João Batista de Almeida - Cuiabá 300 Anos - Um Revival

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Cuiabá, 300 anos. Um revival.

O mundo é grande pra nós tudo. Cada um


recorda na cabeça o que vem, o que pode
falar pro outro. O sujeito pega, fica com ele
ali. Pode contar.
(anônimo, apud, Maria Francelina Ibrahim
Drummond, in, Do Falar Cuiabano).

Os fatos quando registrados não sucumbem sob a névoa do esquecimento.


De modo que, olhos, mente e ouvidos são como um relicário a guardar o tempo e os fatos
nele vividos, de maneira a perpetuá-los, pela oralidade e pela escrita, para que possam ser
transmitidos às gerações futuras.
Lugar e tempo compõem, com os fatos, aquilo que chamamos de história.
Portanto, é a história desse lugar chamado Cuiabá e desse tempo de trezentos anos de sua
existência que, de maneira fragmentária, buscarei rememorar.
Transcorria o século 17. A busca do ouro fazia com que bandeirantes
paulistas adentrassem a vasta hinterlândia brasileira. Destarte, no transcurso das décadas de
1670 a 1680, o bandeirante Manoel de Campos Bicudo, na confluência dos rios Coxipó e
Cuiabá, fundou um pequeno povoado, ao qual deu o nome de São Gonçalo.
Mais tarde, atraídos pela notícia da existência de grande população indígena
(coxiponés, guaicurus, bororos e os destemidos paiaguás), a bandeira paulista comandada
por Pascoal Moreira Cabral, aportou ao local visando a captura de indígenas a fim de
submetê-los a mão de obra escrava e, principalmente, a busca do ouro. Tendo ele, a fim de
garantir o domínio da capitania de São Paulo, em 8 de abril de 1719, lavrado e assinado a
Ata de fundação de Cuiabá, a princípio com o nome de Arraial de Nossa Senhora da Penha
de França, mais comumente chamado de Arraial da Forquilha. Posteriormente, em 1722,
outro bandeirante, Miguel Sutil, descobriu quantidade ainda maior de ouro às margens do
córrego da Prainha, no entorno da colina do Rosário, denominando-a Lavras do Sutil, o que
acarretou intenso fluxo de pessoas à região. Isso durou cerca de uma década.
No início de 1727, foi o Arraial elevado a Vila, com o nome de Vila Real do
Senhor Bom Jesus de Cuiabá. Tendo sido a Vila elevada à condição de cidade em 1818,
tornando-se capital da província de Mato Grosso em 1835. (fontes: Sônia Regina Romancini, in,
Cuiabá: paisagens e espaços da memória, Ed. Cathedral, 2005; Maria Auxiliadora de Freitas, in, Cuiabá,

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Imagens da cidade, Ed. Entrelinhas, 2011; site Portal Mato Grosso-Brasil, verbete História de Cuiabá,
acessado em 04.02.2019; João Carlos Vicente Ferreira, site Portal Mato Grosso, verbete História de Cuiabá,

acessado em 14.02.2019).

Cuiabá é considerada como sendo o marco geodésico da América do Sul,


situado no antigo Campo D'Ourique, onde hoje está localizada a Câmara Municipal. Ali
eram realizadas as famosas touradas em Cuiabá. “As touradas realizavam-se depois das
festas do Divino. No campo de Ourique ou no Largo da Forca, construia-se enorme curro
com cerca de madeira, tomando quase toda a extensão da praça. (…) Naquele tempo as
touradas eram o maior acontecimento social de Cuiabá. Ocasião para estrear roupa nova,
para exibição de chapéus femininos. Fora da cerca, mesas e cadeiras rodeavam tendas de
comida e bebida armadas pelo comércio da cidade.” (M. Cavalcanti Proença, in, No Termo
de Cuiabá, MEC – Instituto Nacional do Livro, 1958).
O seu nome deriva-se, provavelmente, da palavra bororo ikuiapá, que
significa “lugar da ikuia” (flecha-arpão), ou seja, lugar no qual os bororos costumavam
pescar com esse tipo de flecha no córrego da Prainha. (cf. César Albisetti e Ângelo
Venturelli, Enciclopédia Bororo, v. 1, 1962, apud, Claudio Quoos Conte e Marcus Vinicius
De Lamônica Freire, in, Centro Histórico de Cuiabá – Patrimônio do Brasil, Ed.
Entrelinhas, 2005).
Com a decadência da exploração aurífera, o Arraial regrediu
populacionalmente, estacionando no tempo e no espaço na sua existência como Vila e como
cidade durante dois séculos. Isolada do restante do país, seu dia a dia transcorria na
velocidade de uma moenda de engenho movida por tração animal. Esse isolamento fez com
que surgisse um dialeto próprio, o falar cuiabano.
Esse falar cuiabano, conforme Franklin Cassiano da Silva, é originário da
pronúncia de caipiras do interior paulista e transplantada para cá pelos bandeirantes.
Pronúncia na qual se carrega na entoação das letras x, j, g e ch, antecedidas das letras t e d.
(Subsídios para o estudo de Dialetologia em Mato Grosso, apud, Maria Francelina Ibrahim
Drummond, in, Do Falar Cuiabano, Cadernos Cuiabanos nº 5, 1978). De modo que,
exemplificando, a seguinte frase popular cuiabana seria pronunciada dessa forma: dJuca,
não detxa catchorro tchupa cadjú, catchorro que tchupa cadjú arrasta o cu no tchão.
Embora muito receptivo e amigável com as pessoas que aqui chegam com

