde em parte com o que se chama o
fundo perceptivo da palavra); na situação (interna e externa), um elo
se estabelece com a expressão facial, etc. Ao mesmo tempo prepara-se
a réplica (Gegenrede). Essas duas operações, a réplica interior e o
comentário efetivo2 são, naturalmente, organicamente fundidos na
unidade da apreensão ativa e não são isoláveis senão de maneira
abstrata. Os dois planos da apreensão exprimem-se, objetivam-se no
contexto narrativo que engloba o discurso citado. Qualquer que seja a
orientação funcional de um determinado contexto – quer se trate de
uma obra literária, de um artigo polêmico, da defesa de um advogado,
etc. – nele discerniremos claramente essas duas tendências: o
comentário efetivo, de um lado, e a réplica, de outro. Habitualmente,
um dos dois é dominante. O discurso citado e o contexto narrativo
unem-se por relações dinâmicas, complexas e tensas. É impossível
compreender qualquer forma de discurso citado sem levá-las em
conta.
O erro fundamental dos pesquisadores que já se debruçaram sobre
as formas de transmissão do discurso de outrem, é tê-lo
sistematicamente divorciado do contexto narrativo. Daí o caráter
estático das pesquisas nesse campo (o que se aplica igualmente a
todas as investigações em sintaxe). No entanto, o objeto verdadeiro da
pesquisa deve ser justamente a interação dinâmica dessas duas
dimensões, o discurso a transmitir e aquele que serve para transmiti-
lo. Na verdade, eles só têm uma existência real, só se formam e vivem
através dessa inter-relação, e não de maneira isolada. O discurso
citado e o contexto de transmissão são somente os termos de uma
inter-relação dinâmica. Essa dinâmica, por sua vez, reflete a dinâmica

2
O termo é emprestado de L. P. Jakubinski; cf. loc. cit.
151
da inter-relação social dos indivíduos na comunicação ideológica
verbal. (Trata-se, naturalmente, de tendências essenciais e constantes
dessa comunicação.)
Em que direção pode desenvolver-se a dinâmica da inter-relação
entre o discurso narrativo e o discurso citado? Estamos diante de duas
orientações principais:
Primeiramente, a tendência fundamental da reação ativa ao
discurso de outrem pode visar à conservação da sua integridade e
autenticidade. A língua pode esforçar-se por delimitar o discurso
citado com fronteiras nítidas e estáveis. Nesse caso, os esquemas
lingüísticos e suas variantes têm a função de isolar mais clara e
mais estritamente o discurso citado, de protegê-lo de infiltração pelas
entoações próprias ao autor, de simplificar e consolidar suas
características lingüísticas individuais.
Essa é a primeira orientação; convém discernir claramente nesse
quadro até que ponto a apreensão social do discurso de outrem é
diferenciada numa determinada comunidade lingüística, até que ponto
as expressões, as particularidades estilísticas do discurso, a coloração
lexical, etc., são distintamente percebidas e têm uma significação
social. Pode ser que o discurso de outrem seja recebido como um
único bloco de comportamento social, como uma tomada de posição
inanalisável do falante – e nesse caso apenas o “o quê” do discurso é
apreendido, enquanto o “como” fica fora do campo de compreensão.
Esse tipo de apreensão e de transmissão do discurso de outrem
lingüisticamente despersonalizado e preocupado com o sentido
objetivo domina em francês antigo e medieval (nesse último caso,
constata-se um desenvolvimento importante das variantes do discurso
indireto sem sujeito aparente3). Encontramos esse mesmo tipo nos
documentos russos antigos, embora neles falte quase completamente o
esquema do discurso indireto. O tipo dominante nesse caso é o do
discurso direto com sujeito não aparente (no sentido lingüístico4).

3
Sobre algumas particularidades do antigo francês nessa área, ver mais adiante.
Sobre o discurso citado em francês medieval, ver Gertraud Lerch. “Die
uneigentliche direkte Rede”, in Festschrift für Karl Vossler, 1922, p. 122 ss. Ver
igualmente Karl Vossler, Frankreichs Kultur im Spiegel seiner
Sprachentwicklung, 1913.
4
Por exemplo, na “Canção da Batalha de Igor” [célebre epopéia russa do século
XII, anônima, que constitui o primeiro documento escrito em língua russa [sic]
(N.d.T.fr.)], não há um único exemplo de discurso indireto, apesar da utilização
abundante da “palavra de outrem” nesse documento. Encontra-se muito
raramente o discurso indireto nos anais da Idade Média. O discurso de outrem é
152
No quadro da primeira orientação, convém discernir igualmente
o grau de firmeza ideológica, o grau de autoritarismo e de dogma-
tismo que acompanha a apreensão do discurso. Quanto mais
dogmática for a palavra, menos a apreensão apreciativa admitirá
a passagem do verdadeiro ao falso, do bem ao mal, e mais impes-
soais serão as formas de transmissão do discurso de outrem.
Na verdade, dentro de uma situação em que todos os julga-
mentos sociais de valor são divididos em alternativas nítidas e
distintas, não há lugar para uma atitude positiva e atenta a todos os
componentes individualizantes da enunciação de outrem. Um dogma-
tismo autoritário como esse é característico dos textos escritos em
francês medieval e em russo antigo. O século XVII na França e o
XVIII na Rússia caracterizam-se por um tipo racionalista de
dogmatismo que trata de maneira semelhante, embora com
orientações diferentes, o componente individual do discurso. No
quadro do dogmatismo racionalista, dominam as variantes
analisadoras do conteúdo do discurso indireto e as variantes retóricas
do discurso direto5. As fronteiras que separam o discurso citado do
resto da enunciação são nítidas e invioláveis.
Podemos chamar essa primeira orientação na qual se move
o dinamismo da interorientação entre o discurso narrativo e o
discurso citado, o estilo linear (der lineare Stil) de citação do
discurso de outrem (tomando o termo emprestado do crítico de
arte Wölfflin). A tendência principal do estilo linear é criar contornos
exteriores nítidos à volta do discurso citado, correspondendo a
uma fraqueza do fator individual interno. Nos casos em que
existe completa homogeneidade estilística de todo o texto (o autor
e suas personagens falam a mesma língua), o discurso cons-
truído como sendo o de outrem atinge um sobriedade e uma
plasticidade máximas.
Na segunda orientação da dinâmica da inter-relação da
enunciação e do discurso citado, observamos processos de natu-
reza exatamente oposta. A língua elabora meios mais sutis e
mais versáteis para permitir ao autor infiltrar suas réplicas e
seus comentários no discurso de outrem. O contexto narrativo
esforça-se por desfazer a estrutura compacta e fechada do

sempre introduzido sob a forma de massa compacta, fechada e pouco


individualizada.
5
O discurso indireto é quase inexistente na literatura russa da
época clássica.
153
discurso citado, por absorvê-lo e apagar as suas fronteiras. Pode-
mos chamar esse estilo de transmissão do discurso de outrem o
estilo pictórico. Sua tendência é atenuar os contornos exteriores
nítidos da palavra de outrem. Além disso, o próprio discurso é
bem mais individualizado. Os diferentes aspectos da enun-
ciação podem ser sutilmente postos em evidência. Não é apenas o
seu sentido objetivo que é apreendido, a asserção que está
nela contida, mas também todas as particularidades lingüísticas da
sua realização verbal.
Encontra-se igualmente, no quadro dessa segunda orientação,
uma variedade de tipos. O narrador pode deliberadamente apagar
as fronteiras do discurso citado, a fim de colori-lo com as
suas entoações, o seu humor, a sua ironia, o seu ódio, com o
seu encantamento ou o seu desprezo. Esse tipo é característico da
época do Renascimento (especialmente em francês), do fim do século
XVIII e de quase todo o século XIX. O dogmatismo autoritário e
racionalista tende a desaparecer completamente nesse caso. O que
domina, é um certo relativismo das apreciações sociais, o que é muito
favorável a uma apreensão positiva e intuitiva de todos os matizes
lingüísticos individuais do pensamento, das opiniões, dos
sentimentos. É sobre esse terreno que se desenvolve a corrente
“decorativa” no tratamento do discurso citado, que leva algumas
vezes a negligenciar o significado de uma enunciação em favor da sua
“cor” – por exemplo, na “escola natural” russa. De fato, no próprio
Gogol, a fala das personagens às vezes perde todo o seu sentido
objetivo, tornando-se objeto decorativo, da mesma forma que o
vestuário, a aparência, a mobília, etc.
Mas existe também um outro tipo, em que a dominante do discurso
é deslocada para o discurso citado; esse torna-se, por isso, mais forte e
mais ativo que o contexto narrativo que o enquadra. Dessa maneira, o
discurso citado é que começa a dissolver, por assim dizer, o contexto
narrativo. Esse último perde a grande objetividade que lhe é
normalmente inerente em relação ao discurso citado; nessas
condições, o contexto narrativo começa a ser percebido – e mesmo a
reconhecer-se – como subjetivo, como fala de “outra pessoa”. Nas
obras literárias, isso é muitas vezes composicionalmente expresso
pelo aparecimento de um narrador que substitui o autor propriamente
dito. O discurso do narrador é tão individualizado, tão “colorido” e
tão desprovido de autoritarismo ideológico como o discurso das
personagens. A posição do narrador é fluida, e na maioria dos casos
ele usa a linguagem das personagens representadas na obra. Ele não
pode opor às suas posições subjetivas, um mundo mais autoritário e
154
mais objetivo. Essa é a natureza da narração em Dostoievski, Andriéi
Biéli, Remízov, Sologub e nos romancistas russos contemporâneos6.
Se a ofensiva do contexto narrativo contra o discurso citado traz a
marca de um idealismo ou de um coletivismo discretos no que diz
respeito à apreensão do discurso de outrem, a decomposição do
contexto narrativo testemunha uma posição de individualismo
relativista na apreensão do discurso. Neste último, à enunciação
citada subjetiva opõe-se um contexto narrativo que comenta e replica
e que se reconhece como igualmente subjetivo.
Toda a segunda orientação caracteriza-se por um desenvolvi-
mento notável dos modelos mistos de transmissão do discurso:
o discurso indireto sem sujeito aparente e, particularmente, o discur-
so indireto livre, que é a forma última de enfraquecimento
das fronteiras do discurso citado. Ainda, entre as variantes do dis-
curso direto e indireto, predominam aquelas que possuem maior
flexibilidade e são mais permeáveis às tendências do contexto
––––––––––––––––––––––––––
por Dolinin, I, 1923, p. 239-241 (a semelhança entre a linguagem do narrador e a
linguagem do herói já tinha sido notada por Bielínski). B. M. Engelhardt observa
muito corretamente que “não se encontra nenhuma descrição por assim dizer
objetiva do mundo exterior em Dostoievski. ... Devido a esse fato, gerou-se na
obra de arte literária uma multiestratificação da realidade que levou a uma
dissolução típica do ser, no caso dos sucessores de Dostoievski. Engelhardt
observa essa “dissolução do ser” no Miélki bies (O Diabinho) de Sologub e no
Peterburg de A. Biéli. (Ver B. M. Engelhardt. “Ideologuítcheski roman
Dostoievskovo” [O Romance Ideológico de Dostoievski], Dostoievski, ed. por
Dolinin, II, 1925, p. 94). Eis como Bally define o estilo de Zola: “Personne plus

6
Há uma literatura bastante vasta sobre o papel do narrador na
epopéia. A obra básica até o presente é a de K. Friedmann, Die
Rolle des Erzählers in der Epek (1910). Na Rússia, foram os
formalistas que despertaram o interesse pelo problema do
narrador. V. V. Vinogradov define o dis-
curso do narrador em Gógol como “ziguezagueando do autor
para as personagens” cf. Gógol i naturálnaia chkola [Gógol e a
Escola Natural]). De acordo com Vinogradov, o estilo do
narrador de Dostoievski em Dvóinik (O Duplo) ocupa uma
posição semelhante em relação ao estilo do herói, Goliádkin.
Ver “Stil peterbúrgskoi poemi, Dvóinik” (O Estilo do Poema
de Petersburgo, O Duplo), [(Dostoievski)], editado
155
que Zola n’a usé et abusé du procédé qui consiste à faire passer tous les
événements par le cerveau de ses personnages, à ne décrire les paysages que par
leurs yeux, à n’énoncer des idées personelles que par leur bouche. Dans ses
derniers romans, ce n’est plus une manière: c’est un tic, c’est une obsession.
Dans Rome, pas un coin de la ville éternelle, pas une scène qu’il ne voie par les
yeux de son abbé, pas une idée sur la religion qu’il ne formule par son
intermédiaire” (apud E. Lorck, Die “Erlebte Rede”), p. 64. (Ninguém como Zola
usou e abusou do procedimento que consiste em fazer passar todos os
acontecimentos pela cabeça de suas personagens, em não descrever as paisagens
a não ser pelos seus olhos, em só anunciar as idéias pessoais pela sua boca. Nos
seus últimos romances, não se trata mais de uma maneira: é um tique, é uma
obsessão. Em Roma, não há um canto da cidade eterna, uma cena que ele não
veja pelos olhos do seu abade, uma idéia sobre a religião que não seja formulada
por seu intermediário).
Um artigo interessante dedicado ao problema do narrador é o de Iliá Gruzdiev,
“O priiómakh khudójestvennovo povestvovánia” (Os Procedimentos da Narração
Literária) in Zapíski Peredvíjnovo Teatra (Notas do Teatro Ambulante),
Petrogrado, 1922, no 40, 41, 42. Entretanto, nenhum desses trabalhos aborda o
problema da transmissão do discurso da perspectiva da lingüística.
narrativo (por exemplo, o discurso direto disperso, as formas de
discurso indireto analíticas da textura do discurso, etc.).
O exame de todas essas tendências da apreensão ativa do discurso
citado deve levar em conta todas as particularidades dos fenômenos
lingüísticos em estudo. O fim que o contexto narrativo procura
alcançar é particularmente importante. A esse respeito, o discurso
literário transmite com muito mais sutileza que os outros todas as
transformações na inteorientação sócio-verbal. O discurso retórico,
diferentemente do discurso literário, pela própria natureza da sua
orientação, não é tão livre na sua maneira de tratar as palavras de
outrem. Ele tem, de forma inerente, um sentimento agudo dos direitos
de propriedade da palavra e uma preocupação exagerada com a
autenticidade. A linguagem judicial intrinsecamente assume uma
discrepância nítida entre o subjetivismo verbal das partes num
processo e a objetividade do julgamento. A retórica política é análoga.
É importante determinar o peso específico dos discursos retórico,
judicial ou político na consciência lingüística de um dado grupo
social numa determinada época. Além disso, é importante levar
sempre em conta a posição que um discurso a ser citado ocupa na
hierarquia social de valores. Quanto mais forte for o sentimento de
eminência hierárquica na enunciação de outrem, mais claramente
definidas serão as suas fronteiras, e menos acessível será ela à
penetração por tendências exteriores de réplica e comentário. Assim,
por exemplo, no interior do quadro do neoclassicismo, nos gêneros
156
menores, observam-se desvios consideráveis do estilo linear,
racionalista e dogmático de transmitir a palavra de outrem. É
sintomático que o discurso indireto livre tenha atingido o seu primeiro
desenvolvimento importante precisamente aí – nas fábulas e contos de
La Fontaine.
Para resumir o que acabamos de dizer sobre as tendências
possíveis da inter-relação dinâmica do discurso citado e do contexto
narrativo, podemos propor a seguinte seqüência cronológica:
1. Dogmatismo autoritário, caracterizado pelo estilo linear,
impessoal e monumental de transmitir a fala de outrem na Idade
Média;
2. Dogmatismo racionalista, com seu estilo linear ainda mais
pronunciado nos séculos XVII e XVIII;
3. Individualismo realista e crítico, com seu estilo pictórico e sua
tendência para infiltrar o discurso citado com as réplicas e os
comentários do autor (fim do século XVIII e começo do XIX); e,
finalmente,
4. Individualismo relativista, com a sua diluição do contexto
narrativo (época contemporânea).
A língua existe não por si mesma, mas somente em conjunção com
a estrutura individual de uma enunciação concreta. É apenas através
da enunciação que a língua toma contato com a comunicação, imbui-
se do seu poder vital e torna-se uma realidade. As condições da
comunicação verbal, suas formas e seus métodos de diferenciação são
determinados pelas condições sociais e econômicas da época. As
condições mutáveis da comunicação sócio-verbal precisamente são
determinantes para as mudanças de formas que observamos no que
concerne à transmissão do discurso de outrem. Além disso,
aventuramo-nos mesmo a dizer que, nas formas pelas quais a língua
registra as impressões do discurso de outrem e da personalidade do
locutor, os tipos de comunicação sócio-ideológica em transformação
no curso da história manifestam-se com um relevo especial.

