Daniel-Rops - Que É A Bíblia

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QUE E A BIBLIA?
DANIEL-ROPS
da Academia Francesa

Tradução de

J. DUPRAT

SEI E CREIO
ENCICLOPÉDIA DO CATóLICO NO SÉCULO XX

SEXTA PARTE

BíBLIA, LIVRO DE DEUS, LIVRO DOS HOMENS

FLAMBOYANT
A CRíTICA E A BíBLIA
JEAN STEINMANN
*

Seria em vão pretender apresentar ao grande


público o Padre Steinmann. :bsse especialista da his­
tória -e da crítica, tanto no ponto de vista da Escri­
tura como no literário, tornou-se bastante notório
pelo estilo. Pela paixão impetuosa com que defende
suas idéias, lança-se contra o adversário sem consi­
deração de pessoas, a demolir preconceitos. :bste
grande trabalhador que sabe reviver homens e épo­
cas, sublima-se em projetar luz sôbre os problemas,
conquistando ràpidamente auditório imenso e fiel.
Prende-se, com deito, o leitor à obra do Padre
Steinmann, pois que seus livros são sempre vivos e
frementes, bem como impregnados de profunda cul­
tura, ponderados no arrebatamento e calorosos na
indignação.
Para maior proveito e encanto dos leitores da
- "Enciclopédia do Católico no Século XX", o eterno
Problema do valor da Bíblia constitui o tema dd
seu último livro. E terno, dissemos, porquanto, desde_
que a Bíblia existe, não houve época que não ti­
vesse conhecido, tanto entre os judeus como entre os
cristãos, controvérsias bíblicas. A Bíblia - Livro dé
Deus, e inspirado por Êle, - não é, contudo, escrito
por Êle, mas por homens. Assim por que não resisti­
ria ela, como todo documento escrito, à tríplice crítica
textual, literária e histórica, que apenas pode contri­
buir para colocar a Palavra de Deus em mais viva
e pura claridade?
Nada tem a cnuca, por si mesma, em face da
Bíblia, de desrespeitoso nem de destruidor. Bem ao
contrário! Ê o que claramente explica o Padre Stein­
mann que, após ter breve e claramente definido o
que ela é, de modo geral, traça curta e viva his­
tória da crítica bíblica,- a fim de levantar afinal, a
respeito de cada um dos livros do Antigo e do
Novo Testamento, o balanço dos seus resultados.

LIVRARIA EDITORA

FLAMBOYANT
QUE É A BÍBLIA?
POR DANIEL-ROPS
Da Academia Francesa de Letras

Assim como ao Cristo, é a Bíblia a Palavra de


Deus. E como ao Cristo também, é ela o alfa e o
omega do Cristianismo, o começo, fim e a totalidade
da vida cristã. ·

Normal é, portanto, que a nova coleção "Enci­


clopédia do Católico no Século XX" cuja finalidade
é ensinar os cristãos a informar os que o não são,
lhe seja início esta apresentação da Bíblia. E quem
melhor poderia apresentá-la, de modo mais oportu­
no, do que um homem que, na inquietação do nosso
mundo, descobriu os vestígios do Verbo de Deus na
obscuridade de nossa alma, percebendo as cintilações
*
.,2a espada de fogo a interceptar o Pa aíso perdido,
na angústia das vitórias da Morte e sentindo sôbre
a própria face o "sôpro suave da brisa", sinal da
Passagem d' Aquêle que nos fala ao coração?
Ê assim que Daniel Rops nos vai descrever a
Bíblia "Livro de Deus, Livro dos Homens". Livw
de Deus, pois que é Êle o Sujeito e o Objeto. Ê
Deus que fala de sua própria Natureza, sua Criação,
Desígnios e do seu Povo. Livro dos homens pois
que o caniço agitado pelo vento do Espírito, o cá­
lamo do escritor inspirado, transmite-nos, também, os
costumes, o temperamento, a história e a mentali­
dade dos povos e dos indivíduos envolvidos no
plano divino.
Neste apaixonante resumo da História e das
histórias, do Sentido e dos sentidos da Bíblia, Daniel
Rops entrega-nos o fruto dos seus trabalhos pacientes
de exegese e de história, que levaram seu nome atra­
vés do mundo, e também de suas meditações ínti­
mas e cotidiano encontro com o "Livro".

LIVRARIA EDITORA

FLAMBOYANT
NIHIL OBSTAT
São Paulo,10 de abril de 1958
Mons. HBLADIO CoRREIA LAURINI

IMPRIMA1UR
São Paulo, 10 de abril de 1958
Moas. LAPAYETTB
Ex delegatiooe
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SEXTA PARTE - BlllLIA, LIVRO DE DEUS, LIVRO DOS HOMENS

QUE É A BíBLIA?
DANIEL-ROPS, DA ACADEMIA FRANCESA
Título do original francês:

QU'EST-CE QUE LA BIBLE?

JE S AIS - JE CROIS
I!NCYCLOP�DIE DU CATHOLIQUE AU xxHME SikLB

IIBRAIRIE ARTHEMI! FAYARD - PARIS

DO MESMO AUTOR
EDITADOS PELA FLAMBOYANT

HISTORJA SAGRADA DAS CRIANÇAS

OS MILAGRES DO FILHO DE DEUS

A BC DA CRIANÇA CRISTÃ

1958

Dirfttos para a língua portuguésa adquiridos pela


LIVRARIA EDITORA FLAMBOYANT
Rua Lavradio, 222 São Paulo
-

que .se reserva a propriedade desta tradução.


CAPITULO I

BíBLIA, LIVRO DOS LIVROS

BASE DE NossA CIVILIZAÇÃO

Há um l ivro ún ico , inexgotá vel , no qual tu do se encontra a res­


pe ito de Deus e do homem . Deus , em tô da a parte pres ente , n êle
se re vela sob to dos os aspectos em que nos é perm it ido entre ver-lhe
o m ist ér io , n êle se man ifestan do , falan do e ag in do . E o homem n êle
também se reconhece em tô das as suas virtual ida des , suas gran de zas e
fa lhas , des de as asp iraç ões ma is subl imes at é êsses r ecantos obscuros
da consc iênc ia on de , em ca da qua l, sangra a ferida or ig inal do pe ­
ca do . Se , ac ima de tu do , um ens ino rel ig ioso n êle se apresenta , o
ens ino da ver da de re vela da , os co nhecimentos human os e as at ivida­
des do esp ír ito encontram al imento de uma r iqu eza sempre no va . E
tamb ém vão preten der t irar de seus princíp ios a mo ral e o direito ,
como a soc iolog ia , a econom ia e at é a pol ít ica , se fôr ignora da a
mensagem de que êste l ivro é porta dor .
Arte e l iteratura , m a is e videntemente a in da , estão -lhe na depen­
dênc ia . Se m êste livro , nem os e scultores de Chartres , os mo sa ístas
de Ra vena , Miguel Angelo e Re mbran dt e nem os Gregos seriam
aqu êles que tanto a dm iramos . Ma is a in da mesmo que êste dese nvol­
vimento quant itat ivo das ob ras que lhe de vem os temas , o qu e con ta,
o que lhe ren de testemunho , é a e xist ênc ia que lhe é de vida, de u ma
arte , alçan do a estét ica ac ima de si mes ma, at é a significação da es·
p ir itual ida de .

Assim também a conte ce às obras l iterárias Bste llv� glorifi.


.

cado ora por Monta ign e e Ra cine , Shakespea re e wthe, o ra por Nie-­
tzsche e Anatole France, ma is fêz ainda que fornecer assuntos sem
8 QUE É A BfBLIA ?

con ta a dra ma turgos , po is que dêle dimana a torren te de água viva a

irr igar as raízes das obras -primas .


Sem êle ter ia m surg ido Dan te e Ra cine , Pas cal e Dos to ie vs ki?
Paul Val ér y, e m frase pro fun da , de mon strou que a civiliza ção o ci­
den tal repousa sôbre tr ês bases : a in tel igên cia grega , a orde m roman a
e a esp iritual ida de j u deu -cris tã . Es fa cele-se u ma, e to do o e difício ver­
-se -á a mea ça do de ru ína . Ora , a terce ira dess as bases , a mais in dispen ­
sá vel a bem dizer , po is que forne ce ao conjun to sua au tên tica s ign ifi­
ca ção , é o l ivro ún ico e inexgo tá vel que a de fine e al icer ça . Se m êle ,
não ser ia o Ociden te aqu ilo que é.
:e, a in da , fa lsear-lhe o sentido e l imitar -lhe o al can ce , asso ciar ês te
l ivro s omen te à ex is tên cia e ao desen vol vimen to da civil iza ção o ciden­
tal . D ia a dia , à me dida que um es fôr ço se con cre tiza no sentido de
le var -lhe a mensage m ao plano do un iversal , ver ifica -se que , pelo s
da dos pro fun dos tan to quan to pelos me ios de expressão que usa , es tá
êle perfe ita men te de a côr do com men tal ida des bem diversas das eu ­
ropéias, e que Ãs ia e África mu ito na tural mente a po dem re ceber ,
es tan do -lhe o g ên io , de cer to mo do , a corde . Se a human ida de bran ca
lhe de ve , e m a mpla me dida , ter as su mi do o papel de gu ia que l h e
reconh ece a h is tória , de ve m-lhe a s ra ças de côr o despertar ante o
esplen dor de u ma no va lu z.
Tal é a B íbl ia , l ivro do s l ivros , l ivro do ho mem e de Deus .

Os livRos SAGRADOS : o LIVRO

O t ítulo pelo qual de signamo s êste l ivro , r esume e tra du z tô da s


Esta pala vra , al ém da etimologia
as suas e xcep ciona is cara cter ísti cas .
gr ega - "b iblos", "bibl ion ", o li vro , - penetra at é aqu êl e s temp os
lon gínquos do segun do milená rio antes de Cristo em que o s Fen ício s
de B yblos h a viam feit o de seu pôrto o ma ior entrep o sto de pap i­
r os da ép oca , imp on do o próprio nome de sua ci da de ao p ro dut o
que ven diam .
Na acepçã o que lhe damos, nã o remonta , contudo , seu empr êgo ,
_
senao � IV,Q s éculo de no ssa era , no s dia s de Sã o Jerôn im o , qu e
general izou o empr êgo da e xpr es são " o s Sant os Livros " ou s impl es-
" ',
mente, "os L'tvro s , em gre go, " ta btíbl'ta " O s La ttnos

' da epo ca de -
ca dente transpuser am a pala vra pa ra o f em ini no de sua l ín gu a, e a
declinaram "bíbl ia - biblúe".
BÍBLIA, LIVRO DOS LIVROS 9

Assim transformo�-se êsse plural, na linguagem corrente, em um


.
Smgular, e essa coleçao de setenta e três obras designada por uma
palavra que lhe subentende a unidade profunda e a sobrenatural
�arm�nia. O sinônimo que muit? também foi usado para designá-lo,
..

Esc:ttura , - o que, com efetto, traduz: ·"As Santas Escrituras",


exprtme, sob outra forma, a mesma idéia: que todos os elementos
desconexos que o compõem, coordenam-se em uma síntese superior.
Escritura, Livros Sagrados, Livro, Bíblia: palavras diversas que
c?rres�o�dem tôdas a um mesmo objetivo. Trata-se, na verdade, de
hvro umco e, por excelência, do livro que sôbre todos os demais
mantém a primazia. f: o absoluto da cousa escrita, porquanto a men­
sagem que contém é o próprio absoluto.

0 LIVRO MAIS LIDO NO M UNDO

f: a Bíblia, entre tôdas as obras do espírito, a mais lida do


mundo. O algarismo de seus exemplares pode, apenas, ser conjec·
turado: um bilhão ou dois, acrescidos, cada ano, de cêrca de dois
bilhões. Desde a antigüidade, começou o livro a difundir-se. A his­
tória tradicional de Ptolomeu Philadelpho, pedindo ao Sumo Sacer­
dote Eleazar que lhe enviasse os setenta e dois melhores doutores de
Israel a fim de dotar a biblioteca de Alexandria de uma tradução
grega dos livros santos hebreus, tem valor de símbolo, pois que prova
a celebridade de que já gozava a obra. A expansão da Bíblia tor­
nou-se mais vasta ainda quando os Cristãos, tendo acrescentado à parte
judaica o que continha a suprema revelação trazida por Jesus, contri­
buiu para aumentá-la! Foi a Bíblia copiada nos conventos; os gran­
des da terra timbraram em possuir-lhe exemplares. Quando Gutem­
berg inventou a imprensa, foi da Escritura Sagrada que retirou o pri­
meiro texto ao qual aplicou a nova técnica.
Em nossos dias, pode-se ler a Bíblia em quase tôdas as língu�
por menos importantes que sejam. Quantas traduções já foram enu·
meradas? Setecentas e trinta; mil cento e quarenta? Segundo os au­
tores, variam os algarismos. Existe tanto em japonês como em árabe,
em bretão como em flamengo e até em esquimó e em ouolof. Poder­
-se-ia assinalar o ano de 1817 em que apareceu, pela primeira vez,
em língua africana, - era, então, em malgache, - enquanto Morrison
produzia a primeira versão chinêsa. A presença dêsse Livro não cessa
10 QUE É A BÍBLIA?
-------

de difundir-se. No século da "morte de Deus" êste sucesso vem con­


firmar-se, afirmando a soberania da Palavra, - dessa Palavra da qual
foi dito que não haveria de passar.

Os CATó L icos E M FACE DA BíBLIA

n preciso, contudo, confessar que, nesse campo, durante muito


tempo, atardaram-se os católicos. Durante cêrca de tr� zen�os anos
mantiveram-se ante o Livro dos Livros numa atitude de mquteta des­
c onfiança. Tal foi uma das conseqüências da terrível crise que atra­
vessou o mundo cristão no decurso do século XVI e da ruptura que
assinalou, na marcha dos destinos da Igreja, a revolução protestante.
Enquanto, contudo, abrigado no castelo de Wartbourg que o ocultava
dos olhos de seus inimigos, empreendia Lutero sua grande obra, a
tradução alemã da Bíblia, não é exato dizer-se que todo o catolicismo
desinteressava-se dos Livros Santos. Entre a invenção da imprensa,
- 1450, - e êsse ano de 1520, no qual o antigo monge augusti­
niano punha-se ao trabalho, cento e cinqüenta e seis edições latinas
da Bíblia haviam surgido, e, para não citar senão as do seu país,
dezessete versões em língua alemã.
n fora, porém, de dúvida que essas publicações eram dirigidas,
quase exclusivamente, a especialistas, não tendo o povo a elas acesso.
O Livro "que deveria encontrar-se, noite e dia, entre as mãos
dos homens piedosos, jazia, em geral, envolto em poeira".
A decadência simultânea da Bíblia e da Liturgia, desde os fins
do século XIII, demasiadamente correspondeu a essa deslocação do
ideal de Cristandade, do qual o desenvolvimento do nacionalismo em
política, o nominalismo em teologia e a desagregação dos costumes
assinalavam outros sintomas. Sem esta decadência, o ataque de Lu­
tero não teria tido maior alcance, e seu sucesso não seria aquêle
que sabemos.
Lutero, porém, e, ao lado dêle, os demais "reformadores", ren- .
d�!ldo ao Livro sua supremacia e repercussão, cometeram o êrro ine:x:­

ptave d� separá-lo da Tradição que lhe havia garantido o texto e
_ .
c � tnb�udo pa_r� eluoda-lo. Tornada para o homem fonte única de
.
fe e vtda esp1r1tual, oferecia .
a Bíblta o meio de se prescindir da
Igreja, de sua organização social, da Tradição e da Hierarquia.
. A Igreja Católica mediu o perigo dessa quebra na evolução his­
tónca da mensagem cristã e dessa individualização da crença. Reagiu,
BÍBLIA, LIVRO DOS LIVROS 11

então, pelas medidas de proteção que tomou o Concílio de Trento


principalmente pela interdição aos fiéis de lerem a Sagrada Escritur �

nas tra uçõ�s em língua vulgar que não tivessem sido aprovadas por
?
ela e nao fosse__m acompanhadas e comentários conforme à Tradição
.
, .
catoltca. ?
Pru encta? �alvez exc�sstva, e certa influência do jansenismo
deram a esta mterdtçao um carater de rigor absoluto que não possuía.
Tornou-se corrente ouvir-se repetir que "a Bíblia está no Index" e
que "um católico não deve ler a Bíblia". A crise do Modernismo,
no início dêste século, em que trabalhos, imprudentemente conduzi­
dos, puseram em causa a autenticidade da Sagrada Escritura, muito
contribuiu também para desenvolver esta desconfiança.
Havia nisto, para os católicos, uma grave perda. Como ser ple­
namente cristão, cortando-se as próprias raízes que permitiram à fé
cristã viver e expandir-se? Foi o grande mérito dos Papas, nestes
últimos sessenta anos, o terem medido a amplitude desta perda, e
procurado saná-la. Três grandes encíclicas restabeleceram a verdade
- e a Bíblia - em seus direitos: "Providentissimus" de Leão XIII,
em 1893, ·"Spiritus Paraclitus" de Benedito XV, por ocasião do XV.<�
centenário de São Jerônimo, em 1920, e a radiosa mensagem de Pio
XII, em 1943, "Divino Afflante Spiritu", que foi ponto de partida
do renascimento bíblico atual. Ao mesmo tempo, criadas pela Santa Sé
ou encorajadas em sua fundação, surgiram várias instituições, tais
como: a "Comissão Bíblica Pontifícia", em 1902, que fixa, em ma­
téria de Escritura Sagrada, o ensinamento comum da Igreja (1); o
Instituto Bíblico Pontifício (jesuíta) e a Escola Bíblica de Jerusa­
lém (dominicana).
O mosteiro beneditino de São Jerônimo, em Roma, foi investido
da tarefa de rever a tradução latina dos Livros Santos, a mais impor-

( 1) A propósito dos decretos da Comissão Biblica, acabam de ser r�di­


tados os decretos (Euchiridion Biblicum 1954). Simultâneamente o secretáno e
o subsecretário da C. B. publicam uma nota, salientando: 1.0 ·o alcance histó­
rico dos decretos (é necessário compreendê-los segundo as circunstâncias das
respectivas publicações); 2.q a especificidade (é preciso disti��uir: "Dois tipos
de decisões são encaradas: Pode dar-se o caso de uma dectsao estar em rela­
ção com a fé e os costumes. Na medida dessa relação, guarda natu�mente
todo o seu valor e torna-se obrigatória. Muitas vêzes, porém, as dectsões da
C. B., de acôrdo com a própria, natureza do seu objeto, não têm relação com
a fé e os costumes. A Comissão é geralmente consultada sõbre questões de
ordem histórica ou crítica. Em assuntos desta ordem, dados novos podem rea-
brir uma questão que poderia parecer resolvida; .. )
. • •

(Artigo de Dom Jacques Dupont O. S. B., A propósrto do novo Endürt•


.

dion Biblicum" na "Revista Biblica.., ju lho de 19SS, pág1. 414-41�).


12 QUE É A BÍBLIA?
------

tante, pois que é em latim que os textos sagrados são empregados


na liturgia.
"Lêde a Bíblia!" diz, portanto, doravante a seus filhos a Igreja
Católica. E, em todos os países do mundo em que sua autoridade
é reconhecida, considerável esfôrço realiza-se sob nossos olhos a
fim de ser cumprida tal admoestação. Somente na França, seis tra·
duções, - uma, velha de sessenta anos mas, desde pouco tempo, re­
novada; outra de vinte anos, e ainda quatro bem recentes, - são a
partilha de um público, dia a dia mais numeroso. Uma delas patro·
cinada pelo Cardeal Lienart, apenas em quatro anos, ultrapassou tre­
zentos mil exemplares. �. portanto, hoje em dia, bem fácil aos cató·
licos conformarem-se com a ordem do Cânon 1.391, e de somente
lerem a Bíblia em edições autorizadas. Quanto ao número de publi­
cações consagradas à Bíblia, é de pasmar: cêrca de duzentas obras
em língua francesa, só em 1954, e inúmeros artigos.
�ste esfôrço e tamanho sucesso têm um sentido. Não é mais
aos caprichos do livre exame que se acha relegado o texto sagrado. •

Transmitido aos fiéis pela própria "Ecclesia Mater", que o interpreta


segundo as lições que vinte séculos acumularam ao fio da Tradição,
a Escritura Sagrada retomou seu papel de laço vivo e fonte inexgo·
tável. Ler a Bíblia não é mais lançar-se a uma aventura pessoal, em
revolta contra a autoridade, a Tradição, a Hierarquia e os dogmas
estabelecidos. � praticar um ato superior de fidelidade e adesão.
Assim, o livro sagrado surge como elemento determinante na
opinião fundamental do século XX, entre a fé e a repulsa. Há, do·
ravante uma humanidade que vive da Escritura, do Livro dos Livros,
e outra que o repele, porquanto, há uma humanidade que concebe
a vida sem Deus e outra que faz d�le, como a própria Bíblia, o
••alfa" e o ..omega" de tudo.
CAPITULO 11

DE NOSSAS uBíBLIAS" A PALAVRA

0 LIVRO FOI A PRINCÍPIO PALAVRA

Estas obras cujo conjunto constituía a Bíblia, êstes livros, que te­
mos por base de nossa fé, como foram compostos e a nós transmitidos?
Nossas "Bíblias" modernas dissimulam, sob aparência uniforme,
não somente a prodigiosa diversidade das partes, mas o mistério de
suas origens. Quem, folheando as páginas dêsse texto conciso, pen­
sará no tempo em que essas palavras e essas frases se não apresen­
taram sob o aspecto definitivo da impressão, mas sim proclamadas ou
salmodiadas ao auditório pela voz dos Arautos de Deus?
Bem antes de ser um texto escrito, a Bfblia, em sua maior parte,
constituiu ensinamento oral. Sob a forma de narrações, mais ou me­
nos estereotipadas, de poemas ritmados e assonantes, de sentenças e
ditos vigorosos, seus elementos foram transmitidos, de geração em
geração, pela palavra, antes que o uso da escrita se ouvesse imposto.
E esta gênese especial, da qual outros livros orientais oferecem exem­
plo, - tal o Alcorão, - acha-se em íntima relação com as próprias
formas da cultura, da vida do espírito, da linguagem, no povo em
que foi elaborada a Bíblia, formas de tipo simples e comunitário, em
que a criação literária era infinitamente menos individualista e in­
t electual do que entre nós, e mais viva e expontânea.
Para que bem se compreenda como nasceu a Bíblia, é preciso que
nos desfaçamos de nossos hábitos de homens modernos, homens da
civilização do papel. Escrever e ler para nós são duas operações tão
·

automáticas que imaginamos apenas como outras sociedades tenham


podido dela totalmente prescindir. Tomaram-se nossa memória exan­
gue e estéril e nossas faculdades de improvisação mais verbais e "elo-
14 QUB É A BÍBLIA ?

qüentes" que poéticas e proféticas. Em Israel dos tempos antigos e


até os dias de Cristo, procedia-se diversamente. Falar com abundân­
cia, com arte e grande dom das fórmulas era o apanágio daqueles que,
hoje em dia, seriam "escritores". A memória aperfeiçoada era instru­
mento de escol. "Um bom discípulo, diziam os Doutores judeus, é
semelhante à cisterna bem cimentada: do ensino do Mestre não deixa
escapar uma só gôta d'água".
Esta transmissão pela memória e palavra era extremamente faci­
litada pela própria técnica que lhe era aplicada.
Existia uma arte de aprender e guardar de cor que se aliava à
arte de compor. �ste "estilo oral" gravou de modo visível o texto,
e a passagem para o escrito, em margem grande, respeitou-lhe o molde.
A modulação do ritmo, a repetição de certas palavras e o jôgo das
aliterações constituíam auxiliares da memória. Basta ler em voz alta
muitas passagens do Evangelho para encontrar, sob o texto escrito,
a expressão oral.

Tocamos flaut" e não danfasles


Cantttmos lament11fÕes e não chorastes.

Bstes dois versículos colocam-nos, evidentemente, em face de u m


trecho cadenciado d e um verdadeiro estribilho.
Conhecemos, por vêzes, com exatidão, a existência do ensinamento
anterior ao escrito. As profecias de Jeremias foram feitas vinte e
dois anos antes de serem redigidas.
Todos os profetas, todos os salmos, tôdas as partes poéticas e,
em primeiro lugar, o Cântico dos Cânticos, conjunto de cânticos nup·
ciais, têm, evidentemente, o mesmo caráter.
E, mesmo nos livros históricos, supõe-se pela linguagem, pe l a
forma das frases, que se trata de crônicas faladas, análogas àquelas
com que os aedos homéricos ou os trovadores da Idade Média sua­
visavam o tédio dos castelões.
Não quer isto dizer que não existissem elementos escritos. A pró·
pria Bíblia faz alusão a compilações, quais o "Livro das guerras de
Javé" e o "Livro do Justo" que deveriam ser conhecidos de todos,
a julgar pelo modo por que é falado. Como Josué, a fim de ter
tempo para terminar sua vitória, ordenou ao sol que se detivesse e
foi obedecido, "não está isto escrito no "Livro do Justo"?
DE NOSSAS "BÍBLIAS" À PALAVRA 15

Hoje, depois das inúmeras descobertas da arqueologia, do Sinai


a Ras-Shamra, ninguém mais contesta que escritos bíblicos muito an­
tigos, anteriores ao X.<.>, e, talvez mesmo, ao XII.<.> século, tenham exis­
tido. Na época em que os hebreus de Moisés estiveram no Egito,
havia quinze séculos que a escrita estava em uso corrente no país do
Nilo. �sses elementos escritos, porém, não passaram, durante muito
tempo, senão de auxiliares da memória, antes de serem inseridos na
redação que possuímos.
E, coisa curiosa, o mesmo exatamente aconteceu aos textos bíbli­
cos da tradição cristã, ao menos, aos Evangelhos, porquanto, para o
que diz respeito aos "Atos dos Apóstolos", às "Epístolas" e ao "Apo­
calipse", trata-se de documentos escritos e que se apresentam como
tais, escritos ou ainda ditados, como acontece às cartas de São Paulo,
e nêste último caso encontra-se o "estilo oral".
Os Evangelhos foram, certamente, a princípio ·"ditos", bem antes
de terem sido escritos. As primeiras gerações cristãs emprestaram a
êsse ensino oral enorme importância. Imagine-se uma criança de hoje
a quem conte a vóvó que sua própria avó, no tempo em que era
jovem, falava de Napoleão que ela vira passar revista às tropas, jus­
tamente antes de Waterloo. Esta lembrança direta lhe não parece
infinitamente mais concreta e mais verdadeira que tudo quanto po­
deria ler no manual de história? Durante, pelo menos, quatro ou
cinco gerações, ouviram os cristãos o Evangelho como história trans­
mitida, de bôca em bôca, por testemunhas irrecusáveis. Pelo ano de
130, isto é, em época em que os quatro evangelistas tinham, há muito,
publicado seus livros, - São Papias, bispo de Hierapolis, na Fri�
declarou que o que a tudo preferia, em matéria de tradição, era a
"palavra viva e duradoura".
E, pouco mais tarde, Santo Irineu, em Lião, evocava o tempo em
que escutava São Policarpo, o grande bispo ·de Smima, relatar o que,
êle próprio, havia colhido do· apóstolo São João B dêstes testemu­
.

nhos vivos que o Evangelho guarda o acento que nos toca o coração.
A necessidade, contudo, de guiar os transmissores do Evangelho,
e o desejo de evitar os desvios, erros, exageros e deformações exigi­
ram que se recorresse à escrita. Através do texto definitivo dos qua­
tro pequenos li vros , adivinha-se ainda o traço dêsses memoriais de
que os "porta-evangelhos" a princípio se serviram.
16 QUE É A BÍBLIA?

0 TRIUNFO DA ESCRITURA

Esta passagem da transmissão pela palavra para a escrita, suscita


inúmeros problemas. O primeiro dêles é saber-lhe a data: em que
momento tomou o texto a forma escrita?
No que se refere à tradição judaica a resposta não pode ser dada
senão com prudência. Sem dúvida, houve três épocas de intensa ati­
vidade literária. No tempo de Ezequias, foram colecionados e redi­
gidos os documentos orais ou escritos do Reino do Sul, confrontan­
do-os com os do Reino do Norte, que letrados de Samaria, refugia­
dos em Jerusalém, depois de 722, haviam trazido (cf. Prov. XXV, 1).
Na época de Josias realizou-se a famosa "descoberta" do "Deutero­
nômio", e talvez tenha sido escrita uma primeira versão conjunta do
"Pentateuco". O trabalho completo parece situar-se após o E xílio,
quando Ciro, em 538 antes de nossa era, autorizou "o resto de Israel",
os exilados de Babilônia, a regressar à pátria, aí refazendo uma es­
pécie de pequeno Estado sob o protetorado persa.
Assim como, pelo ano de 445, Nehemias reconstruiu os muros de
Jerusalém, assim também outro grande homem soergueu a cidade espi­
ritual, a Bíblia. Esdras, sábio escriba, jurista e teólogo, passava por
ter ditado, milagrosamente, noventa e quatro livros santos, e obrigado
todo o seu povo a seguir-lhes os preceitos. Seria, portanto, a partir
do século V.9 que teriam sido coligadas as antigas versões fragmen­
tárias, redigidas as partes ainda oralmente transmitidas e editado o
conjunto. Um século antes, em Atenas, Pisistrato havia ligado sua
glória a operação idêntica sôbre os textos de Homero. A esta Bíblia
primitiva vieram juntar-se, com o tempo, pequeno número de textos

r ativos �os séculos que se lhe seguiram, exprimindo novas aquisi·
. .
çoes esptntuaJS.
Melhor conhecidos são os fatos que se referem à segunda parte
da Bíblia, a das tradições cristãs.Já assinalamos que os "Atos dos
Apóstolos", as "Epístolas" e o "Apocalipse" apresentam-se formal­
mente como textos escritos ou ditados. Não se apresenta portanto,
)
para estes o problema. Para os quatro evangelhos, a passagem do oral
A

.
� o escnto efetuou-se em datas diversas, por razões e condições
d1f�rentes. sem entrar nos pormenores de sábias discussõs, pode-se
.
�rm r�� a redação dos Evangelhos. Disse Papias que ·"Mateus
fot o prrmeuo a por ..
em ordem os ditos do Senhor, em língua he­
braica". O primeiro dos "evangelistas" teria sido, portanto, o antigo
DE NOSSAS "BÍBLIAS" À PALAVRA 17

publicano de Cafarnaum, com um texto redigido, provàvelmente, na


língua semítica usual, isto é, o aramaico, e, sem dúvida, entre 50
e 5 5. Pouco depois, São Pedro, que se achava em Roma, foi visi­
tado por um jovem judeu helenista, Marcos. Escutando as palavras
do príncipe dos apóstolos, êste diligente rapaz anotou o que ouvia,
confrontou suas notas com os livretos que, então, circulavam, e de
tudo isto formulou, entre 55 e 62, o seu evangelho, o qual, em grego
popular, dirigia-se evidentemente ao pequeno grupo cristão de Roma
que o cercava. Quase ao mesmo tempo um médico erudito, Lucas,
que havia sido companheiro de São Paulo em suas viagens, chegou
a Roma. Recolhera êle do apóstolo dos gentios outras informações
e, durante s..ra permanência em Jerusalém, documentara-se em primeira
mão, (talvez junto da própria Virgem Maria).
Dirigindo-se aos elementos mais cultos que constituíam o círculo
de Paulo, escreveu por sua vez, em excelente grego, o seu evange·
lho ( 63) . Foi o sucesso dêsses dois novos ou o seu próprio texto
aramaico que decidiram Mateus a traduzir o seu texto, completando-o?
Em todo o caso, foi isto feito pouco depois, entre 64 e 68.
Quanto ao quarto evangelho, o de São João, foi o mesmo redigido
em :Sfeso, pelo apóstolo preferido, no fim de sua longa existência,
muito tempo depois dos três primeiros. :e obra, ao mesmo tempo, de
recordações, de documentação e meditação espiritual, à qual se atribui
ordinàriamente a data dos últimos anos do século, entre 96 e 98.
:Sste breve resumo acaba de nos indicar quais as línguas em que
foi escrita a Bíblia. Foram três: O hebraico, língua original e santa
do povo de Deus, foi utilizado na maioria das partes que decorrem da
tradição judaica. Deveria permanecer até nós a língua litúrgica de
Israel, e as descobertas do Mar Morto provaram que os Essenianos dela
ainda se serviam nas proximidades de nossa era. O aramaico, idioma
semítico aparentado, não cessou de ganhar terreno em detrimento do
hebraico no uso oral, a ponto de ter sido talvez êste fato que impôs
a Esdras a fixação do texto. No momento da morte de Cristo todos
o empregavam, mas há na Bíblia poucos textos escritos em aramaico:
o evangelho primitivo, segundo São Mateus, como acabamos de ver;
certas partes de "Esdras", de "Daniel" e de "Jeremias". Quanto ao
grego, pouco usado antes de Cristo, - há apenas o segundo "Livro
dos Macabeus" e o da "Sabedoria", que tenham sido redigidos nesta
língua, - era êle, no momento em que se iniciava a nossa era, de
uso tão corrente que, pràticamente, todos os textos sagrados dos cris·
18 QUE É A BÍBLIA ?

tãos foram redigidos na língua helênica - a qual, tornada popular,


não era entretanto sempre a de Homero e de Platão.
Restam duas questões práticas: sôbre 9ue suporte material � em
.

que escrita foi fixado o texto bíbl co ? Dots el�mentos fora� utdJza­
.
dos: um mais modesto era constltUJdo pelas fJbras do paptro e d o
caniço d o Egito, esmagados e ligados por u m endumento, e que foi a
origem de nosso papel; outro, muito mais caro, era o pergaminho,
isto é, a pele cortida e polida com esmero. Primitivamente gruda­
vam-se as fôlhas de papiro ou de pergaminho, de ponta a ponta, em
rôlos. A liturgia judaica conservou-se fiel a êste uso . O hábito de
unir as fôlhas por grupo de quatro páginas - "quaternion", palavra
que deu origem a "caderno" - que em seguida eram reunidas em
volume, data do li.� século antes de nossa era, e foi disseminado pe­
los cristãos.
Quanto aos escritos, variaram enormemente no decurso dos séculos.
O hebraico primitivo não conhecia a forma quadrada e maciça que se
encontra em suas letras atuais. Esta grafia não se fixou senão nos
séculos que precederam, imediatamente, a Cristo. A forma arcaica
aproximava-se do alfabeto fenício. Nem uma nem outra contava êstes
sinais e pontos que, no hebraico atual, indicam as vogais .
O grego era, pouco mais ou menos, o que nós conhecemos, com
a ressalva de que os antigos copistas ignoravam separações entre
as palavras e a pontuação, o que torna a leitura muitas vêzes difícil.
:e natural que, em uma e outra língua, os tipos de escrita variassem,
uns caligrafados muito cuidadosamente, como os das "casas editoras" ,
outros, cursivos, rápidos, onde as palavras são ligadas umas às outras.
:este tipo de escrita contribui a tornar escabroso o problema da trans­
missão dos textos no decorrer dos séculos antes da invenção da im­
prensa, isto é, o famoso problema dos manuscritos.

