SEMPRÚN, Jorge - Vinte Anos e Um Dia
SEMPRÚN, Jorge - Vinte Anos e Um Dia
SEMPRÚN, Jorge - Vinte Anos e Um Dia
No
dia 18 de julho de 1936, lavradores de uma fazenda perto de
Toledo, sonhando com a coletivização da terra, invadiram a
sede da propriedade e mataram um dos donos. Mortes trágicas
naqueles dias em que começava a guerra civil espanhola houve
muitas. Nesse caso, o inesperado veio depois: todo ano, os
parentes encenavam o crime como se fosse um espetáculo
teatral — os camponeses armados de escopetas e foices, a
invasão e o “assassinato” daquele que simbolicamente
representasse o morto. Com essa cerimônia sacramental a
família pretendia relembrar que os vencidos por Franco na
guerra civil tinham sido não só derrotados: eram também
assassinos.
É a esse estranho ritual que um historiador americano
assiste em julho de 1956, vinte anos e um dia depois da
tragédia. Mas vinte anos e um dia é também a pena a que são
condenados os dirigentes do Partido Comunista pegos pela
polícia política da ditadura. E justamente nesse dia, no ano de
1956, um delegado anda à procura de um certo Federico
Sánchez, agitador comunista. O historiador e o policial vão
puxar os fios das histórias dessa família enigmática, em
especial os amores misteriosos da belíssima viúva e os
tortuosos caminhos que tomam as paixões humanas.
Personagens complexos e inteligentes convivem com
Ernest Hemingway, o toureiro Dominguín, Enrique Mújica e
outros líderes comunistas da época, e, enfim, com Federico
Sánchez, pseudônimo usado pelo próprio Jorge Semprún nos
tempos da militância clandestina. O jogo entre ficção e
realidade se desdobra num jogo mais perigoso, entre a
Espanha repressora e conservadora e aquela família que
desafia todas as convenções sociais e morais de seu tempo.
Jorge Semprún nasceu em Madri, em 1923. Filho de
diplomata, mora na França desde muito jovem. Sobrevivente
do campo de concentração de Buchenwald, foi dirigente do PC
espanhol até 1964, quando foi expulso por defender uma linha
reformista. Escreveu, entre outros livros, o relato
autobiográfico, A escrita ou a vida (Companhia das Letras,
1995). Foi ministro da Cultura da Espanha de 1988 a 1991.
Vinte anos e um dia é o primeiro romance que Semprún
escreve em espanhol, sua língua materna — os anteriores
foram escritos em francês. Em 2003, recebeu o Prêmio
Fundação José Manuel Lara Hernández, atribuído ao melhor
livro de ficção publicado na Espanha.
JORGE SEMPRÚN
Tradução
Rosa Freire d’Aguiar
Título original
Veinte años y un día
Digitalização e revisão
(E)
Copyright © 2003 by Jorge Semprún
Publicado em espanhol por Tusquets Editores, Barcelona, 2003
A presente edição foi traduzida mediante ajuda da Dirección General del
Libro, Archivos y Bibliotecas do Ministério de Educación, Cultura y Deporte
de España
Título original
Veinte años y un día
Capa
Angelo Venosa
Imagem de capa
Judite e Holofernes, de Artemisia Gentileschi (1597-c. 1651). Nápoles, Museo di
Capodimonte. Copyright © 2003 Foto Scala, Florença. Cortesia de Ministero per i
Beni e le Attività Culturali
Preparação
Eugênio Vinci de Moraes
Revisão
Ana Marin Barbosa
Otacílio Nunes
Semprún, Jorge
Vinte anos e um dia / Jorge Semprún ; tradução Rosa Freire d’Aguiar, —
São Paulo Companhia das Letras, 2004.
04-6016 CDD-863.64
—————————————————————————————
[2004]
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ LTDA.
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1.
***
***
Horas antes, no final da manhã, Michael Leidson estava sentado numa das
poltronas de vime, no alpendre de La Maestranza.
“Raquel lhe trará um copo d'água”, dissera o intendente.
Raquel? Pensou em sua mãe, naturalmente. Lembrou-se da carta que ela
havia mandado pelo correio urgente. No lado esquerdo do passeio del
Tránsito, escrevia Raquel L. Toledano, há uma ruazinha que se chama Samuel
Levi. Onde está a casa-museu de El Greco. Esse Levi foi tesoureiro do rei
dom Pedro, mandou edificar a sinagoga a que acabo de me referir. Era parente
nosso, não muito chegado, mas parente. É a nossa rua, a de Samuel Levi. Mas
a casa cuja chave conservo não ficava ali. Ficava mais embaixo, mais perto da
San Juan de los Reyes e da ponte. E digo “ficava” porque foi derrubada
quando fizeram sei lá que urbanizações no século XVIII. Agora a chave só
abre as portas da memória, da fantasia...
Assim dizia mais ou menos a carta de sua mãe.
Lembrou-se dela enquanto contemplava a paisagem parda do planalto.
Depois notou uma presença suave, virou a cabeça. Era Raquel com um copo
d'água.
Deu um bom gole, encheu a boca de frescor. Respirou, bebeu de novo.
Estava com sede, desde os copos de orujo com Eloy Estrada em La
Prosperidad.
“Você é Raquel?” Olhava para a mulher, enquanto devolvia o copo vazio.
“Quer mais água?”, ela disse.
Tinha uma voz melodiosamente grave, com toques de sonoridade rouca,
cortante: provocativamente sensual. Mas logo em seguida Leidson corrigiu
esse adjetivo. Na verdade nada era provocativo na mulher, de aspecto ainda
jovem mas de luto fechado, sem enfeites nem cores vivas. Tez branca, natural;
lábios sem pintura; olhos pretos, sem nenhum realce artificial. Nada
provocativo, em suma, a não ser sua própria feminilidade, luminosa,
angustiantemente feminina. Bem, não angustiante em si, mas em Leidson, em
quem a presença de Raquel despertava, de modo súbito e irresistível, essa
leve angústia, esse tremor que sempre acompanha o surgimento de um desejo,
por mais fugaz ou irrealizável que seja: angustiantemente revelador de sua
própria virilidade.
Disse que não, que não queria mais água.
Mas voltou a sentir a boca seca. Já não era de sede, e sim de desejo.
Conteve-se, propôs-se dominar o repentino ardor que invadia seu peito,
subindo da virilha, sangue agitado, aos borbotões. Conteve o gesto absurdo
que nascia em seus dedos: acariciar sem aviso prévio a face de Raquel, sua
cintura, o quadril que evidenciava o porte ereto e altivo da mulher.
Desviou o olhar para a paisagem do altiplano e sossegou. Viu a fileira de
choupos, a planície de peças geométricas e desiguais costuradas, ocre,
amarelo, pardo. Parece um quadro de Caneja, pensou. Tinha conhecido o
pintor poucas semanas antes, ao visitar seu ateliê.
“Raquel, você estava em La Maestranza há vinte anos?”, perguntou sem
olhar para ela.
Antes que virasse a cabeça, ela começou a responder.
“Estava”, disse.
“E o que aconteceu?”
Olharam-se.
Michael Leidson teve a certeza, fugaz mas aguda, de que ela também
estava perturbada. Por sua presença masculina ou por ter reparado que ele
estava? Era ele que a perturbava ou ter reparado que ela o perturbava? Fosse
como fosse, sentiu circular entre os dois, impalpável e densa, a corrente
soterrada de um desejo. Não costumava enganar-se nesses momentos críticos.
Também não costumava se iludir, embora naquele exato momento essa certeza
inconseqüente o iludisse.
“Eram três da tarde”, dizia Raquel. “Eu estava enchendo os copos de água,
na sala de jantar. Os rapazes iam começar a almoçar. Ouviu-se lá fora a voz de
Mayoral, frenética, chamando seu José María. Ele saiu para o alpendre, pediu
o binóculo para observar os camponeses que vinham em tropel, pela estrada.
Da sala de jantar, com as portas abertas, vê-se tudo deste lado da casa. Dona
Mercedes e eu vimos...”
“Que idade você tinha, Raquel?”
“Dezessete”, disse ela.
A voz de Mayoral, lá fora, transtornada.
Pois é, eram três da tarde e acabavam de se sentar à mesa para o almoço.
Mercedes acariciava com o dorso da mão a toalha engomada. Sem a menor
dúvida algo se remexeu em sua memória, pois sorriu olhando para o marido.
Raquel estava enchendo de água fresquinha os copos, e os olhares de
ambos coincidiram ali, nas mãos da moça. O vidro se embaçava com aquele
frescor de cavidade subterrânea.
Raquel notou o duplo olhar.
Ergueu os olhos, ruborizada mas desafiante. Os três estariam se lembrando
da mesma coisa? Imaginou que sim. Imaginou que os três se lembravam da
estranha felicidade, brutal, a nascente de prazer obscuro descoberto naquele
amanhecer. Dois dias depois da volta de Biarritz, quando terminou a viagem
de lua-de-mel.
Raquel tinha ficado em Madri para esperá-los. Na casa de Madri, cujo
portão suntuoso, pomposo dava para a esquina formada pelas ruas Juan de
Mena e Alfonso XII, defronte do Retiro.
Os rapazes Avendaño continuavam chamando a rua por seu antigo nome de
Alfonso XII, não por motivos políticos, e sim por mero hábito. Quem teria a
idéia de chamá-la por seu novo nome de Niceto Alcalá Zamora? “Esse
negócio de Niceta parece gozação ou sacanagem”, dizia com displicente
deboche José Manuel, o primogênito. Mas ele, sim, podia dizer isso por
motivos políticos: sem dúvida, por isso dizia.
Seja como for, meio caçoando gentilmente de seu irmão mais velho, José
María lembrava-se de uma piada que na época estava na moda. Depois da
vitória da CEDA nas eleições gerais de 1933, Alfonso XIII tinha enviado um
telegrama a don Niceto Alcalá Zamora, presidente da República: “Ante la
CEDA cede. Te cito en Biarritz. Alfonso". Telegrama que o presidente
respondeu com outro, tão irreal como o primeiro, mas engraçado: “Ni CEDA,
ni cedo, no cita. Niceto".2
Mas naquele dia de julho de vinte anos atrás Raquel olhava para
Mercedes, via o sorriso terno e ambíguo de Mercedes.
José María olhava para as duas.
Entre eles a brancura crepitante da toalha engomada, que lembrava outra
brancura, como de sonho nevado: a dos sofás e poltronas forrados para o
verão, no salão penumbroso da casa da Alfonso XII naquela madrugada.
Ela teve a impressão de que seu José María ia dizer alguma coisa, quando
lá fora se ouviu a voz de Mayoral, estrondosa.
Vinte anos antes, exatamente no mesmo dia, e sob o mesmo sol de verão,
José María Avendaño saíra para o alpendre de La Maestranza e os
camponeses chegaram num tropel armado pela estrada de Quismondo.
“É, dezessete anos”, Raquel prosseguiu. “Nasci aqui, na fazenda. E minha
mãe também. E minha avó, a Satur. Ela já estava aqui quando chegou o Indiano
e ficou com a fazenda... O avô dos rapazes de hoje... Mas, bem, o senhor não
está entendendo nada: é uma história longa para contar...”
“Estrada me contou alguma coisa”, disse Leidson.
Ela deu de ombros, furiosa.
“Eloy? Contou-lhe a história do Indiano? E a de vinte anos atrás? Contou
onde estava há vinte anos?”
“Não se lembra”, disse Leidson.
Raquel fez uma expressão de desprezo. Tornou a encolher os ombros.
“Dona Mercedes e eu vimos tudo. Primeiro, da sala de jantar. Depois
fomos nos aproximando, assustadas, de mãos dadas, pelo salão de música,
pelo quarto do Indiano, quer dizer, a biblioteca, aproximando-nos, bem até o
limite do alpendre, aqui mesmo... Seu José María tinha se apoiado no
parapeito e mandou Mayoral trazer o binóculo. Para lá da fileira de choupos,
na estrada de Quismondo, avistava-se uma multidão de gente. E de
cavalgaduras também. Brilhavam as foices erguidas ao sol. E os canos das
escopetas. Quando Mayoral chegou com o binóculo, seu José María se virou
para pegá-lo e nos viu. Estávamos no salão de música. Sorriu para nós. ‘Trago
as armas?’, perguntava Mayoral, frenético. E ele gritou que não, que nem
pensar, que os acabariam matando do mesmo jeito. ‘Pegue o Oldsmobile’,
disse ele, ‘a maleta de couro que está na sala de jantar. E leve as mulheres,
depressa...’ Mas Mayoral resistia, queria ficar com o patrão, claro, para o que
desse e viesse. Seu José María se enfureceu. ‘Quem manda aqui, Mayoral?
Leve-as, ora essa!’ E Mayoral se conformou. Deu um grito, como um berro de
dor ou de raiva. Saiu correndo, tropeçou numa cadeira, nos puxou lá para fora,
para os fundos da casa...”
Raquel interrompe, seu olhar se perde na longínqua visão de um céu de
antigamente, de uma angústia ressurgida.
“Quando Mayoral virou o automóvel para o caminho de Quismondo, o
único por onde era possível fugir, voltamos a passar por aqui, defronte do
alpendre. Os camponeses já estavam entrando... E era fácil reconhecer os que
marchavam à frente da tropa. Havia Chesma, el Refilón... E Eloy Estrada...”
Leidson não se surpreendeu que Estrada ali estivesse, naquele dia de vinte
anos antes.
Raquel fez cara de resignação. Ou de indiferença.
“Já vinte anos”, disse. “Passar a esponja e vida nova. Mas que não diga
que não se lembra...”
Fez-se um silêncio. Do campo crestado não chegava um ruído. Cheiros,
sim, intensos.
“Se quiser”, disse Raquel, “acompanho-o até o seu quarto. Poderá se
refrescar. Dona Mercedes o espera para almoçar daqui a uma hora e meia.”
Leidson seguiu Raquel pelos corredores e escadas da casa.
“Estrada também diz”, Leidson acrescentou, “que amanhã será a última vez
que os mortos vão mudar de sepultura... E que há dois mortos...”
Na ampla galeria interna do primeiro andar, que rodeava um pátio
refrescado pelo murmúrio de algumas fontes, Raquel abriu uma porta. Afastou-
se, olhou para ele.
“A última vez, sim... Dois mortos, é verdade... O Eloy está bem informado,
como sempre...”
Mas Michael Leidson queria saber mais, notava-se.
“Amanhã enterram solenemente”, Raquel acrescentou, “numa cripta
especial, aqui mesmo, na fazenda, seu José María e Chema, El Refilón...”
Leidson a contemplava, imóvel na soleira da porta.
“Mas não sou eu quem conta as histórias... Dona Mercedes contará,
depois... Tenha um pouco de paciência...”
Entrou no quarto, mostrou a Leidson onde estavam as coisas: os armários,
os cabides, os travesseiros, a moringa de água fresca, o banheiro, as
campainhas. Todo o necessário.
Extasiado, ele a via mexer-se pelo quarto.
2.
Y entonces viniste tú
de lo oscuro, iluminada
de joven paciência honda...
Na verdade, dois dias depois do encontro deles, José María lhe deu de
presente um livro de Salinas publicado no ano anterior, La voz a ti debida.
Desde então, desde aquele primeiro presente, os versos de Pedro Salinas
acompanharam a sua história: a de seu amor. Bem, deve-se dizer tudo: os
versos de Salinas e a prosa de santo Agostinho. Mas desta se falará quando
chegar a hora, que ainda não é esta: nunca se deve atrapalhar a ordem
enigmática dos relatos.
Assim, naquela manhã de junho Mercedes entrou no restaurante do hotel
napolitano, alegre e decidida, deslizando pelo piso axadrezado, subitamente
despojada de qualquer sentimento de culpa, certa de atrair o olhar enciumado
das mulheres, o olhar deliciado dos homens.
Seu marido se levantou, ofereceu-lhe a rosa vermelha, incandescente,
puxou uma cadeira para que sentasse. O tango prosseguia, sua letra
melancólica prosseguia: “Desde que se fue/, nunca más volvió...”.
Prosseguiam os olhares concentrados no belíssimo casal que os dois
formavam.
Ambos pensaram na mesma coisa, no mesmo momento, como perceberiam
mais tarde. “Se soubessem que esta mulher não me pertence de verdade”,
pensou ele. “Se pudessem imaginar que ainda não sou dele", pensou ela.
Mas riram em uníssono, sem saber muito bem por quê. Sabendo, ao menos,
que adoravam se reencontrar, embora só tivessem ficado separados umas
poucas horas.
Mercedes tinha se sentado, olhava para ele, ria de novo.
“Estou com um apetite feroz”, murmurou.
José María captou a luz agoureira daqueles olhos, mas não adivinhou por
que refulgiam assim, promissores, não entendeu de quê. Obviamente, não
conseguiu imaginar que a Judite de Capodimonte tivesse algo a ver com a
alegria sensual perceptível na expressão de Mercedes.
“Apetite?”, disse ele. “Apetitosa está você... Feroz, talvez. Perguntaremos
a santo Agostinho...”
Mercedes pensou numa barbaridade, mas se conteve. Um garçom acabava
de se aproximar da mesa para anotar o pedido.
Mal fizeram o pedido, José María começou a lhe contar sua entrevista com
Benedetto Croce. Mas Mercedes não o escutava. E é uma pena, porque a falta
de atenção de Mercedes Pombo vai nos impedir de conhecer o conteúdo da
conversa, da qual um dos temas essenciais foi o papel dos filósofos — e mais
geralmente, mais genericamente também, dos intelectuais — nos tempos
sombrios das ditaduras. Finstere Zeiten, “tempos obscuros”, dizia José María.