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disposição de permanência ou não, o cuiabano adquiriu certo preconceito em relação
àqueles não nascidos em Cuiabá (provavelmente em face das zombarias deles aos costumes
e ao falar do cuiabano), fato este que originou a expressão “pau rodado”, para contrapor à
expressão “de tchapa e cruz”, esta, atribuída aos cuiabanos nativos e, reza a lenda, seriam
aqueles nascidos na Santa Casa de Misericórdia, à época administrada pelas freiras
salesianas, que colocavam nos recém-nascidos um cordão com uma pequena chapa de metal
inscrita com o nome para evitar trocas e, ainda, um cordão com um crucifixo, daí a
expressão “tchapa e cruz”. Muitos forasteiros sentiam-se discriminados com essa expressão
“pau rodado” (que no fundo era dita como gozação em contraponto às chacotas aos
cuiabanos). Essa expressão encontra-se bastante difundida pela bela música de “protesto”,
de autoria de Pescuma e Pineto, na interpretação de Pescuma e Henrique e Claudinho,
intitulada “Rasqueado do pau rodado”:
Não aguento mais ser chamado de pau rodado
Já tomo licor de pequi, já danço o siriri
Como bagre ensopado
Sou devoto de São Benedito
Até já danço o rasqueado
Adoro banho de rio, vou direto pra Chapada
Na noite cuiabana tomo todas bem geladas
Sou viciado no bozó, pescaria e cururu
Tomo pinga com amargo
Como cabeça de pacu
Eá, eá, eá, eá, só não nasci em Cuiabá
Mas no que eu cresci
Meu bom Jesus mandou buscar.

No campo da música, Cuiabá viveu intensa atividade de artistas nas décadas


de 1950/60 e que se estende até hoje, e nelas se destacaram e se destacam, Ivonildo Gomes
de Oliveira, o Mestre China, o rei do saxofone, reconhecido como um dos maiores músicos
de Mato Grosso. Francisco José Penha, o Chico Penha, exímio no pistom ou trompete, criou
a Ordem dos Músicos do Brasil, em Cuiabá. Roberto Lucialdo, compositor de lindas
músicas de rasqueado, como “Cuiabá-Cuiabá”, “Caximbocó” e “Paçoca de Pilão”. Moisés
Martins, escritor, compositor de diversas músicas que enaltecem as coisas cuiabanas, entre
elas: “Pixé” (sic), “Furrundu” e “Cidade Verde dos meus amores”. Sobressaem, ainda, Vera
Capilé, Dunga Rodrigues, Guapo, João Eloy, Vera e Zuleika e os já mencionados Pescuma e
Henrique e Claudinho. Na década de 1960 surgiu a primeira banda de rock de Mato Grosso,