Os MANUSCRITOS DA BÍB LIA

.:e apenas necessário dizer que não possuímos texto algum autó­
grafo dos textos bíblicos, assim como também que não o temos de
Homero ou de Pindaro. :e, portanto, pelas cópias que os conhecemos.
Existem milhares de manuscritos da Bíblia, estando todos longe de
serem compilados. Em 1780, um sábio hebraizante, chamado Ken­
nicot, tendo-se vangloriado de haver cotejado diretamente 261 manus­
critos da Bíblia judaica e de ter examinado outros 349, um d os seus
DE NOSSAS "BÍBLIAS" À PALAVRA
------
19

êmulos, o italiano Rossi, retrucou, declarando que possuía, somente


em sua biblioteca, 310 cópias desconhecidas pelo inglês. �stes tão nu·
merosos manuscritos, que valor terão? Seu interêsse é, evidentemente,
de muito desigual valor, segundo a data e também aos cuidados em·
pregados em prová-los.
Quando se fala ·de um texto antigo, não se deve jamais perder
de vista o fato elementar de que, até a invenção da imprensa, fazia-se
a transmissão dos escritos por sucessivas cópias.
No decurso de cada uma das cópias, corria o texto múltiplos pe­
rigos: podiam ser negligentes os escribas, ou ignorantes, ou ainda,
tão desejosos de bem agir que "aperfeiçoavam" a seu talente o ori­
ginal. Quanto aos "revisores" que, periodicamente intervinham para
reconduzir o texto a sua pureza primitiva, acontecia-lhes que a ousa·
dia ou incompreensão provocava outros enganos.
Por conseguinte, as probabilidades que temos de pôr em sua exa­
tidão um texto antigo, diminuem com o tempo decorrido. Ignora-se,
geralmente, que, no tocante aos grandes clássicos, a distância entre a
redação e o primeiro manuscrito conhecido é quase sempre imensa:
mil e quatrocentos anos para as tragédias de Sofocles, assim como para
Esquilo, Aristofanes e Tucidido; mil e seiscentos para Eurípedes e
Catulo; mil e trezentos para Platão, e mil e duzentos para Demós­
tenes. Qual é essa distância em relação à Bíblia?
Com relação à parte hebraica, a resposta, até êstes últimos ao�
era bastante pessimista. Não se conhecia manuscrito algum anterior
ao século IV.'l. O mais antigo parecia ser o da Sinagoga de Kara­
soubazar, perto de Sioferopol, na Criméia, que foi datado de 830
depois de Cristo. A Bíblia de Petrogrado, "Codex Petropolitani",
descoberta também em Criméia, é datada do "ano de 1228 da era dos
Seleucidas", isto é, que, tendo o grande Antiocus, na Síria, reinado
de 223 a 187 antes de nossa era, êste manuscrito seria das proocimi­
dades de 900. As diferenças entre as cópias da Bíblia hebraica são
ainda mínimas, porquanto, desde antes da Alta Idade Média, os rabi­
nos dedicaram-se, cuidadosamente, a fixar o texto santo, assim como
sua pronuncia por meio dos pontos-vogais. O resultado dêsse trabalho
denomina-se "Massore". E como tivessem feito desaparecer, quanto
possível, os manuscritos anteriores a essa revisão massocrética, nenhum
mais resta, salvo insignificantes fragmentos.
Foi tal situação modificada pelo fato das recentes e célebres des·
cob ertas, feitas nas cercanias do Mar Morto. Sabe-se que em 1947,
20 QUB É A BÍBLIA ?

em uma gruta, foram encontrados, ocultos em j arros, diversos rôlos


contendo inúmeros textos bíblicos.
Buscas, em seguida procedidas em cavernas vizinhas, apresentaram
ainda outros . Admite-se tratar-se da biblioteca de um mosteiro he­
braico da vizinhança, pertencente à seita austera dos Essenianos, que
lá foi ocultada por ocasião dos terríveis acontecimentos da guerra
Judaica, no ano 68 de nossa era.
� natural que os textos sejam anteriores a esta data, e alguns
parecem muito mais antigos, datando mesmo, talvez, do IIJ.ç século,
ou até do IV.<? século. Para as partes da Bíblia que figuram nos
"manuscritos do Mar Morto" - Isaías, integralmente, e em dois exem­
plares, e, em parte, o "Gênesis", o "Deuteronômio" e, principalmente,
o ".nxodo" - temos, portanto, doravante, cópias muito próximas do
original. O confronto com os manuscritos já conhecidos permitirá mo­
dificações importantes no texto recebido? Tal não parece, de acôrdo
com os primeiros estudos. Com relação a Isaías, o texto apresenta-se,
com pouquíssima diferença, idêntico ao n osso (I).
No que toca aos textos cristãos da Bíblia, o problema é muito
mais complexo. Estamos em face de inúmeras cópias de tôdas as épo­
cas, e muitas vêzes bastante variáveis. Dividem-se em três categorias :
as "minúsculas", as "maiúsculas" e os "papiros". As minúsculas são
tôdas posteriores ao século IX,Q, Nessa época, o texto havia sido uni­
formizado e, sob reserva de algumas graduações, reproduz o "texto
recebido". Os mais célebres manuscritos são os que, entre o IV,Q e
IX.ç sécu los foram recopiados nessa nobre caligrafia, denominada
"oncial".
Dois, pelo menos, datam do IV.q século: "Vaticanus" (ao Vati­
cano) e o "Sinaiticus" que, encontrados no Convento do Sinai, entre
velhos pergaminhos desprezados, e levados à Rússia, foram vendidos
pelos soviéticos ao Museu Britânico. O Codex Bezae que, tomado em
Lião pelos protestantes, se acha n a Universidade d e Cambridge, à qual
Teodoro de Beze, famoso discípulo de Calvino, o entregou em 1 581,
data do V,Q século. Vê-se, portanto, que entre as cópias dos livros
cristãos e o original, não há mais de três a quatro séculos. � uma
situação que, na Antigüidade, sõmente Terêncio e Virgílio tiveram a
felicidade de possuir.

(1) Ver "Les Manusc.rits hébreux du Désen de Judá", por A. Vincent


(Paris, 1954).
DE NOSSAS "BÍBLIAS" À PALAVRA 21

Há, porém, fato ainda melhor. As salas do Egito forneceram pa­


piros que muitas vêzes serviram a envolver múmias e que são porta­
dores de escrituras. Entre êstes inestimáveis documentos figuram di­
versos trechos dos evangelhos e das epístolas. Os mais notáveis são
os papiros Egerton, os papiros Chester Beatty, e os adquiridos pela
Universidade de Michigan. A parte mais importante restitui-nos as
cartas de São Paulo em sua quase totalidade. O mais precioso de
todos é o papiro Rylands que se vê em Manchester, e que contém uma
passagem do cap. XVIII do evangelho segundo São João, datando de
cêrca de 130 de nossa era, isto é, mais ou menos contemporâneo do
original. � êste um caso único em tôda a história dos textos da
Antigüidade, e que prova quanto foi rápida a expansão do Evangelho .
.E confrontando todos êsses manuscritos, uns com os outros, que
se pode chegar a estabelecer um texto que tenha probabilidade de
total autenticidade. Preciso é acrescentar que outro meio de verifica­
ção indireta nos é oferecido: o que nos proporcionam as versões.

A BíBLIA NAS ANTIGAS TRADUÇÕES

Hoje em dia, é em traduções que lemos a Bíblia. Sômente os


exegetas profissionais se referem ao texto original, o hebraico da grande
edição de Rudolf Kettel na Bibelanstall de Stuttgart, e mesmo às edi­
ções gregas dos textos cristãos, por Nestle ou pelo R. P. Merck e
o Instituto Pontifício Bíblico. Desde época muito antiga, foi a Bíblia
traduzida, e o interêsse dessas v elhas traduções é considerável, por
permitirem reconstituir os textos de que se serviram os tradutores e
que são muitas vêzes anteriores aos que nos guardaram os manuscritos.
A primeira em data dessas traduções, e uma das mais célebres, é
a dos "Setenta" que, conforme vimos, foi feita no Egito, - nos III.<;>
e Il.'9 séculos antes de nossa era, - a pedido de um faraó esclarecido,
diz a lenda, e na realidade porque os judeus de Alexandria, conhe­
cendo mal o hebraico, tinham necessidade de uma tradução. Esta ver·
são grega obteve sucesso imenso. Foi usada pelas primeiras comuni·
dades cristãs, e por ela, - à exceção de uma ou duas, - foram feitas
tôdas as outras traduções em outras línguas. Certos Padres da Igreja,
notadamente Santo Agostinho, julgaram que fôra ela "inspirada". A
ciência moderna, contudo, criticou essa obra ilustre e, ainda que lhe
manifestando extremo interêsse, demonstrou que, entre os tradutores,
haviam alguns cometido erros ou parafraseado o texto. Seja, porém�
22 QUE É A BÍBLIA?

como fôr, a celebridade dessa tradução eliminou tôdas as demais ver­


sões gregas, notadamente as de Teodócio e de Aquila, as quais, en­
tretanto, eram reputadas por Orígenes.
Os textos evangélicos, mal eram publicados, davam origem a ver­
sões, principalmente nas duas línguas mais empreg�das pelas co�lU­
nidades cristãs primitivas, - com o grego, - o strtaco. e o lattm.
As versões latinas têm, evidentemente, capital importância. Em pri­
meiro lugar por figurarem em manuscritos muito antigos e numero­
sos, e também por ser em latim que a Sagrada Escritura passou à
seiva e à medula de nossa civilização ocidental.
Entre tôdas, uma tornou-se célebre, e um nome glorioso a ela
ligou-se: "A Vulgata de São Jerônimo". Antes, porém, que o grande
sábio se pusesse ao trabalho, numerosas versões latinas haviam sido
feitas, notadamente dos evangelhos, muitas vêzes bem diferentes umas
das outras, apoiando-se sem dúvida, sôbre textos primitivos. Delas,
apenas resta uma quinzena de manuscritos, dos quais os dois mais cé­
lebres encontram-se na Itália, em Verceil, - pertenceu a Eusébio que
foi bispo dessa cidade, tendo morrido em 371, - e, em Trento, o
"Palatinus", igualmente do IV.<� século. O triunfo da Vulgata eclip­
sou as antigas traduções.
São Jerônimo viveu de 347 a 420, primeiramente em Roma e, em
seguida, em uma ermida solitária em Belém. A conselho de seu amigo
o Papa Dâmaso, resolveu dotar a Igreja com uma tradução perfeita
quanto possível dos Livros Sagrados. Limitando-se, para os textos
cristãos, a fazer uma revisão minuciosa, empreendeu, para tôda a Bíblia
hebraica, a obra monumental de uma tradução viva, ardente e, muitas
vêzes, pitoresca, feita diretamente dos originais. � esta Vulgata de
São Jerônimo que, até os dias de hoje, marcou profundamente a lei­
tura da Bíblia entre os cristãos.
Eliminou até, no uso corrente, trabalhos que, entretanto, eram
de valor, tal a revisão feita por Santo Agostinho.Transcrita de ge­
ração em geração, sofreu a Vulgata, até a invenção da imprensa, a
sorte comum dos textos reproduzidos. Em seguida ao Concílio de
Trento foi lançada uma edição especial, por ordem do Papa Cle­
mente :VIII." (1592-1605). :e para uma revisão mais científica que
se dedicam, doravante, os Beneditinos romanos da Abadia de São
Jerônimo.
As recentes traduções da Bt'blia para as línguas modernas têm,
quase sempre, em consideração, ao mesmo tempo, a Vulgata, os Se-
DE NOSSAS "BÍBLIAS" À PALAVRA 23

tenta e os originais hebraicos. Imenso trabalho vem se desenvolven­


do, sobretudo nestes cinqüenta anos, para um exame profundo dos
textos. Possuímos, certamente, uma Bíblia mais "verdadeira" que os
antigos cristãos.

A CRÍTICA TEXTUAL

Ressalta êste trabalho de uma ciência: a crítica textual. Ciência


minuciosa, disciplina árdua. Através da multiplicidade das variantes
e das lições algo divergentes, como fixar a verdade? Ter-se-á uma
idéia da complexidade do problema, sabendo que, apenas para os qua­
tro evangelhos, oscilam as variantes entre cem e cento e cinqüenta mil!
A maior parte, evidentemente, não se refere senão a causas de pe­
quena monta: por vêzes uma palavra, uma sílaba ou até uma letra.
Isto, porém, não torna o confronto mais fácil.
A crítica textual recorreu a métodos que, usados simultâneamente,
devem chegar a fixar os critérios de autenticidade dos textos. A "crí­
tica externa" estuda os manuscritos e os confronta. Entre duas va­
riantes, qual a boa? A proveniente de cem manuscritos que, talvez,
sejam todos reproduções de um só, e que poderia conter uma falta,
ou a que propõe um só manuscrito que parece mais garantido? Será
preciso, portanto, para cada texto, procurar reconstituir o histórico
de sua transmissão.
Será, porém, sempre possível? Bem pouco. Far-se-á, então, in­
t ervir a "crítica interna", que afastará os erros evidentes, lançando mão,
principalmente, do contexto que tratará de discernir se tal lição não
rompe a seqüência do desenvolvimento, se não foi influenciada por
outro texto (é bastante freqüente no que diz respeito aos evangelhos),
se não está em contradição com o gênio e os hábitos de pensar e es­
crever do autor.
Ciência, como se pode imaginar, infinitamente delicada e, muitas
vêzes, conjetura! aos respetivos resultados. :e, contudo, graças a seus
pacientes esforços que se pode esperar um texto tão fiel quanto possí·
vel. :e necessário, porém, estabelecer que, no conjunto, estas variantes
não atingem senão pontos mínimos, como pequeninos pormenores, e
que raro é que as discussões decorrentes possam pôr em jôgo uma ver­
dade de importância. Tal como hoje o possuímos, o texto da Sagrada
Escritura é, no conjunto, bastante sólido e garantido para servir de
base à fé.
C A P I T U L O 111

O "CÃNON" DOS DOIS TESTAMENTOS

LIVRO COMPLEXO E DE APARÊNCIA DESCONEXA

Abramos, portanto, a Bíblia; sigamos-lhe os capítulos. .n preciso


confessar que a primeira impressão que deverá sentir o leitor será a
de um grande espanto. Em uma página célebre do "Gênio do Cris­
tianismo", Chateaubriand assim o confessa. Que significa êsse con­
junto de livros desconexos, uns dos outros diferentes, quanto ao gê­
nero, ao tom, às mais evidentes intenções? .n como se tivéssemos pôsto,
ponta a ponta, a "Canção de Rolando", um código de direito canônico,
as "Crônicas de Joinville", "Cirano de Bergerac", bons trechos da "His­
tória da França" de Michelet, dois ou três "Contos Filosóficos" de Vol­
taire e compilações poéticas. Ensaie-se estabelecer uma unidade menos
formal, descobrir estilo comum a todos os textos, ou comum a todos
os autores ? Vã tentativa ! Fulguram uns em cintilações de gênio;
outros são de tal insipidez e despertam um tédio que se não poderia
negar. E, êsse pasmo que causa o simples exame das aparências da
Bíblia é ainda bem pouco, - nós o veremos, - ao lado do que se
encontra ao se lhe considerar o conteúdo e ao pretender tomar ao
pé da letra quanto nêle se contém.
.n preciso ir além dessa decepção, recorrer às introduções e comen·
tários, - e tantos hoje existem -, que permitem não se perder no
labirinto. Necessário se torna, sobretudo, esforçar-se por apreender a
idéia grandiosa que une todos êsses livros desconexos. Considerar a
Bíblia como um amontoado de textos heteróclitos que vão das receitas
de cozinha às mais elevadas especulações místicas, é condenar-se a nada
compreender.
26 QUE É A BÍBLIA ?

Tudo se aclara, ao contrário, e tudo se harmoniza e coordena


?
<juando se sabe e se crê que, tomado em conjunto, é uma hist ria, a
história de um povo que �ão �r� semel.ha�t� aos outros, mas cuJo des­
.

tino obedecia a uma mtençao dtvma. Ltterartamente falando, e, absurdo


falar sôbre o "plano da Bíblia". Tudo, p�r�m, -mesmo os escritos
mais inesperados, - ordena-se ao plano dtvmo.

LER UMA REFERÊNCIA BÍBLICA

Qu an do um texto bíblico é citado, ?rdinàriame?te é seguido de


uma referência de algumas letras e algansmos e, mats comumente, de
uma palavra abreviada, um algarismo romano ou á rabe ( por vêzes dois
algarismos árabes o que torna menos claro ) . Ler-se-á assim, por exem­
plo : Jer. VII. 15 (Jer. VII. 15), Mt IX. 7 ( Mt. IX. 7 ) , o que se
.

traduz : livro do profeta Jeremias, capítulo sétimo, décimo quin to ver­


sículo, ou Evangelho segundo São Mateus, capítulo nono, versículo
sétimo. Estas simpl es indicaçõ es revelam, desde logo, um fato : a
divisão da Bíblia em livros, capítulos e versículos.
Divisão cômoda, certamente, pois que a tríplice indicação permite
localizar desde logo qualquer passagem. Não é certo, porém, que êste
corte, do qual o artificial salta aos olhos desde que se empreenda
a sua leitura consecutiva, não quebre bem desagradàvelmente a "se­
<JÜência do pensamento", e mesmo não perturbe, por vêzes, a própria
compreensão dos fatos.
A divisão em Livros designados por título ( "Livro dos Reis",
"Bxodo", "Epístolas aos Romanos", ou "Apocalipse", seja pelo nome
do aut?r ("Jeremias", "Isaías", "Mateus", "Marcos" ) , seja ainda pelo
do seu principal ator ( "Tobias", "Jó", "Rute" ) , está ligada às pró­
prias condições em que a Bíblia foi formada, isto é, ao problema da
escolha que iremos abordar. As demais divisões são de menos im­
portância e, além do mais, sua origem é muito mais recente.
Os capítul� de extensão aproximadamente igual, não datam se­
não do comêço do século XIII. O mérito dêste secionamento cabe a
Estêvã� Langton, o qual foi, primeiramente, professor na Universidade
. .
de P� e depolS arcebispo de Canterbury e Cardeal. Foi grande o
sucesso� e os copistas parisienses puseram em moda tal maneira de agir.
A partlr de 1226, espalhou-se por tôda a parte. Os próprios judeus
o adotaram, com reserva de algumas mínimas diferenças. A divisão
atual mantém-se de conformidade com a do erudito cardeal inglês.
O "cÂNON" DOS DOIS TESTAMENTOS 27

Quanto à divisão em versículos é esta recente, tendo exatamente


quatrocentos anos. O célebre editor parisiense Robert Estienne, ao
p ublicar a Bíblia em 1 5 5 1 , nela introduziu os famosos pequenos alga­
rismos que estacam, ou melhor, cortam e deslocam os períodos. O
método que presidiu a êsses cortes escapa a qualquer análise racional.
Tal membro de frase é cindido em duas partes e, por vêzes, ao con­
trário, duas p roposições, despidas de qualquer relação, são associadas,
parecendo que, freqüentemente, simples razões tipográficas tenham
atuado.
O uso, porém, de tal modo consagrou o processo que é, pràtica­
mente, impossível abandoná-lo.

Os DOIS "TESTAM E NTos"

A primeira e a mais importante das divisões da Bíblia é a que


lhe reparte os livros em duas seções de desiguais dimensões, chama­
das "Antigo e Novo Testamento".
À primeira vista, a p alavra "testamento" presta-se a equívoco. Tem
ela em francês sentido muito definido, que se não vê como aplicar aos
textos bíblicos. Entretanto, se fôr bem compreendido, coloca imedia­
tamente o leitor em face do mistério que se acha no próprio âmago
da Sagrada Escritura, o do acôrdo integral entre Deus e o homem,
por intermédio de um povo, isto é, em face do plano divino.
Testamento, com efeito, nada mais significa que "aliança", a pa­
lavra hebraica ·"berith" aplicando-se a esta Aliança que, desde o cha­
mado ouvido por Abraão, existia entre o Todo-Poderoso e o Povo
que havia lHe encarregado de ser seu testemunho e porta-voz.
"Berith" foi traduzido em grego, nos Setenta, pela palavra "dia­
theke", que insiste sôbre a idéia de tratado, de d ocum ento que con­
sagra a aliança ( o têrmo " suntheke" teria sido preferível, tendo sido,
aliás, empregado por outros tradutores menos ilustres) . Em latim,
"diatheke" foi traduzido por " testamentum", têrmo que significava
"documento escrito de caráter oficial", isto é, tanto tratado d e aliança
como testamento.
No presente sentido, caracteriza, primeiramente, as relações par­
ticulares de Deus com o seu povo; pode designar, porém, a união
que o próprio Deus, tendo tomado a forma humana, selou com o
homem pela oblação de Cristo. Há, portanto, uma "antiga aliança..
e uma "nova aliança" e o Evangelho o repete muitas vêzes. Assim,
o segundo sentido não se acha também incluido ?
28 QUE É A BÍBLIA ?

Como diz a ''Epístola aos Hebreus" (IX. 15-22) é pela morte


do testador que os herdeiros entram na posse de seus bens. � pela
morte de Cristo que os filhos de Deus têm acesso à herança eterna.
Na acepção mais trágica do têrmo, testamento exprime os direitos do
homem à filiação divina, para êle adquiridos pelo sacrifício do Cal­
vário. A nova aliança foi selada com o sangue.

0 "CJ.NON", REGRA DE FÉ

Em cada uma das duas grandes partes da Bíblia figura · certo nú­
mero de textos ou Livros. Por que assim foi feito ? Porque a Igreja
afirma que exprimem, autêntica e regularmente, sob as duas formas,
a Aliança de Deus com o homem. :B esta idéia que traduz ( e não,
como muitas vêzes se pensa, a de "lista", simplesmente, ou "catálo-
go " ) o termo usua1 de "CAanon.. .
A
·

:B grega esta palavra, mas, provàvelmente, tomada de empréstimo


a algum idioma semítico. Em hebraico "qaneh" significa a cana para
medir, aquela de que fala Ezequiel (XL. 3-5 ) . Foi empregada pelos
gramáticos alexandrinos na coleção das obras clássicas, dignas de ser­
vir de modêlo; por Cícero, no mesmo sentido; por Plínio, a propósito
do escultor Polideto, a fim de designar os bons métodos a seguir na
estatuária; por Epíteto, para caracterizar as regras morais de vida reta.
Os Padres da Igreja, em grande número, de São Clemente de Roma a
Santo Hipólito, utilizaram a palavra para designar tudo quanto serve
de fundamento à religião, regra da tradição, da fé e da verdade. Muito
naturalmente, estendeu-se o sentido ao do " escrito regulador". Um
texto foi denominado "canônico" quando fixava a regra de ser pre­
ciso crer e fazer. Dai, ainda por extensão, o sentido de "coleção de
escritos i)Ue fixam a regra". Quando, desde 350, Santo Atanásio dizia
do "Pastor" de Hermes : "Isto não é do Cânon", era neste sentido que
êle entendia o têrmo. A partir dessa época, tomou-se corrente, e São
Jerônimo, Santo Agostinho e São Gregório de Nazianzo o utilizaram.
. .
�oi nêste sentido que, no decurso dos séculos, muitos documentos
of1oa1S da Igreja o tomaram, e, entre os mais importantes, as deci­
sões do Concilio de Trento, em 1 546, e as do Concílio do Vaticano
em 1870. O "C�non" das E�.rituras compreende, portanto, todos os
.
livros que a IgreJa proclama reguladores da fé", ao mesmo tempo,
"inspirados", o que depende, como o veremos, de outro critério. Sua
relação é doravante imutável. Como, porém, foi fixada ?
O "CÂNON" DOS DOIS TESTAMENTOS 29

o CÂNON DO ANTIGO TESTAMENTO

A relação dos livros "canônicos" é, portanto, a que o Concílio de


Trento estabeleceu em sua quarta sessão. Compreende quarenta e cinco
livros : "Gênesis", "�xodo", "Levítico", "Números", "Deuteronômio"
( êstes cinco primeiros conjuntos, designados pelo têrmo de Pentateuco) ,
"Josué", "Juízes", "Rute", dois d e "Samuel", dois dos "Reis", dois
das "Crônicas", "Esdras", "Neemias", "Tobias", "Judite", "Ester",
dois dos "Macabeus", "Jó", "Salmos", "Provérbios", "Eclesiástico",
"Isaías", "Jeremias" (nêste compreendidas as ·"Lamentações" ) , "Ba­
ruque", "Ezequiel", "Daniel", "Oséias", "Joel", "Amós", ·"Abdias",
"Jonas", "Miquéias", "Na um", "Habacuque", "Sofonias", "Ageu",
"Zacarias" e "Malaquias".
Os judeus ( seguidos pelos protestantes) , apenas reconhecem trinta
e oito. Desde o tempo de Cristo, não estavam êles de acôrdo sôbre
a canonicidade de todos os livros sagrados : de uns, - os mais nume­
rosos, e também os mais rigorosos - aceitando apenas os textos es­
critos em hebraico, em outros, querendo incluir sete obras, geralmente
conservadas em grego : "Tobias, "Judite", "A Sabedoria", "O Ecle­
siástico", "Baruque", e Os dois livros dos "Macabeus", sem falar de
algumas partes do livro de "Ester" que apenas se possui em língua
helênica. Os católicos, há muito tempo, desde o século XIII, em
todo caso, dividem o ·Antigo Testamento em quatro grandes partes :
o Pentateuco (que os judeus denominam a Lei, a Torah) , os Livros
Históricos ( de Josué a Macabeus) , os Livros Poéticos e Sapienciais
(de Jó ao Eclesiástico) e os Livros Proféticos de Isaías a Malaquias) .
Como foi constituído êste Cânon do Antigo Testamento ? Isto é,
como os chefes religiosos de Israel, príncipes dos Sacerdotes e douto·
res da lei determinaram o que era "canônico" ? � certo o fato, ates ­
tado notadamente pelo historiador judeu Flávius Josephe, na época de
Cristo, - sob a reserva das divergências que acabamos de ver entre
judeus rigorosos e judeus helenistas mais tolerantes, - de existir uma
relação devidamente estabelecida das Sagradas Escrituras, um "cânon",
contendo os trinta e oito livros, número que artificialmente ligava-se,
por vêzes, ao de vinte e dois, que era o das letras do alfabeto he­
braico. Quanto, porém, a saber segundo que critério, por que méto­
dos e a que datas os rabinos haviam feito tal escolha, são questões
sem respostas exatas. Afigura-se que o rei Josías (639-609), sob cujo
reinado o grande sacerdote Helcias "encontrou na casa de Javé o Livro
30 QUE É A BÍBLIA ?

da Lei", tenha, em primeiro lugar, estabelecido um � ânon, aind � que


muito reduzido e rudimentar. Em todo caso, a parttr do V.<:> secu1o,
uma lista existe dos livros sagrados que eram lidos nas sinagogas.
Esdras, em cêrca de 444, o havia fixado. O grupo dos Profetas pa­
rece ter sido delimitado posteriormente; talvez pelo III::• século. O
Livro dos Salmos, cujo prestígio era grande, em virtude de ser atri­
buído ao rei-poeta Davi, e do uso litúrgico imemorial que dêle era feito,
devia estar no cânon, de longa data e como por direito naturaL As
demais obras, denominadas "hagiógrafas", foram agrupadas pelos cui­
dados dos escribas e doutores, durante os III.<� e 11.<� séculos, e a lista
deve ter sido suspensa em seguida à célebre perseguição de Antiochus
Epiphanio ( 1 75-163) quando Judas Macabeu mandou que fôssem pro­
curados os rôlos sagrados, salvos da destruição, a fim de reuni-los. Não
parece, portanto, que tenha havido julgamento oficial comparável a
uma decisão conciliar, a fim de declarar canônico o conjunto do An­
tigo Testamento.
Como passou êste Cânon para o uso cristão ? Não foi sem dis·
cussões e hesitações numerosas. O princípio deve ter sido o de ado­
tar como canônicos os livros que haviam sido citados por Jesus e os
Apóstolos. Isto, porém, não foi suficiente. Pode-se dizer que os
Padres da Igreja oriental foram mais favoráveis à lista limitativa he­
braica. Os Padres ocidentais admitem os "deutero•canônicos" que os
judeus haviam finalmente apartado. No IV.11 século, a situação era
ainda flutuante. Santo Hilário recusava aos sete livros discutidos o
título de canônicos, mas os considerava, entretanto, como fazendo p arte
da Escritura Sagrada.
Foram, segundo parece, São Jerônimo e Santo Agostinho que,
filiando-se ao cânon mais amplo, fizeram-nos triunfar na Igreja.
Os concílios de Hippone (393) e de Cartago ( 397) , e uma carta
de Inocêncio J.q, em 405, provam que naquele momento o cânon es·
tava fixado tal como o possuímos.

0 CÂNON DO Novo TESTAMENTO

Para o Novo Testamento, estão os protestantes, pràticamente, d e


acôrdo com os católicos, sob a mínima reserva de não serem tão cate­
góricos em suas atribuições. A "Epístola aos Hebreus , por exemplo,
"

que os católicos assinalam sob o nome de Paulo, conserva-se para êles


O "cÂNON" DOS DOIS TESTAMENTOS 31

de atribuição problemática. �. porém, o �esmo o número de livros,


tanto para uns como para os outros : vmte e sete.
Foram êles divididos em três seções : livros históricos (Evangelhos
segundo "São Mateus", "São Marcos", "São Lucas", "São João" e os
"Atos dos Apóstolos" ) ; Livros Didáticos ( as quatorze epístolas de
São Paulo, e sete outras epístolas, cujas assinaturas são de São Pedro,
São João, São Tíago e São Judas ) ; finalmente, um Livro Profético,
o Apocalípse.
Não se deve, de modo algum, acreditar que êste novo Cânon
fixou-se ràpidamente, por uma decisão ex-cátedra. Trata-se bem mais
do comum assentimento, no fervor inspirado dessas igrejas primitivas
que, próximas da Revelação, mantinham ainda a chama do Espírito
Santo. Nasceu essa decisão da própria vida, dentro de um natural
plano de serenidade. Houve, certamente, indecisões, reflexões e, tal­
vez mesmo, discussões. Conta Eusébio que Serapião, bispo de Antio­
quia, tendo-se-lhe apresentado certo "Evangelho segundo Pedro", au­
torizou, a princípio, a leitura, mas, em seguida, tendo-o examinado
mais atentamente e encontrado traços da heresia docete o interditou.
O "Pastor" de Hermas, livro tão atraente do comêço do segundo sé­
culo, que passou durante algum tempo por inspirado, foi afastado
do Cânon pelos ocidentais, mas continuou sendo acolhido na Igreja
do Egito.
O que é certo é que a Igreja mostrou-se extremamente rigorosa
nos métodos que presidiram a escolha. Narra Tertuliano, cêrca do
ano 200, que, uns trinta anos antes, aparecera na Província da Ásia,
um livro dos "Atos de Paulo", em que se via o Apóstolo converter
uma jovem pagã, Thekla, tendo esta, em seguida, começado a pregar,
por conta própria e de modo admirável, o Evangelho. Paret:endo
suspeita esta narração, foi procurado o seu autor, sacerdote mais cheio
de boas intenções que de prudência e que, sem tardar, foi castigado.
B suficiente, ainda, ler os textos chamados "apócrifos", confrontan­
do-os com os textos canônicos, para concluir de que lado se acham
a prudência, a medida e a sabedoria, e com que tato a Sagrada Escri­
tura fixa e limita os direitos do sobrenatural e do maravilhoso.
Os dois critérios que preponderaram no julgamento foram essen·
cialmente a catolicidade e a apostolicidade. Um texto era admitido
no Cânon quando, no conjunto das comunidades, era reconhecido como
fiel à verdadeira tradição, à verdadeira mensagem.
À medida que a liturgia se estabilizava, o hábito de ler, no. de­
curso da Missa, páginas das epístolas e dos evangelhos, submeua o
QUE É A BÍBLIA ?
3 2�------------��----------------------


respetivo teor a uma prova p bl i ca. � �
Q u.�n o a con sc ência cristã,
esclarecida e guiada pela autond ad e ec1 estasttca, cone1 UJa que certo
número trazia a marca do Espírito, a escolha estava feita. E como,
nessas comunidades primitivas, a filiação apostólica era fundamental,
foram conservados aquêles textos estabelecidos pelos testemunhos vi­
vos, que provinham diretamente dos discípulos de Jesus.
Em todo caso, no momento em que terminava o segundo século,
a escolha estava terminada. Possuímos, com efeito, um documento
extremamente precioso que o prova : o "Cânon de Muratori", assim
ch amado pelo nome de um bibliotecário da Ambrosiana que o desco­
briu e publicou em 1740, segundo um manuscrito do VI.<� ou VII."'
século. Reproduz êsse documento um simples catálogo , uma tábua
das matérias da Escritura Sagrada, datada das proximidades do ano
200 e redigida em Roma, demonstrando que nessa época a Igreja Ro­
mana possuía o mesmo Cânon que a cristã de hoje ( com exceção
das Espístolas de São Tiago e São Pedro) e rejeitando o "Pastor",
cuja leitura, entretanto, autorizava, e, mais categoricamente, certos
escritos de tendências gnósticas.
Cento e cinqüenta a duzentos anos mais tarde, entre 359 e 400,
os catálogos dos Cânones multiplicaram-se. Foram encontrados na
África, na Frígia, no Egito e em Roma. O Concílio de Cartago de
397 estabeleceu a lista definitiva. "O primeiro artigo de nossa fé,
dirá Tertuliano, é que não há nada que além dela devamos crer".
O decreto do Concílio de Trento, em sua quarta sessão em 1 546,
nada mais fêz que confirmar essa relação, à qual os ortodoxos orien­
tais se filiaram em 1672.

UM MUNDO ESTRANHO: 0 APocALÍPSE

O Cânon é, portanto, o resultado de uma escolha, querida e


guiada pelo Espírito Santo. Aparece a Bíblia como o resultado de
uma produção literária mais ampla, que está longe de nos ser co·
nhecida na totalidade. As recentes descobertas nos arredores do Mar
Morto revelam-nos a existência de uma literatura religiosa não bíblica
de qualidade insigne. Certos fragmentos já publicados, - o "Comen­
tário de Habacuque", os "Salmos de Ações de Graças", o "Manual
de Disciplina", a "Guerra dos Filhos da Luz e dos Filhos das Tre-
O "CÂNON" DOS DOIS TESTAMENTOS 33

vas", - não seriam i ndignos d e figurar ao lado de muitos textos do


Antigo Testamento.
Designa-se pelo têrmo de "apócrifos" o conjunto dos textos que
não foram acolhidos pelo Cânon. A palavra significa, originalmente,
"segrêdo esotérico", mas como os heréticos das seitas gnósticas esta­
vam empolgados pelo esoterismo, ao qual o gênio do cristianismo era
hostil, tudo quanto provinha do pretendido segrêdo tornou-se sus­
peito, e "apócrifo" passou a significar "condenado pela Igreja" ( 1 } .
Existem apócrifos d o Antigo Testamento elaborados entre os anos
de 300, antes de nossa era, e 100 após, isto é, em uma época eln que
a comunidade judaica sofria com amargura a tirania de diversos ven­
cedores pagãos.
Nascidos em atmosfera de angústia, refletiam um estado de fer­
mentação espiritual intensa. Uns, encarniçavam-se em comentar alu­
cinadamente a Lei; outros constituíram apêlos a uma vida moral mais
pura, mais elevada e a uma revivescência das almas. Os últimos, en­
fim, e os mais numerosos, propunham aos espíritos a evasão dos "Apo­
calipses", - "apocalyptein" em grego quer dizer: descobrir, - reve­
lando-lhe um futuro de fim do mundo, em que a justiça seria feita
aos eleitos de Deus : os "Salmos de Salomão", a "Ascensão de Isaías",
e os "Livros Sibilinos" são os mais notórios.
Quanto aos Apócrifos do Novo Testamento, constituem um mundo
estranho, em que se mesclam pedaços de verdade e delírios. Nasce­
ram êstes textos nas comunidades cristãs primitivas, desde os primei­
ros dias até o VI.<� ou VII.'� séculos, e, ao mesmo tempo, determinados
por uma curiosidade piedosa para com tudo que dizia respeito ao
Senhor pela função romântica das massas, e, por vêzes, por suspeitas
intenções heréticas.
Conhecem-se assim pretensos evangelhos segundo São Tiago, se­
gundo São Mateus e segundo São Pedro, e até segundo Nicodemos,
evangelhos da infância, cheios de pormenores sôbre os primeiros anos
de Jesus, narrações da Assunção de Maria, pseudos atos dos Apóstolos
e apocalipses atribuídos a Pedro e a Paulo. A Idade Média sabo-

( 1 ) Os protestantes não usam a mesma terminologia que os católicos.


