O Homem Medíocre Completo
O Homem Medíocre Completo
O Homem Medíocre Completo
I — A emoção do ideal
Quando orientas a proa visionária em direção a uma estrela, e
desdobras as azas para atingir tal excelsitude inacessível, ansioso de
perfeição rebelde à mediocridade, levas em ti o impulso misterioso de um
Ideal. É áscua sagrada, capaz de te preparar para grandes ações. Cuida-a
bem; se a deixares apagar, jamais êle se reacenderá. E se ela morrer em ti,
ficarás inerte: fria bazófia humana.
Vives apenas devido a essa partícula de sonho que te sobrepõe ao
real. Ela é o liz do teu brazão e penacho do teu temperamento. Signos
inumeráveis a revelam: — quando se te aperta a garaganta, ao recordar a
cicuta imposta a Sócrates, a cruz içada a Cristo, ou a fogueira acendida a
Bruno; — quando te abstrais ao infinito, lendo um diálogo de Platão, um
ensaio de Montaigne, ou um discurso de Helvétio; — quando o teu
coração se estremece, ao pensar na sorte desigual dessas paixões, durante as
quais foste, alternadamente, o Romeu de tal Julieta e o Werther de tal
Carlota; — quando as tuas fontes se gelam de emoção, ao declamar uma
estrofe de Musset, que rima de acordo com o teu sentir; — e quando, em
suma, admiras a mente preclara dos genios, a sublime virtude dos santos, o
magno feito dos heróis, inclinando-te, com igual veneração diante dos
criadores da Verdade ou da Beleza.
Nem todos se extasiam, como tu, ante um crepúsculo, nem sonham
ante uma aurora, nem vibram ante uma tempestade; nem todos gostam de
passear com Dante, rir com Moliere, tremer com Shakespeare, crepitar
com Wagner; nem todos emudecem diante do Davi, da Ceia ou do
Partenão.
É dada a poucos essa inquietude de perseguir avidamente alguma
quimera, venerando filósofos artistas e pensadores, que fundiram, em
sínteses supremas, suas visões do sêr e da eternidade, voando para além do
Real.
Os seres da tua estirpe, cuja imaginação se povoa de ideais e cujo
sentimento polariza em direção a eles a personalidade inteira, formam uma
raça aparte, na humanidade: — são idealistas.
Quem se sentir poeta, definindo sua própria emoção, poderá dizer: —
o Ideal ó um impulso do espírito no sentido da perfeição.
IV — O idealismo romântico
Os idealistas românticos são exagerados, porque o insaciáveis.
Sonham o mais, para realizar o menos; compreendem que todos os ideais
contêm uma partícula de utopia, e perdem alguma coisa, quando se
realizam: de raças ou indivíduos, nunca se integram como se pensam. Em
poucas coisas o homem pode chegar ao Ideal que a imaginação assinala;
sua glória está em mar-char na direção dele, sempre inatingido e inatingível.
Depois de iluminar o seu espírito com todos os respendores da
cultura humana, Goethe morre pedin-do mais luz; e Musset quer amar
incessantemente depois de ter amado, oferecendo a sua vida por uma
caricia, e o seu gênio por um beijo, Todos os românticos parece que
perguntam a si próprios, como o poeta:
"Por que não é infinito o poder humano, como o desejo?"
Têm uma curiosidade de mil olhos, sempre alerta, para não perder a
mais imperceptível titilação do mundo que a solicita. Sua sensibilidade é
aguda, plural, caprichosa, artista, como se os nervos tivessem centuplicado
a sua impressionabilidade. Seu gesto segue prontamente o caminho das
inclina ções nativas; entre dez partidos, adotam aquele sublinhado pelo
latejar mais intenso do seu coração. São dionisíacos. Suas aspirações se
traduzem por esforços ativos sobre o meio social, ou por uma hostilidade
contra tudo o que se opõe aos seus impulsos do coração e aos seus sonhos.
Constituem seus ideais sem conceber nada à realidade, recusando-se à
fiscalizarão da experiência, agredindo-a, si ela os contraria. São ingênuos e
sensíveis, fáceis de se comoverem, acessíveis ao entusiasmo e à ternura;
com essa ingenuidade sem dobrez, que os homens práticos ignoram. Um
minuto lhes basta para decidir toda uma vida. Seu ideal se cristaliza em
firmezas inequívocas, quando a realidade os fere com mais crueldade.
***
Todo romântico está por Quixote contra Sancho, por Cyrano contra
Tartufo, por Stokmann contra Gil Blas: por qualquer ideal contra toda
mediocridade. Prefere a flor ao fruto, pressentindo que este não poderia
existir, jamais, sem aquela. Os temperamentos acomodaticios sabem que a
vida norteada pelo interesse abunda em proveitos materiais; os românticos
crêem que a sunrema dignidade se enclausura no sonho e na paixão. Para
eles, um beijo de tal mulher vale mais do que cem tesouros de Golconda.
Sua eloqüência está no coração: dispõem essas razões que a razão
ignora, como dizia Pascal. Nelas se estriba o encanto irresistível dos Musset
e dos Byron; sua tempestuosidade apaixonada nos estremece, nos sufoca,
como se uma garra apertasse o nosso pescoço; faz sobressaltar as veias,
humedece as pálpebras, entrecorta a respiração. Suas heroínas e seus
protagonistas povoam as insónias juvenis, como se eles as tivessem
descrito com vara mágica molhada no cálice de poetisa grega; Safo, por
exemplo, a mais lírica. Seu estilo é de luz e de côr, sempre inflamando,
queimando às vezes. Escrevem como falam os temperamentos
apaixonados, com essa eloqüência das vozes enrouquecidas por um desejo
ou por um excesso, essa "você é calda que enlouquece as mulheres finas, e
faz um Dom Juan de cada amante romântico. São eles os aristocratas do
amor; com eles sonham todas as Julietas e Isoldas. inutilmente conspiram
contra eles as embuçadas hipocrisias mundanas: os espíritos sáfios
desejariam inventar uma balança para pesar a utilidade imediata de suas
inclinações. Como não a possuem, renunciam a adotá-las.
O homem incapaz de alimentar nobres paixões, foge do amor. como
se fosse um abismo; ignora que o amor acrisola todas as virtudes, e é o
mais eficaz dos mora-listas. Vive e morre sem ter aprendido a amar.
Ridiculariza este sentimento, guiando-se pelas sugestões de sordidas
conveniências. Os outros é que lhe elegem primeiro as namoradas, e lhe
impõem, depois, a esposa. Pouco lhe importa a fidelidade das primeiras,
enquanto lhe servem de adorno; nunca exige inteligência na outra, se fôr
um degrau no seu mundo. Seu amor se in-cuba na tibieza do critério alheio.
Musset parece-lhe pouco sério, e acha que Byron é infernal; queimaria
George Sand, e a própria Teresa de Ávila parecer-lhe-ia um pouco
exagerada. Persigna-se, se alguém supõe que Cristo pode amar a pecadora
Madalena. Crê firmemente que Werther, Jocelyn, Mimi, Rola e Manon são
símbolos do mal, criados pela imaginação de artistas en-fermos. Aborrece a
paixão profunda e sentida; detesta os romanticismos sentimentais. Prefere
a compra tranqüila, à conquista comprometedora. Ignora as supremas
virtudes do amor, que é sonho, anelo, perigo, toda a imaginação
concorrendo para o embelezamento do instinto, e não simples vertigem
brutal dos sentidos.
***
Nas épocas de depressão, quando a mediocridade está no seu apogeu,
os idealistas se enfileiram contra os dogmatismos sociais, seja qual fôr o
regime dominante. Algumas vezes, em nome do romanticismo político,
agitam um ideal democrático e humano. Seu amor, todos os que sofrem, é
justa animosidade contra os que oprimem a sua própria individualidade.
Dir-se-ia que chegam até a amar as vítimas, para protestar contra o verdugo
indigno; mas ficam sempre fora de toda hoste, sabendo que nela se pode
incubar uma canga para o porvir.
Em tudo o que é perceptível, cabe um romantismo; sua orientação
varia com os tempos e com as inclinações. Há épocas em que mais
floresce, como nas horas de reação que se seguiram à arrancada libertária
da revolução francesa. Alguns românticos jugúlam-se providenciais, e a sua
imaginação se revela por um misticismo construtivo, como em Furier e
Lamennais, precedidos por Rousseau, que foi um Marx calvinista, e
seguidos por Marx, que foi um Rosseau judeu. Em outroi, o lirismo tende,
como em Byron e em Ruskin, a converter-se em religião estética. Em
Mazzini e em Koussouth, toma côr política. Fala em tom profético, e
transcende pela boca de Lamartine e de Hugo. Em Stendhal, acossa com
ironia os dogmatismos sociais, e, em Vigny, desdenha-os, amargamente.
Queixa-se de Mus-set e se desespera com Amiel. Fustiga a mediocridade
com Flaubert e Barbey d’Aurevilly. E, em outros, converte-se em rebelião
aberta, contra tudo que dimi-nue e domestica o indivíduo, com Emerson,
Etirner, Guayau, Ibsen ou Nietzsche.
V — O idealismo estóico
***
Esta moral não é uma contemplação passiva: apenas renuncia a
participar do mal. Seu assentimento ao inevitável não é apatia, nem inércia.
Apartar-se não é morrer; é, simplesmente, esperar a possível hora de agir,
apressando-a com a prédica ou com o exemplo. Em chegando a hora, pode
ser afirmação sublime, como foi para Marco Aurélio, nunca igualado em
reger destinos de povos: só êle é que pode inspirar as páginas mais
profundas de Renan, e as mais líricas de Paul de Saint Victor. Delicado e
penetrante, seu estoicismo foi mais propício para temperar caracteres, do
que para consolar corações. O pensamento antigo alcançou, com êle, a sua
mais tranqüila nobreza. Entre perversos e ingratos que o circundavam,
ensinou a dar seus racimos, como a vinha, sem reclamar preço algum,
preparando-se para carregar outros, na vindima futura.
Os idealistas estóicos são homens de sua estirpe: dir-se-ia que
ignoram o bem que fazem aos seus próprios inimigos.
Quando aumenta a torrente dos domesticados, quando mais
sufocante se torna o clima das mediocridades, eles criam um novo
ambiente moral, semeando ideais: uma nova geração, aprendendo a amá-
los, enobrecendo-os.
Em face das burguesias febricitantes para atingir o nível do bem-estar
material — ignorando que a sua maior miséria é a falta de cultura — eles
concentram seus esforços para aquilatar o respeito das coisas do espírito e
o culto de todas as originalidades preeminentes. Enquanto a obscuridade
obstrói os caminhos do gênio, da santidade e do heroísmo, eles aparecem
para restituí-los, mediante a sugestão de ideais, preparando o advento
dessas horas fecundas que caracterizam a ressurreição das raças: o clima do
gênio.
***
Toda ética idealista transforma os valores, e eleva a categoria do
mérito; as virtudes e os vícios trocam seus matizes, para mais ou para
menos, criando equilíbrios novos. Esta é, no fundo, a obra dos moralistas;
e sua originalidade está nas mudanças de tom que modificam as
perspectivas de um quadro cujo fundo é quase impermutável. Em face
da chatice comum, que impele a ser vulgar, os caracteres dignos afirmam
com veemência o seu ideal. Uma mediocracia sem ideais — como um
indivíduo, ou um grupo — é vil, cética, covarde: contra ela cultivam
profundos anelos de perfeição. Diante da ciência tornada ofício, a Verdade
como um culto; diante da honestidade de conveniência, a Virtude
desinteressada; diante da arte lucrativa dos funcionários, a Harmonia
imarcescível da linha, da fore ma e da côr; diante das cumplicidades da
política me-diocrática, as máximas expansões do indivíduo, dentro de cada
sociedade.
Quando os povos se domesticam e calam, os gran- dos criadores de
ideais levantam a sua voz. Uma ciência,uma arte, um país, uma raça,
estremecidos pelo seu eco, podem sair do seu curso habitual. O Gênio é
um guião que o destino põe entre dois parágrafos da história. Se aparece
nas origens, cria e funda; se aparece nos ressurgimentos, transforma ou
exorbita. Nesse instante, retomam seu vôo todos os espíritos superiores,
adestrando-se e temperando-se em pensamentos latos, para obras perenes.
VI — Símbolo
No vai-e-vem eterno das éras, o porvir é sempre dos visionários. A
interminável contenda entre o idealismo e a mediocridade tem seu símbolo:
Cellini não pode encravá-la em lugar mais digno do que a maravilhosa
praça de Florença. Nunca mão alguma de ourives plasmou conceito mais
sublime: Perseu, exibindo a cabeça de Medusa, cujo corpo se agita em
contorções de réptil sob seus pés alados. Quando os temperamentos
idealistas se detêm diante do prodígio de Benevenuto, anima-se o metal,
revive a sua fisionomia, seus lábios parecem articular palavras
perceptíveis…
E diz aos jovens que toda luta, em prol de um ideal, é santa, ainda
que o resultado seja ilusório; que é louvável seguir o seu temperamento, e
pensar com o coração, se isso puder contribuir para a criação de uma
personalidade firme; que todo germe de romantismo deve ser alimentado,
para engrinaldar de aurora a única primavera que não volta nunca.
E os maduros, cujas primeiras cãs salpicam de outono as suas mais
veementes quimeras, instigam a custodiar seus ideais, sob o pálio da mais
severa dignidade, em face das tentações que conspiram para enlameá-los no
Estige, onde se abismam os medíocres.
E, no gesto de bronze, é como se o Idealismo decapitasse a
Mediocridade, entregando sua cabeça ao juízo dos séculos.
Capítulo I – ÁUREA MEDIOCRITAS
I. ÁUREA MEDIOCRITAS ? — II. OS HOMENS SEM
PERSONALIDADE. — III. EM TORNO DO HOMEM MEDÍOCRE.
— IV. CONCEITO SOCIAL DA MEDIOCRIDADE. — V. o
ESPÍRITO CONSERVADOR. — VI. PERIGOS SOCIAIS DA
MEDIOCRIDADE. — VII. a VULGARIDADE.
I — Áurea mediócritas?
Há uma certa hora em que o pastor ingênuo se assombra diante da
natureza que o circunda. A penumbra se adensa; a côr das coisas se
uniformiza no cinzento homogêneo das silhuetas, as primeiras humidades
crepusculares levantam, de todas as ervas, um vago perfume; aquieta-se o
rebanho para dormir; o sino remoto tange o seu aviso vesperal. A
impalpável claridade lunar vai se esbranqui çando, ao cair sobre as coisas;
algumas estrelas inquietam o firmamento com a sua titila ção, e um
longínquo rumor de arroio brincando nas brenhas, parece conservar sobre
misteriosos temas. Sentado sobre a pedra menor áspera que encontra à
beira do caminho, o pastor contempla e emudece. convidando em vão a
meditar pela convergência do sítio e da hora. Sua admiração primitiva é
simples estupor. A poesia natural que o rodeia, ao refletir-se em sua
imaginação, não se converte em poema. Êle é, apenas , um objeto no
quadro, uma pincelada: como a pedra, a árvore a ovelha, o caminho; um
acidente na penumbra. Para êle, todas as coisas foram sempre as assim
continuarão a ser, desde a terra que pisa até o rebento que apascenta.
A imensa massa dos homens pensa com a cabeça desse ingênuo
pastor; não entenderia o idioma de quem lhe explicasse algum mistério do
universo ou da vida, a evolução eterna de todo o conhecido, a possibilidade
do aperfeiçoamento humano na contínua adaptação do homem à natureza.
Para conceber uma perfeição, é mister possuir um certo nível ético, e
é indispensável alguma educação intelectual. Sem isso, podem ter-se
fanatismos e superstições; ideais, nunca.
Os que vivem abaixo desse nível, e não adquirem essa educação,
permanecem sujeitos a dogmas que os outros lhes impõem, escravos de
fórmulas paralizadas pela ferrugem do tempo. Suas rotinas e seus
preconceitos parecem-lhes eternamente invariáveis: sua obtusa imaginação
não concebe perfeições passadas, nem vindouras; o estreito horizonte de
sua experiência consti-tue o limite obrigatório de sua mente. Não podem
formar um ideal. Encontrarão, nos alheios, uma chispa capaz de incendiar
suas paixões; serão sectários, podem sê-lo. E não advertirão, siquer, a ironia
dos que os convidam e se arrebanharem, em nome de ideais que podem
servir, mas não compreender. Todo sonho, seguido pelas multidões, é
pensado apenas por poucos visionários, que são seus amos.
A desigualdade humana não é uma descoberta moderna. Plutarco
escreveu, há séculos, que "os animais de uma mesma espécie diferem
menos entre si, do que um homem de outro" (Obras morais, vol. III).
Montaigne subscreveu esta opinião:
"Há mais distâncias entre tal e tal homem, do que entre tal homem e tal
animal: — quer dizer que o mais excelente animal está mais próximo do homem
menos inteligente, do que este último, de outro homem grande e
excelente". (Ensaios, vol. I, cap. XLII).
OS que continuam afirmando a desigualdade humana, n ão
pretendem dizer mais do que isso; ela será, no porvir, tão absoluta, como
nos tempos de Plutarco ou de Montaigne.
Há homens mentalmente inferiores ao termo médio de sua raça, de
seu tempo, de sua classe social; também os há superiores. Entre uns e
outros, flutua uma grande massa impossível de ser caracterizada por
Inferioridades ou por excelências.
Os psicólogos não têm querido tratar destes últimos; a arte os detesta,
por incolores; a história não sabe seus nomes. São pouco interessantes;
inutilmente se buscaria neles uma aresta definida, uma pincelada firme, um
rasgo característico. Os moralistas os co-brem com igual desdém;
individualmente, não merecem o desprezo, que fustiga os perversos, nem a
apologia, reservada aos virtuosos.
Sua existência é, sem dúvida, natural e necessária. Em tudo o que
oferece graus, há mediocridade; na escala da inteligência humana, ela
representa o claro-escuro entre o talento e a estulticia.
Não diremos, por isso, que é sempre louvável.
Horácio não disse áurea mediocritas no sentido ge-ral e absurdo
proclamado pelos incapazes de sobressair por seu engenho, por suas
virtudes, ou por suas obras, Outro foi o parecer do poeta: colocando na
tranqüilidade e na independência o maior bem-estar do homem, enalteceu
a delícia de um viver singelo, que dista igualmente da opulência e da
miséria, denominando áurea essa mediocriade material. Em certo sentido
epicúreu, sua sentença é verdadeira, e confirma o remoto provér bio árabe:
"Um mediano bem-estar tranqüilo é preferível à opulência cheia de
preocupações".
Inferior, daí, que a mediocridade moral, intelectual e de caráter é
digna de respeitosa homenagem, implica desvirtuar a própria intenção de
Horácio: em versos memoráveis, (Ad Pis., 472), menosprezou os poetas
medíocres :
… Mediocribus esse poetis
Non di, non homines, non concessere cólumnae.
E é lícito estender o seu direito a todos quantos o são, de espírito.
Por que deveríamos nós submeter o sentido do áurea
mediocritas clássico? Por que suprimir diferenças de nível, entre os homens e
as sombras, como se, rebaixando um pouco os excelentes, e levantando um
pouco os nécios, se atenuassem as desigualdades criadas pela natureza?
Não concebemos o aperfeiçoamento social como produto da
uniformidade de todos os indivíduos, senão, como combinação harmônica
de originalidades incessantemente multiplicadas. Todos os inimigos da
diferença o são também do progresso; é natural, portanto, que consideram
a originalidade como um defeito imperdoável.
Os que sentenciam por essa forma, estão inclinados a confundir o
senso comum com o bom senso, como se, emaranhando a significação dos
vocábulos, quisesse criar afinidades entre as idéias correspondentes.
Afirmemos que são antagonistas. O senso comum é coletivo,
eminentemente retrógrado e dogmatista; o bom senso é individual, sempre
inovador e libertário.
Pela obediência a um ou a outro, reconhecem-se servidão e
aristocracia naturais, ínsitas no engenhou Dessa irremediável
heterogeneidade, nasce a intolerância dos rotineiros, diante de qualquer
cintilação original; cerram fileiras para se defenderem, como se as
diferenças fossem crimes.
Tais desnivelamentos são um postulado fundamental da psicologia.
Os costumes e as leis podem estabelecer direitos e deveres comuns a todos
os homens; mas estes serão sempre tão desiguais, como as ondas que
eriçam a superfície de um oceano.
I — O homem rotineiro
III — A maledicência
IV — A Senda da Glória
O homem medíocre que se aventura à lição social, tem apetites
urgentes: o êxito. Não suspeita da existência de outra coisa — a glória —
almejada somente pelos caracteres superiores. Aquele é triunfo efêmero;
esta é definitiva, inacessível através dos séculos. O êxito se mendiga; a
glória se conquista.
É desprezível todo cortezão da mediocracia em que vive; triunfa
humilhando-se, reptando, a furtadelas, na sombra, disfarçado, apoiando-se
em cumplicidade de inúmeros seus semelhantes. O homem de mérito
adianta se ao seu tempo, tem a pupila posta em um ideal; impõe-se
dominando, iluminando, fustigando, em plena luz, a rosto descoberto, sem
se humilhar, alheio a todos os disfarces e arcaísmo do servilismo e da
intriga.
A popularidade oferece perigo. Quando a multidão crava seus olhos,
pela primeira vez, em um homem, esquece de si próprio, para pensar
somente nos outros. É preciso pôr mais longe a intenção e a esperança,
resistindo às tentações do aplauso imediato; a glória é mais difícil de ser
conquistada, mas é mais digna.
A vaidade impele o homem vulgar a procurar um emprego respeitável
na administração do estado, mesmo indignamente, se fôr necessário; sabe
que a sua sombra assim o exige.
O homem excelente é reconhecível, porque é capaz de renunciar a
toda prebenta que tenha por preço uma partícula de sua dignidade. O gênio
move-se em sua própria órbita, sem esperar sanções fictícias de ordem
política, acadêmica ou mundana; revela-se pela perenidade da sua
irradiação, como se sua vida fosse um perpétuo amanhecer.
Aquele que flutua na atmosfera, como uma nuvem, sustentado pelo
vento da cumplicidade alheia, pode abocar, pela adulação, o que outros
deveriam receber por suas aptidões; mas, quem obtém favores sem ter
méritos, deve tremer: fracassará, depois, cem vezes, a cada mudança da
direção do vento.
Os nobres engenhos só confiam em si próprios; lutam, suplantam os
obstáculos, impõem-se. Seus caminhos são verdadeiramente seus;
enquanto que o medíocre B6 entrega ao erro coletivo que o arrasta, o
homem superior vai contra êle, com energias inesgotáveis, até desobstruir
sua rota.
Merecido ou não, o êxito é o álcool dos que combatem, A primeira
vez embriaga; o espírito se rende, insensivelmente; depois, converte-se em
invencível necessidade. O primeiro, grande ou pequeno, é perturbardor.
Sente-se uma indecisão estranha, um prurido moral que deleita e
que molesta, ao mesmo tempo, como a emoção do adolescente que se
encontra a sós, pela primeira vez, com a mulher amada: emoção que terna e
violenta, que estimula e coíbe a um tempo, que instiga e amedronta.
Encarar de frente o êxito, equivale a assomar-se a um precipício:
retrocede-se a tempo, ou se cai dentro dele, para sempre. É um abismo
irresistível, como uma boca juvenil que convida ao beijo; poucos
retrocedem. Imerecido, é um castigo, um filtro que envenena a vaidade, e
torna infeliz para sempre; o homem superior, ao contrário, aceita, como
simples antecipação da glória, esse pequeno tributo da mediocridade,
vassala dos seus méritos.
Apresenta-se sob cem aspectos, tenta de mil maneiras diferentes.
Nasce por um acidente inesperado, chega por azinhagas invisíveis. Basta o
simples elogio de um professor estimado, o aplauso ocasional de uma
multidão, a conquista fácil de uma mulher formosa; todos se equivalem,
embriagam da mesma mentira. Com desta embriaguez; a única coisa difícil
é iniciar esse costume, como acontece para com todos os vícios. Depois, já
não se poderá viver sem o tóxico vivificador, e esta ansiedade atormentará
a existência daquele que não tem azas para ascender sem o auxílio de
cúmplices ou de pilotos. Para o homem acomodatício, há uma certeza
absoluta: seus êxitos são ilusórios e fugazes, por mais humilhante que haja
sido o esforço para o conseguir. Ignorando que a árvore espiritual tem
frutos, preocupa-se com a colheita da folhagem; vive no aleatório,
espreitando as ocasiões propícias.
Os grandes cérebros ascendem pela senda exclusiva do mérito; ou
então, por nenhuma. Sabem que, nas mediocracias é costume seguir por
outros caminhos; por isso, nunca se sentem vencidos, nem com um
contraste sofrem mais do que gozariam com êxito: estas duas coisas são
obras dos outros. A glória depende de parte mais cruel de toda a
proeminência que tem fundamento no capricho alheio, ou em aptidões
físicas transitórias. O público oscila com a moda; o físico se gasta. A fama
de um orador, de um esgrimista, ou de um comediante, dura tanto, quanto
uma juventude; a voz, as plorestadas e os gestos, cedo ou tarde devem
acabar, deixando aquilo que, no belo frasear dantesco, representa a dor;
recordar, na miséria, o tempo feliz.
Para estes triunfadores acidentais, o instante em que se dissipa o seu
erro, deveria ser o último de sua vida. Volvei- à realidade é uma suprema
tristeza. É preferível que um Otelo excessivo mate, realmente, sobre o
tablado, uma Desdêmona próxima da velhice, ou que um acrobata quebre a
espinha dorsal num salto prodigioso, ou que um orador sofra a ruptura de
um aneurisma, ao falar diante de cem mil homens que aplaudem, ou ainda
que um Dom Juan seja apunhalado pela amante mais formosa e sensual. Já
que se mede a vida por suas horas de felicidade, seria conveniente
despedir-se dela sorrindo, encarando-a de frente, com dignidade, com a
sensação de que se mereceu vivê-la até o último instante. Toda ilusão que
se desvanece, deixa, atrás de si, uma sombra indissipável.
A fama e a celebridade não são a glória; nada mais falaz do que a
sanção dos contemporâneos e das multidões.
Condividindo as rotinas e as debilidades da medio-cridade ambiente, é
fácil converter-se em protótipos da massa, a ser pro-homem entre os seus
iguais; mas quem assim culmina, morre com eles. Os gênios, os
santos e osheróis desdenham toda submissão ao presente, e conservam a
proa em direção de um ideal remoto: são os pro-homens da história.
A Integridade moral, e a excelência de caráter são virtudes estéreis
nos ambientes rebaixados, mais acessíveis aos apetites do domesticado, do
que à altivez do digno: neles se incuba o êxito falaz. A glória nunca cinge
de louros a fronte daquele que se emaranhou entre as rotinas do seu
tempo; tardia, freqüentemente, póstuma, às vezes, embora sempre segura,
sói ornar a fronte daqueles que olharam para o futuro, serviram um ideal,
praticando o lema que foi a nobre divisa de Rousseau: vitam impendere vero.
Capítulo III – OS VALORES MORAIS
I — A moral de Tartufo
A hipocrisia é a arte de amordaçar a dignidade; ela faz emudecer os
escrúpulos nos espíritos incapazes de resistir à tentação do mal. É falta de
virtude para renunciar a éste, e de coragem para assumir a sua
responsabilidade. É o guano que fecunda os temperamentos vulgares,
permitindo-lhes prosperar na mentira: como essas árvores cuja ramagem é
mais frondosa, quando crescem nas imediações dos lodaçais.
Gela, por onde ela passa, todo nobre germe de ideal: é o evento rijo e
frio que destrói o entusiasmo. Os homens rebaixados pela hipocrisia vivem
sem sonho, ocultando suas intenções, disfarçando seus sentimentos, dando
saltos como uma fera; têm a íntima certeza, embora inconfessada, de que
seus atos são indignos, vergonhosos, nocivos, arrufinados, irremissíveis.
Por isso, sua moral é dissolvente: envolve sempre uma simulação.
Os hipócritas não são impelidos por fé alguma; não suspeitam o valor
das crenças retilíneas. Esquivam a responsabilidade das suas ações, são
audazes, na traição, e, tímidos, na lealdade. Conspiram, e agridem na
sombra, espeçonhentas, e difamam com aveludada suavidade. Nunca
ostentam um galardão inconfundível: cerram todas as frinchas do seu
espírito, pelas quais poderia escapar-se, ou revelar-se, a sua personalidade
nua, sem roupagem social da mentira.
É seu anelo simular as aptidões e qualidades que consideram
vantajosas, para acentuar a sombra que projetam no seu cenário. Assim
como os engenhos exíguos macaqueiam o talento intelectual,
sobrecarregan-do-se de requintados artifícios, subterfúgios e defesas, os
indivíduos de moralidade indecisa parodiam o talento moral, ouropelando
de virtude a sua insípida honestidade. Ignoram o veredicto do próprio
tribunal interior; aspiram o salvo-conduto outorgado pelos cúmplices dos
seus prejuízos convencionais.
O hipócrita costuma tirar vantagens da sua virtude, fingida, em maior
proporção, do que o verdadeiro virtuoso. Pululam homens respeitados,
somente porque ainda não foram descobertos sob sua máscara; bastaria
penetrar na intimidade dos seus sentimentos, por um minuto apenas, para
advertir a sua dobrez, e transformar, em desprêso, à estima.
O psicólogo reconhece o hipócrita; traços há que diferenciam o
virtuoso do simulador; pois, enquanto este é um cúmplice das opiniões que
fermentam em seu meio, aquele possui algum talento que lhe permite so-
brepôr-se a elas.
Todo apetite pecuniário desperta a sua argúcia, e o impele a
descobrir-se. Não retrocede diante de artimanhas, é fácil às reverências
fementidas, sabe farejar o despojo de amos, vende-se ao melhor ofertante,
prospera à força de maranhas. Triunfa sobre os sinceros, toda vez que o
êxito se estriba em aptidões vis: o homem real é. com freqüência, a sua
vítima.
Cada Sócrates encontra a sua cicuta, e cada Cristo, o seu Judas.
A hipocrisia tem matizes. Se o medíocre moral se sujeita a vejetar na
penumbra, não cai sobre o escalpelo do psicólogo, seu vício é um simples
reflexo de mentiras que infestam a moral coletiva. Sua culpa começa,
quando intenta agitar-se dentro de sua grosseira condição, pretendendo
igualar-se aos virtuosos.
Chapinhando nos muladares da intriga, a sua honestidade se macula, e
se acanalha em paixões ignobilmente desabridas. Toma-se capaz de todos
os rancores. Supõe simplòriamente honesto, como êle, todo santo ou
virtuoso; não se cansa de diminuir os méritos destes. Procura igualar o
baixo nível, não o podendo fazer em linha alta. Persegue os caracteres
superiores, pretende confundir suas excelências com as próprias
mediocridades, desafoga surdamente uma inveja que não confessa, na
penumbra, enlameando-se, babando sem morder, simulando submissão e
amor àqueles que detesta e carcome. Sua perversidade é inquietada por
escrúpulos que o obrigam a envergonhar-se em segredo; ser descoberto,
para êle, é o mais cruel dos suplícios. É o castigo.
O ódio é louvável, se o compararmos com a hipocrisia. Nisto se
distingue o sub-reptício amedrontado do hipócrita e adamantina lealdade
de um homem digno. Algumas vezes, este se encrespa, e pronuncia
palavras que são um enigma ou epitáfios; seu rugido é a luz de um
relâmpago fugaz, e não deixa escórias em seu coração; desabafa-se por
meio de um gesto violento, sem o envenenar.
As naturezas viris possuem um excesso de força plástica, cuja função
regeneradora cura rapidamente as mais profundas feridas, e traz o perdão.
A juventude tem, entre seus preciosos atributos, a incapacidade de
dramatizar, por longo tempo, as paixões malignas; o homem que perdeu a
aptidão de cancelar seus ódios, já está irremediavelmente velho. Suas
feridas são tão indestrutíveis, como suas cãs. E, como estas, o ódio
também pode ser tingido; a hipocrisia é a tintura dessas cãs morais.
Sem fé em crença alguma, o hipócrita professa as mais proveitosas.
Atordoado por preceitos que entende mal, sua moral parece um fantoche
ôco; por isso, para se conduzir, necessita a muleta de alguma religião.
Prefere as que afirmam a existência do purgatório, e oferecem a redenção
das culpas por dinheiro. Esta aritmética de além-túmulo permite desfrutar
mais tranqüilamente os benícios de sua hipocrisia; sua religião é uma
atitude, não é um sentimento. Por isso, costuma exagerá-la: é fanático. Nos
santos e nos virtuosos, a religião e a moral podem ir de braço dado; nos
hipócritas, a conduta dansa em compasso diferente daquele que os
mandamentos indicam.
As melhores máximas teóricas podem converter-se, em ações
abomináveis; quanto mais apodrece a moral prática, maior é o esforço no
sentido de a rejuvenecer com farrapos de dogmatismo. Por isso, é
declamatória e suntuosa a retórica de Tartufo, prototipo do gênero, cuja
criação coloca Moliere entre os psicólogos mais geniais de todos os
tempos.
Não esqueçamos a história desse oblíquo devoto, a quem o sincero
Orgon recolhe piedosamente, e que sugestiona toda a sua família. Clanto,
um jovem, atreve-se a desconfiar dele; Tartufo consegue que Orgon
expulse do seu lar esse mau filho, e faz que o pai legue, a êle, Tartufo, os
seus bens. E não basta: tenta seduzir a consorte do hóspede. Para
desmascarar tanta infâmia, a esposa se resigna a celebrar com Tartufo uma
entrevista, à qual Orgon, oculto, assiste. O hipócrita, julgando-se só, expõe
os princípios de sua casuística perversa: há ações proibidas pelo céu, mas é
fácil regularizar com êle essas contabilidades; de conformidade com as
conveniências é possível afrouxar as ataduras da consciência, retificando a
maldade dos atos com a pureza das doutrinas. E, para retratar-se de uma só
vez, acrescenta:
En fin votre escrupule est fácile à détruire:
Vous êtes assurée ici d’un plein secret,
Et le mal n’est jamais que dans l’éclat qu’on fait;
Le scandale du monde est ce que fait l’offense.
Et ce n’est pas pécher que pécher en silence,.
Esta é a moral da hipocrisia jesuítica, sintetizada em cinco versos, que
são o seu pentatêuco.
A do homem virtuoso é outra; está na intenção e na finalidade das
ações; mais nos feitios, do que nas palavras; na conduta exemplar e não na
oratória untuosa.
Sócrates e Cristo foram virtuosos contra a religião do seu tempo; os
dois morreram em mãos de fanáticos que já estavam divorciados
de toda moral. A santidade está sempre fora da hipocrisia coletiva.
O exagero materialista das cerimônias religiosas sói coincidir com a
aniquilição de todos os idealismos, nas nações e nas raças; a história o
assinala na decadência das castas governamentais, e diz que o loiolismo é
que escora sempre a sua degenerescência moral.
Nessas horas de crise, a fé agoniza no fanatismo decrépito, e toma
formidável alento dos ideais que renascem, irreverentes, demolidores,
embora freqüentemente predestinados a cair em novos fanatismos, e a
obsta-cular ideais vindouros.
O hipócrita é constrangido a guardar as aparências, com afã igual ao
do virtuoso que cuida dos seus ideais. Conhece de memória as passagens
adequadas do Sar-tor Resartus; por elas admira Carlyle, tanto como outros,
por seu culto aos Heróis. O respeito às formas faz com que os hipócritas de
toda época e de todo país adquiram traços comuns; há uma "maneira"
peculiar que transmuta o tartufismo em todos os seus adeptos, como há
"algo" que denuncia o parentesco entre os filiados, a uma tendência
artística ou a uma escola literária. Esse estigma comum aos hipócritas, que
permite reconhecê-los, não obstante os matizes individuais pela posição
social ou pela fortuna, é uma profunda animad-versão da verdade.
A hipocrisia é mais profunda do que a mentira: esta pode ser
acidenetal, aquela é permanente. O hipócrita transforma a sua vida inteira
em uma mentira metodicamente organizada. Faz ao contrário do que diz,
toda vez que isto acarrete um benefício imediato; vive traindo com suas
palavras, como esses poetas, que com longos cabelos, disfarçam o fôlego
curto da sua inspiração.
O hábito da mentira paralisa os lábios do hipócrita, quando chega a
hora de pronunciar a verdade.
Assim como a preguiça é a cheve da rotina, e a avidez, o móvel do
servilismo, a mentira é o prodigioso instrumento da hipocrisia. A
Humanidade nunca ouviu palavras mais nobres do que algumas de Tartufo;
mas nunca homem algum produziu atos mais em desacordo com elas. Seja
qual fôr a sua disposição social, na privança ou na proscrição, na opulência
ou na miséria, o hipócrita está sempre disposto a adular os poderosos, e a
enganar os humildes, mentindo a ambos.
Aquele que se acostuma a proferir palavras falsas, acaba por faltar a si
mesmo sem repugnância, perdendo toda a noção de lealdade para com o
próprio espírito. Os hipócritas ignoram que a verdade é a condição
fundamental da virtude. Esquecem a sentença multisecular de Apolônio:
"De servo é mentir, de livres, dizer verdade".
Por isso, o hipócrita está predisposto a adquirir sentimentos servis. É
o lacaio dos que o rodeiam, o escravo de mil anos, de um milhão de amos,
de todos os cúmplices da sua mediocridade.
Aquele que mente é traidor: as suas vítimas o ouvem supondo que diz
a verdade. O mentiroso conspora contra a quietude alheia, falta ao respeito
de todos, semeia a inseguridade e a desconfiança. Com olhar olhi-zaino
persegue os sinceros, julgando-os seus inimigos naturais. Aborrece a
sinceridade. Diz, que ela é fonte de escândalo e de anarquia, como se fosse
possível culpar a escova pela existência da imundice.
No fundo, percebe que o homem sincero é forte, e individualista,
repousando nisto a sua altivez inquebrantável, pois a sua oposição à
hipocrisia é uma atitude de resistência ao mal que o acossa por todos os
lados. Defende-se contra a domesticidade e o descenso comum. E diz a sua
verdade como pode, onde pode. Mas, sabe dizê-la. Muitos santos
ensinaram a morrer por ela.
O disfarce é útil ao fraco; só se pode fingir o que se julga não ter.
Ninguém fala mais de nobreza do que os netos de truões; a virtude dansa
nos lábios desavergonhados; a altivez serve de estribilho ao envilecido; o
cavalheirismo é a gazúa dos estafadores; a temperança figura no catecismo
dos viciosos. Pensam que alguma partícula, de todo esse ouropel, se aderirá
à sua sombra. E, com efeito, esta se vai modificando com o constante
labor; a máscara é benéfica nas mediocracias contemporâneas, muito
embora os que a usam careçam de autoridade moral, diante dos homens
virtuosos. Estes não acreditam no hipócrita que foi uma vez descoberto;
não acreditam nunca; quem é desleal para com a verdade, não tem razão
alguma para ser leal com a mentira.
O hábito da ficção desmorona os caracteres hipócritas,
vertiginosamente, como se cada nova mentira os impelisse para o
precipício; nada conseguirá deter a sua avalanche na vertente. Sua vida se
polariza nessa abjeta honestidade por cálculo, que é simples enaltecimento
do vício.
O culto das aparências conduz ao desdém da realidade. O hipócrita
não aspira a ser virtuoso, sinão, a parecê-lo: não admira intrinsecamente a
virtude; quer ser contado entre os virtuosos, pela plebendas e pelas honras
que tal condição pode proporcionar. Faltando-lhe ousadia para praticar o
mal, a que está inclinado, contenta-se com sugerir que oculta as suas
virtudes, por modéstia; mas nunca consegue usar o seu disfarce com
desenvoltura. Seus manejos assomam por alguma parte, como as clássicas
orelhas sob a coroa de Midas. A virtude e o mérito são incompatíveis com
o tartufis-mo; a observação induz a desconfiar das virtudes misteriosas.
Horácio ensinava que "a virtude oculta difere bem pouco da obscura
fanfarronice" (Od., IV, 9, 29).
Não tendo valor para a verdade, não é possível tê-lo para a justiça.
Em vão os hipócritas vivem jac-tando-se de uma grande equanimidade,
procurando adquirir prestígios catonianos: a sua prudente cobardia impede-
os de ser juízes toda vez que possam comprometer-se na lavra do veredito.