Nessa altura, e com os elementos que temos à mão, de fato não é possível
suprir com um artifício narrativo a falta de atenção de Mercedes: temos de nos
submeter ao contexto arriscado mas imperativo da situação.
É que estamos nos referindo às peripécias daquele dia napolitano a partir
da lembrança de Mercedes, privilegiada, sem dúvida, porque sua memória é
única, insubstituível, já que José María Avendaño morreu. Nessas
circunstâncias, ele desaparecido e ela amnésica — por sua distração culpada
durante o almoço napolitano —, temos de desistir do conteúdo da discussão
entre Avendaño e Croce, e deixar que ela mergulhe no esquecimento, por mais
interessante que fosse. A não ser que, ulteriormente, outro documento ou
testemunho nos permita voltar a esse episódio e resgatar seu significado.
O fato é que naquele dia, em Nápoles, Mercedes não escutou seu marido.
Saindo do ensimesmamento, fez um gesto para interromper o que tinha todo o
jeito de virar uma longa divagação político-filosófica.
“O que você sabe de Artemísia Gentileschi?”, perguntou de chofre.
José María, em plena reflexão sobre o pensamento liberal, recebeu com
um sobressalto a interrupção abrupta. Assumiu também a pergunta concreta,
tentando localizar aquele nome de mulher num dos cantos da memória, de seu
vasto saber.
“É uma amiga sua?”, indagou enfim.
Mercedes lhe explicou.
Falou do Museu de Capodimonte, do quadro da Gentileschi. Lembrou-lhe
que tinham visto em Roma uma tela de Caravaggio sobre o mesmo tema.
Comentou as diferenças de tratamento pictórico. Mencionou o decote de
Judite, a beleza juvenil de sua criada. Referiu-se à impressão que a obra havia
lhe produzido.
Mas escondeu o essencial: o ardor sensual que a contemplação de uma
cena tão bárbara provocara em seu íntimo. Escondeu o estranho gozo, a ânsia
venturosa, à primeira vista inexplicáveis, e até reprováveis, que a descoberta
lhe despertou.
José María não soube lhe dizer nada sobre Artemísia Gentileschi, mas
prometeu se informar.
“De Judite, em compensação, sei tudo. Ou quase tudo. Conto?”
“Conte”, disse Mercedes.
Nesse momento dois garçons diligentes e espevitados começaram a servir-
lhes o primeiro prato do almoço. O perfume dos tortellini com lagostins era
tão suculento que Mercedes teve um ímpeto de alegria: algo físico, uma
sensação acalorada, uma emoção de dar nó na garganta, de fazer ninho em seu
peito: como se aquilo lhe desse água na boca.
Mas é que realmente estava com água na boca.
“Isto deve estar uma delícia!”, exclamou.
Esteve prestes a dizer a José María a barbaridade que lhe passara na
cabeça. Esteve prestes a propor-lhe que abandonassem logo o restaurante, sem
sequer começar o almoço, para subirem ao quarto e se enclausurarem,
fechando as cortinas, trancando a porta, pedindo para não ser incomodados,
acendendo uma lâmpada tutelar em um canto do quarto, abrindo de par em par
o leito matrimonial cujos lençóis ostentariam a imaculada brancura de uma
inocência prestes a sucumbir, gostosamente, “e me despirei diante de teu olhar,
me abrirei enfim ao teu vigor, bem, já sabes, não tenho palavras para
semelhantes coisas, teu sexo, não tenho fala, não sei nomeá-las, mas quero ser
totalmente tua, pertencer-te de verdade, enfim, que afundes em mim, me
penetres, me crucifiques...”.
Serás, amor,
un largo adiós que no se acaba?
Vivir, desde el principio, es separarse...
DILIGÊNCIA:
Para fazer constar, pois não é possível aprofundar, já que se trata de
assunto tão delicado como tudo o que se refere à Universidade, há bastante
tempo esta Primeira Brigada Regional acompanhava e vinha se preocupando
com a evolução política seguida por um grupo de universitários,
principalmente da Faculdade de Filosofia e Letras, evolução em que se via
uma orientação definida, tendendo a um “liberalismo” cuja base era o
transbordamento do Sindicato Espanhol Universitário. Expoente dessa
atividade é o Congresso de Jovens Escritores, ao que se seguem conversas e
preleções na citada faculdade, fazendo-se uso da “Tribuna do Estudante”, em
que se disserta sobre poetas e escritores comunistas.
O falecimento do filósofo ORTEGA Y GASSET dá lugar a que, com tal
pretexto, em diversos atos esse grupo de estudantes demonstre maior atividade
e menor recato em suas manifestações, tais como: a confecção de um anúncio
fúnebre sem o crucifixo, e a organização de um ato para transportar uma coroa
com a dedicatória “Da juventude universitária, a seu mestre”. E quando no
cemitério alguém sugeriu que se rezasse um pai-nosso, ENRIQUE MÚGICA se
opôs categoricamente, dando o ato por encerrado com a leitura de uma elegia
ao Mestre por JESÚS LÓPEZ PACHECO.
O que se acaba de expor justifica que as gestões de informação e
vigilância se concentrem nesses dois personagens supracitados, permitindo
determinar que o tal MÚGICA é um dos principais promotores do congresso
de escritores referido e que é secundado de forma ativíssima por JULIO
DIAMANTE STIHL, LÓPEZ PACHECO e JULIÁN MARCOS. Assinala-se
igualmente que foram eles que pretenderam organizar um ato na arda magna da
Faculdade de Filosofia, com a leitura de obras de RAFAEL ALBERTI e
PABLO NERUDA, ambos notórios comunistas. Tem-se igualmente
conhecimento por esta Primeira Brigada de que havia chegado a ditos meios
universitários propaganda do Partido Comunista, consistindo em Mundo
Obrero, Cuadernos de Cultura, propaganda específica do Partido Comunista;
como indicava o fato de alguns universitários terem sido vistos lendo a citada
propaganda.
Tudo isso demonstra a existência de uma cabeça dirigente que orientava
para seus próprios fins as atividades do dito grupo estudantil...
Pois bem, desse tronco tão saudável racial e espiritualmente tinha saído
um rebento cheio de rancor, de ódio por tudo o que havia de nobre, tudo o que
havia de autêntico na tradição cristã e civilizadora da Espanha.
Para don Roberto e todos os seus colegas da Brigada de Investigação
Social constava que o neto de don Victor e sobrinho de Juan José Pradera era
um dos maiores, talvez o maior responsável pelo movimento universitário de
oposição e de desagregação. Mas por seu sobrenome e pela situação de sua
família no Regime, pelo fato de ter acabado de ingressar no corpo jurídico da
Aeronáutica, a investigação policial em torno dele teve de ser feita com
cautela, em detrimento da eficácia.
De modo que, por exemplo, ele não pôde ser mandado para Carabanchel
como um preso qualquer. Foi preciso confiná-lo, sob um compromisso de
honra, na base do aeroporto militar de Getafe, onde podia receber visitas da
família e até dos amigos. Mesmo assim, os inspetores da Brigada tinham
conseguido descobrir suas conexões com os outros revoltosos, ligando os fios
de uma trama muito opaca.
Em suma, a informação e a vigilância não representavam maiores
problemas no caso do cabeça visível, e de certo modo legal, da revolta. Em
compensação, faltava descobrir o verdadeiro cérebro dirigente. Aquele que,
nos bastidores, dava ordens, consultas ou conselhos a uns e outros.
Don Roberto jogou num copo d’água uma boa dose de bicarbonato. Mexeu
muito tempo com uma colherzinha, pensativo.
Um dos inspetores do grupo da Primeira Brigada, responsável pela
investigação, achava que o verdadeiro artífice de toda a agitação, o homem
que servia de contato entre os veteranos chefes comunistas do exílio e os
novatos do interior, era um tal de Antonio López Campillo.
Natural de Algeciras, bem mais velho do que os outros estudantes
implicados na conjuração — tinha nascido em agosto de 1925 —, López
Campillo reunia, é verdade, certas condições que podiam torná-lo suspeito de
exercer um papel dirigente. Em primeiro lugar, nos últimos anos tinha viajado
a Paris com relativa freqüência. Em segundo lugar, não podia ser favorável
aos ideais do Regime, já que era um destacado elemento protestante da Igreja
Evangélica espanhola e do grupo Esfuerzo Cristiano, do templo situado no
número 25 da madrilenha rua de Calatrava.
Em 15 de dezembro de 1955, Campillo escrevera de Paris uma carta a um
de seus amigos madrilenhos, carta que foi interceptada numa inspeção
domiciliar e na qual havia diversas referências à “Sagrada Família”, aos
“padres da Sagrada Família”, linguagem abertamente críptica, codificada.
Consultado sobre esse detalhe, Manuel Carlavilla, da Direção Geral de
Segurança e renomado especialista de temas ligados ao comunismo, tinha
opinado — sua opinião constava da pasta de cópias e da documentação de don
Roberto, sob o número 6121 do registro de saída de tal Direção, com data de
28 de abril de 1956 — “que as denominações ‘Sagrada Família’, ‘padre da
Sagrada Família’, ‘os Padres’, ‘Sua Santidade’, ‘Santo Padre’ e outras contêm
indiscutivelmente uma alusão simbólica a elementos que devem ser
considerados dirigentes ou orientadores de atividades políticas. Já antes de
1932, quando o Comitê Central do Partido Comunista da Espanha era formado
por José Bullejos, Gabriel León Trilla e outros, eles receberam, por parte dos
próprios militantes desse partido, o qualificativo de ‘Sagrada Família’...”.
Mas essa carta de Paris do vulgo Campillo, para alguns inspetores prova
fidedigna de que o supracitado participava das altas esferas do comunismo no
exílio, ou que, pelo menos, tinha contato com elas, pouco significava para don
Roberto. Atendo-se à sua longa experiência, estava convencido de que um
verdadeiro responsável pelo trabalho clandestino jamais teria enviado, por
correio normal, uma carta tão imprudente, utilizando essas expressões. Só
podia tê-la escrito um neófito, um companheiro de viagem, um pombo-correio
da organização.
Era preciso buscar em outro lugar a maldita cabeça dirigente.
O delegado Sabuesa deu um só gole no copo d’água com bicarbonato.
Sentiu um alívio quase imediato e arrotou satisfeito, duas vezes.
Tinha uma opinião pessoal sobre esse assunto. Tão pessoal que ainda não
a havia comentado com ninguém.
Tinha um candidato para o papel de dirigente da conjuração. Estava certo
de conhecer seu nome e sobrenome. Mas não adiantava muito conhecê-los.
Pois era o nome, ou melhor, pseudônimo, de um mero fantasma. De um ser
inexistente, não identificável, difícil de identificar, além do mais. Nenhum de
seus confidentes de praxe, nem os informantes ocasionais ligados aos
sobreviventes, escassos, do naufrágio da organização comunista de Madri, no
final dos anos 40, possuíam informações sobre aqueles nome e sobrenome.
Nem tinham a menor idéia de onde teria surgido o personagem que usava
aquele pseudônimo, novo nos anais da clandestinidade.
Volta e meia, quando pensava com raiva ou tristeza nesse assunto, o
delegado tinha a impressão de ser espectador de um filme de mistério: uma
figura suspeita já apareceu em algumas seqüências, já estremecemos ao vê-la
se esgueirar secretamente nas cenas mais inocentes, talvez bucólicas, mas
ainda não sabemos seu nome verdadeiro, nem por que parece disposta a
assassinar a loura gostosa do hotelzinho ao lado. E, sobretudo, não sabemos o
que fazer para avisar à dita loura que ela corre perigo.
Assim, don Roberto tinha certeza de conhecer o nome, infelizmente
suposto, do dirigente, contato ou instrutor da cúpula externa do Partido
Comunista junto aos universitários madrilenhos. Poderia demonstrá-lo more
geometrico, com o rigor exigido para se desenvolver qualquer argumentação
matemática. Mas esse saber era inútil: de nada lhe servia.
Suas ruminações foram interrompidas, alguém batia à porta. Ouvia-se a
voz de Eloy Estrada.
“Posso entrar, don Roberto? Tenho uma informação para lhe dar...”
Disse que sim, que podia, que entrasse, que vejamos.
Estava vendo: era um cartão-postal representando, em cores
espalhafatosas, uma cena de degolação, desagradável, quase repugnante.
“Acaba de chegar”, dizia Eloy Estrada. “Da Itália...”
O olhar do delegado o envolveu em sua frieza.
“Eu recebo aqui o correio da aldeia”, Estrada explicava. “Antes que o
distribuam. E como o senhor parecia se interessar pelo jovem Lorenzo...”
Don Roberto não disse por que se interessava por Lorenzo Avendaño.
Olhou o cartão-postal, confirmou que vinha da Itália, de fato. De Florença,
segundo o carimbo do selo. Uma notinha em italiano dava o nome do pintor, A.
Gentileschi, o tema da obra. Tratava-se da degolação de Holofernes por Judite
e sua serva.
Mórbido, pensou o delegado. Logo leu o texto escrito com letra miúda,
mas perfeitamente legível:
Nesse artigo, que revela a forma como uma força que pretendia se manter
sigilosa continua querendo perturbar a vida normal dos espanhóis, o citado
editorialista de Mundo Obrero diz, em texto que ontem mesmo foi transmitido
como palavra de ordem pela Rádio España Independiente: “O estudante
comunista deve combinar as formas de ação legais e ilegais, prestando
especial atenção às formas de organização e de luta que surjam
espontaneamente na massa estudantil, para apoiar-se nelas sem dogmatismos
preconcebidos”.
Bem, não ia continuar a ler esses despropósitos.
Conhecia de coro jargão retórico dos agitadores comunistas: havia quinze
anos que lutava contra eles. O importante não era o conteúdo do artigo, cheio
de lugares-comuns e frases de efeito. O importante era sua assinatura,
Federico Sánchez. Pois o delegado havia feito uma pesquisa sobre esses nome
e sobrenome que apareceram durante as manifestações estudantis de fevereiro.
Cabia dizer o seguinte: em primeiro lugar, era um nome de guerra
relativamente recente. Até poderia se afirmar que era muito recente. De fato,
dois anos antes esse Federico Sánchez não existia. Pelo menos não aparecia
nas publicações do Partido Comunista. A primeira vez que don Roberto
conseguiu localizá-lo foi em um número — o 18, para sermos mais exatos —
da publicação Cuadernos de Cultura, número dedicado integralmente à
reunião do V Congresso do partido.
Segundo os dados que o delegado conseguiu coletar pacientemente, uns
fidedignos, outros aleatórios, o congresso tinha se realizado no final de 1954.
E no estrangeiro, é óbvio. Provavelmente em Praga. Seja como for, este é o
momento em que o fantasma de Federico Sánchez aparece pela primeira vez:
dizem os comunicados da propaganda comunista que ele foi nomeado membro
do Comitê Central. No mencionado número de Cuadernos de Cultura publica-
se seu discurso durante uma sessão do congresso.
Nesse caso tampouco interessa ao delegado o conteúdo político da
intervenção de Sánchez, em que, aliás, só são citadas e desenvolvidas as
linhas táticas do partido desses últimos anos, orientadas para se apresentar
como uma corrente política democrática, tolerante. Até patriótica, Deus nos
livre e guarde! Ele se interessa muito mais por certos detalhes da formulação
usada. Pois por seu léxico e seu enfoque concreto, a intervenção de Sánchez se
diferencia bastante dos textos dos velhos líderes. Ele deve ser um homem de
outra geração, e provavelmente não participou da guerra civil. Além disso,
por certos detalhes sobre a vida madrilenha fornecidos por Sánchez em seu
relatório, pode-se deduzir que não é um homem do exílio. Que conhece a
Espanha de hoje, onde talvez resida. Ou, no mínimo, onde passa temporadas
mais ou menos longas. Em suma, que se trata de um dirigente de novo tipo, de
uma nova geração de quadros comunistas, sem dúvida diferentes dos velhos
caciques formados na época da Cruzada, e essa novidade extrapolava o perigo
que representava.
Don Roberto acende um Ciganinho e pega o terceiro documento que queria
consultar mais uma vez.
Trata-se de um exemplar de Nuestra Bandera, “revista de educação
ideológica do Partido Comunista da Espanha”, como reza o subtítulo. Revista
ilegal, em papel de seda de boa qualidade, com colofão indicando que foi
impressa em Madri — falso: os comunistas imprimem tudo no estrangeiro — e
datada de 1956, sem maiores detalhes. Mas circulou pela universidade no mês
de abril ou de maio. Além disso, no curto artigo de Federico Sánchez, que
figura no sumário da publicação — junto com trabalhos de personagens muito
mais conhecidos: Santiago Carrillo, Manuel Delicado, Pedro Ardíaca e
Manuel Azcárate —, faz-se referência à morte de Ortega y Gasset, o que
também ajuda a definir a data de impressão. O mencionado artigo de Sánchez
se intitula: “Ortega y Gasset ou a filosofia de uma época de crise”.
O delegado da Brigada Social guarda os três documentos na pasta
correspondente. Anota algumas conclusões em sua agenda pessoal.
Mas isso foi antes, umas horas antes, na taberna e armazém de Eloy
Estrada. Agora ele está no salão de música de La Maestranza, tomando um
drinque com os convidados do jantar. Se bem que, para falar a verdade, os
únicos que tomam drinques sejam ele e José Manuel Avendaño. O americano
bebe suco de laranja e os outros, água de Solares.
“Mas claro, a coordenação de princípio de Avenarius!”
Ouve essa exclamação às suas costas. Reconhece a voz de quem fala,
recém-chegado à reunião, um tal de Perales. Tinha entrado nesse salão de
música pouco antes de Raquel apresentar a Mercedes Pombo o cartão-postal
de Lorenzo, numa bandeja de prata. Ela havia se afastado para ler o postal de
seu filho. Depois diria em tom declamatório o “Virgem santa, que começo!”,
que o levou a pensar no Tenorio, de Zorrilla.