Denom inam "apócrifos" os sete livros que a Bíblia c� tólica conserva, e �e
_
os católicos denominam "deuteronômicos", isto é, postenores ao CAnon Judatco.
e
Designam êles os apócrifos pelo têrmo "pseudopfgrafos" por, �pregarem quase
todos os nomes de vários personagens célebres como pseudôrumos.
QUE ti A BÍBLIA ?

reou essas histórias, das quais a "Legende Dorée" de Jacques de Vo ­


ragine recolheu bom número e que a arte utilizou. Não teriam elas
maior interêsse senão histórico, se certos usos atuais não tivessem
nelas a sua fonte : assim, por exemplo, o de colocar um asno e um
boi de cada lado do Presépio em que dorme o Menino Jesus (2) .

(2) Ver os números 7t e 72 da Coleçio.


CAPITULO IV

O LIVRO EM QUE DEUS FALA

SOB O SÔPRO DIVINO

Em todos os livros que compõem a Bíblia, a Igreja Católica


(e também os protestantes conservadores) reconhece um caráter par­
ticular, que é o da "Inspiração". � êste um dado essencial, um dado
de fé. A Bíblia inteira é um livro "inspirado". Devemos, escreve o
Padre Lagrange, sendo filhos da Igreja, crer nêle com uma fé divina.
Se a Igreja no-la impõe, é que para isto tem o poder, e é sômente
pela sua autoridade que podemos estar seguros sôbre êste ponto".
Esta noção está, além do mais, contida nas diversas expressões que
designam a Bíblia : Livros Santos, Sagrada Escritura, "Literatura Di­
vina", segundo Tertuliano, "Divina Biblioteca", segundo São Jerônimo,
Santa Bíblia. E as primeiras palavras da mais recente encíclica sôbre
a questão bíblica, a de S. S. Pio XII, em 1943, não falam de maneira
diversa : "Divino afflante spiritu", "sob a inspiração do Espírito Sant�
os escritores sagrados compuseram os Livros que Deus quis dar ao
gênero humano . . . "
A Bíblia é, portanto, a Palavra de Deus dirigida aos homens; é
o Verbo escrito de Deus. Esta certeza, recebeu-a a Igreja de Israel,
onde existia de tempos imemoriais. Desde que o povo hebreu sabia
haver sido eleito por Deus, que existia uma Aliança entre o Todo­
Poderoso e êle, que tôda a sua história fazia parte de um plano di­
vino, não seria natural que o livro em que eram descritas, juntamente
com essa história, as instruções e manifestações de Deus, fôsse tido
como inspirado?
36 QUE É A BÍBLIA ?

0 próprio Deus não revelara a Abraão sua essência única ? . Nã?


ordenara também a Moisés que escrevesse suas palavras, e asstm ft-
xasse a Lei ?
E assim também não se dirigiu aos profetas ? A palavra
de Javé
a Jeremias era verdadeira para todos êles. "Ponha em tua bôca mi­
nhas palavras" (Jer. I. 9 ) . Assim o historiador judeu, Flavius Jose ­

phe resume um verdadeiro dogma quando assegura que todos os au­


tor:s do Livro escreveram "sob o sôpro de Deus".
Não disseram e não dizem outra cousa os cristãos. Nos lábios
de Jesus e dos Apóstolos são inúmeras as fórmulas .e� que se afirma
a mesma fé. Foi Deus, em verdade, que falou a Motses (Me. XII. 26;
]o. IX. 29; Act. VII. 44; Rm . IX. 1 5 ) . Foi êle que s e exp rimiu pe­
los profetas ( Lc. I. 70; Act. III. 1 8 ) . Falou mesmo pela bôca do
rei-poeta Davi ( Act. I. 16; IV. 25 ) . A frase elíp tica da ep ísto la aos
Coríntios é categórica e significativa : "Disse Deus" (li. Co r VI, 1 6 ) .
.

"Tôda a Escritura é inspirada por Deus", proclama ainda São Paulo


a seu amigo Timóteo ( UI. 15-16) , e São Pedro ensina que "Foram
levados pelo E spírito Santo os homens que falaram por parte de
Deus" (11. Pet. I. 2 1 ) .
Inútil é citar os Padres e os Doutores da Igreja, tão numerosos
são os textos que assinalaram e afirmaram essa idéia : o "Enchiridion
bíblicum", publi cado em Roma em 1935, no decurso de perto de dois
mil anos, os dos Papas e dos Co ncíl ios . O que escrevia o Papa São
Leão IX.9 em 1053, é exatamente igual ao que, em 1943, escrevia Pio
XIV'; o que o Concílio de Lião, em 1274, proclamou, é, palavra por
palavra, idêntico aos decretos do Concílio de Trento, em 1 5 46, e do
Concílio do Vaticano, em 1870. Jamais vacilou o ensino da Igreja
Católica.

0 QUE É EXATAMENTE A INSPIRAÇÃO

1!, contudo, evidente que o têrmo "Inspiração" necessita ser de­


terminado. Nada seria mais falso que o representar-se a Bíblia como
obra milagrosa, nascida não se sabe onde nem como e surgida no
meio dos homens de modo mais misterioso ainda.
Adversários do cristianismo reduziram, por vêzes, a êste esque­
ma, a fim de ridicularizá-la, a doutrina da Inspiração. "A Bíblia, diz
com sábio humor S. Ex. Mons. Weber, bispo de Strasbourg, é um
livro divino, mas não é um livro caído pronto do Céu".
O LIVRO EM QUE DEUS FALA 37

A definição exata de Inspiração encontra-se em São Tomás de


Aqui no : "O Espírito Santo é o autor principal das Escrituras; os
homens foram apenas instrumentos" (Quodl. VII. art. 14), o que
foi esclarecido ainda na encíclica "Providentissimus Deus" de Leão
XIII : "A inspiração é um impulso sobrenatural pelo qual o Espírito
Santo excitou e impulsionou os escritores sagrados e os assistiu en­
quanto escreviam, de maneira que concebiam exatamente, queriam
transmitir fielmente e exprimiam com uma verdade infalível tudo
quanto Deus lhes ordenava, e somente o que lhes ordenava que es­
crevessem". Sábia e penetrante definição que, na elaboração dos tex­
tos sagrados, deixa o lugar respetivo ao Poder de Deus, de um lado,
e, do outro, à inteligência e vontade do homem.
O Senhor não escreveu a Bíblia, como a sua mão visível traçou
na parede do palácio de Baltazar as célebres palavras de advertência :
"Mane, Thekel, Phares". Nem a ditou a espécies de mediuns em
transe à semelhança, como julgavam os gregos, do que se passava
com a Pythia de Delfos.
As próprias pinturas que representam um anjo soprando ao ou­
vido de um evangelista o texto que está em vias de escrever, podem
ser admitidas em sentido simbólico, mas ameaçam dar uma idéia falsa
do fenômeno. Para que a Bíblia se concretizasse, serviu-se o Espírito
Santo de instrumentos que eram homens e que conservavam a respe­
tiva personalidade, o caráter, talento e gênio, os hábitos intelectuais e
poderes de estilo. Não destruiu nem violentou as faculdades daque­
les que deviam formular a sua menságem.
E, é necessário assinalar que foi um dos mais importantes resul­
tados do ensino pontifício, desde sessenta anos, do "Providentissimus
Deus" ao "Divino Afflante", o ter permitido que melhor fôsse con­
siderado o papel mantido pelo homem, instrumento de Deus, no fe­
nômeno da Inspiração. Muitas pretensas dificuldades, asbsurdos ou
contradições que a crítica "livre" assegura encontrar no estudo da
Bíblia, resolvem-se, quando se tem em conta esta justa partilha entre
a obra divina e o encargo humano. Renan, hoje em dia, bastante
dificuldade teria em enumerar as famosas contra-verdades da Bíblia
que o separaram da fé.

SE o SENHOR FALAR, QUE M Rl!SISTIRÁ ?

B preciso considerar os três tempos do fenômeno, como tão bem


foram assinalados p or Leão XIII. Deus "incitou e impulsionou" os
38 QUE � A BÍ BLIA ?

escritores sagrados a escrever. Não é por exclusiva vontade dêles que


. .
se entregam à essa tarefa, como fazem os escrtto�es profanos ( atnda
que a inspiração literária, tantas vêzes evocada, seJa de alguma forma
o reflexo leigo da inspiração" autêntica
" o "
o o

O caso é flagrante quando se trata dos profetas e de tudo qu anto


.
se liga à inspiração profética. São inúme ros os textos da Escrttura
. .
que mostram a irresistível ação do Espínto sôbre o Insptrado, de
quem se apossa. "Cai" sôbre êle, diz o livro �e Sam�el, e o "reveste".
O Inspirado não pode dizer senão o que Jave lhe dtta. n Deus que
lhe "abre os olhos" ou os ouvidos. Não pode o profeta furtar-se a
essa missão que lhe é inspirada. "Se o Senhor falar, quem resistirá ?".
Assim o disseram o velho Amós, Jeremias e muitos outros, tendo disto
experiência pessoal. E ninguém ignora quanto a Jonas custou o ter
recusado levar a palavra de Deus a Nínive. Luta entre a vontade de
Deus e a do homem que redunda em mistério de fé.
Menos nitidamente, a inspiração escrita é, contudo, também de­
'pendente da vontade divina. Acontece que escritores sagrados citem
suas fontes exatamente como faria um historiador de nossos dias.
(I. Reis. XI. 41, XIV. 19, 29 : Pr. XXX. 1 ) , ainda que reconheçam
ter sido penoso o seu trabalho literário. (Assim no Prólogo do "Ecle­
siástico" ou em li. Mac. li. 24, 32) . A tradição judaica e a fé d a
Igreja, em seguida, afirmam que a ação do Espírito Santo, neste caso,
foi tão positiva como na inspiração fulgurante aos profetas, ainda que
diferente tenha sido o método.

DEUS NÃO PODE ERRAR

Em segundo lugar, de acôrdo com a Encíclica Deus "esclareceu"



a i'!teligência daqueles q �e escolheu para porta-vo es e, de tal forma
o fez que, embora respettando o pleno exercício das faculdades hu­
manas, conferia à obra um valor divino. Esta luz sobrenatural deve
entender-se de dois modos. Por um lado, Deus revelou "segredos"
àq uel es que deviam transmitir-lhe a mensagem.
Assim está escrito a propósito de Samuel, de Daniel, de Amós e
.
muxtos outros. São Paulo, em célebre texto, chegou mesmo a dizer
que ap�endera cousas "que não é permitido ao homem repetir". Esta
luz dtvma, po�ém, não faz senão abrir ao espírito humano os cam·
.
pos d� c?n�ectmen to . O Julgamento do autor inspirado permanece
seu propno Julgamento, enquanto homem; toma-se, porém, julgamento
O LIVRO E M QUE DEUS FALA 39

divino pela ação sobrenatural de Deus, indissoluvelmente unida à


ação do homem.
:n êste um ponto de doutrina de importância capital, pois que
a êle se liga o dogma da "inerrância bíblica". Eis como a define o
Padre Benoit, da Escola Bíblica de Jerusalém : "Deus não pode en­
ganar-se nem nos enganar. Sua palavra é sempre verídica. Se, por­
tanto, lHe impele um homem a escrever em seu nome, não lhe pode
permitir que ensine o êrro. O carisma da inspiração é, necessària­
mente, acompanhado do privilégio da inerrância. :n dogma de fé que
sempre professou a Igrej a".
Até que limites estende-se esta inerrânda ? Não é suficiente di­
zer que, tomado em conjunto, o Livro Sagrado contém uma doutrina
de verdade. A inerrância deve ser entendida como propriedade inte­
grante de tôda a Bíblia, pois que a Bíblia é obra de Deus, e Deus
é a própria verdade; inerrância ao mesmo tempo de fato e de direito.
Tôdas as partes do Livro Sagrado dela se beneficiam. A Co­
missão Bíblica, em decisão de 18 de junho de 1 9 1 5, assim concluiu :
"O que o autor sagrado afirma, enuncia e insinua deve ser encarado
como afirmado, enunciado, insinuado pelo Espírito Santo".
:n, portanto, absolutamente interditado a um católico crer e dizer
que a Inspiração, e por conseguinte a inerrância, limitam-se a certas
partes dos Livros Santos, às partes dogmáticas e morais, por exem­
plo, e que, para as demais, o julgamento crítico é livre; assim como
também crer e dizer que pode haver êrros de fato na perspectiva em
que se coloca o escritor sagrado, como, por exemplo, que, em um dos
Livros Bíblicos, que se apresentam como sendo da história, possam
existir êrros históricos. Tal é, em tôda a nitidez e fôrça, a doutrina
da Igreja.

Os ESCRmAs DB DBus

Contudo, "em face desta doutrina, uma constatação se nos impõe


com inteira evidência, e a que todos podemos proceder : a Bíblia livro
divino, é, ao mesmo tempo, livro autênticamente humano" ( Mons.
Weber) . E esta constatação projeta-se sôbre uma obra escrita por
homens, homens de carne como nós, vivendo em determinado tempo,
em contexto histórico bem definido, sofrendo as reações, o modo de
pensar e mesmo os preconceitos da sociedade em que viviam. Age
sôbre êles a inspiração de modo total, até nas minúcias do estilo ?
40 QUE É A BÍBLIA ?

Se os dados essenciais os conceitos profundos procedem diretamente


d
do Espírito Santo, p der-se-á dizer que tenha também determinado
a escolha das palavras, das expressões e das frases ? Humana e lite­
ralmente falando, sabe-se quanto é difícil dissociar o pensamento puro
da respetiva expressão.
Deus não poderia estar ausente da formulação e da escrituração
de sua mensagem. .e o que se denomina "inspiração verbal", que era
admitida, em geral, pelos teólogo_s e �xeg�tas, nã�, porém, de ��do
.
universal, e que, em todo caso, 1amats fot dogmatteamente deftntd a
por texto oficial da Igreja.
O ensino pontifício tem em larga conta as condições humanas em
que foi feita a redação da mensagem. Evidentemente, "não se deve
imputar um êrro ao autor sagrado onde copistas, ao executar seu
trabalho, deixaram escapar alguma inexatidão" (Divino Afflante) ;
mas também é preciso ter em conta as condições em que viveram os
escritores sagrados, e seus hábitos pessoais de pensar e exprimir-se.
Foi por meio de um homem que o Senhor falou; é, portanto,
legítimo e necessário conhecer êsse homem. � nessa direção que se
orientou, presentemente, a grande maioria dos estudos bíblicos. Foi
a intuição genial do Padre Lagrange, ilustre fundador da Escola Bí­
blica de Jerusalém, que pressentiu estar ai a solução de inúmeras
dificuldades. O conhecimento profundo da Bíblia não se pode mais,
doravante, separar das épocas e dos lugares em que o livro foi escrito.
Assim, surge a Inspiração como operação divina, espécie de graça
que empolga o autor sagrado na totalidade do seu ser, que o escla­
rece e guia, assistindo-o durante todo o trabalho mental, desde o im­
pulso de escrever e a idéia original, até a execução literária e, por
vêzes, a expressão formal, mas que deixa livre a reação da perso­
nalidade humana do escritor sôbre a obra. "Livro de Deus livro do

homem", diz Mons. Weber, a respeito da Bíblia. Esta fón ula, tudo
resume.
CAPITULO V

O LIVRO DITADO A HOMENS

0 PAÍS DA BÍBLIA

Conhecer as condiçõe em que homens, sob inspiração divina�


escreveram a Bíblia, parece, portanto, indispensável à compreensão
do texto sagrado. Em primeiro lugar são de examinar as condições
geográficas dos países em que se desenrolaram os episódios do An·
tigo e do Novo Testamento. "Geografia e cronologia são as duas
muletas da história", assegura velho ditado da Universidade de França.
Assim também da história sagrada e de tôda a ciência das Escrituras.
O país bíblico, por excelência, é a Palestina, êsse pequenino pe­
daço de terra, não maior que a Bretanha, que um automóvel atra­
vessa, fàcilmente, de Norte a Sul, em um dia, e em que o :viajante
moderno admira-se de achar tão curtas as distâncias.
Estende-se essa faixa de terra ao longo da costa mediterrânea,
a qual, apesar de tão estreita, a geologia e o relêvo individualizam
três zonas paralelas muito diversas : a planície marítima, as monta­
nhas (não muito altas, mas ásperas e rudes) e a fossa de aluimento
- o "Ghor" - em que o Jordão desce para o Mar Morto, a 392
metros abaixo do nível dos oceanos. :e esta região de clima semi­
-mediterrâneo, semi-deserta, de primaveras deliciosas e breves, de ve­
rões escaldantes em que as chuvas caem, entre outubro e maio, em
rajadas violentas, ainda que muitas vêzes em quantidade insuficiente.
:e a terra em que vicejam as anêmonas vermelhas que são "o lírio
dos campos" da Escritura, onde o pinheiro de Alep, o cipreste, o
carvalho, a alfarrobeira e a oliveira cobrem as planícies ou balizam
as colinas; onde a criação de carneiros e cabras ocupa lugar prepon·
derante na economia rural. Mas, o país bíblico é também, além da
42 QUE É A BÍBLIA ?

Palestina, todo "o crescente fértil", essa zona de verdejantes campi­


nas que cerca o deserto sírio, desde a Galiléia até a Baixa-Mesopo­
tâmia, passando pelo país d � Aran, ao pé do
.
� !
nt -Ta_u rus, vasto arco
de círculo que Abraão segutu em sua mtgraçao msptrada.
A geografia e os hábitos de vida que ela impõe, estão tão inti­
mamente ligados aos textos sagrados que, muitas vêzes, impossível se
torna a êstes compreender sem referir-se àqueles. Quando o Evan­
gelho nos mostra Jesus a apiedar-se da sorte da multidão que viera
ouvi-lo' nada tendo a comer, é preciso imaginar essas regiões de
colinas incultas que dominam, para o leste, o lago de Tiberíade, e
onde, com efeito, nada se poderia encontrar. Quando o texto sagrado
diz : "As chuvas caíram, as torrentes chegaram e os ventos desenca­
dearam-se . . . " ( Mat. VII. 29) a fim de explicar a causa das catás­
trofes que arrastam as casas, deve-se p ensar nessas terríveis tempesta­
des que, com efeito, lá onde não havia senão leitos de seixos, fazem
transbordar torrentes devastadoras. Na baía do lago de Tiberíade,
entre Aio Tabgat e Magdala, verifica-se, no encontro das águas frias,
vindas do Hermon, e das águas quentes das fontes de Cafarnaum,
grande abundância de peixes. Não é êste o local da pesca milagrosa ?
Quando o Cristo indica como sinal : "Vereis um homem carregando
água (Marc. XIV. 1 3 ) , nada nos diz isto, a nós ocidentais, mas tal
pormenor assinala a verdade jud aica dessa particularidade histórica,
porquanto, na Palestina era, e é ainda, encargo da dona de casa ir
à fonte buscar água. Quando censura os fariseus de darem a dízima
em "aneth" desdenhando obrigações mais elevadas, é necessário saber
que esta planta, o funcho amargo, era tão comum na Palestina que
ninguém dela fazia caso. Diríamos hoje em dia "dar a dízima em
má erva" . Renan vai talvez muito longe, assegurando que a Pales­
tin� é. "o quinto Evangelho". Importa, porém, não esquecer a in­
fluenoa que a Terra da Promissão imprimiu aos acontecimentos cuj o
desenrolar contemplou.

0s AUTORES

Se os dados �ogr!ú!c'ls marcam o texto sagrado, ainda mais b


fazem os_ dados pstcologtcos, dependentes da personali d ade dos au­
tores. � ! ,
ao se_ apresen a, porem, o problema como nos nossos dias.
Os Anttgos nao -possutam, de modo algum o senso da prop riedade
literária e, sendo todos os escritos, a seus �lhos,
um bem da comu-
O LIVRO DITADO A HOM ENS 43

nidade, podiam ser criticados, modificados e desenvolvidos. Não é,


assim, sempre possível encontrar um homem atrás de um texto bí­
blico, sendo que certas partes dão a impressão de exprimir a cons­
ciência coletiva e ser também obra coletiva, na qual cada redator se
apagava ante a tarefa a cumprir.
Há, porém, numerosos casos, em que a Bíblia deixa ver, profun­
damente assinalado, o cunho dos escritores que a compuseram. Cunho
por vêzes feliz, por outras menos. A Inspiração não impede o re­
dator do "Levítico" de ser o mais enfadonho dos juristas, nem o
compilador das "Crônicas" de ser cruelmente despido de talento, nem
o autor do Apocalipse, ao escrever o grego, cometer muitos êrros de

sintaxe. Mas, quantas vêzes também se não encontram grandes per­


sonalidades, exprimindo-se em estilo pessoal, e mesmo autênticos
gênios literários ?
O "rei Davi", autor dos "Salmos" é um poeta sublime; o redator
do " Livro de Jó" é, ao mesmo tempo, um dos pensadores mais pro­
fundos e audaciosos da humanidade e um estilista de formas pene­
trantes; o profeta Isaías é um autêntico gênio, que deve ser colocado
no nível dos mais célebres líricos; São Paulo faz brotar, espontânea­
mente, harmonias de têrmos e idéias em luzes fulgurantes. Cada um
dêsses mestres da literatura bíblica permite adivinhar, - mesmo quando
anônimo, - o caráter pessoal. No Novo Testamento, isto é bem
patente : Marcos, alma simples e amena, adequada ao povo; Lucas,
homem de cultura, sensível e curioso; João, temperamento essencial­
mente místico; Mateus, informante seguro e honesto.
Os meios sociais a que pertenciam êstes autores tiveram influên­
cia sôbre êles. Ezequiel e Jeremias, nascidos de famílias sacerdotais,
não sofreram as mesmas reações que êsse Jesus Ben-Sira, burguês de
Jerusalém, a quem devemos o "Eclesiástico". O autor do "Livro de
Jó" foi provàvelmente um grande xeque dos confins do deserto ou,
em todo caso, um familiar de um dêsses senhores das tendas.
Um provinciano, como Miquéias, deixa ver a que ponto detesta
a grande cidade, na qual encontra a própria sede do pecado de Judá.
Comparemos, sôbre o mesmo assunto, isto é, em um requisitório con­
tra a vaidade e o luxo das mulheres, as imprecações de Isaías (IlL
16-24) e as de Amós ( IV. 1-3 ) . S a mesma a violência, mas o
profeta Isaías é de boa linhagem e se conserva polido até nas in·
vectivas, ao passo que Amós, vaqueiro de maneiras rudes, ousa tratar
44 QUE É A B ÍBLIA ?

as mundanas de Samaria de "espécie de vacas" - exatamente, vacas


de Bashan" - anunciando-lhes que serão deportadas nuas e lançadas
nas fossas de estrume. O lugar e a época em que os textos foram
escritos podem ter também grande importância : o livro de Judite
revela a época fanática dos Macabeus; o de Ester corresponde à men­
talidade dos judeus dispersados através da Pérsia, nesse mesmo im­
pério em que iriam nascer os contos das "Mil e Uma Noites", nos
quais bastante faz pensar a narração .
Enfim, não é evidente que o estilo dos compositores bíblicos
tenha podido variar segundo os destinatários a que se dirigiam ? :e
fato notável no Novo Testamento. Jesus, ao falar aos homens do
campo da Galiléia e aos pescadores do lago, usava vocabulário que
lhes era familiar. Referia-se às plantas, aos animais, a costumes que
conheciam. Quando Lucas quis transmitir a mensagem do ambiente
romano, foi levado a completar, em certos pontos, a linguagem d o
Mestre, explicando determinados pormenores. Assim, por exemplo,
�clareceu que o Jordão era um rio, e que o lago de Tiberíade era
grande como um mar. Quando São Paulo dirigiu-se aos Coríntios,
apaixonados pelos jogos istmicos, buscou as suas comparações nos es­
portes do tempo, lutas e corridas. Ao dirigir-se, porém, aos cristãos
da Frigia, fala de especulações religiosas. Santo Atanásio já o havia
notado : "é preciso observar em que ocasião o Apóstolo falou, a quem
e por que motivo escreveu. Importa empregar escrupulosa e real aten­
ção, a fim de que, ignorando estas circunstâncias ou as compreendendo
mal, se não venha a afastar do verdadeiro sentido".

TRADUITORE, TRADITORE ?

n desnecessário dizer que, em primeiro lugar, entre as condições


em que foi escrito o texto, necessário se torna ter em conta a língua
de que s.e serviu o autor. Nada é mais ilusório nem, em outros têr­
mos, mats absurdo que as raciocinações referentes a palavras da Escri­
tura Sagrada, em francês ou outra língua moderna, ao tratar-se de uma
tradução e, muitas vêzes, de uma tradução de traduções. O famoso
versículo evangélico sôbre o camelo e o buraco da agulha oferece
belo exemplo dessas discussões intermináveis mas ociosas.
As três línguas empregadas pelo Povo Eleito, o hebraico !iterá­
. .
no, o aramatco das conversas familiares e o grego popular denomi­
nado "koioé", usado nas primeiras comunidades cristãs, poss�íam, cada
O LIVRO DITADO A HOMENS 45

uma, gênio próprio e expressões que, muitas vêzes, não lhes permi­
tiam a transposição para nossas línguas ocidentais modernas. "Tra­
duttore, traditore", a velha locução proverbial aplica-se perfeitamente
a êste caso.
Mesmo quando remonta diretamente ao original, um tradutor da
Bíblia corre sempre o risco de trair.
Numerosos têrmos judaicos, puramente idiomáticos, transcritos pa­
l avra por palavra, não podem senão tornar-se obscuros a um ocidental
do século XX, enquanto eram perfeitamente claros a um semita do
tempo de Cristo. Quem, hoje em dia, sabe na França que, em tôda
a Bíblia, o coração não é considerado como a sede da sensibilida­
de, mas como a do pensamento, e os rins como a dos sentimentos?
"Deus penetra os rins e os corações", quer, portanto, dizer : "Deus
penetra nos p ensamentos e nos sentimentos dos homens". Assim tam­
bém o chifre era o símbolo da fôrça. Quando, pois, em São Lucas
(I. 69 ) o sacerdote Zacarias profetiza que "Deus suscitou a seu povo
um chifre de salvação", quer anunciar que um Salvador poderoso
vai aparecer.
Mais freqüentemente, é o gênio da língua que torna, muitas
vêzes, penosa a compreensão do texto sagrado. Os processos de es­
tilo mais usuais dos idiomas semíticos são fundamentalmente diferen­
tes dos nossos. O paralelismo, a j ustaposição das p roposições e a
antítese correspondem à dialética própria do gênio semítico, que ig­
nora o silogismo tão caro ao pensamento grego, - e ao francês, -
e não procura abstrair, visando interpretar a idéia na sua realidade e
unidade, mesmo e sobretudo, se a aparência deve ser complexa e con­
traditória. O símbolo, que lugar considerável então ocupa, não re­
presenta absolutamente o papel secundário que desempenha em nos ­
sas línguas do Ocidente, onde não é quase mais que ornato de estilo
ou, quando muito, um modo de mais fácil compreensão.
Para os semitas, o símbolo é um sinal real que, em si mesmo,
contém, de maneira eficaz, uma realidade superior. Quando se lê
que Israel "germina o Messias", a palavra deve ser tomada no sen­
tido mais vigoroso, significando tôda a Promessa feita ao Povo Eleito
e o seu grande destino.
Através do estudo da linguagem e do estilo é, em definitivo, que
grande parte do mistério se desvenda, do próprio mistério que os
autores inspirados da Escritura receberam o encargo de transmitir.
46 QU B É A B Í BLIA ?
·-------

Os G�NBROS LITERÁRios

Compreender o texto bí�lico, de acôrd? com a língu �, - idio�a


e estilo, - na qual foi escnto, mas tambem . compreend e-lo na pro­
pria perspectiva em que se colocou o composttor sagrad� para escre­
vê-lo' é esfôrço talvez ainda mais indispensável. 1! realizando- o que
.
se tem visto, nestes últimos tempos, resoI verem-se e se apagarem nu-
merosas pretensas dificuldades da Bíblia. O conc� rso mais .e �icaz aos
estudos escriturários foi, sem dúvida, o reconhectmento oftctal, pelo
Magistério da Igreja, da existência dos "gêneros literários" e da obri­
gação de os ter em conta.
Quem quer que tenha a menor experiência da cousa escrita, bem
sabe que poetas, romancistas, filósofos ou historiadores não usam os
mesmos registros.
Adapta-se o leitor, instintivamente, ao gênero do livro que lê.
Não se aborda um romance no mesmo estado de espírito que uma
obra histórica, e natural é que se não exija de uma epopéia poética
o rigor de um relatório militar. Acontece que um mesmo escritor
utiliza registros inteiramente diferentes, de acôrdo com o assunto que
aborda. Assim Racine, escrevendo os "Plaideurs" não emprega, evi­
dentemente, o mesmo tom que Racine, autor de "Phedro". Cada
gênero tem leis e hábitos próprios .

O mesm o acontece na Bíblia, onde figuram, lado a lado, os mais


diversos gêneros : história primitiva e popular do "Gênesis"; história
políti ca dos "Reis" e dos "Macabeus"; história apologética das "Crô­
nicas"; história moralista de "Rute", de "Tobias", e de " Ester"; con­
junto de sentenças dos "Provérbios", e d o "Eclesiástico"; ensaio filo·
sófico sob forma dramática de "Jó"; poesia do " Cântico dos Cânti·
cos", e, mais elevado ainda, o dos "Salmos".

Coexistem todos êstes gêneros no Antigo Testamento. E, quant a


variedade no Novo, entre os três evangelhos sinópticos e o de São
João, entre uma epístola de São Paulo e o " Apocalipse ".

O mais imediato dever do leitor de um texto b íbl ico é saber em


que gênero se inclui, se os compositores bíblicos, devendo transmitir
os dados da revelação, o fizeram, cada um, segundo o caráter parti·
cular do gênero que empregaram. A poesia, o canto são testemu­
nhos tão valiosos quanto a descrição histórica ou o ensaio filosófico.
O LIVRO DITADO A HOMENS 47

Não são, porém, idênticos, e não devem ser confundidos, conforme


já o aconselhou São Tomás de Aquino. :n bem evidente, ao lermos
que, na alegria Messiânica, " as colinas saltam como ovelhas", não
tomar ninguém esta expressão poética como realidade histórica.
Apresenta-se a questão de modo mais complexo, quando se trata
de gêneros literários que os Ocidentais não possuem. :n certo, por
exemplo, que a primeira leitura dos Profetas ou do Apocalipse, -
e mesmo a décima ou a centésima no que toca a êste último livro,
- deixa o espírito fortemente perturbado.
Em Israel era muito apreciado um gênero especial, o "midrash",
espécie de apólogo de significação moral, ao qual, menos se exigia
que relatasse exatamente fatos concretos do que destacasse uma ver­
dade interior, transcendente. Aluicar a êste gênero as regras da crí­
tica histórica é arriscar a extraviar-se gravemente. Os capítulos com
que se inicia a Bíblia, o "Gênesis", provêm, evidentemente, de um
gênero complexo em que se misturam a história, as tradições popu­
lares e folclóricas, a intenção moralista e o Apocalípse cosmogônico,
tudo levado sôbre as asas de admirável poesia. Quanto à história,
propriamente dita, tal qual se encontra na Bíblia, é bem evidente que
não obedece aos critérios, - muitas vêzes também tão artificiais e
irrisórios, - das "ciências históricas" da atualidade.
A conclusão que ressalta de um estudo dos gêneros literários da
Bíblia é que a Bíblia inteira é verdadeira, absolutamente verdadeira
e em tôdas as suas partes, mas que é verdadeira no sentido em que
cada gênero literário quer testemunhar a verdade ( 1). :n sôbre êste
ponto que a encíclica de S. S. Pio XII, "Divino Afflante spiritu,.
- e, mais recentemente, a "Humani Generis" em 1950, a propósito

( 1) Esta referência aos gêneros literários autoriza audácias que, há cin­


qüenta anos, teriam deixado estupefatos os exegetas e os teólogos. Dom Celes­
tino Charlier, beneditino de Maredsous, na "Lecture chrétienne de la Bible" •
obra publicada com o Imprimatur do bispo de Namur, e um prefácio de S. Ex.
Mons. Weber, bispo de Strasburgo, não hesita em escrever: "Os livros de
Rute, de Tobias, de Ester e também, embora de modo diverso, o livro de Jonas.
pertencem ao gênero de edificação e apresentam elementos manifestamente fictf.
cios" (é verdade que acrescenta, prudentemente: "mas não se está autorizado
por êste motivo a considerá-los como meros romances no sentido moderno).
Em outra parte, escreve ainda: "A parada do sol por Josué é descrita em um
pequeno poema épico, e tem todo o aspecto de ser apenas uma hipérbole
oriental".
48 QUB É A BÍBLIA ?

de Gênesis, - trouxe luz nova e incomparável. :e absolutamente pre­


ciso, diz o documento pontifício, que o exegeta suba de algum modo
pelo pensamento até êsses séculos remotos do Oriente, a fim de que,
auxiliando-se com os recursos da história, disdrna e reconheça quais
gêneros literários quiseram os autores dessa idade antiga empregar e
realmente empregaram".
CAPITULO VI

A BíBLIA E A HISTóRIA

0 ME MORIAL DE UM POVO

Afirma, portanto, tal texto a utilidade das ciências históricas para


o conhecimento da Bíblia, e êste é um fato novo, de importância ca­
pital. Enquanto, há cem anos ainda, nem mesmo se apresentava o
problema histórico a propósito das Sagradas Escrituras, limitando-se
os crentes a nelas procurar ensinamentos religiosos e morais, e os in­
crédulos a tratarem-nas de fábulas, imenso esfôrço realiza-se agora a
fim de descobrir e fixar os alicerces históricos da Bíblia.
Uma das duas diretrizes em que se desenvolvem os estudos bíbli­
cos atuais é a seguinte : localizar o texto sagrado no respectivo qua­
dro, ligando os acontecimentos que nêle são relatados aos que a his­
tória profana conhece. E, imediatamente, sustentados e reforçados pela
cronologia, - essa outra "muleta da história", já mencionada, - os
grandes episódios bíblicos deixam de ser temas mais ou menos místi­
cos, como antes eram tidos, passando a ser capítulos de uma história
tão exata e elucidada como a dos Faraós ou da República Romana.

A Bíblia é, portanto, em primeiro lugar, uma história. :8 o


memorial de um povo, o mais extraordinário memorial mesmo que
um povo tenha deixado às gerações futuras, de tudo quanto realizou,
sofreu, creu, pensou e esperou. :8 o "livro de família", daquela de
Abraão, mantido no decurso de cêrca de dois mil anos, de uma fa·
mília da qual, do Patriarca a Jesus, pode-se seguir-lhe o destino hu·
mano, assim como a missão providencial. :8 isto, em primeiro lugar,
que faz a unidade da Bíblia e de tôdas as suas diversas partes.
50 QUE É A BÍBLIA ?