157
CAPÍTULO 10
DISCURSO INDIRETO, DISCURSO DIRETO
E SUAS VARIANTES

Estabelecemos as tendências fundamentais da dinâmica da


orientação recíproca do discurso citado e do discurso narrativo. Essa
dinâmica encontra sua expressão lingüística concreta nos esquemas de
transmissão do discurso de outrem e nas variantes dos esquemas de
base, que constituem, de alguma forma, os indicadores da relação de
força que se estabelece entre o contexto narrativo e o discurso citado
num determinado momento do desenvolvimento da língua.
Vamos agora fazer uma breve caracterização dos esquemas e de
suas principais variantes do ponto de vista das tendências que
indicamos.
Antes de mais nada, é preciso dizer algumas palavras acerca da
relação entre as variantes e o esquema de base. Pode-se compará-la à
relação entre a realidade viva do ritmo e a abstração que constitui a
métrica. O esquema só se realiza sob a forma de uma variante
específica. É nas variantes que se acumulam as mudanças, no curso
dos séculos e dos decênios, e que se estabilizam os novos hábitos da
orientação ativa em relação ao discurso de outrem, os quais se fixam
em seguida sob a forma de representações lingüísticas duráveis nos
esquemas sintáticos. As variantes se encontram na fronteira da
gramática e da estilística. Algumas vezes, pode haver controvérsia
quanto a saber se uma forma de transmissão do discurso de outrem
constitui um esquema de base ou uma variante, se se trata de uma
questão de gramática ou de estilística. Houve, por exemplo, uma
controvérsia dessa ordem a respeito do discurso indireto livre em
francês e em alemão entre Bally, por um lado, e Kalepky e Lorck, por
outro. Bally recusava-se a reconhecer no discurso indireto livre um
legítimo esquema sintático e via-o como uma simples variante estilís-
tica. Do nosso ponto de vista, é impossível estabelecer uma fron-
teira estrita entre a gramática e a estilística, entre o esquema gramatical
158
e sua variante estilística. Essa fronteira é instável na própria vida
da língua, onde algumas formas se encontram num processo de
gramaticalização, enquanto outras estão em vias de
desgramaticalização, e essas formas ambíguas, esses casos limítrofes,
é que apresentam maior interesse para o lingüista; é justamente neles
que se podem captar as tendências da evolução da língua1.
Limitaremos nossa caracterização dos esquemas dos discursos
direto e indireto à língua literária russa. Mesmo assim, não tentaremos
enumerar todas as suas variantes possíveis. Interessa-nos
exclusivamente o aspecto metodológico da questão.
Os esquemas sintáticos de transmissão do discurso de outrem são,
como se sabe, muito pouco desenvolvidos na língua russa. Além do
discurso indireto livre, que é desprovido de marcas sintáticas claras
(como ocorre também em alemão), há dois esquemas: o discurso
direto e o discurso indireto. Mas não existem entre esses dois
esquemas diferenças notáveis como acontece em outras línguas. As
marcas do discurso indireto são fracas, e durante a conversa, podem
ser facilmente confundidas com as do discurso direto2.

1
Ouve-se freqüentemente criticar Vossler e os vosslerianos
porque eles se ocupam mais de estilística do que de lingüística
propriamente dita. Na realidade, a escola de Vossler se interessa
por problemas que estão nos limites das duas disciplinas, porque
compreendeu a sua importância metodológica e heurística, e nós
vemos nisso razão para admirá-la. Infelizmente, os vosslerianos,
como sabemos, colocam em primeiro plano os fatores subjetivos
psicológicos e os dados estilísticos individuais quando tentam
explicar esses fenômenos.
2
Em muitas outras línguas, o discurso indireto se distingue
claramente do discurso direto pela sintaxe (pelo emprego dos
tempos, dos modos, das conjunções, dos anafóricos, etc.), de tal
forma que ele constitui um esquema complexo de transmissão
indireta do discurso. Em russo, entretanto, mesmo aquelas
poucas marcas distintivas que mencionamos há pouco
freqüentemente perdem seu efeito, de modo que o discurso
indireto se confunde com o direto. Óssip, por exemplo, no
Revisor (O Inspetor Geral) de Gógol diz: “O albergueiro disse
que eu não sirvo de comer enquanto você não tiver pagado sua
159
A ausência de consecutio temporum e a não utilização do
subjuntivo priva o discurso indireto em russo de identidade própria e
não cria um terreno favorável para o desenvolvimento amplo de
variantes importantes e interessantes do nosso ponto de vista. Na
verdade, somos obrigados a afirmar a predominância absoluta do
discurso direto em russo. Não houve, na história da língua russa,
nenhum período cartesiano, racionalista, durante o qual o
“contexto narrativo”, racional, seguro de si mesmo e objetivo
analisasse e decompusesse o conteúdo objetivo do discurso de outrem
e criasse assim variantes complexas e interessantes do discurso
indireto.
Todas essas particularidades da língua russa criam uma situa-
ção extremamente favorável a um estilo pictórico de transmissão
do discurso de outrem, embora, diga-se de passagem, bastante frouxo
e flácido, isto é, sem a percepção de limites e oposições a ultra-
passar que se sente em outras línguas. O que domina é um modo
de interação e de interpenetração extremamente fácil do discurso
narrativo e do discurso citado. Isso está relacionado com o
papel pouco significativo que a retórica desempenhou na história
da língua literária russa, marcada por um estilo linear de transmissão
das palavras de outrem, comportando entoações pouco sutis e
claramente unívocas.
Vamos expor inicialmente as características do discurso indireto,
que constitui o esquema menos elaborado na língua russa.
Começaremos por uma pequena crítica a A. M. Pechkovski. Depois
de observar que as nossas formas de discurso indireto são pouco
elaboradas, ele faz a seguinte declaração, que nos parece um pouco
deslocada:

“Para convencer-se de que o discurso indireto é estranho à língua


russa, basta apenas tentar transpor qualquer trecho em discurso direto,
mesmo uma simples afirmação, para discurso indireto. Por exemplo:
O Asno, abaixando sua cabeça até o chão, diz ao Rouxinol que nada
mal, que sem brincadeira, é bonito ouvi-lo cantar, mas que pena que
ele não conhece o Galo deles, que ele poderia dar uma boa
melhorada no seu canto, se tomasse algumas lições com ele”.3

conta”. (Exemplo tirado de Pechkovski, A Sintaxe Russa, 3a ed.,


p. 553, com itálicos de Pechkovski).
3
Ibid., p. 554. (O “trecho de discurso direto” que Pechkovski
usa para o seu exemplo é tirado da conhecida fábula de Ivan
160
Se Pechkovski tivesse feito a mesma experiência de transpor
mecanicamente o discurso direto para indireto, em francês, ob-
servando apenas as regras gramaticais, teria chegado exatamente
às mesmas conclusões. Se, por exemplo, ele tivesse tentado passar
para formas de discurso indireto o discurso direto ou mesmo indi-
reto livre que La Fontaine usa em suas fábulas (a última forma é
muito usada por ele), os resultados obtidos teriam sido tão
gramaticalmente corretos e estilisticamente inadequados como no
exemplo russo. E isso teria acontecido apesar do fato de ser o discurso
indireto livre muito próximo do discurso indireto em francês
(as mesmas mudanças de tempo e de pessoa ocorrem em ambos).
Toda uma série de palavras, de expressões, de maneiras de dizer
que convêm perfeitamente ao discurso direto e indireto livre
parecerão completamente estranhos se forem transpostos para o
discurso indireto. Pechkovski comete um erro típico de um
“gramático”.
A transposição palavra por palavra, por procedimentos puramente
gramaticais, de um esquema para outro, sem fazer as modificações
estilísticas correspondentes, é nada mais que um método escolar de
exercícios gramaticais, pedagogicamente mau e inadmissível.
Esse tipo de aplicação dos esquemas não tem nada a ver com a
sua utilização viva na língua. Os esquemas exprimem uma tendência
à apreensão ativa do discurso de outrem. Cada esquema recria à
sua maneira a enunciação, dando-lhe assim uma orientação particular, especí-
fica. Se a língua, num determinado estágio do seu desenvol-
vimento, percebe a enunciação de outrem como um todo com-
pacto, inanalisável, imutável e impenetrável, ela não compor-
tará nenhum outro esquema além do esquema primitivo e inerte
do discurso direto (o estilo monumental). É exatamente

Krylov, O Asno e o Rouxinol. Na fábula, o Asno diz ao


Rouxinol, depois que este demonstrou a sua arte: “Nada mal!
Sem brincadeira, é bonito ouvi-lo cantar! Mas que pena que
você não conhece o nosso Galo! Você poderia dar uma boa
melhorada no seu canto se tomasse algumas lições com ele”.
Pechkovski faz uma transposição puramente mecânica desse
trecho para o discurso indireto. O resultado é estranho; na
verdade, impossível. A tradução procura dar uma idéia desse
resultado. (N.d.T.am.).
161
essa concepção da imutabilidade da enunciação de outrem, e abso-
luta literalidade da sua transmissão que Pechkovski adota na
sua experiência; mas, ao mesmo tempo, ele procura aplicar
o esquema do discurso indireto. O resultado obtido não prova
em absoluto que o discurso indireto é estranho à língua russa.
Ao contrário, prova que, apesar do pequeno grau de desenvol-
vimento do esquema indireto em russo, ele é suficien-
temente caracterizado para impedir a transposição literal de um
enunciado qualquer em discurso livre4.
A singular experiência efetuada por Pechkovski evidencia sua total
ignorância da significação lingüística própria do discurso indireto.
Essa significação reside na transmissão analítica do discurso de
outrem. O emprego do discurso indireto ou de uma de suas
variantes implica uma análise da enunciação simultânea ao ato de
transposição e inseparável dele. Variam apenas o grau e a orientação
da análise. A tendência analítica do discurso indireto manifesta-se
principalmente pelo fato de que os elementos emocionais e afetivos
do discurso não são literalmente transpostos ao discurso indireto, na
medida em que não são expressos no conteúdo mas nas formas da
enunciação. Antes de entrar numa construção indireta, eles passam de
formas de discurso a conteúdo ou então encontram-se transpostos na
proposição principal como um comentário do verbum dicendi. Por
exemplo, a enunciação direta: “Muito bem! Que grande realização!”
não pode ser transposta para discurso indireto da seguinte maneira:
“Ele disse que muito bem e que grande realização”. Ao contrário,
esperamos ou: “Ele disse que estava muito bem e que era uma grande
realização”, ou “Ele disse entusiasmado que estava bem e que era uma
grande realização”.
As abreviações, elipses, etc., possíveis no discurso direto por
motivos emocionais e afetivos, não são admissíveis no discurso
indireto por causa da sua tendência analítica. Esses elementos só
entram na sua construção sob uma forma completa e elaborada. No
exemplo de Pechkovski, a exclamação do Asno: “Nada mal!” não
pode ser diretamente integrada no discurso indireto sob a forma: “Ele
diz que nada mal...” mas apenas como: “Ele diz que não estava mal...”
ou mesmo “Ele diz que o rouxinol não cantava mal”. Da mesma
forma, “sem brincadeira” não pode ser mecanicamente transposto