O recém-chegado era um sujeito mal-apessoado, bem rechonchudo, mas
ágil no andar, e cujos óculos grossos de madrepérola não escondiam um olhar
espreitador, talvez atravessado. José Ignacio, o jesuíta, tinha se abraçado ao
desconhecido, mais tarde apresentado como Perales, Benigno Perales. Um e
outro felicíssimos de se encontrarem.
“Trouxe para você dois presentes da Alemanha”, disse-lhe o jesuíta. “Você
vai ver...”
Os olhos do outro brilharam. As lentes chegaram a embaçar de emoção.
“Livros, imagino”, disse.
O jesuíta cochichou alguma coisa em seu ouvido e Perales bateu palmas de
satisfação.
“Já vou lhe dar”, replicou José Ignacio. “Temos muito que conversar.”
Em seguida recomeçou a discussão sobre Ortega y Gasset que José Ignacio
Avendaño havia entabulado com o americano. Nela se interpunha Perales,
peremptório.
O delegado virou as costas para eles, mal-humorado.
A figura de Perales não era desconhecida: tinha certeza de que já havia
cruzado com ele algum tempo atrás. Muito tempo, sem dúvida. Não era uma
recordação recente. Mas Sabuesa gozava de uma memória prodigiosa, quase
fotográfica: anos depois era capaz de identificar uma fisionomia, mesmo que
só a tivesse visto uma vez. Pois bem, essa memória era seletiva: só funcionava
sem erros e errâncias no contexto de sua atividade profissional. Assim, por
exemplo, e para grande tristeza de sua esposa, nunca reconhecia as amigas
dela que iam toda semana jogar cartas em sua casa. Em compensação, as
feições de qualquer suspeito — e foram centenas — que houvesse passado por
seu escritório, mesmo que só uns minutos, ao longo dos muitos anos de sua
atividade policial, ficavam gravadas em sua memória.
Onde e quando teria visto esse Perales?
Como se não bastasse, o delegado tinha não só a impressão, poderia quase
dizer a convicção, de já ter encontrado o sujeito em circunstâncias que o
tornavam obrigatoriamente suspeito, mas também a certeza de conhecer o
estranho nome que o intruso evocava: Avenarius. O nome lhe dizia alguma
coisa, sem a menor dúvida. E dizia alguma coisa em relação a uma
investigação policial. Por ora, não sabia qual, mas já, já tudo se esclareceria.
Em todo caso, alguma coisa recente. Tinha um cérebro bem organizado e
sempre acabava esclarecendo as intuições ou iluminações que faiscavam
dentro dele, ao acaso de uma associação de idéias ou vocábulos. Perales e
Avenarius: acabaria por identificar os dois se tivessem algo a ver com a
subversão comunista.
Enquanto isso, prosseguia às suas costas a discussão sobre Ortega y
Gasset. Mais que uma discussão, era, na verdade, uma peroração do tal
Perales, que os outros dois escutavam atentos, o que era evidente por alguma
pergunta que lhe faziam, sem dúvida pertinente, já que provocava novas e mais
detalhadas explicações dele, encantado de exibir seu saber: notava-se isso em
sua voz retumbante.
Pelo que se deduzia do relato de Benigno Perales, fazia poucos meses que
ele se encarregara de pôr em ordem e catalogar a biblioteca da casa — assim
se explicava que don Roberto não o tivesse conhecido um ano antes, na
primeira vez em que assistiu à cerimônia expiatória de La Maestranza.
Biblioteca impressionante — foi este o adjetivo que Perales usou várias
vezes —, cheia de tesouros bibliográficos, e até de bibliófilo, e ao que parece
reunida pelo avô fundador, e depois ampliada por seus sucessores. Seja como
for, um deles, ou talvez o próprio avô — na linguagem doméstica dos donos e
dos empregados, a biblioteca se chamava, significativamente, “salão do
Indiano” —, tinha colecionado numerosíssimos volumes de literatura e de
filosofia alemã do século XIX e começo do XX. Perales enumerava títulos e
nomes que para o delegado eram desconhecidos, dos quais ele não tinha a
menor idéia, mas que provocavam o assombro e a admiração de seus dois
interlocutores. Nessa lista voltou a surgir o nome de Avenarius, que já tinha
chamado a atenção de Roberto Sabuesa, desde a primeira interjeição de
Perales. Pela segunda vez convenceu-se de que o tal Avenarius tinha a ver com
algum caso policial que passara recentemente por suas mãos.
Então se virou para o trio da discussão orteguiana a fim de acompanhar
mais de perto o que ia se dizer sobre o maldito Avenarius. E ao se virar
percebeu que Mayoral, o intendente da fazenda, tinha entrado no salão de
música e, muito excitado, mas em voz baixa, estava contando alguma coisa a
dona Mercedes e a José Manuel Avendaño.
“Mas não diga”, espantava-se José Ignacio, o jesuíta, “Avenarius, é
verdade? O próprio?”
“O próprio, é claro”, Benigno Perales respondia, maravilhado. “O
mesmíssimo: aquele que figura tão mal no livro de Vladimir...”
“Mais que livro, um libelo”, o jesuíta elucidava. “Acho que já lhe
demonstrei isso há anos...”
O outro mexia a cabeça num gesto que podia ser tanto afirmativo como
dubitativo.
O que estava fora de dúvida é que o Avendaño jesuíta e o tal Perales,
agora bibliotecário de La Maestranza, se conheciam muito bem, embora este
último não estivesse vivendo na fazenda no ano anterior.
Mas o americano intervinha.
“Quando vocês falam de Vladimir nós podemos escrever Illitch, não é
isso?”
Os dois confirmaram categoricamente, com gestos e monossílabos
explícitos, que era isso mesmo, de fato. Mas que o mencionado Vladimir se
transformasse inopinadamente em Illitch não permitia que o delegado o
identificasse.
Em compensação, ficou claro que esse maldito Avenarius tinha escrito
ensaios de filosofia e que num deles — por certo, o jesuíta corrigiu
suavemente a pronúncia alemã do título, enunciado por Perales —, justamente
nesse, o fulano havia formulado a tese, que depois Ortega faria sua, sem
anunciar a fonte, do “eu e sua circunstância”. A partir daí, a discussão
ultrapassou amplamente as possibilidades de entendimento de don Roberto.
Mas ele estava pouco se lixando de não entender quase nada do que se
dizia sobre a relação entre Avenarius e Ortega, sobre a antelação das teses do
primeiro. O que o preocupava, por não ser lógico — e a lógica é uma das
ciências-mestras de toda investigação séria, e também da policial — era que o
tal Avenarius tivesse escrito no começo do século um ensaio em que Ortega y
Gasset teria se inspirado — pelo menos segundo Perales — e que o mesmo
sujeito pudesse, contudo, ter algo a ver (sua infalível memória permitia
afirmá-lo, até mesmo antes de poder documentá-lo) com uma recente pesquisa
ou inquérito da Brigada Social.
As datas não batiam, é claro.
Mas isso se esclarecerá: tudo se esclarecerá. Não há mistérios que me
resistam, pensa o delegado num momento de eufórica arrogância que o leva a
erguer os olhos e olhar fíxamente para o rosto de Benigno Perales.
***
Este sustenta o olhar, pensando consigo mesmo que Sabuesa acabará por
reconhecê-lo. Desde o primeiro instante percebeu que o delegado o observa
de cenho franzido. Com uma curiosidade disfarçada, mas constante. Como se
na nebulosa de sua memória estivessem se depurando uma imagem, uma cena,
talvez um cenário, que custassem a se recompor com nitidez, a se cristalizar
com clareza.
Desde o primeiro instante, desde que entrou no salão de música, Perales
teve a certeza de que o delegado se lembrava dele, embora não conseguisse
identificar perfeitamente a lembrança.
Ele, de seu lado, não duvidou nem um segundo. Reconheceu Roberto
Sabuesa assim que o viu. Claro que era mais fácil ele se lembrar do delegado
do que este se lembrar dele. Dez anos tinham se passado desde o encontro dos
dois, numa sala da Direção Geral de Segurança. Mas por aquela sala, sem
dúvida, teriam passado dezenas ou centenas de presos. Ele, entre tantos:
Perales, Benigno. Um dos tantos: anônimo, de certo modo. Em contrapartida,
Sabuesa era único. Na memória dos detidos, impossível confundi-lo com outra
pessoa.
Quando entrou naquela sala da Puerta del Sol, dez anos antes, Benigno
Perales já tinha levado muita paulada nas sedes da Brigada Social. Dia e
noite, durante dias e noites. Seu corpo debilitado já era uma só bolsa de dor,
um saco de angústias viscerais. Mas dele não conseguiram arrancar uma só
informação, um só nome, nem mesmo a confirmação de dados ou nomes que já
conheciam. Só falou para revelar seus sinais de identidade. Contudo, uma vez
permitiu-se a fanfarronice de lhes contar um episódio de sua infância em
Quismondo. Escutaram-no um instante, talvez por estupefação. Ou por cansaço
de tanto surrá-lo. Seja como for, quando subiram com ele até a sala do andar
nobre da Direção Geral de Segurança, Benigno estava quebrado fisicamente
mas moralmente inteiro. Talvez porque já estivesse mais além da dor. Mais
além também da esperança. Num deserto de solidão: ou melhor, de
solidariedade solitária. Já nada podia lhe acontecer, em todo caso, nada de
determinante. Entrou na sala e soube que era o delegado Sabuesa. Ele estava
mexendo com uma colherzinha um copo d’água com bicarbonato. Aspecto de
cansaço cinzento, displicente. Soube que era Sabuesa por causa do
bicarbonato. Por aquele olhar cinza e sordidamente odioso. Isto é: coalhado
de ódio.
É que, desde que havia organizado, em 1939, a captura e o fuzilamento de
um grupo de moças das Juventudes Comunistas de Madri — as “treze rosas”,
na memória mítica da resistência —, o delegado Sabuesa era famoso, triste,
abominavelmente famoso, entre os militantes. Praticamente todos, até que por
volta de 1949 fossem varridas as últimas organizações clandestinas, teriam
algo a ver com Sabuesa. Teriam que se haver com ele: ver-se cara a cara com
ele. E ali estava, na sua sala da Direção Geral de Segurança, mexendo uma
colherzinha num copo d'água com bicarbonato.
Tantos anos antes, o delegado tinha erguido os olhos, observado sua
chegada. Um olhar cinza, coalhado de ódio desalmado, desesperado. Gomo
esquecer aquele olhar? Benigno Perales não esquecera.
Benigno entrou no salão de música quando ali já estavam reunidos todos
os convivas do jantar. Lá estava Leidson, o historiador norte-americano.
Pouco antes o encontrara na biblioteca, lendo o que diz o dicionário de Madoz
a respeito de Quismondo. Benigno voltava com um livro curioso que tinha
descoberto ao estabelecer o novo catálogo: um dos muitos livros curiosos que
iam aparecendo naquela biblioteca milagreira, à medida que ele avançava em
seu trabalho de catalogação.
Tratava-se de um livro in-oitavo, primorosamente impresso e encadernado
em couro, embora sem referência ao editor. No lugar habitual do colofão só
figurava a data de publicação, 1773, em algarismos romanos, é claro. Escrito
em francês, idioma das idéias universalistas da época, o livro também não
trazia nome de autor. Mais exatamente: apresentava-se como obra póstuma,
ouvrage posthume, de M.B.l.D.P.E.C. Uma acumulação de iniciais
inverossímil que equivalia a um anonimato desejado. Esse dado, assim como a
falta de colofão, certas características da tipografia e do papel utilizado
levaram Benigno Perales a conjecturar que o volume, por seu conteúdo
subversivo — sob o título Recherches sur l’origine du despotisme oriental
desenvolvia-se um arrazoado violentíssimo contra os governos teocráticos,
uma defesa e ilustração das idéias ilustradas, com o perdão da repetição —,
tinha sido impresso em Amsterdã, como costumava ocorrer naqueles anos de
gestação dos primórdios do pensamento crítico moderno. Essa suposição de
Perales era reforçada pelo ex-libris na página de rosto, atribuindo a
propriedade do precioso volume a um certo Agostinho de Mendonça Falcão,
presumivelmente membro da ilustre e erudita comunidade judaica portuguesa
daquela capital nórdica do comércio e das belas-letras.
Seja como for, Perales se interessara sobremodo pela supracitada pesquisa
a respeito do despotismo oriental, tendo-a lido com fruição.
Portanto, duas horas antes, ao entrar na biblioteca para devolver o livro à
estante recém-arrumada e catalogada, encontrou Michael Leidson, absorto na
leitura de um tomo do Diccionario geográfico-estadístico de España y sus
posesiones de ultramar, de Pascual Madoz. Imaginou, e na verdade adivinhou,
que o americano — de cuja vinda a La Maestranza já estava informado —
estaria lendo o verbete relativo a Quismondo. Também o tinha lido, meses
atrás, quando lhe coubera fichar e colocar o bendito dicionário na prateleira
que lhe correspondia após a nova arrumação. Seguindo a ordem alfabética,
Quismondo aparecia entre Quisicedo e Quitapesares. O verbete seguinte
deixara Benigno maravilhado: Quitasueños. Tratava-se de uma granja da
província de Sevilha, no distrito de Alcalá de Guadaira: até as granjas e
fazendas estão citadas no Madoz! “Pois é”, dizia Leidson, sorridente, “eu me
divirto com o estilo descritivo de don Pascual. Lembra-se do que escreve
aqui?” Leu em voz alta umas linhas do dicionário: “‘é de clima temperado,
com boa ventilação, e sofre-se de catarros...’. Fantástico, não é? Os catarros
de Quismondo, parece um título de comédia de costumes rural...”.
Em suma, Leidson e ele logo simpatizaram um com o outro. Em meia hora
já estavam fazendo confidências sobre suas respectivas ilusões vitais.
Assim, o americano estava conversando com José Ignacio quando Benigno
entrou no salão de música, antes do jantar. Aproximou-se deles, abraçou o
Avendaño jesuíta. Este vestia um impecável terno de verão, de seda preta, em
que só o colarinho de clérigo impunha um sinal distintivo. José Ignacio lhe
anunciou que trazia para ele dois presentes. Livros? Isso mesmo, livros, como
Deus quer. Bem, nesse caso, não sei se Deus quer, cochichou em seu ouvido:
trata-se de um livro de Marx até agora inédito, os Grundrisse, que talvez
possa ser considerado o rascunho de O capital, e de uma edição alemã do
relatório secreto de Kruschev. Por pouco não pediu a José Ignacio que lhe
desse imediatamente os dois textos, mas era impossível: não podia deixar de
comparecer ao jantar para ficar lendo, trancado. Deixaria para depois, tinha a
noite pela frente.
Leidson e Avendaño estavam falando de Ortega y Gasset e Benigno se
meteu na discussão.
Acabava de fazer uma descoberta filosófica que considerava importante e
que queria comunicar sem demora: terminava de descobrir as fontes da
formulação orteguiana sobre o “Eu sou eu e minha circunstância”.
Com efeito, ao tirar a poeira, arrumar e catalogar os milhares de livros da
biblioteca do Indiano, Benigno tinha encontrado uma pilha de livros alemães
do final do século XIX e começo do XX. Três particularmente chamaram a sua
atenção. Pelo nome do autor: Richard Avenarius. É verdade que só conhecia a
obra desse filósofo por referências, já que ele tinha sido o alvo privilegiado
das iras de Lenin (“Vladimir”, conforme dissera; “Illitch”, Leidson tinha
esclarecido) em seu livrinho Materialismo e empirocriticismo.
Pois bem, prosseguiu Benigno, entusiasmado com seu achado, daquele
famoso Avenarius havia três livros na biblioteca do Indiano, vá saber por quê.
Os volumes da Kritik der reinen Erfahrung e um terceiro intitulado Der
menschliche Weltbegriff no qual, justamente, estava a tese da coordenação de
princípio entre o Eu e o Mundo, cuja formulação por Avenarius era exatamente
a de Ortega, Ich und meine Umgebung: “Eu e minha circunstância”. Mas a
dele era anterior de vários anos à orteguiana, e portanto já era conhecida nos
meios universitários alemães em que o jovem filósofo espanhol foi
aperfeiçoar seus estudos.
Na verdade, se Benigno Perales expunha sua tese com tanta paixão e
exatidão — pode-se dizer que até mesmo com excessiva volubilidade —, e se
arrastava os dois outros para divagações tão eruditas, era sobretudo para
evitar, ou pelo menos postergar, o momento de seu enfrentamento com o
delegado Sabuesa. O momento, sem dúvida inevitável, em que este, cujo olhar
não parava de persegui-lo e avaliá-lo, se lembrasse de onde, por que e quando
o tinha visto pela primeira vez. Não é que Perales temesse a irrupção dessa
lembrança policialesca, nem de longe. Na verdade pouco se lhe dava que o
sacana do Sabuesa o acabasse reconhecendo. Mas o incomodava a idéia de
que esse reconhecimento provocasse um incidente desagradável na casa dos
Avendaño. Por Mercedes, é claro, pela tranqüilidade de Mercedes.
No entanto, nada aconteceu. Melhor dizendo, aconteceu alguma coisa, mas
que não tinha nada a ver com esse assunto, com aquele encontro longínquo
numa sala da Direção Geral de Segurança. Na verdade, o delegado Sabuesa
não se lembrou das circunstâncias exatas em que, pela primeira vez, tinha
cruzado com Perales; só se lembrou mais tarde, e de uma forma que não
convém nem há tempo para antecipar, aqui e agora, porque Raquel, com seu
andar leve e harmonioso, acaba de entrar no salão de música.