Acontece que esta família, êste clã, êste P?V? mesclou-se, a � ter­
nativamente ao imenso desenrolar dos fatos htstortcos,_ dos quats o
Mediterrân :o Oriental, a Ásia Menor e a Mesopotâmia foram teatro.
Por várias vêzes andou errante Israel, das margens do Nilo à do
Eufrates. Por outro lado, a Palestina, região de passagem em que se
cruzam as estradas Norte-Sul e Este-Oeste, foi, por muitas vêzes, in­
vadida. Todos os povos que a história da Antigüidade Oriental nos
torna conhecidos : Cal deus, Hititas, Fenícios, Egípcios, Assírios, Gre­
gos, Seitas e Romanos, estiveram, sucessivamente, em relações com o
Povo da Promissão.
A questão que salta ao espírito poderá, portanto, receber resposta
fundamentada sôbre documentos alheios à própria Bíblia. Qual o va­
lor histórico dêsse memorial ? E pode ser acatada sua documentação r

A RESPOSTA DOS ARQUEÓLOGOS

A resposta é dada pelos arqueólogos, tropas de vanguarda do exér­


cito dos historiadores. "A história da Antigüid ade escreve-se com um
alvião , dizia Ho1Iot aos seus discípulos da Escola de Atenas. Desde
"

que, há cento e cinqüenta anos, Emite Botta, cônsul da França em


Mossul, teve a idéia de escavar os "te1Is" oblongos de areia e argila
esparsos na p lan ície das cidades mortas que lá jaziam, não cessou m ais
d e se ampliar o horizonte arqueológico. Agora, foi o avião pôsto a
servi ço da ciência histórica pelo Padre Poidebard, e os levantamentos
aero-fotográficos, empreendidos ao cair da tarde, quando o sol pro­
jeta sombras alongadas, revelam relêvos invisíveis do solo. Os instru­
mentos de rádioativi dade G eiger contribuem mesmo com precisão para
o cálculo dos tempos. Revelam-se assim, dia a dia mais numerosos,
os segrêdos do passado.

O historiador moderno da Bíblia coloca-se sôbre um duplo ter­


reno. De um lado escava, como arqueólogo, os próprios l ocais em
que se deseruolaram os episódios do . livro sagrado, tanto os resto s
de Jerusal ém como os traços no Sinai da passagem dos hebreus. Em
primeiro plano dos esforços dispendidos, são notáveis os da Escola
Bíblica de Jerusalém, fundada em 1890 pelo Padre Lagrange, e cujos
trabalhos estão sendo prosseguidos pelos seus alunos. Certas desco­
bertas em terras da Palestina têm importância capital. Assim, nas
fundações do convento de Nossa Senhora de Sion, a descoberta do
..Lithostrostos"' a própria lage do pátio da fortaleza Antônia onde
A BÍBLIA E A HISTÓRIA 51

Jesus esperou o julgamento a ser proferido por Pilatos. Assim tam­


bém as descobertas dos manuscritos do Mar Morto.
Por outro lado, setores da história e da arqueologia podem es­
clarecer certos capítulos da Bíblia. A egiptologia informará sôbre os
episódios de José e Moisés; recorrer-se-á à arqueologia da Mesopotâ­
mia para melhor conhecer Abraão e os acontecimentos relativos à
deportação do povo eleito para a Babilônia por Nabucodonosor. Os
quatrocentos anos que precederam a vinda de Cristo à terra não po­
diam ser estudados na Bíblia - que é bastante deficiente sôbre êles,
- senão por referências à história da Grécia e ce Roma. Eis, po­
rém, que a descoberta, nas grutas do Mar Morto, dos tesouros espi­
rituais dos Essenianos, veio esclarecer, com luzes novas, êsses últimos
tempos da comunidade judaica.
O resultado dêsse imenso esfôrço foi resumido pelo inglês Mar­
ston, em um livro no qual nem tudo é aceitável sem reservas mas
cuja intenção permanece válida : "A Bíblia falou a verdade". O texto
sagrado aparece como documento tão digno de interêsse e estudo como
as diversas crônicas e histórias que nos legaram os demais povos an­
tigos. E é fora de dúvida que esta certeza, impondo-se cada dia mais
ao espírito, em larga medida explica o interêsse consagrado à Bíblia
pelos nossos contemporâneos.

A H ISTÓRIA ESCLARECE O TEXTO SAGRADO

O que o estudo histórico da Bíblia proporciona ao conhecimento


e compreensão do texto sagrado é tão considerável que. não seria pos­
sível deixar de fazer aqui algumas alusões.
Certos detalhes formais, certas referências a costumes ou até a
nomes próprios que, outrora, poderiam passar por lendários, encon­
tram-se doravante colocados . em um quadro histórico indiscutível.
Quando, por exemplo, tratava-se de um rei "hitita" de quem
Abraão comprara a caverna de Macpela para lá enterrar a espôsa,
ou quando Uri, o infeliz marido de Betsabé, vítima do criminoso adul­
tério do rei Davi, era qualificado de "hitita", que significaria êste
têrmo antes que as primeiras indicações de Perrot, as escavações de
Winckler em Boghaz-Keui e a d ecifração por H.rozny daspranchetas
descobertas não viessem revelar o alto destino dêsse povo hitita que,
durante perto d e cinco séculos, dominou a Ásia Menor e seus arredores ?
52
---------------------- �
QUE É A B Í BLIA ?

Os famosos Filisteus, que Sansão tão jocosamente combateu, não


surgem em uma luz histórica tão nítida, agora que a aproximação se
impôs entre êles e as primeiras vagas da invasão ariana; que foram
encontradas no Vale dos Reis cenas pintadas no tempo de Ramsés lU
referentes à invasão dos "Povos do Mar", e que Micenas e Tirinto
nos mostraram fortalezas análogas às que Josué e seus sucessores tive­
ram que atacar? Golias, grande ariano louro, teve Heitor por primo.
Sinais de costumes que na Bíblia poderiam parecer estranhos, até
mesmo, chocantes, acham-se confirmados e esclarecidos p el a História
e, sua auxiliar, a arqueologia.
Um episódio, qual o do sacrifício de Abraão que supõe a exis­
tência de imolações humanas, é muito mais compreensível depois que,
nos túmulos da Caldéia ou nos pontos altos da Palestina, foram en­
contrados esqueletos de crianças e de servos visivelmente sacrificados.
Quanto ao famoso "carneiro prêso em um espinhal" que o Anjo do
Senhor pôs em lugar do jovem lsaac, foi sua estátua encontrada em
Ur, perfeitamente identificável. O voto de "herem", isto é, de des­
truição total da cidade aprision ada, por mais espantoso que pareça
tal ato, realizado por povoações desprovidas quase de tudo e que
deveriam deleitar-se com suas conquistas, aparece doravante como de­
corrente de tradição ritual, imemorial e seguida por tôda parte. Fo­
ram descobertos sinais de um incêndio nos subterrâneos de Jericó . . .
Teria sido o ateado por Josué ?
Acontece, de modo mais geral, que certos grandes episódios da
Bíblia recolocados no respetivo ambiente, ao mesmo tempo, político
e psicológico da época, assumem, sob essa luz nova, algo de ines­
perada profundez. A partida de Abraão e do seu clã, de Ur, na
Caldéia, para a Palestina não poderá ser compreendida, no sentido
�sicológico que recentes acontecimentos auxiliam a penetrar? Um
ststema de ditadura totalitária, politeísta, tendo sido imposto à Me­
s��ot�ia, com essa minúcia de detalhes que revelam os códigos ba­
btlomcos, e. natural que o monoteísta Abraão tenha desejado a êle
se furtar, "escolhendo a liberdade".
A voz de Deus e da consciência coincidiam. Bela lição, além do
mais, e rica de ensinamentos.
Como se poderia compreender, sem se referir aos acontecimentos
históricos, a desconcertante mudança observada, no início da história
de Moisés, na ati�de do Faraó? No capítulo precedente, José, vizir
do monarca egípc10, obteve para seus irmãos o direito de se instala·
A BÍBLIA E A HISTÓRIA 53

rem na terra de Gessen, perto do delta. E que se vê ao virar a


página ? A perseguição, os hebreus submetidos a trabalhos forçados,
o massacre de seus recém-nascidos. Que terá acontecido ?
A história no-lo ensina, evocando a invasão dos Hyksos, ou Reis
Pastores, de origem semita, que ocuparam o país do Nilo durante mais
de um século. O Faraó, que tomou José por primeiro ministro, não
seria um hyksos ? Os hebreus eram aparentados com êsses invasores
e com êles trabalharam. Isto valeu-lhes, quando "a lepra da Ãsia"
foi expulsa pelo movimento nacional, como colaboradores que foram
dos ocupantes, a severidade conhecida.
E se continuarmos a seguir o desenrolar dos acontecimentos bí­
blicos, outro mistério se explica. Josué e sua gente atacam a terra
de Canaan, e muito aí sofrem. Foram precisos dois ou três milagres
de Javé para permitir que nela tomassem pé, porquanto, na verdade,
não devia ser mais que pequena tropa de beduínos sem equipamento
militar, com armas medíocres e parcos efetivos.
Como, pois, em cem anos, êsses pobres invasores conseguiram apo­
derar-se da Palestina ? Se observarmos que êsses acontecimentos si­
tuam-se no fim do século XII, antes de nossa era, e nos lembrarmos
de que, na mesma época, desencadeou-se a maré impetuosa da inva­
são ariana, impõe-se a explicação. O ataque dos invasores obriga os
grandes impérios a repatriar as guarnições que conduziam para zonas
coloniais. A Palestina não possui mais ocupantes egípcios, mesopo­
tâmicos e hititas; nada mais que pequenos reis e príncipes autóctones.
Sem êste providencial acontecimento, teriam os Juízes levado ao bom
têrmo suas emprêsas de conquista ?
Nem mesmo subsistem êstes capítulos do início do Livro Sagra­
do, os do Gênesis, durante tanto tempo considerados como simples
e puras fábulas pelos espíritos fortes que, hoje em dia, documentos
arqueológicos não venham esclarecer.
Sabemos, agora, que êstes três antigos repositórios recolhidos pela
tradição de Israel, acham-se intimamente ligados à civilização conhe·
dda por Abraão, e que é preciso remontar até 3.000 anos ao menos
antes de nossa era, para ter o contexto cultural da narração da cria­
ção do homem; que o Dilúvio bíblico é, evidentemente, a versão mo·
noteísta de uma descrição do mesmo acontecimento que se encontra
igualmente narrado na epopéia, - politeísta, - de Gilgamesh; que
as escavações de Kish revelaram mesmo a existência de um fenômeno
aquático de importância catastrófica em época em que já existia no
54 QUE É A BÍBLIA ?

Eufrates uma civilização; que a Tôrre de Babel faz irresistivelmente


pensar nos "Ziggourats", tor� es de an � ares da religião astral meso­
.
potâmica, na qual os monote1stas hebraicos, .
multo _
� at� ralm�nte, sim­
bolizam o orgulho louco do homem que, co� �s proprtas m � os, cons­
trói ídolos em lugar de se entregarem ao un1co e verdadetro Deus.

INFLU�NCIAS SÔBRE A BÍBLIA ?

Esta penet ração histórica e arqueológica da Bíblia outra c�usa faz


ainda mais que esclarecer e firmar o seu texto. Absurdo serta ocul­
tá-lo. Seu mérito é fazer surgir o que Mons. Weber denomina : "se­
melhanças de feitura entre a Bíblia e as literaturas vizinhas". Em cer­
tos casos, trata-se mesmo de analogias, não somente l iterárias, mas
de fato e doutrina. Por ex emplo, é depois da permanência no E gi to
que o povo hebraico constituiu u m a organização clerical, que j amais
conhecera na época do deserto, mas que havia podido observar de
bem perto nessa região, profundam e nte clerical, que era a realeza
faraônica. Assim também, nenhuma dúvida subsiste de que a impor­
tância adquirida pelo culto dos Anjos, alguma cousa deve aos "que­
rubins" mesopotâmicos e às personagens celestes da tradição persa.
Não há aliás, do que se espantar nem escandalizar, se nos lem­
brarmos da definição exata da i nsp iração divina da Bíblia : servin­
do-se Deus dos homens, por que não se tornariam êstes sensíveis a
influências humanas, como todos o somos ?
Em certos casos, a semelhança entre o texto bíblico e essas "fontes"
vai tão l onge que, por vêzes, a nós mesmos perguntamos se o autor
inspirado não se serviu de modêlo pagão, ou se os dois textos, o
pagão e o inspirado, não procedem de fonte única. O fato é visível
no tocante ao Gênesis e, de modo especial, para o episódio do Di­
lúvio, fato notório à tôda a tradição mesopotâmica. O código de
Hamurabi, que se encontra no Louvre, bela pedra negra em que êste
rei babilônico dos princípios do s egundo milenário, gravou o con­
junto de suas leis, contém prescrições semelhantes às de Moisés. Por
outro lado, as leis mosaicas não são sem semelhança, também em seus
mandamentos, com os que se lêem no "Livro dos Mortos" do antigo
Egito. O ..Cântico dos Cânticos" muito se aparenta com determina­
dos cânticos nupciais encontrados às margens do Nilo, e o compositor
dessa parte do "Livro dos Provérbios" (XXII e segs. ), muitas vêzes
chamaClo de "Palavras do Sábio", pôde ser ou influenciado pelo sábio
A BÍBLIA E A HISTÓRIA 55

egípcio Amenemopé, ou tê-lo influenciado. O mesmo problema de


atribuição apresenta-se a propósito do Salmo CIV que é quase cal­
cado sôbre o cântico que compôs em honra de seu Deus único, o Sol,
o emocionante Faraó revolucionário, Amenofis IV, - Akhenaton -,
a menos que não seja o texto bíblico que tenha exercido influência
sôbre o egípcio. O livro da "Sabedoria" emprega o vocabulário dos
filósofos alexandrinos e, em certa medida, reflete suas doutrinas.
Mesmo na Bíblia descobre-se êsse gênero de semelhança. O tratado
de medicina de Dioscorides havia sido estudado pelo médico Lucas
que, ao escrever êste o seu evangelho, tomou-lhe de início o fraseado.
Acrescente-se a isto, citando Mons. Weber : "A fim de afastar
qualquer escândalo que essas observações poderiam despertar, tôdas
essas ligações que muito permitem esclarecer e compreender textos
bíblicos, fazem também sobressair o caráter, ao mesmo tempo profun­
damente humano e transcendental dos Livros Sagrados. Em p arte
alguma se encontra o que se nota muitas vêzes nas obras antigas :
extravagâncias complicadas, imoralidade ou, ao menos, sensualidade
e, sobretudo, politeísmo ou panteísmo nos quais se banham literal­
mente os documentos pagãos. "E, contudo", ( sublinhando esta frase
capital ) "Nossos livros judaicos ou cristãos emanam de um povo muito
menos evoluído culturalmente que os impérios dominadores do pró­
ximo oriente antes de Cristo, ou que os meios helênicos". Depreen­
de-se dessa diferença essencial o sentido exato dessa união e dêsses
sinais de semelhança, verificando-se a transcendência de uma vontade
que empresta à história o seu sentido e alcance.

LIMITES DA HISTÓRIA

Se é indispensável para bem assentar a Bíblia sôbre as suas bases


e defendê-la contra os adversários que não vêem nela senão fábulas,
estudar o Texto Sagrado segundo a história, seria grave êrro n ela
apenas manter-se.
A mais exata e digna de crença das "Histórias Sagradas" não
p oderá ser senão uma introdução ao conhecimento da Bíblia. Eis
porque, paralelamente ao esfôrço histórico outro deve prosseguir, -

e realmente prossegue, - para explicar e aprofundar o valor religioso


permanente do Livro Sagrado. O conhecimento histórico, apaixonante
e, muitas vêzes, esclarecedor, não deve deixar que se perca de vista a
verdaãeira finalidade. O estudo dos elementos políticos, arqueoiógi-
56 QUB É A BÍBLIA ?

�os, sociológicos e literários que constituem o quadro humano em que


se cumpriu a Revelação, não deve, de forma alguma, constituir um
fim em si. O fim último é ouvir a palavra de Deus, é compreender
que sua vontade age entre os homens e regula o destino do mundo.
Não se penetra plenamente na Bíblia senão crendo, verdadeiramente,
que ela traz a Mensagem de Vida, e que é, acima de tudo, o Livro
dos Atos de Deus.
C A PITULO VII

O LIVRO DOS A TOS DE DEUS

DEUS AGE NA HISTÓRIA

A expressão "Atos de Deus", deve entender-se nos dois sentidos


que comporta a palavra em francês : traçar atos e executar ações.
Livro inspirado, é a Bíblia a expressão da Palavra. Mas, é também
outra coisa : a manifestação de Deus nos fatos. Fala o Senhor nas
páginas do Livro Sagrado, mas também age, e a ação não é menos
reveladora para o homem nem menos exemplar e formadora. Tôda
a história humana, sem dúvida, "êsse longo encadeamento das cousas
particulares que fazem e desfazem os impérios, como diz Bossuet,
depende das ordens secretas da Providência", mas a finalidade for­
mal e positiva da Bíblia é de mostrar, explicitamente, aos homens que
"tôda a sua história e tudo quanto lhes acontecia, dia a dia, não era
senão um perpétuo desenrolar dos oráculos que o Espírito Santo lhes
havia proferido". A lição, mil vêzes proclamada pelos textos bíbli­
cos, - ao contrário do que propunha o paganismo grego-romano, -
é que o homem, nos acontecimentos da história, não é j oguete de um
destino cego, e que está entre as mãos de um Poder, de um Princípio,
de um Deus pessoal de quem tudo depende e que o quer conduzir
à sua verdadeira finalidade.
Eis o que determina o sentido particular da Bíblia, o qual já era
·

conhecido pelos compositores inspirados que, em tudo quanto escre­


viam, tinham apenas uma intenção : d emonstrar a ação de Deus no
mundo e no tempo. "Censurá-los por descura.rem a famosa "objeti
vidade" moderna não tem nenhum sentido. Para êles a história é
escrita, sob as mãos de Deus, em função de seus desígnios.
QUE É A BÍBLIA ?

Assim, procuraram os textos morais elevar o homem a uma di­


vina semelhança. A poesia, sob diversas formas, exalta a glória do
Altíssimo e fornece aos crentes os meios de se associarem, pela prece,
à sua obra. Os "midrashim" ( 1) realçam o modo pelo qual se exerce,
infalivelmente, a sua atuação.
O que empresta ao estudo histórico da Bíblia todo o respectivo
alcance, assim como lhe assegura, enquanto l ivro de história, a sig­
nificação própria, é que essa fase de acontecimentos, recortada d o
tempo e d o espaço, revela a ação divina. � e l a a própria ação divina
no sentido da revelação. União indissolúvel de realidades humanas,
- das quais são algumas penosas a considerar e, por vêzes, lamen­
táveis, - e de realidades transcendentais e divinas, tal é a própria
substância da Bíblia. � o que lhe faz a grandeza, mas também a
dificuldade.

0 PROBLEMA DOS MILAGRES

Exerceu-se a ação de Deus por intervenções diretas, externas e sen·


síveis, e que se denominam : milagres. O Concílio de Trento disse,
a respeito dêles, que constituem "argumentos que demonstram o Poder
infinito de Deus, e se tomam também sinais da Revelação divina,
positivos e acessíveis à tôdas as inteligências".
Para um cristão, verdadeiramente crente, compreende se que a
-

questão se não apresentaria de negar a existência dos milagres que


são descritos na Bíblia. Já que Deus criou o mundo e o governa,
não é inconcebível que faça aparecer, simbOlicamente, nos fatos, na
matéria e nos corpos a eficácia sobrenatural de seu poder d e ação.
O milagre nada é mais que sinal sensível dessa Revelação, que a
Bíblia, em sua totalidade, nos trouxe.
Seria, contudo, vão negar que, para os espíritos modernos, im­
pregnados, sem mesmo sempre se aperceberem, de uma atmosfera d e
racionalismo e de realismo muitas vêzes sórdidos, constitui o mila­
gre um obstáculo. Assim escrevia Mons. Mignot, há cêrca de meio
século : "No momento atual e para muitos espíritos, os milagres cons·
tituem mais um obstáculo à crença que um meio de crer. A inteli­
gência moderna, formada em moldes chamados científicos, encontra-se
mal à vontade em face do milagre. Entre aquêles mesmos aos quais

(I) Ver mais adiante o sentido Midrasb.


O LIVRO DOS ATOS DE DEUS 59

não causa espanto o sobrenatural, notam-se certas perplexidades, he­


_
sitações e mcertezas, um porquê, um talvez ( I ) . A essa dificuldade
� e evidên�i�, o que resp ?nde hoje o leitor da Bíblia, apoiado no en­
.
smo ponttÍlcw e esclarectdo pelos numerosos comentários feitos sôbre
êste assunto ?
Deverá, primeiramente, ter em conta os "gêneros literários", se­
gundo o conselho da "Divino Afflante spiritu", isto é, considerará a
questão prejudicial de saber se o compositor bíblico, relatando um
fato extraordinário e sobrenatural, quis apresentá-lo como fato histó­
rico. O "mid;ash" de Jon'as ou o poema épico do feito de Josué,
não foram evtdentemente escritos no mesmo estilo que os capítulos
do evangelho em que é relatada a Ressurreição de Cristo. A adesão
de fé prestada a êste último acontecimento não é da mesma ordem
que a prestada à parada do sol ou ao fato de ser engolido o pro­
feta pelo monstro marinho.

Quanto aos fatos miraculosos que figuram nos livros estritamente


históricos, podemos classificá-los em três categorias. Aparecem uns
como simplesmente providenciais; são outros constituídos por concor­
dância de acontecimentos aparentemente naturais, mas cuja reunião apa­
rece como dependente de intenção divina. Os terceiros que demons­
tram a ação direta de Deus, contradizendo causas aparentemente na­
turais ou substituindo-as, são, mais exatamente, milagres no sentido
rigoroso do têrmo. Quanto ao que diz respeito aos fatos das duas
primeiras categorias, é necessário, em primeiro lugar, considerá-los
na respetiva objetividade histórica, sem os maj orar, mas também sem
lhes diminuir o caráter maravilhoso. Alguns dentre êles podem mes­
mo integrar-se em um contexto natural de base, mas, nêste caso, o
que é sobrenatural é serem produzidos nas condições em que a Bíblia
relata e nos quais transparece a vontade de Deus.

Assim, por exemplo, foi possível relacionar o milagre da travessia


do Mar Vermelho pelos hebreus de Moisés com o regime especial das
marés do Gôlfo Elamítico, ou ainda, relacionar o maná com certas
trufas brancas que . são encontradas no deserto da Arábia, ou com a
goma açucarada produzida por certas acácias. Tal não impede que,
ao salvar seu povo do massacre ou da fome, o Todo-Poderoso levasse
a têrmo uma intenção e um plano que ultrapassa infinitamente qual·
quer explicação natural e "científica".

( 1) Cartas sôbre os estudos eclesitisticos, pág. 1 19.


60
----------------
QUE É A BÍBLIA ?
���------------------------

Do mesmo modo, também, podem-se explicar as "dez pragas do


Egito" mediante os próprios documentos do país e as observações
geográficas, o clima e a faúna. A aparição simultânea, porém, dêstes
fenômenos, sua extraordinária amplitude, o enorme apôio que trou­
xeram ao Povo Eleito e os resultados que acarretaram, provam, com
evidência, que foram queridos por Deus.
Esta vontade divina é ainda mais sensível no caso dos milagres ·
que não podem ser, evidentemente, relacionados com nenhuma causa
natural e, de modo particular, naqueles que, - quarenta e urna vêzes
no decurso de sua vida na terra - foram realizados por Cristo, e
que s e impõem ao espírito corno expressão certa da ação inefável,
pelo caráter de sublime simplicidade e de caridade infinita, pelas lições
que dêles provêm. Perante fatos, quais a cura do paralítico ou a
ressurreição de Lázaro, afirmados como verdadeiros pelo Evangel h o,
não se pode deixar de reconhecer a vontade de Deus em tais obras
ou, então, repudiar o Evangelho e tôda a Revelação cristã e a própria
religião. � o que queria dizer São Tomás de Aquino, ao insistir
sôbre o caráter de "sinais de fé" que possuem os milagres, bem mais
do que os invoca corno prova de fé ( I ) .
São o s milagres o "efeito d a fé", sejam daquele que o s realiza,
sejam daqueles para os quais foram realizados. E São Tomás cita
as palavras de São Mateus, XIII, 58 : "Jesus não realizou lá ( em
Nazaré) muitos milagres por causa de lhes faltar a fé". Entretanto,
diz ainda São Tomás, serve o m ilagre para a confirmação da fé,
não corno prova da fé, mas fazendo brotar atos de fé que desenvol­
vem esta virtude. "Assim como não basta receber a graça da fé,
tomando-se necessária a graça de ouvir ensinamentos que instruam a
fê, assim também a realização de milagres é necessária para confir­
mar a fé" ( art. 5 ) .

ÜS ACONTECIMENTOS, ATOS D E DEUS

Não sõmente pelos milagres é que a Bíblia torna sensível a ação


de Deus. Seria vão deixar-se alguém fascinar por êsses feitos ex­
traordinários ao ponto de impedir o discernimento do plano de Deus,

( l) Na Suma Teológica 11, 11, Q. 178, art. 1, encontram-se várias passa­


gens em que se formula êste pensamento. Declara São Tomás "que os !lli ­
lagres são chamados sinais porque manifestam uma realidade sobrenatural, uma
iotervenção excepcional de Deus.
O LIVRO DOS ATOS DE DEUS 61

i � fini tamente mais vasto, do qual os milagres são testemunhos excep­


. .
cwn at �
. . O smal afastar-se-�. a, e�tão, d � realidade que exprime. �
,
n ecessa no reconhecer, do pnne1p1o ao flm do Livro Sagrado, a ação
de Deus, presente nas almas como nos acontecimentos, tendendo a
erguer, pouco � pouco, a humanida de para uma luz mais completa,
fazendo-a segutr, dolorosa mas providencialmente, essa curva ascen­
dente que se torna preciso assinal ar no decurso do Livro a fim de

ser compreendida a sua sucessão, por vêzes, desconcertant , dos seus
livros desconexos.
A Bíblia, em suas duas partes, intimamente unidas e subordina­
das, é a narração, - incompleta, sem dúvida, pois que há lacunas,
mas perfeitamente coerente, - da obra de Deus no mundo, a partir
das origens até a hora em que, o último dos Apóstolos estando a
ponto de desaparecer, a mensagem da Revelação foi deixada à guarda
da Igreja de Cristo.
� também a narrativa da Criação, descrita pelo Gênesis, até o
juízo final evocado em têrmos simbólicos pelo Apocalípse, história
completa da humanidade sob as mãos de Deus.
Tem um sentido esta históri a : obedece a um plano, a uma in­
tenção, sentido e intenção que os cristãos discernem e que, para êles,
identificam-se ao mistério da Encarnação. :S bem conhecida a célebre
expressão de Pascal : "Jesus Cristo, que os dois Testamentos visam,
o Antigo como esperança, o Novo como modêlo, ambos como o seu
centro" (Pensamentos 740 ) .
A expressão tem dupla significação : o Cristo é " o centro das
Escrituras", ou se preferível, sua finalidade sobrepujada porque seu
ensinamento corôa todo o da Bíblia. Sob, porém, o ponto de vista
histórico, é o fio secreto que liga todos os a·contecimentos. Nada se
compreenderia do Livro se não estivesse presente ao espírito êsse
duplo fato capital : a Encarnação do Verbo e a Redenção pela Cruz.
li o Cristo que anunciam, não somente os profetas e todos os textos
inspirados em que s e assinala a promessa de sua vinda, mas também
os próprios fatos da história, primeiros sinais manifestos da ação
divina dos quais foi libertada, sob as luzes do Espírito Santo, a ver­
dade divina. A vocação de Abraão, a passagem pelo Mar Vermelho,
a criação do reino de Davi, a deportação para a Babilônia e a revolta
dos Macabeus são acontecimentos, além d e muitos outros, que não
se tornam compreensíveis senão em função da vinda de Cristo. Anun·
ciam êles, simbolicamente, e historicamente preparam a ordem poli·
tica, psicológica, social e sobretudo religiosa, que iria permitir à se--
62 QUE É A BÍBLIA ?

gunda Pessoa da SS. Trindade trazer à humanidade sua mensagem e


a êste Cristianismo vencer, pois que correspondia a uma esperança
que se concretizara.

0 MISTÉRIO DE ISRAEL

A ação de Deus não pode ser considerada manifesta nos aconte­


cimentos sem se descobrir um mistério histórico, o mistério de Israel.
Enquanto autor humano da Bíblia, o povo hebraico declara-se inves­
tido de uma assistência espiritual, a Inspiração; enquanto autor dos
fatos bíblicos, proclama-se beneficiário de proteção especial de Deus,
a Aliança. Em que medida colabora a consideração dos fatos nestas
duas asserções ?
Sôbre o plano unicamente literário, apresenta-se o problema e
nenhuma solução comporta, se recusarmos invocar a intervenção di­
vina. Como poderia êste povo, sem artes, sem filosofia e sem gran­
des faculdades naturais, produzir essa incomparável obra-prima, en­
quanto povos, infinitamente mais avançados que êle na ordem inte­
lectual, apenas deixaram livros repletos de grosseiros êrros morais
e religiosos ?
Sôbre o plano estritamente histórico, como êste povo minúsculo,
- jamais ultrapassou um milhão de almas na época do esplendor de
Salomão, - conseguiu tamanho brilho ? Como, perseguido, torturado,
reduzido a algumas dezenas de milhares, nos dias negros do cativeiro
"às margens dos rios de Babilônia", teria êle podido sobreviver, e
sobrevive ainda entre nós, enquanto grandes impérios que o cerca­
vam apenas nos deixaram ruínas, textos e múmias ? E por que a
longa provação que lhe foi o destino, levou-o, de degrau em degrau
e de sofrimento em sofrimento, a erguer-se, cada vez mais, para a
Revelação?
E êste mistério de Israel está tão intimamente ligado ao sentido
profundo da Bíblia que contra êle nos chocamos no momento em
que descobrimos, na Encarnação, o sentido máximo de todos os acon­
tecimentos do Livro.
Por que o Povo Eleito que em seu seio havia feito "germinar ..

o Messias, e dêle, por longo tempo, sentido a esperança dilatar-se no


peito, recusou-o ao chegar ?
Pergunta sem resposta, além da sobrenatural, porquanto as razões
humanas que teve Israel para repudiar o Cristo, se não desculpam a
O LIVRO DOS ATOS DE DEUS

iniqüidad e do Calvário, permitem, ao menos, compreender o drama.


Um povo que, através de gerações, fôra obrigado a lutar contra vi­
zinhos e opress �res, nos quais reconhecia inimigos de sua fé, estaria
preparado a ou:tr a �e ? sagem d.e universalismo de Cristo ? Um povo
ao qual seus gutas reltgwsos havtam ensinado obstinadamente o culto
l �
da Lei, da letra estritamente observada, ún ca proteção con ra mor­
tais desvios doutrinários, poderia êle compreender, sem revolta, que
"a I etra mata e só o espí:ito liberta" ? Um povo que, durante séculos�
.
havta e �perado u.m Messtas de glória que lhe restituiria o poder e a
soberama, podena reconhecer essa figura inefável no filho de um
carpinteiro de � azaré, nêsse artífice cercado de pescadores galileus ?
.
Se, porem, pensassemos qual deveria ser a conseqüência, terrivelmente
lógica, dessas atitudes tão compreensíveis, se soubessemos, se acredi­
tássemos que o sacrifício do Calvário seria necessário à obra da Sal­
vação do mundo, " sine sanguine non fit remissio", não nos encontra­
ríamos em face de um decisivo mistério ? Até em sua recusa' Israel
.
continua a ser o instrumento de Deus.

A OBRA DO OLEIRO

Há outra ação de Deus, assinalada de princípio a fim da Bíblia


e, inseparàvelmente, associada à que manifesta o desenrolar dos fatos:
é a obra do aperfeiçoamento do homem, e é indispensável que bem
a compreendamos se não nos quisermos chocar contra séria dificul­
dade : a diferença que parece existir entre a religião do Antigo e a
do Novo Testamento. Apenas a idéia de um desenvolvimento que­
rido, de uma elucidação progressiva e, finalmente, de uma integral
revelação, permite resolver contradições que, de outro modo, fariam
escândalo.
Muitas vêzes, a Bíblia compara Deus a um oleiro que modela a
argila human a : "Como a argil a na mão do oleiro, diz Jeremias, assim
os homens na mão de Deus" (Jer. XVIII. 6 ) . O Livro é assim a
história dessa modelagem progressiva, dêsse paciente trabalho do
Criador sôbre a criatura a fim d e levá-la a ser mais perfeita. E
assim como o oleiro não transforma instantâneamente a massa de
argila que modela em vaso de formas ultimadas, assim Deus, no de­
correr dos capítulos da Bíblia, revela-se no trabalho, dir-se-ia volun­
tàriamente, com seus retoques, revezes momentâneos, arrependimen·
tos e repetições.
QUE É A BÍBLIA ?

.n êste, talvez, o aspecto mais exaltador da Bíblia : uma constante


progressão. "A história recebe da Bíblia extraordinária impressão,
escreve o Padre de Lubac ( 1 ) . :Sste contraste entre a humildade dos
primórdios de Israel e o poder dos germes, - dever-se-ia dizer :
dos explosivos, - de que é êle portador; essa forma concreta, e a
principio envolta nas mais altas crenças e, em seguida, êsse desen­
volvimento majestoso, essa marcha firme, ainda que obscura, para algo
imenso e imprevisível, em parte alguma encontra equivalente, mes­
mo longínquo".
A verdade formadora e salvadora, com efeito, não foi revelada por
Deus inteiramente, e de um só jato. Não recebeu a argila, desde
o primeiro instante, das mãos do oleiro, a beleza definitiva. � pre­
ciso verificar, no longo decorrer da história de Israel, a ascensão para
a Luz, um progresso na penetração do conhecimento inefável, ascen­
são e progresso sem cessar, é verdade, comprometidos e ameaçados,
porquanto tratava-se de homens, semelhantes a nós, sujeitos a tenta­
ções e pecados. Estas misérias, porém, sôbre as quais os composito­
res bíblicos não hesitam em lançar a crueza da luz, longe de pre­
judicar a verdade do conjunto, apenas a reforçam, assim como, por
contraste, a virtude mais admirável parece surgir perto do vício. A
grande lei que domina a redação dos Livros Sagrados é a da Ascen­
são em demanda da descoberta total. Dividem-na três etapas : Abraão
recebe a revelação da Unidade de Deus; Moisés no Sinai escreve, sob
a palavra do Todo-Poderoso, a Lei religiosa e moral que deverá reger
a vida do Povo Eleito; os Profetas, enfim, tendem a fazer passar a

religião do plano sociológico, em que a fidelidade aos preceitos sa­


grados confunde-se com a dependência do Povo Eleito, para o plano
interior em que cada um é responsável somente pelos próprios atos,
por todos os atos, no debate da consciência, sob o olhar de Deus.
B suficiente ler o Antigo Testamento para sentir que ao pensa­
mento se impõe uma exigência. Não são, ainda, estas três etapas
senão preparatórias. Aspira a alma por algo mais : uma religião na
qual a natureza tôda será consagrada, divinizada e em que a própria
condição humana será empolgada pela luz que é vida. "O fim da
Lei é o Cristo", diz São Paulo (Rom. X. 4), e a "Epístola aos He­
breus" esclarece como "Deus, após ter falado por várias vêzes e ma­
neiras, falou, afinal, por seu Filho, nêstes tempos que são os últi·
mos (Heb. I. 1·2).

(1) Clllolkinno, pág. 1 16.