4
O erro de Pechkovski que analisamos aqui, mostra uma vez
mais até que ponto é metodologicamente prejudicial divorciar a
gramática da estilística.
162
para o discurso indireto, nem “Que pena que você não conhece...”
pode ser transposto como “mas que pena que ele não conhece...”.
É óbvio que a mesma impossibilidade de uma transposição
mecânica do discurso direto para o indireto também se aplica à forma
original de qualquer construção ou características de acentuação que o
falante usou para expressar suas intenções. Assim as peculiaridades
de construção e de entoação dos enunciados interrogativos,
exclamativos ou imperativos não se conservam no discurso indireto,
aparecendo apenas no conteúdo.
O discurso indireto ouve de forma diferente o discurso de
outrem; ele integra ativamente e concretiza na sua transmissão
outros elementos e matizes que os outros esquemas deixam de
lado. Por isso transposição literal, palavra por palavra, da enun-
ciação construída segundo um outro esquema só é possível nos casos
em que a enunciação direta já se apresenta na origem como uma
forma algo analítica – isso, naturalmente, dentro dos limites das
possibilidades analíticas do discurso direto. A análise é a alma do
discurso indireto.
Se examinarmos de mais perto a experiência de Pechkovski,
observaremos que a “coloração” lexical de palavras tais como
“nada mal” e “dar uma boa melhorada” não são totalmente
compatíveis com o espírito analítico que caracteriza o discurso
indireto. São expressões muito coloridas; elas não só transmitem o
exato significado do que foi dito mas também sugerem a maneira de
falar (individual ou tipológica) do Asno enquanto personagem.
Poderíamos preferir substituí-los por sinônimos (“bem” ou “fazer
progressos”) ou, se quiséssemos conservá-las na construção indireta,
iríamos pô-las entre aspas, pelo menos. Se fôssemos ler o resultado
em voz alta, leríamos as expressões entre aspas de maneira diferente,
para dar a entender através da nossa entoação que elas são tomadas
diretamente do discurso de outra pessoa e que nós queremos manter
distância. Mas aqui entramos no cerne do problema, isto é, na
necessidade de distinguir as duas orientações que pode tomar a
tendência analítica no discurso indireto e as duas variantes principais
correspondentes.
De fato, a análise envolvida numa construção de discurso indireto
pode seguir em duas direções ou, mais precisamente, pode dirigir a
atenção para dois objetos fundamentalmente diferentes. A enunciação
de outrem pode ser apreendida como uma tomada de posição com
conteúdo semântico preciso por parte do falante, e nesse caso, através
da construção indireta, transpõe-se de maneira analítica sua
composição objetiva exata (o que disse o falante). Assim, no exemplo
163
considerado, é possível transmitir exatamente o sentido objetivo da
apreciação do canto do Rouxinol pelo Asno. Mas pode-se também
apreender e transmitir de forma analítica a enunciação de outrem
enquanto expressão que caracteriza não só o objeto do discurso (que
é, de fato, menor) mas ainda o próprio falante: sua maneira de falar
(individual, ou tipológica, ou ambas); seu estado de espírito, expresso
não no conteúdo mas nas formas do discurso (por exemplo, a fala
entrecortada, a escolha da ordem das palavras, a entoação expressiva,
etc.); sua capacidade ou incapacidade de exprimir-se bem, etc.
Esses dois objetos de análise da transmissão indireta são pro-
funda e fundamentalmente diferentes. Num caso, o sentido
é decomposto em constituintes semânticos, em elementos obje-
tivos; no outro, a própria enunciação, enquanto tal, é analisada em
níveis lingüístico-estilísticos. A segunda tendência, levada ao seu
extremo lógico, corresponderia a uma análise lingüística técnica do
estilo. Entretanto, simultaneamente com o que poderia parecer uma
análise estilística, opera-se também, nesse tipo de transmissão
indireta, uma análise objetiva do discurso de outrem; disso resulta,
portanto, uma decomposição analítica do sentido objetivo do mesmo
modo que da sua forma de representação verbal.
Vamos chamar a primeira variante de discurso indireto analisador
do conteúdo e a segunda, de discurso indireto analisador
da expressão. A variante analisadora do conteúdo apreende
a enunciação de outrem no plano meramente temático e permanece
surda e indiferente a tudo que não tenha significação temática.
Os aspectos da construção verbal formal que têm uma signi-
ficação temática, isto é, que são necessários à compreensão da posi-
ção semântica do falante, são transformados de maneira temática
(no exemplo citado, a construção exclamativa e a expressão de
entusiasmo podem ser transmitidas pela palavra “muito”) ou então são
integrados no contexto narrativo, como uma característica formulada
pelo autor.
A variante analisadora do conteúdo abre grandes possibilidades às
tendências à réplica e ao comentário no contexto narrativo, ao mesmo
tempo que conserva uma distância nítida e estrita entre as palavras do
narrador e as palavras citadas. Graças a isso, ela constitui um
instrumento perfeito de transmissão do discurso de outrem em estilo
linear. A tendência a tematizar o discurso de outrem é
incontestavelmente inerente a essa variante, e assim ela preserva a
integridade e a autonomia da enunciação, não tanto em termos
sintáticos mas em termos semânticos (vimos como uma construção
expressiva numa enunciação a ser citada pode ser tematizada). Esses
164
resultados, contudo, só são obtidos ao preço de uma certa
despersonalização do discurso citado.
A variante analisadora do conteúdo só pode desenvolver-se de
maneira razoavelmente ampla e substancial num contexto enunciador
suficientemente racional e dogmático, no qual, de qualquer forma, se
manifesta um forte interesse pelo conteúdo semântico, e onde o autor
afirma através de suas próprias palavras, com sua própria
personalidade, uma posição de forte conteúdo semântico. Quando isso
não ocorre, quando ou a própria linguagem do autor é ela mesma
cheia de cor e individualizada, ou quando a fala é passada diretamente
a algum narrador de mesma envergadura, essa variante terá apenas
uma significação secundária e ocasional (como acontece, por
exemplo, em Gógol, Dostoievski e muitos outros).
De uma maneira geral, essa variante é pouco desenvolvida em
russo. Ela é encontrada essencialmente nos contextos epistemoló-
gicos ou retóricos (de natureza científica, filosófica, política, etc.),
nos quais o autor é levado a expor as opiniões de outrem sobre
um determinado assunto, a opô-las e delimitá-las. Ela é rara na
expressão literária. Só adquire uma certa importância naqueles
autores que não hesitam em dar às suas palavras uma orientação e um
peso semânticos, como por exemplo em Turguiéniev e
particularmente em Tolstói. Mas, mesmo aí, não encontramos a
riqueza e a variedade que essa variante desenvolveu em francês e em
alemão.
Passemos à variante analisadora da expressão. Ela integra na
construção indireta as palavras e as maneiras de dizer do discurso de
outrem que caracterizam a sua configuração subjetiva e estilística
enquanto expressão. Essas palavras e maneiras de dizer são
introduzidas de tal forma que sua especificidade, sua subjetividade,
seu caráter típico são claramente percebidos. Na maioria das vezes,
elas são colocadas abertamente entre aspas. Aqui estão quatro
exemplos:

1. A respeito do morto [Grigori] declarou, fazendo o sinal da cruz,


que o tipo tinha qualidades, mas que era estúpido e “arrasado pela
doença”, e pior ainda, que “ele era um descrente”, e que tinha sido
Fiódor Pávlovitch e seu filho mais velho que lhe tinham ensinado
“essa descrença”. (Dostoievski, Os Irmãos Karamázov).*

*
Nesse exemplo e nos que seguem, é o autor quem grifa.
(N.d.T.fr.).
165
2. A mesma coisa aconteceu também com os poloneses: eles
chegaram com uma demonstração de orgulho e independência.
Afirmaram em alta voz que, em primeiro lugar, estavam “a serviço da
Coroa” e que “o senhor Mitia” oferecera 3000 rublos para comprar a
honra deles, e que eles tinham visto com seus próprios olhos largas
somas de dinheiro nas mãos deles. (Ibid.)

3. Krassótkin negou orgulhosamente a acusação, dando a enten-


der que seria realmente uma vergonha “nos dias que correm” brincar
de cavalinho com os meninos da sua idade, todos com 13 anos, mas
que ele fizera isso pelos “garotos”, porque ele os amava e não
reconhecia a ninguém o direito de contestar os seus sentimentos.
(Ibid.)

4. Ele encontrou Nastasia Filíppovna num estado próximo da


completa loucura; dava gritos, tremia, berrava que Rogójin estava
escondido no jardim, na sua própria casa, que ela acabava de vê-lo,
que ele ia matá-la... cortar-lhe a garganta! (Dostoievski, O Idiota).
(Aqui a construção de discurso indireto retém a entoação expressiva
da mensagem original.)
As palavras e expressões de outrem integrados no discurso indi-
reto e percebidos na sua especificidade (particularmente quando
são postos entre aspas), sofrem um “estranhamento”, para usar
a linguagem dos formalistas, um estranhamento que se dá justamente
na direção que convém às necessidades do autor: elas adquirem
relevo, sua “coloração” se destaca mais claramente, mas ao mesmo
tempo elas se acomodam aos matizes da atitude do autor – sua ironia,
humor, etc.*
Convém distinguir essa variante do discurso indireto dos casos
de passagem do discurso indireto ao direto sem modificações, se
bem que suas funções sejam praticamente idênticas quando o

*
Um exemplo em português, de Eça de Queirós: “Fatigou então
Amaro toda uma semana com uma ternura pueril. Lembrava-lhe
cada meia hora que “era o papá do seu Carlinhos”. (O Crime do
Padre Amaro). Outro exemplo, este de Fialho de Almeida: “...
perguntando se estava por lá um rapazote a modos encorpado,
barba nenhuma, uma cicatriz no queixo dum carbúnculo... o
filho dela” (O País das Uvas). (N.d.T.)
166
discurso direto continua o indireto, a subjetividade do discurso
aparece com maior nitidez e no sentido que convém ao autor.
Por exemplo:

1. Trífon Boríssovitch tentou como pôde ser evasivo, mas


depois de ter sido questionado pelos camponeses, acabou confes-
sando que tinha achado a nota de cem rublos; acrescentou
somente que ele tinha no mesmo momento devolvido tudo
escrupulosamente a Dmitri Fiódorovitch, “palavra de honra, só que,
vocês vêem, o cavalheiro, como estava naquele momento
completamente bêbado, não consegue lembrar-se”. (Dostoievski,
Os Irmãos Karamázov.)

2. Apesar de todo o respeito devido à memória do seu finado


Bárin, ele declarou entre outras coisas que este fora negligente com
Mitia e que “não educava bem as crianças. Sem mim, o menino teria
sido comido vivo pelos piolhos”, acrescentou ele, recordando
episódios da infância de Mitia. (Ibid.)**
Tal ocorrência, em que o discurso direto é preparado pelo indireto
e emerge como que de dentro dele – como as esculturas de Rodin,
em que a figura só parcialmente emerge da pedra – é uma
das inumeráveis variantes do discurso direto tratado pictoricamente.
Essa é, portanto, a natureza da variante analisadora da expressão
do discurso indireto. Ela cria efeitos pictóricos extremamente
originais na transmissão do discurso citado. Essa variante supõe um
alto grau
de individualização da enunciação citada na consciência lingüística, e
a capacidade de perceber com discriminação as representa-
ções lingüísticas da enunciação, delas extraindo o seu sentido
objetivo. Isso é incompatível com a apreensão autoritária
ou racionalista da enunciação de outrem. Enquanto procedi-
mento estilístico, essa variante só pode enraizar-se na língua sobre

**
Um exemplo de Eça de Queirós: “Havia; e o pároco leu-lhe
então em confidência uma carta que tinha ao lado. Era do
cônego, que escrevia da Vieira, dizendo “que a São Joaneira
tinha já trinta banhos e queria voltar! Eu (acrescentava), perco
quase todas as manhãs três, quatro banhos, de propósito para os
espaçar e dar tempo, porque cá a minha mulher já sabe que eu
sem os meus cinqüenta não vai”. (Op. cit.). (N.d.T.).
167
o terreno do individualismo crítico e realista, ao passo que a variante
analisadora do conteúdo é justamente característica do individua-
lismo racionalista. Na história da língua russa, esse último perío-
do é praticamente inexistente. E isso explica a absoluta predomi-
nância da variante analisadora da expressão sobre a variante
analisadora do conteúdo em russo. Além disso, a ausência de
consecutio temporum em russo é muito favorável ao desenvolvimento
daquela tendência.
Vemos assim que as nossas duas variantes, embora unidas por uma
tendência analítica geral do esquema, exprimem contudo abordagens
lingüísticas divergentes do discurso de outrem e da personalidade do
falante. Para a primeira variante, a personalidade do falante só existe
enquanto ocupa uma posição semântica determinada (cognitiva, ética,
moral, de forma de vida) e, fora dessa posição, transmitida de maneira
estritamente objetiva, ela não existe para o transmissor. Não há aqui
condições para que a individualidade do falante se cristalize numa
imagem.
O oposto é verdadeiro em relação à segunda variante, na qual a
individualidade do falante é apresentada como maneira subjetiva
(individual ou tipológica), como modo de pensar e falar, o que
implica ao mesmo tempo um julgamento de valor do autor sobre esse
modo. Aqui a individualidade do falante se cristaliza ao ponto de
formar uma imagem.
Em russo, pode-se ainda mencionar uma terceira variante, bas-
tante importante, da construção indireta. Ela é essencialmente
utilizada para a transmissão do discurso interior, dos pensamentos
e sentimentos da personagem. Ela trata o discurso de outrem
com bastante liberdade, abrevia-o, indicando freqüentemente apenas
os seus temas e suas dominantes: por isso, pode ser chamado
impressionista. A entoação do autor flutua livre e facilmente sobre a
sua estrutura fluída. Eis um exemplo clássico dessa variante
impressionista, tirado do Cavaleiro de Bronze de Púchkin:

“Em que pensava ele? Que era pobre; que precisava tentar
conquistar a independência e o respeito pelo esforço: que Deus bem
podia lhe ter concedido um pouco mais de inteligência e de dinheiro.
Pois não existem aqueles afortunados preguiçosos, estúpidos, para
quem a vida é uma moleza? Que ele estivera em serviço durante dois
anos ao todo; pensava também que o tempo não estava melhorando;
que o rio continuava subindo; que as pontes sobre o Neva estariam
muito provavelmente levantadas e que ele estaria dois ou três dias
separado da sua Paracha.”
168
Observamos por esse exemplo que a variante impressionista do
discurso indireto se encontra a meio caminho entre a variante
analisadora do conteúdo e a variante analisadora da expressão. Em
alguns momentos, opera-se uma análise objetiva bem nítida. Algumas
das palavras e das maneiras de dizer originaram-se claramente na
mente do herói, Eugênio (embora não se enfatize a sua
especificidade). Mas o que se percebe mais é a ironia do autor, sua
acentuação, a atividade empregada para organizar e abreviar o
conteúdo a expressar.
Passemos agora ao esquema do discurso direto, que é muito bem
elaborado na língua literária russa e possui uma imensa variedade de
modificações. Desde os blocos maciços, inertes, indecomponíveis do
discurso direto tal como é encontrado nos textos russos antigos, até aos
procedimentos flexíveis e freqüentemente ambíguos utilizados para
inserir o discurso direto no seu contexto na língua contemporânea,
desenrola-se o longo e instrutivo caminho do seu desenvolvimento
histórico. Mas abster-nos-emos não só de examinar essa caminhada
histórica como também de fazer uma descrição sincrônica das
variantes efetivas do discurso direto na língua literária. Limitar-nos-
emos simplesmente àquelas variantes nas quais se efetua uma troca de
entoações, nas quais se constata um estágio recíproco entre o discurso
narrativo e o discurso citado. Além disso, não nos interessaremos
tanto pelos casos em que o discurso narrativo avança contra a
enunciação citada, contaminando-a com suas entoações próprias,
como por aqueles em que, ao contrário, as palavras citadas espalham-
se e enxameiam por todo o contexto narrativo, tornando-o flexível e
ambíguo. Aliás, não é sempre possível diferenciar os dois casos:
muitas vezes, o contágio revela-se justamente recíproco.
A primeira orientação da inter-relação dinâmica, caracterizada pela
“imposição” do autor, pode ser chamada discurso direto preparado5.