Preferem tartamudear sentenças bilaterais e ambíguas, dizendo que há luz e
sombra em todas as coisas: não o fazem, entretanto, por filosofia, senão,
por incapacidade de se responsabilizarem pelos seus juízos. Dizem que
estes devem ser relativos, embora no íntimo da sua mioleira julguem
infalíveis as suas opiniões. Não ousam proclamar a sua própria suficiência;
preferem avançar na vida, sem outra bússola, além do êxito, oferecendo o
flanco e margeando, e evitando colocar a proa na direção do mais
insignificante obstáculo.
Os homens retos são objetos do seu acendrado rancor, pois, com sua
retidão, humilham os oblíquos; estes, porém, não confessam a sua
cobardia, e sorriem servilmente aos olhares que os torturam, embora
sintam o vexame: enrodilham-se, a estudar os defeitos de homens
virtuosos, para filtrar pérfidos venenos na homenagem que, a todas as
horas, são obrigados a tributar-lhes. Difamam surdamente; traem sempre,
como os escravos, como os híbridos que trazem nas veias sangue servil.
Deve-se tremer, quando eles sorriem; vêm acariciando o cabo de algum
estilete oculto sob sua capa.
O hipócrita atenua toda amizade com sua dobrez: ninguém pode
confiar na sua ambiguidade recalcitrante. Dia a dia, afrouxam as suas
anastomoses com as pessoas que os rodeiam; a sua sensibilidade escassa
impede-os de se caldearem na ternura, alheia, e a sua afetividade vai
empalidecendo, como uma planta que não recebe sol, crestado o coração
por um inverno prematuro. Só pensa em si mesmo, e esta é a sua pobreza
suprema.
Seus sentimentos se emurchecem nas alternativas da mentira e da
vaidade.
Enquanto os caracteres dignos crescem num perpétuo olvido do seu
ontem, e pensam em coisas nobres para o seu amanhã, os hipócritas se
dobram sobre si mesmos, sem se darem, sem se gastarem, retraindo-se,
atrofiando-se. A sua falta de intimidades impede-lhes toda expansão,
obsecados pelo temor do que a sua conciencia moral assome à superfície.
Sabem que bastaria o sopro de uma brisa, para correr o seu levíssimo véu
de virtude. Não podendo confiar em ninguém, vivem embotando as fontes
do seu próprio coração: não sentem a raça, a pátria, a classe, a família, nem
a amizade, embora saibam mentir tudo isso, para explorar melhor esses
sentimentos. Alheios a tudo e a todos, perdem o sentimento da
solidariedade social, até cairem em sórdidas caricaturas do egoísmo.
O hipócrita mede a sua generosidade pelas vantagens que dela pode
obter; concebe a benificência, como uma indústria lucrativa para a sua
reputação. Antes de dar, procura ver si o seu donativo terá notoriedade;
figura em primeira linha, em todas as subscrições públicas, mas seria
incapaz de abrir a sua mão na sombra. Inverte o seu dinheiro em um bazar
de caridade, como si comprasse ações de uma empresa; isto não o impede
de exercer a usura privadamente, nem de tirar proveito da fome alheia.
A sua indiferença ao mal do próximo, pode arrastá-lo a cumplicidade
indigna. Para satisfazer alguns dos seus apetites, não vacilaria, diante de
torpes intrigas, sem se preocupar com as conseqüências imprevistas que
elas poderiam ter.
Uma palavra do hipócrita basta para separar dois amigos, ou para
distanciar dois amantes. Suas armas são poderosas, devido a serem
invisíveis; com uma suspeita falsa, pode envenenar uma felicidade, destruir
uma harmonia, quebrar uma concordância. O seu apego à mentira o faz
colher benevolamente qualquer infâmia, desenvolvendo-se até o infinito,
subterraneamente, sem ver o rumo, nem medir a profundeza, tão
irresponsável como essas alimárias que cavam ao acaso a sua lapa, cortando
as raízes das flores mais delicadas.
Indigno da confiança alheia, o hipócrita vive desconfiando de todos,
até cair no supremo infortúnio da suscetibilidade. Um terror ansioso o
apoquenta e o acobarda diante dos homens sinceros, esperando ouvir em
cada palavra uma exprobação merecida; não há, nele, dignidade, senão,
remorso. Em vão pretenderia enganar-se a si próprio, confundindo a
suscetibilidade com a delicadeza; aquela nasce do medo, e esta é filha do
orgulho.
Diferem, como a cobardia e a prudência, como o cinismo e a
sinceridade. A desconfiança do hiprócrita é uma caricatura da delicadeza do
orgulho. Este sentimento pode tornar suscetível o homem de méritos
excelentes, toda vez que desdenha dignidade cujo preço é o servilismo e
cujo caminho é a adulação; o homem digno exige, então, respeito para esse
valor moral que não se manifesta pelos modos vulgares do protesto estéril,
mas isto o aparta para sempre dos hipócritas domesticados. É raro o caso.
Freqüentíssima parece, entretanto, a suscetibilidade do hipócrita, que teme
ser desmascarado pelos sinceros.
Seria estranho que conservasse essa delicadeza, única sobrevivente ao
naufrágio das demais. O hábito de fingir é incompatível com esses matizes
do orgulho; a mentira é opaca a qualquer resplendor de dignidade. A
conduta dos tartufos não pode conservar-se adamantina; os expedientes
equívocos se encadeiam, até afogar os últimos escrúpulos. Á força de pedir
aos outros os seus juízos, endividando-se moralmente para com a
sociedade, perdem o temor de pedir outros favores e bens materiais
esquecendo que as dívidas torpemente acumuladas escravizam o homem.
Cada empréstimo, não devolvido, é uma malha a mais enganchada em sua
cadeia, tornando-se impossível, para eles, viver dignamente, em uma
cidade, onde há ruas que não podem cruzar, e entre pessoas cujo olhar não
saberiam suportar. A mentira e a hiprocrisia convergem a estas renúncias,
tirando ao homem a sua independência. As dívidas contraídas por vaidade,
ou por vício, obrigam a fingir e a enganar; aquele que as acumula,
renunciam a toda dignidade.
Há outras conseqüências do tartufismo. O homem dútil à intriga
priva-se do carinho ingênuo. Sói ter cúmplices, mas não tem amigos; a
hiprocrisia não ata pelo coração, senão pelo interesse. Os hipócritas,
forçosamente utilitários e oportunistas estão sempre dispostos a trair seus
princpios, em homenagem a um benefício imediato; isto lhes veda a
amizade dos espíritos superiores.
O gentilhomem tem sempre um inimigo entre eles, pois a
reciprocidade de sentimentos só é possível entre iguais; não pode nunca
entregar-se à sua amizade, pois espreitariam a ocasião para enfrentá-lo com
alguma infâmia, vingando a sua própria inferioridade.
La Bruyère escreveu u’a máxima imorredoura:
"Na amizade desinteressada, há prazeres que os que nasceram medíocres não podem
fruir; estes necessitam cúmplices, buscando entre os que conhecem essas secretas forças
impulsoras, descritas com simples solidariedade no mal".
Se o homem sincero se entrega, eles aguardam a hora propícia para a
traição; poriso, a amizade é difícil para os grandes espíritos, e estes não
prodigalizam a sua intimidade quando se elevam demasiadamente sobre o
nível comum. Os homens eminentes necessitam dispor de uma infinita
sensibilidade e de grande tolerância, para se entregarem; quando o fazem,
não há limites para a sua ternura e a sua devoção. Entre nobres caracteres a
amizade cresce devagar, e prospera melhor, quando se radica no
reconhecimento de méritos recíprocos; entre homens vulgares, cresce sem
motivo, mas permanece raquítica, tendo freqüentemente seu fundamento
na cumplicidade do vício ou da intriga. Porisso, a política pode criar
cúmplices, mas nunca, amigos: muitas vezes conduz à troca destes por
aqueles, esquecendo que trocá-los, com freqüência, equivale a não nos ter.
Enquanto, nos hipócritas, as cumplicidades se extinguem com o interesse
que as determina, nos caracteres leais, a amizade dura tanto como os
méritos que a inspiram.
Sendo desleal, o hipócrita também é ingrato. Inverte as fórmulas do
reconhecimento; aspira à divulgação dos favores que faz, sem ser,
entretanto, sensível aos que recebe. Multiplica por mil o que dá, e divide
por um milhão o que aceita. Ignora a gratidão — virtude dos eleitos —
inquebrantável cadeia unindo corações sensíveis, forjada pelos que sabem
dar a tempo, e de olhos fechados. Às vezes, é ingrato sem saber, por
simples erro na sua contabilidade sentimental. Para evitar a ingratidão
alheia, acha que não deve praticar o bem; cumpre esta decisão sem esforço,
limitando-se a praticar suas formas ostensíveis, na proporção que pode
convir à sua sombra. Seus sentimentos são outros; o hipócrita sabe que
pode continuar a ser honesto, embora pratique o mal com dissimulação, e,
com desenfado, a ingratidão. ,
A psicologia de Tartufo seria incompleta, se esquecêssemos que êle
coloca no mais hermético dos seus tarbernáculos tudo quanto anuncia a
florescer de paixões inerentes à condição humana. Diante do pudor
instintivo, casto por definição, os hipócritas organizam um pudor
convencional, impudico e corrosivo. A capacidade de amar, cujas
efervescencias santificam a própria vida, eternizando-a, parece-lhes
inconfessável, como se o contato de duas bocas amantes fosse menos
natural do que o beijo do sol, quando inflama as corolas das flores.
Mantém oculto e misterioso tudo o que concerne ao amor, como se,
convertê-lo em delito, não aci-catesse a tentação dos castos; mas essa
pudicicia visível não os proíbe de ensaiar invisivelmente, as ob jeções mais
torpes. Escandalizam-se diante da paixão, sem renunciar ao vício,
limitando-se a disfarcá-lo, ou enconbrí-lo. Acham que o mal não está nas
próprias coisas em si, e, sim, nas aparências, formando u’a moral para eles,
e, outra, para os demais, como essas mulheres casadas que se presumem
honestas, embora tenham três amantes, e repudiam a donzela que ama um
único homem, sem ter marido.
Não tem limites esta escabrosa fronteira da hipocrisia. Catões
ciumentos dos costumes perseguem as mais puras exibições da beleza
artística. Colocariam uma folha de parra na mão da "Venus Medicéa",
como outrora injuriariam telas e estátuas, para velar as mais divinas formas
nuas da Grécia e da Renascença. Confundem a castíssima harmonia da
beleza plástica, com a intenção obcena que os acomete, ao contemplá-las.
Não percebem que a perversidade está sempre neles, nunca, na obra de
arte. O pudor dos hipócritas é a peruca da sua calvíce moral.
II — O homem honesto
A mediocridade moral é impotente para a virtude e, cobardia para o
vício. Se há mentes que parecem manequins articulados com rotinas,
abundam corações semelhantes a balões inflados de preconceitos. O
homem honesto pode temer o crime, sem admirar a santidade; é incapaz de
iniciativa para ambas as coisas. As guerras do passado prendem-no pelo
coração, estran-gulando-lhe, ainda em germe, todo anelo de
aperfeiçoamento futuro. Suas opiniões são os documentos arqueológicos
da psicologia social; resíduos de virtudes crepusculares, supervivencias de
morais extintas.
As mediocracias de todos os tempos são inimigas do homem
virtuoso: preferem o honesto, e o enaltecem, como exemplo. Há, nisso,
implícito, um erro, ou uma mentira, que convém dissipar. Honestidade não
é virtude, embora também não seja vício. Pode-se ser honesto, sem sentir
uma ânsia de perfeição; basta, para isso não ostentar o mal, o que não é
suficiente para ser virtuoso. Entre o vício, que é uma tara, e a virtude, que é
uma excelência, flutua a honestidade.
A virtude se eleva sobre a moral corrente; implica certa aristocracia do
coração, própria do talento moral; o virtuoso se antecipa a alguma forma
de perfeição futura, e lhe sacrifica os automatismos consolidados pelo
hábilo.
O homem, ao contrário, é passivo, circunstância que lhe marca um
nível moral superior ao do vicioso, embora permaneça por baixo daquele
que pratica ativamente uma virtude, e orienta a su vida no sentido de algum
ideal. Limitando-se a respeitar os preconceitos que o asfixiam, mede a
moral com a falsa medida usada pelos seus iguais, a cujas frações são
irredutíveis as tendências inferiores dos acanalhados e as aspirações
conspícuas dos virtuosos. Se êle não chegasse a assimilar os juízos, até ficar
perfeitamente saturado, a sociedade o castigaria como delinqüente, por sua
conduta desonesta; se pudesse sobrepor-se aos juízos, seu talento revelaria
sulcos dignos de ser seguidos. A mediocridade está em não provocar o
escândalo, nem servir de exemplo.
O homem honesto pode praticar ações cuja dignidade conhece, toda
vez que a isso se veja constrangido pela força dos preconceitos, que são
obstáculos com que os hábitos adquiridos emboraçam as variações novas.
Os atos que já são maus, no juízo iriginal dos virtuosos, podem continuar a
ser considerados bons pela opinião coletivo. O homem superior pratica tal
como a julga, iludindo os prejuízos que subjugam a massa honesta; o
medíocre continua denominando bem o que já deixou de ser, por
incapacidade de vislumbrar o bem do porvir. Sentir com o coração dos
outros, equivale a pensar com a cabeça alheia.
A virtude constuma ser um gesto audaz, como tudo o que é original; a
honestidade é um uniforme que se veste resignadamente. O medíocre teme
a opinião pública, com a mesma obseqüência com que o crédulo teme o
inferno; nunca tem a ousadia de se opor a ela, e, menos ainda, quando a
aparência do vício é um perigo ínsito em todavirtude não compreendida.
Renuncia a ela pelos sacrifícios que implica.
Esquece que não há perfeição sem esforço; somente aqueles que
ousam cravar sua pupila no sol, sem temer a cegueira, podem ver aluz, pela
frente. Os corações apoucados não colhem rosas em seu jardim, com medo
dos espinhos; os virtuosos sabem que é necessário expôr-se a eles, para
colher as flores mais perfumosas.
O honesto é inimigo do santo, como o rotineiro o é do gênio; este é
denominado" louco", e aquele é julgado "amoral". Expliça-se: eles os
medem com sua própria medida, em que estes não cabem. Em seu
dicionário, "cordura" e "moral" são os nomes que eles reservam às suas
próprias qualidades. Para a sua moral de sombras, o hipócrita é honesto; o
virtuoso e o santo, que a excedem, parecem-lhes "amorais", e, com esta
qualificação atribuem-se-lhes, veladamente, certa imoralidade. Homens de
pacotilha, dir-se-ia feitos com retalhos de catecismo e com aparas de
vergonhas: o primeiro ofertante pode comprá-los a baixo preço. Em geral,
mantêm-se honesto, por conveniência; algumas vezes, por simplicidade, se
o prurido da tentação não importuna a sua estupidez. Ensinam que é
necessário ser como os outros; ignoram que só é virtuoso aquele que aspira
o melhor. Quando nos murmuram, aos ouvidos, aconselhando-nos a
renunciar o sonho e a imitar o re banho, não têm o valor de nos sugerir,
diretamente, a apostasia do nosso ideal, para sentar-nos a ruminar a
merenda comum.
A sociedade predica: "não faças o mal, e serás honesto". O talento
moral tem outras exigências: "aspira uma perfeição, e serás virtuoso".
A honestidade está ao alcance de todos; a virtude é de poucos eleitos.
O homem suporta o jugo a que os seus cúmplices o submetem; o homem
virtuoso eleva-se sobre os demais, com um movimento de aza.
A honestidade é uma indústria: a virtude exclue o cálculo. Não há
diferença entre o cobarde que modera seus atos, com medo do castigo, e o
cubiçoso que os pratica, na esperança de uma recompensa. Ambos levam
em partida dupla as suas contas correntes com os preconceitos sociais.
Aquele que treme diante do perigo, ou busca uma prebenda, é indigno de
proferir a palavra virtude: por esta se arriscam à proscrição e à miséria: Não
diremos contudo que o virtuoso é infalível. Mas a virtude implica uma
capacidade de retificações espontâneas, o conhecimento leal dos próprios
erros, como uma lição paar si mesmo e para os outros, a firme retidão da
conduta anterior. Aquele que paga uma culpa, com muitos anos de virtude,
é como se nunca tivesse pecado: purifica-se. Ao contrário, o medíocre não
reconhece os seus erros, nem se envergonha com eles, agravando-os com
impudor, sublinhan-do-os com a reincidência, duplicando-os com
aproveitamento dos resultados eventuais.
Predicar a honestidade seria excelente, se ela não fosse uma renúncia
da virtude, cujo norte é a perfeição incessante. Seu elogio empana o culto
da dignidade, e é a prova mais segura do descanso de um povo.
Eneltecendo o fraudulento, afronta-se o severo; pelo tolerante, se esquece
o exemplo. Os espíritos acomodaticios chegam a aborrecer a firmeza e a
lealdade, a força de medrar com o servilismo e a hiprocrisia.
Admirar o homem honesto, é rebaixar-se; adorá-lo, é envilecer-se.
Stendhal reduzia a honestidade a urna simples forma de medo: convém
acrescentar que não é um medo ao mal em si, senão da reprovação dos
outros; por isso, c compatível com uma ausência total de escrúpulos para
com todo ato que não tenha sanção expressa, ou que possa permanecer
ignorado.
"J’ai vu le fond de ce qu’on appelle les honnêtes gens: c’est hideux",
dizia Talleyrand, perguntando-se a si próprio o que seria de tais indivíduos,
se o interesse e a paixão entrassem em jogo. Seu medo ao vício e sua
impotência para a virtude se equivalem. Não são assassinos, mas não são
heróis; não roubam, mas não dão metade do seu pão ao inválido; não são
traidores, mas também não são leais: não assaltam a descoberto, mas não
defendem o assalto; não violam virgens, mas não redimem as decaídas; não
conspiram contra a sociedade, mas não cooperam para o engrandecimento
comum.
Diante da honestidade hipócrita — própria de mentes rotineiras e de
caracteres domesticados — existe uma heráldica moral, cujos brasões são a
virtude e a santidade. E a antítese da tímida obediência aos prejuízos, que
paraliza o coração dos temperamentos vulgares, e que degenera nessa
apoteose de frieza sentimental que caracteriza a erupção de todas as
burguezias.
A virtude requer fé, entusiasmo, paixão arrojo; vive disso. Requer tais
coisas na intenção e nas obras. Não há virtude, quando os atos desmentem
as palavras, nem cabe nobreza, onde a intenção se arrasta.
Por isso, a mediocridade moral é mais nociva nos homens conspícuos
e nas classes privilegiadas.
O sábio que atraiçoa a sua verdade, o filósofo que vive fora da sua
moral, e o nobre que desonra o seu berço, descem às mais ignominiosas
das vilanias; são menos desculpáveis, do que o truão enlodaçado no delito.
Os privilégios da cultura e do nascimento impõem, ao que desfruta, uma
lealdade exemplar para consigo próprio.
E’ inútil que perdure em ridículos pergaminhos a nobreza que não
está na nossa ânsia de perfeição; nobre é o que revela, em seus atos, um
respeito para com a sua classe, e não o que alega sua ilustre ascendência,
para justificar atos ignóbeis. Pela virtude, nunca pela honestidade, é que se
medem os valores da aristocracia moral.
III — Os tránsfugas da honestidade
Enquanto o hipócrita saqueia na penumbra, o inválido moral se
refugia nas trevas. O vício, que a mediocridade ampara, medra no
crepúsculo; durante a noite é que forja.
Desde a hipocrisia consentida, até o crime castigado, a transição é
insensível: a noite é incubada no crepúsculo. Da honestidade profissional,
passa-se à infâmia gradualmente, por matizes leves e por concessões sutis.
Nisto é que está o perigo da conduta acomodatícia e vacilante.
Os tránsfugas da moral são rebeldes à domestici dade; desprezam a
prudente cobardia de Tartufo. Ignoram o seu equilibrismo, não sabem
simular, agridem os princípios consagrados, e, como a sociedade não pode
tolerá-los sem comprometer a sua própria existência, eles levam as suas
guerrilhas contra essa mesma ordem cuja custódia é o objeto obstinado dos
medíocres.
Comparado com o inválido moral, o homem honesto parece uma
alfaia. Esta distinção é necessária; é preciso fazê-la em seu favor, certo de
que êle a reputará honrosa. Si é incapaz de ideal, também o é do crime
descarado: sabe disfarçar seus instintos, encobre o vício, foge ao delito
condenado pela lei. Nos outros, em troca, toda perversidade brota à flor da
pele, como uma erupção de pústulas; são incapazes de se susterem na
hipocrisia, como os idiotas o são de se embarassarem na rotina. Os
honestos esforçam-se para merecer o purgatório; os delinqüentes já se
decidiram pelo inferno, investindo, sem escrúpulos nem remorsos, contra o
tapume dos preconceitos e das leis, que a sociedade lhes opõe.
Cada agregado humano crê que "a" verdade moral é "sua" verdade,
esquecendo que há tantas morais como rebanhos de homens. Um
indivíduo é infame, vicioso, honesto ou virtuoso, com relação à moralidade
do grupo a que pertence, variável no tempo e no espaço. Cada moral é uma
medida oportuna e convencional dos atos que constituem a conduta
humana: não tem existência exotérica, como não a teria a sociedade,
abstratamente considerada.
Seus cânones são relativos, e se transforman, obe decendo ao
emaranhado determinismo da evolueão social. Em cada ambiente e em
cada época, existe um critério médio que sanciona, como bons ou como
maus, honestos ou delituosos, permitidos ou inadmissíveis, os atos
individuais oue são úteis ou nocivos à v:da coletiva. Em cada momento
histórico, esse critério é a substrutura da moral, sempre variável.
Os delinqüentes são indivíduos incapazes de adaptar a sua conduta à
moralidade média da sociedade em que vivem. São inferiores;’ têm a "alma
da espécie" mas não adquirem a "alma social". Divergem da mediocridade,
mas em sentido oposto aos dos homens excelentes, cujas variações
originais determinam uma desadaptação evolutiva no sentido da perfeição.
São inúmeros. Todas as formas corrosivas da degenerescência
desfilam por esse caleidoscópio, como si ao conjunto de maléfico
exorcismo, se convertessem em pavorosa realidade os mais sórdidos ciclos
de um inferno dantesco: parasitas da escória social, limítrofes da infâmia,
comensais do vício e da desonra, tristes que se inovem espicaçados por
sentimentos anormais, espíritos que sobreelevam a fatalidade das heranças
enfermiças e sofrem a carcoma inexorável das misérias ambientes.
Irredutíveis e indomesticáveis, aceitam como um duelo permanente a
vida em sociedade. Passam ao nosso lado, impertérritos e sombrios,
levando, na sua fronte fugitiva, o estigma do seu destino involuntário, e,
nos mudos lábios, o esgar oblíquo daquele que prescruta o seu semelhante
com olhar inimigo. Parecem ignorar que são as vítimas de um
determinismo complexo, superior a todo o freio ético; somam-se, neles, os
desequilíbrios transfundidos por uma hereditariedade malsã, as disformes
configurações morais plasmadas no seio social e as mil circustâncias
iniludíveis que se colocam, ao acaso, em sua existência. O lamaçal, em que
sua conduta vive a patinar, asfixia os germes possíveis de todo o senso
moral, desarticulando os últimos preconceitos que os vinculam ao solidário
consórcio dos medíocres.
Vivem adaptados a uma moral à parte, com panoramas de sombrias
perspectivas, esquivando os clarões luminosos e deslizando entre as
penumbras mais densas; fermentam no agitado torvelinho das grandes
cidades, surgem por todas as frinchas do edifício social, e conspiram
surdamente contra a sua estabilidade, alheios às normas de conduta
características do homem medíocre, eminentemente conservador e
disciplinado.
A imaginação permite-nos alinhar as suas torvas silhuetas sobre um
longuínqüo horizonte onde a escuridão crepuscular derrama seus tons
violentos de ouro e de púrpura, de incêndio e de hemorragia; desfile de
macabra legião que marcha, atropeladamente, em direção à ignomínia.
Nessa plêiade anormal, culminam os limítrofes do delito, cuja
virulência cresce, devida à sua impunidade em face de lei. O fraco senso
moral que possuem, os impede de conservar imaculada a sua conduta, sem
caírem, entretanto na delinqüência: são os imbecis da honestidade,
diferentes do idiota moral, que roda para o cárcere. Não são delinqüentes,
mas são incapazes de se conservarem honestos: pobres espíritos, de caráter
claudicante e de vontade relaxada, não sabem opôr trincheiras seguras aos
fatores ocasionais, às sugestões do meio, à tentação do lucro fácil, e ao
contágio da imitação. Vivem solicitados por tendências opostas, oscilando
entre o bem e o mal, como asno de Buridáln.
São caracteres conformados, minutos por minutos, com o molde
instável das circustâncias. Ora são auxiliares permanentes do vício e do
delito, ora estão a delinquir a meio por incapacidade de executar um plano
completo de conduta anti-social, ora têm suficiente astúcia e previsão para
chegar à beira do manicômio e do cárcere , sem cair. Estes indivíduos, de
moralidade incompleta, larvada, acidental ou alternada, representam etapas
de transição entre a honestidade e o delito, a zona de interferência entre o
bem e o mal, socialmente considerados. Carecem de equilibrismo
oportunista, que salva do naufrágio outros medíocres.
Um estigma irrevogável impede-os de conformarem seus sentimentos
aos critérios morais da sua sociedade. Em alguns, é produto de
temperamento nativo; pululam nos cárceres, e vivem como inimigos dentro
da sociedade que os hospeda. Em muitos, a degenerescência moral é
adquirida, é fruto da educação; em certos casos, deriva da luta pela vida em
um meio social desfavorável ao seu esforço; são medíocres desorganizados,
caídos nos lamaçais, da obra do acoso, capazes de compreender a sua
desventura, e de se envergonharem dela, como a fera que errou o salto. Em
outros, há uma inversão dos valores éticos, uma perturbação do juízo, que
os impede de medir o bem e o mal com a esquadria aceita pela sociedade;
são invertidos morais, inaptos para estimar a honestidade e o vício. Há os
instáveis, por fim, cujo caráter revela uma ausência de sólidos alicerces que
os assegurem contra o oscilante vai-vem dos apuros materiais e da
alternativa inquietante das tentações desonestas. Esses inválidos não
sentem a co-ersão social; sua moralidade inferior se abeira do vício, até o
momento de encalhar no delito.
Estes inadaptáveis são moralmente inferiores ao homem medíocre.
Seus matizes são variados, atuam na sociedade, como os insetos daninhos
na natureza.
O rebanho teme seus violadores da sua hipocrisia. Os prudentes não
lhes perdoam o impudor da sua infâmia, e organizam, entre eles, um
complexo aparelho defensivo de códigos, juízes e presídios; através de
séculos, o seu esforço tem sido ineficaz. Constituem uma horda estrangeira
e hostil, dentro do seu próprio território, audaz na espreita, embuçada no
procedimento, infatigável nos trâmites aleivosos dos seus programas
trágicos. Alguns confiam a sua vaidade ao fio do cutelo sub-reptício,
sempre alerta para o brandir com fulgurante presteza, contra o coração ou
as costas; outros deslizam furtivamente a sua garra ágil sobre o ouro ou a
gema que estimula a sua avidez, com seduções irresistíveis; estes violam,
como brinquedos infantis, os obstáculos com que a prudência do burguês
custodia o tesouro acumulado em intermináveis etapas de economia e
sacrifício; aqueles denigram virgens inocentes, para lucrar, oferecendo os
encantos do seu corpo venus-to à insaciável luxúria de sensuais e de
libertinos; muito sugam as entranhas da miséria, com inverosímens
aritméticas de usura, como tênias que alimentam a sua inextinguível
voracidade nas pústulas chorosas do intestino social enfermo; outros
captam consciências inexpertas para explorar os riquíssimos veios da
ignorância e do fanatismo. Todos são equivalentes no desempenho de sua
parasitária função anti-social, idênticos na inadaptação dos seus
sentimentos mais elementares. Neles converge uma inveterada
promiscuidade de instintos e de perversões, o que faz de cada conciência
uma pústula, arrastando-se à má vida do vício e do delito.
Seja qual fôr, entretanto, a orientação da sua inferioridade biológica
ou social, encontramos uma pincelado comum em todos os homens que
estão abaixo do nível da mediocridade: a inadaptação constante para
adaptar-se às condições que, em cada coletividade humana, limitam o
campo da luta pela vida. Carecem de aptidão que permite ao homem
medíocre imitar os preconceitos e as hipocrisias da sociedade em que
vegeta.
IV — Função social da virtude
A honestidade é uma imitação; a virtude é uma originalidade.
Somente os virtuosos possuem talento moral, e, qualquer ascensão no
sentido do mais perfeito, é obra deles; o rebanho se limita a seguir suas
pegadas, incorporando na honestidade banal aquilo que foi, antes, virtude
de poucos. E sempre rebaixando.
Fizemos distinção entre o delinqüente e o honesto. É preciso insistir
em que a honestidade deste último não é virtude; êle se esforça para
confundir essas duas coisas, sabendo que a segunda lhe é inacessível.
A virtude é outra coisa. É ativa; excede infinitamente em variedade,
em retidão, em coragem, as práticas rotineiras que livram os indivíduos
medíocres da infâmia ou do cárcere.
Ser honesto implica submissão às conveniências correntes; ser
virtuoso significa, freqüentemente, ir contra elas, expondo-se a passar por
inimigos de toda moral, quando o é apenas de certos preconceitos
inferiores.
Se o sereno ateniense tivesse adulado os seus concidadãos, a história
helénica não estaria manchada pela sua condenação, e o sábio não teria
bedido a cicuta; mas não seria Sócrates.
Sua virtude consistiu em resistir aos preconceitos dos demais.
Se fosse possível viver entre dignos e santos, a opinião alheia poderia
evitar tropeços e quedas; mas, vivendo entre atartufados, é cobardia
rebaixar-se ao nível comum, em conseqüência do medo de atrair suas iras.
Fazer como fazem os outros, pode implicar no sobrevir da familiaridade
com o indigno; o progresso moral tem, como condição, resistir à
decadência comum e adiantar-se ao seu tempo, como qualquer outra
ordem de progresso.
Se existisse uma moral eterna — e não tantas morais quanto são os
povos — seria possível tomar a sério da lenda bíblica da árvore carregada
de frutos do bem e do mal. Só teríamos dois tipos de homens: o bom e o
máu, o honesto e o desonesto, o normal e o inferior, o moral e o imoral.
Mas assim não acontece. Os critérios de valor se transformam : o bem de
hoje pode ter sido o mal de ontem; o mal de hoje pode ser o bem de
amanhã. E vice-versa.
Não é o homem moralmente medíocre — o honesto — quem
determina as transformações da moral.
São os virtuosos e os santos, inconfundíveis com êle. Precursores,
apóstolos, mártires, inventam formas superiores do bem, ensinam-nas,
prégam-nas. Toda moral futura é um produto de esforços individuais, obra
de caracteres excelentes que concebem a praticam perfeições inacessíveis
ao homem comum. Nisto está o talento moral, que forja a virtude, e o
gênio moral, que implica santidade. Sem estes homens originais, não seria
concebível a transformação dos costumes; conservaríamos os sentimentos
e as paixões dos primitivos seres humanos. Toda ascensão moral é um
esforço do talento virtuoso no sentido da perfeição futura; nada de inertes
condescendências para com o passado, nem simples acomodações ao
presente.
A evolução das virtudes depende de todos os fatores morais e
intelectuais. O cérebro sói antecipar-se ao coração; mas os nossos
sentimentos influem mais intensamente do que nossas idéias na formação
dos critérios morais. O fato é mais evidente nas sociedades do que nos
indivíduos.
Já se pôde afirmar que, se um grego ou romano ressuscitasse, seu
cérebro permaneceria atônito, diante da nossa cultura intelectual, mas o seu
coração poderia palpitar em uníssono com muitos corações
contemporâneos. Suas idéias sobre o universo, o homem e as coisas,
constrastariam com as nossas, mas os seus sentimentos se ajustariam em
grande parte às palpitações do sentir moderno.
Num século, mudam-se as idéias fundamentais da ciência e da
filosofia; os sentimentos centrais da moral coletiva, apenas sofrem ligeiras
oscilações, porque os atributos biológicos da espécie humana variam muito
lentamente.
Os conhecimentos infantis dos clássicos fazem-nos sorrir; mas os
seus sentimentos nos comovem, suas virtudes nos entusiasmam, seus
heróis nos causam admiração, e nos parecem honrados pelos mesmos
atributos que hoje fariam que fossem honrados por nós. Naquele tempo,
como agora, os homens exemplares, embora de idéias opostas, praticavam
análogas virtudes, em face dos hipócritas de suas éras. O fundo varia
pouco; o que se transforma incessantemente, é a forma, o critério de valor
que lhe confere a força ética.
Há, sem dúvida, um progresso moral coletivo. Muitos dogmatismos,
que antes foram virtudes, são julgados, maist arde, como opiniões. Em
cada momento histórico, coexistem virtudes e preconceitos; o talento
moral pratica as primeiras; a honestidade se apega aos segundos. Os
virtuosos, cada um à sua maneira, combatem pelo mesmo objetivo, na
forma que a sua cultura e o seu temperamento lhes sugerem. Embora por
caminhos diferentes, e partindo de premissas racionais antagônicas todos
se propõem melhorar o homem; são igualmente inimigos dos vícios de seu
tempo.
Os virtuosos não são iguais aos santos; a sociedade opõe demasiados
obstáculos ao seu esforço. Pensar na perfeição não implica praticá-la
totalmente; basta o firme propósito de caminhar no seu sentido. Os que
pensam como profetas podem ser obrigados a proceder como filisteus em
muitos dos seus atos.
A virtude é uma tensão real na direção do que se concebe como
perfeição ideal.
O progresso ético é lento, mas seguro. A virtude arrasta e ensina; os
honestos se resignam a imitar alguma parte das excelências que os
virtuosos praticam. Quando se afirma que somos melhores do que nossos
avós, apenas quer dizer-se que o somos diante de nossa moral
contemporânea. Seria mais exato dizer que nos diferenciamos deles.
Sobre as necessidades perenes da espécie, organizam-se conceitos de
perfeição, que variam através dos tempos; sobre as necessidades
transitórias de cada sociedade, elabora-se o protótipo da virtude mais útil
ao seu progresso. Enquanto o ideal absoluto permanece indefinido, e
oferece escassas oscilações no curso de séculos inteiros, o conceito
concreto das virtudes se vai plasmando nas variações reais da vida social; os
virtuosos ascendem por mil azinhagas, em direção a metas que se afastam,
até o infinito.
Cada um dos sentimentos úteis para a vida humana, engendra uma
virtude, uma forma de talento moral. Há filósofos que meditam, durante
longas noites de insónia; sábios que sacrificam a sua vida nos laboratórios;
patriotas que morrem pela liberdade dos seus concidadões; altivos que
renunciam a todo favor que tenham por preço a sua dignidade; mães que
sofrem a miséria, custodiando a honra de seus filhos.
O homem medíocre ignora essas virtudes; limita-se a cumprir as leis,
com medo das penalidades que ameaçam aquele que as viola, conservando
a honra para não se defrontar com as conseqüências que se poderiam
seguir à sua perda,
V — A pequena virtude e o talento moral
Assim como há um grama de intelectos, cujos tons fundamentais são
a inferioridade, a mediocridade e o talento, — aparte o idiotismo e o gênio,
que ocupam os extremos — também há uma hierarquia moral representada
por termos equivalentes. No fundo dessas desigualdades, há uma profunda
heterogeneidade de temperamentos. A conformação com os catecismos
alheios é coisa fácil para os homens débeis, crédulos, timoratos, sem
grandes desejos, sem paixões veementes, sem necessidade de
independência, sem irradiação de sua personalidade; é inconcebível,
entretanto, nas naturezas idealistas e fortes, capazes de paixões vivas,
bastante intelectuais para não se deixarem enganar pela mentira dos outros.
Aqueles nada sofrem pela coação moral do rebanho, pois a hipocrisia é o
seu clima propício; estes sofrem, lutando entre suas inclinações superiores
e o falso conceito do dever que a sociedade impõe. Os homens honestos se
ajustam a tudo, mas o homem moralmente superior nunca se escraviza.
"Pode conceder-se, a este conceito — diz Remy de Gourmont — o
valor de u’a moda a que um indivíduo se resigna, para não chamar a
atenção, mas que não interessa o seu sêr íntimo, nem lhe causa um
sacrifício profundo".
Nessa não-conformidade, com a hipocrisia coletivamente organizada,
consiste a virtude, que é individual, contra as suas caricaturas coletivas; na
caridade e na beneficência mundanas, a miséria dos corações alimenta a
vaidade dos cérebros vasios.
Os temperamentos capazes de virtude diferem pela sua intensidade.
O primeiro germe da perfeição moral se manifesta em uma decidida
preferência para o bem: praticando-o, ensinando-o, admirando-o. A
bondade é o primeiro esforço no sentido da virtude: o homem bom,
esquivo às condescendências permitidas pelos hipócritas, leva em si uma
partícula de santidade; o "bonismo" é o moral dos pequenos virtuosos; sua
pregação é plausível, sempre que ensine a evitar a cobardia, que é um
perigo.
Há alguns excessos de bondade que não poderiam diferenciar-se do
envilecimento; há falta de justiça na moral do perdão sistemático. Fica bem
perdoar uma vez, e seria iníquo não perdoar nunca; mas, aquele que perdoa
duas vezes, torna-se cúmplice dos malvados.
Não sabemos o que teria feito Cristo, se lhe tivessem esbofeteado a
outra face que ofereceu ao que o afrontara, esbofeando a primeira: os
escolásticos preferem não discutir este problema.
Ensinemos a perdoar; mas ensinemos, também, a não ofender. Será
mais eficiente. Ensinemos com exemplo, não ofendendo. Admitamos que,
na primeira vez, ofende-se por ignorância; mas convém crer que, na
segunda, seja por vilania. O mal não se corrige com a complacência, nem
com a cumplicidade; isto é nocivo, como os venenos, e devem opôr-se, a
tal conceito, antídotos eficazes: a reprovação e o desprezo.
Enquanto os hipócritas receitam a autoridade, reservando a
indulgência para si mesmas, os pequenos virtuosos preferen a prática do
bem à sua pregação; evitam os sermões e enaltecem a sua própria conduta.
Para o próximo, encontram uma desculpa na debilidade humana, ou na
tentação do meio: "tout comprendre c’est tout pardonner"; só são severos
para consigo próprios. Nunca esquecem as próprias culpas e os próprios
erros; e, se não justificam as alheias, também não se preocupam com
rebatê-las com seus ódios, peis sabem que o tempo as castiga fatalmente,
por essa gravitação que abisma os perversos, como se fossem balões
esvasiados. Seu coração é sensível às pulsações dos outros, abrindo-se, a
todo momento, para aliviar as penas de um desventurado, e prevenindo as
suas dificuldades, para poupar-lhe a humilhação de pedir auxílio; fazem
sempre tudo o que podem, pondo nisso tanto afã que transluz o desejo de
fazer mais e melhor. Aprovam e estimulam qualquer germe de cultura,
prodigalizando os seus aplausos a toda idéia original, e mostrando-se
complacentes para com os ignorantes, sem admoestações inoportunas; sua
cordialidade sincera, para com os espíritos humildes, não está carcomida
pela urbanidade convencional.
Essas pequenas virtudes são usuais, de aplicação freqüente,
quotidiana; servem para distinguir o bom do medíocre, e diferem tanto da
honestidade, como o bom-senso difere do senso-comum. Importam numa
elevação sobre a mediocridade; os aue a sabem praticar, merecem os
elogios que tão prodigamente se lhes tributam.
Desde Platão e Plutarco, está feita a sua apologia: isto não impede a
sua assídua reiteração por escritores que glosam, em estilo decisivo, a
surrada frase do Hugo:
"E se fait beaucoup de grandes actions dans les petites luttes. Il y a
des bravoures opiniâtres et ignorées qui se défendent pied à pied dans
l’ombre contre l’envahissement fatal des nécessités. Nobles et mystérieux
qui aucun regard ne voit, qu’aucune renomée ne paye, qu’aucune fanfare ne
salue. La vie, le malheur, l’isolement, l’abandon, la pauvreté, sont des
champs de bataille que ont leurs héros; héros obscurs plus grandes parfois
que les héros illustres".
Não esqueçamos, todavia, que essas virtudes são pequenas: é erro
grave colocá-las em face das grandes. Elas revelam uma louvável tendência,
mas não podem ser comparados com assíduo zelo de perfeição que
converte a bondade em virtude.
Para isto, é necessária certa intelectualidade superior; as mentes
exíguas não podem conceber um gesto transcendente e nobre, nem um
caráter amorfo saberia executá-lo. Aos que dizem. "Não há tolo máu", po-
der-se-ia responder que a sua incapacidade para o mal não é bondade.