O LIVRO DOS ATOS DE DEU S 65

O que causa espanto, e por vêzes perturbação na religião do


Antigo Testamento, é apenas preparação, ensaios e tentativas, tudo,
porém, tendendo a um desfecho, cujo nome é Revelação. Todos os
grandes temas doutrinários da Bíblia conduzem, necessàriamente, ao
Evangelho. Tôdas as verdades por aquêles proclamadas aos homens
não exprimem seu sentido integral senão à luz que êle projeta. A
palavra que, progressivamente, permitiu Deus aos homens que a en­
tendessem, nós lhe conhecemos a própria expressão, a Encarnação viva.
Jesus é a forma sonhada pelo oleiro.
CAPITULO VIII

O ANTIGO TESTAMENTO, LIVRO DA PREPARAÇÃO

A TRADIÇÃO DAS ORIGENS

Transmite o Antigo Testamento, dessa história divina, a primeira


parte, agrupando em seus quarenta e cinco livros tudo quanto é an­
terior à vinda de Cristo.
Principia por uma seqüência de textos misteriosos, encimados pelo
título de "Livro do Gênesis", sôbre as origens do mundo e do ho­
mem. Entre as páginas mais célebres de tôda a Bíblia, são estas a
que se pode fazer alusão diante de quem quer que seja, estando certo
de · ser compreendido. Como fêz Deus o Céu e a Terra, como mode­
lou o primeiro homem no barro primitivo, como, ainda, dessa pri­
meira carne viva d o homem macho, - é talvez êsse o sentido da
sílaba sumeriana "ti", traduzida também por "a costela" - tirou o
elemento fêmea . . . , episódios que, êste e outros, fazem parte tão
íntima da cultura elementar que impossível s eria imaginar pudesse
a nossa civilização ignorar.
São tradições imemoriais, legadas aos hebreus por uma humani­
dade bem anterior.
Sob a tenda negra, no país de Mambré e, em seguida, nas pe·
queninas casas brancas do Delta, escutava-se à tarde, os aedos repe ·

ti-las em longas melopéias, à moda Oriental : . histórias mil vêzes


·

conhecidas e, entretanto, sempre novas.


Assim, mais tarde, nas fortalezas micênicas, outros poetas des­
creveriam a história dos antepassados que foram a Tróia reconquistal'
Helena, e as aventuras daqueles bravos.
Nos onze primeiros capítulos do Gênesis, a verdade revelada f!De
lhes serve de base, acha se portanto associada aos dados da tradiçh
-
68 QUE É A BÍBLIA ?

popular e, também, cheios de fulgor, aos de um anúncio apocalíptico.


Estas páginas, em muitos pontos em que se vê o arcanjo com a es­
pada de fogo interceptar ao homem a entrada do Pa raí so e a cólera ,

do Senhor afogando sob o terror das águas a humanidade culpada,


correspondem àquelas em que, no último livro da Escritura Sagrada,
será evocado o final dos tempos. Relação misteriosa e sign ific ativa.
O que há, porém, sobretudo, de admirável nêsses onze capítulos, é,
ao mesmo tempo, a profundeza psicológica e a exatidão religiosa.
Nasceu deles a moral cristã, e a visã o que milhares de sêres tiveram,
e ainda têm, de seu destino, a explicação de nossa miséria interior,
a esperança que nos sustenta, e tudo quanto possuímos, talvez, em
nós de m ai s decisivo, brotou dessas páginas. E, além de tudo, a
grande certeza de fé, a verdade que, através de tôdas as páginas da
Bíblia, vai transmitir·se a nós : Deus é Um, e tudo no mundo obe­
dece à sua Lei.
O exigente e absoluto monoteísmo destas páginas é suficiente para
distanciá·las radicalmente das outras cosmogonias, nascidas entre povos
vizinhos, com os quais foram formalmente aproximados.
:nste testemunho, desde o início, eis que é afirmado como sendo
aquêle de que é portador um povo, - uma família, uma descendên­
cia. O laço é formalmente assinalado. O Livro do Gênesis está longe
de seu acabamento, ao descrever o Dilúvio e o drama da Tôrre de
Babel, prelúdio das grandes catástrofes da humanidade. Segue-se-lhe
uma genealogia, uma dessas longas enumerações de nomes, como mui­
tas existem na Bíblia, e às quais os hebreus, assim como todos os
povos do Oriente, emprestavam grande importância. Desde o pri­
meiro homem até a primeira testemunha da Revelação, - e ainda
além até Jesus, - a filiação é direta, exata, assinalada. Quer isto
dizer que entre a mensagem de salvação e estas imemoráveis tradi­
ções, um laço íntimo existe, e uma dependência. Já são êstes mitos
sublimes a verdade e a vida; já são mesmo a Revelação.

A ERA DOS PATRIARCAS

Começa, portanto, a Revelação, formalmente, no dia (1) em que


um nômade semita dos arredores de Ur, na Caldéia, lança inefável
apêlo, obedecendo à ordem sobrenatural. Qual foi êste apêlo? O

( 1) Para tôdas as datas da história bfblica ver o quadro cronológico no


final da presente obra.
O ANTIGO TESTAMENTO, LIVRO DA PREPARAÇÃO 69

do Deus único, do Deus verdadeiro, de Deus. n Êle Aquêle que


o espírito humano desvenda mas que não pode conhecer senão atra­
vés do mistério, e que escolheu Abraão, filho de Taré, por mensa­
geiro de sua Palavra, e lhe ordenou que se lançasse contra os êrros
e as abominações do politeísmo. Existe aí um fato essencialmente
místico, inexplicável, tão misterioso em sua essência e tão tangível
nos resultados como pôde ser para a França a missão de Joana d'Arc.
Como, por que, em um mundo saturado de idolatria, uma pequena
tribo beduína, conduzida por seu chefe, optou pela verdade ? Von­
tade de Deus evidente. Ei-la a operar desde o início.
A partir do momento em que a Voz ressoou, acham-se os homens
em face da verdade e têm por dever servi-la. Neste sentido, - sen­
tido muitas vêzes evocado pelos escultores da Idade Média, - a
humanidade, ao ser fiel à verdade, é, tôda ela, filha de Abraão. Será,
p orém, fiel ? A questão que sempre se apresenta já havia sido feita
desde o início dessa história. Partiu Abraão com a sua tribo a fim
de obedecer à ordem recebida, deixando a cidade pagã e marchando
pelo deserto. Saberia êle, em seu íntimo, que sua decisão inaudita
abre na história um capítulo novo que, até o fim dos tempos, vai
oferecer à consciência humana "o único problema ? " lHe mesmo, como
todos aquêles que ousavam assumir grandes riscos espirituais, a si
próprio o pergunta. ll:sse Deus que o comanda, irá :íHe sustentá-lo ?
Surgirá de novo para o ajudar e guiar? Sim. E foi numa tarde de
desânimo, quando, num ato de fé, ofereceu-Lhe um sacrifício, que a
resposta lhe veio. Deus está presente e fala, concedendo a "Aliança"
a seu servidor e a tôda a sua d escendência.
Firma-se um contrato : o povo, que mais tarde será chamado
"Israel", a posteridade de Abraão, será o beneficiário de uma escolha
e especial proteção. E será o Povo Eleito, sob a condição de per­
manecer fiel, de praticar os mandamentos d o Senhor, e de ser o de­
positário da grande verdade do Deus único.
Desde então, .vai tudo entrosar-se com absoluta lógica. Sara,
espôsa de Abraão, não tem filhos. Desmentir-se-á Deus ? Que sig­
nifica a Aliança se a testemunha não tem posteridade ? Mas o pro­
dígio realiza-se. A velha espôsa dá à luz, e tal felicidade experi­
menta que dá ao filho o nome d e Isaac, isto é, "filho da alegria".
Entretanto, parece Deus calar-se, ou melhor, tomar-se-lhe obscura a
vontade. Que, em verdade, deseja ? Julga Abraão que dêle espera o
maior dos sacrifícios : o do seu primeiro filho. Obedecer, por mais
doloroso que sej a ! Sôbre a fogueira, a faca do sacrifício vai abrir
70
-------
QUE É A BÍBLIA ?
-------�

a garganta de lsaac, quando o Anjo do Senhor suspende a mão do


p ai, e designa o cordeiro que substituirá a vítima humana. "Mais
eu amo a obediência que o sacrifício" dirá mais tarde um profeta.
Já a lição fôra dada no monte Moriah.
Além da fidelidade e da obediência, o que ainda desejaria Deus ?
Lentamente, como às apalpadelas, os descendentes de Abraão pro­
curam a resposta, através de episódios impregnados de símbolos. :a
Jacó que, durante tôda a noite, no vale do Jabok "luta contra o
anj o " , isto é, deve enfrentar a condição humana e escolher entre
a carne e o espírito, o interêsse pessoal e a vocação.
Em breve, é o povo todo que vai afrontar êste problema. No
Egito, aonde a fome os conduziu e José os instalou, acreditam talvez
os descendentes de Abraão que, no meio dos ídolos de caras de ani­
mais, poderiam fàcilmente salvaguardar a sua crença. :a a persegui­
ção que lhes dá a resposta, o sofrimento e a angústia. Não é fácil
obedecer a Deus. Mas, o sinête com que o Senhor gravou o seu
povo o protege. Quantos séculos de servidão ! Dois ou três, ao
menos. Conservou, porém, a alma de Israel bastante fidelidade e
coragem para que a fé sobrevivesse a estas provações. Termina, as­
sim, a p rimeira etapa com o livro do Gênesis, em que se firmou
esta fé, elementar ainda mas sólida. Vai iniciar-se a segunda.

0 LEGISLADOR DE DEUS

Moisés ! Tão grande é sua missão que a Bíblia lhe consagra nada
menos que quatro livros. O "�xodo" descreve, de modo precíp u o, a
origem de sua missão e de sua obra até a chegada à Terra que prome­
tera Deus a seu povo, contendo, ainda, muitas regras e prescrições
estabelecidas pelo grande legislador de Deus. O "Levítico" é quase
inteiramente um código e um conj unto de ritos. Com os "Números"
recomeçam os fatos, apresentando o Povo Eleito em marcha para o
luga r designado pela Providência. O "Deuteronôm io " , enfim, é como
o testamento espiritual do grande chefe. Suas últimas instruções são
comentadas com cálido fervor, parecendo ouvir-se a própria voz do le­
gislador suplicar a seu povo que jamais traia a lei que lhe foi revelada.
Eis a verdadeira missão de Moisés, o papel sobrenatural que lhe
foi designado quando, já muito avançado em idade, - pois deveria
morrer 40 anos mais tarde com a idade de 120, - sendo pastor das
O ANTIGO TESTAM ENTO, LIVRO DA PREPARAÇÃO 7l

planícies de Madian, ouviu, provinda d a sarça ardente, a voz d e Deus


que o impelia à oração. Quantas dificuldades não encontrou !
A princípio, a · fim de libertar seu povo da servidão, foi necessá­
ria a intervenção milagrosa de Deus, castigando os perseguidores com
as "dez pragas", afogando seus exércitos nas ondas do mar Vermelho
que sôbre êles se fechou. Em seguida, para enfrentar as incompre­
ensões, os egoísmos e baixas paixões, - todos os atrativos, enfim,
da matéria, - que impelem a nação eleita a revoltar-se, lançando-a,
na primeira ausência do chefe, à idolatria. Pouco importa ! Pela sua
férrea vontade e gênio, e com o auxílio de Deus, Moisés imporá a
êsse povo "de pescoço duro" a verdade que no Sinai recebera. "As
Tábuas da Lei", os "Dez Mandamentos", eis as bases da moral que
a testemunha de Deus dá a seu povo e, além dêle, à tôda a huma­
nidade. E, se forem precisos quarenta anos para que êste povo as
-admita, lá estará o deserto para oferecer a essa prova o quadro
apropriado.
Quarenta anos, portanto, decorreram. Morrem os adultos e o
próprio Moisés que, por uma só vez ter duvidado de Deus e do seu
poder, não verá o coroamento d e sua obra.
Dessa horda, porém, de fugitivos, fêz uma nação, e lhe deu, fun­
dada sôbre os Dez Mandamentos, uma constituição que, através dos
séculos, vai sobreviver. A segunda época espiritual foi ultrapassada.
"Deus único" h avia proclamado Abraão; "Deus e a Lei" completou
Moisés.

Os JuízEs E os REIS

Eis-nos em plena história, história, é v erdad e, ainda bem pró­


xima da crônica popular, e que, ao mesmo tempo, é prenhe de signi­
ficação. Israel, desde então, acha-se em face da terra que Deus lhe
designara, como devendo ser a do cumprimento de seus destinos.
Cumpre, primeiramente, ocup á-la, e, em seguida, quando es ver�
conquistada, nela instalar-se e se o rganizar, isto é, fundar um regune,
porquanto, não se governa uma determina da Nação, transformada em
cultivadora, d a mesma forma que, tribos de pastores nômades. Um
grave probl ema, porém, ap resentar-se-á desde logo : aq�êle que se
-apresenta a todos os homens d esd e que começam a possutr bens, ter-
. ras e riquezas. Na pobreza e vida errante do desertO Deus estava
próximo, e era relativamente fácil a fidelidade. Sê-lo-ia igualmente.
72 QUE É A BÍBLIA ?
------

quando ouro e negonos tivessem exercido sua influência perniciosa


sôbre a alma de Israel ? Não abandonaria, então, Deus o seu povo ?
Tal é o grandioso debate que se prolonga pelos seis livros, de
aparência puramente histórica, designados pelos títulos de Josué, Juí­
zes, Samuel ( dois livros que na realidade não deveriam formar senão
um ) , e Reis ( dois l ivros que igualmente se completam ) . Josué, su­
cessor de Moisés, ajudado pelo Todo-Poderoso, lança o povo eleito
à conquista da Terra da Promissão. Foi árdua a conquista, a des­
peito das circunstâncias históricas favoráveis, mas logrou êxito, e a
Nação de Israel passou a ser dona de seus destinos. Quando amea­
ças surgiram sôbre as indecisas fronteiras em que se instalaram as
doze tribos ou, ainda, sôbre as dessa parte interior que é a religião,
Deus suscitará um arauto, porta-espada e porta-voz : o "Juiz" que
comandará na batalha ou reinará na paz. História fracionada, por­
tanto, que acompanha os acontecimentos nos quatro cantos da Pales­
tina, e que deixa ao espí ri to a impressão de um regime instável e
precá rio .
Dois séculos decorridos, sente rudemente o povo a angústia dessa
instabilidade, e a si mesmo pergunta por que, à semelhança de seus
primos, não poderia ter um chefe único, um rei que lhe garantisse a
unidade. Opta por essa solução a Assembléia Nacional, e Saul, que
parecer ter Deus designado para essa função, vai ser consagrado. �.
então, que um problema surge, apresentado por Samuel, o ancião ins­
pirado e sábio, ao qual incumbiria a missão de impor sôbre a fronte,
os ombros e o peito do eleito as sagradas unções. Põe êle em guarda
o seu povo : adotará Israel os usos dos outros povos ? Israel, po rém,
não é um povo como os demais ! A realeza será, talvez, a sua sal­
vação temporal. Mas, e a salvação espiritual ?
Realizou-se, com efeito, a predição de Samuel. Temporalmente,
a despeito das graves crises que ameaçaram a unidade, por ocasião
do advento do rei Davi e, depois, durante o reinado do seu fil ho
Sal ?mão, foi o sucesso. Moralmente, foi em breve a opressão. Os
mats fautosos soberanos não são também os que custam ao povo os
maiores sacrifícios ? E, espiritualmente ? Davi, h omem amante de
Deus e cantor místico, desobedeceu gravemente à lei e as mil espo ­
sas de Salomão fàcilmente o arrastaram à infidelidade religiosa.

A glória de Israel e seu sucesso terrestre deveriam então ser pa­


gos pela traição ao ideal, à sua razão de ser? Os Baals e os Astartés
adorados a dois passos d o Templo rutilante do único, não poderiam
deixar de lançar a cólera do Céu sôbre Jerusalém, a Capital pecadora.
O ANTIGO TESTAM ENTO, L IVRO DA PREPARAÇÃO 73

Surgiu o drama. Dividido e m duas partes inimigas, o reino de


Sal omão corre à ruína. A provação vai ensinar aos Israelitas a lição
de Javé, a que traz, lenta e pacientemente, a Justiça, à qual ninguém
escapa: duzentos anos para o reinado do Norte, o que tem Samaria
p or capital; trezentos e cinqüenta anos para o do Sul, de Judá, de
Jerusalém. A traição espiritual agrava-se. Não pensam os reis se­
não em negociar frutuosas alianças com os pagãos, adotando-lhes os
deuses e os abomináveis costumes. Em plena Jerusalém imolam-se
crianças a Baal, como na Fenícia. Paciência ! A cólera de Deus
está em marcha. Os assírios, e depois os soldados de Nabucodono­
sor, são os seus instrumentos. Derrotados, torturados, deportados,
descobrem, afinal, os descendentes de Abraão as suas faltas. "Das
profundezas do abismo, Senhor, clamo até vós ! Senhor, ouvi a mi­
nha queixa ! Que teus ouvidos mantenham-se atentos aos chamados
de minha súplica !"

A M EN SAGE M DOS PROFETAS

Não se manteve, porém, Deus insensível durante êsse longo dra­


ma. Falou, ainda, ao povo pela voz de seus profetas. E a Bíblia nos
transcreve suas palavras em quatro livros; o de Isaías, o de Jeremias,
o de Ezequiel e o que reúne os "doze pequenos profetas" assim cha­
mados, não porque lhes sejam menos importantes as mensagens, mas
pela exigüidade dos textos que as relatam. São diversos, uns dos
outros, êsses porta-vozes d o Altíssimo, quanto às suas origens sociais,
quanto ao estilo e temperamento ; todos, porém, tomados englobada­
mente, têm o mesmo caráter. Investidos por Deus da tarefa sobre­
-humana d e renovar o chamado ao Povo Eleito para a fidelidade,
vão até ao extremo de sua missão sem hesitar, sem temor. Menos
lhes importa a vida que a mensagem a transmitir. São êles, em de­
finitivo, os salvadores da fé, dos princípios e da esperança. "Fontes
de água viva em meio da aridez do deserto, diz dêles Mons. Ricciotti,
homens providenciais cujo ensinamento estimulará a alma a erguer se -

até a terceira escala de sua ascensão espiritual".

Os primeiros são conduzidos à ação na época dos reis. Oséias


e Amós que lutam com tôdas as suas fôrças contra os abusos da
época; Miquéias que, contemporâneo da queda de Samaria, tira de
tal fato as conseqüências, já anunciando, porém, a esperança que
74 QUB É A BÍBLIA ?
------
-------

divisa n o futuro·' Naum que na ruína de Nínive reconhece e aclama


a soberana ação de Deus no mundo; Abdias, enfim, que, em têrmos
de um estreito nacionalismo, exalta a vocação de seu povo.
Isaías, o maior gênio de tôda essa pleiade de videntes, é, no
texto que temos sob seu nome, profundo conhecedor da época de
Achaz, de Ezequias e do exílio na Babilônia, tal duração tendo feito
supor, de longa data, a certos críticos, que a si mesmos perguntaram,
se não houve dois, ou talvez mesmo três, Isaías. Contudo, a despeito
de certa variedade de estilo, há uma unidade substancial no conjunto
do livro, a qual é mantida pela idéia messiânica que, de princípio a
fim, o exa lta, ditando ao profeta suas mais belas expressões. A pro­
messa de salvação que fêz Isaías nos dias de paz, êle a retoma, mais
ardente ainda, nas horas de sofrimento do exílio.
Do texto, e sobretudo da segunda parte, ( desde o capítulo XL)
surge uma imagem, a de Israel regenerada, e pelo Messias conduzida
à salvação.
Jeremias é a testemunh a dolorosa e patética da queda de Jeru­
salém, do desmoronamento temporal de Israel, e êste drama que des­
creve, etapa por etapa, encontra correspondência em sua alma, n a
qual esbatem-se esperança sobre-humana e desespêro humano, e onde
entram em choque o amor universal e o ódio da infidelidade.
Ezequiel, o terceiro dos três "grandes profetas", e também con­
temporâneo do drama, menos se consagra à advertência moral do que
à expressão de uma esperança sobrenatural, por êle formulada em
têrmos empolgantes. Os cadáveres ressuscitarão ! A carne recobrirá
os ossos ressecados ! Assim Israel tornada à vida pela Palavra . . .
Bste gênero apocalíptico, que será tão caro aos escritores judeus reli­
giosos dos últimos tempos, é também o do livro de Daniel, escrito
em outro estilo e, sem dúvida, fruto de pedaços desconexos, onde a
mesma esperança se afirma, não temporal, limitada ao reino de Israel,
?
mas reserva a àqueles que souberem viver segundo a justiça, a espe­
unça do remo de Deus.
Assim desempenham os profetas um duplo papel : proclamadores
da cólera divina antes que se ela realize, mensageiros de esperança
ao abater-se, quando o povo se prostra arrependido. Depois, ao ter­
minar o exílio, quando Israel pôde regressar à pátria, os últimos dêles
conduzem de maneira diversa o bom combate. Ageu, o campeão da
restauração material, o homem que reclama um Templo para o . Se­
nhor; Zacarias insiste, principalmente, sôbre a restauração social e
O ANTIGO TESTAMENTO, LIVRO DA PREPARAÇÃO 75

política; Joel ( 1 ) , tendendo para os fins últimos do homem, exalta


a restauração espiritual e vê na penitência o meio de se manter na
amiz ade de Deus; Malaquias também clama pela reforma interior e
pela exigência da fé. E no livro de Jonas, colocado entre os profe­
tas, porquanto o homem dêsse nome é um vidente da mesma família
de espíritos sutis, e ainda que se trate de simples narrativa, cheia de
maravilhas mas �esprovida de oráculos, ouve-se retinir, qual primeiro
.
éco do umversahsmo _
cnstão, o apêlo a uma Israel investida de mis­
são universal, enviando todos os povos da terra à salvação.

ÜS TEXTOS DE APÓS EXÍLIO

Terminado o exílio, o Povo Eleito, graças à generosidade de Ciro,


pôde reinstalar-se na Palestina. Não é, porém, mais como outrora, e
choram os anciãos. Trabalhos penosos da volta, restauração difícil,
gritos de desolação daqueles que, comparando o presente com o pas­
sado, se lamentam, eis o que se encontra descrito nos primeiros livros
que constituem a última parte - bastante desconexa - do Antigo
Testamento : Esdras e Neemias. Tudo está terminado. Israel não
encontrará mais, e por séculos e séculos, a liberdade política. Vez
por vez, os gregos, os reis herdeiros de Alexandria e os romanos
submetem o Povo Eleito a uma sujeição mais ou menos penosa, se­
gundo o caso.
Quando a tirania, tornando-se intolerável, os Macabeus organi­
zam o levante nacional, narra a Bíblia os seus efeitos em dois livros,
o primeiro estrita e pateticamente histórico, e o segundo, forçoso é
confessar, algo propenso ao estilo edificante.
Não seria apenas necessário relacionar êsses fatos, gloriosos cer­
tamente, mas de alcance limitado ? Algo de mais importante cumpre
fazer. Enquanto os impérios, crescendo ou se esfacelando, preparam,
sem o saber, o mundo em que se vai expandir o Evangelho, a pe­
quena comunidade judaica, fechada dentro de si mesma, apaixonada­
mente ocupada em meditar sôbre o depósito espiritual que sabe ser
a sua única razão de viver, aprofunda suas bases e, ela também , pre­
para - até nas causas profundas de sua recusa, - o mundo em que

�o­
( 1) Difícil é .estabelecer-lhe a data com precisão, pois que os sibios
minicanos da Bíblia de Jerusalém fazem de Joel um contemporlneo de Omas
e de Amós.
76 QUE É A B ÍBLIA ?
-------

vai ser providencialmente possível o duplo mistério da Encarnação e


da Redenção.
:B sob essa luz que necessário se torna considerar êstes textos de
após-exílio a fim de os poder compreender. São êles portadores de
uma mensagem espirituaL Mesmo aquêles que, aparentemente, têm
um caráter episódico. Assim Tobias que expõe - em têrmos ainda
talvez mais simples -, a doutrina da retribuição dos méritos por
Deus; Judite, narração dos tempos cruéis que exaltam a fôrça da fé,
triunfando sôbre as potências humanas; Ester, episódio da vida dos
judeus que ficaram na Pérsia, e que, em outra linguagem, proclama
a mesma lição; Rute, livro original, simples idílio na aparência, mas,
entretanto, carregado dêsses símbolos que Claudel amorosamente re­
produziu; Rute cujos versículos parecem desvendar o horizonte mes­
siânico, e que nossa Bíblia coloca antes do livro de Samuel, pois que
torna conhecidos os antepassados do rei Davi.

Sobretudo, porém, essas elevadas lições espirituais, são os livros


"sapiend ais" que as proporcionam, expandindo-as e elevando-as de
século em século, e chegando a colocá-las em nível pouco inferior
ao do Evangelho. :B o livro dos "Provérbios", esp écie de resumo de
tôdas as experiências ancestrais, cheio de sentenças de que se alimenta
a "sabedoria das nações", é o "Edesiástes", acre e forte, do qual nin­
guém ignora o famoso versículo sôbre a vaidade das vaidades, e que
nos mostra na virtude o segrêdo da felicidade; é obra-prima mística
o "Cântico dos Cânticos", o qual, sob as imagens dásiscas da felici­
dade conjugal, diz a Israel e a tôda a alma humana o esplendor de
sua união com Deus; é o livro de "Jó", outra obra-prima, não de
pura poesia mas também de dialética, que prescruta o coração hu­
mano e o conduz à contemplação serena dos desígnios de Deus e
da sua misericórdia; é o "Eclesiástico", verdadeiro manual de vida
religiosa oferecido a quem deseje descobrir a fé. :B, enfim, o livro
da "Sabedoria", que desvenda a verdadeira vida pelo cumprimento da
vontade eterna, mostrando essa vontade em ação na história. To dos
êstes livros, ao menos em suas redações definitivas, distribuem-se pelo
decurso dos últimos séculos de Israel, antes de Cristo. Surgem no
momento em que a Bíblia se encontra pobre de acontecimentos, como
investidos de um valor de testemunho, relembrando, pelo simples fato
de sua existência, que a verdadeira vida não depende de um ocupante
qualquer, mas que se desenvolve sôbre um plano e tende a uma liber­
dade contra a qual os tiranos da terra não p ossuem armas. As�
anunciam e preparam a mensagem do Cristo.
O ANTIGO TESTAM ENTO, LIVRO DA PREPARAÇÃO 77

Resta o Livro dos "Salmos", colocado na Bíblia entre os livros


sapienciais e poéticos, mas que ocupa um lugar a nenhum outro
igual. Em que época foram difinitivamente escritos êsses cânticos de
louvor e de instauração ? De que fontes, mais ou menos antigas, pro­
cedem as cinco coleções que inspiram a sua compilação? De certo
modo, pouco importa. Do rei Davi até os sábios da comunidade
judaica após o exílio, o que exprimem seus autores é tão belo, tão
puro que a alma eterna do homem aí se encontra. A liturgia de
Israel já os utilizava; a liturgia cristã não conhece orações mais belas,
e a êles confia o melhor dos seus ofícios cotidianos. Brilhantes de
imagens e de símbolos, bafejados por um sôpro imutável, constituem,
ao mesmo tempo, a obra-prima literária de todo o Antigo Testamento
e seu resumo espiritual. A alma de Cristo dêles nutriu-se, e muitas
vêzes seus versículos brotaram-lhe dos lábios. Da Antiga à Nova
Aliança constituem um dos sinais mais tocantes de filiação.
CAPITULO IX

O NOVO TESTAMENTO. LIVRO DA REVELAÇÃO

U M A H ISTÓRIA SURPREENDENTE

Que admirável e prodigiosa história aquela cujos capítulos cons­


tituem o Novo Testamento ! Aparece um homem no seio de Israel,.
longínquo descendente do rei Davi, mas pertencente a família hu­
milde, filho de gente pobre.
Por muito tempo obscuro, artista em madeira de modesta aldeia
da Galiléia, ao atingir os trinta anos, "ergue-se", como o fizeram em
tempos passados muitos profetas, e, percorrendo tôda a Terra Santa,
fala, prega às multidões e suscita um movimento de opinião. Ora,
êste homem é muito mais que um profeta. :n o Messias prometido
pela Escritura; é o Filho do homem, o Filho de Deus. Prova-o, não
somente por milagres, mas pela qualidade sublime de sua doutrina.
Realizam-se nêle, visivelmente, a espectativa de Israel e a esperança
do Mundo. Um modêlo insuperável é proposto à humanidade.
Os chefes religiosos de Israel, entretanto, obscurecidos, ao mesmo
tempo, pela interpretação literal da Revelação antiga, e, talvez, por
interêsses temporais, recusam receber essa nova Revelação. Tido por
falso messias, acusado de impiedade e sacrilégio, Jesus de Nazaré é
prêso, condenado, executado no mais infamante e cruel dos suplícios.
Será isto o fim dessa aventura lamentável, que tanto se assemelha a
de outros pseudo-messias de que era pródiga a época ? Não. !�
vencido d e repente triunfa, - e numerosos testemunhos disto fazem
fé, - no terceiro dia após a crucificação seu túmulo foi encontrado
vazio, e, perto de seis semanas em seguida, o ressuscitado aparece a
um ou outro de seus fiéis. Ao desaparecer, em manifestação supre­
ma de poder e de glória, os que o haviam seguido e que sua apa·
80 QUE É A BÍBLIA ?

rente derrota havia dispersado como ratos medrosos, retomaram co­


ragem e confiança. Doravante êles vão crer e clamar ao !-.fundo que
a vítima do Calvário era, autênticamcnte, Messias e Filho de Deus.
Põem-se, então, ao trabalho os primeiros discípulos de Cristo, e
sua história, tal qual é vista decorrer, é quase tão admirável como
a do l\festre. Como irá transformar-se em árvore esta semente mi­
núscula ? Como esta seita de pobres judeus e pescadores galileus irá,
em menos de três séculos, impor-se ao mundo, penetrar em todo o
imenso império romano, substituir pela sua concepção da vida a do
paganismo antigo ?
Esta Revelação da Cruz é também um mistério. O Novo Testa­
mento a descreve, apresentando os Apóstolos na obra de proselitismo,
que denominam evangelização, e que vai permitir aos grãos semeados
por Jesus produzirem colheitas p rodigiosas. Nova Sociedade é cons­
truída sôbre as bases estabelecicfas pelo Crucificado do Gólgota, pre­
figuração dessa cidade de Justiça que o último texto do Livro designa
· para o Fim dos Tempos.
Esta história sublime é descrita em uma série de pequenos tra­
balhos, bem diversos no tom, mas cheios de extraordinária riqueza.
São tão puros os primeiros, tão cristalinos que o próprio Renan diz,
a respeito do seu conjunto, que é "o mais belo livro que existe".
Outro é a narração viva, apaixonante, espécie de romance de aven­
turas, o do início da conquista do mundo pela Cruz. Outros, ainda,
são textos doutrinários, oriundos das circunstâncias, mas fulgurantes
de claridades novas que penetram até as trevas da alma e a forçam
a erguer-se para a luz. O último, enfim, é um apocalípse, semelhante
na forma aos que, numerosos, Israel concebeu nos últimos séculos, mas
cujas chaves são tôdas cristãs. "Evangelhos", "Atos dos Apóstolos",
" Epístolas , "Apocalípse"
" . Nestas vinte e sete obras de dimensões
mínimas exprime-se mensagem tão nova, tão rica e inexgotável que,
em vinte séculos, nada perdeu de irradiação e atualidade.

EVANGELHO, BoA NOVA

O Cristo, Deus vivo, é, portanto, o único obj eto e o verdadeiro


autor de todo o Novo Testamento. Os diversos textos dêste Testa·
mento não fazem mais que contar-lhe a vida, a mensagem e sua ma­
nifestação em relação à Igreja, depois da morte. � constituída a pri­ ·

meira parte pelo "Evangelho" a "Boa Nova", em grego, que o arauto


O NOVO TESTAM ENTO. LIVRO DA REVELAÇÃO 81

corria a levar quando a vitória sorrira às armas. Evangelizar era


procl amar essa boa nova, ato que comportava um sentido venerável e
solene, um acento religioso. Qual poderia ser para os homens de
Is rael esta boa nova? Aquela mesma que, desde dois milênios,
enchia de esperanças o peito dos fiéis : o Messias chegou, o Reino
de Deus foi estabelecido e a humanidade ia viver debaixo de sua lei.
O Evangelho, em substância, não diz outra cousa: Jesus de Nazaré
é bem o Messias esperado, e o êrro criminoso que o condenou à morte
não poderia prevalecer contra esta certeza. Tudo o mais é apenas
a conseqüência lógica desta afirmação. O Evangelho é, portanto, ao
mesmo tempo, a narração da vida de Jesus, de sua morte e ressurrei­
ção, e a apresentação da mensagem que trouxe ao mundo. São idên­
ticos os dois objetivos.
Lá está o Cristo, presente, umco modêlo. :e tlle declarado, e a
si mesmo se declara, ao mesmo tempo, homem e Deus. Verdadeiro
homem, assume tôdas as realidades da vida sôbre a terra, - o mal de
que, milagrosamente, estava preservado, não constitui realidade posi­
tiva, mas uma ausência. Estas realidades, íUe as santificou e divinizou
pelo exemplo de sua vida e morte sublimes. O divino é em tôda a
parte sensível, no Evangelho, qual constante afloramento, transparência
que não atinge a humanidade real, tão sensível também, do homem·
Deus. Unido a todos os homens, seus irmãos, arrasta-os o Cristo com
llle para o domínio sobrenatural, onde o homem é melhor que o ho­
mem, assim lavado de suas faltas, redimido. Verdadeiro Deus, tudo
cumpriu divinamente, assegurando assim a regeneração dessa natureza
de carne e de miséria de que se quis revestir, a fim de dar à condi­
ção mortal do homem a elevação religiosa definitiva.
Tudo quanto no Antigo Testamento não passava de sinal, em
espectativa e promessa, acha-se aqui realizado. O Evangelho é o
ponto terminal de tôda a Revelação.

Os TRb EVANGELHOS "SINÓPTICOS"

Não há mais que um Evangelho. A Boa Nova que é o próprio


Jesus, e que :ele a trouxe ao Mundo, ei-la perfeitamente transmitida
de forma definitiva, que livros diferentes podem diferentemente expri·
mir, mas que, substancialmente, é única. Santo Irineu muito justamente
fala do "Evangelho tetramorfo", isto é, do Evangelho único sob quatro
formas. Desde o fim do II.ç século, como Clemente de Alexandria
82 QUE É A BÍBLIA I

e o Cânon de Muratori, dir-se-á, - umco modo exato de diz er, -


evangelhos "segundo" São Mateus, "segundo" São Marcos, "segundo "
São Lucas, "segundo" São João, a fim d e bem assinalar que se tra ta
de um dado único, comunicado aos homens segundo manifestações
diversas.
Por que não tentou a Igreja, no momento em que tomou cons­
ciência da importância dêsses textos, reduzi-los à unidade, fundin­
do-os em um só ?
Houve de fato tentativas nesse sentido, das quais a do historia­
dor Eusébio e, ainda, a de Taciano, discípulo de São Justino, con­
duzida com extrema habilidade, tendo conseguido vivo sucesso. A
Igrej a, porém, não as sancionou. Sabia ela, sem dúvida, com o senso
maravilhoso das realidades, que as pequenas diferenças entre os tex­
tos, bem longe de lhes prejudicar a credibilidade, a reforçavam. E,
sobretudo, no profundo respeito que guardava pela tradição, não j ul­
gou ter o direito de retocar os documentos emanados diretamente das
primeiras testemunhas. '
As semelhanças são, sobretudo, marcantes entre os três primeiros
evangelistas, Mateus, Marcos e Lucas, tão marcantes mesmo que mui­
tas partes dos seus textos podem ser superpostas, como se fôra para
lê-Ias de um só olhar : em grego "synopsis", donde o qualificativo de
"sinópticos" que lhes é dado ( 1 ) . Têm êles em comum 350 ver­
sículos, isto é, uma têrça parte de São Mateus ( 1070) ou de São
Lucas ( 1 1 5 1 ) e mais da metade de São Marcos (677 ) .
Verificam-se, entretanto, d e um para outro, omissões, adições e
diferenças. Assim, ignora São Marcos tudo quanto se refere à infân­
cia de Cristo e omite o discurso da Montanha; São Mateus não se
refere à Ascensão; São Lucas, ao contrário, sôbre o nascimento mira­
culoso de Jesus e seus primeiros anos, é o único a conhecer certas
minúcias preciosas que São Mateus, outro narrador da infância de
Cristo, ignora. A maior parte das dissemelhanças apenas diz respeito
à forma, parecendo, entretanto, por vêzes, bastante graves. Em São
Mateus e São Lucas, por exemplo, Jesus, dirigindo-se aos apóstolos
que partem em missão, diz-lhes que nada levem com êles, nem saco
para o caminho, nem duas túnicas, nem calçado, "nem bastão", en­
quanto que, em São Marcos, recomenda-se-lhes que nada levem "a não
ser, sómente, um bastão". Provam, sobretudo, tais divergências que
os Evangelistas não copiaram simplesmente uns dos outros o que es-

( 1) Ver DO fim do presente livro exemplos de concordâncias.