5
Não nos ocuparemos aqui dos procedimentos mais primitivos
de que dispõe o autor para replicar ao discurso direto e comentá-
lo: a utilização do itálico (que equivale a um deslocamento de
acento), a inserção aqui e ali de observações e conclusões entre
parênteses, ou mesmo simplesmente o ponto de exclamação, de
interrogação, o sic, etc. Para atenuar a inércia do discurso direto,
outro procedimento muito eficaz consiste nas várias
169
O caso do discurso direto que emerge do indireto (que já
expusemos) pertence a essa categoria. Uma ocorrência
particularmente interessante e de largo uso dessa variante é a
emergência do discurso direto de dentro do indireto livre. Como
a natureza deste último é meio narrativa, meio transmissora da pala-
vra de outrem, ele já prepara a percepção do discurso direto. Os
temas básicos do discurso direto que virá são antecipados pelo
contexto e coloridos pelas entoações do autor. Dessa maneira,
as fronteiras da enunciação de outrem são bastante enfraquecidas.
A descrição do estado de espírito do príncipe Míchkin às beiras de
um ataque epiléptico, em O Idiota, de Dostoievski, constitui
um exemplo clássico dessa variante. Ela cobre, na verdade, quase
todo o quinto capítulo da segunda parte dessa obra (encontram-se
aí também magníficos exemplos de discurso indireto livre). Aqui,
o discurso direto do príncipe só ecoa no seu mundo pessoal, pois
a narrativa é conduzida pelo autor dentro dos limites do horizonte
do príncipe. O discurso citado destaca-se sobre um fundo per-
ceptivo que pertence metade ao autor e metade ao herói. Entretanto,
fica perfeitamente claro para nós que uma infiltração profunda
das entoações do autor no discurso direto é quase sempre
acompanhada por um enfraquecimento da objetividade do contexto
narrativo.
Outra modificação na mesma direção pode ser denomi-
nada discurso direto esvaziado. O contexto narrativo aqui é cons-
truído de tal forma que a caracterização objetiva do herói, feita
pelo autor, lança espessas sombras sobre o seu discurso direto.
As apreciações e o valor emocional de que sua representação obje-
tiva está carregada, transmitem-se às palavras do herói. O peso
semântico das palavras citadas diminui, mas, em compensação,
sua significação caracterizadora se reforça, da mesma forma que sua
tonalidade ou seu valor típico. De maneira semelhante, quando
reconhecemos uma personagem cômica no palco por seu estilo de
maquilagem, sua roupa e sua atitude geral, já estamos prontos a rir
mesmo antes de apreender o sentido de suas palavras. É assim que se
apresenta, na maior parte das vezes, o discurso direto em Gógol e nos
representantes da chamada escola natural. Na sua primeira obra,
Dostoievski precisamente esforçou-se por dar vida a esse discurso
direto particularizado.

possibilidades de colocação do verbo introdutor, associado por


vezes a observações réplicas e comentários.
170
A preparação do discurso citado e a antecipação de seu tema e
de seus valores e inflexões na narração pode de tal forma colorir
o contexto narrativo com as tonalidades do herói que ele termina
por assemelhar-se ao discurso citado, embora conservando as
entoações próprias ao autor. Conduzir a narrativa exclusiva-
mente dentro dos limites da ótica do herói (o que, como vimos,
Bally reprova em Zola), não somente de um ponto de vista espácio-
temporal mas também do ponto de vista dos valores e entoações,
cria um tipo extremamente original de pano de fundo perceptivo
para as enunciações citadas. Dá-nos o direito de falar de uma variante
especial: o discurso citado antecipado e disseminado, oculto
no contexto narrativo e aparecendo realmente no discurso direto
do herói. Essa variante é muito utilizada na prosa contempo-
rânea, particularmente em Andriéi Biéli e nos escritores que sofre-
ram a sua influência (por exemplo, no Nicolau Kurbov,
de Ehrenburg). Os exemplos clássicos, entretanto, devem
ser procurados na primeira e segunda fase de Dostoievski (na
sua última fase, essa variante é encontrada com menos freqüência).
Vamos deter-nos na análise da sua Skiviérni anekdot (Uma
História Desagradável).
Toda a narrativa poderia ser posta entre aspas como se fosse de um
“narrador”, embora isso não seja marcado temática ou
composicionalmente. Mas, no interior da narrativa, praticamente cada
epíteto, cada definição ou julgamento de valor poderiam também estar
entre aspas, como se tivessem saído da consciência de uma ou outra
das personagens. Eis uma passagem curta tirada do começo da
narrativa:

“Naquele tempo, numa noite de inverno clara e gelada, por volta


da meia-noite, três cavalheiros extremamente respeitáveis estavam
sentados num aposento confortável e até mesmo luxuosamente
arrumado numa soberba casa de dois andares, situada em São
Petersburgo, e estavam ocupados em uma conversa séria e de alto
nível sobre um assunto extremamente interessante. Eles estavam
sentados à volta de uma mesinha, cada um numa soberba
poltrona macia, e durante as pausas na conversa eles
confortavelmente bebericavam champanha.”

Se fizéssemos abstração do notável e complexo jogo de entoações


nessa passagem, seríamos levados a considerá-la como muito
medíocre e mesmo nula do ponto de vista estilístico. De fato, nas
poucas linhas da descrição, encontra-se duas vezes e epíteto
171
“soberbo”, duas vezes “confortável”, e os outros epítetos são
“luxuoso”, “séria”, “alto nível” e “extremamente interessante”! Um
estilo como esse só poderia merecer uma condenação severa, se
considerássemos que ele emana seriamente do autor (como em
Turguiéniev ou Tolstói) ou mesmo do narrador, mas dele apenas
(como na narrativa monolítica em primeira pessoa). Entretanto, é
impossível considerar esse trecho dessa forma. Cada um desses
qualificativos medíocres, pálidos, vazios de sentido constitui uma
arena em que se defrontam e lutam duas entoações dois pontos de
vista, dois discursos.
Vamos examinar ainda alguns excertos em que se encontra
caracterizado o dono da casa, o conselheiro secreto Nikíforov:

“Duas palavras acerca dele: começara sua carreira como pequeno


funcionário, seguira sua rotinazinha tranqüilamente durante quarenta
e cinco anos ininterruptos... Detestava particularmente a desordem e o
entusiasmo, considerava a sua desordem (a de uma certa mulher)
como um fato de costumes e pelo fim da sua vida enterrara-se
completamente num conforto suave e preguiçoso e num isolamento
sistemático. (...) Sua aparência exterior era extremamente correta e
bem cuidada, ele parecia mais jovem do que era, conservara-se bem e
prometia viver ainda por muito tempo; tinha maneiras de um perfeito
cavalheiro. Seu emprego era bastante confortável: ele era o chefe de
alguma coisa e dava a sua assinatura de vez em quando. Em uma
palavra, era considerado um homem decididamente superior. Ele
tinha uma única paixão ou, melhor dizendo, um único desejo ardente;
o de possuir sua própria casa, uma casa de nobre, não de burguês.
Seu desejo finalmente se realizara.”

Vemos agora claramente de onde vêm esses epítetos medíocres e


sem originalidade, mas que têm – e quanto! – classe, na passa-
gem citada. Eles saíram da mente do general, evocam o seu peque-
no conforto, sua pequena casa particular, sua situação, seu grau,
enfim a consciência do conselheiro secreto Nikíforov, um ho-
mem “bem-sucedido”. Eles poderiam ter sido postos entre aspas,
como o discurso citado de Nikíforov. Mas não pertencem só a ele.
Afinal de contas, a história está sendo contada por um narrador, que
parecia ser solidário com os “generais”, que lhes faz reverências,
adota a atitude deles em todas as coisas, fala a sua língua; mas, ao
mesmo tempo, provocativamente excede-se, expondo todas as suas
enunciações reais e potenciais à ironia e desprezo do autor. Por cada
um desses epítetos banais, o autor, através do seu narrador, ironiza o
172
seu herói e torna-o ridículo. É isso que cria o complexo jogo de
entoações na passagem citada – um jogo de entoações que a leitura
em voz alta dificilmente permite reproduzir.*
A seqüência da narrativa é inteiramente construída em função da
perspectiva da outra personagem principal, Pralinski. Ela é toda
semeada de epítetos, de apreciações dessa personagem, que
constituem o seu discurso oculto, e é sobre esse fundo, impregnado da
ironia do autor, que se destaca o seu discurso direto efetivo, entre
aspas, discurso tanto exterior como interior.
Assim, praticamente, cada palavra dessa narrativa pertence
simultaneamente, do ponto de vista da sua expressividade, da sua
tonalidade emocional, do seu relevo na frase, a dois contextos que se
entrecruzam, a dois discursos: o discurso do autor-narrador (irônico,
gozador) e o da personagem (que não tem nada de irônico). É essa
simultânea participação de dois discursos, diferentemente orientados
na sua expressão, que explica a particularidade das construções de
frases, as “rupturas de sintaxe” e a particularidade do estilo. Nos
limites de um único desses discursos, a frase seria construída de outra
maneira e outro seria o estilo. Estamos em presença de um exemplo
típico de um fenômeno lingüístico raramente estudado – as
interferências de discurso.
Em russo, esse fenômeno da interferência de discurso se realiza
parcialmente no quadro da variante analisadora da expressão do
discurso indireto, nos casos relativamente raros em que o discurso
indireto conserva não apenas palavras e expressões isoladas mas
também a estrutura expressiva da enunciação citada. Era esse o caso
no nosso quarto exemplo, em que a construção exclamativa
da enunciação direta passou para o discurso indireto, embora numa
forma enfraquecida. Resulta disso uma certa discordância entre a
entoação calmamente narrativa, conforme às leis de transmissão
analítica do autor, e a entoação histérica, excitada, da heroína às
beiras da loucura. Daí o caráter deformado da configuração sintática
dessa frase, que serve a dois senhores, pertencendo ao mesmo tempo a
dois discursos. O discurso indireto, entretanto, não fornece as

*
Um exemplo em português: “Passeia, às vezes, pelas ruas centrais do Porto, ao
cair da tarde, uma estranha figura. A bem dizer, duas estranhas figuras. Porque
menina Olímpia nunca deixou de ter criada (aliás sempre a mesma) e a sua criada
a acompanha nessas lentas digressões. Lentas? Não só lentas: lentas e solenes,
majestosas, sistematizadas, rituais – quer pelo ar de menina Olímpia quando
passeia, quer pela ordem a que submete esses passeios.” (José Régio. “Menina
Olímpia e a Sua Criada Belarmina”, in História de Mulheres). (N.d.T.)
173
condições para a constituição de nada que se assemelhe a uma
expressão estilística distinta e duradoura desse fenômeno de
interferência de discurso.
O discurso indireto livre constitui o caso mais importante e
sintaticamente mais bem fixado (pelo menos em francês) de
convergência interferente de dois discursos com diversa orientação do
ponto de vista da entoação. Dada a sua excepcional importância,
vamos consagrar-lhe todo o próximo capítulo. Isso nos dará a
oportunidade de examinar o estado dessa questão na lingüística
romântica e germânica. A controvérsia corrente sobre o discurso
indireto livre, as opiniões enunciadas a seu respeito (particularmente
na escola de Vossler) apresentam um grande interesse metodológico e
devem, portanto, ser submetidas à nossa análise crítica.
Ainda dentro dos objetivos do presente capítulo, vamos examinar
alguns fatos, aparentados em russo ao discurso indireto livre e que,
provavelmente, podem ter servido de base para o seu surgimento e sua
formação.
Nós nos interessamos, até o momento, apenas pelas variantes com
duplo sentido, com duas faces, do discurso direto tal como é utilizado
na literatura, e por isso é que não tocamos numa das suas variantes
“lineares” mais importantes: o discurso direto retórico. Essa variante
de valor “persuasivo”, com suas diversas variações, tem grande
significação sociológica. Não podemos demorar-nos nessas formas
mas vamos dar atenção a algumas manifestações associadas com a
retórica.
Há nas relações sociais aquilo que é chamado a pergunta retórica,
ou a exclamação retórica. Alguns casos desse fenômeno são
especialmente interessantes por causa do problema da sua locali-
zação contextual. Eles situam-se, de alguma forma, na própria
fronteira do discurso narrativo e do discurso citado (usual-
mente discurso interior) e entram muitas vezes diretamente em um
ou outro discurso. Assim, podem ser interpretados como uma
pergunta ou exclamação da parte do autor, mas também, ao mesmo
tempo, como pergunta ou exclamação da parte da personagem,
dirigida
a si mesma.
Eis um exemplo de pergunta:

“Mas quem então, à luz da lua, em meio a um silêncio profundo,


caminha com passos furtivos? O Russo bruscamente percebeu. Diante
dos seus olhos, fazendo-lhe uma saudação terna e muda, está uma
jovem circassiana. (...) Ele olha-a em silêncio e pensa: “É um sonho
174
ilusório, o jogo mentiroso dos meus sentidos fatigados.” (Púchkin, O
Prisioneiro do Cáucaso.)

As últimas palavras (interiores) do herói respondem, de alguma


forma, à pergunta retórica do autor e esta última pode ser analisada
como pergunta do herói no seu próprio discurso interior.
Eis um exemplo de exclamação:

“Tudo acabou, disse o som terrível; a natureza diante dele revelou-


se. Adeus, liberdade sagrada! Ele é um escravo!” (Ibid.)

Uma ocorrência particularmente freqüente em prosa é o caso em


que uma pergunta como “O que fazer?” introduz as deliberações
interiores do herói ou a narrativa de suas ações – constituindo essa
questão ao mesmo tempo uma pergunta do autor e a do herói que se
encontra em uma situação difícil. Entretanto, nesse tipo de pergunta, e
de exclamação, é a atitude ativa do autor que predomina; é por isso que
elas não são colocadas entre aspas. O autor em pessoa fica aqui na frente
da cena, substitui o seu herói, servindo-lhe de porta-voz. Eis um exemplo:

“Apoiando-se sobre suas lanças, os cossacos observam o curso


sombrio do rio, enquanto, ocultos pelo nevoeiro, um bandido e sua
arma passam flutuando... O que pensam vocês, cossacos? Recordam
batalhas de anos passados? ... Adeus, livres aldeias fronteiriças, casa
paterna, tranqüilo Don, guerra e jovens bonitas. O inimigo oculto
alcançou nossas margens, a flecha deixa o cartaz, assobia e o cossaco
tomba ensagüentado da barricada.” (Ibid.)

Aqui, o autor se apresenta no lugar do seu herói, diz em seu lugar


o que ele poderia ou deveria dizer, o que convém dizer. Púchkin
diz adeus à pátria pelo cossaco (o que o cossaco não pode
fazer, naturalmente). Esse tomar a palavra em nome de outro já
está muito próximo do discurso indireto livre. Vamos denominar
esse caso discurso direto substituído. Naturalmente, uma tal
substituição supõe um paralelismo de entoações, correndo na mesma
direção a entoação do discurso do autor e o discurso substituído
do herói (o que ele poderia ou deveria pronunciar e do qual o autor se
encarrega); por isso, não há nenhuma interferência nesse caso.
Quando há solidariedade total entre autor e herói nos limites de um
contexto retoricamente construído, no que concerne às apreciações e
entoações, a retórica do autor e a do herói podem eventualmente
sobrepor-se uma à outra; suas vozes, então, fundem-se e criam-se
175
longos períodos que pertencem simultaneamente a narrativa do autor
e ao discurso interior (por vezes mesmo exterior) do herói. Resulta
disso um fenômeno que não se pode praticamente mais distinguir do
discurso indireto livre. Nele, só falta a interferência. Foi sobre a base
da retórica byroniana do jovem Púchkin que se constituiu, pela
primeira vez ao que parece, o discurso indireto livre. Em O
Prisioneiro do Cáucaso, o autor é completamente solidário de seu
herói nas suas apreciações e entoações. A narrativa é construída na
tonalidade do herói, o discurso do herói na tonalidade do autor.
Encontramos o seguinte caso, por exemplo:

“Lá embaixo alinham-se os cimos idênticos das colinas; entre elas,


um caminho isolado perde-se ao longe, sinistro. O jovem peito do
prisioneiro estava agitado por pensamentos opressivos... O caminho
longínquo leva à Rússia, onde ele passou sua ardente juventude, tão
orgulhosa e sem cuidados; onde ele conheceu as primeiras alegrias,
onde encontrou tanta beleza, onde passara tanto sofrimento, onde
destruíra toda esperança, toda alegria e desejo por sua vida agitada...
Aprendeu a conhecer as pessoas e o mundo, conheceu o preço de uma
vida incerta. No coração dos homens, encontrou a traição, nas
aspirações amorosas, um sonho insensato... Liberdade! Apenas por ti
ele prosseguia na sua busca neste mundo sublunar... Tudo passou...
ele não vê nada no mundo que possa trazer-lhe a esperança. E vós,
últimos sonhos, vós também lhe escapais. Ele é um escravo.” (Ibid.)