Ainda está para ser resolvido o antigo litigio que propunha eleger
entre um imbecil bom e um inteligente mau; mas já está certamente
resolvido que a imbecilidade não é uma presunção de virtude, assim como
a inteligência não o é da perversidade. Tal coisa não impede que muitos
nécios protestem contra o engenho e a ilustração, glosando o paradoxo de
Rousseau, até inferir dele que a escola povoa o cárcere, e que os melhores
homens são os torpes e os ignorantes.
Mentira. Grosseira patranha a esgrimir contra a dignificação humana,
mediante a instrução pública, requisito básico para o enaltecimento moral.
Sócrates ensinou — faz já alguns anos, — que a ciência e a virtude se
confundem em uma só e mesma resultante: a Sabedoria, para fazer o bem,
basta velo claramente; não n’o praticam os que n’o vêem. Ninguém seria
mau, sabendo-o.
O homem mais inteligente e mais ilustrado pode ser o melhor; "pode"
ser, embora nem sempre seja. Ao contrário, o nécio e o ignorante não
podem ser bons, nunca, irremessivelmente.
A moralidade é tão importante como a inteligência, na composição
global do caráter. Os maiores espíritos são os que associam as luzes do
intelecto às magnificências do coração. A "grandeza de alma" é bilateral.
São raros os talentos completos: são exceções os gênios. Os homens
excelentes brilham por esta ou por àquela aptidão, sem resplandecer em
todas: há, mesmo assim, talentos em algum gênero intelectual, que não o
são em virtude alguma, e homens virtuosos que não assombram por seus
dotes intelectuais.
Ambas essas formas de talento, embora distintas e multiformes, são
igualmente necessárias, e merecem a mesma homenagem. Podem existir
isoladas; soem germinar, em uníssono, nos homens extraordinários.
Isoladas, valem menos.
A virtude é inconcebível no imbecil, e o engenho é infecundo no
desavergonhado.
A subordinação da moralidade à inteligência ó uma renúncia a toda
dignidade; o mais engenhoso dos homens seria detestável, se puzesse o seu
engenho ao serviço da rotina, do prejuízo e do servilismo: seus triunfos
seriam a sua vergonha; não a sua glória. Foi por isso que Cícero disse, há
muito:
"Quanto mais fino e culto é um homem, tanto mais repulsivo e
suspeito êle se torna, quando perde a sua reputação de honesto" (De
offis., 11-9).
É verdade que o tempo perdoa algumas culpas aos gênios e aos heróis
capazes de exceder, pelo bem que fazem, o mal que não deixaram de
praticar; mas estes são exceções raras, e, na vida, seria necessário medi-los
com o critério da posteridade: a transcedente magnitude de sua obra.
Estas noções suprimem alguns problemas inocentes, como o de falar
sobre si são preferíveis os que criam, inventam e aperfeiçoam nas ciências e
nas artes, ou os que possuem um admirável conjunto de energias morais,
que impele a jogar o futuro e a vida em defesa da dignidade e da justiça.
Entre os talentos intelectuais e os talentos morais, estes últimos soem
ser preferidos, com razão, pois são concebidos como mais necessários.
"O talento superior é o talento moral", escreveu Smiles, glosando o
inexgotável Mr. de la Palisse. Dessa comparação, está excluído, a priori, o
homem medíocre pois êle só tem rotinas no cérebro, e preconceitos no
coração .
Aapoteóse do tolo bom encaminha-se, evidentemente, ao protesto,
como o fazia Cícero, contra os que pretendiam consentir ao engenho
um absurdo direito à imoralidade. O sistema é equívoco; igualmente injusto
seria desacreditar os santos mais exemplares, com fundamento na
existência de simuladores da virtude.
É capcioso opôr o engenho à moral, como termos inconciliáveis. Só
poderia, pois, ser virtuoso o rotineiro ou o imbecil? Só poderia ser
engenhoso o desonesto ou o degenerado?
A humanidade deveria corar, diante destas perguntas. Sem embargo,
elas são insinuadas por catequizado-res, que adulam os tolos, procurando o
êxito, diante do seu número infinito. O sofisma é ingênuo. Em muitos
grandes homens se encontram anomalias morais ou de caráter, que não
soem ser encontradas no medíocre, nem no imbecil; logo, aqueles são
imorais e estes são virtuosos.
Embora as premissas fossem exatas, a conclusão seria ilegítima. Se se
concedesse — e é mentira — que os grandes engenhos são forçosamente
imorais, não haveria, mesmo assim, razão alguma para outorgar aos imbecis
o privilégio da virtude, reservado ao talento moral.
Mas a premissa é falsa. Se temos notícias dos desequilíbrios dos
gênios, e não dos pacóvios, não é porque estes sejam faróis de virtude,
sinão, por outro motivo muito singelo: a história somente se ocupa com os
primeiros ignorando os segundos.
Para cada poeta alcoólatra, há dez milhões de ta-fues que bebem,
como êle; para cada filósofo uxoricida, há cem mil uxoricidas que não são
filósofos; para cada sábio experimentador, cruel para com um cão, ou uma
rã, há uma incontável coorte de caçadores e toureiros, que levam vantagens
na impiedade.
E que dirá a história? Houve um poeta alcoólatra, um filósofo
uxoricida, e um sábio cruel: os milhões de anônimos não têm biografia.
Moreau de Tours errou o caminho; Lombroso se extraviou; Nordau
fez, dessa questão, uma simples polêmica literária. Não comunguemos com
rodas de moinho; a premissa é falsa.
Nós, que temos visitado cem cárceres, podemos assegurar que havia
neles cincoenta mil homens de inteligência inferior, ao lado de cinco ou de
vinte homens de talento. Não vimos siquer um homem de gênio.
Volvamos ao sadio conceito socrático, irmanando a virtude ao
engenho, fazendo-os aliados e não adversários. Uma elevada inteligência é
sempre propícia ao talento moral, e é esta a condição da virtude. Só ha uma
coisa mais vasta, exemplar, magnífica: é o movimento de aza que eleva no
sentido do desconhecido até então, re-montando-nos aos cimos eternos
desta aristocracia moral: são gênios que ensinam virtudes não praticadas até
à hora das suas profecias, ou que praticam as conhecidas com
extraordinária intensidade. Se um homem consegue encarrilhar, em
absoluto, a sua vida, no sentido de um ideal, fugindo ou contrastando todas
as contigências materiais que conspiram contra êle, esse homem se eleva
sobre o próprio nível das mais altas virtudes. Entra na santidade.
VI — O gênio moral: a santidade
A santidade existe: os gênios morais são os santos da humanidade. A
evolução dos sentimentos coletivos, representados pelos conceitos do bem
e da virtude, opera-se por meio de homens extraordinários. Neles se
resume ou se polariza alguma tendência imanente do contínuo vir-a-ser
moral.
Alguns legislam e fundam religiões, como Manú, Confúcio, Moisés ou
Buda, em civilizações primitivas, quando os Estados são teocracias; outros
pregam e vivem a sua moral, como Sócrates, Zenão ou Cristo, confiando a
sorte dos seus novos valores à eficácia do exemplo; há, enfim, os que
transformam racionalmente as doutrinas, como Antístenes, Epicuro ou
Spinoza.
Seja qual fôr o juízo que, da posteridade, mereçam os seus
ensinamentos, todos eles são inventoras forças originais na evolução do
bem e do mal, na metamorfose das virtudes.
Os que ensinam, são sempre homens de exceção, gênios. Os talentos
morais aperfeiçoam ou praticam, de maneira excelente, essas virtudes por
eles criadas; os medíocras morais, limitam-se a imitá-los timidamente.
Toda santidade é excessiva, transbordante, obsidente, absorvente,
incontrastável: é gênio.
Um homem é santo por temperamento, não, por cálculo; por
impulsos firmes de coração, mais do que por doutrinarismos racionais:
quasi todos foram assim.
A inflexível rigidez do profeta ou do apóstolo é simbólica; sem ela,
não teríamos a iluminada firmeza do virtuoso, nem a obediência
disciplinada do honesto.
Os fatores práticos da vida social não são os santos, e, sim, as massas
que imitam dèbilmente a sua fórmula. Francisco não foi um instrumento
eficaz da beneficência, virtude cristã, que o tempo substituirá pela
solidariedade social; seus efeitos úteis são produzidos por inumeráveis
indivíduos que seriam capazes de praticá-la por iniciativa própria, mas que,
no exaltado protótipo, recebem sugestões, tendências e exemplos,
graduando-os, difundindo-os.
O santo de Assis morre de consunção, obcecado por sua virtude, sem
cuidar de si próprio, e entrega a sua vida ao seu ideal; os medíocres que
praticam a beneficência por êle pregada, cumprem uma obrigação, tibia-
mente, sem perturbar a sua tranqüilidade em holocausto aos outros.
A santidade cria ou renova.
"A extensão e o desenvolvimento dos sentimentos sociais e morais —
disse Ribot — produziram-se lentamente e por obra de certos homens que
merecem ser chamados inventores em moral. Esta expressão pode soar
estranhamente a certos ouvidos de gente imbuída da hipótese de um
conhecimento do bem e do mal inato, universal, distribuído a todos os
homens a todos os tempos. Se, ao contrário, se admite uma moral que se
vai formando, é necessário que ela seja a criação, o descobrimento
praticado por um indivíduo, ou por um grupo. Toda gente admite
inventores em geometria, em música, nas artes plásticas ou mecânicas; mas,
também, houve homens que, por suas disposições morais, eram muito
superiores aos seus contemporâneos, por serem promotores, iniciadores. É
importante observar que a concepção teórica de um ideal moral mais
elevado, de uma etapa a ser vencida, não basta; é preciso uma emoção
poderosa que seja capaz de fazer agir, e, por contrário, comunicar aos
outros o seu próprio arrojo. A avançada é proporcional ao que se sente, e
não, ao que se pensa".
Por isto, o gênio moral é incompleto, enquanto não atua; a simples
visão de ideais magníficos não implica a santidade, que está mais no
exemplo, do que na doutrina, sempre que encerra uma criação original. Os
assim chamados — santos, de certas religiões, raras vezes são criadores: são
simples virtuoses ou alucinados, aos quais o interesse do culto e a política
do sentimento religioso, somente são gênios os que fundam ou
transformam, mas, de maneira alguma, os que organizam ordens,
estabelecem regras, repetem um credo, praticam uma norma, ou difundem
um catecismo.
O santoral católico é irrisório. Ao lado de poucas vidas que merecem
a agiografia de um Fra Domênico
Cavalca, há muitas que não interessam, nem ao moralista, nem ao
psicólogo; numerosas tentam a curiosidade dos alienistas, e outras só
revelam a interessada homenagem dos concílios ao fanatismo localista de
certos rebanhos industriosos.
Coloquemos mais alta a santidade: coloquemo-la onde possa assinalar
uma orientação inconfundível na história da moral.
Cada hora da humanidade tem um clima, uma atmosfera e uma
temperatura, que, sem cessar, variam. Cada clima é propício ao
florescimento de certas virtudes; cada atmosfera se carrega de crenças que
assinalam a sua orientação intelectual; cada temperatura marca os graus de
fé com que se acentuam ideais e aspirações.
Uma humanidade que evolue, não pode ter ideais imutáveis, sinão,
incessantemente perfectíveis, cujo poder de transformação deve ser
infinito, como a vida.
As virtudes do passado não são as virtudes do presente; os santos de
amanhã não serão os mesmos de ontem. Cada momento da história, requer
certa forma de santidade que seria estéril, si não fosse oportuna, pois as
virtudes se vão plasmando nas variações da vida social.
No amanhecer dos povos, quando os homens vivem lutando
denodadamente contra a natureza avarenta, é indispensável que eles sejam
fortes e valentes, para impor a hegemonia, ou assegurar a liberdade do
grupo; então, a qualidade suprema é a excelência física, e a virtude da
coragem se transforma em culto de heróis, equiparados aos deuses. A
santidade está no heroísmo.
Nas grandes crises de renovação moral, quando a apatia ou a
decadência ameaçam dissolver um povo ou uma raça, a virtude excelente
entre todas é a integridade do caráter, que permite viver ou morrer por um
ideal fecundo, para o engrandecimento comum. A santidade está no
apostolado.
Nas civilizações em plena madureza, serve mais à humanidade aquele
que descobre uma nova lei da natureza, ou ensina a dominar alguma das
suas forças, do que aquele que culmina por seu temperamento de herói ou
de apóstolo. Por isso, o prestígio rodeia as virtudes intelectuais: a santidade
está na sabedoria.
Os ideais éticos não pertencem exclusivamente ao sentimento
religioso; nem a virtude, nem a santidade. Eles podem florescer em cada
sentimento. Cada época tem seus ideais e seus santos: seus heróis, seus
apóstolos, seus sábios.
As nações que chegaram a um certo nível de cultura, santificam, nos
seus grandes pensadores, os porta-luzes e arautos de sua grandeza
espiritual. Se os heróis dão o exemplo supremo para os que combatem, e
os apóstolos, para os que crêem, os filósofos o dão para os que pensam.
Na moral das sociedades que se formam, culminam Alexandre, Cesar
ou Napoleão; quando se renovam, Sócrates, Cristo ou Bruno; mas chega
um momento em que os santos se chamam Aristóteles, Bacon e Goethe.
A santidade varia em consonância com o ideal.
Os espíritos cultos concebem a santidade nos pensadores, tão
luminosa como nos heróis e nos apóstolos; nas sociedades modernas, o
"santo" é um antecipado visionário de teorias ou profeta de feitos, que a
posteridade confirma, aplica ou realiza. Compreende-se que, em suas horas,
haja santidade no ato de servir um ideal nos campos de batalha, ou
desafiando a hipocrisia, como nos supremos protagonistas de
uma Ilíada, ou de um Evangelho; mas também é santo, de outros ideais, o
poeta, o sábio ou o filósofo, que vivem eternos em sua Divina Comédia em
seuNovum Organum ou em sua Origem das Espécies.
Se é difícil olhar, por um instante, para o semblante da morte que
ameaça paralizar o nosso braço, mais difícil ainda é resistir,
durante toda uma vida, aos prejuízos e rotinas que ameaçam asfixiar a
nossa inteligência .
Entre névoas que alternativamente se adensam, e se dissipam, a
humanidade ascende, sem repouso, a caminho de remotas alturas. As
maiorias as ignoram; poucos eleitos as podem ver e pôr, nelas, o seu ideal,
aspirando aproximar-se cada vez mais. Orientadas pela exígua constelação
dos visionários, as gerações caminham, da rotina, para Verdades cada vez
menos inexatas, e do prejuízo para Verdades cada vez menos imperfeitas.
Todos os caminhos da santidade conduzem ao ponto do infinito que
assinala a sua imaginária convergência.
Capítulo IV – A DOMESTICAÇÃO DOS
MEDÍOCRES
I — Homens e sombras
Desprovidos de azas e de penacho, os caracteres medíocres são
incapazes de voar até um píncaro, ou de lutar contra um rebanho. Sua vida
é uma perpétua cumplicidade com a vida alheia. São hósteis mercenários
do primeiro homem firme que sabia colocá-lo sob seu jugo.
Atravessam o mundo cuidando da sua sombra, ignorando a sua
personalidade. Nunca chegam a se individualizarem; ignoram o prazer de
exclamar "eu sou!", em face dos demais. Não existem sozinhos. Sua amorfa
estrutura os obriga a se apagarem numa raça, num povo, num partido,
numa seita, num bando: sempre a fingir que são outros.
Escoaram todas as rotinas e prejuízos consolidados através de
séculos. Medram assim. Seguem o caminho que menores resistências
oferece, nadam a favor de toda corrente, e variam com elas; no seu rodar,
águas abaixo, não há mérito, simples incapacidade de nadar águas acima.
Crescem, porque sabem adaptar-se à hipocrisia social, como as lombrigas,
às entranhas.
São refratárias a todo gesto digno; são hostis a isto. Conquistam
"honras", e conseguem "dignidades", no plural; inevntaram o inconcebível
plural da honra
e da dignidade, singulares e inflexíveis por definição. Vivem dos
outros e para os outros: sombras de uma grei, sua existência é o acessório
dos focos que o projetam. Carecem de luz, de arrojo, de fogo, de emoção.
Tudo, neles, é emprestado.
Os caracteres excelentes ascendem à própria dignidade, nadando
contra todas as correntes rebaixadoras, a cujo refluxo resistem com energia.
É fácil distinguí-los, imediatamente, em face de outros, pois não se
desvanecem nessa névoa moral em que aqueles se descoloram. Sua
personalidade é toda brilho e aresta:
"Firmeza e luz, como cristal de rocha"
breves palavras que sintetizam a sua perfeita definição.
Teofrasto de La Bruyère não as escreveram melhor. Tais caracteres
criaram a sua vida, e serviram um ideal, perseverando em sua rota,
sentindo-se donos de seus atos, temperando-os para grandes esforços:
seguros em suas crenças, leais a seus afetos, fiéis à sua palavra.
Nunca se obstinam no erro, não traem, nunca, a verdade. Ignoram o
impudor da inconstância e a insolência da ingratidão. Vão contra os
obstáculos, e enfrentam as dificuldades. São respeitosas na vitória e se
dignificam na derrota: como se, para eles, a beleza estivesse na liça, e, não,
no resultado. Sempre, invariavelmente, olham para o alto e para longe; por
trás do atual fugitivo, divisam um Ideal tanto mais respeitável, quanto mais
distante.
Estes optimates são poucos; cada um deles vive por um milhão.
Possuem uma linha moral firme, que lhes serve de esqueleto ou de
armadura. São alguém. Sua fisionomia é a deles, e não pode ser de ninguém
mais. São inconfundíveis, capazes de imprimir seu selo indelével em mil
iniciativas fecundas. São temidos pelos domesticados, como a chaga teme o
cautério: sem adverti-los, entretanto, adoram-nos com o seu desdém. São
os verdadeiros amos da sociedade, os que agridem o passado, e preparam o
porvir, os que destroem e plasmam. São os atores do drama social, como
energia inex-gotável.
Possuem o dom de resistir à rotina, e podem livrar-se de sua tirania
niveladora.
Por causa deles, a Humanidade vive e progride.
São sempre excessivos; centuplicam as qualidades que os outros
apenas possuem em germe. A hipertrotia üe uma idéia ou de uma paixão
torna-os inaüaptaveis ao seu meio, exagerando a sua pujança; mas, para a
sociedade, realizam uma íunção harmónica e vital. Sem eles, o progresso
humano se imobilizaria, estacando como veleiro surpreendido, em alto
mar, pela bonança. Com eles, somente com eles, é que se ocupa a história e
a arte, interpretando-os como protótipo da Humanidade.
O homem que pensa com a sua própria cabeça, e a sombra que reflete
os pensamentos alheios, parece pertencerem a mundos diferentes. Homens
e sombras: diferem entre si, como o cristal e a argila.
O cristal tem uma forma preestabelecida pela sua própria composição
química; cristaliza-se nela, ou não, conforme os casos; mas nunca tomará
uma forma que não seja a própria. Vendo-os, sabemos o que é,
inconfundivelmente.
De igual maneira, o homem superior é sempre um, em si, aparte dos
demais. Se o clima lhe é propício, converte-se em núcleo de energias
sociais, projetando sobre o meio os seus caracteres próprios, à guisa do
cristal que, em uma solução saturada, provoca novas cristalizações
semelhantes a si mesmo, criando formas
do seu próprio sistema geométrico. A argila, ao contrário, carace de
forma própria, e toma a que lhe imprimem as circunstâncias exteriores, os
seres que a manipulam, ou as coisas que a rodeiam; conserva o rastro de
todos os sulcos e as pegadas de todos os dedos, como a cera, como
qualquer pasta; será cúbica, esférica ou piramidal, conforme a modelação.
Assim acontece com os caracteres medíocres: sensíveis às coerções do
meio em que vivem, incapazes de servir uma fé ou uma paixão.
As crenças são o suporte do caráter; o homem que as possue, firmes e
elevadas, tem caráter exelente. As sombras não crêem.
A personalidade está em perpétua evolução, e o caráter individual é o
seu delicado instrumento; é preciso temperá-lo sem descanso, nas fontes da
cultura e do amor.
O que herdamos, implica certa fatalidade, que a educação corrige e
orienta.
Os homens estão predestinados a conservar sua linha própria entre as
pressões coercitivas da sociedade; as sombras não têm resistência,
adaptam-se facilmente, até se desfigurarem, domesticando-se.
O caráter expressa-se por atividade que constituem a conduta. Cada
sêr humano tem aquele que corresponde às suas crenças: se é "firmeza e
luz", como disse o poeta, a firmeza está nos sólidos fundamentos da sua
cultura, e a luz, em sua elevação moral.
Os elementos intelectuais não bastam para determinar sua orientação;
a do caráter depende tanto da consistência moral, como da cultura, ou mais
ainda. Sem algum engenho, é impossível ascender pelos caminhos da
virtude; sem alguma virtude, são inacessíveis os caminhos do engenho. Na
ação, estão em consonância.
A força das crenças está em não serem puramente racionais;
pensamos com o coração e com a cabeça.
Elas não implicam um conhecimento exato da realidade; são simples
juízos a seu respeito, suscetíveis de correções e de substituições. São
instrumentos atuais; cada crença é uma opinião contingente e provisória.
Todo juízo implica uma afirmação: o juízo negativo é uma crença, tal
como o afirmativo. Toda negação é, em si mesma, afirmativa; negar é
afirmar uma negação. A atitude é idêntica; crê-se o que se afirma, ou o que
se nega. Ocontrário da afirmação não é negação, é a dúvida. Para afirmar
ou negar, é preciso crer. Ser alguém, é crer intensamente: pensar é crer;
amar é crer; odiar é crer; lutar é crer; viver é crer.
As crenças são os móveis de toda atividade humana. Não é preciso
que sejam verdades: cremos com antecedência a todo raciocínio, e cada
uma das novas noções é adquirida através de crenças já preíormadas. A
dúvida deveria ser mais comum visto que, com ela, escasseiam os critérios
de certeza lógica a primeira atitude, entretanto, é uma adesão ao que se
apresenta à nossa experiência.
A maneira primitiva de pensar as coisas, consiste em nelas acreditar
tais como as sentimos; as crianças, os selvagens, os ignorantes, os espíritos
débeis, são acessíveis a todos os erros — brinquedos frívolos das pessoas,
das coisas e das circunstâncias. Qualquer coisa pode desviar um baixel sem
governo.
Essas crenças são como os cravos que penetram com um só golpe; as
convicções firmes entram como os parafusos, pouco a pouco, à força de
observação e de estudo. É mais laboriosa a sua aquisição; mas, enquanto
que os escravos cedem ao primeiro impulso vigoroso, os parafusos
resistem e mantém de pé a personalidade.
O engenho e a cultura corrigem as fáceis ilusões primitivas e as
rotinas impostas pela sociedade ao indivíduo: a amplitude do saber permite
aos homens a formação de idéias próprias. Viver arrastado pelas alheias,
equivale a não viver. Os medíocres são obra dos outros, e estão em todas
as partes; maneira de não ser ninguém, e de não estar em lugar algum.
Não se concebe um caráter sem unidade. Quando este falta, o homem
é amorfo ou instável; vive assombrado, como fráe:il embarcação no
oceano. Essa unidade deve ser efetiva no tempo; depende, em grande
parte, da coordenação das crenças. Estas são forcas dina-mogêneas e ativas
sintetizadoras da personalidade.
A história natural do pensamento humano só estuda crenças, não
certezas. A espécie, as raças, as nações, os partidos, os grupos, são
animados por necessidades materiais que as engendram, mais ou menos de
acordo com a realidade, mas sempre determinantes da sua ação.
Crer é a forma natural de pensar para viver.
A unidade das crenças permite aos homens operar de acordo com o
próprio passado: é um hábito de independência e a condição do homem
livre no sentido relativo eme o determinismo consente. Seus atos são ágeis
e retilíneos, podendo ser previstos em cada circunstância; seguem, sem
vacilações, um caminho traçado: tudo concorre para aue eles guardem a sua
dignidade e formem o seu ideal. Estão sempre prontos para o esforço, e o
realizam sem esgares. Sentem-se livres, ainda quando maneiam as suas
paixões. Querem ser independentes de tudo e de todos, sem que isso os
impeça de ser tolerantes: eles não põem o preço da sua liberdade na
submissão dos outros. Fazem sempre o que querem, porque só querem
aquilo cuja realização suas forças permitem. Sabem polir a obra de seus
educadores, e nunca julgam terminada a própria cultura. Dir-se-ia que eles
mesmos se fizeram como são, vendo-os sublinar, em
todos os atos, o propósito de assumir a sua personalidade.
As crenças do Homem são profundas, radicadas em vasto saber;
servem de leme seguro, para seguir por uma rota que êle conhece, e que
não oculta aos outros; quando muda de rumo, é porque suas crenças se
transformam por uma nova experiência, e ao calor das mais profundas
meditações.
As crenças da Sombra são sulcos arados na água: qualquer vento os
desvia; sua opinião é tornadiça como bandeirola, e suas mudanças
obedecem as grosseiras solicitações de conveniências imediatas.
Os Homens evoluem com a variação das suas crenças, e podem
transformá-las enquanto vão aprendendo; as Sombras acomodam as
próprias crenças aos seus apetites, e pretendem encobrir a indignidade com
o nome de evolução. Se dependesse delas, esta última palavra equivaleria
a desequilíbrio, ou a falta de vergonha; muitas vezes, a traição.
Crenças firmes, conduta firme. Esse o critério para apreciar o caráter:
as obras. Di-lo o poema bíblico:Judicáberis ex operibus vestris — sereis
julgados por vossas obras.
Quantos há que parecem homens, e que só valem pelas posições
alcançadas nas piaras mediocráticas! Vistos de perto, examinados em obras,
são menos do que nada; valores negativos. Sombras.
II — A domesticação dos medíocres
Gil Blas de Santillana é uma sombra: sua vida inteira é um processo
contínuo de domesticação social. Se alguma linha própria permitisse
diferenciá-lo do seu rebanho, toda a esterqueira social se derramaria sobre
êle, para apagá-la, complicando a sua insegura unidade com uma cifra
imensa.
O rebanho lhe oferece infinitas vantagens. Não é para surpreender o
fato de êle as aceitar, em troca de certas renúncias compatíveis com a sua
renúncia moral. Não exige coisas inverossímeis; basta a sua
condescendência passiva, sua alma de lacaio.
Enquanto os homens resistem às tentações, as sombras resvalam
pelas vertentes; se alguma partícula de originalidade os embaraça,
eliminam-na para se confundirem melhor com os outros. Parecem sólidas,
e se abrandam; ásperas, e se suavisam; ariscas, e se amansam; calorosas, e se
esfriam; resplandecentes, e se empanam; ardentes, e se pacificam; viris, e se
feminizam; erguidas, e se achatam. Mil laços sórdidos as esperam, desde
que tomam contacto com suas semelhantes; aprendem a medir as suas
virtudes, e praticá-las com parcimônia. Cada afastamento custa-lhe um
desengano, cada desvio vale uma desconfiança. Moldam seu coração aos
prejuízos e sua inteligência, às rotinas: a domesticação facilita-lhe a luta pela
vida.
A mediocracia teme o digno, e adora o lacaio. Gil Blas encanta-a:
simboliza o homem prático que tira partido detoda situação, e que encontra
proveito em toda vilania. Persegue Stockmann, o inimigo do povo, com o
mesmo afã com que admira Gil Blas: recebe-o na gruta do bandoleiro, e o
enaltece, qual favorito nas cortes. É um homem de cortiça; flutua. Foi
salteador, rufião, ratoneiro, prestamista, assassino, estafador, fementido,
ingrato, hipócrita, traidor, político: estes diferentes mergulhos na lama não
o impedem de subir, e de outorgar sorrisos, estando ao seu comedouro. É
perfeito no seu gênero. Seu segredo é simples: é um animal doméstico.
Entra no mundo como criado, e continua sendo servil até a morte, em
todas as circunstâncias e situações: nunca tem um gesto altivo, jamais
acomete um obstáculo pela frente.
A boa linguagem clássica denominava "doméstico" a todo homem
que servia. E era justo. O hábito da servidão traz, consigo, sentimentos de
domesticidade, tanto nos cortezãos, como nos povos.
Fora necessário copiar por inteiro o eloqüente Discurso sobre o servilismo
voluntário, escrito por La Boe-tie, em sua adolescência, e coberto de glória
pelo elogio admirativo de Montaigne. Desde o seu tempo, milhares de
páginas fustigam a subordinarão aos dogmatismos sociais, o acatamento
incond;cional dos prejuízos admitidos, o respeito das hierarquias
adventícias, a disciplina céea em face da imposição coletiva, a homenagem
decidida a tudo o que representa a ordem vigente, a submissão sistemática
à vontade dos poderosos: tudo o que reforça a domesticarão, e que tem,
por conseqüência inevitável, o servilismo.
Os caracteres excelentes são indomesticáveis: têm seu norte posto no
seu Ideal. Sua "firmeza" os sustenta; sua "luz" os guia. As sombras, ao
contrário, degeneram.
A cera facilmente se liquefaz; o cristal nunca perde a sua aresta.
Os Medíocres encharcam a sua sombra, quando o meio os instiga; os
superiores se enaltecem na mesma proporção em que o seu ambiente se
rebaixa.
Nos momentos felizes, como na adversidade, amando e desprezando,
entre risos e entre lágrimas, cada homem firme tem um modo peculiar de
se comportar, modo que é a sua síntese: o seu caráter. As sombras não têm
essa unidade de conduta que permite prever o gesto em todas as ocasiões.
Para Zenão, o estóico, o caráter é fonte de vida, e todas as ações
partem dele. Está bem dito, mas é im-
preciso. Em suas definições, os moralistas não concordam com os
psicólogos; aqueles catonizam, como pregadores, e estes descrevem, como
naturalistas.
O caráter é uma síntese: é preciso insistir nisto. É um expoente de
toda a personalidade, e não, de algum elemento isolado. Nos próprios
filósofos, o caráter pareceria depender exclusivamente de condições
intelectuais: erro inútil, porque sua conduta é o transunto de cem outros
fatores.
Pensar é viver. Todo ideal humano implica uma associação
sistemática da moral e da vontade, fazendo convergir ao seu objetivo os
mais veementes anelos de perfeição.
O investigador de uma verdade se sobrepõe à sociedade em que vive:
trabalha para esta, e pensa por todos, antecipando-se, contrariando suas
rotinas. Tem uma personalidade social, adaptada para as funções que não
pode exercer em uma ermida; mas os seus sentimentos sociais não lhe
impõem cumplicidade com os menos límpidos. Em sua anastomóse com
os outros, conserva livres coração e cérebro, mediante alguma coisa de
próprio, que nunca se desorienta: aquele que pos-sue um caráter, não se
domestica.
Gil Blas medra entre os homens, desde que a humanidade existe;
protestaram contra êle os idealistas de todos os tempos. Os românticos,
envoltos em sublime desdém, manifestaram-se contra os temperamentos
servís; Musset, pela boca de Lorenzaccio, esvurma, com palavras indeléveis, a
cobardia dos povos familiarizados com a servidão. E os individualistas não
lhe ficam atrás, pois o seu vôo lírico mais alto foi atingido por Nietzsche;
suas mais formosas páginas são um código de moía 1 anti-medíocre, uma
exaltação de qualidades inconciliáveis com a disciplina social, O espírito
gregário, por êle tão acerbamente fustigado, tem já, dissectores
eloqüentíssimos, que exibem as solidárias cumplicidades com que os
medrosos resistem às iniciativas dos audazes, agrupando-se em maneiras
diversas, de acordo com os seus interesses de classe, hierarquia ou funções.
Onde houve escravos e servos, foram plasmados caracteres servis.
Vencido o homem, não n’o matavam; forçavam-no a trabalhar em proveito
dos vencedores. Sujeito à escravidão, medroso em face do látego, o escravo
se dobrava sob a carga, que ia gravando, em seu caráter a domesticidade.
Alguns — diz a história — foram rebeldes, ou alcançaram dignidades: sua
rebeldia foi sempre um gesto de animal faminto, e seu êxito foi o preço de
cumplicidades nos vícios de seus amos. Chegados ao exercício de alguma
autoridade, tornaram-se despóticos, desprovidos de idéias capazes de os
deter diante da infâmia, como se quisessem, com seus abusos, esquecer a
servidão sofrida anteriormente. Gil Blas foi o mais vil dos favoritos.
O tempo e o exercício adaptam o homem à vida servil. O hábito de se
resignar, para medrar, cria recursos cada vez mais sólidos, automatismos
que descoloram, para sempre, todo traça individual. O adulador Gil Blas
mancha-se com estigmas que o tornam inconfundível com o homem
digno. Embora emancipado, continua sendo lacaio, e deixa os baixos
instintos à rédea solta.
O costume de obedecer engreda uma mentalidade doméstica. Quem
nasce de servos, a traz no sangue,, como diz Aristóteles. Herda hábitos
servis, e não encontra ambiente propício para a formação do seu caráter.
As vidas iniciadas na servidão não adquirem dignidade.
Os antigos alimentavam o maior desprezo pelos filhos dos lacaios,
reputando-os moralmente piores do que os adubos reduzidos ao jugo por
dívidas, ou nas batalhas; supunham que herdavam a domesticidade dos
pais, in-tensificando-a com a servidão ulterior. Eram desprezados por seus
amos.
Isto se repete em todos os países que tiveram uma raça escrava
inferior. É legítimo. É com humilhante desprezo que se costuma olhar para
os mulatos e mestiços, descendentes de antigos escravos, em todas as
nações deraça branca que aboliram a escravidão; seu afã, no sentido de
dissimular a sua descendência servil, demonstra que reconhecem a
indignidade hereditária condensada neles. Esse desprezo é natural. Assim
como o antigo escravo se tornava vaidoso e insolente, ao ascender a
qualquer posição, de onde era possível mandar, os mulatos e mestiços se
orgulham, nas morganáticas medio cracias sul-americanas, captando
funções e honrarias com que fartam os seus apetites acumulados em
domesticida des seculares.
A classe cria desigualdades idênticas às da raça. Os servos foram tão
domesticados, como os escravos; arevolução francesa deu liberdade política
aos seus descendentes, mas não soube dar-lhes essa liberdade moral que é
o impulso da dignidade.
O burguês enriquecido merece o desprezo do aristocrata, mais ainda
do que o ódio do proletário, que é um aspirante à burguesia; não há chefe
pior, do que o antigo assistente, nem amo pior, do que o antigo lacaio.
As aristocracias são lógicas, quando desdenham os adventícios:
consideram-nos descendentes de criados enriquecidos, e supõem que
herdaram a sua domesticidade, juntamente com as taleigas.
Essas inclinações servis, radicadas no próprio fundo da
hereditariedade étnica ou social, são bem vistas nas mediocracias
contemporâneas, que nivelam, politicamente o servo e o digno. Foi
mudado o nome, mas o conteúdo subsiste: a domesticidade é corrente nas
sociedades modernas.
Há muitas décadas que se praticou a abolição legal de escravidão ou
de servilismo; certos países não se julgariam civilizados, se conservassem tal
coisa em seus códigos. Isto, porém, não muda os costumes: o lacaio e o
servo continuam existindo, por temperamento ou por falta de caráter. Não
são propriedade de seus amos, mas buscam a tutela alheia, da mesma forma
por que vão à querença os animais extraviados. Sua psicologia gregária não
se modificou cem a declaração dos direitos do homem; a liberdade, a
igualdade, a fraternidade, são ficções que os desvanecem, mas não os
redimem.
Há inclinações que sobrevivem a todas as leis igualitárias, e fazem
amar o jugo ou o látego. As leis não podem dar hombridade às sombras,
nem caráter ao amorfo, nem dignidade ao envilecido, nem iniciativa aos
imitadores, nem virtude ao honesto, nem intrepidez ao manso, nem afã de
liberdade ao servil. Por isso, em plena democracia, os caracteres medíocres
buscam naturalmente o seu baixo nível: domesticam-se.
Em certos indivíduos, sem caráter desde o ventre materno até o
túmulo, a conduta não pode seguir normas constantes. São perigosos,
porque o seu ontem não diz coisa alguma sobre o seu amanhã: operam à
mercê dos impulsos acidentais, sempre aleatórios. Se possuem alguns
elementos válidos, estão estes dispersos, incapazes de síntese; a menor
sacudidela põe a flutuar os seus atavismos de selvagem e de primitivo,
depositados nos sulcos mais profundos de sua personalidade. Suas
imitações são frágeis e pouco enraizadas. Por isso são antisociais, incapazes
de se elevarem à honesta condição de animais de rebanho.
A outros desgraçados, sem irreparáveis lacunas de temperamento, a
sociedade amesquinha a educação. As grandes cidades estão cheias de
crianças moralmente desamparadas, presas da miséria, sem lar, sem escola.
Vivem acariciando o vício e colhendo a corrupção, sem o hábito da
honestidade e sem o exemplo luminoso da virtude. Embotada a sua
inteligência, e coibidas as suas melhores inclinações, têm a vontade errante,
incapaz de se sobrepor às convergências fatais que pugnam no propósito
de as afundar. E, se passam a sua infância sem cairem no charco, tropeçam
depois, em novos obstáculos.
O trabalho, criando o hábito do esforço, seria a melhor escola do
caráter; mas a sociedade ensina a odiá-lo, impondo-o precocemente, como
uma ignomínia desagradável ou um envilecimento infame, sob a escravidão
de jugos e de horários, executado por fome ou por avareza, até que o
homem foge dele, como de um castigo; só poderá amá-lo, quando fôr uma
ginástica espontânea de seus gostos e de suas aptidões.
Assim a sociedade completa a sua obra; os que não naufragaram pela
educação malsã, dão contra o escolho do trabalho embrutecedor. Na
complexa atividade moderna, as vontades claudicantes são toleradas; suas
in-cogruências ficam ocultas, enquanto os atos se referem a vulgares
automatismos da vida quotidiana; mas, quando uma circunstância nova os
obriga a procurar uma solução, a personalidade se agita, ao acaso, e revela
então os seus vícios intrínsecos.
Estes degenerados são indomesticáveis.
Os outros, como Gil Blas, carecem de orientação de sua própria
conduta, e esquecem que o mais leve deslize pode ser o passo inicial no
sentido de uma degradação completa. Ignoram que cada esforço de
dignidade consolida a nossa firmeza; quanto mais perigosa é a verdade que
hoje dizemos, tanto mais fácil será, amanhã pronunciar outras, em voz alta.
Nos mundos minados pela hipocrisia, tudo conspira contra as
virtudes civis; os homens se corrompem mutuamente, imitam-se na fraude,
estimulam-se no indecoroso, justificam-se reciprocamente.
Uma tíbia atmosfera entorpece àquele que cede pela primeira vez à
tentação do injusto; as conseqüências da primeira falta podem ir até o
infinito. Os medíocres não sabem evitá-la; inutilmente dispenderiam o
esforço necessário para regressar ao bom caminho e emendar.
Para as sombras, não há rehabüitação possível; preferem excusar os
desvios mais ou menos leves, sem advertir que é assim que se preparam os
grandes. Todos os homens conhecem essas pequenas fraquezas, pois, de
outro modo, seriam perfeitos, desde a sua origem; mas, enquanto pelos
caracteres firmes, elas passam como um roçar que não deixa rastro, nos
caracteres brandos aram um sulco por onde se facilita a reincidência. Esse é
o caminho do envilecimento. Os virtuosos o ignoram: os honestos deixam-
se tentar. Como para Gil Blas, o que lhes custa, é apenas a primeira queda;
depois, continuam caindo como a água nas cascatas, a saltos, de pequenez
em pequenez, de fraqueza em fraqueza, de curiosidade em curiosidade. Os
remorsos da primeira culpa cedem à necessidade de ocultá-la com outra,
diante das quais já não se amedrontam.
Seu caráter se decompõe, e eles se desviam, andam às cegas,
tropeçam, praticam arremetidas, adotam expedientes, disfarçam suas
intenções, ascendem por sendas tortuosas, buscam cúmplices destros para
avançar na treva.
Depois dos primeiros passos hesitantes, caminham de pressa, até que
as próprias raízes de sua moral se aniquilam. Assim resvalam pela
pendente, aumentando a corte dos lacaios e dos parasitas; centenas de Gil
Blas carcomem as bases da sociedade que pretendeu modelá-los à sua
imagem e semelhança.
Os homens sem ideais são incapazes de resistir às solicitações de
farturas materiais semeadas em seu caminho. Quando cedem às tentações,
cevam-se, como feras que conhecem o sabor do sangue humano.