“Cavalheiros!”, disse Raquel, para chamar a atenção dos presentes.
Viraram-se para ela.
Só o delegado tinha percebido a aparição de Mayoral pouco antes. Só ele
tinha se fixado na acalorada discussão — pelos gestos podia se adivinhar que
era — que o intendente de La Maestranza estava tendo com o primogênito dos
Avendaño, José Manuel, e com a cunhada dele, Mercedes Pombo. Mais que
discussão, pensou don Roberto, parecia que Mayoral trazia uma notícia
importante, provavelmente má, desagradável sem dúvida, a julgar pelos gestos
e expressões que, ao escutá-lo, os outros dois faziam. Em seguida escapuliram
do salão e agora, dez minutos depois, Raquel voltava e solicitava a atenção de
todos, com voz alta e peremptória.
“Dona Mercedes me encarregou de pedir mil desculpas, cavalheiros.
Haverá certo atraso no serviço do jantar... Seu José Manuel e ela estão
resolvendo um assunto urgente...”
“Tem a ver com a festa de amanhã?”, perguntou o delegado, inquisitivo.
Raquel deu um pulo.
“Festa? Nós não a chamamos assim...”
O delegado deu de ombros.
“Bem, você me entendeu. Tem a ver com a coisa de amanhã, pouco importa
como se chama?”
Tinha a ver, é óbvio. Mas Raquel não respondeu à pergunta imperativa do
delegado Sabuesa. Não era ela quem contava as histórias, como dissera ao
gringo bonitão — assim dona Mercedes o havia chamado, sorridente —
naquela mesma manhã. Ela as vivia, talvez, isso sim, mas sem contá-las.
Virou os olhos para Leidson, que estava se aproximando, enquanto
Benigno e José Ignacio continuavam afastados, em silêncio, na expectativa.
Raquel captou o olhar de Leidson, sustentou-o no fulgor transtornado do seu,
por um instante: quase uma eternidade.
“Quanto de atraso?”, perguntou José Ignacio. “Pouco importa, de toda
maneira, ainda é cedo...”
Virou-se para Benigno.
“Você pode nos contar mais alguma coisa desse Avenarius...”
Então ouviu-se um grito, quase um clamor, se bem que logo sufocado,
reprimido. “Avenarius!”, uivava o delegado. “É isso: Federico Sánchez!”
Todos olharam para ele, surpresos com aquele súbito berro.
Mais tarde, quando tiveram ocasião de se lembrar do incidente e comentá-
lo, perceberam que nenhum dos três tinha entendido a mesma coisa. Melhor
dizendo: o nome de Avenarius, sim, todos ouviram e entenderam.
Compreende-se: o estavam citando a todo instante, enquanto escutavam as
explicações de Perales sobre a origem da fórmula orteguiana do “eu sou eu e
minha circunstância”. Foi a segunda parte do confuso uivo que não entenderam
da mesma forma. José Ignacio Avendaño, sem dúvida por sua formação ou
deformação profissional, que era de escolástica e de clericato, entendeu
Tomás e não Federico Sánchez. Na verdade, o que tinha ouvido e gravado na
memória era o sobrenome Sánchez, ao qual antepôs de imediato o nome de
Tomás num tortuoso, embora fácil de explicar, processo mental de
associações: Tomás Sánchez foi, na verdade, um teólogo andaluz do final do
século XVI, jesuíta e reputado casuísta, cujo tratado mais conhecido, De
sancto matrimonii sacramento, josé Ignacio tinha folheado em algum
momento de sua estudiosa juventude.
Pois bem, o que não entendeu foi o porquê da conexão ou concatenação
dos dois nomes, tão díspares, Avenarius e Sánchez, no súbito grito do
delegado.
De seu lado, Benigno Perales não percebeu claramente o sentido da
exclamação de don Roberto. Ouviu-o gritar, notou que seu rosto expressava
uma surpresa extática, talvez uma satisfação meio histérica, mas não soube a
que atribuí-las. Primeiro pensou que Sabuesa o teria finalmente identificado, e
que acabara se lembrando, de repente, do distante encontro em sua sala da
Puerta del Sol. Mas logo compreendeu que não era isso. Além do mais, tanto
Avenarius como Federico Sánchez não tinham nada a ver com o distante
encontro na sala do delegado Sabuesa.
O único que ouviu os dois nomes, tal como pronunciados, foi Michael
Leidson, o americano. Ouviu “Avenarius” e ouviu “Federico Sánchez”,
efetivamente. De Richard Avenarius e da influência provável dele na filosofia
de Ortega y Gasset acabava de se inteirar pelas minuciosas explicações de
Perales a respeito do livro descoberto na biblioteca de La Maestranza, Der
menschliche Weltbegriff. De Federico Sánchez também sabia alguma coisa.
Isso porque, assim como o delegado Sabuesa, mas por motivos radicalmente
opostos — por interesse e simpatia, em suma —, Leidson havia se ocupado
intensamente da revolta universitária de fevereiro. Tinha perguntado,
indagado, bisbilhotado, acumulado documentação de todo tipo, escrita e oral,
sobre o episódio. Como Sabuesa, Leidson tinha se dado conta da recente
aparição desse nome de guerra na história da clandestinidade comunista. Sem
dúvida sabia um pouco mais do que Roberto Sabuesa a respeito daquele
fantasma, pois circulava nos meios estudantis e intelectuais de Madri com
mais desenvoltura do que o policial.
Ainda assim, o que o historiador americano também não entendeu no
primeiro momento foi a ilação ou relação que o grito do delegado parecia
estabelecer entre ambos. “Avenarius! É isso: Federico Sánchez!”
Não fazia o menor sentido.
O mistério só se esclareceu dois dias depois, com a chegada de Lorenzo
Avendaño a La Maestranza. Dias antes, ele tinha voltado para Madri, após
uma longa viagem pela Itália, e tentara retomar contato com um dos
responsáveis da organização universitária comunista.
Múgica estava em San Sebastián, sua terra natal, para onde tinha se
mudado ao sair da prisão. Fernandito Sánchez Dragó, foi impossível localizá-
lo. Mas Lorenzo conseguiu falar com Pradera. Almoçaram juntos numa taberna
da rua Alcalá, La Taurina, e depois ficaram conversando no Retiro, sentados
num banco à sombra, perto do laguinho do Palácio de Cristal.
Pradera lhe contou o que tinha acontecido em Madri desde que ele fora
para a Itália. E Lorenzo, ainda maravilhado com as descobertas de sua viagem,
lhe falou dos museus, dos livros que tinha comprado, dos comícios do PCI aos
quais tinha assistido. E de uma festa na casa de María Zambrano, em Roma.
“Imagine só a coincidência”, dizia Lorenzo, “estava lá um tal de Semprún
Gurrea, que é algo assim como um embaixador ou representante do governo
republicano no exílio. E que foi amigo de meu pai. Ele me falou do último
encontro deles, praticamente há vinte anos, horas antes de eclodir a guerra
civil. Aqui em Madri, na casa de um amigo comum, um médico, um tal de
Eusebio Oliver. E naquela noite Lorca leu para eles A casa de Bernarda Alba,
que acabava de escrever. Incrível, não é?”
“Quando nada, novelesco...”, Pradera comentou.
Mas a este, o que lhe interessava, mais do que as rememorações de García
Lorca, eram os livros que Lorenzo tinha trazido da Itália. Tanto assim que
passaram um instantinho pela casa dos Avendaño, na rua Alfonso XII, para que
Pradera pegasse um volume de Gramsci.
Depois, ao cair da tarde, estiveram no apartamento de Domingo
Dominguín.
(Que o leitor não estranhe nem se regozije, caso seja maldoso — há
leitores para todos os gostos e desgostos —, pensando que o Narrador perdeu
o fio e se esqueceu de que estava esclarecendo o significado da exclamação
extemporânea do delegado Roberto Sabuesa. De fato, nem se perdeu o fio nem
se chegou ao fim do relato: caminhamos rumo ao anunciado esclarecimento,
com passo seguro embora desenvolto. E foi Dominguín que proporcionou a
Lorenzo, decerto sem saber, a oportunidade para que, dois dias depois, fosse
possível entender o que passava pela cabeça do policial quando juntou num só
uivo, surpreendentemente, os nomes de Avenarius e Federico Sánchez.)
Não se pode dizer que naquela tarde reinasse um clima de paz e sossego
reflexivo no apartamento da rua Ferraz. Portas eram abertas e fechadas
estrepitosamente, crianças e adultos corriam pelos corredores. Tudo indica
que a “Patata” (assim era o apelido, estranho, já que se tratava de uma menina
bonita, da filha mais velha de Domingo, ao passo que a segunda — na
verdade, terceira, mas o primogênito era um menino, Domingo, como o pai —,
a segunda, de nome Marta, recém-nascida, tinha o apelido de “Yuri”,
certamente em homenagem ao primeiro cosmonauta russo), que a Patata,
portanto, tivera um acidente a caminho do colégio e esperava-se com angústia
a chegada de um médico que prognosticasse as conseqüências da queda,
colossal, segundo proclamava o coro choroso e barulhento das governantas.
Como se não bastasse, na ante-sala daquele oitavo andar um sujeito robusto e
furibundo exigia aos gritos, sendo a duras penas contido pelos dois
empregados da praça de touros de Vista Alegre, o pagamento imediato de uma
fatura ou dívida de cem mil pesetas, supostamente um compromisso de
Domingo Dominguín.
Este, sem sequer se alterar, estava num dos quartos do fundo. Tinha
colocado uma compressa fria na testa da Patata e falava com ela a meia voz,
meigo (“Patatita, meu amor, filhinha adorada...”), esperando a chegada do
médico. O que não o impedia de manter com Padrera e Avendaño, que haviam
se introduzido no quarto driblando obstáculos e gritarias de todo tipo, uma
conversa animada.
“Vou lhe dar uma coisa para Perales”, Domingo dizia a Lorenzo. “Prometi
a ele.”
Virou-se para Pradera.
“Sabe quem é Benigno Perales? Deveria conhecê-lo. Um cara de
Quismondo, genial... Esteve na prisão, conhece todas... Comunista autônomo,
agora não tem contato regular com a organização...”
Assumiu um tom de voz brincalhão.
“Deveria ser nosso principal teórico. Nosso mestre!... Imaginem como
seria cômodo: em vez de termos de consultar Paris sobre os problemas
teóricos que surjam, iríamos a Quismondo... Logo ali na esquina... Em vez de
marxismo-leninismo, que soa bastante exótico, teríamos marxismo-peralismo...
Muito mais castiço, não é?”
Riram, Domingo se afastou um momento, remexeu dentro de um armário e
do meio de uma montanha sedosa de lingerie feminina tirou um exemplar do
último Mundo Obrero e outro de uma revista de tamanho reduzido, Nuestra
Bandera, publicações clandestinas do Partido Comunista.
Lorenzo guardou no bolso aqueles papeluchos a fim de levá-los para
Benigno Perales dois dias depois.
E foi assim que Benigno e ele descobriram juntos, em Nuestra Bandera,
um artigo do tal Federico Sánchez sobre a filosofia de Ortega y Gasset em que
se podia ler a seguinte frase: “Já em 1894 o senhor Avenarius pretendia
revolucionar a ciência, superando a oposição entre materialismo e idealismo
com sua famosa ‘coordenação de princípio’ — desmascarada por Lenin em
Materialismo e empirocriticismo —, ao escrever que o eu e o meio ambiente
(o que Ortega chama circunstância) sempre se dão conjuntamente”.
Mas ainda não chegamos a essa altura da narrativa. É que o Narrador, seja
ele quem for, antecipou um pouco os dados objetivos que foram se
alinhavando cronologicamente diante do atento e amável leitor (sempre
convém supor que ele é atento e amável, do contrário seria excessivamente
árdua a tarefa do narrador, escriba, escrivão ou escrevinhador).
Na verdade, ainda estamos no salão de La Maestranza, antes de um jantar
que está demorando por motivos desconhecidos, no dia 17 de julho de 1956.
Lorenzo só chegará à fazenda amanhã, com Isabel, sua irmã gêmea.
E o delegado Sabuesa acaba de dar um grito descontrolado, quase
histérico, porque de repente se lembra de onde e quando viu aquele estranho
nome mencionado por certos convidados: Avenarius. Ele o viu num artigo
recente de Federico Sánchez, no exemplar de Nuestra Bandera que tornou a
folhear hoje mesmo.
Por isso grita, exagerado, excitadíssimo.
“Avenarius! É isso: Federico Sánchez!”
4.
***
Mas isso foi há tempos, anos atrás, numa sala da Direção Geral de
Segurança.
Agora estamos em La Maestranza, uma fazenda da província de Toledo, na
noite de 17 para 18 de julho de 1956.
O delegado Sabuesa, depois de consultar mais uma vez os documentos
relativos à revolta estudantil do último mês de fevereiro, está rememorando,
morosa e sistematicamente, sua visita a José Juan Castillo semanas antes. Está
recompondo o quebra-cabeça de todos os detalhes do encontro, por mais
excessivos ou insignificantes que pareçam à primeira vista.
Como sempre, tinha se apresentado sem avisar, na hora do almoço. Tinha
observado mais uma vez, e com o regozijo de sempre, quando Pilar abriu a
porta, a temerosa e tênue labareda tremeluzente nos olhos da mulher.
“Seu marido está?”, perguntou.
E sem esperar resposta, sem se importar com o gesto de Pilar que
pretendia barrar sua entrada, enfiou-se no corredor que ia até a sala de jantar
da casa.
Lá estava Castillo, que já tinha adivinhado quem se apresentava desse
jeito, inoportuno, com tamanha desfaçatez. Só podia ser o veado do Sabuesa, é
óbvio.
Além do mais — e isso Castillo contará anos mais tarde ao Narrador desta
história; e contará com visível satisfação, quase orgulho —, além do mais
Castillo não só adivinhou que era Sabuesa que entrava em sua casa com tanta
grosseria, como também soube, de imediato, a que vinha o delegado, o que ia
lhe perguntar.
Anos mais tarde, muitos anos mais tarde, Castillo diria ao Narrador desta
história como imaginou, acertadamente, e em virtude de um raciocínio-
relâmpago, qual ia ser naquele dia a principal curiosidade do delegado
Sabuesa.
Ia perguntar-lhe o que sabia de Federico Sánchez, é claro. Pensando
melhor, acertar isso não era nada do outro mundo, mas, tudo bem, não era nada
mau: acertar era prova de agilidade mental, sem a menor dúvida.
José Juan Castillo ainda ria satisfeito ao contar ao Narrador como
adivinhou o motivo da aparição imprevista — como sempre — do delegado
Sabuesa.
“Eu tinha saído da penitenciária de Burgos dois anos antes, em 1954”,
Castillo contava. “Com uma contra-senha do partido, de fato, como aquele
filho-da-puta sabia. Pilar tinha progredido em seu trabalho, era algo assim
como a principal secretária do diretor da empresa, e a menina tinha crescido:
uma adolescente lindíssima e extraordinária nos estudos; de nota dez em nota
dez, tanto em ciências como em letras, e até em línguas estrangeiras: me lia
versos em latim e em inglês, para você ver. Bem, em casa as coisas não iam
mal. Voltei para a gráfica, mas seis meses depois me trocaram de posto: me
puseram como diretor comercial. É que em Burgos eu tinha aprendido muito:
contabilidade, administração de pessoal, economia, o diabo... Às vezes nós,
os velhos presidiários, dizemos de brincadeira, tomando umas bebidas,
quando nos encontramos por ocasião de um nascimento, em um falecimento
também: a penitenciária de Burgos foi uma escola superior de formação de
quadros, mas não para a Revolução, assim, com maiúscula, como alguns de
nós pensávamos, e sim para o desenvolvimento dessa porra do capitalismo...
Sério, Federico, a família prosperava... Seja como for, mais ou menos um ano
depois, em 1955, Simon aparece em casa... Ou seja, Sánchez Montero, sei que
você o conheceu muito bem e trabalhou com ele... Eu o havia encontrado em
El Dueso: um cara sem muita formação teórica, mas corajoso, solidário,
indestrutível, apreciado por todos os companheiros... Um homem em quem
confiar: eu poria a mão no fogo por ele... Bem, para que lhe contar: você pôs a
mão no fogo por ele... Bem, eu, com Simon, abro-lhe a porta e o escuto em
qualquer circunstância... Mas ele vinha com a desgraçada contra-senha, ou
seja, estava de novo na ativa... Eu morria de vontade de lhe dizer que sim, que
voltaria para a organização... Stalin tinha morrido e parece que as coisas
começavam a se mexer na União Soviética... Agente notava os novos ares:
tinha se acabado a luta fratricida com os comunistas iugoslavos, aquilo depois
se chamou ‘degelo’, não foi? Mas eu não podia aceitar um vínculo orgânico
com o partido, já que Sabuesa continuava à espreita, esperando a hora de
retomar contato comigo... Imagine o paradoxo: por espírito de partido eu tinha
que evitar um contato orgânico com o partido, para burlar a vigilância de
Sabuesa... Portanto, disse a Sánchez Montero que ainda era cedo para voltar à
organização, que dessem um jeito de me mandar, com as senhas da empresa, e
não com as minhas pessoais, algum material de propaganda, de preferência
coisas de tipo cultural ou teórico, porque Mundo Obrero, o jornal, era uma
merda... Bem, não disse assim, tão categórico, dei a entender... Mas que não
mandassem para a minha casa propaganda nem nenhum militante novo,
desconhecido, apenas com a contra-senha, que só viessem, caso ele mesmo
não pudesse, camaradas como ele, que eu conhecesse da guerra ou da prisão,
desde sempre, pois é, que pudessem justificar suas visitas perante a polícia
por motivos pessoais de uma velha amizade... Ou seja, para proteger o partido
eu tinha de me proteger do partido... E o delegado aparecia de vez em quando,
não muito amiúde, e eu lhe dizia que nada, que não tinha vindo ninguém propor
a minha repescagem, que eu não tinha nada para lhe dizer... E conversávamos,
eu precisava conversar um pouquinho com ele para que não desconfiasse...