O NOVO TESTAMENTO. LIVRO DA REVELAÇÃO 83

creveram. Quanto às semelhanças, provêm das condições em que os


"sinópticos" redigiram seus livros, utilizando, provàvelmente, fontes
idên ticas, ou, por vêzes, estudando os livros já escritos, acrescentan­
do-lhes elementos de documentação pessoal.
Diferentes quanto às intenções para que foram escritos e quanto
ao talento dos autores, simples crônicas com acentos populares, ou
então livros históricos, seriamente elaborados, os três sinópticos dão,
entretanto, uma impressção de unidade. De acôrdo com o plano que
devia ser o da catequese oral primitiva, - pregação de São João
Batista e batismo de Cristo, ministério de Jesus na Galiléia, passa­
gem pela Judéia até Jerusalém, paixão, morte e ressurreição, - re­
tratam a vida externa do Senhor, reproduzem-lhe as palavras tais como
os ouvintes puderam anotá-las, e fixam-lhe, com um senso de exati­
dão espantoso, as atitudes, não se preocupando, evidentemente, nem
com ordem sábia ou comentários teológicos. B, assim, em três par­
tes, ao mesmo tempo concordantes e dissemelhantes, o memorial de
Cristo.

0 GRUPO "JOANINO"

Bem diverso é o quarto evangelho, aquêle que, na velhice, com­


pôs o discípulo preferido do Cristo, aquêle que fôra o benjamin do
grupo dos doze fiéis, "São João". As diferenças de fundo e de for­
ma foram notadas desde o início. O fim que tem em vista o autor
está claramente indicado no fim do seu livro (XX. 31 ) . Quer êle
demonstrar que Jesus é bem o Cristo, Filho de Deus, a fim de que
todos quantos o lerem tenham fé nale, e assim obtenham a salvação.
O objetivo é, portanto, apalogético e teológico. Não quer isto dizer,
contudo, que não mantenha um contato muito íntimo entre aquêle
que é o primeiro a denominar "O Verbo Encarnado" e as circuns­
tâncias em que se d esdobra a vida de Jesus. Bem ao contrário !
Escrevendo em época na qual os três sinópticos já eram de leitura
corrente, e supondo conhecido o que transmitiam, forneceu dados
esquecidos por Mateus, Marcos e Lucas. Raramente coincide com
êles ( 1 ) mas os completa com muita felicidade. B graças a êle que
conhecemos a duração da vida pública de Jesus, a data certa de sua
morte e muitas circunstâncias da paixão. No fundo, porém, não é
êste trabalho de documentação que desperta o maior interêsse. Os

( 1 ) Ver à última parte do "Quadro de Concordlncia" (pq. l U). exem­


plo bastante raro de "sinópse quãdrupla".
84 QUE É A BÍBLIA ?

fatos, sim, mas através dêles a significação sobrenatural, as lições es­


pirituais que contém. "No cornêço era o Verbo, e o Verbo estava em
Deus, e o Verbo era Deus . . . " � bastante ler o primeiro capítulo
dêste livro, essa página sublime que os católicos, muitas vêzes, ouvem
distraídos no final de cada missa, para sentir que o inspirado que o
escreveu pairava bem alto em amplo vôo. O quarto evangelho é u m
testemunho místico, o documento de uma alma vivificada e m Deus.
A êste texto fundamental, une o cânon do Novo Testamento, sob
a mesma assinatura, outros quatro livros. Três cartas, três "epístolas",
escritas, provàvelmente, depois do Evangelho. A primeira endereçada,
sem dúvida, a um grupo de igrejas asiáticas; a segunda a uma "dama
eleita" (que é talvez uma igreja também) ; a terceira a um fiel, cha­
mado Gaius. Textos curtos mas emocionantes. De �feso, em que
se sente exilado, o velho Apóstolo fala aos amigos distantes, em
voz, que se diria encanecida e baixa, cheia de afeto. Suplica-lhes,
em tom pungente de amor e caridade, que vivam em união com o
Cristo no horror ao pecado. São João é por isto o primeiro teó­
logo da "graça santificante", e aquêle, talvez, cuja simplicidade mais
comove.
Quanto ao "Apocalipse" que São João escreveu entre 92-96, du­
rante sua deportação na ilha de Patrnos, vítima da perseguição do
imperador Domiciano, êste livro misterioso e vibrante de palavras, e
cintilante de luzes e sombras alternadas, lança ao céu os protestos
e os clamores de esperança da cristandade ameaçada. Através de suas
fulgurantes imagens, é todo o destino que descreve, a curva futura
de sua história que é traçada, destino pessoal e história que têm por
último objetivo o final dos Tempos e a volta de Cristo glorioso,
corno as últimas palavras do seu texto o chamam : "Vin de, Senhor
Jesus, vinde !" Ao mesmo tempo dava testemunho da convicção ime­
diata que sustentava os fiéis dos primeiros tempos : a volta do Filho
do homem estaria próxima e da Esperança eterna que encoraja a
alma cristã de todos os tempos.

Ü GRUPO "PAULINIANO"

Eis outra figura, bem diversa da do discípulo amado, e igual­


mente fascinante : a de "São Paulo". Não pertence ao grupo dos
Doze, como João ou Mateus. No início de sua vida foi mesmo dis·
dpulo dos Fariseus, inimigo do nome cristão. Foi preciso que o
O NOVO TESTAMENTO. LIVRO DA REVELAÇÃO 85

Senhor o chamasse a seu serviço, em uma cena misteriosa, à maneira


de drama e êxtase, no caminho de Damasco, ao ardor do sol de
chumbo do meio-dia. Logo, porém, que foi vencido pela Luz, Saul,
transformado em Paulo, lançou-se de corpo e alma ao serviço do
Deus que o prostrara. Foi então apóstolo, e apóstolo autêntico, pela
qualidade insigne de seu proselitismo, pelo zêlo infatigável, pela co­
ragem e o sangue derramado.
O Novo Testamento, torna-o conhecido por duas maneiras. Por
um lado, é êle que ocupa o primeiro lugar no livro dos "Atos dos
Apóstolos", último dos livros históricos da Bíblia, e um dos mais
empolgantes. Escrito por um contemporâneo, perfeitamente infor­
mado, que outro não é senão São Lucas, êsse médico grego tão culto
que fôra companheiro de Paulo durante suas viagens, o mesmo Lucas
que escrevera o terceiro Evangelho, é a narração, misto de crônica e
de jornal, da grande aventura empreendida pelos primeiros cristãos
na época em que, bem pouco numerosos, iam levar ao mundo pagão
a mensagem de que eram depositários. Documentos preciosos sôbre
essa época contêm seus escritos. Lucas é, ao mesmo tempo, espírito
curioso, excelente observador e temperamento sensível. Sem êle, que
saberíamos nós das razões espirituais que determinaram a fidelidade
das primeiras testemunhas ao Mestre crucificado ? Que conheceríamos
dessa comunidade de Jerusalém que foi o abrigo em que a princípio
se enceleirou o grão da Verdade ?
Que poderíamos dizer dos problemas que se apresentavam a essa
Igreja primitiva ? Como escreveríamos a biografia do Príncipe dos
Missionários, do Apóstolo dos Gentios, dêsse São Paulo que tantos
capítulos dos Atos nos mostram em ação ? Sem dúvida essa obra de
um discípulo, que não desfrutara do convívio direto com o Senhor,
não possui o brilho "doce e terrível" dos evangelhos, pois o Cristo
não está mais presente, vivendo e falando em palavras divinas. íste
livro, porém, cintilante e arrebatador, acha-se, todo êle, impregnado
de uma fé admirável. Os cristãos que, por muito tempo, o negligen­
ciaram, a êle voltam nas ocasiões em que, como naquelas em que
seus episódios se processam, tudo se resume em uma e:'!:igência de
fidelidade.
Dêsse Paulo, que Lucas nos Atos nos mostra no desempenho
de sua missão, o Novo Testamento apresenta-nos quator.ze cartas ou
"epístolas", que contêm talvez, os textos mais profundos de tôda a
Bíblia. Escreveu-as o Apóstolo no decurso de longas viagens pela
Galiléia, Palestina, Grécia ou Roma, em liberdade ou encarcerado.
86 QUE É A BÍBLIA ?

Algumas, digiriu-as a igrejas ou grupos de igrejas, o que explica te­


nham elas certa feição de encíclicas, e outras a particulares, fiéis e
amigos. Jorra, porém, de tôdas um ensino iluminador do espírito.
Não constituem tratados de teologia, frios e tediosos como tantos
outros, mas a ciência de Deus tornada ciência da vida e da morte,
método de conhecimento e suprema revelação. Não há assuntos que
interessem à Igreja de todos os tempos que não encontrem, nesses
quatorze textos, a resposta ou, em todo caso, os dados fundamentais
de uma resposta. E que estilo maravilhoso! Brilhante, cheio de ful­
gor, rico de fórmulas inesquecíveis ! "Morte, onde está tua vitória?
Morte, onde se acha teu aguilhão ? O aguilhão da morte é o pe.ca­
do . . . " (I Cor. XV. 55). Quem compreendeu o sentido d e tais pa­
lavras e de muitas outras, muito avançou no supremo conhecimento.
Gigante que transforma a face do mundo, gênio que tira do ensi­
namento de Cristo tudo quanto n1He se ocultava, Paulo surge qual
homem providencial, graças ao qual o cristianismo pôde tornar-se a
doutrina destinada a vencer o mundo. E da epístola aos romanos,
das duas aos Coríntios, extraíram os cristãos de todos os tempos um
ensinamento tão rico, tão eternamente atual que vinte séculos não
lhe esgotaram os tesouros.

As EPÍSTOLAS "CATÓLICAS". A IGREJA GUARDIÃ DO DEPÓSITO

Haviam, ainda, outros discípulos escrito cartas dignas de atenção,


quer pela substância espiritual, quer pela profundeza da doutrina que
revelavam. Bem cêdo, como acontecia às epístolas de Paulo, o hábito
firmou-se de serem transmitidos, de comunidade em comunidade, êsses
preciosos documentos. A Igreja incluiu algumas no ·cânon do Nova
Testamento; são as chamadas "epístolas católicas". .n uma a de São
Tiago, - seria a de Tiago, filho de Zebedeu, irmão de São João, ou
de Tiago, filho de Alfeu, que um e outro faziam parte dos Doze, ou,
ainda, de Tiago, "irmão do Senhor", isto é, seu primo, que foi o
primeiro bispo de Jerusalém? ( • ) - breve escrito, vivo e pitoresco,
bem aproximado dos textos sapienciais do Antigo Testamento, que
chama a atenção para o dever de todos os crentes de praticar a reli·
gião e de unir as obras à fé. Duas outras trazem a assinatura in·
sígne de São Pedro, príncipe dos Apóstolos, e que se assinalam pela

· (1) O qual. segundo formal tradição é o mesmo que Tiago, filho de


Alfeu, comumence chamado São Tiago, o demente.
O NOVO TESTAMENTO. LIVRO DA REVELAÇÃO 87

fôrça de expressão, pela veemência, e de igual intensidade e sobrie­


dade. Sente-se-lhes a plenitude da maj estade apostólica. Dirige-se uma,
de modo especial, aos crentes que passaram ou deverão passar pelo
fogo da provação; a outra constitui exortação patética à prática das
virtudes que permitem ao homem acercar-se, sem mêdo, da morte,
pela certeza da misericórdia. Quanto à pequena epístola de São Judas,
escrita sem dúvida, por êsse Judas, "irmão do Senhor", ao qual se
refere o Evangelho segundo São Marcos ( Me. VI. 3 ) , mas que não é,
forçosamente, o Judas, chamado Tadeu, que figura no número dos
Doze, é um requisitório, semelhante ao da segunda epístola de São
Pedro, contra aquêles que, entre os cristãos, se conduzem mal, "trans­
formando a graça de Deus em devassidão", assim retardando a vitória
da fé. Através dêstes textos sente-se viver a Igreja com os os seus
problemas, dificuldades e crises, que não são bem diversas das que
nós conhecemos.
Com as últimas linhas das Epístolas e os últimos gritos de apêlo
<lo Apocalipse, termina o Livro. Foi transmitida tôda a mensagem;
completada a Revelação. Importante é, porém, e certamente intencio­
nal, que tôda a segunda parte do Novo Testamento tenha demonstrado
formalmente pelos fatos, ou analogicamente, s egundo os símbolos, a
Sociedade nascida do Cristo, instalada, constituída, legitimamente in­
vestida da guarda do depósito Sagrado. Garantia da verdade do texto
sagrado, única autorizada a explicá-lo, de acôrdo com as luzes sobre­
naturais que o Espírito Santo fês descer sôbre seus primeiros chefes,
no dia de Pentecostes, a Igreja, em seu mistério, prolonga o mis­
tério da Escritura. Tal é o sentido profundo do que ela entende
por Tradição.
CAPITULO X

O "MOINHO MíSTICO" E OS SENTIDOS DA BíBLIA

Do ANTIGO Ao Novo TESTAMENTO

Compreender a Bíblia, tal é o problema que se apresenta a quem


quer que aborde êste volumoso livro, compacto, complexo, de voca­
bulário tantas vêzes surpreendente, de ressonâncias misteriosas, e onde
o leitor menos avisado pressente, sob o envólucro das palavras, a seiva
de uma intenção sobrenatural. Cada um de nós é algo semelhante
àquele alto funcionário da rainha da Etiópia, de que fala o oitavo
capítulo dos "Atos dos Apóstolos" e a quem o diácono Felipe per­
gunta : "Entendes o que lês ?", e que, modestamente confessou : "Como
seria eu capaz, se alguém me não guiasse ?" A Tradição responde a
êste anseio. � graças a ela que a Igreja fornece resposta às inúme­
ras perguntas que se despertam no espírito de quem aborda o texto
sagrado.
Para cristãos que lêem a Bíblia, a primeira questão que se apre­
senta é a das relações entre o Novo Testamento, sôbre o qual se
apoia a fé, e o Antigo que, à primeira vista, permitido é confessar,
o desorienta.
Que relação existe entre o preceito mosaico : "ôlho por ôlho, dente
por dente", e o mandamento sublime de Jesus : "A quem bater-te na
face direita, estende-lhe a esquerda. Faze o bem a quem te perse­
guir, e ora por teus inimigos ?" Parece haver uma oposição irredu­
tível entre a Bíblia judaica - sobretudo nas partes antigas, - e a
Bíblia do Critso.
Tal diversidade se não poderia compreender senão na concepçio
a que por diversas vêzes fizemos referência, de um plano divino, de
uma revelação progressiva, de lenta mas irresistível ascensão da alma
90
------
QUE É A BÍBLIA ?

de Israel para a Luz. � bem verdade que, de um a outro Testa­


mento, há uma diferença de plano. Não assinalou o próprio Jesus
esta divergência quando, no festim sagrado da Quinta-feira Santa,
exclamou : "Isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança", pro­
vando que a antiga fôra ultrapassada ?" E São Paulo, escrevendo a
seus amigos de Corinto (11. Cor. 111. 14) assim opõe ao Antigo Tes­
tamento a verdade plena do Novo.
Seria, contudo, êrro acreditar que as duas partes da Bíblia estão
simplesmente justapostas e sem laços que as unam. A Igreja, ins­
crevendo os livros do Antigo Testamento no Cânon das Escrituras
sagradas, opõe-se a esta concepção. Afirma, ao contrário, que, de
uma a outra parte, há uma relação certa e necessária. Em muitas
obras de arte da Idade Média, em um vitral de Chartres, por exem­
plo, vêem-se os quatro grandes profetas, carregando aos ombros os
quatro evangelistas. Imagem exata, pois que o Novo Testamento
tem por base o Antigo.
Vejamos, em primeiro lugar, o aspecto formal. O estilo, em geral,
dos Evangelhos, das Epístolas e do Apocalípse, é êle diferente daquele
que a Bíblia judaica emprega ? O mesmo jôgo complexo de ritmos,
de repetições e obliterações foi nêle assinalado, e que se distingue nos
velhos textos, sendo também dependente do "estilo oral". As frases
alternadas de bênçãos e maldições do Sermão da Montanha são aná­
logas às do Gênesis ou dos profetas. As parábolas, tão usuais nos
lábios de Jesus, estão na mesma linha dos "Midrashim" de Israel.
Além disto, é bastante ler os evangelhos para verificar que a
Sagrada Escritura tem na vida e n o pensamento de Jesus lugar con­
siderável. Alimentou-se dêsse tesouro sagrado de seu povo, desde
a juventude, e foi na Lei e nos Profetas que aprendeu a ler. � bem
certo que aí encontra, mais que a alma de sua raça, a obra de seu
Pai e sua mensagem. � importante, porém, que seja nutrido dêsses
trechos e que, sem cessar, a êles se refira em citações e alusões. E
i sto não é sõmente verdade em relação a Cristo. Asim, por exem­
plo, o canto sublime do "magnificat" que brotou do íntimo d'alma
da pequena judia, a piedosa Maria, é, de princípio a fim, constituído
de alusões e referências bíblicas. E que dizer de São Paulo? Jamais
o antigo aluno dos doutos fariseus esqueceu-se dos textos inspirados
da antiga Israel, aos quais tantas horas de estudo havia consagrado,
e de que seu pensamento e espírito se impregnaram.
O Novo Testamento, na ordem da revelação religiosa, parece
mesmo ser o prol ongamento do Antigo Não disse Jesus que não
.
O " M OINHO M ÍSTICO" E OS SENTIDOS DA BÍBLIA 91

viera para abolir, mas para completar a Lei, a Torah venerad a ? . E


não prende, diretamente, os seus ensinamentos à mais antiga tradição
do povo, para o qual o primeiro mandamento era "Amar a Deus
sôbre tôdas as cousas" ? O segundo mandamento, do qual o Evan­
gelho diz que é "igual ao primeiro", - "amar ao próximo como a
si mesmo", - não era de modo algum ignorado pelos hebreus, pois
que o "Levítico" ( XIX. 17-18) j á lhos havia ensinado. Jesus nada
mais fêz que dar o verdadeiro sentido e seu alcance universal a uma
fórmula que muitos judeus entendiam ser limitada à sua nacionali­
dade. As esperanças messiânicas do Povo Eleito, assim como a ex­
pectativa da vinda do Salvador, foram esposadas por Jesus, que as
despojou, igualmente, do caráter nacionalista e temporal, a fim de
lhes imprimir um sentido sobrenatural. Se melhor os cristãos conhe­
cessem o Antigo Testamento, saberiam que o Deus que, então, se
lhes revela, é aquêle que adoram, aquêle que tanto ama os homens,
que são terríveis as exigências dêsse amor, aquêle que exige que ob­
tenhamos a salvação "no temor e no tremor", - assim disse São
Paulo ( Fil. 11. 1 2 ) , como o Livro de Tobias (XIII. 6) - mas que
é também, no Antigo como no Novo Testamento, o bom Pastor
(Gen. XLVIII. 1 5, XLIX. 24; Isaías LVIII. 1 1-14; Miquéias VII. 14-15
e em tantas outras passagens ) , o Pai atento e misericordioso.

Do SINAL À REALIZAÇÃO

Se não há quebra e separação entre o Antigo e o Novo Testa·


mento é, entretanto, necessário compreender como, de um para outro,
opera-se a passagem. Já tivemos ensejo de dizer que o próprio Cristo
havia assinalado que um patamar havia sido galgado. :a êste patamar
o do cumprimento e da elucidação. "Se o Novo Testamento está
contido no Antigo, dizia Santo Agostinho, é agora pelo Novo que
o Antigo toma sentido".
"Quod Moyses velat, Christi doctrina revelat", escreverá Suger,
abade de Saint-Denis' sábio ministro dos reis de França, Lu1z VI.•

e Luiz VII.9,
Fórmula mais ou menos semelhante encontra-se em uma estátua
de São Paulo, em Saint-Trophime d' Arles: "A Lei de Mo�s� oculta
o que o ensinamento de Paulo revela. Os grãos, dados no S10a1, trans­
formaram-se em farinha, graças ao Apóstolo".
92 QUE É A BÍBLIA ?

Daí decorre a razão do "Moinho Místico" que os escultores


romanos e góticos compraziam-se em representar, e que também se
encontra, por exemplo, em um capitel de Vezelay.
Assim, de uma parte à outra da Bíblia, há ainda mais que uma
diversidade de clima, bem evidente, que se prende ao espírito de
amor, de que é banhado todo o ensinamento de Jesus a irradiar-se
de sua pessoa, espírito de amor tão oposto ao espírito judaico; há
a certeza de um complemento, de uma realização. A revelação de
Israel, por maior que fôsse, era incompleta, e a de Cristo a conclui.
Nada, porém, poder-se-á compreender da Bíblia se fôr esqueci­
do que êste último acabamento existia em promessa e pressentimento
na alma inspirada de um povo nascido de Abraão e que, nos textos
sagrados, pode-se e deve descobri-Ia.
Se é legítimo e necessário servir-se do Antigo Testamento a fim
de interpretar o Novo, mais necessário ainda é considerar a Velha
Aliança em função da Nova. Assim é que os cristãos devem ler a
Bíblia a fim de extrair-lhe tôda a substância. Dêste modo tudo se
esclarece e confirma. O Antigo e o Novo Testamento, em seu duplo
valor, não constituem mais que um só, pelo testemunho, pelo seu
complemento progressivo e o apôio moral que mutuamente se dão,
até o término perfeito e a regeneração do homem em Deus pelo Cristo.
.B o que levava Pascal a dizer : "Para compreender a Escritura é
necessário possuir um sentido pelo qual tôdas as passagens contrárias
põem-se de acôrdo . . . O verdadeiro sentido não é o dos judeus.
Em Jesus Cristo, porém, tôdas as contradições entram em acôrdo".
Assim também a expressão de Claudel : "O Antigo Testamento, poe­
sia lírica ou religiosa, torna-se incompreensível sem essa presença
invisível e futura que o predispõe e orienta, até nas minúcias e nas
mais vagas intonações, criando em tôrno dêle uma espécie de campo
profético. O Antigo Testamento é incompreensível sem o Novo".
Aqui, mais uma vez, se encontra a fórmula pauliniana : "Finis enim
legis, Christus".
.B êste "campo profético" que se torna preciso descobrir, se qui­
sermos compreender verdadeiramente a Bíblia em sua unidade. A
progressão dos fatos e dos ensinamentos, em todo o decorrer do
Livro , é, de algum modo, sustentada por uma fôrça sobrenatural,
que se eleva acima do tempo e explica de antemão o desenrolar da
história : é o "espírito de profecia". .B êle que recobre tôda a Bíblia
do Antigo Testamento e lhe confere a verdadeira significação. Não
O " MOINHO M ÍSTICO" E OS SENTIDOS DA l'!ÍBLIA 93

são apenas essas personagens inspiradas, que se denominam profetas


os seus depositários. Todos os heróis da História Sagrada na medid�
e m c1ue Deus quis dêles servir-se, tiveram êsse privilégi� . Abraão,
que sabia ser o "pai da multidão humana", Jacó, ao abençoar sua
post �r �da ? e, antes de �orrer, e o rei Davi, pressentindo, em salmos
ad m 1ravets, o seu longmquo descendente, são dotados sem a men or
dúvida do espírito profético. Tudo transcorre como se, nas intenções
divin�s, fôsse a Bíblia um i �enso livro preexistente aos fatos que
d everta descrever e ao qual tmham acesso os homens inspirados.
íste espírito de profecia serve de ânimo aos heróis de Deus,
patriarcas, reis e profetas que possuem o privilégio de anunciar o
futuro. Já vimos, seguindo a curva dos destinos de Israel que, antes
de manifestar-se na consciência dos heróis, a intenção e a significa­
ção profética revelam-se nos fatos históricos. O próprio Po vo Eleito,
tomado em conjunto, é uma f igura profética. E ainda, desde o mo­
mento em que dêle é impregnado todo o texto sagrado, êste texto
mesmo deve ser entendido como revelação do futuro que possu i em
germe. No que a Bíblia nos relata, nos própr ios têrmos de que se
serve para o fa zer , resta -nos o dire ito de discern ir o segrêdo que nos
tem a re vel ar.

� êste , e de mo do prec ípuo , o que resume to dos os outros: o


do Cr isto , o Mess ias Sal va dor. Os gran des dados mora is e esp iri­
tuais que o ens inamento de Jesus de via formular de mane ira def in i-.
t iva , não f icaram , na consc iênc ia ilum ina da do Po vo Ele ito , em es­
ta do de abstração . Ha viam-se êles encarnado e se torna do vivos em
um ser cuj a f igura se projetava n o futuro . .íste ser , o Mess ias , ar­
quétipo do homem , mensage iro da vonta de divina , agente sobrena­
tural da Re velação e da Sal vação, conheceu-o Is rael e o carregou em
seu se io. Nisto cons iste sua glória · imorre doura . O dever dos c ris­
tãos , ao lerem a B íbl ia , é, po rtanto , de nela encontrarem , através das
palavras e dos s ímbolos , �sta f igura Santa , da qual depen de a sua
sal vação.

Ora , o Mess ias espera do, - para nós o Cristo, - é, por tô das
parte , anunc ia do n a B íbl ia j u dai ca . E , êle o é, des de o cap . 111 do
Gênes is , êste "proto-e vangelho", - como na bênção de Sem (Gên.
IX . 26-28 ) . Entre viram-no Abraão , Isaac e Jacó nas brumas de lon·
g ínquo p or vir. Pref igura-lhe a glór ia, a glór ia dos Re is. Anunc ia-o
em têrmos incis ivos a mãe de Samuel (1. Sam . 11. 1·10). .S êle, na
ver da de, que os Profetas, propr iamente ditos, desi gnam, como Oséias.
94 QUE É A BÍBLIA ?

Miquéias, Isaías, Jeremias e Ezequiel, e sob todos os seus aspectos,


pois que, em versículos taxativos, anuncia Isaías o homem da dor e
seu sacrifício redentor. � êle que, em sua vitória, cantam os Salmos
(H; LXXVI II; CX) como em sua paixão (XXII; XXXI; LXIX ) .
E quantos fatos do Anti�o Testamento não tomam o verdadeiro se� ­
. ..
tido senão nesta perspectiva ! O Cordetro Pascal que poupa aos ftets
os golpes do anjo da morte, a serpente de bronze da qual só a visão
cura os doentes, o maná que nutre os viandantes do deserto, são
fatos, - além de muitos outros, - que o anunciam .
. Em si, tais fatos podem parecer que não passem de simples contos,
ou mesmo, por vêzes, de costumes vagamente animistas ou totêmicos.
Quando, porém, são interpretados no sentido de anúncio e fi­
gura, como surgem revestidos de misteriosa e inesgotável significação !

Os TRÊs SENTIDOS DA BíBLIA

Compreender a Bíblia não é, portanto, restringir-se à expressão


formal. Uma frase do Livro Sagrado quer sempre dizer algo mais
que as próprias palavras que a compõem. � necessário que seja lido,
não só no plano do sentido concreto, mas como a despertar harmo­
nias, a exprimir verdades mais secretas, revelando por figuras o que
a linguagem humana não consegue exprimir. � êste um dos dados
capitais do ensino da Igreja; é desta convicção também que decorrem
muitos dos aspectos da sua liturgia. Não legitimou êste processo o
próprio Jesus ao falar do "sinal de Jonas", o profeta engulido pelo
monstro marinho, e que lhe permaneceu nas entranhas durante três
dias, tendo sido, em seguida, vomitado, a fim de significar a sua pró­
pria morte, sua permanência no sepulcro e sua ressurreição no ter­
ceiro dia ? � exatamente sob a mesma perspectiva que Maria é exal­
tada pela Igreja, Mãe de Deus feito homem, com as mesmas palavras
que a Bíblia aplica à Sabedoria " criada desde o comêço do mundo e
antes de todos os séculos". Mais longe, ainda, pode-se levar esta
interpretação como fervorosamente o fizeram nos primeiros séculos
os Padres da Igreja, e identificar simbOlicamente o destino do ho­
mem aos fatos cuja sucessão descreve o Antigo Testamento.
Somos nós todos os exilados na terra, qual Israel no Egito. So­
mos nós aquêles a quem a passagem pela água batismal restitui à
vida, como a travessia pelo Mar Vermelho do povo de Moisés o
O " MOINHO M ÍSTICO" E OS SENTIDOS DA BÍBLIA 95

conduziu ao seu destino. Nada se compreenderia da arte em nossas


catedrais senão apelando para essa interpretação da Bíblia pelo sím­
bolo e a imagem. :t, ainda, para êsse esfôrço pelo conhecimento
espiritua l do texto � a�rado . q_ue convidam al��mas das mais impe­
riosas frases da EnClchca D1vmo Afflante Spultu.
� comum dizer-se que a Bíblia comporta três sentidos : literal,
alegórico ou espiritual e acomodatício. As demais designações estão
resumidas nestes três. Fala-se, por vêzes, de sentido típico, moral,
analógico, místico, figurado . . . Certos autores limitam-se à distin­
ção entre os sentidos literal e espiritual, por uma extensão, - dis­
cutível, - do sentido acomodatício. Entre as duas tendências, uma
das quais acentua o sentido literário, enquanto a outra apaixona-se
pelo sentido espiritual, vêm-se por séculos prolongando os debates,
e até mesmo as disputas. Assim como a escola de Antioquia, literal,
opunha-se às concepções alegóricas das escolas de Alexandria, tam­
bém Claudel ergueu-se com veemência contra as idéias literais (do
Padre Lagrange e de seus discípulos da Escola Bíblica (1 ) . Disputa,
em verdade, bastante vã, pois que se bem refletirmos, o sentido es­
piritual não poderia ser oposto ao literal que, objetivamente, o con­
tém. E a exegese mais "espiritual", não poderia ter outra finalidade,
se é válida e não envereda pela improvisação e pela fantasia, senão
desentranhar o alcance profundo de um texto do qual tenha per­
mitido acurado exame ( 2 ) .
Um exemplo permitirá compreender o que é necessário enten­
der pelos três sentidos da Bíblia. Leiamos a passagem de "Números••
(XXI. 9 ) : "Moisés fêz uma serpente de bronze e a colocou sôbre
um poste, e se alguém fôsse mordido, olhava para a serpente e ficava
curado". No "sentido literal", quer isto dizer que, real e historica­
mente, passaram-se os fatos como relatam as palavras. Quando �ão
João dá a entender ( III. 14-15 ) que a serpente representava Cnsto
erguido na cruz, estamos diante de um sentido espiritual ou alegó­
rico. Quando, enfim, Philon de Alexandria escreve que a serpente
representa a volúpia, - que é a serpente de Eva, - e que a alma,
mordida por ela, deve voltar seus olhares para a serpente de Moisés
a fim de recuperar a saúde e a vida, adota o sentido acomodatício.

(1) Ver, por exemplo, "Amo a Blblia".


( 2) O sentido "espiritual ou alegórico" (pouco impo �am os �rmos) , .é •
po�tanto, um sentido que se adiciona ao literal, para �unc1ar, evo�ar um mJs­
térm, um acontecimento da vida de Cristo ou da IgreJa. Tal sentido deve set
pelo N. T. ou pelo consenso, moralmente uninime, dos Padres e da Tndiçio.
96 QUE É A BÍBLIA ?

Para o crtstao, e de modo especial para o católico, alerta do


pelo ensinamento pontifício, o primeiro dever é conhecer e compre­
ender a fundo o sentido literal. Opondo-se aos exaltados, mesmo
geniais como Orígenes, que r�legava o sentido Iite�al para somente
._
apegar-se ao alegórico, a IgreJ a faz prevalecer a op�ntao, segundo a
qual a Sagrada Escritura tem sempre um sentido literal, não nos assis­
tindo jamais o direito de dizer que tal ou tal passagem tem apenas
significação espiritual. "Que os exegetas, diz a encíclica "Divino
Afflante Spiritu", tenham sempre ante os olhos que lhes compete,
antes de tudo, aplicar-se a discernir e determinar o sentido das pa­
lavras bíblicas, que se denomina sentido literal".
1l, porém, evidente que cingir-se a êste sentido é condenar-se a
amputar da Bíblia as mais ricas harmonias. Razão tem Claudel de
profligar em têrmos vibrantes os excessos de uma exegese demasia­
damente "científica". Longe das "magras tetas do sentido literal",
a leitura espiritual fornece um leite mais nutritivo ! 1l aqui que pre­
ciso se toma repetir : estudar a Bíblia como se fôra a Ilíada ou a
Eneida, contar a História Sagrada como a àos Hititas ou a dos Cre­
tenses, é enganar-se radicalmente, a não ser que apenas se pretenda
facilitar o conhecimento profundo do texto. 1l necessário ultr�pas­
sar o conteúdo imediato do Livro Sagrado, elevar-se até o conJunto
do plano divino e, neste sentido, procurar compreender a economia
da Revelação. A êste objetivo conduz, ainda, a iluminada encíclica
de Pio XII, - e com que sabedoria ! - "O exegeta, da mesma forma
que deve pesquisar e expor o sentido literal das palavras, deve tam­
bém expor o sentido espiritual" desde que não haj a dúvida ter sido
êle querido por Deus, porquanto somente Deus pode conhecer êsse
sentido e no-lo revelar".
Esta última frase que destacamos, parece visar diretamente os
excessos de certos exegetas "acomodatícios", entre êles predominando
os ?rientais, mas cujas hipóteses ousadas, verdadeiras acrobacias, por
mutto tempo prejudicaram a leitura proveitosa d a Bíblia. Ver n a
pedra que o jovem Davi lança com a funda contra Golias o anúncio
da "pedra angular" sôbre a qual tropeçarão os inimigos de Cristo,
ou no bastão que empunhava a prefiguração da cruz carregada por
Jesus; ver na fita escarlate suspensa por Hahab nos muros de Jericó,
por ocasião do ataque de Josué, o sinal do sangue derramado por
Cristo no Calvário, são audácias cuja utilidade nem sempre foi de­
monstrada. A exegese acomodatícia pôde oferecer a almas místicas
O " M OINHO MÍSTICO" E OS SENTIDOS DA BÍBLIA 97

elementos de meditação, e alguns dos maiores santos, - São Bernardo


por exemplo, - dela extraíram conceitos altamente espirituais. Não
é menos verdade, porém, que se trata de elementos sobrepostos e
humanos dos quais é necessário usar com prudência.
A encíclica "Divino Afflante" reconhece que tal gênero pode
prestar serviços no uso corrente da pregação, aconselhando, porém,
que a êle se recorra "com moderação e sobriedade".
CAPITULO XI

LIVRO TAMBÉM DO HOMEM

"Os RINS E OS CORAÇÕES"

Empenhar-se em compreender, simultâneamente, os sentidos literal


e espiritual da Bíblia, é, portanto, esforçar-se por penetrar no plano
de Deus. Ao mesmo tempo, porém, é conhecer o homem. A ex­
pressão de Mons. Weber é perfeita e profunda, ao denominar a Bíblia
"Livro do homem e livro de Deus". � através dêsse duplo aspecto
que se torna preciso atingi-lo, segui-lo, meditá-lo. Livro divino que,
entretanto, não é "um livro caído já feito do Céu", mas escrito por
homens à luz sobrenatural do Espírito Santo, é a Bíblia, por isto
mesmo, livro profundamente humano que desperta na alma de quem
dêle se acerca, com tôda a sua inteligência e boa vontade, infinitas
ressonâncias. Quantos prisioneiros em seus cárceres, quantos doentes
em seus sofrimentos e quantos viajantes e missionários perdidos em
longínquos países hostis, encontraram interêsse e consôlo na leitura
dessas páginas ! Lá existe uma fonte inesgotável da qual não cessa
de abeberar�e a humanidade.
Lucidez admirável da Bíblia que se projeta em mil fórmulas, em
desdobramentos fulgurantes, em análises cuja acuidade nenhum psi­
cólogo profissional jamais ultrapassou !
Aquêle de quem se diz que "sonda os rins e os corações", ditando
aos redatores inspirados as páginas do Livro,. comunicou-lhe também
êsse conhecimento total da criatura que é tão somente privilégio do
Criador.
Não são somente os grandes preceitos definitivos do Cristo que
atingem, de um só golpe, as zonas profundas da consciência, onde
não existe escapatória ante a verdade que é justiça, onde tudo que
é do homem revela-se em sua nudez : "Deixar os mortos enterrarem
100 QUE É A BÍBLIA ? ------ ----- ----

os mortos !" "Que aquêle que não tem pecado atire a primeira pe­
dra !" e tantos outros. Nem mesmo, quase tão percucicntes c pene­
trantes como aquelas, as expressões veementes de São Paul � : "O es­
pinho na carne" ou "O homem do pecado" ou, ainda, "este corpo
de morte".
.e também nos livros do Antigo Testamento que se manifesta êste
conhecimento íntimo de nossa natureza, fecundo em sem n úm ero de
lições, e do qual pode-se dizer que tanto, ou talvez mais ainda que
dos filósofos gregos, mestres do "Conhece-te a ti mesmo", decorreu
a literatura psicológica do Ocidente. A sabedoria das nações que
se alimenta do Livro dos "Provérbios", não foi em vão que tornou
"proverbiais" sentenças como estas : "O temor de Deus é o comêço
da sa bedoria", ou "tesouros mal adquiridos não trazem proveitos".
Ao ler com mais atenção todo êste Livro, quantas descobertas
e observações profundas não são feitas ? Os patéticos debates de Jó,
em face dos mistérios da condição humana, não são também os nos­
sos debates ? "Donde vem a Sabedoria ? Qual o papel da inteli­
gência?" "Por que vivem os maus ? Por que envelhecem êles e se
tornam poderosos ?" "Se morre o homem, tornará êle a viver?"
Estas questões, e muitas outras, que eternamente nos atormentam,
são as mesmas que o santo homem de Deus a si mesmo propunha.
E essas exclamações admiráveis de dor e esperança, lançadas pelo Rei
Davi, pecador e arrependido, não são também as nossas na hora em
que a angústia de viver e o desespêro de ser homem, nos sobem do
peito e nos sufocam ? "Senhor, sinto-me atordoado e estou reduzido
a extremo abatimento . . . e miserável eu me arrasto o dia todo . . .
Confesso, entretanto, de coração sincero o meu pecado, porquanto sei
que a causa de minha angústia é a minha iniqüidade . . . Ah ! não
me abandones, Deus meu, e não afastes de mim tua presença. Auxi­
lia-me, Senhor, pois que és a minha salvação".
Conhecimento p rofun do do coração humano, mas também sen­
tido do pecado que dá a tôda análise psicológica a verdadeira di­
mensão e, ao mesmo tempo, sentido da fé e da provação, eis o que
nos oferece a Bíblia, o mais humano dos livros humanos.