Pela circunstância de pensar sempre com a cabeça da sociedade, o
domesticado é a escora mais segura de todos os conceitos políticos,
religiosos, morais e sociais. Gil Blas está sempre com as mãos
congestionadas, por ter aplaudido os ungidos, e com a arma afiada para
agredir o rebelde que anuncia uma heresia. O panurgis-mo e a intolerância
são as cores da fita do seu chapéu, para as quais exige o respeito de todos.
E é incalculável a soma de indivíduos domesticados que nos rodeiam.
Cada funcionário tem um rebanho voraz, submisso aos seus caprichos,
como os famintos, ao que os farta. Se fossem capazes de vergonha, os
aduladores viveriam mais enrubecidos do que as papoulas; mas, longe
disso, passeiam a sua domesticidade, e se sentem orgulhosos, exibindo com
certo donaire, como a pantera que mostra as aveludadas manchas da sua
pele.
A domesticação realiza-se de mil maneiras, tentando todos os apetites.
Nos limites da influência oficial, os meios de aclimação se
multiplicam, principalmente nos países empestados pelo funcionalismo.
Os pobres de caráter não resistem; cedem a hipno tização. A perda da
sua dignidade se inicia, quando lançam os olhos sobre a prebenda capaz de
estremecer o seu estômago, ou de enevoar a sua vaidade, inclinan-se ante as
mãos que hoje lhes outorgam os favores e as que, amanhã, manejarão a sua
rédea.
Embora já não exista servidão legal, muitos indivíduos, livres da
domesticidade obrigatória, acostumam-
se a ela, voluntariamente, por vocação implícita em sua fraqueza.
Estão maculados desde o berço; mesmo não sofrendo necessidade de
benefícios, são instintivamente servis. Há-os em todas as classes sociais. O
preço da sua dignidade varia com a posição e se traduz em formas tão
diferentes, como as pessoas que a vendem.
Estimulando Gil Blas, rebaixa-se o nível moral dos povos e das raças;
estimular a canalhismo, não é tolerância. A cotação do mérito decai. A
mansuetude silenciosa é preferida à dignidade altiva. A pele se encobre de
maior número de enfeites. Quando a coluna vertebral é menos sólida, as
boas maneiras são mais apreciadas, do que as boas ações.
Se o de Santillana se enluva para roubar, merece a admiração de
todos; si Stockmann se despe, para salvar um náufrago, condenam-no por
escândalo.
Nos povos domesticados, há sempre um momento em que a virtude
parece ultrage aos costumes.
As sombras vivem com o anelo de castar os caracteres firmes, e de
decapitar os pensadores alados, não lhes perdoando o luxo de serem servis
e de possuírem cérebro.
A falta de virilidade é elogiada como um requinte, como acontece
com os cavalos de passeio. A ignorância parece uma galanteria, como
certas dúvidas elegantes que inquietam certos fanáticos sem ideais. Os
méritos convertem-se em contrabando perigoso, obrigados a se
desculparem, e a se ocultarem como se ofendessem por sua simples
existência.
Quando o homem digno começa a despertar ciúmes, é grave o
envilecimento coletivo; quando a dignidade parece absurda, e é coberta de
ridículo, a dome6ticidade dos medíocres chegou aos seus extremos.
III — A vaidade
O homem é. A sombra parece. O homem coloca a sua honra no
próprio mérito, e é o supremo juiz de si mesmo: ascende à dignidade. A
sombra põe o seu na estima alheia, e renuncia a julgar-se: descende à
vaidade.
Há uma moral de honra e outra de sua caricatura: ser ou parecer.
Quando um ideal de perfeição, impele a ser melhor, esse culto dos
próprios méritos consolida, nos homens, a dignidade; quando o afã de
parecer arrasta a todos os rebaixamentos, o culto da sombra inflama a
vaidade.
As duas nascem do amor próprio; são irmãs, por sua origem, como
Abel e Caim. São mais inimigas do que eles, e irreconciliáveis. São formas
diferentes do amor próprio. Seguem caminhos divergentes. Uma floresce
sobre o orgulho, ciúme escrupuloso, posto no respeito a si mesmo; a outra
nasce da soberba, apetite de culminação em face dos demais.
O orgulho é uma arrogância originada por nobres motivos, e quer
aquilatar o mérito; a soberba é uma desmedida presunção, e procura
ampliar a sombra.
Os catecismos e os dicionários colaboraram na me-diocrização moral,
subvertendo os termos que designam o exímio vulgar. Onde os padres da
Igreja diziam su-perbia, como os antigos, fustigando-os, os pacóvios
entenderam e traduziram orgulho, confundindo sentimentos diferentes. Daí,
o equívoco de onde resultou a confusão da vaidade com a dignidade, que é a
sua antítese, c a intenção de estabelecer igual preço para os homens e para
as sombras, com prejuízo e desprezo dos primeiros.
Em sua forma embrionária, o amor próprio se revela como desejo de
elogios, como temor de censuras; uma exagerada sensibilidade à opinião
alheia. Para os
caracteres conformados com a rotina e com opiniões cor rentes, o
desejo de brilhar em seu meio e o juízo que sugere ao pequeno grupo que
os rodeia, são estímulos de ação. A simples circunstância de viverem
arrebanhados, predispõe os indivíduos a buscar a aquiescência alheia; a
estima própria é favorecida pelo contraste, ou pela comparação com os
outros. Trata-se aqui de sentimento moral.
Mas os caminhos divergem. Nos dignos, o próprio juízo se antepõe à
aprovação alheia; nos medíocres, postergam-se os méritos, e se cultiva a
sombra. Os primeiros vivem para si mesmos; os segundos vegetam para os
outros. Se o homem não vivesse em sociedade, o amor próprio seria
dignidade em todos; vivendo em grupos, é dignidade apenas nos caracteres
firmes.
Certas preocupações, reinantes nas mediocracias, exaltam os
domesticados.
O brilho da glória sobre as frontes eleitas, deslumbra os ineptos,
como a fartura do rico enciúma o miserável. O elogio do mérito é um
estímulo para a sua simulação. Obcecados pelo êxito e incapazes de sonhar
com a glória, muitos impotentes se envaidecem com méritos ilusórios e
virtudes secretas que os outros não reconhecem; julgam-se atores da
comédia humana; entram na vida construindo um cenário, grande ou
pequeno, baixo ou culminante, sombrio ou luminoso; vivem com a
perpétua preocupação do juízo alheio a respeito de sua sombra.
Consomem a existência, ansiosos de se distinguirem na sua órbita, de
interessar o seu mundo, de cativar a atenção dos outros, por qualquer meio
e de qualquer forma. A diferença, se há, é puramente quantitativa, entre a
vaidade do colegial que procura obter maior número de pontos nos
exames, a do político que sonha ver-se aclamado ministro ou presidente, a
do novelista que aspira edição de cem mil exemplares, e a do assassino que
deseja ver o seu retrato nos jornais.
A exaltação do amor próprio, perigosa nos espíritos vulgares, é útil ao
homem que serve um Ideal. Este cristaliza a exaltação em dignidade;
aqueles a degeneram em vaidade. O êxito desvanece o tolo, nunca, o
excelente. Esta antecipação da glória hipertrofia a personalidade dos
homens superiores; é sua condição natural.
O atleta não tem, porventura, bíceps excessivos, até a deformidade?
A função faz o órgão. O "eu" é o órgão próprio da originalidade:
absoluta no gênio. O que é absurdo num expoente de força. O músculo
avantajado não é ridículo no atleta; é ridícula, entretanto, toda adiposidade
excessiva, por monstruosa e inútil, como a vaidade do insignificante.
Certos homens de gênio, Sarmiento, por exemplo, teriam sido
incompletos sem a sua megalomania.
Seu orgulho nunca excede a vaidade dos imbecis. A aparente
diferença guarda proporção com o mérito. A um metro de distância e à
primeira vista, ninguém vê o pé de uma formiga, mas todos percebem as
garras de um leão; o mesmo acontece com o egoísmo ruidoso dos homens
e a despercebida soberba das sombras. Não podem ser confundidos.
O vaidoso vive comparando-se com os que o rodeiam invejando toda
excelência alheia, e carcomendo toda reputação que não pode igualar; o
orgulhoso não se compara com os que julga inferiores, e põe seu olhar em
tipos ideais de perfeição que estão muito alto, e in flamam o seu
entusiasmo.
O orgulho, subsolo indispensável da dignidade, imprime, aos homens,
certo belo gesto que as sombras censuram. Para isso, o babélico idioma dos
vulgares emaranhou a significação do vocábulo, acabando por ignorar a
gente se êle designa um vício ou uma virtude.
Tudo é relativo. Se há méritos, o orgulho é um direito: se não os há,
trata-se de vaidade. O homem que afirma um ideal, e se aperfeiçoa no seu
sentido, despreza com esse ato, a atmosfera inferior que o asfixia; é um
sentimento natural, alicerçado por uma desigualdade efetiva e constante.
Para os medíocres, seria mais grato não sofrer essa humilhante diferença;
mas esquecem que eles são seus inimigos, constrangendo seu tronco
robusto, com a hidra, ou azinho, para afogá-los no número infinito. O
digno vê-se obrigado a zombar das mil rotinas que o servil adora sob o
nome de princípios; o conflito é perpétuo.
A dignidade é um dique oposto pelo indivíduo à maré que o acossa. É
o isolamento dos domesticados e o desprezo dos seus pastores, quase
sempre escravos do próprio rebanho.
IV — A dignidade
Aquele que aspira aparecer, renuncia a ser. Bem poucos homens
somam o engenho e a virtude, num total de dignidade: formam uma
aristocracia natural, sempre exígua em face do número infinito dos
espíritos obscuros. Credo supremo de todo idealismo, a dignidade é
inequívoca, intangível, intransmutável. É síntese de todas as virtudes que
nos aproximam do homem, e apagam as sombras: onde ela falta, não existe
o sentimento da honra. E, assim como os povos sem dignidade são
rebanhos, os indivíduos sem ela são escravos.
Os temperamentos adamantinos, — firmeza e luz — apartam-se de
toda cumplicidade, desafiam a opinião alheia, se isto fôr necessário para
salvar a própria, declinam todo bem mundano que requeira uma renúncia,
entregam a própria vida, antes de trair os seus ideais.
Vão retos, sós, sem mesclar-se a facções, convertidos em protesto
vivo contra todo acanalhamento ou servilismo.
As sombras vaidosas se mancomunam, para se desculparem no
número, fugindo às íntimas sanções da conciencia; domesticada, são
incapazes de gestos viris; falta-lhes coragem.
A dignidade implica valor moral. Os pusilânimes são impotentes,
como os atordoados; uns refletem, quando convém agir, os outros agem,
sem refletir. A insuficiência do esforço equivale à desorientação do
impulso; o mérito das ações é medido pelo afã que requerem, e não pelos
seus resultados. Sem coragem não há honra.
Todas as suas formas implicam dignidade e virtude. Com seu auxílio,
os sábios acometem a exploracão do desconhecido: os moralistas minam as
sórdidas fontes do mal: os ousados se arriscam para violar a altura e a
extensão: os justos se acrisolam na sorte adversa; os firmes resistem à
tentação, e os severos, ao vício; os mártires vão para a fogueira, por
desmascarar uma hipocrisia; os santos morrem por um ideal.
Para aspirar a uma perfeição, é indispensável: "a coragem —
sentenciou Lamartine — é a primeira das eloqüências é a eloqüência do
caráter".
Nobre conceito! Aquele que aspira a ser águia, deve olhar para longe,
e voar alto; aquele que se resigna a arrastar-se, como gusano, renuncia ao
direito de protestar, se o esmagarem.
A debilidade e a ignorância favorecem a domesticação dos caracteres
medíocres, adaptando-se à vida mansa; a coragem e a cultura exaltam a
personalidade dos excelentes, engrinaldando-a com a dignidade.
O lacaio pede, o digno merece: aquele solicita, por favor, o que este
espera, por mérito.
Ser digno significa não pedir o que se merece: nem aceitar o
imerecido. Enquanto os servís sobem, por entre as malhas do favoritismo,
os austeros ascendem pela escadaria das suas virtudes, ou então, por
nenhuma.
A dignidade estimula toda perfeição do homem; a vaidade esporea
qualquer êxito da sombra.
O digno escreveu um lema em seu brazão: o que tem por preço uma
partícvua de honra, é caro.
O pão ensopado na adulação, que engorda o servil, envenena o digno.
Este prefere perder um direito, a obter um favor; mil danos lhes serão mais
leves, do que medrar indignamente. Qualquer ferida é transitória e pode
doer uma hora; a mais leve domesticidade dará um remorso que
durará toda a vida.
Quando o êxito não depende dos próprios méritos, basta-lhe
conserva-se erguido, incólume, irrevogável na própria dignidade. Nas liças
domésticas, a obstinada falta de razão sói triunfar do mérito sorridente; a
pertinácia do indigno é proporcional ao seu engelhamento.
Os homens exemplares desdenham qualquer favor; julgam-se
superiores ao que pode ser dado sem mérito. Preferem viver crucificados
sobre o seu orgulho, a prosperar de rastros; desejariam que, ao morrer, o
seu ideal os acompanhasse, vestido de branco, e sem manchas de
rebaixamentos, como se fossem desposá-los mais além da morte.
Os caracteres dignos permanecem solitários, sem trazer na anca
nenhu’a marca de ferro. São como gado levantino que focinha os tenros
trevos da campina virgem, sem aceitar a fácil ração das mangedouras. Se a
pradaria é árida, pouco importa; no oxigênio livre, êle aproveita mais do
que em cevas copiosas, com a vantagem de que aquele é tomado, ao passo
que estas são recebidas de alguém. Preferem estar sós, enquanto não
podem estar com os seus iguais.
Toda flor englabada em um ramalhete, perde o seu perfume próprio.
Obrigado a viver entre dissemelhantes, o digno se mantém alheio a toda
estima inferior.
Descartes disse que passeava entre os homens, como se fosse entre
árvores, e Bainville escreveu de Gautier:
"Era daqueles que, sob todos os regimes, são necessárias e invencivelmente livres;
cumpria a sua obra com desdenhosa altivez, e com a firme resignação de um deus
desterrado".
O homem digno ignora as cobardias que dormem nos fundos dos
caracteres servis; não sabe desarticular a sua cerviz. Seu respeito para com
o mérito o obriga a desacatar toda sombra que carece dele, a agredi-la, se
ameaça; a castigá-la, se fere. Quando a multidão que destrói os seus anelos,
é anódina, e não tem adversários para ferir de frente, o digno se refugia em
si mesmo, se entrincheira em seus ideais, e cala, temendo perturbar, com as
suas palavras, as sombras que escutam. E até que mude o clima, como é
fatal na alternativa das estações, espera, ancorado em seu orgulho, como se
este fosse o porto natural e mais seguro para a sua dignidade.
Vive com a obsessão de não depender de pessoa al guma; sabe que,
sem independência material, a honra está exposta a mil ciladas, e, para
adquiri-la, suporta os mais rudes trabalhos, cujo fruto será a sua liberdade
no porvir.
Todo parasita é um lacaio; todo mendigo é um domesticado. O
faminto pode ser um rebelde; não é nunca um homem livre. A miséria é a
inimiga poderosa da dignidade: esmigalha os caracteres vacilantes, e incuba
os piores servilismos. Aquele que atravessou dignamente o período da
pobreza, é um heróico exemplar da caráter.
O pobre não pode viver a sua vida, por serem tan-os compromissos
da sua indigência; redimir-se da miséria, é começar a viver. Todos os
homens altivos vivem sonhando com uma modesta independência
material; a miséria é a mordaça que trava a língua, e paraliza o coração. É
preciso fugir às suas garras, para poder eleger o ideal mais alto, o trabalho
mais agradável, a mulher mais santa, os amigos mais leais, os horizontes
mais rizonhos, o isolamento mais tranqünlo.
A pobreza impõe o arrolamento social; o indivíduo se inscreve em um
grêmio, mais ou menos jornaleiro, mais ou menos funcionário, contraindo
dívidas, e sofrendo pressões denigrativas, que o impelem à domesticidade.
Os estoicos ensinavem os segredos da dignidade: contentar-se com o
que tem, restringindo as próprias necessidades. Um homem livre não
espera nada de outros, nem precisa pedir. A felicidade que o dinheiro dá,
está em não ser obrigado a pensar nele: por ignorar este preceito, o avaro
não é livre, nem feliz.
Os bens que temos, são a base da nosso independência: os bens que
desejamos, são o anes da corrente que nos liga à escravidão. A fortuna
aumenta a liberdade dos espíritos cultos, e torna vergonhoso o ridículo dos
papalvos. É suprema a indignidade dos que adulam tendo fortuna: esta os
redimiria de todas as domesticidades, se não fossem escravos da vaidade.
Os únicos bens intangíveis são aqueles que se acumulam no cérebro e
no coração; quando estes faltam, nenhum tesouro os substitui.
Os orgulhosos têm o culto da sua dignidade; querem possui-la
imaculada, livre de remorsos, sem franquezas que a envileçam ou rebaixem.
Por ela, sacrificam, bens, honrarias, êxitos: tudo o que é próprio ao
crescimento da sua sombra. Para conservar a estima de si mesmos, não
vacilam em afrontar a opinião dos mansos, e investir contra os seus
preconceitos passam por indisciplinados ou perigosos, entre os que
inutilmente tentam malear a sua altivez. São raros, nas mediocra-cias, cuja
chatice moral os expõe à misantropia; têm certo ar de desdém, certo ar
aristocrático, que desagrada os vaidosos mais culminantes, pois os humilha
e envergonha.
"Inflexíveis e tenazes, porque trazem no coração uma fé sem dúvida,
uma convicção que não trepida, uma energia indómita que não cede, nem
teme coisa alguma, costumam manifestar asperezas articantes para como os
homens amorfos. Em alguns casos, podem ser al-1 mistas, ou porque são
cristãos, na mais alta acepção do vocábulo, ou porque são profundamente
afetivos: apre-Bentam, então, um dos caracteres mais sublimes, mais
esplendidamente belos, que tanto honram a natureza humana. São os
santos da honra, os poetas da dignidade. Sendo heróis, perdoam as
cobardias dos outros; sempre vitoriosos em face de si mesmo,
compadecem-se dos que, na batalha da vida, semeiam, feita em pedaços, a
sua própria dignidade. Se a estatística nos pudesse dizer o número dos
homens que possuem este caráter, em cada nação, essa cifra bastaria, por
si só, melhor do que qualquer outra, para nos indicar o valor moral de um
povo".
A dignidade, afã de autonomia, leva a reduzir a dependência de outros
à medida do indispensável, sempre enorme.
La Bruyère, que viveu como intruso, na demosticida-de cortezã do
seu século, soube medir o altíssimo preceito que encabeça o Manual, de
Epíteto, a ponto de se apropriar dele textualmente, sem diminuir, com isso,
a sua própria glória:
"Se faire valoir par de choses que ne dependent point des autres, mais de soi seul, ou
renoncer à se faire valoir".
Esta máxima lhe parece inestimável e de recursos infinitos na vida,
útil para os virtuosos e para os que têm engenho, tesouro intrínseco dos
caracteres excelentes; é, entretanto, proscrita dos mundos onde reina a
mediocridade, "pois desterraria das Cortes as tretas, as maledicências, os
maus ofícios, a baixeza, a adulação, as intrigas".
As nações não se encheriam de servis domesticados, sinão de varões
excelentes que legariam, aos seus filhos, menos vaidades e mais nobres
exemplos. Amando os próprios méritos, mais ainda do que a própria
prosperidade indecorosa, cresceria o amor à virtude, o desejo da glória, o
culto dos ideais de perfeição incessante: na admiração pelos gênios, pelos
santos e pelos heróis.
Essa dignificação moral dos homens assinalaria, na história, o ocaso
das sombras.
Capítulo V – A INVEJA
I — A paixão nos mediocres
A inveja é uma adoração que as sombras sentem pelos homens, que a
mediocridade sente pelo mérito. É o rubor da face sonoramente
esbofeteada pela gloria alheia. É a grilheta que os fracassados arrastam. É o
áloc que os impotentes mastigam. É um humor veneno-no que se expele
das feridas abertas pelo desengano da própria insignificância.
Por suas forças caudinas passam, cedo ou tarde, os que vivem como
escravos da vaidade; desfilam, lívidos de angústia, trovos envergonhados da
sua própria tristeza, sem suspeitarem que o seu ladrar envolve uma con
sagração inequívoca do mérito alheio. A inextinguível hostilidade dos
néscios sempre foi o pedestal de um mo numento.
É a mais ignóbil das torpes cicatrizes que afetam os carácteres
vulgares. Aquele que inveja, rebaixa-se, sem o saber; confessa-se
subalterno; esta paixão é o estig ma psicológico de uma humilhante
inferioridade, senti da reconhecida.
Não basta ser inferior para invejar, pois todo ho mem o é de alguém,
num sentido ou noutro; é necessá rio sofrer em conseqüência do bem
alheio, da felicidade alheia, de qualquer enaltecimento alheio. Nesse
sofrimento está o núcleo moral da inveja; morde o coração, como um
ácido; carcome-o, como polilha; corrói, como a ferrugem, ao metal.
Das más paixões, nenhuma lhe leva vantagem. Plutarco dizia — e La
Rochefoucauld o repete — que existem almas corrompidas até o ponto de
se vangloriarem de vícios infames; mas nenhuma ainde teve a coragem de
se confessar invejosa. Desconhecer a própria inveja, implicaria, ao mesmo
tempo, declarar-se inferior ao invejado: trata-se de uma paixão tão
abominável, tão universalmente detestada, que envergonha os mais
impudicos, e se faz impossível para ocultá-la.
É surpreendente o fato de os psicólogos a terem esquecido em seus
estudos sobre as paixões, limitando-se a mencioná-la como um caso
particular do ciúme. Foi tão grande a sua difusão e a sua virulência, em
todos os tempos, que já a mitologia grego-latina lhe atribuía origem
sobrehumana, fazendo-a nascer das trevas noturnas.
O mito lhe empreta cara de velha horrivelmente fraca e exangue, com
a cabeça cobreta de víboras, ao invés de cabelos. Seu olhar é torvo; seus
olhos, fundos; os dentes, negros; a língua, untada com tóxicos fatais; com
uma das mãos, agarra três serpentes, e, com a outra, uma hidra, ou uma
teia; incuba, em seu seio, um monstruoso réptil que a devora
continuamente e lhe instila o seu veneno; está agitada; não ri; nunca o sono
fecha as pálpebras sobre os seus olhos irritados. Todo sucesso feliz a aflige,
ou esporeia a sua angústia; destinada a sofrer, é o verdugo implacável de si
mesma.
É a paixão traidora e propícia à hipocrisia. Está para o ódio, como a
gazúa para a espada; empregam-na os que não podem competir com os
invejados. Nos ímpetos de ódio, pode palpitar o gesto da garra que, num
desesperado estremecimento, destroça e aniquila; no rep-to sobreptício da
inveja, só se percebe o rastejar tímido daquele que procura morder o
calcanhar.
Teofrasto julgou que a inveja se confunde com o ódio, ou nasce dele
— opinião já enunciada por Aris tóteles, seu mestre. Plutarco ventilou a
questão, preo ocupando-se com o estabelecimento de diferenças entre us
duas paixões (Obras morais, II). Diz que, à primeira vista, se confundem;
parecem brotar da maldade; quando se associam tornam-se mais fortes,
como duas en fermidades que se complicam. Ambas sofrem em
consequência do bem, e gostam do mal alheio; mas esta se melhança não
basta para as confundir, se prestarmos atenção às suas diferenças. Só se
odeia o que se julga mau u nocivo; ao contrário, toda prosperidade excita a
inveja, como qualquer resplendor irrita os olhos en-fermos.
Podem-se odiar as coisas e os animais; só se pode invejar aos homens.
O ódio pode ser justo, motivado; a inveja é sempre injusta, pois a
prosperidade não causa dano a ninguém.
Estas duas paixões, como plantas da mesma espécie, se nutrem, e se
fortificam por causa equivalentes: ode-iam-se mais os mais perversos, e se
invejam mais os que mais merecem. Por isso, Temístocles dizia, em sua
juventude, que ainda não tinha realizado nenhum ato brilhan te, porque
ainda ninguém o invejava.
Assim como as cantáridas prosperam nos trigais mais louros e nos
rosais mais floridos, a inveja atinge oshomens famosos por seu caráter e
por sua virtude. O ódio não se desarma pela boa ou pela má sorte; a inveja,
sim.
Um sol que ilumina perpendicularmente, do mais alto ponto do céu,
reduz a nada, ou a muito pouco, a sombra dos objetos que estão em baixo:
assim, observa Plutarco, o brilho da glória apouca a sombra da inveja, e a
faz desaparecer.
O ódio que injuria e ofende, é temível; a inveja que cala e que
conspira, ó repugnante. Certo livro admirável diz que ela é como as cáries
dos ossos; esse livro é a Bíblia, com certeza, ou deveria sê-lo.
As palavras mais cruéis, que um insensato lança ao rosto, não
ofendem a centésima parte do total da ofensa produzida pelas palavras que
o invejoso vai semeando constantemente, às escondidas; este ignora as
reações do ódio, e expressa o seu inquinamento balbuciando, incapaz que é
de se encrespar em ímpetos viris; dir-se-ia que a sua boca está amargada
por fel que êle não consegue tirar fora, nem engolir. Assim como o azeite
apaga a cal, e aviva o fogo, o bem recebido reprime o ódio nos espíritos
nobres, e exaspera a inveja nos indignos. O invejoso é ingrato, como o sol
é luminoso, como a nuvem é opaca, e como a neve é fria: naturalmente.
O ódio é retilíneo, e não teme a verdade; a inveja é tortuosa, e elabora
a mentira. Sofre-se mais invejando, do que odiando; como estes tormentos
enfermiços, que se tornam horrorosos à noite, ampliados pelo pavor das
trevas.
O ódio pode ferver nos grandes corações; pode ser justo e santo; é
assim muitas vezes, quando quer destronar a tirania, a infâmia, a
indignidade.
A inveja pertence aos corações pequenos. A conciencia do próprio
mérito suprime qualquer pequena vilania: o homem que se sente superior,
não pode invejar, e o louco feliz, que vive com o seu derírio de grandeza,
também não sabe invejar. Seu ódio está de pé e ataca pela frente.
Cesar aniquilou Pompeu, sem rastejar; Donatelo venceu, com seu
"Cristo", o velho Brunelleschi, sem se rebaixar; Nietzsche fulminou
Wagner sem invejá-lo. Assim como a genialidade pressente a glória, e dá,
aos seus predestinados, certos ademanes apocalípticos, a certeza do porvir
obscuro transforma os medíocres em míopes e répteis. Por isso, os homens
sem mérito continuam sendo invejosos, mesmo apesar dos êxitos obtidos
pela sua sombra mundana, como se uma voz interior lhes gritasse que os
usurpam, sem merecê-los. Essa conciencia da sua mediocridade é um
tormento: compreendem que só podem permanecer nas alturas, impedindo
que outros cheguem até eles, e os descubram. A inveja é uma defesa das
sombras contra os homens.
Com as distinções enunciadas, os clássicos aceitam o parentesco entre
a inveja e o ódio, sem confundir ambas as paixões. Convém subtilizar o
problema, distinguindo outras que se parecem: a emulação e os zelos.
A inveja, sem dúvida, tem suas raízes, como eles, numa tendência
afetiva, mas possue caracteres próprios, que permitem diferenciá-la. Inveja-
se o que os outros já tem e o que se desejaria ter, sentindo que o próprio é
um desejo sem esperança; têm-se zelos do que já se possue e se teme
perder; sente-se a emulação em reve-ção a alguma coisa que outros,
também anelam com possibilidade de atingi-la.
Um exemplo, tomado das mais notórias fontes, ilus-tra a questão.
Invejamos a mulher que o próximo pos-sue, e nós desejamos, quando
sentimos a impossibilida-de de a disputar. Zelamos a mulher que nos
pertence, quando julgamos incerta a sua posse e tememos que outros
possam compartilhar dela, ou roubá-la. Disputamos os seus favores, em
nobre emulação, quando temos a possibilidade de os conseguir, em
igualdade de condições, com outro que a eles aspira.
A inveja nasce, pois, do sentimento de inferioridade em relação ao seu
objeto. Os zelos derivam do sentimento da posse comprometida. A
emulação surge do sentimento de potência que acompanha toda nobre
afirmação da personalidade.
Por deformação da tendência egoísta, alguns homens estão
naturalmente inclinados a invejar os que possuem tal ou tal superioridade
por eles desejada em vão; a inveja é maior, quando mais impossível se
considera a aquisição do bem cobiçado. É o reverso da emulação; esta é
uma força propulsora e fecunda, ao passo que aquela é uma peia que trava
e esteriliza os esforços do invejoso. Bartrina bem compreendeu isto, na sua
admirável quintilha:
La envidia y la emulación parienles dicen que son: aunque en todo diferentes, al fin
tambiên son par/entes el diamante y el carbón.
A emulação é sempre nobre: o próprio ódio pode ser nobre, algumas
vezes. A inveja é uma cobardia própria dos débeis, um ódio impotente,
uma incapacidade manifesta de competir ou de odiar.
O talento, a beleza, a energia, desejariam ver-se refletidos em todas as
coisas, e intensificados em inúmeras projeções; a estultícia, a fealdade e a
impotência sofrem mais pelo bem alheio, do que pela própria desdita. Por
isso, toda superioridade é admirativa, e toda subja-cência é invejosa.
Admirar é sentir-se crescer na emulação com os maiores.
Um ideal preserva da inveja. Aquele que ouve ecos de vozes
proféticas, ao ler os escritos dos grandes pensadores; aquele que sente
gravar-se, em seu coração, com caracteres profundos como cicatrizes, o seu
clamor visionário e divino; aquele que se extasia, contemplando as
supremas criações plásticas; aquele que sente íntimos calafrios, em face das
obras primas acessíveis ao seu sentido, e se entrega à vida que nelas palpita,
e se comove até que seus olhos se encham de lágrimas, e o coração
irrequieto seja arrebatado por febres de emoção; aquele — tem um nobre
espírito, e pode alimentar o desejo de criar coisas tão grandes, como as que
sabe admirar.
Aquele que não se emudece lendo Dante, contemplando Leonardo,
ouvindo Beethoven, pode jurar que a natureza não acendeu, em seu
cérebro, a tocha suprema.
A emulação pressupõe um afã de equivalência, implica uma
possibilidade de nivelamento; saúda os fortes que vão a caminho da glória,
marchando também. Só o impotente, convicto e confesso, empeçonha o
seu espírito, hostilizando a marcha daqueles que não podem seguir.
Toda a psicologia da inveja está sintetizada numa fábula, digna de ser
incluída nos livros de leitura infan-til. Um sapo ventrudo coaxava em seu
pântano, quando viu resplandecer, no ponto mais alto de uma rocha, um
vagalume. Pensou que nenhum sêr tinha o direito de revelar qualidade que
êle próprio jamais poderia possair. Mortificado pela impotência, saltou até
o local onde estava o vagalume, e o cobriu com o seu ventre gelado, O
inocente vagalume ousou perguntar-lhe: "Por que me cobres?" e o sapo,
congestionado pela inveja, só conseguiu interrogar por sua vez: "Por que
brilhas?"
II — Psicologia dos invejosos
Sendo a inveja um culto involuntário do mérito, os invejosos são,
apesar-de tudo, os seus sacerdotes naturais.
O próprio Homero encarnou, em Tersites, o invejoso dos tempos
heróicos; como se suas cicatrizes físicas fossem exíguas para expô-lo à
chacota eterna; em um simples verso, dá-nos a linha sombria da sua moral,
di-zendo-o inimigo de Aquilles e de Ulisses; pode ser medido pela
excelência das pessoas que inveja.
Shakespeare traçou uma silhueta definitiva em seu Yago feroz,
amontoado de infâmias e cobardias, capaz de todas as traições e de todas as
deslealdades.
O invejoso pertence a uma espécie moral raquítica, mesquinha, digna
de compaixão ou de desprezo. Sem coragem para ser assassino, resigna-se a
ser vil. Rebaixa os outros, não tendo esperança na própria elevação.
A família oferece variedades infinitas, pela combinação de outros
estigmas com o fundamental. O invejoso passivo é solene e sentencioso; o
ativo é um escorpião atrabiliário. Mas, lúgubre ou bilioso, nunca sabe rir o
riso inteligente e sadio. Seu esgar é falso: ri a contra-pêlo.
Quem não n’os encontra em seu mundo intelectual? O invejoso
passivo é de cepa servil. Se procura praticar o bem engana-se até o
assassínio: dir-se-ia que é um cirurgião míope, predestinado a ferir os
órgãos vitais e respeitar a víscera cancerosa. Não retrocede diante de
baixeza alguma, quando um astro se levanta no seu horizonte: persegue o
mérito até dentro da sua tumba. É sério, por incapacidade de rir; a alegria
dos satisfeitos o atormenta. Proclama a importância da solenidade e a
prática; sabe que seus congêneres aprovam tacitamente essa hipocrisia que
serve de escudo à irremediável inferioridade: não vacila em sacrificar a vida
de seus próprios filhos, impelindo-os, se fôr necessário, até a beira do
túmulo.
O invejoso ativo possue uma eloqüência intrépida, dissimulando, com
niagáras de palavras, a sua esterili-
dade de idéias. Pretende sondar os abismos do espírito alheio, sem
nunca ter podido desenredar o próprio. Parece possuir mil línguas, como o
clássico monstro rebe-lesiano. Por todas elas distila a sua insídia de víbora,
em forma de elogio reticente, pois a viscosidade urticante do seu falso
louvor, é o máximo da sua valentia moral. Multiplica-se até o infinito; tem
mil pernas, e se insinua, seja por onde fôr; semeia a intriga entre os seus
próprios cúmplices, e, em chegando a oportunidade, atraiçoa-os. Sabendo-
se de antemão repudiado pela glória, refugia-se nessas academias onde os
medíocres se ensopam de vaidade; se alguma inexplicável paternidade
complica a quietude de sua madureza estéril, podeis jurar que a sua obra é
fruto de esforço alheio. E é covarde, para ser completo; arrasta-se diante
dos que perturbam as suas noites com a auréola do engenho luminoso,
beija a mão do que o concebe e o despreza, humilha-se diante déle. Sabe
que é inferior. A sua vaidade aspira somente a desquitar-se com as frágeis
compensações dos ardis praticados terra-a-terra.
A-pesar-dos seus temperamentos heterogêneos, o destino sói agrupor
os invejosos em camarilhas ou em círculos, servindo-lhes de argamassa o
comum sofrimento em face da felicidade alheia. Ali desafoga a sua pena
íntima, difamando os invejados, e vertendo todo o seu fél, como uma
homenagem à superioridade do talento que os humilha. São capazes de
invejar os grandes mortos, como se os detestassem pessoalmente.
Há quem inveje Sócrates e quem inveje Napoleão, julgando igualar-se
a eles, ao rebaixá-lo: por isso, serão capazes de endeusar um Brunnetière ou
um Boulan-ger. Esses prazeres malignos, entretanto, em pouco diminuem a
sua desventura, que está em sofrer de toda felicidade, e em martirizar-se
com a conseqüência de toda glória. Rubens pressentiu isto, ao pintar a
inveja, num quadro da Galeria Medicéa, sofrendo entre a pompa luminosa
da inolvidável regência.
O invejoso julga estar caminhando para o calvário, quando vê os
outros escalando os píncaros. Morre pelo tormento de invejar aquele que o
ignora, ou o despreza — gusano que rasteja sobre o pedestal da estátua.
Parece que todo rumor de azas o estremece, como se fosse uma burla
aos seus vôos galináceos. Maldiz a luz, sabendo que nas suas trevas mentais
não amanhecerá um só dia de glória.
Se pudesse organizaria uma caçada às águias, ou decretaria a extinção
dos astros!…
O que, para os outros, é causa de felicidade, pode 6er objeto de
inveja. A inaptidão para satisfazer um desejo, ou fartar um apetite,
determina essa paixão que faz sofrer em virtude do bem alheio. O critério
para valorizar o invejado é puramente subjetivo; cada homem julga ser a
medida dos outros, segundo o juízo que forma de si mesmo.
Sofre-se a inveja apropriada às inferioridades que se sentem, seja qual
fòr o seu valor objetivo. O rico pode sentir emulação ou zelos pela riqueza
alheia; mas invejará o talento. A mulher bela terá ciúmes de outra
formosura; mas invejará as ricas. É possível sentir-se alguém superior em
cem coisas e inferior em uma só; é este o ponto fraco por onde a inveja
tenta o seu assalto.
O indivíduo em evidência encontra a sua coórte de invejosos na
esfera dos seus colegas mais imediatos, entre aqueles que desejariam estar
em evidência da mesma forma.
Este é um acidente inevitável de toda elevação, embora seja mais
comum em algumas profissões; os homens de letras não ficam atrás, mas
os atores cômicos e as rameiras teriam o privilégio, se não existissem os
médicos. A invidia medicorum é memorável deste a antiguidade. Hipócrates
conheceu-a. A arte descreveu-a com freqüência, para deleite dos enfermos
que sobreviveram aos efeitos das drogas.
O motivo da inveja se confunde com o da admiração sendo ambas
dois aspectos de um mesmo fenômeno. Apenas, a admiração nasce no
forte, e a inveja, no subalterno .
Invejar é uma forma berrante de prestar homenagem à superioridade.
O gemido que a insuficiência arranca à vaidade, é uma forma especial
de louvor.
Todo píncaro é invejado. Na mulher, a beleza. No homem, o talento
e a fortuna. Em ambos, a fama e a glória, qualquer que seja a sua forma.
A inveja feminina sói ser filigranada e perversa; a mulher arranha com
unha afiada e lustrosa, morde com dentinhos perolizados, dilacera com
dedos pálidos e finos. Toda maledicência lhe parece escassa, para traduzir
o preces, em forma de calúnias, torvas, como o remordi-mento que as
intoxica, mas não as detêm, seu despeito; Apeles, deve ter pensado nela,
quando representou a inveja guiando, com mão felina, a Calúnia.
Aquela que nasceu bela — e a Beleza para ser com-críticas: os olhares
oblíquos das sofredoras fuzilarão a sua beleza à traição; as almas tristes lhe
elevarão suas pleta, requer, entre outros dons, a graça, a paixão e a
inteligência — tem assegurado o culto da inveja. Suas mais nobres
superioridades serão adoradas pelas invejo-sas; nelas cravarão os seus
incisivos, como sobre um fruto, sem advertir que a paixão os converte em
vestais. Mil línguas viperinas lhe queimarão o incenso de suas
Quem já leu a sétima metamorfose, no livro segundo de Ovídio, não
esquecerá jamais que, a instância
de Minerva, Aglaura foi transfigurada em rochedo, castigando, assim,
a sua inveja em relação a Herséa, a amada de Mercúrio. Ali está escrita a
mais perfeita alegoria da inveja, devorando víboras, para alimentar seus
furores, como não a perfilou nenhum outro poeta da era pagã.
O homem vulgar inveja as fortunas e as posições burocráticas. Julga
que ser endinheirado funcionário é o supremo ideal dos outros, certo de
que é o seu. O dinheiro permite ao medíocre satisfazer as suas vaidades
mais imediatas; o destino burocrático assinala-lhe um sítio no quadro dos
servidores do Estado e lhe prepara jubilacões ulteriores. Dai o fato de o
proletário invejar o burguês, sem renunciar a substituí-lo; por isso mesmo,
a escada do orçamento é uma hierarquia de invejas, perfeitamente
graduadas pelas cifras das prebendas .
O talento — em todas as suas formas intelectuais e morais, como
dignidade, como caráter, como energia — é o tesouro mais invejado entre
os homens. Há, no domesticado, um sórdido afã de nivelar tudo, um
obtuso horror à individualização excessiva; perdoa ao portador de qualquer
sombra moral, perdoa a cobardia, o servilismo, a mentira, a hipocrisia, a
esterilidade — mas não perdoa ao que sai das fileiras, dando um passo para
a frente. Basta que o talento permita sobreelevar nas ciências, nas artes ou
no amor, para que os medíocres se estremeçam de inveja. Assim se forma,
em torno de cada astro, uma nebulosa, grande ou pequena — camarilha de
maldizentes ou legião de difamadores: os invejosos necessitam reunir
esforços contra o seu ídolo, da mesma forma que, para afear uma beleza
venusina, aparecem, a milhares, pústulas da varíola.