Até 1956, até o mês de junho desse ano, e posso lhe dizer com certeza, pois
naquele mês um jornal de Paris que a gente encontrava em certas bancas e
livrarias de Madri, Le Monde, e que Nieves me traduzia, eu já lhe disse que
minha filha se chama Nieves, ou não?, esse jornal publicava um relatório
secreto de Kruschev no XX Congresso do partido russo sobre o culto à
personalidade e os crimes de Stalin... Bem, não vou contar a você, homem...
Por esses dias, eu tinha estado com Simon numa cafeteria da Alcalá, perto da
praça Manuel Becerra, e perguntado a ele se era verdade a história do tal
relatório secreto ou se, como alguns pretendiam, não passava de uma merda de
invenção dos anticomunistas ianques... Que nada, me disse Simon, era absoluta
verdade, e ele estava preocupado porque os camaradas de Madri, sobretudo
os operários, não queriam acreditar, diziam que era tudo invenção da
propaganda fascista... Que se era verdade que existia esse relatório, pois então
que Kruschev era um filho-da-puta por tê-lo feito. Nessa semana, mais ou
menos, Sabuesa aparece na hora do almoço, sem avisar, como de costume, e
eu soube o que ia me perguntar, imaginei que ia me interrogar sobre Federico
Sánchez... Não era tão difícil adivinhar... Desde as manifestações estudantis de
fevereiro, esse nome saía em La Pirenaica, e até na imprensa do Regime...
Além disso, Nieves tinha trazido para casa uns folhetos clandestinos que
haviam circulado na universidade — você nem pode imaginara emoção: minha
própria filha me entregando, a mim, toda orgulhosa, aquela coisa, material do
partido! —, bem, pois é, uns Cuadernos de Cultura com um relatório de
Federico Sánchez para o V Congresso clandestino do partido e um exemplar
de Nuestra Bandera com um artigo dele sobre a filosofia de Ortega y Gasset...
Bem, naquela tarde, perto da praça Manuel Becerra, pedi a Simon, de supetão,
que me dissesse alguma coisa sobre Federico Sánchez... E Simon fez a cara de
júbilo, de orgulho recatado, que fazem os pais quando alguém elogia a
inteligência ou a beleza de um rebento, e me disse em voz baixa uma coisa
incrível, ‘se quiser’, me disse, ‘quando quiser, eu o apresento, qualquer dia
desses que você me disser: este, sim, é capaz de convencê-lo a voltar para a
organização’... Em voz baixa mas, repito, com o tom alegre dos pais diante de
um filho que saiu inteligente... Então, Sabuesa entrou, notei que fez um olhar
estranhíssimo, um gesto de violência contida, esquisitíssimo, quando viu
Nieves, mas em seguida saímos da sala de jantar, para o escritório ao lado, e
logo de cara ele me lança à queima-roupa: me diga o que você sabe de
Federico Sánchez...”
À meia-noite, como já foi dito, Perales fecha a porta entreaberta pela qual
via se esgueirarem na galeria as sombras de Raquel e do americano, o “gringo
bonitão”. Assim o tinha apelidado Domingo Dominguín, segundo Mercedes
contava, ao anunciar-lhe, semanas antes, a vinda de Leidson à última
cerimônia expiatória. “Um sujeito simpático, inteligente e até bonitão”, dissera
Dominguín falando de Leidson, segundo Mercedes lhe contou. “Você poderia
aproveitar a ocasião para matar o seu cunhado José Manuel e fugir com o
gringo, já que nunca desejou fugir comigo.”
Ambos tinham rido: Mercedes, ao se lembrar da frase de Domingo. E
Benigno, ao se lembrar de Dominguín. Dominguín era sempre uma lembrança
agradável, como era o convívio com ele toda vez que ia a La Companza, a
outra grande fazenda do município, onde o fundador da dinastia, don Domingo,
tinha sido trabalhador braçal na juventude, tendo-a comprado mais tarde com
o dinheiro ganho como matador e empresário de touradas.
Foi justamente Domingo quem lhe deu um exemplar do jornal do Partido
Comunista, Mundo Obrero, uma tarde em La Companza, porque, naturalmente,
Domingo conhecia os antecedentes políticos de Benigno.
“Já sei que agora você é dono do seu nariz”, disse-lhe Domingo naquela
tarde, no salão grande de La Companza, cujas paredes eram enfeitadas com
cabeças e galhadas de alguns dos touros mais nobres e bravos que os
Dominguín, pai e filhos, tinham matado. “Embora eu não saiba por quê, você
terá suas razões, mas proponho organizarmos um pequeno congresso
clandestino e o elegermos secretário do partido aqui na Espanha. Você seria o
nosso conselheiro político: imagine só que vantagem, em vez de termos de
esperar as ordens vindas de fora, Paris ou Praga, viríamos consultá-lo em
Quismondo, e chamaríamos a nossa teoria de marxismo-peralismo, em vez de
marxismo-leninismo, que soa muito menos castelhano, não acha?”
Benigno ria pra valer, é verdade, mas ao mesmo tempo um certo calafrio
percorria sua espinha. Quantos dirigentes comunistas na própria Espanha
tinham sido expulsos, caluniados e até assassinados por tentar, justamente,
criar um centro autônomo de direção clandestina?
No entanto, nada disse a Domingo dessa sinistra lembrança. Disse-lhe
apenas, para ficar no tom da brincadeira, que eles poderiam imaginar duas
alas ou correntes do marxismo de Quismondo: a ala marxista-peralista e a ala
marxista-dominguista.
Essa história das duas alas do partido lembrou a Domingo uma anedota
que alguém tinha lhe contado recentemente: o partido não é uma galinha nem
uma andorinha, que para voar precisam de duas alas, alguém dizia em certa
ocasião.
Mas quem tinha lhe contado essa anedota e com que objetivo, em que
contexto? Depois de mais vários copos de orujo, no salão grande de La
Companza, Domingo se lembrou, de repente. Quem contou foi Agustín Larrea,
ou seja, Federico Sánchez, no terraço da rua Ferraz, numa daquelas noites, e o
autor da frase era um comunista tcheco, muito esperto e corcunda. Mas onde
Agustín o teria conhecido? Isso restava esclarecer.
Domingo aproveitou a súbita lembrança para dizer, à queima-roupa, algo
que, de tão imprudente, deixou Benigno assustado.
“Um dia desses trago Federico Sánchez a La Companza e vocês
conversarão, aposto que vão se entender...”
Benigno derramou a metade do copo de orujo. Ficou sério.
“Nem a mim você diga essas coisas, Domingo, nem mesmo a mim!”
Pelo tom, este se deu conta de que o outro não estava disposto a continuar
a escutá-lo; mudou imediatamente de assunto. Pois bem, apesar de tudo,
depois de sua reação legítima diante da imprudência de Domingo, Benigno
sentiu certo dissabor: gostaria de saber algo mais sobre esse Federico que
acabava de aparecer na imprensa clandestina, desde a organização do V
Congresso do Partido Comunista.
Mas isso foi em La Companza, e agora estamos em La Maestranza, à meia-
noite, entre os dias 17 e 18 de julho. Benigno acaba de fechar a porta do
quarto e lembra-se da frase de Dominguín sobre o “gringo bonitão”, e nessa
frase o que mais lhe chamou a atenção foi a referência a José Manuel: “Você
poderia aproveitar a ocasião para matar o seu cunhado...”.
Embora nunca tivesse dito, mais de uma vez também tinha pensado o
mesmo que Domingo: para recuperar sua liberdade, um dia Mercedes teria de
matar José Manuel e fugir, mas com quem? Com Raquel, provavelmente, a
criatura que lhe era mais próxima, mais cúmplice, mais disposta a arriscar
tudo por sua felicidade. Se é que, tratando-se de Mercedes, ainda fosse
possível esperar alguma felicidade durante o tempo que lhe restava de vida.
Quando se instalou em La Maestranza, após ter concluído o acordo com
José Manuel, Benigno intuiu — e logo teve uma evidência disso — que o
primogênito dos Avendaño, patrão e senhor da fazenda e da família, exercia
sobre as duas mulheres, resgatadas da morte, ou ao menos da prisão, por sua
intervenção em agosto de 1936, uma espécie de direito de pernada.
Desde quando? Não era uma história recente, mas, segundo todos os
indícios, algo habitual e até de praxe, um segredo de polichinelo entre o
pessoal da fazenda. Talvez desde o fim da guerra civil, quando a família
Avendaño recuperou bens e posses, dinheiro e autoridade, após a vitória do
Generalíssimo.
Fosse qual fosse o começo dessa relação possessiva, o fato é que em
1955, quando Benigno chegou a La Maestranza, pôde notá-la, comprová-la.
Toda vez que aparecia na fazenda, onde Mercedes vivia quase o ano inteiro,
salvo as poucas temporadas em Madri e o tradicional veraneio na praia del
Sardinero, em Santander, José Manuel ostentava sem o menor recato sua
situação de dono da casa e proprietário dos corpos das duas mulheres.
Uma e outra — Mercedes e Raquel, alternadamente, e às vezes ao mesmo
tempo — eram vistas passando a noite nos aposentos do cunhado da viúva
(que alguns camponeses chamavam “Cuñadíssimo”, em referência a um
conhecido e influente político dos primeiros tempos da ditadura; denominação
que permitia frases atrevidas e vulgares, piadinhas e adivinhações
onomatopéicas: “El Cuñadísimo está encoñado, pero ¿que hará el
Cuñadísimo con el cofio de Raquel mientras tiene a su cuñada
encañonada?”7).
É preciso reconhecer que a língua mais viperina desses disse-me-disse era
a velha Satur, que para completar tinha uma explicação pessoal para esse
ambiente de “império da porcaria” (assim se expressava a velha cozinheira,
que não parava de insistir que o melhor dos Avendaño — na verdade o único
bom, se bem que um deles fosse padre — tinha sido seu José María),
explicação baseada no que ela havia descoberto em Biarritz, aonde foi
encontrar Mercedes e José María, quando eles voltaram da viagem de lua-de-
mel pela Itália. Em Biarritz eu descobri que os dois gostavam de fazer amor na
presença de uma terceira pessoa, contava a Satur a meia-voz, embora já
ninguém se dispusesse a continuar acreditando nas suas fábulas ou fabulações,
e ela insistia, faça-me o favor, pode crer no que eu digo, em Biarritz teve pelo
menos um terceiro, um fotógrafo inglês, moço, lindíssimo, cá comigo eu acho
que era um maricas, e ele aceitou um papel naquela amigação, mais por causa
do seu José María do que pela dona Mercedes...
Em suma, em La Maestranza as duas, Raquel e Mercedes, eram vistas
passando a noite nos aposentos de José Manuel, ou ali entrando na hora da
sesta.
Seja como for, naquele 17 de julho, à meia-noite, ele pôde comprovar por
acaso que os relatos da Satur, pelo menos quanto aos fatos de Biarritz no
distante verão de 1936, não eram mera fábula, meros vapores delirantes.
Ao fechar a porta do quarto, depois de vislumbrar as silhuetas de Raquel e
do americano, certamente a caminho do quarto de Mercedes, Benigno pensou
em ir esconder o relatório secreto de Kruschev na biblioteca da casa, lugar
ideal. Em qualquer outra ocasião teria deixado tranqüilamente o folheto em
sua mesa de trabalho: ninguém em La Maestranza se interessava em bisbilhotar
seus pertences pessoais. Mas a presença do delegado Sabuesa na fazenda
complicava tudo, incitava-o a ser particularmente prudente.
Assim que entrou na biblioteca, o salão do Indiano, no andar térreo,
Benigno voltou a sentir o estranho bem-estar, a um só tempo relaxante e
excitante, que sempre lhe produzia o ambiente das estantes repletas de livros,
quase todos lindamente encadernados, cobrindo até o teto as paredes da sala,
que ocupava toda uma ala da mansão e se elevava à altura de um segundo
andar, sendo iluminada de noite por uma multidão de lâmpadas bem
distribuídas para o conforto da leitura, e de dia pela transparência
multicolorida de seu telhado de vidro.
Benigno resolvera esconder o folheto de Kruschev dentro de um dos três
volumes das obras de Donoso Cortês, recém-descobertos por ele no meio de
um monte de livros ainda não classificados, uma bela edição com
encadernação em meio-couro, em cujas capas espessas parecia possível fazer
um corte com uma lâmina de barbear, delicadamente, para esconder as páginas
do relatório secreto.
O mais curioso dessa edição de Donoso Cortês é que se tratava de uma
tradução para o francês, publicada em Paris, em 1862, pela Librairie
d’Auguste Vaton, Editeur, 50 rue du Bac, com uma introdução de Louis
Veuillot, conhecido jornalista ultramontano e polemista, defensor acérrimo da
infalibilidade papal, diretor do diário L’Univers, e Benigno achava graça em
ter descoberto em tradução francesa a prosa altissonante do marquês de
Valdegamas.
Dos três volumes das obras de Donoso Cortês, Benigno escolheu um ao
acaso, o tomo 3, inteiramente dedicado à tradução do famoso Ensayo sobre el
catolicismo, el liberalismo y el socialismo. Antes de descobrir a melhor
maneira de cortar com delicadeza a capa do livro, folheou-o, e caiu por acaso
no começo do capítulo sobre o livre-arbítrio, na página 139. Leu umas linhas,
primeiro distraído, depois com crescente interesse. “Le libre arbitre de
l’homme est le chef-d’oeuvre de la création, et, s’il est permis de parler
ainsi, le plus prodigieux des prodiges divins..." Benigno ia abandonar a
leitura de frases tão retóricas — nem mesmo a tradução para o francês, idioma
essencialmente racional e comedido, empanava a grandiloqüência da prosa
castelhana — quando desistiu de sua intenção de fechar o livro.
Nesse ponto da leitura, Benigno sentiu que precisava se sentar, pegar papel
e lápis e traduzir para o castelhano — para o seu, é claro, pois o original de
Donoso Cortes não lhe era acessível — as frases do autor:
Vinte anos antes, sob outro sol do mesmo mês de julho, seu pai tinha ido ao
alpendre de La Maestranza para ouvir a voz assustada de Mayoral.
Eram três em ponto da tarde e acabavam de se sentar à mesa do almoço.
Raquel estava enchendo os copos de uma água fresquíssima, que embaçava o
vidro. Então ouviu-se lá fora a voz de Mayoral, transtornada.
“Seu José María, seu José María!”
Ele saiu da sala para o alpendre da casa, e Mayoral fazia gestos
exagerados.
Na estrada de Quismondo, para lá da fileira de choupos, avistava-se o
movimento confuso de uma multidão em tropel. E de cavalgaduras,
provavelmente. Seu pai se adiantou até o parapeito e mandou que Mayoral
trouxesse o binóculo.
A luz de julho desabava plúmbea sobre a paisagem.
Entre o tremor das camadas finas de ar quente, removidas pela brusca
pancada de vento, seu pai teve a impressão de distinguir, no meio do
redemoinho empoeirado, a forma acachapada de uma camionete. Por um
instante, por cima das cabeças indiferenciadas dos homens espremidos na
carroceria do veículo — adivinhado, suposto, mais do que realmente visto —
refulgiram múltiplos brilhos.
“Escopetas”, disse.
Não era preciso dizer mais que isso. Talvez não fossem só escopetas, mas
também foices erguidas. E forcados.
Lorenzo poderia nos contar.
Mesmo que não tivesse assistido à morte de seu pai. Não foi testemunha do
acontecimento. Além disso, se devêssemos nos expressar com rigor, por ora
nem deveríamos usar a palavra “pai”. De fato, aquele homem moço que saiu
para o alpendre de La Maestranza no dia 18 de julho de 1936, às três da tarde,
ainda não o era.
Nem era seu pai nem nunca soube que viria a ser.
Morreria sem saber, poucos minutos depois. Naquele dia ninguém sabia.
Lorenzo ainda não era filho de José María Avendaño. Não era filho de
ninguém. Ou melhor, não era ninguém. Nem nada, quase nada. Só um confuso
movimento visceral, um coágulo ovulando-se, ovalando-se, nas profundezas
placentárias — prazenteiras — do ventre materno. Só quinze dias depois da
morte de seu marido Mercedes Pombo percebería que estava grávida, que sua
viagem de lua-de-mel com José María tivera — provavelmente em Biarritz,
era fácil fazer a conta — esse desenlace em geral qualificado de feliz.
Mas no dia 18 de julho, quando, recém-casado, ainda risonho, ele saiu
para o alpendre de La Maestranza, nem ele nem ninguém sabiam que tivesse
engendrado Lorenzo.
Este, exatos vinte anos depois, poderia contar como seu pai — agora sim,
é seu pai, estranhamente; aquele desconhecido, aquele jovem morto, aquele
personagem fantasmático, ou fabuloso, nem mesmo coetâneo, e cuja vida não
teria coincidido com a dele nem um só segundo, personagem de outro tempo,
portanto, de outra história, agora sim, ele é seu pai, pai meu que estás no céu
da morte desde antes de sê-lo —, poderia contar como seu pai tinha saído da
casa ao ouvir a voz de Mayoral, cheia de pânico, para ver se aproximarem em
furiosa comitiva os lavradores de Quismondo.