BELEZA DA BÍBLIA

.
Hu�an� � ainda o Livro Sagrado, sob outro aspecto, pelas qua­
lidades ltteranas e pela beleza que nos atinge o coração. Já nos
ocupamos da variedade que, em uma unidade fundamental, consegue
LIVRO TAM B É M DO HOM E M 101

justapor os gêneros e renovar o interêsse. Os grandes frescos histó­


ricos da Bíblia, como o ":Bxodo", os "Reis", os "Macabeus", ou os
"Atos dos Apóstolos", cuja objetividade é bem igual à dos cronistas
e historiadores antigos, permanecem apaixonantes a quem os desvenda
e se dá ao mister de os ler de princípio ao fim, não se contentando
com fragmentos contemplados na liturgia e nos pobres resumos que
apresentam muitas das "Histórias Sagradas".
A s narrações mais curtas, nas quais a história toma um sentido
exemplar, os "midrashim" tais como Judite, Jonas, Ester ou Tobias
arrastam tão vivamente o espírito que foi suficiente a escritores mo­
dernos transpô-las e desenvolvê-las para extrair assuntos de obras
literárias.
Quanto à beleza formal, como sobressai de inúmeros pontos, e
também dos mais diferentes modos ! Qual poesia nascida do homem
pôde j amais rivalizar com os enlevos sublimes dos "Salmos", versí­
culos· dos quais disse Lamartine, evocando o tempo em que sua mãe
os lia nos serões : "Eu compreendia que era assim que se devia
falar a Deus".
O delicado frescor da expressão, tão bem associado à violência
ardente dos ensinamentos, que faz o encanto do "Cântico dos Cân­
ticos" foi j amais ultrapassado por um canto de amor humano (por
isto mesmo que não é, somente, um canto de amor humano) . 1t pos·
sível exprimir melhor a admiração que de nós se apossa em face do
esplendor do Mundo criado, do que por aquelas frases em que é
evocada a volta da primavera à Palestina ? - "Eis que finda o in·
verno, cessa a chuva. Da terra surgem flôres; chegou o tempo das
canções. O canto das rôlas ressoa pelas campinas, a figueira des­
ponta em frutos e os vinhedos em flor já espalham seu perfume"
( Cânt. 11. 12 ) . Nem esta maravilha é ultrapassada, nem sua transpa­
rente simplicidade. E também, sob outro aspecto, é possíve l sobre­
pujar em poesia trág ica, evocadora das maiores angústias do homem,
certas passagens de Isaías ou de Ezequiel, e as lamentações de Jere·
mias ? E os maiores visionários, como Dante, Wil li am Blake, Edgard
Poe, Hõlderlin e Novalis, igualaram jamais em intensidade de �vo­
cação as páginas do "Apocalipse", sem o qual, suas obras não tenam,
s em dúvida, existido ?

Sob êste ponto de vista, também trouxe a Bíblia à humanidade


elementos formativos insubstituíveis, sendo sumamente deplorável que,
na educação intelectual da maior parte dos grandes paises civilizados,
102 QUI! É A BÍBLIA ?

não tenha 0 Livro Sagrado importância tão considerável como as lite­


raturas da Grécia e Roma.
Em verdade, e na França de modo especial, não se lhe reserva
em nossos dias senão um lugar irrisório, confinado a lições sumárias
de instrução religiosa elementar, bem depressa esquecidas. Sem re­
legar o concurso d� s letras ant�g� s, o �studo d� �íblia adicionaria à
.
formação dos espírttos dados untcos, tnsubstttutvets.
E por existirem obras no Livro Sagrado em que se operou a sín­
tese entre o espírito grego e a tradição hebraica, a de São Paulo, as
epístolas do grande Apóstolo das Nações, .parecem ser esp�cialmente
designadas para serem propostas como meto dessa formaçao.
O que o estudo literário da Bíblia revela está, contudo, em certo
sentido, além da literatura. A beleza de uma obra literária dimana,
quer da perfeição da forma, perfeitamente adaptada à expressão dos
sentimentos e emoções, - e é o caso das obias-primas ocidentais, -
quer do brilhantismo lírico, do frêmito interior que se traduz em jor­
ros de imagens que arrastam e engrandecem as formas. .e o caso das
obras-primas do Oriente. Na Bíblia, porém, há a lgo mais. A sua
beleza não decorre somente do acôrdo perfeito entre fundo e· forma,
nem da submissão de um a outro. Bem visíveis, ao longo de suas
páginas, existem um reflexo, uma "aura", um sôpro e, em resumo,
uma presença. 1! o Verbo, que existia no comêço de tudo, como de
tudo será o fim, que transparece através dêste texto que ditou, o
Verbo que se fêz carne e tomou um corpo, um cérebro e uma voz
à nossa semelhança. A beleza da Bíblia dá também testemunho da
Encarnação.

"PARA INSTRU ÇÃO NOSSA"

Reconhece-se, portanto, a si mesmo, o homem na Bíblia, e é


grande sua maravilha. E faz mais ainda, porquanto, do texto sa­
grado recebe uma lição sem cessar renovada. Tudo, no livro sagra­
do, diz São Paulo, foi descrito "para nossa instrução" (Rom. XV. 4 ) .
Convém ainda esclarecer o que por isto s e deve entender, e de
que gênero de instrução se trata.
1l preciso saber o que se deve pedir à Bíblia, e o que é absurdo
e vão. "Preocupa-se Deus com os bois ?" diz São Paulo (1. Cor. IX. 9 ) .
Pode esta pergunta assim entender-se : para conhecer a Deus e amá-lo,
não é necessário saber em que classificação animal devem ser incluí­
dos os bovídeos. A ciência, sob tôdas as suas formas, situa-se em
LIVRO TAMBÉM DO HOM E M 10 3

plano diverso do ?a Bíblia. O Livro Sagrado não se propõe, de


modo algum, a mtmstrar. um ensinamento científico, mas sim reli­
gioso. T.odo o esfôrç� intelec� al, que visa pesquisar, por si mesmo,
o c�nhee1mento d � cnado, esta sem �elação alguma com o que a
.
B1bha tem que ensmar-nos. O verdadetro domínio do Livro Sagrado
não é o mundo da matéria, e seu método não é a razão lógica. São
diferentes os planos.
Eis porque são irrisórias tôdas as tentativas que procuram "expli­
car", ou "justificar" cientificamente o texto bíblico, ou a "fazê-lo con­
cordar" com os dados, - aliás transitórios, - da ciência. "O espí·
rito de Deus, diz a encíclica "Divino Afflante Spiritu", o espírito que
falava pela bôca das escritores sagrados, não quis ensinar aos ho­
mens verdades concernentes à constituição íntima dos objetos visíveis,
porque de nada deveriam servir para a sua salvação". Vez por vez,
viram-se ruir os sistemas que julgaram infirmar ou confirmar os tex·
tos quer pela astronomia quer pela geologia, segundo Durkheim, ou
ainda mais recentemente pela pré-história. Algumas destas tentativas
deixaram resíduos nos espíritos. Assim, por exemplo, alguns cristãos
de boa-fé imaginam ainda esforçar-se pela verdade do Livro, assegu·
rando que os "seis dias" da Criação correspondem aos períodos da
evolução darwiniana, à divisão dos tempos geológicos em primitivo,
primário, secundário, e quaternário. Mais próximo de nós, esforços,
também destinados ao fracasso, foram dispendidos a fim de estabe­
lecer relações entre as antigas tradições transmitidas pela Bíblia quanto
às origens e à descoberta dos homens fósseis e das primeiras raças.
Pode-se a isto responder que dificilmente se explicará como o Gênesis
faz do primeiro ferreiro um neto de Caim, quando a idade do ferro
começou, mais ou menos, no tempo de Josué . . . Segundo a notável
expressão de Dom Charlier : "Nenhum conflito e nenhum acôrdo são
possíveis entre as representações concretas da fé e a constatação abs­
trata da técnica".
Não quer isto dizer que se não deve reter da Bíblia lições de
caráter científico. O Livro Sagrado afirma que a Criação não foi
feita "ex nihilo" nem ao acaso; opõe-se a tôda doutrina que sustente
que o real não existe, e que o mundo é qual um sonho, sombra da
caverna platônica. Estabelece como ato de fé a unidade original da
humanidade e, por conseguinte, opõe-se à hipótese do "poligenismo..,
isto é, da aparição simultânea em diversos pontos do globo de vários
casais humanos. .8 sô bre êstes assuntos que incide, atualmente, a
maior parte das discussões a respeito do problema "Bíblia e Ciência'".
104 QUE É A BÍBLIA ?

� bem pouco provável que, para aquela como para outras, a solução
não surja, naturalmente, pela evolução das ciências e amplitude dos
conhecimentos.
A diferença radical de plano e perspectivas não é menos frisante
no que respeita à Bíblia e à filosofia. O que entendemos por ist o
é uma disciplina especial, tendo por fim outra forma de conheci­
mento que o científico, mas igualmente alheio, em si mesmo, à in­
tenção propriamente religiosa, disciplina que, além disto, se apoia
sôbre princípios racionais e inteiramente diversos dos que podiam ter
os escritores inspirados. �. portanto, absurdo interpretar a Bíblia de
acôrdo com os esquemas intelectuais, aos quais nos conduziu a filo­
sofia. Uma interpretação hegeliana do Livro Sagrado é tão vã, -
não mais, porém, - que uma inte rpretaçã o platônica ou bergsoniana.
A filosofia, certamente, em última finalidade, reúne-se à E scri­
tura revelada, pois que não há conhecimento absoluto senão em Deus.
Eis porque desde os primeiros Padres gregos até São Tomás, os pen­
sadores da Igreja tanto se esforça ram a fim de colocar a filosofia
a serviço da religião. Êste acôrdo, porém, entre filosofia e religião
não se coloca ao n ível dos métodos, mas ao da fé e da Sabedoria,
sabedoria que pretende correr atrás da filosofia, mas que em defi­
nitivo depende da Revelação.
E isto é também verdade, em certo sentido, em relação à pró­
pria teologia. Na medida em que também a teo lo gi a constitui uma
técnica, coloca-se fora do quadro da Bíblia. Evidente é que os ins­
pirados que escreveram o texto viviam em clima intelectual, em que
se não vêem traços dos métodos e da classificação d e São Tomás
de Aquino. Não quer isto dizer que entre êstes dois dados haja
divergência e, ainda menos, oposição. Oferece-nos a Escritura Sa­
grada, de certo modo, em estado bruto o que os teólogos, com o
tempo, coordenaram, pensaram e elaboraram. � ela o verdadeiro
fermento de tôda a teologia. �. p orém, mais que todo sistema, por­
quanto, se a teologia é a "ciência de Deus", o conhecimento da
B!blia faz com que penetre o leitor em uma ciência que é vida, exi­
gtndo dêle, mais que uma adesão intelectual, um compromisso, um
ato de fé.
Se !los foi dada a Escritura "para nossa instrução", é, por ser,
em sentJ.do bem claro, sobrenatural, religiosa e nada m ais. Nem me­
nos é isto verdade a respeito de nossa instrução moral que da inte·
lectual ?u científica. Tomada �m conjunto e considerada à .primeira
_ .
vista, dificilmente pode ser a Btblta considerada como um tratado de
LIVRO TAM B É M DO HOM E M 105

moral prática. Nada contém o Novo Testamento que se possa cho­


car com os seus princípios, mas não se pode dizer o mesmo do An­
tigo. Se tomássemos, por exemplo, certos reis e altas personagens bí­
blicas, seria longo o caminho e, mesmo tendo em conta os castigos
que, quase sempre, na narração sagrada, acompanham as faltas, não
seria aconselhável seguir à risca certos costumes bíblicos. � ainda
sôbre êste ponto, em visão de conjunto, que necessário se torna con­
siderar o Livro, com as duas partes que se completam e segundo a
perspectiva de um plano divino em vias de realização, se quisermos
compreender o grande ensinamento moral da Escritura.
Através de muitas frases do Livro e de Lições hauridas da ex­
periência do Povo Eleito e do seu destino, é tôda a moral que encon­
tra fundamento na Bíblia. Nenhum princípio, por mais "leigo" que
se apresente, deixa de ter sua origem, e muitas vêzes, a própria fór­
mula, na Sagrada Escritura. Uma sociedade que se aparte dos prin­
cípios bíblicos arrisca-se a cair no abismo e está próxima da sua perda.
Moral social, moral sexual, moral do dinheiro, tôdas têm nêles seu
fundamento. O "Eclesiástico", durante muito tempo, foi o tratado
de moral que era ensinado aos j ovens cristãos. "Se me coubesse for­
mar a meu modo de ver um homem em sua infância, disse Bossuet,
mandá-lo-ia escolher vários trechos da Escritura, e os faria ler fre­
qüentemente, a fim de que os retivesse na memória". E Mons. Du­
panloup, que muito familiar se tornara do Texto Sagrado, tirava de
seus estudos esta conclusão : "Sai-se de lá armado dos pés à cabeça".
:e que na verdade, para quem lê a Bíblia, - livro humano, -:­
tudo quanto interessa ao homem surge, ao mesmo tempo, como deft­
nitivamente formulado, sublimado, espiritualizado e arrebatado por
uma grande asa para uma realidade que ultrapassa nossas co�tingên­
cias e limitações de sêres mortais. A alma lá encontra � d?Da ·em
que poderá expandir-se e exaltar. 1S o que fez, com? Ja vtmos,_ a
A

unidade dêsses trechos desconexos, e é também o que da o verdadeuo


sentido a todos os ensinamentos que dêle decorram: a presença do
Espírito, a aspiração por Deus.
CAPITULO XII

..A FOME DE OUVIR A PALAVRA DE DEUS"

COMPREENDER A BíBLIA COM O CORAÇÃO

Aspiraç�o por J? eus, �mor dirigido a :lHe, desejo ardente de pos­


.
sm-lo um dta ! Tats senttmentos, que formam a base da Escritura,
são os que nos podem conduzir a penetrar em seus mistérios.
Não é suficiente, para compreendê-la, ter estudado, mais ou me­
nos superficialmente, alguns manuais de história sagrada ou de inicia­
ção bíblica, ou ainda ter alguns conhecimentos da critica dos gêneros
e da arqueologia da Palestina.
"Os Livros Sagrados, diz ainda a Encíclica, não os concedeu Deus
aos homens para satisfazer-lhes a curiosidade ou fornecer assuntos de
estudos e de pesquisas". Há um clima espiritual no qual a leitura
da Bíblia é não somente fecunda, mas simplesmente possível, se en­
tendermos por ler outra cousa além de se cingir à exterioridade das
palavras. Lê-la como se fôra uma história ou um tratado, é vedar
a si próprio o alcance da plenitude do sentido, da história e da pró­
pria doutrina. B o que exprimiu, em fórmula admirável, Maurice
Zundel, em seu "Poema da Sagrada Liturgia" . . . "Só de joelhos se
compreende a Sagrada Escritura".
:e, portanto, em espírito de reverência e amor que nos devemos
aproximar da Bíblia e professá-la. Em espírito de reverência deve cada
um, ao abrir-lhe as páginas, repetir a palavra do Senhor a Moisés :
"Eis aqui uma terra santa" (�x. III. 5 ) , isto é, deixar de lado a
curiosidade vã e, mais ainda, - nem seria preciso dizê-lo, - certo
espírito zombeteiro, muitas vêzes empregado sobretudo a propósito doS
episódios do Antigo Testamento. E, mais ainda, um espírito de amor.
:e preciso amar a Bíblia para compreendê-la, e dela receber o que
1 08 QUE É A BÍBLIA ?
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CJaudel, tendo vivido os últimos vinte anos ,de sua existência na fa­
miliaridade cotidiana do Texto, chamava : "Um constante e crescente
assombro". n bem uma lei geral que um místico francês da Idade
Média, Hugues de Saint-Victor, formulava nestes têrmos admiráveis :
"O amor sobrepuja a ciência, e é maior que a inteligência. Mais se
ama que se compreende; o amor aproxima-se e penetra aonde a
.
. estrita
ciência se detém". Em caso algum encontra esta regra mats
aplicação que ao tratar-se da Sagrada Escritura. O que permanece
obscuro ou parece absurdo ao sábio, aclara-se misteriosamente a os
olhos de um humilde Cura d'Ars ou de uma pequenina carmelita
em Lisieux. "Se quiserdes tirar frutos da Escritura, diz a " I mitação
de Cristo", lêde-a com humildade, com simplicidade e fé". Em ne­
nhum outro domínio mais do que em matéria de ciência bíblica, o
poder supremo de compreensão e de adesão é o que Pascal desig­
nava com a bela palavra secreta : "coração".
llste poder de adesão e de compreensão deve ser total, totalitá­
rio, devendo governar todo o espírito. Não é suficiente sobrepor, a
análises dessecantes, alguns comentários piedosos para penetrar n o
espírito e n'alma d a Bíblia. 1l necessário colocar-se completamente
na atitude espiritual que foi a dos seus heróis, de seus escritores, na
sua intensidade profunda. B necessário deixar que ressoem n a mente
os grandes temas do texto : o tema do amor de Deus; o tema d o
apêlo dirigido de preferência aos que sofrem e que o mundo des­
preza; o tema do convite a aliar-se a Deus e a viver unido a Êle;
o tema da misericórdia infinita; o tema da esperança invencível.
B necessário, ainda, sentir em si mesmo as grandes expansões da
alma que sublimam o texto; o impulso para a fidelidade, a cólera
contra as injustiças da terra, a alegria até no sofrimento e n a pro­
vação. B necessário, sobretudo, colocar-se, inteiramente, nessa atitude
d e humildade confiante e de exaltação íntima que expressa o clamor
do salmista : "Que nossas mãos erguidas sejam como a oferta da
tarde". Sim ! Só é possível compreender verdadeiramente a Bíblia
em estado de oração.

ÜRAR COM A BÍBLIA

:8 êst� voto do cantor inspirado que se torna preci so repetir ao


le._r � Bíbba, p�a que os textos despertem n'alma tôda a sua resso­
nanaa. No mats profundo sentido do têrmo' é um "livro . de ora­
ções" e de muitas maneiras. A mais certa e evidente, já que a Sa-
"A FOME DE OUVIR A PALAVRA DE DEUS" 109

grada E�critura não pode ser compreendida senão pela fé, e que não
há fé v1va fora da oração, é a de forçar imperiosamente o leitor a
orar. E que é orar senão tornar-se "permeável ao sôpro", como diz
Claudel, atento às ordens e às intenções de uma Vontade e de um
Pensamento que nos ultrapassam?
Onde encontrar, então, melhor do que na Bíblia, mil vêzes re­
petida, a afirmação de que êsse Pensamento e essa Vontade condu­
zem o mundo, e que o homem apenas vale na medida em que' hu-
mildemente, a êles submeter-se ?
Livro de oração, é ainda a Bíblia algo mais. Se a Igreja ensi­
nante aconselha a seus fiéis que, numerosas e muitas vêzes, se apro­
ximem "dessa mesa da doutrina celeste que Nosso Senhor preparou
para o povo cristão pelo ministério de seus profetas, de seus após­
tolos e doutores", é por bem saber que sôbre essa mesa se encon­
tram as mais ricas iguarias. A comparação com a mesa que se en­
contra na " Spiritus Paráclitos", encíclica de Benedito XV, - já foi
empregada em um livro que não poderia ser suspeito de visar outra
cousa senão o alimento espiritual das almas, a "Imitação de Cristo"
que se refere às duas mesas colocadas pelo Divino Mestre ao alcance
dos fiéis : a mesa do altar e a das Escrituras.
Resulta, porém, que certos cristãos, pro fund am ente crentes, ao
abrir a Bíblia, sentem alguma decepção. Esperam nela encontrar fór­
mulas que exaltem a alma e cálidas ao coração, e caem sôbre enume­
rações monótonas de ritos, sôbre imprecações ferozes de certos profe­
tas, sôbre os enigmáticos períodos do Apocalipse, quando não sôbre
as aventuras matrimoniais dos reis.

Nada tem a Bíblia, - é preciso reconhecer, - de manual de


devoção e, a não ser a maior parte dos textos evangélicos e grand�s
partes dos textos sapienciais, pouco pode dar ao crente que se nutnu
da "Imitação", nem mesmo àquele que praticou os "Exercícios Espi­
rituais" de Santo Inácio de Loiola. Muito mais é a Bíblia um livro
de oração que de oraÇões. Verdade é que êste plural muitas vêzes
entendia aquêle singular.
Contudo, mesmo sob êste aspecto, muito possui a B lia para �
nos oferecer. Constitui, em primeiro lugar, tomada em conJunto,

orar e a viver religiosamente . Mesmo nos li·
método que ensina a
mites do Antigo Testam ento - e com m �
r az ã? é verda � �
e rela­
ção ao Novo - a Bíblia ensina-nos que nao consJSt� a
oraça? somente
LVIU.
em um rito ( G ên esis IV. 7 ou, Sam. XV. 22 ou aanda Isaías
1 10 QUE É A BÍBLIA ?
-------

3-12 } mas em um estado de alma e, mais ainda, em um compromisso


de tôda a vida. Ensina-nos, também, que não é ela tão só um alinha­
mento de belas fórmulas, - "que tuas palavras sejam pouco mune­
rosas':, diz o Eclesiástico (V. 1 ), - que deve ser, como o proclama
Jesus, "a adoração em espírito e verdade" (]o. IV. 2 3 ) .
A o contrário d e muitas devoções superficiais e afetadas, a oração
da Bíblia é forte, reta, sóbria e viril. A mais sublime das orações,
a oração do Cristo, o "Pai Nosso" é de tôdas o mais perfeito re­
sumo. Contudo, formalmente, existem no Livro inúmeras e admirá­
veis preces que podem fornecer à alma fiel as palavras de muitas
orações jaculatórias. O grito de adoração do Cristão, o "Sanctus", a
exclamação de arrependimento, o "Miserere", o clamor de angústia,
o "De profundis", o brado de gratidão, o "Magnificat", são expres ­
sões extraídas da Bíblia. E não são somente nos lábios d e Jesus o u
de Maria, o u dos Apóstolos e outros heróis d o Evangelho que se
encontram fórmulas, belas e simples, maravilhosamente adaptadas a
aspirações da alma. Assim a oração do velho Simeão, o sublime
"Nunc dimittis" ou a do centurião de Cafarnaum, "Domine non sum
dignus . . . " Contêm-nas numerosas os Salmos. Quem co�hece a ora­
ção de súplica de Abraão (Gênesis, XVIII. 17-33 ) ; a imploração de
Moisés após o episódio do Bezerro de Ouro (Êxodo, XXXII. 1 1-34 ) ;
a humilde ação de graças de Davi em resposta às promessas do pro­
feta Nathan ( li Saro. VII. 18-1 9 ) ; a de Salomão, gloriosa e fiel, ao
consagrar o Templo (I. Reis, VIII. 22-53) e as de Ezequias, de Baru­
que, de Esdras e Daniel ? E o "Provérbio" (XXX. 7-9 ) em que a
alma fiel suplica, simplesmente, a Deus que lhe permita viver na sin­
ceridade, na simplicidade e eqüidade?
Preces de louvor e de súplica, preces de arrependimento e de gra­
tidão, tôdas as formas de oração encontram-se na Bíblia. Nada mais
é necessário que ir lá procurá l as .
-

Mas, e sobretudo, além das fórmulas esparsas, por mais belas que
.
sejam, o que revela e ensina a Bíblia é a atitude fundamental da
oração, a do homem que se eleva ao ponto mais alto de si mesmo
e para o qual a vida inteira é prece e santificação.Assim como tôda
a história narrada pela Escritura Sagrada é condicionada a Deus e
ao �u plan�, assim ta� ém? � do q1;1anto o homem da mesma possa
ha�mr de vtvo e nutJ.?tlvo, nao e�te senão fecundado por Deus.
,
Nao pode, porem, ser lSto compreendido senão por quem leu o Livro
e nêle penetrou em sua totalidade e plenitude.
"A FOM E DE OUVIR A PALAVRA DE DEUS" 111

"Perscrutai as Escrituras", diz o Cristo. Não quer isto dizer,


somente, "penetrai no sentido d e suas palavras", mas : "compreen­
dei-lhes as lições profundas". .:e com a Bíblia inteira que se toma
preciso orar.

BíBLIA, ORAÇÃO DA IGREJA

Es�a relação q�e s: estabelece entre Deus e a alma crente por


.
mtermedw. da Btbha,
, tao pessoal quanto seja, - é a mim, a mim
mesmo que suas palavras foram dirigidas; é a mim que o único con­
vocou para a Aliança; a mim falou Javé do Alto do Sinai; a mim
prometeram os profetas um "redentor vivo", e Jesus a resssurreição
da carne, - tem ela, contudo, outro caráter : realiza-se por intermé­
dio de um povo, de uma tradição, de uma descendência, e me foi
garantida pela autoridade de uma comunidade da qual sou membro.
Literalmente é ela comunitária, tanto quanto possível.
O esfôrço que, a nossos olhos, se desenvolve para dar à missa o
seu caráter de oração em comum, de prece da Igreja - caráter que
se evidencia em muitas de suas rubricas : a coleta, o memento dos
vivos e dos defuntos, por exemplo - enquanto que, durante longo
tempo havia sido êle negligenciado, tem sua correspondência lógica
na revivificação da prece litúrgica, a qual é essencialmente bíblica.
Renascimento litúrgico e renascimento bíblico caminham juntos.
E é bem verdade que a palavra de Deus toma integral ressonân­
cia quando proclamada no decurso das cerimônias litúrgicas, sendo a
prece comum da assembléia cristã por excelência, de tôda a Igreja
em face d e Deus.
Não é, evidentemente, por acaso que o ofício do côro é, em
suma, constituído pela recitação hebdomadária do Saltério, e que, do
comêço ao fim do ano, esforça-se o breviário por conter a "Lectio
continua", isto é, a leitura integral ( 1 ) do Livro. Não é ��
por acaso que as quatro grandes festas cristãs, - Natal, EpifiUlla,
Páscoa e Pentecostes, - são celebradas pela liturgia com textos ti­
rados das partes mais diversas da Bíblia, como para demonstra.r a .

.
Unidade da mensagem divina. Em sentido inverso, se a �turfla
muito deve à Bíblia, muito também deve esta àquela. Em P�
lugar, êsse mínimo de conhecimento de seus textos por parte de mut·

(1) Ao menos simbOlicamente inteJral.


1 12 QUE É A BÍBLIA ?

tos cristãos que os não lêem senão nos seus "livros de missa", mas
também uma espécie de atualização permanente, de união a nossas
apreensõ es, esperanças, angústias e certezas.
Tomou a Igreja de empréstimo à Bíblia muitas de suas orações,
querendo assim assinalar a continuidade da Revelação, e a sua fide­
lidade à inspiração divina. Ao mesmo tempo, porém, mostra a seus
filhos que o sôp ro divino que animava os Patriarcas e os Profetas é
o mesmo que varreu o ar no dia de Pentecostes, e que a Revelação,
da qua l é guarda, nada mais é que aquela, indefinidamente p rolon ­
gada, que recebeu em Ur, na Caldéia, há cêrca de quatro mil anos,
um jovem semita, de nome Abraão.
A prece litú rgica é a resposta àqueles que, - cristãos afastados
da comunidade católica - crêem que a Bíblia, mensagem direta e
pessoal de Deus, possa viver sem a Igreja estabelecida por Cristo,
como se não fôra essa mensagem entregue, coletivamente, a um povo
organizado pela vontade de Deus. Os Padres dos primeiros tempos
já o sabiam, pois que nêles se confundiam a fé na Escritura e a fé
na Igreja, não somente por ser g aran ti a por decisão canônica a ve­
racidade do texto, mas porque a Tradição era para êles a Bíblia viva,
a Bíblia prolongada pela Igreja. No momento em que esta Igreja,
pela voz do Magistério infalível, m ul tip lica as admoestações em favor
da leitura e do estudo da Bíblia, esta certeza impõe-se, mais do que
nunca, ao espírito, de que é na Igreja e por ela que a Escritura en­
contra tôda a sua pujança, até e sobretudo, em seus sacramentos que
são para a vida da alma o qu e o texto sagrado é para a vida do
espírito : o pão e o vinho de uma existência mais verdadeira que
a terrena.

0 HOMEM BÍBLICO É O FAVORITO DE DEUS

Assim é a Bíblia "livro de Deus e livro do homem", documento


que guarda o depósito sagrado. Leu-se no início destas páginas, cons­
tituir a Bíblia a base de todo o verdadeiro humanismo, e que, sem
ela, as concepções do mundo e do homem não seriam como as co­
nhecemos. Agora que foi apresentada esta rápida prospecção dos seus
dados, mais claramente aparece ainda que é de fato o homem, em
tôdas as suas dimensões, que ai se define, o homem verdadeiro, aquêle
que não é nem simplesmente animal ou máquina, aquêle cujo destino
não é nem absurdo nem desesperador, o homem que assume a pleni­
tude da sua vocação e do seu sentido.
" A FOME DE OUVffi A PALAVRA DE DEUS"
1 13

Há uma concepção do homem, segundo a Bíblia, que não é


bem difícil definir. :E um homem que "se mantém diante de Deus"
(I Reis, XVIII. 1 5 ou São Paulo por várias vêzes) ; homem que se
não considera como joguete de um acaso cego nem de fôrças obscuras
e demoníacas, mas que acredita ser um elemento no plano divino;
homem que sabe ter sido chamado pela vontade divina a um destino
único e não determinado por leis matemáticas de probabilidade; ho­
mem que ora e que sabe, ao orar, que colabora com a obra de Deus;
homem que pensa tornar-se o mundo melhor à medida dos melhora­
mentos que operar em si mesmo; enfim, que é "mantido" por Deus
tanto quanto a si mesmo se "mantém" diante dêle, e que considera
esta dependência como motivo de altivez e de sua grande esperança.
�ste homem, segundo a Bíblia, deve-se confessar, é radicalmente
oposto ao homem s egundo o que Peguy chamava "o mundo moder­
no", o homem que se julga livre, e como tal o proclama, mas que não
encontra diante de si senão o vácuo ou essa face de órbitas profun­
das que lhe falam uma linguagem de morte. O homem do mundo
moderno não quer acreditar, recusa-se a orar, apenas admite a lei
social e utilitária, não pensa em colaborar com a obra da natureza
senão no plano dos seus trabalhos e descobertas materiais, irritando-se
com a simples idéia de ser "mantid o por um poder invisível. Quando
"

se vê, porém, a que resultados conduziu esta filosofia, a que nulidade


tende inelutàvelmente o processo de recusa e negação de que somos
testemunhas, a velha concepção bíblica reveste-se de tôdas as suas vir­
tudes, surgindo radiosa de certeza e de esperança. A Bíblia é o livro
do Deus vivo. Sabemos, agora, o que custa ser homem em uma
época de trevas, predita por um profeta, em que "Deus está morto".
� nesta perspectiva que se deve considerar o renascimento atual
da Bíblia entre nós, fenômeno que tem o valor de um protesto.
Corresponde a uma angústia, a uma esperança. Tudo isto, po·
rém, não havia sido predito pelo texto? "Enviarei a fome sôbre a
terra, clama o profeta Amós, não a fome de pão nem sêde de água,
mas a fome de ouvir a palavra de Deus" (Amós, VIII. 1 1 ) . E desta
grande fome o tempo chegou.

Tresserve, verão de 1955.