A dita dos fecundos martiriza os eunucos, vertendo em seu coração
gotas de fél, que o amargam por
toda a existencia; esta dor é a gloria involuntária dos outros, a sanção
mais indestrutível do seu talento na ação ou no pensamento. As palavras e
os esgares do invejoso se perdem no lamaçal onde êle rasteja, como silvos
de répteis que saúdam o vôo sereno da águia que passa na altura. Sem ouvi-
los.
III — Os roedores da glória
Todo aquele oue se sente capaz de criar um destino, com o seu
talento e com o seu esforço, está inclinado a admirar o esforço e o talento
nos demais; o desejo da própria glória não pode sentir-se coibido pelo
legítimo enaltecimento alheio. Aquele que tem méritos, sabe o que eles
custam, e os respeita: estima, nos outros, o que desejaria que os outros
estimassem nele. O medíocre ignora essa admiração franca: muitas vezes le
resigna a aceitar o triunfo que transborda das restrições da sua inveja. Mas,
aceitar não é amar. Resignar-se não é admirar.
Os espíritos de azas breves são malévolos; os gran des engenhos são
admirativos. Estes sabem que os dons naturais não se transformam em
talento ou engenho, sem um esforço, que é a medida do seu mérito. Sabem
que cada passo no sentido da glória, custa trabalhos e vigílias, meditações
profundas, tentativas sem fim, con sagração tenaz — a esse poeta, a esse
filósofo, a esse sábio; e compreendem que eles consumiram, porventura, o
seu organismo, envelhecendo prematuramente: e a biografía dos grandes
homens lhes ensina que muitos renunciaram ao repouso ou ao pão,
sacrificando-se tanto um, como outro, afim de ganhar tempo para meditar,
ou para comprar um livro iluminador de suas meditações. Essa consciência
daquilo em que o mérito im-porta, o faz despeitar. O invejoso, que o
ignora, vê o resultado a que os outros chegam, e êle, não, sem suspeitar
quantos espinhos foram semeados no caminho da glória.
Todo escritor medíocre é candidato a critiscastro.
A incapacidade de criar impele-o a destruir. Sua falta de inspiração o
induz a corroer o talento alheio, empanando-o com especiosidades que
denunciam a sua irreparável inferioridade.
Os altos engenhos são equânimes na crítica dos seus iguais, como se
reconhecessem, neles, uma consanguinidade em linha direita: no êmulo,
não vêem, nunca, um rival. Os grandes críticos são ótimos autores que
escrevem sobre temas propostos por outros, como os versificadores com
pé forrado: a obra alheia é uma ocasião para exibir as próprias idéias.
O verdadeiro crítico enriquece as obras que estuda, e, em tudo o que
toca, deixa um rastro de sua personalidade.
Os criticastros são, por instinto, inimigos da obra. Desejam diminui-
la, pela simples razão de que eles não a escreveram. Nem saberiam escrevê-
la, si o criticado lhes contentasse: "Faze-a melhor".
Têm as mãos travadas por fitas métricas: seu afã de medir os outros,
corresponde ao sonho de rebaixá-los ató a sua própria medida. São, por
definição, prestamistas, parasitas; vivem do alheio, pois se limitam a
baralhar, com hábil mão, o mesmo que aprenderam no livro que procuram
desacreditar.
Quando um grande escritor é erudito, reprocham-no como uma falta
de originalidade; si não o é, apresssam-se a culpá-lo de ignorância. Se
emprega um raciocínio que outros usaram, denominam-no plagiário,
embora assinale as fontes da sua sabedoria; se omite a assimilação, por ser
vulgar, acusam-no de improbidade. Em tudo encontram motivo para
maldizer e invejar, revelando a sua angústia interna. O que os faz sofrer, em
suma é o fato de serem os outros admirados e eles, não.
O criticastro medíocre é incapaz de alinhavar três idéias fora do fio
que a rotina lhe sugere. Sua bojuda ignorância obriga-o a confundir o
mármore com o micaxisto, e a voz com o falsete, inclinando-o a supor que
todo escritor original é um heresiarca. Os pacóvios dariam o que não têm.
para saber escrever um pouquinho, como para serem incorporados à crítica
profissional. É o sonho dos que não podem criar. Permite uma
maledicência medrosa e que não compromete, feita de medi-cidade
prudente, restringindo as perversidades, para que resultem mais agudas,
tirando, aqui, uma migalha, e dando ali, um arranhão, velando tudo o que
pode ser objeto de admiração, rebaixando sempre com a oculta esperança
de que possam aparecer a um mesmo nível os críticos e os criticados.
O escritor original sabe que atormenta os medíocres, aguilhoando-
lhes essa paixão que os desespera em face do brilho alheio: o desespero dos
fracassados é o louro aue melhor pode premiar o seu labor luminoso. O
ridículo de um Zoilo chega sempre a andar passo a passo com a glória de
um Homero.
Fermentam, em cada gênero de atividade intelectual, como pragas
pediculares da originalidade: não perdoam àquele que incuba, em seu
cérebro, essa larva sediciosa. Vivem para manchá-lo, ou destroná-lo,
sonham com o leu extermínio, conspiram com uma intemperança de
terrorista, e esgrimem sórdidas calúnias que fariam en-rubecer um
paquiderme. Vêem um perigo em cada astro, a uma ameaça em cada gesto;
tremem, pensando que tom homens capazes de subverter rotinas e
prejuízos, de acender novos planetas do céu, de arrancar sua fôr ça aos
raios e às cataratas, de infiltrar novos ideais nas
raças envelhecidas, de suprimir as distâncias, de violar a força de
gravidade, de estremecer os governos…
Quando se eleva um astro, eles aparecem por todos os pontos
cardiais, para entoar o coro involuntário da sua difamação. Aparecem às
dúzias, aos milhares, como liliputianos, em torno de um gigante. Os
rabequistas de arrabalde cobrirão de opróbrio a glória dos supremos
sinfonistas. Gazetilheiros anodinos perpetrarão biografias relativas a um
pensador longínquo, que os ignora. Muitos, que em vão tentaram acertar
uma mancha de côr, deixarão cair o seu jorro de prosa, como se uma
torneira de pús se abrisse sobre telas que viverão através dos séculos.
Qualquer misturador de palavras arremeterá contra quem escrever
pensamentos duradouros.
As mulheres feias mostrarão que a beleza é repulsiva, e as velhas
sustentarão que a juventude é insensata; vingarão a sua infelicidade em
amor, dizendo que a castidade é suprema entre todas as virtudes, quando já
inutilmente se transformaram em rameiras, para oferecer a própria
castidade aos transeuntes. E os outros, todos em coro, repetirão que o
gênio, a santidade e o heroísmo são aberrações, loucuras, epilepsias,
degeneração; negarão a excelência do engenho, a virtude e a dignidade;
colocarão esses valores abaixo da sua própria penumbra, sem advertir que a
mediocridade não chega ao ponto em que o gênio assoma. Se fizesse o
medíocre eleger entre Shakespeare ou Sarcey, não vacilaria um minuto;
murmuraria um trecho do primeiro, com a assinatura do segundo.
Os espíritos rotineiros são rebeldes à admiração: não reconhecem o
fogo dos astros, porque nunca tiveram, em si, uma única chispa. Jamais se
entregam de boa fé aos ideais ou às paixões que lhes assaltam o coração;
preferem opôr-lhes mil raciocínios, para privar-se do prazer de admirá-los.
Confundirão sempre o equívoco e o cristalino, rebaixando todo ideal até as
baixas intenções que supuram em seus cérebros. Pulverizarão todo o belo,
esquecendo que o trigo moído e feito farinha já não pode germinar em
espigas áureas, à luz do sol.
"É um grande sinal de mediocridade — disse Leib nitz — elogiar
sempre moderadamente".
Pascal dizia que os espíritos vulgares não encontram diferenças entre
os homens: descobrem-se mais tipos originais, à medida que se possue
maior engenho. O criticastro é miserável; admira um pouco todas as coisas,
mas nada merece a sua admiração decidida.
Aquele não admira o melhor, não pode melhorar. Aquele que vê os
defeitos e não as belezas; as culpas e não os méritos; as discordancias e não
as harmonias: morre no baixo nível em que vegeta com a ilusão de ser um
crítico.
Os que não sabem admirar, não têm futuro. Estão inabilitados para
ascender a uma perfeição ideal. É uma cobardia aplacar a admiração; é
preciso cultivá-la, como um fogo sagrado, evitando que a inveja a cubra
com a sua patina ignominiosa.
A maledicência escrita é inofensiva. O tempo é um
coveiro equânime; enterra numa fossa comum os criticastros e os maus
autores. Enquanto os invejosos murmuram, o gênio, cresce. Com o andar
do tempo, aqueles são oprimidos e este sente desejos de compadecer-se
para impedir que continuem morrendo a fogo lento.
O verdadeiro castigo desses parasitas está no sorriso mudo dos
pensadores. Aquele que critica um alto espírito, estende a mão, esperando
uma esmola de celebridade; basta ignorá-lo e deixá-lo com a mão estendida,
negando-lhe a notoriedade que lhe conferiria a réplica. O silêncio do autor
mata o postulante; sua indiferença o asfixia. Algumas vezes supõe que o
toma-
ram em consideração e que a sua presença foi advertida; sonha que
citaram o seu nome, aludido, refutado, injuriado. Mas tudo é apenas um
sonho; deve resignar-se a invejar na penumbra, da qual não consegue sair.
Aquele que tem consciência do seu mérito, não se presta a inflar a
vaidade do primeiro indigente que lhe vem ao encontro, pretendendo
distrai-lo, obrigando-o a perder o seu tempo; elege os seus adversários
entre os seus iguais, entre os sus condignos. Os homens superiores podem
imortalizar, com uma palavra, os seus lacaios ou os seus sicários. É preciso
evitar essa palavra; de muito criticastros somente temos notícia, porque
algum gênio os honrou com o seu pontapé.
IV — Uma cena dantesca: o seu castigo
O castigo dos invejosos estaria em cobri-los de favores, para fazê-los
sentir que a sua inveja é recebida como uma homenagem, e não como uma
punhalada. É mais generoso, mais humanitário. Os bens que o invejoso
recebe, constituem sua mais desesperante humilhação; se não é possível
agasalhá-lo, é necessário ignorá-lo. Nenhum enfermo é responsável pela
sua doença, nem é possível impedir que êle emita acentos lamentosos; a
inveja é uma enfermidade, e não há nada mais respeitável, do que o direito
de se lamentar, quando se sofrem congestões de vaidade.
O invejoso é a única vítima do seu próprio veneno; a inveja o devora,
como o cancro corrói a víscera; afoga-o, como a hidra, o azinho. Por isso,
Poussin, numa tela admirável, pintou este monstro mordendo os próprios
braços, e sacudindo a cabeleira de serpentes que o ameaçam sem cessar.
Dante considerou os invejosos indignos do inferno. Na sábia
distribuição das penalidades e castigos, fechou-os no purgatório, o que está
de acordo com a sua condição medíocre.
Jazem, acobardados, num círculo de pedra cinzenta, sentados junto a
um paredão lívido, com os seus semblantes chorosos, cobertos de cilícios,
formando um panorama de cemitério vivente. O sol nega-lhes a luz; têm os
olhos costurados com arames, porque nunca puderam vêr o bem do
próximo. Fala por eles, a nobre Sapia, desterrada pelos seus concidadãos;
foi tal a sua inveja, que sentiu um regosijo louco, quando eles foram
derrotados pelos florentinos. E falam outros, com vozes trágicas, enquanto
que longínquos fragores de trovões recordam a palavra que Caim
pronunciou, depois de matar Abel. Porque o primeiro assassino da lenda
bíblica tinha de ser um invejoso.
Todos eles já levam o castigo na sua própria culpa. O espartano
Antístenes, ao saber que o invejavam, respondeu com acerto:
"Pior para eles; terão que sofrer o duplo tormento dos seus males e
dos meus bens".
Os únicos gananciosos são os invejados: é agradável sentir-se adorado
de joelhos.
A maior satisfação do homem excelente está em provocar a inveja,
estimulando-a com os próprios médios, acossando-a, cada dia, com
virtudes maiores, para ter a felicidade de ouvir as suas preces. Não ser
invejado é uma garantia inequívoca de mediocridade.
Capítulo VI – A VELHICE NIVELADORA
I — As cãs
Encanecer é coisa muito triste; as cãs são u’a mensagem da Natureza,
que nos adverte da proximidade do crepúsculo. E não há remédio.
Arrancar as primeiras — e quem não o faz? — é como tirar o badalo ao
sino que toca o Angelus, pretendendo, com isso, prolongar o dia.
As cãs visíveis correspondem a outras mais graves, que não vemos; o
cérebro e o coração, todo o espírito e toda a ternura encanecem ao mesmo
tempo, com a cabeleira .
A alma do fogo, sob as cinzas dos anos, é uma metáfora literária
desgraçadamente incerta. A cinza afoga a chama, e protege a brasa. O
engenho é chama; a brasa é a mediocridade.
As verdades gerais não são irreverentes; deixam entreaberta uma
frincha, por onde escapam as exceções particulares.
Por que não dizer a conclusão desconsoladora?
Ser velho é ser medíocre — com rara exceção. A máxima infelicidade
de um homem superior é sobreviver a si mesmo, nivelando-se com os
demais Quantos se suicidariam se pudessem advertir essa passagem terrível
do homem que pensa, ao homem que vegeta, daquele que impele, àquele
que é arrastado, daquele que ára sulcos novos, ao que se escraviza nas
pegadas da rotina! Velhice e mediocridade costumam ser desgraçadas
paralelas.
O "gênio fulgura até na sepultura" é uma exceção muito rara nos
homens de engenho excelente, se são longevos; sói confirmar-se, quando
correm a tempo, antes que a capacidade crepuscular empane os
resplendores do espírito. Em geral, se morrem tarde, uma pausada neblina
começa a velar a sua morte, com os achaques da velhice; se a morte se
empenha em não vir, os gênios se tornam estranhos a si mesmos, —
supervivencia que os leva até não compreenderem mais a sua própria obra.
Sucedem-lhes o que sucederia a um astrônomo que perdesse o seu
telescópio, e acabasse por duvidar dos seus descobrimentos anteriores, ao
ver-se impossibilitado de os confinar a alho nú.
A decadência do homem que envelhece, é representada por uma
regressão sistemática da intelectualidade. Ao princípio, a velhice mediocriza
todo homem superior; mais tarde, a decrepitude inferioriza o velho já
medíocre.
Tal afirmação é um simples colorário de verdades biológicas. A
personalidade humana é uma formação contínua, não uma entidade fixa;
organiza-se e se desorganiza, evoluciona e "involuciona", cresce e diminue,
intensifica-se e se esgota.
Há um momento em que alcança a sua plenitude máxima; depois
dessa época, é incapaz de progredir, logo soem advertir-se os sintomas
iniciais da decadência, o tremular da chama interior que se apaga.
Quando o corpo se nega a servir a todas as nossas intenções e
desejos, ou quando estes são medidos, em previsão de fracassos possíveis,
podemos afirmar que começou a velhice.
Deter-se a meditar sobre uma intenção nobre, é matá-la;
o gelo invade traiçoeiramente, o coração, e a personalidade mais livre se
acalma, e se domestica. A rotina é o estigma mental da velhice; a economia
é o seu estigma social.
O homem envelhece, quando o cálculo utilitário subs-titue a alegria
juvenil. Quem se põe a meditar sobre si o que tem lhe basta para o porvir,
já não é jovem; quando opina que é preferível ter mais do que ter menos,
está velho; quando o seu afã de possuir excede a sua possibilidade de viver,
já está moralmente decrépito. A avareza é uma exaltação dos sentimentos
egoístas, próprios da velhice.
Muitos séculos antes que os psicólogos modernos a estudassem, o
próprio Cícero escreveu palavras definitivas:
"Nunca ouvi dizer que um velho haja esquecido o lugar em que ocultou o seu
tesouro" (De Senecture, c.7).
E deve ser verdade, se, quem disse isso, é o mesmo autor que se
propôs a defesa dos foros e dos encantos da velhice.
Ascãs são avarentas, e a avareza é uma árvore estéril: a humanidade
pereceria, se tivesse de se alimentar com seus frutos. A moral burguesa da
economia envileceu gerações e povos inteiros; há graves perigos em pregá-
la, pois, como Machiavel ensinou, "mais danos causa aos povos a avareza
dos seus cidadãos, do que a capacidade dos seus inimigos".
Essa paixão de colecionar bens que não se desfrutam, vai se
intensificando com os anos, ao contrário das outras. Aquele que é
manicurto, na juventude, chega até a assassinar, por dinheiro, na velhice. A
avareza seca o coração, fecha-o^ à fé, ao amor, à esperança e ao ideal.
Se um aváro possuísse o sol, deixaria o Universo às escuras, para
evitar que o seu tesouro se gastasse.
Além de se apegar ao que tem, o avarento se desespera por obter
mais, sem limite; é mais miserável, à medida que mais tem; para soterrar
taleigas que não desfruta, renuncia à dignidade e ao bem-estar; esse afã de
perseguir coisas que nunca será capaz de gosar, cons-titue a mais sinistra
das misérias.
A avareza, como paixão envilecedora, iguala-se à inveja. É a pústula
moral dos corações envelhecidos.
II — Etapas da decadência
A personalidade individual se constitue por sobreposições sucessivas
da experiência. Já se assinalou uma "estratificação" do caráter; a palavra é
exata, e merece ser conservada para ulteriores desenvolvimentos.
Em suas capas primitivas e fundamentais, jazem as inclinações
recebidas hereditariamente dos antepassados: a "mentalidade da espécie".
Nas camadas medianas, en contram-se sugestões educativas da sociedade: a
"menta lidade social". Nas camadas superiores florescem as va riações e os
aperfeiçoamentos recentes de cada um, os rasgos pessoais que não são
patrimônio coletivo: a "men talidade individual".
Assim como, nas formações geológicas, as sedimen-tações mais
profundas contêm os fósseis mais antigos, as primitivas bases da
personalidade individual guardam cui-dadosamente o capital comum da
espécie e da sociedade. Quando os estrados recentemente constituídos vão
desa-parecendo, por obra da velhice, o psicólogo descobre, pouco a pouco,
a mentalidade do medíocre, da criança e do selvagem, cujas vulgaridades,
simplezas e atavismos reaparecem, à medida que as cãs vão substituindo
os cabelos.
Inferior, medíocre ou superior, todo homem adulto atravessa um
período estacionário, durante o qual aperfeiçoa as suas aptidões adquiridas,
mas não adquire novas. Mais tarde, a inteligência entra em seu ocaso.
As funções do organismo começam a decair em certa idade. Essas
declinações correspondem a inevitáveis processos de regressão orgânica.
As funções mentais, como acontece com as outras, decaem, quando
começam a se enferrujar as engrenagens celulares de nossos centros
nervosos.
É evidente que o indivíduo ignora o seu próprio crepúsculo; nenhum
velho admite a hipótese da diminuição da sua inteligência.
Quem escreve isto hoje, provavelmente pensará o contrário, quando
tiver mais de sessenta anos.
Mas, objetivamente considerado, o fato é indiscutível, embora possa
haver discrepância na assinalação de limites gerais para a idade em que a
velhice desconjunta a nossa virilidade. Compreende-se que, para esta
função, como para todas as outras do organismo, a idade da velhice difere
de indivíduo para indivíduo: os sistemas orgânicos em que se inicia
a evolução, são diferentes em cada sêr. Há quem se envelhece pelos seus
órgãos digestivos, circulatórios ou psíquicos; e há quem conserva, íntegras,
algumas de suas funções, até mais além dos limites comuns. A longevidade
mental é um acidente; não é a regra.
A velhice inequívoca é aquela que cria mais rugas no espírito, do que
na fronte. A juventude não é simples questão de estado civil, e pode
sovreviver a algumas cãs; é um dom de vida intensa, expressiva e otimista.
Muitos adolescentes não têm, e muitos velhos o têm até
excessivamente. Há homens que nunca foram jovens; em seus corações,
prematuramente exgotados, as opiniões extremas não encontram calor,
nem os exageros românticos encontra malento. Neles, a única precocidade
é a velhice.
Há, entretanto, espíritos de exceção, que guardam algumas
originalidades até os seus últimos anos, envelhecendo tardiamente. Mas,
antes em uns, em outros depois, devagar ou depressa, o tempo leva a termo
a sua obra, e transforma as nossas idéias, os nossos sentimentos, as nossas
paixões e as nossas energias.
O processo de "involução" intelectual segue o mesmo curso da sua
organização, mas ao inverso. Primeiro desaparece a "mentalidade
individual", mais tarde a "mentalidade social", e, por último, a "mentalidade
da espécie".
A velhice começa por fazer de todo indivíduo um homem medíocre.
A diminuição mental pode, sem embargo, não parar aí. As engrenagens
celulares do cérebro continuam enferrujando-se, a atividade das associações
neurônicas se atenua cada vez mais, e a obra destrutora da decrepitude é
mais funda. Os achaques continuam desmantelando sucessivamente as
capas do caráter, desaparecendo, uma depois da outra, todas as suas
aquisições secundárias, as que refletem a experiência social.
O ancião se inferioriza, isto é, regressa, pouco a pouco, à sua
primitiva mentalidade infantil, conservando as aquisições mais antigas da
sua personalidade, que são, por conseqüência, as que melhor se conservam,
e se consolidam. É notório que a infância e a senectude se tocam; todos os
idiomas consagram esta observeção, em rifões bastante conhecidos. Isto
explica as profundas transfornações psíquicas dos velhos; a mudança total
dos seus sentimentos (especialmente os sociais e os altruístas), a preguiça
progressiva para acometer empreendimentos no-vos (com discreta
conservação dos hábitos consolidados por antigos automatismos), e a
dúvida ou a apostasia das idéias comuns em seu meio, e, depois, às
professadas na infância, ou pelos antepassados.
A melhor prova disto — que os ignorantes sóem citar contra a ciência
— nós a encontramos nos homens de mais elevada mentalidade e de
cultura melhor disciplinada, é freqüente, neles, ao entrar em ancianidade u’a
mudança radical de opiniões acerca dos mais altos problemas filosólicos à
medida que decaem as aptidões originalmente definidas durante a idade
viril.
III — A bancarrota dos engenhos
Este quadro não é exagerado, nem esquemático. A marcha
progressiva do processo impede advertir essa evolução nas pessoas que nos
rodeiam; é como se uma claridade se apagasse tão lentamente, que
permitisse chegar à escuridão absoluta, sem fazer advertir momento algum
da sua transcrição.
À lentidão natural do fenômeno, devem-se acrescentar as diferenças
que êle apresenta em cada indivíduo. Aqueles que só logram adquirir um
reflexo de mentalidade social, pouco têm a perder com essa inevitável
bancarrota; é o empobrecimento de um pobre. E quando em plena
senectude, a sua mentalidade social se reduz à mentalidade da espécie,
inferiorizando-se, essa passagem da pobreza à miséria não surpreende
pessoa alguma.
No homem superior, no talento ou no gênio, notam-se claramente
esses estragos.
Como não chamaria a nossa atenção um antigo milionário que
passeasse ao nosso lado, os seus últimos andrajos?
O homem superior deixa de o ser, e se nivela. Suas idéias próprias,
organizadas no período do aperfeiçoamento, tendem a ser substituídas por
idéias comuns ou inferiores.
O gênio — entenda-se bem — nunca é tardio, embora o seu fruto
possa ser revelado tardiamente; as obras pensadas na juventude, e escritas
na madureza, podem, ou não, demonstrar decadência; mas as obras
pensadas na velhice, sempre a revelam.
Nós lemos a segunda parte do "Fausto", por um sentimento de
respeito para com o autor da primeira; não podemos sair dela, sem pensar
que "nunca as segundas partes foram boas" — rifão inapelável, se a
primeira é obra da juventude, e a segunda é fruto da velhice.
Assinalou-se, em Kant, um exemplo acabado dessa metamorfose
psicológica. O jovem Kant, verdadeiramente "crítico", tinha chegado à
convicção de que os três grandes baluartes do misticismo —
Deus, Liberdade e Imortalidade da Alma — eram insustentáveis diante da
"razão pura"; o Kant envelhecido, "dogmático", encontrou, ao contrário,
que esses três fantasmas são postulados da "razão prática", e, portanto,
indispensáveis.
Quando mais se prega o regresso a Kant, na avan-gada
contemporânea do neo-kantismo, tanto mais ruidosa e irreparável se
apresenta a contradição entre o jovem e o velho Kant.
O próprio Spencer, monista como os que mais o são, acabou
entreabrindo uma porta ao dualismo, com o seu "incognoscível". Virchow
criou, em plena juven-tude, a patologia celular, sem suspeitar que
terminaria renegando as suas idéias de naturalista filósofo. E, como ele,
outros também decaíram.
Para citar somente mortos de ontem, veja-se Lom-broso, cair, em
seus últimos anos, em ingenuidades in-fantis, explicáveis pela sua
debilidade mental, ao ponto de chorar conversando com a alma de sua
mãe, em um trípode espírita.
James, que, em sua juventude, foi o porta-voz da psicologia
evolucionista e biológica, acabou por emara-
nhar-se em especulações maiores que só êle compreendeu. E, por fim,
Tolstoi, cuja juventude foi pródiga de admiráveis novelas, e outros escritos
que o fizeram ser classificado entre os escritores anarquistas, nos últimos
anos escreveu artigos de pacotilha, que um gazetineiro vulgar não assinaria
para, a-final, se extinguir numa peregrinação mística, que pôs em ridículo as
últimas horas da sua vida física. A mental havia terminado antes.
IV — Psicologia da velhice
A sensibilidade se atenua nos velhos, e suas vias de comunicação com
o mundo que os rodeia, se embotam; os tecidos se endurecem, e se tornam
menos sensíveis à dor física. O velho tende à inércia, procura o menor
esforço: assim como a preguiça é uma velhice antecipada, a velhice é uma
preguiça que chega fatalmente em certa hora da vida.
Sua característica é uma atrofia dos elementos nobres do organismo,
com desenvolvimento dos inferiores; uma parte dos capilares se obstroi, e
diminue o fluir do sangue aos tecidos; o peso e o volume do sistema
nervoso central se reduz, como o de todos os tecidos propriamente vitais; a
musculatura flácida impede a manutenção eréta do corpo; os movimentos
perdem a sua agilidade a sua precisão. No cérebro, diminuem as permutas
nutritivas, alteram-se as transformações químicas, e o tecido conjuntivo
prolifera, fazendo aue se degenerem as células mais nobres.Roto o
equilíbrio dos órgãos, não pode subsistir o equilíbrio das funções: a
dissolução da vida intelectual e afetiva segue esse curso fatal, perfeitamente
estudados por Ri-bot, no capítulo final da sua "Psicologia dos
sentimentos".
À medida que envelhece, o homem se torna infantil, Janto por sua
inaptidão criadora, como pela sua dinii-
nuição moral. Ao período expansivo, sucede o de concentração; a
incapacidade para o assalto aperfeiçoa a defesa. A insensibilidade física é
acompanhada de analgesia moral: ao invés de participar da dor alheia, o
velho acaba por não sentir nem a própria; a ansiedade de prolongar a sua
vida parece adverti-lo de que uma forte emoção pode gastar energia, e se
endurece contra a dor, como a tartaruga se retrai sob seu envoltório,
quando pressente o perigo. Assim chega a sentir um ódio oculto contra
todas as forças vivas que crescem e avançam, um surdo rancor contra todas
as primaveras.
A psicologia da velhice denuncia idéias obsessoras e absorvente. Todo
velho crê que os jovens o desprezam e desejam a sua morte, para suplantá-
lo. Traduz tal mania em hostilidade à juventude, considerando-a muito
inferior àquela do seu tempo — juízo que estende aos novos costumes,
quando já não pode adaptar-se a eles. Mesmo nas coisas pequenas, exige a
parte maior, con-trariando toda iniciativa, desdenhando os golpes afetivos e
escarnecendo dos ideais, sem recordar que em outros tempos, pensou,
sentiu, e fez tudo o que agora considera comprometedor ou detestável.
Essa é a verdadeira psicologia do homem que envelhece. A idade
atenua ou anula o zelo, o ardor, a aptidão para criar, descobrir, ou
simplesmente saborear a arte, e para conservar a curiosidade sempre alerta.
Omito as raríssimas exceções que exigiram, cada uma, Um exame
particular. Para a maioria dos homens, a debilidade vital suprime,
imediatamente, o gosto dessas ei asas supérfluas. Asinalemos, também,
com a velhice, a hostilidade decidida contra as inovações: novas fornias
artísticas, novas maneiras de colocar e de tratar os problemas científicos. O
fato é tão notório, que não exige provas. Ordinariamente, sobretudo em
estética, rada geração renega a que segue. A explicação comum
desse misoneísmo, é a existência de hábitos intelectuais, já
organizados, que seriam comovidos por um contraste violento, se ainda
existisse uma capacidade de emoção ou de paixão. Isto é o que falta nos
velhos, pela modorra de sua vida afetiva.
Ribot acrescenta que, a essa dissolução dos sentimentos superiores, se
segue a de todos os sentimentos altruístas, e a dos ego-altruístas,
persistindo, até o fim, os egoístas, cada vez mais isolados e predominantes
na personalidade do velho. Estes mesmos sentimentos egoístas naufragam
na sensibilidade ulterior.
Os diversos elementos do caráter se dissolvem em ordem inversa à
sua formação. Os que se adquiriram no fim, são menos ativos, deixam
sulcos pouco duradouros, são adventícios, incoordenados. Isto se revela na
regressão da memória senil: os fantasmas das primeiras impressões juvenis
continuam rondando pela mente, quando iá desapareceram as recordações
mais recentes, as do dia anterior. A falta de plasticidade faz que os novos
processos psíquicos não deixem rastros, ou os deixem muito débeis,
enquanto que os antigos se gravam profundamente emmatéria mais
sensível, e somente desaparecem com a destruição dos órgãos.
Com crescimento dos neurônios no homem jovem, e com o seu
poder de criar novas associações, Cajal teria explicado a capacidade de
adaptação do homem e a sua aptidão para variar os seus sistemas
ideológicos; a detenção dessas funções nos velhos e nos adultos de cérebro
atrofiado por falta de ilustração, ou outra coisa, permite compreender as
convicções imutáveis, a inadaptação ao meio moral e as aberrações
misoneístas. Concebe-se, igualmente, que a falta de associação de ideais, o
entorpecimento intelectual, a imbecilidade, a demência, possam produzir-se
cuando — por causas mais ou menos mórbidas — a articulação entre os
neurones começa a ser frouxa; quando se debilitam e deixam de estar em
contacto, ou quando a memória se desorganiza parcialmente. Para formular
esta hipótese, Cajal teve em consideração a conservação mais prolongada
das memórias juvenis: as vias de associação, criada há muito tempo, e
exercitadas durante alguns anos, adquirem, sem dúvida, uma força maior,
devido à sua organização que se verifica numa época em que o cérebro
possue o seu mais alto grau de plasticidade.
Sem conhecer estes dados modernos, Lucrécio observou que a ciência
e a experiência podem crescer com o decorrer da vida, mas a vivacidade, a
rapidez, a firme za e outras qualidades louváveis se emurchecem e
enlanguescem ao sobrevir a velhice:
Ubi jam válidis quassatum est viribus aevi corpus, et obtusis ceciderunt viribus artus,
claudicat ingenium, delirant linquaque mensque.
Montaigne, velho, considerava que, aos vinte anos, todo indivíduo
anuncia o que dele é lícito esperar, e afirmou que nenhuma alma que se
conserve obscura até essa idade, se tornou luminosa depois; recorda o
provérbio usual no Delfinado:
"Si l”epine ne pique pas en naissant, à peine pique-ra-t-elle jamais", e acrescenta que
quasi todas as gran-des ações da história foram realizadas antes dos trinta
anos. (Essais, livr. I, cap. LVII).
À distância de vários séculos, um espírito absolutamente diverso
chega às mesmas conclusões.
"A descoberta do segundo princípio da energética oito anos quando
publicou sua memória. Meyer, Joule e Helmholtz tinham vinte cinco, vinte
seis e vinte cinco, respectivamente; nenhum desses grandes inovadores
chegou aos trinta anos, antes de se tornarem conhecidos, As épocas em
que seus trabalhos apareceram, não representam o momento em que foram
concebidos; tiveram de passar alguns anos, antes de estarem
suficientemente desenvolvidos, para serem expostos, além do tempo
necessário para que os seus autores encontrassem os meios indispensáveis
à sua publicação.
A juventude desses mestres da ciência assombra; estamos
acostumados a considerar que a ciência é privilégio de uma idade avançada,
e nos parece que todos esses jovens faltaram ao respeito para com os seus
maiores, tomando a liberdade de abrir novos caminhos à verdade.
Dir-se-á que a solução desses problemas, por verdadeiros rapazes, foi
uma singular e excepcional casualidade; é fácil comprovar que o mesmo
acontece em todos os domínios da ciência: a grande maioria dos trabalhos
que assinalaram horizontes novos, foi obra de jovens que acabavam de
transpor os vinte anos.
Não é este o lugar para expor as causas e conseqüências desse fato;
mas é útil recordá-lo, pois, embora tenha sido assinalado mais de uma vez,
está muito longe de ser reconhecido por aqueles que se dedicam a educar a
juventude.
Os trabalhos de homens jovens são de caráter principalmente
inovador: o mecanismo da instrução pública não deve servir de obstáculo a
eles; devem permitir-lhes, desde cedo, o desenvolvimento livre de suas
aptidões nos institutos superiores, ao invés de exgotar, prematuramente,
como acontece agora, um grande número de talentos científicos originais.
E para que as suas conclusões não pareçam improvisadas, W. Ostwald
desenvolveu-as em seu último livro sobre os grandes homens, onde o
problema do gênio juvenil está analizado com critério experimental.
Por isso, as academias soem ser cemitérios onde se glorificam homens
que já deixaram de existir para a sua ciência ou para sua arte. É natural que
a elas <lliguem os mortos ou os agonizantes; dar entrada a um jovem
significa enterrar um vivo.
V — A virtude da impotência
Deve ser verdade o que se afirma, desde Lucrécio e Montaigne. até
Ribot e Ostwald: mas os velhos não renunciarão a seus protestos contra os
jovens, nem estes acatarão, em silêncio, a hegemonia das cãs.
Os velhos esquecem que foram jovens, e estes parecem ignorar que
serão velhos: o caminho a ser percorrido é semore o mesmo, da
originalidade à mediocridade, e desta, à inferioridade mental.
Como se pode admirar a gente, então, de que os jovens
revolucionários terminem como velhos conservadores? E que há de
estranho na conversão religiosa dos ateus chegados à velhice? Como
poderia o homem ativo e empreendedor aos trinta anos, não ser apático e
prudente aos oitenta? Como admirar que a velhice faz os homens
avarentos, misantropos, rabujentos, quando lhes vão entorpecendo
paulatinamente os sentidos e a inteligência, como se u’a mão misteriosa
fosse fechando, uma por uma, todas as janelas entre-abertas em face da
realidade que os rodeia?
A lei é dura, mas é lei. Nascer e morrer são os pontos invioláveis da
vida; ela nos diz, com voz firme, que o normal não é nascer, nem morrer,
na plenitude de nossas funções. Nascemos para crescer, envelhecemos para
morrer. Tudo o que a Natureza nos oferece para o crescimento, subtrai-
nos, preparando a morte. Sem embargo, os velhos protestam, assegurando
que não são bastante respeitados, enquanto que os jovens se desesperam
por ser excessivo o respeito que lhes votam.
A história é de todos os tempos.
Cícero escreveu a sua De Senectude com o mesmo espírito com que
hoje Faguet escreveu certas páginas do seu ensaio sobre La
Vieillesse. Aquele se queixava de que os velhos eram pouco respeitados, no
império; este se queixa de que o sejam menos ainda na democracia.
Assombram as palavras de Faguet, quando êle afirma que os velhos
não são ouvidos, pretendendo ver, nisto, a negação de uma competência a
mais. Alega que, nos povos primitivos, como hoje entre os selvagens, são
os velhos que os governam: a arqueocracia ali se explica, onde não há
ciência além da experiência, e os velhos tudo sabem, pois qualquer caso
novo lhes é conhecido, porque viram muitos semelhantes. Faguet afirma
que o livro, posto nas mãos dos jovens, é o inimigo da experiência que os
velhos monopolizam. E se desespera porque o velho caiu no ridículo,
embora cometa a imprudência de julgá-lo com verdade: "convenons de
bonne grâce qu’il prête cela; il est entêté, il est maniaque, il est verbeux, il
est conteur, il est ennuyex, il est grondeur e son aspect est désagréable":
nenhuma jovem escreveu uma silhneta mais sintética do que esta, incluída
no seu volume sobre o culto da incompetência.
Faguet opina que o velho está desterrado das me-diocracias
contemporâneas. Grave erro, que só prova a sua velhice.
Toda sociedade em decadência é propícia à mediocridade e inimiga de
qualquer excelência individual; por isso, impede-se que os jovens originais
tenham acesso ao governo, até que tenham perdido a sua aresta própria,
esperando que a velhice os nivele, rebaixando-os até os modos de pensar e
de sentir que são comuns ao seu grupo social. Em razão disto, as funções
diretivas soem ser patrimônio da idade madura; a "opinião pública" dos
povos, das classes superiores e que já começam a decair, o expoente natural
da sua mediocridade.
Na juventude, são considerados perigosos; os jo vens governam
somente nas épocas revolucionárias; arevolução francesa foi efetuada por
eles, e o mesmo se deve dizer da emancipação de ambas as Américas.
O progresso é obra de minorias ilustradas e atrevidas. Enquanto o
indivíduo superior pensa com a sua própria cabeça, não pode pensar com a
cabeça das maiorias conservadoras.
Não há, pois, a falta de respeito que, em suas velhices respectivas,
Platão, Aristóteles e Montesquieu assinalaram, antes de Faguet. Afirmar
que, pelo caminho da velhice, se chega à mediocridade, é a aplicação
simples de uma lei geral que rege todos os organismos vivos, e os prepara
para a morte.
Porque deveríamos estranhar essa decadência men tal, se estamos
acostumados a ver descobrirem-se as fo-lhas e se despojarem as árvores,
quando o outono chega, perseguido pelo inverno?
Admiremos os velhos pela superioridade que possuíram na juventude.
Não incorramos na simpleza de eperar uma velhice santa, heróica ou
genial, depois de uma juventude equívoca, mansa e opaca; a velhice não
põe flores onde houve insignificância; antes, pelo con-trário, ceifa as
excelências com a sua foice niveladora. Os velhos representativos, que
ascendem ao governo e às dignidades, depois de terem passado seus
melhores anos na inércia ou na orgia, no tapete verde ou entre rameiras, ne
espectativa apática ou na resignação humilhada, sem uma palavra viril e
sem um gesto altivo, esquivando-se à luta, temendo os adversários e renun
ciando aos perigos, não merecem a confiança dos seus contemporâneos,
nem têm o direito de catonizar. Suas palavras grandiloqüentes parecem
pronunciadas em fal sete, e provocam o riso.
Os homens de caráter elevado não cometem à vida a injúria de
desperdiçar a sua juventude, nem confiam à incerteza das cãs a iniciação de
grandes empresas que só as mentes frescas podem conceber, e que só os
braços viris podem realizar.
A experiência senil complica a tolice dos medíocres, mas não pode
convertê-los e mgênios; a madureza abranda o perverso, torna-o inútil para
o mal.
O diabo não sabe mais por ser velho, do que por ser diabo. Se se
arrepende, não é por santidade, sinão, por impotência.
Capítulo VII – A MEDIOCRACIA
I — O clima da mediocridade
Em raros momentos, a paixão caldeia a história, e se exaltam os
idealismos; quando as nações se constituem, e quando elas se renovam.
Antes, é secreta ânsia de liberdade, luta pela independência; mais tarde,
crise de consolidação institucional a seguir e, depois, veemência de
expansão, ou pujança de energias. Os gênios pronunciam palavras
definitivas; os estadistas plasmam os seus planos visionários; os heróis
põem o seu coração na balança do destino.
É, porém, fatal que os povos tenham longas inter-cadências de
cevadura. A história não conhece um único caso em que altos ideais
trabalhem com ritmo contínuo, para a evolução de uma raça. Há horas de
palingenesia, e as há tembém de apatia, como há vigílias e sonhos, dias e
noites, primaveras e outonas, em cujo altenar-se infinito está dividida a
continuidade do tempo.
Em certos períodos, a nação adormece dentro do pais. O organismo
vegeta; o espírito se amodorra. Os apetites acossam os ideais, tornando-os
dominadores e agressivos. Não há astros no horizonte, nem auriflamas nos
campanários. Não se percebe clamor algum do povo; não ressoa o éco de
grandes vozes animadoras. Todos os apinham em torno dos mantos
oficiais, para conseguir, alguma migalha da merenda. É o clima da
mediocridade.