Aqui são claramente os “pensamentos opressivos” do próprio


prisioneiro que são expressos. Trata-se do seu discurso, embora
formalmente dito pelo autor. Se substituirmos o pronome pessoal
“ele” por “eu” e mudarmos as formas verbais correspondentes,
não resultará nenhuma incoerência ou dissonância estilística, ou
outra qualquer. É sintomático que esse discurso contenha após-
trofes na segunda pessoa (à “liberdade”, aos “sonhos”) que acentuam
ainda mais a identificação do autor com o herói. Do ponto de vista
estilístico e semântico, esse discurso do herói não se distingue em
nada do discurso retórico direto, que ele pronuncia na segunda parte
do poema:
“Esquece-me! eu não sou digno do teu amor, dos teus anseios...
Sem embriaguez, sem desejos, eu definho, vítima das paixões. Por
que não apareceste mais cedo aos meus olhos, quando eu cria na
esperança e nos sonhos embriagadores! Muito tarde! Estou morto para
a felicidade, as miragens da esperança já se dissiparam...” (Ibid.)
176
Todos os autores que escreveram sobre o discurso indireto livre
(exceto talvez unicamente Bally) reconheceriam no nosso exemplo
um espécimen genuíno. Nós, contudo, inclinamo-nos a considerar que
se trata de um discurso por substituição. É verdade que, daí ao
discurso indireto livre, só há um passo. E Puchkin deu esse passo
quando se separou de seus heróis, opondo-lhes um contexto narrativo
mais objetivo, marcado por suas próprias apreciações e entoações. No
exemplo que utilizamos, falta a interferência entre o discurso
narrativo e o discurso citado e, conseqüentemente, os índices
gramaticais e sintáticos que caracterizam o discurso indireto livre para
distingui-lo do contexto narrativo circundante. Com efeito, nesse caso
preciso, identificamos o discurso do prisioneiro graças a índices
puramente semânticos. Não percebemos aqui a convergência de dois
discursos diferentemente orientados, não percebemos a flexibilidade
do discurso citado que resiste por trás da transmissão pelo autor.
Para mostrar, afinal, o que é realmente o discurso indireto livre,
forneceremos um notável exemplo tirado de Poltava, de Púchkin.
Terminaremos com ele este capítulo:

“Mas ele (Kotchubei) escondeu no fundo do seu coração uma


cólera temerária. Na sua dor, privado de forças, seus pensamentos
voltam-se agora para o túmulo. Não quer mal a Mazepa, sua filha é a
única culpa. Mas a ela também perdoa: que ela responda diante de
Deus o ter esquecido o céu e a lei, o ter lançado a vergonha sobre a
família... Entretanto, com seu olhar de água, ele procura no círculo
dos seus familiares companheiros audazes, inquebrantáveis,
incorruptíveis...”*

*
Transcrevemos, a seguir, uma citação que Mattoso Câmara Jr.
usa para exemplificar o emprego do discurso indireto livre em
Machado de Assis: “Minha mãe foi achá-lo à beira do poço, e
intimou-lhe que vivesse. Que maluquice era aquela de parecer
que ia ficar desgraçado, por causa de uma gratificação menos,
e perder um emprego interino? Não, senhor, devia ser homem,
pai de família, imitar a mulher e a filha...” (D. Casmurro, p. 48,
apud Mattoso Câmara Jr., “O Estilo Indireto Livre em Machado
de Assis”, in Miscelânea de Estudos em Honra de Antenor
Nascentes, Rio, 1941, p. 22). (Os grifos são de Mattoso.)
(N.d.T.)
177
CAPÍTULO 11
DISCURSO INDIRETO LIVRE
EM FRANCÊS, ALEMÃO E RUSSO

Diferentes autores propuseram diferentes termos para designar o


fenômeno do discurso indireto livre. De fato, cada um daqueles que
escreveram sobre esse assunto propuseram seu próprio termo. Nós
temos usado, e continuaremos a fazê-lo, o termo de Gertraud Lerch
Uneigentliche direkte Rede*, como o mais neutro de todos os termos
propostos, e o que implica o mínimo de teorização. Na sua aplicação
ao russo e ao alemão, esse termo é irrepreensível. É apenas em
francês que o seu uso pode levantar dúvidas1.

*
Na verdade, o termo alemão usado por G. Lerch conserva-se
mais fielmente na tradução norte-americana, que usa “quasi-
direct discourse”, do que no “discurso indireto livre” que a
tradução francesa adota e que nós também temos empregado. A
nossa escolha deve-se ao fato de termos preferido manter a
expressão que já se firmou na literatura especializada em
português, em vez de introduzir uma nova. Veja-se, por
exemplo, Mattoso Câmara Jr., “O Discurso Indireto Livre em
Machado de Assis”, Op. cit., p. 19-30. (N.d.T.)
1
Eis aqui alguns exemplos de discurso indireto livre em francês:
1. Il protesta: Son père la haïssait!
Em discurso direto, seria:
Il protesta et s’écria: “Mon père te hait!”
Em discurso indireto:
Il protesta et s’écria que son père la haïssait.
Em discurso indireto livre:
Il protesta: “Son père, s’écriat-t-il, la haïssait!”
(Exemplo de Balzac, citado por G. Lerch.)
178
A primeira menção desse fenômeno como um forma espe-
cial de citação do discurso, ao lado do discurso direto e indireto,
deve-se a Tobler em 1887 (Zeitschrift für Romanische Philologie,
XI, 437).
Tobler definiu o discurso indireto livre como uma “peculiar
mistura de discurso direto e indireto” (eigentümliche Mischung
direkter und indirekter Rede). Essa forma mista, segundo Tobler,
deriva o seu tom e a ordem das palavras do discurso direto e os
tempos verbais e pessoas do discurso indireto.
Como uma mera descrição, essa definição é aceitável. De fato, do
ponto de vista superficial da descrição comparativa de propriedades,
Tobler indicou corretamente as semelhanças e diferenças entre a
forma em questão e os discursos direto e indireto.
Mas a palavra “mistura” parece-nos totalmente inaceitável
aqui, uma vez que implica uma explicação de tipo “genético”:
“formado de uma mistura de” – o que dificilmente pode ser provado.
Mesmo do ponto de vista estritamente descritivo, o termo é inexato, já
que não nos encontramos diante de uma simples mistura mecânica, da
soma aritmética de duas formas, mas antes de uma tendência
completamente nova, positiva, na apreensão ativa da enunciação de
outrem, de uma orientação particular da interação do discurso
narrativo e do discurso citado. Tobler permanece insensível a essa
dinâmica, e registra apenas os índices abstratos que aparecem nos
esquemas.
Essa é, portanto, a definição de Tobler. Mas como explica ele a
aparição dessa forma?
O falante, contando fatos passados, introduz a enunciação de
um terceiro sob uma forma independente da narrativa, isto é, na
forma que ela teve no passado. Fazendo isso, o falante transforma
o presente da enunciação em imperfeito, para mostrar que a

2. Tout le jour, il avait l’oeil au guet: et la nuit, si quelque chat


faisait du bruit, le chat prenait l’argent. (La Fontaine.)
3. En vain il (le colonel) parla de la sauvagerie du pays et de la
difficulté pour une femme d’y voyager: elle (miss Lydia) ne
craignait rien; elle aimait par-dessus tout à voyager à cheval;
elle se faisait une fête de coucher au bivac; elle menaçait d’aller
en Asie Mineure. Bref, elle avait réponse à tout, car jamais
Anglaise n’avait été en Corse; donc, elle devait y aller. P.
Mérimée, Colomba.
179
enunciação é contemporânea dos acontecimentos relatados. Depois
ele realiza outras transformações (das formas pessoais do verbo, dos
pronomes) para que não se pense que se trata da enunciação do
próprio narrador.
___________________________
4. Resté seul dans l’embrasure de la fenêtre, le cardinal s’y tint immobile, un
instant encore... Et ses bras frémissants se tendirent, en un geste
d’imploration: “O Dieu! puisque ce médecin s’en allait ainsi, heureux de
sauver l’embarras de son impuissance, ô Dieu! que ne faisiez-vous un
miracle, pour montrer l’éclat de votre pouvoir sans bornes! Un miracle, un
miracle! Il le demandait du fond de sons âme de croyant. (Zola, Rome.)
(Os exemplos 3 e 4 são citados e discutidos por Kalepky e Lorck.)
Essa explicação de Tobler funda-se sobre um esquema incorreto
mas muito difundido na velha escola lingüística: isto é, se o falante
tivesse, consciente e premeditadamente, planejado introduzir a nova
forma, quais teriam sido o seu raciocínio e a sua motivação? Mas,
mesmo admitindo que esse esquema fosse aceitável, as motivações do
“falante’ de Tobler não são nem muito convincentes nem muito
claras: se ele quer conservar à enunciação a autonomia que ela teve no
passado, não seria melhor simplesmente transmiti-la sob a forma de
discurso direto? Não haveria então nenhuma dúvida de que a
enunciação se reporta ao passado e pertence ao herói, não ao
narrador; ou ainda, se se escolhe o imperfeito e a terceira pessoa, não
seria mais simples utilizar uma vez a forma do discurso indireto? O
problema é que o que é básico na nossa forma – a inter-relação
completamente nova entre o discurso narrativo e o discurso citado –
é exatamente o que os motivos de Tobler não conseguem explicar.
Para ele, trata-se simplesmente de duas formas velhas das quais ele
quer obter de qualquer forma uma nova.
Na nossa opinião, o que pode, na melhor das hipóteses,
ser explicado por esse tipo de argumento sobre as motivações
do falante, é meramente o uso em uma ou outra concreta ocorrência
de uma forma já existente, mas em nenhuma circunstância
poderá explicar a criação de uma nova forma lingüística. A expressão
plena e íntegra das motivações e intenções do falante é limitada, de
um lado, pelas possibilidades gramaticais efetivas, e de outro, pelas
condições da comunicação sócio-verbal predominantes num
determinado grupo. Essas possibilidades e condições são dadas, e
delimitam o horizonte lingüístico do falante. Ele não poderia por si só
alargá-lo.

180
Não importa quais sejam as intenções que o falante pre-
tenda transmitir, quais os erros que ele cometa, como ele analise
as formas, misture-as ou combine-as, ele nunca criará um
novo esquema lingüístico nem uma nova tendência na comunicação
sócio-verbal. As suas intenções subjetivas terão um caráter criativo
apenas quando houver nelas alguma coisa que coincida com
tendências na comunicação sócio-verbal dos falantes em processo de
formação, de evolução; e essas tendências dependem de fatores sócio-
econômicos. Para que se constituísse essa forma de percepção
completamente nova do discurso de outrem, que encontrou sua
expressão no discurso indireto livre, foi preciso que se produzisse
alguma mudança, alguma comoção no interior as relações sócio-
verbais e da orientação recíproca das enunciações. Uma vez
constituída, essa forma começa a integrar o círculo das possibilidades
lingüísticas, dentro de cujos limites apenas podem determinar-se,
motivar-se e realizar-se de maneira produtiva as intenções verbais
individuais dos falantes.
Passemos agora a Kalepky, que igualmente estudou o
discurso indireto livre (Zeitschrift für Romanische Philologie, 1899,
p.
491-513). Ele reconheceu o discurso indireto livre como uma
forma completamente autônoma de citação do discurso de outrem
e definiu-o como um discurso oculto ou velado (verschleierte Rede).
A significação lingüística dessa forma reside no fato de que é
preciso adivinhar quem tem a palavra. A análise de Kalepky constitui
incontestavelmente um grande passo à frente no estudo do
nosso problema. Em lugar da combinação mecanicista das
propriedades abstratas de dois esquemas sintáticos, ele esforça-se
por apreender uma nova orientação estilística positiva dessa
forma. Kalepky também interpretou corretamente a dualidade
do discurso indireto livre. Entretanto, definiu-a impropriamente.
É impossível estar de acordo com ele quando diz que nos encon-
tramos em presença de um discurso “mascarado” e que apenas o
fato de ter que identificar o falante é que dá interesse a esse
recurso gramatical. É evidente que ninguém fundamenta o ato
de compreensão em reflexões gramaticais abstratas. Fica
imediatamente claro a qualquer um que, de acordo com o sentido,
é o herói que fala. As dificuldades só são levantadas pelo gramático.
Além disso, nossa forma não oferece de modo algum um dilema do
tipo “ou... ou”; ao contrário, o que faz dela uma forma específica é o
fato de o herói e o autor exprimirem-se conjuntamente, de, nos limites
de uma mesma e única construção, ouvirem-se ressoar as entoações de
181
duas vozes diferentes. Já vimos que as estruturas da língua se prestam
igualmente ao fenômeno da camuflagem prolongada do discurso de
outrem. Vimos que a ação camuflada desse discurso citado encaixado
no contexto narrativo está na origem de um fenômeno gramatical e
estilístico específico. Mas trata-se aí de uma outra variante do
discurso citado. O discurso indireto livre funciona de rosto
descoberto, embora tenha duas faces, como Jano.
A insuficiência metodológica principal de Kalepky reside no fato
de que ele explica o fenômeno lingüístico que nos ocupa, nos limites
da consciência individual; procura suas raízes psíquicas e seus efeitos
subjetivo-estéticos. Retornaremos à crítica dos fundamentos dessa
abordagem quando examinarmos as posições dos vosslerianos (Lorck,
E. Lerch, G. Lerch).
Foi em 1912 que Bally se manifestou sobre essa questão
(Germanisch-romanische Monatsschrift, IV, 549 ss., 597 ss.). Em
1914, em resposta à polêmica levantada por Kalepky, ele voltou ao
problema em um artigo sobre os seus fundamentos, intitulado
“Figures de Pensée et Formes Linguistiques” (G.-r.M., IV, 1914, 405
ss., 546 ss.)
A substância da posição de Bally resume-se no seguinte:
ele considera o discurso indireto livre como uma variedade
nova, tardia, da forma clássica do discurso indireto. Essa variante
se formou, segundo ele, da seguinte maneira: il disait qu’il
était malade, il disait: il était malade, il était malade (disait-il)2.
A queda da conjunção “que” explica-se, segundo Bally, por
uma tendência mais recente, própria da língua, a preferir
as combinações paratáticas das proposições às hipotáticas.
Mais adiante, Bally indica que essa variedade do discurso indi-
reto, que ele chama de “style indirect libre”, não constitui uma
forma fixada, mas está ao contrário em plena evolução tendendo
para a forma do discurso direto, que constitui o seu limite extre-
mo. Nos casos mais característicos, segundo Bally, chega a ser
difícil determinar onde termina o “style indirect libre” e onde
começa o “discours direct”. Ele considera ser esse o caso no
exemplo tirado de Zola que citamos anteriormente. Quando o
cardeal se dirige a Deus: “O Dieu! que me faisiez-vous un miracle!”,
o índice do discurso indireto (imperfectum) é usado simultanea-
mente com a segunda pessoa, como no discurso direto. Em

2
A forma intermediária constitui, naturalmente, uma ficção
lingüística.
182
alemão, Bally vê uma forma análoga ao “style indirect libre” no
“style indirect du second type” (com elisão da conjunção e ordem
das palavras do discurso direto).
Bally estabelece uma discriminação estrita entre as “formas
lingüísticas” e as “figuras de pensamento”. Esse último termo
recobre os meios de expressão, que são ilógicos do ponto de vista
da língua, nos quais a relação normal entre o signo lingüístico e
sua significação habitual é anulada. As figuras de pensamento
não podem ser reconhecidas como fenômenos lingüísticos no sen-
tido estrito do termo: com efeito, não existem índices lingüís-
ticos claros e estáveis servindo à sua expressão. Pelo contrário,
os índices lingüísticos correspondentes têm justamente uma
significação no sistema da língua diferente daquela que lhes dão as
figuras de pensamento. Bally relaciona o discurso indireto livre, nas
suas formas puras, a essas figuras de pensamento. Com efeito, do
ponto de vista estritamente gramatical, trata-se do discurso do autor;
conforme o sentido, é o do herói. Mas esse “conforme o sentido”
não é representado por nenhum signo lingüístico particular. Estamos
pois diante de um fenômeno extralingüístico.
Essas são as grandes linhas da teoria de Bally. Esse lingüista é, na
nossa época, o representante mais destacado do objetivismo abstrato
em lingüística. Bally hipostasia e torna vivas as formas da língua,
extraídas, graças a uma abstração, das ocorrências concretas de
discurso (na prática cotidiana, na literatura, nas ciências, etc.). A
finalidade dessa abstração dos lingüistas é, como mostramos, decifrar,
e em seguida ensinar, as línguas estrangeiras mortas. Ora, eis que vem
Bally e dá vida e movimento e essas abstrações lingüísticas: o
esquema do discurso indireto põe-se a tender para o esquema do
discurso direto; o discurso indireto livre constitui-se em favor dessa
passagem. Um papel criador é atribuído à queda da conjunção “que” e
do verbo introdutor do discurso citado na constituição dessa nova
forma.
Na realidade, não há, no sistema de língua abstrata em que se
colocam as formas lingüísticas de Bally, movimento, vida, realização.
A vida começa apenas no momento em que uma enunciação encontra
outra, isto é, quando começa a interação verbal, mesmo que não seja
direta, “de pessoa a pessoa”, mas mediatizada pela literatura3.