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“Jacildo e seus Rapazes”, composta pelos instrumentistas Jacildo, Neurozito, João Bolinha e
Formiga e o vocalista Juarez Silva. Nesse mesmo período, outra banda, “Los Bambinos”,
também fez grande sucesso.
O humor cuiabano sempre se ressaiu, seja pelos apelidos dado às pessoas,
seja pela formação de humoristas que fizeram e fazem sucesso, destacando-se Liu Arruda,
irreverente e sem papas na língua, com a personagem “Comadre Nhara”. Foi homenageado
pelo Tribunal de Contas do Estado que deu ao seu auditório o nome de “Espaço Cultural Liu
Arruda”. A dupla Nico e Lau, formada por Lioniê Vitório e Justino Astrevo, lançada com
esse nome em 1995, no programa Revista da Manhã, da rádio Gazeta. Ivan Belém, que foi
um dos fundadores do primeiro teatro de rua de Mato Grosso, o Grupo Gambiarra.
Na área de comunicação, instalou-se em Cuiabá, em outubro de 1939, a
Rádio A Voz do Oeste (RVO), através de Jercy Jacob, sendo a primeira rádio AM (ondas
médias) da cidade. Foi a pioneira em implantar programas de auditório ao vivo, com o
“Domingo Festivo da Cidade Verde”(cf. Aníbal Alencastro, in, Cuyabá, Histórias, Crônicas
e Lendas, Ed. Yangraf, 2003). A RVO apresentava também, o programa preferido das
famílias cuiabanas: “A Crônica das doze e cinco”, nas possantes vozes de Alves de Oliveira
e Adelino Praeiro, com o fundo musical Moonlight Serenade, de Glenn Miller. Depois
vieram a Rádio Cultura, hoje em FM (frequência modulada) e pertencente ao grupo Gazeta
de Comunicação e a Rádio Difusora Bom Jesus de Cuiabá, pertencente à Arquidiocese de
Cuiabá. Posteriormente, surgiram outras emissoras: Rádio Vila Real, Rádio Centro América,
Rádio Gazeta, todas em FM, entre outras. A Voz do Oeste e a Difusora são as únicas que
ainda operam em AM.
A primeira emissora de televisão inaugurada em Cuiabá ocorreu em 1969, a
TV Centro América, do Grupo Zahran, e que foi inaugurada pela dinâmica Antonieta Ries
Coelho, que ficou à frente de sua direção por algum tempo, emissora afiliada a Rede Globo,
Surgiram depois, a TV Rondon, a TV Brasil Oeste, a TV Pantanal e a TV Record
(inicialmente como TV Gazeta), entre outras emissoras.
O jornalismo cuiabano viveu um período fértil em termos de órgãos
periódicos, semanais e diários. Alguns deles: A Cruz; O Social Democrata; O Combate;
Tribuna Liberal; Folha Mato-grossense; O Estado de Mato Grosso; Equipe; Jornal do Dia;
Diário de Cuiabá; Diário de Mato Grosso; Folha do Estado; Correio da Imprensa e A

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Gazeta.
No setor teatral Cuiabá é bastante profícua. Um grande nome, como
teatróloga e musicista, é o de Zulmira Canavarros, uma mulher à frente do seu tempo; foi
uma das fundadoras do Mixto Esporte Clube (1934) e do Clube Feminino (1940). Hoje é
nome do belo teatro da Assembleia Legislativa de Mato Grosso e personagem principal do
livro “Zulmira Canavarros, a Egéria Cuiabana”, de autoria do escritor e historiador Benedito
Pedro Dorileo. Outros nomes de destaque: Amaury Tangará, com a produção “Pobre é quem
não tem jipe”; Glorinha Albues, com a produção “Rio Abaixo-Rio Acima”; Lúcia Palma,
que participou de três curta-metragens, sob a direção de Marithê Azevedo, dentre os quais
“Licor de Pequi” (2016); Luís Carlos Ribeiro e Flávio Ferreira, criador e diretor da
Associação Cultural Cena Onze, com as produções “O louco nosso de cada dia” e “O último
circo do mundo”. Nas artes plásticas Cuiabá conta com grandes nomes: Gervane de Paula,
Dalva de Barros, Aline Figueiredo, Adir Sodré, entre outros.
Cuiabá também teve uma fase áurea no campo cinematográfico. Um dos
primeiros cineastas de Cuiabá foi Lázaro Papazian, mais conhecido como “Cháu”, apelido a
ele atribuído pelo costume de despedir-se das pessoas com a expressão italiana “ciao”.
Nascido na Armênia em 1906, veio para Cuiabá em 1926 (cf. Márcio Moreira, in, Cuiabá
na lente do Foto Cháu, 2000).
Nessa área de cinema, tivemos ainda, Névio Lotufo, o primeiro cineasta
genuinamente cuiabano. Comerciante, proprietário da bicicletaria Motosblim e do pequeno
cine Motosblim, na rua 13 de junho, centro, era um tremendo “pé de valsa”, foi fundador da
Cruz Vermelha em Mato Grosso e divulgador do escotismo em Cuiabá. Além disso,
apreciava carros antigos, sendo que dois deles ficavam permanentemente estacionados em
frente à loja.
Um dos maiores conhecedores da sétima arte em Cuiabá é o escritor,
produtor cultural e historiador Aníbal Alencastro, membro do Instituto Histórico e
Geográfico de Mato Grosso. Foi projecionista nos cines São Luiz, Teatro Cuiabá e
Bandeirantes; é autor dos livros “Anos dourados dos nossos cinemas” (1996) e “Cuyabá-
Histórias, Crônicas e Lendas” (2003).
Os cinemas de rua, antes do surgimento dos Shoppings, foram abundantes
em Cuiabá, contados em dezenas, entre os quais cito os principais: Cine Teatro Cuiabá