Os Estados tornam-se mediocracias que os filósofos inexpressivos
prefeririam denominar "mesocracias".
O culto da verdade entra na penumbra, bem como o afã de
admiração, a fé em crenças firmes, a exaltação de ideais, o desinteresse, a
abnegação — tudo o que está no caminho da virtude e da dignidade.
Todos os espíritos se temperam pelo mesmo diapasão utilitário. Fala-
se por meio de rifões, como Panzo discorria; crê-se como Gil Blas ensinou.
Tudo o que è vulgar, encontra fervorosos adeptos, entre os que
representam os interesses militares; os seus mais altos porta-vozes são
escravos do seu clima. São atores aos quais foi proibido improvisar: de
outra forma, romperiam o molde a que se ajustam as outras peças do
mosaico.
Platão, sem querer, dizendo da democracia: "é o pior dos bons
governos, mas é o melhor entre os maus", definiu a mediocracia.
Transcorram séculos; a sentença conserva a sua verdade.
Na primeira década do século XX, acentuou-se a decadência moral
das classes governantes. Em cada comarca, uma facção de parasitas detém
as engrenagens do mecanismo oficial, excluindo do seu seio todos quantos
recusam altivamente a própria cumplicidade em seus empreendimentos.
Aqui são castas adventícias, ali sindicatos industriais, acolá facções de
palavreiros. São gave-las, e se intitulam partidos. Intentam disfarçar com os
ideais o seu monopólio do Estado. São bandoleiros que procuram a
encruzilhada mais impune, para espoliar a sociedade.
Em todos os tempos e sob todos os regimes, houve políticos sem
vergonha; mas estes nunca encontram melhor clima, do que nas burguezias
ideais. Onde todos podem falar, os ilustrados se calam; os enriquecidos
preferem ouvir os mais vis imbuidores.
Quando o ignorante se julga igualado ao estudioso, o velhaco ao
apóstolo, o falador ao eloqüente e o mau ao digno, a escala do mérito
desaparece numa vergonhosa nivelação de vilania. A mediocridade é isso:
os que nada sabem, julgam dizer o que pensam, embora cada um só
consiga repetir dogmas, ou auspiciar voracidades.
Essa chatice moral é mais grave do que a aclimação a uma tirania;
ninguém pode voar onde todos rastejam. Convenciona-se denominar
urbanidade à hipocrisia, distinção à efeminação, cultura à timidez,
tolerância à cumplicidade; a mentira proporciona estas denominações
equívocas. E os que assim mentem, são inimigos de si próprios e da pátria,
deshonrando, nela, seus pais e seus filhos, e carcomendo a dignidade
comum.
Nesses parênteses de cevadura, as mediocracias se aventuram por
sendas ignóbeis. A obsessão de acumular tesouros materiais, ou o torpe afã
de desfrutá-los com folgança, apaga do espírito coletivo todo vestígio do
sonho. Os países deixam de ser pátria. Qualquer ideal parece suspeito. Os
filósofos, os sabios e os artistas são demais; o peso da atmosiera estorva as
suas azas e deixam de voar. A sua presença mortifica os traficantes, todos
os que trabalham por lucro, os escravos da economia ou da avareza. As
coisas do espírito são desprezadas; não sendo propício o clima, seus
cultores sao poucos, nao dentro do país, que mata, a fogo lento, os seus
ideais, sem precisar desterrá-los. Cada homem fica preso entre mil sombras
que o rodeiam, e o paralisam.
Sempre há medíocres; estes são perenes. O que varia, é o seu prestígio
e a sua influência. Nas épocas de exaltação renovadora, eles se mostram
humildes, são tolerados; ninguém os nota, não ousam meter-se em coisa
alguma. Quando se enfraquecem os ideais, e se substitue o quantitativo
peio quantitativo, começa-se a contar com eles. Apercebem então, o seu
numero, reúnem-se em grupos, arrebanham-se em partidos. A sua
infiuéncia cresce, à medida que o clima se tempera; e o sábio é igualado ao
analfabeto, o rebelde ao lacaio, o poeta ao presu-mista. A mediocridade se
condensa, converte-se em sistema, torna-se incontrastável.
Enaltecem-se os ganhões, pois que não florescem os gênios; as
criações e as proiecias sao impossíveis, se náo estão na alma da época.
A aspiração ao melhor náo é privilégio de todas as gerações. Depois
de uma que realizou um grande estorço, arrastaua e comovida por um
gênio, a seguinte descansa, e se dedica a viver de glorias passadas, comemo
rando-as sem fé; as facções disputam as rédeas administrativas, competindo
no manuseio de todos os sonhos. À mingua ciestes é disfarçada com um
excesso de pompas e ae palavras; cala-se qualquer protesto, oferecendo
participação nos festins; prociamam-se as melhores intenções, e se
praticam baixezas abomináveis; mente a arte; mente a justiça; mente o
caráter. Tudo mente, com a aquiescência de todos; cada homem põe preço
à sua cumplicidade — um preço razoável, que oscila entre um emprego e
uma condenação.
Os que governam, não criam tal estado de coisas e de espírito;
representam-no. Quando as nações dão em baixios, alguma facção se
apodera da engrenagem constituída ou reformada por homens geniais.
Florescem legisladores, pululam arquivistas, os funcionários são contados
por legiões; as leis se multiplicam, sem, entretanto, ser reforçada a sua
eficácia. t
As ciências convertem-se em mecanismos oficiais, em institutos e
academias, de onde jamais brota o gênio, e onde até se impede que o
talento brilhe; sua presença humilharia, com a força do contraste. As artes
tornam-se indústrias patrocinadas pelo Estado, reacionário em seus gostos
e adverso a toda previsão de novos ritmos ou de novas formas; a
imaginação de artistas e poetas parece que se aguça, para descobrir as gretas
do orçamento, e se infiltrar por elas.
Em tais épocas, os astros não surgem. Fazem greve; a sociedade nao
necessita deles; basta-lhes a sua coorte de funcionários.
O nível dos governantes desce, até marcar zero; a mediocracia é uma
confabulação de zeros contra unidades.
Cem políticos torpes, juntos, não valem um estadista genial.
Somai dez zeros, cem, mil, todos os zeros da matemática, e não tereis
quantidade alguma, nem siquer negativa.
Os políticos sem ideal marcam o zero absoluto, nos termômetros da
historia, conservando-se limpos da in fâmia e da virtude, equivalentes de
Néro e de Marco Aurelio.
Uma apatia conservadora caracteriza esses períodos; enfraquece-se a
ansiedade das coisas elevadas, prosperando, ao contrario, o ara de
suntuosos jormalismos. Us governantes que não pensam, parecem
prudentes; os que nada fazem, intitulam-se repousados; os que não roubam
são exemplares. O conceito do mento se torna negativo; as sombras são
preferíveis aos homens. Procura-se o originalmente medíocre, ou o
mediocrizado peia senilidade. Em vez de heróis, gênios ou santos, reclama-
se discre tos administradores. Mas o estadista, o filósofo, o poeta, os que
realizam, pregam e cantam alguma parte de um ideal, estão ausentes, Nada
tem a lazer.
A tirania do clima é absoluta: nivelar-se ou sucumbir. A regra conhece
poucas exceções na história. As mediocracias negaram sempre as virtudes,
as belezas, as grandezas; deram veneno a Sócrates; o madeiro a Cristo; o
punhal a Cesar; o destêrro a Dante; o cárcere a Galileo; o fogo a Bruno; e,
enquanto escarneciam desses homens exemplares, esmagando-os com a
sua sanha ou armando contra eles algum braço enlouquecido, ofereciam o
seu servilismo a governantes imbecis ou davam o seu ombro para sustentar
as mais torpes tiranias. A um preço: que estas garantissem, às classes fartas,
a tranqüilidade necessária para usufruir seus privilégios.
Nessas épocas de lenocínio, a autoridade é fácil de ser exercida: as
cortes se poviam de servis, de retóricos que palavreiam pane lucrando, de
aspirantes a algum "pa chalato", de polichinelos em cujas consciências está
sempre arvorado o lábaro ignominioso.
As mediocracias são escoradas pelos apetites dos que esperam nelas
viver, e no medo dos que temem perder a pitança.
A indignidade civil é lei, nesses climas. Todo homem declina de sua
personalidade, ao converter-se em funcionário: a cadeia não é visível no seu
pé, como nos dos escravos, mas êle a arasta, ocultamente, amarrada ao seu
intestino. Cidadãos de uma pátria, são os incapazes de viver pelo seu
esforço, sem a cevadura oficial. Quando tudo é sacrificado a esta,
sobrepondo-se os apetites às aspirações, o sentido moral se degrada, e a
decadência se aproxima. Inutilmente se buscam remédios na glorificação
do passado. Dessa fadiga, os povos não despertam louvando o que foi,
sinão, semeado o porvir.
II — A pátria
Os países são expressões geográficas, e os Estados* são formas de
equilíbrio político. Uma pátria é muito mais do que isso, e é outra coisa:
sincronismo de espíritos e de corações, têmpera uniforme para o esforço, e
homogênea disposição para o sacrificio, simultaneamente na aspiração à
grandeza, no pudor da humilhação e no desejo da gloria. Quando falta esta
comunhão de espe ranças, não há, nem pode haver pátria: é preciso que
haja sonhos comuns, anelos coletivos de grandes coisas é preciso que todos
se tintam decididos a realizá-las, com a seguridade de que, ao carcharem
juntos, em busca de um ideal, nenhum ficará na metade do caminho,
contando as suas taleigas.
A pátria está implícita na solidariedade sentimental de uma raça, e não
na confabulação dos politiqueiros que medram à sua sombra.
Não basta acumular riquesa para criar uma pátria: Cartago não o foi.
Era uma empresa.
As minas áureas, as indústrias fabris e as chuvas generosas fazem de
qualquer país um rico empório; mas é preciso que se formem ideais de
cultura, para que nele haja uma pátria. Rebaixa-se o valor deste conceito,
quando é aplicado a países que carecem de unidade moral, mais parecidos
com feitorias de logreiros autóctonos ou exóticos, do que a legiões de
sonhadores, cujo ideal seja um arco teso na direção de um objetivo de
dignificação comum.
A pátria tem intermitencias; sua unidade moral desaparece em certas
épocas de rebaixamento, quando se eclipsa todo afã de cultura, e passam a
predominar os vis apetites de mando e de enriquecimento. O remédio
contra essa crise de chatice não está no fetichismo do passado, sinão, na
semeadura do porvir concorrendo para criar um novo ambiente moral
propício a todo enaltecimento da virtude, do engenho e do caráter.
Quando não há pátria, não pode haver sentimento coletivo da
nacionalidade — inconfundível com a mente patriótica explorada em todos
os países pelos mercadores e pelos militaristas. Só é possível na medida
marcada pelo ritmo unísono dos corações para um nobre aperfeiçoamento,
e nunca, para uma ignóbil agressividade que fira o sentimento próprio das
outras nacionalidades.
Não há maneira mais baixa de amar a pátria, além dessa que ensina a
odiar as pátrias dos outros homens, como se todas não fossem igualmente
dignas de engendrar, em seus filhos, iguais sentimentos.
O patriotismo deve ser emulação coletiva, para que a própria nação
ascenda as virtudes de que outras melhores dão o exemplo; nunca deve ser
inveja coletiva que faça sofrçr em conseqüência da superioridade alheia,
e que conduza a desejar o baixamento dos outros, até o próprio nível.
Cada pátria é um elemento da Humanidade; o anhelo da dignificação
nacional deve ser um aspecto da nossa fé na dignificação humana.
Ascenda cada raça ao seu nível mais alto, como pátria, e, por esforço
de todos, remontar-se-á ao nível da espécie, como Humanidade.
Enquanto um país não é pátria, seus habitantes não constituem uma
nação. O zelo da nacionalidade só existe nos que se sentem agrupados para
conseguir um mesmo ideal. Por isso é mais profundo e pujante nas mentes
conspícuas; as nações mais homogêneas são as que possuem homens
capazes de o sentir e de o servir. A exígua capacidade de ideais impede os
espíritos espessos de verem, num patriotismo, um alto ideal; os trânsfugas
da moral, alheios à capacidade em que vivem, não o podem conceber; os
escravos e os servis têm, apenas, um país natal.
Só o homem digno e livre pode ter uma pátria.
Pode tê-la; não a tem sempre, pois há tempos em que ela só existe na
imaginação de poucos: um, dez, talvez uma centena de eleitos.
Ela está, então, nesse ponto ideal para onde converge a aspiração dos
melhores, de todos quantos se sentem, sem medrar de ofício,
escarranchados sobre a política. Nessas poucos está a nacionalidade, que
come e aufere lucros no país, então alheios ao seu afã.
O sentimento enaltecedor nasce em muitos sonhadores jovens, mas
permanece rudimentar, ou se distrai na apetência comum; em poucos
eleitos chega a ser dominante, antepondo-se às pequenas tentações de piara
ou confraria.
Quando os interesses venais se sobrepõem ao ideal dos espíritos
cultos, oue constituem a alma de uma nação, o sentimento nacional
degenera e se corrompe: a pátria é explorada como uma indústria. Quando
se vive fartando grosseiros apetites, e ninguém pensa que, no canto de um
poeta ou na reflexão de um filósofo, pode estar uma partícula da glória
comum, a nação se abisma. Os cidadãos volvem à condição de habitantes.
A pátria regressa à condição de país.
Isto acontece periodicamente, como se a nação necessitasse
pestanejar, ao olhar para o porvir. Tudo se torce, e se abaixa,
desaparecendo a molície individual na comum: dir-se-ia que, na culpa
coletiva, se desfaz a responsabilidade de cada um. Quando o conjunto se
dobra, como a quilha de um navio, parece, por efeito de relatividade, que
nenhuma coisa se dobra. Só aquele que se levanta, e olha para os que
navegam, sob outro prisma, adverte o descenso, como se, em face deles,
fosse um ponto imóvel: um farol na costa.
Quando as misérias morais assolam um país, a cul-pa é de todos os
que, por falta de cultura e de ideal, não souberam amá-lo como pátria: de
todos os que viveram dela, sem trabalhar para ela.
III — A política das piaras
A degeneração do sistema parlamentar é, em nossa época, a causa
profunda dessa contaminação: todas as formas de parlamentarismo de
pacotilha. Antes, presumia-se que, para governar, se requeria certa ciência e
a arte de aplicá-la; agora, concordou-se em que Gil Blas, Tartufo
e Sancho são os árbitros inapeláveis dessa ciência e dessa arte.
A política se degrada, converte-se em profissão. Nos povos sem
ideais, os espíritos subalternos medram em torpes intrigas de antecâmara.
Na maré baixa, aparece o desprezível, e se engendram os traficantes. Toda
excelência desaparece, eclipsada pela domesticidade. Instaura-se uma moral
hostil à firmeza e propícia à relaxação. O governo passa às mãos de
gentalha que abocanha o orçamento. Abaixam-se os adarves, e se levantam
os muladares. Os loureirais se secam, e os cardais se multiplicam. Os
palacianos se encontram com os malandrins. Os funâmbulos e os
saltimbancos progridem. Onde todos lucram, ninguém pensa; ninguém
sonha onde todos tragam. O que antes era signo de infâmia ou cobardia,
torna-se título de astúcia; o que outrora matava, agora, vivifica, como se
houvesse uma aclimação ao ridículo; as sombras envilecidas se levantam, e
parecem homens; a improbilidade se pavoneia, e se ostenta, ao invés de ter
vergonha e pudor. O que, nas pátrias, se cobria de opróbrio, se cobre, nos
países, de honrarias.
As jornadas eleitorais se convertem em grosseiras negociatas de
mercenários, ou em pugilatos de aventureiros. A sua justificação está a
cargo de inocentes eleitores, que vão à paróquia, como a uma festa.
As pacções de profissionais são adversas a todas as originalidades.
Homens ilustres podem ser vítimas do voto; os partidos adonam as suas
listas com nomes respeitados, sentindo a necessidade de se parapeitarem
atrás do brazão intelectual de alguns seletos.
Cada piara forma um estado-maior próprio, que desculpe a sua
pretensão de governar o país, encobrindo ousadas piratarias, com o
pretexto de sustentar interesses de partidos. As exceções não são toleradas
em homenagem às virtudes; as piaras não admiram nenhuma superioridade:
exploram o prestígio do pavilhão, para dar passagem às suas mercadorias
de contrabando; descontam no banco do êxito, mercê da firma prestigiosa.
Para cada homem de mérito, há dez dezenas de sombras insignificantes.
Aparte essas exceções, que existem em todas as partes, a massa de
eleitos do povo é subalterna chusma de vaidosos, choldraboldra de
desonestos e servis.
Os primeiros esbanjam a sua fortuna, para subir ao Parlamento. Ricos
pronrietários de terras, ou poderosos industriais pagam, a peso de ouro, os
votos adventícios por agentes imoulicos; pequenos senhores adventícios
abrem as suas alcanzias, para comprar o único diploma acessível à sua
mentalidade amorfa; asnos enriquecidos aspiram a ser tutores de povos,
sem mais capital, do que a sua constância e seus milhões. Precisam ser
alguém; c julgam conseguir isso, com a incorporação às piaras.
Os desonestos são legião; assaltam o Parlamento, para se entregaram
a especulações lucrativas. Vendem o seu voto a empresas que mordem as
arcas do Estado; prestigiam proietos de grandes negócios com o erário,
cobrando os seus discursos a tanto por minuto; pagam OS seus eleitores
com empregos e dádivas oficiais; fazem comércio da sua influência para
obter concessões a favor da sua clientela. Sua gestão política sói ser
tranqüila; um homem de negócios está sempre com a maioria. Apóia todos
os governos.
Os servis saqueiam por meio dos congressos, em virtude de
flexibilidade das suas espinhas. Lacaios de um grande homem, ou
instrumentos cegos da sua piara, não ousam discutir a chefatura de um, ou
as recomendações da outra. Não se lhes pede talento, eloqüência,
probidade: basta a certeza do seu panurgismo. Vivem de luz alheia, satélites
sem calor e sem pensamento, unidos ao carro do seu cacique, sempre
dispostos a bater palmas quando êle fala, e a se porem de pé, na hora da
sua votação.
Em certas democracias noviças, que parecem chamar-se repúblicas,
por troça, os congressos se apinham de mansos protegidos das oligarquias
dominantes. Medram piaras submissas, servis, incondicionais, efeminadas:
as maiorias contemplam o porqueiro, esperando uma piscadela ou um
sinal. Se alguém se aparta, está perdido; os que se rebelam, estão proscritos,
sem apelação.
Há casos isolados de engenho e de caráter, sonhadores de algum
apostolado, ou representantes de anelos indomáveis; se o tempo não os
domestica, eles servem ou outros, justificando-os com a sua presença,
aquilatando-os.
É ilusão pensar que o mérito abre as portas dos parlamentos
envilecidos. Os partidos — ou o governo em seu nome — operam uma
seleção entre os seus membros a expensas do mérito, ou a favor da intriga.
Um soberano quantitativo e sem ideais prefere candidatos que tenham a
sua própria compleição moral: por simpatia e por conveniência.
As mais abstrusas fórmulas da química orgânica parecem balbúcios
infantis, em face das reviravoltas do parlamento medíocre. O desprezo dos
homens probos nunca o amedronta. Confia em que o baixo nível do
representante é aprovado pela insensatez do representado. Por essa razão,
certos homens imprestáveis se adaptam maravilhosamente aos desiderata do
sufrágio universal; a grei se prosterna diante dos feitiços mais ocos, e os
recheia com a sua alambicada tolice.
Esse afã de viver, a expensas do Estado, rebaixa a dignidade. Cada
eleitor que cruza as suas ruas, às pressas, preocupado, a pé, em automóvel,
com uma simples blusa, enluvado, jovem, maduro, a qualquer hora está se
domesticando, está se envilecendo: procura uma recomendação, ou a leva
em sua algibeira.
Nas modernas burocracias, o funcionário cresce. Outrora, quando era
necessário delegar parte de suas funções, os monarcas elegiam homens de
mérito, experiência e fidelidade. Quasi todos pertenciam à casta feudal; os
grandes cargos os vinculavam à causa do senhor. Junto a ela, formavam-se
pequenas burocracias locais. Aumentando as instituições de governo, o
funcionalismo cresceu, chegando a formar uma classe, um ramo novo das
oligarquias dominantes. Para impedir que fosse altiva, regulamentaram-na,
roubando-lhe toda iniciativa e afogando-a na rotina.
Ao seu afã desmando se opôs uma submissão exagerada. A pequena
burocracia não varia: a grande, que é a sua chave, muda com a piara que
governa. Com o sistema parlamentar, ela se escravisou pela partida dupla:
do executivo e do legislativo. O jogo das influências bilaterais converge em
apoucar a dignidade dos funcionários.
O mérito fica excluído em absoluto: basta a influência. Com ela se
ascende por caminhos equívocos. A característica do sáfio é fulgar-se apto
para tudo, como se a boa intenção salvasse a incompetência.
Flaubert contou, em páginas eternas, a história dos medíocres que
ensaiam o insaciável: Buvard e Pécuchel. Não fazem bem coisa alguma,
mas a nada renunciam.
Povoam as mediocracias; são funcionários de qualquer função,
julgando-se órgãos valiosos para as mais contraditórias fisiologias.
O servilismo e a adulação são as conseqüências imediatas do
funcionalismo. Existem desde que houve poderosos e favoritos.
O primeiro se observa, sob cem formas, implícito na desigualdade
humana; onde houve homens diferentes, alguns foram dignos, e outros
domesticados.
O excessivo comedimento e a afetarão de agradar ao amo, engendram
essas carcomas do caráter.
Não são delitos em face das leis, nem vícios diante da moral de certas
épocas: são compatíveis com a "honestidade". Mas não com a "virtude".
Nunca.
A sensibilidade para os elogios é legítima em suas origens. Eles são
u’a medida indireta do mérito: fundam-se na estima, no reconhecimento,
na amizade, na simpatia ou no amor.
O elogio sincero e desinteressado não rebaixa a quem o outorga, nem
ofende a quem o recebe, mesmo quando é injusto; pode ser um erro, não
uma indignidade.
A adulação é semore uma indignidade: é desleal e interessada. O
desejo da privança induz a agradar aos poderosos; a conduta do adulador
tem isso por alvo, e o seu ânimo servil tudo sacrifica para obter tal coisa. A
sua inteligência somente se aguça para farejar o desejo do amo. Subordina
seus gestos aos de seu dono. pensando e sentindo como êle manda: sua
personalidade não estará abolida, mas pouco falta. Pertence à raca dos
"cobardes felizes", como Leconte de Lisle denominou.
A adulação é uma injustiça. Engana. O adulador é sempre desprezível,
mesmo quando procede por uma espécie de benevolência banal, ou pelo
desejo de agradar a qualquer preço.
Racine, na "Phedra", julgou-o um castigo divino:
Detestable flatteurs, prósent le plus funeste
Que piasse faire aux róis la colére celeste
Não se adulam somente os reis e os poderosos; adula-se também o
povo. Há miseráveis afãs de popularidade, mais degredantes do que o
servilismo. Para obter o lavor quantitativo das turbas, pode-se mentir,
praticando baixos elogios disiarçados em ideal: mais cobardes, porque se
dirigem as plebes que não sabem descobrir o embuste. Encomiar os
ignorantes, e merecer os seus aplausos, íalando-lhes incessantemente de
direitos, e jamais dos seus deveres, é a última renúncia da própria
dignidade.
Nos climas medíocres, enquanto as massas seguem os charlatães, os
governantes prestam ouvidos aos aduladores. Os vaidosos vivem
fascinados pela sereia que arrulha sem cessar, acariciando a sua sombra;
perdem lodo critério para julgar seus próprios atos, bem como os alheios; a
intriga os prende; a adulação dos servis os arrasta a cometer ignominias:
como essas mulheres que alardeiam a sua lormosura, e acabam por entrega-
la àqueles que a corrompem com elogios desmedidos.
O verdadeiro mérito sente-se desconcertado diante da adulação: tem
seu orgulho e o seu pudor, como a castidade. Os grandes homens dizem de
si, naturalmente, coisas elogiosas que, ditas por lábios alheios, os fariam
corar; as sombras gozam, ouvindo os louvores que temem não merecer.
As mediocracias fomentam esse vício de servos. Todo aquele que
pensa com a própria cabeça, ou tem um co-ração altivo, apartar-se do
tremedal onde os envilecidos prosperam.
"O homem excelente — escreveu La Bruyère — não pode adular;
julga que a sua presença importuna nas cortes, como se a sua virtude ou o
seu talento fossem uma exprobação aso que a governam".
E, do seu afastamento, os que empalidecem diante dos seus méritos,
aproveitam, como se existisse uma perfeita compensação entre a inaptidão
e a posição que ocupam, entre as domesticidades e as avançadas.
De tempos a tempos, algum dentre os melhores se ergue sobre todos,
e diz a verdade, como sabe e como pode, para que ela não seja extinta, nem
se subverta, transmitindo-a ao porvir. E a virtude cívica: o ignóbil é
qualiiicado com justeza; a força de velar os nomes, acabaria por perder-se,
nos espíritos, a noção das coisas indignas. Os tartufos, inimigos de toda luz
astral e de toda palavra sonora, persignam-se diante do herético que
devolve os nomes às coisas respectivas. Se dependesse deles, a sociedade se
transformaria em uma caverna de mudos, cujo silêncio não seria
interrompido por nenhum clamor veemente, e cuja sombra não seria
rasgada pelo resplendor de astro algum.
Todo idealista leu, com lírica emoção, as três histórias admiráveis que
Vigny contou em seu Stello imperecível. Ter um ideal é crime que as
mediocracias não perdoam. Morre Gilbert; morre Catterton; morre André
Chenier. Os três são assassinados pelos governos, com armas diferentes, de
acordo com o regime. O idealista é imolado nos impérios absolutos, da
mesma forma como acontece nas monarquias constitucionais e nas
repúblicas burguesas.
Quem vive para um ideal, não pode servir nenhuma mediocracia.
Nesta conspira tudo para que o pensador, o filósofo e o artista se desviem
do seu caminho; e ái deles, quando se apartam da sua rota; perdem-na para
sempre. Temem, por isso, a politiquice, sabendo que ela é o Walhalla dos
medíocres. Podem cair prisioneiros em sua rede.
Entretanto, quando reina outro clima, e o destino os leva ao poder,
governam contra os servís e os rotineiros; rompem a monotonia da
história. Seus inimigos bem o sabem: nunca um gênio foi enaltecido por
uma mediocra-cia. Chega contra ela, a-pesar-de tudo; e a desmantela,
quando se prepara um porvir.
IV — Os arquitetos da mediocracia
Os pro-homens da mediocracia estão equidistantes do bárbaro
legendário — Tibério ou Facundo — e do gênio transmutador — Marco
Aurélio ou Sarmiento.
O gênio cria instituições, e o bárbaro as viola. Os medíocres as
respeitam, impotentes para forjar ou destruir. Esquivos à glória e rebeldes à
infâmia, são reconhecíveis por uma circunstância inequívoca; seus
comparsas não ousam denominá-los gênios, por temor ao ridículo, e seus
adversários não os poderiam sentar em bancos de imbecis, sem flagrante
injustiça. São perfeitos em seu clima; esguelham-se na história, à mercê de
cem cumplicidades, conjugam, em sua pessoa, todos os atributos do
ambiente que os repuxa, mesclados por equívocas hierarquias militares, por
opacos títulos universitários, ou pela amidoada improvisação de
nobiliarquias adventícias e açacalam, no seu espírito, as rotinas e os
preconceitos que engelham as crenças da mediocridade dominante. Têm
sempre os passos curtos; sua marcha, em momento algum, pode ser
comparada ao vôo do condôr, nem à reputação de uma serpente.
Todas as piaras inflam algum exemplar predestinado a possíveis
enaltecimentos. Selecionam o prototipo acabado, entre os que
compartilham as suas paixões e as suas voracidades, os seus fanatismos ou
os seus vícios, as suas prudencias ou as suas hipocrisias. Não são privi légio
de tal casta ou de tal partido; sua leviandade sur preendente flutua sobre
todos os lamaçais políticos. Pensam com a cabeça de algum rebanho, são
irresponsáveis: ontem, de sua vacuidade; hoje, de sua proeminência,
amanhã, do seu ocaso. Brinquedos, sempre, de vontades aiheias. Entre êles,
as repúblicas elegem os seus presidentes, os tiranos procuram os seus
favoritos, os reis, os seus ministros, os parlamentares esc oinem seu
gabinete. Sob tooos os regimes: nas monarquias absolutas e nas republicas
oligárquicas. Sempre que uesce a temperatura espiritual de uma raça, de um
povo ou de uma classe, os obtusos e os senis encontram clima propício.
As mediocracias evitam os píncaros e os abismos. Intranqüilas sob o
sol meridiano, e timoratas durante a noite, procuram os seus arquétipos na
penumbra. Temem a originalidade e a juventude; adoram os que nunca
poderão voar, ou os que já têm as azas cobertas de moio.
Adveniícias mantilhas de medíocres, vinculados pelas correias de
apetites comuns, ousam chamar-se partidos. Formulam um credo, fingem
um ideal, arreiam fantasmas consulares, e recrutam uma hoste de lacaios,
isto basta, para disputar, a toda pessoa limpa, a presa das prebendas
governamentais.
Cada grei elabora a sua mentira, erigindo-a a dogma infalível. Os
tunantes somam os seus esforços, para enaltecer a hombridade do seu
fantasma: chama-se lirismo a sua inaptidão; decoro na sua vaidade;
ponderação a sua preguiça; prudência a sua pusilanimidade; fé o seu
fanatismo; equanimidade a sua impotência; distração aos seus vícios;
liberalidade a sua aragem; razão a seu emurchecer. A hora os favorece: as
sombras se alongam à medida que o crepúsculo avança. Em certo
momento, a ilusão cega muitos, calando toda dissidência voraz.
A irresponsabilidade coletiva apaga a quota individual do erro:
ninguém se enrubece, quando todas as faces podem reclamar a sua parte,
na soma de vergonha comum.
Dessas barafundas, emergem uns ou outros arquétipos, embora não
sejam sempre os menos imprestáveis.
Vivem durante anos à espreita; escudando-se em rancores políticos,
ou em prestígios mundanos, atirando-os como agraço aos olhos dos
inexpertos. Enquanto jazem em letargo, por irremessíveis inaptidões,
simulam-se proscritos por misteriosos méritos. Clamam contra os abusos
do poder, aspirando a cometê-los em benefício próprio. Nos maus tempos,
os facciosos continuam ludi-briando-se mutuamente, sem que a resignação
ao jejum diminua a magnitude dos seus apetites. Esperam pelo seu turno,
mansos, sob o torniquete.
Repetem a máxima de De Mestre:
"Savoir attendre est le grand moyen de parvenir".
A espectativa paciente converge para o enaltecimento dos menos
inquietantes. Raras vezes um homem superior os arrebanha com pulso
vigoroso, convertendo-os em comparsas a medrar à sua sombra; quando
lhes falta esse dominador absoluto, saem da órbita, como asteroides, de um
sistema planetário cujo sol se extingue. Todos confabulam, então, em
tácitas transações, prestando o seu ombro, aos que podem aguentar mais
elogios, em equivalência de méritos ambíguos. O grupo os infla com
solidariedade de igrejola; cada cúmplice se converte em um fio da teia de
aranha lançada para captar o governo.
Compreende-se a arrevezada seleção das facções oligárquicas, e o
pomposo desvanecimento do medíocre que elas consagram. Seus
encomiastas, empenhados em purificá-lo de toda mancha pecaminosa,
tentam obstruir a verdade, chamando romantismo à sua reiterada
incompetência para todos os empreendimentos. Outros denominam
orgulho à sua vaidade, e idealismo, à sua acídia; mas o tempo dissipa o
equívoco, devolvendo o seu nome a esses dois vícios arracimados em um
mesmo tronco: o orgulho é compatível com o idealismo, mas o primeiro é
a antítese da vaidade e o segundo é a antítese da acídia.
Repuchados os pro-homens de folha, seus cúmplices acabam de
azougá-los como demulcente emplastros. Suas cicatrizes chegam a
parecer coquetterie, como as rugas das cortezas. Guiando-os à categoria de
árbitros da ordem e da virtude, declaram proscritas as suas velhas pústulas:
incondicionalismos para com os regimes mais turvos, paixões fraudulentas
de jogador, ridículos infortúnios de "donjuanismo" epigramático.
Os lábios dos aduladores se embeberam naquela água do Lethes, que
apaga a memória do passado; não advertem que, depois de patinhar uma
vida inteira no vício, todo puritanismo cheira a benzina, como as luvas que
passam pelo tintureiro.
Onde medram oligarquias, sob disfarces democráticos, prosperam
esses pavões reais empolados, tesos pela vaidade: um garoto travesso os
esvaziaria, se os picasse, ao passar, descubrindo o nada absoluto que re-
touça em seu interior. Vácuo não significa alígero.
A tolice nunca foi esquadria de santidade. Sem sangue de hienas, que
é necessário aos tiranos, também não o têm de águia, próprio dos
iluminados; corre, em suas veias, uma linfa doudejante, peculiar da estirpe
de pavões, requintada na dos reais, ave simbólica, que reúne, candidamente,
a tolice e a fatuidade. São termômetros morais de certas épocas: quando a
mediocracia incuba frangos, os filhotes de águia não têm atmosfera
propícia.
A resignada passividade explica certos enaltecimen tos: o porvir de
alguns arquetipos se estriba em serem eles admirados contra outros.
Fogem, para se fazer grandes. Com muitos lustros de andar em confusão,
não cancelam as suas culpas; à sua passagem, descobrem-se uma inveterada
pusilanimidade que não quer escaramuças com inimigos que os
humilharam até sangrar.
Não pode haver virtude sem galhardia; não a demonstra quem se
esquiva, com trêmulos afastamentos, à batalah por tantos anos, oferecida à
sua dignidade. Esse descoroçoamento não é, por certo, o clássico valor
gaúcho dos coronéis americanos; nem se parece ao gesto do leão,
encolhido para dar maior impulso ao salto. Eles vagabundeiam com o
"dom de espera do batráquio otimista" de que fala Ramos Mejia.
O homem digno pode emudecer-se, quando recebe uma ferida,
temendo, porventura, que o seu desdém exceda a ofensa: mas a sua
sentença chega com estilo nunca usado para adular nem para pedir, mais
ferino do que cem espadas. Cada verbo é uma flexa cujo alcance está na
potência de elasticidade do arco; a tensão moral da dignidade. E o tempo
não apaga uma sílaba daquilo que assim se diz.
Os arquetipos soem interromper seus humilhados silêncios com
inócuas pirotécnicas verbais; de longe em longe, os cúmplices apregoam
alguma elocubração misteriosa, bulbuciada ou não, diante de assembléias
que, certamente, não a ouviram. Eles não atinam em sustentar a reputação
com que os exornam: desertam do parlamento no mesmo dia em que são
eleitos, como se temessem ser descobertos, comprometendo os
empresários da sua fama.
Completa-se a inflação destes aeróstatos, confiando-lhes subalternas
diplomacias de festival, em cuja apara-tosidade suntuosa pavoneiam as suas
ocas vaidades. Seus cúmplices advinham neles algum talento diplomático
ou perspicacias internacionalistas, até complicá-los em lustrosas conezias,
onde se apagam em tíbias penumbras junto ao resplendor dos seus
colaboradores mais contíguos.
Nunca desalentadas, as oligarquias continuam mimando esses
produtos espúrios, com a esperança de que acertarão um golpe no cravo,
depois de dar cem na ferradura. Ungidos emissários junto a uma nação
irmã, a sua casuística de sacristia envenena profundos afetos, como se, por
parte de encantamento, germinassem cizânias inextinguíveis nos corações
dos povos.
Arquivistas e papelistas se confabulam para ocultar o fervor dos
ingênuos e captar a confiança dos rotineiros. Plutarquinhos, gozando de
boa renda, transformam em mel o seu áloe, requintado em elogios os seus
vinagres mais crônicos, como si hipotecassem o seu engenho, descontando
prebendas futuras. Enchem, com inúteis artigos encomiásticos, a vacuidade
do tolo, sem pensar na insuficiência da tramóia. O pavão não parece águia,
como a mula não parece corcel; são reconhecidos ao passar, quando
mostram a sua crista erétil, ou quando fazem ouvir o estalar da sua
ferradura.
Sua gravitação negativa seduz os caracteres domesticados: não
pensam, não roubam, não oprimem, não sonham, não assassinam, não
faltam à missa — que mais?
Quando as facções forjam o Fénix, enaltecem-n’o, como um símbolo
perfeito. Possuem cosmético para as suas fisionomias enrugadas: a
grandíloqua rancidez dos programas, em cujo fim buscaríamos,
imediatamente, a firma de Bertholdo, se os vastos delíquios não
traduzissem as prudentes reticências de Tartufo. É preferível que estejam
coalhadas de vulgaridades e escritos em péssimo estilo; agradam mais à
clientela. Um programa abstrato é perfeito: parece idealista e não lastima as
idéias que cada cúmplice julga possuir. De cada cem, noventa e nove
mentem da mesma forma: a grandeza do país, os sagrados princípios
democráticos, os interesses do
povo, os direitos do cidadão, a moralidade administrativa. Tudo isto,
se não é falta de vergonha consuetudinária, é de uma tolice enternecedora;
simula dizer muito e não significa coisa alguma. O medo das idéias
concretas oculta-se sob o antiface das vaguezas cívicas.
Não se envergonham de escalar o poder, indo escarranchados sobre
ignomínias. Obtemperam a toda vilania, para oue convenham com o seu
objetivo: quando falam de civismo, o seu alento empresta o pântano
originário. Sua moral encobre o vício, pelo simples fato de desfrutar.
Impelidos por caminhos tortuosos, continuam semeando nos mesmos
sulcos. Para anroveitar os indignos, tiveram que se humilhar diante deles,
mansamente; as honrarias que não são conquistadas, são pagas com
rebaixamentos.
"Não pode ser virtuoso aquele que foi engendrado em um ventre
impuro" — dizem as Escrituras; os que sobem fechando os olhos e
emaranhando-se em artimanhas de estercorários, sofrendo as apalpadelas
dos grosseiros, mentindo a si próprios, para fartar os apetites de toda uma
vida, não podem redimir-se do pecado original, muito embora, como
Faustos insubordinados, pretendam escapar ao malefício dos seus
Mefistófoles.
O povo ignora-os: está separado deles pelo zelo das facções. Para se
prevenirem contra os achaques indiscretos, retiram-se da circulação: como
se. de perto, não resistissem à revista dos curiosos. Mantêm-se alheios a
todos os estremecimentos de raça. Em certas horas, as turba podem ser
seus cúmplices: o povo nunca. Não o consente, porque não existe,
substituído por certos que medram.
Depositários da alma das nações, os Povos são entidades espirituais
inconfundíveis com os partidos. Não basta ser multidão, para ser povo;
não o seria a unanimidade dos servis.
O povo encarna a própria consciência dos destinos futuros de uma
nação ou de uma raça. Aparece nos países que um ideal converte em
nações, e reside na convergencia moral daqueles que sentem a pátria mais
alta do que as oligarquias e do que as seitas. O povo — antítese de todos os
partidos — não se conta por números. Está onde um só homem não se
complica no acanalhamento comum: em face das hostes domesticadas ou
fanáticas, esse único homem livre, êle só, é tudo: Povo, Nação, Raça e
Humanidade.
Os arouetipos da mediocracia passam pela história com a pomna
superficial de fugitivas sombras chinesas. Jamais chega aos seus ouvidos
um insulto, ou um louvor; nunca se lhes diz "heróis" ou "tiranos"; na
fantasia ponular, despertam um éco uniforme, oue em todas as partes se
repete: "o pavão!", numa síntese mais definitiva do aue uma lápide. O seu
trinomio psicológico é simples: vaidade, impotência e favoritismo.
Vivem de exclamações exageradas que só dizem respeitado às formas.
A austera sobriedade do gesto é atributo dos homens: a suntuosidade das
aparências é galardão das sombras. Depois de incubar suas ânsias, trêmulos
de humildade diante dos seus cúmplices, enublam-se com fumaeas,
empavezam-se com fatuidades; esquecem que, orgulhar-se de uma posição,
é confessar-se inferior a ela. Acumulam rumores artifícios, para alucinar as
imaginações domesticadas; rodeiam-se de lacaios, adotam pleonásticas
nomeclaturas, centuplicam os expedientes, pavoneiam-se em trens
luxuosos, navegam em complicados bucentauros, sonham com recepções
além dos oceanos. Oferecem os dois flancos à ironia risonha dos burlões,
pondo, em tudo, certa magnificência da segunda mão, que recorda as
cortes e os senhorios de opereta. A sua ênfase melodramática estaria bem
em personagens de Victor Hugo, e faria cócegas ao egoísmo voltariano de
Stendhal.