E poderia contar por que nos anos de sua infância ouviu, um tanto
atemorizado, os relatos pavorosos, intermináveis, dessa antiga morte.
Ainda assim, mesmo que não se possa ter certeza se Eloy Estrada, naquele
encontro matutino defronte de La Prosperidad, estava de fato disposto a contar
isso a Lorenzo, o fato é que não teve tempo material de fazê-lo.
Isabel acabava de se virar para o irmão: seu olhar era só negrura e
desafio.
“Escute aqui, Lorenzo, você resolveu que vai me matar de fome e de
chateação? Quer que esfrie o café-da-manhã da Satur, que está me
esperando?”
Então, Lorenzo entrou no carro sem perder um minuto. Arrancou o 4x4 e
ficaremos sem saber o que Eloy Estrada tinha resolvido dizer a Lorenzo, qual
fragmento da verdade, ou talvez a verdade inteira: a que ele conhecia.
Ficaremos sem saber. Pelo menos por enquanto.
Não garantia que fosse exatamente isso, mas, afinal, era meio parecido.
Ainda não se lembrava de onde vinham essas palavras: de que canção, de
que quadrinha, de que poema talvez?
Raquel ajoelhou-se ao lado da poltrona de vime.
“Quanto tempo sem vê-lo, Lorenzo, que alegria...”
Lembraram-se da mesma coisa, adivinharam: souberam que tinham
recordado o mesmo ao mesmo tempo.
Ela, de joelhos a seus pés, encostara o braço esquerdo no peito de Lorenzo
e, com a outra mão, acariciava suavemente seu rosto: as pálpebras, as faces,
os lábios.
Lembraram-se da mesma coisa, com fervor, com gratidão, sem nostalgia
nem amargura.
Estos inesperados
retratos familiares
en donde los varones de la casa, vestidos
los más innecesarios jaeces militares,
nos contemplan, partidos,
sucios, pisoteados,
con ese inexpresable gesto fijo y oscuro
del que al nacer ya lleva contra su espalda el muro
de los ejecutados...9
José Manuel volta a ler pela terceira vez a nota que Eloy Estrada lhe
entregou.
“Decorei”, diz este, “e mais tarde pus por escrito para poder informar ao
senhor, don José Manuel.”
Eloy está nervoso.
É que não tem certeza de que convenha de fato fazer o que está fazendo:
talvez valesse mais a pena ter guardado a informação descoberta na véspera, e
não comunicá-la aos Avendaño. Afinal de contas, a sorte desse rapazinho,
Lorenzo, o deixava indiferente. Teria sido melhor deixar que acontecessem as
coisas que estavam escritas, se é que estavam. Mas um instinto obscuro
levava-o a fazer um favor aos Avendaño. Quem tem mais poder a longo prazo,
quem manda mais, melhor e mais tempo: os Avendaño ou um policial de um
governo que hoje é assim e amanhã pode ser assado?
Optou por avisá-los: a José Manuel, em particular, que era quem mandava
na família. Primeiro esteve prestes a dizer ao próprio Lorenzo, no posto de
gasolina de La Prosperidad. Não, teria sido um erro. O rapaz, informado de
que Sabuesa tinha alguma desconfiança a seu respeito, teria sido capaz de
qualquer traquinagem. Não, o melhor era informar pessoalmente José Manuel:
ele saberia o que fazer. Além disso, assim se garantiam discrição e eficácia.
Portanto, depois de pensar muito, dar mil voltas, pegou a moto e foi à
fazenda, uma hora depois de Lorenzo ter abastecido o carro no posto de La
Prosperidad, de ter falado com ele.
Diante de sua insistência, da urgência que demonstrava, Saturnina o
acompanhou até o pátio das laranjeiras, onde José Manuel estava tomando o
café-da-manhã.
José Manuel Avendaño acaba de ler em voz alta as últimas linhas da nota
de Sabuesa, descoberta e copiada por Eloy Estrada.
Continua no pátio das laranjeiras, mas já acabou o café-da-manhã, e Eloy
já foi embora. Está tomando um copo de orujo: o dia promete ser agitado.
Mandou chamar Benigno Perales e leu para ele as últimas linhas da nota
do delegado. Na verdade, achou que Benigno é quem podia ser ouvido,
atendido ou entendido por Lorenzo.
Quanto a ele, Lorenzo não lhe daria a menor bola.
“Quem é Federico Sánchez?”, pergunta José Manuel.
Benigno diz o pouco que sabe: um nome novo na clandestinidade
comunista, divulgado pela propaganda do próprio regime durante as
manifestações de fevereiro. Publicaram uns artigos dele na imprensa
clandestina, inclusive o discurso do V Congresso do partido, celebrado no
estrangeiro, provavelmente em Praga, durante o qual ele foi nomeado membro
do Comitê Central, há um ano e pouco.
“Mais não posso dizer”, conclui Benigno.
“Segundo Estrada, o delegado Sabuesa está convencido de que esse
Sánchez (deve ser um pseudônimo, não é?) está em Madri; convencido também
de que mais dia menos dia vai prendê-lo...”
Benigno se lembra do que Domingo lhe disse, imprudentemente, meses
antes, algo que ele não quis ouvir até o fim. Domingo lhe disse que, se se
interessasse em conhecer Federico Sánchez, iria com ele a La Companza.
Lembra-se de que o interrompeu, não quis saber mais nada. “Nem a mim você
conte isso”, tinha dito a Dominguín, abruptamente.
A proposta de Domingo, por mais indiscreta ou imprudente que fosse,
parecia demonstrar que Federico Sánchez, um fantasma tão citado, estava na
Espanha, não era um desses que estavam fora e mereciam tão pouca confiança
de Benigno.
Portanto, era possível que o delegado tivesse razão; talvez estivesse
vivendo em Madri.
Mas José Manuel tinha voltado à nota de Sabuesa e lia de novo em voz
alta outra de suas frases.
“Ainda se referindo a Lorenzo: ‘Parece muito amigo de JP, ou seja, de um
dos cabeças visíveis da subversão...’. Você tem idéia de quem pode ser esse
JP?”
Benigno tinha uma idéia claríssima, não tinha a menor dúvida sobre o
nome completo que se escondia por trás das iniciais. Além disso, e como se
fossem poucos os dados objetivos que conhecia, Javier Pradera havia
almoçado em La Companza semanas antes, no começo do verão. Fora a
Quismondo com Dominguín e outro rapaz da sua idade, se bem que muito
diferente, meio charlatão, ele achou, ou pelo menos brincalhão, que
pronunciava o erre arrastado, mais palatal que labial, como os franceses, e
que ele acabou identificando como sendo Enrique Múgica, a respeito de quem
a imprensa falangista tinha publicado longuíssimas reportagens que pareciam
um romance de espionagem em fascículos, sobre seu papel na revolta
estudantil de fevereiro.
Múgica acabava de chegar de San Sebastian, para onde teve de voltar,
depois de seu encarceramento durante as manifestações de fevereiro. Valeu-se
da desculpa de um trâmite universitário para retomar contato com a
organização comunista estudantil e discutir com Pradera o conjunto da
situação: balanço e perspectivas, segundo a costumeira linguagem codificada,
ou melhor, o jargão, do partido.
Conversaram a sós por um tempo e em seguida se juntaram aos outros
convidados.
Depois do almoço chegara para tomar café, vindo de La Maestranza,
Lorenzo Avendaño, cavalgando uma bicicleta estranhíssima, solene e rígida
como um pastor protestante, o que tinha uma explicação: era um artefato
holandês com freio de pedal, pesado mas “inatingível pelo desânimo”, dizia
Lorenzo, debochando do conhecido lema falangista.
E ficou claro que JP e Lorenzo simpatizavam um com o outro, que suas
leituras e preocupações coincidiam.
Ou seja, o veado do Sabuesa não estava mal informado.
Mas Benigno Perales não disse nada disso a José Manuel Avendaño.
“JP? Assim, de chofre, não percebo. Talvez eu lembre se repassar os
nomes dos amigos de Lorenzo.”
E nisso Raquel e Mayoral chegam correndo ao pátio das laranjeiras.
“A Guardia Civil, senhor”, grita Mayoral, com a voz rouca, transtornada,
de vinte anos atrás.
Mas vinte anos antes não era a Guardia Civil, mas o tropel armado dos
lavradores sem terra.
José Manuel pergunta, furioso:
“A Guardia Civil, por quê? Quem a chamou?”
Mayoral explica que foi a pedido do delegado Sabuesa, para investigar a
história do motim.
José Manuel fica fora de si.
“Sabuesa?”, grita. “E quem autorizou? Nesta casa só quem manda sou eu,
aqui não manda o delegado nem o bispo nem Cristo que o pariu.”
E sai como uma fúria, seguido por Mayoral, a passos largos.
Benigno e Raquel ficam sozinhos. Curiosamente, as mesmas rimas que
rondavam a memória de Lorenzo ainda há pouco rondam agora a de Benigno,
ao olhar para Raquel.
Mas Benigno sabe muito bem de onde são esses versos: lembra-se.
“Onde está Lorenzo?”, pergunta a Raquel. “Tenho que falar com ele o
quanto antes...”
“Há pouquinho estava no alpendre. O que está acontecendo?”
“Vai acontecer”, diz Benigno.
E sai à procura de Lorenzo.
“Parece coisa de filme”, diz Isabel. “De filme russo, claro, desses
horrorosos de que você tanto gosta.”
Lorenzo deu um pulo, negou energicamente com a cabeça.
“Nem gosto nem são tão horrorrosos, Isabel.”
“Não discuta, Lorenzo: você gosta e são horrorosos.”
Já eram onze da manhã e estavam numa das galerias internas que davam
para o pátio, ao sussurro das fontes. A Satur tinha trazido um lanchinho,
porque o almoço estava atrasado, disse-lhes, embora a cerimônia de hoje
fosse necessariamente mais curta — missa de funeral cantada e acabou-se o
que era doce —, neste último 18 de julho.
“Bem, Satur”, Lorenzo dissera, “último nesta casa, mas é que na Espanha
ainda nos restam muitos, infelizmente.”
A Satur nunca opinava quando se tratava de política.
“Gostou do sanduíche que preparei para você?”
Adorou: pão e omelete de batatas, molhadinha, dourada, suculenta. E com
o sanduíche, uma jarrinha de vinho tinto da casa, forte, talvez demais — 18
graus de teor alcoólico —, e que deixava meio tonto.
Já fazia um tempinho que a Satur tinha ido embora. Isabel voltou à carga.
“O que vimos juntos em Paris, O juramento, era horroroso e você gostou.”
Havia nesse filme, que tratava dos problemas da coletivização das terras,
uma sequência incrível. Apresentam a Stalin, na Praça Vermelha de Moscou,
um exército de tratores novos, recém-saídos das fábricas do plano qüinqüenal.
Durante o desfile, um dos tratores pára, repentinamente enguiçado, e o
mecânico não consegue ligar o motor. Stalin se aproxima, dá uma olhada, toca
sabe-se lá que buginganga e o trator arranca perfeito, de primeira. Mão de
santo, pois, mão de rei taumaturgo: uma sequência exemplar para ilustrar o que
foi o “culto à personalidade”.
“Não gostei, me interessei”, disse Lorenzo, seco.
“Não me venha com sofismas, Lorenzo”, disse ela.
Lorenzo não respondeu, não tinha vontade de entrar nesse momento numa
discussão com a irmã sobre o “culto à personalidade” que acabava de ser
denunciado no relatório secreto de Kruschev no XX Congresso do partido
russo.
Isabel tomou um gole de vinho. Não tinha pedido sanduíche, mas gostava
do tinto da fazenda: saboreou-o.
“Pode-se saber em que tudo isso parece um filme soviético?”
“Em tudo, ora essa”, Isabel apressou-se, peremptória. “Os trabalhadores
rurais, o motim, o tratorista, que é naturalmente o cabeça, como manda o
figurino, ou melhor, como mandam os manuais de marxismo que você detesta.
Escute aqui, Lorenzo, por que você gosta dos filmes russos e não do manual de
marxismo-leninismo, de Konstantinov, se são iguais? Quer dizer, igualmente
pesados, primários, bem-pensantes, chatos. Mas o que está acontecendo é
coisa de manual, ora essa: na fazenda viviam nossos lavradores, sofridos,
curtidos, resignados, trabalhando de sol a sol sem nunca reclamar, e chega um
tratorista, porque tio José Manuel introduziu em La Maestranza a exploração
intensiva das terras, acabando com a terra coutada e os bucólicos pastos de
gado medievais, é o que vocês chamam de clássicos e você chama de via
prussiana para o capitalismo, ou seja, ele introduziu os tratores, e chega um
mecânico de uma oficina de Madri, um proletário de verdade, e infunde-lhes
consciência e espírito de classe. Não está nos manuais, justamente, esse papel
de vanguarda da classe operária?”
Lorenzo começou a rir, abraçou a irmã, beijou-a.
“Sabe, Isabel, agora de manhã você está genial... Bem, talvez eu exagere:
engenhosa, é isso.”
“Pois então, como é? Você se interessa por mim ou gosta de mim?”
Isabel o encarava, desafiadora.
“Gosto de você”, ele disse, “mas não vou degustá-la...”
Tomou um bom gole de vinho, de repente sentira a boca seca.
"O que você vai conseguir, seu sem-vergonha, é me desgostar”, Isabel
respondeu, em voz baixa.
Olharam-se, riram às gargalhadas: desde crianças adoravam jogar com as
palavras, inventando-as quando necessário. Escutavam com fervor as histórias
da Satur, não só pela história em si, mas também porque a linguagem da anciã
tinha um sabor particular, um vocabulário surpreendentemente rico e cheio de
vocábulos esquecidos ou em desuso.
Riram, e a moça escondeu o rosto no ombro do irmão.
***
***
Com tamanha contundência tinha lhe dito, pela primeira vez, naquele dia,
mas desde os tempos de Paris, dois anos antes, essa fantasia ficara rondando
as conversas de Isabel, esse desejo de ser deflorada por ele, se bem que, até
agora, ela sempre tivesse dito isso de um jeito meio alusivo, num tom meio
galhofeiro, como um gracejo ou uma brincadeira privada, íntima.
Muito diferente da Preciosa, a ciganinha de Cervantes — a de Lorca,
séculos depois, era uma imagem poética, patética, na qual se expressa com
perfeição literária o quase-mítico, ou pelo menos fascinado, terror, ou horror,
do poeta andaluz diante do sangue feminino da fecundidade, diante desse sinal
de alteridade radical, talvez hostil, ou pelo menos incompreensível,
angustiante obsessão sobre a qual Lorca constrói a trilogia trágica de Bodas
de sangue, Yerma e A casa de Bernarda Alba —; muito diferente, pois, da
ciganinha de Cervantes, para quem a virgindade era presente ou tesouro que
convinha administrar da melhor maneira possível, tanto sentimental como
materialmente; muito diferente também da opinião e do hábito predominantes
na sociedade, Isabel, e não se sabe muito bem por que caminhos, por causa ou
por culpa de que vivências (em todo caso, o Narrador não teve a
possibilidade de investigar a raiz ou origem da atitude decidida da moça a
esse respeito, e nesse caso não pode se remeter, nem nos remeter — incluindo
nessa primeira pessoa do plural todos os possíveis leitores — a nenhum
documento ou testemunho fidedigno); Isabel, em suma, havia decidido, já fazia
algum tempo, se livrar o quanto antes dessa maldita — para ela, e sacrossanta
para outros — virgindade, conquistando o que considerava sua liberdade de
mulher mediante o sacrifício voluntário, e se fosse com gozo melhor ainda, de
sua condição de donzela.
Dois anos antes, em Paris, tentara, sem êxito.
Mercedes Pombo, sua mãe, os tinha enviado a Paris “para que se
desembaraçassem”, e eles levaram a sério o conselho. Sobretudo Isabel,
porque Lorenzo, desde que Raquel o iniciara nos prazeres da carne naquele 18
de julho de seus dezesseis anos, depois do alvoroço provocado por sua
declamação de Alberti, depois da odiosa descoberta da brutal fornicação de
sua mãe com tio José Manuel, havia continuado a se desembaraçar com
Raquel, especialista, submissa, audaciosa, esplendidamente educativa nesses
exercícios, e não só nos corporais, decerto, também nos gestos e modos da
alma e da ternura; assim, em Paris, dois anos depois, Lorenzo prosseguiu sua
exploração da eterna feminilidade — das ewig Weihliche, dizia em alemão,
quando lhe dava o que sua irmã chamava de “cafonice orteguiana”— com a
ajuda enlevada de uma ou outra amiga de Mercedes, todas casadas e talvez
jovens mães de família, mas intrigadas e seduzidas, antes de tudo, pela
inteligência, pelo alegre desembaraço e pela beleza viril de Lorenzo, atração
confirmada post factum pelo vigor imaginativo que o jovem Avendaño
demonstrava nos embates do amor adúltero; portanto, foi sobretudo Isabel que
resolveu se desembaraçar, mas suas tentativas fracassaram.
Certa ocasião achou que estavam reunidas as condições ideais para passar
do dito ao feito. O candidato que elegeu para lhe sacrificar sua fina flor era um
argentino de uns trinta anos, bonito, inteligente, rico — e até podia lhe dizer o
conhecido e batido dístico, porque se chamava Federico —, com quem Isabel
saiu várias vezes, todas agradáveis, mas chegada a hora possível da verdade
ela descobriu que o argentino era um sujeito muito convencional que só se
permitia considerar a defloração de Isabel — perspectiva, aliás, que se
apresentava como desejável, pois estava apaixonado — no quadro estrito de
um noivado e casamento. E quando a moça insistiu, formulando-lhe claramente
seu desejo de se tornar mulher com ele, sem pretensão nem necessidade
matrimonial de ambas as partes, nem a dela nem a dele, mas como um ato de
união livre e adulta, o argentino se enfureceu, indignou-se diante de tal
proposta escandalosa.