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(1942), ultramoderno para a época, Cine São Luiz (1958), Cine Bandeirantes (1963) e Cine
Tropical (1965), este, um dos melhores do país, quiçá o melhor enquanto esteve em
funcionamento. Destes, apenas o Cine Teatro Cuiabá continua em atividade.
Há em funcionamento, o Cineclube Coxiponés, da UFMT e o CineSesc do
Sesc Arsenal (local onde funcionava o Arsenal de Guerra), no Porto, local aprazível e onde
são vendidos doces e comidas típicas cuiabanas e objetos de artesanato local, aliados às
agradáveis apresentações musicais e de dança ao ar livre.
Os carnavais de rua e dos clubes cuiabanos, eram famosos e muito
concorridos. Nos clubes, tínhamos animados bailes carnavalescos no Clube Feminino, nos
clubes Náutico e Antônio João (ambos no Porto), no Clube Dom Bosco e no Tênis Clube,
hoje não mais. O carnaval de rua era animado e atraia grande público na avenida Generoso
Ponce e depois, na avenida Getúlio Vargas, para assistir ao desfile dos blocos carnavalescos,
entre os quais: “Marinheiros”, “Sempre Vivinha”, “Estrela Dalva” e o “Pega no meu”. Um
fato interessante ocorreu no final da década de 1960, consistente na formação da escola de
samba denominada “Deixa Cair”, e na qual havia uma ala formada por prostitutas da
“Carminha” (cabaré localizado no Ribeirão da Ponte), e apesar de a escola ter apresentado
coreografia inovadora, arrojada e de grande beleza, foi desclassificada pela comissão
julgadora, em razão da dita ala, o que fez com que o excelente jornalista Ronaldo de Castro
redigisse um editorial no jornal Correio da Imprensa, com o título “Vestais paridas”, no qual
teceu ácida crítica à hipocrisia de determinado segmento da sociedade cuiabana.
Na década de 1960 e o início da década de 1970, as noites cuiabanas eram
efervescentes. Após assistir algum filme em um dos cinemas do centro da cidade a
juventude se dirigia ao Beto Lanches, um bar moderno para aquele período, com uma
grande área ao ar livre e outra coberta, ou então, indo ao Jardim Alencastro, local de
paquera, onde as pessoas ficavam dando voltas em torno do chafariz com espelho d’água
(demolido para a construção da fonte luminosa) e do coreto (mais tarde transferido para a
praça Ipiranga para dar lugar a um coreto de concreto), e vez por outra tomando café em um
gasômetro remanescente situado na esquina da avenida Getúlio Vargas. Alguns rapazes iam
ao bar do Bugre para tomar cerveja ou jogar sinuca, onde sempre estavam presentes dois
profissionais de sinuca, “Taquarinha” e “Bosta Seca”, à espera de incautos a serem
“depenados”. Havia o bar Internacional, na avenida Getúlio Vargas e era point dos literatos