No seu "adonismo" contemplativo, não cabe a ambição, que é um
enérgico esforço, no sentido de acrescentar, em obras, os próprios méritos.
O ambicioso quer subir, até onde as suas próprias azas o podem levantar; o
vaidoso julga encontrar-se já nas alturas supremas cubicadas pelos outros.
A ambição é bela entre todas as paixões, enquanto a vaidade não a
envilece; por isso, é respeitável nos gênios, e ridícula nos tolos.
Embandeiram-se com permanentes grandiloqüências. Suspeitam que
existem ideais, e se fingem seus sustentáculos: incorrem sempre nos que
estão mais em conformidade com a moral de sua mediocracia. Suspeitam a
verdade, às vezes, porque ela entra em todas as partes, sendo mais sutil do
que a adulação: mas a mutilam, atenuam-na, corrompem-na. com
acomodações, com muletas, com remendos que a disfarçam.
Em certos casos, a verdade pode mais do que eles; vem, a-pesar-dêles,
à luz, e é o seu castigo. Paramen-tam-se de boas intenções, quando menos
forças vão tendo para convertê-las em atos; a tolice inata se revela em seus
palavreados puritanos. Torna-se cômica a sua inaptidão em seu disfarce de
idealismo: são labéus, os vagos princípios que aplicam, ao compasso de
conveniências oportunistas. O tempo descobre os que têm a moral
empeça, para a mostrar: embora do seu pano jamais condigam cortar um
traje para cobrir a sua mediocridade .
São tributários do sétimo pecado capital: na sua impotência, há
preguiça. Renunciam à autoridade, e conservam a pompa; aquela poderia
brunir o mérito, esta adorna a vaidade. Gostam de folgar; desistem de fazer
o muito pouco que poderiam; evitam todo o labor firme; apartam-se de
qualquer combate, declarando-se espectadores. Podem praticar o mal por
inércia, e bem por equívoco; entregam-se aos acontecimentos, por
incapacidade de orientá-los.
"Les paresseux — dizia Voltaire — ne sont jamais que degents medíocres, en
quelque genre que ce soit".
Por detestáveis que sejam os governantes, nunca são piores do que
quando não governam. O mal que os tiranos fazem, é um inimigo visível; a
inércia dos poltrões, ao contrário, implica um misterioso abandono da
função pelo órgão, a acefalia a morte da autoridade, por uma caquexia
inecessível aos remédios.
Grande inconsciência é governar povos, quando a enfermidade ou a
velhice privam o homem, do governo de si mesmo.
A falta de inspirações intrínsecas torna-os sensíveis à coarão dos
conspiradores, às pressões dos partidários, às intimidações dos
gazetilheiros, às influências das sacristias. Sua conduta revela a sua
debilidade, em face de quantos os assaltam: e não basta, para dissimular tal
fraoueza. o seu aparatoso investir contra moinhos de vento. Quando
chegam ao poder, renunciam-no de fato, convencidos de sua impotência
para usá-lo, entregam-se ao curso da corrente, como os nadadores
insipientes. Ginetes de potros cujo voltear ignoram, fecham os olhos, e
abandonam as rédeas: essa inaptidão para ararrá-las com suas mãos
inexpertas, denominam-na "submissão à democracia".
O favoritismo é uma escravidão em face de cem interesses que os
acossam: ignoram o sentimento da justiça e o respeito ao mérito. O
verdadeiro justo resiste à tentarão de o não ser, quando disso lhe advém
benefícios; o medíocre cede sempre. Professa uma abstrata eqüidade nos
casos que não ferem a validez dos seus cúmplices; mas se complica, de
fato, em todas as suas frioleiras.
Nunca, absolutamente, pode haver justiça em preferir o lacaio ao
digno, o oblíquo ao reto, o ignorante ao estudioso, o intrigante ao
gentilhomem, o medroso ao valente. É essa a corruptela moral das
mediocracias: antepor o valimento ao mérito.
No favoritismo, empantanam-se os que pisam firme, e avarvam os
que se arrastam brandamente: como nos tremedais. Quando o mérito
enrosta os erros dos arqué tipos, estes respondem humildemente que não
são infalíveis: mas a sua vileza está em sublinhar a desculpa com
oferecimentos tentadores, acostumados, como estão, a negociar com a
honra.
Não pode ser juiz aquele que confunde o diamante com a bazófia:
quando se aceita a responsabilidade de governar, "eqnivocar-se é culpa",
como sentenciou Epí-teto. Nas mediocracias, ignora-se que a dignidade
nunca chega de joelhos aos estrados dos que mandam.
Repetem, com freqüência, o legendário juízo de Mi das. Pã ousou
comparar a sua flauta de sete carriços com a lira de Apôlo. Propôs uma justa
ao deus da harmonia, sendo árbitro o velho rei frígio. Ressoaram os
acordes rústicos de Pã e Apôlo cantou ao compasso das suas melopéias
divinas. Todos se decidiram porque a Flauta era incomparável à lira, todos,
unanimemente, menos o rei, que reclamou a vitória para Pã. Imediata-
mente cresceram sob os seus cabelos, duas milagrosas orelhas. Apôlo ficou
vingado, e Pã se refugiu na som bra. O juíz. confuso, quis ocultar as
orelhas debaixo da sua coroa. Um camareiro as descobriu; correu a um
vale longínquo, cavou um poço, e contou ali o seu segredo. Mas a verdade
não se enterra: floresceram rosais que, agitados pelas brisas, repetem
eternamente que Midas teve orelhas de asno.
A história castiga com tanta severidade, como a lenda: uma página de
crônica dura mais do que um roseiral. Ninguém pergunta se os
crucificadores de Cristo, os queimadores de Brunos e os burladores de
Colombo foram velhacos ou amolecidos. A sua condenação é a mesma, e
irrevogável. A justiça é o respeito ao mérito.
Um Marco Aurélio sabe que, em cada geração, há dez ou vinte
espíritos privilegiados, e seu gênio consiste em estimulá-los, a todos: um
Panza os exclue da sua ínsula, fazendo uso somente daqueles que se
domesticam, isto é, dos piores como caráter e como moralidade.
São sempre injustos aqueles que escutam o servil, sem interrogar o
digno. Os que merecem justiça, nunca pedem favor. Nem o aceitam.
Acham natural o fato de os parvos darem preferência aos seus iguais; é
exato que a "torpeza do burguês, mortificado pela soberba natural da
superioridade, procura consagrar o seu igual, cujo acesso lhe é fácil, e em
cuja psicologia encontra meios de ser satisfeito e compreendido".
Sempre chega a hora em que as injustiças dos governantes se pagam
com formidáveis juros compostos, irremessivelmente. Feitas a um só,
ameaçam a todos os melhores; deixá-las impunes, significa ser cúmplice;
cedo ou tarde, saldam-se os seus trava-contas, embora seus erros não se
liquidem nunca. Os arquétipos de medio-cracias aprendem em carne
própria, que, por um cravo, perde-se uma ferradura.
Como fez a Midas o divino Apôlo, os dignos castigam os sem
vergonha, com a perenidade da sua palavra; podem errar, porque é
humano; mas, se dizem verdade, ela permanece no tempo. Essa é a sua
espada; raras vezes a desembainham, pois se gasta logo uma arma que se
seca com freqüência: quando o fazem, vai direta ao coração, como a do
romance famoso.
E o rancor dos lacaios evidencia a segurança da ponta que toca o
amo.
Para serem completos, são sensíveis a todos os fanatismos. A maioria
reza com os mesmos lábios que usa para mentir, como Tartufo; inseguros
de suportar, na terra, a sanção dos dignos, os medíocres desejariam
postergá-la para o céu.
Se estivesse em seu poder, cortariam a língua dos sofistas e as mãos
dos escritores; fechariam as bibliotecas, para que nelas, não conspirassem
engenhos originais Preferem a adulação do ignorante, ao concelho do
sábio. Submetem-se a todos os dogmas. Se são coronéis, usam
escapulários, ao invés de espada; se são políticos, consultam a Austúcia,
para interpretar as Cartas Magnas das nações.
Sob o seu império, a hipocrisia — mais funesta do que a própria falta
de vergonha — torna-se sistema. Nesse combate incessante, renovado em
tantos dramas ibsenianos, os amorfos se convertem em colunas da
sociedade, e o que despe uma sombra, parece um sedicioso, inimigo do
povo. Todos os avisados golpeiam o próprio peito para medrar. As hostes
de sacristia crescem e crescem, absorvendo, minando, fartando-se com as
herpes morais que se entumescem em silêncio, até murchar
ignominiosamente a fisionomia de toda uma época.
As mediocracias negam aos seus arquétipos o direi to de eleger a sua
oportunidade. Amarram-no ao governo, quando o seu organismo vacila, e
o seu cérebro se apaga: querem o inútil ou o obtuso. Homens repudiados
na juventude, são consagrados na velhice; nessa idade, em que as boas
intenções são um cansaço dos maus costumes.Elegem os que se
habituaram a ser escravos do seu ventre, comendo até fartar-se, e bebendo
até se atur dir, devastando a sua saúde em noites brancas, rebaixando a sua
dignidade na insolvência dos tapetes verdes, tornando-se impróprios para
todo esforço continuado e fecundo, preparando essas decrepittides em que
os rins se fossilizam, o fígado se açucara. Essa é a melhor garantía para o
rebanho rotineiro; seu ódio à originalidade o impele na direção dos homens
que começam a se mumificar em vida.
Enquanto a velhice vai apagando os últimos rasgos pessoais dos
arquetipos, seus cúmplices confabulam para ocultar o seu progressivo
amolecimento, eximindo-se de toda tarefa, e lhes ministrando ingênuas
ficções. Pouco a pouco, a carcassa foge de suas residências naturais e se
isola: evita as ocasiões de se mostrar em plena luz, exibindo-se em reduzido
número de mostradores, onde os pavões reais podem ostentar, de longe, os
cem olhos da Argus postos em sua cauda. Incertos até para pensar,
necessitam, mais do que nunca e do que ninguém, dos elogios dos
incensadores: a adulação acaba cobrindo-os de lubrificantes. As apologias
recrudescem, à medida que eles vão desaparecendo, com o cérebro minado
por vergonhosas enfermidades contraídas no trato de lupanar com as
cortezas.
O crepúsculo sobrevem, implacável, a fogo lento, gota a gota, como
se o destino quisesse desnudar a sua vacuidade: peca por peça, mostrando-
a aos outros empeçados, aos que poderiam duvidar, se morressem de
repente, sem essa pausada descoloração.
São sombras ao serviço de suas hostes contíguas. Embora não vivam
para si próprias, têm de viver para elas, mostrando-se de longe, para
garantir que existem, e evitando até o sôpro do ar, que poderia dobrá-los,
como a folha de um catálogo abandonado às intempéries.
Mesmo que desfaleçam, não podem abandonar a carga: inutilmente o
remorso repetirá aos seus ouvidos as clássicas palavras de Propércio:
"É vergonhoso carregar alguém a cabeça com um fardo que não pode levar: cedo se
dobram os joelhos. esquivos ao peso". (III, IX, 5).
Os arquétipos sentem a sua escravidão: mas devem morrer nela,
custodiados pelos cúmplices que alimentaram a sua vaidade.
As casas de governo podem ser um féretro; as facções sabem disto, e
disputam seus "vices", que ficam à espreita. Seus nomes ficam enumerados
nas cronologias; desaparecem da história. Seus descendentes e beneficiá
rios se esforçam em vão, para dilatar a sua sombra e dela viver.
Basta que um homem livre os denuncie, para que a posteridade os
amortalhe; sobra uma so palavra — se é virtuosa, estóica, incorruptível,
decidisa a sacrificar-se sem olhar para trás, contanto que seja leal á sua digni
dade — sobra uma só palavra para apagar as adulações dos palacianos,
inutilmente acendradas na hora fúnebre. Alguns fartos comensais, não
podendo lazer referências ao que foram, atrevem-se a elogiar o que
poderiam ter sido… julgam que morre uma esperança, como se esta fosse
possível em organismos minados pelas carcomas da juventude e pelos
açucaramentos da velhice.
É natural que morra, com cada um deles, a sua piara: seguem-se
muitas em cada éra de penumbra. A me-diocracia as tira, como velhos
naipes cujas cartas já estão marcadas pelos estafadores, passando a cortar
com outros novos, nem melhores, nem piores.
Os dignos alheios às práticas cujas ciladas ignoram, apartam-se de
todas as camarilhas que medram à sombra da pátria; cultivam os seus
ideais, e deles acendem uma faísca como podem, esperando outro clima
moral e preparando-o. E não mancham os seus lábios, proferindo o nome
dos arquétipos: seria, porventura, imortalizá-los.
V — A aristocracia do mérito
O progressivo advento da democracia, permitindo a igualdade das
maiores, dificultou o enaltecimento dos melhores?
É indiferente tratar-se de monarquias ou de repúblicas; o século XIX
começou a unificar a essência dos regimes políticos, nivelando todos os
sistemas, aburgue sando-os.
Um pensador eminente glosou esta verdade: a me diocracia não tolera
as exceções ilustres. Se o gênio é um soliloquio magnífico, uma voz da
natureza, em que fala toda uma nação ou uma raça, pergunta-se: não é um
privilégio excessivo esse que permite que um en rouqueça a voz, em nome
de todos?
A democracia renega tais soberanos que se enaltecem sem plebiscitos,
e não aduzem direitos divinos. O que antes foi verbo, no gênio, torna-se
agora palavra, e é distribuída entre todos que, juntos, julgam raciocinar
melhor do que um só.
A civilização parece concorrer para esse lento e
progressivo desterro do homem extraordinário, exaltando e iluminando as
medianias. Quando a maioria não sabia pensar, era justo que um o fizesse
por todos: faculdades expostas a perigosos excessos. Mas o homem
providencial vai se tornando dispensável, à medida que a maioria pensa e
quer.
"Em tanta difusão da soberania, que necessidade há de grandes epopéias, pensadas,
realizadas ou escritas?"
Esta parece, transitoriamente, a fórmula do nivelamento, e poderia ser
traduzida assim; à medida que se difunde o regime democrático, restringe-
se a função dos homens superiores.
Seria verdade inconcussa, se o vir-a ser igualitário fôsse uma
orientação natural da história, e se, no casode o ser, se efetuasse com ritmo
permanente, sem tropeços. E não é assim. Nunca o foi; nem o será, ao que
parece.
A natureza se opõe a toda nivelação, vendo, na igualdade, a morte. As
sociedades humanas, para o seu progresso moral e estrutural, necessitam
do gênio mais do que do imbecil, e do talento mais do que da mediocracia.
A história não confirma a presunção igualitária; não suprime
Leonardo para endeusar Panza, nem esmaga Bertholdo para adorar
Goethe. Uns e outros têm a sua razão de viver, e um não prospera no
clima do outro.
O gênio, em sua oportunidade, é tão insubstituível como o medíocre
na sua; mil, cem medíocres não fariam, então, o que faz um gênio.
Cooperam em sua obra os idealistas que os precedem ou que os seguem;
nunca os conservadores, que são os seus inimigos naturais, nem as massas
rotineiras, que podem ser o seu instrumento, mas não o seu guia.
É irônico repetir que os Estados nunca necessitam do governante
genial. O culto do governante de pacotilha, mas honesto, é próprio de
mercadores que temem o ruim, sem conceber o superior.
Por que haveria a história de renegar o gênio, o santo e o herói?
Nas horas solenes, os povos tudo esperam dos grandes homens; nas
horas decadentes, bastam os vulgares.
Há um clima que exclue o gênio e busca o fátuo: na chatice
crepuscular enquanto as academias se povoam de míopes e de
funcionários, os charlatães ou os aproveitadores governam o Estado. Mas
há outro clima em que estes não servem; então, apinha-se de astros o hori
zonte. Na borrasca, um Sarmiento toma o leme, e diri ge um povo a
caminho do Ideal; na aurora, olha, e vê
longe Ameghino, descobrindo fragmentos de alguma Verdade em
formação. E tudo varia em seus domínios; forma-se, ao seu redor, como o
halo em torno dos astros, uma atmosfera particular onde a sua palavra
ressoa e â sua chispa ilumina: é o clima do gênio. E um só pensa, e
procede; marca um evo.
Ao que diz "igualdade ou morte", a natureza replica: "a igualdade é a
morte".
Aquele dilema é absurdo. Se fosse possível uma constante nivelação,
se tivesse sucumbido, alguma vez, todos os indivíduos diferenciados ou
originais, a humani* dade não existiria. Não teria podido existir, como
termo culminante da série biológica. A nossa espécie saiu das precedentes,
como resultado da seleção natural; a evolução só se verifica, onde é
possível selecionar as variações dos indivíduos. Igualar todos os
antropóides, seria negar a humanidade; igualar todos os homens, seria
negar o progresso da espécie humana. Seria negar a própria civilização.
Fica o fato atual e contingente: o advento progressivo do regime
democrático nas monarquias e nas repúblicas, favoreceu a sua decadência
política durante o último século?
Praticamente a democracia tem sido uma ficção, até agora. É a
mentira de alguns que pretendem representar todos. Embora nela
acreditaram, por momentos Lamartine, Heine e Hugo — e ninguém é mais
infiel do que os poetas idealistas ao verbo da equivalência universal — os
outros lhe são abertamente hostis. A posição do problema é outra. É
simples.
Até agora, não existiu uma democracia efetiva. Os regimes que
adotaram tal nome foram ficções. As pretendidas democracias de todera os
tempos não foram senão confabulações de profissionais, para tirar proveito
das massas e excluir os homens eminentes. Foram sempre
mediocracias. A premissa da sua mentira foiexistência de um "povo" capaz
de assumir a soberania do Estado. Não há tal: as massas de pobres e
ignorantes não tiveram, até hoje, aptidão para se governarem: mudaram
apenas de pastores.
Os maiores teóricos do ideal democrático foram, de fato,
individualistas e partidários da seleção natural:perseguiram a aristocracia do
mérito, contra os privilé gios das castas.
A igualdade é um equívoco ou um paradoxo, conforme os casos. A
democracia foi uma miragem, como todas as abstrações que povoam a
fantasia dos iludidos ou formam o capital dos mendazes. O povo sempre
esteve ausente dela.
As castas aristocráticas não são melhores; nelas há, também, crises de
mediocridade, se tornam mediocracias. Os democratas querem a justiça
para todos e se enganam buscando-a na igualdade; os aristocratas querem o
privilégio para os melhores e o acabam reservando aos mais ineptos.
Aqueles apagam o mérito na nive-lução; estes o burlam, atribuindo-no a
uma classe. Uns e outros são, de fato, inimigos de toda seleção natural.
Tanto faz que o povo seja domesticado por grupos de nobres com brazão
ou de adventícios: em ambas, estão igualmente proscritos a dignidade e os
ideais. Assim como as assim-chamadas democracias não o são, as
pretendidas aristocracias não o podem ser. O mérito estorva, tanto nas
cortes como nas tabernas.
Toda a aristocracia é seleta em sua origem, costuma sê-lo; é
respeitável aquele que inicia, com o seu merito, uma nobiliarquia ou
avoengos. É evidente a desigualdade humana em cada tempo e lugar;
sempre há homens e sombras.
Os homens que guiam as sombras são as aristocracia natural do seu
tempo, e o seu direito é indiscutível. É justo, porque é natural. Ao
contrário, é ridículo o conceito das aristocracias tradicionais: concebem a
sociedade como fruto reservado a uma casta que usufrue os seus
benefícios, sem ser composta pelos melhores homens do seu tempo.
Por que é que os parentes familiares e lacaios dos que foram outrora
os mais aptos, devem continuar a participar de um poder que não
contribuíram para criar? Em nome da herança?
Se as aptidões se herdam, esse privilégio lhes é inútil, e poderiam
renunciá-lo; se não as herdam, é injusto e devem perdê-lo. Convém que o
percam. Toda nobreza hereditária é a antítese de uma aristocracia natural;
com o correr do tempo, torna-se o seu obstáculo mais vigoroso.
O direito divino, que uns invocam, é mentira; é a mesma coisa que os
direitos do homem, invocados por outros. Aristarcos e demagogos são
igualmente medíocres, e impedem a seleção das aptidões superiores,
nivelando toda originalidade, coibindo todo ideal.
Poder-se-ia fazer uma concessão. Os países sem castas aristocráticas
são mais propícios à mediocrização; neles se constituem oligarquias de
adventícios, que têm todos os defeitos e as presunções da nobreza, sem
possuir suas qualidades. Na sua improvização, falta-lhes a mentalidade do
grão-senhor, composta de atributos que se apoiam numa cultura de
séculos: há, sem dúvida, gente de qualidade que têm classe, como os
cavalos de corridas. São mais esquivos ao rebaixamento. Nos seus
preconceitos, a dignidade pode ter mais parte, do que nos do adventício. É
uma diferença que os preserva de muitos envilecimentos.
Ê preferível obedecer as castas que têm a rotina de mando, ou a
pandilhas minadas por hábitos de servilismo?
O privilégio tradicional do sangue irrita os democráticos, e o
privilégio numérico do voto repugna aos aristocratas. O berço dourado não
dá aptidões; mas, também, não as dá a urna eleitoral. A pior maneira de
combater a mentira democrática, seria aceitar a mentira aristocrática; nos
dois casos, trata-se de idêntica inaptidão, com diferentes rótulos. As massas
inferiores — que poderiam ser o "povo e os homens excelentes de cada
sociedade — que são a "aristocracia natural" — soem permanecer alheios à
sua estratégia.
Entre os democratas inbuídos de igualdades, cabem audazes lacaios
que pretendem suplantar os seus amos, corn o auxílio das turbas
fanatizadas; entre os aristocratas, pela tradição, cabem os vaidosos que
desejam reduzir os seus servidores, com o auxílio dos homens de mérito. A
história sempre se repete: as massas e os idealistas são vítimas
propiciatórias nessas disputas entre senhores feudais e burgueses de
sobrecasaca.
A degenerescência mediocrática, que Faguet caracterizou como um
"culto da incompetência", não depende do regime político, senão do clima
moral das épocas decadentes. Cura-se quando desaparecem as suas causas;
nunca por meio de reformas legislativas, que é absurdo esperar dos
próprios beneficiários. Em vão são ensaiadas pelos tolos, ou simuladas
pelos chalatães: as leis não criam um clima. O direito efetivo é uma
resultante concreta da moral.
O protesto apaixonado dos idealistas pode ser um grito de alarma
lançado na sombra; mas o sonho de enaltecer uma democracia, é ilusório,
nas épocas de domesticação moral e de sociedade. As facções preferem
ouvir o falso idealismo dos seus feitiços envelhecidos, como se, em velhos
ôdres, fosse possível conter vinho novo.
É preciso esperar tempos melhores, sem pessimis-mos excessivos,
com a certeza de que a reação chega inevitavelmente, a uma certa hora: os
homens superiores a esperam, custodiando a sua dignidade trabalhando
para o seu ideal. Quando a mediocridade exgota os últimos recursos da sua
incompetência, naufraga. A catástrofe devolve a sua posição ao mérito e
reclama a intervenção do gênio.
O próprio acanalhamento mediocrático contribue para restaurar, de
tempos em tempos, as forças vitais de cada civilização. Há uma vis
medicatrix nature que corrige a velhacaria das nações: a formação
intermitente de sucessivas aristocracias do mérito.
O privilégio desaparece, e a direção moral da sociedade volve às mãos
dos melhores. Respeita-se a sua legitimidade, enaltecem-se essas raras
qualidades individuais que implicam a orientação original no sentido de
ideais novos e fecundos.
Toda renascença se anuncia pelo respeito das diferenças, pelo seu
culto. A mediocracia cala, impotente; a sua hostilidade toma-se fraca,
embora inúmera. Se tivesse voz, rebaixaria o próprio mérito, outorgando-o
sem discernimento. A maioria não sabe distinguir o que é útil a todos;
nunca o rotineiro foi juiz do idealista; nem o ignorante do sábio; nem o
honesto do virtuoso; nem o servil do digno. Toda excelência encontra o
seu juiz em si mesma. O mérito de cada um é aquilatado na opinião dos
seus iguais.
Há aristocracia natural, quando o esforço dos cérebros mais aptos
converge na direção dos destinos comuns da nação. Não é prerrogativa dos
engenhos mais mais agudos, como quereriam alguns, em cujo ouvido
ressoa, como um éco, essa "aristocracia intelectual" que foi a quimera de
Renan. Na aristocracia do mérito, iguais direitos têm a virtude e o caráter,
como a inteligência: de outra forma, seria incompleta, e o seu esforço,
ineficaz.
Um regime onde o mérito individual fosse estimado sobre todas as
coisas, seria perfeito. Excluiria qualquer influência numérica ou oligárquica.
Não haveria interesses criados. O voto anônimo teria valor tão exíguo,
como o brazão fortuito. Os homens se esforçariam por ser cada vez mais
desiguais entre si. preferindo oualquer originalidade criadora à mais
tradicional das rotinas.
Seria possível a seleção natural e os méritos de cada um seriam
aproveitados pela sociedade inteira. O agradecimento dos menos úteis
estimularia os favorecidos pela natureza. As sombras respeitariam os
homens. O privilégio se mediria pela eficácia das aptidões e se perderia
com elas.
É transparente pois, o credo que, em política, o idealismo fundado na
experiência poderia sugerir-nos.
Opõe-se à democracia quantitativa, que busca a justiça na igualdade:
afirmando o previlégio em favor do mérito.
E à aristocracia oligárquica, que apoia os seus privilégios nos
interesses criados, também se opõe: afirmando o mérito como base natural
do previlégio.
A aristocracia do mérito é o regime ideal, em face das duas
mediocracias que ensombram a história. Tem a sua fórmula absoluta: "a
justiça na desigualdade".
Capítulo VIII – OS FORJADORES DE
IDEAIS
I — O clima do gênio
A desigualdade é força e essência de toda seleção. Não existem dois
lírios iguais, nem duas águias, nem dois lagartos, nem dois homens: tudo o
que vive, é incessantemente desigual. Em toda primavera, algumas árvores
florescem antes de outras, como se fossem preferidas pela Natureza, que
sorri ao sol fecundante; em certas etapas da história humana, quando se
plasma um povo, se cria um estilo ou se formula uma doutrina, alguns
homens excepcionais antecipam sua visão à dos outros; concretizam-se
num Ideal, e a expressam de tal maneira, que perdura através dos séculos.
Arautos, a humanidade os escuta; profeta, acredita neles; capitães, segue-os;
santos, imita-os. Enchem uma era, ou assinalam uma rota: semeando algum
germe fecundo de novas verdades, pondo a sua assinatura em destinos de
raças, criando harmonias, forjando belezas…
A genialidade é uma coincidência. Surge como chispa luminosa no
ponto onde se encontram as mais excelentes aptidões de um homem, e a
necessidade social de aplicá-las no desempenho de uma missão
transcendente. O homem extraordinário só ascende à genialidade se
encontra clima propócio: a melhor somente necessita da terra mais
fecunda. A função reclama o órgão: o gênio torna atual o que, no seu clima,
é potencial.
Nenhum filósofo, estadista, sábio ou poeta, alcança genialidade,
enquanto, em seu meio, sentir-se exótico ou inoportuno; necessita de
condições favoráveis de tempo e de lugar, para que a sua aptidão se
converta em função e marque uma época na história.
O ambiente constitue o "clima" do gênio e a oportunidade marca a
sua "hora". Sem isto, nenhum cérebro excepcional pode elevar-se à
genialidade. Mas, tanto o ambiente, como a hora, não bastam, por si, para
criá-la.
Nascem muitos engenhos excelentes em cada século. Um, entre cem,
encontra tal clima e tal hora, que o destinam fatalmente à culminância; é
como se a boa semente caísse em terreno fértil em vésperas de chuva. Esse
é o segredo de sua glória: coincidir a oportunidade que dele necessita.
Desabrocha e cresce, sintetizando um Ideal implícito no porvir
imediato ou remoto; pressentindo-o, insti tuindo-o, indicando-o,
iluminando-o, impondo-o.
A obra de gênio não é fruto exclusivo da inspiração individual, nem
pode ser considerada como um feliz acidente que desvia o curso da
história: para ela convergem as aptidões pessoais e circunstâncias infinitas.
Quando uma raça, uma arte, uma ciência ou um credo, preparam o seu
advento, ou passam por uma renovação fundamental, o homem
extraordinário aparece, personificando novas orientações dos povos ou das
idéias. Anuncia-as, como artistas- ou profetas; desentranha-as, como
inventor ou filósofo; empreende-as, como conquistador ou estadista.
Sobrevivem suas obras e permitem reconhecer o seu vestígio através do
tempo. É retilíneo e incontestável: vôa e vôa, superior a todos os
obstáculos, até alcançar a genialidade. Chegando a deshoras, esse homem
vivera inquieto, flutuante, desorientado; seria sempre, intrinsecamente, um
engenho; poderia chegar ao talento, se se acomodasse a algumas de suas
vocações adventícias; mas não seria um gênio enquanto não lhe
correspondesse esse título em razão da obra realizada. Não poderia sê-lo.
desde que lhe faltasse a oportunidade em seu ambiente.
Outorgar esse título a todos quantos se evidenciam, por determinada
aptidão, significa considerar como idênticos todos os que se elevam sobre a
medicina; é tão inexato como chamar idiotas a todos os homens inferiores .
Os gênios e os idiotas são os termos extremos de uma escala infinita.
O fato de ter sido esquecido isto, faz que as estatísticas e as conclusões de
alguns antropólogos provoquem o riso. Reservemos o título a poucos
eleitos. São animadores de uma época, transfundindo-se algumas vezes em
sua geração, e, com mais freqüência nas sucessivas, herdeiras legítimas de
suas idéias ou de seu impulso.
A adulação prodigaliza, à mancheias, o título de gênios aos poderosos:
imbecís há que o outorgam a si próprios. Há sem embargo u’a medida para
apreciar a genialidade; se é legítima, reconhece-se por sua obra, profunda
em suas raízes e vasta em sua floração. Se é um poeta, canta um ideal; se é
um sábio, o define; se santo, ensina; se herói, o executa.
Podem lobrigar-se, num homem jovem, as mais conspícuas aptidões
para atingir a genialidade; maas é difícil prognosticar se as circunstâncias
contribuirão para que elas se convertam em obras. E enquanto não as
vemos, todaapreciação é caprichosa. Por isso e porque estas pbras geniais
não se realizam em minutos, sinão em anos, o homem de gênio pode
passar desconhecido em seu tempo e ser consagrado pela posteridade.
Os contemporâneos não costumam marcar o passo ao compasso do
gênio; mas se este cumpriu o seu destino, uma nova geração estará
habilitada para o compreender .
Em vida, muitos homens de gênio são ignorados, proscritos,
desestimados ou escarnecidos. Na luta pelo êxito, podem triunfar os
medíocres, pois se adaptam melhor às modas ideológicas reinantes; para a
glória, só valem as obras inspiradas por um ideal e consolidadas pelo
tempo, que é onde triunfam os gênios. Sua vitória não depende da
homenagem transitória que os outros lhe podem outorgar ou negar, sinão,
vem apesar-de tudo, embora Sócratesbeba a cicuta, Cristo morra na cruz
ou Bruno agonize na fogueira: foram os órgãos vitais de funções
necessárias na história dos povos ou das doutrinas. E o gênio é
reconhecido pela remota eficácia do seu esforço ou do seu exemplo, mais
do que pelas frágeis sanções dos seus contemporâneos.
A magnitude da obra genialé calculada pela vastidão do seu horizonte
e pela extensão das suas aplicações. Nisto, já se pretendeu fundar uma certa
hierarquia das diversas ordens do gênio, consideradas como
aperfeiçoamentos extraordinários do intelecto e da vontade.
Nenhuma classificação é justa. Ao variar o clima e a hora, pode
ocorrer a aparição de uma ou outra ordem de genialidade, de acordo com a
função social que a suscita; e, sendo a mais oportuna, é sempre a mais
fecunda. Convém renunciar toda extratificação hierárquica dos gênios
afirmando a sua diferença e admirando-os por igual: acima de certo nível,
todos píncaros são excelsos. Ninguém, se não fossem eles mesmos, poderia
julgar-se habilitado para decretar-lhes categorias e desnivelamen tos. Eles se
despreocupam dessas coisas mesquinhas; o problema é insolúvel por
definição.
Nem hierarquia, nem espécies: a genialidade não se classifica. O
homem que a atinge, é o arauto de um ideal. É sempre definitivo; é uma
objetiva, na evolução do seu povo ou de sua arte.
As histórias de fancaria soem ser crônicas de capitães e
conquistadores; as outras formas de genialidade entram nelas como simples
acidentes. E não é justo. Homero, Miguel Ângelo, Cervantes e Goethe
viveram, em séculos, mais altos do que os imperadores; em cada um deles,
pode-se medir a grandeza do seu tempo. Marcam datas memoráveis,
personificando aspirações imanentes do seu clima intelectual.
O movimento de aza é tão necessário para sentir ou pensar um credo,
como para pregá-lo ou executá-lo: todo Ideal é uma síntese. As grandes
transmutações históricas nascem como vidências líricas dos gênios
artísticos; transfundem-se na doutrina dos pensadores e se realizam pelo
esforço dos estadistas: a genialidade torna-se função dos povos e floresce
em circunstâncias irremovíveis, fatalmente.
A exegese do gênio seria enigmática, se se limitasse ao estudo da
biologia dos homens geniais. Esta só revela alguns princípios da sua
aptidão e não sempre evidentes. Alguns pesquisam os seus antepassados,
remontando, se podem, aos séculos, por muitas gerações, até reunir um
punhado de loucos e de degenerados, como se, da conjunção dos sete
pecados capitais, pudesse surgir a chispa que inflama o Ideal de uma época.
Isso é converter em doutrina uma banalidade, emprestar foros de ciência a
sofismas falazes. Nem por isso veremos, neles, simples produtos do meio,
esquecendo os seus atributos singulares. Nem uma coisa, nem outra. Se tal
homem nasce em tal clima e chega a tal hora oportuna, sua aptidão
preexistente, apropriada a tais circunstâncias, desenvolve-se até à
genialidade.
O gênio é uma força que atua em função do meio.
É fácil provar.
Por duas vezes, a morte e a glória andaram de mãos dadas sobre um
cadáver argentino. A primeira foi quando Sarmiento se apagou no
horizonte da cultura continental; a segunda foi quando se exgotaram, em
Ameghi-no, as fontes mais profundas de nossa ciência. Poucos túmulos
como os seus, viram florescer e entrelaçarem-se, ao mesmo tempo, o
cipreste e o louro, como se, nas tre-mulinas crepusculares de suas vidas, se
tivesse acendido lâmpadas votivas consagradas à glorificação eterna de
gênio.
Merecem este nome; cumpriram uma função social, realizando obra
decisiva e fecunda. Ninguém poderá pensar na educação e na cultura deste
continente, sem evocar o nome de Sarmiento, seu apóstolo e semeador:
nem alguma pode comparar-se à sua, entre os que lhe sucederam no
governo e no magistério.
No desenvolvimento das doutrinas evolucionistas, as concepções de
Ameghino são como um marco; será impossível não advertir as suas
pegadas: e quem se esquecer do seu nome, renunciará a conhecer muito
nos do mínios da ciência explorada por êle.
Sarmiento foi o gênio pragmático. Ameghino foi o gênio revelador.
II — Sarmiento
Seus pensamentos foram jorros de luz na penumbra da barbárie
americana, entreabrindo a visão de coisas futuras. Pensava em estilo tão
alto. que parecia ter, como Sócrates, algum demônio familiar que alucinasse
a sua inspiração. Ciclope em sua tarefa, vivia obcecado pelo afã de educar:
essa idéia gravitava em seu espírito,
como as grandes moles incandescentes, no equilíbrio celeste,
subordinado, à sua influencia, todas massas menores do seu sistema
cósmico.
Tinha a clarividência do ideal, e elegera seus meios: organizar,
civilizando, e elevar, educando. Todas as fon-tes foram escassas para saciar
a sua sede de aprender; todos os ódios foram exíguos para coibir a sua
inquietude de ensinar. Eréto e viril sempre, porta-bandeira dos seus
próprios ideais, seguiu a estrada que o destino lhe assinalou prevendo que a
glória se incuba em auroras fecundadas pelos sonhos dos que olham para
pontos mais longínquos. A América o esperava.
Quando urge construir ou transmudar, forma-se o clima do gênio: a
sua hora sôa, como convite fatídico, para encher uma página de luz.
O homem extraordinário se revela auroralmente, como se obedecesse
a uma predestinação irrevogável.
Facundo é o clamor da cultura moderna contra o crepúsculo feudal.
Criar uma doutrina justa, equivale a ganhar uma batalha para a verdade;
custa mais pressentir um ritmo de civilização, do que realizar uma
conquista.
Um livro é mais do que uma intenção: é um gesto. Todo ideal pode
servir-se do verbo profético. A palavra de Sarmiento parece que desce de
um Sinai.
Proscrito no Chile, o homem extraordinário enquadra, por aquêle
tempo, o seu espírito na dupla moldura da cordilheira muda e do mar
clamoroso.
Chegam até eles os gemidos de povos que entumes-cem de angústia
os seus corações: parecem ensombrar o céu taciturno da sua fronte,
inquietada por um relampaguear de profecias. A paixão incendeia as
fornalhas dantescas em que êle forja as suas páginas, e elas retumbam, com
sonoridade plutoniana, em todos os recantos da sua pátria. Para so medir,
busca o maior inimigo — Rosas — que também era genial, na barbárie do
seu tempo: por isso, há ritmos apocalípticos nas apostrofes
de Facundo, assombroso desafio, que parece um repto de águia lançado por
sobre os cimos mais conspícuos do planeta.
Seu verbo é anátema: tão forte é o grito, que, por momentos, a prosa
se enrouquece. A veemência cria o seu estilo tão seu, que, sendo castiço,
não parece espanhol. Sacode todo um continente, apenas com a força da
sua pena, acrisolada pela santificação do perigo e do desterro.
Quando um ideal se plasma num alto espírito, bastam gotas de tinta
para íixá-lo em páginas decisivas; e elas, como se em cada linha levasse uma
chispa de incêndio devastador, chegam ao coração de milhares de homens,
desorbitam as suas rotinas, inflamam paixões, polarizam sua aptidão no
sentido do sonho nascente. A prova do visionário vive: palpita, agride,
comove, derruba, aniquila. Nas suas frases, dir-se-ia que emborca a alma da
nação inteira, como um aluvião.
Um livro, fruto de imperceptíveis vibrações cerebrais do gênio, torna-
se tão decisivo para a civilização de uma raça, como a irrupção tumultuosa
de infinitos exércitos.
E o seu verbo é sentença: fica mortalmente ferida uma éra de barbárie
simbolizada em um nome próprio. O gênio se enaltece assim, para falar,
intérprete da história. Suas palavras não admitem retificação, e escapam à
crítica.
Os poetas deveriam pedir os seus ritmos às marés do Oceano, para
louvar liricamente a perenidade do gesto magnífico: Facundo!
Primeiro disse. Depois realizou.
A política pôs à prova sua firmeza: a grande hora foi aquela em que o
seu Ideal se conservou em ação. Presidiu a República contra a intenção de
todos: obra de fatos benéficos. Lá em cima viveu batalhando, como
quando estava em baixo, sempre agressor e agredido.
Cumpria uma função histórica. Por isso, como herói do romance, seu
trabalho foi a luta, o seu descanso apeleja. Manteve-se alheio e superior a
todos os partidos, incapazes de o conter. Todos o reclamavam, e o
repudiavam, alternativamente: nenhum, grande ou pequeno, podia ser toda
uma geração, todo um povo, toda uma raça; e Sarmiento sintetizava uma
era na nossa la tinidade americana. A sua aproximação das facções,
compostas por amálgamas de subalternos, tinha reservas e reticências,
simples tentativas no sentido de um fim claramente previsto, para cuja
consecução precisou ensaiar todos os meios. Gênio executor, o mundo lhe
parecia pequeno para abarcá-lo, só podia ser seu lema inequívoco: "las
cosas hay que hacerlas; mal, pero hacerlas".
Nenhum empreendimento lhe pareceu indigno do seu esforço; em
todos levou, como única tocha, o seu Ideal. Teria preferido morrer de sede
a se dessedentar no manancial da rotina. Miguelangelesco e cultor de uma
nova civilização, teve as mãos sempre livres para modelar instituições e
idéias, livres de cenáculos e de partidos, livres para golpear tiranias, para
aplaudir virtudes, para semear verdades aos punhados.