Para isso, disse ele a Isabel, eu vou com as putas, não preciso de você
para nada, boneca, como pode imaginar que vou me casar com uma mulher
desvirginada, ou seja, desavergonhada? Mas desvirginada por você, rapaz,
não seja idiota, dizia Isabel. Você se entregar a mim, argumentava o Federico
morbidamente sério, por bem, sem mais nem menos, quer dizer que você se
entregaria a qualquer um, que já não é coisa minha, mas você não entende,
Isabel, não entende que para ser minha tem de ser de verdade, no sacramento
do casamento?
Em suma, não houve nada a fazer.
A discussão, num bar da moda em Montparnasse, de sofás e poltronas
fofas, tudo de mogno e jacarandá, terminou abruptamente. Cansada de sofismas
e sonsices, Isabel jogou a taça de champanhe na cara dele e foi embora,
deixando-o plantado.
A segunda ocasião — se nos referimos apenas às ocasiões de verdade,
deixando de lado os flertes tão efêmeros como inevitáveis — também se
frustrou, mas dessa vez por motivos muito diferentes. O rapaz, um madrilenho
de “ótima família”, dizia estranhamente Mercedes, pois nunca pareceu prestar
atenção nem se interessar pela situação social ou pela posição dos pais cujos
rebentos Isabel frequentava, aquele rapaz, portanto, recusou de imediato a
possibilidade de deflorar a moça porque não quero privá-la, dizia-lhe, seria
uma canalhice, desse tesouro que constitui a sua virgindade em nossas
sociedades, mas em compensação, sem desonrá-la nem desvalorizá-la para
qualquer pacto matrimonial digno do seu status familiar, proponho
explorarmos juntos os caminhos do prazer, e ensinar-lhe quantas coisas podem
ser feitas gostosamente sem nenhum prejuízo de sua virgindade.
Mas se o que eu quero é justamente o prejuízo, Isabel respondia, irada. O
que quero é deixar de ser virgem, mesmo que não conheça o prazer de
imediato. O que quero é poder dispor livremente de meu corpo, sem esse
temor ou tabu que me afasta de vocês, que me faz diferente. Inversamente, o
que você me propõe, por mais atrevido que pareça, e embora seja agradável,
só confirma o tabu da virgindade. Além disso, eu já sei o que é, pelo menos na
teoria.
O madrilenho achou estranho, como é que você já sabe?, um tanto
perplexo, melhor, escandalizado. Mas não faça essa cara de bobo, Isabel
dizia, todas as maneiras do amor não procriador estão em santo Agostinho, no
tratado sobre o casamento e a concupiscência.
O rapaz ficou boquiaberto, não soube o que dizer. Visivelmene, a menção
ao santo bispo de Hipona era, para ele, incompreensível.
Seja como for, Isabel não disse ao noivo virtual, que nesse exato momento
deixou de sê-lo — e não só pela egoísta desfaçatez de sua proposta, nem por
sua ignorância relativa aos tratados de santo Agostinho, mas também, convém
esclarecer, porque ele era torcedor do Real Madrid, e ser isso era algo que
Lorenzo, torcedor incondicional dos times periféricos, tanto fazia a Real
Sociedad como o Barça, tinha proibido terminantemente a Isabel, por melhor
que fossem, e costumavam ser, os jogadores merengues —, Isabel não disse ao
jovem madrilenho que fora sua própria mãe, com a ajuda de santo Agostinho,
quem lhe contara em detalhes os procedimentos eróticos não procriativos.
Em suma, Isabel saiu de Paris com certa experiência nova de dançar
agarradinho, de bolinagem e de beijo de língua, mas tão virgem como tinha
chegado.
“Juan Benet tinha razão”, diz Leidson no bar do Palace, no dia em que
Artemísia Gentileschi, com um de seus quadros, Judite e Holofernes,
irrompeu em suas vidas, pelo menos na do Narrador, que já quase não se
lembrava de ter sido Agustín Larrea, como havia sido tantos outros
personagens talvez esquecidos ou apagados da história, inclusive da memória;
mas o Narrador, naquele dia do Villahermosa, no outono de 1985, nada sabia
de Artemísia Gentileschi, deve confessar, nem do quadro; depois se informou,
procurou tudo o que se havia publicado sobre a pintora, em todos os idiomas
acessíveis, foi juntando documentação, reproduções fotográficas, cartões-
postais, fotocópias de páginas de enciclopédias, até que, alguns anos depois
dessa descoberta, de seu encontro com Leidson — significativo, premonitório
—, no palácio de Villahermosa, onde foi instalado afinal o museu Thyssen-
Bornemisza, quatro anos depois, em Nova York, a primeira coisa que fez foi
comprar um livro que acabava de sair, um volume grosso maravilhosamente
ilustrado, de Mary D. Garrard, Artemísia Gentileschi, The image of the
female hero in italian baroque art, livro talvez definitivo, narração
apaixonante da vida de Artemísia, análise pertinente de sua obra pictórica, das
relações obscuras, trágicas — são as que mais produzem significados
polissêmicos —, entre vida e obra: Artemísia, jovem artista, filha de artista,
deflorada com violência e astúcia por um amigo de seu pai Orazio, talvez em
presença e com a ajuda de outro conhecido; marcada como uma égua selvagem
pelo ferro candente da recordação, para sempre, apesar da decisão a seu favor
de um tribunal eclesiástico romano que teve de julgar o estupro; Artemísia,
que sem dúvida pintava um auto-retrato ao pintar a figura de Judite, na tela
tantas vezes mencionada, um auto-retrato de mulher exercendo seu violento
direito de revolta, de vingança, contra Holofernes, encarnação da força bruta,
bestial, de um machismo arrogante; mas Leidson acaba de dizer: “Juan Benet
tinha razão, tinha toda razão, porque de fato a Satur poderia ser a narradora
desta história; pelo menos, a que inicia a série dos relatos, a que narra a parte
legendária da realidade”.
Depois, Leidson ficou um instante em silêncio, saboreando um gole de
uísque com gelo.
“A Satur”, concluiu, “nesse romance — o seu romance, tomara! — faria o
papel da Rosa Coldfield em Absalão, Absalão, de Faulkner...”
Larrea interrompeu Leidson, assustado.
“Domingo lhe contou? Você adivinhou?”
“O quê?”, pergunta Leidson.
“O romance e Faulkner, justamente este: Absalão, Absalão.”
Em Fuencarral, anos atrás, depois que Domingo contou sua mais completa,
complexa e bonita versão daquela morte antiga, Benet falou de Faulkner, já
dissemos. E mais concretamente de Absalão, Absalão. Larrea interveio, com
certa nuance, no monólogo de Juan Benet.
Este, na época engenheiro de portos e canais, ficou olhando para ele, meio
atordoado. Surpreso, no mínimo.
Não achava normal que Larrea, de quem não sabia muita coisa, de quem
supunha muitas coisas, apesar de ter admitido a ficção que Domingo contava a
seu respeito; não achava normal, em todo caso, que esse membro do aparelho
clandestino do Partido Comunista — isto, sim, estava claro, embora não
soubesse que cargo ocupava — pudesse saber alguma coisa de Faulkner; e
pelo visto, o suficiente para intervir acertadamente, agudamente até, na
conversa sobre Absalão, Absalão.
O que Larrea não tinha contado a Juan Benet em Fuencarral, naturalmente,
pois teria sido contrário às normas da clandestinidade, era como, por que e em
que condições tinha lido Faulkner.
Agora pode contar.
Hoje, no bar do Palace, pode contar a Michael Leidson.
Aqui, neste mesmo lugar, talvez neste mesmo canto do bar, tinha começado
a história. Bem, nunca se sabe quando nem onde começam realmente as
histórias. O que tinha começado aqui, mais de trinta anos antes — quanto
tempo — era a possibilidade de um relato, mais ou menos completo, mais ou
menos acertado, da história daquela antiga morte. Leidson tinha um encontro
com Hemingway, este o convidou para um almoço no El Callejón, lá estavam
Larrea e Dominguín, este contou a história da cerimônia expiatória, que
impressionou a todos, e Hemingway só disse uma palavra curtinha, no final,
uma só sílaba sibilante: “Shit".
Ou seja, a possibilidade de um relato nasce aqui; aqui jaz.
Então, como já não há nenhuma razão para esconder, porque já não é
imprudente contar, ele conta a Leidson como descobriu os romances de
William Faulkner, como e quando, e quem o fez descobri-los.
Foi uma moça, uma estudante que conheceu em Paris, na Sorbonne — “e
dizem, você não conhece a piada?, dizem que Primo de Rivera, o pai, o
ditador da Ditamole, achava que a Sorbonne era uma pessoa, uma dessas
mulheres francesas de vida fácil e artes ainda mais fáceis que corrompia os
nobres rapazes espanhóis” —, foi na Sorbonne aquele encontro, durante uma
prova de Moral, matéria obrigatória no curso de licenciatura de filosofia, e a
moça, Jacqueline B., lhe deu de presente um romance de Faulkner, Sartoris, e
ele ficou definitivamente apaixonado por aquela escrita, aquela arte de
romancear — pela moça também, é verdade, belíssima, com olhos de verde
transparência, longa cabeleira solta, selvagem e meiga Jacqueline B., tão
próxima, tão distante, inalcançável, que introduziu em sua imaginação juvenil,
em seu desejo ainda adolescente, uma nefasta dualidade entre o amor, que só
podia ser platônico e cortês, e o desejo carnal, que não podia ser compatível,
por sua exigência possessiva, com uma adoração extasiada, e aquele mesmo
ano da descoberta de Faulkner e do puro amor foi o da leitura de Sartre,
Heidegger e Merleau-Ponty, do adeus aos estudos, do compromisso político e,
no final, da detenção pela Gestapo —, portanto Absalão, Absalão era um
romance que leu em alemão, pois por acaso havia um exemplar na biblioteca
de Buchenwald.
Naturalmente, não tinha dito nada disso a Juan Benet, naquela noite em
Fuencarral de costeletas de cordeiro e vinho tinto, quando começou a tomar
corpo a possibilidade deste relato.
“Conto-lhe a história da Satur?”, Leidson pergunta, depois.
“Vamos lá”, ele diz.
Pedem outro uísque e algo para beliscar: presunto, queijo, batatas fritas, o
que for.
“Como sou historiador”, diz Leidson, “não vou contar do jeito que você
conta, em desordem, por associações de idéias, imagens ou momentos, para
trás, para a frente; vou contar pela ordem cronológica; uma grande invenção, a
ordem cronológica, uma artimanha divina: no primeiro dia da Criação Deus
fez isso, no segundo fez aquilo; uma astúcia genial para contar as coisas. Para
mim tudo começa em 1954, há trinta e um anos — já pensou? é o espaço
histórico de duas gerações. Começa no dia do almoço no El Callejón. O relato
de Domingo me impressionou, não o esqueci; dois anos depois eu estava de
novo em Madri, num ano sabático em que pensava terminar meu livro sobre a
República de 1931, e em fevereiro aconteceu a história dos estudantes, e você
apareceu, Federico, o fantasma de Federico Sánchez, pelo menos na imprensa
do Regime, no rádio, nos cochichos de um círculo bastante amplo — talvez
demais — de estudantes e intelectuais madrilenhos, e eu nunca disse nada, não
fiz nenhum comentário, mas estava praticamente convencido de que o Agustín
Larrea que Dominguín tinha me apresentado não era tão sociólogo como
diziam, e na realidade esse nome era um pseudônimo de Federico Sánchez —
que, aliás, também era pseudônimo —; e às vezes eu me perguntava: como ele
saberá quem é, de verdade, em meio a tantos pseudônimos? Bem, naquela
primavera de 1956 revi Domingo e lhe perguntei se ainda se celebrava a
cerimônia expiatória, e ele me disse que não, não mais, mas que se a história
me interessasse, eu o acompanhasse a La Companza, no dia 18 de julho, vinte
anos depois da morte originária, e lá ele me apresentaria à Satur, já muito
velha, uma cozinheira fantástica que trabalhava e vivia na fazenda antes que
Dominguín pai a comprasse, e que poderia me contar tudo, e assim fizemos, e
a Satur me contou...”
“Eu sempre contei isso”, dizia a Satur, na tarde do dia 18 de julho de 1956
— e na véspera, de noite, Larrea esteve na casa de Domingo, no terraço da rua
Ferraz, mas Leidson acabava de sair, depois de ter combinado com Domingo
irem juntos de carro, na manhã seguinte, a Quismondo; e nessa noite, às tantas,
apareceu um estudante amigo de Pradera que voltava de uma viagem pela
Itália e, imagine só, querido gringo, que fantástica coincidência: o rapaz, um
tal de Lorenzo se bem me lembro, tinha estado em Roma na casa de María
Zambrano, num jantar com alguns exilados republicanos, e entre os presentes,
ele dizia, havia um Semprún Gurrea, e nos explicava, explicava a mim, veja
só, quem era ele, um amigo de Bergamín, dizia, fundador junto com ele da
revista Cruz y Raya, em suma, ele me explicava quem era o meu pai, imagine
que situação mais romanesca, e desse Lorenzo não soube mais nada, não sei
que fim levou, mas um dia, em algum livro, terei de ressuscitá-lo para que me
conte de novo a noite na casa de María Zambrano —, e dizia a Satur, na tarde
de 18 de julho de 1956, “eu sempre contei isso como se tivesse acontecido em
outra fazenda, não sei por quê, talvez para não reacender o mau-olhado, a
maldição dos Avendaño, mas tudo aconteceu aqui, em La Companza, que era
deles, e eu estava na fazenda, nasci aqui, quando os camponeses mataram seu
José María, nunca se soube por que, na certa por causa da maldição, porque
estava escrito; teria explicação se tivessem matado o mais velho, José Manuel,
quando o povo de Quismondo ficou sabendo que o exército da África tinha se
rebelado, porque ele era reaça pra chuchu e duro pra chuchu, continua sendo,
mas o mais moço, José María — entre os dois havia um terceiro, um jesuíta
—, era republicano, pois é, a má sorte, o mau-olhado, a maldição, e a dona
Mercedes ficou viúva, grávida, daria à luz dois órfãos, mas uma viúva muito
moça, e lindíssima, destroçada por aquela morte, seu marido, que ela adorava,
mas seu cunhado José Manuel, depois que o pessoal dele, os nacionales,
ganhou a guerra, meteu ela na cama e com ela gozou tudo o que quis e pôde —
sempre ia à fazenda sozinho, sem a mulher legítima, que aliás era cacete e jeca
e não saía de Madri para vir a uma aldeia tão aborrecida como Quismondo,
tão triste —; pois é, o sem-vergonha do José Manuel, tão de missa nos
domingos e de comunhão na Páscoa, tinha mulher em Madri e amante em La
Companza, e uma vez a dona Mercedes me disse que sem dúvida era um
pecado muito grande, e eu respondi que não, que pecado não era, era uma
indecência, mas não pecado; em suma, que o cunhado dela era um tirano, é
claro, mas que na cama se sentia bem com ele, era incansável, que precisava
dele para os exercícios da carne, embora estivesse tão longe de sua alma, tão
longe as almas deles, uma da outra; mas quando os gêmeos fizeram dezoito
anos — porque foram gêmeos, menino e menina, os daquela gravidez de
Biarritz, no final de uma viagem de lua-de-mel pela Itália, um mês antes da
nossa guerra —, ela descobriu que os irmãos estavam loucamente
apaixonados, que iam para a cama juntos, e dona Mercedes quis proibir,
acabar com esse estupro, separá-los, e a única coisa que conseguiu foi que se
suicidassem, aqui, em La Companza, uma tarde, no quarto da mãe, os dois nus,
e ele primeiro matou a irmã e depois deu um tiro na têmpora, que horror ver
aquilo, tão jovens, tão bonitos, tão inundados de sangue, e logo depois ela
vendeu a fazenda, ao Dominguín pai, que estava de olho numa ocasião, doido
para comprá-la...”.
Leidson interrompe de repente o relato da Satur, termina o uísque que
estava bebendo — o quinto, se fossem contá-los —, percebe que está ficando
bêbado, que precisa comer alguma coisa, e pensa numa solução.
“Escute”, diz, “são três da tarde, a gente tem de comer alguma coisa. Aqui
perto, na rua Juan de Mena, há uma cantina onde servem um bom cozido, se
quiser, vamos lá.”
“Vamos”, responde. “Mas o cozido me espanta: como você ficou espanhol,
gringo viejo!”
“Não é pelo cozido, Federico. É que Mercedes Pombo, viúva de
Avendaño, morava ao lado...”
“Eu também”, ele o interrompe, categórico.
De fato, também tinha morado perto da rua Juan de Mena, onde passou
toda a infância, e pode-se dizer que até o mês de julho de 1936 morou na
própria Juan de Mena, embora o portão de seu prédio fosse na Alfonso XI, e
as férias de verão daquele ano começaram em Lekeitio, no mesmo dia, talvez
na mesma hora em que os camponeses de Quismondo, num tropel confuso, se
dirigiam para a fazenda de La Companza, famintos de terra mais que de tudo, e
acabaram matando sem querer o único liberal da família Avendaño.
“Onde você morava?”, Leidson pergunta.
“Na Alfonso Xl”, responde, “esquina com a Juan de Mena, exatamente.”
Já estão a caminho da cantina sugerida por Leidson.