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e dos boêmios. Em 1974 foi inaugurado o bar e restaurante Choppão e constitui-se na
atualidade ponto de concentrações política e carnavalesca. Ali é servido o já famoso
escaldado.
Nessas décadas os jogos de boliche eram bastante concorridos. Os primeiros
estabelecimentos desse tipo foram o Pino’s Ball, na avenida Historiador Rubens de
Mendonça (av. do CPA); o Bolichenelo, na rua Miranda Reis, em frente à antiga Rodoviária
e o Bamboliche, localizado na praça Rachid Jaudy, onde hoje funciona um templo
evangélico.
Tinha Cuiabá as animadas noitadas na famosa boate Sayonara, casa de
shows e balneário, situada à margem direita do rio Coxipó, idealizada e montada por Nazi
Bucair. Anos mais tarde, foi construído nas proximidades, o Balneário Santa Rosa, pelo
dinâmico empresário João Celestino Cardozo Neto, o “João Balão”, que concorria com o
Sayonara. Ambos trouxeram inúmeros artistas famosos do país.
O futebol cuiabano era muito empolgante nas décadas de 1960 e 1970.
Vários times tomavam parte no campeonato cuiabano: Mixto, Dom Bosco, Palmeiras,
Riachuelo, São Cristóvão, Internacional, Boa Vista e Operário de Várzea Grande, com
craques em abundância, Ruiter, Glauco, Almiro, Franklin, Damasceno, Bife e tantos outros.
Tendo o Mixto conquistado, em 1969, o histórico troféu dos 250 anos de Cuiabá.
No imaginário cuiabano, são muitas e variadas as lendas e as crendices.
Entre elas está a do minhocão do Pari (região ribeirinha do Cuiabá, rio acima), um monstro
do rio com formato de minhoca, mas de grande dimensão, com cerca de vinte metros de
comprimento e dois de espessura, que apavorava ribeirinhos e pescadores daquela região. A
lenda da alavanca de ouro, segundo a qual existiria enterrada na colina do Rosário uma
alavanca toda de ouro, que aguçava a cobiça de muitos mineradores, os quais usavam a mão
de obra escrava nessa aventura de buscar apanhá-la, e à medida que cavavam mais a
alavanca se aprofundava no solo, gerando um trabalho inútil e desgastante.
Tivemos aqui vários personagens, que divertiam e por vezes amedrontavam
crianças. Destaco: Peteté, um homem pequeno por deficiência física, que andava pelo centro
da cidade mexendo com as pessoas e por elas sendo importunado; Ezequiel e sua
cachorrada; Zé Bolo Flô; Xande; Jandira louca e, ainda, Maria louca, uma jovem mulher
negra que perambulava pela praça Alencastro, divertindo-se e divertindo os presentes ao

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passar a mão na bunda de circunspectos senhores que ali conversavam; o susto e a reação
destes era motivo de muitas risadas.
Havia a figura enigmática da Maria Taquara, andarilha, mulher magra e
muito alta (daí o apelido Taquara), pioneira em Cuiabá no uso de calça comprida pelas
mulheres. Por inúmeras vezes eu, adolescente, e minhas irmãs de mais idade, presenciamos
as suas idas e vindas pela frente da nossa residência na avenida Getúlio Vargas, próxima ao
Choppão; pela manhã, vindo de sua moradia (um casebre feito de folhas-de-flandres e
pedaços de tábuas, localizado num matagal no bairro Lavapés, nas proximidades de onde
está hoje o Shopping Goiabeiras), levando sobre a cabeça uma enorme trouxa, em direção
ao centro da cidade e, no final da tarde, ei-la de volta em sentido inverso ao da manhã. O
que tinha feito e por onde andou durante o dia, só Deus sabe. Dizem alguns, que ela era
negra. Não era. Tinha a pele clara, queimada pelas andanças sob o sol. Dizem outros, que na
trouxa que levava sobre a cabeça eram roupas para serem lavadas no córrego da Prainha.
Não era bem assim. Mesmo porque, à época, o córrego da Prainha já começava a ser um
esgoto a céu aberto e mais, se isso fosse verdadeiro, de ser ela uma lavadeira, com toda
certeza iria lavar essas roupas no ribeirão da Ponte, muito mais perto de onde ela tinha sua
moradia e que possuía naquele tempo água abundante e cristalina. Na verdade, naquela
trouxa ela levava todos os seus pertences, seus sonhos e delírios.
José Jacinto, mais conhecido como “Jejé” ou “Jejé de Oyá”, figura exótica e
irreverente. Negro e homossexual, rompeu barreiras do preconceito e da discriminação. Foi
colunista social em jornais da capital; costumava-se apresentar nos bailes e blocos
carnavalescos com fantasias extravagantes. Outra personagem enigmática e motivo de
controvérsia foi a chamada Mãe Bonifácia. Uma negra descendente de escravos e que tinha
sua morada em densa mata, onde praticava benzeduras e curas com rezas e ervas
medicinais, notadamente de outros descendentes de escravos. O local da mata e o bairro
onde estava situada sua moradia receberam o nome de Mãe Bonifácia, e onde está situado
atualmente o maior parque da cidade, com o seu nome.
Temos a história do cemitério do Cai Cai, localizado onde é hoje a praça
Manoel Murtinho (entre a av. São Sebastião e a rua Coronel Barros), construído em 1867
para enterrar as vítimas da epidemia de varíola que assolou Cuiabá naquele ano, matando
milhares de pessoas (cf. Paulo Pitaluga Costa e Silva e Moacyr Freitas, in, Quadros