3
Sobre as formas imediatas e mediatizadas da interação verbal,
ver o artigo já citado de Iakubinski.
183
Uma forma abstrata não tem orientação; a orientação recíproca
de duas enunciações só muda à medida que muda a apreensão
ativa pela consciência lingüística da “personalidade que fala”, na
base da sua autonomia semântico-ideológica, da sua individua-
lidade verbal. A queda da conjunção “que” não serve para aproximar
duas formas abstratas, mas para aproximar duas enunciações, em toda
a plenitude de sua significação. Como se uma comporta se abrisse
para permitir às “entoações” do autor que escoem livremente no
discurso citado.
A ruptura metodológica entre as formas lingüísticas e as figuras de
pensamento, entre “langue” e “parole”* também resulta do mesmo
objetivismo hipostásico. De fato, as formas lingüísticas, como as
compreende Bally, existem apenas nas gramáticas e nos dicionários
(onde a sua existência é totalmente legítima), mas, na realidade viva
da língua, elas estão profundamente imersas naquilo que, do abstrato
ponto de vista gramatical, é o elemento irracional das “figuras de
pensée”.
Bally está igualmente errado quando compara a construção
alemã do segundo tipo ao discurso indireto livre francês4. Trata-se
de um erro muito sintomático. Do ponto de vista gramatical abstrato,
a analogia é incontestável, mas do ponto de vista das tendências
sócio-verbais, a aproximação não resiste à crítica. Com efeito,
uma única e mesma tendência sócio-verbal (determinada
pelas mesmas condições sócio-econômicas) pode manifestar-se
em diferentes línguas, de acordo com sua estrutura gramatical,
por índices de superfície completamente diferentes. Em cada língua,
o esquema que se revela mais flexível no aspecto em questão é que
se põe a evoluir numa determinada direção. É esse o caso do
discurso indireto em francês, do discurso direto em russo e
em alemão.
Passemos agora ao exame do ponto de vista dos vosslerianos.
Esses lingüistas deslocam o centro de interesse de sua investigação da
gramática à estilística e à psicologia, das “formas lingüísticas” às
“formas de pensamento”. Como sabemos, eles divergem
profundamente de Bally no tocante aos princípios. Na sua crítica às
posições do lingüista genebrino, Lorck, servindo-se da terminologia
humboldtiana, opõe à concepção de língua de Bally como ergon a sua

*
Os dois termos estão em francês no texto. (N.d.T.f.).
4
Kalepky notou esse erro de Bally, que o corrigiu parcialmente no seu segundo
estudo.
184
própria concepção como energeia. Assim, as premissas básicas do
subjetivismo individualista opõem-se diretamente ao ponto de vista de
Bally. Entram em cena agora novos fatores para explicar o discurso
indireto livre: a efetividade na língua, a imaginação, a sensibilidade, o
gosto lingüístico, etc.5
No mesmo ano (1914) – ano da polêmica Kalepky-Bally – Eugen
Lerch igualmente tornou público seu ponto de vista sobre o discurso
indireto livre (G-r.M., VI, 470). Ele definiu-o como “discurso enquanto
fato” (Rede als Tatsache). O discurso de outrem é transmitido dessa
forma como se seu conteúdo fosse um fato, relatado pelo próprio autor.
Comparando os discursos direto, indireto e indireto livre do ponto de
vista da realidade expressa no seu conteúdo, Lerch chega à conclusão de
que o discurso indireto livre é o mais próximo da realidade. Ele prefere-o
também, do ponto de vista estilístico, ao discurso indireto, por causa do
efeito vívido e concreto que produz. Essa é a definição de Lerch.
E. Lorck publicou em 1921 investigações semelhantes sobre o
discurso indireto livre num livro intitulado Die Erlebte Rede (O
“Discurso Vivido”). O livro é dedicado a Vossler. Nele Lorck faz
também um histórico da questão.
Lorck define o discurso indireto livre como “discurso vivido”
–––––––––––––––––––––––––––
Zeite wissen, und er würde einen Skandal geben, eine laute, schreckliche
Katastrophe, so guter Laune der Ordinarius auch sein mochte... Die
Sekunden dehnten sich martevoll. “Buddenbrook.” Jetzt sagte er
“Buddenbrook.”... “Edgar”sagte Doktor Mantelsack... (Ibid.)

5
Antes de passar à análise da posição dos vosslerianos, daremos três exemplos
de discurso indireto livre em alemão:
1. Der Konsul ging, die Hände auf dem Rücken, umher und bewegte nervõs die
Schultern.
Er hatte keine Zeit. Er war bei Gott überhäuft. Sie sollte sich gedulden und
sich gefälligst noch fünfzigmal besinnen! (Thomas Mann, os Buddenbrooks.)
2. Herrn Gosch ging es schlecht: mit einer schönen und grossen Armbewegung
wies er die Annahme zurück, er könne zu den Glücklichen gehören. Das
beschwerliche Greisenalter nahte heran, es war da, wie gesagt, seine Grube
war geschaufelt. Er könnte abends kaum noch sein Glas Grog zum Munde
führen, ohne die Hälfte zu verschütten, so machte der Teufel seinen Arm
zittern. Da nützte kein Fluchen... Der Wille triumphierte nicht mehr. (Ibid.)
3. Num kreutzte Doktor Mantelsack im Stehen die Beine und blätterte in sei-
nem Notizbuch. Hanno Buddenbrook sass vornüber gebeugt und range un-
ter dem Tisch die Hände. Das B, der Buchstabe B war an der Reihe!
Gleich würde sein Name ertönen, er würde aufstehen und nicht
eine
185
Ressalta claramente desses exemplos que o discurso indireto livre é
inteiramente análogo, em termos gramaticais, ao russo.
1. O Cônsul, as mãos às costas, ficou passeando e movendo nervosamente os
ombros.
Ele não tinha tempo. Estava assoberbado, por Deus! Ela devia ter paciência
e, por favor! pensar mais cinqüenta vezes.
2. As coisas iam mal para o Senhor Gosch: com um belo e largo movimento de
braço, ele recusou a hipótese de que pudesse pertencer aos felizes. A
incômoda velhice se aproximava, estava ali – sua cova, como se disse, estava
aberta. À noite ele mal podia levar o copo de grogue à boca sem derramar a
metade, de tanto que o diabo fazia seu braço tremer. Aí nenhuma maldição
adiantava... A vontade já não triunfava mais.
3. Aí o Doutor Mantelsack, em pé, cruzou as pernas, e folheou seu livro de
anotações. Hanno Buddenbrook inclinou-se para a frente e torceu as mãos
sob a mesa. O B, tinha chegado a vez do B! Logo soaria seu nome e ele daria
um vexame, uma catástrofe ruidosa e terrível, por mais bem humorado que o
Professor estivesse... Os segundos se alongavam como um martírio.
“Buddenbrook.” Agora ele dizia “Buddenbrook”... “Edgar”, disse o Doutor
Mantelsack.
Obs.: Em alemão, o discurso indireto (indirekte Rede) é dado por formas
especiais, o Conjuntivo I e o Conjuntivo II. O primeiro assinala a postura pessoal
de quem fala ou escreve a respeito da mensagem de uma terceira pessoa,
acentuando que comunica a expressão de outrem. Usa-se o Conjuntivo II quando
o Conjuntivo I e o Presente têm formas iguais. (N.d.T.)
(erlebte Rede) em contraste com o discurso direto ou “discurso
repetido” (gesprochene Rede), e com o indireto ou “discurso relatado”
(berichtete Rede).
Lorck expõe sua definição da seguinte maneira. Imagi-
nemos Fausto em cena recitando seu monólogo: “Habe nun,
ach! Philosophie, Juristerei... durchaus studiert mit heissem
Bemühn...”* O que o herói diz na primeira pessoa, um membro do
auditório vivencia na terceira. E essa transposição, que ocorre nas
profundezas da atividade mental no ato de apreensão, estilisticamente
nivela o discurso apreendido à narrativa. Se o ouvinte quiser em
seguida relatar a um terceiro o discurso de Fausto por ele ouvido e
apreendido, transmiti-lo-á, ou palavra por palavra, sob a forma direta:
“Habe nun, ach! Philosophie...” ou indireta: “Faust, dass er
leider...”ou: “er hat leider...” Mas, se ele quiser reviver para si
mesmo, na sua alma, a impressão vívida deixada pela cena que
apreendeu, evocá-la-á da forma seguinte: Faust hat nun, ach,

*
“Estudei, ai! Filosofia, Leis... a fundo, com ardente esforço...”
186
Philosophie...”** ou então ainda, já que se trata de impressões
passadas: “Faust hatte, nun , ach!...”***
Desta maneira, segundo Lorck, o discurso indireto livre constitui
uma forma direta de representação da apreensão do discurso de
outrem, do vívido efeito produzido por este; por isso, convém mal à
retransmissão do discurso a uma terceira pessoa. Com efeito, nessa
hipótese, a natureza dos fatos relatados seria alterada e ficaria a
impressão de que a pessoa fala consigo mesma ou é vítima de
alucinações. Portanto, como seria de esperar, o discurso indireto livre
não é utilizado na conversação e serve apenas às representações de
tipo literário. Aí, o seu valor estilístico é imenso.
Na realidade, para o artista no processo de criação, os seus
fantasmas constituem a própria realidade: ele não só os vê, como
também os escuta. Ele não lhes dá a palavra, como no discurso direto,
ele os ouve falar. E essa impressão viva produzida por vozes ouvidas
como em sonho só pode ser diretamente transmitida sob a forma de
discurso indireto livre. É a forma por excelência do imaginário. Por
isso essa voz ressoou pela primeira vez no mundo maravilhoso de La
Fontaine, por isso essa forma constitui um procedimento tão caro a
escritores como Balzac e mais particularmente Flaubert, que são
capazes de imergir e perder-se totalmente no mundo criado por sua
imaginação.
É também unicamente à imaginação do leitor que o escritor
se dirige, quando usa essas formas. O que ele procura, não é
relatar um fato qualquer ou um produto do seu pensamento,
mas comunicar suas impressões, despertar na alma do leitor imagens
e representações vívidas. Ele não se dirige à razão, mas à imagi-
nação. Apenas a inteligência que raciocina e analisa pode tomar
a posição de que o autor é quem fala no discurso indireto livre;
para a imaginação viva, é o herói que fala. A imaginação é
a mãe dessa forma.
A idéia fundamental de Lorck, que ele desenvolve também nos
seus outros trabalhos6, se reduz ao fato de que, na língua, o papel
criador pertence, não à razão, mas justamente à imaginação.
Somente as formas já criadas pela imaginação, firmemente
constituídas, fixadas e por isso abandonadas pela alma viva desta

**
“Fausto, ai! (estudou) Filosofia...”
***
Fausto, ai! [estudara]...”
6
E. Lorck, Passé défini, imparfait, passé indéfini – Eine
grammatisch-psychologische Studie von E. Lerch.
187
última, entram no domínio regido pela razão; esta não cria nada por si
só.
A língua, segundo Lorck, não é um ser acabado (ergon) mas um
devir permanente e um acontecimento vivo (energeia). Não se trata de
um meio ou de um instrumento que serve para atingir fins exteriores a
ele, mas de um organismo vivo, funcionando em si e para si. E essa
auto-suficiência criadora da língua manifesta-se na imaginação
lingüística. A imaginação sente-se no seu elemento no seio da língua,
é o seu elemento vital, nativo. A língua não constitui para a
imaginação um meio, ela é a carne da sua carne e o sangue do seu
sangue. A imaginação contenta-se de brincar com a língua por prazer.
Um autor como Bally aborda a língua do ponto de vista da razão e por
isso é incapaz de compreender aquelas formas que ainda estão vivas,
nas quais bate ainda o pulso da evolução, que não foram ainda
transformadas em um instrumento para o raciocínio. Por isso é que
Bally não conseguiu apreender a especificidade do discurso indireto
livre, e, não tendo encontrado nele uma identidade compatível com a
lógica, excluiu-o da língua.
É do ponto de vista da imaginação que Lorck tenta compreender
e explicar a forma do imperfeito no discurso indireto livre.
Lorck distingue o “Défini-Denkakt” e o “Imparfait-Denkakt”.
Esses atos não se distinguem pelo conteúdo de pensamento, mas
pela própria forma de sua realização. Com o “défini”, o nosso
olhar orienta-se para o exterior, para o mundo dos objetos e con-
teúdos que o pensamento já apreendeu; com o imperfeito, para
o interior, para o mundo do pensamento em devir e em processo de
constituição. Os “défini-Denkakten” têm um caráter de constatação
factual, os “imparfait-Denkakten”, um caráter de reflexão e de
impressão mental em processo de desenvolvimento. A imaginação
reconstitui neles o passado vivo. Lorck analisa o seguinte exemplo:

“L’Irlande poussa un grand cri de soulagement, mais la Chambre


des Lords, six jours plus tard, repoussait le Bil: Gladstone tombait.”
(Revue des Deux Mondes, mai 1980, p. 19)*