A primeira vez que voltou a Madri, clandestinamente, em junho de 1953,
quando se instalou numa pensão da Santa Cruz de Marcenado, foi correndo
para a rua. Anoitecia, foi andando a passos largos até o bairro de Salamanca,
percorrendo as ruas de sua infância, tudo era igual, tudo — quase tudo, exceto
um pequeno retoque numa fachada, exceto a presença ou ausência de uma
vitrine —, tudo era idêntico às imagens de sua memória, e no entanto foi se
apoderando de seu espírito uma incompreensível sensação de estranheza, de
confuso desasossego: nunca tinha se sentido tão estrangeiro como naquela
noite, ao retornar à conhecida paisagem da infância. Desorientado,
desanimado, foi percorrendo as ruas do bairro, buscando um ponto de
referência, de permanência, de enraizamento, de continuidade tranqüilizadora.
Encontrou-o, finalmente, por acaso. Estava na rua Serrano, por onde outrora
circulava o bonde número 11, linha que ia da rua Claudio Coello até o passeio
de Rosales; estava ali, desconcertado, angustiado pela estranheza radical do
mais antigo, originário, de sua própria memória, quando viu de súbito, na
calçada em frente, a vitrine iluminada de um armarinho, A Glória das Meias.
Isso mesmo, claro, sem dúvida, finalmente, já era hora: A Glória das Meias!
Subitamente, ao aparecer aquele nome de outrora, nome enternecedor e
grandiloqüente, todo o torvelinho de sentimentos, angústias, perguntas parecia
sossegar, a torrente de uma memória transbordada voltava a seu leito,
amansava no remanso da evidência. A Glória das Meias era o símbolo, ao
mesmo tempo insignificante, doméstico, mas patético, de um passar do tempo
denso e homogêneo: desde a infância até o dia de hoje, apesar de tanta
mudança, tanta morte, tanto êxodo e exílio, um fio vermelho de idêntico sangue
vivo percorria as trilhas de sua vida.
Ao cruzarem a rua Alfonso XI, subindo pela Juan de Mena, Leidson o
observa, à espera sem dúvida de que ele diga alguma coisa, onde ficava sua
casa, por exemplo. Mas não diz nada, demasiado absorto na lembrança do
modesto armarinho cujo nome imodesto, A Glória das Meias, tantos anos antes
havia restituído a seu ser o que ele era, à identidade de seu ser quem ele era,
apesar de tanto e tão profundo desenraizamento, tão prolongado: um nome
irrisório, para não dizer ridículo, que o ressuscitava do meio dos mortos, ao
desenterrá-lo do desterro.
“É aqui”, diz Leidson, na entrada da cantina. “E ali era o prédio de
Mercedes Pombo”, acrescenta apontando para a esquina em que a Juan de
Mena desemboca na rua Alfonso XII, defronte do Retiro.
“Ali? No prédio que forma a chanfradura?” E morre de rir.
Mas Leidson não entende a palavra “chanfradura” nem entende por que ele
ri. Explica. Explica o que é uma “chanfradura” e por que acha graça no fato de
Mercedes Pombo ter vivido naquele prédio.
“Não há dúvida”, exclama, “se isso não é romanesco eu já não sei o que é
um romance. Nesse mesmo prédio, segure-se, viveu um tio meu com sua
família. Honorio Maura, um dos irmãos de minha mãe, não o preferido dela,
que era Miguel, o republicano. Honorio era um reaça carlista e escrevia peças
de teatro, comédias de costume, nunca li nada dele. Um dos filhos, lvan, meu
primo-irmão, depois se destacou como campeão de golfe. Há uma canção
satírica dos anos 30, que se cantarolava com a música do hino de Riego, e que
mexe com os Maura. Só me lembro do primeiro verso: “Son de España los
Maura el oprobio”, e esta última palavra rimava com Honorio, e as outras
duas rimas da primeira quadra eram Miguel e Gabriel, ou seja, a musiquinha
caçoava dos três irmãos, mas das irmãs nada dizia, felizmente, e com isso a
honra de minha mãe foi salva...”.
Enquanto contava isso levou Leidson, agarrado pelo braço, até a
chanfradura formada pelo portão do prédio de Honorio Maura e tia Cota. E
também de Mercedes Pombo.
“Agora você compreenderá”, diz a Leidson, “por que para mim é tão
difícil, apesar do meu empenho, escrever romances que sejam romances de
verdade: porque a cada passo, a cada página, eu topo com a realidade de
minha própria vida, de minha experiência pessoal, de minha memória: para
que inventar quando se teve uma vida tão romanesca, na qual há matéria
narrativa infinita? Bem, o autêntico romance é um ato de criação, um universo
falso que ilumina, sustenta e talvez modifique a realidade. Eu teria de dizer,
como Boris Vian: neste livro tudo é verdade porque inventei tudo. Eu também
gostaria de inventar tudo...”
Já estão na cantina comendo, não cozido, nenhum dos dois se atreveu a
tanto, mas coisas muito saborosas.
“Que fim levou Honorio Maura?”, Leidson pergunta.
“Morreu, como dizia uma pessoa que eu conheço, e cujo nome prefiro
esquecer, ao falar dos fuzilados de nossa guerra, dos seqüestrados que
desapareciam, dos mortos na sarjeta, dos que ‘ao nascer já carregam nas
costas o muro dos executados’. Na verdade, foi morto pelos Vermelhos (no
início eu rejeitava esse qualificativo, por ser sectário, injusto historicamente,
mas terminei aceitando, porque de fato o exílio era vermelho, rouge espagnol,
em francês, Rotspanier em alemão, assim, acabei gostando de ser vermelho
dessa maneira, junto com aquela gente boa, com aquela esperança tão bonita,
embora derrotada), mas, bem, ou melhor, mal, Honorio Maura morreu: foi
fuzilado nos primeiros dias da guerra em San Sebastián...”
“Em San Sebastián? Então, como o pai e o avô de Pradera.”
Sim, de fato, como o pai e o avô de Pradera, como pais ou avós de tantos
jovens companheiros de luta daqueles velhos tempos.
Pradera estaria, trinta anos atrás, no terraço da casa de Domingo, na noite
daquele dia 17 de julho? Não é impossível, porque costumava estar. Mas ele
não se lembra. Ele, Larrea, ia se despedir, porque no dia seguinte, ou talvez
dali a dois ou três dias, também não se lembra, mas o detalhe não tem
importância, em todo caso pouco depois daquela noite calorosa — e não só
pelo clima do julho madrilenho, também pelo fervor da fraternidade — tinha
de ir viajar por algum tempo. Na verdade, havia sido convocado um pleno do
Comitê Central do partido, para se discutir a nova linha política, depois de
derrotada, a duras penas, a de Dolores Ibárruri e Vicente Uribe, graças à
firmeza de Claudín, à habilidade tática de Carrillo e, sobretudo, às
repercussões no grupo dirigente do Partido Comunista da Espanha do relatório
secreto de Kruschev, sobre os crimes de Stalin, apresentado no XX Congresso
do partido russo.
Despediu-se dos amigos sem lhes dizer, é claro, por que ia viajar, nem
para que nem para onde, mas, quanto a este último detalhe, mesmo que
quisesse dizer, não poderia: ele mesmo não sabia.
Hoje, sim, sabe: sabe onde esteve, perto de Berlim oriental, na escola de
formação de quadros Edgar André do partido alemão, numa linda paisagem de
lagos e bosques. Sabe onde está: numa cantina da rua Juan de Mena, e como é
um escritor realista pode até dizer o que está comendo: primeiro uma sopa de
legumes, depois uma merluza a la plancha. Nenhuma sobremesa, só café puro.
“Bem”, diz, “conte-me o que sabe de Mercedes Pombo. É a única coisa
que me falta para o romance: a última peça do quebra-cabeça...”
“Vai escrevê-lo mesmo?”, pergunta Leidson, visivelmente satisfeito.
Ele dá de ombros.
“Sei lá eu! Não é impossível, algo está germinando. Mas, como de outras
vezes, pode acontecer que o processo se interrompa ou que me dê fastio: é
freqüente. Além disso, eu teria de escrever este livro em castelhano.”
“E daí?”, Leidson exclama, espantado. “Como a Autobiografia, não é?”
Ele concorda com um gesto de cabeça e diz sibilinamente:
“Pois é, por isso.”
Volta a seu assunto, teimoso.
“Fale de Mercedes Pombo.”
***
Porque josé Ignacio Avendaño não falou naquele momento, sem dúvida o
mais oportuno, o mais propício a essa possibilidade, da última temporada da
fratria em Paris? Foi no outono de 1934. E foram semanas memoráveis. É que
festejaram em grande estilo duas despedidas de solteiro: a do caçula, José
María, que acabava de conhecer — ainda não biblicamente — Mercedes
Pombo, com quem se lançava na procelosa aventura de dois anos de namoro
formal; e também a despedida de solteiro, segundo a irônica expressão do
primogênito, de José Ignacio, que muito em breve iria professar os votos de
seus esponsais com a Igreja e a Companhia de Jesus.
Como Deus quer — pelo menos, o deus das salas de festa, dos restaurantes
de três estrelas e dos bordéis de luxo, que os há para qualquer mister ou
peripécia; e onde será mais necessário um deus do que nesta última espécie de
estabelecimento? —, de todas as festividades da dupla despedida encarregou-
se José Manuel, o primogênito. Até poucos anos atrás ainda havia no Lassere,
no Lapérouse ou no Laurent velhos maîtres que lembravam ou conheciam por
tradição oral as polpudas gorjetas e os caprichos libertinos e fanfarronescos
daqueles três irmãos espanhóis dos anos 30.
Seja como for, houve uma noite de orgia no Sphinx — um dos mais
requintados locais de prazer do Ocidente spengleriano, segundo a definição do
futuro jesuíta, sempre culto e até meio presunçoso em suas referências —, e
foi ali, quando José Manuel voltou de um reservado onde estivera trancado
com duas fêmeas muito jovens e lindíssimas — “sendo duas, demora mais a
chegar o tédio metafísico que inevitavelmente o coito produz”, ele costumava
dizer, “demoram mais para amolecer meu ânimo e meu pênis” —, foi no
grande salão de banquetes e bailes do Sphinx onde, de repente, José Manuel
anunciou aos dois, especialmente a José María, é óbvio, que queria exercer
seu direito de pernada com a futura cunhada, Mercedes Pombo, por ora
apenas namorada formal de José María.
Primeiro, os outros dois o levaram na brincadeira. Mas não, não era uma
brincadeira, falava sério.
Tão sério que quase chegaram às vias de fato.
José Manuel pretendia que Mercedes, à primeira vista tão mocinha
interiorana, quase uma pateta, vinha na verdade pedindo guerra e aventura, e
por isso precisava, para se iniciar no universo — “mundo, demônio e carne”,
acrescentou com uma piscadela para o irmão teólogo —, um homem de
verdade, com experiência, e você, irmãozinho, querido Josemari, pode iniciá-
la em muitas coisas, na leitura daquele maricas do Keynes, por exemplo, que
tanto se derreteu com você quando fez suas conferências em Madri há uns
anos, quando você o acompanhou, a ele e àquele chamariz que era a mulher
dele, russa, espalhafatosa, bailarina e sapatona; em qualquer leitura e saber
você pode iniciar Mercedes, mas não nas coisas do amor não platônico; ou
seja, eu a preparo e amestro para as batalhas eróticas. Você sabe o que diz a
nossa Satur: para bom cozido, panela usada!
Mas José Ignacio, é compreensível, ao explicar a origem de seu
conhecimento dramático de Judite, nada contou da famosa e dupla despedida
de solteiro de 1934.
E não contou em parte pela própria presença de Mercedes no almoço, para
não reavivar na memória de sua cunhada lembranças dolorosas.
Em parte também porque ele mesmo não queria rememorar os desacordos,
às vezes duríssimos, que tinha havido entre os irmãos, sobretudo, justamente,
entre o primogênito e o caçula, José Manuel e José María, ao longo do ano de
1934. Desacordos ideológicos e políticos, é evidente.
José Manuel tinha chegado à conclusão de que era urgente um governo
autoritário, de mão de ferro, para pôr ordem tanto na Espanha como na
Europa. Gostassem ou não de certas formulações dos movimentos fascistas —
nos rapazes da Falange Española podia-se criticar uma intolerável cafonice
retórica; nos de Mussolini, os bordões imperiais; nos nazistas, o palavrório
paleo-germânico do Sangue e da Terra, pensava o Avendaño primogênito —,
parecia evidente que só num fascismo genérico e generoso poderiam despertar
e articularem-se os esforços de renovação nacional contra a decadência dos
sistemas liberal-capitalistas, cosmopolitas.
A evolução de José María tinha sido completamente diversa.
Aquele ano rico em acontecimentos históricos — desde as revoltas
parisienses de fevereiro, durante as quais os movimentos extremistas dos dois
lados estiveram prestes a derrubar o regime corrupto da democracia burguesa,
até a repressão do movimento revolucionário dos mineiros asturianos por um
corpo expedicionário sob o comando do general Franco, passando pelo
esmagamento das milícias operárias social-democratas em Viena — foi
decisivo para a radicalização das idéias políticas de José María.
Até então tinha sido leitor fiel da Revista de Occidente, e seu colaborador
ocasional, escrevendo notas críticas sobre temas de economia política.
Nesse contexto havia conhecido e acompanhado John Maynard Keynes, em
junho de 1930, quando o ilustre professor inglês foi a Madri dar uma
conferência organizada pela revista.
Que John Maynard Keynes fosse sensível ao aspecto viril de José María
Avendaño não é impossível; que a mulher dele, Lidia Lopokova, era russa,
extravagante e bailarina é um fato incontroverso; que além disso fosse lésbica
era uma conjectura maldosa de José Manuel, e sua veracidade ou falsidade
eram, no quadro daquele almoço em La Maestranza, difíceis de se provar.
Seja como for, Keynes e o jovem Avendaño simpatizaram, e tudo indica —
é um dado que não foi possível verificar — que o rapaz acompanhou o casal
inglês durante sua estada na Espanha, depois da conferência na Casa dos
Estudantes de Madri.
O que está comprovado é que Keynes, além de enviar a José María ao
longo dos anos seguintes alguns postais e cartas curtas — todas arquivadas
por Benigno Perales —, também fez chegar a ele, muito cordialmente, um
exemplar dedicado de seu The general theory recém-publicado, que José
María encontrou ao retornar da lua-de-mel, em julho de 1936, e levou para La
Maestranza pretendendo lê-lo durante o verão.
Em todo caso, sem abandonar a leitura nem o relacionamento com o
pessoal da revista de Ortega y Gasset, naquele ano crítico de 1934 José María
foi se aproximando do grupo de Cruz y Raya, em torno de José Bergamín.
Conheceu alguns de seus colaboradores, entre eles um tal de Semprún Gurrea,
com quem acabou fazendo certa amizade, e concordou com boa parte das
análises da revista, particularmente as de Eugenio Imaz, que publicava artigos
políticos, sutis, densos e decididamente liberal-antifascistas.
Nessa madrugada, dois anos mais tarde, quando se encontrou com Isabel,
que esperava por ele no apartamento da Alfonso Xll forrado de branco,
Lorenzo relembrou os versos de Blas de Otero.
Sua irmã estava deitada contra seu corpo, acariciando-o.
Lorenzo tentou se distrair da onda de desejo que subia de sua virilha,
subjugando-o. Tentou pensar intensamente, insistentemente, em alguma coisa
que o distraísse. Nada adiantou: nem um excurso mental, sistemático, pelo
último ensaio filosófico lido; nem uma reflexão sobre um tema tão distante do
sexo como a política de reconciliação nacional recém-lançada pelo Partido
Comunista; nem um exercício espiritual de esquecimento e domínio do corpo,
aprendido com um colega de faculdade adepto da ioga: nada foi capaz de
distraí-lo do desejo crescente.
Teve um último rompante de consciência irônica antes de sucumbir: nem a
ioga me distrai da foda, pensou Lorenzo.
Mas talvez pelo nervosismo, talvez por um difuso e subjacente sentimento
de culpa que freava seu apetite libidinoso, talvez pela própria precipitação de
uma Isabel inexperiente, o fato é que Lorenzo gozou logo, não conseguiu se
manter em estado de penetrar em Isabel e deflorá-la.
Ela choramingou, frustrada. Ele se enfureceu consigo mesmo, e com ela
também, naturalmente. Mas logo voltaram à ternura de um longo abraço.
Enquanto a luz do sol crescia ao entrar pelas vidraças das janelas que
davam para o Retiro, Lorenzo sussurrava ao ouvido de Isabel outros versos de
Blas de Otero:
No vengas ahora.
Huye.
Hay días malos, días que crecen
en un charco de lágrimas.
Escóndete en tu cuarto y cierra la puerta
y haz un nudo en la llave
y mírate desnuda en el espejo, como
en un charco de lágrimas...16
E ela se levantou de súbito, não quis mais ouvir, foi para a ducha, voltou
meia hora depois, limpa, lisa, intocável.
“Estou pronta”, disse, “vamos para Quismondo?”
E foram.
11 “Menina, deixa que eu levante/ teu vestido para ver-te./ Abre em meus
dedos velhos/ a rosa azul de teu ventre./ Preciosa atira o pandeiro/ e corre
sem se deter./ O vento-homão a persegue/ com uma espada candente.” (N. T.)
12 “Preciosa, cheia de medo,/ entra na casa que é,/ mais acima dos
pinheiros,/ a do cônsul dos ingleses./ O inglês dá à gitana/ um copo de leite
morno/ e um cálice de gim/ que Preciosa não bebe.” (N. T.)
16 “Não vem agora./ Foge./ Há dias maus, dias que crescem/ num charco
de lágrimas./ Esconde-te em teu quarto e fecha a porta/ e dá um nó na chave/ e
olha-te nua no espelho, como/ num charco de lágrimas...” (N. T.).