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Históricos de Mato Grosso – Período Provincial, Ed. Buriti, 2002). Dizem os mais antigos,
que o transporte dos cadáveres para o cemitério era feito em redes amarradas em um grande
pedaço de madeira e carregado por dois homens, um em cada extremidade, os quais,
exauridos pelo cansaço ou pela doença, caíam, derrubando o cadáver ao solo, advindo desse
fato a denominação “Cai Cai”.
No cenário histórico cultural cuiabano, merecem menção o Museu da
Imagem e do Som, com grande acervo musical, cinematográfico e fotográfico, situado na
rua 7 de setembro, no centro histórico; o Museu de Arte Sacra, felizmente reaberto em 7 de
fevereiro do ano em curso, depois de ficar fechado durante dois anos. Localizado no
Seminário Nossa Senhora da Conceição, anexo à Igreja do Bom Despacho, nele encontram-
se obras religiosas históricas, a maior parte delas que foram pertencentes à antiga Catedral
de Cuiabá, demolida em 1968 com o emprego de enorme quantidade de dinamite; o Museu
da Caixa D'Água Velha, no local onde funcionou o primeiro sistema de abastecimento de
água de Cuiabá, construído em 1882; a Academia Mato-grossense de Letras (AML),
fundada em 22 de maio de 1921, instalada oficialmente em 07 de setembro de 1921,
inicialmente com o nome Centro Mato-grossense de Letras, transformado em Academia
Mato-grossense de Letras em 7 de setembro de 1932, localizada na rua Barão de Melgaço.
Ainda, no espaço cultural cuiabano, contamos com a Casa do Artesão, no
Porto, onde são encontrados objetos culturais artesanais elaborados por artesãos ribeirinhos
e indígenas mato-grossenses. Merecendo referência na música, a Banda do Mestre Inácio,
que fazia retretas no Jardim Alencastro e animava as festas do Senhor Divino e de São
Benedito; a Orquestra de Flautas, do Instituto Flauta Mágica, fundada em 1998 e que ensina
canto e flauta doce às crianças e jovens da periferia de Cuiabá; a Orquestra Sinfônica da
UFMT e a Orquestra do Estado de Mato Grosso, criada em 2005.
Com referência ao patrimônio cultural material, podemos citar a viola de
cocho, as redes de renda, os objetos e esculturas de artesanato em argila dos ribeirinhos do
rio abaixo; os pilões de socar e as cadeiras de balanço confeccionadas de palha, e outros.
No que concerne ao patrimônio cultural imaterial, destacam-se o Cururu, o
Siriri (dança com emprego da viola de cocho, do ganzá e do mocho) e, na representação do
Siriri, merece menção honrosa o grupo Flor Ribeirinha, hoje reconhecido nacional e
internacionalmente e, ainda, as festas de São Benedito e do Senhor Divino.

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Quanto ao patrimônio histórico cultural material, é de se lamentar no que
diz respeito à questão do tombamento de imóveis em Cuiabá.
Pelo que temos visto em Cuiabá, a expressão tombamento está mais para o
sentido de “por abaixo” do que para o de preservação. Basta um breve passeio pelas ruas
Barão de Melgaço; Voluntários da Pátria e 7 de setembro, no centro histórico, para que se
constate isso, dado o número de imóveis tombados ao chão. O mais recente, foi o imóvel
onde funcionou a Gráfica e Papelaria Pêpe, do século 19, na rua 7 de setembro, a primeira
de Cuiabá, que desabou no dia 29 de janeiro deste ano. E, provavelmente, não será o último.
No que se refere às cruzes pretas de Cuiabá, quase não há registro.
Provavelmente foram elas construídas por escravos ou descendentes de escravos, não se
sabendo em que época. A versão popular mais plausível a respeito do porquê das suas
construções é a de que elas foram erigidas para comemorar a abolição da escravatura,
ocorrida em 1888, exceto a do bairro Lavapés, erigida em homenagem a Maria Mendes,
antiga moradora daquela região e assassinada no local.
Das três que se tem notícia, apenas duas resistiram a sanha do “progresso”.
As que dão nome ao bairro da “Cruz Preta”, localizada na esquina das ruas Benedito Leite e
Comandante Costa, é a única que ainda preserva sua característica original; a outra, fica no
bairro Santa Helena, é conhecida como “Cruz do Chilon” e, atualmente, de maneira
absurda, pintada na cor branca. Concernente a terceira, então localizada no bairro Lavapés,
em frente ao portão principal do antigo 16º BC, hoje 44º BIM, foi destruída para a
construção de uma agência do Banco do Brasil. Como “compensação”, construíram mais
adiante, na praça ali existente, um arremedo, uma cruz feita de concreto, que nada tem a ver
com a história de Cuiabá.
Não se sabe porque somente essas três cruzes foram erigidas, ou se houve
outras que teriam sido destruídas, a exemplo do que aconteceu com a cruz preta do bairro
Lavapés. Existiu a chamada “Cruz das Almas”, nome do córrego Cruz das Almas, que tinha
sua nascente na parte alta da rua do Coxim (hoje av. Isaac Póvoas), descendo pela travessa
do Vilas Boas (hoje av. Generoso Ponce), ladeando a praça da Forca, hoje praça Ipiranga,
desaguando no córrego da Prainha. Essa denominação Cruz das Almas originou-se,
provavelmente, do fato de ali naquela praça ser costumeiro o emprego de execução de
criminosos na forca. Não havendo registro de que essa cruz fosse preta ou não.