QUADRO DE CONCORDÂNCIA DOS
EVAN GELHOS
(1) CURA DO PARALITICO DE CAFARNAUM ....
....
0\

Mateus, IX. 1 -8 Marços, li. 1 - 1 2 Luças, V. 1 7-26

Jesus, tendo subido a u m a barca, Alguns dias depois, voltou Jesus Certo dia, como estivesse Ele a en­
atravessou o lago e regressou à sua a Cafarnaum. Assim que ouviram sinar, muitos fariseus e doutores da
cidade. Eis que lhe apresentam um dizer que :lHe estava e'Il casa, tan­ lei lá estavam sentados, tendo vindo
paralítico, deitado em um lei to. Ven­ tas pessoas lá se reunuam que não de tôdas as aldeias da Galiléia, da
do-lhe Jesus a fé, disse ao paralítico : havia mais lugar, mesmo diante da Judéia e de Jerusalém. E o poder do
Meu filho, tem confiança : são-te per­ porta. Senhor fazia-lhe operar curas. Eis que
doados os teus pecados. E, logo, al­ E �le lhes pregava a Palavra. uns homens, carregando em um leito
guns escribas disseram a si mesmos : Trouxeram-lhe, então, um paralíti­ um homem que estava paralítico, pro­
Este homem blasfema ! Mas, Jesus, co, carregado por quatro (homens) . curavam f:uê-lo entrar a fim de o co­
conhecendo-lhes os pensamentos, dis­ E, não o podendo apresentar, por locar em presença dEle. Não achan­
se-lhes : Por que tendes maus pen­ causa da multidão, descobriram o do, porém, entrada por onde o in­
samentos em vossos corações ? Que terraço, acima do lugar em que fie troduzissem por caus:t da multidão,
cousa é mais fácil dizer : São-te per­ se achava, e, pela abertura, desce­
subiram ao telhado e por entre as te­
doados os teus pecados ou dizer : ram o leito em que jazia o paralí­
lhas o desceram, com o se u leito, no
Levanta-te e caminha ? Ora, a fim tico. Vendo-lhes Jesus a fé, disse ao
de que saibais que o Filho do ho­ meio da assistência, diante de Jesus.
paralítico : Meu filho, são-te perdoa­
mem tem sôbre a terra o poder de Vendo-lhes a fé, disse J e su s : Meu
dos os teus pecados. Ora, estavam
perdoar os pecados, levanta- te, disse lá sentados alguns escribas que as­ amigo, são-te perdoados os teus pe­
ao paralítico, toma o teu leito e vai sim pensaram em seus corações : cados. Então, os escribas e fariseus
para tua casa. E êle levantou-se e Como pode f:le falar assim ? Êle puseram-se a pensar : quem é êste que
foi para casa. O povo, vendo êste blasfema ! Quem pode perdoar os profere blasfêmias ? Quem pode p er­
milagre, encheu-se de temor e glori­ pecados senão Deus ? Jesus, conhe­ doar os pecados senão Deus ? Jesus,
ficou a Deus que tanto poder havia cendo logo em seu espírito que êles porém, conhecendo-lhes os pensamen­
dado aos homens. assim pensavam, d isse-lhes : Por que tos, disse : Por que êstes pensamentos
raciocinais assim em vossos corações? em vossos corações ? Que é mais fácil
Que é mais fácil dizer a êste para­ dizer : Levanta-te e caminha ? Ora, a
lítico : São-te perdoados os teus pe­ fim de que saibais que o Filho do
cados; ou dizer-lhe : Levanta-te, to­ homem tem sôbre a terra o poder
ma teu leito e caminha ? Ora, a fim de perdoar os pecados, Levanta-te, eu
de que saibais que o Filho do ho­ ordeno, disse ao paralítico, leva o teu
mem tem sôbre a terra o poder de leito e regressa à tua casa. No mes-
perdoar os pecados, Levanta-te, disse mo momento êle se ergueu na pre­
fie ao paralítico, eu te ordeno; toma sença de todos.
o teu leito e volta para a tua casa. E carregando o leito em que esti­
E êle se levantou e, sem demora, to­ vera deitado, voltou para casa, glori­
mando o seu leito, retirou-se à vista ficando a Deus.
de todos, de maneira que todos fi­ Ficaram todos estupefactos e glori­
caram estupefatos e glorificavam a ficavam a Deus, e, cheios de temor,
Deus, dizendo : Jamais vimos cousa diziam : Vimos hoje cousas prodi­
semelhante. giosas.

São Mateus abreviou a narração, São Marcos, seguido em grande parte por São Lucas, é muito mais
vivo e circunstancíoso.
Em relação, p orém, às palavras do Salvador, os três trechos estão extraordínàriamente próximos ttns dos
outros.

(2) A CURA DA HEMOROlSSA E A RESSURREIÇÃO DA FILHA DE JAIRO

M.ateus, IX. 1 8-26 Marcos, V. 2 1 -4 3 Lucas, VIII. 40-56

Enquanto assim lhes falava, u m Ao regressar Jesus em u m a barca Tendo Jesus regressado, foi aco­
pdndpe ( d a sinagoga) , aproximan­ para a outra margem, a multidão lhido pela multidão, porquanto to­
do-se, prosternou-se diante dfle, di­ acercou-se dEle, enquanto estava tlle dos O esperavam. Apareceu, então,
zendo: Minha filha acaba de morrer. junto do mar. E chegou um chefe um homem chamado Jairo, que era
Vinde, porém, impor-lhe as mãos, e da sinagoga, chamado Jairo, que ao chefe da sinagoga, o qual, proster­
ela viverá. E Jesus levantando-se, vê-10, atirou-se-Lhe aos pés e rogou­ nando-se aos pés de Jesus, suplicava­
seguiu-o com seus discípulos. Lhe com insistência, dizendo : Minha Lhe que fôsse à sua casa, porquanto
E, eis que uma mulher que, há filha está à morte; vinde impor-lhe tinha uma filha única, de cêrca de
doze anos estava atacada de um fluxo a mão para que se cure e viva. doze anos, que estava à morte. E co­
de sangue, aproximou-se por detrás Foi-se Jesus com êle, e a multidão mo para lá se encaminhasse, a mul­
e tocou-lhe a fímbria do manto, di­ O seguia e comprimia. tidão O comprimia.
zendo a si mesma : Se eu conseguir, Eis que lá havia u ma mulher, ví­ Uma mulher, porém, que sofria de
ao menos, tocar-lhe as vestes, ficarei tima de uma perda de sangue, havia um fluxo de sangue, havia doze anos, ....
curada. Voltou-se, entio, Jesus, e aQ ....
doze anos. Muito havia ela sofrido c que não pudera ser curada por ......
às mãos de muitos médicos, e todo
'\'é-la, disse-lhe : Filha minha, tem con­ ninguém, aproximou-se-Lhe e, ime­ ....
fiança;
tua fé salvou-te. E a mulher, o seu dinheiro havia gasto sem pro­ diatamente, estancou-se o fluxo de
....
00
no mesmo instante, ficou curada. veito algum, antes mesmo piorando sangue. Perguntou Jesus : Quem me
Ao chegar Jesus à casa do chefe cada vez mais. Tendo ouvido o que tocou ? Todos, porém, negaram. En­
(da sinagoga) , e vendo os tocadores diziam de Jesus, veio-Lhe por de­ tão Pedro e seus companheiros disse­
de flauta e a multidão em alvorôço, trás, entre a multidão, e tocou-Lhe ram-Lhe : Mestre, a multidão Vos
disse : Retirai-vos, pois que a jovem o mamo. Pois, dizia ela : Se apenas cumprime e Te esmaga. Disse-lhes,
não morreu, mas dorme apenas". E puder tocar-Lhe as vestes, ficarei porém, Jesus : Alguém tocou-me, pois
a multidão o escarnecia. curada. No mesmo instante sentiu que senti que de mim partia uma
Depois, porém, que a multidão foi em seu corpo que estava salva de fôrça. Vendo que fôra descoberta,
afastada, :Ele entrou, tomou a mão sua enfermidade. veio a tremer a mulher e lançou-se
da jovem, e ela se ergueu. Jesus, conhecendo em si mesmo a Seus pés, e perante todos contou
que uma fôrça saíra d:Ele, voltou-se porque O havia tocado e como no
E a notícia espalhou-se, então, por
entre a multidão e disse : Quem to­ mesmo instante ficara curada.
todo o pais.
cou-me as vestes ? Responderam-Lhe D isse-lhe, então, Jesus : Filha, sal­
os discípulos : Vêde a multidão que vou-te a tua fé; vai em paz. Falava
Vos comprime e dizer : Quem tocou­ me, ainda, quando alguém veio da
-me ? :Ele, porém, olhava em tôrno de casa do chefe da Sinagoga, dizendo :
si para ver quem tinha feito aquilo. Tua filha está morta; não perturbes
Então a mulher, tomada de mêdo mais o Mestre. Jesus, porém, tendo
e a tremer, bem sabendo o que lhe ouvido, respondeu-lhe :
acontecera, atirou-se a Seus pés, e Não temas, mas crê, e ela será salva.
tôda a verdade Lhe revelou. Disse­ Chegado à casa, não deixou que lá
-lhe, então, Jesus : Filha, salvou-te penetrasse ninguém com Êle, a não
a tua fé, vai em paz, e fica curada ser Pedro, João, Tiago, com o pai e
de teu mal. a mãe da menina. Choravam todos
Falava ainda Jesus, quando alguém e se lamentavam. Disse Jesus :
chegou da casa do chefe da sina­ Não choreis, ela não está morta;
goga e disse a êste : Tua filha está apenas dorme. Zombavam, porém,
morta. Por que importunar ainda o dÊle, sabendo que estava morta.
Mestre ? Tendo, porém,- Jesus surpre­ Tomando-a Jesus pela mão, cha­
endido estas palavras, disse ao chefe mou-a e lhe disse : Menina, levan­
da Sinagoga : Não temas, mas crê. ta-te. E ela voltou à vida e no mes­
E não permitindo que ninguém O mo momento levantou-se.
acompanhasse, a não ser Pedro, Tiago Mandou �le, então, que lhe dessem
e João, irmão de Tiago, chegaram à de comer. Ficaram estupefactos os
casa do chefe da Sinagoga, ouvindo seus pais, mas (Jesus) proibiu-lhes
o tumulto e as lamentações do povo que a ninguém dissessem o que havia
que prorrompia em lamentações e acontecido.
soltavam grandes gritos. Ao entrar,
Êle lhes disse : Por que êste tumulto
e estas lamentações ?
A menina não está morta, mas so­
mente dorme. E êles zombavam. En­
tão, tendo (Jesus) mandado que a
multidão se retirasse, tomou o pai e
a mãe da menina e os que O acom­
panhavam e entrou aonde a menina
estava. E, tomando a menina pela
mão, disse-lhe: Palita Kumi, que quer
dizer, Filhinha, eu te ordeno, levan­
ta-te. E, imediatamente, a menina
levantou-se e pôs-se a caminhar, pois
já tinha doze anos. Ficaram todos
cheios de grande espanto.
Recomendou-lhes, então, com insis­
tência que ninguém o soubesse e disse
que dessem de comer (à menina) .

Três naTrllfÕes bem caracteTísticas do modo de as descrever pelos evangelistas. Mateus, simples, e sem
colorido; Mmcos extraordínàríamente concreto, tomado ao vivo e emocionante,- Lucas, mais delicado e mais
sóbrio.

(3) OS CEGOS DE JERICO

M4teus, XX. 29-34 Marcos, X. 46-52 Lucas, XVIII. 35-42

Saindo 2le de Jeric6, multidão nu· Chegaram êles a Jericó. Aproximando-se (Jesus) de Jeric6,
merosa O seguia. E, ao sairem de Jericó, :Sle, seus estava um cego assentado à beira do
....
Bü que dois cegos, assentados ao discipulos e grande multidão, um caminho, pedindo esmolas. Ouvindo ....

kmso do caminho, tendo ouvido di- mendigo, cego, Bartimeu, filho de passar a multidão, perguntou de que \0

-� ___ , _____.---- _____ , . . . ,.


:z:er que · Jesus passava, puseram-se a Timeu, estava assentado à beira do se tratava. Responderam-lhe que era ....
gritar : Senhor filho de Deus, tende caminho. N
Jesus de Nazaré que passava. Pô-se, o
piedade de nós ! Tendo sabido que era Jesus de Na­ então, a gritar : Jesus, filho de Davi
zaré, pôs-se a gritar : Filho de Davi, :
Ameaçava-os a multidão para que tende piedade de mim ! E os que ca
se calassem. Gritaram, porém, êles tende piedade de mim ! minhavam repreendiam-no para que
ainda com mais fôrça : Senhor, filho Ameaçavam-no muitos para que se se calasse. fie, porém, gritava ainda
de Davi, tende piedade de n6s ! En­ calasse. mais alto : Filho de Davi, tende pie­
tão, Jesus parou e, chamando-os, lhes Ele, porém, gritava ainda mais alto: dade de mim !
disse : Que queres que eu vos faça ? Filho de Davi, tende p iedade de mim ! Deteve-se J esus e ordenou que Lho
Senhor, responderam-lhe, que nossos Deteve-se, então, Jesus, e d isse-lhe : trouxessem. E, ao aproximar-se êle,
olhos se abram. Chamai-o. Chamaram, então, o ce­ perguntou-lhe : Que queres que te
Comovido, Jesus tocou-lhes os olhos go, dizendo-lhe : Coragem ! Levan­ faça ? E êle respondeu : Que eu veja !
e, imediatamente, recuperaram a vista ta-te, �le te chama. E o cego, lan­ D isse-lhe Jesus : Vai. Salvou-te a
e O seguiram. çando fora o manto, atirou-se para tua fé.
perto de Jesus. Dirigiu-lhe, então, E, no mesmo momento, êle reco­
Jesus a palavra. Que queres que te brou a vista e O seguiu, glorificando
faça ? Respondeu-lhe o cego : Mes­ a Deus. Todo o povo, vendo isto,
tre, que eu vej a ! Vai, disse-lhe Jesus, pôs-se a louvar a Deus.
salvou-te a tua fé. E n o mesmo ins­
tante recobrou a vista e seguiu a Jesus
pela caminho.

Idênticas observações feitas a propósito da narração precedente. Além disto, poder-se-á notar que as nar­
'"

rações não concordam em pequenos pormenores: na entrada ou na saída de f erícó; um ou dois cegos (é t•er­
dade que o plural de São Mateus será talvez puramente literário)., F. um dos casos em que as tradifÕes repro­
duzidas pelos evangelistas não descrevem os fatos senão de maneira aproximativa.

(4) SINóPSE QUADRUPLA (Os exemplos são raros fora da narrativa da Paixão)
Primeira multiplicação dos pães.

Matem, XVI, 1 3-21 Marcos, VI, 30-44 Lucas, IX, 1 0-1 7 João, VI, 1 - 1 5

Ante esta notícia, de lá Reuniram-se os apóstolos Ao regressar, contaram os Em seguida, seguiu Jesus
partiu Jesus em uma barca em tôrno de Jesus, contao- apóstolos (a Jesus) tudo para a outra margem do
a fim de retirar-se para lu­ do-lhe tudo quanto haviam quanto haviam feito. To­ lago de Galiléia, ou de Ti­
gar deserto. Sabendo disto feito e ensinado. E êle lhes mando-os, então, consigo, beríades. Multidão imensa
o povo, seguiu-o a pé das disse : Vinde, vós todos, a retirou-se êle para fora, na acompanhou-o, vendo os
cidades (vizinhas) . Ao sair um lugar solitário a fim de direção de uma cidade cha­ milagres que operava com
(da barca), viu grande mul­ descansar um pouco, por­ mada Betsaida. Aperceben­ os doentes. Subiu Jesus ao
tidão, e dela se apiedou, que os que chegavam e os do-se disto, a multidão o monte e lá assentou-se com
curando-lhe os enfermos. / que partiam eram tantos seguiu. seus discípulos. A Páscoa,
que nem tempo havia para E êle a acolheu e lhe festa dos judeus, estava pró­
Ao cair da tarde, apro­ comer. Partiram, então, a falou do reino de Deus e xima. Erguendo os olhos,
ximaram-se dêle os discí­ fim de se afastarem para curou os que necessitavam e vendo a multidão nume­
pulos, dizendo-lhe : :e de­ um lugar ermo, mas viram­ de cura. Como começasse rosa que acorria para �le,
serto êste lugar e a hora -nos partir e, adivinhando o dia a declinar, aproxima­ disse Jesus a Felipe : onde
avançada. Despedi a mul­ (para aonde iam), acorre­ ram-se os Doze e lhe dis­ poderíamos comprar pão
tidão a fim de que vá às ram antes dêles. Ao de­ seram: Despedi a multidão para que êles possam co­
aldeias comprar o que co­ sembarcar, viu (Jesus) uma a fim de que volte às suas mer ? Assim falava para
mer. Disse-lhe, porém, Je­ multidão imensa e dela se aldeias e aos sítios dos ar­ experimentá-lo, pois bem
sus: Não é necessário que apiedou, porque era como redores a fim de se hos­ sabia o que ia fazer.
ela se vá; dai-lhe vós mes­ ovelhas sem pastor. Pô-se, pedarem e encontrarem ali­ Respondeu-lhe Felipe :
mos de comer. Replicaram então, a instrui-la. Como, mento, porque aqui estamos Duzentos denários de pão
êles : Apenas temos aqui porém, já estivesse avan­ em um deserto. Respon­ não bastariam para que ca­
cinco pães e dois peixes. çada a hora, aproximaram­ deu-lhes (Jesus) : Dai-lhes da um recebesse um pedaço.
Trazei-os, aqui, disse-lhes -se dêle os discípulos, di­ vós mesmos de comer. André, um dos discípulos
êle. E então, mandando zendo-lhe : :e deserto êste Responderam-lhe : Não te­ e irmão de Simão Pedro,
que o povo se assentasse lugar e já é avançada a mos mais que cinco pães e disse-Lhe : Há cinco pães
na grama, tomou os cinco
hora. Despedi-os, a fim de dois peixes; a menos, que de cevada e dois peixes.
pães e os dois peixes e, .
que procurem comprar nos vamos nós mesmos com­ Mas, o que é isto para tan­
erguendo os olhos ao céu, sítios e aldeias dos arre­ prar alimentos para todo ta gente? Disse-lhe Jesus :
dores, o que comer. Res­ êste povo. Mandai que se assentem.
pronunciou uma bênção. pondeu-lhes (Jesus) : Dai­ Era êste, com efeito, de Ora, havia muita grama na­
Depois, partindo os pães, -lhes, vós mesmos, de co­ cêrca de cinco mil homens. quele lugar. Assentaram-se,
povo.
deu-os aos seus discípulos, mer. Replicaram (os dis­ Disse, então, a seus discí­ assim, os homens, em nú­
j
e êsteJ ao cípulos) : Será então pre­ pulos : Mandai-os sentar-se mero de cêrca de cinco mil.
E todos comeram e fi. ciso irmos comprar duzen­ em grupos de cinqüenta. Jesus, então, tomando os
/
caram fartos, carregando tos denários de pão, para Obedeceram (os discípu­ pães, e tendo rendido gra­
aiAda doze cestos cheios lhes dar de comer? Disse· los) e mandaram que to­ ças, distribuiu-os aos que
doe pedaços que rutaram. -lbee Jesus: Quantos pães dos se assentassem. Toman- estavam sentados, e o mes-
Ora, oa que comeram e­ tendes ? Ide ver. E, tendo do, então, os cinco pães e mo fêz com ós peixes,
ram em número de cinco sido informado, disseram­ os dois peixes ergueu os t a n t o quanto queriam.
mil homens sem contar as -Lhe : Cinco e dois peixes. olhos ao céu, benzeu-os, Quando todos ficaram far­
mulheres e crianças. Ordenou, então que man­ partiu-os e os entregou a tos, disse aos discípulos :
dassem todos assentar·se, seus discípulos a fim de Recolhei os pedaços que
em grupos, de cem e de que os d istribuíssem à mul­ restam, para que se não
cinqüenta. tidão. E todos comeram e percam. E êles os recolhe­
Tomando, então, os cinco ficaram fartos, levando o ram, enchendo doze cestos
pães e os dois peixes, er­ que sobrara : doze cestos com os pedaços que so­
gueu os olhos ao céu, a­ de pedaços. braram dos cinco pães de
bençoou, partiu os pães e cevada, depois que todos
os entregou aos discípulos comeram. A vista do mi­
para que os distribuíssem lagre que (Jesus) acabara
ao povo. Repartiu também de realizar, dizia o povo :
os dois peixes entre todos. :e flle, em verdade, o pro­
E todos comeram e ficaram feta que deve vir ao mun­
fartos. E ainda levaram do ! Mas, Jesus, tendo sa­
doze cestos cheios dos pe­ bido que queriam arreba­
daços (de pão) e dos res­ tá-lo para fazê-lo rei, reti­
tos dos peixes. Os que ha­ rou-se de novo, sõzinbo,
viam comido os pães eram para o monte.
em número de cinco mil
homens.

São João ntmca se continha em reproduzir as narrafÕes dos sinópticos, acrescentando pormenores, sempre
cheios de inlerêsse, omitidos por êles.
INDICAÇõES BIBLIOGRAFICAS

Tendo-se multiplicado os trabalhos sôbre a Bíblia nestes últimos anos, limi­


tar-nos-emos a indicar aqui algumas obras essenciais que permitem ao leitor
continuar as pesquisas a que a presente obra serve de introdução.
Em primeiro lugar, é preciso transportar-se ao texto da admirável end­
dica de S. S. Pio XII ( 1934) : "Divino Afflante spiritu". A tradução fran­
cesa foi publicada pela "Bonne Presse".

Edições da Bíblia em francês

Durante muito tempo foi a única a do Cônego Crampon. Acaba de ser

ela revista e modernizada por J. Bonsirven e A. Tricot (Paris e Tournai 1952).


"A Bíblia latino-francesa" do Cônego Verdunoy começou a aparecer em 1934
em Dijon. "A Santa Bíblia" (igualmente latino-francesa) de L. Pirot e A.
Clamer, muito científica, acaba de aparecer (Paris). Serviu, primeiramente,
para a edição popular francesa, lançada em 1951 (Paris) pelo Cardeal Lienart,
prefaciada por Daniel-Rops, mas as últimas edições serviram-se de traduções de
outras edições. Os beneditinos de Maredsous publicaram uma Bíblia francesa
em 1950 e, no mesmo ano, F. Amiot e R. Tamisier, ambos sulpicianos, apre­
sentaram também uma em grande edição de meio-luxo (reedição parcial e de
preço módico nos "Textos para a história sagrada" ) . "A Bíblia de ]eruft·
P. Lagran­
lém", dirigida pelos padres da célebre Escola Bíblica, fundada pelo
Foi o respectivo texto aproveitado
ge, de caráter científico, acaba de aparecer.
para a edição de grande difusão do "Clube Franc& do Livro" em 1955.

A mais completa é a "Iniciação Bíblica". de A. Robert e A. Tricot, CJ'M


acaba de ser atualizada (Paris, 1954) mas ' um liwo de consulta, butaatt
elevado. A obra mais completa e acesslvel ' a do P. Grelot: "lnuoduçlo aOJ
124 QUE É A BÍBLIA ?
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Livros San tos " (Paris, 195 1 ) . Introdução simples : S. Exa. Mons. W eber,
"A Bíblia, livro de Deus, l ivro do homem" (Strausburgo, 1947) ; S. Exa. Mons.
Charue, "Como os ç tô l i r o
a s crêem na Bíblia" (Bruxelas, 1 9 4 1 ) ; R. Poclman,
" Abramos a Bí bl ia " (Paris, Bruxelas, 1 9 5 1 ) ; "Como ler a B í bl i a ? " e a série
dos l i bretos edi tados pela "Liga do Evangelho" (2, rua Planche, Pari s, 6." ) .
"O Povo da Antiga Aliança" d o P. Dheilly ( Pa ri s 1952 e o excel e n te trabalho
,

de Eugene Joly, "As fontes bíblicas" (Paris, 1 950) não se referem senão ao
Antigo Testamento.

Introduções históricas

Será suficiente indicar as duas grandes obras de Mons. G. Ricciottti, sôbre


a "História de Israel e de Jesus-Cristo", traduzidas do italiano para o francês
( 1947 e 1950 ) , e, mais suncintos e literários, os dois volumes da "História Santa"
de D aniel Rops : 1 . "O Povo da Bíblia" (Paris, 1943 ) , 2 . "Jesus em seu
-

tempo" (Paris, 1945).

Introduções geográficas

As grandes obras clássicas : as de Mons. Legendre, o "País Bíblico" ( 1928)


e do P. Abel, "Geografia da Palestina" ( 1933) são ultrapassadas por publica­
ções de estilo mais moderno, máxime o belo "Atlas da Bíblia" de Luc Grol­
lenberg (Paris, 1955) .
São também dignos de menção os álbuns ilustrados de belas fotografias
de R. Leconte : "Nos passos de Jesus" (Paris, 1953) e M. H. Lelong, "Terra
Santa" (Paris, 1955) , assim como os dois de "Paisagens e documentos" que
acompanham as obras de Daniel-Rops.

Livros de caráter espiritual

:e, sobretudo, nesta categoria que a bibliografia é inesgotável. Ter-se-á


disto uma idéia compulsando os trabalhos de ]. Coppens "As harmonias dos
Dois Testamentos" (Tournai, 1949). Em primeiro plano, é de citar-se a ri·
quissima obra de Dom Celestin Charlier : "A Leitura Cristã da Bíblia" (Ma­
redsous, 1951). Não lhe falta, para ser perfeito, senão proporcionar referên·
das mais minuciosas do próprio texto bíblico. As duas coleções "Testemu­
nhas de Deus" e "Lição divina" constituem numerosos volumes, dignos de
atenção, entre os quais o do P. Celin: "As linhas mestras do Antigo Testa·
INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS 125

mento" (Paris, 1948 ) , e para completar, o substancial trabalho de L. Bouyer,


" Bíb lia c Evangelho" (Paris, 1 9 5 1 ) ; o de N. Peters, "Nossa Bíblia, fonte de
vida" (traduzido do alemão, B ru g es, 1950) é, infelizmente, muito compacto.
Um livro admirável, escrito por uma protestante, S. de Dietrich, "O desígnio
de Deus" (Lausanne, 1945) não melindraria, senão raramente, as consciências
católicas. Enfim, para conhecer as idéias de Paul Claudel sôbre o assunto
em que tanto se comprazia, é suficiente compulsar o "Amo a Bíblia", 0 pri­
m eiro dos seus livros póstumos (Paris, março de 1955) .

Ver também na presente coleção "Sei e Creio", as obras números : 61,


62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69 e 70. As obras 71 e 72 são consagradas
aos apó crifos .

Edições da Bíblia em Jlortuguês

Ainda ressôa, prestes, porém, a extinguir-se, a voz dos que, receosos de


serem mal interpretados os textos sagrados, ou seu alcance indevidamente com­
preendido, d e tantas cautelas lhe cercaram a leitura que cingida quase ficou
a grupo reduzido dos que de suas páginas se abeberavam.

V em, contudo, a Igreja, dia a dia, reagindo contra o desconhecimento, tão


generalizado entre os católicos, dêste Livro Sagrado. Apenas, como guarda fid
dêsse tesouro que lhe constitui o alicerce, alerta o mundo católico contra as ua­

duções que reputa eivadas de falhas ou deturpadoras do seu verdadeiro sentido.

Em precios� trabalho sôbre "O Católico perante a Bíblia", Frei Adauto


de Palmas, O. F. M., reportando-se às traduções da Bíblia em português, dis­
tingue em quatro períodos a respetiva evolução. O "período de improdução",
compreendido entre os anos de 1 100 e 1 300, quando do inicio da nacionalidade
portuguêsa, apenas existindo manuscritos da Bíblia, e que os doutos os liam
em outras línguas que a portuguêsa. A êste período sucedeu o das "Experiên·
cias", entre 1300 e . 1 5 50. Foi, então, que os monges do Mosteiro de Alcobaça
efetuaram a primeira tradução, em língua portuguêsa compreendendo os Atos
dos Apóstolos e uma História abreviada do Antigo Testamento. :a esta a mais
antiga tradução bíbliqa em português.

Distingue, a seguir, o mesmo autor o "periodo de suspensio" que perdu­


rou de 1 5 50 a 1 750, quando da introdução do "livre exame" em assuntoS bi·
blicos pelo protestantismo. Tal atitude forçou o Papa Pio IV a só permitir
aos católicos a leitura da Bíblia, m ediante prévia licença da a utoridade ecle­
siástica. Assim a tradução, em português, do Novo Testamento, feita em 1681
pelo Padre João Ferreira A. de Almeida, que se tomou ministrO calvinista. 4
126 QUB É A BÍBLIA----
? ---
----------------------�---

tida como eivada de "adulte rações e mutilações". A êste período sucede o de


"atividade" que, iniciando-se em 1 750, p.rossegue até nossos dias. Em Lisboa,
traduções em português desde l ogo foram feitas, pertencendo uma a Francisco
de Jesus Maria Sarmento, entre 1 777 e 1 785, e outra, de 1 778 a 1 790, ao Padre
Antonio Pereira de Figueiredo, o qual traduziu o Novo Testamento, os Salmos
e os demais l ivros do Antigo Testamento.
Ainda em Portugal surgiram, em anos seguintes, várias traduções dos Livros
Sagrados. Assim Paiva Pona, em 1895, lançou a "Bíblia Popular", ilustrada
por Drioux. Em 1909, também em Lisboa, pelo Padre Santana foi traduzido
o Evangelho segundo São Mateus, e, em 1915, no Pôrto, foi o Novo Testamento
traduzido pelo Dr. Joaquim de Assunção. Nesta mesma cidade, em 1932, foi
editada a "Bíblia Sagrada", traduzida e comentada pelo Padre Mateus Soares.
Destas diversas traduções, várias edições foram feitas em datas posteriores.
Também no Brasil, em 1845, no Estado do Maranhão, foi editada a pri·
meira tradução do Novo Testamento, por D. Fr. Joaquim de Nossa Senhora
de Nazaré.
Aprovada pelo Arcebispo da Bahia, foi reeditada, em 1864, no Rio d e
Janeiro, pela Livraria Garnier, a Bíblia Completa, d e Figueiredo, e nova edi­
ção, pela mesma livraria, em 188 1.
Monsenhor D. José Basilio Pereira, na Bahia, em 1902, traduziu os livros
do Novo Testamento, os quais foram editados pelos Religiosos Franciscanos, e
posteriormente reeditados.
Os Santos Evangelhos e os Atos dos Apóstolos foram traduzidos em 1905,
no Rio de Janeiro, pelo Padre Pedro Booz, da Congregação da Missão. Na
mesma cidade, em 19 12, o Padre Pedro José de Sena Freitas traduzia os quatro
Evangelhos, impressos pela Tipografia do Jornal do Comércio.
,
Pelo referido Mons. D. José Basilio Pereira foram traduzidos "Os Salmos .
e o "Livro de Jó", em 1922, na Bahia.
A Livraria Católica do Rio de Janeiro iniciou, em 1932, a publicação em
..
fasdculos da Bíblia Sagrada (Antigo e Novo Testamento) , versão do Padre
Antonio Pereira de Figueiredo.
O "Novo Testamento", tradução do Padre Huberto Rohden, foi editado
em Petrópolis, em 1934, tendo tido várias edições posteriores.
Em São Paulo, a "Pia Sociedade de São Paulo", reeditou, em 1935, a
tradução dos "Evangelhos e Atos dos Apóstolos", por D. Frei Joaquim de
Nossa Senhora de Nazaré.
Nova edição esmerada foi feita, em 1938, na Bahia, do "Novo Testa­
mento", tradução de Mons. José Basilio Pereira.
A Editôra ..Vozes" Ltda., de Petrópolis, publicou, em 1939, o "Novo
TestamentO", sob a direção de Frei João José Pedreira de Castro, O. F. M.
INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS 127

Os "Santos Evangelhos", tradução do Padre Alvaro Negromonte, . tiveram


em 194 1 a sua 1. • edição e, em 1943, a 2. •.
Em 194 1 foi editado na Bahia, em dois volumes, (latim e português) 0

"Nov o Testamento", pelo Pe. Frei Damião Klein, O. F. M.


Em São Paulo foi reeditada, em 1943, a "Biblia Sagrada", tradução de
Pe. Matos Soares, pela "Pia Sociedade São Paulo".
Pela Editôra "Vozes" Ltda., de Petrópolis, foi levada a efeito, em 1944.
uma edição popular de 50 . 000 exemplares dos Santos Evangelhos de Nosso
Senhor Jesus Cristo" por Frei João José Pedreira de Castro, a qual foi reedi­
toada, em 1949 e 1953.
Sob a direção do Pe. Antonio Charbel, foi editada em São Paulo, em 1952.
a "Biblia Sagrada", versão do Pe. Antonio Pereira de Figueiredo.
Também, em 1952, foram editados, em Petrópolis, os "Quatro Evangelhos"•
traduzidos do grego pelo Pe. Lincoln Ramos, os quais foram reeditados em
1956. Nêste último ano, ainda em Petrópolis, mais uma tradução foi feita do
"Novo Testamento", e esta de autoria de Frei Mateus Hoepers, pela Editôra
"Vozes" Ltda.
Por sua vez, a Livraria "Agir" Editôra iniciou, também em 1956, a pu­
blicação em fasdculos dos livros de "Tobias", "Judite" e "Ester".
A êstes dados, colhidos na obra, acima citada, de Frei Adauto de Palmas.
podemos aditar : "O Novo Testamento", tradução de Dom Vicente Zioni.
editado em 1 947.
Acham-se em preparação : "A Santa Bíblia" tradução dos textos originais.
e anotações por exegetas especializados, membros da Liga de Estudos Biblicos.
da Livraria "Agir" Editôra; e "A Santa Bíblia", versão portuguêsa, autorizada
d;t tradução francesa dos Monges de Maredsous (Bélgica) , a ser publicada pela
Editôra "Ave Maria", sob a orientação de Frei João José Pedreira de �
do Centro Bíblico de São Paulo.


INDICE

I - Bíblia, Livro dos Livros, pág. 7


Os livros sagrados (7) . - O livro mais lido do mundo (9). - Os ca­
tólicos em face da Bíblia ( 10) .

11 - De nossas "Bíblias" à paltnJra, pág. 13

O triunfo da Escritura ( 16) . - Os manuscritos da Bíblia (18). - A


Bíblia nas antigas traduções ( 2 1 ) . - A critica textual (23) .

Ill - O Cânon dos dois Testamentos, pág. 25

Ler uma referência bíblica (26) . - Os dois Testamentos (27). - O


Cânon, regra de fé (28). - O Cânon do Antigo Testamento (30). -

O Cânon do Novo Testamento (30) . - Um mundo estranho : O Apoca­


lipse (32).

IV - O Livro em que Deus fala, pág. 35


O que é exatamente a inspiração (36) . - Se o Senhor falar, quem resis­
tirá ? (37). - Deus não pode errar (38). - Os escribas de Deus (39).

V - O Livro ditado a homens, pág. 41


Os autores (42 ) . - Traduttore, Traditore ? (44). - Os gêoeros literi.­
rios (46).

VI - A Bíblia e a História, pág. 49

A resposta dos arqueólogos (50) •


A história eaclarec:e o tato sa­
. -

grado ( 5 1 ) . - Influências sôbre a Bfblia (54). Limites da hist&ia (»).


-
130 QUE É A BÍBLIA ?

VII - O Livro dos Atos de Deus, pág. 57

O problema dos milagres (58 ) . - Os acontecimentos, Atos de Deus


(60). - O mistério de Israel (62) . - A Obra do Oleiro (63) .

VIII - O Amigo Testamento, Livro de preparação, pág. 67

A era dos Patriarcas (68) . - O legislador de Deus (70 ) . - Os Juízes


e os Reis (7 1 ) . - A mensagem dos Profetas (73). - Os textos de após
exílio (75).

IX - O Novo Testamento, Livro da Revelação, pág. 79


Evangelho, Boa Nova (80) . - Os três Evangelhos "Sinópticos" ( 8 1 ) .
O grupo "Joanino" (83). - O grupo "Pauliniano" (84 ) . - A s Epístolas
"Católicas". A Igreja, guardiã do Depósito (86) .

X - O "Moinho místico", e os sentidos da Bíblia, pág. 89


Do sinal � realização (9 1 ) . - Os três sentidos da Bíblia (94) .

XI - Uvro também do homem, pág. 99


Beleza da Bíblia ( 100) . - Para instrução nossa ( 102.

XII - A fome de ouvir a Palavra de Deus, pág. 107


Orar com a Biblia ( 108). - Bíblia, oração da Igreja ( 1 1 1 ) . - O ho­
mem biblico é o favorito de Deus ( 1 1 2 ) .

Quadro d e Concordância dos Evangelhos ( 1 15).


radicações Bibliogrificas (123).
*

Este livro foi composto e impresso nas


oficinas gráficas ae SARAIVA S. A., d
Rua Sampson, 265, São Paulo (Brasil}
em maio de mil novecentos e cinqüenta
e oito, 4049 Ano da Fundafão da
Cidade de São Paulo.

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