Se, diz Lorck, substituirmos os dois imperfeitos pelo pas-


sado definido, perceberemos claramente a diferença. “Gladstone

*
“A Irlanda soltou um grande grito de alívio, mas a Câmara dos
Lordes, seis dias mais tarde, rejeitava o Bill: Gladstone
caía.”(N.d.T.).
188
tombait” é colorido por uma tonalidade emocional, enquanto
“Gladstone tomba” soa como uma informação seca e pura-
mente factual. No primeiro caso, o pensamento parece demo-
rar-se sobre o seu objeto e sobre si mesmo; mas aqui, o que invade
a consciência não é a imagem de Gladstone caindo, mas o senti-
mento da gravidade do acontecimento que se produziu. As
coisas apresentam-se diferentemente no caso de “la Chambre
des Lords repoussait le Bill”. Aqui, há como uma anteci-
pação dramática das conseqüências do acontecimento: o imper-
feito, em “repoussait” exprime uma expectativa ansiosa.
Para apreender bem todos os matizes do estado de espírito do falante,
é suficiente pronunciar essa frase em voz alta. A última sílaba
de “repoussait” é pronunciada num tom mais alto, exprimindo a
ansiedade e a expectativa. “Gladstone tombait” vem de alguma
forma aliviar e acalmar essa angústia. Nos dois casos, o emprego
do imperfeito é marcado pelo sentimento e estimula a imaginação.
Ele evoca e reconstitui a ação relatada, em vez de simples-
mente constatá-la. Essa é a significação do imperfeito no
discurso indireto livre. O definido seria incompatível com a atmos-
fera criada por essa forma.
Tal é a teoria de Lorck. Ele mesmo define a sua análise como uma
“investigação no domínio da alma da língua” (Sprachseele). Segundo
ele, esse domínio (Das Gebiet der Sprachseelenforschung) foi
explorado pela primeira vez por K. Vossler. Lorck apenas segue o
caminho aberto por este.
Lorck examinou a questão nas suas dimensões estáticas,
psicológicas. Numa publicação de 1922, Gertraud Lerch, sempre com
as mesmas bases vosslerianas, tenta dar ao discurso indireto livre uma
larga perspectiva histórica. Encontra-se na sua investigação toda uma
série de observações de grande valor. Por isso, vamos deter-nos mais
longamente nela.
Em Lerch, é a “sensibilidade simpatizante” (Einfühlung) que
desempenha o papel que tinha a imaginação em Lorck. O discurso
indireto livre dá à sensibilidade sua expressão mais adequada. As
formas dos discursos direto e indireto são condicionados por um
verbo introdutório (disse, pensou, etc.). Dessa maneira, o autor joga
sobre o herói a responsabilidade daquilo que é dito. Pelo contrário, no
discurso indireto livre, graças à omissão do verbo introdutório, o autor
apresenta a enunciação do herói como se ele mesmo se encarregasse
dela, como se se tratasse de fatos e não simplesmente de pensamentos
ou de palavras. Isso só é possível, diz Lerch, se o escritor se associa
189
com toda a sua sensibilidade aos produtos de sua própria imaginação,
se ele se identifica completamente com eles.
Quais são as origens históricas dessa forma? Quais são
as condições históricas indispensáveis ao seu desenvolvimento?
No francês antigo, as estruturas psicológicas estavam longe
de distinguir-se tão rigorosamente das estruturas gramaticais
como hoje. As combinações paratáticas e hipotáticas mistura-
vam-se de diversas maneiras. A pontuação estava ainda em
esboço. Por isso não havia ainda fronteiras rígidas entre os discur-
sos direto e indireto. O narrador não sabe ainda separar as
representações de sua imaginação do seu “eu” pessoal. Ele parti-
cipa por dentro dos atos e das palavras dos seus heróis, coloca-se
como seu intercessor e defensor. Ainda não aprendeu a transmitir o
discurso de outrem na sua forma exterior e palavra por palavra,
abstendo-se de qualquer intervenção pessoal. O temperamento francês
antigo estava ainda longe da observação imparcial,
descompromissada, e do julgamento objetivo. Entretanto, essa
diluição do autor nos seus heróis não é simplesmente o resultado de
uma escolha deliberada; era também uma necessidade. Ele não tinha à
sua disposição formas claras e lógicas que permitissem uma
delimitação estrita. E é sobre a base dessa insuficiência gramatical e
não como procedimento estilístico livre que se vê aparecer em francês
antigo o discurso indireto livre. Ele resulta, portanto, meramente da
incapacidade do autor de separar gramaticalmente seu ponto de vista,
sua posição, dos de seus heróis7.
Pelo fim da Idade Média, em francês medieval, essa imersão do
autor nos sentimentos experimentados por seus heróis não tem mais
lugar. Encontra-se muito raramente o “presente histórico” entre os
historiadores dessa época e o ponto de vista do narrador distingue-se
claramente do das personagens representadas. O sentimento cede
lugar à razão. A transmissão do discurso de outrem torna-se impessoal
e sem cor, e a voz do narrador abafa a do enunciador.
A esse período de despersonalização sucede o individualismo
fortemente marcado do Renascimento. A intuição desempenha
novamente um papel na transmissão do discurso de outrem. O
narrador tenta de novo aproximar-se do seu herói, estabelecer com ele
relações mais íntimas. Esse estilo é caracterizado pela sucessão

7
Eis um exemplo curioso tirado de Eulalia sequenz (segunda
metade do século IX:
190
flexível e livre, psicologicamente colorida e caprichosa, dos tempos e
dos modos.
No século XVII, em contraposição ao irracionalismo lingüístico do
Renascimento, começam a constituir-se regras rígidas de emprego dos
tempos e dos modos no discurso indireto (particularmente graças a
Houdin, 1932). Estabelece-se um equilíbrio harmonioso entre as faces
objetiva e subjetiva do pensamento, entre a análise objetiva e a
expressão das atitudes pessoais. Isso não se efetua sem pressões por
parte da Academia Francesa.
Como procedimento estilístico livre e consciente, o discurso
indireto livre só podia aparecer depois da criação, graças à intro-
dução da concordância dos tempos, de um contexto gramatical no
qual pudesse destacar-se claramente. Ele aparece primeiro em
La Fontaine e conserva nele o equilíbrio, característico de
neoclassicismo, entre o subjetivo e o objetivo. A omissão do
verbo introdutório indica a identificação do narrador ao herói;
quanto à utilização do imperfeito (contrastando com o presente
do discurso direto) e à escolha do pronome (correspondente
ao discurso indireto), indicam que o narrador conserva sua
posição autônoma, que ele não se dissolve totalmente na ativi-
dade mental do seu herói.
____________________________
Ellent adunet lo suon element:
melz sostendreit les empedementz
qu’elle perdesse sa Virginitet.
Poros furer morte a grande honestet.
(Ela junta sua energia: ela prefere a tortura a perder sua virgindade. Assim
ela morreu com grande honra.)
Aqui, diz Lerch, a determinação firme e inquebrantável da santa se funde
(klingt zusammen) com o apoio ardente que lhe dá o autor.
Esse procedimento convinha particularmente ao fabulista La
Fontaine, na medida em que rompe o dualismo da análise abstrata e
da impressão imediata, aliando-as harmoniosamente. O discurso
indireto é muito analítico e inerte. Quanto ao discurso direto, mesmo
teatralizando o discurso citado, não lhe fornece ao mesmo tempo o
“cenário”, o “meio” emocional e espiritual de que tem necessidade
para ser apreendido.
Se La Fontaine, utilizando esse procedimento, indica que ele
simpatiza profundamente com suas personagens, La Bruyère tira dele
efeitos satíricos contundentes. Ele não representa seus “caracteres”
num país imaginário e seu humor não é nada suave. Ele exprime, por
meio do discurso indireto livre, seu conflito interno com eles, sua
191
superioridade sobre eles. Ele se destaca das criaturas que representa.
A pseudo-objetividade de La Bruyère serve para refratar ironicamente
todas as suas representações.
Esse procedimento adquire um caráter ainda mais complexo em
Flaubert. Este dardeja seu olhar implacável justamente sobre aquilo
que acha repugnante e odioso, mas, mesmo nesse caso, é capaz de
jogar com toda a sua sensibilidade, de identificar-se com o odioso e o
repugnante.
O discurso indireto livre em Flaubert torna-se tão ambivalente e
tão incoerente como sua própria atitude em relação a si mesmo e às
suas criações: sua posição interior balança entre o amor e o ódio. O
discurso indireto livre, que permite ao mesmo tempo identificar-se
com as próprias criações e conservar a autonomia, a distância, em
relação a elas, é extremamente favorável à expressão desse amor-ódio
pelos heróis.
Essas são as observações de Gertraud Lerch que nos interessam.
Ao esboço histórico do desenvolvimento do discurso indireto livre em
francês podemos acrescentar alguns dados, tomados de Eugen Lerch,
quanto à época em que essa construção apareceu em alemão. Ela aí
nasceu muito tardiamente; é encontrada pela primeira vez em Thomas
Mann, n’Os Buddenbrooks (1901), aparentemente sob a influência
direta de Zola. Trata-se da “epopéia de uma família” contada com
muita emoção pelo narrador que, simples membro do “clã dos
Buddenbrook”, evoca na sua memória e faz reviver toda a história
desse clã. Acrescentaremos, de nossa parte, que no seu último
romance, A Montanha Mágica (1924), ele faz um uso ainda mais sutil
e profundo desse procedimento.
De nosso conhecimento, não existe nenhum estudo mais
substancial ou mais recente sobre essa questão. Passemos, portanto, à
análise das perspectivas de Lorck e de Lerch.
Ao objetivismo hipostático de Bally opõe-se, nos trabalhos de
Lorck e Lerch, um subjetivismo individualista conseqüente e
claramente expresso. A alma da língua manifesta-se primeiro na
consciência crítica subjetiva, individual, dos falantes. A língua torna-
se, em todas as suas manifestações, a expressão de forças psíquicas
individuais e de intenções dotadas de significações individuais. A
evolução da língua confunde-se com a evolução do pensamento e da
alma dos falantes.
O subjetivismo individualista dos vosslerianos, aplicado ao nosso
fenômeno concreto, é tão inaceitável como o objetivismo abstrato de
Bally. Na realidade, a personalidade do falante, sua atividade mental,
suas motivações subjetivas, suas intenções, seus desígnios
192
conscientemente estilísticos, não existem fora de sua materialização
objetiva na língua. É claro que fora da sua expressão lingüística,
mesmo que só no discurso interior, a personalidade não existe nem
para si mesma nem para os outros. Ela só pode perceber clara e
conscientemente alguma coisa na sua alma com a condição de dispor
de um material objetivo de apoio, de elementos materiais que
iluminam a consciência sob a forma de palavras constituídas, de
julgamentos de valor e de entoações. A personalidade subjetiva
interior, com a consciência de si que lhe é própria, não existe como
um fato material, que sirva de apoio a uma explicação de tipo
causalista, mas como um ideologema. A personalidade, com todas as
suas intenções subjetivas, com todas as suas profundezas interiores,
não é mais que um ideologema. Ora, o ideologema permanece
informe e instável enquanto não for determinado graças aos produtos
mais estáveis e elaborados da criação ideológica. Portanto, não há
nenhum sentido em querer explicar algum fenômeno ou forma
ideológica com o auxílio de fatores ou de intenções subjetivas
psíquicas: isso significaria explicar um ideologema por outro
ideologema, servindo o mais informe e instável dos dois para explicar
o mais claro e mais elaborado. É a língua que ilumina a personalidade
interior e a consciência, que as cria, diferencia e aprofunda, e não o
contrário. O devir da personalidade situa-se na língua: não tanto, é
verdade, nas suas formas abstratas mas nos seus temas ideológicos.
A personalidade é, do ponto de vista do seu conteúdo subje-
tivo interior, o tema da língua: esse tema desenvolve-se e varia
no quadro de estruturas lingüísticas mais estáveis. Por conseqüência,
não é a palavra que constitui a expressão da personalidade interior,
mas ao contrário esta última constitui uma palavra contida ou
interiorizada. A palavra é a expressão da comunicação social, da
interação social de personalidades definidas, de produtores. E
as condições materiais da socialização determinam a orientação
temática e constitutiva da personalidade interior numa época e num
meio determinados. Como tomará ela consciência de si mesma? Até
que ponto será essa consciência de si rica e segura? Como motivará e
apreciará os seus atos? Tudo isso depende igualmente das condições
da socialização. A evolução da consciência individual dependerá da
evolução da língua, nas estruturas tanto gramaticais como
concretamente ideológicas. A personalidade evolui ao mesmo tempo
que a língua, compreendida global e concretamente, pois ela é um dos
seus temas mais importantes e profundos. Quanto à evolução da
língua, é um elemento da evolução da comunicação social,
inseparável dessa comunicação e de suas bases materiais. A base
193
material determina a estratificação da sociedade, sua estrutura sócio-
política, e distribui hierarquicamente os indivíduos que nela se
encontram em relação de interação. Tais são os fatores que geram o
lugar, o momento, as condições, as formas, os meios da comunicação
verbal. Esta determina por sua vez os destinos da enunciação
individual num determinado momento da evolução da língua, seu grau
de resistência às influências, o grau de diferenciação dos diversos
aspectos que nela se percebem, a natureza de sua individualização
semântico-verbal. E tudo isso exprime-se primeiro nas construções
estáveis da língua, tanto nos seus esquemas como nas suas variantes.
Aqui a personalidade do falante existe não como um tema amorfo mas
como uma construção mais estável (na verdade, essa construção é
indissoluvelmente ligada a um conteúdo temático particular, que lhe
corresponde exatamente). Assim, nas formas de transmissão do
discurso, a própria língua reage à personalidade como suporte da
palavra.
Mas o que fazem os vosslerianos? Eles dão apenas uma
tematização vaga do reflexo mais estável da estrutura da
personalidade que fala; traduzem para a linguagem das motivações
individuais, por mais sutis e sinceras que sejam, os acontecimentos da
evolução social, os acontecimentos da história. Eles relacionam a
ideologia à ideologia. Mas os fatores materiais objetivos dessas
ideologias – as formas da língua e as motivações subjetivas que estão
subjacentes à sua utilização – ficam fora do seu campo
de investigação. Não afirmamos que esse trabalho de ideologização
da ideologia seja completamente inútil. Ao contrário, algumas vezes
é útil tematizar uma construção formal para aceder mais facilmente
às suas raízes objetivas, que constituem um fundo comum.
A vivacidade e a acuidade que os idealistas da escola de
Vossler introduzem na lingüística favorecem o esclarecimento
de certos aspectos da língua que o objetivismo abstrato tornara
inertes e opacos. E por isso devemos estar-lhes reconhecidos.
Eles estimularam e reavivaram a alma ideológica da língua,
que tomara com alguns lingüistas o aspecto de uma natureza
morta. Mas eles não chegaram a uma explicação correta, objetiva,
da língua. Abordaram a dinâmica da história, mas não sou-
beram explicá-la. Interessaram-se pelos seus aspectos super-
ficiais, pela agitação e pelo movimento perpétuo que a agitam, mas
não pelas forças que a animam na profundidade. É sintomático que
Lorck, numa carta a Eugen Lerch publicada em apêndice ao seu livro,
chegue à seguinte inesperada confirmação. Tendo descrito a
decadência e a esclerose intelectualista da língua francesa, acrescenta:
194
“Ela só tem uma única possibilidade de renovação: o proletariado
deve tomar a palavra em lugar da burguesia.” (Für sie gibt es nur eine
Möglichkeit der Verjügung: anstelle des Bourgeois muss der
Proletarier zu Worte kommem.)
Como conciliar isso com o papel excepcionalmente criador
da imaginação na língua? Terá o proletário uma imaginação de
tal forma desenvolvida, então? Naturalmente, é outra coisa que
Lorck tem em vista. Ele quer dizer, sem dúvida, que o proleta-
riado trará consigo novas formas de comunicação sócio-verbal,
de interação verbal dos falantes e todo um novo mundo de inte-
ração verbal e de entoações sociais. Trará consigo uma nova
concepção lingüística da personalidade que fala, da própria palavra,
da verdade lingüística. Provavelmente era qualquer coisa assim que
Lorck tinha em vista fazendo essa afirmação. Mas não se encontra
nenhum vestígio dela na sua teoria. Quanto à imaginação, o burguês
tem tanta quanto o proletário. E, ainda por cima, tem mais lazer para
se servir dela.
O subjetivismo individualista de Lorck aplicado ao nosso
problema concreto manifesta-se na incapacidade que tem a sua
concepção de refletir a dinâmica da inter-relação entre o discurso
narrativo e o discurso citado. O discurso indireto livre, longe de
transmitir uma impressão passiva produzida pela enunciação de
outrem, exprime uma orientação ativa, que não se limita meramente à
passagem da primeira à terceira pessoa, mas introduz na enunciação
citada suas próprias entoações, que entram então em contato com as
entoações da palavra citada, interferindo nela. Nem mesmo podemos
concordar com Lorck na sua afirmação de que a forma do discurso
direto simples está mais próxima da apreensão e da assimilação direta
do discurso de outrem. Cada forma de transmissão do discurso de
outrem apreende à sua maneira a palavra do outro e assimila-a de
forma ativa. Gertraud
Lerch fica muito próxima da compreensão dessa dinâmica, mas
expressa-a em termos de psicologia subjetiva. Ambos os autores,
portanto, esforçam-se por tornar plano um fenômeno tridimensional,
por assim dizer. No fenômeno lingüístico objetivo do discurso
indireto livre, temos uma combinação, não de empatia e
distanciamento dentro dos limites da alma individual, mas das
entoações da personagem (empatia) e das entoações do autor
(distanciamento) dentro dos limites de uma mesma e única construção
lingüística.
Lorck e Lerch não levam em conta, nem um nem outro,
um elemento extremamente importante para a compreensão
195
do fenômeno em causa: o julgamento de valor inerente a toda pala-
vra viva, revelado pela acentuação e pela entoação expressiva
da enunciação. O sentido do discurso não existe fora de sua
acentuação e entoação vivas. No discurso indireto livre, identificamos
a palavra citada não tanto graças ao sentido, considerado
isoladamente, mas, antes de mais nada, graças às entoações e
acentuações próprias do herói, graças à orientação apreciativa do
discurso. Nós percebemos que os acentos e as entoações do autor
estão senão interrompidos por esses julgamentos de valor de outra
pessoa. E é isso, como sabemos, que distingue o discurso indireto
livre do discurso substituído, no qual nenhum acento novo aparece em
relação ao contexto narrativo.
Vamos agora voltar aos procedimentos utilizados em russo para o
discurso indireto livre. Eis um exemplo, bastante característico, tirado
de Poltava de Púchkin:

“Mazepa, simulando dor, levanta para o tsar um olhar sub-


misso. Deus sabe e todo o mundo é testemunha. Ele, o infeliz
Hétman, serviu o tsar com coração fiel, durante vinte anos; ele
curva-se sob o peso de sua imensa misericórdia, está enlevado
por ela... Oh, como o ódio é insano e cego! É possível que ele,
agora, às portas da tumba, vá começar a aprender a traição
e a manchar o seu bom nome? Não foi ele que recusou
com indignação ajuda a Estanislau? que, envergonhado, recusou
a coroa da Ucrânia e enviou ao tsar, por consciência do dever,
o texto do acordo e as cartas secretas? Não ficou ele surdo
às objurgações do cã e do sultão de Tsáregrad? Ardendo de
entusiasmo, ele estava feliz de combater os inimigos do Tsar Branco
com sua inteligência e seu sabre; ele não poupou nem dificulda-
des nem a própria vida, e agora o inimigo odioso ousa lançar a
vergonha sobre os seus cabelos brancos! E quem? Iskra, Kotchubei!
os mesmos que foram seus amigos durante tanto tempo! E com
lágrimas sedentas de sangue, com fria impertinência, o ímpio reclama
a execução deles. ... A punição de quem, velho inexorável? De quem
pois roubou ele a filha? Mas, friamente, ele abafa o murmúrio
enfraquecido do seu coração...”

Nesse extrato, de um lado, a sintaxe e o estilo são determinados


pelas tonalidades da humildade, do lamento deplorável de Mazepa, de
outro, essa “súplica lacrimosa” subordina-se à orientação apreciativa
do contexto do autor, aos seus acentos narrativos que são, aqui,
impregnados de uma tonalidade de indignação que se revela mais
196
tarde na questão retórica: “A punição de quem, velho inexorável? De
quem pois roubou ele a filha? ...”
Seria perfeitamente possível transmitir a entoação dupla de cada
palavra lendo esse extrato em voz alta, isto é, pôr em evidência com
indignação a hipocrisia de Mazepa, pela própria leitura da sua
lamentação. Estamos aqui diante de um caso muito simples, que
comporta entoações retóricas bastante elementares e claras. Na maior
parte dos casos, porém, e especialmente naquela área em que o
discurso indireto livre se tornou um recurso de emprego maciço – a
área da nova ficção em prosa – a transmissão oral da interferência
apreciativa seria impossível. Além disso, o próprio desenvolvimento
do discurso indireto livre está ligado à adoção, pelos grandes gêneros
literários em prosa, de um registro mudo, ou seja, para leitura
silenciosa. Apenas a adaptação da prosa à leitura silenciosa tornou
possível a superposição dos planos e a complexidade, intransmissível
oralmente, das estruturas entoativas tão características da literatura
moderna.
Um exemplo desse tipo de interferência de dois discursos que não
pode ser adequadamente transmitida pela leitura em voz alta é a
seguinte passagem tirada de O Idiota, de Dostoievski:

“E por que então o príncipe agora não se aproximou dele [de


Rogójin]? Por que, ao contrário, se afastou como se não o tivesse visto,
embora seus olhos tivessem se encontrado? (Sim, seus olhos se
encontraram e eles se haviam olhado.) Não queria ele há pouco tempo
tomá-lo pela mão para irem juntos lá? Não queria ele ir amanhã à sua
casa para lhe contar que estivera na casa dela? Não havia ele renunciado
ao seu demônio, no caminho para lá, quando a alegria subitamente
inundara sua alma? Ou havia realmente alguma coisa em Rogójin, isto é,
no Rogójin de hoje, no conjunto de suas palavras, gestos,
comportamento, olhares, que pudesse justificar os terríveis
pressentimentos do prín-
cipe e as insinuações revoltantes do seu demônio? Havia nisso
qualquer coisa que parecia evidente mas que era difícil de analisar e
relatar. Era impossível explicar as suas causas, mas, apesar da sua
inverossimilhança e sua impossibilidade, essa coisa qualquer deixava
uma impressão clara e incontestável que fazia nascer uma certeza
completa.
Mas que certeza? Oh, como a ‘baixeza’ desta certeza, desse ‘vil
pressentimento’ fazia sofrer o príncipe desmesuradamente e como ele
se incriminava.”
197
Abordaremos aqui, em poucas palavras, um problema muito
importante e interessante, o da realização sonora do discurso de
outrem apresentado pelo contexto narrativo. O que torna difícil a
busca de uma entoação expressiva conveniente, é a passagem
constante do horizonte apreciativo do autor ao do herói, e vice-versa.
Em que casos e dentro de que limites pode um autor pôr em cena uma
personagem? Por encenação absoluta entendemos não apenas a
mudança da entoação expressiva, mudança essa que é possível nos
limites de uma única e mesma voz, de uma única consciência, mas
também a mudança de voz (no sentido da totalidade de propriedades
que a caracterizam), a mudança de “persona” (“máscara”) no sentido
da totalidade de propriedades que constituem a mímica e a expressão
facial e, finalmente, a completa consistência dessa voz e dessa
“persona” durante toda a representação do papel. Afinal, dentro desse
mundo individual e fechado em si mesmo, não pode mais haver
nenhuma infiltração das entoações do autor. Como resultado da
autoconsistência da voz e da “persona” de outrem, não há
possibilidade para a gradação na mudança do contexto narrativo para
o discurso citado, e vice-versa. O discurso citado começará a soar
como no teatro, onde não há contexto narrativo e onde as réplicas do
herói opõem-se as réplicas, gramaticalmente dissociadas, de outras
personagens. Assim, as relações entre o discurso citado e o contexto
narrativo, através da encenação absoluta, tomam uma forma análoga
às relações entre linhas alternadas no diálogo. Por causa disso, o autor
coloca-se no mesmo nível que sua personagem, e sua relação toma a
aparência de um diálogo. Decorre inevitavelmente disso que só
é possível encenar totalmente o discurso citado, na leitura em voz
alta de uma obra de ficção, em casos muitos raros. De outra for-
ma, levanta-se um inevitável conflito com as intenções esté-
ticas básicas do contexto. Não é preciso dizer que, nesses casos
raríssimos, só pode tratar-se de variantes lineares e moderada-
mente pictóricas da construção do discurso direto. Mas, se o discurso
direto é entrecortado por observações do autor que valem como
réplicas, ou então se matizes muito fortes do contexto narrativo
apreciativo a ele se acrescentam, já não é mais possível a encenação
total.
Uma encenação parcial é contudo possível (sem excesso no jogo
teatral), que permite operar transições entoativas graduais entre o
discurso narrativo e o discurso citado; em alguns casos, quando se
está diante de variantes ambivalentes, podem-se conciliar numa única
voz todas as entoações. É verdade que isso só é possível nos casos
análogos àqueles que apresentamos. As perguntas e exclamações
198
retóricas freqüentemente têm apenas a função de anunciar uma
mudança de tom.
Resta-nos tirar as conclusões de nossa análise do discurso indireto
livre, e ao mesmo tempo, as de toda a terceira parte do nosso trabalho.
Seremos breve: tudo que é essencial encontra-se no próprio texto, e
procuraremos evitar as repetições.
Examinamos as formas mais importantes de transmissão do
discurso de outrem: não demos descrições gramaticais abstratas;
procuramos, ao invés, encontrar nessas formas documentos que
mostram como a língua, numa ou noutra época do seu
desenvolvimento, apreende a palavra de outrem e a personalidade do
falante. Além disso, jamais perdemos de vista o fato de que as
vicissitudes da enunciação e da personalidade do falante na língua
refletem as vicissitudes sociais da interação verbal, da comunicação
ideológica verbal nas suas tendências principais.
A palavra, como fenômeno ideológico por excelência, está em
evolução constante, reflete fielmente todas as mudanças e alterações
sociais. O destino da palavra é o da sociedade que fala. Mas há vários
caminhos para estudar a evolução dialética da palavra. Pode-se
estudar a evolução semântica, isto é, a história da ideologia no sentido
exato do termo; a história do conhecimento, isto é, a evolução da
verdade, uma vez que a verdade só é eterna enquanto evolução eterna
da verdade; a história da literatura, como evolução da verdade na
arte. Esse é o primeiro caminho. Mas há um outro, estreitamente
ligado ao primeiro, em ininterrupta simbiose com ele: é o estudo da
evolução da própria língua como material ideológico, como meio
onde se reflete ideologicamente a existência, uma vez que a reflexão
da refração da existência na consciência humana só se efetua na
palavra e através dela. É impossível, evidentemente, estudar a
evolução da língua dissociando-a completamente do ser social que
nela se refrata e das condições sócio-econômicas refratantes. Não se
pode estudar
a evolução da palavra dissociando-a da evolução da verdade, em ge-
ral, e da verdade na arte, tais como são expressas na palavra
pela sociedade humana, para a qual existem. Esses dois caminhos, em
permanente interação um com o outro, levam ao estudo da reflexão da
refração da evolução da natureza e da história na evolução da
palavra.
O terceiro caminho é o estudo da reflexão da evolução social da
palavra na própria palavra. Esse caminho se subdivide em dois
ramos: a história da filosofia da palavra e a história da palavra na
palavra. É nessa última perspectiva que se situa o nosso trabalho.
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Estamos perfeitamente consciente de suas insuficiências, mas
esperamos que a maneira de colocar o problema da palavra na palavra
tenha uma pertinência real. A história da verdade, a história da
verdade na arte e a história da língua têm muito a ganhar do estudo
das refrações de sua manifestação essencial, a enunciação concreta,
nas estruturas da própria língua.
Acrescentaremos algumas palavras de conclusão sobre o discurso
indireto livre e as tendências sociais que ele exprime. O aparecimento
e desenvolvimento do discurso indireto livre devem ser estudados em
estreita ligação com o desenvolvimento das outras variantes
expressivas dos discursos direto e indireto. Teremos então a prova de
que ele tem um lugar importante no desenvolvimento das línguas
européias contemporâneas, que ele implica uma reviravolta
importante no destino social da enunciação.
A vitória de formas extremas do estilo pictórico no discurso citado
não pode, naturalmente, ser explicada em termos de fatores
psicológicos ou das intenções estilísticas individuais do artista, mas
sim em termos da subjetivização profunda, generalizada, da palavra-
enunciação ideológica. Esta não é mais um monumento, nem mesmo
um simples documento que atesta a existência de um conteúdo
semântico substancial; ela só é percebida como a expressão de um
estado subjetivo fortuito. Na consciência lingüística, as
representações idiossincráticas, individualizantes tomaram tal
autonomia dentro da enunciação que elas obstruíram e relativizaram
completamente o seu núcleo semântico e o ponto de vista social
responsável que nelas se exprime. É como se não se levasse mais a
sério o conteúdo semântico da enunciação. A palavra categórica, a
palavra “assumida”, a palavra assertiva só existe nos contextos
científicos. Em todas as outras áreas da criação verbal, é a ficção que
domina e não mais a asserção. Toda a atividade verbal consiste, então,
em distribuir a “palavra de outrem” e a “palavra que parece ser a de
outrem”.
Mesmo as ciências humanas desenvolveram uma tendência a
substituir afirmações responsáveis acerca de um problema por uma
descrição do estado atual das pesquisas na área, incluindo cálculo
e adução indutiva do “ponto de vista geralmente admitido nos nossos
dias”; esse procedimento é mesmo algumas vezes considerado a
melhor “solução” possível de um problema. Em tudo isso manifesta-
se a alarmante instabilidade e a incerteza da palavra ideológica. O
discurso literário, retórico, filosófico, e o das ciências humanas
tornam-se o reino das “opiniões”, das opiniões notórias, e mesmo
nessas opiniões não é tanto o “quê” mas o “como” individual ou
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típico da opinião em causa que ocupa o primeiro plano. Esse processo
que afeta o destino da palavra na Europa burguesa contemporânea e
aqui na União Soviética (no nosso caso, até tempos muito recentes)
pode ser caracterizado como uma reificação da palavra, como uma
deterioração do valor temático da palavra. Os ideológicos desse
processo, tanto aqui como na Europa Ocidental, são os movimentos
formalistas em poética, lingüística e filosofia da linguagem. Não é
preciso mencionar aqui quais são os fatores sociais subjacentes que
explicam esse processo, nem repetir a bem fundamentada afirmativa
de Lorck acerca dos únicos caminhos possíveis para a renovação da
palavra ideológica – a palavra com seu tema intacto, a palavra
penetrada por uma apreciação social segura e categórica, a palavra
que realmente significa e é responsável por aquilo que diz.

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