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A culinária cuiabana é bastante diversificada e apreciada: o maria izabel, o
escaldado, a paçoca de pilão, o arroz com pequi, o revirado, o ensopado de pintado, cachara,
bagre e pacu; o pacu e a piraputanga fritos ou assados. E, para a sobremesa, o furrundu, o
arroz doce, a canjica e o doce de caju. Tem o licor de pequi, a cachaça com raízes amargas,
como a chamada “nó de cachorro” (afrodisíaca, dizem), o bolo de arroz e de queijo,
principalmente os da Dona Eulália. O piché, uma paçoca feita de milho torrado e socado no
pilão, acrescido de açúcar e canela em pó, que tem sua receita dada na bela música “Pixé”,
de Moisés Martins: “milho torradinho socado, canela açucarada …”.
Na política cuiabana, destacaram-se na Câmara Municipal, Aecim
Tocantins, Ana Maria do Couto, a “May”, Benedito Pedro Dorileo, Evaldo de Barros,
Estevão Torquato da Silva, Gilson de Barros, entre outros. Ainda na política, destacaram-se
nacionalmente, Filinto Müller, Eurico Gaspar Dutra, Roberto Campos e Dante de Oliveira.
Merece menção a figura ímpar de Cândido Mariano da Silva Rondon,
responsável pela construção das linhas telegráficas e de infraestruturas de estradas na vasta
hinterlândia brasileira, ligando-a ao restante do país. Nascido em Mimoso, distrito de Santo
Antônio de Leverger, em 1865, veio para Cuiabá aos oito anos de idade. Tinha origem
indígena, diz-nos o indigenista José Eduardo Fernandes Moreira da Costa: “Cândido
Rondon, com ascendência de Guaná, Terena e Bororo da Campanha, foi quem mais
compreendeu e tocou a alma de muitos, trabalhando para perpetuar a existência dos
senhores das terras brasilis, do belo e do diverso. Os Bororo o chamavam de Págimejéra,
Nosso Chefe, a expressão de essência de um líder atemporal, e os Paresi o reconheceram
como Wazáre, heroi mítico civilizador” (Ikuiapá e os fluxos cósmicos: processo de
desterritorialização do espaço Boe-Bororo, in, Revista do Instituto Histórico e Geográfico
de Mato Grosso, nº 81, 2019.). Sobre ele, escreve o brasilianista Todd A. Diacon: “Célebre
foi o seu trabalho com os povos indígenas da bacia amazônica. Quando Rondon embrulhava
uma criança índia na bandeira brasileira, sua intenção era mostrar que, tanto no sentido
literal, quanto no simbólico, o Brasil cobria também aqueles povos. A língua, a religião e o
vestuário indicavam, cada vez mais, que a nação a que toda aquela gente pertencia era agora
o Brasil.” (in, Rondon, o marechal da floresta, Ed. Civilização Brasileira, 2006).
Na literatura cuiabana temos vários nomes exponenciais, entre eles: Rubens
de Mendonça, nascido em Cuiabá em 1915, poeta, historiador e jornalista, pertenceu a