Entusiasta da Pátria, cuja grandeza soube encarar como a de uma
própria filha, foi também desapiedado para com os seus vícios,
cauterizando-os, com a benéfica crueldade de um cirurgião.
A unidade de sua obra é profunda e absoluta, não obstante as
múltiplas contradições nascidas do contraste da sua conduta com as
oscilações circunstanciais do seu meio. Entre alternativas extremas,
Sarmiento conservou a linha de seu caráter até a morte.
A sua madureza seguiu a orientação de sua juventude; chegou aos
oitenta anos, aperfeiçoando as originalidades que tinha adquirido aos trinta.
Errou inúmeras vezes, tantas, que só se podem conceber em um homem
que viveu pensando sempre. Mudou mil vezes de opinião, quanto aos
pormenores, porque nunca deixou de viver; mas nunca desviou a pupila
daquilo que era essencial em sua função.
O seu espírito, selvagem e divino, era intermitente como um farol,
com alternativas perturbadoras. Era um mundo que se obscurecia, e se
iluminava sem sossego; incessante sucessão de auroras e de crepúsculos
fundidos no todo uniforme do tempo. Em certas épocas, parecia nascer de
novo, com cada aurora, mas soube oscilar até o infinito, sem deixar de o
ser, ele mesmo.
Olhou sempre para o porvir, como si o passado fosse morto atrás
dele; o homem não exigia, para êle, em face do amanhã. Os homens e os
povos em decadência vivem recordando de onde vêm; os homens geniais e
os povos fortes só necessitam saber para onde vão. Viveu inventando
doutrinas e forjando instituições, criando sempre, em contínuo
esbanjamento de imaginação criadora. Nunca teve paciências resignadas,
nem essa mansidão imitativa de quem se acomoda às circunstâncias para
vegetar tranquilamente.
A adaptação social depende do equilíbrio entre o que se inventa e o
que se imita; ao passo que o homem vulgar é imitativo e se adapta
perfeitamente; o homem de gênio é criador, e, com freqüência, inadaptado.
A adaptação é mediocrizadora; rebaixa o indivíduo aos modos de
pensar e de sentir que são comuns às massas, apagando os seus traços que
são propriamente pessoais. Poucos homens, ao finalizar da vida, se livram
dela; muitos soem ceder, quando as entranhas do espírito sentem a
ferrugem da velhice. Sarmiento foi uma exceção. Tinha nascido "assim", e
quis viver como era, sem se descobrir no meio-tom dos demais.
Aos setenta anos, coube-lhe ser o porta-estandarte da última guerra
civil movida pelo espírito colonial, contra a afirmação dos ideais argentinos:
em La Escuela Ultrapampeana, escrita aos arrancos, fecha-se o ciclo
civilizador iniciado com Facundo. Nessas horas cruéis, quando os fanáticos
e os mercadores o agrediam para desbaratar os seus ideais de cultura leiga e
científica, Sarmiento inutilmente se teria rebelado contra o seu destino.
Uma fatalidade incontratável o elegera porta-voz do seu tempo, impelindo-
o a perseverar sem tréguas, até à beira do túmulo. Em pleno coração da
velhice, continuou a pensar por si mesmo, sempre alerta para se
entrincheirar contra os que queriam desplumar a aza dos seus grandes
sonhos: teria ousado desmantelar a tumba mais gloriosa, se conseguisse
entrever a esperança de que alguma coisa ressuscitaria de entre as cinzas.
Havia gestos de águia prisioneira, nos desequilíbrios de Sarniento. Foi
"inatual" em seu meio: o gênio importa sempre uma antecipação. A sua
originalidade parecia tocar os raios do desvario. Houve, certamente, nele,
um desequilíbrio: mas não era intrínseco, em sua personalidade, sinão,
extrínseco, entre ele e o seu meio. Sua inquietude não era inconstância, seu
labor não era agitação. Seu gênio era uma suprema cordura, em tudo o que
dizia respeito aos seus ideais; parecia o contrário, apenas por efeito de
contraste com a neblina de mediocridade que o circundava.
Tinha desarticulações que a vida moderna faz sofrer a todos
caracteres militantes; mas, a revelação mais patente da sua genialidade, está
na eficácia da sua obra, apesar dos aparentes desequilíbrios.
Personificou a maior luta entre o passado e o porvir do continente,
assumindo, com excesso, a responsabilidade do seu destino. Nada lhe
perdoaram os inimigos do Ideal que êle representava; os partidários
exigiram-lhe tudo. O maior equilíbrio possível, no homem comum, é
exíguo, comparado àquele que o gênio precisa ter: o primeiro suporta um
trabalho igual a um, e o segundo empreende um equivalente a mil. Para
isso, necessita de uma rara firmeza e de uma absoluta precisão executiva.
Onde os outros se acotovelam, os gênios sobem, cobram maior pujança,
quando se agravam as bórraseos: parecem águias planando em sua
atmosfera natural.
A incompreensão destes pormenores fez que, em todos os tempos, se
atribuísse à insânia a genialidade de tais homens, concretizando-se, por fim,
a surrada hipótese do seu parentesco com a loucura, cômoda de ser
aplicada a todos quantos se elevam sobre os comuns processos do
raciocínio rotineiro e da atividade doméstica. Mas esquece-se que,
inadaptado, não quer dizer alienado: o gênio não poderia consentir na sua
adaptação à mediocridade.
O culto do acomodaticio e do convencional, lisonjeiro para os
espíritos insignificantes, implica a apresentação dos grandes criadores,
como predestinados à degenerescência ou ao manicômio.
É falso que o talento e o gênio povoem os asilos; se enlouquecem,
por acaso, dez homens excelentes, encontram-se, ao seu lado, um milhão
de espíritos vulgares: os alienistas estudarão a biografia dos dez e ignorarão
a do milhão. E, para enriquecer os seus catálogos com gênios enfermos,
incluirão em suas listas homens engenhosos, quando não incluem simples
desequilibrados intelectuais, que são "imbecis com a libré do gênio".
Os homens como Sarmiento, podem caldear-se pela excessiva função
que desempenha; os ignorantes confundem a paixão com a loucura. Mas,
julgados na evolução das raças e dos grupos sociais, eles culminam como
casos de aperfeiçoamento ativo, em benefício da civilização e da espécie.
O porvir humano só aproveita os originais. O desenvolvimento de
uma personalidade genial importa numa variação sobre os caracteres
adquiridos pelo grupo; ela incuba novas e diferentes energias, que são o
começo de linhas de divergências, forças de seleção natural.
A desarmonia de um Sarmiento é um progresso; suas discordâncias
são rebeliões contra a rotina, contra, os prejuízos e contra as
domesticidades.
Loucura implica desagregação, desequilíbrio, solução de continuidade;
Bóvio, com breve raciocínio, refutou o celebrado sofisma. O gênio se
abstrai; o alienado se distrai. A abstração ausenta o indivíduo dos outros; a
distração o ausenta de si mesmo.
Cada processo ideativo é uma série; em cada série, há um meio-termo
e um processo lógico; entre as diversas séries, há saltos e faltam os meios-
termos. O gênio, movendo-se, reto e rápido, dentro de uma mesma série,
abrevia os meios-termos, e descobre a relação longínqua; o louco, saltando
de uma série a outra, privado de meios-termos, comete disparates ao invés
de raciocinar. Essa é a aparente analogia entre genialidade e loucura; parece
que, no movimento de ambos houve falta de meios-termos; mas, em rigor,
o gênio vôa, o louco salta. O primeiro sobre entende muitos meios-termos,
o outro não vê nenhum.
No gênio, o espírito se ausenta dos outros; na loucura, se ausenta a si
mesmo.
"A sublime loucura do gênio é, pois, relativo ao vulgo; este, em face do gênio, não é
cordato, nem louco: é simplesmente a mediocridade, isto é, a medida lógica, a meia-alma, o
meio-caráter, a religiosidade convencional, a moralidade acomodatícia, a politiquice miúda, o
idioma usual, a nulidade de estilo".
A ingenuidade dos ignorantes tem uma parte decisiva na contusâo.
Eles acolhem, com facilidade, a intriga dosinvejosos e proclamam loucos os
homens melhores do seu tempo. Alguns se libertam desse rótulo: são
aqueles cuja genialidade é discutível, concedendo-se-lhes, apenas, talento
especial em grau excelso.
Não acontece o mesmo com os indiscutidos, que vivem em perpétua
luta, como Sarmiento. Quando começou a enveinecer, os seus próprios
adversarios aprenderam a tolera-lo, embora sem o gesto magnânimo de
uma admiração agradecida. Continuarem a chamá-lo "o louco Sarmiento".
O louco Sarmiento! estas palavras ensinam mais do que cem livros, a
respeito oa iragiiidade do juízo social. Deve-se desconfiar dos diagnósticos
formulados pelos contemporâneos, sobre os homens que nao concordam
em marcar passo nas fileiras; as medianías, surpreendidas pelos
resplendores inusitados, só conseguem justiiicar-se, diante deies,
recorrendo a epítetos desprezíveis.
Convém confessar esta grande culpa: nenhum americano ilustre
sorreu mais apodo dos seus concidadãos. Não há vocábulo injurioso que
não tenha sido empregado contra Sarmiento: era tao grande, que não
bastou o dicionário inteiro para difamar diante da posteridade.
As retortas da inveja distilaram as mais raras quintessências; êle
conheceu todas as obliqüidades dos astutos e todos os sosláios dos
impotentes. A caricatura mordeu-o até sangrar, como a nenhum outro
ainda o havia feito; o lápis teve, de quando em quando, firmezas de estilete
e matizes de peçonha. Como as serpentes que estrangulam Laocoonte, na
obra prima do Belvedere, mil tentáculos subalternos e anônimos acossaram
a sua titânica personalidade, robustecida pela refrega.
Os espíritos vulgares cingiam Sarmiento por todas as partes, com a
força do número, irresponsáveis em face do porvir. E êle marcava, sem
contar os inimigos, transbordante e hostil, ébrio de batalhas em uma
atmosfera grávida de tempestades, semeando a todos os ventos, a todas as
horas, em todos os sulcos. Desprezava o motejo daqueles que não o
compreendiam; a vidência do juízo póstumo era o único lenitivo para as
feridas que os seus contemporâneos lhe infligiam. A sua vida foi um
florescimento perpétuo de esperanças, num matagal de espinhos.
Para conservar intactos os seus atributos, o gênio necessita de
períodos de recolhimento; o contacto prolongado com a mediocridade
embota as idéias originais e corrói os caracteres mais adamantinos. Por
isso, com freqüência, toda superioridade é um desterro.
Os grandes pensadores tornam-se solitários; parecem proscritos em
seu próprio meio. Só fazem parle do ambiente, para combater ou pregar,
um tanto excêntricos, quando não são hostis, sem se entregarem nunca
totalmente a governantes nem a multidões.
Muitos engenhos eminentes, levados pela maré coletiva, perdem ou
atenuam a sua originalidade empana dos pela sugestão do meio; os
preconceitos, mais radicados no indivíduo, subsistem e prosperam; as
idéias novas, por serem aquisições pessoais, de recente formação,
emurchecem.
Para defender suas frontes mais tenras, o gênio procura isolamentos
parciais em suas próprias investidas. Si não quer nivelar-se muito, precisa,
de tempos em tempos, olhar para dentro de si, sem que esta defesa da
originalidade equivalha a uma misantropia. Leva consigo palpitações de
uma época ou de uma geração, que são a sua finalidade e a sua força:
quando se retira, enaltece. Desde os píncaros, formula, com firme
claridade, aquêle sentimento, doutrina ou esperança, que em todos se
incuba surdamente. Nele, adquirem clareza meridiana os confusos rumores
que serpeiam na inconciência dos seus contemporâneos. Assim, mais do
que nenhum outro gênio da história, se plasmou, em Sarmiento, o conceito
da civilização da sua raça, na hora que preludiava o surgimento de
nacionalidades novas dentre o caos da barbárie.
Para pensar melhor, Sarmiento viveu só entre muitos, ora expatriado,
ora proscrito dentro do seu país, europeu entre argentinos e argentino no
estrangeiro, provinciano entre portenhos e portenho entre provincianos.
Leonardo disse aue é destino dos homens de gênio estar em todas as
partes.
Vivem mais alto e fora do torvelinho comum, desconcertando os seus
contemporâneos. São inquietos: a glória e o repouso nunca foram
compatíveis. São apaixonados: dissipam os obstáculos, como os primeiros
raios do sol liquefazem a neve caída em uma noite de primavera.
Não baqueiam, na adversidade: redobram a sua pujança, aprendem
lições. E seguem em busca do seu Ideal, afligindo a uns, compadecendo a
outros, adian tando-se a todos, sem se renderem, tenazes, como si fosse
seu lema o velho rifão: só está vencido aquele que confessa estar. Nisso se
apoia a sua genialidade. Essa é a loucura divina que Erasmo elogiou, em
páginas imor redouras, e que a mediocridade impingiu ao grande varão que
honra todo um continente, Sarmiento, parecia agigantar-se sob o fio das
machadinhas…
III — Ameghino
A sua pupila soube ver na noite, antes que o dia amanhecesse para
todos. Revelou e criou: foi a sua missão.
Como aconteceu a Sarmiento, Ameghino chegou em seu clima e em
sua honra. Por singular coincidência, ambos foram mestres-escolas,
autodidatas, sem título universitário, formados fora da cidade
metropolitana, em contacto imediato com a natureza, alheios a todos os
lambicamentos exteriores da mentira mundana, com as mãos livres, a
cabeça livre, o coração livre, as azas livres. Dir-se-ia que o gênio floresce
melhor nas regiões solitárias, acariciado pelas tormentas, que são a sua
atmosfera própria: definha-se nas invernadas do Estado, em suas
universidades, em seus laboratórios bem financiados, em suas academias
fósseis e em seu funcionalismo hierárquico. Falta-lhe, ali, o ar livre e a
plena luz, somente a natureza pode dar: a cevadura precoce vai fazendo
que o mofo germine nas entranhas da imaginação criadora, e embote as
melhores originalidades.
O gênio nunca foi instituição oficial.
A vasta obra de Ameghino, em nosso continente e em nossa época,
tem os caracteres de um fenômeno natural.
Por qual razão um homem, em Lujan, se mete a ajuntar ossos fósseis,
e os baralha entre os dedos, como um naipe composto de milhares de
séculos, e acaba por pedir a essas mudas testeminhas, a história da terra, da
vida, do homem, como si agisse por predestinação ou por fatalidade?
Tinha de ser um gênio argentino, porque nenhum outro ponto da
superfície terrestre contém uma fauna fóssil comparável à nossa; tinha que
ser em nosso século, porque outrora lhe teria faltado o apoio das doutrinas
evolucionistas que lhe servem de fundamento; não podia ser antes de
agora, porque o clima intelectual do país não fora propício a isso, sem a
fecundação do apostolado de Sarmiento; e tinha que ser Ameghino, e
nenhum outro homem do seu tempo.
Quem reuniria, em tão alto grau, sua aptidão para a observação e
análise, sua capacidade para a síntese e a hipótese, sua resistência necessária
para desenvolver o enorme esforço prolongado durante tantos anos, seu
desinteresse para com todas as vaidades que fazem do homem um
funcionário, mas que matam o pensador?
Nenhuma convergência de rotinas detém o gênio em sua
oportunidade. Embora sejam forças todo-pode-rosas, porque procedem
contínua e surdamente, o gênio as domina. Antes ou depois; mas, no seu
domínio, se funda a realização de sua obra.
As resistências que desalentam o medíocre, são o seu estímulo; cresce
à sombra da inveja alheia. A sociedade pode conspirar contra êle,
mancomunado contra êle a detração e o silêncio. Segue o seu caminho; luta
sem cair, sem se extraviar, dionisiacamente seguro.
O gênio, por sua definição, nunca fracassa.
Aquele que não criou não é gênio, não chegou a sê-lo, foi uma ilusão
dissipada. Isto não quer dizer que êle vive do êxito, senão, que a sua
marcha a caminho da glória é fatal, apesar de todos os contrastes.
Aquele que se detém, prova a sua impotência para caminhar.
Algumas vezes, o homem genial vacila, interrogan-do-se a si mesmo,
ansiosamente, sobre o seu próprio destino: quando os invejosos mordem o
seu calcanhar, ou quando os hipócritas o adulam. Mas, em duas
circunstâncias, se ilumina ou se desencadeia: na hora da inspiração e na
hora das diatribes.
Quando descobre uma verdade, parece que em suas pupilas brilha
uma luz eterna; quando admoesta envilhe-cidos, dir-se-ia que na sua fronte
refulge a soberania de uma geração.
Ameghino, para cumprir a sua função genial, precisou de firme e
serena vontade. Sem saber e sem querer, ninguém cria coisas que valham
ou durem.
A imaginação não basta, para dar vida à obra: a vontade a engendra.
Neste sentido — e em nenhum outro — o desenvolvimento da
aptidão nativa requer uma "longa experiência", para que o engenho se
converta em talento, ou se enalteça em genialidade. Por isso, os homens
excepcionais têm um valor moral e são alguma coisa mais do que objetos
de curiosidades: "merecem" a admirarão aue se lhes vota. Si a sua aptidão é
um dom da natureza, desenvolvê-la implica um esforço exemplar.
Por mais que os seus germes sejam instintivos ou inconcientes, as
obras não se fazem por si. O tempo é aliado do gênio: o trabalho completa
as iniciativas da inspiração. Os que sentiram o esforço de criar, sabem o
que isso custa.
Determinado o Ideal, é preciso realizá-lo: na raca, na lei, no mármore,
no livro. A magnitude da tarefa explica a razão pela qual, havendo tantos
engenhos, é tão escasso o número de obras primas. Se a imaginação
criadora é necessária para as conceber, para as executar é indispensável
outra rara virtude: a vontade tenaz que Newton batizou com o nome
de paciência, sem medir os absurdos corolários de seu apotema.
Não diremos, pois, que a imaginação é supérflua e secundária,
atribuindo o gênio ao aue foi virtude de bois, no simbolismo mitológico.
Não. Sem aptidões extraordinárias, a paciência não produz um Ameghino.
Um imbecil, em cincoenta anos de constâncias, só conseguirá
fossilizar a sua imbecilidade. O homem de gênio, no tempo que dura um
relâmpago, define o seu ideal; depois, durante toda a sua vida, caminha à
procura, perseguindo a quimera entrevista.
As aptidões essenciais são nativas e espontâneas; em Ameghino, elas
se revelam por uma precocidade de "engenho" anterior a qualquer
experiência. Isso não significa que todos os precoces podem chegar à
genialidade, nem siquer ao talento. Muitos são desiquilibrados, e soem
definhar-se em plena primavera; poucos aperfeiçoam suas aptidões, até
convertê-las em talento; raras vezes coincidem com a hora propícia e
ascendem à genialidade. Só é gênio aquele que as converte embora
luminosa, com essa fecundidade superior que implica al-gu’a madureza; os
dons mais belos precisam ser cultivados, como as terras mais férteis exigem
o arado. Estéreis se conservam os espíritos brilhantes que desdenham todo
esforço — tão absolutamente estéreis como os imbecis laboriosos: o
campo fértil, não trabalhado, não dá colheitas; nem as dá o campo estéril,
por mais que seja arado.
Esse é o profundo sentido moral do paradoxo que identifica o gênio
com a paciência, embora sejam inadmissíveis os seus corolários absurdos.
A mesma significação originária da palavra gênio pressupõe alguma coisa de
inspiração transcendental.
Tudo o que sabe a cansaço, não sendo fadiga de vôo alígero, é a
antítese do gênio. Somente se pode conferir a suprema homenagem deste
título, àquele cujas obras denunciam menos o esforço de amanuense, do
que uma espécie de dom impressivo e gratuito, alguma coisa que opera,
sem que êle o saiba, pelo menos com uma força e um resultado que
excedem as suas intenções ou fadigas.
Para gregos e latinos, "gênios" quer dizer "demônio": era àquele
espírito que acompanhava, guiava ou inspirava cada homem, desde o berço
até o túmulo. Sócrates teve o mais famoso. Com a acepção que hoje se dá,
universalmente, a palavra "gênio", os antigos não tiveram palavra alguma;
para expressá-la, antepunham ao substantivo "engenho", um adjetivo que
expressasse a sua grandeza ou a sua culminação.
Não é lícito denominar gênios todos os homens superiores. Há tipos
intermediários. Os modernos distinguem o homem de gênio do homem de
talento, mas esquecem a aptidão inicial de ambos: o "engenho", isto é, uma
capacidade superior à média. Apresenta uma graduação infinita, e cada um
dos seus graus é suscetível de se educar, ilimitadamente. Permanece estéril
e desorganizado na maioria, sem implicar talento, siquer. Este último é uma
perfeição alcançada por poucos, uma originalidade particular, uma síntese
de coordenação, culminante e excelsa, sem ser, por isso, equivalente ao
gênio. Raras vezes, a máxima intensificação do gênio cria, pressagia, realiza
ou inventa; só então é que adquire significação social, e ascende à
genialidade, como no caso de Ameghino. A espécie, sendo exígua,
apresenta infinitas variedades: tantas, quasi, como os exemplares.
Seria ligeireza de método e de doutrina, não distinguir entre as mentes
superiores, a ponto de catalogar como gênios muitos homens de talento e
até certos engenhos desequilibrados, que são a sua caricatura.
Nordau ensaiou uma discreta diferenciação de tipos. Chama gênio ao
homem que cria novas formas de atividade não empreendidas antes por
outros, ou desenvolve, de maneira inteiramente própria e pessoal, as
atividades conhecidas; e talento ao que pratica formas de atividade geral ou
frequentemente praticadas por outros, melhor do que a maioria dos que
cultivam essa mesma atividade. Este juízo diferenciador é discreto, pois
toma em consideração a obra realizada e a aptidão daquele que a realiza.
O homem de génio implica um desenvolvimento orgânico
primitivamente superior; o homem de talento adquire, pelo exercício, uma
excelência integral de certas disposições que, no seu ambiente, a maioria
dos sujeitos normais possue.
Entre a inteligência e o talento, só há, pois, uma diferença
quantitativa, que é qualitativa entre o talento e o "gênio".
Não é assim, embora pareça. O talento implica, até certo ponto,
alguma aptidão inicial verdadeiramente superior, que a educação faz
culminar em seu próprio gênero. Dentre essas mentes preclaras algumas
chegarão à genialidade, se circunstâncias extrínsecas o determinam: a sua
obra revelará, se tiverem funções decisivas na vida ou na cultura do seu
povo.
Gênio e talento colaboram igualmente no processo humano. O seu
labor é íntegro. Completam-se, como a hélice e o leme: o talento trepana
sem sossego as ondas inquietas, e o gênio marca rumo na direção de
imprevistos horizontes.
A obra de Ameghino é criadora: isso a caracteriza. Uma imensa fauna
paleontológica permanecia no mistério, antes que êle a revelasse à ciência
moderna e formulasse a sua teoria geral, para explicar as suas emigrações
nos séculos remotos.
Criar é inventar, como já disse Voltaire. O gênio revela-se por uma
aptidão inventiva ou criadora aplicada a coisas vastas ou difíceis. Na vida
social, nas ciências, nas artes, nas virtudes, em tudo, se manifesta com
antecipações audazes, como uma facilidade espontânea, para suplantar os
obstáculos entre as coisas e as idéias com firme segurança, afim de não se
desviar do seu caminho. Em certos casos, descobre o novo; em outros,
aproxima-se do remoto e percebe relações entre as coisas distantes,
conforme a definição de Ampère.
Não consiste simplesmente em inventar ou descobrir: as invenções
que se produzem por casualidade, sem ser expressamente pensadas, não
requerem aptidões geniais.
O gênio descobre o que escapa à reflexão de séculos ou de gerações,
induz leis que expressam uma relação inesperada entre as coisas, assinala
pontos que servem de centro a mil desenvolvimentos, e abre caminhos na
infinita exploração da natureza.
Em que consiste, então? Não é sopro divino, não é demônio, não é
enfermidade?
Nunca.
É mais simples e mais excepcional ao mesmo tempo.
Mais simples, porque depende de uma complicada estrutura do
cérebro e, não, de entidades fantásticas: mais excepcional, porque o mundo
pulula de enfermos, e rara é a vez em que se anuncia um Ameghino.
Quanto mais bem cerebrado é o homem, tanto mais alta e magnífica é
a sua função de pensar.
Ignora-se ainda o mecanismo íntimo dos processos intelectuais
superiores. São acompanhados, sem dúvida, por modificações das células
nervosas: mudança de posição e permutas químicas muito complicadas.
Para compreendê-las, fora preciso conhecer as atividades moleculares e
suas variáveis relações, além da histologia exata e completa dos centros
cerebrais. Isto não basta: são enigmas a natureza da atividade nervosa, as
transformações de energia que determina, no momento que nasce, durante
o tempo que se propaga, e enquanto se produzem os fenômenos que
acompanham a complexíssima função de pensar.
Os conhecimentos científicos estão longe tíêsse limite. Sem embargo,
enquanto a química e filosofia permitem aproximar-se a gente do fim,
existe já a certeza de que essa, e nenhuma outra, é a diretriz para explicar
as aptidões supremas de um gênio, em função do seu meio.
Nascemos diferentes; há uma escala variadíssima, desde o odiota até o
gênio. Nasce-se em uma zona desse espectro, com aptidões subordinadas à
estrutura e à coordenação das células que intervêm na elaboração do
pensamento; a hereditariedade concorre para dar um sistema nervoso,
agudo ou obtuso, conforme os casos. A educação pode aperfeiçoar essas
capacidades e aptidões, quando existem; não pode criá-las, quando faltam:
Salamanca não as empresta.
Cada um tem a sensibilidade própria do seu aperfeiçoamento
nervoso; os sentidos são a base da memória, da associação, da imaginação;
de tudo.
É o ouvido o que faz o músico; o olho leva a mão do pintor.
O poder de conhecer está subordinado ao de perceber; cada homem
tem a memória e a imaginação que corresponde às suas percepções
predominantes.
A memória não faz o gênio, embora não o estorve; mas ela e o
raciocínio circunscrito em seus dados, não criam coisa alguma superior ao
real que percebemos. A fecundidade criadora requer o concurso da
imaginação, elemento necessário para sobrepor algum Ideal à realidade.
Quando, pois. se define o gênio como "um grau requintado de
sensibilidade nervosa", anuncia-se as mais importantes das suas condições;
mas a definição é incompleta.
A sensibilidade é o complexo instrumento posto ao serviço das
aptidões imaginativas, embora estas, em última análise, não se possam
firmar sinão sobre dados da mesma sensibilidade.
Nos gênios estéticos, é evidente a superintedência da imaginação
sobre os sentidos: não o é menos nos gê-
nios especulativos, como Ameghino, e nos gênios pragmáticos, como
Sarmiento. Graças a ela, concebem-se os problemas, adivinham-se as
soluções, inventam-se as hipóteses, estabelecem-se experiências,
multiplicam-se as combinações.
Há imaginação na paleontologia de Ameghino, como há na física de
Ampere e na cosmologia de Laplace; e ela existe também na visão
civilizadora de Sarmiento, como na política de Cesar, ou na de Richelieu.
Tudo o que leva a marca do gênio, é obra da imaginação; seja um capítulo
do Quixote, ou um para-raios de Franklin; não falemos nos sistemas
filosóficos, tão absolutamente imaginativos como as criações artísticas.
Mais ainda: muitos são poemas, e o seu valor é geralmente medido pela
imaginação dos seus criadores.
Em toda a gestação da sua doutrina, a genialidade de Ameghino se
traduz em uma absoluta unidade e continuidade do esforço, que é a
antítese da loucura.
Também êle foi tido como louco, sobretudo em sua juventude. Com
risonha bonomia, recordava as burlas dos vizinhos e das crianças da sua
escola, quando o viam dirigir-se, enxada ao ombro para as margens do
Lujan; para essas mentes singelas, tinha que ser um louco aquele mestre
que passava, durante dias inteiros, cavando a terra e desenterrando ossos de
animais estranhos, como se algum delírio o transformasse em coveiro de
idades extintas. Mudando de ambiente, sem se assimilar a nenhum deles,
conseguiu passar mais despercebido e atenuar a sua reputação de
inadaptado.
Basta ler a sua imensa obra — centenas de monografias e de volumes
— para compreender que êle só apresenta os desequilíbrios inerentes à sua
exuberância. As suas descobertas, grandes e úteis, nunca foram adivinhadas
ao acaso, nem em estado de inconciência, si-não em conseqüência de uma
vasta elaboração; não foram frutos de um cérebro carcomido pela
hereditariedade ou pelos tóxicos, sinão, de engrenagens perfeitamente
dispostas; não foram ocorrência, sinão, fatos claramente previstos e
anunciados.
O gênio é uma alta harmonia; é preciso que o seja. É absurdo supor
que estejam caídos, abaixo do nível comum, esses mesmos que a admiração
dos séculos coloca acima de todos. As obras geniais só podem ser
realizadas por cérebros melhores do que os da maioria; o processo da
criação. Embora tenha fases inconcientes, seria impossível sem uma
clarividência da sua finalidade. Ao invés de se improvisar, em horas de
ócio, opera-se depois de longas meditações, e é oportuno, chegando ao
tempo de servir como premissa, ou ponto de partida para novas doutrinas
e corolários. Nunca este equilíbrio da obra genial será mais evidente, do
que na de Ameghino: se tivéssemos de julgar por ela, o gênio se nos
apresentaria como uma tendência ao sistemático equilíbrio entre as partes
de um novo estilo arquitetônico.
Isto não exclue que a degenerescência e a loucura possam coexistir
com a imaginação criadora, atingindo especiais domínios da mente
humana; mas, a capacidade para as sínteses mais vastas, não tem
necessidade de ser desequilíbrio, nem enfermidade.
Nenhum gênio foi tal por sua loucura: alguns, como Rousseau, o
foram apesar dela; muitos, como Nietzsche, foram submersos nas sombras,
pela enfermidade.
Ameghino, ao par de todos os que pensam muito e intensamente, se
contradisse, muitas vezes, nos pormenores, embora sem nunca ter perdido
o sentido da sua orientação global. Quando as circunstâncias convergem
para isso, o gênio especulativo nasce, reto, desde a sua origem, como um
raio de luz a que nada desvia nem apaga. Basta ouvi-lo, para reconhecê-lo:
todas as suas palavras concorrem para explicar um mesmo pensamento,
através de cem contradições, nos pormenores e de mil alternativas na
trajetória parecem tentativas para certificar-se melhor do caminho sem
romper a coerência da obra total: essa é a harmonia da síntese que escapa à
percepção dos espíritos subalternos.
Ameghino converge para um fim, por todas as sendas; nada o desvia;
olha para o alto e para o longe; vai diretamente, sem as prudências que
travam o passo das mediocracias, sem se deter em face dos mil interroga-
dores que, de todas as partes o acossam, para distrai-lo da Verdade que lhe
entreabre alguma dobra dos seus véus.
A verdadeira contradição, aquela que esteriliza o esforço e o
pensamento, reside na desalinhavada heterogeneidade, que entre as obras
dos medíocres. Estes vivem com o pesadelo do juízo alheio, e falam com
ênfase, para que muitos os escutem, embora não os entendam; no seu
cérebro se aninham todas as ortadoxias, não se atrevendo a bocejar sem
metrônomo. Contradizem-se, forçados pelas circunstâncias: os rotineiros
seriam focos supremos de luz, se estes fossem julgados pela simples
incongruência.
Para assinalar contingências da vida quotidiana, o homem vulgar pode
ser mais astuto e hábil; mas nas grandes horas da evolução intelectual e
social, tudo deve ser esperado do gênio. E somente dele.
Seria absurdo dizer que a genialidade é infalível, não existindo
verdades imperfectíveis; cem retificações poderão ser feitas na obra de
Ameghino, e, muito especialmente, em suas hipóteses sobre o sítio de
origem da espécie humana.
Os gênios podem estar equivocados; soem equivocar-se; convém que
se equivoquem. Suas criações falsas são utilíssimas pelas correções que
provocam, pelas investi-
gações que estimulam, pelas paixões que inflamam, pelas inércias que
removem.
Os homens medíocres se equivocam de maneira vulgar; o gênio,
mesmo quando se despenha, acende uma chispa, e, na sua fugaz
luminosidade, faz estrever alguma verdade não suspeitada antes.
Não é menos grande Platão pelos seus erros, nem, por isso, o são
Shakespeare ou Kant. Nos gênios que se equivocam, há uma firmeza viril
que a todos impõe respeito. Ao passo que os contemporizados ambíguos
não despertam grandes admirações, os homens firmes obrigam à
homenagem os seus próprios adversários.
Há mais valor moral em crer firmemente numa ilusão própria, do que
em aceitar mansamente u’a mentira alheia.
IV — A moral do gênio
O gênio é excelente por sua moral, ou não é gênio. Mas a sua
moralidade não pode ser medida pelos preceitos corantes nos catecismos;
ninguém mediria a altura do Himalaia com fitas métricas de algibeira.
A conduta do gênio é inflexível, em relação aos seus ideais. Se
procura a Verdade, tudo êle sacrifica por ela. Se procura a Beleza, nada o
desvia. Se busca o Bem, vai, reto e seguro, por cima de todas as tentações.
E, se é um gênio universal, poliédrico, o verdadeiro, o belo e o bom se
unificam em sua ética exemplar, que é um culto simultâneo de todas as
excelências, de todas as idealidades. Como foi em Leonardo e em Goethe.
Por isso, é raro. Exclue toda inconsequência em relação ao ideal; a
imoralidade para consigo próprio é a negação do gênio. Por ela se
descobrem os desequilíbrios, os caçadores de êxito e os simuladores.
O gênio ignora as artes do escalamento e as indús trias da
prosperidade material. Na ciência, procura a
verdade, tal como a concebe; esse afã lhe basta para viver. Nunca tem
alma de funcionário. Eleva heroicamente a sua beleza, sem assaltar o
orçamento, sem vender seus livros aos governos, sem viver de favores e de
prebendas, ignorando essa técnica dos falsos gênios oficiais, que simulam
méritos, para medrar à sombra do Estado. Vive como é, procurando a
Verdade e decidido a não se desviar, siquer um milésimo, do seu caminho.
Aquele que pode domesticar as suas convicções, não é, não pode ser,
nunca absolutamente, um homem genial.
Também não o é aquele que concebe um bem e não o pratica.
Sem unidade moral não há gênio.
Aquele que prega a verdade e transige com a mentira; aquele que
prega a justiça e não é justo; aquele que prega a piedade e é cruel; aquele
que prega a lealdade e atraiçoa; aquele que prega o patriotismo e o explora;
aquele que prega o caráter e é servil; aquele que prega a dignidade e rasteja;
todo aquele que usa de do-brez, de intrigas, de humilhações — esses mil
instrumentos incompatíveis com a visão de um ideal — não é gênio, está
fora da santidade: sua voz se apaga sem éco, não repercute no tempo,
como se ressoasse no vácuo.
O portador de um ideal vai por caminhos retos, sem reparar se são
ásperos ou íngremes. Nunca transige, movido por interesse vil; repudia o
mal, quando concebe o bem; ignora a duplicidade; ama a Pátria, todos os
seus cidadãos, e sente vibrar, na própria alma, a alma de toda a
Humanidade, tem sinceridades que dão calefrios aos hipócritas do seu
tempo, e diz a verdade em estilo tão pessoal, que só pode ser palavra sua;
tolera, nos outros, os erros sinceros, recordando os próprios; encrespa-se
em face das baixezas, pronunciando palavras que têm ritmos de
apocalipses, e eficácia de catapultes; crê em si mesmo e nos seus ideais, sem
pactuar com os
preconceitos e com os dogmas de quantos o acossam com furor, por
todos os lados. Tal é a culminante moralidade do gênio. Cultiva, em grau
superlativo, as mais altas virtudes, sem se ocupar em carpir, na selva
magnífica, os males que concentram a preocupação dos espíritos vulgares.
Os gênios ampliam a sua sensibilidade na proporção qüe elevam a sua
inteligência; podem subordinar os pequenos sentimentos aos grandes, os
próximos aos remotos, os concretos aos abstratos. Então, os homens de
visão estreita os supõem faltos de amor, apáticos, céticos. E se enganam.
Sentem melhor do que todos, o humano.
O medíocre limita o seu horizonte afetivo a si mesmo, à sua família, à
sua camarilha, à sua facção; mas não sabe extendê-lo até a Verdade ou a
Humanidade, que só podem apaixonar o gênio.
Muitos homens dariam a sua vida na defesa da sua seita; são raros os
que se imolariam concientemente por uma doutrina ou por um ideal.
A fé é a força do gênio. Para se imanar uma éra, é preciso amar o seu
Ideal, e transformá-lo em paixão.
"Golpeia o teu coração, que nele está o teu gênio", escreveu Stuart
Mill, antes de Nietzsche.
A cultura intensa não enfraquece os visionários: sua vida inteira é uma
fé em ação. Sabem que os caminhos mais escarpados conduzem a pontos
mais altos. Não empreendem coisa alguma que não estejam decididos a
concluir.
As resistências são aguilhoadas que os incitam a perseverar; embora
nuvens espessas de ceticismo ensombrem o seu céu, são, em conclusão,
otimistas e crentes: quando sorriem, facilmente se adivinha a áscua
crepitante sob a sua ironia.
A passo que o homem sem ideais se rende na primeira escarramuça, o
gênio se apodera do obstáculo, provoca-o, cultiva-o, como se nisso
estivesse o seu orgulho e a sua glória: com igual veemência a chama acossa
o objeto que obstroi o seu caminhar, até incendiá-lo, para tornar-se maior,
alimentando-se com êle.
A fé é a antítese do fanatismo. A firmeza do gênio é uma suprema
dignidade do próprio Ideal; a falta de crenças solidamente cimentadas,
converte o medíocre em fanático. A fé se confirma no choque com as
opiniões contrárias; o fanatismo teme vacilar diante delas e intenta sufocá-
las.
A fé é tolerante: respeita as crenças próprias, nas alheias. É simples
confiança num Ideal e na suficiência das próprias forças; os homens de
gênio se mantêm crentes e firmes em suas doutrinas, mais do que se estas
fossem dogmas ou mandamentos. Permanecem livres das superstições
vulgares, e, com freqüência, as combatem: por isso, os fanáticos os supõem
incrédulos, confundindo o seu horror à mentira comum com a falta de
entusiasmo pelo próprio Ideal .
Todas as religiões niveladas podem permanecer alheias à fé do
homem virtuoso. Nada há mais estranho à fé, do que o fanatismo. A fé é
de visionário e o fanatismo é de servos. A fé é chama que acende e o
fanatismo é cinza que apaga. A fé é uma dignidade e o fanatismo é uma
renúncia.
A fé é uma afirmação individual de alguma verdade própria e o
fanatismo é uma conspiração de hostes, para sufocar a verdade dos outros.
Em face da domesticação do caráter, que rebaixa o nível moral das
sociedades contemporâneas, toda homenagem aos homens de gênio, que
votaram sua vida à Liberdade e à Ciência, é um ato de fé em seu Porvir: só
neles é que se podem ver exemplos morais que contribuam para o
aperfeiçoamento da Humanidade.
Quando alguma geração sente a saciedade de chatice, de dobrez, de
servilismo, tem que buscar, nos gênios de sua raça, os símbolos de
pensamento e de ação que a temperam para novos esforços.
. Todo homem de gênio é a personificação suprema de um Ideal.
Contra a mediocracia, que assedia os espíritos originais, convém
fomentar o seu culto: robustece as azas nascentes.
Os destinos mais altos se temperam na frágua da admiração.
Pôr a própria fé em algum sonho, apaixonadamente, com a mais
profunda emoção, é ascender aos píncaros onde paira a glória.
Ensinando a admirar o gênio, a santidade e o heroísmo, preparam-se
climas propícios ao seu advento.
Os ídolos de cem fanáticos morreram no curso dos séculos, e forçoso
é que morram outros vindouros, implacavelmente, ceifados pelo tempo.
Há alguma coisa de humano, mais duradouro do que a supersticiosa
fantasmagoria do divino: o exemplo das altas virtudes.
Os santos da moral idealista não fazem milagres: realizam obras
magnas, concebem supremas belezas, investigam profundas verdades.
Enquanto existirem corações que alimentem um afã de perfeição,
serão comovidos por tudo o que revela fé num Ideal: pelo canto dos
poetas, pelo gesto dos heróis, pela virtude dos santos, pela doutrina dos
sábios, pela filosofia dos pensadores.
FIM