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Academia Mato-grossense de Letras e ao Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso;
escreveu diversos livros, dentre os quais, “Igrejas & Sobrados de Cuiabá” (1978), “História
de Mato Grosso” (1967) e “Dicionário biográfico mato-grossense” (1953).
Manoel Cavalcanti Proença, nascido em Cuiabá em 1905, romancista e
crítico da literatura brasileira, seu livro “Roteiro de Macunaíma” (1950), é o melhor estudo
sobre a famosa obra de Mario de Andrade. Escreveu também, “No Termo de Cuiabá”
(1958). É nome da Biblioteca Municipal de Cuiabá.
Tereza Albues, nascida em Várzea Grande em 1936, autora renomada de
diversos romances e contos, entre os quais: “Pedra Canga”; “A Travessia dos Sempre
Vivos” e “O Berro do Cordeiro em Nova York”. Foi agraciada em Paris com Menção
Honrosa no Concurso de Contos Guimarães Rosa, com o conto “Buquê de Línguas” e
escolhida em 2013 pelo Brazilian Endowment for the Arts (EUA), como Patrona Perpétua
das Letras Brasileiras em Nova York. Seu romance “Pedra Canga” foi traduzido para o
inglês por Clifford Landers e publicado nos Estados Unidos em 2001 pela Green Integer
Press. Sua biografia consta no “Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras”, de Nelly
Novaes e tem seu nome registrado na “Enciclopédia de Literatura Brasileira” de Afrânio
Coutinho e José Galante de Souza e no livro “História da Literatura de Mato Grosso –
Século XX” de Hilda Magalhães.
Ricardo Guilherme Dicke, nascido na Baixada Cuiabana, em Chapada dos
Guimarães, escritor e artista plástico, reconhecido nacionalmente pelas suas obras “Deus de
Caim” e “Madona dos Páramos”, é considerado um ícone da literatura brasileira.
Outro escritor de grande estatura poética e intelectual, Manoel de Barros é
conhecido no país como o “Guimarães Rosa pantaneiro”, e também, como o “Poeta das
miudezas”, dada a sua capacidade de extrair beleza das pequenas coisas. Como esta:
“Prefiro as máquinas que servem para não funcionar: quando cheias de areia de
formiga e musgo – elas podem um dia milagrar de flores.” (in, Livro sobre Nada,
Ed. Record, 1996).

Nascido em Cuiabá em 1916, é considerado um dos principais poetas


brasileiros e reverenciado nacionalmente. Nos meses de janeiro e fevereiro deste ano, teve a
sua obra “Livro sobre Nada”, levada ao palco por Cássia Kiss, sob a direção de Ulysses
Cruz, na peça “Meu Quintal é maior que o Mundo”, no teatro Sesi, em São Paulo e foi tema
da 43ª edição do programa Ocupação Itaú Cultural, na av. Paulista, em São Paulo, no

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período de 13 de fevereiro a 7 de abril deste ano. É autor, entre outros, dos livros “O
Guardador de águas” (1989) e “O Livro das Ignorãças”(1997).
E, ainda, Benedito Sant'Ana da Silva Freire, nascido em Mimoso, Santo
Antônio de Leverger. Consagrado poeta em Mato Grosso, foi também professor e brilhante
advogado do júri (atuei na acusação no último júri feito por ele, na comarca de Rosário
Oeste), teve seu nome dado à Escola Superior de Contas, do Tribunal de Contas de Mato
Grosso. Autor de diversas obras, sendo algumas delas: “Meu Chão”, “Pássaro Implume” e
“Águas de Visitação”. Da sua obra “Canto-murmúrio para minha cidade” (in, Fragmentos
da alma mato-grossense, Ed. Entrelinhas, 2003), extraio os excertos adiante transcritos:
– Não, Cuiabá, não são as crianças quem lhe sangram de agulhas
envenenadas a veia jugular da vida...
– Não são elas quem lhe entopem as flautas da respiração...
– Quem enforca seu sono-sonho com gritos de – assalto!, não são suas
crianças.
– Não são elas que poluem a convivência familiar de suas praças-sem-
folguedos-de-criança...
– Quem encaixota sua qualidade de vida, não são as crianças.
– Não são elas que estão garroteando seus santos de festas, suas lendas e
mitos. As crianças não car-navalharam seu carnaval...
– Quem ordenha suas tetas maternais, para traí-las depois, não são as
crianças. Elas só sabem amar sua bondade ferida.
– Não são as crianças que debicam de sua história-orgulho-nacional.
– Quem entristece o poema sonoro que seu povo fala, não são as crianças.
– Quem povôa de poluição sonora, verbal, escrita e visual seu espaço
público, não são as crianças.
– Quem desorganiza a higiene de seus rios, não são as crianças.
(…)
– Não são as crianças que borram a imundície da vida em suas paredes
seculares. As crianças, suas crianças, Cuiabá, sabem pinturar de alegria a
cidade-útero-materno.
(…)

Cuiabá, 2019.

João Batista de Almeida


Membro da Academia Mato-
Grossense de Letras – Cadeira nº
13 e Procurador de Justiça de Mato
Grosso.

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